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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAMINHO PARA OMAHA / Robert Ludlum
O CAMINHO PARA OMAHA / Robert Ludlum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

As chamas crepitavam no céu da noite, formando sombras que pulsavam nos rostos pintados dos índios ao redor da fogueira. O cacique, envergando o traje cerimonial de seu ofício, o cocar de penas descendo até o chão pelo corpo imensamente alto, ergueu a voz com majestade real.
— Vim lhes dizer que os pecados do homem branco nada lhe trouxeram senão o confronto com os maus espíritos! Os maus espíritos vão devorá-lo e mandá-lo para as labaredas da maldição eterna! Acreditem, meus irmãos, filhos, irmãs e filhas, o dia do juízo final chegou e nós sairemos triunfantes!
O único problema para muitos dos que integravam a plateia do cacique é que ele era um homem branco.
— De que lata de biscoito é que ele saiu? — cochichou um idoso da tribo Wopotami para a índia a seu lado.
— Xiu! — fez a mulher. — Ele nos trouxe um caminhão de lembranças da China e do Japão. Não estrague uma coisa boa, Olhos de Águia!

 

 


 

 


1

O escritório pequeno e decrépito no andar de cima do edifício público era de outros tempos, o que quer dizer que ninguém, a não ser o atual ocupante, o tinha usado em sessenta e quatro anos e oito meses. Não que houvesse segredos obscuros nas suas paredes ou fantasmas malignos do passado flutuando sob o teto em mau estado; é que, simplesmente, ninguém quis usá-lo. E outro ponto deve ser esclarecido. Não ficava realmente no último andar, mas em cima do último andar, com acesso proporcionado por uma estreita escada de madeira, do tipo das que as mulheres dos baleeiros de New Bedford galgavam para rondar as sacadas, esperando — quase sempre — navios familiares que dessem sinal da volta dos seus respectivos Ahabs do mar furioso.

Nos meses de verão o escritório era sufocante, já que havia apenas uma janelinha. No inverno era gelado, pois sua estrutura de madeira não tinha isolamento e a janela batia sem parar, imune a vedações, permitindo que o vento frio entrasse, violento, como se tivesse sido convidado. Resumindo, aquela sala, aquela antiquada câmara superior com seu escasso mobiliário comprado na virada do século, era a Sibéria do órgão do governo a que estava subordinada. O último empregado regular que trabalhara ali tinha sido um desacreditado indígena americano, que cometera a temeridade de aprender a ler inglês e sugerira aos superiores, por sinal praticamente analfabetos, que certas restrições impostas a uma reserva da nação Navajo eram severas demais. Consta que o homem morreu ali no frio inverno de 1927, em janeiro, e não foi encontrado senão em maio, quando o tempo aqueceu e o ar de repente ficou empestado. O órgão do Governo era, naturalmente, o United States Bureau of Indian Affairs, de relações com os indígenas.

Para o atual ocupante, contudo, o que aconteceu antes não representava um fator de dissuasão, mas um incentivo. O vulto solitário vestido com um terno de um cinza indefinido, debruçado sobre a escrivaninha de tampo de correr, que já não era mais uma escrivaninha, pois todas as pequenas gavetas tinham sido removidas e o tampo de correr emperrara no meio, era o General MacKenzie Hawkins, lenda militar, herói de três guerras, tendo recebido por duas vezes a medalha de Honra do Congresso. Esse homem gigantesco, cujo corpo musculoso e esbelto negava a idade que tinha — confirmada talvez pelos olhos de aço e pela pele bronzeada cheia de rugas do rosto — entrara em combate de novo. No entanto, pela primeira vez na vida não estava em guerra com os inimigos dos seus bem amados Estados Unidos, mas com o próprio governo dos Estados Unidos. Por algo que acontecera cento e doze anos atrás.

A época não tinha muita importância, pensou ele, virando com um rangido sua decrépita cadeira giratória e impelindo-a até uma mesa próxima onde havia pilhas de livros enormes, antigos, forrados de couro e mapas. Eram os mesmos patifes que tinham acabado com ele, que lhe tinham tirado o uniforme e forçado sua aposentadoria! Eram todos iguais, quer estivessem enfiados nas sobrecasacas cheias de babados de cem anos atrás, quer exibissem ternos risca de giz superelegantes e cheios de frescura de hoje. Eram todos uns patifes, uns safados. Todos. O tempo não tinha importância — ia pegá-los, sim!

O general puxou a corrente de um abajur verde de haste encurvada — lá pelos anos 20 — e examinou um mapa com uma lupa enorme na mão. Depois voltou para sua decrépita escrivaninha e releu o parágrafo que sublinhara no livro, cuja encadernação se desfizera de tão velha. Seus olhos eternamente semicerrados ficaram, de repente, grandes e brilhantes de entusiasmo.

Pegou o único instrumento de comunicação que tinha a seu dispor, já que a instalação de um telefone poderia revelar sua presença, bem mais do que acadêmica, ali. Era um pequeno cone preso num tubo. Soprou duas vezes o sinal de emergência. Esperou a resposta; ela veio trinta e oito segundos depois.

— Mac? — perguntou a voz áspera através da conexão antediluviana.

— Heseltine, descobri!

— Pelo amor de Deus, vê se se acalma quando precisa falar nisso! A secretária estava aqui e acho que ela pensou que minha dentadura estava assobiando.

— Ela já saiu?

— Já — confirmou Heseltine Brokemichael, diretor do Bureau. — O que há?

— Acabei de dizer, eu descobri! Descobri o maior conto do vigário que os canalhas já aplicaram, os mesmos patifes que nos fizeram vestir roupa de camponês, meu amigo!

— Ah, como eu adoraria pegar esses filhos da mãe. Onde isso aconteceu e quando?

— No Nebraska. Cento e doze anos atrás.

Silêncio. E depois:

— Mac, nós ainda não tínhamos entrado em cena! Nem mesmo você!

— Não faz mal, Heseltine. É a mesma bosta de cavalo. E são os mesmos filhos da mãe que fizeram isso primeiro com eles e cem anos depois com você e comigo.

— “Eles” quem?

— Um ramo dos Mohawks chamado Wopotami. Uma tribo que migrou para o território do Nebraska em meados do século XIX.

— E daí?

— Chegou a hora dos arquivos secretos, General Brokemichael.

— Não diga isso! Ninguém pode fazer isso!

— Você pode, General. Preciso da confirmação final, só alguns detalhes para esclarecer.

— Para quê? Por quê?

— Porque os Wopotamis talvez ainda sejam os proprietários legais da terra e do ar em Omaha e redondezas. Em Omaha, Nebraska.

— Está louco, Mac! Isso é o Comando Aéreo Estratégico!

— Só faltam algumas coisinhas, fragmentos enterrados, e os fatos aí estão... Encontro-o no subterrâneo, na casa-forte diante dos arquivos, General Brokemichael... Ou devo tratá-lo de chefe do Estado-Maior Conjunto, dividindo a presidência comigo, Heseltine? Se eu estiver certo, e tenho absoluta certeza de que estou, metemos o eixo Casa Branca-Pentágono num aperto tão grande que não serão capazes nem de cagar se não dermos ordem.

Silêncio. E depois:

— Vou deixar você entrar, Mac, mas depois vou desaparecer até que me diga que recuperei o uniforme.

— É muito justo. A propósito, estou embalando e levando tudo o que tinha aqui para minha casa em Arlington. Aquele pobre filho da puta que morreu neste ninho de ratos e só foi encontrado quando o perfume se espalhou lá embaixo não morreu em vão!


Os dois generais se esgueiraram entre as prateleiras de metal dos arquivos fechados e bolorentos, com as luzes mortiças tão fracas que dependiam da claridade de suas lanternas. Na sétima fila, MacKenzie Hawkins fixou o foco de sua lanterna num volume muito antigo cuja lombada de couro estava rachada.

— Acho que é este aqui, Heseltine.

— Ótimo, mas não pode tirá-lo de onde está!

— Eu sei, General, por isso vou só tirar umas fotos e volto a pôr no lugar — Hawkins tirou do bolso do terno cinza uma câmera minúscula com filme 110.

— Quantos rolos de filme você tem? — perguntou o ex-general Heseltine Brokemichael no momento em que MacKenzie levava o imenso volume para uma mesa de metal no fundo do corredor.

— Oito — respondeu Hawkins, abrindo o volume de páginas amareladas no lugar que precisava.

— Tenho mais alguns, se precisar — disse Heseltine. — Não que eu esteja muito entusiasmado com o que você acha que possa ter encontrado, mas se houver algum meio de me desforrar do Ethelred, vou aproveitar!

— Pensei que vocês estivessem reconciliados — interrompeu MacKenzie, sem parar de virar páginas e tirar fotos.

— Nunca!

— A culpa não foi do Ethelred, mas daquele advogado canalha do escritório do Inspetor-Geral, um garoto ignorante de Harvard chamado Devereaux, Sam Devereaux. Foi ele que cometeu o erro, e não Brokey-Dois. Dois Brokemichaels; ele os confundiu, mais nada.

— Besteira! Brokey-Dois pôs o dedo em mim!

— Acho que você está errado, mas não é por isso que estou aqui, nem você tão pouco... Brokey, preciso do volume que fica ao lado ou perto deste. Deve ter CXII impresso na lombada. Pegue, está bem? — Quando o diretor voltou para as estantes de metal, Hawk tirou uma navalha do bolso e cortou quinze páginas sucessivas do livro. Sem dobrar os preciosos documentos, enfiou-os no sobretudo.

— Não consegui encontrar — disse Brokemichael.

— Não faz mal, já arranjei o que precisava.

— E agora, Mac?

— Preciso de muito tempo, Heseltine, talvez muito tempo mesmo, quem sabe um ou dois anos, mas tenho que fazer tudo certo para que não haja falhas, para que não haja nenhuma falha.

— Em quê?

— Na ação que vou apresentar contra o governo dos Estados Unidos — respondeu Hawkins, tirando do bolso um charuto mutilado que acendeu com seu Zippo da Segunda Guerra Mundial. — Você fica na sua, Brokey-Um, e espera.

— Meu Deus do céu, esperar o quê?... Não fume! Não pode fumar aqui dentro!

— Oh, Brokey, você e teu primo Ethelred sempre seguiram exageradamente os regulamentos e quando os regulamentos não se ajustavam ao que estava acontecendo, procuravam mais regulamentos. Não está nos manuais, Heseltine, não nos que se possa ler. Está no seu estômago, nas suas vísceras. Algumas coisas estão certas, outras estão erradas, é tudo muito simples. É visceral. Suas tripas é que informam.

— De que diabo está falando?

— Suas tripas dizem para procurar em livros que não deveria ler. Em livros onde eles guardam segredos, como os que estão aqui dentro.

— Mac, você não está falando coisa com coisa!

— Dê-me um ano, talvez dois, Brokey, e então entenderá. Tenho que me esforçar. Fazer a coisa certa. — O General MacKenzie Hawkins foi se dirigindo para a saída por entre as estantes de metal dos arquivos. “Bolas”, disse ele a seus botões. “Agora tenho mesmo que trabalhar! Preparem-se, magníficos Wopotamis. Sou todo seu!"


Passaram-se vinte e um meses e ninguém tinha se preparado para Cabeça de Trovão, o chefe dos Wopotamis.


2

O Presidente dos Estados Unidos, de queixo firme, olhos irados, decididos e penetrantes, acelerou o passo ao longo do corredor cinza metálico no complexo subterrâneo da Casa Branca. Numa questão de segundos, tinha ultrapassado sua entourage, com o corpo alto e magro inclinado para a frente como se enfrentasse uma ventania torrencial, parecendo uma figura impaciente querendo apenas chegar às fortificações sacudidas pela força da tempestade e avaliar o custo sangrento da guerra, de modo a pensar numa estratégia e a repelir as hordas invasoras que atacavam seu reino. Ele era um John d'Arc, com a mente fervilhante montando um contra-ataque em Orleans, um Henrique V que sabia que a decisiva Azincourt estaria no filme seguinte.

Naquele momento, contudo, seu objetivo imediato era a Sala da Situação, com sua tendência para a ansiedade, enterrada nos níveis mais baixos da Casa Branca. Alcançou uma porta, escancarou-a com um puxão e entrou, seguido em movimento uniforme pelos subordinados, todos eles agora trotando, ofegantes.

— Olá, pessoal! — urrou. — Vamos dar início a nossa sessão de estudos!

Seguiu-se breve silêncio, rompido pela voz trêmula e aguda de uma assessora. — Não se consegue pensar aqui dentro, Sr. Presidente.

— O quê? Por quê?

— Este é o banheiro dos homens, Sr. Presidente.

— Oh?... E o que está fazendo aqui?

— Eu o estava seguindo, Sr. Presidente.

— Meu Deus. Enganei-me de porta. Desculpe. Vamos! Fora!

A grande mesa redonda na Sala de Situação brilhava, banhada pela iluminação indireta, refletindo as sombras dos corpos sentados em volta. Esses blocos de sombra sobre a madeira polida permaneceram imóveis, como os próprios corpos, quando as faces atônitas presas neles olharam com assombro o homem magro de óculos que estava em pé, atrás do Presidente, diante de um quadro negro portátil, no qual tinha desenhado numerosos diagramas em quatro cores diferentes de giz. Esse recurso visual, de alguma forma, não chegava a ser eficiente, já que os dois membros da equipe de administração de crise eram daltônicos. A expressão assombrada no rosto jovem do Vice-Presidente não tinha nada de novo e, assim, podia ser desprezada, mas a crescente agitação por parte do presidente do Estado-Maior Conjunto era algo que não podia ser desconsiderado com facilidade.

— Que chatice, Washbum, eu não...

— É Washburn, General.

— Está bem. Não consigo ver bem a linha.

— É a laranja.

— E qual é a laranja?

— Acabei de explicar, Sr. Presidente, é a laranja.

— Aponte.

Algumas cabeças se viraram. O Presidente disse:

— Bolas, Zack, você não é capaz de distinguir?

— Está escuro aqui, Sr. Presidente.

— Não está tão escuro assim, Zack. Eu consigo ver claramente.

— Bem, eu tenho um pequeno problema visual — disse o general, baixando abruptamente a voz —... quando se trata de distinguir certas cores.

— O que, Zack?

— Eu ouvi — exclamou o louro Vice-Presidente, sentado ao lado do presidente do Estado-Maior Conjunto. — Ele é daltônico.

— Que diabos, Zack, você é um soldado!

— Isso apareceu depois, Sr. Presidente.

— Em mim apareceu muito cedo — continuou o excitável herdeiro do Gabinete Oval. — Na verdade, foi o que me manteve fora do exército. Eu teria dado qualquer coisa para corrigir esse defeito!

— Caluda, palerma — aconselhou o escuro diretor da CIA, com a voz baixa, exibindo olhos negros ameaçadores por trás das pálpebras semicerradas. — A porra da campanha já terminou.

— Ora, francamente, Vincent, não há motivo para usar esse tipo de linguagem — intrometeu-se o Presidente. — Há uma senhora presente.

— É uma opinião como outra qualquer, Sr. Presidente. Não se pode dizer que a senhora em questão seja pouco versada em lingua franca — o diretor da CIA dirigiu um sorriso intimidador à insultada assessora e voltou ao homem chamado Washburn, que estava junto ao quadro negro portátil. — E então, você que é nosso especialista em leis, em que... encrenca estamos metidos?

— Assim é melhor, Vinnie — acrescentou o Presidente. — Muito obrigado.

— Não tem de quê. Continue, senhor advogado. Em que tipo de cocô estamos metidos?

— Muito bem, Vinnie.

— Por favor, Grande Chefe, estamos aqui todos com algum estresse — o diretor inclinou-se ligeiramente para a frente, olhando apreensivo para o assessor jurídico da Casa Branca. — Você aí — continuou —, ponha de lado o giz e vamos às notícias. E faça-me um favor, não demore uma semana falando, está bem?

— Como queira, sr. Mangecavallo — disse o advogado da Casa Branca, largando o giz colorido na borda do quadro negro. — Eu só estava tentando fazer um diagrama dos precedentes históricos relativos às leis alteradas, no que diz respeito às nações indígenas.

— Que nações? — perguntou o Vice-Presidente, revelando na voz um traço de arrogância. — São tribos e não países.

— Continue — interrompeu o diretor. — Ele não está aqui.

— Bem, tenho certeza de que todos se lembram da informação que nosso agente infiltrado na Suprema Corte nos deu sobre uma tribo pobre e obscura que apresentou uma petição referente a um suposto tratado com o governo federal que, segundo consta na petição, teria sido perdido ou roubado por agentes federais. Um tratado que, se for encontrado, pode restaurar os direitos dessa tribo a certos territórios onde hoje estão instalações militares importantíssimas.

— Ah, sim — confirmou o Presidente. — Demos umas boas gargalhadas por causa disso. Eles apresentaram no Supremo uma petição extremamente longa e ninguém quis ler.

— Há pobres capazes de tudo, menos de arranjar um emprego! — contribuiu o VP. — É uma piada!

— Nosso advogado não está rindo — observou o diretor.

— Não, não estou, diretor. Nosso informante manda dizer que há boatos que podem não significar absolutamente nada, claro, mas dão conta de que cinco ou seis ministros ficaram tão impressionados com o arrazoado que chegaram a debater seu mérito nos escritórios. Alguns acham que o tratado perdido de 1878, negociado com a tribo Wopotami e o 49º Congresso, pode vir a ter força jurídica vinculativa para o governo dos Estados Unidos.

— Eles não podem fazer uma coisa dessas! — urrou Mangecavallo.

— É totalmente inaceitável! — exclamou asperamente o azedo Secretário de Estado. — Esses juízes doidos nunca sobreviveriam a uma investigação!

— Receio que não precisem, Warren — o Presidente sacudiu a cabeça lentamente. — Mas entendo o que quer dizer. Como o grande comunicador me disse tantas vezes, “Esses filhos da mãe não conseguiriam papel de figurante em Ben-Hur nem nas cenas do Coliseu.”

— Que profundo — disse o Vice-Presidente, acenando com a cabeça. — É exatamente isso. Quem é Benjamin Hurr?

— Esqueça — replicou o corpulento e calvo Procurador-Geral, ainda ofegante da jornada acelerada pelos corredores subterrâneos. — O fato é que eles não precisam de emprego aqui fora. Sua nomeação é vitalícia e não há nada que possamos fazer quanto a isso!

— A menos que todos sofram impeachment — sugeriu o anasalado Secretário de Estado, com um sorriso de lábios finos despido de qualquer traço de bonomia.

— Esqueça isso também — rebateu o Procurador-Geral. — Eles são absolutamente brancos e imaculadamente negros, inclusive a toga. Verifiquei todas as possibilidades quando os imbecis enfiaram aquela decisão negativa sobre o imposto eleitoral pela nossa garganta abaixo.

— Foi simplesmente grotesco! — exclamou o Vice-Presidente, de olhos arregalados, procurando aprovação. — O que são quinhentos dólares em troca do direito de voto?

— É verdade — concordou o ocupante do Gabinete Oval.

— As pessoas corretas poderiam abater no imposto de renda. Por exemplo, um excelente economista, um antigo aluno nosso por sinal, escreveu um artigo que foi publicado no Bank Street Journal, explicando que, convertendo o ativo na subseção C para a linha do item de perdas projetadas em...

— Prez, dá licença? — interrompeu delicadamente o diretor da CIA. — Na realidade, esse escroque está cumprindo sentença de seis a dez anos por fraude... Por favor, dê este caso por encerrado, Grande Chefe, está bem?

— Com certeza, Vincent... É ele mesmo?

— Lembre-se apenas, nenhum de nós lembra dele — replicou o diretor da CIA num murmúrio quase inaudível. — Esqueceu o que ele fez quando o pusemos no Tesouro? Aplicou metade do orçamento da Defesa na Educação, mas as escolas não apareceram.

— Foi demais, PR...

— Cessar, imbecil...

— “Cessar”, Vincent? Esteve na Marinha? “Cessar” é um termo muito usado na Marinha.

— Digamos que estive numa série de barquinhos ligeiros, PR. Teatro de Operações do Caribe, está bem?

— Embarcações, Vincent. São sempre embarcações ou navios. Tirou o curso em Anápolis?

— Havia um contrabandista grego do Egeu que era capaz de sentir o cheiro de um barco-patrulha numa escuridão de breu.

— Embarcação, Vincent, embarcação... ou talvez não, quando aplicado a patrulhas...

— Por favor, Grande Chefe — o diretor Mangecavallo fulminou o Procurador-Geral com um olhar. — Quem sabe você não deixou de examinar alguma coisa quando verificou “todas as possibilidades”? Estou me referindo aos loucos juízes, como nosso eminente Secretário de Estado os designou. Talvez tenha havido alguma omissão, não?

— Usei todos os recursos disponíveis do FBI — replicou o obeso Procurador-Geral, ajustando o corpo volumoso na cadeira inadequada, ao mesmo tempo em que enxugava a testa com um lenço imundo. — Não conseguiríamos sequer multá-los por atravessar a rua em ziguezague. Frequentaram o seminário desde que nasceram.

— O que esses patifes do FBI sabem? Eles me aprovaram, não foi? Disseram que eu era o maior santo da cidade, não disseram?

— Mas Câmara e Senado ratificaram seu nome com maiorias bem razoáveis, Vincent. O que expressa bem nosso sistema constitucional de checks and balances1, não é verdade?

— Tem mais a ver com “cheques” preenchidos para saque do que com balanço, PR, mas vamos deixar isso de lado, está bem?... O Olho de Coruja aqui diz que cinco ou seis dos grandes magistrados podem estar inclinados a seguir o caminho errado, é isso?

— Pode ter sido simplesmente uma especulação sem importância — acrescentou Washburn. — E completamente in camera.2

— Quem está tirando fotos?

— O senhor não entendeu. O que quero dizer é que os debates permanecem secretos, não escapou uma só palavra para a imprensa ou para o público. Na realidade, o sigilo foi autoimposto por motivo de segurança nacional, in extremis.

— Em quê?

— Meu Deus do céu! — exclamou Washburn. — Este país maravilhoso, a nação que amamos, pode ser colocada na posição mais vulnerável da nossa história se cinco desses malditos malucos votarem conscientemente. Podemos ser obliterados!

— Tudo bem, tudo bem — disse Mangecavallo, olhando para os outros na mesa, mas desviando rapidamente os olhos do Presidente e de seu herdeiro legítimo. — Então temos algum espaço de manobra concedido por esse status altamente secreto. E também temos que manipular cinco ou seis juízes doidos, não é?... Assim, já que sou o perito em informações desta mesa, digo que devemos fazer com que dois ou três desses caras se mantenham no bom caminho, não é isso? E como esse tipo de coisa faz parte das minhas habilidades, vou começar a trabalhar, capisce?

— Vai ter que trabalhar depressa, diretor — disse Washburn. — Nosso agente disse que o juiz-presidente o informou pessoalmente de que ia retirar o caráter sigiloso da discussão em quarenta e oito horas. Nas suas próprias palavras, o Juiz-Presidente disse: “Eles não são os únicos jogadores que participam de jogos meio idiotas” — é uma citação literal, sr. Presidente. Eu, pessoalmente, não uso essa linguagem.

— Isso é muito louvável, Washbloom.

— É Washburn, sr. Presidente.

— Vamos ao trabalho, senhores — e você também, miss... miss...

— Trueheart, sr. Presidente. Teresa Trueheart.

— O que você faz?

— Sou secretária pessoal do seu Chefe do Estado-Maior, sir.

— E de mais alguns — resmungou o diretor da CIA.

— Para, Vinnie.

— O meu Chefe do Estado-Maior...? Que diabo, onde está Arnold? Existe uma crise, uma verdadeira crise!

— Ele faz massagem toda tarde a esta hora, sr. Presidente — informou miss Trueheart alegremente.

— Bem, não quero criticar, mas...

— Tem todo o direito de criticar, sr. Presidente — interrompeu o herdeiro legítimo, com os mesmos olhos arregalados de sempre.

— Por outro lado, Subagaloo tem sido submetido a enorme estresse nos últimos tempos. A imprensa o insulta e ele é sensível.

— E não há nada que alivie mais o estresse do que uma massagem — acrescentou o Vice-Presidente. — É verdade, eu sei!

— Então, onde ficamos, cavalheiros? Fixamos uma rota na bússola e apertamos as adriças.

— Aye, aye, sir!

— Sr. Vice-Presidente, faça uma pausa, está bem?... Seria melhor fixar a rota na lua cheia, que é a fase em que estamos... uma fase de desenhos animados, só que ninguém está rindo.

— Falando como seu Secretário de Defesa, Sr. Presidente — interrompeu um homem extremamente baixo, cujo rosto contraído mal se conseguia projetar acima da mesa e que lançou um olhar indignado, de reprovação, ao diretor da CIA. — A situação é totalmente despropositada. Esses idiotas não podem sequer ser autorizados a considerar a possibilidade de pôr em causa a segurança do país por conta de um pretenso tratado obscuro e há muito esquecido com uma tribo indígena da qual ninguém ouviu falar!

— Eu ouvi falar dos Wopotamis — interrompeu o Vice-Presidente de novo. — Naturalmente que a história americana não era minha melhor disciplina, mas lembro que achei que era nome tão engraçado quanto o dos Choppywaws. Eu achava que eles tinham sido chacinados ou morrido de fome ou de alguma outra coisa idiota.

O breve silêncio que se seguiu foi quebrado pelo murmúrio irado do diretor Vincent Mangecavallo, ao mesmo tempo em que fitava o jovem que estava a um passo de ser o comandante-em-chefe da nação. — Se disser mais uma palavra, idiota, vai acabar no fundo do Potomac num roupão de cimento, está me entendendo?

— Francamente, Vincent!

— Escute, PR, sou o chefe de segurança da nação, não é? Pois bem, deixe-me dizer-lhe uma coisa, esse rapaz é o maior falastrão da Terra. Eu podia mandar acabar com ele por falar e fazer coisas que nem sequer sabe que disse ou fez. Extraoficialmente, claro.

— Isso não é justo!

— Este não é um mundo justo, filho — observou o transpirado Procurador-Geral, dirigindo sua atenção para o advogado da Casa Branca no quadro negro. — Muito bem, Blackburn..

— Washburn...

— Isso... Vamos nos concentrar nesse fiasco e olhe que falo sério! Para começar, quem diabos é o filho da mãe, o traidor por trás desse recurso à Suprema Corte, completamente antipatriótico e antiamericano?

— Ele se autodenomina Chefe Cabeça de Trovão, índio americano — respondeu Washburn. — E a petição que seu advogado apresentou na Suprema Corte é considerada uma das mais brilhantes já recebidas pelo poder judiciário, segundo nosso informante. Diz-se confidencialmente que vai para os anais da jurisprudência como modelo de interpretação legal.

— Anais uma ova! — explodiu o Procurador-Geral, mais uma vez esfregando o lenço sujo na testa. — Vou mandar investigar esse figurão das leis até o osso! Ele está acabado, eliminado. Quando o departamento acabar com ele, não conseguirá emprego nem de corretor de seguros em Beirute, quanto mais de advogado! Nenhuma firma vai querer emprestar dinheiro a ele e não vai conseguir clientes nem no fim do mundo. Qual é o nome do filho da puta?

— Bem... — começou Washburn hesitante, com a voz resvalando um breve momento para um falsete —, temos aqui um deslize temporário.

— Deslize, que deslize? — O fanhoso Warren Pease, cujo olho esquerdo sofria da infortunada desgraça de se desviar para o lado quando ele se inflamava, jogou a cabeça para a frente como uma galinha perseguida. — Basta nos dar o nome, idiota!

— Não há nenhum nome para dar — respondeu Washburn, engasgado.

— Graças a Deus esse débil mental não trabalha no Pentágono — rosnou o diminuto Secretário de Defesa. — Nunca encontraríamos metade dos nossos mísseis.

— Acho que estão em Teerã, Oliver — sugeriu o Presidente. — Não estão?

— Minha observação foi retórica, sr. Presidente. — O rosto contraído do chefe do Pentágono, mal se vislumbrando acima da mesa, balançou para frente e para trás em curtos golpes laterais. — Além do mais, isso foi há muito tempo, você não estava lá, nem eu. Lembra, Sr. Presidente?

— Sim, sim, claro que não.

— Que diabos, Blackboard, por que não há um nome?

— Por um precedente jurisprudencial, e meu nome é... ah, deixa pra lá...

— O que quer dizer com “ah, deixa pra lá”, seu chato? Quero o nome!

— Não foi isso que eu quis dizer...

— Que diabos você quis dizer?

— Non nomen amicus curiae — resmungou o advogado da Casa Branca em tom de voz pouco mais audível que um murmúrio.

— O que é isso, está rezando uma Ave Maria? — perguntou o diretor da CIA, os olhos mediterrâneos esbugalhados de incredulidade.

— Remonta a 1826, quando o Supremo permitiu que fosse apresentada uma petição anônima, assinada por “um amigo do Tribunal”, em nome do recorrente.

— Eu o mato — resmungou o obeso Procurador-Geral, ao mesmo tempo em que emergia um peido audível de sua cadeira.

— Espere um pouco! — gritou o Secretário de Estado, o olho esquerdo balançando desgovernado. — Você está dizendo que a petição em favor dos Wopotami foi apresentada por um advogado ou advogados sem nome?

— Sim, Secretário. O Chefe Cabeça de Trovão mandou seu representante, um bravo jovem que recentemente passou no exame estadual da Ordem dos Advogados, comparecer perante a Corte em julgamento a portas fechadas como defensor provisório, prevendo a possível necessidade de comparecimento do advogado anônimo original, para o caso de a petição ser considerada inadequada... Mas não foi. A maioria dos juízes a considerou suficiente, de acordo com o princípio non nomen amicus curiae.

— Então não sabemos quem diabos preparou essa porcaria? — gritou o Procurador-Geral, com seus incansáveis ataques de gases duodenais.

— Minha mulher e eu costumamos chamar isso de “arrotos inferiores” — disse o Vice-Presidente, dando uma risadinha para seu único superior.

— Nós chamávamos de “apitos de trem” — replicou o Presidente, com um sorriso cúmplice.

— Pelo amor de Deus! — urrou o Procurador-Geral. — Não, não, não é com você ou com esse rapaz — estou me referindo ao sr. Backwash.

— Meu... não faz mal.

— Você quer dizer que não estamos autorizados a saber quem escreveu esse lixo, essa porcaria que pode convencer cinco juízes loucos da Suprema Corte a transformá-la em lei e, não por acaso, destruir o coração operacional da nossa defesa?

— O Chefe Cabeça de Trovão informou a Corte que, na devida hora, depois que a decisão for tomada e publicada e sua gente libertada, vai apresentar o cérebro legal por trás do recurso da tribo.

— Ótimo — disse o presidente do Estado-Maior Conjunto. — Aí então botamos o filho da puta na reserva, com seus amiguinhos peles-vermelhas, e faremos com que todos desapareçam do mapa com uma bomba atômica.

— Para fazer isso, General, seria preciso acabar com toda a cidade de Omaha, Nebraska.


A reunião de emergência na Sala de Situação terminou.

Apenas o Presidente e o Secretário de Estado permaneceram sentados.

— Meu Deus, Warren — disse o chefe do Executivo —, eu quis que você ficasse porque às vezes não entendo essa gente.

— Bem, certamente eles não frequentaram nossa escola, meu velho.

— Pois é, também acho que não, mas não é a isso que me refiro. É que ficam logo inflamados, gritando, dizendo palavrões e tudo mais.

— Os mal nascidos são dados a explosões emocionais, ambos sabemos. Não têm barreiras inatas. Lembra-se de quando a mulher do diretor tomou um porre e começou a cantar One-Ball Reilly nos fundos da capela? Só os bolsistas olharam para trás.

— Não foi exatamente assim — corrigiu o Presidente, embaraçado. — Eu também olhei.

— Não, não acredito!

— Bem, dei uma olhada. Acho que ela me dava algum tesão. Começou na aula de foxtrot, para ser mais preciso.

— Ela fazia isso com todos nós, a cadela. Era assim que se excitava.

— Suponho que sim, mas voltemos à reunião. Você não acha que essa história dos índios pode dar em alguma coisa?

— Claro que não! O juiz-presidente Reebock está só repetindo seus velhos truques. Reebock está tentando enfurecê-lo porque acha que foi você que votou contra quando se candidatou a nossa associação de ex-alunos.

— Pelo amor de Deus, juro que não fui eu!

— Eu sei que não foi você, fui eu. Politicamente ele é bem aceitável, mas é um homem nada atraente e usa roupas horrorosas. Fica absolutamente ridículo de smoking. E também acho que ele diz muita baboseira... não para nós, meu velho. Você ouviu o que o tal Washboard disse de ter falado com nosso agente infiltrado, naquela história de não sermos os únicos “jogadores em jogos meio estúpidos”? É preciso dizer mais?

— Ainda assim, todos ficaram furiosos, sobretudo Vincent Manja... Manju... Mange ou seja lá o que for.

— É o sangue italiano.

— Pode ser, Warren. Mesmo assim, ele me perturba. Tenho certeza de que Vincent foi um ótimo oficial da Marinha, mas também pode ter sido um desleixado... como alguém que você conhece.

— Por favor, sr. Presidente, não vá nos causar pesadelos!

— Só estou tentando evitá-los, meu velho. Olhe, Warren, Vincent não se dá bem com nosso Procurador-Geral, nem com o chefe do Estado-Maior Conjunto, nem certamente com todo o Departamento de Defesa, de modo que quero que você fique em estreito contato com ele neste problema... seja seu amigo e confidente.

— Com um Mangecavallo?

— Exigências da função, Warty, meu velho. O Estado precisa estar envolvido em coisas assim.

— Mas não acontecerá nada!

— Estou certo disso, mas pense nas reações pelo mundo inteiro quando os debates na Suprema Corte se tornarem públicos. Somos uma nação de leis, não de caprichos, e a Corte não está sujeita a agravos. Você tem à frente um certo rumor internacional que vai precisar controlar, meu velho.

— Mas por que eu?

— Céus, Warty, que diabos! Acabei de dizer!

— Por que não o Vice-Presidente? Ele pode me transmitir todas as novidades.

— Quem?

— O Vice-Presidente!

— Qual é o nome dele mesmo?

 

________________

1 Expressão que designa o sistema político de controle e equilíbrio entre os poderes legislativo, executivo e judiciário. (N.T.)

2 “In camera”, a portas fechadas. A palavra “camera” significa também máquina fotográfica.


3

Era uma clara tarde de verão e Aaron Pinkus, comprovadamente o melhor advogado de Boston, Massachusetts e, com certeza, um dos homens poderosos mais bondosos e gentis, saltou de sua limusine no elegante subúrbio de Weston e sorriu para o motorista de uniforme que segurou a porta.

— Eu disse a Shirley que este carro enorme era espalhafatoso, Paddy, mas esse quepe ridículo de pala brilhante se aproxima perigosamente do pecado de falso orgulho.

— Não no velho Sul, Mr. Pinkus, e lá temos mais pecados do que velas votivas numa fábrica de cera — disse o motorista, homem corpulento de meia-idade, cuja cabeleira ruiva já começava a branquear. — Além disso, há anos que diz esse tipo de coisa e não adiantou nada. Mrs. Pinkus é uma mulher muito insistente.

— O cérebro de Mrs. Pinkus foi fritado muitas vezes no secador de cabelo do salão de beleza... Eu nunca disse isso, Paddy.

— Claro que não, sir.

— Não sei quanto tempo vou demorar, de modo que é melhor você descer o quarteirão e talvez dobrar a esquina e ficar longe da vista.

— E ficar em contato pelo bip — completou o irlandês sorrindo, nitidamente satisfeito com o subterfúgio. — Se eu vir o carro de Mr. Devereaux mando um sinal, e pode sair pela porta de trás.

— Sabe de uma coisa, Paddy, se nossas palavras fossem parte de uma transcrição, nós perderíamos a ação, fosse qual fosse.

— Não com seu escritório nos defendendo, sir.

— Fala o falso orgulho de novo, meu velho amigo. Além do mais, o direito penal é apenas parte pequena da firma e não muito destacada.

— Ei, não está fazendo nada de criminoso!

— Então vamos pôr de lado a transcrição... Estou apresentável para a grande lady, Paddy?

— Deixe-me ajustar sua gravata, sir, ela afrouxou um pouco.

— Muito obrigado — agradeceu Pinkus, enquanto o motorista ajeitava a gravata. Seus olhos se desviaram para a imponente casa vitoriana cinza-azulada, com uma cerca branca na frente e uma profusão de ornatos resplandescentes em torno das janelas e sob as altas laterais. Lá dentro, a dona da residência, que constituía um ponto de referência, a temível Mrs. Lansing Devereaux III, mãe de Samuel Devereaux, advogado de potencial extraordinário, atualmente um enigma para seu patrão, um tal Aaron Pinkus.

— Pronto, sir — o motorista recuou e acenou com a cabeça em sinal de aprovação. — Uma visão grande e esplêndida para o sexo oposto.

— Por favor, Paddy, isto não é um encontro amoroso com fins libidinosos, é antes uma investigação compassiva.

— Sim, eu sei, patrão. Sam tem saltado o muro de vez em quando.

— Então você notou?

— Que diabos, o senhor me fez esperá-lo no Aeroporto Logan mais de dez vezes neste ano. Como eu costumo dizer, de vez em quando ele parecia um pouco doido e não era só porque tivesse bebido. Ele está com um problema, Mr. Pinkus. Esse rapaz está com um problema na cabeça.

— E essa cabeça contém um talento brilhante para o Direito, Paddy. Vamos ver se conseguimos descobrir qual é o problema.

— Boa sorte, sir. Estarei longe da vista mas a seu alcance, se é que me entende. Quando ouvir meu bip, saia correndo daí.

— Por que me sinto um Casanova judeu, magricela e idoso, incapaz de escalar a grade de um portão se uma manada de touros bravos tentasse morder meu rabo?

Pinkus entendeu que a pergunta era dirigida a si mesmo, já que seu motorista tinha contornado correndo a limusine para logo entrar nela e desaparecer... longe da vista, mas a seu alcance.


Aaron tinha encontrado Eleanor Devereaux apenas duas vezes em todos esses anos desde que conhecera o filho dela. A primeira, quando Samuel foi trabalhar para a firma, algumas semanas após sua licenciatura em Harvard e mesmo assim porque, segundo as suspeitas de Aaron, a mãe quisera conhecer o ambiente de trabalho do filho, da mesma forma que poderia ter querido conhecer os instrutores e as instalações de um acampamento de verão. A segunda e última vez tinha sido na recepção de boas-vindas oferecida pelos Pinkus quando Sam voltou do Exército, a recepção mais estranha registrada na crônica das separações causadas pelo serviço militar. Ocorreu cinco meses após o dia em que o tenente Devereaux deveria ter chegado a Boston como um civil honrosamente desvinculado do serviço militar. Cinco meses que tinham passado em branco.

Cinco meses, repetiu Aaron a si mesmo, encaminhando-se para o portão na cerca branca, quase meio ano sobre o qual Sam não falava... nada dizia, a não ser que não lhe era permitido falar sobre isso, como se fosse algum tipo de operação altamente secreta do governo. Bem, Pinkus pensou na época que certamente não podia pedir ao tenente Devereaux para violar seu juramento, mas ele era um homem curioso, tanto pessoalmente, como amigo, quanto profissionalmente, em termos de negociações legais internacionais, e tinha algum conhecimento em Washington. Assim, telefonara para o Presidente, usando a linha privada da Casa Branca, ligada diretamente ao andar residencial, e explicou seu quebra-cabeças ao chefe do Executivo.

— Acha que ele pode estar envolvido em alguma operação secreta, Aaron? — perguntara o Presidente.

— Francamente, eu diria que ele não é esse tipo de pessoa.

— Às vezes eles descambam para esse lado, Pinky. Às vezes, a pior escolha do elenco é a melhor. Falando sinceramente, muitos desses diretores cabeludos e de mente suja empestam a tela grande com esse tipo de coisas. Soube que há uns dois anos quiseram que Myrna dissesse aquela palavra que começa por m, acredita?

— É difícil, Sr. Presidente. Mas sei que está ocupado.

— Com os diabos, não, Pinky. Mamãe e eu estamos só vendo a Roda da Fortuna. Sabe, ela ganha sempre, mas não me importo. Sou presidente e ela não.

— Bem pensado. Seria possível fazer algumas investigações para mim quanto a este assunto?

— Oh, com certeza. Já tomei nota. Devereaux. D-e-v-a-r-ô, está correto?

— Isso serve, Sr. Presidente.

Vinte minutos mais tarde o Presidente telefonou de volta.

— Nossa, Pinky! Acho que você se meteu numa!

— Numa o que, Sr. Presidente?

— Meu pessoal disse que fora da China — usaram estas palavras —, o que quer que este Devereaux tenha feito não teve “absolutamente nada a ver com o Governo dos Estados Unidos”, e usaram exatamente essas palavras, eu anotei. Então, quando os pressionei, disseram que eu ”não ia querer saber”.

— Sim, claro, as palavras exatas. Chama-se a isso negabilidade, sr. Presidente.

— Há muito disso acontecendo por aí, não há?


Aaron parou no caminho e ergueu os olhos para observar a casa grande e velha, pensando em Sam Devereaux e no modo um tanto estranho, até mesmo tocante, como ele tinha sido criado naquela relíquia graciosamente restaurada de uma era bem mais graciosa. Na realidade, considerou o advogado, a brilhante restauração nem sempre estivera tão em evidência. Anos a fio havia uma aura de nobreza, limpa mas em mau estado, em vez da atual camada de tinta nova em folha e do impecável gramado frontal. Hoje em dia, o cuidado com a casa era pródigo, nenhuma despesa poupada — isto é, desde que Sam voltara à vida civil depois de desaparecer por cinco meses. Aliás, Pinkus estudava sempre o currículo de cada candidato a funcionário da sua firma, a fim de evitar aborrecimentos ou erros. O currículo do jovem Devereaux chamara tanto a atenção de Pinkus quanto sua curiosidade, e ele tinha passado muitas vezes de carro pela velha casa em Weston, imaginando que segredos estariam guardados entre suas paredes vitorianas.

O pai, Lansing Devereaux III, pertencera à altíssima elite de Boston, a par dos Cabot e dos Lodge, mas com uma óbvia aberração. Era especulador ousado no mundo da alta finança, muito mais capaz de perder do que ganhar dinheiro. Tinha sido um bom homem, mesmo que, de certa forma, rebelde e tempestuoso, um indivíduo que trabalhara arduamente e abrira as portas da oportunidade para muita gente, mas ele mesmo vira poucas de suas iniciativas frutificarem. Morreu de ataque do coração, enquanto assistia a uma reportagem na televisão sobre a cotação das ações da Bolsa, deixando à viúva e ao filho de nove anos um nome excelente, uma residência magnífica e um seguro insuficiente para manter o estilo de vida e a aparência a que estavam acostumados.

Por isso Samuel Lansing Devereaux tornou-se uma contradição entre os ricos, já que era bolsista que trabalhava de garçom no Philips Andover. Enquanto os colegas iam a bailes, ele era barman nesses mesmos salões; e quando seus conhecidos cada vez mais distantes do jet set disputavam regatas no Cape, ele trabalhava nas estradas em que viajavam para ir a Dennis e Hyannis. E também mergulhava nos estudos, dedicando-se como um possesso, compreendendo perfeitamente que a universidade era o único caminho de volta ao mundo opulento dos ancestrais. Estava cansado de ser apenas observador da boa vida, em vez de participante.

Na Faculdade de Direito de Harvard as bolsas de estudo continuaram ainda mais generosas, com o dinheiro para suas despesas complementado por um pesado esquema de aulas particulares a colegas de turma, principalmente as colegas, já que eram frequentes os dividendos que tirava e que nada tinham a ver com finanças. Seguiu-se então um auspicioso começo na Aaron Pinkus e Associados, interrompido ameaçadoramente pelo Exército dos Estados Unidos, que, na era da expansão maciça do Pentágono, precisava desesperadamente de todos os advogados que pudesse encontrar, antecipando sua colocação em bases domésticas e no exterior. Os fascistas computadores militares desenterraram um adiamento, há muito esquecido, dado a um Samuel Lansing Devereaux e foi assim que as Forças Armadas ganharam um soldado bonito, ainda que patético, mas com um cérebro soberbo, do qual obviamente usaram e abusaram.

O que teria acontecido com ele? — perguntou Pinkus no silêncio de sua mente. Que terríveis acontecimentos tinham ocorrido anos atrás e voltavam agora para obcecá-lo? Para deformar e, às vezes, provocar um curto-circuito naquela cabeça extraordinária, capaz de cortar caminho entre abstrações legais e transformar em senso comum as mais abstrusas interpretações constitucionais, fazendo com que juízes e jurados se assombrassem com sua erudição e suas análises tão profundamente penetrantes.

Algo aconteceu, concluiu Aaron, aproximando-se da imensa porta da frente, repleta de antigos vidros biselados no painel superior. Além disso, como Sam conseguira dinheiro para restaurar aquela maldita casa? Pinkus era, na verdade, generoso com seu mais destacado e, sem dúvida, favorito empregado, mas não a ponto de ele poder derreter cem mil dólares, no mínimo, na restauração da residência da família. Qual era a fonte daqueles recursos? Droga? Lavagem de dinheiro? Espionagem comercial? Tráfico de armas? Nada disso fazia sentido, no que dizia respeito a Sam Devereaux. Ele seria um fiasco completo em qualquer uma dessas atividades; era um nabo em subterfúgios. Era — Deus seja louvado — um homem verdadeiramente honesto neste mundo de canalhas. Só que esta avaliação não explicava o aparentemente inexplicável — o dinheiro. Alguns anos antes, quando Aaron fizera casualmente referência à bela restauração na casa, Samuel tinha comentado, tão casualmente quanto, que um Devereaux rico tinha morrido e deixado à mãe uma herança bem razoável.

Pinkus examinara todas as cópias do testamento e os registros de legados tributáveis, só para descobrir que não havia nem parente nem herança. E sabia no fundo do coração religioso que, fosse o que fosse que estivesse agora perseguindo Sam, tinha a ver com sua inexplicada melhoria de vida. O que era? Talvez a resposta estivesse escondida naquela velha casa. Tocou a campainha — sinos de som grave, naturalmente.

Passou-se um minuto completo até a porta ser aberta por uma mulher de meia-idade gorducha, enfiada num uniforme engomado verde e branco.

— O que deseja? — disse ela, com um pouco mais de frieza do que o necessário.

— Mrs. Devereaux — replicou Pinkus. — Creio que está me esperando.

— Ah, é o tal — respondeu a empregada, talvez ainda mais glacialmente, pensou Aaron. — Bem, espero que goste do diabo do chá de camomila, chefe, pois não é nada do meu gosto. Entre.

— Muito obrigado — o famoso mas fisicamente nada imponente advogado, entrou no vestíbulo de mármore rosa norueguês, com seu computador mental calculando seu extravagante custo. — E que variedade de chá prefere, minha cara? — perguntou ele, inutilmente.

— A misturada com uísque de centeio! — exclamou a mulher, com uma gargalhada estridente, ao mesmo tempo em que dava uma cotovelada no ombro frágil de Pinkus.

— Vou lembrar disso quando estivermos almoçando no Ritz uma hora dessas.

— Isso será no dia de São Nunca, não é, baixinho?

— Como?

— Entre por essas portas duplas — continuou a empregada, indicando a porta à esquerda. — A importante o espera. Quanto a mim, tenho coisas para fazer. — Com esta ordem-com-explicação, a mulher virou as costas e caminhou de forma cambaleante pelo luxuoso piso, desaparecendo atrás da escada de caracol com elegante balaustrada.

Aaron aproximou-se da porta dupla fechada, abriu a da direita e deu uma olhada. Na outra extremidade da requintada sala vitoriana estava Eleanor Devereaux, sentada num sofá forrado de brocado branco, um reluzente serviço de chá de prata na mesinha a sua frente. Era assim que ele se lembrava dela: uma mulher ereta, de ossatura fina e rosto idoso, que em seus bons tempos deve ter lançado na água mil iates, com grandes olhos azuis que diziam muito mais do que ela jamais revelaria.

— Mrs. Devereaux, que prazer em vê-la de novo.

— Mr. Pinkus, que enorme prazer em revê-lo. Por favor, entre e sente-se.

— Muito obrigado — Aaron entrou, notando o imenso e inestimável tapete oriental sob seus pés. Acomodou-se na poltrona à direita do sofá, lugar indicado por uma inclinação da aristocrática cabeça de Mrs. Devereaux.

— Pela gargalhada tão frenética que ouvi do corredor — disse a grande senhora —, suponho que conheceu a prima Cora, nossa empregada.

— Sua prima...?

— Se não fosse, acha que duraria mais do que cinco minutos nesta casa? No espírito da família, ser mais afortunada impõe certas obrigações, não é verdade?

— Noblesse oblige, senhora. Disse-o muito bem.

— Sim, suponho que sim, mas desejaria que nunca ninguém tivesse que dizer. Bem, um dia ela vai se engasgar com o uísque que rouba e a obrigação estará terminada, não é verdade?

— Uma conclusão lógica.

— Mas não está aqui para falar da Cora, não é?... Chá de camomila, Mr. Pinkus? Com creme ou limão, com ou sem açúcar?

— Desculpe, Mrs. Devereaux, devo resistir. Aversão de velho.

— Ótimo! E de velha também. Eu mesma sirvo. — Eleanor pegou um bule de Limoges à esquerda da baixela de prata. — Um excelente brandy de trinta anos, Mr. Pinkus, que não pode fazer mal a ninguém. E também quero acabar com ele para que Cora não imagine coisas.

— Meu favorito, Mrs. Devereaux — disse Aaron. — E não vou contar a meu médico, para que ele não comece a imaginar coisas.

— L'chaim, Mr. Pinkus — brindou Eleanor Devereaux, servindo um bom “copinho“ para cada um e levantando a xícara.

— À votre santé, Mrs. Devereaux — disse Aaron.

— Não, não, Mr. Pinkus. O nome Devereaux pode ser francês, mas os ancestrais do meu marido emigraram para a Inglaterra no século XV. Na realidade, foram capturados na batalha de Crécy, mas ficaram tempo suficiente para organizar seus próprios exércitos e serem armados cavaleiros pela Coroa. Somos Nobres Anglicanos.

— Então o que devo dizer?

— Que tal Up your banners, “Ergam seus estandartes”?

— Isso é religioso?

— Se está convencido de que Ele está a seu lado, acho que é. — Tomaram um gole de suas bebidas e voltaram a colocar as xícaras nos pires delicados. — É um bom começo, Mr. Pinkus. E agora, vamos mergulhar diretamente no intrigante assunto que temos entre mãos, ou seja, meu filho?

— Creio que seria prudente — concordou Aaron, olhando para o relógio. — Neste exato momento ele está prestes a entrar numa conferência que envolverá uma questão extremamente complexa, cuja discussão deve demorar algumas horas. No entanto, conforme concordamos ao telefone, nestes últimos meses ele tem exibido um comportamento errático. Pode muito bem deixar a conferência no meio de uma frase e voltar para casa.

— Ou ir para um museu, um cinema, ou — queira Deus que não — para o aeroporto, pegar um avião sabe Deus para onde — interrompeu Eleanor Devereaux. — Estou perfeitamente consciente das tendências impetuosas do Sam. Apenas dois domingos atrás voltei da igreja e encontrei um bilhete dele na mesa da cozinha, dizendo que saíra e me ligaria depois. Ligou realmente durante o jantar. Da Suíça.

— Nossas experiências são dolorosamente parecidas, de modo que não tomarei nosso tempo contando minhas oscilações e as da minha sociedade.

— Meu filho corre o risco de perder sua posição, Mr. Pinkus?

— Não se eu puder impedir, Mrs. Devereaux. Foi demorado e difícil demais encontrar meu sucessor para que eu desista tão facilmente. Mas eu não seria totalmente honesto com a senhora se lhe dissesse que o atual status quo é aceitável. Não é. Não é justo com Sam ou com a sociedade.

— Concordo inteiramente. O que podemos fazer... o que eu posso fazer?

— Correndo o risco de abusar do privilégio da privacidade, e faço-o apenas por afeição e preocupação profissional no mais alto nível, o que pode dizer a respeito de seu filho que talvez lance alguma luz sobre seu comportamento cada vez mais enigmático? Asseguro-lhe que o que for dito aqui permanecerá entre nós no mais estrito sigilo... como se fosse um relacionamento advogado-cliente, embora jamais me atrevesse a ser seu advogado.

— Meu caro Mr. Pinkus, há alguns anos eu nunca me atreveria a lhe propor que fosse meu advogado. Se eu achasse que poderia pagar seus honorários, teria poupado grandes somas da fortuna do meu marido, após sua morte.

— Ah sim...?

— Lansing Devereaux conduziu muitos de seus colegas a situações imensamente lucrativas, com o entendimento de participação razoável depois que o capital de risco fosse recuperado. E apenas alguns poucos honraram esses acordos, um grupo precioso.

— Acordos? Acordos escritos?

— Lansing não era uma pessoa muito rigorosa quando se chegava aos detalhes. No entanto, havia minutas de reuniões, sinopses de conversas de negócios, esse tipo de coisas.

— A senhora tem cópias?

— Claro. Disseram que não valiam nada.

— Seu filho, Samuel, confirmou esse entendimento?

— Nunca lhe mostrei esses papéis e nunca o farei... Ele teve uma adolescência, em alguns aspectos, um pouco penosa, apesar de edificante para seu caráter. Para que reabrir feridas já cicatrizados?

— Um dia podemos retornar a esses papéis “inúteis”, Mrs. Devereaux, mas de momento voltemos... ao momento. O que aconteceu com seu filho no Exército? Tem alguma ideia?

— Ele deu um “show bem bom”, como dizem os ingleses. Foi oficial jurídico aqui e no ultramar e, segundo me disseram, realizou um trabalho importante no Extremo Oriente. Quando terminou o serviço militar, permaneceu como assessor no escritório do Inspetor Geral, com o posto temporário de major. Não consegue fazer muito melhor do que isto.

— Extremo Oriente? — disse Aaron, com as suas antenas a detectarem uma nuance. — O que ele fez no Extremo Oriente?

— Foi na China, claro. Provavelmente você não se lembraria, porque a contribuição dele foi “silenciada”, como se diz em política, mas ele negociou a libertação daquele general americano em Pequim, o tal que alvejou as... partes íntimas... de uma estátua venerada na Cidade Proibida.

— O Louco MacKenzie Hawkins?

— Sim, acho que era esse o nome dele.

— O maior de todos os lunáticos? O gorila que quase mergulhou o planeta na Terceira Guerra Mundial? E Sam defendeu esse indivíduo?

— Sim. Na China. E parece que fez um bom trabalho.

Aaron engoliu em seco diversas vezes até encontrar a sua voz de novo. — O seu filho nunca me disse nada disso — disse ele, com um fio de voz.

— Bem, Mr. Pinkus, conhece os militares. Há tanta coisa confidencial, no meu entender.

— Confidencial, confidencial, confidencial — resmungou o famoso advogado de Boston, como se recitasse uma prece do Talmud. — Diga-me, Mrs. Devereaux, Sammy...

— Sam ou Samuel, Mr. Pinkus.

— Sim, claro... Alguma vez Sam lhe falou desse general Hawkins, após ter ter se desvinculado do Exército?

— Não com essa patente ou com esse nome e nunca quando estava inteiramente sóbrio... Devo explicar que antes de terminar o serviço militar e voltar a Boston, um pouco mais tarde do que esperávamos, é bom acrescentar...

— Por mim, não precisa acrescentar nada, Mrs. Devereaux. Explique antes à loja que forneceu trinta quilos de salmão defumado por que ele nunca apareceu.

— Como?

— Deixe para lá, não é importante. O que estava dizendo?

— Bem, um coronel do escritório do Inspetor Geral telefonou e disse que Sam tinha passado por “um ponto de pressão máxima” na China. Quando perguntei o que isso queria dizer, ficou um pouco agressivo e disse que, sendo eu uma “decente esposa do Exército”, deveria compreender. Quando expliquei que não era a esposa, mas a mãe de Sam, esse homem muito abusado disse algo como “o palhaço era um pouco esquisito” e me avisou que eu devia esperar uns dois meses de mudanças de humor e bebida em excesso.

— O que respondeu?

— Meu casamento com Lansing Devereaux serviu para aprender algumas coisas, Mr. Pinkus. Sei muito bem que, quando um homem ferve pelas pressões que sofre, a melhor coisa a fazer é deixar que esfrie. Essas mulheres recentemente emancipadas deviam se esforçar um pouco nesse sentido. O homem ainda tem que impedir que o leão invada a caverna. Isso não mudou e, biologicamente, não deveria mudar. Ainda é ele o pobre coitado que encara o calor — física, moral e juridicamente.

— Estou começando a ver de onde vem a perspicácia de Sam.

— Não estaria vendo bem as coisas, Aaron... posso tratá-lo de Aaron?

— Com o maior prazer... Eleanor.

— Veja, “perspicácia”, percepção ou qualquer outro nome que se queira dar, só pode ser útil se antes houver imaginação. Era o que meu Lansing tinha, só que esses tempos de masculinidade restringiam minha colaboração a uma cautela complementar, se assim quiser chamar.

— Você é uma mulher notável... Eleanor.

— Outro brandy, Aaron?

— Por que não? Sou um aluno na presença de uma professora de matérias nas quais eu realmente nunca pensei. Acho até que, quando chegar em casa, vou cair de joelhos diante da minha mulher.

— Não exagere. Gostamos de acreditar que somos manipuladoras.

— Voltando a seu filho — disse Pinkus, sorvendo seu brandy em dois goles, em vez de um. — Você disse que ele não se referiu ao general Hawkins pelo nome ou patente, mas deu a entender que ele aludiu ao general... quando não estava sóbrio, o que é perfeitamente compreensível. O que ele disse?

— À vezes, divagava sobre “The Hawk”, como ele o chamava — meditou Eleanor com suavidade, com a cabeça no sofá de brocado. — Sam dizia que ele era um herói legítimo, um gênio militar abandonado pela própria gente, que antes o aclamara como porta-voz e ídolo, mas que o abandonou quando se tornou um obstáculo. Um obstáculo apesar de, com seus atos, realizar as fantasias e os sonhos dessa gente. Mas o que ele estava fazendo era real e isso aterrorizou a todos, porque sabiam que agir de acordo com suas fantasias podia significar o desastre. Como muitos fanáticos que nunca entraram numa verdadeira luta, acham os obstáculos e a morte pouco atraentes.

— E Sam?

— Alegou nunca ter concordado com o Hawk, nunca ter querido se associar a ele, mas viu-se, de algum modo, forçado a isso... como, não sei explicar. Às vezes, quando ele queria falar, inventava histórias incríveis, puro nonsense, como encontrar à noite assassinos contratados num campo de golfe... chegou mesmo a falar de um country club de Long Island.

— Long Island, Nova York?

— Sim. E como ele negociou contratos que envolviam grandes somas de dinheiro com traidores britânicos na Belgrave Square, em Londres, e com ex-nazistas, em aviários na Alemanha... até mesmo com xeques árabes, no meio do deserto, homens que eram, na realidade, tubarões imobiliários, proprietários de favelas em Tel Aviv e não permitiram que o Egito bombardeasse suas propriedades durante a guerra do Yom Kippur. Histórias insanas, Aaron, digo-lhe que eram — que são — totalmente malucas.

— Totalmente malucas — repetiu Pinkus em voz baixa, sentindo um nó se formando no estômago. — Você disse “são”? Ele ainda conta essas histórias loucas?

— Não tantas vezes como antigamente, mas ainda o faz quando está terrivelmente angustiado, ou quando toma aquele martini extra de que não precisava e sai do refúgio para vaguear por aí.

— “Refúgio”... como se fosse uma caverna, por acaso?

— É assim que ele chama, seu “refúgio do château”.

— “Château”, tipo casa grande ou castelo?

— Sim, ele de vez em quando fala mesmo num grande château em Zermatt, na Suíça, e na sua “Lady A” e no “Tio Zio”... pura fantasia! Creio que a palavra adequada é maluquice.

— Espero sinceramente que sim — resmungou Pinkus.

— Como?

— Nada. Samuel passa muito tempo no seu “refúgio”, Eleanor?

— Nunca sai de lá, exceto para algum jantar ocasional comigo. Na verdade, está instalado na ala leste da casa, que é independente das outras, pois tem entrada particular e seus próprios cômodos — dois quartos, escritório, cozinha — as divisões habituais. Tem inclusive seu próprio serviço de limpeza, que, estranhamente, é efetuado por muçulmanos.

— Na realidade, tem o seu próprio apartamento.

— Sim, e Samuel pensa que tem as únicas chaves...

— Mas não tem? — perguntou Aaron rapidamente.

— Meu Deus do céu, não. O pessoal do seguro insistiu para que Cora e eu tivéssemos acesso. Uma manhã, Cora roubou o chaveiro dele e mandou fazer cópias... Aaron Pinkus! — Eleanor Devereaux olhou para os olhos profundos do advogado e leu neles a mensagem. — Acha mesmo que poderemos descobrir alguma coisa... examinando seu refúgio dele no castelo? Não é ilegal?

— É a mãe dele, minha cara, e está justamente preocupada com seu estado de saúde mental. É imperativo que transcende a lei. No entanto, antes que tome essa decisão, mais uma ou duas perguntas... Muitas coisas maravilhosas foram feitas nesta casa, neste velho e grandioso casarão, nos últimos anos. Apenas pelo exterior julguei que as despesas andassem em torno dos cem mil dólares. Vendo agora o interior, tenho que reformular minha estimativa para um número cem vezes superior. De onde veio esse dinheiro? Sam lhe contou?

— Não em muitas palavras, quer dizer, não de uma forma precisa... Ele disse que enquanto esteve na Europa, na tal missão altamente secreta, depois de ter terminado o serviço militar, investiu em algumas obras de arte, na realidade, artigos religiosos descobertos recentemente e, em questão de meses, o mercado explodiu e ele se deu muito bem.

— Entendo — disse Pinkus, o nó no estômago apertando, mas sem conseguir ver alguma coisa com clareza; nítida era apenas a sensação de ouvir um trovão distante na cabeça. — Artigos religiosos... E quanto a essa “Lady A” de que falou, o que ele disse sobre ela?

— Era tudo disparate puro. Nas ilusões ou delírios do meu filho, como queira, essa Lady A é uma fantasia que ele chama de “eterno amor da sua existência na Terra”, que o deixou e fugiu com um Papa.

— Oh, Deus de Abraão — murmurou Pinkus, pegando sua xícara.

— Nós, membros da Nobre Igreja da Inglaterra, não podemos aceitar essa ligação, Aaron. Henrique VIII à parte, a apostasia da infalibilidade de qualquer pontífice pura e simplesmente não pega. É um símbolo razoável, mesmo que pretensioso, mas nada além.

— Acho que está na hora de tomar sua decisão, Eleanor — disse Pinkus, engolindo o resto do brandy, na esperança de que a dor que se espalhava pelo estômago desaparecesse. — Refiro-me a uma visita ao refúgio do château.

— Acha realmente que pode ajudar?

— Não estou certo do que acho, mas estou seguro de que é o melhor que podemos fazer.

— Então venha. — Lady Devereaux levantou-se do sofá, um pouco insegura e dirigiu-se para a porta. — As chaves estão num vaso de flores no foyer.

— Flores, no foyer, no vaso — recitou Pinkus pondo-se em pé, sem saber exatamente onde estavam os pés.


Aproximaram-se da porta pesada e grossa do refúgio do château de Samuel Devereaux e a mãe de Sam introduziu a chave com a amável ajuda do homem que era agora seu advogado. Entraram no sanctum sanctorum e percorreram um corredor estreito que desembocava em outro mais largo, enquanto os raios do sol da tarde fluíam através de uma porta de vidro imponente situada à esquerda e que parecia impenetrável, constituindo a entrada propriamente dita do apartamento. Viraram à direita e a primeira porta aberta que viram revelou um quarto no escuro. As venezianas estavam completamente baixadas.

— O que é isso? — quis saber Aaron.

— Creio que é o escritório dele — respondeu Eleanor, semicerrando os olhos. — Nem consigo lembrar de quando vim aqui pela última vez... provavelmente foi quando a obra terminou e Sam me mostrou o interior.

— Vamos dar uma olhada. Sabe onde acender a luz?

— O interruptor geralmente é na parede. — Era, efetivamente, e três abajures de pé foram acesos, iluminando as três paredes visíveis de um escritório totalmente forrado de pinho. Mas se viam as próprias paredes, pois estavam cobertas de fotografias emolduradas e recortes de jornal presos com fita adesiva.

Muitos recortes estavam tortos, como se tivessem sido colados apressadamente, talvez com raiva. — Isso está uma completa confusão! — exclamou a mãe do habitante. — Vou insistir com ele para que limpe tudo!

— Eu nem pensaria nisso — comentou Pinkus, aproximando-se dos recortes mais próximos na parede da esquerda. Essencialmente mostravam uma freira de hábito branco dando comida e roupas a pobres — brancos, negros e hispânicos — em várias partes do mundo.

IRMÃ ANNE, A BENEVOLENTE, LEVA SUA MENSAGEM A TODOS OS PONTOS DO GLOBO, gritava uma manchete sobre a foto de uma favela do Rio de Janeiro, vendo-se claramente o Cristo Redentor na montanha, no ponto mais distante dessa cidade do jet-set. Os outros recortes eram uma variação sobre o mesmo tema — foto de uma freira muito atraente na África, na Ásia, na América Central, em ilhas de leprosos no Pacífico. IRMÃ ANNE, IRMÃ DE CARIDADE, IRMÃ DE ESPERANÇA, e, finalmente, ANNE, A BENEVOLENTE, CANDIDATA À BEATIFICAÇÃO?

Aaron colocou os óculos de armação de metal e examinou as outras fotos. Tinham sido todas tiradas em algum recanto extravagante cheio de edelweiss, geralmente com os Alpes ao fundo. As pessoas estavam felizes e despreocupadas e a alegria de viver iluminava seus rostos. Algumas eram reconhecíveis: um Sam Devereaux um pouco mais jovem, a figura agressiva e alta do general maníaco, o tal “Louco” MacKenzie Hawkins; uma loura platinada de short e blusa — voluptuosa, sem dúvida, a inconfundível Anne, a Benevolente; e uma quarta figura, um indivíduo jovial, corpulento e sorridente, envergando um pequeno avental de chef que mal ocultava o calção de tirolês. Quem era? O rosto era familiar, mas... não, não, NÃO!

— O Deus de Abraão nos abandonou — murmurou Aaron Pinkus, tremendo.

— Em nome dos Celtas, do que está falando? — indagou Eleanor Devereaux.

— Provavelmente não vai lembrar, porque não significou nada para você — Aaron se apressou a responder, sem firmeza, com um nítido tremor na voz. — Mas, anos atrás, o Vaticano enfrentou um grande problema, um problema financeiro. O dinheiro saía dos cofres aos montes, apoiando causas tão improváveis quanto companhias de ópera de terceira categoria, parques de diversão e casas de reabilitação de prostitutas por toda a Europa, todo tipo de insanidade. O povo começou a pensar que o Papa tinha enlouquecido, que estava, como eles dizem, pazzo! Então, pouco antes de a Cidade Eterna atingir o colapso, o que teria resultado num pânico generalizado no mundo dos investimentos, tudo de repente voltou ao normal. O Sumo Pontífice reassumiu o controle, à velha maneira! No mundo inteiro a mídia dizia que era como se ele tivesse sido dois homens, um pazzo e o outro, o homem bom que todos conheciam e amavam.

— Meu caro Mr. Pinkus, o que está dizendo não faz o menor sentido!

— Olhe, olhe! — exclamou Aaron, apontando um rosto cheio e sorridente numa das fotos. — É ele!

— Quem?

— O Papa! Foi daí que veio o dinheiro. O resgate! A imprensa tinha razão, eram duas pessoas! O general Hawkins e seu filho sequestraram o Papa!... Eleanor, Eleanor? — Aaron se virou para ela.

Lady Devereaux tinha caído no chão, inconsciente.


4

— Ninguém é tão limpo assim — disse o diretor Mangecavallo baixinho, a voz exprimindo sua incredulidade, a dois homens de terno preto, sentados do outro lado da mesa da cozinha mal iluminada da DCI, em McLean, Virginia. — Não é natural, entende? Talvez não tenha procurado direito, hein, Fingers1?

— Sério, Vinnie, fiquei chocado — disse o homem baixo e obeso que atendia pelo apelido de Fingers, enquanto tocava o nó da gravata branca sobre a camisa preta. — Como você mesmo diz, não é natural — nem mesmo humano. Em que tipo de mundo esses juízes importantes vivem? Um mundo sem micróbios, quem sabe?

— Não respondeu minha pergunta — interrompeu Vincent suavemente, arqueando as sobrancelhas e desviando rapidamente o olhar penetrante para o segundo visitante. — O que me diz, Meat2? Vocês não estão ficando preguiçosos, é?

— Ei, Vin — protestou o outro convidado, um tipo grandalhão e corpulento, com as mãos pesadas abertas na sua frente, tapando parcialmente a gravata vermelha sobre a camisa rosa. — O que posso dizer? Fizemos um trabalho de primeira classe, de classe internacional, era o que os figurões exigiam, não era? Até trouxemos de Atlanta os rapazes do Hymie Goldfarb, e quem melhor que Hymie para conseguir provas contra um santo, estou certo ou errado?

— Sim, os rapazes do Hymie conhecem os túneis, sem dúvida — concordou o diretor da CIA, servindo-se de outro copo de Chianti e tirando um charuto Monte Cristo do bolso da camisa. — Muito melhor do que todos os federais de Hooverville. Eles escavaram para nós o lixo de cento e trinta e sete deputados e vinte e seis senadores que garantiram minha confirmação no cargo, juntamente com algumas liberalidades que foram distribuídas, claro.

— Liberal... o que, Vinnie? — quis saber Fingers.

— Liberalidades... esquece... Nenhum desses juízes malucos tem nadica que possamos investigar? Isso é extraterrestre!

Mangecavallo levantou-se e acendeu o charuto. Começou a caminhar de um lado para o outro junto à parede em penumbra, onde tinham sido penduradas, alternadamente, gravuras de santos, papas e vegetais, até que parou de repente, soltando uma nuvem de fumaça em volta do crânio, como um halo. — Voltemos ao essencial — disse ele, imóvel. — Vamos dar uma olhada pra valer.

— Em que, Vinnie?

— Nesses quatro ou cinco palhaços liberais que não sabem pensar como se deve. O que eles têm que o pessoal do Goldfarb não conseguiu descobrir?... O que me diz daquele gatão negro? Pode ser que tenha se envolvido com jogo ilícito quando era garoto. Alguém pensou nisso? Talvez não tenham ido suficientemente fundo em seu passado. Esse é que pode ter sido o erro.

— Ele foi sacristão e menino de coro, Vin. Até a raiz dos cabelos, um anjo de verdade, além de um cérebro enorme.

— E que tal a juíza? Ela é que é importante, não é? Isso significa que o marido tem que se calar e fingir que gosta do fato de ela ser tão importante, o que não pode fazer, de maneira alguma, porque ele é homem. Talvez ela não lhe dê comida e ele fique furioso, mas não pode dizer nada. Ninguém fala disso.

— Nada disso, Vin — disse Meat, balançando a cabeça tristemente. — Ele passa o dia todo enviando flores para ela de seu escritório e diz a todo mundo que sente orgulho da mulher. Pode ser que isso aconteça porque ele mesmo é um grande avvocato e não quer inimigos na Corte, inclusive a própria mulher.

— Merda!...Ei, esse irlandês bebedor de água, pode ser que ele também beba uns copos a mais, como muitos irlandeses depois de uma grande exibição. O que acham disso? Podíamos organizar um pequeno arquivo — altamente secreto, segurança nacional, esse tipo de coisa. Compramos uma dúzia de testemunhas para afirmarem que o viram encharcadón quando saía do escritório. Pode dar certo. E podíamos acrescentar umas garotas. Seria natural!

— Não é tão simples, Vin — contrapôs Meat, suspirando e balançando de novo a cabeça. — O irlandês é tão desinfectado que os lençóis dele rangem. Pelo que se sabe, nunca bebeu mais do que um cálice de vinho branco e as garotas nem sequer entram na sua área de diversões.

— Alguma coisa entra, então?

— Está perto, Vin. Ele foi escoteiro.

— Que grande merda... Está bem, está bem. Não tocamos nos dois WASPs porque nosso pessoal está fazendo boas incursões aos bancos na melhor área da cidade. Não haverá ataques contra o pessoal do country club, porque são essas as ordens. Não gosto, mas aceito... Assim, voltamos ao nosso paisan.

— Má pessoa, Vinnie — interrompeu Fingers, furioso. — Tem se mostrado muito duro com nossos rapazes, como se nem sequer nos conhecesse, entende?

— Bem, talvez devêssemos fazer com que ele soubesse que nós sabemos quem ele é, que tal?

— Certo, Vin, mas que tal o quê?

— Como diabos vou saber? O pessoal do Goldfarb deve ter encontrado alguma coisa, qualquer coisa! Por exemplo, talvez ele tenha esmurrado umas freiras na escola paroquial, ou participado de uma gangue de motoqueiros, seja o que for! Tenho que pensar em tudo? Ele tem uma fraqueza, tem que ter. Todos os paisans gordos têm!

— Meat é bem gordo.

— E você também não é nenhuma vara, Fingers.

— Não se pode tocar nesse paisan, Vin — interrompeu Meat. — Ele é um verdadeiro erudito, um homem que sabe tantas palavras difíceis que confunde os maiores cérebros, e é tão limpo quanto o irlandês oxigenado. Não há nada contra ele, exceto que irrita as pessoas cantando ópera com uma voz não muito boa. O pessoal do Goldfarb foi primeiro atrás dele porque, como muitos judeus, eles se autodenominam liberais e o gordo não é. Eles pareciam estar politicamente motivados, entende?

— Que diabos tem a política a ver com tudo isso? Temos um problema, o maior problema que este país já enfrentou e você fica aí grasnando sobre politica?

— Ei, Vinnie — defendeu-se Fingers —, você é quem quer lama nos juízes da Suprema Corte, não é?

— Está bem, está bem! — disse Mangecavallo, soprando o charuto irregularmente e voltando à cadeira na mesa. — Eu sei quando um esquema não funciona, está bem? Então, qual é nosso papel? Proteger o país que amamos porque sem o país que amamos ficamos sem emprego! Será que me fiz entender agora?

— Claro — disse Fingers. — Eu não quero viver em nenhum outro lugar.

— Eu não poderia — acrescentou Meat. — Com a Angelina e sete filhos, aonde eu poderia ir? Palermo é quente demais e eu suo muito, sabe? Angie ainda é pior do que eu — não imaginam como ela sua! Ela consegue fazer com que um quarto cheire mal.

— Que nojo — disse Mangecavallo baixinho, com os olhos escuros fixos no corpulento sócio de camisa rosa. — É mesmo nojento. Como pode falar assim da mãe de seus filhos?

— A culpa não é dela, Vin. São as glândulas.

— Você pega toda a mozzarella, sabe disso, não sabe, Meat?... Mas chega, isso não leva a parte alguma. — O diretor da CIA levantou de novo e caminhou furioso pela cozinha, tirando baforadas do charuto e parando o tempo suficiente para levantar a tampa de uma panela fumegante e deixá-la cair, porque o metal estava muito quente. — Que diabos ela está cozinhando agora? Parece miolo de macaco. — Sacudiu a mão queimada.

— É sua empregada, Vinnie?

— Empregada? Que empregada? Refere-se à contessa, que senta com Rosa tricotando e falando, falando e tricotando como duas sicilianas tentando lembrar quem comeu quem em Messina, quarenta anos atrás! Ela não cozinha... não cozinha e não lava as janelas ou as panelas e passa a vida nos supermercados com a Rosa, comprando porcarias que eu não teria coragem de dar aos gatos.

— Livre-se dela, Vin.

— Oh, que scungilli engraçado você é! Rosa diz que ela é como uma de suas irmãs, só que boazinha e não tão feia. Não, elas podem comer este excremento, mas nós vamos sair. Uma emergência ligada à segurança nacional, entenderam?

— Entendi, Vinnie — afirmou Fingers, balançando a enorme cabeça com um nariz ligeiramente irregular. — É como quando dizem que “os nativos são irrequietos”, não é?

— Meu Deus, que diabos têm os nativos a ver com... espere aí...espere aí! Nativos. “Nativo americano”. É isso!... Pode ser.

— Pode ser o que, Vin?

— Não conseguimos encontrar nada contra os juízes, certo?

— Não, Vinnie.

— Quer dizer então que a Suprema Corte pode nos jogar a todos na privada, não é?

— É, Vin.

— Não necessariamente... Suponhamos, vamos ao menos supor que o chato desse chefe índio, capaz de causar a maior crise de segurança nacional da nossa história, seja um homem muito ruim, um indivíduo reles, sem amor no coração, só com más intenções, entendem o que quero dizer? Suponhamos que ele não ligue nem um pouquinho para seus irmãos do Oeste selvagem e que queira apenas um filão para si mesmo, com toda a publicidade que isso traria? Arrancamos sua máscara de bonzinho e ele fica no jeito... Isso acontece a toda a hora!

— Não sei não, Vin — contrapôs Meat de forma hesitante. — Foi você que contou que o tal crânio da Casa Branca, o do giz colorido, disse que cinco ou seis juízes se debulharam em lágrimas quando leram o processo desse Touro Sentado. Como havia ali uma litania completa... você disse “litania”, Vin, tive até que procurar no dicionário... de fraude e desonestidade, de assassinato e condenação de tribos inteiras à morte por inanição na história do país. E agora, você, eu e o Fingers... você, o mais inteligente, claro, eu muito atrás e o Fingers fora da competição... como imaginar que um sujeito desprezível e falso amassaria os miolos desses juízes tão importantes com um monte de mentiras? Não faz sentido.

— Não estamos procurando sentido, amico, estamos procurando uma saída para uma possível emergência nacional, vê se enfia isso na cabeça. E, neste momento, o nome dessa possível emergência é Cabeça de Trovão. Manda o pessoal do Goldfarb para o Nebraska!


— Nebraska... Nebraska... Nebraska — entoou Hyman Goldfarb ao telefone, como em algum salmo do Antigo Testamento. Sentado à sua elegante mesa em seu elegante escritório, no muito elegante Phipp Plaza de Atlanta, seus olhos se moveram para cima e para baixo, até se fixarem afetuosamente no casal esbelto, bem vestido e de meia idade sentado à sua frente... meia idade quer dizer quarenta e poucos, apenas alguns anos menos que o musculoso e bronzeado Goldfarb, enfiado num terno de linho branco apertado que modelava seu ainda espantoso corpo de atleta. — Devo então mandar mais uma vez meu melhor pessoal para esse remoto, para não dizer coisa pior, Nebraska para que cacem uma neblina, um nevoeiro, uma nuvem de vapor que se autodenomina Cabeça de Trovão, chefe dos Wopotamis?... E isso que você está dizendo? Porque se for eu devia antes ter sido um rabino, que foi para o que estudei, em vez de jogador de futebol, que exige muito pouco conhecimento. — Hyman Goldfarb se calou e ficou escutando, afastando de vez em quanto o fone do ouvido, suspirando, e depois, sem disfarçar, interrompeu o interlocutor.

— Quer prestar atenção e deixar que eu o faça poupar algum dinheiro, por favor? Muito obrigado, então ouça. Se é que há um cacique Cabeça de Trovão, ele não vai ser encontrado em parte alguma. Meu pessoal não pode dizer que ele não existe. Sempre que mencionavam seu nome entre o que restou dos Wopotamis em sua patética reserva havia um silêncio, misturado com cochichos incompreensíveis na língua Wopotami. Disseram que, de repente, parecia que estavam numa espécie de catedral numa floresta primitiva, muito álcool disponível, e então se começa a acreditar que esse Cabeça de Trovão é mais mito que realidade. Um ícone, talvez, um Deus tribal esculpido no totem, ao qual os crentes prestam obediência, mas não um ser humano. Trocando em miúdos, não creio que tal pessoa exista... O que eu acho, e essa é sua pergunta — e não é preciso gritar!, é que francamente, meu excitável amigo, o Chefe Cabeça de Trovão é um amálgama simbólico de... não, não estou me referindo a preferências sexuais... de interesses especiais estreitamente definidos, sem dúvida benevolentes e centrados no lastimável tratamento que o nosso governo dá ao indígena americano. Talvez um grupinho de especialistas em Direito de Berkeley ou da Universidade de Nova York que desenterraram precedentes suficientes para confundir os tribunais inferiores. Uma burla, meu amigo, pura e simplesmente uma burla, embora muito brilhante.

Goldfarb afastou o telefone do ouvido e fechou, por um instante, os olhos enquanto a voz do outro lado da linha encheu, com o seu timbre metálico, o elegante escritório. Que raio de conversa é essa — trovejou a pessoa que tinha ligado para Goldfarb. Este grande país pode estar numa séria crise nacional e você não tem nada para oferecer senão histórias que não fazem sentido? Pois bem, deixe que eu lhe diga uma coisa, Senhor-grande-craque-meio-campista, o homem de Langley, Virginia, com quem você não pode falar agora, diz que é melhor que apareça com alguma coisa sobre esse Cabeça de Trovão e que seja depressa! O que eu quero dizer é que nenhum de nós quer viver em Palermo, está entendendo?

— Redundância à parte, per cento anno, signore — disse Goldfarb. — Vamos ficar em contato — o consultor da CIA desligou o aparelho, recostou-se na sua cadeira giratória e suspirou sonoramente ao dirigir-se ao atraente casal à sua frente.

— Por que eu, meu Deus, por que eu? — perguntou, sacudindo a cabeça. — Vocês têm certeza?

— Eu não diria isso tão categoricamente, Hyman — replicou a mulher, com um sotaque britânico cerrado que denunciava diversas gerações de educação dispendiosa. — Não, não temos certeza. Acho que ninguém pode ter. Mas se existe um Cabeça de Trovão, ele pura e simplesmente não está em locais onde possa ser encontrado, conforme você explicou com tanta clareza ao cavalheiro pelo telefone.

— Usei suas palavras, é claro — acrescentou Goldfarb. — E ponho em causa o tratamento de “cavalheiro”.

— Imagino que com bons motivos — disse o companheiro da mulher, também obviamente britânico. — Empregamos o Plano C. Trabalhamos como antropólogos em Cambridge, estudando uma tribo importante, embora diminuta, cujos antepassados foram levados à Coroa por Walter Raleigh no início do século dezessete. Se realmente existe um Cabeça de Trovão, pela lógica, ele deveria ter exigido o reconhecimento da Coroa, assim como a verba há muito tempo esquecida e que na época era sem dúvida diminuta, mas hoje, qualquer que seja o critério de avaliação, constitui uma soma enorme. Ele não o fez. Daí nossa conclusão: ele não existe.

— Mas a petição à Suprema Corte existe — insistiu o consultor. — É uma loucura.

— É pura e simplesmente incrível — concordou o inglês. — E agora, o que fazemos, Hyman? Acredito que você esteja sob a mira de uma arma, como costumávamos dizer no Serviço Secreto de Sua Majestade, embora eu sempre achasse que se tratava de uma expressão bem banal, transmitindo mais melodrama do que o necessário.

— É e não é, ao mesmo tempo — disse Goldfarb. — Estamos lidando com uma coisa completamente louca, mas ainda assim é uma situação perigosa... O que esses juízes estão pensando?

— Justiça e lei, atrevo-me a dizer — sugeriu a mulher. — A um preço que todos reconhecemos ser mais do que extraordinário. No entanto, meu caro Hy, e desculpe-me pelo que vou dizer, o homem ao telefone, que você diz não se tratar de um cavalheiro, tem razão no essencial. Quem quer que se esconda sob o manto desse Cabeça de Trovão... uma ou várias pessoas, é a chave da questão.

— Mas Daphne, você mesma admitiu que não conseguem encontrá-lo.

— Talvez não tenhamos procurado o suficiente, Hyman. Não é verdade, Reggie?

— Minha querida, andamos por todo aquele maldito pantanal, com hospedagem péssima, sem instalações civilizadas. Permita-me lembrar que não chegamos a conclusão alguma. Ninguém disse nada que fizesse sentido!

— Eu sei, querido, mas um deles não queria fazer sentido, lembra de eu ter falado nisso?

— Ah, aquele — replicou o inglês, num tom que questionava a própria memória. — Que sujeitinho desagradável, muito mal-humorado mesmo.

— Quem? — Goldfarb endireitou-se imediatamente na cadeira.

— Não era mal-humorado, Reggie, apenas não era comunicativo. Para dizer a verdade, nem mesmo coerente, mas compreendia tudo o que dizíamos. Estava nos olhos dele.

— Quem era ele? — pressionou o consultor da CIA.

— Um bravo índio... acho que a palavra certa é “bravo“... com pouco mais de vinte anos. Afirmava não compreender muito bem inglês e quando lhe fizemos várias perguntas apenas encolhia os ombros e sacudia a cabeça. Não pensei muito nisso na hora. Hoje em dia os jovens são tão hostis, não é?

— Ele estava vestido de forma indecente — interrompeu Reginald. — Na realidade, pouco mais que uma tanguinha. Muito desagradável. E quando pulou para cima do cavalo, mostrou nítida falta de habilidade equestre.

— Do que está falando? — Goldfarb indagou, intrigado.

— Ele caiu — respondeu Daphne. — Era óbvio que cavalos não eram seu forte.

— Espere aí, espere aí! — o peito largo de Goldfarb debruçou-se sobre quase meia mesa. — Você disse que não pensou muito nisso, nesse jovem índio, na hora, mas agora está pensa. Por quê?

— Bem, diante das circunstâncias, caro Hy, estou tentando pensar em tudo.

— O que você sugere é que ele pode saber algo que não quis contar?

— É apenas uma possibilidade.

— Acha que poderia encontrá-lo de novo?

— Sim. Vi de que tenda ele saiu, a dele.

— Tenda? Eles vivem em tendas?

— Naturalmente, Hyman — replicou Reginald. — Eles são índios, amigo. Peles-vermelhas, como vocês dizem nos filmes.

— Alguma coisa não bate em tudo isso — disse Goldfarb, pegando o telefone e discando. — Tendas! Ninguém mais dorme em tendas!... Não desfaçam as malas — acrescentou, dirigindo-se ao casal e voltando instantaneamente a atenção para o telefone. — Manny?... Pegue a A Pá e vá para o campo. Você vai levar o Lear ao estado de Nebraska.


O jovem e bravo índio, vestido com seu estranho saiote de couro, parou do lado de fora da grande e decorada tenda e gritou:

— Mac, quero minhas roupas de volta! Não pode fazer isso comigo. Estou cheio, todos nós estamos cheios disso! Não dormimos nessas tendas ridículas e não queimamos as mãos tentando cozinhar em fogueiras e não usamos o maldito mato, e sim banheiros! E por falar nisso, pode pegar esse pônei miserável e doente e devolver ao Geronimo! Odeio cavalos e não sei montar, nenhum de nós sabe, pelo amor de Deus. Dirigimos Chevys e Fords e dois Cadillacs velhos, mas não cavalos... Mac, está me ouvindo? Vamos, Mac, responda!... Olhe, estamos agradecidos pelo dinheiro e por suas boas intenções, até mesmo pelas roupas malucas dessa fábrica de fantasias em Hollywood, mas isso já foi longe demais, não entende?

— Você chegou a ver o filme que fizeram sobre mim? — ouviu-se a voz de trovão vinda da tenda fechada. — Nunca vi alguém miar tanto quanto o filho da mãe que interpretou meu personagem! Que situação embaraçosa, realmente embaraçosa!

— Mac, é exatamente disso que estou falando. Essa simulação absurda a que você está nos submetendo nos enche de vergonha. Vamos ser liquidados e seremos motivo de riso em todas as reservas!

— Ainda não serão... não seremos! Embora o termo liquidado seja, de certa forma, interessante.

— Não é não, sua cabeça de malmequer! Já se passaram três meses e ainda não soubemos de nada. Três meses de insanidade, correndo por aí seminus ou enfiados em trajes de continhas que arranham nossos traseiros como o diabo, queimando os dedos em fogueiras e encostando partes embaraçosas do corpo em urtiga sempre que precisamos correr para o mato.

— Trincheiras sanitárias sempre foram uma parte aceitável da vida militar, rapaz. E não pode argumentar com a separação dos sexos — o Exército não aceitaria de outro modo.

— Isso não é o Exército, eu não sou soldado e quero as minhas roupas de volta!

— Um desses dias, filho! — interrompeu a voz grave e áspera vinda da tenda. — Você verá!

— Não, seu lunático, nem qualquer dia, nem qualquer mês, nem qualquer ano! Esses velhos fedorentos da Suprema Corte provavelmente estão sentados nos seus gabinetes gargalhando e não vou poder mais trabalhar nem no tribunal mais relaxado da Samoa Americana... Vamos, Mac! Admita, acabou — foi uma grande ideia e devo admitir que havia talvez um grão, um grão, talvez, de substância nela, mas agora tudo ficou ridículo.

— O nosso bom povo sofreu cento e doze anos, rapaz. Sofreu nas mãos do homem branco brutal e avarento... Agora seremos merecidamente recompensados e libertados! O que são mais alguns dias?

— Mac, você não é nem parente distante!

— No coração deste velho soldado nós estamos ligados, filho, e eu não os abandonarei.

— Por favor, esqueça-me, está bem? Devolva minhas roupas e diga àqueles dois idiotas que estão me seguindo para me deixarem em paz!

— Você é impaciente demais, jovem, e não posso permitir que se vire contra nossos irmãos de tribo...

— Nossos...? Mac, você é interditável, por isso deixe-me dizer-lhe uma coisa, irmão bravo. É uma questãozinha de estatuto judicial pro forma de que pode não ter conhecimento, mas que, sem dúvida alguma, deveria ter. Quatro meses atrás, quando começou toda essa maluquice da dança de guerra, você perguntou se eu havia passado no exame da Ordem dos Advogados e eu disse que tinha certeza que sim. Bem, ainda tenho certeza de que passei naquela porcaria, mas se você me pedisse que eu lhe mostrasse o certificado, não poderia fazê-lo. É que ainda não recebi uma notificação formal da Ordem de Nebraska e posso continuar sem receber por mais dois meses, o que é perfeitamente normal para a Ordem e perfeitamente inadmissível no que diz respeito a sua posição perante a Suprema Corte.

— O quê...? — ouviu-se um prolongado e desentranhado urro vindo da tenda.

— Acontece que essa instituição tem uma atividade intensa, meu irmão, e salvo circunstâncias extraordinárias, que devem ser definidas e aprovadas, nenhum advogado sem carteira profissional pode apresentar petição à Suprema Corte, mesmo sob patrocínio provisório. Eu já lhe disse isso. Você perdeu a causa por omissão, mesmo que consiga uma decisão positiva, o que é tão provável quanto este bravo índio aprender a montar um maldito cavalo!

O grito pungente que veio de dentro do cone de peles de animais que, na realidade, eram imitações pintadas, foi ainda mais longo do que antes e com uma capacidade infinitamente maior de partir corações.

— Como pôde fazer uma coisa dessas?

— Eu não fiz nada, Mac, foi você que fez! Eu lhe disse para oficializar seu advogado, mas você respondeu que não podia porque ele estava morto e que depois pensaria em alguma forma de resolver a situação, e até lá usaríamos o precedente non nomen de 1826.

— Foi você que desenterrou isso! — berrou o trovão sem rosto.

— Sim, fui eu, e você ficou agradecido, e agora sugiro que desenterre seu falecido advogado.

— Não posso — o urro deu subitamente lugar à lamúria de um gatinho desnorteado.

— Por que não?

— Ele não fala comigo.

— Certamente eu não esperaria que ele falasse! Oh céus, não me refiro ao cadáver, mas aos documentos, descobertas, interrogatórios — a investigação. Tudo é aceitável.

— Ele não gostaria disso — o gatinho era agora um rato sibilante.

— Ele não saberia!... Mac, ouça. Mais cedo ou mais tarde, um dos assessores desses juízes de Washington vai descobrir que sou um garoto recém-saído da faculdade, com pouco mais de seis meses de prática, e vai dar o alerta. Mesmo que você tivesse um santo protetor, o deus da Suprema Corte, o Juiz-Presidente Reebock, lançaria um raio sobre ele por fraudar sua santa instituição. Pior ainda, por fazer os juízes de idiotas, mesmo que um ou dois se inclinassem a seu favor, o que, como digo, é totalmente impossível. Esqueça, Mac! Acabou. Devolva minhas roupas, está bem? E deixe-me sair daqui...

— Para onde você iria, filho? — O invisível rato sibilante estava conseguindo sair de sua caverna vocal e subia de novo num crescendo. — Para onde, rapaz?

— Talvez para a Samoa Americana, com um certificado da Ordem de Nebraska, quem sabe?

— Nunca pensei que viria a dizer isso, filho — exclamou a voz sem rosto, mais uma vez gritando da tenda —, porque realmente pensei que você fosse feito do material certo, mas agora vejo que não consigo transformá-lo num cara esperto!

— Obrigado pela rima, Mac. E agora, que tal devolver minhas roupas?

— Pegue-as, seu coiote de pele amarela! — A falsa pele de animal que servia de porta para a tenda se abriu e um sortido de roupas da Ivy League foi lançado no espaço escuro.

— É pele-vermelha, Mac, não pele-amarela, lembra? — O jovem bravo de tanga se agachou para pegar a cueca, a camisa, a calça cinza de flanela e o blazer azul-marinho. — Muito obrigado, Mac, agradeço sinceramente.

— Ainda não, rapaz, mas virá a fazê-lo. Um bom oficial jamais esquece seus recrutas, não importa quão inúteis possam parecer no calor do combate... Você foi uma ajuda, direi isso nas sessões de estratégia do QG. Deixe seu endereço para correspondência com aquele bêbado que você chama de Rabo de Águia!

— Olhos de Águia — corrigiu o bravo, despindo a tanga e vestindo a cueca. Estendeu o braço para pegar a camisa azul. — E foi você quem lhe deu a bebida, deu caixas de bebidas a todos.

— Cuidado com os índios hipócritas que se viram contra sua própria tribo! — berrou o manipulador invisível dos Wopotamis.

— Vamos, Mac! — gritou o bravo, enfiando os pés no mocassim Bally e metendo a gravata listrada no bolso, depois vestindo o blazer. — Onde diabos está meu Camaro?

— Camuflado, depois do pasto leste, a sessenta passos de um veado que corre para a direita do pinheiro alto da coruja de agosto.

— Sessenta o quê? Que história é essa da coruja?

— Você nunca foi muito bom no campo, bem que Rabo de Águia me disse.

— Olhos de Águia, ele é meu tio e ainda não conseguiu passar um minuto sóbrio desde que você chegou aqui!... Pasto leste? Onde fica isso?

— Olhe para o sol, rapaz. Ele é a bússola que nunca falha, mas certifique-se antes de que cobriu suas armas, para que o reflexo não o traia.

— Doente mental! — gritou o jovem bravo dos Wopotamis, partindo para o oeste.

Nesse mesmo momento, acompanhado de um grito primitivo de desafio, um vulto alto saiu da tenda, lançando a coberta para cima, ficando presa na parede exterior de pele. Esse homem gigantesco, resplandecendo gloriosamente em seu cocar índio que se estendia, oscilante, até o chão, e seu traje de pele de gamo enfeitado com pequenas contas — símbolos de sua elevada posição tribal — franziu os olhos à luz do sol, ao mesmo tempo em que enfiava um charuto mutilado na boca e começava a mascá-lo furiosamente. Seu rosto bronzeado e cheio de rugas e os olhos semicerrados traíam uma expressão de frustração... talvez também um certo receio.

— Raios! — exclamou MacKenzie Hawkins para si mesmo. — Nunca pensei que tivesse que fazer isto.

O Hawk enfiou a mão no colete pintado de pele de gamo, com pequenas contas contendo raios de trovão amarelos ao longo do peito, e tirou um celular. — Informações da área de Boston? Quero o número da residência Devereaux, primeiro nome, Sam...

 

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1 Dedos.

2 Carne.


5

Samuel Lansing Devereaux dirigia cuidadosamente pela estrada Waltham-Weston, num fim de tarde de sexta-feira, no pico do rush, o tradicional êxodo de Boston. Dirigia com a cautela de sempre, como se manobrasse um velocípede num campo de batalha cheio de tanques inimigos se aproximando com barulho ensurdecedor para o ataque final. Hoje, porém, estava pior. Não era o tráfego, enlouquecedoramente normal. Era a dor latejante nos olhos, juntamente com um aperto no peito e um buraco móvel no estômago, tudo resultado de um ataque agudo de depressão. Era quase impossível manter a atenção no ritmo errático dos veículos que o cercavam, mas obrigou-se a se concentrar nos mais próximos, pedindo a Deus que não houvesse uma colisão. Manteve a janela aberta, fazendo sinal continuamente com a mão, até que um caminhão deu uma guinada e passou tão perto que tocou seu espelho lateral. Deu um grito e instintivamente o agarrou, pensando por um momento que fosse ver seu braço desaparecer por cima do capô.

Não havia nada a fazer, ou, como o grande autor teatral francês disse — não conseguiu lembrar o nome do homem ou a frase exata em francês, mas sabia que as palavras diziam tudo. Oh, Deus, tinha que voltar para seu refúgio, deixar a música fluir e as memórias renascerem até que a crise passasse!... Anouilh, era esse o raio do nome do francês — e a frase... On ne pouvait plus que crier — que diabo, não soava nada bem naquele seu francês péssimo. Nada a fazer senão gritar, era isso! Na realidade, era uma frase bem estúpida, pensou Sam. Por isso, gritou e virou para o norte, para a saída de Weston, só minimamente consciente de motoristas e passageiros mais próximos que o fitavam das janelas como se assistissem a uma cena de sexo. O grito prolongado tinha que cessar; foi substituído por um largo sorriso, digno de Alfred E. Neuman, quando Devereaux pisou no acelerador e três carros bateram atrás dele.


Tudo tinha começado minutos depois de ele deixar o escritório, após reunião com um bando de executivos, todos de uma mesma família, cuja empresa estaria atolada numa tremenda enrascada se não seguissem seu conselho. O problema não estava na culpa, mas na burrice, impossível de ser separada da teimosia, até Sam deixar bem claro que, se não seguissem suas instruções, podiam procurar outro advogado. Quanto a ele, passaria a visitá-los na prisão, apenas para prestar assistência social. Embora um tanto obscura, a lei era clara quanto à impossibilidade de que avós coloquem os netos — especialmente aqueles entre seis e doze anos — no conselho de administração da empresa, com salários acima de sete dígitos. Ele tinha aguentado a indignação irlandesa, aceitara até a maldição eterna do clã dos Dongallen e fugira para seu bar favorito, a dois quarteirões da sede da Aaron Pinkus e Associados.

— Ah, Sammy, meu rapaz — disse o proprietário e barman quando Devereaux se deixou cair no banco mais afastado da entrada. — Vejo que foi um dia difícil, sem dúvida. Sempre sei quando uma ou duas doses do meu remédio podem levar a mais duas — sente-se aqui no canto.

— Quer fazer um favor, O'Toole? Suavize esse sotaque irlandês. Acabei de passar três horas com seus conterrâneos.

— São os piores, Sam, posso garantir! Especialmente os que têm dois banheiros, os únicos que podem pagar seus honorários. Olhe, ainda é cedo, deixe que sirva o de sempre, ligo a TV e você desliga do trabalho... Como não tem jogo dos Sox hoje, vou deixar no noticiário.

— Obrigado, Tooley — Devereaux aceitou a bebida com um agradecido aceno de cabeça e o solícito proprietário ligou a televisão, sintonizando o canal a cabo, o telejornal aparentemente no meio um bloco de assuntos sociais, já que descrevia as obras de caridade de uma pessoa supostamente desconhecida.

“... uma mulher cuja bondade e caridade a conservam eternamente jovem, um rosto que os anjos beijam com a graça da juventude e os olhos claros da perseverança”, proclamou a voz sonora, enquanto a câmera dava um zoom na freira de hábito branco distribuindo presentes num hospital infantil em algum país do Terceiro Mundo convulsionado pela guerra. “Irmã Anne, a Benevolente — é assim que a chamam”, continuou o narrador, acentuando as vogais, “mas isto é tudo o que o mundo sabe dela... ou nunca saberá de seus próprios lábios, segundo nos informaram. Qual é o seu verdadeiro nome ou de onde veio permanece um mistério, mistério envolto num enigma talvez feito de dor insuportável e sacrifício...”

— Mistério, uma ova! — gritou Samuel Lansing Devereaux, pulando e caindo do banco ao berrar para a TV. — E a única dor insuportável é a minha, sua vaca!

— Sammy, Sammy! — gritou Gavin O'Toole, correndo pelo balcão de mogno e agitando os braços num esforço sincero para acalmar o amigo e cliente. — Cala a porra dessa boca! A mulher é uma maldita santa e a maldita da minha clientela não é exatamente toda protestante, compreende a porra que estou dizendo? — O'Toole baixara o tom de voz, enquanto puxava Devereaux para o bar e depois deu uma olhada pela sala. — Caramba, alguns clientes regulares estão protestando, Sammy! Não se preocupe, Hogan sabe lidar com eles. Sente-se e cale a boca!

— Você não entende, Tooley! — gritou o excelente advogado de Boston, à beira das lágrimas. — Ela é o amor eterno da minha vida na Terra...

— Assim está melhor, muito melhor — sussurrou O'Toole. — Continue assim.

— Ela era puta e eu a salvei!

— Assim não.

— Ela fugiu com o tio Zio! Nosso tio Zio — ele a corrompeu!

— Tio quê? Que diabo está dizendo, garoto?

— Na realidade ele era o Papa, e e virou a cabeça dela e a levou para Roma, para o Vaticano...

— Hogan! Pule o balcão e segure a canalha!... Vamos, Sammy, vai sair pela cozinha, já que não conseguiria chegar à porta da frente!


Esse episódio inocente é que causara sua depressão aguda, pensava Devereaux, acelerando no rumo norte, pela menos movimentada rodovia para Weston. Esse mundo ignorante não consegue entender que não havia mistério algum para um apaixonado como Sam-o-advogado, que tinha ensinado Anne-a-puta-muitas-vezes-casada de Detroit a reconquistar seu amor próprio apenas para vê-la bater a porta do casamento e seguir os passos do maluco do Zio?... Bem, tio Zio não era verdadeiramente maluco, apenas mal orientado em relação à vida de Samuel-meu-filho-excelente-advogado. Ele era também Francisco I, o Papa mais querido do século XX, que permitira seu próprio sequestro na Via Appia Antica de Roma, por lhe terem dito que estava morrendo e seria melhor que seu primo sósia, um tal Guido Frescobaldi, do La Scala Minuscolo, fosse posto no trono de São Pedro e recebesse instruções do verdadeiro pontífice por rádio, de algum lugar nos Alpes. E tudo funcionou! Por algum tempo. Durante semanas intermináveis Mac Hawkins e Zio subiam às muralhas do Château Machenfeld de Zermatt e, pelo rádio de ondas curtas explicavam ao pouco brilhante e desafinado Frescobaldi o que devia fazer a seguir pela causa da Santa Sé.

Depois tudo desmoronou — com um barulho comparável ao da criação do planeta Terra. O ar alpino restaurou a antiga saúde de tio Zio — Papa Francisco, claro. Por outro lado, Guido Frescobaldi caiu acidentalmente sobre a rádio de ondas curtas, estilhaçando-a e provocando uma revolução econômica no Vaticano. O remédio foi doloroso, mas óbvio. Muito mais dolorosa, contudo, foi para Sam Devereaux — muito, muito mais doloroso — a perda de seu único e verdadeiro amor, Anne, a Reabilitada, que ouvira todas aquelas asneiras que o tio Zio despejara discretamente em seu ouvido todas as manhãs, enquanto jogavam damas. Em vez de se casar com um tal Samuel Lansing Devereaux, optara por “desposar” um tal Jesus Cristo, cujas credenciais — Sam tinha que admitir — eram consideravelmente mais impressionantes do que as suas, embora num plano mais terreno fossem menos impressivas... muito menos, se se tiver em conta a vida que a gloriosa Anne, a Reabilitada, escolhera. Meu Deus, o pior de Boston ainda era melhor do que colônias de leprosos! Bem, certamente na maior parte do tempo.

A vida continua, Sam. É uma luta permanente, de modo que é melhor não ficar remoendo, só perdeu uma ou duas escaramuças. Levante e vá em frente! Palavras vindas da mais baixa forma de vida no universo, o maior e mais incontestável dos argumentos em prol da abstinência sexual e de um rígido controle da natalidade. General MacKenzie Hawkins, Louco Mac, The Hawk, flagelo da sanidade e destruidor de todas as coisas boas e decentes. Essas palavras ilusórias, essa psicotagarelice militar cheia de clichês foi tudo o que o verme pudera dizer nos momentos de angústia desesperada de Sam.

— Ela vai me deixar, Mac. Ela vai mesmo embora com ele!

— Zio é um homem bom, filho. É um excelente comandante de suas legiões e nós que conhecemos a solidão do comando respeitamos uns aos outros.

— Mas Mac, ele é padre, o maior de todos os padres, o Papa! Eles não vão poder dançar nem abraçar alguém, nem ter filhos nem qualquer outra dessas coisas!

— Bem, provavelmente você está certo a respeito das duas últimas coisas, mas Zio dança uma tarantella como ninguém, ou já se esqueceu?

— Ninguém liga pra tarantella. Só rodam e dão chutes para os lados, mas não se aproximam uns dos outros!

— Deve ser do alho. Ou talvez seja por causa das pernas.

— Você não está ouvindo. Este é o grande erro da vida dela, e você devia saber disso! Pelo amor de Deus, você foi casado com ela, o que me deixou um pouco chateado nessas últimas semanas.

— Guarde sua munição, rapaz. Fui casado com todas as meninas e nenhuma saiu do casamento pior do que era antes. Annie foi a mais difícil e, por conta do passado dela, pode-se dizer que talvez fosse de se esperar, mas ela compreendeu o que eu tentava dizer.

— E que diabos você tentava dizer, Mac?

— Que ela podia ser melhor do que era e, ainda assim, ser ela mesma.

— Canalha!

Devereaux guinou para a esquerda, a fim de evitar bater na grade de proteção. Todas as garotas, meu Deus, como ele conseguiu? Quatro das mulheres mais fascinantes do mundo se casaram com um militar delinquente e maníaco e depois que os casamentos terminaram — não em termos de amizade, mas de amor —, as quatro divorciadas se uniram entusiasticamente para formar seu incomum clube, que chamaram de “Harém de Hawkins”. Bastava que o Falcão apertasse um botão para que elas corressem para apoiar o ex-marido, a qualquer hora e em qualquer parte do mundo. Ciúme? Nada disso, pois Mac as libertara das feias correntes que as prendiam antes de ele entrar em suas vidas. Sam podia aceitar tudo isso, já que, do início ao fim dos acontecimentos que o levaram ao Château Machenfeld cada uma delas o tinha socorrido em seus momentos de crise histérica. Todas tinham sido não apenas compassivamente — até mesmo apaixonadamente — calorosas nos esforços para tirá-lo de situações impossíveis em que O Hawk se colocara, como também muito habilidosas em achar soluções.

Todas haviam deixado marcas indeléveis tanto no seu corpo como na sua mente, todas tinham recordações extraordinárias, mas de todas a mais gloriosa era Anne, cujos grandes olhos azuis continham uma inocência muito mais real do que a realidade do seu passado. A sua corrente interminável de perguntas hesitantes sobre qualquer assunto imaginável era tão surpreendente quanto seu apetite voraz por livros, muitos dos quais não estariam ao alcance do seu entendimento, mas que acabava sempre por conseguir compreender, nem que para isso demorasse um mês para ler cinco páginas. Era verdadeiramente uma senhora tentando recuperar os anos perdidos, mas sem nunca demonstrar a menor pena de si mesma e dando sempre, apesar do que lhe tinham tomado tão brutalmente no passado. E, oh, meu Deus, como ria, com os olhos iluminados de humor traquinas, mas nunca sendo má, nunca rindo à custa do sofrimento alheio. Ele a amava tanto!

E a doida tinha optado pelo tio Zio e por aquelas malditas colônias de leprosos, em vez de uma vida maravilhosa como esposa de Sam Devereaux, advogado e, um dia — inevitavelmente — juiz Samuel Lansing Devereaux, passando a poder entrar em qualquer regata que quisesse em Cape Cod. Ela era louca!

Depressa! Depressa para casa e para o refúgio, para encontrar conforto na recordação desse amor não correspondido. É melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado. De quem era essa besteira?

Desceu rapidamente a rua em Weston e virou na esquina de seu quarteirão. Apenas mais alguns minutos e depois, com a ajuda do vinho e dos sons bárbaros da verdadeira e única gravação dos Yodelers Alpinos, ia se recolher à caverna dos seus sonhos, dos seus¨sonhos perdidos.

Mas que grande merda! Ali adiante, na frente de sua casa... era... era...? Meu Deus, era mesmo! A limusine de Aaron Pinkus! Teria acontecido alguma coisa com sua mãe? Uma emergência enquanto ele berrava diante da TV de O'Toole? Ele nunca se perdoaria!

Freando bruscamente atrás do veículo exageradamente grande de Aaron, Sam saltou e correu para o carro da frente, no mesmo instante em que o motorista de Pinkus contornava o capô da limusine.

— Paddy, o que aconteceu? — gritou Devereaux. — Aconteceu alguma coisa com minha mãe?

— Não que eu saiba, Sammy, exceto talvez a linguagem, com algumas palavras que não ouço desde a praia de Omaha.

— O quê?

— Se fosse você ia lá dentro ver, garoto.

Devereaux correu para o portão, saltou por cima dele e correu para a porta, procurando o chaveiro no bolso. Não foi preciso, já que a porta foi aberta pela prima Cora, que inevitavelmente não estava sóbria.

— O que aconteceu? — repetiu Sam.

— A importante e o pequenino estão completamente bêbados ou sob a maldição da lua cheia enquanto o sol ainda está no céu — Cora soluçou uma vez e depois arrotou.

— Do que diabo você está falando? Onde estão eles?

— Lá em cima, nas suas dependências, companheiro.

— Nas minhas dependências? Você quer dizer...?

— É isso mesmo que eu quero dizer, amigo.

— Ninguém entra no meu refúgio! Concordamos todos...

— Acho que alguém mentiu.

— Oh, meu Deus! — gritou Samuel Lansing Devereaux, correndo pelo enorme foyer de mármore rosa norueguês e subindo a escadaria da ala leste da casa.


— Reduzir a força para a aproximação final — disse o piloto calmamente, olhando pela janela lateral esquerda, interrogando-se por um instante se a sua mulher teria feito o rosbife que lhe prometera para o jantar. — Preparar os freios aerodinâmicos, por favor.

— Coronel Gibson? — o operador de rádio intrometeu-se bruscamente em seus pensamentos.

— Hoot escutando, Sargento. O que é?

— Não está em contato com a torre, sir!

— Sinto muito, acabei de desligar. De qualquer modo, o pôr-do-sol está magnífico, recebemos nossas instruções e tenho absoluta confiança no meu primeiro oficial e em você, seu grande comunicador.

— Ligue o rádio, Hoot!... Quer dizer, Coronel.

O piloto virou a cabeça para o copiloto, e ficou atônito ao ver a boca aberta e os olhos arregalados do subordinado.

— Não podem fazer isso! — exclamou o primeiro oficial em voz baixa.

— Fazer o que, pelo amor de Deus? — Gibson ligou imediatamente o rádio na frequência da torre. — Repita a informação, por favor. A cabine de voo estava no meio de um jogo de dados.

— Muito engraçado, Coronel, e pode dizer ao cavalheiro à direita que é uma ordem direta do Comando da Esquadrilha de Reconhecimento.

— Por favor, repita. O cavalheiro da direita encontra-se em estado de choque.

— E nós também, Hoot! — ouviu-se uma segunda voz conhecida vinda da torre, a voz de um colega de Hoot, também coronel. — Faremos um relatório quando for possível, mas por enquanto siga as instruções do Sargento para as coordenadas de reabastecimento.

— Reabastecimento...? De que diabo está falando? Já fizemos nossas oito horas! Esquadrinhamos as Aleutas e entramos no Bering tão perto da Mãe que pudemos sentir o cheiro do borscht dela. Está na hora do jantar, hora de rosbife, mais exatamente!

— Desculpe, não posso dizer mais nada. Vamos trazê-los de volta assim que pudermos.

— Um alerta?

— Não por causa da Mãe Borscht, isso posso adiantar.

— Esse seu adiantamento não chega. Os homenzinhos de plástico estão vindo do Quasar Tinkerbell?

— Estamos operando diretamente com o CINCSAC com controles do SCD, isso chega, Hoot?

— Chega para estragar meu rosbife — respondeu Gibson, desanimado. — Ligue para minha mulher, sim?

— Claro. Todas as esposas e/ou companheiras serão avisadas sobre a mudança de ordens.

— Ei, Coronel! — interrompeu o primeiro oficial de voo — Há um lugarzinho no cen...

— Não diga mais nada, Capitão, você não está regulando bem!...

— Há um lugarzinho na rua Farnan, chamado Doogies. Por volta das oito uma ruiva vai estar no bar, medidas 96-71-86, que atende pelo nome de Scarlet O. Importa-se de lhe mandar...

— Você disse Doogies?


O gigantesco EC-135, conhecido como Espelho devido ao incessante esquadrinhamento dos céus pelo Comando Aéreo Estratégico, levantou o nariz e acelerou até a altitude inicial de dezoito mil pés, altura em que guinou para nordeste, atravessando o rio Missouri, afastando-se de Nebraska e entrando em Iowa. No solo, a torre da Base da Força Aérea de Offutt, centro de controle do Comando Aéreo Estratégico, instruiu o Coronel a mudar para uma rota codificada a noroeste rumo ao encontro de seu avião-tanque no ainda claro céu ocidental.

Não podia haver discussão. A 55ª Esquadrilha de Reconhecimento Estratégico era a unidade anfitriã em Offutt e conduzia missões de observação em escala global, mas, anfitriã ou não, estava sujeita, como sua unidade-irmã, a 544ª Esquadrilha de Informação Estratégica, às necessidades do supercomputador Cray X-MP, convenientemente sob o controle ostensivo do AFGWC, sigla do Air Force Global Weather Controll,1 que poucos acreditavam ter algo a ver com meteorologia.

— O que será que está acontecendo lá embaixo? — perguntou o coronel Gibson.

— O que será que está acontecendo no Doogies, isso é o que eu gostaria de saber — disse o jovem e furioso capitão. — Merda!


No Pentágono, no embandeirado escritório do onipotente Secretário da Defesa, um homem minúsculo de rosto contraído e peruca ligeiramente torta, estava sentado em cima de três almofadas, atrás de uma mesa enorme e, praticamente, cuspia no telefone.

— Vou esfolá-los! Juro por Deus, vou espremer esses selvagens ingratos até que supliquem por veneno e nem sequer vou deixar que o tomem! Ninguém vai brincar comigo... Vou conservar os 135 no ar em força, nem que tenha que os reabastecer dia e noite!

— Estou do seu lado, Felix — disse o algo espantado Chefe do Estado-Maior Conjunto —, mas não estou na Força Aérea. Não temos que deixá-los descer de vez em quando? Você terá quatro 135 no ar amanhã à tarde, todos de Offutt, e estamos em época de contenção. Não podemos partilhar a carga com outras bases do Comando Aéreo Estratégico?

— Nem pensar, Corky. Omaha é o centro de controle e nós não vamos desistir! Você nunca viu os filmes do Duke? Se permitir que esses malditos peles-vermelhas sedentos de sangue conquistem um centímetro que seja de território, eles se esgueiram por trás e arrancam seu escalpo!

— Mas e os aviões, as tripulações?

— Você não sabe de nada, Corky! Nunca ouviu falar em “Faça-me subir, Scotty“ e “Faça-me descer, Scotty”?

— Talvez eu estivesse no Vietnã.

— Vai passear, Corky! — o Secretário de Defesa desligou violentamente o telefone.


O Brigadeiro Owen Richards, chefe supremo do Comando Aéreo Estratégico, fitou silenciosamente os dois homens de Washington, ambos vestidos com capas pretas e óculos de sol escuros sob chapéus escuros, que não tinham tirado nem mesmo na presença da major que os escoltara até o escritório. Richards atribuía essa descortesia ao não sexismo dos militares, coisa que ele na realidade nunca aceitara. Geralmente abria a porta para sua secretária e ela era apenas sargento, mas também era mulher, e essas coisas eram simplesmente naturais. Não, não era falta de cortesia dos homens de Washington, é que eles também eram lunáticos, o que provavelmente explicava as pesadas capas e os chapéus pretos num dia quente de verão ou não os óculos escuros na penumbra do escritório, com todas as persianas fechadas para bloquear os ofuscantes raios do sol poente. Não, pensou Owen, eles eram apenas malucos. Birutas.

— Cavalheiros — começou ele calmamente, apesar da apreensão, que o levara a abrir discretamente a gaveta de baixo, onde havia uma arma. — Suas credenciais os trouxeram até aqui, mas talvez seja melhor me entregarem, para verificação pessoal... Não enfiem a mão nos casacos ou arrebento os dois! — urrou Richards subitamente, tirando da gaveta o .45 do exército.

— Pediu nossa identificação — disse o homem da esquerda.

— Como quer que mostremos? — perguntou o homem da direita.

— Dois dedos! — ordenou o brigadeiro. — Se eu vir uma mão inteira, ficam com os miolos espetados na parede.

— Seu passado de combate deixou-o excessivamente desconfiado.

— Nisso vocês estão certos, passei dois anos em Washington... Coloquem em cima da mesa — ambos assim o fizeram. — Porra, isso não é identificação. São bilhetes escritos à mão!

— Com uma assinatura que certamente deve reconhecer — disse o agente da esquerda. — E um número de telefone, que certamente conhece, e deveria pensar no embaraço que sua verificação lhe causará.

— Depois do que acabaram de me mandar fazer, eu verificaria as fezes do Presidente antes de obedecer. — Richards pegou sua Linha Vermelha particular, teclou quatro botões e momentos depois estremeceu ao ouvir a voz do Secretário de Defesa. — Sim, sim, sim, sr. Secretário. Ordens recebidas, sr. Secretário. — O brigadeiro desligou o telefone com os olhos embaciados e olhou para os dois intrusos. — Washington inteira ficou maluca — murmurou.

— Não, Richards, não é a Washington inteira, só muito poucas pessoas em Washington — disse o agente da direita, conservando a voz baixa. — E tudo deve ser mantido no grau máximo de sigilo — o máximo dos máximos. Deve fingir que deixa o serviço a partir das 18 horas de amanhã — o centro de controle do Comando Aéreo Estratégico está, para todos os efeitos, fechado.

— Pelo amor de Deus, por quê?

— Por falsa deferência ao debate de uma decisão da qual pode resultar uma nova lei que não podemos permitir — replicou o agente da esquerda, com os olhos invisíveis por trás dos óculos escuros.

— Que lei? — perguntou o brigadeiro.

— Provavelmente de orientação comunista — respondeu o outro emissário da capital da nação. — Eles têm agentes infiltrados na Suprema Corte.

— Comunistas...? De que diabo está falando? Já não há União Soviética e a maldita Suprema Corte não poderia estar mais à direita!

— Que pensamento tão sonhador, jovem soldado. Meta uma coisa nesse seu cérebro de GI. Não vamos desistir desta base! É nosso centro nervoso!

— Desistir dela a favor de quem?

— O que posso lhe dizer é o seguinte. Nome de código WOPTACK, é só isso que precisa saber. Guarde embaixo do seu sombrero.

— Wop... ataque? O exército italiano esta invadindo Omaha?2

— Eu não disse isso. Não nos maculamos com problemas étnicos.

— Então, que diabos você disse?

— Grau máximo de sigilo, Brigadeiro. Pode compreender o que é isso.

— Talvez possa, talvez não possa, mas o que me diz das minhas quatro aeronaves que estarão lá em cima?

— “Faça-me descer, Scotty”, e depois “Faça-me subir, Scotty”.

— O quê? — gritou Owen Richards, dando um pulo da cadeira.

— Obedecemos aos nossos superiores, Brigadeiro, devia fazer o mesmo.


Eleanor Devereaux e Aaron Pinkus, com os rostos pálidos, as bocas abertas e os olhos transformados em quatro esferas de vidro imóveis, estavam sentados um ao lado do outro no sofá de couro de dois lugares, pertencente a Sam Devereaux, no escritório secreto que construíra na restaurada casa vitoriana de Weston, Massachusetts. Nenhum deles falava, pois nenhum deles podia falar; as gaguejadas balbuciantes e os gemidos incoerentes que tinham emanado da garganta de Sam eram, em essência, respostas à pergunta inicial que ambos colocaram. De nada adiantou que Samuel Lansing Devereaux, paralisado pelo assalto a seu refúgio no château, ficasse preso na parede, os braços esticados, cobrindo o maior número de fotos incriminadoras e recortes de jornais que conseguia.

— Samuel, meu filho — começou o idoso Pinkus, reencontrando a voz, embora limitada a um murmúrio rouco.

— Por favor, não diga isso! — protestou Devereaux. — Ele costumava dizer isso.

— Quem dizia, quem? — resmungou a pouco informada Eleanor.

— Tio Zio...

— Você não tem nenhum tio chamado See... Oh, a menos que se refira a Seymour Devereaux, que se casou com uma cubana e teve que se mudar para Miami.

— Acho que não era isso que ele queria dizer, Eleanor. Se a memória de um velho não lhe falta, especialmente durante certas negociações em Milão, zio quer dizer “tio”, e em Milão havia mais tios do que este advogado podia aguentar. Seu filho está dizendo literalmente “Tio Tio”, compreende?

— Neste momento não.

— Ele está se referindo ao...

— Não diga! — gritou Lady Devereaux, cobrindo os ouvidos aristocráticos.

— O Papa Francisco I — disse com uma voz fraca o mais destacado advogado de Boston, Massachusetts, agora com o rosto tão branco como um cadáver de seis semanas sem refrigeração. — Sammy... Samuel... Sam. Como pôde?

— É difícil, Aaron...

— É incrível! — trovejou Pinkus, com a voz no volume máximo, já incontrolável. — Você não é deste mundo!

— Pode dizer — concordou Devereaux, baixando os braços da parede e caindo de joelhos e depois, de joelho em joelho, avançando até uma mesinha oval em frente ao diminuto sofá. — Mas veja, eu não tinha escolha. Era obrigado a fazer tudo que aquele verme me dissesse para fazer...

— Incluindo o sequestro do Papa! — guinchou Aaron Pinkus, mais uma vez incapaz de encontrar a voz.

— Pare! — berrou Eleanor Devereaux. — Não quero ouvir mais nada!

— Pois eu acho que é melhor ouvir, cara Eleanor, e se me desculpar a linguagem, por favor, fique quieta. Vamos, Sammy. Também não quero ouvir, mas, pelo Deus de Abraão, que controla o universo e que talvez agora tenha algumas explicações a dar, como isso aconteceu? E é tão óbvio que tenha acontecido! A imprensa estava certa, a mídia estava certa! Havia duas pessoas — está aí nas suas paredes! Havia dois papas e você sequestrou o original!

— Não exatamente — argumentou Devereaux, respirando cada vez com mais dificuldade. — É que, entenda, Zio achou isso certo.

— Certo? — o queixo de Aaron Pinkus aproximou-se perigosamente do tampo da mesinha.

— Sim, sim. Ele não estava bem e... mas isso é outra parte da história, e o Zio foi mais esperto do que qualquer um. O que quero dizer é que ele entrou no jogo.

— Como isso aconteceu, Sam? Foi por causa desse lunático do General MacKenzie Hawkins, não foi? Ele está em todas estas fotos. Foi ele que fez com que você se tornasse o mais desconhecido entre os reputados sequestradores da história universal! Estou sendo razoavelmente preciso?

— Pode-se dizer que sim. Mas também se pode dizer que não.

— Como, Sam, como? — suplicou o idoso advogado, ao mesmo tempo em que pegava uma Penthouse de cima da mesinha, abanando-a no rosto comatoso de Eleanor Devereaux.

— Há excelentes artigos nesta revista... muito científicos.

— Sammy, suplico-lhe, não faça isso comigo nem com sua adorável mãe aqui presente, que o trouxe ao mundo com tanto sofrimento e que neste momento pode estar precisando de uma ajuda além das nossas capacidades. Em nome do Senhor Deus dos Exércitos, a quem protestarei vigorosamente na oração sabática de amanhã, o que foi que o possuiu e fez com que você tomasse parte deste ato monstruoso?

— Bem, para falar a verdade, Aaron, “possuiu” descreve de bem precisamente a alegada — reafirmo, alegada — ação criminosa a que se refere.

— Não tenho que me “referir” a nada, Sam. Basta simplesmente apontar essas provas irrefutáveis nas suas paredes!

— Bem, na verdade, Aaron, elas não são inteiramente conclusivas.

— Você quer dizer que eu deveria intimar o Papa?

— A imunidade do executivo do Vaticano não o permitiria.

— Essas fotos bastariam para afastar as regras do processo de instrução! Será que não lhe ensinei nada?

— Levante a cabeça da mamãe, por favor.

— É melhor que ela continue desmaiada, Sam. O que foi que o “possuiu”?

— Bem, na verdade, Aaron, sem qualquer intenção de minha parte, vinte e quatro horas antes da minha desvinculação do exército, saí com dados ultrassecretos de inteligência militar acorrentados ao pulso.

— E então?

— Bem, Aaron, como advogado oficial de MacKenzie Hawkins, acompanhei-o após a decisão final Seis-trinta e cinco, que visava todos os relatórios secretos sobre a carreira militar dele desde a Segunda Guerra Mundial até o Sudeste Asiático.

— E daí?

— Bem, Aaron, foi nessa hora que os amigos de Mac no Exército se intrometeram no processo. Eu cometera um pequeno erro no Triângulo Dourado e apresentara acusações contra um certo General Ethelred Brokemichael por tráfico de drogas, quando, na verdade, o culpado era o primo dele, Heseltine Brokemichael, e os apoiadores de Ethelred ficaram danados da vida, e como todos eram amigos de Mac Hawkins, cerraram fileiras em torno de Hawk e fizeram o jogo dele.

— Que jogo? Heseltine... Ethelred! Drogas, Triângulo Dourado! E daí? Você cometeu um erro e retirou as acusações. E depois?

— Era tarde demais. Os militares são piores do que o Congresso. Ethelred não conseguiu suas três estrelas e seus amigos me culparam e ajudaram Mac.

— E daí?

— Um daqueles filhos da mãe acorrentou uma pasta ao meu pulso e colocou nela uma etiqueta de segurança máxima e eu sai de lá com duas mil seiscentas e quarenta e uma cópias de informações ultrassecretas, a maioria das quais nada tinha a ver com Mac Hawkins, que ficou inocentemente a meu lado o tempo todo.

Aaron Pinkus fechou os olhos e afundou no pequeno sofá, seu ombro tocando a ainda totalmente aturdida Eleanor Devereaux. — Portanto, você passou a pertencer a ele no futuro imediato, mais ou menos cinco meses. — Aaron abriu cuidadosamente os olhos.

— Ou isso ou minha saída do serviço militar seroa adiada indefinidamente... ou passaria vinte anos em Leavenworth.

— Foi nessa hora que apareceu o dinheiro do resgate...

— Que dinheiro? — interrompeu Sam.

— O dinheiro que você gastou tão generosamente nesta casa... centenas de milhares de dólares! Foi sua parte no resgate, não foi?

— Que resgate?

— Pelo Papa Francisco, naturalmente. Quando vocês o libertaram.

— Não recebemos nenhum resgate. O cardeal Ignatio Quartz recusou-se a pagar.

— Cardeal quem?

— Essa é outra história. Quartz ficou satisfeito com Guido.

— Guido?

— Você está gritando, Aaron — murmurou Eleanor.

— Guido Frescobaldi — respondeu Devereaux. — Primo e sósia do Zio. Era figurante na terceira companhia de ópera do Scala e às vezes conseguia pequenos papéis.

— Chega! — o famoso advogado respirou fundo diversas vezes, esforçando-se ao máximo para recuperar o autocontrole. Baixando a voz, falou o mais calmamente possível. — Sam, você voltou para casa com uma grande quantidade de dinheiro que não lhe foi legado por algum falecido e rico Devereaux. De onde veio esse dinheiro, Sam?

— Na realidade, Aaron, como sócio de responsabilidade limitada, era a minha parte, por rateio, do que restou do capital inicialmente investido nesta sociedade.

— Que sociedade? — perguntou Pinkus, com a voz oscilante e quase inaudível.

— A sociedade Shepherd.

— Shepherd...?

— Como em The Good Shepherd.3

— The Good Shepherd — repetiu Aaron, como que em transe. — Foi investido dinheiro nesta sociedade.

— De fato, dez milhões de dólares por investidor, sendo que o número de investidores se limitava a quatro, formando parceria limitada com os demais sócios de responsabilidade ilimitada, e os seus riscos individuais limitados naturalmente ao capital que investiram com base em projeções que antecipavam uma recuperação de dez por... Na realidade, nenhum dos quatro investidores fez questão de ser legalmente anunciado, preferindo considerar os investimentos como contribuições de caridade em troca do anonimato.

— Anonimato...? Quarenta milhões de dólares em troca de anonimato?

— Na verdade, isso ficou muito bem garantido. Quer dizer, onde eu arquivaria os documentos da da sociedade, Aaron?

— Você? Você foi o advogado desse simulacro de empresa?

— Não por escolha — protestou Devereaux. — Nunca por escolha.

— Ah, sim, aqueles mais de dois mil documentos secretos que você tirou dos arquivos. Negada a desvinculação do serviço militar. Leavenworth.

— Ou pior, Aaron. Mac disse que havia formas de execução menos públicas do que um pelotão de fuzilamento, caso o Pentágono a decretasse.

— Sim, sim, compreendo... Sam, a sua querida mãe, que misericordiosamente se encontra em estado de choque, disse que você lhe contou que o dinheiro era oriundo de artefatos religiosos...

— Na realidade, conforme estava claramente estabelecido nos estatutos da sociedade, o objeto principal da sociedade era a “comercialização de artefatos religiosos adquiridos”. Achei que tinha conseguido uma boa cobertura contratual.

— Meu Deus do céu — exclamou Pinkus, engolindo em seco. — E naturalmente o artefato religioso em questão era a pessoa do papa Francisco I, que vocês sequestraram.

— Bem, na verdade, Aaron, sua afirmação não é legalmente correta e muito menos conclusiva. Pode até ser considerada difamatória.

— O que está dizendo? Basta olhar as paredes!

— De fato, eu sugeriria que você — você, Aaron — as examinasse de novo. Falando em termos legais, o sequestro é definido como abdução pela força ou coerção e o aprisionamento de uma pessoa ou pessoas contra a sua vontade, sendo a sua liberdade condicionada ao pagamento de resgate. Muito embora eu reconheça que uma estratégia preliminar tenha sido meticulosamente financiada e posta em prática a fim de implementar tal objetivo, a estratégia falhou e teria sido abortada se não fosse a voluntária e eu diria entusiástica cooperação do objeto do nosso plano. E não se pode dizer que essas fotos mostrem a pessoa em causa como vítima de qualquer forma de coação. Na realidade, parece estar contente e em excelente estado de espírito.

— Sam, você parece feito de esponja de borracha! Será que a monstruosidade que praticou não causou sequer um amassado na sua armadura moral?

— As cruzes que tenho de carregar são realmente pesadas, Aaron.

— Essa não é a imagem mais apropriada que poderia usar... Não é coisa que me interesse realmente saber, mas como conseguiram fazê-lo voltar a Roma?

— Mac e Zio planejaram tudo. O Hawk chamou essa missão de “contracorrente” e Zio começou a cantar ópera.

— Estou exausto — murmurou Pinkus. — Só queria que este dia nunca tivesse acontecido, que eu nunca tivesse ouvido uma única palavra dita nesta sala e que a minha vista me tivesse abandonado.

— Como você acha que eu me sinto? O eterno amor da minha vida se foi, mas aprendi algo, Aaron: a vida tem que continuar.

— Que frase tão original!

— O que quero dizer é que acabou. Pertence tudo ao passado e hoje estou feliz por saber que aconteceu. De alguma forma, libertou-me. Agora tenho que me mexer e seguir em frente, sabendo que aquele verme filho da mãe nunca mais poderá me tocar!

E, claro, o telefone tocou.

— Se for do escritório, estou no templo — disse Pinkus. — Não me sinto preparado para o mundo exterior.

— Eu atendo — disse Sam, dirigindo-se para a mesa quando o telefone tocou de novo. — Mamãe está aqui em cima — mais ou menos — e é melhor que Cora não atenda. Sabe, Aaron, agora que tudo foi posto em pratos limpos, sinto-me realmente melhor. Com seu apoio, sei que posso seguir em frente e enfrentar novos desafios, abrir novos horizontes...

— Atenda a porcaria do telefone, Sammy. Minha cabeça está prestes a estourar.

— Sim, claro, desculpe. — Devereaux pegou o telefone, cumprimentou quem quer que estivesse na linha, parou para responder e aí então começou a gritar histericamente, com um frenesi tão incontrolável que a mãe se levantou do sofá como um raio, caiu sobre a mesa de centro e acabou estatelada no chão.

 

________________

1 “Centro de Controle Meteorológico da Força Aérea” (N.T.).

2 Gíria para imigrantes italianos nos EUA. (N.T.)

3 “O Bom Pastor” (N.T.).


6

— Sammy! — gritou Aaron Pinkus, correndo para trás e para frente entre a inconsciente Eleanor e seu filho, que estava agora, num acesso de pânico, arrancando da parede todas as fotos que conseguia alcançar, depois pisando-as no chão. — Sam, controle-se!

— Verme! — berrava Devereaux. — Larva do universo, o mais desprezível ser humano da face da Terra! Ele não tem o direito...

— Sua mãe, Sammy. Ela pode estar morta!

— Esqueça, ela não saberia como — replicou Devereaux, correndo para a parede atrás da mesa e continuando o ataque à miríade de fotos e recortes de jornais. — Ele é doente, doente, doente!

— Eu não disse doente, Sam, eu disse morta — continuou Aaron, ajoelhando-se com aflição e segurando com firmeza a cabeça trêmula da mãe, na esperança de que isso pudesse causar algum efeito no filho. — Você devia realmente demonstrar alguma preocupação.

— Preocupação? Algum dia ele demonstrou preocupação comigo? Parte a minha vida em mil pedaços e depois pisa, amassando até que se confundam com a terra! Arranca meu coração e sopra como um balão...

— Eu não disse ele, Sam, eu disse ela! Sua mãe.

— Oi, mãe. Estou ocupado.

Pinkus tirou o bip do bolso e apertou longamente o botão, prosseguindo depois com pressões intermitentes. Seu motorista, Paddy Lafferty, receberia a mensagem de emergência. Tinha que receber.

E recebeu. Por momentos, Paddy podia ser ouvido arrombando a entrada da ala leste, ordenando à prima Cora, no seu mais impositivo rugido de sargento, que ela se afastasse se não quisesse que a jogasse em cima de um bando de soldados bêbados e cansados de guerra, loucos por um pouco de diversão feminina.

— E isso não é uma ameaça, irlandesa!


Sam Devereaux estava amarrado na cadeira atrás da mesa, braços e pernas presos com lençóis arrancados de sua cama e rasgados com ímpeto pelo ex-sargento Patrick Lafferty da praia de Omaha, Segunda Guerra Mundial. Isto é, rasgados após ter derrubado Sam e ter encontrado o quarto. Devereaux sacudiu a cabeça pestanejando e tentou encontrar a voz. — Fui atacado por cinco caras drogados — sugeriu.

— Não foi bem isso, meu jovem — disse Paddy, levando um copo de água aos lábios do advogado. — A menos que inclua uma pequena dose de Bushmills nessa categoria, o que não o aconselho a fazer no velho Sul, ou mesmo no bar do O'Toole.

— Foi você que me fez isso?

— Não tinha escolha, Sam. Quando um homem está prestes a ceder à fadiga de combate, tem-se que trazê-lo de volta de qualquer maneira. Não é nenhuma desgraça, jovem.

— Esteve no Exército? Em combate...? Com MacKenzie Hawkins?

— Conhece esse nome, Sam?

— Esteve?

— Nunca tive a honra de conhecer o grande general pessoalmente, mas já o vi! Na França, ele comandou nossa divisão por dez dias, e posso lhe dizer isto, jovenzinho: Mac The Hawk foi o melhor oficial-comandante que o Exército já teve. Fazia Patton parecer uma bailarina, e olhe que, sinceramente, eu gostava do velho George. Mas ele simplesmente não jogava na mesma equipe do Hawk.

— Estou ferrado! — berrou Devereaux, esforçando-se por se libertar das tiras de lençol que o prendiam. — Onde está minha mãe?... Onde está Aaron? — perguntou subitamente, examinando a sala vazia.

— Está com sua mãe, jovem. Levei-a para o quarto. Mr. Pinkus está lhe dando um pouco de brandy para ajudá-la a dormir.

— Aaron e minha mãe?

— Seja um pouco flexível, rapaz. Você conheceu Shirley com o penteado de cimento... Vamos, beba um pouco de água... eu lhe daria uísque, mas acho que não vai aguentar. Seus olhos não parecem muito humanos, lembram os de um gato que acaba de ouvir uma explosão.

— Pare! Meu mundo está se desfazendo em pedaços!

— Não tente se soltar, Sam, Mr. Pinkus vai amarrá-lo de novo. Nunca houve melhor homem nesse departamento... Pronto, ele vem aí. Estou ouvindo o que restou da porta.

A figura exausta e frágil de Aaron Pinkus arrastrou-se para dentro do escritório proibido como se acabasse de voltar de uma tentativa de escalada do Matterhorn. — Temos que conversar, Samuel — disse, afundando-se ofegante na cadeira em frente à mesa. — Quer fazer o favor de nos deixar, Paddy? A prima Cora acha que você gostaria de um lombo de porco bem passado na cozinha.

— Um lombo?

— Com cerveja irlandesa, Paddy.

— Bem... compreende que nem sempre as primeiras impressões são gravadas em pedra, estou certo, Mr. Pinkus?

— Isso também está gravado em pedra, meu velho amigo.

— E eu? — berrou Devereaux. — Ninguém vai soltar?

— Você vai permanecer exatamente como está e onde está até que termine nossa conversa, Samuel.

— Você sempre me chama de “Samuel” quando está furioso comigo.

— Furioso? Por que eu estaria furioso? Você não fez nada além de me envolver, juntamente com a sociedade, no mais hediondo e insidioso crime da história da civilização desde o Império Médio do Egito, quatro mil anos atrás. Furioso? Não, Sammy, estou apenas histérico.

— Acho que é melhor eu ir andando, patrão.

— Eu chamo pelo bip mais tarde, Paddy. E aproveite o lombo como se fosse minha última refeição da vida.

— Está tão esquisito, Mr. Pinkus.

— Então me leve para o templo se eu não chamar você em uma hora.

Lafferty saiu rapidamente, fazendo guinchar a despedaçada porta exterior. Com as mãos cruzadas na frente, Aaron disse: — Devo presumir — começou, calmamente — que a pessoa que telefonou não era outra senão o General MacKenzie Hawkins, estou certo?

— Você sabe perfeitamente que está certo e que aquele rato de esgoto não pode fazer isso comigo!

— O que ele fez, concretamente?

— Ele falou comigo.

— Há alguma lei que proíba essa comunicação?

— Entre nós certamente que há. Ele jurou sobre o Manual de Regulamentos do Exército nunca mais falar comigo pelo resto de sua vil e miserável vida!

— No entanto, ele achou adequado violar esse juramento solene, o que significa que achou que tinha algo de muito importante para dizer. O que era?

— Quem ouviu? — gritou Devereaux, mais uma vez lutando contra as tiras brancas que o prendiam à cadeira. — Tudo o que o ouvi dizer foi que ia pegar um avião para Boston para me ver e então tudo enlouqueceu.

— Você enlouqueceu, Sam... Quando ele vai fazer essa viagem?

— Como posso saber?

— Tem razão. Você desligou os ouvidos e ligou sua ansiedade precordial... No entanto, baseados na hipótese de que ele tinha algo importantíssimo para lhe dizer, ou não teria quebrado o juramento de jamais entrar em contato com você, podemos concluir que o voo para Boston é iminente.

— Assim como minha partida para a Tasmânia — disse Devereaux enfaticamente.

— Isso é a única coisa que você não deve fazer — interpôs Pinkus, com igual firmeza. — Você não pode fugir e também não pode evitá-lo.

— Uma razão! — interrompeu Sam, gritando. — Dê-me uma única razão, que não seja assassinar o filho da mãe, para que eu não deva evitá-lo? Ele é o sinal ambulante de perigo emitido pelo Titanic!

— Porque continuará a manter sobre sua cabeça — e, por extensão, sobre a minha, como seu único patrão desde a Faculdade de Direito — sua participação neste crime intemporal.

— Não foi você que saiu dos arquivos com mais de duas mil fichas secretas. Fui eu.

— Esse ato aparentemente sinistro desce ao nível da mais completa insignificância, comparado com as provas que você tentou arrancar das paredes. Mas, já que falou nisso, havia alguma razão para o roubo desses documentos secretos?

— Quarenta milhões de razões — respondeu Devereaux. — Como acha que esse diabólico general do rio Estige aumentou seu capital?

— Chantagem...?

— Da Cosa Nostra a alguns ingleses que não estavam exatamente na fila para receber a Victoria Cross; de ex-nazistas cuja respeitabilidade estava mergulhada até as coxas em merda de galinha a xeques árabes que ganharam dinheiro protegendo seus investimentos em Israel. Ele preparou tudo e me fez ir atrás dessa gente.

— Meu Deus, e sua mãe disse que eram delírios seus! Assassinos num campo de golfe, alemães em aviários... árabes no deserto. Eram reais.

— Às vezes, não frequentemente, eu tomo um martini que não deveria tomar.

— Ela também falou disso... E Hawkins desenterrou esses patifes dos arquivos secretos e obrigou-os a capitular a suas exigências?

— Como se pode descer tão baixo...

— Como um homem pode ser tão inventivo?

— Onde está sua armadura moral, Aaron?

— Certamente que não age em proveito de patifes, Sam.

— Então age em defesa das provas que viu nas minhas paredes?

— Definitivamente não!

— Então em que posição você fica?

— Uma coisa nada tem a ver com a outra. Não há ligação alguma.

— Não se estivesse no meu lugar, advogado.

Aaron Pinkus respirou várias vezes em silêncio, os dedos cruzados na testa e a cabeça baixa. — Para cada problema impossível tem de haver uma solução, seja nesta ou na próxima vida.

— Prefiro nesta, se não se importa, Aaron.

— Estou inclinado a concordar — disse o velho advogado. — Assim, pelo seu vernáculo tão singular, vamos levantar nossos rabos das cadeiras e atacar em frente.

— Para onde?

— Para nosso mútuo confronto com o General MacKenzie Hawkins.

— Você faria isso?

— Tenho direito adquirido, Sammy. Você pode até dizer que meu direito é potencialmente desastroso. Além do mais, gostaria de chamar sua atenção para uma máxima da nossa profissão, cuja verdade assenta em sua validade... O advogado que representa a si mesmo tem um tolo como cliente. Seu General Hawkins pode possuir uma extraordinária mente militar, com todas as suas brilhantes excentricidades, mas permita-me observar modestamente, ele ainda não testou suas capacidades contra as de Aaron Pinkus.


O emplumado Chefe dos Wopotamis, Cabeça de Trovão, cuspiu o charuto mutilado e voltou ao interior da enorme tenda, onde, além dos esperados artefatos dos índios americanos, como imitações de escalpos decorando as paredes, instalara um colchão de água e vários equipamentos eletrônicos que deixariam o Pentágono orgulhoso... que tinham deixado o Pentágono orgulhoso, antes de serem furtados. Suspirando sonoramente, triste e furioso ao mesmo tempo, Cabeça de Trovão removeu cuidadosamente seu pavoroso cocar tribal, deixando-o cair na terra. Em seguida, enfiou a mão numa sacola de pele de gamo e tirou um charuto novo de fabricação desconhecida e má qualidade; enfiou-o na boca e começou a mascá-lo a uns bons quatro centímetros da ponta até que seus dentes ficassem sujos. Dirigiu-se ao colchão de água, acomodou-se sobre as suas ondas, que instantaneamente começaram a rolar, e perdeu imediatamente o equilíbrio, caindo para trás, no exato momento em que tocou o celular dentro de sua túnica tribal coberta de contas. O telefone continuou tocando enquanto ele se debatia, tentando serenar as águas revoltas sob seu corpo, até que finalmente conseguiu, inclinando-se para a frente e assentando as botas firmemente no chão. Furioso, tirou o aparelho do bolso e disse, asperamente:

— O que é? Estou num powwow!

— Ora, C.T., o único powwow por aqui é criança ouvindo os cachorros latindo.

— Nunca se sabe quem está ligando, filho.

— Eu não sabia que outra pessoa tinha esse número.

— Aja sempre no pressuposto de que o inimigo descubra sua frequência.

— O quê...?

— Basta que fique alerta, rapaz. Vamos, o que há?

— Lembra daquele casal de ingleses que esteve aqui ontem perguntando por você, aqueles com quem bancamos os índios burros?

— O que há com eles?

— Estão de volta, mas com uma dupla de acompanhantes. Um parece que fugiu da jaula sem que o tratador visse, o outro funga muito... ou está com uma gripe forte ou tem as narinas muito inflamadas.

— Devem ter cheirado alguma coisa.

— Não com aquele nariz...

— Não estou falando da tropa de reforço, e sim dos dois ingleses. Esse seu advogado idiota, Charlie Redwing, deve ter dado alguma dica a eles.

— Vamos, C.T., tirando o tombo do cavalo, ele foi fantástico. Nada ficaram sabendo de você e a garota esquisita não tirou os olhos do shortinho dele...

— Tanga, filho, tanga. Talvez fosse o cavalo...

— Talvez fosse a tanga — sugeriu o interlocutor de Cabeça de Trovão que, apanhado por outra onda do colchão, foi jogado para trás.

— Ai!

— Bem, nossa águia jurídica pode realmente ter dito alguma coisa, o que você acha.

— Não acho coisa alguma! Meus equipamentos aqui estão escangalhados...

— Foi você quem escolheu tudo, C.T.

— Aconselho-o a parar com essa intimidade, garoto! Você é um recruta de baixo escalão e deve me tratar de chefe!

— Ótimo, chefinho, então pode pegar o carro e ir à cidade buscar seus charutos podres...

— Minha repreensão não foi assim tão severa, filho, só quero manter uma linha de comando lógica. O que quero dizer é que as tropas de reforço não foram chamadas para recreio. Fui claro?

— Talvez... O que houve então? Quer dizer, o que eles cheiraram?

— Não é o que eles cheiraram, garoto, e sim o que outra pessoa cheirou para então pedir reforços. Os ingleses não se lançaram de novo ao ataque por conta própria, receberam ordens de alguém querendo uma reavaliação. Isso é tão claro quanto Dien Bien Phu.

— Dien Bien Phu...?

— Onde estão eles agora, garoto?

— Na barraca de souvenir. Estão comprando um monte de coisas e sendo muito amáveis, inclusive o boi. A propósito, as garotas... desculpe, as índias, estão felizes, pois acabamos de receber um novo carregamento de Taiwan.

Cabeça de Trovão franziu a testa, acendeu o charuto e disse:

— Espere um pouco, tenho que pensar. Grandes quantidades de fumaça enevoaram a tenda até que, finalmente, o Hawk voltou a falar. — Muito em breve os ingleses vão falar no meu nome.

— Acho que sim.

— Por isso, faça com que um de nossos oprimidos irmãos lhes diga que minha tenda fica mais ou menos a duzentas passadas de antílope a galope, acima do pasto norte, depois do campo de acasalamento dos búfalos, junto dos grandes carvalhos, onde as águias põem seus preciosos ovos. É um lugar isolado para que eu possa comungar com os deuses da floresta e contemplar. Entendeu?

— Nem uma só palavra. Temos algumas vacas, mas nenhum búfalo e a única águia que vi estava no zoológico de Omaha.

— Vai admitir que existe uma floresta.

— Bem, talvez um bosque, mas não me lembro de nenhuma árvore grande.

— Que diabo, filho, basta que faça com que entrem no bosque, está bem?

— Qual dos caminhos? Estão todos limpos, mas alguns são melhores que outros. Essa temporada de turismo tem sido péssima.

— Bem pensado, rapaz! — exclamou Cabeça de Trovão. — Boa tática. Diga-lhes que me encontrarão mais depressa se forem separados. Quem me descobrir primeiro chama os demais; não estarão muito longe uns dos outros.

— Considerando o fato de que não está perto do bosque, não é “boa tática” nada, é burrice. Eles vão se perder.

— Tomara que sim, filho, tomara que sim.

— O quê?

— À luz da natureza deste compromisso, o inimigo usa uma estratégia heterodoxa. Não tenho nada contra a heterodoxia, que diabo, eu a empreguei na maior parte da minha carreira, mas não faz sentido se retarda seu progresso. Nesta situação, um ataque frontal é a melhor tática para nosso adversário — na verdade, é sua única tática, mas em vez disso vai nos flanquear disparando tiros de morteiro cheios de bosta de cavalo.

— Eu me perdi de novo, chefe.

— Antropólogos procurando sobreviventes de uma grande tribo? — zombou Cabeça de Trovão. — Uma tribo oriunda dos Shenandoahs, selvagens levados à Corte inglesa por Walter Raleigh, acredita nessa besteira?

— Bem, suponho que seja possível. Os Wopotamis vieram de algum lugar no Leste.

— Do vale do Hudson, não dos Shenandoahs. Na realidade, foram expulsos pelos Mohawks porque não exploravam a agricultura, não sabiam criar gado e não saíam das tendas quando nevava. Não eram uma grande tribo, foram perdedores desde o primeiro dia até chegarem ao rio Missouri, em meados do século XIX, e encontraram sua verdadeira vocação. Primeiro enganaram e depois corromperam os colonizadores brancos!

— Como sabe tudo isso?

— Há muito pouco da história da sua tribo que eu não saiba... Não, filho, há alguém por trás dessa operação secreta, e eu vou descobrir quem é. Vá trabalhar agora. Mande-os para o bosque!

Passaram-se vinte e três minutos e, um a um, a patrulha de reconhecimento de Hyman Goldfarb entrou nos quatro caminhos que cortavam a densa floresta. Tinham decidido se separar, já que as instruções precisas que haviam recebido na barraca de souvenires eram totalmente imprecisas e contraditórias, com o bando de índias gritando num áspero debate sobre que caminho levava realmente à tenda do grande Cabeça de Trovão, uma residência comparada, evidentemente, a um altar sagrado.


Quarenta e seis minutos depois, um por um, todos os membros da patrulha Goldfarb tinham caído numa emboscada e sido amarrados — braços e pernas — a um tronco de árvore bem grande, amordaçados com pele de castor artificial e avisados de que sua libertação era iminente, desde que não procurassem encontrar uma forma de remover as mordaças e gritar. Se isso acontecesse, a ira de um povo explorado e oprimido desceria sobre suas cabeças, mais precisamente, seus escalpos, que não estariam mais presos a elas. E, claro, foi concedido a cada um tratamento condizente com sua posição e sexo. A dama inglesa mostrou-se muito mais dura do que seu conterrâneo, que tentou um golpe de defesa oriental complicado, acabando por provocar uma luxação no cotovelo esquerdo. O americano mais baixo e fungador tentou um acordo, ao mesmo tempo em que lentamente tirava uma automática Charter Arms do cinto e, por isso, foi punido com diversas costelas quebradas. O Chefe Cabeça de Trovão — né MacKenzie Lochinvar Hawkins (o sobrenome do meio fora apagado de todos os registros) — guardou, porém, o mais difícil para o fim. O Hawk sempre considerou ser conveniente deixar que o desafio mais difícil tivesse a honra de ser o último obstáculo. Não se liquidava um Rommel na primeira investida contra o Afrika Korps não era, digamos, conveniente.

O desafio em questão era fisicamente de grande dimensão, mas não no que diz respeito ao cérebro. Após um exercício bom como o diabo com um homem que não tinha mais do que metade de sua idade, o Hawk levou a melhor, enfiando os dedos rígidos e esticados, duas vezes, no meio do estômago do observador inimigo; sabia que funcionaria, devido ao cheiro do hálito do adversário. E lá veio um excesso de comida de índio da garganta do observador; um golpe com o braço, prendendo a enorme cabeça do inimigo e forçando-a a ir para baixo, em direção ao embaraçoso incidente, fez o resto.

— Seu nome, posto e número de série, soldado!

— O que está dizendo? — arrotou o inimigo, o citado “boi” pelo segurança de Cabeça de Trovão.

— Basta seu nome e o nome da pessoa para quem trabalha. Digamos, imediatamente!

— Não tenho nome e não trabalho para ninguém.

— Para baixo outra vez.

— Que merda, tenha coração!

— Por quê? Você tentou arrancar o meu do peito. Pra baixo de novo, soldado.

— Fede!

— Não tanto quanto o que sinto por vocês quatro, palhaços. Prisioneiro, dê-me o que quero!

— Está molhado!... Está bem, está bem, meu nome é Shovel (Pá).

— Aceito um nom de guerre. Quem é seu comandante?

— Do que está falando?

— Para quem trabalha?

— O que diz, seu doido?

— Está bem, soldado, perca o que resta do estômago! Gosta da nossa bisteca? Pois coma de novo, seu velho amante de peles-vermelhas!

— Meu Deus, chegou lá sozinho! Eu não tive que dizer nada. Redskins1!

— Repita o que disse, soldado raso.

— Ele jogava para eles! Os redskins... Deixe-me ficar em pé, pelo amor de Deus!

— Jogava...?! Conte mais, seu limpador de latrinas. Que tipo de mentira tenta me contar? Está falando sério ou só deixando sair ar quente pela boca?

— Você está perto, muito perto! Não conseguiam pôr coisa alguma no ar quando ele estava por perto. Não precisava de nenhum brutamontes na defesa, ele simplesmente avançava e pregava todos os quarterbacks do Namath no chão! O Hércules Hebreu, talvez...?

— Quarterbacks? Namath? Redskins?... Por Cristo numa prancha de surf, futebol! E Hércules?... Houve apenas um lineback2 assim na história da NFL. Hurricane Hymie, o Furacão!

— Eu não disse nada! Foi você que disse!

— Você não tem a mais vaga ideia do que eu disse, soldado. — O Hawk falou suave e rapidamente, ao mesmo tempo em que libertava esse homem parecido com um touro, manejando destramente as cordas que o amarravam à árvore. — The Golden Goldfarb, o Goldfarb de Ouro — continuou numa voz rouca, entrecortada pela respiração. — Fui eu que recrutei o filho da mãe quando servi no Pentágono!

— Você o quê?

— Você nunca soube disso, cara, acredite, nunca soube disso... Tenho que sair daqui depressa. Mando alguém vir libertá-los, seus idiotas, mas você, você nunca me contou nada, entendido?

— Não disse nada! Mas também me sinto feliz por servi-lo, sr. Grande Chefe Índio.

— Essa é uma pequena realização, filho, estamos a caminho de coisas maiores. Acabamos de descobrir um poço de petróleo ao mexermos num enorme nervo exposto na Cidade dos Tontos!... O Goldfarb de Ouro, quem diria? Neste exato momento preciso da porcaria de um advogado o mais depressa possível e sei exatamente onde achar esse bobalhão ingrato!


Vincent Mangecavallo, diretor da CIA, olhou fixamente para o telefone na sua mão como se o aparelho fosse a encarnação inanimada de uma doença contagiosa. Quando a voz histérica na linha parou para respirar, levou o telefone ao ouvido com um gesto brusco e falou em voz baixa mas feroz. — Ouça o que vou dizer, sua maçã assada de terno listrado. Estou fazendo o melhor que posso com o talento que sua gente apenas paga. Quer assumir o comando? Esteja à vontade e vou gargalhar quando você se afogar numa tigela de minestrone... Quer saber outra coisa, seu boca trancada? — Mangecavallo fez subitamente uma pausa, que durou muito pouco tempo, e voltou a falar num tom de voz muito mais suave e amistoso. — Quem está enganando quem? Todos podemos acabar afogados nessa tigela. Até agora, tudo o que conseguimos é absolutamente insignificante. Essa Corte é tão pura quanto os pensamentos da minha mãe — e sem piadas, muito obrigado.

— Desculpe se me descontrolei, velho companheiro — disse o Secretário de Estado, do outro lado da linha. — Mas certamente entende as desvantagens enormes que enfrentaremos na próxima cúpula. Meu Deus, pense só na vergonha! Como o Presidente pode negociar em posição de força se a Suprema Corte pensa em permitir que uma tribo de índios minúscula e totalmente desconhecida arruíne nossa primeira linha de defesa? Impossível, e você sabe disso, my old boy!

— Sim, já pensei nisso, bambino vecchio.

— Como?

— É "my old boy" em italiano. Nunca consegui entender essa expressão. Como um menino pode ser velho?

— Bem, são os laços, entende? A velha escola, os vínculos, os símbolos. Daí os “velhos meninos”. Bem simples, de fato.

— Talvez como vecchia maledizione di famiglia, hein?

— Bem, deu para entender família e acho que, num sentido amplo, tenha correlação. É uma linda frase estrangeira.

— Nós não achamos. Pode ser morto por causa dela.

— Como?

— Deixe pra lá. Eu só queria um momento para pensar.

— Faço isso constantemente. Intromissões tangenciais.

— Sim, claro, então vamos nos intrometer na questão da cúpula. Número um, o Grande Homem pode cancelá-la por estar gripado — ou talvez ter herpes — olha, herpes é grave, o que acha?

— Uma imagem horrível, Vincent. Nem pensar.

— A mulher dele teve um ataque? Posso tratar disso.

— Mais uma vez não, my old boy. Ele teria que se erguer acima da tragédia pessoal e ter uma atuação heroica — isso vem...

— Então, estamos no minestrone... Espere, espere, acho que descobri! Se a discussão na Suprema Corte for pública, suponhamos que o Chefe Grande diga que apoia o direito de, como é mesmo?, de petição?

— Você está doido!

— Quê?

— Maluco! Em que ele basearia esse apoio? Não se trata de ser pró ou contra, é a realidade. Não se pode ganhar votos com isso, é preciso tomar uma posição e a única posição que ele pode tomar o coloca contra o equilíbrio de poderes previsto na Constituição. Ele está enredado numa luta entre os poderes Executivo e Judiciário. Todos perdem!

— Eita, sabe muitas palavras difíceis. Eu falei em apoiar a discussão pública, no sentido de que se preocupa com os pequenos, como os comunas costumavam dizer, mas nunca faziam, e, de qualquer forma, ele tem mais vinte e duas bases no país e umas onze ou doze no exterior. Qual é então o problema?

— Equipamentos em Omaha, no valor aproximado de setenta bilhões de dólares, que não podem ser removidos!

— E quem sabe disso?

— A Direção-Geral de Contabilidade Pública!

— Agora estamos começando a falar sério. Podemos fazer com que esses caras fechem a boca. Eu trato disso.

— Você é relativamente novo nesta cidade, Vincent. Quando seus agentes entrarem em ação, a notícia já terá se espalhado, os setenta bilhões terão imediatamente subido para mais de cem e, se houver qualquer tentativa de acabar com os boatos, os números chegarão a novecentos bilhões, transformando a crise da Poupança3 em brincadeira de criança. Mesmo que haja um só grão de validade nessa petição fedorenta, a essa altura já teremos sido todos processados de acordo com as leis do Congresso, por ocultação de algo com que há mais de um século não temos absolutamente nada a ver, visando alcançar vantagens políticas. Além do mais, apesar de essa ser a linha de ação mais inteligente que nós, profissionais, poderíamos tomar, enfrentaríamos não só o risco de multa e prisão, como também de perder nossas limusines.

— Basta! — gritou Mangecavallo, passando o telefone para o outro ouvido, menos sofrido. — Isso é um manicômio!

— Seja bem-vindo ao mundo real de Washington, Vincent... Você está absolutamente seguro de que não há nada, digamos, convincente sobre algum daqueles seis idiotas da Corte? O que me diz daquele negro? Sempre achei que fosse arrogante.

— Pode ser, mas provavelmente é também o mais puro e o mais brilhante de todos.

— Não me diga!

— E o paisan vem logo a seguir, se é que ele vai ser o seu próximo alvo de pensamentos mais pesados.

— Na realidade, era... nada pessoal, compreenda. Eu adoro ópera.

— Nada pessoal e adora ópera, especialmente o Signor Pagliacci.

— Ah, sim, todos esses vikings.

— Sim, vikings... E por falar em trovão...

— Estávamos falando em trovão?

— Você estava... Ainda esperamos informações sobre o tal Chefe Burro Louco, que se autodenomina Cabeça de Trovão. Quando o pegarmos, pode vir a ser nossa forma de escapar dessa confusão.

— Ah, sim? Como?

— Bem, como parte... como dizem?... como recorrente, tem que comparecer à Corte com seus advogados para as alegações. É obrigatório.

— Claro, mas como isso altera alguma coisa?

— Suponha... apenas suponha... que esse grande scungilli se revele um psicótico, gritando que tudo não passou de uma piada? Que falsificou todos esses registros históricos só para fazer uma declaração radical qualquer. O que acha disso, hein?

— Absolutamente brilhante, Vincent!... Mas como fazer isso?

— Posso conseguir. Tenho uma meia dúzia de medicamentos numa folha de pagamento especial. Com produtos químicos não aprovados pela Food and Drug Administration, a FDA, entende?

— Magnifico! O que o está retardando?

— Primeiro tenho que descobrir o filho da puta!... Aguente aí, maçã assada, ligo depois. Minha outra linha secreta está piscando.

— Esteja à vontade, velho menino.

— Chega dessa besteira de bambino velho! — O honrado diretor da CIA cortou a ligação e atendeu a segunda chamada. — Sim, o que há?

— Eu sei que não devia ligar diretamente para você, mas senti que, tendo em vista a informação, você só a aceitaria de mim.

— Quem fala?

— Goldfarb.

— Hymie, o Furacão? Deixe-me dizer uma coisa, camarada, você foi o maior...

— Pare com isso, seu tonto, meu negócio agora é outro.

— Claro, claro, mas lembra do Super Bowl de 73, quando você...

— Eu estava lá, camarada, então é natural que me lembre. No entanto, neste momento temos uma situação da qual você precisa tomar conhecimento, antes de dar qualquer passo... Cabeça de Trovão fugiu da nossa rede.

— O quê?

— Falei com cada membro de minha muito dispendiosa unidade sobre a conta daquele motel imundo de Virginia Beach, e a decisão unânime pode parecer difícil de aceitar, mas, tendo em vista tudo o que ouvi, é tão boa quanto qualquer outra.

— Do que está falando?

— Esse Cabeça de Trovão é, na realidade, a encarnação do Big Foot, a criatura supostamente mítica que vagueia pelas florestas canadenses, mas que se parece muito com um ser humano.

— O quê?

— A única outra explicação é que ele seja o yeti, o Abominável Homem das Neves do Himalaia, que atravessou continentes para lançar uma praga sobre o Governo dos Estados Unidos... Tenha um bom dia.

 

________________

1 Washington Redskins (Peles-vermelhas de Washington), time de futebol americano.

2 Joseph William Namath, apelido Broadway Joe, é um quarterback e ator americano; quarterback, lineback = posições nos times de futebol americano.

3 A crise de poupança e empréstimos das décadas de 1980 e 1990 (Savings and loan crisis, comumente chamada de crise de S&L) foi o fracasso de 1.043 das 3.234 associações de poupança e empréstimos nos Estados Unidos a partir de 1986.


7

O general MacKenzie Hawkins, com os ombros encurvados e vestido com um amarrotado terno de gabardine de indefinida cor cinza, atravessou o aeroporto Logan de Boston à procura do banheiro masculino. Quando encontrou, entrou apressado com a enorme mala, colocou-a no chão e verificou sua aparência no espelho que se estendia em todo o comprimento das pias, em cujas extremidades se encontravam dois elementos fardados do pessoal das linhas aéreas lavando as mãos. Nada mal, pensou, a não ser a cor da peruca; um pouco vermelha demais e algo comprida na nuca. Os óculos de fina armação de metal, porém, eram esplêndidos; escorregando sobre seu nariz aquilino, davam-lhe a aparência de um acadêmico distraído, de um intelectual que nunca seria capaz de encontrar uma latrina num aeroporto cheio com a eficiência fria de um militar treinado. E “militar” — ou, especificamente, ausência de qualquer traço militar — era a palavra-chave da atual estratégia do Hawk. Todos os indícios de seu passado tinham de ser enterrados; a cidade de Boston era território de intelectuais, todos sabiam disso, e ele tinha que se misturar nas próximas doze horas, mais ou menos, tempo suficiente para reconhecer e estudar Sam Devereaux em seu meio ambiente.

Sam parecia ter algumas pequenas objeções quanto ao encontro, e, por mais que isso afligisse Mac, era inteiramente possível que ele tivesse que levar Devereaux à força. O tempo era agora fator essencial e o Hawk precisava das credenciais de Sam o mais cedo possível. Nenhuma hora podia ser desperdiçada, embora muito tempo pudesse ser gasto convencendo o advogado a reunir forças para uma causa santa... “Era melhor apagar a palavra “santa”, pensou o general; “reviveria memórias que seria melhor esquecer”.

Mac lavou as mãos e em seguida tirou os óculos para molhar o rosto, com cuidado, para não mexer na peruca avermelhada, que já estava meio solta. Tinha um tubo de adesivo especial na mala e quando chegasse ao hotel...

Todos os pensamentos relacionados com a peruca inadequada desapareceram instantaneamente quando o Hawk sentiu a proximidade de um corpo. Levantou o rosto do lavatório e viu um homem de uniforme em pé, a seu lado, com um sorriso horroroso que revelava a falta de vários dentes. Um breve olhar de relance para a direita revelou um segundo homem de uniforme, enfiando calços de borracha embaixo da porta dos banheiros. Uma rápida avaliação dos dois revelou o óbvio: a única linha aérea com a qual podiam estar associados seria uma que não tivesse nem aviões nem passageiros, apenas carros de fuga e marcas de estrangulamento!

— Refrescando-se, patrão? — disse o primeiro inimigo, com pronunciado sotaque hispânico, alisando o cabelo escuro que saía pelos lados do quepe de oficial. — É bom passar água na cara depois de um longo voo, não é?

— Se é, cara! — exclamou o segundo inimigo, aproximando-se om o quepe de banda. — É melhor do que enfiar a cabeça no vaso, não é?

— Algum sentido nessas observações? — perguntou o antigo general do Exército, olhando alternadamente para os dois homens, horrorizado com os colarinhos sujos das camisas que usavam por baixo das túnicas.

— Bem, não é muito boa ideia pôr a cabeça dentro de uma latrina, não é?

— Tenho que concordar com ele quanto a isso — replicou o Hawk, passando subitamente a considerar o que tinha antes considerado impossível. — Por acaso não pertencem a uma unidade avançada de informações de combate?

— Temos miolos suficientes, e coração também, para não enfiar sua cabeça na privada, já que isso não seria muito inteligente da nossa parte, não é verdade?

— Não achei que fossem. O homem que está me esperando nem pensaria em recrutar batedores como vocês. Aprendeu comigo a agir melhor que isso.

— Ei, patrão — disse o segundo clone, muito mal vestido, de oficial de voo, ao se aproximar do Hawk. — Está tentando nos insultar? Talvez não goste do modo como falamos. Não somos bons o bastante para você?

— Ouçam, estúpidos! Nunca deixei que raça, religião ou cor de um homem tivesse qualquer influência na minha avaliação de suas qualificações. Promovi a oficial mais negros, chinas e hispânicos do que qualquer outra pessoa na minha posição... não porque fossem negros, chinas ou hispânicos, e sim porque eram melhores do que os concorrentes! Fiz-me entender?... Vocês pura e simplesmente não jogam na equipe deles. São uns merdas.

— Acho que já chega de conversa, patrão — interrompeu o primeiro inimigo, cujo sorriso desapareceu quando puxou uma faca de lâmina comprida que estava escondida debaixo do blusão.

— Os revólveres fazem muito barulho... dê-me sua carteira, seu relógio e qualquer outra coisa que nós, hispânicos, consideremos valiosa.

— Vocês têm bolas, digo-lhes — disse MacKenzie Hawkins. — Mas digam, por que eu deveria fazer o que querem?

— Por causa disto! — gritou o homem sem dentes, brandindo a faca no rosto do Hawk.

— Vocês só podem estar brincando! — Com esta expressão de espanto, o estava atrás, deixando-o tonto, o bastante para lhe administrar um chi sai na testa. Virou-se imediatamente para o desdentado, que estava no chão segurando a mão machucada. — Muito bem, seus jumentos, esta foi uma pequena aula de contra-ataque.

— O quê... cara? — resmungou o inimigo estendido no chão, tentando pegar a faca de caça, que Hawkins pisou com uma patada. — OK, eu perdi — admitiu o agressor: — Agora volto para uma cela. E quais são as outras novidades, hein, patrão.

— Aguenta aí, amigo zonzo — disse o Hawk, com os olhos semicerrados e pensando depressa — talvez possa se sair melhor. Na realidade, suas táticas não foram ruins, apenas mal executadas. Gostei dos uniformes e dos calços, que mostraram imaginação, dentro das regras flexíveis do combate. O que vocês não tiveram foi uma estratégia posterior, não pensaram no que aconteceria se o inimigo contra-atacasse com um golpe imprevisto. Pura e simplesmente não projetaram sua análise adequadamente, filho!... Mas também é verdade que vou precisar de ajudantes com experiência de combate. Pode ser que com um pouco de disciplina eu possa usá-los. Vocês têm uma viatura?

— O quê?

— Um carro, um automóvel, um meio de transporte que não esteja obrigatoriamente registrado em nome de uma pessoa viva ou morta e que não possa ser identificado através da placa.

— Bem, temos um Oldsmobile do Midwest em mau estado, ainda registrado em nome de um mandachuva que não sabe que tem um clone com um motor Mazda muito velho.

— Perfeito. E lá vamos nós, caballeros! Com trinta minutos de treino e uns cortes de cabelo, vocês conseguiram um emprego temporário e respeitável que paga muito bem... Na verdade, gosto dos uniformes, muito imaginativos e extremamente úteis.

— Você é loco, mister.

— De modo algum, filho. De modo algum. Sempre acreditei em fazer o melhor que podia para os desvalidos... Agora, vamos, mantenha-se ereto, rapaz, quero postura perfeita de ambos! Ajude-me a levantar seu camarada do chão e vamos em frente!


A cabeça de Devereaux emergiu lentamente do painel direito da pesada e reluzente porta dupla que dava acesso aos escritórios de exclusivos da Aaron Pinkus e Associados, na cobertura. Furtivamente, olhou primeiro para a direita, depois para a esquerda, repetiu o exercício e fez um sinal com a cabeça. Imediatamente, dois homens corpulentos de terno marrom saíram para o corredor e colocaram-se em frente dos elevadores no fundo do hall, Sam entre eles.

— Prometi a Cora que compraria bacalhau quando voltasse para casa — disse o advogado inexpressivamente para os guardas.

— Nós cuidamos do bacalhau — disse o homem à esquerda de Sam, olhando para a frente e deixando transparecer um ligeiro lamento na voz.

— Ela alimenta Paddy Lafferty com filé mignon — acrescentou o guarda da direita, num lamento mais do que ligeiro na sua voz. — Bem passados.

— Está bem, está bem, vamos também parar e comprar uns bifes, O.K.?

— É melhor comprarmos quatro — sugeriu o guarda da esquerda, num tom monocórdico. — Somos substituídos às oito e esses gorilas vão sentir o cheiro dos bifes.

— É o aroma da gordura — opinou o guarda da direita, olhando sempre em frente. — É tão bom... fica no ar muito tempo.

— Que seja — concordou Devereaux. — Quatro bifes e o bacalhau.

— Que tal umas batatas? — perguntou o guarda da esquerda. — Cora não é lá muito boa com batata e todos gostam de batata.

— Depois das seis Cora não cozinha tão bem — disse o da direita, deixando transparecer um vago sorriso no rosto impassível. — Às vezes, é mesmo um pouco difícil encontrar o fogão.

— Eu frito as batatas — disse o outro.

— Meu sócio polonês não pode viver sem suas “cartofas”.

— É kartofla, seu burro. Meu sócio sueco devia ter ficado na Noruega, não é, Sr. D.?

— Tanto faz...

As portas do elevador abriram e o trio entrou, espantado por encontrar dois homens de uniforme que obviamente tinham subido até o alto do prédio por engano, já que não fizeram movimento para sair. Sam acenou com a cabeça polidamente, virou-se para as portas que se fechavam e caiu em si, os olhos arregalados de espanto. A menos que sua experiente visão de advogado o estivesse enganando, os dois sujeitos de uniforme tinham umas pequenas suásticas presas no colarinho das camisas! Fingindo ter coceira na nuca, Devereaux virou-se casualmente e olhou para o pescoço dos sujeitos.

Os pequenos emblemas pretos eram suásticas! Seus olhos se encontraram por um instante com os do homem que estava no canto, que sorriu, embora seu amável sorriso tenha ficado algo diminuído pela ausência de diversos dentes. Sam virou instantaneamente a cabeça para a frente, mais confuso ainda — até que de repente tudo se esclareceu. Segundo o jargão da Broadway, Boston era uma cidade “experimental”. Era óbvio que alguma peça de teatro sobre a Segunda Guerra Mundial devia estar em cena no Shubert ou no Wilbur, exibindo as qualidades na Bean Town antes de tomar de assalto a Big Apple. Ainda assim, estes atores não deveriam se apresentar fora do palco e nas ruas com aqueles trajes. Por outro lado, sempre tinha ouvido dizer que atores são uma espécie à parte; alguns vivem seus papéis vinte e quatro horas por dia. Não houve uma vez um Othelo inglês que uma noite tentara matar sua Desdêmona numa delicatessen judia, na rua Quarenta e Sete, por causa de um sanduíche de pastrami?

As portas se abriram para um saguão lotado e Devereaux saiu. Parou por um instante, olhando em volta, enquanto seus guardas o ladeavam. O trio dirigiu-se rapidamente para a entrada do prédio, desviando-se de corpos e pastas de executivo, para finalmente sair na larga calçada, junto à qual os aguardava a limusine de Aaron Pinkus.

— Parecia que estávamos em Belfast, protegendo o couro desses lunáticos que passam a vida jogando bombas em tudo que é lugar — disse Paddy Lafferty ao volante, no momento em que os três passageiros se afundavam no banco de trás, ficando Devereaux comprimido entre seus corpulentos protetores. — Vamos diretamente para casa, Sam? — continuou o motorista, enquanto movia o enorme carro para o fluxo de trânsito.

— Duas paradas, Paddy — replicou Devereaux. — Bacalhau e bifes.

— Cora já entrou em ação, hein, rapaz? Ela prepara um bife de primeira, desde que você lembre a ela pra tirar a frigideira do fogo a tempo. Caso contrário, terá cartilagens transformadas em carvão flutuando em bourbon. Mas é melhor comprar três bifes, Sam. Minhas ordens são para levá-lo de volta à cidade às oito e meia.

— São cinco bifes — disse o pretoriano polonês.

— Obrigado, Stosh, mas não estou com fome...

— Não são para você, são para nossos substitutos.

— Ah, sim, eles vão sentir o cheiro. Sabe por que, não sabe? É o cheiro que fica de gordura frita.

— Está bem — exclamou Devereaux, tentando uma pausa na rápida conversa para que pudesse formular uma pergunta importantíssima. — Bacalhau, cinco bifes, gordura frita, o olfato dos malditos substitutos, está tudo combinado! Agora, por que Aaron me quer de volta à cidade às oito e meia?

— Ei, a ideia foi sua, Sammy, e posso lhe dizer que a Sra. Pinkus acha que você é o amorzinho do dia.

— Por quê?

— Você recebeu aquele convite elegante para a soirée da galeria de arte, o que acha disso? Eu a ouvi dizer soirée, o que significa que você vai ser apanhado à noite, depois do trabalho, e ninguém vai se importar.

— Galeria de arte...?

— Lembre-se, rapaz, você disse que foi aquele seu cliente muito janota que acha que a mulher quer você, o que para ele não é problema, e depois você disse a Mr. Pinkus que não queria ir e ele falou com a Sra. Pinkus, que leu no jornal que o senador ia estar presente e por isso agora vão todos.

— Essa gente não passa de um bando de angariadores de fundos sanguessugas e abutres políticos.

— Pertencem à alta sociedade, Sammy.

— É a mesma coisa.

— Então voltamos com você, Paddy? — perguntou o guarda à direita de Devereaux.

— Não, Knute. Não haverá tempo. Você vai no carro do Sr. D. e o pega aqui. Seus substitutos podem nos seguir no carro deles.

— O que há com o tempo? — objetou Stosh. — Não nos deixe no centro. O carro do Sr. D. balança muito nas curvas.

— Você não o mandou consertar, Sam?

— Esqueci.

— Vai ter de viver com isso, Stosh. Nada melhor para o patrão do que dirigir seu pequeno Buick desde o escritório, da forma como está fazendo agora, mas essa já não é a opinião da patroa. Este é o carro dela, sobretudo por causa da placa, que, por acaso, ele detesta, especialmente quando vai para uma festa como a de hoje.

— Sanguessugas e políticos — resmungou Sam.

— É a mesma coisa, hein? — disse Knute.


MacKenzie Hawkins semicerrou os olhos para conseguir ver, através do para-brisa do Oldsmobile roubado, a placa da limusine na frente. As letras brancas em relevo contra o fundo verde formavam o nome PINKUS, como se esse anúncio fosse lançar o medo nos corações dos observadores. Ajudaria se o nome fosse um pouco mais ameaçador, pensou Mac, apesar de estar feliz por ter localizado a limusine em frente ao local de trabalho de Devereaux. O Hawk jamais esqueceria o nome PINKUS. Na época em que o jovem advogado iniciava o trabalho na antiga sociedade, Sam passara semanas gritando O que Aaron Pinkus iria pensar?, até que Mac não pôde aguentar mais e confinou o histérico advogado a seu alojamento a fim de ter um pouco de paz. Naquela tarde, contudo, um rápido telefonema para a sociedade de advogados confirmara que Sam estava de volta e, de algum modo — Deus saberia como — fizera as pazes com o tal Aaron Pinkus, cujo nome era um anátema para The Hawk.

Daí em diante, seria fácil mostrar aos recentemente treinados e tosquiados ajudantes de campo uma foto de Devereaux de seis anos antes e ordenar-lhes que ficassem andando de elevador do térreo à cobertura até que aparecesse o alvo e em seguida o vigiassem a uma distância discreta, onde quer que ele fosse, mantendo-se em contato com seu oficial-comandante, graças aos walkie-talkies que lhes fornecera. Não tenham ideias, caballeros, pois roubar propriedade do governo é crime punido com trinta anos e tenho em meu poder o carro que roubaram, coberto com as impressões digitais de ambos.

Sinceramente, Mac pensava que Sam se dirigisse a um bar conhecido depois do trabalho. Não que seu antigo advogado fosse um grande bebedor — não chegava a ser um bebedor razoável —, mas gostava de um gole ou dois após um dia de trabalho duro no campo. Ora, pensara o Hawk ao ver Sam surgir do prédio com escolta de proteção. Até que ponto um homem podia ser ingrato e desconfiado? De todas as estratégias duras e detestáveis que podiam ser usadas... escolta! E envolver seu patrão, o igualmente detestável Aaron Pinkus, tinha sido uma traição total, algo definitivamente antiamericano! O Hawk não estava seguro de que seus ajudantes recentemente adquiridos teriam capacidade para adotar uma nova estratégia. Por outro lado, um bom oficial combatente sempre conseguia extrair o melhor de seus soldados, por mais crus que fossem. O Hawk olhou de relance para eles, encolhidos a seu lado no banco da frente — certamente não permitiria que um possível adversário se sentasse atrás dele numa trincheira.

Eles tinham nitidamente melhor aspecto, cortes de cabelo normais e rostos barbeados, muito embora balançassem a cabeça para cima e para baixo ao som do ritmo latino que saía da rádio.

— O.K., homens, atenção! — gritou o Hawk, desligando o rádio, ao mesmo tempo em que segurava o volante.

— O que foi, homem loco? — perguntou o atônito ajudante que não tinha todos os dentes, sentado ao lado da janela.

— Isso significa “atenção”. Têm que prestar atenção ao que vou dizer.

— Talvez fosse melhor que você nos pagasse algum dinheiro, hein? — disse o ajudante sentado ao lado de Mac.

— Tudo a seu tempo, Cabo... decidi promovê-los a Cabo porque me sinto forçado a atribuir responsabilidades adicionais a suas missões básicas. Naturalmente que isso requer um aumento de salário. A propósito, para fins de identificação, quais são seus nomes?

— Sou Desi Arnaz — disse o ajudante da janela.

— Eu também — disse o sócio.

— Justo. D-Um e D-Dois, nessa ordem. Agora ouçam.

— Ouçam o quê?

— Basta que ouçam. O inimigo trouxe complicações que vão requerer alguma iniciativa agressiva de ambos. Pode ser que tenham que se separar, a fim de atrair o pessoal hostil para longe dos respectivos postos, permitindo assim que o objetivo seja conquistado.

— Até agora — interrompeu D-Um — só entendi o requerer, porque é muito usado nos tribunais, como reencarcerar. Quanto ao resto, já não tenho tanta certeza.

Assim, o Hawk mudou para o espanhol fluente que aprendera como jovem líder guerrilheiro nas Filipinas, combatendo japoneses. — Comprende? — perguntou, quando acabou de falar.

— Absolutamente! — exclamou D-Dois. — Partimos a galinha e espalhamos os pedaços para que possamos pegar a grande raposa felpuda!

— Muito bem, Cabo. Aprendeu isso nas suas revoluções latinas?

— Não, sir. Minha mama costumava ler histórias infantis quando eu era pequeno.

— Seja lá onde foi que aprendeu, recruta, use-o... Agora vai fazer o seguinte... Cristo crucificado! Que diabos é isso aí na gola?

— O que, homem? — perguntou D-Um, abalado pela súbita explosão do Hawk.

— Você também! — berrou Hawkins. — As suas camisas, o colarinho das camisas... eu nunca tinha visto isso antes!

— Também não tínhamos gravata — explicou D-Dois. — Você nos deu diñero para comprar gravatas pretas antes de entrar no prédio grande com aquele elevador engraçado... E também, homem loco, essas camisas não são nossas. Uma dupla de gringos malvados de motocicleta não foi nada amigável conosco perto de um restaurante na estrada... Vendemos as motos, mas conservamos as camisas. Bacana, hein?

— Seus idiotas! Essas insígnias são suásticas!

— O que é isso?

— Coisinhas bonitas — observou D-Dois, passando o dedo pelo emblema negro do Terceiro Reich. — Temos umas grandes muito legais nas costas...

— Arranquem isso das golas, Cabos, e fiquem com as túnicas.

— Túnicas? — perguntou D-Um, surpreso.

— Os blusões, os casacos, os uniformes... não tirem. — The Hawk parou no meio do que ia dizendo no momento em que, na sua frente, a limusine diminuiu de velocidade e virou à direita numa rua secundária. Mac fez o mesmo. — Se Sam mora neste bairro, deve estar varrendo o chão, e não redigindo petições. — O bairro a que ele se referia era um quarteirão sombrio e pequeno, onde se alinhavam pequenas lojas comprimidas em velhos edifícios com apartamentos em cima delas, lembrando os bairros da virada de século que fervilhavam de imigrantes. Só faltavam os vendedores ambulantes e o som das línguas estrangeiras em contraponto. A limusine deslizou junto à calçada e estacionou em frente a uma peixaria. Mac não pôde fazer o mesmo, já que só havia vaga no fim do quarteirão, a uns trinta metros de distância. — Não estou gostando disso.

— De quê? — perguntou D-Um.

— Pode ser uma manobra de evasão.

— Invasão? — gritou D-Dois, de olhos arregalados. — Ei, homem loco, não combatemos em nenhuma guerra, nada de revolución! Somos pacíficos malfeitores, só isso.

— Malfeitores...?

— Eles também usam essa palavra muitas vezes no tribunal — esclareceu o uniforme junto à janela. Como “requerer” e “reencarcerar”, sabia?

— Não é guerra nem revolução, filho, só um malfeitor covarde e ingrato cuja escolta pode ter nos descoberto... D-Um, vou parar um instante, você salta e dá uma olhada nessa peixaria. Finja que está fazendo compras para o jantar e mantenha-se em contato conosco. Pode haver uma porta traseira, mas não é provável; eles podem inclusive mudar de roupa, mas nosso alvo nadaria nos trapos da escolta. Ainda assim, não podemos correr o risco. Ele está agora nas mãos de profissionais, homens, e temos que mostrar nosso calibre.

— Toda essa sua tonteria quer dizer que devo vigiar o gajo alto da foto?

— É isso mesmo, Cabo, e não deve questionar ordens diretas dos seus superiores com invectivas impróprias.

— Que bonita frase!

— Mexa-se! — berrou o Hawk, freando o carro no momento em que D-Um saltava, batendo a porta. — Você, D-Dois — continuou Mac, arrancando com velocidade —, assim que eu estacionar, quero que atravesse a rua e dê meia volta para trás, até aquela enorme viatura e fique de olho nela e na loja. Se alguém sair correndo e entrar na limusine ou outro carro nas proximidades, avise-me.

— Não é isso que Desi-Um está fazendo, patrão?? — perguntou D-Dois, tirando o walkie-talkie do bolso.

— Ele pode ser apanhado numa emboscada se os observadores inimigos forem espertos, mas eu duvido. Fiquei quase sempre dois veículos atrás do alvo móvel, por isso não acho que nos tenham reconhecido.

— Você fala de uma forma engraçada, sabia?

— Em posição! — ordenou o Hawk, entrando com o carro na vaga perto da esquina e desligando imediatamente o motor. D-Dois saltou, contornou o capô e atravessou a rua correndo, com a vivacidade de um atleta em plena forma. Nada mal, caballero — murmurou Mac para si mesmo, tirando um charuto do bolso da camisa. Ambos têm boas possibilidades, uma verdadeira estatura de sargentos.

Nesse instante ouviu uma pancada ligeira no para-brisas. Havia um policial na calçada, gesticulando com seu bastão.

Momentaneamente confuso, o Hawk olhou para o espaço vazio do outro lado da rua. Imediatamente antes havia um sinal: ESTACIONAMENTO PROIBIDO.


Sam selecionou as postas de bacalhau, agradeceu ao proprietário grego com seu costumeiro, embora mal pronunciado, “Epharistó” e teve como resposta o cortês “Parikala, sr. Deveroo”, quando pagou a conta. Os dois guardas, ambos com interesse mínimo em peixe, estavam entediados e olhavam as fotos de várias ilhas do Mar Egeu penduradas na parede, mas também sem o menor interesse. Diversos outros fregueses, sentados em duas mesas de fórmica branca e todos falando grego, pareciam mais interessados em conversar do que em comprar alguma coisa. Cumprimentaram os dois novos fregueses mas não o terceiro, um homem com um uniforme difícil de ser identificado, que seguiu até o balcão de trás — que estava quase vazio, só com gelo picado — e ficou observando. Sob os olhares atentos dos observadores, tirou então do bolso um aparelho de rádio portátil, levou-o à boca e começou a falar.

— Fascistas! — berrou um Zorba idoso e barbudo, na mesa mais perto do balcão traseiro. — Olhem! Está se comunicando com os alemães!

Os antigos partisans de Salônica avançaram, tropeçando, para atacar e capturar o inimigo odiado há cinquenta anos, ao mesmo tempo em que os dois guarda-costas corriam para o lado de Sam, empunhando as armas. O alvo do ataque dos velhos guerreiros gregos deu socos e pontapés nos atacantes, afastando-os com certa perícia profissional, e correu para a porta, e quase caiu dentro de um tanque com peixes na entrada.

— Conheço aquele homem — gritou Devereaux, livrando-se dos protetores. — Tinha suásticas no colarinho! Estava no elevador!

— Que elevador? — quis saber o colega escandinavo.

— O do escritório!

— Não vi suásticas coloridas no elevador — proclamou o representante polonês.

— Eu não disse colorida, disse colarinho!

— Você fala de uma forma engraçada, sabia?

— E você ouve coisas engraçadas, já tinha pensado nisso?... Ele está se aproximando, eu sinto!

— Sente o quê?? — perguntou Knute.

— O Titanic. Ele está na rota do desastre... está se aproximando de mim, eu sei!

— É o mais tortuoso filho da puta que o inferno já criou. Vamos fugir daqui!

— Com certeza, sr. D. Vamos buscar os bifes naquele açougue de Boylston e de lá seguimos diretamente para casa.

— Espere aí! — exclamou Devereaux. — Não vamos não... Troquem de paletó com dois daqueles caras nas mesas, paguem algumas centenas de dólares para convencê-los a entrar na limusine de Aaron até o porto... Você primeiro, Knute, e diga a Paddy para largar os caras em algum bar no caminho da casa de Pinkus, e que eu o encontro lá. Stosh, você pede um táxi e nós ficamos coordenando tudo.

— Isso é uma loucura, sr. D.! — disse Stosh, aturdido com o súbito tom autoritário de Sam. — Quer dizer, não parece ser... o Sr. D.

— Estou recuando no tempo, Stanley, e aprendi com um mestre. Ele está se aproximando. Eu sei que está. Mas cometeu um erro.

— Qual foi... Sr. D? — quis saber Knute.

— Ele usou um homem do Exército americano para fazer seu trabalho sujo. O uniforme foi depenado como uma galinha, mas repararam com certeza na postura, no cabelo cortado à máquina atrás. Esse canalha cheira a coisa do Governo!


— Homem loco, onde está você?

— Na outra rua, preso no maldito tráfego! Qual dos dois é você?

— Desi-Dos. Desi-Uno está comigo.

— Olá, loco.Você é mais maluco do que um bando de periquitos.

— Qual é a situação no campo de batalha?

— Pare com essas bobagens, patrão. Quase fui morto!

— Tiroteio?

— Com peixe? Não seja burro... com uns barbudos velhos e malucos que não falam inglês.

— Você está dizendo coisas sem sentido, D-Um.

— Não há muito disso por aqui. Especialmente com o gringo alto e magricela que você quer.

— Seja mais claro, Cabo!

— Ele mandou uns velhos embora no carro preto grande, com umas roupas esquisitas... acha que não entendemos. É um gringo burro!

— Perceberam o quê?

— Ele está esperando outro carro. Um dos amigos está em pé, na frente, olhando para todos os lados.

— Bolas, não vou conseguir chegar aí a tempo. Vamos perdê- lo!

— Não se preocupe, loco...

— Não me preocupo? Cada hora que passa faz diferença!

— Ei, patrão, que distância esses radinhos alcançam?

— São celulares militares com frequência em megahertz. Até duzentos quilômetros em terra, o dobro no mar.

— Não vamos nadar em nenhum carro, de modo que tudo O.K.

— De que diabos está falando?

— Vamos seguir o gringo e os amigos.

— Seguir...? Pelo amor das legiões de César, em quê?

— Desi-Dos já fez ligação direta num Chevy porreta. Não se preocupe, ficamos em contato.

— Vocês vão roubar um carro?

— Ei, não roubamos nada. É como você diz... boa estratégia. Não é, loco?


Paddy Lafferty nitidamente não ficou satisfeito quando três velhos gregos barbudos entraram na limusine de Pinkus. Primeiro, porque cheiravam a uma combinação de peixe e baklava; segundo, porque não paravam de mexer em todos os botões que viam, como loucos num salão de videogame; terceiro, porque ficavam ridículos nos paletós de Sam, Stosh e Knute... sobretudo com as barbas cobrindo parcialmente as lapelas; quarto, porque havia uma possibilidade real de que um deles tivesse assoado o nariz — e duas vezes — na cortina de veludo da janela; quinto... oh, que inferno, de que adiantava? Faria uma limpeza completa no carro antes que a Sra. Pinkus entrasse nele.

Não que Paddy fosse contra o que Sam fazia; na realidade, era excitante e certamente quebrava a monotonia da sua rotina diária de motorista, mas nada estava claro para ele. A verdade era esta: só o jovem Devereaux e Mr. Pinkus conheciam toda a verdade. Aparentemente, Sammy tinha se envolvido em alguma terrível embrulhada anos atrás e agora alguém queria acertar contas. É claro que isso era demais para Paddy. Gostava muito de Devereaux, mesmo que, às vezes, o importante advogado pudesse ser um pouco doido, e qualquer um que conhecesse o nome de um dos grandes homens do Exército, o General MacKenzie Hawkins, seria uma pessoa especial aos olhos de Paddy. Hoje em dia, muito poucas pessoas, sobretudo do tipo yuppie, manifestavam o respeito devido aos grandes soldados e, assim, era bom saber que entre as qualidades de Sam estava a consideração por um dos verdadeiros heróis do país.

Tudo isso era favorável a Mr. Pinkus e a seu favorecido empregado, mas o que já não era assim tão favorável era a informação que Paddy sentia dever ser prestada a todos. Por exemplo, quem andava atrás de Sam, e por quê? Que aparência tinha? Certamente que as respostas a estas perguntas tão simples eram vitais para a proteção de Devereaux. Bem, não obrigatoriamente o porquê, já que podia ser uma questão legal, mas quem e sua aparência eram importantíssimos. Em vez disso, tudo o que diziam era que Sam saberia, Sam daria o alarme no momento em que reconhecesse o filho da mãe ou filhos da mãe que andavam atrás dele. Bem, Lafferty não tinha sido oficial, mas mesmo um sargento combatente conhecia uma resposta curta e apropriada para esse tipo de raciocínio. Como teria dito o grande soldado Mac, o Hawk: “Você não pode transformar em alvo principal uma de suas sentinelas avançadas.”

Subitamente, o telefone da limusine tocou, perturbando de modo abrupto os heroicos pensamentos do motorista sobre um homem a quem ele certamente venerara nos dez gloriosos dias na França em que esse grande soldado comandara seu batalhão. — Lafferty falando — disse, levando o fone ao ouvido.

— Paddy, é Sam Devereaux! — gritou a voz do outro lado.

— Dá para perceber, rapaz. O que há, Sammy?

— Você está sendo seguido?

— Eu estava esperando isso, mas receio que não, e estou de olho nos espelhos...

— Nós estamos!

— Não faz sentido, rapaz. Tem certeza?

— Absoluta! Estou falando de um telefone público na estrada de Waltham, num lugar chamado Nanny's Naughty Follies et Cetera1.

— Ei, rapaz, saia daí. Você não deve entrar num lugar desses. Mr. Pinkus não ia gostar.

— O quê? Por quê?

— Você está falando de um telefone a uns três metros de distância de uma jukebox?

— Sim, acho que sim. Estou vendo uma jukebox.

— Olhe à esquerda, para um bar grande, circular, sob uma plataforma comprida e elevada.

— Sim, sim, eu vou... só tem um grupo de dançarinos... oh, meu Deus, estão todos nus! Mulheres e homens!

— É o et cetera, rapaz. Agora, se eu fosse você, sairia daí voando!

— Não posso! Knute e Stosh foram atrás do Chevy que estava seguindo nosso táxi e parou quando paramos. O que quero dizer é que eles são realmente profissionais, Paddy. Já se livraram do táxi e estão se aproximando.

— Estarei aí em menos de dez minutos, Sammy! Vou largar esses arcebispos gregos no próximo posto de gasolina e virar para o norte. Conheço um atalho. Dez minutos, rapaz!


— Homem loco, você está perto.

— Se as indicações que me deram foram precisas, em cinco minutos estou ai, D-Um. Acabei de passar pelo Chicken Shot Cafe2, aquele que tem um néon vermelho com um galo.

— Talvez vocês gringos não saibam a diferença. Talvez comam galinha McGalo, não?... Esse lugar fica a menos de cinco minutos daqui.

— Qual é a situação atual? O que está acontecendo?

— Somos bons corporales. Temos uma pequena surpresa para você, loco.

— Ten-four!3

— Ainda não são seis horas.

— Em frente!

O Oldsmobile roubado em algum lugar do Midwest chegou ao estacionamento do Nanny's em menos de três minutos, MacKenzie Hawkins mascando a ponta do charuto e tentando encontrar seus ajudantes de campo. Imediatamente viu D-Dois brandindo o que parecia ser um cobertor escuro, grande e rasgado. Ao avançar na direção do ajudante mecanicamente talentoso, viu que a bandeira da sinalização não era um cobertor, mas sim uma calça. O Hawk saltou do carro e aproximou-se de D-Dois, parando algum tempo para endireitar a peruca comprida demais, vermelha demais e, como também era notório, solta demais.

— Qual é seu relatório, Cabo? — perguntou Mac ansiosamente. — E que diabos é isso? — acrescentou, apontando para a calça.

— Uma calça, loco, o que acha?

— Estou vendo que é uma calça, mas o que está fazendo com ela?

— É melhor estar comigo do que com o amigo malvado que a veste, ou não? Enquanto eu estiver com esta calça e Desi-Uno com a outra, os dois amigos ficam onde estão.

— Os dois... os dois homens da escolta? Onde eles estão... e onde está o alvo?

— Venha comigo — D-Dois levou o Hawk até um lugar abandonado, afastado do edifício, que obviamente era usado para descarga e coleta de lixo. Estacionado junto a um enorme depósito de lixo e tão perto que a porta não podia ser aberta, estava um Chevrolet coupé, cuja porta do lado oposto estava igualmente presa por uma toalha de mesa comprida, amarrada na maçaneta e no para-choque traseiro. Dentro do carro, um na frente e o outro no estreito banco de trás, estavam os dois guardas de Devereaux, os rostos apopléticos comprimidos nos vidros das janelas. Um exame mais próximo revelava que ambos estavam de cueca e uma observação ainda mais detalhada revelava dois pares de sapatos e meias cuidadosamente colocados junto ao pneu de trás. — Deixamos as outras janelas um pouco abertas para entrar ar, entende? — explicou D-Dois.

— Bem lembrado — disse Mac. — A Convenção de Genebra exige que os prisioneiros de guerra recebam tratamento humano... Onde diabos está D-Um?

— Aqui mesmo, loco — respondeu Desi-Um, contornando a mala do Chevrolet ao mesmo tempo em que contava um maço de notas. — Esses amigos aqui deviam arranjar empregos melhores ou melhores mulheres. Se não fosse pelo seu homem da foto, não valeriam o trabalho que deram.

— Nós não despojamos prisioneiros de seus haveres pessoais que não tenham caráter hostil — disse Hawk com firmeza. — Ponha isso outra vez nas carteiras.

— Ora, patrão — protestou D-Um —, o que diñero tem de pessoal? Eu compro alguma coisa sua, pago. Você compra alguma coisa minha, paga. Um haver pessoal é algo que se guarda, não é verdade? Ninguém guarda diñero, por isso não é pessoal.

— Eles não lhe compraram nada.

— E isso aqui? — disse D-Um, segurando uma calça. — E aquilo? — continuou rapidamente, apontando os sapatos.

— Você roubou tudo!

— É a vida loca. Ou como você diz, é “estratégia”, não é verdade?

— Estamos perdendo tempo, mas vou dizer uma coisa. Vocês dois demonstraram uma iniciativa exemplar, pode-se dizer mesmo uma criatividade extraordinária na batalha. Vocês honram esta unidade e vou recomendá-los para uma condecoração.

— Bonito!

— Isso é mais diñero, hein?

— Trataremos disso mais tarde, primeiro o objetivo. Onde está o alvo?

— O magricela da foto?

— Isso mesmo, soldado.

— Está lá dentro, nessa espelunca. Se minha mama e meu padre me vissem entrando nela cuspiriam em mim — exclamou D-Dois, fazendo o sinal da cruz: — Ei, cara!

— Mau uísque, filho?

— Mau entretenimiento. Como vocês dizem aqui, repugnante.

— Não creio que usemos palavras espanholas, rapaz. Mas você quer dizer disgusting,4 não é?

— Bem... metade sim, a outra metade, não.

— Não estou entendendo, Cabo.

— Tudo sacode. Em cima e embaixo.

— Em cima e...? Pelas santas hordas de Gengis Khan! Você quer dizer...

— É isso mesmo, loco! Entrei lá para encontrar o gringo de que você não gosta... Ele estava pendurado ao teléfono e foi para o grande bar redondo onde estão essas pessoas todas dançando desnudos, señor!

— E?

— Ele está OK. Olhava as mujeres, e não os hombres.

— Cristo jogando ioiô! Não só temos que ir buscar o filho da puta, como também salvá-lo! Avançar, soldados!

De repente, sem qualquer aviso, um pequeno Buick verde ultrapassou a fila de carros no estacionamento do Nanny Et Cetera, freando ruidosamente a poucos metros do Hawk e de seus ajudantes de campo avançados. Saiu dele uma figura frágil, rosto magro impassível, mas de olhos escuros cheios de eletricidade. — Acho que vocês não devem ir mais longe — disse o recém-chegado.

— Quem diabos é você, homenzinho? — exclamou MacKenzie Hawkins.

— Sou baixo de estatura, mas não necessariamente de baixa estatura, se é que pode entender o duplo sentido.

— Parto o gringo velho pequenino ao meio, mas não o machuco muito, OK, loco? — disse D-Um, adiantando-se.

— Eu vim em paz e não em nome da violência — disse rapidamente o motorista do Buick. — Vim para conferenciar de maneira civilizada.

— Espere ai! — ordenou o Hawk, detendo D-Um: — Repito: quem é você e qual é a natureza desta conferência?

— O meu nome é Aaron Pinkus...

— Você é Pinkus?

— Ele mesmo e imagino que sob essa peruca de aparência um tanto idiota, tenho na minha frente o celebrado General MacKenzie Hawkins?

— Ele mesmo — replicou Mac, arrancando dramaticamente a peruca inadequada do cabelo grisalho cortado à escovinha e colocando-se numa posição ereta, em que a simples largura dos ombros era ameaçadora. — O que temos a dizer um ao outro?

— Eu gostaria muito de ter uma conversa com você, General. Se me permite a franqueza, gostaria de me considerar seu adversário, ou seja, o comandante da oposição nesta pequena escaramuça em que nos encontramos envolvidos. Acha aceitável?

— Direi isso a seu favor, Comandante Pinkus. Pensei que tivesse soberbos ajudantes me apoiando, mas você passou a perna neles, não posso negar.

— Então vai ter que reavaliar seu julgamento, General. Não passei a perna em seus ajudantes, e em você. Ficou parado naquela rua movimentada mais de uma hora, de modo que deu tempo para eu mandar buscar meu Buick e ficar atrás de seu carro, quando seguia a limusine da Shirley.

— Peço perdão?

— Seus dois homens foram brilhantes, absolutamente brilhantes. Na realidade, eu contrataria de bom grado qualquer um deles. Aquela história na peixaria, o encontro nas sombras dos portais do outro lado da rua... e, o que foi assombroso, o fato de terem posto o motor para funcionar sem chave, levantando simplesmente o capô! Toda a minha aparente sabedoria me abandona ao ver uma coisa dessas. Como fizeram aquilo?

— É simples, Comandante — disse D-Dois, com os olhos brilhantes. — Está vendo, são três fios que precisam ser soltos e depois cruzamos...

— Alto! — gritou o Hawk, olhando fixamente para Aaron Pinkus: — Você disse que me passou a perna, seu velho filho da mãe...

— Suspeito que sejamos da mesma idade — interrompeu o famoso advogado de Boston.

— Não de onde eu venho!

— Nem por coincidência de onde eu venho, a não ser pelo estilhaço na espinha que ganhei na Normandia — disse Pinkus, serenamente.

— Você esteve...

— No Terceiro Exército, General. Mas não vamos mudar de assunto. Digo que lhe passei a perna porque recentemente me familiarizei com sua ficha militar, com suas táticas heterodoxas, mas maravilhosamente bem sucedidas. Precisei fazê-lo, em atenção a Sam.

— Sam? Sam é o homem que eu preciso encontrar!

— E vai encontrar, General. E estarei atento a cada palavra que disser.

Sem advertência e sem ruído até sair da autoestrada e entrar no estacionamento, o poderoso motor da limusine de Pinkus anunciou a presença wagneriana do veículo na área. Obviamente reconhecendo o Buick do patrão, Paddy Lafferty guinou para a esquerda e acelerou, cantando os pneus até parar a poucos metros do pequeno grupo.

O motorista saltou, seu corpanzil de sessenta e três anos preparado para todo tipo de ataque brutal.

— Afaste-se, Mr. Pinkus! — urrou ele. — Não sei o que está fazendo aqui, mas essa corja não vai lhe pôr as mãos!

— Sua preocupação é muito gratificante, Paddy, mas não é necessária nenhuma demonstração de força. Nossa conferência decorre pacificamente.

— Conferência...?

— Um conselho de comandantes, pode-se dizer... Sr. Lafferty, permita que lhe apresente o grande General MacKenzie Hawkins, de quem talvez tenha ouvido falar.

— Jesus, Maria, José — murmurou o motorista, aparvalhado.

— O loco é mesmo um heneral grande? — disse Desi-Um, igualmente impressionado.

— El soldado magnifico! — acrescentou Desi-Dois em voz baixa, olhando maravilhado para o Hawk.

— Não vai acreditar — conseguiu dizer Paddy, ao recuperar uma pequena parte da voz. — Apenas instantes atrás eu estava pensando no general, seu grande nome passou pelos lábios de um antigo e reverente jovem soldado. — De repente, o motorista ficou em sentido, levantando o braço direito numa enérgica continência. — Sargento de Artilharia Patrick Lafferty a seu serviço e a seu comando, General!... Este é um privilégio que está além dos meus sonhos mais longínquos.

E foi então que começou a gritaria, abafada a princípio pelo barulho do tráfego distante da autoestrada, mas crescendo gradualmente, à medida que se aproximava o som de uma pessoa correndo.

— Paddy, Paddy! Eu vi a limusine! Onde está você, Paddy?... Pelo amor de Deus, Lafferty, responda!

— Aqui, Sam. Marcha rápida, soldado!

— O quê? — Devereaux contornou, ofegante, a esquina do prédio. Antes que pudesse adaptar a vista à sombra, Patrick Lafferty falou com sua voz autoritária de sargento. — Atenção, rapaz! Apresento-lhe um dos grandes homens do nosso tempo, o General MacKenzie Hawkins.

— Olá, Sam.

Devereaux ficou momentaneamente paralisado, só conseguindo emitir gemidos graves que emergiam de sua boca arquejante, os olhos esbugalhados, em pânico. Abruptamente, com a velocidade de uma garça aterrorizada, deu a volta e começou a correr pelo estacionamento, enraivecido e bracejando desordenadamente, sob o sol poente.

— Atrás dele, ajudantes!

— Pelo amor de Deus, Paddy, detenha-o!

Os ajudantes de campo do Hawk foram mais velozes do que o motorista de Aaron Pinkus, que era mais velho. Desi-Um derrubou Sam perigosamente perto da comporta abaixada de descarga de um caminhão, enquanto Desi-Dois segurava a cabeça de Devereaux e, rasgando sua gravata, enfiava-a na sua boca.

— Rapaz — gritou o reencontrado Sargento de Artilharia Patrick Lafferty —, é uma desgraça, é o que é! Isso é maneira de demonstrar respeito por um dos melhores homens que já vestiram um uniforme?

— Mmmmmffff? — protestou Samuel Lansing Devereaux, apertando os olhos fechados, derrotado.

 

________________

1 Loucuras Picantes da Babá et Cetera.

2 Café da Galinha Baleada.

3 Dez-quatro = entendido.

4 Repugnante.


8

— Belas instalações, Comandante Pinkus, muito boas mesmo — proclamou MacKenzie Hawkins, saindo do quarto de uma suíte de hotel para onde a conferência tinha sido transferida. O velho terno de gabardine cinza do general fora substituído pela calça de pele de gamo índia e pelo blusão Wopotami enfeitado de contas, faltando, porém, o cocar tribal. — É óbvio que você faz parte do staff de alta estratégia.

— Mantenho isso aqui para negócios e também porque Shirley gosta da localização — disse Aaron distraidamente, com a atenção concentrada no monte de páginas espalhadas sobre a mesa, os olhos arregalados por trás das lentes grossas, antecipando os fatos. — Isso é incrível! — acrescentou, em voz baixa.

— Bem, tendo estado com Winston em Chequers — interveio o Hawk —, não iria tão longe. Eu disse simplesmente “bela” instalação. O teto não é tão alto e as gravuras históricas nas paredes são nitidamente de terceira categoria e, na realidade, destoam da decoração, assim como com a precisão.

— Aqui em Boston fazemos o melhor que podemos para apresentar aos turistas o nosso passado, General — resmungou Pinkus, sem interromper a concentração nos papéis. — Precisão tem pouco a ver com autenticidade ambiental.

— Dante atravessando o rio...

— Experimente o porto de Boston — interrompeu Pinkus, virando uma página. — Onde conseguiu isso? — exclamou subitamente, tirando os óculos e encarando MacKenzie. — Que extraordinário conhecedor do direito e da história juntou tudo isso? Quem é o responsável?

— Ele — replicou o Hawk, apontando Devereaux, em estado de choque, sentado no sofá a três metros de distância. Estava apertado entre seus dois guardas, Stosh e Knute, braços e as pernas livres, mas não a boca, coberta com fita adesiva de seis centímetros de largura. Claro que o General Hawkins insistira para que os lábios de Sam fossem besuntados de vaselina, para que não se violasse a Convenção de Genebra para prisioneiros de guerra. Na realidade, ninguém aguentava mais ouvir as diatribes de Devereaux, inclusive os ajudantes de campo do General, Desi-Um e Desi-Dois, que se mantinham atrás do sofá, em uma postura ereta e os braços baixado, no estilo militar.

— Samuel fez isso?? — perguntou Aaron Pinkus, descrente.

— Bem, na realidade não foi ele pessoalmente, mas com certeza que seu espírito estava por trás, de modo que se pode dizer que, no verdadeiro sentido do termo, é ele o responsável.

— Mmmmfff — ouviu-se o protesto abafado, soando como um uivo, vindo do sofá, no momento em que Devereaux se lançava para a frente e tropeçava nos próprios pés, caindo e batendo de cara no chão. Fazendo uma careta de fúria para o Hawk, tentou ficar em pé, ao mesmo tempo em que o General dava sua ordem.

— Ajudantes, posições de ataque! — Como uma unidade de comando treinada, Desi-Um e Dois saltaram por cima da poltrona, o primeiro usando o braço do sofá para pular e reduzir instantaneamente a distância que o separava de Sam e o segundo usando a cabeça de Knute para os mesmos fins. Prendendo-o de novo no chão, olharam para o Hawk à espera de instruções.

— Muito bem feito, cavalheiros.

— Não admira que tenha recrutado seu próprio pessoal, General — disse Pinkus, em tom de admiração, em pé ao lado da escrivaninha. — Eles são da Polícia Montada?

— De certo modo, sim — replicou MacKenzie. — Especialistas em segurança de aeroportos... Deixem que ele se levante, homens. Ponham-no na cadeira em frente à escrivaninha e cuidem dos flancos. .

— Vocês dois — disse Aaron, olhando para os desnorteados guarda-costas de Boston e falando delicadamente, mas sem ocultar uma ligeira reprimenda. — Não pretendo criticar, mas acho que podiam tirar proveito desta instrução militar, que, obviamente, tem a ver com seu trabalho. Esses soldados são muito rápidos em entender a necessidade de ação e suas táticas não violentas — como o despir das calças — são impressionantes.

— Ei, Sr Comandante! — exclamou D-Dois, com um largo sorriso. — Pegue um gringo e tire sua calça e ele não vai correr pela rua gritando a plenos pulmões, O.K.?

— Chega, Cabo. Humor de quartel não combina com combatentes passivos.

— Lindo! — exclamou D-Um.

— General — disse Pinkus — se acha que é viável, acho que chegou a hora de restringirmos esta conferência a três: você, Samuel e eu.

— Concordo plenamente — assentiu o Hawk. Nossas discussões isoladas devem ser abertas, de modo a incluir esse jovem amigo.

— Talvez possa considerar a possibilidade de amarrá-lo, não muito apertando, claro, como o Sr. Lafferty, desculpe, o Sargento Lafferty, fez anteriormente.

— Então você deve ter dispensado o artilheiro quando falou com Sam.

— O artilheiro?... Ah, sim, o sargento de artilharia... sim, já dispensei.

— Não precisa dele agora. Estou aqui... Ajudantes, sentido! Estão dispensados, está na hora do rancho.

— Ei, loco, nós somos mesmo bonitos.

— Rango, Cabo. Metam alguma comida nas barrigas e reapresentem-se em uma hora. — MacKenzie enfiou a mão no bolso do blusão de couro e pegou seu clipe de dinheiro, retirando algumas notas que entregou a D-Um. — Estou acrescentando isso a seu soldo pela extraordinária eficiência.

— Este é o nosso diñero? — disse D-Dois, olhando carrancudo para o dinheiro.

— Uma gratificação suplementar, Cabo. Um acréscimo ao diñero, que virá mais tarde. Palavra de oficial-general.

— O.K., grande Heneral — respondeu D-Um. — Promete uma boa grana, mas quando vai pagar?

— Não revelemos qualquer indício de insubordinação, jovem. Embora nossa íntima associação nesta missão permita certo grau de camaradagem, os outros não compreenderiam.

— Lindo! Eu também não compreendo.

— Vão comer algo e voltem em uma hora. Dispensados! — Desi-Um e Dois encolheram os ombros e dirigiram-se para a porta, olhando o primeiro para os três relógios em seu pulso esquerdo, para ver a hora. O Hawk virou-se para Aaron Pinkus. — Como meu prisioneiro, e de uma forma um tanto contrária à tradição, também meu anfitrião pode se dirigir a suas tropas, Comandante.

— Seu o quê? Eu sou quem?... Ah, compreendo — Pinkus virou-se para os perplexos Stosh e Knute, sentados no sofá. — Cavalheiros — começou, hesitante, procurando as palavras apropriadas —, estão dispensados de seus deveres atuais e se tiverem a gentileza de ir ao nosso escritório amanhã, se for conveniente, é claro, serão reembolsados pelo nosso departamento de contabilidade, incluindo o resto da noite.

— Eu teria posto os dois no xadrez! — berrou The Hawk, enfiando o charuto na boca. — São dois idiotas! Negligência, incompetência e covardia em combate... por pouco não há matéria para corte marcial.

— Fazemos as coisas de modo diferente na vida civil, General. Negligência e incompetência são componentes necessários nos escalões inferiores da força de trabalho. De outra forma, seus superiores, que com frequência são menos competentes mas falam melhor, nunca poderiam justificar os salários... Vão andando, cavalheiros, e estou sendo sincero ao sugerir que sigam o treinamento tão bem inculcado nos adversários pelo staff do General.

Stosh e Knute, as expressões tristes revelando sentimentos genuinamente feridos, saíram rapidamente.

— Pronto, General — disse Aaron. — Estamos sozinhos.

— Mmmfff? — gritou Devereaux.

— Incluí você, Samuel. Por mais que eu preferisse não olhar para você, não é fácil.

— Mmmfff?

— Pare com a choradeira, filho — ordenou o Hawk. — Desde que não grite a plenos pulmões, suas mãos estão livres e você pode tirar a fita. Não precisa ter medo, sua boca ainda está no mesmo lugar, lamento sinceramente informar. — A princípio devagar e depois numa explosão de machismo, Sam arrancou a fita adesiva, soltou um uivo e começou a retorcer os lábios, como que para se certificar de que ainda funcionavam. — Você parece um leitãozinho magro assando — acrescentou MacKenzie.

— E você parece um índio de loja de charutos que acaba de fugir de uma tenda de quarentena! — berrou Devereaux, saltando da cadeira. — Quem você pensa que é? Tonto pós-lobotomia?... E que diabos quer dizer, então sou responsável por essa porcaria na mesa de Aaron? Não vejo nem falo com você há anos, seu verme!

— Você continua com essa tendência a se excitar sob pressão, hein, rapaz?

— Em defesa dele, General — interrompeu Pinkus —, posso lhe dizer que no tribunal ele fica gelado, um verdadeiro e tranquilo James Stewart. A própria gagueira é puro calculismo.

— Num tribunal — explodiu Sam — eu sei que diabos estou fazendo! Quando estava com esse filho da puta dissimulado é que eu nunca sabia, porque ou ele não me contava ou porque mentia!

— Terminologia errada, jovem. Isso é o que se chama desinformação para sua própria segurança.

— E o que se chama mentira, para assegurar minha própria destruição! Agora responda à pergunta: por que sou responsável, não, espere um momento, pelo que sou responsável? Como posso ser responsável por alguma idiotice que você tenha feito, se não nos falamos há anos?

— Mais uma vez, para ser justo — interrompeu Pinkus, delicada mas firmemente —, o General Hawkins afirmou que você era responsável apenas no sentido de que foi o espírito por trás do projeto, estando essa influência espiritual sujeita à mais ampla interpretação possível, correta ou incorreta, limitando, ou possivelmente eliminando, qualquer compromisso ou mesmo associação com o empreendimento.

— Pare de representar o papel de advogado com esse mutante que cresceu demais, Aaron. A única lei que ele conhece faz a lei da selva parecer um chá inglês num jardim de rosas. É um selvagem em estado absolutamente puro, sem o menor resquício de moralidade que o redima!

— Você devia tratar de examinar sua pressão sanguínea, filho.

— E você devia examinar a cabeça num taxidermista! Que diabos você fez e por que eu?

— Por favor — intrometeu-se Pinkus de novo, encolhendo os ombros, em sinal de pedido de desculpas a The Hawk, que agora tinha as sobrancelhas arqueadas.

— Permita-me tentar uma explicação, General. Como os advogados fazem entre si. Aceita?

— Nós, os comandantes, sabemos como lidar com nosso pessoal — replicou MacKenzie. — Para falar com sinceridade, acalentei a esperança de que você pudesse libertar os flancos e marchar ao som do meu tambor nessa direção. Francamente, foi este o motivo pelo qual lhe mostrei a essência da operação — não a tática ou os métodos de combate, claro, mas o objetivo imediato. Uma informação básica como essa raramente é segredo entre homens como nós.

— Excelente estratégia inicial, General. Elogio-o por isso.

— Elogia? — gritou Devereaux. — Que diabos ele está fazendo, marchando sobre Roma?

— Fizemos isso, Sam — disse The Hawk serenamente. — Lembra-se, filho?

— Nunca se refira a este assunto na minha presença, General Hawkins —insistiu Aaron friamente.

— Pensei que você soubesse.

— Acha que Samuel me contaria?

— Não, claro. Se o mandasse integrar um esquadrão camicaze, ele tiraria as velas do motor. Não tem estômago para isso.

— Então como eu poderia saber?

— O artilheiro irlandês descreveu sua incursão cirúrgica e secreta ao alojamento de Sam. Os artilheiros geralmente tentam impressionar o comando com suas contribuições.

— E então?

— Bem, você comentou que o sargento tinha amarrado o rapaz e, para mim, isso queria dizer que tinha dispensado o artilheiro antes de falar com Sam, o que admitiu.

— E?

— Por que amarrá-lo, a menos que ele estivesse histérico como agora? E por que um tão frio profissional de tribunal, uma faceta de Sam que nunca tive a oportunidade de apreciar, ficaria histérico, a não ser que essa incursão tivesse revelado algo a seu respeito, algo que ele não quisesse que ninguém, sobretudo você, soubesse?

— Baseado em certas premissas óbvias, seu raciocínio dedutivo é agudo.

— Isso e o que Sam não soube quando desligou o telefone na minha cara. Eu ouvi outra voz na linha, uma voz que não muito mais controlada que a de Sam; e quando nos encontramos no estacionamento, eu vi logo que só podia ser você, Comandante Pinkus. Você gritou muito naquela tarde. Especialmente sobre uma operação nossa que dizia respeito ao Vaticano.

— Chega de deduções apriorísticas — disse Aaron, encolhendo-se, derrotado.

— Parem com isso! — urrou Devereaux. — Estou aqui! Eu existo! Se me espetarem, eu não sangro...?

— Isso não é nada apropriado, Samuel.

— O que é inapropriado? Ouço uma dupla de refugiados da perversão prussiana! Meu futuro, minha carreira, minha própria vida, tudo está prestes a se estilhaçar em mil pedaços...

— Muito bonito, filho — interrompeu The Hawk. — Gostei da metáfora.

— Que ele roubou de um autor teatral francês chamado Anouilh — acrescentou o famoso advogado de Boston. — Samuel é uma caixinha de surpresas, General.

— Parem com isso! — gritou Devereaux. — Exijo ser ouvido!

— Que diabo, rapaz, podem ouvi-lo até em Washington, lá nos porões da G-Dois do Exército, onde guardam todos aqueles arquivos secretos.

— Tenho o direito de permanecer calado — resmungou Sam, baixinho, afundando de novo na cadeira, amuado.

— Então talvez eu possa quebrar o silêncio, já que você se restringiu a ele? — perguntou Pinkus.

— Mmmff — foi a resposta que se ouviu, dada com os lábios cerrados.

— Muito obrigado... O cerne da sua pergunta, Samuel, era sobre o material que me foi dado pelo General Hawkins. Reconheço que não houve tempo para lê-lo, mas após ter dado uma olhada com estes olhos acostumados a esse tipo de documento há quase cinquenta anos, digo-lhe que é inacreditável. Raramente li petição mais convincente. O historiador de leis que compilou isso teve paciência e imaginação para identificar as linhas suspensas ou interrompidas do debate legislativo, sabendo que teriam que existir registros adicionais com dados sobre as peças que faltavam. Se tudo isso puder ser sustentado, as conclusões seriam inquestionáveis, apoiadas por cópias dos documentos originais, autênticos! Onde sua fonte os encontrou, General?

— É apenas um boato, claro — respondeu o Hawk, franzindo as sobrancelhas de forma cômica —, mas ouvi dizer que esses documentos só podem ter sido desenterrados dos arquivos históricos secretos do Escritório de Relações com os Índios.

— Os arquivos secretos...? — Aaron Pinkus olhou severamente para o General, sentou-se rapidamente na cadeira e selecionou várias páginas, levando-as muito perto dos olhos, estudando-as, não para sua satisfação, mas para outra coisa. — Oh amado Deus de Abraão — murmurou —, conheço estas marcas d'água... foram reproduzidas por uma copiadora de extrema sensibilidade... uma máquina que incorpora a técnica mais avançada.

— Somente o melhor, Comandante — Hawkins deteve-se abruptamente; tornou-se logo evidente que lamentava ter feito tal afirmação. Dirigiu o olhar para Sam, que o encarava fixamente, e pigarreou. — Acho que esses intelectuais... esses acadêmicos... conseguem sempre o melhor equipamento.

— Quase nunca — contestou Devereaux, num tom monocórdico, baixo e acusador.

— Apesar disso, General — continuou Pinkus —, um bom número desses papéis... refiro-me aos que dizem respeito a documentos históricos, é na realidade reprodução dos fotóstatos originais, fotografias de fotografias.

— Perdão? — O Hawk começou a mutilar o charuto que tinha na sua boca.

— No tempo em que não havia copiadoras, quando não se podia simplesmente esticar um papel velho ou apodrecido, ou juntar diversos fragmentos e fazer incidir um feixe de luz sobre o conjunto, a fim de obter um fac-simile preciso, foram feitas fotografias e depois fotóstatos, para serem guardados nos arquivos, substituindo os originais que se desintegravam.

— Comandante, não estou realmente interessado nessas tolices técnicas.

— Pois deveria, General — interrompeu Aaron. — A sua fonte legal anônima pode muito bem ter descoberto uma conspiração antiga, mas sua descoberta pode ter sido baseada em provas roubadas dos arquivos secretos do Governo, onde há muito se encontravam depositadas, por razões do mais alto interesse nacional.

— O quê?? — murmurou o Hawk, meio atordoado, sabendo que Sam Devereaux o encarava fixamente.

— As marcas d'água destes fotóstatos de arquivo indicam que se trata de um raro papel com filamentos de aço, projetado para resistir aos maus tratos do tempo e às condições ambientais das casas-fortes. Na realidade, creio que Thomas Edison o inventou mais ou menos na virada do século e em 1910 ou 1911 foi determinada sua utilização no arquivo, de uma forma limitada.

— Utilização limitada...? — perguntou Devereaux hesitante, com os dentes cerrados, enquanto continuava a olhar fixamente para o Hawk.

— Tudo é relativo, Samuel. Naquele tempo, o déficit orçamental, quando havia, limitava-se a não mais do que algumas centenas de milhares de dólares e, mesmo assim, era um número capaz de congelar o Potomac. As páginas com filamentos de aço eram bem dispendiosas e converter milhares e milhares de documentos históricos a esse tipo de papel teria arruinado o Tesouro. Assim sendo, foi escolhido um número limitado.

— Limitado a que, Aaron?

Pinkus se virou para o general MacKenzie Hawkins, com atitude perigosamente parecida com a de um juiz lendo a sentença. — Aos documentos que, segundo determinação do Governo, deveriam permanecer secretos por um mínimo de cento e cinquenta anos.

— Com os diabos! — The Hawk assobiou baixinho, batendo na calça de pele de gamo enfeitada de contas. — Isso é uma mina de ouro! — acrescentou, olhando com benevolência para Sam. — Não se orgulha, filho, de ter sido a “influência espiritual”, como disse o grande comandante aqui, por trás desse grande projeto?

— Que porra de projeto? — perguntou Devereaux, paralisado — E que porra de influência espiritual?

— Bem, Sam, lembra de como costumava falar dos desvalidos do planeta e do pouco que se fazia para ajudá-los? Muita gente teria considerado aquele palavreado puro lixo de esquerda, mas eu não. Nunca. Quer dizer, respeitei realmente seu ponto de vista, filho, respeitei mesmo.

— Você nunca respeitou nada nem ninguém que não fosse capaz de te jogar numa sepultura!

— Não é verdade, rapaz, e você sabe disso — admoestou MacKenzie, sacudindo o dedo indicador para Devereaux. — Lembra-se de todas aquelas discussões que teve com as garotas? Cada uma das queridas senhoras me visitava depois e expressava seu genuíno respeito e afeição por você e suas filosóficas expressões de compaixão. Sobretudo Annie, que...

— Nunca mais mencione o nome dela comigo! — berrou Sam, cobrindo as orelhas com as mãos.

— Não sei por que, filho. Falo com ela frequentemente, em especial quando está numa daquelas situações difíceis em que se mete com tanta facilidade, e deixe que eu lhe diga uma coisa, Sam, ela gosta mesmo de você.

— Como pode gostar? — gritou Devereaux, trêmulo de raiva. — Ela se casou com Jesus, não comigo!

— Querido Deus de Abraão — entoou Pinkus. — Não faço parte deste colóquio.

— É arma de outro calibre, filho, se me permite a comparação... Mas ouça-me, rapaz, procurei um povo desvalido, um povo que tivesse sido terrivelmente prejudicado pelo sistema e concentrei todos os meus esforços na reparação. De alguma forma achei que você se sentiria orgulhoso de mim... Deus sabe como me esforcei. — The Hawk baixou a cabeça, enfiando o queixo na gola aberta do blusão de contas Wopotami, com o olhar tragicamente fixo no chão coberto de tapetes da suíte do hotel.

— Acabe com essa farsa, Mac! Não sei que diabos você fez ou tentou fazer, só sei que não quero saber!

— Talvez devesse, Sam.

— Só... um minuto — interrompeu Pinkus, com os olhos no contrito Hawk. — Acho que está na hora de recorrer ao meu exagerado saco de recursos legais e tirar de lá um estatuto específico, mesmo que raramente usado. A sanção para a invasão não autorizada de arquivos secretos do Governo é de trinta anos de prisão.

— Não me diga! — exclamou o general, com o olhar nos tapetes, como se quisesse encontrar algum desenho naquela cobertura toda azul.

— Digo sim, General. E já que esta informação não teve efeito visível, devo presumir, com muita alegria, que seu advogado teve plena autorização para estudar os documentos referidos na petição.

— Errado! — gritou Sam. — Ele roubou os documentos! É aquela confusão da G-Dois de novo! Essa coisa que se faz passar por um ser humano, esse erro militar absoluto, essa lenda da apropriação indevida fez de novo! Eu sei porque o conheço... conheço essa cara de menino indecente, de garoto canalha que faz xixi na cama e diz que choveu embaixo dos cobertores. Foi ele!

— Julgamentos sob o calor das emoções raramente são ponderados, Samuel — disse Pinkus, sacudindo criticamente a cabeça.

— À luz fria da observação objetiva por longo e doloroso período geralmente são irrefutáveis — retorquiu Devereaux. — Se os biscoitos são feitos de melado e o filho da mãe estiver com os dedos colados na botija pode ficar absolutamente certo de que foi ele o criminoso! Reincidência é uma expressão com a qual os tribunais criminais convivem há muitos anos.

— Muito bem, General — continuou Aaron, olhando para o Hawk por cima dos óculos. — A acusação parece ter levantado uma questão pertinente, já que relaciona as circunstâncias atuais a um ato anterior que você mesmo confirmou, o furto de arquivos de informações. Padrões de comportamento são uma prova limitada mas aceitável.

— Ora, Comandante Pinkus — começou MacKenzie, semicerrando os olhos e retorcendo os lábios em sinal de espanto —, toda essa verborreia jurídica faz minha cabeça rodar. Para dizer a verdade, não consigo entender metade do que diz.

— Mentiroso! — gritou Sam, dando subitamente início a uma cantilena infantil, como de criança. — Está chovendo embaixo dos cob-berrtorres, está chovendo embaixo dos cob-berrtorres...!

— Samuel, calado! — admoestou o velho advogado, a voz plena de autoridade, ao virar-se para o Hawk. — Acredito que possamos resolver isso com rapidez, General. A cortesia profissional impediu até agora que eu insistisse no nome do seu incrivelmente talentoso advogado e agora receio que deva fazê-lo. Como profissional, ele pode refutar a alegação do meu jovem sócio e esclarecer a questão.

— Não seria muito correto, Mr. Pinkus — disse Hawkins com expressão estoica —, que um comandante pedisse a outro para trair uma confidência. Esse tipo de coisa é para escalões mais baixos, onde a honra não é tão dominante e as colunas vertebrais não são de aço.

— Ora, vamos, General, que mal pode fazer? Certamente que essa petição, tão brilhantemente persuasiva como parece ser, pelo que li, ainda não foi testada. Deus sabe que sem a assinatura de um advogado responsável e na ausência de interpelação por parte do Governo, certamente ainda não foi submetida a nenhum tribunal — Aaron fez uma pausa, rindo baixinho. — Se tivesse sido, saberíamos, já que todo o sistema judicial e todo o Departamento de Defesa teriam parado, todo mundo lá gritando freneticamente. Como pode ver, General Hawkins, não há nada a perder ou a ganhar... — a expressão amável de Pinkus enregelou subitamente e, lenta e involuntariamente, desapareceu, à medida que seus olhos se arregalavam e seu rosto empalidecia. — Querido Deus de Abraão, por favor não me abandone — murmurou, fitando a expressão totalmente vazia de MacKenzie Hawkins. — Meu Deus, já foi submetida!

— Pode-se dizer que ela encontrou o caminho para o qual foi pensada.

— Certamente que não num tribunal legítimo.

— Mais uma vez, Comandante, pode encontrar aliados nessa avaliação.

— Foi num tribunal?

— Há quem diga que sim.

— Mas não saiu nada na mídia e, acredite, todos os órgãos da imprensa estariam se atropelando para divulgar uma notícia tão extraordinária como essa. É catastrófico!

— Pode ser que haja uma razão para isso.

— Que razão?

— Hyman Goldfarb.

— Hyman quê?

— Goldfarb.

— Acho que já ouvi falar, mas realmente não tenho a mais vaga...

— Foi jogador de futebol.

Em questão de alguns segundos, o rosto de Aaron Pinkus perdeu vinte anos.

— Está falando de Hurricane Hymie, o Furacão? O Hércules Hebreu...? Você o conhece mesmo, Mac? — quer dizer... General, claro.

— Se o conheço? Eu recrutei esse judeu vira-casaca.

— Recrutou?... Ele não só foi o maior meia da NFL, como também rompeu o estereótipo do, digamos, judeu excessivamente cauteloso. Era um leão da Judeia, o terror da defesa, o Moshe Dayan do futebol americano!

— E era também um vigarista.

— Poupe-me! Ele foi meu herói, um símbolo para todos nós, o gigante superinteligente que nos deixava cheios de orgulho... O que quer dizer com isso de ele ser vigarista?

— Bem, na verdade ele nunca foi acusado... andou perto, mas nunca houve uma acusação formal, mas também há razões para isso.

— Acusação, razões? Do que está falando?

— Ele trabalha muito... para ser exato, não oficialmente... para o Governo. Na realidade, eu como que o iniciei nessa atividade, para o Exército.

— Quer fazer o favor de explicar melhor, General?

— Resumindo, tivemos um problema de quebra de sigilo quanto às especificações de certas armas, problema esse que não pudemos resolver, muito embora soubéssemos de onde vinham os vazamentos. Encontrei acidentalmente Goldfarb, que montava um negócio de consultoria de segurança — um retrato dele de camiseta faria Godzilla correr apavorado — e disse-lhe para trabalhar no tal problema. Pode-se dizer que ele e suas tropas vão aonde o escritório do Inspetor Geral nem consegue chegar perto.

— General, o que Hyman Goldfarb tem a ver com o silêncio que se seguiu à apresentação da sua incrível petição, quando deveria ter havido um pandemônio?

— Bem, quando algo assim acontece em Washington, uma coisa leva à outra e acaba no Hurricane. O que quero dizer é que a reputação dele se espalhou como um incêndio de lança-chamas e, em menos de um piscar de olhos, todos na cidade queriam contratar seus serviços, sobretudo para usá-los um contra o outro. A lista de agências do Governo clientes dele é uma espécie de quem é quem e o que em torno do Potomac. Ele tem muitos amigos influentes que nem sequer admitiriam saber de sua existência, nem que arranquem seus pelos a alicate. Invalidar acusações é coisa muito fácil para ele... Foi nessa altura que eu me convenci de que podíamos estar perto de pagar a sujeira.

— Pagar a sujeira? — Aaron sacudiu a cabeça como se quisesse parar os címbalos dentro do crânio. — Posso pedir que esclareça?

— O pessoal dele foi atrás de mim, Comandante Pinkus. Foi uma emboscada para me capturar e silenciar. Consigo ler essa gente como um livro.

— Capturar... silenciar... um livro? Eles foram atrás de você?

— Depois que a petição dos Wopotami foi apresentada... muito tempo depois, o que só pode significar que a petição foi levada a sério, mas a notícia vem sendo encoberta. O falatório entraria numa espiral até a lua. O que fazem então? Contratam Hymie, o Furacão, para resolver seu problema. Busca, captura e destruição! Leio essa gente como um livro.

— Mas General, as primeiras instâncias do Poder Judiciário, com os seus precedentes legais e exigências e... — mais uma vez a expressão de Aaron Pinkus enregelou, enquanto as palavras diminuíam de intensidade, até ficarem praticamente inaudíveis. — Oh, meu Deus, não foi...? Não foi.

— Conhece as regras, Comandante. A ação contra o Estado tem acesso direto, dependendo apenas da validade da argumentação.

— Não... não, você não pode ter feito isso!

— Receio que tenha feito. Um pouco de persuasão externa sobre um par de sensíveis funcionários do Judiciário e tivemos acesso direto à grande banheira judicial.

— Que banheira? — berrou um Devereaux totalmente confuso. — Que diabo de maluquice esse degenerado moral tenta vender?

— Receio que ele já tenha convencido outra pessoa — disse Aaron, com a voz muito fraca. — Levou essa petição brilhantemente construída, baseada em material furtado dos arquivos secretos, diretamente à Suprema Corte.

— Você está brincando!

— Pelo bem de todos, quem me dera que estivesse — Pinkus reencontrou de repente a voz e a postura. — Agora, porém, podemos sondar as profundezas desta insanidade. Quem é o advogado oficial dos queixosos, General? Um simples telefonema revelará o nome.

— Não estou certo disso, Comandante.

— O quê?

— Só vim a saber hoje de manhã.

— Hoje de manhã...?

— Bem, é que este bravo guerreiro índio me informou mal... o que é diferente de desinformação... sobre a pequena questão de um exame da Ordem...

— Basta responder à pergunta, General. O advogado oficial, por favor!

— É ele — respondeu o Hawk, apontando Sam Devereaux.


9

Vincent Francis Assisi Mangecavallo, conhecido em certos círculos seletos como Vinnie Bam-Bam e também pelo nome-código Ragu, diretor da CIA, andava de um lado para o outro em seu escritório em Langley, Virginia, sentindo-se perplexo e frustrado. Não soube de nada! O que pode ter dado errado? O plano era tão simples, tão perfeito, tão irrefutável. A é igual a B, que é igual a C, e então A é igual a C, mas em algum ponto desta equação simples, Hyman Goldfarb e seu pessoal tinham perdido os seus mármores, e o próprio homem de Vincent, o melhor e mais inofensivo detetive no ramo, só tinha conseguido se perder! Pé Grande! O Abominável Homem das Neves! Que diabo estava acontecendo com o Furacão? Quem teria arrasado seu tão famoso cérebro? E onde estava aquele miserável vigarista que Vincent salvara de uma dívida não-tão-pequena-assim em Vegas, agora inscrito na respeitável folha de pagamentos do Governo, dizendo aos rapazes do cassino que perdessem os comprovantes da dívida do vigarista no interesse da segurança nacional? Tinha desaparecido, foi isso o que aconteceu. Mas por quê?

Little Joey — o Mortalha — ficara feliz de ter notícias do importante amigo dos velhos tempos, quando todos usavam Little Joey para seguir o rastro dos malandros desde as docas do Brooklyn até os clubes elegantes de Manhattan — e Joey era ótimo! Joey podia ficar em pé sozinho no meio do Yankee Stadium e ninguém notaria, mesmo com lotação esgotada. Ninguém nunca reparava em Little Joey, o Mortalha; ele se confundia com o papel da parede e desaparecia tão rapidamente como se estivesse no metrô, no meio da multidão. Insignificância total era um talento dele — até mesmo seu rosto era meio cinza, sem feições marcadas... E então, onde diabos ele se meteu? Sabia que estava muito melhor com seu velho amigo Vincent... afinal, a quadrilha de smoking dos casinos o procuraria de novo. Não fazia sentido, nada fazia sentido!

O telefone tocou, o telefone escondido na gaveta de baixo da escrivaninha do diretor. Mangecavallo correu a atender. Ele mesmo tinha instalado aquela linha, à noite, e com profissionais muito mais experientes do que os chamados peritos do departamento de comunicações clandestinas da Agência. Na verdade, ninguém do Governo tinha aquele número; o acesso era limitado a pessoas realmente importantes, gente que conseguia que as coisas acontecessem.

— Sim? — gritou o diretor da CIA.

— É Little Joey, Bam-Bam — disse a voz estridente ao telefone.

— Onde diabo andou? Trinta e seis horas, talvez um dia e meio sem notícias!

— Porque estive correndo de um maldito lugar para o outro para seguir um zuccone!

— Do que está falando?

— Além disso, me disse para não ligar para sua casa, e nem tenho o número, e disse claramente para não usar o quadro elétrico da espelunca do grande espião, certo?

— Sim, certo. E então?

— Então, entre aviões e funcionários apressados das companhias aéreas e taxistas prontos a cuspir na minha cara e um policial aposentado que uma vez me obrigou a fazer pequena investigação entre os smokings para encontrar uma certa limusine com uma placa engraçada, não tive nem um diabo de um momento livre!

— Está bem, está bem. Conte o que aconteceu. Conseguiu alguma coisa que eu possa usar?

— Se não puder, eu posso. Esse quebra-cabeça tem mais peças malucas do que uma salada de massa e claramente mais do que aqueles comprovantes de Vegas.

— Ei, Joey, eles são mais de doze mil!

— O que arranjei vale o dobro, Bam-Bam.

— Não use esse nome, sim? — disse Mangecavallo na defensiva. — Não combina com esse escritório de alta categoria.

— O.K., Vinnie. Talvez os dons não devessem ter mandado você à escola. Se perde a humildade, perde o respeito dos outros.

— Para com isso, Joey. Eu tomo conta de você, juro pela sepultura do meu pai.

— Seu papai está vivo, Vinnie. Eu o vi na semana passada no Caesar's. Está gastando horrores em Vegas, só que não é com sua mamãe.

— Basta... Ele não está em Lauderdale?

— Quer o número da suíte? Se uma puta atender não desligue.

— Já chega, Joey. Fale sério ou esses comprovantes chegarão a cinquenta mil já com a parte da casa e eu me livro de você, capisce? Vamos, o que aconteceu?

— Pronto, pronto, só estava experimentando a água, O.K., Vinnie?... O que aconteceu? Diga antes, o que não aconteceu?

Little Joey, o Mortalha, respirou fundo e começou.

— Como você pensava, Goldfarb mandou uma equipe a essa reserva de índios — soube ao reconhecer o cara atravessando o enorme portão falso da paliçada e vi-o depois passando por uma tenda maluca de Boas Vindas e a seguir diretamente para o balcão da comida. Eita, o que esse grandalhão come! Logo atrás dele estava esse gibrone esquelético que sempre assoa o nariz, mas embrulho no bolso do paletó dele não é Kleenex. Eu me misturei e ouvi os outros dois amigos dele, que falavam um inglês engraçado, fazendo perguntas sobre o tal Cabeça de Trovão... Então esperei, a uma boa distância, e os quatro cannolis — um dos quais é uma fulana — saem da espelunca dos souvenires e desatam a correr como o diabo, subindo até uma estrada de terra, e cada um segue por um caminho diferente.

— Caminho? — interrompeu Mangecavallo. — Mais piso de terra?

— Juro, Bam-Bam... desculpe, Vincenzo, terra e arbustos e árvores, uma floresta normal, entende?

— Com os diabos, é uma reserva, acho...

— Então eu esperei, esperei, esperei — continuou Little Joey sem parar.

— E eu também estou esperando, Joey! — interrompeu o diretor.

— Está bem, está bem. Finalmente, o chefe índio sai da mata correndo... eu acho que ele deve ser o tal chefe que te interessa, o Cabeça de Trovão, pois usa um varal de roupa cheio de penas, da cabeça ao rabo —, percorre a estrada de terra, vira à direita até chegar a uma tenda grande e de aparência engraçada e entra. Foi então que eu vi o que vou contar agora, Vinnie, não pude acreditar no que meus olhos viam! O chefe índio sai minutos depois, só que já não é o mesmo cara.

— O que você anda fumando, Little Joey?

— Não, é sério, Vin. É o mesmo cara, mas não parece o mesmo cara! Parece agora um contador de quatro olhos vestido com um terno comum, usando óculos e o diabo de uma peruca ridícula que não gruda bem na cabeça, carregando uma grande mala... Bem, naturalmente, a mala me diz que ele está deixando a reserva e seu olhar me diz que ele já não quer ser índio.

— Essa história vai demorar muito, Little Joey? — perguntou Mangecavallo lamuriosamente. — Vá direto ao que interessa.

— Você quer o valor da dívida no cassino e eu quero provar que o que tenho vale mais, O.K.? Mas vou passar diretamente ao aeroporto de Omaha. Eu o segui e ele comprou passagem no primeiro avião para Boston. Fiz a mesma coisa. No entanto, e isso é importante, Bam-Bam, enquanto estou no balcão, mostro à mocinha um dos meus falsos distintivos federais e digo que o Governo está interessado no grandalhão da peruca ridícula. Acho que foi por causa da peruca, mas o fato é que a fulana foi tão prestativa que tive que explicar que era tudo secreto e ela não devia telefonar para ninguém. Consegui o nome no cartão de crédito do grandalhão...

— Diga, Joey! — exclamou o diretor da CIA, pegando um lápis.

— Claro, Vin. É M, a minúsculo, c minúsculo, K maiúsculo ponto, Hawkins, G-e-n ponto, depois USA e R grande, depois e e t. Anotei tudo, mas não sei o que significa.

— Significa que ele se chama “qualquer coisa” Hawkins e é um general aposentado... Caramba, um general!

— Ainda há mais, Vinnie, e é melhor ouvir...

— Tenho que ouvir! Vamos, continue.

— Então eu continuo seguindo os passos dele em Boston e tudo fica maluco. No aeroporto, ele entra no banheiro dos homens e encontra uma dupla de hispânicos usando uniformes que eu nunca tinha visto antes. Os três saem e vão para o estacionamento, entram num Oldsmobile com placa de Ohio ou Indiana. Rapidamente, ponho cinquenta na mão de um taxista de folga e digo-lhe para seguir colado o Olds e então as coisas ficam ainda mais malucas!... Esse chefe índio que agora parece contador leva seus dois feijões queimados ao diabo de uma barbearia e depois, palavra de honra, Bam-Bam, eles levam o carro até o rio, onde o lasagna gigante faz seus dois enchiladas marcharem pelo gramado como um par de marionetti, enquanto berra com eles. Digo uma coisa, foi muito estranho!

— Talvez esse general aposentado seja um Seção Oito; pode acontecer, sabe disso.

— Do tipo de levar um chute por confundir tanques com dirigíveis e fazer continência para caminhões?

— Temos casos assim todo dia. Como alguns dos nossos don... às vezes, quanto maiores as armas, mais desleixados eles ficam. Lembra do Gordo Salerno, do Brooklyn?

— Ora se lembro! Queria fazer do orégano a flor típica do Estado de Nova York. Entrou na assembleia legislativa de Albany berrando a plenos pulmões contra a discriminação.

— Era exatamente nisso que eu estava pensando, Little Joey. Porque se esse general reformado M maiúsculo, a minúsculo, c minúsculo Hawkins for o Chefe Cabeça de Trovão, no que concordo, vamos arranjar um outro Gordo Salerno para berrar em Washington contra a discriminação.

— Ele é italiano, Vinnie?

— Não, Joey, nem sequer é índio. E depois, o que aconteceu?

— Depois o lasagna gigante e os seus dois enchiladas entraram de novo no Olds — foi quando tive que molhar a mão do meu taxista de folga com outra nota de cinquenta — e foram para uma rua movimentada no centro da cidade e ficaram lá parados. Não os dois queimados; esses saltam, param numa loja e entram num prédio grande, mas o chefe índio-maluco-que-agora-é-contador fica sentado no carro. Aí tive que besuntar a mão do meu maldito taxista de folga com duas notas de cinquenta, porque ele diz que a mulher vai bater nele com uma frigideira se não for para casa, e achei que tinha uma certa razão... Passou-se mais de uma hora até uma limusine enorme aparecer e parar em frente ao tal prédio grande. Três caras entram nela e são seguidos pelos dois enchiladas, que vão diretos para o Olds que segue a limusine. Nessa hora, perdi os dois carros.

— Perdeu...? O que está dizendo, Joey?

— Não se preocupe, Bam-Bam...

— Por favor!

— Desculpe. Vincent Francis Assisi.

— Esquece isso também!

— Está bem, está bem, desculpe de todo o coração.

— Seu coração vai parar de bater se não me contar logo por que não devo me preocupar!

— Perdi os zuccones no tráfego, mas não antes de anotar a placa dessa limusine azul-escura e, ao mesmo tempo, pode acreditar, lembrei o nome do policial de Boston que me prendeu vinte anos atrás e que deve estar agora com quase setenta anos e, se Deus quisesse, podia estar vivo como eu, já que éramos quase da mesma idade.

— Odeio histórias compridas, Little Joey!

— Está bem, está bem. Então fui até a casa dele, que não era grande coisa após tantos anos de serviço público, e brindamos uma ou duas vezes aos bons velhos tempos.

— Joey, está me deixando maluco!

— O.K., O.K.. Implorei a ele pusesse seus contatos para trabalhar, e dei-lhe cinco notas de cem, para descobrir quem era o dono da limusine com a placa engraçada e onde tinha ido quando foi seguida pelo Olds e até mesmo, quem sabe, onde estaria nessa altura... Acredita que ele respondeu à primeira pergunta como se estivesse num intervalo entre dois uísques?

— Joey, não aguento!

— Calma, calma, Bam-Bam. Imediatamente ele diz que a limusine pertence a um dos maiores advogados de Boston, Massachusetts, um judeu chamado Pinkus, Aaron Pinkus, muito respeitado pelo peixe miúdo e pelo graúdo, pelos homens das leis e pelos fora delas. O homem é imaculado, Deus me perdoe, mas é verdade, Vinnie.

— É um safado espertalhão, é o que ele é! O que mais o policial disse?

— Que uns vinte minutos atrás a limusine tinha estacionado em frente ao Hotel Four Seasons, na rua Boylston.

— E o Olds e o falso chefe índio? Onde diabos ele se meteu?

— Não sabemos do Olds, Vinnie, mas meu investigador descobriu o nome na placa e você não vai acreditar, é irreal!

— Experimente.

— Pertence ao Vice-Presidente!


— Magdalene? — berrou o Vice-Presidente dos Estados Unidos em seu escritório, batendo violentamente o telefone. — Onde está nosso maldito Oldsmobile?

— Em casa, querido — respondeu da sala de estar a voz melodiosa da Segunda Dama.

— Tem certeza, minha pombinha?

— Claro, minha costeletinha de cordeiro. Ainda no outro dia a empregada telefonou dizendo que o ajudante de jardineiro teve problemas com ele na estrada. Pura e simplesmente parou e depois não queria pegar.

— Meu Deus, e ele o deixou lá?

— Claro que não, covinhas. O cozinheiro ligou para a garagem e o rebocaram. Por quê?

— Esse homem horrível da CIA, o tal que tem um nome que não consigo pronunciar, acaba de me telefonar dizendo que o carro foi visto em Boston dirigido por criminosos de alto calibre e quer saber quando emprestei nosso carro. Podemos ter problemas com nossa imagem...

— Deve estar brincando! — gritou a Segunda Dama, irrompendo no escritório do marido, os cabelos enrolados em bobs cor-de-rosa.

— Algum filho da puta deve ter roubado a merda do carro! — berrou o Vice-Presidente.

— Tem certeza de que não o emprestou a algum desses teus falsos amiguinhos, seu bobão?

— Claro que não! Só a escória dos seus amigos é que o pediriam emprestado, sua vaca!


— Recriminações histéricas não nos levarão a parte alguma — afirmou um enfático mas trêmulo Aaron Pinkus, no momento em que MacKenzie Hawkins se jogava em cima de Sam Devereaux, forçando-o, com os joelhos, a deitar no chão, enquanto alguma cinza de charuto caía ocasionalmente no rosto contorcido de Sam. — Sugiro que todos nós nos acalmemos um pouco, e procuremos compreender a posição em que cada um se encontra.

— Que tal um pelotão de fuzilamento após o cancelamento da minha inscrição na Ordem dos Advogados? — perguntou Devereaux, sufocado.

— Ora, vamos, Sam — disse o Hawk, com uma voz tranquilizadora. — Eles já não fazem isso. A maldita televisão estragou tudo.

— Ah, esqueci! Você já tinha explicado antes, relações públicas, lembro-me agora. Deixou bem claro que havia outros meios, como expedições de pesca de tubarão para três, voltando apenas dois, ou caçadas de patos num lugar escondido, e de repente aparece uma dúzia de cascavéis, quando ninguém sabia que havia cobras ali. Muito obrigado, seu verme psicótico!

— Eu só estava tentando mantê-lo na linha para seu próprio bem, porque me importava com você. Como Annie, ainda hoje.

— Eu já disse, nunca mencione esse nome perto de mim!

— Você realmente é de difícil compreensão, rapaz.

— Se me permite, General — interrompeu Pinkus de trás da escrivaninha —, no momento, ele precisa de um esclarecimento das circunstâncias e tem direito a isso.

— Acha que ele aguenta, Comandante?

— Acho que o melhor que ele pode fazer é tentar. Quer tentar, Samuel, ou prefere que eu telefone para Shirley e explique que não estamos na exposição de pintura porque você se apropriou da limusine dela, encheu-a de exuberantes velhinhos gregos e me obrigou, como seu patrão, a ajudá-lo a resolver suas dificuldades pessoais... as quais, por extensão, não são legalmente inseparáveis das minhas?

— Prefiro enfrentar um pelotão de fuzilamento, Aaron.

— Sábia decisão. Eu também preferiria. Compreendo que Paddy tenha que mandar as cortinas de veludo para a lavanderia... Deixe que ele se levante, General e que se sente aqui na minha cadeira.

— Agora comporte-se, Sam — disse Hawkins, pondo-se em pé cautelosamente. — Não se ganha nada com a violência.

— Esta é uma contradição fundamental com toda a sua existência, Sr. Exterminador. — Devereaux levantou e mancou em torno da escrivaninha quando Pinkus indicou sua cadeira com um gesto. Sam sentou-se com um baque retumbante, fitando o seu patrão.

— O que estou vendo e o que devo esperar, Aaron? — perguntou ele.

— Vou lhe dar uma visão geral — respondeu Pinkus, atravessando a sala até o bar espelhado que ficava num nicho da parede da suíte do hotel. — Vou-lhe dar também um brandy decente com trinta anos, um luxo que a sua adorável mãe e eu temos em comum, pois você precisará dos efeitos de um sedativo brando, como aconteceu conosco antes de explorarmos o seu “refúgio do château”. Posso inclusive dar-lhe uma dose muito generosa, já que não alteraria, com certeza, a sobriedade da sua mente de advogado, que terá de se confrontar com o que vai ler. — Aaron encheu um copo de cristal com o conhaque castanho de um tom intenso, levou-o para a mesa e colocou-o à frente do seu empregado. — Você vai ler o inacreditável e depois de o fazer, vai ter de tomar a decisão mais importante da sua vida. E que me perdoe o Deus de Abraão — do mesmo Abraão que eu sinceramente acredito ter-me supinamente lixado —, mas eu também terei de tomar uma grave decisão.

— Pare com essa conversa metafísica, Aaron. O que eu devo esperar? Qual é a sua visão geral?

— Numa palavra, meu jovem amigo, o Governo dos Estados Unidos roubou as terras dos Wopotamis através de uma série de maquinações, que se traduziram no fato de se terem formalizado algumas promessas em tratados e, subsequentemente, se ter entendido que tais tratados nunca existiram, quando estes se encontram enterrados nos arquivos secretos do Gabinete das Relações com os índios, em Washington.

— Quem são esses diabos de Wopotamis?

— Uma tribo índia cujos territórios se estendiam, para o norte, ao longo do rio Missouri, incluindo todas as terras compreendidas na trajetória de mil flechas, até o que é agora o Forte Calhoun, depois para oeste, seguindo o Platte até Cedar Bluffs, para o sul, até Weeping Water e, para leste, até a cidade de Red Oak, no Estado de Iowa.

— Qual é o espanto? Os bens imobiliários históricos tiveram seu valor compensado na moeda da época, segundo decisão da Suprema Corte em... acho que em 1912 ou 1913.

— Sua memória fotográfica é, como sempre, extraordinária, Sam, mas está esquecendo uma coisa.

— Nunca esqueço nada! Sou perfeito... em termos legais, bem entendido.

— Está se referindo aos tratados que constam dos registros.

— E havia outro tipo?

— Os que foram escondidos, Sam... Como os que estão agora na sua frente. Leia, meu jovem amigo, e dê-me sua astuta opinião jurídica em uma hora, mais ou menos. Nesse ínterim, beba o conhaque parcimoniosamente — seu instinto pode levá-lo a beber em longos tragos, mas não, vá aos poucos... Há blocos e lápis na gaveta superior direita e a petição começa na pilha de documentos à esquerda, anotada em ordem alfabética nas pilhas sucessivamente dispostas sobre a mesa. Certamente você vai querer tomar notas. — Aaron virou-se para o Hawk. — General, acho que seria uma boa ideia se deixássemos Sam sozinho. Sinto que ele perde a concentração sempre que olha para você.

— Deve ser por causa do traje tribal.

— Estou certo de que há uma ligação. E, falando de sua aparência, o que me diz se Paddy... o Sargento Lafferty... nos levar a um pequeno restaurante que costumo frequentar quando não quero encontrar gente conhecida que me faça perguntas?

— Espere, comandante Pinkus. E o Sam aqui? Ele teve um dia difícil no campo e deve ter um exército em luta no estômago, você sabe...

— Nosso jovem amigo é extremamente adepto do serviço de quarto, general. Seus comprovantes de despesas confirmam... No entanto, no momento, ele parece imune à fome.

Com a boca escancarada e os olhos arregalados, Devereaux inclinou-se para as páginas iniciais do arquivo, um lápis na mão sobre um bloco de anotações amarelo. Ele deixou cair o lápis e sussurrou: — Nenhum de nós sobreviverá. Eles não podem nos deixar viver.


A mais de quatro mil e oitocentos quilômetros para oeste e ligeiramente ao norte de Boston, Massachusetts, situa-se a venerável cidade de San Francisco da Califórnia e não é surpresa descobrir que as estatísticas indicam que a maioria dos habitantes da Costa Leste que emigraram para a Bay City é de antigos residentes de Boston. Alguns demógrafos alegam que foi seu porto glorioso, tão reminiscente das caravelas de altos mastros, que atraiu os refugiados da Nova Inglaterra; outros falam da atmosfera acadêmica muito intensa, representada pelos numerosos campos universitários e a proliferação de cafés propícios ao debate; outros ainda insistem, a atração reside na tolerância progressista e frequentemente obsessiva de estilos de vida diferentes, que estimula o espírito de contradição típico da mentalidade de Boston, pois não é com deliciosa frequência que seus eleitores costumam contrariar a onda nacional? Seja como for — ou talvez se devesse dizer, como muitos apresentadores de programas de entrevistas, não seja como for —, esta estatística pouco tem a ver com nossa história, a não ser pelo fato de que a pessoa que estamos prestes a conhecer se formou, como Samuel Lansing Devereaux, na Faculdade de Direito de Harvard.

Na verdade, ela poderia ter conhecido Devereaux alguns anos antes, quando a sociedade Aaron Pinkus e Associados se interessou intensamente por ela e procurou ativamente despertar seu interesse pela firma. Feliz ou infelizmente, ela buscava outros ambientes, já que estava mais farta de sua posição de integrante de uma minoria que pura e simplesmente deixava perplexos tanto os profissionais quanto os acadêmicos de Boston. Ela não era negra nem judia, nem oriental nem hispânica e tão pouco tinha raízes mediterrâneas, ou raízes ancestrais nas terras dos mares de Bengala ou Arábico — de onde, presumivelmente, provinham as minorias legítimas do cadinho radical de Boston. Não havia clubes ou sociedades, nenhuma organização fundada com o objetivo de abraçar a causa da minoria a que ela pertencia, pois... bem, na realidade, ninguém pensava neles como um grupo preocupado com sua ascensão social, o que constituía, claro, a chave para se ter expressão pública. Eles apenas viviam, segundo seu ideal, fosse qual fosse.

Ela era uma índia americana.

Seu nome era Jennifer Redwing,1 tendo “Jennifer“ substituído “Sunrise”,2 nome que, segundo seu tio, Chefe Olhos de Águia, lhe foi dado quando emergiu do útero da mãe com os primeiros raios do sol da manhã, no Hospital da Comunidade de Midlands de Omaha. Em seus anos de formação, tornou-se evidente que ela — e mais tarde o seu irmão mais novo — estavam entre os mais dotados dos filhos da tribo dos Wopotamis, de modo que o Conselho dos Anciãos reuniu os fundos necessários para lhes assegurar oportunidades educacionais. E uma vez que Jennifer tinha aproveitado ao máximo essas ofertas, não poderia esperar pelo regresso ao oeste — pelo contrário, queria afastar-se o mais possível do oeste e ir para onde as pessoas não pensassem nas índias como mulheres que usam saris e têm pontinhos vermelhos na testa.

No entanto, a sua migração para San Francisco tinha sido mais um acidente do que um plano. Ela voltara para Omaha, passara no exame da Ordem dos Advogados de Nebraska e fora contratada por uma sociedade de prestígio, quando ocorreu o acidente.

Um cliente da sua sociedade, que era um famoso fotógrafo da vida selvagem, tinha sido encarregado pela National Geographic de percorrer uma reserva de índios moderna e fazer um ensaio fotográfico sobre a sua fauna contemporânea. As suas fotografias seriam justapostas às gravuras do passado, visando, evidentemente, mostrar a dizimação do reino animal, como tinha sido conhecido pelos habitantes originais do país. O fotógrafo era um profissional experiente, apesar de um tanto libidinoso, e sabia reconhecer uma missão secundária quando ela lhe era apresentada. Quem é que quereria ver um mundo moribundo, comparado com as gravuras romantizadas de planícies férteis e florestas, o paraíso dos caçadores? Por outro lado, talvez com um pouco de imaginação as coisas pudessem tomar outro rumo — quem sabe, com um autêntico guia índio em todas as fotografias... digamos, com uma guia em várias fotografias casuais, inclinando-se assim e assado... digamos, com Red... Redwing, essa advogada estonteante, cujo escritório ficava perto do de seu próprio advogado e pela qual o fotógrafo tinha, sem dúvida, uma certa queda.

— Ei, Red — começou o fotógrafo, numa manhã, enfiando a cabeça no escritório da advogada e tratando-a pelo apelido usado pelos colegas de trabalho, que derivava naturalmente do sobrenome, e não do reluzente cabelo escuro. — Gostaria de ganhar duzentos dólares?

— Se estiver sugerindo o que estou pensando, aconselho-o a ir aos Doogies — foi a resposta glacial.

— Ei, entendeu mal.

— Não se levar em consideração os testemunhos aqui neste escritório.

— Palavra de honra...

— Não conseguiu acertar a primeira bola.

— Não, palavra, é uma encomenda legítima da Geographic.

— Eles mostram africanos nus, mas não me lembro de ter visto brancas nuas, e olhe que eu tenho feito check-ups médicos e dentários com regularidade, por isso conheço bem essa publicação.

— Não é nada disso, senhora. Estou procurando apenas um guia pictórico para um ensaio baseado em circunstâncias adversas das reservas indígenas. Uma advogada formada em Harvard, que, por acaso, é de uma tribo indígena, poderia fazer a diferença entre interesse pelo assunto e o mero folhear da revista.

— É?

E assim as fotos foram tiradas e apesar de Red Redwing ser uma jovem advogada extremamente promissora, era também extremamente ingênua no mundo da fotografia profissional. No seu ardente desejo de ajudar seu povo, consentiu na seleção de roupas feita pelo fotógrafo, recusando-se apenas a posar de biquíni enquanto segurava uma truta anã, não tendo pensado em exigir que as fotos destinadas a publicação tivessem sua aprovação. Houve apenas um senão: ela surpreendeu o fotógrafo clicando quando estava debruçada sobre a carcaça de um esquilo, numa pose que certamente mostraria mais seus seios generosos do que uma advogada séria permitiria, e deu um soco violento na boca do homem. O que se seguiu a enervou, a ponto de declarar encerrada a sessão. Com os lábios sangrando, o fotógrafo caiu de joelhos, gritando:

— Acabou, querida, mas por favor, por favor, faça isso de novo!

O artigo foi publicado e o departamento de assinaturas da National Geographic foi inundado por uma vaga de novos pedidos. O artigo foi também analisado por um tal Daniel Springtree, meio índio navajo e sócio majoritário de Springtree, Basl & Karpas, firma de advogados de considerável importância em San Francisco. Ele telefonou para Jennifer Red Redwing, em Omaha, e apresentou seu caso, relacionado com a culpa que sentia por não ter feito o bastante pelo lado paterno da família. O jato Rockwell da firma foi enviado a Omaha para trazer Redwing para uma entrevista em San Francisco e, quando Red viu que Springtree tinha setenta e quatro anos e ainda estava apaixonado pela mulher com quem se casara cinquenta anos antes, sentiu que estava na hora de deixar o Nebraska. Na firma de Omaha ficaram furiosos, mas nada se pôde fazer; desde a publicação do artigo na National Geographic, sua lista de clientes triplicara.

Nessa manhã, a sócia minoritária Redwing, da sociedade Springtree, Basl & Karpas, que muitos acreditavam não tardar a mudar o nome para Basl, Karpas & Redwing, tinha a cabeça assoberbada por questões jurídicas que a mantinham a anos-luz de distância das preocupações tribais. Até que tocou o interfone e a sua secretária anunciou:

— Seu irmão na linha.

— Charlie?

— Isso mesmo. Diz que é urgente e acho que está falando sério. Nem sequer perdeu tempo me dizendo que, pelo tom da minha voz, eu devia ser bonita.

— Meu Deus, não tenho notícias dele há semanas...

— Meses, Miss Red. Gosto das legações dele. É simpático comigo. Ele é tão bonito quanto você? Ou seja, é caraterística da família?

— Tire meia hora extra para o almoço e deixe-me falar com meu irmão — Redwing atendeu. — Charlie, querido, como vai? Não tenho notícias há... meses.

— Tenho andado ocupado.

— O estágio? Como vai?

— Acabou. Está terminado.

— Que bom.

— Na realidade, passei algum tempo em Washington.

— Melhor ainda — exclamou a irmã.

— Não, não é. É pior... é o pior.

— Por que, Charlie? Uma boa sociedade na capital seria ótimo... Sei que não deveria dizer isso, mas vai saber logo. Recebi um telefonema de um velho amigo da Ordem dos Advogados de Nebraska e não só você passou no exame, irmãozinho, como ficou entre os primeiros lugares. Que tal, grande gênio?

— Não me interessa, mana, nada mais me interessa. Quando eu disse que acabou, que estava tudo terminado, estava me referindo ao meu sonho de um dia fazer carreira como advogado. Estou destruído.

— Do que está falando?... Ah, seu problema é dinheiro?

— Não.

— Uma garota?

— Não, um cara. Um homem.

— Charlie, eu nunca suspeitei!

— Pelo amor de Deus, não é isso.

— Então é o quê?

— É melhor almoçarmos juntos, mana.

— Em Washington?

— Não, aqui. Estou na entrada do prédio. Preferi não subir... quanto menos for vista comigo, melhor para você... Primeiro vou para o Havaí, trabalho nos navios e talvez consiga chegar à Samoa Americana, onde, com alguma sorte, não recebem muitas notícias.

— Fique exatamente onde está, cabeça de vento! A mana mais velha vai descer e é bem possível que te dê umas boas palmadas!


Uma atônita Jennifer Redwing encarou o irmão, sentado na sua frente. Estava sem fala, e Charlie lutou para quebrar o silêncio.

— Que tempo bom aqui em San Francisco...

— Está chovendo torrencialmente, idiota... Charlie, por que não ligou para mim antes de se envolver com esse lunático?

— Pensei em ligar, Jenny, juro, mas sei como você vive ocupada e, no início, tudo parecia uma grande brincadeira e estávamos todos nos divertindo, o palhaço gastava muito dinheiro e ninguém ia sair ferido... talvez um pouco queimado aqui e ali, mas não ferido, até que, de repente, deixou de ser uma brincadeira e eu estava em Washington.

— Perante a Suprema Corte de Justiça sob falsa representação, só isso! — interrompeu a irmã mais velha.

— Era só para fazer de conta, Jenny. Na verdade, não fiz nada... exceto falar com dois juízes, numa base muito informal.

— Encontrou...

— Muito casualmente, mana, eles nunca mais se lembrarão de mim.

— Como e por que não?

— Hawkins disse para de vez em quando eu dar uma volta pelo saguão com um blusão tribal e calça de pele de gamo... posso garantir que me senti um verdadeiro idiota, e um dia o enorme juiz negro apareceu, apertou minha mão e disse: “Sei de onde você vem, rapaz”, e, uma semana depois, o italiano me encontrou num corredor, pôs o braço no meu ombro e disse, com ar meio triste: “Nós que viemos do outro lado do oceano não fomos mais bem tratados do que vocês.”

— Oh, meu Deus...! — murmurou Red Redwing.

— Estava realmente lotado de gente, mana — acrescentou o irmão, falando muito depressa. — Muitos turistas e advogados, verdadeiras multidões.

— Charlie, sou uma profissional experiente. Já defendi causas perante o Supremo e você sabe disso. Por que não pegou um telefone e me ligou?

— Acho que, em parte, porque sabia que ficaria preocupada remoendo o assunto, mas o verdadeiro motivo foi imaginar que podia convencer Mac, o Palhaço, a desistir de tudo. Expliquei-lhe que era uma causa perdida devido a minha situação, que aniquilaria qualquer possível tendência favorável à petição, perspectiva tão improvável como a de eu entrar num rodeio. Minha ideia era apresentar imediatamente um pedido de desistência com base em descobertas subsequentes, apagando o quadro-negro... Aprendi isso enquanto vagueava por aqueles venerandos corredores, como o garoto deficiente mental da Minnie HaHa. Eles arquivam um caso mais depressa do que o tio Olhos de Águia consegue disparar, mesmo pelo menor pretexto.

— O que Hawkins disse da sua sugestão?

— Esse é o problema. Nunca tive oportunidade para enunciá-la por inteiro. Ele não ouvia, só gritava e quando finalmente devolveu minha roupa, a roupa para a qual você me mandou dinheiro quando eu estagiava...

— Sua roupa?

— Isso já é outra história. De qualquer forma, fiquei tão contente por ter minha roupa de volta que simplesmente desatei a correr. Pensei em procurá-lo mais tarde, de manhã por exemplo, e tentar convencê-lo.

— E fez isso?

— Ele já tinha ido embora. Desapareceu. Johnny Calfnose,3 lembra do Johnny...?

— Ainda me deve o dinheiro da fiança.

— Bem, Johnny era uma espécie de assessor especial do Mac para assuntos de segurança e disse que Hawkins partiu para Boston, mas deixando bem claro que, se houvesse telefonemas ou correspondência de Washington, Johnny deveria avisá-lo imediatamente ligando para um número de Weston, Massachusetts, nos arredores de Boston.

— Sei onde é. Passei alguns anos em Cambridge, lembra? E então, ligou?

— Tentei. Quatro vezes, e de cada vez o que consegui foram pequenas variações dos gritos histéricos da mesma mulher, juntamente com acusações incoerentes que, penso, se referiam ao Papa ou a um Papa.

— Não é caso raro. Boston é predominantemente católica e, em tempos de tensão, as pessoas religiosas buscam o consolo da Igreja. Não houve mais nada?

— Não. Após o último telefonema, sempre que eu tentava de novo, tudo o que conseguia era um sinal de ocupado, o que me fez concluir que a tal louca tinha tirado o fone do gancho.

— Significa também que Hawkins está em Boston... Tem o número?

— Sei de cor — recitou-o e suspirou. — Estou perdido.

— Ainda não, Charlie — disse Jennifer, com um olhar feroz para o irmão. — Tenho um legítimo interesse, nada negligenciável, na sua situação. Sou sua irmã e advogada, e, independentemente do que diz a lei, há muita culpa por associação nessa história. Além disso, você é um garoto legal e, Deus me ajude, gosto muito de você — fez um sinal para o garçom, que se aproximou imediatamente. — Traga-me um telefone, por favor, Mario.

— Claro, Miss Redwing. Vou pegar no reservado aqui ao lado.

— Só vai me ver de novo daqui a muitos anos — começou o irmão. — Assim que eu chegar a Honolulu ou às Fiji, arranjo trabalho nos navios e...

— Cale-se, Charlie — disse Jennifer, ao mesmo tempo em que Mario ligava o telefone à tomada e o entregava. Jennifer discou e, segundos depois, estava falando: — Peggy, sou eu, pode tirar duas horas para o almoço se fizer o que vou pedir agora. Primeiro, descubra o nome e o endereço da pessoa que tem este telefone; fica em Weston, Massachusetts — recitou o número que Charlie tinha escrito num guardanapo. — Depois reserve um lugar para mim num voo de fim de tarde para Boston... sim, eu disse Boston, não, não vou trabalhar amanhã e antecipando sua próxima pergunta, não mandarei meu irmão para me substituir, pois você o corromperia... Peg, faça também uma reserva num hotel. Tente o Four Seasons, acho que é na rua Boylston, a festa da nossa Law Review foi lá.

— Jenny, o que está fazendo? — exclamou Charlie Redwing quando a irmã desligou o telefone.

— Acho que é óbvio. Vou pegar um avião para Boston e você não saia do meu apartamento, vai se comportar bem e ficar junto ao telefone. Sua única alternativa é eu conseguir que seja preso por fraude e não pagamento de dívidas vencidas. Posso também chamar um cliente e amigo íntimo para tomar conta de você. Para ser franca, acho que a cadeia seria preferível; meu amigo é atacante dos 49ers.

— Recuso-me a dar importância a ameaças terroristas e repito: que diabo acha que está fazendo?

— Vou descobrir esse lunático do Hawkins e detê-lo. Não é só por você, Charlie, ou por mim, como sua irmã, mas pelo nosso povo.

— Eu sei. Seríamos motivo de riso em todas as reservas, falei com Mac sobre isso.

— Muito pior, irmãozinho, muito pior. Tudo o que me contou se resume a uma irredutível catástrofe. A Base Aérea de Offutt, todo o quartel-general do Comando Aéreo Estratégico, ficam bem no centro do grande desígnio desse general lunático. Por mais insensato que pareça, e inquestionavelmente é, acha que esses golias ficarão sentados e quietos em Washington, por um minuto que seja, sabendo da possibilidade de uma interferência dessas no Comando Aéreo Estratégico?

— O que eles podem fazer a não ser rir fora do tribunal ou não dar a mínima atenção e me fritar por falsa representação? Isto é, o que podem mais fazer?

— Novas leis, Charlie, leis que efetivamente destruam a tribo. Para começar, poderiam expropriar a terra que temos e dispersar seus habitantes. Que diabo, isso aconteceu em favor de autoestradas e mesmo de estradas secundárias e pontes sobre pântanos, por parte de políticos endividados. O que não fariam pelos orçamentos ilimitados do Comando Aéreo Estratégico?

— Dispersar...? — perguntou Charlie de mansinho.

— Mandar nosso povo viver em casas cheias de ratos e apartamentos minúsculos, o mais longe possível uns dos outros — respondeu Jennifer, sacudindo a cabeça. — O que temos, o que eles têm, não é nenhum Jardim do Éden, mas é deles. Muitos viveram lá a vida inteira e muitas dessas vidas atingem os setenta ou oitenta anos. São as histórias humanas atrás das frias estatísticas do Governo, que supostamente justificam os interesses nacionais.

— Washington seria capaz de fazer isso?

— Num abrir e fechar de olhos, numa doação de campanha; é lenda. Estradas secundárias e pontes sobre pântanos são gota d'água no oceano dos contribuintes, mas a generosidade do governo com os interesses do Comando Aéreo Estratégico é um grande lago.

— Insisto, mana, o que pode realmente fazer em Boston?

— Acabar com um general aposentado, irmãozinho, e todos os outros que estiverem com ele.

— Como?

— Saberei melhor quando o conhecer, mas suspeito que será uma coisa tão ultrajante como as loucuras deles... Pense numa conspiração montada pelos inimigos da democracia para fazer com que o honrado gigante caia de joelhos e para destruir a capacidade de ação da nossa adorada América em todo o mundo. Depois entrelace terrorismo legal com correntes racistas ocultas, através de depoimentos falsos que permitem atribuir a autoria da cabala a árabes fanáticos e israelenses ressentidos, ligados à linha dura de Pequim, juntamente com os Reverendos Moon, Farrakhan e Falwell, os Hare Krishnas, Fidel Castro, os peaceniks de Sesame Street — e só Deus sabe quem mais. Este planeta está repleto de peixe podre que provoca reações instantâneas e apaixonadas. Vamos garantir que no prejulgamento usemos todo esse espectro.

— Prejulgamento...?

— Isso mesmo.

— Tudo isso é completamente louco, Jenny!

— Eu sei que é, Charlie, mas eles também são loucos. Qualquer pessoa pode interpor uma ação contra outra numa sociedade livre, e isso representa simultaneamente a loucura e a glória. Não é a ação que é importante, mas a ameaça de exposição pública... Meu Deus do céu, mal consigo esperar o momento de chegar a Boston!

 

________________

1 Asa Vermelba. (N.T.)

2 Aurora. (N.T.)

3 Nariz de Bezerro. (N.T.)


10

Desi-Um bateu com força na porta do hotel pela terceira vez e encolheu os ombros para seu camarada-de-armas, Desi-Um, que respondeu também com um encolher de ombros.

— Talvez nosso loco, o grande heneral, tenha tomado alguma poção mágica, não acha?

— Para quê?

— Ele nos deve diñero, não é?

— Não acho que ele faria isso. Não quero pensar que ele faria uma coisa dessas.

— Nem eu, cara, mas ele disse para voltarmos em uma hora, não foi?

— Talvez ele esteja morto. Talvez esse gringo ainda mais loco que está sempre gritando tenha acabado com ele e com o homenzinho baixo.

— Então talvez a gente deva arrombar a porta.

— E fazemos tanto barulho que a polícia dos gringos vem nos buscar e nós voltamos a comer, por muito tempo, aquela comida nojenta? Faz bons planos, amigo, mas não tem habilidades mecânicas, entende o que quero dizer?

— Que mecánico?

— Ei, cara, prometemos não falar espanhol, não foi? — replicou Desi-Um, tirando do bolso uma engenhoca pequena de muitas lâminas, um instrumento tipo canivete que desafiava qualquer descrição. — Para que a gente possa assimilar melhor, seja o que for que isso queira dizer — o especialista em ligação direta em Chevrolets se aproximou da porta e deu uma olhada rápida no corredor deserto. — Não temos que derrubar a porta. Essas fechaduras de plástico não são problema... uma pecinha de plástico branco liberta o trinco.

— Como sabe tanto sobre portas de hotel, cara?

— Trabalhei muito tempo como garçom em Miami, cara. Os gringos pedem serviço de quarto e quando se chega lá com a bandeja estão bêbados demais para encontrarem a porta e se volta com a bandeja o pessoal da cozinha vai gritar. É melhor saber abrir portas, não é?

— É uma boa escola.

— Antes disso trabalhei em estacionamentos. Madre Maria, são verdadeiras universidades! — Desi-Um, entusiasmado, torceu uma pequena lâmina de plástico branco no espaço vertical da fechadura e abriu a porta devagar. — Señor! — exclamou para o vulto lá dentro. — Você está O.K., patrão?

Sam parecia em transe, sentado à escrivaninha, olhos fixos nas páginas que tinha na sua frente.

— Prazer em vê-los de novo — murmurou, sem que as palavras tivessem alguma ligação com aquilo em que estava concentrado.

— Quase derrubamos a porta, patrão! — exclamou Desi-Um. — O que há com você?

— Por favor, não me façam cair outra vez — a resposta veio em tom monocórdico. — Estou com o peso do mundo jurídico em cima de mim, não preciso de vocês.

— Ora, vamos lá, gringo — continuou D-1, aproximando-se da mesa. — O que fizemos não teve nada de pessoal, homem. Só seguimos ordens do grande heneral, compreende?

— O grande general tem hemorroidas na boca.

— Isso não foi bonito — replicou D-2, juntando-se ao companheiro, que fechava a porta e guardava no bolso sua indescritível ferramenta de abrir-e-entrar. — Onde estão o general e o pequenote?

— O quê?... Quem? Ah, foram jantar. Por que não se juntam a eles?

— Porque ele nos mandou estar aqui em uma hora e somos bons soldados!

— Ah... sim, bem, não posso comentar nada a esse respeito porque a ordem não foi emitida através do meu departamento.

— O que está dizendo? — perguntou D-Um, olhando para o advogado como se examinasse ao microscópio um protozoário deformado.

— O quê?... Ei, olhem, rapazes, estou aqui meio ocupado e vocês têm razão, eu não considerei da minha conta nada do que aconteceu. Acreditem, já estive na sua posição.

— O que isso quer dizer? — perguntou D-Um.

— Bem, Mac é uma pessoa bem forte, pode ser muito convincente.

— O que é um mac? Como um pedaço de carne pode falar?

— Não, é o nome dele. MacKenzie — eu o chamo de Mac, é menor.

— Ele não é pequeno — disse Desi-Um. — É um gringo grande.

— O que faz parte do problema, acho — Sam piscou várias vezes os olhos e reclinou-se para trás na cadeira giratória, arqueando o pescoço como que para aliviar por um instante a pressão que sentia. — Grande, rude, bruto e todo-poderoso, e faz com que homens como vocês e eu marchemos ao ritmo dele, quando já deveríamos estar vacinados... vocês dois, espertalhões da rua, eu, um espertalhão das leis, e ainda assim ele nos enrola.

— Ele não enrola ninguém — exclamou D-Um enfaticamente.

— Eu não quis dizer que ele enrole no sentido literal...

— Não quero saber o que você quis dizer, ele nos faz sentir bem, o que tem a dizer sobre isso?

— Não consigo pensar em nada.

— Estivemos conversando enquanto comíamos uns tacos péssimos, feitos por uma gringa loura no fim da rua — acrescentou D-Dois — e dissemos a mesma coisa. O loco é porreta!

— Sim, eu sei — disse Devereaux, cansado, dirigindo sua atenção de novo para as páginas na sua frente. — Vocês gostam mesmo dele, ótimo.

— De onde ele vem, patrão? — perguntou Desi-Um.

— Vem?.. Como posso saber? Do Exército, de onde haveria de ser?

Os Desis Um e Dois trocaram olhares. O primeiro falou, dirigindo-se ao companheiro:

— Como vimos na janela com os retratos bonitos, não é, cara?

— Vê lá se diz direito o nome — disse Desi-Um.

— O.K. — Desi-Um virou-se para o advogado, preocupado. — Ei, señor Sam, faça o que o meu amigo diz.

— Faça o quê?

— Escreva o nome do grande general.

— Para quê?

— Se não escrever, seus dedos vão passar a não mexer tão bem.

— Com todo prazer — apressou-se a dizer Devereaux, pegando o lápis e arrancando uma folha do bloco. — Aqui têm — escreveu o nome e o posto do Hawk. — Acho que não tenho endereço nem número de telefone, mas mais tarde poderão verificar nas penitenciárias.

— Você está falando mal do grande general? — perguntou, desconfiado, Desi-Um. — Por que não gosta dele? Por que fugiu, gritou com ele e tentou combatê-lo?

— Porque fui uma pessoa má, uma pessoa terrível — exclamou Sam em tom de lamentação, as mãos estendidas num gesto de súplica. — Ele foi tão bom para mim... vocês viram com que delicadeza fala comigo, e eu tão egoísta! Nunca me perdoarei, mas vi como meu comportamento estava errado e estou tentando compensar fazendo este trabalho que ele quer que eu faça, que ele precisa que eu faça... Vou à igreja amanhã de manhã pedir perdão a Deus por ter sido tão horrível com um grande homem.

— Ei, señor Sam — disse Desi-Um, com o perdão de Deus na voz —, ninguém é perfeito o tempo inteiro, sabe? Jesus entende isso, não é verdade?

— Pode apostar seu rosário — replicou Devereaux a meia-voz. — Conheço uma freira que conseguiu inclusive alargar Sua compaixão.

— Que está dizendo, patrão?

— Eu disse que a bem conhecida compaixão que vem dos rosários das freiras se encontra contida no que você diz... é uma expressão americana que significa que você está certo.

— Ainda bem — interrompeu Desi-Um —, mas eu e o Desi-Um temos muito em que pensar, de modo que vamos saindo e aceitamos a palavra de um homem religioso de que o grande heneral é porreta, como costumamos dizer.

— Acho que não estou compreendendo...

— O grande general nos deve diñero...

— Dinheiro?

— Isso mesmo, gringo, e queremos confiar nele, mas temos que ser positivos, compreende? Diga então ao grande heneral que voltaremos amanhã para receber nosso diñero, O.K.?

— O.K., mas por que vocês não o esperam... lá fora, claro?

— Porque, como eu disse, temos que pensar e conversar... e também saber se podemos confiar nele.

— Para ser muito franco, não compreendo vocês.

— Não precisa compreender. Basta dizer-lhe o que eu disse, O.K.?

— Com certeza.

— Vamos, amigo — disse Desi-Um, estendendo o pulso esquerdo além da manga e revelando os três relógios. — Digo-lhe uma coisa, já não se pode confiar em ninguém! Esse Rolex nojento é imitação!

Com estas palavras críticas, Desi-Um e Desi-Dois deixaram a suíte, acenando cordialmente para Sam antes de fecharem a porta. Devereaux sacudiu a cabeça, bebeu um gole do seu brandy e voltou aos papéis na mesa.


A alvorada rompeu sobre a linha do horizonte oriental de Boston, Massachusetts, para extremo aborrecimento de Jennifer Redwing, que se tinha esquecido de baixar a cortina da janela. Os primeiros raios do sol atravessaram suas pálpebras e a acordaram... Tinha esquecido, não, estava cansada demais para pensar nisso quando chegara do aeroporto às duas da manhã. Quatro horas de sono não eram suficientes, nem mesmo com sua energia, mas as circunstâncias não permitiam que ficasse na cama. Levantou-se, fechou parcialmente as cortinas, acendeu o abajur da mesinha de cabeceira, examinou o cardápio do serviço de quarto e descobriu o que já esperava: funcionava vinte e quatro horas por dia. Pegou o telefone, pediu um café da manhã continental e pensou no dia que tinha pela frente.

Tudo se resumia a eletrocutar um maldito general aposentado e quem quer que fizesse parte da escória por trás dele. E ela ia eletrocutá-los, fazê-los explodir nas malhas eletrificadas, não importava o que fosse necessário, não importavam os caminhos das falácias legais que tivesse de seguir e que tanto abominava. Hoje era diferente. Apesar de ser eternamente grata a sua tribo e a sua gente — gratidão que explicava o fato de supervisionar seus investimentos e contribuir com um terço de seus rendimentos —, ficava furiosa quando estranhos tentavam se aproveitar da história reconhecidamente cheia de vicissitudes e da ingenuidade da tribo, mirando o lucro. Seu irmão mais novo, Charlie, tinha razão, mas enganara-se ao interpretar a raiva dela. Não se limitaria a acabar com ele — acabaria com todos eles, com todos esses malditos corruptos!

O café da manhã chegou e com ele alguma calma. Tinha que se concentrar. Só dispunha de um número de telefone e um endereço em Weston. Não era muito, mas já era um começo. Por que as horas não passavam mais depressa? Bolas, ela queria entrar em ação!


Eram cinco e meia da manhã e Sam Devereaux, com os olhos quase sangrando, tinha terminado a petição dos Wopotamis e redigido trinta e sete páginas de anotações em seu bloco.

Oh, meu Deus, precisava descansar, nem que fosse para ver uma perspectiva, se é que havia alguma em toda aquela confusão insana! Sua cabeça estava prestes a estourar com centenas de fatos relevantes e irrelevantes, definições, conclusões e contradições. Só um período de calma restauraria as suas muito louvadas qualidades de raciocínio e análise, que de momento estavam tão reduzidas que ele duvidava ser capaz de tomar conta do recreio de um jardim de infância, muito menos convencer Sanford ou qualquer outro a espancá-lo, como aconteceu quando ambos tinham seis anos de idade, durante um daqueles períodos de recreio. Gostaria de saber o que aconteceu a esse valentão gigantesco: indubitavelmente terminara como general do Exército, ou terrorista. Um caso não muito diferente do “Louco” Mac Hawkins, que estava naquele momento a dormir no quarto de hóspedes da suíte do hotel e era o responsável por submeter duzentas e tantas páginas de absoluto desastre à consideração de Aaron Pinkus e de Samuel Lansing Devereaux, o qual reconhecia agora que jamais envergaria uma toga — exceto talvez como último desejo, antes de ser fuzilado nas caves do Pentágono, em cumprimento das ordens conjuntas do Presidente, do Departamento de Defesa, da CIA, do Serviço de Informações do Exército e das Filhas da Revolução Americana. E Aaron — pobre Aaron! Não só tinha de enfrentar Shirley, a propósito de uma questiúncula relativa a uma exposição de arte perdida, como também lera a petição de Mac, por si só um verdadeiro convite ao esquecimento.

Deus Todo-Poderoso, o Comando Aéreo Estratégico! Se esses idiotas do Supremo dessem provimento, mesmo que parcial, à apelação — e era uma apelação tanto à justiça quanto à legalidade —, segmentos inteiros, se não todo o CAE, passariam a ser propriedade de uma tribo índia minúscula e indigente, com o precário nome de Wopotami! A lei era clara: todas as estruturas e materiais encontrados em território usurpado ou roubado pertenciam à parte ou às partes ofendidas. Que grande merda!

Descansar... talvez dormir, se conseguisse. Aaron tivera razão, quando ele e o Mac voltaram mais ou menos à meia-noite e Sam bombardeara Hawkins com o que agora tinha de admitir serem perguntas e acusações relativamente histéricas.

— Acabe com isso, meu rapaz, depois durma um pouco e conversaremos amanhã. Não se consegue nada quando as cordas estão tão esticadas que é difícil encontrar as notas certas; e, para ser totalmente honesto com vocês, cavalheiros, vou ter de enfrentar uma coda discordante esta noite, quando vir a minha querida Shirley... Por que, Sam, por que você foi falar nessa exposição infernal?

— Achei que você ia ficar furioso comigo quando descobrisse que eu não tinha acompanhado um dos nossos clientes mais ricos porque a mulher dele passava o tempo todo querendo me excitar. Além disso, eu não falei com Shirley.

— Eu sei, eu sei — disse Aaron, derrotado. — Você acreditaria se eu lhe dissesse que lhe contei porque achei engraçado e porque fazia ressaltar um aspecto honroso do seu caráter? Um mínimo de quinhentos advogados, dos que eu conheço, entrariam em contato íntimo com essa senhora à menor provocação.

— Sam é melhor do que isso — insistira MacKenzie Hawkins. —, o rapaz tem princípios, embora nem sempre sejam aparentes.

— General, posso sugerir mais uma vez que se retire da presença de Samuel, pelas razões que discutimos durante o jantar? Você vai achar o quarto de hóspedes muito confortável.

— Tem televisão? Gosto daqueles filmes de guerra antigos.

— Você não tem sequer de sair da cama. Basta apontar o controle remoto e disparar de um abrigo bem confortável.

“Meu Deus, ele estava exausto!”, pensou Devereaux, ao levantar da cadeira, caminhando muito devagar até o quarto principal, apenas vagamente consciente de que Aaron tivera a gentileza de acender a luz da mesinha de cabeceira. Fechou a porta firmemente — e concentrou-se em seus sapatos — qual deles deveria tirar primeiro e como? O enigma foi resolvido quando chegou à cama e caiu estirado em cima dela, de sapatos e olhos fechados. O sono foi imediato.

Até que, vindo dos distantes salões de completo vácuo, um alarme dissonante e incessante chegou até ele, aumentando de volume até que a sua galáxia pessoal sofreu o embate de sucessivas explosões. Pegou o telefone, verificando que o relógio de cristal de quartzo em cima da mesinha de cabeceira marcava oito e meia.

— Sim? — resmungou.

— Fala Raspe os seus Bens, seu felizardo, seu grande felizardo! — berrou a voz estridente do outro lado da linha. — Esta manhã estamos ligando para hotéis, escolhidos ao acaso na nossa tômbola por um membro de nossa grande audiência e depois o número do quarto é escolhido numa segunda tômbola pela mais recente avó da nossa e-n-o-r-m-e audiência e você é nosso felizardo! Só precisa me dizer qual foi o presidente barbudo que fez o discurso de Gettysburg, para ganhar uma secadora de roupas Watashitti da empresa Mitashovitzu, que, por acaso, é proprietária desta grande estação! Qual é a sua resposta, seu grande sortudo?

— Vá à merda! — replicou Sam, piscando os olhos por causa da luz do sol que se infiltrava pelas janelas.

— Cortem a fita! Alguém aí chame os anões malabaristas e vá até a plateia.

Devereaux desligou o telefone e gemeu; tinha que se levantar e ler suas anotações e a perspectiva não era atraente. Nada era atraente no seu futuro previsível, cheio de buracos negros que o engoliriam e de fendas infinitamente fundas através das quais cairia, rodopiando em agonia por toda a eternidade.

Maldito Hawkins! Por que o doido varrido voltara a aparecer na sua vida?...Onde estava Hawkins? Não era habitual nesse velho cavalo de batalha, tão amante do exercício, deixar de saudar o nascimento do dia com um grito de guerra. Talvez tivesse morrido durante o sono... não, há coisas que são boas demais para se poder, realisticamente, esperar que aconteçam. O Mac viveria para sempre, aterrorizando gerações e gerações de inocentes pacíficos.

Além do mais, silêncio e MacKenzie Hawkins eram uma combinação perigosa, nada de bom poderia vir de um predador silencioso.

Sam levantou-se da cama, surpreso mas não assombrado por ver que os sapatos ainda estavam enfiados nos pés e dirigiu-se para a porta, caminhando com alguma insegurança. Abriu a porta com cuidado e viu Von Maníaco sentado à mesa de Aaron, de roupão de banho, lendo com uns óculos de armação de metal a maldita e nefanda petição.

— Seu exercício de leitura matinal, Mac? — perguntou Devereaux sarcasticamente, entrando na sala de estar da suíte.

— Olá, Sam — disse o Hawk calorosamente, tirando os óculos como se fosse um velho acadêmico aposentado, amável por natureza. — Dormiu bem? Não o ouvi levantar.

— Não me venha com essa conversa fiada de velhinho bonachão, serpente venenosa. Além do telefone, você provavelmente ouviu cada respiração minha e se houvesse árvores aqui e estivesse escuro, eu teria um garrote em torno do pescoço.

— Ora, filho, você realmente me julga mal e permita-me que lhe diga que tudo isso me dói muito.

— Só um megalômano poderia fazer uma petição dessas, referindo-se a si mesmo três vezes numa única frase.

— Todos mudamos, rapaz.

— O leopardo tem manchas quando nasce e tem manchas quando morre. Você é um leopardo.

— Acho que é melhor do que ser serpente venenosa, não acha? Tem suco e café na mesa e também pãezinhos. Coma um pouco; mantém o nível de açúcar no sangue alto pela manhã, o que é muito importante, como sabe.

— Agora pratica medicina geriátrica? — perguntou Devereaux, indo até a mesa da sala e se servindo de café. — Está vendendo tônico aos nativos?

— Não estou ficando mais novo, Sam — respondeu Hawkins, com uma nota de tristeza na voz.

— Que coincidência, eu pensava nisso de forma indireta e sabe qual foi minha conclusão? Você vai viver para sempre, uma ameaça eterna ao planeta.

— E uma avaliação impressionante, filho. Há boas ameaças e más ameaças e eu agradeço o status que me confere.

— Meus Deus, você é insuportável — resmungou Devereaux, levando seu café até a escrivaninha e se sentando. — Mac, onde conseguiu todo esse material? Quem preparou a documentação?

— Eu não falei disso?

— Se falou, meu estado de choque me impediu de ouvir... Vamos começar pelos arquivos secretos. Como?

— Bem, Sam, tem que entender as manifestações psicológicas dos que, entre nós, trabalham nas fileiras do nosso governo, civis ou militares. Tente compreender o paradoxo em que geralmente vivemos após longos anos de serviço.

— Elimine a besteira do preâmbulo, Mac — interrompeu Devereaux asperamente. — Seja direto.

— Estamos duros.

— Mais direto do que isso não pode ser.

— Ganhamos metade, se tanto, do que podíamos estar ganhando no setor privado, já que muitos de nós acreditamos que estão ganhando outra coisa tão importante quanto o dinheiro. É o que chamamos de “contribuição”, Sam, contribuições sinceras para um sistema em que acreditamos.

— Pare com isso, Mac. Já ouvi essa história antes. Vocês também têm pensão muito boa e privilégios na aposentadoria, como comprar nas lojas subvencionadas pelo Governo Federal por metade do preço e um seguro generoso, além de ser difícil demiti-los se não forem bons no emprego.

— Esse é um ponto de vista particularmente tosco, Sam, e aplicável apenas a alguns poucos e não à esmagadora maioria.

— Está bem — disse Devereaux, dando um gole no seu café e com um olhar duro para o Hawk — Admito que seja assim. Acabo de me levantar após três horas de sono, sinto-me apodrecido e você é um alvo fácil. Agora, como conseguiu essas peças de arquivo?

— Lembra-se de “Brokey” Brokemichael, não o Ethelred, mas o Heseltine, aquele que você acusou de tráfico?

— Mesmo que vivesse cem anos eu levaria esses nomes ridículos para a sepultura. Se você se lembra, foram eles, ou melhor, ele, que me lançou na estrada para o inferno com o General Lúcifer, fazendo-me sair do banco de dados com milhares de documentos secretos.

— Sim, bem, de certa forma, há uma ligação. Veja, quando o Exército não quis dar a Brokey a terceira estrela — por sua causa, jovem, e por causa da confusão com os nomes —, ele montou no seu cavalo e disse “Eu desisto!”... Bem, até mesmo o Exército tem consciência, assim como ligações. Não se pode pôr de lado uma lenda militar e simplesmente deixar que desapareça como aquele delicioso bolo de frutas sobre o qual MacArthur falou no Congresso. O que quero dizer é que o Brokey não vendeu as suas qualidades a um governo estrangeiro, como Manila, e não tinha uma grande soma de reserva. Assim, os rapazes do Ministério da Defesa fizeram a sua pesquisa, procurando arranjar um emprego para o velho Brokey, algo que não exigisse muito intelectualmente, mas o tipo de posição que garantisse uma soma justa, para que o Brokey pudesse aumentar o seu soldo de aposentadoria, já que ele merece bem ambas as coisas, posição e dinheiro.

— Não me diga — interrompeu Sam. — O Gabinete das Relações com os índios. O grande emprego.

— Sempre disse que você era o tenente mais inteligente que já conheci, rapaz.

— Eu era major!

— Temporário, e desceu de posto por causa dos amigos do Heseltine. Não leu o seu documento de desvinculação do serviço militar?

— Só o meu nome e a data de desvinculação... Temos então um déjà vu; você e o insidioso Brokemichael estão realmente de volta na minha vida... Evidentemente, Brokey — graças aos laços de honra que unem os ex-combatentes — providenciou para que entrasse um pouco de ar em algumas salas bolorentas cheias de arquivos e revolvesse alguns documentos.

— Oh, não foi assim tão aleatório como isso, Sam — protestou o Hawk. — Houve muita pesquisa nesta investigação antes de tal ação ter sido considerada necessária. Claro que, ao princípio, o fato de Brokey lá estar teve uma espécie de efeito estimulante e não posso negar que ter acesso a toda a história concentrada dos índios não tenha sido uma ajuda, mas foram necessários meses de pesquisa para descobrir algumas peculiares trapalhadas que exigiam decisões agressivas.

— Decisões como invadir ilegalmente os arquivos secretos, sem ordens ou mandados judiciais, que podem ser concedidos a qualquer parte legítima com uma causa verosímil?

— Não, filho, certas operações são melhor conduzidas longe dos projetores, se bem me faço entender.

— Como, por exemplo, arrombar um banco ou fugir da prisão.

— Você está sendo severo, Sam. Refere-se a atividades criminosas; o que temos aqui é a reparação de um grande crime.

— Quem organizou tudo?

— O que quer dizer com isso?

— Quem escreveu? A estrutura, o vocabulário, os argumentos e as apreciações... as refutações concretas do status quo?

— Ah, não foi difícil, só ocupou muito tempo.

— O quê?

— Que diabo, nos livros jurídicos há todo tipo de formulários para seguir, além de uma linguagem engraçada que complica as coisas simples, a ponto de se ficar maluco se tentar seguir o que não tem sentido, mas que tem um estilo muito oficial.

— Foi você que fez isso?

— Claro. Apenas escrevi de trás para a frente, do simples para o obscuro, com um pouco de indignação sincera na mistura.

— Meu Deus!

— Você está entornando seu café, Sam.

— É uma petição acadêmica!

— Bem, nada sei quanto a isso, mas obrigado, filho. Tudo que fiz foi pegar cada frase e cotejá-la com todos esses manuais da Faculdade de Direito. Que diabo, qualquer um seria capaz de redigir uma petição destas se dispusesse de vinte e um meses livres e se seu cérebro não explodisse com tanta baboseira sem sentido. Sabe, às vezes eu precisava de uma semana inteira para conseguir escrever meia página que me soasse bem... Agora entornou o resto do café, rapaz.

— Também posso vomitar — disse Devereaux com a voz trêmula, ao se levantar da cadeira, a calça molhada de café na região pélvica. — Eu sou vapor e não existo. Sou apenas um aspecto de alguma dimensão não descoberta, onde olhos e ouvidos flutuam indiscriminadamente em espirais, vendo e ouvindo, mas sem conhecimento da forma ou da matéria, sendo a realidade em si uma abstração.

— Muito bem, Sam. Agora, se você juntar aí um “considerando que” umas duas vezes e algumas referências à “parte interessada” e aos “recorrentes”, poderia levar isso a tribunal... Sente-se bem, rapaz?

— Não, não estou me sentindo bem — replicou Devereaux, no que só podia ser descrito como palavras pronunciadas numa suave cadência etérea. — No entanto, tenho de me tratar e ir ao encontro do meu karma, de forma a que possa lutar mais um dia e encontrar as sombras na luz.

— As sombras onde...? Você tinha cigarros esquisitos escondidos no quarto?

— Não fale sobre coisas que estão para além da sua compreensão, senhor Neanderthal. Sou uma águia ferida que paira nas alturas para conseguir a minha libertação final da Terra.

— Ei, Sam, isso foi ótimo, foi uma autêntica conversa de índio!

— Merda!

— Agora quebrou o feitiço, filho. Os anciãos da tribo não aprovam esse tipo de linguagem.

— Pois bem, ouça isto, seu anglo-saxão selvagem! — gritou Sam abruptamente, quase perdendo o controle, mas conseguindo voltar à melopeia da sua anterior busca do karma — Lembro-me precisamente das palavras do Aaron: “Conversaremos amanhã”, foi o que ele disse, e “amanhã”, por si só, não define uma ocasião específica. Assim sendo, como parte interessada da segunda parte cujas opiniões foram solicitadas, prefiro interpretar “amanhã” como tendo uma ampla latitude de horas, já que a palavra fundamentalmente significa “em direção à manhã”, mas sem limitações prévias respeitantes ao resto do dia até a escuridão.

— Sam, posso dar-lhe uma bolsa de gelo, uma aspirina, talvez um gole daquele excelente brandy?

— Não, não pode, seu pervertido flagelo do planeta. Vai ouvir a minha determinação.

— `Terminação...? Essa é a minha linguagem, rapaz!

— Cale-se — continuou Devereaux, caminhando até a porta do hotel e virando-se; ao fazê-lo, pôs em evidência a lastimável mancha de café que, entretanto, se tinha espalhado maliciosamente pelas calças de cor clara. — Eu, abaixo-assinado, determino que a nossa reunião tenha lugar à tarde, devendo a hora certa ser mutuamente acordada mediante comunicação telefônica posterior.

— Aonde vai, filho?

— Onde possa encontrar solidão no isolamento e pôr em ordem meus pensamentos. Tenho muita coisa em que pensar, Sr. Monstro. Vou para casa, para meu refúgio, tomar um banho de vapor e uma ducha durante uma ou duas horas e depois vou sentar na minha cadeira favorita e pensar. Au revoir, mon ennemi du coeur, pois é assim que deve ser.

— O quê?

— Até logo, General Bobalhão. — Devereaux dirigiu-se para o corredor do hotel, fechou a porta e encaminhou-se para o conjunto de elevadores próximo do corredor, à direita. Tendo usado o seu limitado francês com o Hawk, os seus pensamentos regressaram por breves instantes a Anouilh e à conclusão a que o dramaturgo chegou quando escreveu que havia ocasiões em que nada restava a fazer senão gritar. Esta era uma dessas ocasiões, mas Sam recusou-se a ceder à tentação. Apertou o botão para descer, com todo o seu ser na expectativa.

A porta do elevador abriu-se e Devereaux entrou, cumprimentando com um rápido e inconsciente gesto de cabeça o outro passageiro, uma mulher. Só então olhou para ela. De repente, um relâmpago brilhou diante dele e um trovão ribombou em seus ouvidos, ao mesmo tempo em que a vida e o sangue regressavam ao cadáver ambulante que ele fora apenas segundos antes. Ela era gloriosa! Uma afrodite bronzeada de cabelos escuros brilhantes e olhos incandescentes de uma cor desconcertante, com um rosto e um corpo esculpidos por Bernini! Ela reagiu a seu espanto com um olhar pudico, até que não pôde deixar de reparar no largo círculo molhado na braguilha.

Ofuscado pela beleza dela, que o fez esquecer de todo o resto, mas consciente da fraqueza nas pernas, Devereaux disse:

— Quer casar comigo?


11

— Dê um passo na minha direção e vai ficar cego durante um mês! — com a rapidez de uma policial agindo como isca de uma brigada de narcóticos, a fantástica mulher de pele bronzeada abriu a bolsa e retirou dela um pequeno cilindro de metal. Com o braço esticado, ela manteve o spray de gás atordoante à sua frente, na vertical, apontado para o rosto de Devereaux, a menos de um metro de distância.

— Espere aí! — gritou Sam com as mãos acima da cabeça, em atitude de abjeta rendição. — Sinto muito, por favor, eu peço desculpas! Eu não sei o que me fez dizer aquilo... foi um lapso involuntário, o resultado de muito estresse e esgotamento, um acidente mental.

— Parece que você também teve um acidente físico — disse a mulher num tom glacial, olhando por breves instantes para a calça de Devereaux.

— O quê? — Sam viu exatamente o que ela queria dizer. — Oh, meu Deus, o café, foi café... é café! Estive trabalhando a noite inteira e tenho um cliente doido, provavelmente não vai acreditar, mas sou advogado... e ele me deixa louco de ódio e eu estava tomando café quando, de repente, não pude aguentar mais, não pude suportar mais a presença dele e derramei o café na calça. Só queria fugir dali, entende? A pressa era tanta que esqueci o paletó! — Devereaux parou repentinamente, lembrando-se de que o paletó estava com algum grego barbudo. — Na realidade... deixe pra lá, não interessa, é tudo muito grotesco.

— Foi o que me ocorreu também — disse a mulher, examinando Sam. Satisfeita, voltou a pôr o spray na bolsa. — Se você é realmente um advogado, sugiro que obtenha ajuda antes que o tribunal insista.

— Sou considerado um advogado de primeira linha — defendeu-se Devereaux, esticando-se para melhorar a imagem, o que, de certa forma, foi prejudicado pela tentativa de tapar com as mãos a calça manchada. — Sou sim.

— Onde? Na Samoa Americana?

— Como?

— Esqueça. Você me faz lembrar uma pessoa.

— Bem — começou Sam, um pouquinho mais calmo e genuinamente embaraçado. — Tenho certeza de que ele nunca foi o idiota que eu pareço ser.

— Não apostaria muito dinheiro nisso. — O elevador reduziu a velocidade e parou. — Eu não apostaria dez por cento — acrescentou ela quando a porta se abriu.

— Desculpe — repetiu Devereaux quando ambos se encaminharam para o saguão do hotel.

— Não faz mal. Para dizer a verdade, aquilo era mesmo um maço. Nunca fui agredida com uma coisa daquelas.

— Então os homens de Boston perderam a vista — retorquiu Sam, alegre mas inocentemente, sem malícia na sua afirmação.

— Você me lembra mesmo ele.

— Espero que a semelhança não seja muito desagradável.

— No momento, mezzo-metz... Se vai a alguma reunião matinal, troque de calça.

— Oh, não. Este sabujo, morto de cansaço, vai pegar um táxi para casa e descansar antes da próxima corrida de cachorro.

— Vou pegar um táxi também.

— Pelo menos deixe-me dar a gorjeta ao porteiro. Assim reforço o pedido de desculpas com alguns dólares.

— Atitude típica de advogado. Talvez seja bom.

— Nada mau. Gostaria que você precisasse de aconselhamento jurídico.

— Sinto muito, Clarence Darrow, há excesso de oferta.

Já na calçada e dada a gorjeta ao porteiro, Devereaux segurou a porta do táxi enquanto ela entrava.

— Diante do meu comportamento de asno, não creio que faça questão de me encontrar de novo.

— Não é por seu comportamento, advogado — respondeu a sereia dos seus sonhos matinais enquanto, mais uma vez, abria a bolsa, só que agora para tirar um pedaço de papel, para alívio de Sam —, só estou aqui por um ou dois dias e o calendário do meu tribunal está ocupado.

— Que pena — disse Sam, perplexo. Nesse momento, sua dama do sol da manhã virou-se para o motorista e deu o endereço de destino. — Meu Deus do céu! — murmurou Sam, em estado de choque, quando involuntariamente fechou a porta.

Reunião... Clarence Darrow... advogado... calendário do tribunal! O endereço que a danada deu era o da casa dele!


Sentado ansiosamente na ponta da cadeira, no Gabinete Oval, o Presidente dos Estados Unidos estava aborrecido, verdadeiramente aborrecido, apertando o telefone na mão.

— Ora, vamos, Reebock, esforce-se um pouco, seu cara de cocô, filho de uma cadela! O Tribunal precisa assumir alguma responsabilidade, mesmo que nossos rabos sejam rebentados por essas ilhas agressoras do Caribe, no pior dos cenários, para não falar nas superpotências da América Central!

— Sr. Presidente — retorquiu o Juiz-Presidente da Suprema Corte, com o seu melancólico timbre vocal maculado pelo sotaque anasalado. — Nosso sistema do primado da lei numa sociedade aberta requer uma decisão expedita da reparação legal, de forma a se obter um alívio rápido e adequadamente compensatório das ofensas. Assim sendo, as audiências Wopotami precisam ser públicas. Para criar uma frase, “Justiça atrasada é justiça negada”.

— Já ouvi isso antes, Reebock, não foi você que a inventou.

— Ah, sim? Mas sem dúvida fui a inspiração. Sou conhecido por esse tipo de coisas, segundo me dizem.

— Sim, bem, aproveitando o que disse, Sr. Juiz-Presidente...

— Refere-se ao fato de eu inspirar as pessoas? — interrompeu o líder da Suprema Corte. — Diga.

— Não, refiro-me às coisas pelas quais é conhecido — corrigiu o Presidente. — Acabei de receber um telefonema de Vincent Mangee... Mangaa... aquele indivíduo da CIA.

— Nos meus tempos de jovem procurador, Sr. Presidente, ele era conhecido como Vinnie, o Bam-Bam.

— Está falando sério?

— Não se brinca com esses apelidos, Sr. Presidente.

— Acho que não. Oh ,diabo, isso talvez possa reduzir a importância do diploma de Oxford que ele tem.

— Diploma de onde?

— Não tem importância, Reebock, mas é uma verdadeira coincidência que você fale nos seus primeiros dias como procurador...

— Um procurador muito jovem, Sr. Presidente — interrompeu apreensivo o Juiz-Presidente.

— Sim, Vincent compreende isso. Ele disse inclusive que, provavelmente, isso não tem importância agora, tantos anos depois, mas ainda assim devemos proteger nosso lombo, porque essa história dos Wopotamis vai desencadear um debate nacional, ou seja, uma tremenda confusão!

— Receio que o problema seja seu, Sr. Presidente, ou talvez devesse dizer que pertence à esfera das responsabilidades conjuntas dos poderes Executivo e Legislativo — o Juiz-Presidente fez uma pausa e acrescentou, contendo o riso: — A bola agora está do seu lado, menino, haha.

— Reebock, eu ouvi isso!

— Peço desculpas, Presidente, tenho um inseto no nariz... Estou apenas tentando explicar que não somos uma corte ativista. Não fazemos as leis, nós as fazemos cumprir, na grande tradição dos rigorosos intérpretes da lei. E, como sabe, diversos membros da Corte estão fortemente convictos de que o caso Wopotami pode ter um firme alicerce no Direito Constitucional, embora certamente não tenham apresentado uma decisão final, e é melhor que não o façam. No entanto, manter as audiências a portas fechadas seria visto como interpretar esse grande documento como os liberais sujos, sem deixar transparecer sua verdadeira intenção.

— Sei disso — disse o Presidente em tom de lamento — e foi o que preocupou Vincent. Suas opiniões serão estudadas por eruditos, editores de jornais e colunistas e, bem, todos! E você pode ficar em má situação, Reebock.

— Eu?... Eu não suporto essa porcaria! Meus colegas bem pensantes e eu debateremos até enterrar esses hipócritas e imbecis que insistem em jogar essa porcaria de “consciência coletiva” em cima de nós. Vamos expulsá-los antes de ceder e eles sabem disso. Meu Deus do céu, você acha que eu daria a esses aborígenes armados com flechas um níquel que fosse de estrume de mula? Não são melhores do que os negros!

— Era o que Vincent pensava...

— O quê?

— Parece que quando você era um jovem procurador adjunto havia um padrão definido nas suas acusações e nos casos que levou a julgamento...

— Com um recorde de condenações que fazia inveja a toda a procuradoria!

— Quase exclusivamente negros e latinos — completou o Presidente.

— Claro que sim e eu consegui pegar esses filhos da mãe! Eram eles que cometiam todos os crimes, como bem sabe.

— Todos?

— Vamos pôr a questão da seguinte forma... os que eu queria pegar, para o bem do país. Com crimes graves em suas fichas, não poderiam votar!

— Vincent também pensou nisso.

— Aonde quer chegar, Presidente?

— Para ser franco, Vincent está tentando protegê-lo, proteger seu lugar na história.

— O quê?

— Embora você seja o mais rigoroso dos rigorosos intérpretes da lei, é contra os Wopotamis e me disseram que se recusou inclusive a ler a petição. Não seria porque eles não são melhores do que os negros? Você realmente quer passar à história como o Juiz-Presidente racista, que vai votar contra as provas pela cor da pele do recorrente, numa decisão sobre limites territoriais?

— Quem poderia pensar uma coisa dessas? — perguntou o aturdido campeão do direito constitucional. — Minhas perguntas estarão cheias de compaixão e, em última análise, impregnadas de realidades práticas, as quais, estou firmemente convencido, influenciarão o veredicto em, pelo menos, três votos. O país compreenderá. As audiências precisam ser públicas.

— E esse cocô de mula se levantaria contra o excessivo número de suas condenações de minorias quando era procurador adjunto — especialmente se esse registro provar que, frequentemente, você escolhia defensores oficiosos, na maioria gente que raramente pisou em tribunal?

— Oh, meu Deus...! Essas histórias podem ser divulgadas?

— Não, se você der a Vincent tempo para apagá-las dos registros. Segurança nacional, claro.

— Ele pode fazer isso?

— Vincent diz que consegue.

— Tempo?... Não sei o que meus colegas diriam se eu adiasse as audiências públicas. Não posso parecer recalcitrante, poderiam achar... Deus queira que não... suspeito.

— Vincent compreende isso também. Ele sabe que há vários críticos seus na Corte, Reebock.

— Meu Deus, estou sendo comprometido por agir corretamente!

— Pelas razões erradas, Juiz-Presidente. Vincent contou com isso. O que devo dizer a ele?

— Quanto tempo ele acha que precisa para... digamos, remover os mal entendidos que poderiam levar a conclusões errôneas?

— Para fazer um trabalho completo, ele calcula um ano...

— A Corte se revoltaria!

— Ele vai resolver tudo numa semana.

— Combinado.

— Ele consegue.

Mangecavallo recostou-se na sua cadeira e acendeu seu charuto Monte Cristo, sendo, nesse momento, um homem temporariamente satisfeito. Tinha visto a luz quando todos os outros, inclusive Hymie, o Furacão, viram apenas as nuvens escuras da confusão. Já que os idiotas da Suprema Corte, que talvez estivessem inclinados a votar a favor dos selvagens malignos Wopotami, estavam absolutamente limpos, tinha que haver outra forma de conseguir algum tempo para pegar o falso Cabeça de Trovão e enchê-lo de buracos, ou deixar a sua cabeça num tal estado que ele se daria por feliz em cancelar tudo, chamando as coisas pelo seu nome: um grande carnaval. Não tinha conseguido apanhar os cinco ou seis frutti suspeitos, porquê não olhar, então, na direção contrária, digamos, para o próprio chefe? Esse fascista não podia votar a favor dos Wopotamis; não era o que o seu coração mandava. E já que não era, que tipo de coração podre se abrigava no peito desse fanático intolerante, capaz de desligar imediatamente o seu grande cérebro? Talvez alguém devesse perguntar.

Agora eles tinham uma semana extra, que era tudo o que poderiam esperar, já que a popularidade do chefe entre os colegas estava praticamente reduzida a zero. E uma semana devia ser suficiente, já que Little Joey, o Mortalha, encurralara o General Lasagna Seção Oito com penas Wopotami em Boston, onde, como todos sabem, acontecem acidentes com uma frequência alarmante. Talvez não ao mesmo nível de Nova York, Los Angeles e Miami, mas também não é fácil. Mangecavallo fez três perfeitos anéis de fumaça e consultou o relógio ornado de diamantes. Ao Mortalha ainda restavam dois minutos, no horário matinal fixado, para telefonar. E o telefone invisível tocou. Ele abriu a gaveta e atendeu.

— Sim?

— É Little Joey, Vin.

— Tem sempre que esperar até o último minuto para ligar? Eu avisei que tinha reunião às dez e você me deixa nervoso. E se o telefone tocasse quando os metidos estivessem aqui?

— Você diria que era engano.

— Cabeça de pazzo, eles não veem o telefone!

— Você contrata espiões cegos, Vinnie?

— Chega. O que há de novo? Rápido!

— Ei, cara! Tenho um monte de coisa, Bam-Bam...

— Eu já disse...

— Desculpe, Vincenzo... Estou num quarto do hotel de luxo de que falei antes.

— Não quero ouvir mais histórias compridas, Joey. Sei que arranjou um quarto ontem à noite no mesmo andar do judeu e depois?

— Tanta atividade, Vin! O grande general chefe índio está aqui com o judeu, só que, ontem à noite, saíram por umas duas horas. Mais tarde, os soldados do chefe voltaram e tornaram a sair, depois de terem falado com alguém lá dentro, antes que o chefe e o judeu voltarem. Depois, o judeu foi embora, deixando o chefe com a pessoa que estava lá dentro, mas antes houve uma enorme gritaria — um autêntico estridore — e então o judeu foi embora e tudo ficou em silenzio.

— Está querer dizer, Joey, que o ninho dessa terrível cospirazione fica do outro lado do corredor, na porta em frente à sua?

— Correto, Bam-Bam!... Desculpe, Vin, sai naturalmente, como nos velhos tempos, entende?

— Que mais? Embora ache que já temos tudo o que precisamos. Consegue descobrir quem estava lá dentro? Talvez fosse só uma mulher, hein?

— Nada disso, Vinnie, não era uma mulher e eu vi quem era. É um caso mental, um verdadeiro vegetal e...

— Do que está falando?

— Como sempre, deixo a porta aberta uns dois centímetros, talvez três, talvez mesmo uns quatro...

— Joey!

— O.K., O.K. Vejo o idiota indo para os elevadores, entende?

— Isso o torna um doente mental?

— Não, Vin, mas a calça dele sim.

— Como é?

— Ele mijou na calça! Grandes círculos molhados até os joelhos. Ou seja, ele sai para a rua com a calça encharcada de xixi! Se isso não faz dele um doente mental, então diga o que faz, Bam-Bam!

— Ele está é abalado — concluiu o astuto diretor da CIA. — Por aqui chamam isso de “estresse operacional” e, às vezes, “descompressão do disfarce”, dependendo da missão. — O telefone de Vincent Mangecavallo tocou, era a linha da secretária. — Só tenho dois segundos, Little Joey. Tente descobrir quem é esse homem esquisito da calça molhada, O.K.?

— Mas eu sei quem é, Vinnie! Fui até a recepção e fingi ser amigo de um padre que viria visitá-lo devido a uma tragédia pessoal e o descrevi... Achei que talvez devesse arranjar uma gola de padre, mas vi que ia demorar tempo demais...

— Joey! — berrou Mangecavallo. — Pare! Quem é ele?

— O nome é Devereaux, talvez seja melhor soletrar. É um advogado esperto da grande firma do judeu.

— Ele é um feroz traidor antiamericano, é o que ele é — declarou o diretor da CIA, escrevendo o nome que Mortalha soletrou. O telefone visível do diretor tocou de novo; suas visitas estavam impacientes. — Fique onde está de olhos bem abertos, Little Joey. — Mangecavallo desligou e colocou o telefone de novo na gaveta. Depois apertou duas vezes o botão da linha da secretária, sinal de que podia atender. Ao fazê-lo, pegou um lápis e escreveu, em letra de imprensa, outro nome embaixo do de Devereaux: BROOKLYN! Estava cansado; chegara a hora dos profissionais seguros.


O Coronel Bradley “Hoot” Gibson, piloto do EC-135, Looking Glass para operações globais do Comando Aéreo Estratégico, gritou no rádio:

— Seus idiotas, foram almoçar no último quasar depois de Júpiter? Estamos aqui em cima há cinquenta e duas horas, fomos reabastecidos três vezes e desculpados em seis idiomas, dois dos quais nem sequer estavam nos malditos computadores! Mas que diabos está acontecendo?

— Nós o ouvimos perfeitamente, Coronel — foi a resposta da torre de controle de Offutt, usando uma banda de rádio de UTF conhecida também como frequência ultratropopáusica, que, descontando a infeliz tendência para pegar desenhos animados na TV da Mongólia, tinha excelente alcance em todo o Pacífico. — Cuidamos das reclamações aqui embaixo com muita eficiência. É um bom sinal vocês não terem sido atingidos por um míssil, não acha?

— Ou você põe nosso comandante em contato ou desapareço de seus visores, voo para Pago-Pago e mando buscar minha mulher e os garotos! Estou cheio, todos estamos cheios!

— Calma, Coronel, há cinco aeronaves mais ou menos na mesma situação da sua. Pense nelas.

— Vou lhe dizer o que penso delas. Vamos seguir para o interior da Austrália, vender esses spaghettis eletrônicos a quem der mais e então teremos dinheiro para começar um país só nosso!... E agora, ponha esse palhaço desse comandante no aparelho!

— Estou com ele, Coronel Gibson — disse uma voz totalmente diferente. — Tenho acesso a todo equipamento no ar.

— Bisbilhotando, Brigadeiro? Isso não é contra a lei?

— Não nessa circunstância, rapaz... Vamos lá, Hoot, como acha que eu me sinto?

— Acho que sente o rabo numa poltrona estofada, num prédio em terra firme. É isso o que eu acho que você sente, Owen.

— Suponho que também ache que eu dei essas ordens, não é? Pois bem, vou contar um segredinho de segurança nacional: não tenho permissão para dar essas ordens. Elas foram dadas a mim — Código Vermelho Plus.

— Vou repetir, que diabos está acontecendo?

— Você não acreditaria se eu contasse e também não posso contar porque não entendi uma só palavra do que os homens de capa disseram... bem, entendi o significado de cada palavra, mas não o que elas queriam dizer juntas.

— Que capa?

— Mais uma vez, você não acreditaria em mim. Está quente como o diabo aqui e, apesar disso, eles não tiram as capas, nem os chapéus, além de não abrirem as portas para as senhoras.

— Owen... Brigadeiro Richards — disse o piloto, com firme gentileza. — Esteve no hospital da base ultimamente?

Em seu escritório, o comandante do CAE suspirou ao responder ao piloto 2.200 quilômetros a oeste e a 10 mil metros de altitude. — Sempre que a porcaria desse telefone vermelho toca, eu fico com vontade de me deitar — nesse instante, como não podia deixar de ser, o telefone vermelho zumbiu, ao mesmo tempo em que sua luz vermelha piscava. — Que merda, lá vem ele de novo!... Aguente, Hoot, não saia daí.

— Não estou cancelando o interior da Austrália, Owen.

— Cale-se — ordenou o comandante do CAE, pegando o telefone vermelho. — Quartel-General do Esquadrão de Reconhecimento, fala Brigadeiro Richards — disse ele, de uma forma insegura.

— Traga-os para baixo, Scotty — gritou a voz meio gemendo, meio ofegando do Secretário da Defesa. — Traga-os todos para baixo!

— Como, Secretário?

— Traga-os de volta, soldado! Temos agora algum tempo para respirar, por isso fique aí embaixo até que eu o chame de novo e, nessa hora, esteja preparado para mandar subir toda a flotilla!

— Flotilla, sir?

— Seja lá qual for seu nome, você me ouviu bem!

— Não, Secretário — disse Richards, sentindo-se subitamente invadido por uma certa calma. — Agora vai me ouvir. Acaba de dar sua última ordem a seja-lá-qual-for-seu-nome.

— O que disse, mister?

— Você me ouviu bem e meu título é “brigadeiro”, em oposição ao civil “mister”, embora não creia que qualquer um deles lhe diga alguma coisa.

— Está se amotinando?

— Em toda a extensão do meu vocabulário, mister... Por que toleramos vocês, seus canos de esgoto de Washington, é uma coisa que nunca serei capaz de entender, mas me disseram que se deve a alguém que nunca esbarrou num sujeito como você e não serei eu a apresentá-lo, pois então todas as regras seriam alteradas... como abrir as portas para as senhoras... e também porque não estou certo de que seja uma boa ideia.

— Você está doente, soldado?

— Sim, estou doente, estou enojado, seu rato de tapete, estou cheio de vocês, políticos estúpidos, que pensam que sabem mais da minha atividade do que eu mesmo, após trinta anos neste uniforme! E pode apostar que vou trazer todos para baixo, Scotty, e os traria de qualquer forma, mesmo que você não telefonasse!

— Você está demitido, soldado!

— Enfie a cabeça numa latrina, com peruca e tudo, civil. Você não pode me demitir. Pode me dispensar do cargo, e espero sinceramente que o faça, mas não pode me demitir. Está no meu contrato. Adeus e tenha um dia miserável!

O Brigadeiro desligou violentamente o telefone vermelho e voltou à ligação de rádio UTF. — Ainda está aí, Hoot?

— Ainda estou aqui e ouvi tudo, soldado Richards. Pronto para o serviço de limpeza das latrinas?

— Esse filho da puta está pronto para a minha coletiva de imprensa?

— Bem lembrado, Cabo... Deduzo que estamos de volta.

— Todos. Voltaremos às operações normais a partir de agora.

— Ligue para minha mulher, sim?

— Não, vou ligar para sua filha; a cabeça dela está mais no lugar. Sua mulher acha que você foi abatido na Mongólia e conservou como relíquia um prato de rosbife cortado em pedacinhos.

— Tem razão, fale com a garota. E diga-lhe para usar saias mais compridas.

— Câmbio final e desligo, Coronel.

O Brigadeiro Owen Richards desligou e empurrou a cadeira para trás, satisfeito consigo mesmo. Que se lixe a carreira, devia ter feito isso há muito tempo. A reforma não seria tão terrível, embora tivesse que admitir que também não seria fácil pôr o uniforme numa arca. Ele e a mulher podiam viver onde bem quisessem... um de seus pilotos dissera que a Samoa Americana era um lugar formidável. Ainda assim, não seria fácil deixar a única coisa que ele mais amava depois da mulher e dos filhos. A Força Aérea era sua vida — que fosse para o inferno!

E, naturalmente, o telefone vermelho voltou a tocar. Richards atendeu explodindo de raiva. — O que é, seu skinhead de merda?

— Puxa, Brigadeiro, é assim que atende um telefonema amistoso?

— O quê? — a voz era familiar, mas Richards não conseguiu reconhecer. — Quem é?

— Acho que me chamam de Comandante em Chefe, Brigadeiro.

— O Presidente?

— Pode apostar as meias, seu jóquei de avião.

— Jóquei de avião?

— Uniforme diferente, mas equipamento parecido, Brigadeiro, à exceção do jato de alta tecnologia.

— Equipamento?

— Calma, piloto. Eu já estava lá quando você usava fralda.

— Meu Deus, é ele!

— “É você” seria gramática melhor, Owen. Só sei disso porque minha secretária me diz.

— Peço desculpas, Presidente!

— Não peça, Brigadeiro. Eu é que peço. Acabo de ter uma conversa com nosso Secretário da Defesa...

— Compreendo, Presidente. Fui dispensado do comando.

— Não, Owen, ele é que foi. Bem, não foi verdadeiramente dispensado, mas não toma mais decisões sobre você sem me ouvir. Ele me contou o que você disse e eu não poderia dizer melhor, nem mesmo recorrendo a meus redatores mais competentes. Se tiver mais problemas ligue diretamente para mim, entendeu?

— Entendi, Presidente... É uma pessoa correta!

— Digamos apenas que dei um chute no rabo de alguém, mas, pelo amor de Deus, não conte a ninguém que eu disse isso!


Sam Devereaux pagou dez dólares ao porteiro para que ele assobiasse em todas as direções, a fim de conseguir um táxi. Nos primeiros três minutos os resultados foram nulos, embora dois táxis tivessem passado velozmente por um frustrado Sam, no meio da rua, os olhos dos motoristas fixos na sua calça. Voltou para perto do porteiro no momento em que um casal parava diante do Four Seasons, ficando ambos um pouco perturbados quando Sam tirou a bagagem deles da mala do carro e ignorou suas objeções, optando unicamente por saltar para dentro do táxi e gritar o endereço da sua própria residência, em Weston.

— Por que diabos você está parando? — berrou Devereaux, após alguns quarteirões.

— Porque se eu não parar vou bater no idiota na minha frente — replicou o taxista.

Como sempre, havia um engarrafamento matinal nas disparatadas ruas de mão única de Boston, que forçavam os motoristas menos familiarizados com a cidade a andar vinte quilômetros para chegar a um endereço a vinte metros.

— Conheço um atalho para a estrada de Weston — disse Sam, inclinando-se para o banco da frente.

— Você e o resto da população de Massachusetts, meu amigo. E, a menos que tenha uma arma, afaste-se de mim.

— Nada de armas, nada de ameaças. Sou apenas uma pessoa simpática com muita pressa.

— Já vi que está com muita “pressa”, pelo estado de sua calça. Se tiver outra “pressa” dessas, ponha-se daqui para fora!

— Não, não, isso é café! Eu entornei uma xícara de café!

— Quem sou eu para discutir? Não se importa de chegar para trás? Consta da nossa apólice de seguro.

— Claro — disse Sam, chegando para trás, mas na beirinha do banco traseiro. — Olhe, só quero convencê-lo de que é uma emergência, uma autêntica emergência! Uma senhora cujo nome não conheço está indo para minha casa e eu tenho que chegar lá antes dela. Essa senhora saiu aqui do hotel minutos atrás, em outro táxi.

— Naturalmente — disse o motorista, com resignação filosófica. — Ela descobriu seu endereço na carteira durante a noite e acha que agora pode conseguir um dinheirinho extra fazendo uma visitinha à patroa. Quando é que vocês, trouxas, vão aprender?... Ei, há um grande buraco ali adiante. Vou descer pela rua Church e depois subir até a estrada para Weston.

— É o atalho de que eu falava.

— Com alguma sorte, nessas multidões de veranistas não haverá muita gente que o conheça.

— Basta que me leve para casa o mais depressa possível.

— Ouça, cavalheiro, a lei diz que, se não houver indício de intenção criminosa, linguagem abusiva ou aparência anti-higiênica, eu tenho que levá-lo aonde quiser. Agora, você está perto do limite nos três casos... excedeu um deles, na minha opinião, de modo que é melhor não forçar, está bem? Ninguém quer vê-lo em casa e fora deste carro mais depressa do que eu.

— Claro que a lei diz isso — concordou Devereaux, ligeiramente espantado. — Acha que eu não sei? Sou advogado.

— Sim e eu sou bailarino.

Finalmente, o táxi entrou na rua de Devereaux. Verificando o taxímetro, Sam deixou cair a quantia no banco da frente, juntamente com uma generosa gorjeta.

Abriu a porta, saltou na calçada e viu que não havia outro táxi à vista.

Ele conseguira, e caramba, aquela mulher não demoraria a ter a maior surpresa de sua vida! Só porque uma mulher que usava o mínimo de linguagem jurídica era escandalosamente maravilhosa, com um rosto e um corpo criados por um Botticelli, não tinha o direito de dar seu endereço a um motorista de táxi e sugerir alguma vaga ameaça legal sem ser convenientemente apresentada! Não senhor, Samuel Lansing Devereaux, advogado de alto respeito, era feito de matéria mais rija... Talvez devesse trocar de calça. Começou a percorrer o caminho que dava para a sua entrada particular, quando a porta da frente abriu, revelando a prima Cora acenando para ele de forma muito exagerada, mesmo para ela.

— O que há? — perguntou ele, saltando a cerca de madeira branca e correndo pela escada, com a ligeira suspeita de um desastre iminente.

— O que há? — repetiu Cora, furiosa. — Talvez seja melhor você dizer o que andou fazendo, além do óbvio — acrescentou, olhando de relance para a calça dele.

— Ah, sim, pois é — foi só o que ocorreu a Sam dizer.

— Acho que é um começo...

— O que aconteceu? — interrompeu Devereaux.

— Há pouco bateu nesta porta uma garota muito atraente, bronzeada e de pernas compridas, que deve ter saído diretamente de um desses anúncios das praias da Califórnia. Ela perguntou por uma certa pessoa, cujo nome é melhor não mencionar. Bem, Sammy, pensei que sua mãe fosse ter um enfarte, mas a senhora de pernas compridas e com um rosto pelo qual você seria capaz de matar a acalmou, e agora estão na sala de estar, a portas fechadas.

— Que raio de conversa é essa?

— Só posso dizer que a importante foi à despensa buscar seu bule, mas não me disse para eu fazer chá.

— Filha da puta! — gritou Devereaux, atravessando o hall de mármore correndo, abrindo as portas francesas da sala e irrompendo ela adentro.

— Você! — gritou Jennifer Redwing, levantando-se da cadeira de brocado.

— Você! — gritou Sam, furioso. — Como chegou aqui tão depressa?

— Já morei em Boston. Conheço vários atalhos.

— Vários...?

— Você! — gritou Eleanor Devereaux, levantando-se do sofá de boca aberta e com o olhar fixo em Sam. — Sua calça, seu terrível e incontinenti garoto!

— É café, Mãe!

— É café — repetiu a bronzeada Afrodite. — Diz ele.


12

— Agora você tem as linhas gerais do festival internacional de chantagem Mac-&-Sam, sobre a capacidade do general de cavar bem fundo e descobrir lixo que vire prova acusatória — disse Devereaux. Eles estavam no escritório de seu refúgio no château, agora com as paredes livres de fotos e recortes de jornais e sua mãe recolhida ao leito, por se sentir deprimida. Sam estava atrás da escrivaninha e Jennifer Redwing se acomodara na cadeira em frente, que ainda exibia as tiras dos lençóis amarradas nos braços.

— É inacreditável... e você sabe que é, claro. — Ela abriu devagar a bolsa, comportando-se como uma senhora inteligente em estado de choque. — Meu Deus do céu, quarenta milhões de dólares!

— Nada de spray! — gritou Devereaux, empurrando a cadeira contra a parede.

— Nada de spray — confirmou Redwing, tirando um maço de cigarros. — Apenas um vício do qual desisto de duas em duas semanas, até acontecer uma coisa assim... embora nunca tenha acontecido nada assim... Bem, pelo menos estou tentando cortar.

— É uma muleta, você sabe. Devia ser mais disciplinada.

— Com tudo o que aconteceu, advogado, não acho que esteja em posição de fazer sermão. Tem um cinzeiro, ou vou ser obrigada a incendiar este tapete caro?

— Já que está decidida — disse Sam, abrindo uma gaveta e tirando dois cinzeiros e um maço de cigarros —, acho que vou ceder também... Vejo que ambos preferimos baixos teores.

— Voltemos aos golpes baixos, Sr. Devereaux. — Os dois advogados acenderam as respectivas muletas e Miss Redwing continuou. — Esta petição para a Suprema Corte é uma besteira pura, também deve saber disso, igualmente.

— Redundância, advogada. “Também“ e “igualmente” são redundantes.

— Não quando usadas para dar ênfase diante de um júri, por um advogado competente, sir.

— Concordo. Quem é quem?

— Ambos somos — disse Redwing. — No meu caso, falando em nome dos Wopotamis, considero que seus interesses não são atendidos neste processo frívolo, que já foi longe demais.

— Falando como colega, desastrosamente associado no passado ao General Hawkins — contrapôs Sam —, considero que o processo nada tem de frívolo. Numa visão realista, não tem chance alguma, mas a argumentação da tribo contra o Governo é bem convincente.

— O quê? — Redwing fixou o olhar em Devereaux, a fumaça suspensa, como se tivesse sido flagrada numa fotografia. — Está brincando, com certeza.

— Quem me dera estivesse. A vida seria muito mais fácil.

— Quer explicar?

— A prova extraída dos arquivos secretos parece ser autêntica. Tratados territoriais executados de boa-fé foram substituídos por realojamentos decretados por lei que não levaram em consideração os acordos prévios, os direitos de propriedade da terra já existentes.

— “Realojamentos decretados por lei”?

— Isso mesmo, e o Governo não tinha autoridade para revogar a então recente doutrina legal de propriedade e forçar os Wopotamis a sair de suas terras. Certamente não sem um julgamento por um tribunal federal, com plena representação tribal.

— Eles fizeram isso? Sem tribunal, sem audiência da tribo? Como se atreveram?

— O Governo mentiu especificamente quanto ao Tratado de 1878 entre os Wopotamis e o 49º Congresso.

— Mas como?

— O Departamento do Interior, obviamente com uma ajudinha do Escritório de Relações com os Índios, afirmou que esse tratado nunca existiu, que era uma fantasia sonhada por feiticeiros bêbados que metem goela abaixo água de zumbi, enquanto dançam em volta das fogueiras... A petição chega a especular sobre as causas do incêndio que destruiu, em 1912, o primeiro Banco de Omaha.

— Isso me diz alguma coisa — disse Redwing, franzindo a testa e apagando o cigarro no cinzeiro.

— Deveria dizer. Era lá que os Wopotamis guardavam todos os registros da tribo, nenhum dos quais sobreviveu, claro.

— Qual foi a especulação?

— Que o fogo foi ateado por agentes federais, no cumprimento de ordens vindas de Washington.

— A acusação é séria, advogado, mesmo oitenta anos depois. Em que se baseou a especulação?

— O banco foi supostamente arrombado no meio da noite, tendo desaparecido todo o dinheiro e os ladrões escaparam sem deixar pista. No entanto, antes de fugir, decidiram aparentemente tocar fogo no banco, o que foi bem idiota, já que estavam escapando sem qualquer problema e um incêndio só serviria para acordar alguns cidadãos.

— Pode ter sido idiota, mas não seria novidade, Mr. Devereaux. Personalidades patológicas não são um fenômeno recente e o ódio a bancos tem uma longa história.

— De acordo, mas quando se determinou que o incêndio teve origem no porão do banco, onde ficavam os arquivos, que os documentos tinham sido espalhados pelo chão todo e que jogaram querosene nas salas, isso dá o que pensar, não acha? Mesmo que o fogo não atingisse toda a estrutura, essas salas seriam destruídas, com certeza. Além do mais, foi a perseguição mais curta dos anais do crime, já que os arrombadores foram logo vistos na América do Sul. Claro que Cassidy e Sundance disseram que nunca tinham estado em Omaha e, ao que se sabe, eram os únicos americanos ladrões de banco por lá nessa época... Naturalmente, esta é uma rápida análise abrangente, como meu santo patrão diria... dizia.

— Isso é desastrosamente convincente — a linda advogada índia sacudiu a cabeça em movimentos rápidos. — Não pode ir adiante, deve compreender isso.

— Não tenho certeza de que se possa impedi-lo! — disse Sam.

— Claro que pode! Esse general, esse desordeiro catastrófico chamado Hawkins, pode simplesmente desistir do recurso... confie no que eu digo, a Suprema Corte adora desistências de recursos e até meu irmão aprendeu isso quando esteve lá.

— É ele o tal?

— O tal quem?

— O jovem guerreiro da tribo que trabalhou com Mac mas não passou no exame da Ordem?

— Não passou? Pois deixe-me contar, meu irmãozinho, meu irmão, passou com uma das melhores classificações!

— Eu também.

— Percebe-se — disse Redwing, sem o menor entusiasmo na concessão. — Parece que ambos foram feitos do mesmo barro.

— É ele a pessoa que eu a faço lembrar? Era isso o que queria dizer?

— O que significa, advogado, é que seu maldito General Hawkins encontrou outro Samuel Devereaux para a sua mais recente travessura cataclísmica.

— Seu irmão esteve no Exército?

— Não, ele esteve numa reserva — a errada... Voltemos ao general louco.

— Na realidade, “louco” fazia parte de seu apelido militar.

— Por que será que não acho isso completamente surpreendente? — Jennifer remexeu na bolsa, atrás de outro cigarro.

— Ei, advogada — interrompeu Devereaux quando Redwing tirou o maço. — Estava indo tão bem... apenas umas duas baforadas e apagou o cigarro. Eu fiz o mesmo, como que colaborando.

— Veja se me esquece, advogado! Não quero falar de sua cirurgia cerebral ou das minhas fraquezas. Quero falar de Hawkins e da apelação à Suprema Corte e de como podemos esmagá-lo!

— Na realidade, em termos legais, não é uma apelação... não houve decisão prévia em algum tribunal que se pretenda contrariar, como acontece nos recursos de apelação...

— Não se atreva a me citar o texto da lei, seu mijão!

— Foi café! Eu troquei a calça e você concordou que era café.

— Foi também um recurso de apelação, no mais amplo sentido legal, uma apelação para se retificar um erro — disse Redwing, ligeiramente na defensiva.

— Minha calça?

— Não, seu idiota, a maldita petição!

— Então concorda com Mac. Se pensar bem em tudo o que eu lhe disse, concluirá que foi cometido um crime contra seu povo. Não acha que deve ser “corrigido”?

— De que lado você está? — protestou a beldade nativa americana.

— Neste momento sou um advogado do diabo, reprimindo minhas inclinações naturais. Quero saber o que você acha.

— Será que não entende? O que eu acho não interessa! Eu me preocupo com meu povo e não quero que ele sofra... Vamos, Devereaux, seja realista. Uma pequena tribo índia contra o majestoso poder nacional do CAE... por quanto tempo conseguiríamos sobreviver? Até mesmo o espectro dessa hipótese... quer tenha possibilidade ou não de se concretizar... pode dar origem à aprovação de novas leis, à expropriação de terras para domínio público, à dispersão do nosso povo, resultando de tudo isso um genocídio racial e econômico, e não seria a primeira vez que sofreríamos um genocídio.

— E não vale a pena lutar contra isso? — perguntou Sam, com expressão passiva. — Em algum lugar?

— Teoricamente, claro que sim, e na grande maioria das instâncias, ativamente. Mas não aqui. Nosso povo não está infeliz. Eles têm terra para viver, com subsídios governamentais decentes, que eu tenho aplicado em investimentos, com resultados excepcionais. Mergulhá-los de repente num charco de violência legal, e é isso o que seria, violência... é que pura e simplesmente não posso permitir.

— Mac não concordaria com você. Ele é um primitivo, qualquer violência para ele não é uma ameaça, e sim um convite... Além disso, Miss Redwing, agora tenho que falar pelo meu ego reconhecidamente apavorado e suspeito que falo também pelo maior advogado que já conheci, ou seja, o meu patrão, um tal Aaron Pinkus. Não creio que possamos concordar com você. Como vai compreender, somos agentes do Direito, foi cometido um grande crime, e não seria muito apropriado virar as costas. Isso se realmente acreditamos naquilo que pensamos que somos. Foi isso que Aaron quis dizer, quando me disse que tínhamos que tomar individualmente as decisões de nossas vidas. Devemos nos afastar ou lutar por uma verdade que pode nos destruir profissionalmente, mas sabendo interiormente que temos razão?

Jennifer Redwing, de olhos arregalados e fixos em Sam, engoliu várias vezes em seco e depois disse, de forma hesitante: — Quer se casar comigo, Sr. Devereaux?... Não! Eu não quis dizer isso! É como o que me disse no elevador! Um lapso, um lapso mental!

— Não faz mal, Miss... Miss... qual é seu primeiro nome? Afinal de contas, fui eu que disse primeiro... refiro-me ao lapso.

— As pessoas me chamam de Red.

— Não é por causa do seu cabelo... meu Deus, é o ébano mais bonito e mais lustroso que já vi em toda a minha vida.

— São os genes — disse Redwing, levantando-se lentamente da cadeira. — Meu povo comia uma grande quantidade de carne de búfalo. Disseram que o brilho no cabelo provém geneticamente da carne de búfalo.

— Não quero saber de onde provém esse brilho — disse Devereaux, levantando-se também e contornando a mesa. — Você é a mulher mais bonita que eu já encontrei na vida.

— A beleza é apenas o que está na superfície, Sam... posso chamá-lo de Sam?

— É um bom substituto para “idiota” — disse Devereaux, envolvendo-a num abraço. — Você é maravilhosa!

— Por favor, Sam, isso é tão irrelevante. Se estou atraída por você, e obviamente estou, não é pelo seu rosto bonito e o seu corpo alto e esbelto, o que, aliás, não se pode deixar de levar em consideração, mas por sua integridade e seu grande amor à lei.

— É verdade, eu tenho isso! Eu realmente tenho isso!

— Não seja frívolo, Sam. Por favor, não seja frívolo.

— Nunca, nunca.

E, naturalmente, o maldito telefone tocou nesse momento. A mão de Devereaux abateu-se sobre a mesa, tocando de raspão a base do aparelho, mas fazendo com que o fone voasse por cima do mata-borrão; pegou-o com raiva. — Isto é uma gravação — disse Sam, em voz alta e tom monocórdico. — Você ligou para a Funerária Lugosi, mas não há ninguém aqui que possa levantar e atender...

— Pare com isso, rapaz — interrompeu a voz áspera de MacKenzie Hawkins — e ouça com atenção. Estamos sendo atacados e você é o alvo, de modo que quero que procure um abrigo rapidamente.

— Ouça, seu cérebro de fóssil, eu o deixei duas horas atrás — a gloriosa Redwing olhava para ele com expressão de total aturdimento — e minhas instruções foram para que não me perturbassem senão post meridiem! Para sua informação, isso quer dizer depois do meio-dia...

— Não, Sam, é você que me vai ouvir — interrompeu o Falcão, com uma calma que transmitia genuína preocupação. — Saia da casa. Agora.

— Por que diabos devo sair da casa?

— Porque não tem um telefone secreto e isso significa que seu número está na lista.

— Como milhões de outros...

— Mas só dois deles já ouviram falar dos Wopotamis.

— O quê?

— Vou dizer isso só uma vez, filho, porque nenhum de nós pode perder tempo. Não sei como aconteceu, não é o modus operandi de Hymie, o Furacão. Oh, diabos, ele está enviando um pistoleiro contratado, um assassino.

— Não acha que é ainda um pouco cedo para beber?

— Ouça bem, tenente — disse Hawkins, a voz agora calma e fria. — Meu ajudante Desi-Um, que, sem meu conhecimento, esteve temporariamente empregado na área de Nova York, especificamente no bairro do Brooklyn, viu um homem no saguão do hotel que conhecia de longe no emprego temporário anterior. Um homem muito mau, tenente, e porque o cabo é consciente, ficou perto desse hombre vicioso, como ele o chamou, na recepção e o ouviu perguntar claramente sobre dois senhores. Os nomes eram Pinkus e Devereaux.

— Santa mãe...

— Precisamente, rapaz. Este homem mau deu um telefonema, voltou à recepção e pegou um quarto só dois andares abaixo do nosso. Não gostei desse telefonema, Sam.

— Nem eu.

— Acabei de falar com o comandante Pinkus e concordamos. Pegue sua mãe e aquela empregada maluca que ele diz ser sua parenta e saia daí. Não podemos permitir reféns.

— Reféns? — gritou Devereaux, olhando a gloriosa Red Redwing, que o olhava de volta, uma expressão de completa perplexidade no rosto. — Meu Deus, você está certo.

— Raramente erro nessas coisas, filho. O Comandante Pinkus ordena que você siga para aquela espelunca em que nos encontramos no estacionamento. Ele mandará o sargento artilheiro buscá-lo, assim que o localizar... Parece que a patroa se apoderou da limusine para fazer umas compras e não fala com o Comandante, a não ser para gritar por causa de umas cortinas sujas e de um cheiro no banco traseiro, que parece uma combinação de peixe e pastéis dinamarqueses.

— Estamos a caminho, mas vou ter que usar o Jaguar da mamãe. Stosh não devolveu meu carro, por isso diga a Aaron para mandar Paddy procurar o Jag amarelo... E você, Mac... não que eu me importe muito, falando sinceramente, mas o tal homem mau está mesmo só dois andares abaixo?

— Fico realmente comovido com sua preocupação, filho, mas ainda temos tempo para levantar acampamento e pegar todos os papéis.

— Como você sabe? Odeio dizer isso, mas você não é realmente invencível. Aquele filho da puta pode estar indo atrás de você agora!

— Não, não por enquanto, Sam. Desi-Dois fez um trabalhinho na fechadura do filho da mãe e a porta dele não abre nem por fora nem por dentro. A única maneira de ele sair é pela janela do quinto andar ou quando o hotel trouxer um maçarico, porque a porta é puro aço sob os painéis extravagantes. E então, sei recrutar pessoal ou sei recrutar pessoal?

— Reservo meu julgamento sobre isso, mas digo-lhe que tive uma conversa muito estranha com eles ontem à noite.

— Eu soube, garoto. Adivinhe só? Eles vão entrar para o exército! Pedi a eles que adiem por um dia ou dois e os enviarei direto ao treinamento pós-básico do G-Dois. Cristo Todo-Poderoso, eles já estão anos-luz à frente dos idiotas que terminaram o curso! Naturalmente, Desi-Um precisa consertar os dentes; simplesmente não é adequada essa lacuna na boca, mas ainda tenho minhas conexões. O exército vai cuidar disso...

— Vamos sair daqui, Mac — interrompeu Devereaux bruscamente. — Como você disse, não podemos perder tempo. — Com essas palavras, Sam bateu o telefone e virou-se para Red Redwing. — Temos um problema sério —, disse ele, apertando os ombros dela. — Recordando a essência de nossa comunicação anterior, você confia em mim, por favor?

— Emocional ou intelectualmente? — perguntou, subitamente desconfiada, a advogada adversária.

— As duas coisas são inseparáveis. Corremos o risco de que arrebentem nossos rabos, ou talvez nossas cabeças.

— Você disse algo como fugir daqui, o que estamos esperando?

— Temos que pegar a Mãe e a prima Cora.

— No linguajar da lenda índia, hora de correr como os ventos do norte antes que os caras-pálidas se aproximem com seus paus de fogo.

— Meu Deus, isso é magnífico!

— O quê?

— O “vento norte”, os “paus de fogo”!

— Não se você nasceu numa tribo, meu chapa. Vamos! Você vai... buscar a prima Cora, enquanto eu vou buscar sua mãe.

— Não devia ser o contrário?

— Está brincando? Sua mãe não confia em você nem por um segundo.

— Ela tem que confiar. Sou filho dela.

— Ela negará isso, dou-lhe minha palavra.

— Mas eu te amo... e você me ama. Nisso concordamos!

— Ambos nos deixamos empolgar... você, superficialmente; quanto a mim, meu entusiasmo foi intelectual. Discutiremos isso mais tarde.

— Foi a coisa mais dolorosa que eu poderia ouvir da sua boca.

— Vingue-se de mim com um pau de fogo apontado para a minha cabeça num dia de vento calmo do norte, advogado. Vamos. A última vez em que vi Cora, ela estava na despensa verificando os bules de chá. Veja onde ela está que eu cuido de sua mãe e nos vemos na garagem. Traga as chaves do Jag.

— Na garagem...?

— Você esquece que sou índia. Cercamos o acampamento antes de atacar. O homem branco nunca aprende.

— Magnífico!

— Oh, cale-se. Vamos!

Cora, porém, recusou-se a arredar pé e quando Sam deu a entender que havia uma possibilidade real de ocorrer uma ameaça física à sua vida, a parenta distante abriu magneticamente uma gaveta escondida embaixo do forno e tirou para fora não uma, mas duas Magnum 357, ambas carregadas, proclamando ser a verdadeira guardiã da casa.

— Acha que eu confiaria nessas porcarias desses alarmes que disparam quando menos se espera, sobrinho? Nem pensar, Sammy! Venho de outro ramo da família, um ramo ao qual a gostosona e o marido fala-mansa não ligavam muito, mas, se Deus quiser, saberei cumprir minha missão!

— Não acredito em armas, Cora!

— Então acredite no que quiser, Sammy. Esta prima distante e bêbada é paga para tomar conta desta casa e você não vai tirar isso, não, meu chapa?

— Meu chapa...?! Não aguento dois “meu chapa” no espaço de cinco minutos.

— Você fala sempre de uma forma engraçada, menino Sam.

— Eu já lhe disse alguma vez que a amo, Cora?

— Algumas vezes, Sammy, quando estava lubrificado até os últimos cilindros. E agora, você e esse inacreditável par de pernas agarrem a gostosona e fora daqui... E que o bom Deus protestante tenha pena de qualquer safado que tente entrar nesta casa. E como medida de segurança, talvez até ligue para a polícia... eles que se esforcem para ganhar a vida, para variar.

O Jaguar amarelo, com Redwing amparando uma semi-inconsciente Eleanor no banco de trás, saiu velozmente da casa em direção às ruas que iam dar na estrada para Boston. Na segunda esquina, passaram por uma limusine preta comprida com todas as caraterísticas dos anos 30, inclusive uma cara colada na janela que parecia ter saído da lente de um fotógrafo especializado em animais. Apesar de sua relutância, Devereaux pisou no acelerador, certo de que Cora seria mais do que um desafio para dois pistoleiros idiotas o suficiente para procurar uma casa que não conheciam num imenso carro preto em plena luz do dia. Polícia à parte, sua pseudoprima do outro ramo da família ia arrebentá-los com suas Magnums. Onde ela as teria arranjado?

— Sam, sua mãe precisa ir ao banheiro! — disse Redwing doze minutos depois, aninhando Eleanor em seus braços.

— A minha mãe não faz isso. Isso é para outro tipo de pessoa. A minha mãe nunca vai ao banheiro.

— Ela diz que é de família... sua calça prova.

— Café!

— É o que você diz.

— Chegaremos ao Nanny's em poucos minutos. Diga-lhe para se aguentar.

— Nanny's Naughty Follies?? — gritou a advogada filha dos Wopotamis. — Estamos indo para lá?

— Você conhece?

— Bem, quando eu estava na Faculdade tivemos umas duas... ações juridicamente orientadas. Um curso sobre censura constitucional, esse tipo de coisa... Você não pode levá-la para lá! Funciona vinte e quatro horas por dia.

— Não há outra escolha, Miss. Fica apenas a dois ou três minutos daqui.

— Ela ficará mortificada!

— Pode culpar a caraterística familiar da incontinência.

— Você é um filho que carrega a semente demoníaca dos maus espíritos embaixo da terra.

— Que po... po... o que isso quer dizer?

— Significa que seu nascimento não foi aceito pelos deuses benevolentes e que a sua carcaça será devorada pelos abutres após uma morte dolorosa.

— Isso não foi nada amável, Red. Não está em sintonia com a nossa conversa no meu escritório.

— Eu disse que me deixei levar pelo entusiasmo. Ouvi palavras que não ouvia há muito tempo... há tempo demais. Frequentemente a prática da advocacia entra em conflito com o amor pela lei. Perdi momentaneamente o controle da minha perspectiva e não gosto de perder o controle.

— Eita, muito obrigado. Um pequeno exame das almas é o suficiente para deixá-la excitada, seja qual for o “idiota” que se submeta, é isso?

— Acho que todos nós devíamos fazer um pequeno exame desses de vez em quando na nossa profissão.

— Então você é mesmo advogada.

— Sou.

— De que sociedade?

— Springtree, Basl & Karpas, de San Francisco.

— Meu Deus, são tubarões!

— Ainda bem que compreende... Quanto falta para chegarmos? Sua mãe mal consegue falar e está se sentindo muito mal.

— Menos de um minuto...Ei, talvez devêssemos levá-la para o hospital! Se ela está mesmo...

— Esqueça, advogado, isso a mortificaria mais do que o Nanny's. O bule de chá estava vazio.

— Esse é outro galho da árvore tribal da sabedoria?... Não, não pode ser. Cora falou em bules de chá... e você também.

— Algumas coisas, Mr. Devereaux, como a gravidez, são experiências claramente femininas.

— Muito obrigado pelo Mr. antes do meu nome — disse Sam, entrando no estacionamento do Nanny's Naughty Follies Et Cetera. — Ninguém toma em consideração o meu dia ou a noite passada. Madman Mac e seus dois absurdos “ajudantes” que não param de me perseguir, gregos barbudos que levam minha roupa, Aaron Pinkus me tratando de “Samuel“, uma petição dirigida a algum inferno jurídico, uma mãe bombada, a mulher mais bonita que já vi se apaixonando e se desapaixonando por mim no espaço de vinte minutos... e agora a porra de um pistoleiro do Brooklyn querendo me pegar! Talvez eu devesse ir pro hospital.

— Talvez devesse parar o carro! — gritou Red Redwing, quando Devereaux passou pelo toldo da entrada do Nanny's. — Agora recue uns trinta metros!

— Seu povo enterra os prisioneiros até a cabeça em formigueiros assassinos — resmungou Sam.

— É uma opção que tomarei em consideração — disse Redwing, abrindo a porta e insistindo delicadamente com Eleanor Devereaux para sair do carro. — Quer fazer o favor de tirar o seu rabo de cima desse banco e vir me ajudar? Caso contrário, o tal pistoleiro do Brooklyn será a menor das suas preocupações!

— Está bem, está bem — Sam fez o que ela mandara e segurou o braço direito da mãe, enquanto os três caminhavam até o prédio imponente, onde havia fotos de homens e mulheres nus por toda a parte, nas paredes de estuque e acima do portal. — Talvez eu não devesse ter saído do carro — sugeriu Sam, em voz baixa.

— Bem lembrado, advogado — concordou Redwing, não sem um toque de sarcasmo. — Pode não estar aqui dentro de dois minutos... Eu fico com Eleanor, você espera o tal Paddy, ou lá como ele se chama.

— Eleanor?

— Nós, mulheres, somos capazes de reconhecer mais rapidamente as nossas almas gémeas do que os homens. Somos mais inteligentes... Vamos, Ellie, vai sentir-se melhor.

— Ellie? — repetia o atônito Devereaux, enquanto a fantástica índia levava a mãe para dentro.

— Ei, Janota! — exclamou a voz rouca de um imenso e corpulento cidadão de meia-idade, que mal lembrava um ser humano, parado ao lado do Jaguar e que, obviamente, tinha por missão afastar indesejáveis. — Aqui não temos exatamente um serviço de estacionamento. Tire esse carro de bicha daí!

— Imediatamente, Sr. Guarda — Sam trotou de volta até o Jaguar, sob o olhar ranheta do veterano comando do Nanny's.

— Não sou policial — disse o velho carnívoro, no momento em que Devereaux se sentava ao volante. — Não interprete isso como uma medida policial, cavalheiro.

— Entendido — Sam pôs o motor para trabalhar. — É óbvio que você trabalha para o Corpo Diplomático — acrescentou, girando o volante e disparando pelo estacionamento, fazendo um cavalo de pau antes de parar. Assim que visse Redwing e a mãe saindo, voltaria rapidamente para o toldo, já que até mesmo essa versão idosa de um ogro sentiria o reflexo da beleza de Red e ficaria de melhor humor. Os três poderiam então esperar no Jaguar a chegada de Paddy Lafferty com novas instruções... Meu Deus, um assassino de aluguel! E uma limusine preta, saída diretamente de algum funeral, descendo a rua para sua casa! O que estaria acontecendo? Certamente conseguia compreender o desespero de Washington — se é que havia alguma simpatia, qualquer que fosse, pela causa dos Wopotamis —, mas um pistoleiro contratado e um carro mafioso não era um modelo de procedimento correto por parte de um governo civilizado. Enviariam negociadores, não exterminadores. Organizavam-se reuniões discretas para procurar soluções civilizadas, e não esquadrões da morte para impô-las... Aguenta aí, pensou Sam. Por outro lado, se Washington tivesse sabido que o ex-General MacKenzie Hawkins — Madman Mac, The Hawk — estava por trás desse potencial fiasco, ainda que remoto, os exterminadores e os esquadrões da morte teriam sido a única solução. O Hawk dava luta sem quartel aos cuequinhas de renda da Cidade dos Tontos. Esses merdas, como ele os chamava, tinham tirado o Exército da sua vida e nada, absolutamente nada, era podre demais para ser enfiado goela deles abaixo.

E quanto mais graduados, melhor.

— Aguenta aí... não, duas vezes aguenta aí! — Sam teve um sobressalto mental. Se Washington reagia ao ataque de Mac, isso incluiria qualquer pessoa em sua órbita. E o assassino usara os nomes de Pinkus e Devereaux na recepção do hotel! Como diabos aquilo acontecera? Hawkins chegara a Boston nem dezoito horríveis horas antes e, segundo ele mesmo o admitira, ninguém em Washington já ouvira falar de um tal Sam Devereaux, muito menos de Aaron Pinkus. Como então? Mesmo com as comunicações instantâneas globais que caraterizam os dias de hoje, uma fonte precisaria ter um fato ou um nome para transmitir a uma segunda fonte, ou a informação específica não poderia ser recebida — e o nome de Devereaux, um inocente, não era conhecido, o mesmo acontecendo com o de Aaron Pinkus. Como...? Meu Deus, só havia uma resposta — o Hawk estava sendo seguido! Agora mesmo, neste instante!

Onde estaria Paddy? Ele tinha que falar com Mac! Em algum lugar perto, sem ser visto pelo Hawk, havia uma segunda pessoa observando cada movimento do velho soldado e não era preciso ter uma imaginação criminosa para saber que havia uma segunda pessoa em contato com o executor, dois andares abaixo de Mac... Paddy, onde está?

Sam olhou de relance para o toldo; nem sinal de Redwing ou de sua mãe e o velho ogro também desaparecera. Se agisse com rapidez, talvez conseguisse usar o telefone público, como na noite anterior, e encontrasse Hawkins no hotel. Preparava-se para ligar o motor, quando, para sua surpresa, o imenso guarda saiu, correu até a beira da calçada e olhou em volta, fixando imediatamente a atenção em Devereaux e no Jaguar amarelo. Gesticulou para Sam, fazendo-lhe sinal para seguir imediatamente para a entrada. Oh, meu Deus, aconteceu alguma coisa com minha mãe! Devereaux acelerou e 2,4 segundos depois parou sob o toldo, fazendo chiar os freios do carro.

— O que foi? — perguntou ao símio de cabelo grisalho e liso, que agora sorria.

— Ei, rapaz, por que não disse logo que estava com Miss Redwing? Ela é uma grande garota, sabe, e com certeza eu não teria sido tão indelicado se soubesse que você era conhecido dela. Minhas desculpas, rapaz!

— Você a conhece?

— Bem, para falar a verdade, estou nessa espelunca há mais tempo do que gostaria, desde que fui expulso da polícia. Sabe, é que esse estabelecimento reles é da minha nora, que é viúva, o que tem certa ligação com o fato de eu ter sido expulso da polícia, pois o idiota do meu filho usou a grana errada para comprar isso aqui e foi apanhado no fogo cruzado... e Miss Redwing e seus amigos de Harvard processaram a Câmara Municipal e conseguiram uma aposentadoria maior para mim. O que acha?

— Eu não tenho pensamentos, nem qualquer compreensão dos eventos que me rodeiam...

— Ah sim, a linda menina índia disse que você podia parecer um pouco confuso... e que eu não devia reparar na sua calça.

— Eu troquei de calça! Ela sabe!

— E eu não estou interessado nos detalhes, rapaz, mas vou dizer uma coisa. Faça algo sujo com essa garota e vai ter que se haver comigo. Agora saia e junte-se às senhoras. Eu tomo conta deste seu carro muito fresco.

— Lá dentro?

— Elas não estão num iate na marina de Boston, rapaz.


Foi um Devereaux completamente aturdido que saltou do carro, conseguindo equilibrar-se com dificuldade no pavimento, precisamente no momento em que a limusine de Aaron Pinkus subia ruidosamente a rampa do estacionamento, acelerando na direção do Jaguar amarelo sob o toldo e parando atrás dele.

— Sammy — gritou Paddy Lafferty pela janela aberta. — Ah, olá, Billy Gilligan, como vai?

— Vou sobrevivendo, Paddy — respondeu o semibenevolente ogro do Nanny's. — E você, rapaz?

— Estou melhor, agora que vejo que meu garoto está são e salvo.

— Ele é seu?

— Meu e do meu excelente patrão.

— Então leve-o, Paddy. Ele está um pouco perturbado da cabeça, sabe? Eu fico de olho nos dois carros.

— Eu agradeço muito, Billy — disse Lafferty, saltando do enorme automóvel e correndo até Sam e ogro, mas ignorando completamente Devereaux. — Billy, meu garoto, não vai acreditar no que tenho para contar, mas juro que é verdade, por todas as sepulturas do Conde Kilgallen!

— O que é, Paddy?

— Não só encontrei o homem, como ele se sentou a meu lado no banco da frente e tivemos uma conversa muito significativa! Só nós dois, Billy!

— O Papa, Paddy? Seu amigo judeu trouxe o Papa?

— Melhor ainda, Billy!

— Bem, então não sei quem, exceto uma pessoa, claro, mas isso está fora de questão.

— Não, Billy, é isso mesmo! Ele mesmo, em pessoa! O general MacKenzie Hawkins!

— Não me diga uma coisa dessas, Paddy, meu coração vai parar de bater...

— Estou falando sério, Billy Gilligan! Ele próprio, em carne e osso, e nunca houve homem maior ou melhor. Lembra de como costumávamos falar na França, quando atravessávamos as florestas no Marne? “Se nos derem Madman Mac, penetraremos nas linhas dos boches cagões!” E então ele esteve lá por dez dias e nós avançamos, cantando e gritando com toda a força dos nossos corações, com ele na nossa frente, na nossa frente, Billy, também gritando, dizendo que podíamos conseguir porque éramos melhores do que os filhos da puta que queriam nos acorrentar! Lembra, Billy?

— Os dias mais gloriosos da minha vida, Paddy — respondeu Gilligan, com os olhos marejados. — Tirando Nosso Senhor Jesus Cristo, ele talvez seja o maior homem que Deus já pôs na Terra.

— Acho que ele está metido em encrenca, Billy. Aqui em Boston!

— Não enquanto estivermos por perto, Paddy. Não enquanto houver um soldado vivo do Posto de Legião Comemorativo de Pat O'Brien... Ei, Paddy, o que aconteceu com seu garoto? Está estirado no cimento.

— Desmaiou, Billy. Deve ser de família.

— Mmmfff...! — ouviu-se o protesto inconsciente vindo da garganta de Sam Devereaux.


13

— Samuel Lansing Devereaux, levante-se imediatamente e comporte-se! — exclamou Lady Eleanor com razoável autoridade, atendendo ao fato de que, sob o toldo do Nanny's, precisou segurar o braço de Jennifer Redwing para manter o equilíbrio.

— Vamos, Sam, meu rapaz — disse Paddy. — Segure minha mão.

— Ele é mais leve do que minha nora, Lafferty —, acrescentou Billy Gilligan. — Podemos içá-lo até a canoa hebraica.

— Sua nora devia ser jogadora dos Patriots, Billy, e peço que não se refira à excelente limusine do Sr. Pinkus em termos pejorativos.

— Adivinhe onde aprendi essa expressão pejorativa, Paddy? — perguntou Gilligan, rindo entre dentes, enquanto ajudava o outro a levar Devereaux até a limusine e a colocá-lo no banco traseiro. — Deixe, eu conto. Aprendi com o próprio velho Pinkus. Lembra de quando você e ele apareciam para...

— Chega, Billy e agradeço a ajuda. As chaves estão no Jaguar e agradeço de novo se o trancar num lugar em que possa ficar de olho nele.

— Ah, não, Lafferty! — objetou Gilligan — Vou chamar meu substituto e seguir diretamente para o Posto Comemorativo de Pat O'Brien, para reunir os membros. Se o maior general que já beijou a espada da batalha está com problemas, pode contar conosco, pelas sepulturas de Donegal!

— Não podemos fazer nada, Billy, até que o general e Mr. Pinkus nos deem as ordens. Ficarei em contato, palavra de artilheiro.

— Oh, glória! Conhecer o magnífico herói em pessoa... o general do Exército dos Estados Unidos MacKenzie Hawkins!

— Ai, esse nome horroroso! — explodiu Eleanor Devereaux.

— Tem todo meu apoio, Ellie — concordou Redwing.

— Mmmfff — ouviu-se o grito abafado vindo do banco traseiro da limusine.

— Não ligues, Gilligan, as meninas não estão bem... Mas, Billy, eu não prometi que irias conhecer o grande homem, eu só disse que iria procurar fazer com que isso acontecesse.

— E eu também não prometi que não venderia o Jaguar, Paddy. Só disse que procuraria não o fazer. — Vamos, senhoras — interrompeu Lafferty, fazendo uma careta para Gilligan. — Devo levá-las ao Ritz-Carlton, onde o Sr. Pinkus providenciou...

— Paddy! — gritou do banco traseiro um parcialmente ressuscitado Sam Devereaux. — Tenho de falar com o Mac... ele não sabe o que está acontecendo! — O advogado cambaleou para fora da limusine pelo lado mais distante, bateu com a porta e rastejou até o telefone do carro.

— Senhoras, por favor? — disse Lafferty delicadamente, ajudando Jennifer a sentar Eleanor com suavidade no banco traseiro e fechando a porta após as duas se terem ajeitado. Depois sentou-se ao volante, preocupado com o fato de Sam ter tantas dificuldades com a ligação para o Four Seasons.

— Que história é essa de todas as ligações para a suíte Pinkus serem transferidas para outro quarto? — berrou Devereaux.

— Calma, rapaz — disse Lafferty, ligando o motor. — Conseguimos melhores resultados com mel do que com vinagre.

Sam lançou um olhar ameaçador ao motorista.

— MacKenzie Hawkins Superstar — resmungou. — Por que vocês não escrevem um novo musical, seus palhaços?... Está o que, telefonista? Ocupado? Deixe lá, eu volto a ligar... Tenho de encontrar Aaron — disse Devereaux, teclando os botões no telefone.

— Isso não será fácil agora — comentou Lafferty, acelerando para subir a rampa e entrar na autoestrada. — Quando ele me ligou, disse que ia ausentar-se do escritório mais ou menos por uma hora e que os veria a todos no Ritz.

— Você não está entendendo, Paddy! Por esta altura, Mac pode já ter sido apanhado... ou pior ainda.

— O general?

— Ele está a ser seguido desde que chegou a Boston!

— Meu Deus! — gritou Lafferty. — Dê-me esse telefone que eu vou ligar para os rapazes do Pat O'Brien no Posto de Legião! Deixarei recado para o Billy Gilligan...

— Deixe-me tentar o hotel mais uma vez — freneticamente, Sam discou o número e olhou de relance por cima do ombro para a parte de trás da limusine. A expressão dura dos olhos luminosos de Redwing revelou-lhe que ela compreendia o estado de emergência; a sua mãe piscou os olhos rapidamente, mas sem qualquer resultado. — A suíte Pinkus, por favor, telefonista, e olhe que eu sei que as ligações estão a ser transferidas para outro quarto. — Devereaux reteve a respiração até o momento em que uma voz estranha, aguda e meio chorosa atendeu.

— Fala Little Joey — disse o homem, mulher, hermafrodita ou anão. — O que quer?

— Talvez eu tenha ligado para o quarto errado — respondeu Sam, esforçando-se ao máximo para controlar o pânico. — Estou tentando localizar o General MacKenzie Hawkins, duas vezes condecorado com a Medalha de Honra do Congresso, herói do Exército dos Estados Unidos e amigo íntimo de todos os membros do Estado-Maior Conjunto, bem como do Presidente, que ordenará imediatamente uma invasão do hotel se a vida do general for ameaçada de alguma forma, modo ou maneira!

— Já entendi. Você quer falar com o grande pasta fazool... Ei, Mickey Ha Ha, é para você.

— Você nunca será promovido com esse tipo de insubordinação, Little Joseph! — ouviu-se a voz rosnante e próxima do Hawk. — Comandante Pinkus, é você?

... Little Joseph? Mac, que diabo está fazendo?... Deixe pra lá, não temos tempo... você está sendo seguido! Alguém anda seguindo você desde que chegou a Boston!

— Opa, tenente Devereaux, está progredindo bem. Está autenticamente fazendo a chamada das tropas, como um verdadeiro primeiro-sargento, sem ofensa para suas divisas de oficial.

— Você sabia?

— Bem, depois que meu ajudante relatou o que entreouviu na recepção, ficou bem óbvio.

— Mas você disse que não sabia como aconteceu, que não era o modus operandi de Hymie não-sei-o-quê!

— Eu não sabia nessa época, e não era mesmo o M.O. do Furacão. Agora sei e continua não sendo Hymie. Esse indivíduo não foi difícil de encontrar; a porta estava, exatamente, três centímetros aberta.

— Pelo amor de Deus, um mínimo de sensatez!

— O que eu acabei de dizer faz sentido e você tem que sair da linha. Estamos esperando outra ligação.

— De quem?

— Pensei que a essa altura já soubesse.

— Como?

— Ouviu-me perguntar se era ele...

— Ele...

— O quê?

— Deixa pra lá... Quem?

— O Comandante Pinkus, claro.

— Ele está a caminho do Ritz.

— Não por algum tempo, filho. Ele e meus ajudantes estão cumprindo uma missão de logística.

— Quem é esse diabo de Little Joseph?... Desculpe, mãe.

— É uma espécie de velho simpático — respondeu o Hawk, baixando a voz até um quase murmúrio — com tamanho e perfil de patrulha avançada noturna, especialmente em terreno montanhoso, mas receio que sua idade e seu temperamento já não se adequem a essa missão... Naturalmente que não vou dizer isso a ele. Poderia destruir sua confiança, como compreenderá, tenente.

— Não compreendo nada de nada! Que missão?

— Esses sacanas dos cuequinhas de renda da Cidade dos Tontos devem estar mesmo em dificuldades por causa do déficit — prosseguiu o general, falando rapidamente e em voz tão baixa que Devereaux mal podia ouvi-lo. — Porra, garoto, este tipo de coisa nunca nos incomodou!

— Ele é de Washington?

— Eu sei, eu sei — disse o Hawk, não ocultando o tédio, senão mesmo a impaciência. — O Comandante Pinkus explicou que era vital que lhe deixássemos o caminho livre para a negabilidade.

— Negabilidade?

— Até breve, Sam. — E a ligação caiu.

— O que está havendo? — perguntou Redwing de forma intensa, inclinando-se para a frente, com a mão direita segurando com firmeza o ombro de Eleanor.

— O grande general está bem, rapaz? — gritou Lafferty, acelerando e serpenteando pelo trânsito que se dirigia para Boston. — Chamo Gilligan e o resto dos rapazes?

— Não sei, Paddy. Realmente não sei. Acho que não.

— Não me venha com mentiras, garoto!

— O que você sabe, Sam? — perguntou Jennifer, de forma calma e calorosa, como uma perfeita advogada. — Leve o tempo que for necessário, mas ponha em ordem seus pensamentos.

— Pare com esse interrogatório amigável, por favor, porque é exatamente o que estou fazendo. Estou tentando dar um sentido a tudo isso e não é fácil, é pura e simplesmente uma loucura.

— Então vamos tentar juntos, advogado.

— Assim é melhor, Red... Obviamente que Mac tem tudo sob controle e meu palpite é que ele pegou o homem que o estava seguindo... palpite, não, tenho certeza absoluta; ele é condescendente demais para poder ser qualquer outra coisa. E descobriu que o tal sujeito é de Washington.

— Oh, meu Deus...!

— É exatamente isso que eu sinto, Miss Índia-do-Amor-que-Liga-e-Desliga. Certos segmentos da Cidade dos Tontos estão escalando o muro e essa é a pior notícia que eu podia ter.

— Que segmentos, sir?

— Pelo que posso deduzir, Mrs. advogada, muito pouco saudáveis. Os emissários que mandaram a Boston estão armados.

— Não se atreveriam! — exclamou Redwing.

— Relembremos Watergate ou o caso Irã-contras, ou, para equilibrar a agenda, metade das eleições que ocorreram em Chicago desde 1920. Não houve “não se atreveriam“ nesses eventos. E mesmo que houvesse, compare os dólares gastos com todas essas cumplicidades históricas com os gastos de um único mês do Comando Aéreo Estratégico. São infinitesimais, madame índia, estamos falando de megabilhões! Pense nos nossos benevolentes fornecedores da Defesa, juntamente com seus representantes em todo o país, de Long Island a Seattle... eles não apertariam seus botões de emergência ante a simples perspectiva de uma redução de lucros? Meu Deus, se um décimo do orçamento da Defesa for cortado, todos eles clamarão por sangue. Esse tipo de coisa poderia abrir suas fábricas de vampiros.

— Você está presumindo que a Suprema Corte já marcou a data da discussão da petição Wopotami.

— Nem é necessária uma data, basta correr o boato de que a petição está sendo considerada, ou pior, de que foi reservada para possível discussão futura.

— Isso acaba sempre por conduzir a uma séria consideração posterior — interrompeu Redwing.

— É isso mesmo. De qualquer forma, a gangue do dinheiro e seus políticos lobistas organizarão um contra-ataque.

— Espere um pouco, Sam — pediu Redwing, com uma das mãos na cabeça de Eleanor e a outra no ombro de Devereaux. — Um contra-ataque em termos de Congresso significaria porta-vozes ou lobistas defendendo seu ponto de vista na Câmara e no Senado, e não pistoleiros!

— Também acho, mas o Congresso não está em sessão e eu apresento nossa atual situação como Artigo A para prova.

— Entendo o que quer dizer. A tropa de choque está aqui. Por isso, de uma forma ou de outra, a notícia já se espalhou... Oh, meu Deus, eles têm que nos silenciar a todos!

Paddy Lafferty pegou o celular e, com dedos muito hábeis, teclou os números com o polegar. — É do Posto O'Brien? — gritou, e, em menos de um segundo, disse com firmeza: — Billy Gilligan está aí?... Está bem, está bem, fico contente por nosso sistema telefônico estar funcionando, agora ouça. Quando Billy G. chegar, mande-o conduzir uma coluna de viaturas armadas para o Hotel Four Asses, na Boylston, e vigiar cada entrada! Entendeu, amigo? É do grande homem que estamos falando e não vou aceitar qualquer erro. Adeus e apresse-se!

— Paddy, o que você fez?

— Sam, meu garoto, há ocasiões em que primeiro avançamos, depois olhamos para trás. É uma lição que aprendemos em dez dias gloriosos na França.

— Não estamos na França e isso aqui não é nenhuma Segunda Guerra Mundial. Também não há nenhum indício de perigo imediato no hotel. Se houver, Aaron chamará a polícia. Está tudo muito sombrio, muito obscuro, mas Mac e nosso patrão de raciocínio rápido estão em contato um com o outro... Aaron não é nenhum mutante entusiasmado e tão pouco é indeciso. Se achar que a polícia é necessária, sem dúvida que a chamará.

— Não sei não, rapaz. A polícia tem certas restrições... pergunte a Billy Gilligan, que ele lhe dirá.

— Ele já me disse, Paddy, mas não sabemos o que Mac e Aaron estão fazendo e, como não sabemos, podemos estragar tudo. Agora traga de volta os cães de Killarney!

— Ele tem razão, sr. Lafferty — interveio Jennifer. — Veja bem, não me oponho a qualquer forma de proteção e ficaria agradecida se os seus amigos estivessem, digamos, disponíveis. Contudo, Sam tem razão num ponto: estamos no escuro e talvez não devêssemos fazer nada até chegarmos ao Ritz Carlton e falarmos com Mr. Pinkus... Creio que o senhor disse algo de muito parecido ao Sr. Gilligan no Nanny's.

— Bem, você falou muito melhor do que aqui o rapaz...

— Pura e simplesmente utilizei as suas próprias palavras, Sr. Lafferty, a sua própria sabedoria.

— Tática barata — resmungou Devereaux.

— Está certo — concordou Paddy. — Vou cancelar as ordens — acrescentou, pressionando os botões do telefone do carro. — Por um momento acho que fiquei demasiado entusiasmado... Alô, Posto O'Brien?... Quem está falando agora?... Rafferty, daqui fala Lafferty, rapaz. Gilligan ainda está aí?... Ele o quê? Nossa Senhora, isso foi grave?... Pequenos favores ainda são uma bênção, Rafferty. Agora ouça, rapaz, sobre a ida dos membros para o Four Seasons, na Boylston, quero dizer-lhes que — de repente a limusine guinou perigosamente — involuntariamente — e quase raspou um imenso caminhão na autoestrada. — Eles o que, Rafferty? Que diabo está você a dizer, rapaz?... Jesus, Maria, José! — o motorista de Aaron Pinkus engoliu em seco e desligou o telefone em silêncio.

— Que há, Paddy? — perguntou Sam, olhando para Lafferty como se não fizesse a menor questão de ouvir a resposta.

— Os rapazes acabaram de sair para o hotel, Sr. Devereaux. Contudo, não é uma coluna completa, geralmente formada por quatro automóveis — esta só tem três — e talvez alguns dos rapazes estejam bêbados de mais.

— Oh, meu Deus!

— Mas a boa notícia é que o Billy Gilligan não se feriu com gravidade.

— Feriu?

— Ele viu-se envolvido num choque em cadeia, o carro ficou bastante amolgado. Um dos policiais que apareceram no local do acidente era membro do Posto e telefonou para que os outros soubessem qual o hospital em que Billy estava.

— Hospital...?

— Ele está bem. Berrando e gritando para que o deixem sair.

— Pelo amor de Deus, deixem-no sair! Pode ser que ele consiga detê-los!

— Bem, há uma ou duas formalidades...

— Se ele pode berrar e gritar é porque pode sair! — Furioso, Sam pegou o telefone. — Que hospital? — perguntou, furioso.

— Não vai adiantar nada, rapaz. Há uma certa confusão sobre o relatório do acidente. É que não foi exatamente o carro dele que bateu. Foi o Jaguar amarelo da mãe.

— Pássssaro amarelooo... — ouviram-se, num tom de voz cadenciado e alto, as palavras e a música vindas da garganta trêmula de Eleanor Devereaux, sentada no banco traseiro da limusine.

— Ei, Comandante, o que acha? — perguntou Desi-Um, resplandecente no seu fraque, admirando-se ao espelho de uma bem sucedida loja de trajes de cerimônia que Aaron Pinkus e Associados tinham virtualmente lançado no mercado.

— Manifestamente impressionante — respondeu Aaron, sentado numa cadeira forrada de veludo que era impossível de deslocar, por causa da altura dos pelos de um tapete preto. — Onde está o seu sócio, o outro Cabo Arnaz?

— Agora somos sargentos, Comandante!

— As minhas sinceras desculpas, mas onde está ele? Temos que andar depressa.

— Bem, sabe, é que a senhora que mediu sua pantalona é de Puerto Rico, e eu acho que eles foram...

— Não temos tempo...

— Desi-Uno — gritou o sargento D-Dois. — Venga! Vámonos! Ahorita! Depressa, homem!

Um pouco timidamente, Desi-Um emergiu da porta de um vestiário, seguido por uma morena generosamente bem dotada, que fez questão de esticar e verificar a fita métrica ao mesmo tempo em que ajeitava a blusa.

— Comandante — disse D-Um, com um sorriso largo, deixando revelar em demasia todas as falhas nos dentes. — Tivemos que ajustar mais as calças. As minhas ancas são como as de um toreador! Que posso fazer? — ele também estava vestido de fraque e, sem dúvida alguma, também era um homem muito elegante.

— A sua aparência está esplêndida, Sargento Arnaz — observou Pinkus. — Vamos agora ao meu dentista, que diz que tem uns quarenta ou cinquenta aparelhos de plástico, um dos quais, segundo afirma, pode ficar colado dentro da sua boca por uma ou duas horas.

— O papai é bonzinho. O que ele faz na vida?

— Joseph, estou farto das suas evasivas, baixinho — disse o Hawk, sentado à secretária do hotel, enquanto Joey, o Mortalha, estava reclinado na cama, com os braços por cima da cabeça, sobre o travesseiro. — Eu podia partir os seus pulsos um por um e obrigá-lo a dizer quem é e de onde vem, mas sempre achei que esse tipo de coisas era bárbaro, além de contrário à Convenção de Genebra. Mas se não houver outra maneira, Joseph, vai me deixar sem alternativa, não é?

— Tenho visto gente como você em toda a minha vida, Mickey HaHa — respondeu o Little Joey, sem se impressionar. — Sou capaz de dizer quem faz esse tipo de coisas e quem não faz... Oh, vocês, soldados durões, são capazes de esmagar cabeças, como se fossem tabuleiros de pizza, num distúrbio de rua em Brooklyn, mas se for um contra um e se não houver grande vantagem, não querem essa culpa nas suas almas.

— Vá para o diabo! — urrou Hawkins, levantando-se da cadeira ameaçadoramente. — Eu não tenho uma alma dessas!

— Se não tivesse, eu estaria a borrar-me de medo, mas não estou... Você é como aqueles fascisti de Salerno quando apareciam em Roma. Eu era um garoto vadio nesse tempo, mas sempre soube a diferença... Se me encontrassem, gritariam esecuzione! Mas nessa altura nós conversaríamos e eles diriam non me importa un bel niente, quem é que se importa com isso, a guerra acabou, e me deixariam ir. E alguns deles eram os melhores do Exército italiano.

— O... Exército? Soldados? Salerno? Você foi do...

— Quinto Exército, Mark Clark, fazool. Acho que somos mais ou menos da mesma idade, embora você talvez esteja com melhor aparência. Como eu costumo dizer, eu era um miserável soldado até descobrirem que eu falava italiano melhor do que os intérpretes, de modo que me deram trajes civis, promoveram-me ao posto temporário de primeiro-tenente, pois acharam que eu duraria, no máximo, um dia e meio, e me mandaram para o norte, para transmitir informações sobre instalações, via rádio. Nada de excepcional. Eu tinha montes de lire, todas as mulheres e o vino que queria e só fui apanhado três vezes — em todas elas escapei, conforme já expliquei.

— Joseph! — gritou o Hawk. — Nós somos camaradas!

— Se você é homo, afaste-se de mim, Mickey!

— Não, Joseph, sou um general!

— Eu sei, homem.

— E você é primeiro-tenente!

— Isso já não conta. Quando os chefões me encontraram em Roma, alguns quilômetros ao norte, em Villa d'Este, levando uma vida bem boa, eles me rebaixaram para soldado raso. Eu não tinha utilidade para vocês, seus merdas.

O telefone do hotel tocou. MacKenzie olhava para ele, para o soldado Little Joey e enfim atendeu. — Quartel-general provisório! — berrou.

— Eu sugeriria um atendimento diferente, menos estridente — disse Aaron Pinkus do outro lado. — Seus ajudantes estão preparados. Já se informou sobre o que precisamos saber?

— Receio que não, Comandante. Ele é um excelente soldado.

— Não vou presumir que compreendi essa afirmação. Devemos prosseguir, então?

— Prossiga, Comandante!

Os três carros do Posto Comemorativo de Pat O'Brien desceram a rua Clarendon, contornaram a esquina para entrar na Boylston, e, conforme o combinado, aceleraram até um quarteirão de distância do hotel Four Seasons, estacionando cada um deles num dos lugares disponíveis. Reuniram-se rapidamente junto do automóvel mais próximo da entrada do hotel, mas a sua conferência d'avant guerre foi, de certa forma retardada pelos irmãos Duffy, que não tinham sido contatados pelo telefone, já que tinham estado no bar da Legião desde manhã I cedo, devido a uma discussão de média dimensão com as suas esposas, que por acaso eram irmãs.

— Tenho certeza absoluta de que há qualquer coisa na Igreja que diz que não deveríamos ter feito o que fizemos, Petey! — exclamou um Duffy grisalho, enquanto era levado para o local do encontro.

— Mas isso já foi há trinta anos, Bobby!

— Mas elas são irmãs, Petey. E nós somos irmãos...

— Elas não são nossas irmãs, Bobby...

— Ainda assim, irmãos e irmãs — tenho certeza de que há alguma coisa, rapaz!

— Vocês dois aí, vamos calar essa boca! — ordenou um Harry Milligan vestido de couro, investido do comando da pequena brigada pelo acidentado Billy Gilligan. — Vocês estão bêbados demais para combater, por isso ordeno-lhes que fiquem de sentinela.

— Que temos de observar? — quis saber um cambaleante Bobby Duffy, passando a mão pelos cabelos imaginários da sua careca. — Por onde estão a vir os boches?

— Não são os boches, Bobby! São os porcos filhos da mãe que querem liquidar o grande general!

— Como eles são, meu rapaz? — perguntou Peter Duffy, um tipo enorme e de olhos vermelhos, agarrando o espelho lateral do carro, que, em resultado da sua corpulência, saiu do lugar e ficou a apontar para baixo.

— Como diabos vou saber, Petey? — replicou o oficial comandante da brigada Milligan-Gilligan. — Meu palpite é que vão sair de lá a correr como um vento Donegal, quando os encontrarmos.

— Como vamos fazer isso, meu rapaz? — quis saber Bobby Duffy, intercalando as palavras com um soluço e dois arrotos.

— Pensando bem, não tenho muita certeza — Milligan semicerrou os olhos, fazendo com que as rugas do seu rosto parecessem as pregas do couro de um rinoceronte. — Gilligan não chegou a me contar.

— Você se enganou, Harry — protestou o erraticamente instável Peter Duffy. — Você é o Gilligan.

— Sou nada, seu idiota! Sou Milligan!

— Muito prazer em conhecê-lo — disse Bobby Duffy, deixando-se cair na calçada como uma batata assada demais sendo perfurada por um garfo.

— Meu irmão está a ser perseguido pelos demônios anticristo! — exclamou Peter, caindo contra a porta do carro, ficando com a perna por cima do rosto do irmão. — E a praga das irmãs feiticeiras!

— Bom rapazinho — concordou Harry Milligan, ajoelhando-se e dando umas palmadinhas na cabeça de Petey. — Você fica aqui e afasta esses terríveis demônios. — Harry pôs-se em pé e dirigiu-se aos sete soldados da brigada Milligan-Gilligan. — Vamos, rapazes, sabemos o que temos de fazer!

— O que temos de fazer exatamente, rapaz? — perguntou um setuagenário muito magro, envergando um blusão de combate da Segunda Guerra Mundial que lhe caía muito mal e onde se podiam ver umas dez insígnias representando o tempo de serviço no teatro de operações europeu.

— Billy Gilligan deu-me dois nomes — o primeiro, claro, é o do grande General Hawkins, e o segundo, é o do seu patrão, um cavalheiro da lei, a respeito do qual todos já ouvimos dizer coisas boas. Um judeu que é um figurão em Boston e tem inúmeros excelentes advogados católicos na sua sociedade.

— Espertos, eles são sempre tão espertos — comentou uma voz idosa não identificada de entre os sete magníficos. — Eles contratam irlandeses, mas quantos de nós contratam? Espertos.

— Então é isso que vamos fazer, rapazes. Eu vou até a recepção e faço o pedido. Digo-lhes que preciso falar ou com o grande general ou com seu amigo, o grande advogado chamado Pinkus, porque tenho uma mensagem confidencial urgente do interesse de ambos e Deus sabe que não estou mentindo! Com gente tão importante, a única opção me colocar em contato com um deles, não é verdade?

Seguiu-se um coro de respostas afirmativas, maculado pela voz dissidente do mais velho combatente do campo de batalha. — Não sei não, Gilligan...

— O meu nome é Milligan!

— Quem lhe dera que se chamasse Gilligan; ele era da polícia, sabia?

— E eu não sou... mas o que você não sabe, seu velho chato?

— Suponha que é atendido por uma secretária, o que vai dizer?... As minhas desculpas, menina, mas alguém está prestes a fazer ir pelos ares o grande general e o seu amigo, o advogado judeu... Na minha opinião, rapaz, eles chamariam os rapazes que conduzem aqueles caminhõezinhos brancos com grossas paredes de borracha e com grades nas janelas.

— Não tenho que falar com ninguém, seu objeto de velório com pernas! Paddy Lafferty nos contou da grande suíte que seu patrão tem no Four Asses, só que não sabemos onde é. Mas os empregados vão ter que contar, atendendo à mensagem confidencial urgente que tenho comigo, não é?

Houve um coro de afirmativas, novamente maculado pelo legionário septuagenário.

— E se eles não acreditarem em você? Eu não acreditaria. Você tem olhos evasivos, isto quando conseguimos vê-los.

Desta vez houve um par de cabeças concordando, enquanto os combatentes estudavam os olhos de Harry Milligan, escondidos pela gordura.

— Cale a boca! — berrou Harry, fazendo com que seus subordinados voltassem ao assunto em questão. — Não interessa que acreditem em mim ou que não acreditem. Vão ter de me dar o número do quarto para eu poder ligar, e então saberemos que quarto é!

— E depois? — quis saber o cauteloso descrente.

— Depois nos separamos, e você, seu cadáver enrugado, fica na entrada e, se os filhos da mãe fugirem em seus carros, é bom que anote as placas... Graças a Deus vocês não eram do meu grupo, estariam discutindo com IKE em pessoa! — Milligan apontou três dos seis legionários ainda sem missão atribuída. — Vocês, rapazes, cubram as outras saídas para a rua. Lafferty foi bem claro quanto a isso...

— Onde ficam, Harry? — quis saber um baixinho de meia-idade, envergando jaqueta de couro da Força Aérea. — Eu era metralhador de cauda, não estou familiarizado com táticas terrestres.

— Encontre-as, rapaz! Paddy disse para tocá-las.

— O que significa isso, Harry?

— Bem... bem, Paddy não foi muito claro quanto a isso, mas imagino que queira dizer que não se pode deixar sair quem não deva.

— Quem, por exemplo? — perguntou um homem alto e magro com sessenta e tantos anos, cuja roupa entrava em conflito com a missão, já que vestia uma camisa havaiana berrante, cheia de flores de laranja, embora tivesse na cabeça um gorro azul de legionário.

— Harry já disse! — gritou outro de estatura média e peso excessivo, um capacete de metal ornamentando o rosto cheio de espinhas. — Qualquer filho da mãe que saia correndo para os carros, para fugir.

— Nessa hora atiramos! — confirmou o cavalheiro magro de camisa havaiana.

— Atirem nas pernas, rapaz! — esclareceu Harry Milligan. — Como costumávamos fazer com os batedores boches. Temos que poupá-los para o interrogatório!

— Isso mesmo, Harry — concordou o soldado de infantaria de capacete. — Ei cara, como me lembro bem! Nós os capturamos e tudo o que fizeram foi proteger as bolas! Claro que nunca tive que atirar, mas eles entenderam a mensagem.

— Rapazes, sugiro que tirem os capacetes. É muito óbvio, entendem o que quero dizer? — Harry dirigiu-se então aos três últimos combatentes do Posto O'Brien. — Vocês, rapazes, fiquem comigo, devidamente posicionados na retaguarda e misturados com as pessoas no hall, mas sempre de olho em mim. Quando eu me deslocar, desloquem-se comigo, entenderam, rapazes?

Mais uma vez e agora mais alto, com determinação, ouviu-se o coro afirmativo. — Nós entraremos primeiro — disse o corpulento soldado da infantaria, prendendo o capacete no cinturão de combate por baixo da camisa de bowling, que proclamava as virtudes da carne O'Boyle. — Só precisamos que nos dê dois minutos para encontrarmos as saídas e nos posicionarmos.

— Bem pensado, rapaz. Podem ir-se embora agora — não há tempo a perder! — Milligan ficou a verificar o relógio enquanto a unidade de três homens contornava o tráfego da Boylston e corria o mais depressa que as suas velhas pernas permitiam para dentro do hotel. A visão do trio não inundou o porteiro de uniforme de pensamentos muito inspiradores. Harry virou-se para os três restantes e deu as suas ordens:

— Quando entrarmos vou diretamente à recepção, de forma bem casual, se é que me entendem, como se eu tivesse que atravessar aquele hall todos os dias da minha vida, e meio que me inclino no balcão, como os homens muito importantes fazem, talvez piscando os olhos duas vezes para comunicar o fato de ter uma mensagem confidencial para outras pessoas importantes. Nessa altura atinjo-os com o golpe um-dois, ou seja, os dois ilustres nomes de Hawkins e Pinkass.

— Acho que é Pinkoos, Harry — sugeriu um homem rubicundo e careca de quase setenta anos que, obviamente, era um colega de bowling do soldado de infantaria. Infelizmente, a camiseta do açougue O'Boyle estava do avesso.

— Ele está certo, Milligan — confirmou um homem baixo que exibia um bigode enorme e denso que na virada do século era normalmente associado aos primeiros-sargentos ingleses. O seu atual uniforme, no entanto, consistia em calça Levi's desbotada, presa por suspensórios vermelhos sobre camisa de xadrez preta e amarela. — Ouvi Paddy dizer Pinkoos milhões de vezes.

— Pinkuss é mais parecido — corrigiu o terceiro membro da unidade de Harry, um homem inusitadamente alto com uma camiseta verde-escura sem mangas, que permitia uma generosa visão das tatuagens que cobriam seus braços, especialmente uma serpente azul, alongada e sibilante, com a legenda Não Pise em Mim.

— Eu vou dizer Pinkiss muito depressa, ninguém vai reparar... Muito bem, rapazes do Posto O'Brien, vamos avançar e ganhar esta para o general!


Dentro do Buick de dois lugares de Aaron Pinkus, os assombrosamente vestidos Desis Um e Dois, o primeiro com a boca um pouco alargada por uma dentadura frontal de plástico, estavam sentados no exíguo banco traseiro, admirando-se e passando insistentemente as mãos sobre o suave tecido escuro das suas roupas, especialmente sobre as lapelas de cetim.

— Agora lembrem-se, Sargentos, finjam não entender uma palavra de inglês — disse Aaron ao volante, no momento em que entravam na rua Boylston. — Vocês são embaixadores da Espanha nas Nações Unidas e homens muito importantes.

— O papai é animaaaal — interrompeu Desi-Um, falando esquisito por causa do abcesso na boca —, mas ainda não sabemos como fazer para o vicioso ficar furioso conosco.

— Vocês o confundem com outra pessoa, Sargentos, já falamos disso. Quando o virem no hall, vocês se adiantam e apontam para ele, gritando que é um criminoso fugido de Madri.

— Sim, já falamos disso — disse Desi-Dois. — E não gostamos. O vicioso, como todos os viciosos, tem uma arma e vai mostrá-la a nós!

— Ele não terá chance de lhes fazer mal — replicou Aaron. — O general estará bem atrás dele e interferirá imediatamente... creio que a palavra que ele usou foi “imobilizar”.

— Vocês confiam no general, não confiam?

— Sim, gostamos dele — respondeu Desi-Um. — Gostamos mesmo desse hombre maluco. Vai nos colocar no Exército.

— Além disso, nos deu muita porrada no aeroporto, amigo. É por isso que eu confio nele — Desi-Dois não parou de acenar com a cabeça enquanto apalpava o vinco da calça. — O velho tem grandes testículos.

— E então, Comandante? — perguntou um confuso Desi-Um.

— O general, à maneira peculiar, é muito astuto — respondeu Pinkus, estacionando no meio-fio, atrás de vários táxis que formavam uma fila até a entrada do Four Seasons.

— Nenhum governo se atreve a ofender um governo aliado por deslizes de segurança, sobretudo quando se trata de países estrategicamente importantes. Eles podem fechar embaixadas e cortar relações!

— Não gostamos dessas coisas — interrompeu Desi Um. — Não queremos a embaixada espanhola fechada, mesmo que nunca tenhamos ido à Espanha, sobretudo se formos baleados. Nossos amigos não vão gostar disso.

— O general deu sua palavra.

— É bom que isso seja verdade... Mas e depois?

— Bem, a melhor maneira de explicar é dizer que quem quer que tenha mandado essa terrível pessoa a Boston atrás do general será forçado a reconsiderar seus métodos.

— Não entendo.

— Ele vai se assustar a ponto de cancelar ataques como esse, advertindo todos os que em Washington tenham qualquer coisa a ver com essa ideia de mandar tão terrível criminoso seguir o general para parar com isso e desistir, ou desaparecer. Geopoliticamente, Hawkins está coberto de razão. Nossas bases na Espanha, principalmente as aéreas, têm de ser mantidas.

— ¡Olé, Comandante!

MacKenzie Hawkins deu sua ordem.

— Agora abra a porta com o maçarico! Quero isso feito em cinco minutos, entendeu, Capitão?

— Entendi, General — respondeu a voz do engenheiro do hotel pelo telefone. — Mas prometeu, quero uma foto de nós dois juntos, está bem?

— Será um prazer, filho, e porei o braço sobre os seus ombros como se tivéssemos atravessado o Reno sozinhos.

— Meu Deus, estou no céu antes de estar morto!

— vamos, Capitão. É absolutamente necessário para o êxito do ataque.

— Quatro minutos e oito segundos, meu General!

Hawkins desligou e discou o número do telefone celular do Buick de Aaron Pinkus. — Comandante?

— Sim, General?

— Vou estar aí embaixo dentro de cinco minutos. Onde está posicionado?

— A três carros da entrada.

— Ótimo. Coloquem-se na recepção e acertem o relógio. A opção zero é entre treze e dezessete minutos. Entendido?

— Não é totalmente incompreensível, General. Entendi.

A brigada do Posto O'Brien estava em posição — de camiseta, tatuagens, colete de salvação, capacete de combate, suspensórios vermelhos, camisa havaiana, Levi's manchada e um líder vesgo piscando os olhos na recepção.

— O que deseja? — disse o funcionário, tirando um lenço do bolso superior do paletó, como se a visão desse homem pudesse produzir um odor desagradável.

— Vou lhe dizer o que quero, rapaz, e é melhor andar depressa. Os nomes Pinkiss e Hawkins lhe dizem alguma coisa, rapaz?

— O sr. Pinkus tem uma suíte aqui, se é isso que quer saber.

— Não estou me referindo à vida particular dele, rapaz, e não quero saber quantas mulheres ele tem. Trago uma mensagem para ele e para o general. Urgente e confidencial. Como acha que deva transmitir a mensagem, hein?

— Sugiro que telefone para o... aposentos do sr Pinkus. Extensão cinco mil e cinco.

— Cinco-zero-zero-cinco, certo, rapaz?

— Exatamente.

— É esse o número do quarto?

— Não temos cinquenta andares. Nenhum hotel em Boston tem cinquenta andares. É o número da extensão de telefone.

— Isso não faz o menor sentido. Em qualquer hotel decente o número do quarto é o mesmo do telefone!

— Não obrigatoriamente.

— Por que não? Como a pessoa pode saber onde é?

— Boa pergunta — concordou o funcionário. — Podia ilustrá-la pessoalmente.

— Ilustrar o que, rapaz?

— A pergunta... Os telefones da casa estão ali.

Aturdido, Harry Milligan virou-se e caminhou apressadamente em direção a um conjunto de telefones sobre um parapeito de mármore preso à parede. Pegou num e discou rapidamente. A linha estava ocupada.

— Aqui é seu vigilante de Washington — disse MacKenzie Hawkins para o telefone, baixando a voz e falando enfaticamente.

— Meu quê? — perguntou o homem no quarto do hotel, dois andares abaixo, em voz igualmente baixa mas muito pouco suave.

— Ouça. O alvo está se preparando para ir embora, meu informante diz que ele chamou os carregadores para que levem a bagagem para baixo.

— Quem diabos é você?

— Sua ligação com o D. G. e você deviam me agradecer e não me amaldiçoar. Depressa, siga-o.

— Estou trancado! — berrou o suposto assassino furiosamente. — A merda da porta está emperrada; estão a tentar abri-la agora!

— Saia daí. Não nos podemos envolver por muito mais tempo.

— Que merda!... Espere aí, a porta está a ser arrancada!

— Depressa — o Hawk desligou o telefone e baixou os olhos para Little Joey, o Mortalha, sentado na beira da cama. — Vai dizer que não sabia que o homem estava no hotel?

— Que homem? — protestou Joey. — É o mais maluco dos malucos, Mickey Ha Ha. Precisa de ajuda, grandalhão, talvez de uma casa bem bonita com gramados verdes, portões de ferro e muitos médicos.

— Sabe, Little Joseph, acredito em você — disse o general. — Não seria a primeira vez que o comando impede que certos aspectos de uma operação sejam conhecidos dos batedores. — Com estas palavras, o Hawk dirigiu-se rapidamente para a porta e saiu; conseguia-se ouvir o seu passo acelerado no corredor... E o telefone tocou. Joey adiantou-se e pegou o aparelho.

— Sim?

— É o grande general em pessoa?

— Sim? — respondeu o Little Joey, curioso.

— Este é o grande momento da minha vida, meu General! Soldado de Primeira Classe Harry Milligan falando. Estou aqui para lhe dizer que temos este hotel não apenas cercado, como também infiltrado, meu General! Nenhum mal lhe acontecerá, meu General, é a promessa dos patrióticos rapazes do Posto da Legião Comemorativo de Pat O'Brien!

Silenciosa e lentamente, Joey voltou a colocar o telefone no descanso e recostou-se na cama. Malucos. O mundo inteiro está cheio de doidos, especialmente em Boston, Massachusetts onde os despudorados peregrinos certamente já se fartaram de se casar entre si. Afinal, que tinham mais para fazer durante a longa viagem dentro desse navio, como era o nome dele, o Maypot?.. Bem, pensou Joey, ia pedir um belo jantar ao serviço de quarto e, em seguida, ligar para o código Ragu em Washington. Vinnie, o Bam-Bam, ia ouvir uma longa história cheia de detalhes, quer gostasse, quer não. Malucos!

Aaron Pinkus escoltou seus dois diplomatas de fraque até a recepção do hotel Four Seasons e anunciou orgulhosamente que os seus convidados, os embaixadores de Espanha, iriam ocupar a sua suíte e quaisquer cortesias que lhes fossem proporcionadas seriam muito apreciadas, não apenas pelo seu anfitrião, como pelo Governo dos Estados Unidos da América.

Todo o pessoal que trabalhava na recepção convergiu para prestar homenagens aos distintos visitantes e quando se soube que nenhum dos dois falava inglês, um mensageiro porto-riquenho de nome Raul foi convocado para servir de intérprete. Ele ficou radiante com sua primeira comunicação com Desi-Um, que consistiu no seguinte, em tradução livre:

— Ei, cara, onde conseguiu esse uniforme janota com tantos botões brilhantes? Está no Exército?

— Não, cara, eu carrego malas. Me mandaram ficar a seu lado para fazer com que os gringos entendam o que diz.

— Ah, isso é legal! De onde você é?

— P. R.

— Nós também!

— Não, vocês não, vocês são diplomatas importantes de Madri! Foi o que o cara disse.

— Isso é só para os gringos, cara! Olha, talvez mais tarde a gente vá a uma bela festa, o que diz?

— Ei, cara, o lugar em que vocês estão hospedados tem tudo!

— Quem sabe se não têm garotas também? Garotas bonitas, claro, porque meu sócio é muito religioso.

— Eu arranjo tudo o que ele quiser e para nós, arranjo o que nós quisermos. Deixe isso comigo, cara.

— O que eles disseram, Pedro? — perguntou o chefe do pessoal de atendimento.

— Raul.

— Desculpe. O que eles disseram?

— Estão muito bem impressionados com as maneiras finas e a gentileza exemplar de todos. Mostram-se especialmente gratos pelo fato de terem designado este modesto Raul para acompanhá-los durante sua estadia.

— Palavra de honra — exclamou um dos gerentes —, você fala extremamente bem para um hisp... para uma pessoa recentemente chegada a nossa terra.

— É a escola noturna. Curso de Extensão para Imigrantes da Universidade de Boston.

— Fiquem de olho nesse rapaz, cavalheiros. Ele é diferente!

— É o mais idiota de todos. Este lugar é bom; ele não vai durar um mês.

— Diga-nos alguma coisa que não sabemos, Pedro!

— Talvez — disse Aaron Pinkus, interrompendo — vocês gostassem de dar uma volta por este magnífico hall. É realmente original... Traduza, por favor, Raul.

— Com todo prazer.

Harry Milligan se aproximou do camiseta-de-manga-curta-com-tatuagem e cochichou ao seu ouvido, vagamente consciente de que muita gente no hall os fitava. — O grande general atua de maravilhosas e misteriosas maneiras, rapaz. Expliquei a nossa missão e ele ficou em silêncio, mas, como Deus é testemunha, pude ouvir as engrenagens a girar no seu cérebro privilegiado... Sabe, o grande homem pode estar a descer pela parede exterior do edifício neste exato momento. Pelo que soube, ele ensinou aos Rangers tudo o que eles sabem!

De repente, numa alarmante intromissão, o setuagenário de blusão de combate cheio de distintivos, com as pernas arqueadas compondo um par de agitados parênteses, correu em direção a Milligan e ao Camiseta de Manga Curta. — Descobri, rapazes! Eles são terroristas!

— Quem, pelo amor de Deus?

— Esses janotas de fraque!

— Do que você está falando?

— Esses dois caras esquisitos de pele morena e cabelo preto que estão se afastando da recepção! Tudo indica que são importantes, não é?

— Bem, acho que sim, rapaz. Olhe para eles.

— Desde quando caras importantes vestidos com roupas importantes saltam de um velho e pequeno Buick de três anos em vez de uma dessas limusines grandonas? Pergunto a você, Harry.

— Milligan, isso faz algum sentido?

— Não, não faz, porque não é natural, não com caras tão importantes num lugar como este. Um Buick de três anos não é um transporte adequado, você tem razão quanto a isso. — Harry deu uma olhada aos visitantes esplendidamente vestidos, que para o resto do mundo pareciam pavões vaidosos, estrangeiros de algum ensolarado país nas margens do Mediterrâneo, tendo em conta a sua tez morena... árabes! Terroristas árabes, que certamente não se sentiam à vontade com aquela roupa, senão não estariam a levantar os ombros daquela maneira ou a retorcer os traseiros dentro das suas calças justas. Não, senhor. Aqueles homens estavam acostumados a mantos, como os que apareciam nos filmes passados no deserto, e a compridos punhais encurvados, enfiados nos cintos, e não a faixas elegantes a cobrirem a sua cintura.

— Santa Maria, Mãe de Deus — murmurou Gilligan para o Camiseta de Manga Curta. — Pode ser que seja isso, rapaz! Passe a palavra aos nossos homens — diga-lhes para se deslocarem lentamente, de olho nos dois ratos do Saara. Se eles entrarem no elevador, nós entramos também!

— Oh, Harry, eu não me confessei esta semana...

— Cale-se, somos sete, pelo amor de Deus!

— Isso é mais do que três contra um, não é?

— Agora você é contador? Ande depressa e diga aos rapazes que, se eu der o grito de guerra, avançamos rapidamente contra eles!

Como um minueto graciosamente coreografado, mas com dançarinos bem menos graciosos, a brigada Milligan-Gilligan começou a circular entre os bem vestidos hóspedes no hall do hotel. Braços nus com tatuagens e camisetas do açougue O'Boyle misturaram-se a ternos de lã e estampados de Christian Dior, enquanto um balouçante capacete de combate insistia em bater nos estômagos cobertos de blazers da Brook Brothers e vestidos do Adolfo, tudo para crescente preocupação da recepção e das horrorizadas vítimas desses intrusos agressivos com suas estranhas indumentárias.

De repente, um homem corpulento com fogo nos olhos emergiu de um elevador. Olhou em volta e deslocou-se rapidamente para um ponto perto da entrada, de onde podia, obviamente, observar todo o hall. Sem que fosse vista por ele, a figura alta de cabelos grisalhos de um homem envergando um blusão índio de pele de gamo surgiu das sombras e se esgueirou até se aproximar do homem agitado.

— Caramba!

— ¡Madre de Dios!

O dueto de gritos ressoou no hall quando os dois homens de fraque berraram com toda a força dos pulmões, enquanto apontavam acusatoriamente para o sujeito corpulento perto da entrada.

— ¡Homicidio!

— ¡Asesino!

— ¡Criminal!

— ¡Demandaré la policia!

O atônito cavalheiro com ar de poucos amigos — que era o objeto dos gritos agudos dos dois caras de fraque — começou a correr, mas foi instantaneamente detido pelo homem alto com roupa de índio, que, prendendo o pescoço e a cabeça do acusado, enfiou o joelho na base da sua coluna vertebral.

— É ele, rapaz! — Outro urro ecoou nas paredes e sobrepôs-se ao pandemônio que se instalara no hall do hotel. — É o grande homem em pessoa! Erin go bragh, rapazes! Avançar em memória do Santo William Patrick O'Brien!

E, naturalmente, a brigada Milligan-Gilligan atacou entre os corpos histéricos e caiu sobre os dois terroristas árabes de fraque.

— O que está fazendo, velho? — gritou Desi Um, com fortíssimo sotaque hispânico, ao mesmo tempo em que aparava o golpe de um gordo que agora estava usando capacete de combate.

— Ei, seu idiota loco! — gritou Desi Dois, chutando um dos advogados do açougue O'Boyle, chute que o fez aterrissar numa linda cadeira Queen Anne, que desabou sob seu peso. Ele agarrou no braço do Camiseta de Manga Curta. — Esta cobra é bonita, gringo velho, e não quero magoá-la, mas tem de me deixar em paz! Não tenho nada contra você!

— Sargentos! — berrou O Hawk, avançando por entre as figuras que tinham desabado à volta dos seus dois extremamente eficazes ajudantes. — O Comandante Pinkus ordenou uma retirada!

— O mais rapidamente possível — acrescentou Aaron, junto à porta. — A segurança do hotel estava a preencher formulários de registros de roubos no escritório, mas já veio para cá e a polícia foi chamada. Depressa!

— E o vicioso, Heneral?

— Quando acordar vai ficar com problemas na coluna por um mês ou dois. Gostaria de saber se a Mafia tem algum plano de saúde.

— Vocês três aí, façam o favor de andar depressa!

— OK, Comandante — disse Desi-Um, olhando em volta para a confusão instalada no lobby — Ei, Raul!

— Si, señor embajador? Seu anormal!

— Depois ligamos, cara! Talvez queira ingressar no Exército conosco, ou não?

— Talvez, amigo. Pode ser que seja mais seguro do que isso aqui. Adiós!

O Buick de Aaron Pinkus desceu velozmente a rua Boylston e virou na primeira esquina, que os levaria a Arlington e depois ao hotel Ritz-Carlton. — Eu pura e simplesmente não percebo! — protestou o advogado. — Quem eram eles?

— Lunáticos, velhos lunáticos, lunáticos esclerosados! — respondeu MqcKenzie Hawkins, furioso, olhando para o banco traseiro. — Vocês sofreram algum ferimento? — perguntou.

— Está maluco, Heneral? Aqueles velhos não são capazes de roubar uma galinha.

— O que é isso? — perguntou o Hawk abruptamente, ao ver Desi-Um colocar quatro carteiras no banco entre ele e Desi-Dois.

— O que é o quê? — perguntou D-Um, olhando inocentemente para o general.

— Estas carteiras com notas — quatro carteiras!

— Há muita gente lá dentro do hotel — argumentou D-Dois.

— O meu amigo não se esforçou muito hoje, ele é capaz de se sair muito melhor do que isto.

— Bom Deus — disse Pinkus ao volante, sentindo-se invadido por uma sensação de derrota. — A segurança do hotel... aqueles formulários de registro de roubos.

— Não pode fazer isso, Sargento!

— Não estou assim tão cheio de grana, Heneral. É apenas uma ocupação secundária, como vocês, gringos, costumam dizer.

— Oh, santo Abraão — suplicou Aaron baixinho. Tenho mesmo de me acalmar, minha pressão está estratosférica.

— O que há, Comandante Pinkus?

— Digamos apenas que este não foi um dia normal de trabalho para mim, General.

— Quer que eu dirija?

— Não, muito obrigado. A direção me distrai.

Aaron esticou o braço e ligou o rádio.

Os acordes do Concerto em Ré para flauta de Vivaldi encheram o pequeno carro, fazendo com que Desi-Um e Desi-Dois se entreolhassem em sinal de desaprovação. Pinkus respirou fundo, mais tranquilo, antecipando uns momentos de paz. Foram, contudo, apenas uns breves momentos. A música parou de repente e a voz excitada de um locutor substituiu o repousante Vivaldi por um nervoso noticiário de urgência.

 

Interrompemos este programa para lhes trazer um boletim exclusivo. Apenas alguns minutos atrás, o Hotel Four Seasons da rua Boylston foi cenário de um incidente extraordinário. As circunstâncias ainda não foram esclarecidas, mas tudo indica que houve uma perturbação da ordem no hall de entrada do hotel, fazendo com que numerosos hóspedes fossem empurrados e atirados ao chão — felizmente apenas sofreram ferimentos superficiais, segundo o que se sabe até agora. Passamos agora a ouvir, pelo telefone, nosso repórter no local dos acontecimentos, Chris Nichols, que almoçava no hotel — o locutor fez uma pausa e acrescentou, involuntariamente: “Almoçando no Four Seasons? Com o salário que ganhamos...?” “Almoço não, seu idiota!”, interrompeu uma segunda voz, grave e ressonante. “Minha mulher acha que estou em Marblehead..”. “Você está no ar, Chris.”

“Estou brincando, amigos. Mas não havia humor algum no que aconteceu aqui há uns cinco minutos. A policia está tentando apurar os fatos, mas não é uma tarefa fácil. Tudo o que sabemos no momento é que o elenco de personagens envolvidas poderia ter saído de um filme de Hitchcock... Um famoso advogado de Boston, dois embaixadores espanhóis, terroristas árabes, um enorme e idoso índio americano com a força de um búfalo, uma estranha mistura de veteranos da Segunda Guerra Mundial vestidos estranhamente e tendo alucinações ainda mais estranhas e, finalmente, um famoso pistoleiro da Máfia. Somente a primeira e a última personagens foram identificadas. Trata-se do famoso advogado Aaron Pinkus e de um tal Caesar Boccegallupo, alegadamente um capo primitivo da familia Borgia, do Brooklyn, Nova York. O primeiro, Aaron Pinkus, fugiu possivelmente com os dois embaixadores espanhóis ou foi tomado como refém pelos terroristas árabes, dependendo da versão que se prefira. O Sr. Boccegallupo está sob custódia, e, de acordo com as informações disponíveis, grita constantemente que quer falar com seu advogado, que ele alega ser o Presidente dos Estados Unidos. Bem, independentemente de partidos políticos, todos sabemos que o Presidente não é advogado.” “Muito obrigado, Chris, muito obrigado por esta reportagem exclusiva e boa sorte em Marblehead, para essa excitante regata de iates...” “Já acabou, seu idiota filho da...” O Vivaldi voltou, mas não conseguiu reduzir minimamente a pressão arterial de Aaron Pinkus.

 

— Abraão me abandonou mesmo — murmurou o mais notável advogado de Boston, Massachusetts.

— Eu ouvi isso, Comandante! — gritou MacKenzie Hawkins. — Abraão pode tê-lo abandonado, mas eu não, isso é tão certo como o leopardo ter manchas! Enfrentaremos o fogo juntos, vamos virá-lo contra eles e os liquidaremos, velho amigo!

— Será possível — perguntou Aaron Pinkus em voz baixa, olhando de relance para o Hawk — que eu tenha sido presenteado com a forma humana do meu demônio pessoal, o meu dibuk?


14

Sunrise Jennifer Redwing fechou silenciosamente a porta do , quarto de dormir e caminhou até a escrivaninha na sala da suíte do Ritz-Carlton arranjada por Aaron Pinkus.

— A sua mãe está a dormir — disse ela, ao puxar a cadeira para se sentar em frente de Devereaux, que estava sentado no sofá.

— Finalmente — acrescentou, cruzando com firmeza as pernas e olhando ferozmente para Sam.

— Não creio que adiante alguma coisa dizer que nem sempre a minha mãe está ébria.

— Se eu fosse mãe, Samuel Devereaux, e tivesse descoberto acerca do meu filho as coisas que ela soube a seu respeito nos últimos dias, não ficaria sóbria por um único segundo dos próximos cinco anos!

— Não está sendo um pouco severa, advogada?

— Só se você decidisse imolar-se no palco do Palácio das Vacas de San Francisco, com todas as receitas revertendo para as mães levadas à loucura pelos filhos.

— Então ela contou muitas coisas — disse Sam, tentando, sem sucesso, evitar o olhar claramente inamistoso da bonita senhora.

— Apenas uns pedaços aqui e ali, na sua casa. Mas na última meia hora ouvi um verdadeiro compêndio de horrores. Foi quando me ouviu trancar a porta, como ela me disse para fazer... Assassinos do submundo num campo de golfe, traidores ingleses, nazistas em aviários, árabes assando testículos de bode no deserto... e, meu Deus, sequestrar o Papa! Você tinha mencionado esse general maluco vasculhando um arquivo secreto para levantar quarenta milhões de dólares, mas nada como isso! Jesus Cristo, o Papa! Não posso acreditar... ela deve ter entendido mal.

— Na realidade eles não são a mesma coisa, como sabe. Refiro-me a Cristo e ao Papa. Lembre-se, sou anglicano, embora não consiga precisar a última vez que fui à igreja. Há onze ou doze anos, creio...

— Não tenho o menor interesse em saber se você é anglicano ou uma gota da lua caída do zodíaco tibetano, você é interditável, advogado! Não tem o direito de andar na via pública e muito menos, mas muito menos mesmo, de pleitear!

— Você está sendo hostil — observou Devereaux.

— Estou completamente fora de mim! Você faz com que meu irmão supermaluco, o Charlie, pareça o Oliver Wendell Holmes!1

— Aposto que nos daríamos bem.

— Ah, sim, agora posso ver isso. Redwing e Devereaux...

— Devereaux e Redwing — interrompeu Sam. — Sou mais velho e mais experiente.

... A sociedade de advogados com jurisprudência até a Idade da Pedra!

— Provavelmente era tudo bem mais claro nesse tempo — disse Sam, acenando com a cabeça. — Eles não podiam gravar todas aquelas frases em código nas em pedras.

— Fale sério, seu idiota!

— Idiota eu não sou, Red. Um autor teatral disse que chega uma hora em que nada resta a fazer senão gritar. Estou pura e simplesmente substituindo uma gargalhada irônica por um grito.

— Refere-se a Anouilh, e ele também disse “portador da vida, ilumine”, e eu substituo “vida” por “lei”... na qual, por alguns momentos em sua casa, eu pensei que também acreditasse. Temos que iluminar, Sam.

— Você conhece Anouilh? Pensei que eu fosse a única pessoa que...

— Ele nunca chegou a exercer advocacia em Paris — interrompeu Jennifer —, mas admirava a lei, especialmente a linguagem da lei, e transformou em poesia uma grande parte dela.

— Você me assusta, moça índia.

— Espero que sim. Temos um problema muito assustador em julgamento, advogado.

— Não me refiro à megatrapalhada do Mac, embora tenha razão ao dizer que assusta como o diabo. Mas, de alguma forma, não me pergunte como, acho que conseguiremos escapar pelo menos com nossas vidas, mesmo que não fiquemos com nossa sanidade mental intacta.

— Fico satisfeita por ver que é tão confiante — observou Redwing. — Eu não me sinto confiante com nenhuma delas.

— “Confiante” não é a palavra certa, Red. Digamos que sou fatalista porque o destino provavelmente estará do nosso lado, mesmo que seja porque temos Aaron Pinkus e MacKenzie Hawkins, dois dos homens mais decididos que já conheci, interferindo por nós. E se eu for chamado a entrar no jogo, também não sou dos mais incompetentes.

— Você fez com que eu me perdesse. Do que falávamos mesmo?

— De você, minha cara... No espaço de poucas horas, de um momento louco no elevador a esta suíte de hotel, passamos por muita coisa.

— Essa pode ser a história abreviada da sua carreira profissional — interrompeu Redwing, com os olhos ainda faiscando.

— Eu sei, eu sei, mas aconteceu uma coisa...

— Aconteceu mesmo?

— A mim — completou Sam. — Observei-a em situações que os rapazes da psicologia provavelmente designariam como momentos de extremo estresse e gostei do que vi, respeito o que vi. Pode aprender-se muito sobre uma pessoa em tais circunstâncias... Pode descobrir-se coisas maravilhosas, muito bonitas.

— Isto está a ficar um pouco meloso demais, Mr. Devereaux — disse Jennifer — e estou absolutamente segura de que o momento não é o mais adequado.

— Mas não vê que este é o momento próprio? Se eu não o disser agora, quando o sinto tão fortemente, é possível que não venha a conseguir dizê-lo mais tarde. Pode simplesmente desaparecer e eu não quero que isso aconteça.

— Por quê? Por causa da recordação do... como a sua mãe disse? Ah, sim, o “eterno amor da sua vida”, uma freira benevolente que fugiu com o Papa e que voltou à sua memória? Não passa de outra história tortuosa na cidade dos loucos!

— Isso é parte do que estou dizendo — insistiu Sam. — Porque essa recordação está desvanecendo, sinto-o. Ainda ontem à noite quis matar o Mac, apenas por ele ter mencionado o seu nome, mas agora isso já não tem importância, pelo menos acho que não tem. Olho para você e já não consigo ver o rosto dela e isso significa algo que é muitíssimo importante.

— Está querendo me dizer que essa pessoa existiu?

— Sim.

— Devo estar no meio de um filme de terror, com meu saco de pipoca chegando ao fim e metade dele espalhada pelo chão cheio de chiclete.

— Bem-vinda ao mundo de MacKenzie Hawkins, advogada. E não se levante do seu lugar, porque se as pipocas não a fizerem escorregar e cair, talvez a pastilha elástica a faça perder os sapatos.... Porque pensa que o seu irmão fugiu? Porque pensa que fiz tudo o que estava ao alcance do poderoso Aaron Pinkus para evitar qualquer envolvimento com o maluco do Hawk?

— Porque é uma loucura total — respondeu a Afrodite de pele de bronze, com maior suavidade no olhar. — No entanto, seu brilhante Mr. Pinkus, e eu reconheço que ele é um homem brilhante, porque sei de algumas coisas dele, não cortou relações com o general. Tudo indica que está em contato permanente com ele, trabalhando com ele, quando ambos sabemos que ele poderia cortar esse relacionamento com um simples telefonema para Washington, desvinculando-se de qualquer associação, fosse qual fosse, bastando afirmar que nunca a tinha procurado... E você, eu o observei ao telefone, no carro; você estava fora de si de ansiedade, não obstante suas frágeis negativas. Por que, advogado? Qual é o poder que essa criatura tem sobre vocês dois?

Sam baixou a cabeça, com os olhos vagueando num círculo imaginário traçado em volta de seus sapatos. — A verdade, acho — limitou-se a dizer.

— Que verdade? É o caos!

— Sim, também, mas por baixo disso está a verdade. Como com o Papa Francisco. Começou como a maior falcatrua da história universal, como Aaron disse, mas lá no fundo havia outra coisa. Esse belo homem estava sendo impedido de agir pela gente hipócrita que o cercava, fariseus mais interessados no poder do que no progresso. Tio Zio queria escancarar as portas abertas por João XXIII e essa gente queria fechá-las. Foi por isso que Zio e o Hawk ficaram tão amigos nos Alpes. Por isso fizeram o que fizeram.

— Os Alpes? O que eles fizeram?

— Calma, advogada. Você perguntou e eu estou dando uma resposta. Os Alpes não são importantes, poderia ter sido um apartamento em Jersey City. O que é importante é a verdade e a verdade é a armadilha insidiosa de Mac. Sejam quais forem as vias tortuosas que a sua mente percorre, o fato é que, de uma forma ou de outra, ele acaba de chegar a uma verdade fundamental, sempre, asseguro-lhe, com uma terrível fraude... Seu povo foi violado, lady, e ele preparou o que parece ser a prova irrefutável desse assalto. Claro, há milhões que vão ser ganhos apenas por essa prova ser levada à Justiça e mais milhões vão ser distribuídos por aqueles que refutam essa prova, mas não há forma de contestar a sua premissa básica, se é que as fontes dele são autênticas... Eu não posso, Aaron não pode, e você também não pode.

— Mas eu quero negá-lo! Não quero que meu povo fique debaixo desse rolo compressor! Muitos são bastante velhos e um número muito maior está mal preparado, por falta de instrução, para lidar com essas complexidades. Eles pura e simplesmente ficariam confusos, sem dúvida que seriam corrompidos por interesses especiais e, no fim, sairiam magoados. Está errado!

— Sim, eu compreendo — disse Sam, recostando-se no sofá. — Vamos deixar os escurinhos felizes lá na plantação, cantando seus spirituals e pilotando as mulas.

— O que está falando? Como se atreve a dizer uma coisa dessas?

— Você disse, lady índia. Você saiu de lá e, do alto da sua augusta posição profissional em San Francisco, decreta que os seres inferiores não têm capacidade para romper as cadeias que os mantêm em nível inferior.

— Eu nunca disse que eles não têm capacidade, e sim que não estavam prontos! Estamos construindo outra escola, contratando os melhores professores que podemos pagar, a apelar para o Corpo da Paz e a mandar um número cada vez maior de crianças para fora da reserva, em busca de uma educação melhor. Mas isso não se faz da noite para o dia. Não se pode transformar um povo oprimido numa sociedade politicamente consciente apenas em um mês ou dois, são necessários anos.

— Você não tem anos, advogada, tem o momento presente. Se deixar passar essa oportunidade, por mais frágil que seja, para reparar um erro desses, pode ser que não venha a ter outra. Mac tinha razão a esse respeito, por isso agiu como agiu, as armas nos seus lugares e ocultas e o alto comando fora do alcance, mas com o controle de tudo.

— O que significa esse palavreado?

— Acho que The Hawk chamaria isso de algo como Força de Ataque Delta, Choque da Hora Zero.

— Ah, claro. Agora entendi tudo!

— Ataque de surpresa, Red. Nenhum aviso anterior, nenhuma cobertura de jornal ou qualquer outra mídia, nenhum advogado proclamando sua marcha sobre a Suprema Corte... tudo silencioso, como uma punhalada.

— Pegando todo mundo desprevenido... — concluiu Jennifer, começando a compreender.

— Exatamente — disse Devereaux. — Esqueça as probabilidades, suponha que eles consigam um voto decisivo, não se pode apelar de uma decisão da Suprema Corte, só com uma mudança legislativa.

— E o Congresso, mesmo estimulado por uma situação dessas, tem a velocidade de uma tartaruga — completou a advogada. — Deixando assim seu Hawk em posição privilegiada.

— Juntamente com os Wopotamis — acrescentou Devereaux. — É o que se chama hora de escrever-seu-bilhete.

— Pode chamar também de elevador direto para o inferno — disse Redwing, levantando-se e caminhando até a janela do hotel que dava para o Jardim Público de Boston. — Isso não pode acontecer, Sam — continuou ela, abanando a cabeça devagar. — Eles não seriam capazes de controlar a situação. Os arrivistas, nas suas limusines e jatos Lear, desceriam sobre eles como um exército de pterodátilos a exibir Baco e as suas bacantes em tamanha quantidade que não seriam capazes de fugir... E eu não poderia detê-los, nenhum de nós o poderia fazer.

— Nós?

— Há mais ou menos uma dúzia de nós, jovens, que o Conselho de Anciãos decidiu serem ogottowa — mais inteligentes do que os outros, é a tradução mais fácil, embora seja mais profundo do que isto —, a quem foram dadas oportunidades a que as outras crianças não tiveram acesso. Todos nos saímos bastante bem e, à exceção de três ou quatro que, assim que puderam, deixaram-se assimilar e compraram os seus BMWs, nós reunimo-nos e cuidamos dos interesses da tribo. Fazemos o melhor que podemos, mas mesmo nós não seríamos capazes de os proteger dessas vantagens olímpicas proporcionadas pela lei.

— Estamos muito gregos hoje, não estamos?

— Eu não me tinha dado conta disso. Por quê?

— Não sei. Há um grego que anda por aí com o meu melhor blazer J. Press. Desculpe, não tive intenção de a interromper.

— Teve sim. Está a tentar descobrir como me pode responder.

— Você é muito rápida, advogada... É verdade, estou, e acho que posso. Estou certo ao presumir que você seja a número um desses doze especialmente escolhidos?

— Suponho que sim. Sou muito dedicada e estou em posição de prestar apoio jurídico.

— Então use essa perícia antes do fato, se é que o fato vai se concretizar um dia.

— De que modo?

— Em quantos outros jovens geniais pode confiar? — Sam respondeu com outra pergunta.

— No meu irmão Charlie, claro, quando puser a cabeça no lugar... e talvez uns seis ou sete que não creio possam ser transformados em Alices no país das penthouses.

— Então organize um consórcio empresarial de caráter irrevogável, do qual façam parte todos os membros do Conselho de Anciãos, estipulando que nenhum negócio tribal de natureza econômica possa ser efetuado ou atribuído a outras pessoas que não os executores do consórcio.

— O que revela um conluio precedendo uma ação judicial antecipada — objetou Redwing.

— Que ação? Você foi formalmente notificada de alguma ação judicial?

— Claro que fui. Por meu irmão Charlie, o doido, e pelo meu novo conhecido, Sam, o da calça molhada.

— Então minta um pouco. É isso ou um elevador direto para o inferno. — Redwing caminhou para a escrivaninha; fez uma pausa, com as mãos nos quadris e a cabeça arqueada, virada para o teto, meditando. A pose provocante irritou Sam. — Você tem que fazer isso? — perguntou.

— Fazer o quê? — replicou a Afrodite dos Wopotamis, olhando para Sam.

— Adotar essa postura.

— Que postura?

— Você pode ser uma senhora intimidadora, mas não tem excesso de testosterona.

— De que diabos está falando?

— Você não é um homem.

— Está coberto de razão. Claro que não sou homem. — Redwing examinou por breves instantes seu corpo. — Oh, vamos lá, advogado, esqueça isso. Concentre-se na sua freira.

— Estou detectando uma ponta de ciúme? É o melhor que eu poderia esperar.

No mesmo instante, Sam iniciou uma interpretação bem pobre da canção Jell-loos-see, I hear you my jell-loos-see2...

— Pelo amor de Deus, cale-se!... Isso é uma coisa que Charlie podia fazer.

— Espero que não.

— O quê?

— Deixe pra lá. O que Charlie podia fazer?

— Formar o tal consórcio — disse Redwing, indo até a escrivaninha e pegando o telefone. Ele pode usar minha mesa e meu fax. Estaria tudo pronto em um dia.

— Ei — gritou Devereaux pulando do sofá —, você disca, mas posso fingir que sou seu secretário?

— Por quê?

— Quero ouvir a voz do pobre filho da mãe que foi sugado pelo esquema criminoso do Hawk, como aconteceu comigo. Pode achar isso perverso, mas eu fiz vista grossa a seu pedido de casamento. O que me diz?

— Esteja à vontade — disse Jennifer, discando.

— Qual é o nome completo dele? — perguntou Sam, em pé ao lado da formidável advogada índia. — Para que ele saiba que sou autêntico.

— Charles... Sunset3... Redwing.

— Você está brincando!

— Ele nasceu durante os últimos raios do sol poente e não estou interessada em ouvir nenhum comentário engraçadinho.

— Eu não me atreveria.

Jennifer acabou de discar e passou o aparelho a Devereaux. Após alguns instantes, Sam respondeu ao tranquilo “alô” do outro lado da linha:

— Quem fala? É Charles Sunset Redwing?

— Quer falar com Olhos de Águia? — perguntou o irmão. — Algum problema por aí?

— Olhos de Águia? — Devereaux cobriu o telefone com a mão e virou-se para Jennifer. — Ele disse “Olhos de Águia”. O que significa isso? É algum código índio?

— É nosso tio. Você usou o nome do meio do Charlie, que ele não costuma propriamente divulgar. Deixe-me falar com ele.

— Ele me deixa apavorado.

— O Charlie? Por quê? É um rapaz simpático.

— Falando, parece comigo!

— Dois pontos para o homem branco — disse Redwing, pegando o telefone. — Alô, seu imbecil, é sua irmã mais velha e você vai fazer exatamente o que eu mandar e não se atreva a contestar se não quiser voltar às fraldas, só que com algumas partes a menos. Entendeu, Charlie?

Sam voltou para o sofá, mas desistiu da ideia de se sentar. Preferiu o bar espelhado embutido na parede e abastecido com toda espécie de bebidas. Enquanto Red Redwing matraqueava com o irmão, ele começou a preparar uma grande jarra de martini seco. Se não restava mais nada senão gritar, ao menos que gritasse meio embriagado.

— Pronto! — exclamou Jennifer, desligando o telefone e se virando para o sofá, onde esperava que Sam estivesse. Em vez disso, desviou os olhos para o bar, onde o misturólogo executava o seu ritual. — Que está fazendo?

— A tornar a dor menos dolorosa, acho eu — respondeu Sam, enfiando um garfinho num pote de azeitonas. — O Aaron deverá estar aqui dentro de pouco tempo e o Mac também, mais cedo ou mais tarde... se ele conseguir sair do Four Seasons... Não é uma reunião pela qual eu esteja ansioso. Quer uma bebida?

— Não, obrigada, um martini desses deixar-me-ia estendida no chão. Receio que seja genético e por isso afasto-me desse tipo de bebidas.

— Ah sim? Pensei que esse fosse um mito parvo... índios e aguardente.

— Você acha que Pocahontas teria olhado duas vezes para aquele WASP magricela do John Smith se ela não estivesse bem bebida? Não com todos aqueles guerreiros bonitões em volta.

— Considero essa observação racista.

— Pode apostar que é. Deixe-nos alguma coisa.

O elegante gerente do country club exclusivo de Fawning Hill, na Costa Leste de Maryland, virou-se para seu assistente quando o homem corpulento atravessou a imponente entrada e passou por eles, acenando com a cabeça num gesto de reconhecimento, por ter sido cumprimentado em silêncio, sem menção de nomes.

— Roger, meu rapaz — disse o gerente, de smoking —, acabou de presenciar a passagem por aquela porta de, pelo menos, doze por cento de toda a riqueza deste país.

— Está brincando — disse o mais jovem e igualmente elegante subordinado, que também envergava smoking, só que sem uma rosa na lapela.

— De maneira alguma — continuou o gerente. — É uma reunião privada no Salão Dourado com o Secretário de Estado. Nada de almoço, nada de bebidas, a não ser garrafas de água, nada. Tudo muito sério. Dois homens do Departamento de Estado chegaram há duas horas e varreram tudo com equipamentos eletrônicos, para se certificarem de que não havia dispositivos de escuta.

— Que acha que seja, Maurice?

— Uma reunião dos que fazem e dos que desfazem, Roger. Dentro daquele salão estão as pessoas que mandam na Aeronáutica Monarch-McDowell, no Conglomerado Petrotoxic, na Rolamentos Esféricos Zenith Internacional e nas Indústrias Smythington-Fontini, que vão de Milão, na Itália, à Califórnia.

— Eita! Quem é o quinto gajo?

— O rei dos banqueiros internacionais. É de Boston e segura mais cordões de bolsas do que o Departamento do Tesouro.

— O que acha que estão fazendo?

— Se eu soubesse, provavelmente ficaria rico.


— Moose! — exclamou Warren Pease, cumprimentando, na porta, o dono da Aeronáutica Monarch-McDowell com um vigoroso aperto de mão.

— O seu olho esquerdo está em órbita, Warty — disse o homenzarrão. — Estamos com problemas?

— Nada que não possamos resolver, meu amigo — replicou o Secretário de Estado nervosamente. — Diga olá por mim ao pessoal.

— Olá, companheiros — disse Moose, dando a volta à mesa, com o seu blusão verde de membro honorário do clube de golfe de Fawning Hill e apertando mãos.

— Muito prazer em vê-lo, amigo — disse Doozie, da Petrotoxic, com o seu blazer azul a exibir não o emblema de um clube, mas sim o brasão de armas da sua família.

— Está atrasado, Moose — disse o louro Froggie, proprietário e diretor executivo da Rolamentos Zenith. — E eu estou com pressa. Desenvolveram uma nova liga em Paris e ela pode representar milhões de dólares nos nossos contratos com a Defesa.

— Oh diabo, desculpe-me, Cara de Rã, mas não pude mudar o tempo que fazia em St. Louis. O meu piloto insistiu em fazer um desvio... Olá, Smythie, como vão as mulheres em Milão?

— Elas ainda choram por si, Moose! — retorquiu Smythington-Fontini. O meio britânico, meio italiano apaixonado dos iates estava vestido com as suas calças brancas de flanela e a sua blusa ondulante cheia de fitas a assinalar os seus triunfos nas regatas de iate.

— E então, Bricky — disse Moose, apertando a mão estendida do banqueiro de Boston. — Como vai o pote do dinheiro? Você ganhou uma boa grana às minhas custas no ano passado.

— A maior parte dedutível de impostos, meu velho — contrapôs o banqueiro da Nova Inglaterra, sorridente. — Tem outra forma?

— Claro que não, Bricky! Você adoça o meu café todas as manhãs... Eu sento aqui, não é verdade?

— Sim.

— Sim! — insistiu Froggie. Estou com pressa. Essas novas ligas em Paris podem cair nas mãos da indústria alemã. Ande logo com isso, Warren.

— Está bem, está bem — disse o Secretário de Estado, sentando-se e batendo furiosamente na fronte esquerda para colocar o olho oscilante no lugar.

— Informei-os pelo telefone seguro que nosso bom amigo e meu antigo colega, o Presidente, designou-me responsável pelo problema italiano na CIA.

— Suponho que alguém tenha que fazê-lo — observou Doozie, da Petrotoxic. — No meu entender, esse homem se transformou numa ameaça. As histórias de suas táticas consideradas abusivas já se tornaram lenda.

— No entanto, desde a sua posse que ele se tem mostrado muito eficiente — disse Moose. — Desde o dia em que entrou em Langley, nossas empresas não tiveram um único problema sindical sério. Onde quer que haja uma ameaça, seus antigos colegas aparecem em limusines e as ameaças desaparecem.

— Um toque simpático, esse das limusines — disse Doozie, tirando uma pequena linha que estava em cima do brasão de família, no seu blusão. — Devo dizer também que tem sido uma inspiração a forma como ele atira as suas proibições em nome da segurança nacional para cima desses porcos ambientalistas. A mamãe e o papai teriam pensado o melhor possível dele.

— E embora em sociedade ele seja totalmente inaceitável — acrescentou o aristocrata dos banqueiros de Boston —, ele tornou possível uma expansão extraordinária de suas sociedades financeiras, através de ligações com certas instituições no exterior. Todos ganhamos milhões por não termos pago milhões de dólares em impostos.

— Um cidadão bem decente — admitiu Moose, da Monarch-McDowell, fazendo oscilar a papada quando acenava com a cabeça.

— Sem dúvida alguma — reforçou Doozie. — Ele é o tipo de cidadão que compreende perfeitamente que o progresso de seus superiores pode significar seu próprio progresso. A autêntica teoria das gotas que vão caindo, indiscutivelmente comprovada.

— Além disso — disse o herdeiro das multinacionais Smythington-Fontini —, a quem mais poderíamos recorrer? Ele é um americano extremamente patriota. Sabe que cada projeto de defesa neste país tem de ser aprovado, mesmo que se levantem dúvidas, em maior ou em menor grau, pois em qualquer projeto há sempre uma valiosa... pesquisa, sim, pesquisa.

— Aqui, aqui!

— Aqui, aqui...

— Bem — interrompeu o Secretário de Estado Pease, erguendo a trêmula mão direita, que no mesmo instante agarrou com a esquerda, puxando-a para baixo, para cima da mesa. — Pode muito bem acontecer que as qualidades que o transformaram numa pessoa de tanto valor sejam as mesmas que fizeram dele uma enorme desvantagem.

— Por quê?

— Porque todos vocês tiveram grandes negócios com ele.

— Isso está enterrado, Warren — disse Froggie glacialmente. — Está mesmo lá no fundo.

— Não para ele.

— Que aconteceu? — perguntou Boston Bricky, que, apesar de ter um rosto habitualmente branco, por causa da ausência de luz do sol nas suas casas-fortes, apresentava agora um rosto ainda mais pálido do que o habitual.

— Isso está diretamente relacionado com a outra dificuldade que enfrentamos, sobre a qual falarei mais tarde.

— Oh, meu Deus — murmurou Doozie. — Os selvagens... esse Tribunal com três senilidades de esquerda e um enigmático idiota ainda a presidir!

— Sim — confirmou Warren Pease, quase sem se fazer ouvir. — Ao tentar provocar um curto-circuito nessa estupidez, Mangecavallo seguiu os malucos dos recorrentes até Boston e chamou seus marginais de Nova York, assassinos contratados, gente profissional. Um deles foi capturado.

— Ah, grandes escarradeiras verdes de tripas gordurosas! — exclamou Bricky. — Boston?

— Eu li a notícia — disse Moose. — Houve um distúrbio num hotel e o marginal que foi preso disse que o Presidente era seu advogado.

— Eu não sabia que seu velho companheiro de quarto era advogado, Warty — disse Doozie.

— E não é. Mas se o nome dele pode até ser mencionado, muito antes do nome do Mangecavallo vir à baila, vocês todos serão os próximos, isso é tão certo como haver recurso judicial.

— O que esperava, Secretário? — exclamou o louco Froggie, com uma voz que parecia uma pedra de gelo, enquanto ia olhando em torno da mesa para cada um dos membros. — Se você atribui responsabilidades a um bandido, é responsável pelo bandido.

O silêncio que se seguiu foi o dos condenados.

Finalmente, Moose, da Monarch-McDowell, falou.

— Meu Deus, vamos sentir sua falta.

— Então estamos todos de acordo? — indagou Warren Pease.

— Bem, é claro, meu velho — replicou Doozie, com as sobrancelhas arqueadas numa expressão de inocência. — Que outra linha de ação poderíamos adotar?

— Todos os caminhos levam ao meu belo banco em Beacon Hill! — gritou Bricky. — Ele é carne de macaco morto!

— Ele é grande demais para qualquer um de nós! — exclamou Smythington-Fontini. — Um grande chefe do crime no coração do serviço de informações, sobretudo um que nos conhece, poderia revelar nosso nome!

— Quem vai contar? — quis saber Moose. — Porra, alguém vai ter que contar!

— Eu conto — prontificou-se Froggie, num tom de voz inexpressivo. — Vincent Mangecavallo deve, logo que possível, transformar-se no falecido Vincent Mangecavallo... Um terrível acidente, claro, nada que possa parecer suspeito, nem mesmo remotamente.

— Mas como? — perguntou o Secretário de Estado.

— Eu talvez possa responder — disse Smythington-Fontini, tragando casualmente o cigarro preso na ponta da cigarrilha. — Sou o único proprietário das Indústrias Milano-Fontini e onde senão em Milão, Itália, existem sempre quadros de descontentes a quem os meus subordinados indetectáveis poderiam seduzir com algumas centenas de milhões de liras? Digamos que eu... posso tratar disso.

— Que decidido!

— E tão bom!

— Um excelente espetáculo!

— Quando acabar — exclamou Warren Pease, com o olho esquerdo razoavelmente no lugar —, o Presidente em pessoa lhe concederá uma medalha de honra!... Uma cerimônia discreta, claro.

— Como ele conseguiu passar na audiência do Senado — perguntou o cara-pálida da Nova Inglaterra. — Nunca esperei que conseguisse.

— Eu, por exemplo, não tenho absolutamente o menor desejo de saber — replicou o colega de quarto do Presidente na escola preparatória. — No entanto, quanto à designação do silenciosamente obsequioso Sr. Mangecavallo, permitam-me lembrar a todos que foi uma indicação do comitê de investigação do Presidente eleito, cuja maioria está sentada em torno desta mesa. Estou seguro de que consideraram que ele nunca iria sobreviver ao interrogatório do Senado, mas sobreviveu, e aí está... Cavalheiros, são vocês mesmos os responsáveis pela colocação de um grande chefe da Mafia como diretor da CIA.

— Essa é uma forma um pouco grosseira de ver as coisas, meu velho — observou o brasonado Doozie, projetando o queixo num movimento nervoso. — Afinal de contas, você e eu estudamos no mesmo colégio.

— Deus sabe como me é doloroso, meu velho Bricky, mas você compreende com certeza. Tenho de proteger o nosso rapaz; é o meu trabalho, honra, obrigação moral e dever e todas essas coisas.

— Ele não estudou conosco. Nem sequer foi indicado para nossa associação.

— A vida não é justa para muitos de nós, Bricky — disse Froggie, olhando, porém, fixa e friamente para o Secretário de Estado. — Mas como poderia proteger o nosso rapaz do Gabinete Oval ao fazer alusão a qualquer responsabilidade nossa em relação ao Mangecavallo, coisa que pronta e clamorosamente negaríamos?

— Bem — o Secretário quase que se engasgou, com o olho esquerdo de novo transformado numa bola de metal disparada entre dois ímanes de um flipper —, acontece que temos as atas completas das reuniões do comitê.

— Como? — explodiu o pálido banqueiro da Nova Inglaterra. — Não havia secretárias e não foram feitos registros.

— As reuniões foram gravadas, companheiros — respondeu o líder do Departamento de Estado, num murmúrio.

— O quê?

— Eu ouvi o nosso leal e fino filho da puta! — berrou Moose. — Ele disse que as reuniões foram gravadas!

— Com quê, pelo amor de Deus? — quis saber Doozie. — Nunca vi nenhuma máquina!

— Com microfones ativados pela voz — disse o Secretário, um pouquinho mais alto do que antes. — Debaixo das mesas... onde quer que vocês se reunissem.

— Como é?... Onde quer que nos reuníssemos?

Os rostos em volta da mesa ficaram imobilizados numa expressão de irado assombro; depois, à medida que se deram conta, foram falando, um a um.

— Na minha casa?

— Na minha mansão no lago?

— Na minha propriedade em Palm Springs?

— Nos escritórios aqui em Washington?

— Em toda a parte — cochichou Warren Pease, com o rosto branco.

— Como pôde fazer uma coisa dessas? — urrou o anguloso Smythington-Fontini, com a gravata torta e a cigarrilha transformada num verdadeiro sabre.

— Obrigação moral e dever — replicou o louro Froggie. — Seu filho da mãe, nunca mais espere jogar no meu clube de novo.

— E eu sugiro que cancele os planos para comparecer à reunião de turma, seu vira-casacas desprezível!

— Neste instante, aceito sua demissão da Sociedade Metropolitana! — afirmou Moose enfaticamente.

— Sou o presidente honorário!

— Já não é. Esta noite vamos receber alguns relatórios que dão conta do seu comportamento chocante... digamos, assédio sexual de homens e mulheres. Não podemos tolerar este tipo de coisa! Não entre nossos membros!

— E qualquer ideia que possa ter tido quanto a atracar sua lancha insignificante no nosso iate clube está absolutamente fora de questão — sentenciou Smythie. — Marinheiro porco.

— Moose, Froggie, Doozie, você também, Smythie! Como podem fazer isso comigo? Estão falando da minha vida, das coisas que mais prezo!

— Devia ter pensado nisso antes...

— Mas não tive nada a ver com essa história. Pelo amor de Deus, não destruam o mensageiro por causa da mensagem que ele traz!

— Esta frase não me é estranha — disse Bricky.

— Propaganda comunista ou simpatizante, acho eu.

— Não, eu acho que é japonês — explicou Moose, o do blusão verde —, o que é pior! Eles dizem que nossas geladeiras são grandes demais para vender e que nossos carros são largos demais para suas ruas. Por que não constroem casas maiores e ruas mais largas, esses malditos protecionistas fanáticos?

— Não é nada disso, companheiros — exclamou o Secretário de Estado. — É a verdade!

— O que é a verdade? — indagou Froggie.

— A mensagem e o mensageiro. Ele subornou garçons e jardineiros para instalar o equipamento!

— De que diabo está falando, seu Benedict Arnold? — gritou Doozie, da Petrotoxic.

— É isso... é ele! Arnold!

— Arnold quem?

— Arnold Subagaloo, o Chefe do Estado-Maior do Presidente!

— Eu nunca consegui memorizar o nome dele corretamente. Nenhum de nós conseguiu. O que tem ele?

— Foi ele que mandou a mensagem, por meu intermédio! O que eu poderia saber de gravadores ativados por voz? Pelo amor de Deus, nem meu vídeo eu consigo fazer funcionar.

— O que o Subaru fez? — repetiu o banqueiro cara-pálida da Nova Inglaterra.

— Não, Subaru é o carro — esclareceu o Secretário. — É Subagaloo.

— Isso não é uma geladeira? — quis saber Moose, da Monarch-McDowell — Sub-Igloo é uma excelente máquina e deveria estar em todas as miseráveis casinhas japonesas.

— Não, você está pensando em Subzero. Este é Subagaloo, Chefe do Estado-Maior.

— Ah, aquele cara inteligente de Wall Street? — interrompeu Smythington-Fontini. — Ele foi muito engraçado na televisão, anos atrás. Na minha opinião, deveria ter seu próprio programa.

— Desculpe, Smythie, ele morreu. Isso foi antes, com o outro Presidente.

— Ah, sim — concordou o homem dos iates. — Aquele cara simpático do cinema, que tinha um sorriso que deixava minha mulher maluca... ou era a minha amante, a magrinha de Milão? Para falar a verdade, nunca entendi uma só palavra do que ele dizia quando não estava lendo.

— Estou falando de Arnold Subagaloo, o Chefe do Estado-Maior deste Presidente...

— Certamente não é um de nós, não com um nome desses.

— Ele disse para falar com vocês sobre a gravação das reuniões. Foi ele que providenciou!

— E por que faria uma coisa dessas?

— Porque ele é contra qualquer coisa ou qualquer pessoa que represente uma ameaça potencial à Casa Branca — observou Froggie. — Assim, na transição, pensou em todo tipo de problemas futuros e tomou as medidas de proteção adequadas...

— De uma forma muito pouco cavalheiresca! — interrompeu Bricky. — Forçando-nos a fazer exatamente o que estamos fazendo — completou o cínico louro, consultando o relógio de pulso Girard-Perregaux de ouro. — Eliminando Mangecavallo, afastando, assim, o problema que criamos, sem tocar no Presidente... Esse Subagaloo é um filho da puta vigarista!

— Deve ser um executivo de primeira ordem — concluiu o brazonado Doozie, da Petrotoxic. — Provavelmente integra uns dez conselhos de administração...

— Quando acabar seu período no Governo — acrescentou Moose, o do blusão verde — gostaria de ver seu currículo. Um sujeito tão vigarista como esse é um presente dos céus.

— Está bem, Sr. Secretário — disse o louro Froggie. — Meu tempo é limitado e já que o Smythie resolveu um problema vital, sugiro que você trate da outra dificuldade que mencionou antes. Refiro-me, naturalmente, àquela petição insensata e obscena, dirigida à Suprema Corte, segundo a qual Omaha deveria ser entregue aos Tacobumis, sejam eles quem forem.

— Wopotamis — corrigiu o Secretário. — Estou informado de que são um ramo dos Mohawks do Hudson, que os repudiaram porque não saíam de dentro das tendas quando nevava.

— Não nos interessa minimamente quem são eles ou que faziam nos seus imundos iglus...

— Tendas.

— Voltamos às geladeiras?

— Não, ele é Chefe do Estado-Maior...

— Pensei que jogasse pelo Chicago...

— Os japoneses estão comprando Chicago...?

— Aonde vão parar? Já compraram Nova York e Los Angeles...!

— Eles compraram os Dodgers...?

— Não, ouvi dizer que foram os Raiders...!

— Pensei que eu fosse o dono dos Raiders...

— Não, Smythie, você é dono dos Rams...

— Vocês querem fazer o favor de se calar? — gritou Froggie. — Tenho um encontro em Paris dentro de exatamente sete horas... Sr. Secretário, que medidas foram tomadas para acabar com essa petição ridícula e com qualquer divulgação que ela possa ter? Se ela se tornasse pública, certamente levaria a uma CPI e isso pode demorar meses, com cada representante maluco das minorias vomitando as tripas no plenário do Senado e da Câmara. A perspectiva é intolerável! Custaria bilhões!

— Deixem-me dar as más notícias primeiro — retorquiu o Secretário de Estado, comprimindo a palma da mão esquerda sobre a cabeça para controlar o olho oscilante. — Acreditando que seria possível adquirirmos um bom seguro, contratamos os melhores e mais patrióticos profissionais do ramo para conseguir alguma coisa contra os malucos dos juízes que encontraram algum mérito nessa petição podre. Não teve qualquer resultado. Chegamos inclusive a perguntar a nós próprios como fizeram para passar na Faculdade de Direito; nenhum grupo de advogados é assim tão limpo.

— Você tentou o Goldfarb? — perguntou Doozie.

— Foi o primeiro, o primeiro! Ele desistiu.

— Ele nunca desistiu no Superbowl. É claro, ele é judeu, de forma que não posso convidá-lo para um jantar no Onion Club, mas foi um meia muito bom... Ele não conseguiu descobrir qualquer sujidade?

— Nada. O próprio Mangecavallo contou-me que o Hymie, o Furacão, perdera — as palavras são dele — “praticamente o juízo”. Chegou inclusive a dizer ao Vincent que o tal Chefe Cabeça de Trovão ou era o Big Foot canadense ou o yeti do Himalaia, o Abominável Homem das Neves.

— O Goldfarb de Ouro já pertence à história — disse com tristeza o superintendente brasonado da Petrotoxic. — Assim que puder, vou vender os meus cartões do “Furacão”, aqueles que vinham com chiclete. Mamãe e o papai sempre me disseram que eu devia me antecipar ao mercado.

— Por favor! — berrou o louro proprietário da Zenith Internacional, mais uma vez examinando o relógio de ouro e lançando um olhar furioso ao Secretário de Estado. — Quais são as boas notícias, se é que há alguma?

— Vou resumir — respondeu Pease, agora com o olho esquerdo de alguma forma no lugar. — Aquele que será em breve o falecido diretor da CIA mostrou-nos o caminho. Os peticionários da tribo Wopotami, ou seja, um tal Chefe Cabeça de Trovão e os seus advogados, têm de comparecer perante a Suprema Corte para o interrogatório antes de qualquer decisão do Tribunal.

— E então?

— E então ele nunca chegará lá... eles nunca chegarão lá.

— O quê?

— Quem?

— Como?

— Vinnie, o Bam-Bam, recorreu a suas ligações com a Mafia. Nós usaremos algo melhor.

— O quê?

— Quem?

— Como?

— Vamos libertar certos segmentos das nossas Forças Especiais — alguns dos quais ainda se encontram presos — e programá-los para acabar com esse Cabeça de Trovão e com os seus sócios... Vejam só, o Mangecavallo, o futuro falecido Mangecavallo, estava certo. Elimine-se a causa e estará eliminado o resultado.

— Ouçam todos!

— Que bom espetáculo!

— Que cenário tão bom!

— E nós sabemos que o filho da mãe do Cabeça de Trovão e os seus sócios comunistas estão em Boston. Só temos de os encontrar, a ele e aos seus colegas podres e antipatriotas!

— Mas você consegue fazer isso? — perguntou Froggie, glacial e pensando em Paris. — Não conseguiu fazer muitas outras coisas corretamente.

— Está praticamente feito — retorquiu o Secretário, com o olho esquerdo completamente estável, pela primeira vez. — O tal homem horrível que prenderam em Boston, César, o Impronunciável, encontra-se atualmente numa clínica na Virginia, numa casa absolutamente segura do Departamento de Estado, sendo injetado com o soro da verdade. Antes do fim do dia saberemos tudo o que e1e sabe. E Smythie, acho que você deveria começar a trabalhar imediatamente.

— Isso... pode-se combinar.


Algernon Smythington-Fontini saltou da sua limusine no local mais improvável. Era um velho posto de gasolina na periferia de Grasonville, Maryland, uma relíquia dos tempos em que os fazendeiros locais iam abastecer os seus caminhões de manhã cedo e passavam algumas horas a queixar-se do tempo, das quedas dos preços no mercado e, acima de tudo, das agroindústrias invasoras que anunciavam a sua morte. Smythie acenou com a cabeça para o proprietário, que também efetuava o atendimento e que estava sentado numa despedaçada cadeira de vime junto à porta da frente.

— Boa tarde — disse.

— Olá, janota. Entre e use o telefone... Deixe o dinheiro em cima do balcão, como sempre e, também como sempre, eu nunca o vi na minha vida.

— Segurança diplomática, entende, não é, meu velho?

— Diga isso à sua mulher e não a mim, cara.

— A insolência não combina com a sua posição.

— Ei, eu não tenho qualquer problema com isso... nenhuma menina, nenhuma posição...

— Francamente! — Smythington-Fontini prosseguiu e entrou no pequeno posto de gasolina. Virou à esquerda, onde havia um balcão de fórmica rachado e manchado de graxa; havia também um telefone preto com muitas décadas de vida. Pegou no aparelho e discou. — Espero que a hora seja conveniente — disse.

— Ah, signor Fontini! — replicou a voz do outro lado da linha. — A que devo a honra? Espero que tudo esteja indo bem em Milão.

— Maravilhosamente bem, como na Califórnia.

— Sinto-me feliz por poder ser útil.

— Deixará de se sentir quando souber o que foi decidido. Entre outras coisas feias, é irrevogável.

— Ora, vamos, o que pode ser assim tão sério para que fale dessa maneira?

— Esecuzione.

— Che cosa? Chi?

— Você.

— Eu?... Filhos da puta! — urrou Vincent Mangecavallo. — Filhos da mãe, estão cheios de lama!

— Precisamos discutir os detalhes. Sugiro um barco ou um avião, deixando em aberto o regresso.

Um apoplético Vinnie, o Bam-Bam, esmurrou furiosamente os botões do telefone escondido na última gaveta do lado direito da sua secretária. Por duas vezes fez sangrar os nós dos dedos, ao errar o cálculo e bater nas aguçadas bordas de madeira laterais. Gritou o número do quarto do hotel para onde queria falar.

— Está? — disse o Little Joey, o Mortalha, sonolento.

— Levanta já esse rabo da cama, Joey, o cenário foi todo alterado!

— O está dizendo?... É você, Bam-Bam?

— Pode apostar as sepulturas de seus ancestrais em Palermo e Ragusa! Essas malditas fadinhas em cuecas de seda acabam de ordenar minha esecuzione! Depois de tudo o que fizemos por eles!

— Deve estar brincando! Talvez seja um engano. Eles falam tão bem que nunca se sabe quando querem espetar uma faca nas costas ou beijar...

— Basta! — gritou o diretor da Central Intelligence Agency. — Ouvi o que ouvi e é ouro!

— Que merda! O que vamos fazer?

— Acalme-se, Little Joey. Vou desaparecer por algum tempo, talvez uma semana, talvez duas... estamos tratando dos detalhes... mas neste exato momento você tem uma nova missão. E vai ter que cumpri-la, Joey!

— Juro pela sepultura da minha mãe...

— Tente outra pessoa. Sua mãe ficou na cadeia por muito tempo.

— Tenho uma sobrinha. Uma freira...

— Ela foi expulsa do convento, lembra? Ela e o filho da puta do encanador!

— Está bem, está bem! Tia Angelina... ela morreu após ter comido mexilhões no Umberto's e nunca houve pessoa mais santa. Juro sobre a sepultura dela!

— Ela era tão gorda que precisou de seis covas...

— Mas era santa, Bam-Bam, autenticamente santa! Rezava o rosário de hora em hora.

— Por que não tinha outra coisa pra fazer, mas aceito sua tia Angelina. Está pronto para jurar sobre a santa sepultura dela?

— Juro sob ameaça de o demônio me possuir, o que é uma coisa muito importante com estes gibrones de Nova York... às vezes acho que esses palhaços irlandeses não têm os dois remos na água!

— É o bastante — sentenciou Vincent Francis Assisi Mangecavallo. — Aceito seu silêncio sobre o que vou contar.

— E eu agradecerei a Deus por sua orientação, Bam-Bam. Que vida vou ter que encurtar?

— É o contrário, Little Joey. Vai ter que deixá-los viver!... Quero que marque uma reunião com esse Cabeça de Trovão e seus sócios. De repente, sinto que sou um campeão da causa deles. Essas minorias têm sido esmagadas demais e com muita frequência. É intolerável.

— Deve estar maluco!

— Não, Little Joey, eles é que estão.

 

________________

1 Oliver Wendell Holmes Jr. (1848-1935), respeitável juiz da Suprema Corte. (N. T.).

2 “Ci-ú-me, eu te ouço meu ci-ú-me...” (N. T.).

3 Pôr-do-sol (N. T.).


15

A porta da suíte do Ritz-Carlton escancarou-se e os Desis, Um e Dois, em seus trajes de gala, cambalearam para dentro da sala, preparados para a batalha. Devereaux deixou cair seu martini e Jennifer Redwing saltou da cadeira e jogou-se no chão, geneticamente antecipando o pior do homem branco.

— Muito bem, ajudantes! — urrou MacKenzie Hawkins, envergando seu traje de pele de gamo, seguido por um perplexo Aaron Pinkus. — Não há indício de ação hostil, de forma que vocês podem ficar em pé. À vontade, as posições informais são aceitáveis — os Desis, I e II, desabaram. — Não tão informais, Sargentos! — no mesmo instante, D-Um e D-Dois ficaram eretos. — Assim está melhor — admoestou o Hawk. — Olhos alertas! Prontos para as táticas de ataque!

— O que quer dizer com isso agora? — perguntou Desi-Um.

— A pronta submissão é o primeiro sinal do contra-ataque. Não liguem para o magricela alto e inútil e prestem antes atenção na mulher! Muitas vezes elas trazem granadas debaixo das saias.

— Seu antediluviano filho da puta! — gritou Redwing, pondo-se em pé e alisando, furiosa, o cabelo e a roupa. — Seu bárbaro! Sua relíquia roncante de um filme de guerra de quinta categoria, quem diabos pensa que é?

— Tática de guerrilha — disse Mac, em voz baixa, aos seus ajudantes. — A segunda fase após a submissão é a ofensa verbal em voz alta, que é quando procuram fazer você perder a concentração e puxam o pino de segurança.

— Vou puxar seu pino diretamente da sua reentrância peluda, lixo ambulante! E como se atreve a usar essa roupa? Parece um refugiado de uma Convenção de Shriners,1 seu irresponsável!

— Estão a ver, estão a ver? — murmurou o Hawk, mascando o charuto. — Agora ela está a tentar distrair-me. Prestem atenção às suas mãos, homens. Aqueles peitos provavelmente são explosivos de plástico.

— Vou verificar, general — gritou Desi-Um, com os olhos centrados no alvo, enquanto a sua camisa engomada saía fora do lugar. — Que é que você pensa?

— Se der um passo na minha direção — disse Redwing, baixando os ombros e agarrando a alça da bolsa, que estava na cadeira, abrindo-a, de repente, com a mão esquerda e tirando o spray de gás atordoante com a direita —...vai ficar cego durante um mês — completou, movendo a sua arma para trás e para a frente entre os dois subordinados vestidos formalmente e o seu superior em traje Wopotami. — Se duvidarem de mim, não vão apenas fazer com que eu ganhe o meu dia, vão fazer com que eu ganhe a minha semana.

— É aqui que eu entro em cena — interrompeu Sam Devereaux, dirigindo-se ao bar espelhado e ao jarro de martini; deu um salto e chutou o copo caído no tapete do hotel.

— Espere um minuto! — exclamou Aaron, ajustando os óculos de armação de metal e examinando a linda mulher de pele cor de bronze. — Eu a conheço... sete ou oito anos atrás, Harvard, Law Review2, você estava entre os primeiros da turma... uma brilhante análise da censura dentro da moldura da lei constitucional.

— Nanny's Naughty Follies, pelo amor de Deus! — exclamou Devereaux, rindo e se servindo de uma bebida.

— Cale-se, Samuel.

— Voltamos ao Samuel?

— Cale-se, advogado... Sim, dr. Pinkus me entrevistou e me senti muito lisonjeada pelo seu interesse.

— Mas não quis nada conosco, minha querida. Por quê? Certamente que não tem que responder, pois não é da minha conta, mas estou curioso. Lembro-me perfeitamente de ter perguntado a meus sócios em que sociedade de Washington ou Nova York você ia trabalhar. Sinceramente, queria ligar para quem quer que fosse e dizer que sorte tinha quem a contratasse. Washington e Nova York normalmente são o destino dos melhores e mais brilhantes, embora eu obviamente discorde. No entanto, parece que me lembro de você ter ido trabalhar para uma sociedade pequena, embora muito boa, em Omaha.

— É de onde eu venho. Como já deve ter entendido, sou da tribo Wopotami.

— Uma parte de mim entendeu isso, embora a outra parte esperasse sinceramente que você refutasse essa conclusão. A vida seria menos caótica, se isso estivesse no reino das possibilidades.

— Mas não é, Mr. Pinkus. O meu nome é Jennifer Redwing e sou uma filha dos Wopotamis. Além disso, tenho um imenso orgulho de ser Wopotami.

— Mas onde conheceu Samuel?

— Num elevador, esta manhã, no hotel Four Seasons. Ele estava muito cansado; alegou que estava exausto e fez diversas observações tolas.

— Isso foi suficiente para que agora estivesse aqui com ele, Miss Redwing?

— Ela foi a minha casa — interveio Devereaux. — Pedi desculpas, cheguei inclusive a dar uma gorjeta ao porteiro por ela e foi então que ouvi essa louca dar o meu endereço ao motorista do táxi! O que você teria feito, Aaron?

— Obviamente que a teria seguido até sua casa.

— Foi o que eu fiz.

— Fui à casa dele, Mr. Pinkus, porque foi o último endereço que anotei para este demente aqui a seu lado!

— Parece uma potrinha zangada, não é? — observou o Hawk.

— Sim, General Hawkins... você não poderia ser outra pessoa... eu estou zangada e não, General, não sou uma “potrinha”, conforme descobrirá quando eu acabar com você. No tribunal ou fora dele, vou arrasá-lo!

— Violência verbal, Sargentos. Fiquem alertas.

— Ora, cale-se, o senhor é o mais baixo do mais imbecil dos totens. A propósito, esse blusão de contas que você usa conta a história de um búfalo idiota que não tinha inteligência para sair de um temporal. Muito apropriado.

— Ei, Red — interrompeu Sam, levando um martini aos lábios. — Acalme-se. Lembre-se do consórcio.

— Acalmar-me? Só de olhar para ele tenho vontade de gritar Revista Jurídica.

— Ele tem esse efeito sobre as pessoas — murmurou Devereaux, bebendo seu martini.

— Um momento, por favor — disse Pinkus, levantando delicadamente a mão. — Creio ter ouvido algo que deve ser esclarecido — o venerado advogado voltou-se para Sam. — Que história é essa do “consórcio”? O que você fez agora?

— Apenas um conselho pro bono, Aaron. Você aprovaria.

— Você e qualquer aprovação da minha parte podem muito bem excluir-se mutuamente, nesta altura dos acontecimentos... Talvez queira explicar, Miss Redwing?

— Será um prazer, Mr. Pinkus. Sobretudo em benefício do seu convidado, o General Neanderthal. É possível que o senhor tenha de traduzir para ele, mas suspeito que acabará por entender a última linha, se conseguir chegar lá.

— Isso é sucinto — disse Aaron, com uma expressão no rosto não muito diferente da de Eisenhower ao saber da demissão de MacArthur.

— É brilhante e, apesar de uma profusão de erros demasiado numerosos para serem mencionados, o conceito teve origem no seu empregado, Mr. Pinkus. Devo reconhecer isso.

— O trabalho de um bom advogado começa com uma advogada graciosa, Miss Redwing... por quê?

— Ah, sim? Nunca vi as coisas dessa forma... estou apenas perguntando por perguntar, claro.

— Porque ele, ou ela, tem confiança na sua capacidade. Não há necessidade de alimentar um ego tênue recusando elogios. Contrate essa garota ou esse indivíduo; nenhum deles vai se distrair com hostilidades reais ou imaginárias.

— Acho que acabei de aprender umas coisas...

— É muito pouco original, minha querida. Sem ofensa, lembro-lhe que o nosso general acabou de dizer algo de muito parecido, utilizando expressões militares. Distração através da hostilidade: o mais fraco tem de fingir, o mais forte limita-se a observar, pronto para agir.

— Você está me comparando esse gorila...

— Olhe lá, sua potrinha índia...

— Por favor, General!... Eu disse apenas em termos militares, Miss Redwing — uma questão de efetivos, se preferir. Supondo que esse seu bonito busto efetivamente escondia explosivos plásticos... o que sinceramente espero que não seja verdade, o nosso general estava apenas tentando instruir os sócios para que ficassem alertas e não se deixassem distrair pela sua hostilidade. A equação é realmente simples.

— Que pensa sobre ser distraído com o que está ali dentro, hein, homem?

— Chega, Sargento...

— Concordo, Desi-Uno...

Sam começou subitamente a cantarolar uma musiquinha infantil.

— Cale-se!

— Samuel, pare com isso!

— Filho, está entornando a sua bebida...

— O que, minha querida Miss Redwing, você ia dizer que esta ideia foi congeminada no cérebro deste meu empregado, atualmente desconjuntado?

— É bem simples, Mr. Pinkus. Já que a tribo Wopotami é uma entidade legalmente constituída e registrada, o Conselho de Anciãos, dotado dos poderes legais para este efeito, está no momento formando e subscrevendo um consórcio que estabelece que todos os assuntos jurídicos e fiduciários passem a ser negociados exclusivamente pelos executores do consórcio e que todas as demais partes citadas em documentos anteriores deixem de ter qualquer autoridade. Resumindo, os executores do consórcio especificamente nomeados deterão o poder coletivo de representá-lo legalmente.

— Você fala muito bem a língua dos juristas, menina — disse Hawkins. — Mas p que significa isso?

— Significa, General — respondeu Redwing, com o olhar glacial fixo no Hawk —, que ninguém, repito, ninguém a não ser os executores do consórcio Wopotami, pode tomar decisões ou entrar em acordos envolvendo os interesses da tribo, ou receber quaisquer benefícios daí decorrentes.

— Bem, devo dizer que parece ser uma proteção bem inteligente — disse Hawkins, tirando o charuto mutilado da boca e, subitamente, inclinando a cabeça, como se estivesse perturbado.

— Mas suponho que a pergunta seguinte seja: afinal, os tais executores do consórcio são dignos de confiança?

— Inquestionavelmente, General. Entre eles há dois advogados, diversos médicos, o presidente de uma fundação internacional, três vice-presidentes de bancos importantes, um ou dois corretores da Bolsa e um psiquiatra de renome, que, sem dúvida alguma, você deveria consultar. Além disso, todos são verdadeiros descendentes dos Wopotamis e, por último, eu sou a presidente e porta-voz do consórcio. Mais alguma pergunta?

— Sim, apenas uma. É isso o que o Conselho de Anciãos deseja?

— Certamente que sim. Eles seguem os nossos conselhos e nós estamos absolutamente determinados. Assim, como pode ver com toda a clareza, General Hawkins, mesmo que o seu esquema insensato e totalmente destrutivo progrida um centímetro que seja, nós, e não você, teremos o controle completo, de forma a minimizar os efeitos perniciosos sobre gente inocente, das quais você já se aproveitou de forma ultrajante. Para resumir, você está de fora, seu maníaco.

A expressão do rosto do Hawk traduziu não só dor como também mágoa pessoal. Era como se um mundo que ele tivesse sustentado com todo o carinho e profundo amor o tivesse abandonado, um velho solitário e desolado que, por dignidade, recusava-se a ceder à amargura.

— Perdoo suas suspeitas infundadas e sua linguagem imoderada — disse ele em voz baixa — porque, na realidade, não sabe o que faz.

— Oh, meu Deus!

— O pretenso Filho de Deus seria mais adequado — sugeriu Devereaux, voltando ao bar.

— Estão tratando você mal, Heneral? — perguntou Desi-Um. — Talvez estes gringos devessem ir tomar um pouco de ar fresco, hein, hombre? — disse D-Um. — Pelas janelas, O.K.?

— Não, cavalheiros — protestou Hawkins, serena e heroicamente, em tom sepulcral de santo na voz. — Esta grande mulher assumiu o comando e o mínimo que posso fazer é reduzir esta responsabilidade assustadora.

— Aí vem ele — interrompeu Sam, pegando uma azeitona no martini com os dedos. — Chegou a hora das pás, pessoal.

— Filho, realmente faz um juízo errado de mim.

— Já tinha dito isso antes, Mac. Não sei bem por que, não consegui decorar.

— Por que não me dá uma oportunidade, rapaz?

— O púlpito é seu, Irmão Coelho. Vá em frente.

— Miss Redwing — o Hawk acenou com a cabeça uma vez, sinal de que um oficial superior reconhecia o valor do outro. — Respeito e compreendo seu ceticismo quanto à minha participação na causa dos Wopotamis. Por isso, agora deixe-me tranquilizá-la. Como filho adotivo da tribo, aceito todas as decisões do sábio Conselho dos Anciãos. Os benefícios relativos a minha pessoa são irrelevantes, só quero que seja feita justiça.

Jennifer Redwing ficou atônita. A batalha feroz que antecipara com o gigante megalômano fora reduzida à necessidade de ela pôr novamente em pé um cachorrinho doce e ferido com muitas armadilhas legais.

— Bem... General... sinceramente não sei o que dizer — Jennifer ajeitou o cabelo de maneira defensiva, momentaneamente envergonhada por ter de encarar o antigo adversário ferido. — Por favor, compreenda — começou ela, forçando-se a dirigir o olhar para o velho soldado que tinha dado tanto pelo seu país, pelo país que também era dela. — Sou extremamente protetora do meu povo, talvez mesmo em excesso, pois a nossa história está cheia de injustiças, como aliás acontece com a história dos índios americanos em toda parte. No seu caso, eu estava enganada. Peço desculpas. Por favor, aceite minhas desculpas, são sinceras.

— Ele conseguiu! — gritou Devereaux, engolindo o resto do martini. — O leão feroz é um gatinho idiota e você acredita.

— Samuel, já chega! Não ouviu o que o homem disse?

— Já ouvi uma centena de variações...

— Cale-se, advogado! Ele é um grande homem e acaba de concordar com tudo o que eu queria. Tente lembrar-se das suas próprias palavras, se é que esse cérebro encharcado de gim o permitirá. Uma verdade essencial, lembra-se?

— Esqueceu as rotas tortuosas, advogada — disse Sam, voltando ao bar. — Há estradas esburacadas pela frente, companheiros.

E, naturalmente, o telefone do hotel tocou. Aaron Pinkus, sacudindo a cabeça com iguais doses de irritação e raiva, dirigiu-se rapidamente para a mesa e pegou o intrometido aparelho.

— Sim?

— Com quem falo? — perguntou a voz aguda do outro lado da linha. — Com o grande advogado hebreu ou com o grande general maluco com as contas de Geronimo?

— Fala Aaron Pinkus e sou advogado, se isto responde à pergunta.

— Serve, yarmulke. Foi por causa de sua limusine que eu o descobri.

— Como?

— É uma longa história e eu gostaria de contá-la, mas Bam-Bam não gosta de histórias compridas e, para dizer a verdade, você não tem muito tempo.

— Não entendo uma só palavra do que está dizendo.

— Bem, sabe, alguns anos atrás um certo investigador me pegou, mas agora estamos numa fase de trégua e, atendendo ao fato de ele ainda ter amigos no centro da cidade, um grande número de patrulhas procurou sua limusine, capisce?

— Do que está falando?

— Talvez então eu deva falar com o maluco, não é? Diga ao bobalhão para tirar o maldito charuto da boca e pegar o Ameche.

— Creio que é para você, General — disse Pinkus, virando-se e falando lenta e hesitantemente. — Um cara estranho, que fala como uma galinha... como eu imagino que uma galinha possa falar.

— Ruptura! — gritou The Hawk, dirigindo-se em rápidas passadas à mesa e pegando o telefone. Cobriu o bocal e dirigiu-se aos outros: — Os velhos soldados, mesmo os soldados rasos, não desaparecem. Recordam os dias, meus amigos, pois eles nunca terminam!... É você, Little Joseph?

— Precisamos conversar, fazool. Tudo mudou. No que me diz respeito, já não está do lado dos bandidos, mas outros bandidos o perseguem.

— Seja um pouco mais claro, Joseph.

— Não há tempo, fazool! O chefe grande quer marcar um encontro com você em um ou dois dias, mas ele precisa fingir que está morto por algum tempo, de modo que eu sou sua ligação.

— Fingir que está morto, Joseph...?

— Juro pela sepultura da minha tia Angelina. Há uma guerra de territórios na capital e o chefe grande perdeu temporariamente... Ele disse para lhe dizer que o cara cujas costas você ferrou, mas cujo pescoço não quebrou suficientemente no hall do hotel, vomitou até as tripas numa fábrica química da Virginia. A esta altura já sabem de você e da sua gente aqui em Boston e os rapazes das cuecas de seda estão soltando... escrevi isso para não esquecer... estão soltando os SFIs atrás de vocês.

— Os SFIs? Aníbal em merda de elefante! Ele disse SFIs?

— Eu não poderia me enganar, pois ele repetiu três vezes e eu não sabia o que ele queria dizer.

— São os animais deste mundo, Little Joseph. Fui eu que os treinei, de modo que tenho obrigação de saber. Special Forces Incorrigibles. Forças Especiais Incorrigíveis. Ainda estão nas paliçadas, ainda tentam matar todo mundo, com exceção de cozinheiros e enfermeiras.

— Agora é você e o seu grupinho, fazool. Precisei de apenas trinta e um minutos para encontrá-los. De quanto tempo os tais comandos precisarão, logo que cheguem a Boston, o que pode já ter acontecido? Saia daí e ligue para cá, para o serviço de quarto do palazzo, quando estiver fora da linha de fogo dos malucos... E não use a porra da limusine! É uma porra de um ponto de referência! — Joey Mortalha desligou e The Hawk virou-se para sua tropa.

— Evacuar! — urrou: — As explicações serão dadas depois, agora não há tempo a perder. Ajudantes, façam uma ligação direta de dois veículos no estacionamento do hotel e vão para a esquina sudeste. Vamos! — Mac lançou um olhar severo para Aaron Pinkus quando os Desis, Um e Dois, correram para a porta, depois dirigiu o olhar para Sam Devereaux e, finalmente, para Jennifer Redwing. — Você pergunta por que combato as falsidades dos que estão no poder, por que empunho a espada contra os corruptos e os manipuladores, um século atrás ou agora. Vou deixar uma coisa bem clara, que se dane! Um governo invisível não eleito libertou um bando de psicopatas com uma única missão, cujo sucesso os deixará livres para vaguear pelas ruas... Essa missão consiste em nos matar a todos. Por quê? Porque levantamos o espectro de um crime cometido contra um povo inocente e manipulado há mais de cem anos, cuja reparação custará aos manipuladores bilhões de dólares!

— Que se dane sua verdade essencial! — disse Devereaux, entornando seu martini na pia. — Vamos sair daqui!

— Policia, General! Sou um homem respeitado aqui em Boston. Certamente a polícia nos protegerá.

— Comandante Pinkus, neste tipo de combate as autoridades civis são inúteis. Como acha que explodi depósitos de munições da Normandia a Kai Song?

— Não posso acreditar — disse Redwing, tentando permanecer calma. — Não vou acreditar!

— Não vai acreditar, potrinha índia? Talvez deva lembrá-la das empresas do Leste que prometeram aos seus irmãos índios, espalhados pelas planícies do meio Oeste, sua transferência para terras muito melhores, quando na realidade tudo o que encontraram foi um solo árido e tão frio que seu gado congelou. É a mesma coisa, minha jovem!

— Oh, meu Deus! — gritou Jennifer, correndo para a porta do quarto.

— O que está fazendo? — berrou Devereaux.

— Sua mãe, idiota!

— Sim, claro — disse Sam, piscando os olhos. — Há algum café por aí?

— Não há tempo, filho!

— Ajude Miss Redwing, Sammy.

— Pelo menos já não é Samuel...

— Não creio que haja escolha — disse Aaron Pinkus.


Os cinco fugitivos do Ritz-Carlton colocaram-se lado a lado na esquina sudeste do hotel, esperando a chegada dos Desis, Um e Dois. Davam sorrisos amarelos aos transeuntes, fazendo o melhor para não parecer um quinteto de adultos delinquentes. A grande Eleanor era amparada por Redwing e insistia em lutar com as palavras do “Canto do Amor índio”.

— Cale-se, mãe! — cochichou Sam.

— Esta é a filha que eu sempre quis...

— Aguente aí, mãe. Ela pode ser melhor advogada do que eu e você não ia querer isso.

— Acho que não você não é tão ardoroso. A metade do tempo não consigo entender você.

— Não se espera que a mãe perceba. É a lei...

— Silêncio — ordenou o Hawk, que era o que estava mais próximo do prédio, com Pinkus ao seu lado. Um Lincoln parou à frente da entrada do hotel, coberta com o toldo, ao mesmo tempo que Desi Um e Desi Dois encostavam no meio-fio os carros que tinham tirado do estacionamento.

— Aguentem todos! — continuou Hawkins, no momento em que ele e Aaron viram quatro homens vestidos com impermeáveis pretos a saltarem do Lincoln, um da frente e três do banco traseiro. No mesmo instante, o carro saiu disparado e foi parar ao pé do portão do Jardim Público, enquanto os quatro homens de impermeável preto entravam rapidamente no hotel.

— D-Um, frente e centro! — disse o Hawk, num murmúrio audível. — Repitam por ordem descendente! — acrescentou.

— D-Um, frente e centro...

— Desi! Você, com os dentes esquisitos e a camisa enrolada, venha até aqui! — gritou Devereaux. — Vá ver Mac!

— Mizerloo, meu amor árabe, Que é o meu deserloo...

— Cale-se, mãe! A letra está errada e o país também.

— Não fale com a minha amiga Eleanor dessa forma...

— Ela é minha mãe! E se eu não mandar consertar seu Jaguar?

— Tenho certeza de que consigo ganhar muito mais dinheiro do que você, advogado. Deixe isso por minha conta!

— O que quer, Heneral?

— Está vendo aquele carro ali? Na frente do portão?

— Claro, estou vendo. Tem um gringo sentado na frente.

— Eu o quero imobilizado e o carro incapacitado, entende o que digo?

— Não é tão difícil. Ele dorme e eu tiro as velas... isso se faz toda santa noite no Brooklyn. A menos que você o queira morto, coisa que, sinceramente, Heneral, eu não quero.

— De maneira nenhuma! O que eu quero é enviar-lhes uma mensagem de resposta. Querem arrebentar conosco e eu quero que saibam que não vão conseguir!

— Combinado, Heneral. E depois?

— Volte para o hotel, para o andar de Mr. Pinkus, mas proteja os flancos. Quatro homens de impermeável preto subiram para acabar conosco... No momento em que chegar lá, eu provavelmente já terei eliminado três dos filhos da mãe, mas garanta o quarto.

— Ei! Por que você fica com a festa toda? Eu fico com três, fique você com um!

— Gosto do seu espírito, filho!

— E quanto a Desi-Dois?

— Já vou explicar — disse Hawkins, virando-se para Aaron Pinkus. — Diga-me, Comandante, não dispõe de um lugar do qual do qual ninguém saiba nada, uma espécie de esconderijo para onde possa levar, digamos, mulheres desvalidas, para que possam desfrutar de sua companhia?

— Você está maluco? Não conhece a Shirley!

— Está bem, eu compreendo... Mas deve haver algum lugar fora dos caminhos mais batidos onde possamos ficar um ou dois dias.

— Bem, a sociedade comprou uma casa para temporadas de esqui na fronteira de New Hampshire, pois um cliente de muita confiança passou por tempos muito difíceis — a neve tem sido muito irregular...

— Ótimo! Vamos nos encontrar lá.

— Mas como vai saber onde fica?

— Muito simples, Comandante — intrometeu-se Desi-Um. — Dois fez uma ligação direta num dos carros com telefone. Anotamos os números. — D-Um puxou um papel amarrotado com dois conjuntos de números escritos. — Está vendo? Meu amigo tem um igual.

— Vocês dois são realmente notáveis. Gostaria muito que me ligassem.

— Não há tempo para medalhas, Comandante! — interrompeu o Hawk com firmeza. — Nossa missão ainda não terminou. Leve Sam, a mãe e a garota índia para sua casa em New Hampshire. Agora, saiam daqui! Meu sargento e eu temos trabalho a fazer!


Os primeiros dois impermeáveis pretos nunca chegaram a saber o que aconteceu. Para vigiar as vias de fuga, ficaram perto de duas portas de emergência e foram atacados a partir da escada por Hawk, que os deixou inconscientes e sem uma única peça de roupa, inclusive as cuecas. O terceiro candidato a assassino prosseguiu cuidadosamente o seu caminho em direção à suíte de Pinkus, sendo interrompido apenas por um bêbado cambaleante, que, depois de passar por ele, virou-se e desfechou um golpe conhecido como chi sai na sua nuca, imobilizando-o. Quanto ao quarto e último assassino, o Hawk deixou-o por conta do seu ajudante, Desi-Um. Afinal de contas, é da responsabilidade do comando instilar confiança nos subordinados imediatos. Na realidade, acabou por ser uma lição de paciência, a marca de um agente secreto realmente superior, segundo a avaliação de Mac. Esperou na penumbra de uma das portas da saída, atrás da qual estava nu e inconsciente o primeiro assassino do grupo SFI. D-Um emergiu silenciosamente do elevador, envergando seu fraque, caminhou silenciosamente até o meio do corredor e encostou-se na parede em frente à suíte de Pinkus. Durante um tempo que pareceu quase uma hora, mas que, na realidade, mal chegou a oito minutos, Desi-Um permaneceu imóvel, mal respirando, até que uma porta se abriu à esquerda e apareceu um homem de capa preta, com uma pistola automática na mão.

— Iguana, José! — rugiu D-Um, surpreendendo de tal forma o candidato a assassino que ele nunca soube como a arma saiu de sua mão; nem chegou a saber que ficou inconsciente devido a um soco rápido e poderoso no meio da testa.

— Excelente! — disse o general, saindo da penumbra. — Eu sabia que seria capaz, filho.

— Por que não o fez, pelo amor de Deus?

— Avaliação no local! É assim que todos conseguimos promoção.

— Eu podia ter sido morto!

— Eu tinha toda confiança em você, Sargento. Você é carne de primeira qualidade para um G-Dois Avançado.

— E isso é bom?

— Falaremos disso mais tarde. Agora vamos tirar a roupa deste palhaço, deixá-lo nu e sair daqui. Estamos numa situação difícil, ajudante. Temos de nos concentrar no que vamos fazer a seguir, o que para nós significa nos reunir aos outros em algum lugar ao norte.

— Não tem problema, Heneral. Antes de subir, fale com meu amigo pelo teléfono do cano. Onde quer que eles forem, Desi-Dois ficará no automóvel, de modo que poderá contar onde estão.

— Excelente tática, filho — o Hawk parou de falar quando ouviu o barulho de uma porta se abrindo e, logo em seguida, o som de vozes. Um casal, obviamente dois hóspedes de meia-idade do hotel, saiu de seu quarto.

— Depressa! — cochichou Mac, abaixando-se para pegar o corpo inconsciente no chão. — Levante-o como se ele estivesse bêbado.

— Ele saiu dali daquela porta, Heneral. Ainda está aberta!

— Vamos! — Juntos, Hawkins e o ajudante arrastaram o corpo inerte até a porta aberta, sob os olhares atônitos dos hóspedes do hotel.

— Há um casamento maluco lá embaixo, amigos! — gritou Desi-Um, olhando para trás. — Querem ir à festa?

— Não... não, obrigado — agradeceu o homem de meia-idade, levando rapidamente a esposa para os elevadores.

A cabana de esqui nas montanhas de Hooksett, New Hampshire, era rústica e sólida, deserta e úmida e, na melhor das hipóteses, nunca seria classificada com mais do que duas estrelas no menos rigoroso dos guias de viagens. Ainda assim, era um bom esconderijo e era operacional em matéria de eletricidade, aquecimento e serviço telefônico. E também ficava a pouco mais de uma hora de Boston, o que fazia com que Aaron Pinkus e Associados a considerassem um conveniente refúgio fora da cidade para advogados e equipes de advogados que tivessem de deliberar sobre casos difíceis. Na realidade, tinha-se tornado tão popular que Aaron decidira não a vender, preferindo optar por uma remodelação gradual, que a tornasse mais útil.

— Temos mesmo de devolver aqueles carros — disse Pinkus, ansioso, ao Hawk, quando os dois se sentaram um ao lado do outro em duas confortáveis poltronas de couro, no antigo vestíbulo da cabana. — Haverá boletins da polícia por toda a parte.

— Não há nada a recear, Comandante. Meus ajudantes já os camuflaram.

— Não é essa a questão, General. Isso é furto de objeto de valor e Sam e eu, que somos profissionais de tribunais, se me permite lembrar, fomos cúmplices. Eu devo mesmo insistir.

— Oh, que diabo, detalhes! Muito bem, farei com que os sargentos os levem de volta e estacionem na rua do hotel. Agora está escuro e, mesmo que eles sejam apanhados, os guardas nem vão saber como foram parar nos bancos traseiros das patrulhas sem as calças, haha!

— Muito obrigado, General.

— Nessa altura, eles podem fazer uma ligação direta de dois outros veículos...

— Por favor, isso não será necessário! Minha firma tem contrato com uma locadora e meu motorista, Paddy, pode trazer aqui um carro e um amigo dele traz outro.

— Eles terão que pegar meus ajudantes. Ainda não estou preparado para dispensá-los.

— Claro. Nas circunstâncias que descreveu, eu me sentiria muito melhor se esses dois jovens andassem aqui por perto. Olhe, vou escrever o endereço da locadora; eles podem se encontrar lá — Pinkus enfiou a mão no bolso e tirou um pequeno bloco.

— Aaron, está tudo resolvido! — disse Devereaux, num tom de voz um pouco mais alto do que o necessário, no momento em que entrava no vestíbulo falsamente alpino, com Jennifer Redwing a seu lado. — O mercado de Hooksett está mandando uma grande quantidade de produtos e a Red aqui disse que sabe cozinhar.

— O que quer para acompanhar o bourbon com gim — perguntou Jennifer —, Fritas?

— Óleo industrial, minha jovem.

— E também, muito possivelmente, por sua própria conta — acrescentou Pinkus. — Como explicou nossa presença?

— Disse que toda nossa primeira equipe estava quebrando a cabeça aqui em cima por conta de vários problemas de herança.

— Por que herança?

— Porque eles acham isso sexy. Credibilidade, Aaron.

— Mr. Pinkus? — interrompeu Redwing, pela sexagésima vez em doze horas, dirigindo um olhar faiscante a Sam. — Eu gostaria de usar seu telefone para falar com San Francisco. Chamada a cobrar no destino, claro.

— Minha querida, pode rejeitar uma carreira lucrativa na minha sociedade, mas não pode me envergonhar com uma manobra dessas de ligação a cobrar. Você pode falar com tranquilidade no que antes foi o escritório do gerente, ali atrás do balcão... ele não era bem um gerente e aquilo não é bem um escritório, mas estará sozinha e sua privacidade ficará assegurada.

— Muito obrigada — Jennifer se virou e caminhou na direção indicada, ao mesmo tempo em que Hawkins se levantava.

— Viu meus sargentos, Sam? — perguntou ele.

— Você acreditaria que eles estão no sopé da colina, cerca de cem metros à direita, tentando fazer com que aquele velho teleférico enferrujado funcione?

— Muito empreendedores — disse Aaron.

— Muito burros — contrapôs Devereaux. — Aquele maldito cabo nunca funcionou bem desde o início. Uma vez fiquei parado a dez metros de altura por mais de uma hora, com a minha acompanhante, seis metros à frente, berrando loucamente. Voltamos para Boston assim que pusemos novamente os pés no chão e eu nunca cheguei a ver meu quarto.

— Desconfio que você viu mais do que um quarto desde que assumimos o encargo da hipoteca.

— Ora, deixe disso, Aaron. Você mesmo me disse para sair do escritório e vir para cá esfriar a cabeça.

— Você estava furioso por ter perdido um caso que devia ter ganho — disse Pinkus, escrevendo no bloco, arrancando a página e entregando-a ao general. — Porque o juiz era um incompetente, politicamente ignorante, incapaz de seguir seu raciocínio... E se aquele era o seu método de esfriar, houve uma inversão de temperaturas.

— Esta conversa jurídica está além da minha compreensão — anunciou o Hawk. — Vou ver se encontro meus ajudantes. Decidi ir para Boston com eles. Little Joseph disse que queria uma reunião, de forma que devo surpreendê-lo antes da nossa reunião formal... É o endereço da locadora? — Aaron acenou afirmativamente e o Hawk encaminhou-se para a porta. — Dou um jeito para voltar. Quero que fiquem aqui dois carros.

— Ótimo, General. E quando Miss Redwing terminar vou falar com Paddy Lafferty e pôr tudo em movimento.

— Bem pensado, Comandante.

— Eu me levantaria e faria continência, General Hawkins, mas não creio que consiga.

Redwing fechou a porta do minúsculo escritório atrás do balcão, sentou-se à mesa e pegou o telefone. Discou o número de seu apartamento em San Francisco e assustou-se quando, ao primeiro toque, atendeu a voz excitada do irmão.


— Sim?

— Charlie, sou eu...

— Onde diabos você estava? Tenho tentado falar com você há horas!

— Isso é tudo absurdo, inacreditável e insensato demais para eu entrar em...

— Experimente aplicar cada um desses adjetivos no que eu descobri! — interrompeu o irmão mais novo. — Aquele filho da mãe maluco me passou a perna... passou a perna em todos nós... estamos perdidos!

— Charlie, acalme-se — disse Jennifer, sentindo inversamente a pressão sanguínea subir para limites incontroláveis. — Acalme-se e fale devagar.

— É impossível fazer as duas coisas, mana!

— Tente, Charlie.

— Está bem, está bem. — Falando de San Francisco, o irmão respirou profunda e sonoramente por várias vezes e fez o melhor que pôde para estar lúcido. — Sem que eu soubesse e sem que ninguém tivesse me dito, algumas semanas atrás nosso Chefe Cabeça de Trovão convocou o Conselho de Anciãos, aparecendo com um advogado magrinho e reles de Chicago para tratar das questões jurídicas e conseguiu se proclamar legalmente único e absoluto árbitro da tribo Wopotami por um período de seis meses.

— Ele não pode fazer isso!

— Já fez, mana. A nomeação foi formalizada em cartório, autorizada e reconhecida em tribunal.

— Ele tinha que dar alguma coisa em troca!

— E deu. Um milhão de dólares para ser dividido entre os cinco membros do Conselho, e mais milhões para serem distribuídos pela tribo toda nesse período de seis meses.

— Corrupção!

— Conte alguma coisa que eu não saiba.

— Lutaremos nos tribunais!

— E, além de perdermos, vamos fazer com que nossos irmãos e irmãs pareçam uns idiotas e se tornem grandes devedores?

— O que quer dizer com isso?

— Para começar, que tal o tio Olhos de Águia, que adquiriu para os velhos da tribo um terreno num deserto do Arizona, que não terá água canalizada por cem anos, se é que algum dia vai ter? E a tia Nariz de Corça, que investiu, em nome das nossas mulheres, num poço de petróleo situado na esquina da rua Quarenta e Um com a Avenida Lexington, na cidade de Nova York, ou o primo Patas de Antílope, que assumiu o controle acionário de uma destilaria na Arábia Saudita, onde não só não se fabricam bebidas alcoólicas, como também não se bebe!

— Todos eles têm mais de oitenta anos!

— Tendo sido certificada a sua capacidade mental, em resultado de uma providência tomada por esse advogado reles de Chicago, com a aprovação do Tribunal de Omaha.

— Não posso acreditar nisso, Charlie. Estive com o Hawkins durante a maior parte da tarde e, após um início agressivo, ele cedeu. Há apenas duas horas atrás ele mostrou-se tão arrependido, tão sincero. Disse que a decisão de formação do nosso consórcio era a mais acertada, que ele se conformaria com qualquer coisa que o Conselho dos Anciãos aprovasse.

— E por que não? Ele é o Conselho dos Anciãos.

 

________________

1 Organização ligada à Maçonaria.

2 Revista da Escola de Direito de Harvard.


16

Jennifer não caminhou do pequeno escritório para o vestíbulo, ela irrompeu, fazendo explodir o espaço à sua frente.

— Onde está ele? — perguntou, contendo na sua voz a cólera do trovão e nos olhos os raios do relâmpago. — Onde está esse filho de uma cadela?

— Refere-se a Sam, obviamente — respondeu Aaron Pinkus, inclinando-se para a frente na sua poltrona de couro e apontando para a porta que dava para a cozinha. — Ele disse que se tinha lembrado do sítio onde escondeu uma garrafa de gim, um lugar que os seus colegas mais baixos não poderiam alcançar.

— Não, não estou falando desse filho de uma cadela, estou falando do outro! O búfalo idiota de língua de veludo que está prestes a enfrentar a ira conjunta dos Sioux e dos Comanches, da qual será portadora uma filha furiosa dos Wopotamis.

— Nosso General?

— Pode apostar seu tuchis que é ele!

— Sabe falar iídiche?

— Sou advogada e isso faz parte da profissão. Onde está esse canalha?

— Bem, ao mesmo tempo que lamento, fico também um tanto aliviado por lhe dizer que ele foi a Boston com os dois ajudantes. Encontro com um homem chamado “Little Joseph”, que tudo indica ser a mesma pessoa que lhe telefonou para o Ritz-Carlton. Nossos dois carros roubados acabaram de descer, graças a Abraão. Com a graça de Deus, serão devolvidos sem incidentes.

— Mr. Pinkus! Sabe o que aquele homem horrível, horrível, fez?

— Um número grande demais de horrores para caber numa enciclopédia de tamanho médio, desconfio. Não tenho conhecimento, porém, de qual foi o último, mas deduzo que você esteja prestes a me revelar.

— Ele comprou nossa tribo!

— Que extraordinário! Como conseguiu isso? — Redwing contou ao advogado de Boston tudo o que soubera por intermédio do irmão Charlie.

— Posso fazer-lhe uma ou duas perguntas, talvez três?? — indagou Pinkus.

— Claro — disse Jennifer, jogando-se na poltrona ao lado de Pinkus. — Estamos ferrados — acrescentou ela em voz baixa, com desânimo. — Estamos realmente ferrados!

— Não obrigatoriamente, minha querida. Primeiro, esse Conselho de Anciãos. Eles podem ser pessoas sábias e importantes, mas foram legalmente designados curadores ad litem da tribo Wopotami?

— Foram — resmungou Jennifer.

— Como?

— A ideia foi minha — disse Jennifer, agora num tom de voz um pouco mais alto, sem disfarçar o embaraço. — Deu-lhes orgulho, algo de que estavam desesperadamente necessitados e eu nunca, nunca, pensei que fossem tomar qualquer decisão mais importante sem me consultarem, ou no caso da minha morte, sem consultarem os outros membros do nosso grupo.

— Compreendo. Havia alguma cláusula adicional na designação da curadoria ad litem, a prever o que acontece no caso de morte ou mortes de um ou mais dos membros designados? Substituições, talvez?

— Foram aprovadas mediante votação pelos membros restantes do Conselho.

— Houve algumas dessas substituições... que pudessem ter sido, digamos, “alcançadas” pelo General Hawkins?

— Nenhuma. Estão todos vivos ainda. É a história da carne de búfalo rara nas suas dietas alimentares, acho eu.

— Entendo. E há alguma menção na designação ad litem aos filhos selecionados da tribo que, de fato, executam as decisões fiduciárias de seu povo?

— Não, isso teria sido humilhante. Como acontece com os orientais, a “aparência” é terrivelmente importante para os índios. Nós pura e simplesmente sabíamos... achávamos que sabíamos... que, se surgisse algum problema, um de nós seria chamado... Para ser sincera, eu mesma.

— Está falando em termos realistas, é claro.

— É claro.

— Mas legalmente não há nenhuma disposição nos documentos de constituição do consórcio que ilumine e esclareça a função do seu grupo quanto a esta questão?

— Não... Como já disse, orgulho, puro orgulho. Incluir uma condição dessas significaria assumir que há um conselho acima dos anciãos e a tradição tribal não poderia aceitar isso. Percebe agora o que quero dizer? Aquele homem horrível controla o meu povo. Ele pode dizer e fazer o que quiser em nome dos Wopotamis.

— Suponho que você poderia sempre processá-lo sob a acusação de conspiração e possível fraude. No entanto, ao fazê-lo terá de contar a história completa, o que poderia ser extremamente desvantajoso, por motivos óbvios. E o seu irmão também tem razão num ponto: você poderia perder.

— Mr. Pinkus, do Conselho dos Anciãos, três homens e uma mulher têm mais de oitenta anos e o quinto e último membro está com setenta e oito. Nenhum deles está mais habilitado agora para >lidar com essas complexidades legais do que há trinta anos atrás, quando a sua capacidade já era zero!

— Eles não têm de estar “habilitados”, Miss Redwing, têm apenas de estar suficientemente capazes para compreender a transação e os seus benefícios e desvantagens. Admito que isso tenha acontecido, talvez entusiasticamente, até com a sua própria exclusão.

— E eu digo que isso seria impossível!

— Ora, vamos lá, minha querida, um milhão de dólares em dinheiro com a promessa de mais milhões num curto período de tempo? Em troca de quê? O controle temporário do que eles deviam saber correspondia, na melhor das hipóteses, a um título cerimonial? Deve ter sido irresistível... “Que o branco maluco se divirta por alguns meses, que mal tem?

— Não houve uma revelação completa de tudo o que estava em jogo — insistiu Jennifer.

— Nem é preciso que haja. Se todas as negociações exigissem uma revelação completa de todas as partes envolvidas, o nosso sistema econômico entraria em colapso, você sabe disso.

— Não quando se trata de uma fraude, Mr. Pinkus.

— Na verdade não, mas como se pode provar que houve fraude neste caso? No meu entender, ele prometeu milhões, anunciando que provocaria uma grande alteração nas suas vidas, tornando-os mais ricos do que seus sonhos mais loucos permitiriam e reforçou a sua promessa com uma compensação inicial de um milhão de dólares, sem quaisquer restrições quanto à sua utilização.

— Eles não compreenderam! Não se deram conta de que ele pretendia fazer com que processassem o Governo Federal no maior processo da história da nação... meu Deus, o Comando Aéreo Estratégico!

— Aparentemente também não demonstraram grande curiosidade em saber como ele pretendia torná-los extraordinariamente ricos. Em vez disso, pegaram alegremente o milhão de dólares e gastaram-no, de uma forma pouco prudente, pelo que me foi dado entender... E desculpe-me, Miss Redwing, mas creio que seu irmão estava completamente a par das intenções do general. Na realidade, ele foi praticamente seu cúmplice...

— Ele pensou que tudo não passasse de uma grande anedota! — exclamou Redwing, inclinando-se para a frente. — Uma anedota inofensiva que se destinava a dar algum dinheiro à tribo, a provocar um maior afluxo de turistas e muita diversão!

— O Supremo Tribunal é divertido...?

— Ele não pensou que chegasse sequer à primeira instância — disse Jennifer na defensiva. — Além do mais, ele não tinha conhecimento do milhão de dólares ou do negócio que Hawkins transacionou com o Conselho. Ficou espantado!

— A falta de comunicação entre as partes amigas não é motivo para pensar em fraude ou conspiração, exceto, talvez, se ocorrer entre as partes propriamente ditas, o que então as colocaria em posição oposta.

— Está dizendo que o Conselho ocultou deliberadamente informações a meu irmão.

— Receio que sim. Como ele também ocultou, em larga medida.

— E se nós, nosso grupo, de repente nos intrometermos...

— O que, legalmente, você não tem o direito de fazer — interrompeu Aaron com delicadeza.

... e contarmos toda a história — continuou Redwing, com os olhos arregalados de espanto —, isso será interpretado como ação em nosso próprio benefício, para nos aproveitarmos do dinheiro, roubando deles, isso se houver algum dinheiro!... Meu Deus, está tudo virado ao contrário! Que loucura!

— Sim, minha querida, é uma loucura... como um falcão. O General teria dado um magnífico advogado de empresas.

Subitamente, na varanda aberta do vestíbulo alpino do segundo andar, uma figura emergiu da porta e caminhou até a balaustrada. Era Eleanor Devereaux, de cabelo penteado e postura majestosa, uma grande senhora.

— Tive um sonho horrível — anunciou, controlando totalmente o seu tom de voz e as suas palavras. — Sonhei que o louco do General Custer e todos aqueles índios selvagens da batalha de Little Big Horn se juntavam e atacavam uma convenção da Ordem dos Advogados Americana. Os advogados foram todos escalpados.

O cavalheiro alto, idoso e ligeiramente encurvado, de gabardine castanha e boina preta, poderia ter saído de qualquer uma das várias universidades da área de Boston, um professor de rosto severo, mas, ainda assim, um pouco aturdido com a opulência do hall de entrada do hotel Four Seasons. Ele franziu os olhos por detrás dos grandes óculos de armação de tartaruga e acabou por se dirigir ao conjunto de elevadores, após ter dado uma volta rápida e sem objetivo pelas instalações.

Claro que não havia ausência de objetivo no reconhecimento feito pelo Hawk e tudo na sua aparência fora planejado. Um reconhecimento anterior tinha definido cada canto menos iluminado e cada lugar sentado menos exposto e ele procurara eliminar a mínima semelhança, qualquer que fosse, com o gigante vestido de couro que tinha incapacitado gravemente um tal Caesar Boccegallupo do Brooklyn, Nova York, cinco horas atrás. Um soldado experimentado não avançava em território inimigo sem reconhecer o terreno. Não havia surpresas, de modo que o general entrou num elevador e apertou o número do andar de Joseph Pequeno.

— Serviço de quarto! — disse Hawkins, batendo na porta.

— Já tenho! — gritou a voz lá dentro.

— Maçãs e peras embebidas em álcool e passadas no fogo?

— Pensei que trouxesse mais tarde! — A porta abriu e o atônito Joey Mortalha só foi capaz de exclamar: — Você! Que diabo está fazendo aqui?

— Todas as reuniões entre comandantes são precedidas de encontros preliminares entre seus subordinados, para que as agendas sejam bem esclarecidas — retorquiu o Hawk, empurrando Joey para o lado ao entrar no quarto. — Como considero que meus ajudantes não são adequados para a tarefa, apenas por motivos linguísticos, estou tomando seu lugar.

— Fazool, você é impossível! — gritou Mortalha, batendo a porta. — Já estou com a cabeça cheia, não preciso de você.

— Mas precisa de maçãs e peras flambadas?

— Sim, gosto muito, é uma bela combinação de frutos queimados, um aroma extremamente encorpado, como uma experiência em fábrica antiga.

— Q quê?

— Cheira bem. Li isso num menu em Vegas. Eita, a minha mãe pularia do túmulo se soubesse que eu tinha posto fogo numa pera e o meu pai me perseguiria até o fim do mundo! Mas o que eles sabiam? Que descansem agora na paz eterna — Joey se benzeu, olhou para o general e falou asperamente: — Agara, pondo de lado a conversa fiada, o que está fazendo aqui?

— Acabei de lhe explicar. Antes de me reunir formalmente com seu oficial superior, quero que a paisagem fique mais clara. É o que meu posto requer e o que eu exijo.

— Você pode requerer e exigir tudo o que quiser, General Fazool, mas o chefe grande não é uma porra de um soldadinho. Ele está lá em cima, com os arcanjos do Governo, entende o que quero dizer?

— Conheci algumas dessas pessoas no meu tempo, Joseph e é por isso mesmo que quero um G-Dois, Mil e Um, ou então não haverá reunião.

— O que é isso? Uma placa de carro?

— Uma descrição minuciosa da pessoa com a qual vou ter uma reunião temporariamente marcada.

— Juro pela sepultura da minha tia Angelina, melhor não, para seu próprio bem!

— Prefiro ser eu mesmo a julgar.

— Não posso contar nada sem permissão, você tem que compreender.

— E se eu lhe arrancar as unhas, uma por uma, Joseph Pequeno?

— Ei, qual é, Fazool, já passamos por isso. Por baixo de todas essas fantasias, você pode ser um gibrone duro, mas não é nenhum nazista maluco... Olhe, aqui estão minhas mãos. Quer que eu chame o serviço de quarto e peça um alicate?

— Pare com isso, Joseph... Essa pequena exibição de sagacidade da sua parte não sairá deste quarto!

— Se você quer dizer com isso que não quer o alicate, esqueça. Eu disse a mesma coisa a uma dúzia de capitanos do Exército de Mussolini, aquele lasagna gordo!

O telefone tocou.

— Tem que ser a sua ligação, Joseph. Às vezes, a verdade é o melhor caminho. Diga ao seu superior que estou aqui, bem aqui a seu lado!

— É mesmo a hora indicada — disse o Mortalha, olhando o relógio. — Ele deve estar sozinho agora.

— Faça o que eu disse.

— E eu tenho escolha possível? Posso aguentar a história das unhas, mas a sua mão enorme na minha garganta. — Little Joey atravessou o quarto até o telefone na mesinha de cabeceira. — Sou eu — disse — e o grande general Fazool está a três metros de distância de mim, Bam-Bam. Ele quer trocar umas palavras com você, só que não sabe com quem vai falar. Mas eu gosto muito dos meus dedos, se é que entende o que quero dizer na gíria de Vegas, hein?

— Passe o telefone para ele, Joey — disse a voz calma de Vincent Mangecavallo.

— Tome — gritou o Mortalha, estendendo o telefone para Hawkins, que se aproximou rapidamente e o pegou.

— Fala o Comandante X — disse o Hawk. — Presumo que esteja falando com o comandante Y.

— Você é o general MacKenzie Hawkins, número de série dois-zero-um-cinco-sete, Exército dos Estados Unidos, duas vezes condecorado com a Medalha de Honra do Congresso e o maior chato com que o Pentágono já teve de lidar. Estou certo?

— Bem, certos julgamentos não são necessariamente absolutos... Quem diabos é você?

— Sou um homem que há menos de um dia queria vê-lo morto, com todas as honras militares, claro, mas que agora quer que você continue muito vivo e em pé, estou me fazendo entender?

— Não, não está, seu sacana de Washington. Por que essa mudança de posição?

— Porque os zabagliones, que antes queriam seus documentos de saída, querem agora os meus e essa decisão não me agrada.

— Zabagliones?... Little Joseph...? Foi você o palhaço que mandou o tal Caesar-qualquer-coisa ao Four Seasons?

— Para minha desgraça e desrespeito, fui eu, sim. O que posso dizer?

— Calma, filho, a culpa não foi sua, foi dele. É que ele não é muito brilhante e eu tinha dois ajudantes muito espertos.

— O quê?

— Não quero que você seja duro demais consigo mesmo. O comando deve sempre esperar um golpe de surpresa pelo flanco, faz parte do curso no War College.

— Que diabos está dizendo?

— Acho que você pura e simplesmente não serve para oficial. O que mais posso dizer?

— Pode me ouvir... Estou com muita raiva de certas pessoas que eu achava terem grande respeito por mim e que querem me ver no buraco que antes tínhamos concordado que seria seu... e agora me querem a seu lado, o que me desagrada, capisce?

— Então o que tem em mente, sr. Sem Nome?

— Quero que fique vivo e com saúde até que eu possa fazer com esses caras elegantes e respeitáveis exatamente o que querem fazer comigo. Ou seja, enterrar os filhos da mãe.

— Alto lá, comandante Y. Se está falando de extermínio com extremo prejuízo do pessoal civil, vou precisar de uma ordem direta do Presidente, coassinada pelo chefe do Estado-Maior Conjunto e pelo DCIA — ou seja, o diretor da CIA.

— Sério?

— Não espero que saiba como essas coisas são feitas...

— E eu não quero que seja feito o que você acaba de dizer! — interrompeu Mangecavallo asperamente. — Para uma coisa assim tão simples não preciso de você. Quando um homem compra seu pedaço de terra, encontra a paz; o que tenho em mente para esses zuchinis branquinhos é puro tormento. Quero que fiquem todos arruinados, queimados, falidos, que virem desabrigados, com a linha de crédito do Pete Vagabundo!

— Quem é esse Vagabundo?

— O cara que limpava as latrinas do metrô no Brooklyn... é isso que eu quero para esses filhos da puta! Quero que essa escória limpe letrina no Cairo peço resto de suas miseráveis vidas!

— Aliás, comandante Y, quando era um jovem capitão na guerra do deserto contra Rommel, fiz muitas amizades com o corpo de oficiais egípcios...

— Basta! — berrou Mangecavallo, baixando de imediato a voz e recorrendo ao que restava de seu charme. — Perdoe-me, grande General. Estou estressado, compreende?

— Não pode deixar que isso lhe aconteça — advertiu o Falcão. — Pode acontecer a qualquer um, mas não se pode ceder. Lembre-se, seus homens procuram em você a força que talvez não tenham. Aprume-se e lute!

— Vou guardar suas palavras para sempre — disse um humilde Vinnie, o Bam-Bam. — Mas agora devo avisar...

— Refere-se aos SFIs? — interrompeu Hawkins. — Little Joseph transmitiu sua mensagem anterior e a situação está sob controle. As tropas hostis estão imobilizadas.

— O quê? Já o encontraram?

— Para ser mais preciso, Comandante, nós os encontramos primeiro e tomamos as providências adequadas. Minhas forças estão agora em abrigo seguro e lá permanecerão, fora da zona de combate.

— O que aconteceu? Onde estão os FEs?

— SFIs — corrigiu o Hawk. — Os Incorrigíveis. Não aqueles outros homens corajosos e normais que eu treinei e que deram tanto à pátria. Esses são os psicopatas que nunca tivemos chance de eliminar.

— Mas onde estão?

— Bem, nesta altura provavelmente na cadeia, por atentado ao pudor. Se não, ainda haveria quatro homens nus subindo e descendo a escada do hotel Ritz-Carlton, esforçando-se ao máximo para não serem vistos... Ah, o quinto membro ainda está, certamente, dentro de um Lincoln cujo motor não pega, também nu, seu celular em pedaços, pois lhe foi arrancado e atirado numa valeta.

— Caramba!

— Acredito que essa mensagem acabará chegando ao conhecimento de Washington... Agora passemos à tática, Comandante. Obviamente sabe como está minha agenda. E a sua?

— O mesmo, General. Uma coisa sórdida e terrível foi feita a uma tribo pequena e inocente de habitantes originários deste grande país, os Estados Unidos, e uma nação rica e magnânima deve restituir o que foi tirado... E agora, como isso o afeta?

— Acertou bem no alvo, soldado!

— Agora, o que não sabe, General, é que a Suprema Corte achou a petição de seu advogado de certo modo convincente. Não é uma maioria estável, de maneira nenhuma, mas eles estão conversando confidencialmente.

— Eu sabia! — interrompeu o Hawk, triunfante. — Se não fosse assim não teriam procurado o Goldfarb de Ouro... que também, de certa forma, foi treinado por mim, que diabo!

— Você conhece Hymie, o Furacão?

— É um cara bom mesmo, forte como um elefante e com o cérebro de um sábio de Rhodes.

— Ele era um sábio de Rhodes.

— O que eu disse?

— Está bem, está bem — contemporizou Mangecavallo. — Mas por conta da situação do Comando Aéreo Estratégico e por razões de segurança nacional, a Corte não permitirá que a petição seja tornada pública por mais oito dias e, no dia anterior, você e seu advogado deverão comparecer em sessão a portas fechadas para responder a um interrogatório oral. Nessa hora que você apresentará suas alegações finais.

— Estou preparado para isso, Comandante Y. Estou me preparando há quase um ano! O convite é bem-vindo. As minhas alegações são simples.

— Pode ser, mas o Pentágono, a Forca Aérea e sobretudo os fornecedores da Defesa não são. Eles o querem fora de combate, General.

— Se o contingente que enviaram a Boston esta tarde é uma indicação de seu poder de combate, entrarei no Tribunal com o traje de gala da tribo Wopotami.

— Meu Deus! Pelo que sei, entre todos são os mais violentos e malucos, com exceção de uma unidade que é mantida numa fazenda murada muito engraçada, onde gostam de jogar voleibol atirando guardas por cima da rede. São chamados de “Os Quatro Sujos”... eles virão atrás de você!

— Nesse caso — disse The Hawk, semicerrando os olhos — e presumindo que você tenha pessoal de apoio sob o seu comando, talvez possa designar um pelotão para nos proteger. Para lhe dizer a verdade, comandante Y, só tenho dois subordinados operacionais para defender a nossa posição, por assim dizer.

— Esse é o problema, General. Em circunstâncias normais eu poderia mandar toda uma equipe de brutamontes experimentados para o proteger, mas não há tempo agora. Essa história da proteção secreta demora algum tempo a organizar, porque tem de ser totalmente secreta ou então perdemos todos.

— Isso parece-me conversa dos sacanas dos cuequinhas de renda, sr. Sem-Nome.

— Não é... juro sobre a sepultura da minha tia Angelina...

— Essa é a tia do Little Joseph.

— A família é grande... Ouça, posso reunir dois, talvez três sócios muito íntimos, em quem posso confiar, para manter o silêncio como monges, mas mais do que isso poderia ser um problema. Sentiriam a sua falta, seriam feitas perguntas, surgiriam boatos inconvenientes com perguntas do tipo “Para quem é que ele está a trabalhar?” ou “Ele parecia estar ótimo ontem, que história é essa de ter sido hospitalizado?” Ou talvez ainda algo como “Eu soube que ele distribuiu toda a nossa massa pela família em Hartford, que quer que atuemos — é para ela que ele está a trabalhar!”... Percebe o que quero dizer, grande General? Com um efetivo grande a protegê-lo, haveria um número excessivo desse tipo de perguntas e, com elas, o meu nome viria à baila, o que não pode acontecer!

— Está metido em alguma encrenca, comandante Y?

— Já lhe disse. Estou me defrontando com a minha própria morte. Estou finito, schiacciata, meus ossos são pedras de sal!

— Está se sentindo mal, soldado...? Aguente firme, Comandante, os médicos não sabem tudo, companheiro.

— Os meus médicos sim, pois não sabem uma única coisa sobre medicina!

— Eu procuraria uma segunda, talvez uma terceira opinião.

— General, por favor! É o que eu já expliquei. Certas pessoas esperam que eu me transforme em fígado picado e frio dentro de um ou dois dias e é assim que tem de ser... talvez eu devesse dizer que é assim que tem de parecer, pois enquanto estou morto, posso agir em seu benefício, tanto quanto no meu.

— Não sou um homem religioso — concluiu O Hawk melancolicamente. — Para falar a verdade, já vi sangue demais derramado por fanáticos que dizem que matarão todos os que não acreditem no que eles acreditam. A história está cheia desse tipo de coisa, que não me agradam nada. Todos somos oriundos do mesmo lodo que rastejou para fora da água, ou do mesmo relâmpago que pôs um cérebro primitivo nas nossas cabeças. Por isso, ninguém tem o direito de alegar exclusividade.

— Essa história é muito comprida, General? Se for, não temos tempo.

— Não, que diabo, é curta. Se você está morto, Comandante, diga com toda segurança que vai agir de sua sepultura. Não consigo imaginá-lo candidato à ressurreição.

— Jesus Cristo!

— Ele pode ter sido, você não, soldado.

— Não vou morrer, General, vou apenas desaparecer, como se tivesse morrido, capisce?

— Não inteiramente.

— Como eu disse, estamos trabalhando nisso. É vital que meus inimigos... seus inimigos... pensem que estou fora de cena.

— Que cena?

— Aquela em que você aparece de rabo caído, da mesma forma que todos os outros envolvidos na sua farsa dos Wopotamis!

— Desaprovo essa expressão.

— Foi um lapso, juro... oh, esqueça! Refiro-me à cruzada por um povo injustiçado, que tal lhe parece agora?

— Bem no alvo, Comandante.

— Bem vê, enquanto eu estiver supostamente morto e fora de cena, ponho os meus capos supremos para trabalhar em Wall Street. Eles vão inflacionar as ações do CAE bilhões de vezes, com base nas súbitas mudanças do Pentágono no que diz respeito a Omaha, e aí então você comparece à Suprema Corte e elas entram todas em colapso, como uma bomba nuclear sobre todos os empréstimos, que se baseiam em projeções, e os rapazes do country club, que não vão poder pagar suas contas, vão passar a limpar penicos no Cairo! Entendeu, General? Nós dois vamos conseguir o que queremos!

— Sinto uma certa hostilidade com essas pessoas.

— E é mesmo para sentir, Cabeça de Trovão! Eles nos querem na lama — todos nós!... Nossa coordenação será de Little Joey. Mantenha-se em contato com ele.

— Tenho que lhe dizer uma coisa e é bom que o faça na frente de Joseph. Eu estou convencido de que ele tem abusado das diárias. A única hora em que se consegue entrar em contato com ele é quando não está pedindo serviço de quarto, o que passa a vida fazendo.

— Safado! — urrou Joey Mortalha.

 

THE WASHINGTON POST

TEME-SE QUE DIRETOR DA CIA ESTEJA PERDIDO NO MAR

Guarda Costeira revela busca infrutífera de 18 horas ao largo da costa da Flórida.

Iate particular apanhado por tempestade

 

Key West, 24 ago. — Acredita-se que Vincent F. Mangecavallo, diretor da CIA e convidado a bordo do iate Gotcha Baby, tenha morrido no mar juntamente com o capitão e a tripulação deste barco de quase 10 m de comprimento, que deixou o seu ancoradouro em Key West às 6 da manhã de ontem, numa malfadada excursão de pesca. Segundo os meteorologistas, uma súbita tempestade subtropical surgiu de Muertos Cays, aproximadamente às 10h30 da manhã, hora de verão da Costa Leste, mudando de direção quase instantaneamente para tomar o rumo norte, longe da linha da costa, mas indo diretamente ao encontro do trajeto do iate, que seguia o rumo leste, em direção à área de pesca dos recifes de coral, aproximadamente há cinco horas. Aeronaves e patrulhas da Guarda Costeira reiniciará as buscas ao amanhecer, mas há pouca esperança de que haja sobreviventes, já que se presume que o iate tenha batido nos recifes e sido destruído.

Ao saber da notícia, o Presidente fez a seguinte declaração: “Bom velho Vincent, um grande patriota e um excelente oficial da Marinha. Se ele tivesse de escolher, tenho certeza de que gostaria muito de ter o mar como última morada. Ele se dava muito bem com os peixes.”

O Departamento da Marinha, contudo, não tem registro que comprovem que o Sr. Mangecavallo tenha sido oficial naval, ou mesmo que tenha servido na Marinha. Informado desse fato, o Presidente fez uma observação lacônica: “Meus velhos companheiros deveriam arrumar seus arquivos. Vinnie serviu no teatro de operações do Caribe com partisans gregos a bordo de barcos-patrulha. Afinal de contas, qual é o problema desses novos marinheiros?

O Departamento da Marinha não teve resposta para isso.

 


THE BOSTON GLOBE

CINCO NUDISTAS PRESOS NO RITZ-CARLTON

Quatro encontrados nus no telhado

O quinto assaltou homem que fazia jogging em jardim público.

Todos alegam imunidade governamental. Washington chocada

 

Boston, 24 ago. — Em uma série de incidentes bizarros, durante os quais numerosos convidados do Hotel Ritz-Carlton alegaram ter visto figuras nuas correndo pelos corredores em vários momentos, a polícia de Boston encurralou quatro homens desarmados e nus no telhado do prédio. Inexplicavelmente, pediram roupas sem justificar sua nudez e alegaram imunidade de segurança nacional por seus esforços em exterminar inimigos dos EUA. Um quinto homem nu foi subjugado por um jogger de Boston, o lutador profissional conhecido como “Mandíbulas“ Golpe do Braço, que contou à polícia que o assaltante tentou tirar sua roupa de treino. Indagações feitas nos círculos dos serviços de informações de Washington revelaram apenas consternação e negação imediata de qualquer envolvimento. Uma fonte bem colocada mas não identificada do Departamento de Estado sugeriu, contudo, a existência de uma certa semelhança entre os cinco de Boston e uma seita do sul da Califórnia que só comete crimes sem roupa, enquanto canta Over the Rainbow e agita bandeirinhas americanas. “São pervertidos”, disse o porta-voz não identificado, “pois, se não fossem, não usariam essas bandeirinhas. São eles, sim, e nem sequer sabemos quem são. É tudo o que temos a dizer!”


17

Era noite, e o homem corpulento, de estatura mediana, usando óculos escuros sob uma enorme peruca vermelha que caía sobre as suas orelhas, avançou pela rua estreita e sombria, iluminada a gás, a alguns quarteirões do cais de pescadores de Key West, Flórida. Era uma rua onde se alinhavam pequenas casas vitorianas coladas umas às outras, versões miniaturizadas das mansões irmãs da estrada marginal. O homem estudou os números do lado direito, perscrutando a escuridão, até encontrar o endereço que procurava. Embora similar na aparência às que se encontravam a seu lado e à sua frente, a casa era claramente diferente num único aspecto. Enquanto as outras tinham luzes nas várias janelas do primeiro e segundo andares, suavizadas pelas cortinas de franja e pelas persianas, esta casa tinha uma única lâmpada mortiça acesa num quarto do primeiro andar que, obviamente, ficava nos fundos da pequena estrutura. Era parte do código visual; esse era o lugar do rendez-vous clandestino.

O estranho de peruca vermelha subiu os três degraus estreitos da varanda e aproximou-se da porta. Bateu de leve nas tábuas de madeira que ficavam entre os painéis de vidro, um sinal pré-combinado que evitava a campainha: uma batida, pausa, quatro batidas rápidas, outra pausa e mais duas batidas rápidas. Barba... e corte de cabelo... vinte e cinco centavos, considerou o homem, perguntando a si mesmo que gênio da espionagem tinha imaginado aquilo. A porta abriu e Vincent Mangecavallo teve resposta pronta. O imenso rinoceronte que se encontrava no estreito hall de entrada era seu ex-mensageiro especial, corretamente apelidado de Meat, como sempre de camisa branca e paletó preto.

— Você é o melhor que se pôde conseguir nesta maldita emergência nacional?

— Ei, Vinnie... é você, não é, Vinnie?... Claro que é, posso sentir o cheiro de alho e rum aromático.

— Basta! — disse o veterano do teatro de operações do Caribe, entrando na casa. — Onde está o consigliere? É com ele que quero falar imediatamente.

— Nada de consiglieri — interrompeu um homem alto e esbelto, surgindo de uma porta lateral do vestíbulo obscurecido. — Nada de dons, advogados da Máfia ou pistoleiros da Cosa Nostra, entendido?

— Quem diabos é você?

— Estou surpreso por ainda não ter reconhecido minha voz.

— Ah... você?

— Sim — disse Smythington-Fontini, de paletó branco e gravata amarela. — Conversamos centenas de vezes pelo telefone — continuou o elegante anglo-italiano — mas não nos conhecíamos pessoalmente, Vincenzo. A minha mão... lavou a sua recentemente?

— Com uma cara dessas, não há dúvida que você tem coragem, isso posso dizer a seu favor — replicou Mangecavallo, exercitando o mais rápido aperto de mão desde que George Patton encontrou seu primeiro general russo. — Como encontrou Meat?

— Digamos que ele era a estrela mais apagada de sua constelação e eu sou um perito em navegação pelos astros.

— Isso não responde a pergunta.

— Digamos então que os dons, de Palermo ao Brooklyn, Nova York, não queiram ter nada a ver com este empreendimento. Eles dão suas bênçãos e aceitarão agradecidos qualquer liberalidade que possam encontrar no caminho, mas, basicamente, estamos sozinhos. Eles selecionaram aqui este seu sócio.

— Há algumas coisas que que fazer na Rua Grande, uma questão de autoestima e honra pessoal, tendo em consideração o que foi decidido contra o meu bem-estar físico. Espero que isso tenha sido entendido... de Palermo ao Brooklyn.

— Sem dúvida, Vincenzo, uma questão de honra que precisa ser respondida, mas não nesses termos. Repito, nada de armas, nada de sepulturas, nenhum consigliere apoiado nos Boeskys, de Wall Street. Não pode haver nenhum envolvimento por parte dos seus sócios familiares... que não são meus sócios, embora eu certamente espere ser posto a par de seus movimentos. Afinal, meu velho, eu paguei o iate que destruímos nos recifes, assim como a tripulação desconhecida que não falava inglês, que mandamos de volta para Caracas, de avião.

— Meat — disse Mangecavallo, virando-se para o colega menos graduado. — Vá preparar um sanduíche.

— Com que, Vinnie? Tudo o que esse cara tem na cozinha é um biscoito engordurado que quebra quando a gente segura e um queijo com cheiro de chulé!

— Deixe-nos sozinhos, Meat.

— Talvez eu devesse encomendar uma pizza...

— Nada de telefonemas — interrompeu o empresário cosmopolita. — Por que não fica de olho no quintal dos fundos? Não gostaríamos de ver intrusos por aqui e, pelo que me disseram, você é um perito em evitar essas coisas.

— Ei, acho que tem razão quanto a isso — disse Meat, amolecido. — E quanto ao queijo, que diabo, nem sequer gosto de parmesão, entende o que quero dizer?

— Certamente.

— E não se preocupe com intrusos — acrescentou o capo subordinado, dirigindo-se à cozinha. — Tenho olhos de morcego; nunca fecham.

— Os morcegos não veem lá muito bem, Meat.

— Sério?

— Sério.

— Onde o encontrou? — perguntou Smythington-Fontini quando Meat entrou na cozinha. — E por quê?

— Ele faz certas coisas e a maior parte do tempo não sabe ao certo o que fez. É o melhor tipo de gorila de rua que existe... Mas não estou aqui para falar de Meat. Como vão as coisas?

— Eficientemente e conforme o planejado. Amanhã, ao raiar do dia, a Guarda Costeira vai encontrar restos do barco, assim como diversos coletes salva-vidas e artigos pessoais, inclusive sua charuteira à prova d'água, com iniciais e tudo. Naturalmente que a busca será dada por encerrada e você terá o privilégio único de ler todas aquelas coisas maravilhosas que as pessoas que o desprezam dizem após sua morte.

— Ei, você sabe que algumas podem ser muito sinceras, já pensou nisso? Sou muito respeitado em certas áreas.

— Não entre nossa gente, meu velho.

— Lá vem você outra vez com essa história de “velho”, hein? Pois bem, deixe que eu lhe diga uma coisa, velhinho, você é um felizardo por ter tido uma mamãe aristocrática muito mais esperta do que aquele tonto que ela conheceu em Tea Town imaginou possível. Se não fosse por ela, sua única equipe de futebol seria uma quadrilha de marginais magricelas chutando bola nas ruas de Liverlake ou Liverpool, ou seja lá qual for a porra do nome.

— Sem as ligações bancárias dos Smythington, os Fontini nunca teriam atingido status internacional.

— Então é por isso que ela manteve sempre o nome Fontini, para que todos soubessem quem estava pagando as letras, coisa que o moço da cavalariça não podia fazer.

— Isso não nos leva a parte alguma...

— Só quero que você saiba onde está sentado, Smythie... não em pé, mas sentado! Essa sua gente com cuequinhas de seda vai entrar pelo cano!

— Foi o que me deram a entender. Socialmente, é uma perda horrível, claro.

— Naturalmente, pagliaccio... E então, após essa grande busca da Guarda Costeira ter terminado e me erigirem um memorial, o que vai acontecer?

— Quando chegar a hora, prevejo que será encontrado numa ilha afastada das Dry Tortugas. Dois venezuelanos vão jurar, enquanto agradecem sem parar a Deus, a si mesmos e a você, que foi sua coragem e perseverança que salvou a vida de todos. Os venezuelanos serão levados imediatamente de avião para Caracas e lá desaparecerão.

— Nada mal, nada mal mesmo. Talvez você afinal tenha puxado sua mãe.

— Conceitual e artisticamente, acredito que tenha razão — concordou o industrial, sorrindo. — A mãe dizia sempre que “O sangue dos Césares estará sempre presente, se pelo menos mais primos nossos do sul tiverem olhos azuis e cabelos louros como eu.”

— Uma verdadeira rainha, tão cheia de tolleranza... E o Rabo de Trovão? Como vamos fazer para que ele e seus índios malucos se mantenham em pé? Eles não serão úteis debaixo da terra.

— É aí que você entra. Aparentemente, só você pode estabelecer contato...

— Correto — interrompeu Mangecavallo. — Estão todos no lugar certo e ninguém sabe onde estão, exceto eu, e é assim que as coisas vão continuar.

— Se continuarem exatamente assim, não haverá proteção. Não se pode proteger uma presa que não se consegue encontrar.

— Já resolvi isso. Você diz o que tem em mente e se eu gostar, procuro o mensageiro e combinamos o encontro. O que tem em mente?

— No telefone, antes de vir para cá, você disse que o General e seus companheiros estavam num “abrigo seguro”. Como esportista náutico, presumo que essa expressão seja equivalente a “porto seguro”, que basicamente, significa que o navio está abrigado de uma tempestade, normalmente numa enseada funda a sotavento, ergo “abrigo seguro”...

— Você se tortura sempre dessa maneira?... Sim, acho que é isso mesmo, pois foi o que o jovem soldado grandalhão disse e, se significar outra coisa, o exército vai mesmo se ferrar. Qual é a sua questão?

— Por que não manter o status quo?

— Que status quo?

— O abrigo seguro — disse Smythington-Fontini lentamente, como que para esclarecer o que era óbvio. — A menos que, como você sugeriu, tenhamos militares ferrados, o que, nos escalões mais elevados do Pentágono, é inteiramente plausível. No entanto, considerando as recentes proezas do general, devemos aceitar sua palavra de que o abrigo é seguro e protegido do tempo.

— Do tempo?

— A expressão, conforme a emprego, tem conotação pejorativa. Estão todos numa enseada funda e protegida dos elementos. Por que não fazer com que fiquem onde estão?

— Não sei onde diabos estão!

— Melhor ainda... Seu mensageiro sabe?

— Pode descobrir, se o motivo for suficientemente bom para convencer o Rabo de Trovão.

— Você disse ao telefone que ele queria... o que era?, ah, sim, “tropas de apoio”. Isso seria suficientemente bom?

— Ele precisa disso... Em quem está pensando?

— No seu companheiro com o singular nome de Meat, para começar...

— Passo — negou Mangecavallo. — Tenho outro trabalho para ele. Quem mais?

— Bem, podemos ter aqui outro problema. Como já disse, nossos padrones próximos e afastados fazem absoluta questão de que não haja possibilidade de estabelecer vínculo com qualquer uma das famílias, como poderia ser feito pelo Sr. Caesar Boccegallupo. Imagino que o Meat seja uma exceção porque, como ele é uma espécie de batman,1 não se destaca muito no departamento cerebral. Creio que você disse que ele é o penúltimo “gorila de rua”.

— Penúltimo?

— Bem, o último seria um gorila verdadeiro que compreendesse a nossa língua, não acha?

— Que diabo tem a ver o Batman com o meu soldado de rua Meat?

— Não, não é Batman, Vincenzo, mas batman, um joaquim faz tudo, alguém que desempenha várias pequenas tarefas.

— Sabe uma coisa, você você é estranho!

— Estou me esforçando ao máximo — disse o industrial, próximo da exaustão verbal. — Receio que estejamos em diferentes frequências.

— Pois bem, entre na minha, Smythie! Você parece aquela maçã assada que dirige o Departamento de Estado, chum-chum!

— Não vê que esse é o motivo pelo qual eu sou valioso? Eu compreendo-o; ele é socialmente aceitável dentro de uma certa margem, mas as suas soluções, por mais degradantes que sejam, são mais produtivas do que as dele, no que diz respeito aos meus interesses. Posso preferir os daiquiris dele à sua aguardente brava, mas certamente que sei quando e o que devo pedir. Porque pensa que as democracias industriais são tão abençoadamente tolerantes? Poss não querer dividir o meu pão com você, mas fico muito feliz por ajudá-lo a assar o pão.

— Sabe uma coisa, acho que acabo de ouvir sua mamma falando. Por baixo de toda essa conversa fiada, você até é uma pessoa correta. E então, para onde vamos?

— Já que os caminhos normais estão fechados para você, sugiro que recrute diversos homens de uma fonte disponível de talentos. Ou seja, mercenários.

— Quem?

— Soldados profissionais que se podem contratar. Geralmente são o refugo da terra, mas só lutam por dinheiro e não se interessam nem um pouquinho por outras causas que não sejam dinheiro. Nos velhos tempos, eram todos arruaceiros ex-componentes da Wehrmacht ou assassinos em fuga, ou ainda militares caídos em desgraça que o Exército já não queria nas suas fileiras e suponho que as duas últimas categorias continuem as mesmas, já que a maioria dos fascistas está morta ou velha demais para carregar um tambor ou soprar suas malditas cornetas. Seja como for, creio que é a melhor linha de ação.

— Onde posso encontrar esses santos escoteiros? Quero proteção o mais depressa possível.

— Tomei a liberdade de lhe trazer uma dúzia de currículos de uma agência de Washington chamada Manpower Plus Plus. O mensageiro que lá mandei, um dos meus executivos de Milão, informa-me que todos os candidatos estarão disponíveis dentro de vinte e quatro horas, com a possível exceção de dois, de quem se espera que amanhã de manhã consigam fugir com êxito da prisão onde se encontram.

— Gosto do seu estilo, Fontini — disse o temporariamente falecido diretor da CIA. — Onde estão os currículos?

— Na cozinha. Venha comigo. Pode dizer a Meat para vigiar a varanda da frente.

Dez minutos depois, sentado diante de uma grossa mesa de pinho, com as pastas espalhadas à sua frente, Mangecavallo tomou a sua decisão.

— Estes três — ordenou.

— Vincenzo, você é realmente notável — disse Smythington-Fontini. — Eu teria escolhido dois desses três, só que tenho de lhe dizer que esses dois estão neste momento prestes a efetuar a sua fuga da prisão de Attica e, é claro, ficarão muito gratos pelo emprego imediato. O terceiro, porém, é, na realidade, um comprovado maluco, um nazista americano que tem mania de queimar suásticas nos terrenos das Nações Unidas.

— Ele se jogou na frente de um ônibus...

— Não era um ônibus, Vincenzo, mas a patrulha que transportava seu amigo, um lunático que foi preso quando descia a Broadway vestindo uniforme da Gestapo.

— Ainda assim, ele tentou impedir que algo acontecesse e é isso que eu estou tentando fazer.

— De acordo, mas é discutível se ele realmente queria agir daquele modo ou se foi esmurrado por um rabino da rua Quarenta e Sete.

— Eu corro o risco... Quando os terei em Boston?

— Bem, quanto aos dois primeiros, saberemos de manhã, após a chamada na prisão e quanto ao nazi, está a morder¨ o freio, já que vive de um subsídio de desemprego, utilizando um cartão da Segurança Social roubado de algum usurário cujo negócio foi montado por ele em East River.

— Gosto dele, não da sua política, pois não vou muito com essa porcaria, mas ele pode ser útil. Todos esses malucos podem ser úteis; como você diz, tudo o que se tem de fazer é tocar um tambor e soprar numa corneta. E se os outros dois conseguirem fugir, serão o presente de Nossa Senhora para a nossa causa, para reparar um terrível erro cometido contra uma tribo de verdadeiros perdedores que cairiam mortos, se não fosse a minha intervenção benevolente. O importante é que temos de montar esse circo o mais rapidamente possível e chutar os tipos para Boston, para o tal abrigo seguro, onde quer que ele seja... Sabe, é bem possível que esses zucchinis de Washington estejam neste momento a ajustar a mira sobre o general.

— Duvido, meu velho. Se você não sabe onde é e se o seu mensageiro também não sabe, como Washington o poderia encontrar?

— Eu pura e simplesmente não confio nesses cuequinhas de seda. Não se detêm perante nada, esses vermes.

Na penumbra do reservado nos fundos do O'Toole's Bar and Grill, dois quarteirões a oeste de Aaron Pinkus e Associados, o jovem e elegantemente vestido banqueiro intensificou o ritmo do seu gentil assédio à secretária de meia-idade, recorrendo a um terceiro martini.

— Ai, eu não devia, Binky — protestou a mulher dando risinhos e passando a mão nervosamente pelo cabelo comprido, que já estava a ficar grisalho. — Realmente não está certo.

— O que não está certo? — perguntou o anúncio ambulante dos ternos da Brook Brothers, com um sotaque atlântico de algum lugar entre Park Avenue e Belgrave Square. — Eu contei como me sinto.

— Vários dos nossos advogados passam por aqui depois do trabalho... afinal de contas, só o conheço há uma hora. As pessoas vão falar.

— Deixe-as falar, coração! Quem se importa? Expliquei minha posição com toda a clareza e integridade. Essas mulheres infantis e idiotas com que todos esperam que um homem como eu saia, pura e simplesmente não me interessam. Prefiro muito mais uma mulher madura, uma mulher de experiência e visão... Aqui tem, à sua saúde — ambos levaram os cálices aos lábios; só que apenas um deles engoliu e não foi o banqueiro aristocrático. — Ah, só uma pequena pergunta de negócios, meu amor... Quando pensa que o nosso comitê executivo poderá encontrar Mr. Pinkus? Estamos falando de vários milhões, é claro, já que o seu aconselhamento jurídico é muito procurado.

— Binky, eu disse... — nesse momento, a secretária, subitamente perplexa, ficou involuntariamente estrábica e soluçou quatro vezes seguidas. — Mr. Pinkus não entrou em contato comigo durante todo o dia.

— E você não sabe onde ele está, coração?

— Não sexualmente... na realidade... mas seu motorista, Paddy Lafferty, ligou pedindo que eu alugue dois carros.

— Ah, sim? Dois?

— É qualquer coisa relacionada com a cabana de esqui em Hooksett. Em New Hampshire, na fronteira.

— Bem, tudo isso é irrelevante, são só negócios chatos... Pode me desculpar por um momento, amorzinho? Como dizem por aí, a natureza tem suas exigências.

— Quer que vá junto?

— Não estou seguro de que isso seja aceitável, criatura excitante, dama desabrochada.

— Aiouu! — gritou a secretária, atacando seu martini.

Binky, o banqueiro, levantou-se da mesa e dirigiu-se rapidamente até o telefone de O'Toole, perto da entrada. Colocou uma moeda e discou; atenderam imediatamente.

— Tio Bricky?

— Quem mais podia ser? — retorquiu o proprietário da maior instituição de empréstimos da Nova Inglaterra.

— Fala seu sobrinho Binky.

— Espero que tenha feito jus ao que ganha, meu jovem. Não é muito bom em outras coisas.

— Tio Bricky, fui bom mesmo!

— Não estou interessado em suas façanhas sexuais, Binky. O que descobriu?

— É uma cabana de esqui em Hooksett. Do outro lado da fronteira, em New Hampshire.

Binky, o banqueiro, nem voltou à mesa e foi o compreensivo O'Toole quem pôs a secretária alcoolizada num táxi, pagou a corrida até sua residência e disse adeus ao rosto confuso na janela, com uma única palavra.

— Vidinhas — murmurou.

— Fala Bricky, meu velho. É uma cabana de esqui em Hooksett, New Hampshire, mais ou menos a cinquenta quilômetros da fronteira, pela Noventa e Três. Estou informado de que só há uns dois lugares assim na zona, de modo que não deverá ser muito difícil encontrá-la. Estarão lá dois carros com as seguintes placas... — o banqueiro de fisionomia meio acinzentada deu os números e aceitou os elogios do Secretário de Estado.

— Excelente, Bricky, é como nos velhos tempos, não é, velho amigo?

— Espero que sim, meu velho, porque se estragar tudo não se atreva a aparecer na nossa reunião!

— Não se preocupe, velho companheiro. São os Quatro Sujos, uns perfeitos animais! Estarão pousando no Logan dentro de uma hora... Acha que Smythie vai reconsiderar a questão de meu iate atracar no clube dele?

— Desconfio que isso vai depender do resultado de seus esforços, não acha?

— Tenho uma fé absoluta neles, velho amigo. Formam um quarteto verdadeiramente desprezível. Nada de conceder ou pedir misericórdia, por assim dizer. Sinceramente, você preferiria estar a um quilômetro de distância deles!

— Bom trabalho, meu velho. Mantenha-me informado.


Passava da meia-noite nas redondezas de Hooksett, New Hampshire, quando uma furgoneta preta sem faróis desceu silenciosamente a estrada rural e parou em frente à entrada revestida de cascalho da antiga cabana de esqui. No seu interior, o motorista, com o contorno azulado de um vulcão em erupção tatuado na testa e claramente visível sob o luar de verão, virou-se para os seus três companheiros sentados na parte de trás do veículo.

— Capuzes — limitou-se a dizer. Os três pegaram nas mochilas pretas e tiraram para fora as máscaras de meias também pretas, que imediatamente enfiaram nas cabeças. O motorista líder fez o mesmo no banco da frente e todos ajustaram o tecido de náilon preto, ficando só os olhos de fora, ameaçadores.

— Armamento máximo — acrescentou o tatuado comandante da unidade, com os lábios a formar um sorriso cruel por baixo da máscara.

— Quero a morte, quero todos mortos! Quero ver horror, quero ver dor; quero ver sangue e caras grotescas, todas essas coisas boas para as quais fomos tão bem treinados!

— Como sempre, Major! — cochichou um homem que era um verdadeiro monstro, remexendo, como os outros, no interior e pegando numa automática MAC-10 juntamente com cinco cartucheiras, cada cartucheira com oitenta cartuchos, num total de quatrocentas balas de disparo rápido.

— Armamento secundário! — continuou o Major, olhando em volta e sentindo-se satisfeito por ver que o seu segundo comando já tinha sido cumprido. Mais uma vez as mãos desapareceram dentro das mochilas e granadas de mão foram afixadas aos cintos de combate.

— Rádios! — veio a ordem final, instantaneamente executada. Walkie-talkies miniaturizados surgiram e foram enfiados nos bolsos. — Vamos! Norte, Sul, Leste e Oeste, de acordo com seus números, entendido?

Seguiu-se um coro de afirmativas, no momento em que os quatro Incorrigíveis Máximos se esgueiraram para fora da furgoneta, atirando-se para o chão e rastejando cada um na direção que lhe foi fixada. A morte era a sua missão e a morte era a sua salvação em todas as situações. Antes a Morte que a Desonra!

— Está vendo o que eu estou vendo, amigo? — perguntou Desi-Dois a Desi-Um, os dois em pé sob um bordo imenso, observando a paisagem sob um luar incerto. — É uma loucura, não acha?

— Não deve ser tão duro com eles, como dizem os gringos — retorquiu Desi Um. — Eles nunca tiveram que tomar conta de galinhas ou cabras durante a noite, para protegê-las dos vizinhos maus.

— Eu sei, mas por que são tão burros? Cabezas pretas subindo a colina com essa lua, parecendo grandes cucarachas, é pura burrice, como os gringos também costumam dizer.

— Como diz o Heneral, podíamos ensiná-los a agir melhor, mas não agora. Agora temos que fazer o que ele quer que a gente faça... Além disso, foi um dia difícil para todos os nossos simpáticos novos amigos, então não vamos querer que eles acordem. Precisam dormir, não é?

— Eles não têm galinhas e cabras, apenas vizinhos maus, é isso que quer dizer?

— É isso. Agimos sozinhos, O.K.?

— É fácil. Agarro os dois daquele lado e você fica com os outros dois.

— O.K. — concordou Desi-Um quando os dois homens se agacharam nas sombras. — Mas lembre-se, amigo, não seja violento demais. O Heneral disse para sermos civilizados com prisioneiros de guerra.

— Ei, homem, não somos animais! Como o Heneral também diz, agimos segundo os objetivos de Genebra. Talvez esses maus vizinhos tenham passado tempos difíceis quando eram criancinhas, como nós passamos, segundo disse o Heneral Mac. Provavelmente eles precisam de muita bondade e ajuda.

— Ei, hombre — advertiu D-Um, cochichando —, não deixe que esses padres que você tanto preza o transformem num santo! Use essa bondade toda quando os cucarachas de cabeça preta já estiverem fora de combate na pia da cozinha, O.K.?

— Ei, hombre, o meu padre favorito costumava dizer quando eu ia para a velha San Juan: “Olho por olho, niño, mas bata primeiro... direto nos testículos.

— Verdadeiramente um homem de Deus, amigo. Vamos!

— Fala o Major Vulcano — disse a figura de capuz negro, falando em voz baixa para seu rádio enquanto subia rastejando o caminho mais ao sul para a antiga cabana de esqui. — Entrem em contato pelos números.

— Dois Leste informando, Major. Nenhuma atividade, hostil ou não.

— Número Três?

— Três Norte, Major. Luz acesa no que parece ser um quarto no segundo andar. Posso explodir?

— Ainda não, soldado, mas quando eu der o sinal, faça sair todos lá de dentro. Provavelmente são uns malditos pervertidos a observar um casal a trocar os seus fluidos corporais. São todos uns pervertidos, selvagens pervertidos. Mantenha a arma e as granadas prontas para serem usadas.

— Sim, Major!

— Quero fazê-los ir pelos ares! Posso, Major?

— Boa atitude, soldado, mas só quando eu der o sinal. Continue a se aproximar.

— E eu, Major? — interrompeu Dois Leste. — Três Norte é um idiota de merda! Lembra de que quando os guardas o pegaram mastigando a cerca com os dentes?... Eu é que devo ser o primeiro a matar!

— E você será meu! — interrompeu Três Norte. — Não se esqueça, Major, foi o Dois Leste que pegou todos aqueles morangos que iam ser servidos no rancho da quinta-feira passada!

— Você tem razão, Número Três. Eu queria mesmo aqueles morangos.

— Não fui eu, Major. Foi o Quatro Oeste!... Confesse, seu filho da mãe!

— Então, Quatro Oeste? — disse Vulcano. — Foi você que roubou meus morangos?

Silêncio.

— Quatro Oeste, Quatro Oeste! Responda!

Silêncio.

— O rádio dele está desligado — concluiu Vulcano. — Malditos agentes de compras do Pentágono! Essas merdas desses walkie-talkies custaram aos chefões quatorze mil dólares cada, quando se pode comprar a mesma coisa na Radio Shack por vinte e sete dólares!... Quatro Oeste, consegue ouvir?

Silêncio.

— O.K.? Três Norte, a que distância você está?

Silêncio.

— Três Norte, responda!

Um longo silêncio.

Que merda, Três Norte, responda!

Nada.

— Filhos da mãe, será que nenhum de vocês verificou as pilhas?

Mais uma vez, nenhuma resposta.

— Dois Leste! Quero sua informação agora!

Silêncio.

— Mas que merda é essa? — o Major Vulcano quase gritou, esquecendo-se momentaneamente da necessidade de comunicações discretas. — Será que nenhum de vocês vai responder, seus filhos da mãe?

Silêncio, quebrado vários segundos mais tarde por uma voz cordial.

— Prazer em conhecê-lo — disse Desi-Um, saindo das sombras e entrando na área enluarada, imediatamente acima do intruso de capuz negro. — Você é um prisioneiro de guerra, amigo, e será tratado corretamente.

— O quê? — O major levou a mão ao cinto, com intenção de pegar a arma, mas foi lento demais. O salto da bota de D-Um abateu-se sobre a testa de Vulcano, bem no centro do vulcão tatuado.

— Eu não queria fazer isso, senhor prisioneiro, mas você podia me machucar e isso não é coisa que se faça.


Jennifer Redwing acordou com um sobressalto... alguma coisa tinha acontecido, ela podia sentir, podia ouvir! Claro que podia ouvir, pensou ela. Ouvia gemidos abafados e gritos guturais vindos de algum lugar lá fora. Cachorro ferido? Animal preso em armadilha? Jennifer pulou da cama e correu para a janela, não podendo acreditar no que via.

Sam Devereaux ouviu ruídos distantes e puxou o segundo travesseiro para cima da cabeça pesada. Pela milésima vez, jurou que nunca mais tomaria uma bebida depois de sair do O'Toole's Bar and Grill. No entanto, os ruídos não diminuíram de intensidade e depois de abrir os olhos congestionados, compreendeu que nada tinham a ver com sua condição física. Inseguro, saltou da cama e foi até a janela. Que grande merda!

Aaron Pinkus sonhava com Shirley, se bem que com uma Shirley furiosa, com o cabelo enrolado em mil bobs cor de rosa, todos gritando com ele, cada um com sua própria boca, abrindo e fechando incessantemente na velocidade de uma metralhadora. Estaria de volta à Praia de Omaha?... Não, estava na sua cama favorita, na antiga cabana de esqui. Que barulho era aquele? Lentamente, levantou-se da confortável cama e mancou, como fazem as pernas velhas, até a janela. Deus de Abraão, o que Tu fizeste?

O sono de Eleanor Devereaux foi irritantemente interrompido pela balbúrdia e, instintivamente, ela esticou o braço para pegar o telefone da mesinha de cabeceira, a fim de dar instruções a Cora para que os vizinhos fossem presos ou o que quer que se fizesse com pessoas com comportamento tão ultrajante em Weston, Massachusetts. Infelizmente, não havia telefone. Furiosa, tirou os pés para fora da cama, colocou-os no chão, levantou-se e dirigiu-se à janela. Meu Deus, que coisa absolutamente singular!

MacKenzie Hawkins abriu de repente os olhos, ainda mascando o charuto que tinha na boca desde as primeiras horas da manhã. Que diabo era aquilo? Nam? Coreia? Porcos chafurdando na fazenda de algum camponês, protegida pelo pessoal de Busca e Destruição? Meu Deus! Onde estavam seus ajudantes de campo? Por que não o tinham alertado para o ataque inimigo?... Não, compreendeu ele, ao sentir a maciez do travesseiro sob sua cabeça, não havia travesseiros em acampamentos de combate! Então, onde estava?... Pelas legiões de Aníbal, estava na cabana de esqui do Comandante Pinkus! Saltou da confortável cama civil, detestando-se pela falta de rigidez militar e correu, em sua roupa interior, até a janela. Gengis Khan que me perdoe, mas nem você pensaria nisso, Grandalhão!

Como pedestres curiosos procurando testemunhar as terríveis consequências de um grande acidente, os ocupantes temporários da antiga cabana de esqui desceram a escada e se reuniram no vestíbulo alpino. Foram saudados pelos Desis Um e Dois, que flanqueavam uma mesinha comprida onde havia quatro pistolas- metralhadoras MAC10, vinte cartucheiras, dezesseis granadas, quatro rádios miniaturizados, dois lança-chamas, quatro binóculos infravermelhos e uma bomba desmontada em forma de ovo que daria para fazer explodir um quarto do Estado de New Hampshire, a parte menor do sudeste.

— Não queríamos acordá-los — disse Desi-Um — mas o Heneral disse que devíamos proteger os direitos dos prisioneiros de guerra... Tentamos, mas acho que eles não prestam. Essas armas e essas coisas explicam o que quero dizer... Agora, grande Heneral, o Sargento Desi-Dois e eu podemos dormir um pouco?

— Ei, rapazes, vocês são tenentes! Mas que diabo está acontecendo lá fora?

— Por favor, señores y señoras, vejam com seus próprios olhos — disse Desi-Um, abrindo a porta da frente. — Quando vimos todas essas armas e o resto, achamos que fosse prejudicial demais para os planos do Heneral.

Do lado de fora, no elevador de esqui, a meio caminho da rampa intermediária e a pelo menos uns cinco metros de altura, balançavam quatro corpos de cabeça para baixo, as bocas fechadas com fita adesiva e os pés amarrados com cordas.

— Nós os baixamos de hora hora em hora e damos água — disse Desi-Um, sorrindo. — Tratamos muito bem nossos prisioneiros de guerra.

 

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1 Ordenança. (N. T.)


18

— O quê? — gritou o Secretário de Estado, fazendo com que a sua estenógrafa do grupo de segurança quase caísse da cadeira e deixasse cair o bloco na cabeça do patrão, que, distraidamente, agarrou nele com a mão esquerda, mão essa que estava prestes a esmurrar o crânio para conseguir fazer com que o olho esquerdo parasse de girar. — Eles fizeram o quê?... Como? Não vou aceitar esse tipo de coisas! — O Secretário começou a bater com o bloco alternadamente nas suas têmporas e na beira da mesa, até que as páginas foram arrancadas da espiral e voaram.

— Por favor! — pediu a estenógrafa, correndo a apanhar as folhas que voavam. — Estes apontamentos são ultrassecretos, Sr. Secretário!

— Bem, mas não há segredos quanto à sua parte de cima, ou há? — gritou, de uma forma louca, o Secretário de Estado, com ambos os olhos arregalados e o olho esquerdo a girar. — Vivemos num mundo de nozes, menina! Você tem cocos, mas nós somos todos nozes!

De repente, a estenógrafa, muito rígida e olhando para baixo, para o seu chefe, disse calmamente, mas com grande firmeza:

— Pare com isso, Warren. Acalme-se.

— Warren? Quem é Warren? Eu sou o Sr. Secretário, sempre Sr. Secretário!

— Você é Warren Pease e, por favor, tape o telefone senão conto a minha irmã e ela conta a Arnold Subagaloo que você perdeu o juízo.

— Oh, meu Deus, Arnold! — Warren Pease, Secretário de Estado, tapou, no mesmo instante, o bocal do telefone. — Eu esqueci, Teresa, sinceramente, esqueci por um momento!

— Sou Regina Trueheart e minha irmã mais nova é que se chama Teresa. Ela é assistente de Subagaloo.

— Sou muito ruim para nomes, mas nunca me esqueço de cocos, digo, de caras! Não diga nada a sua irmã.

— Agora você vai dizer a quem estiver na linha que ligará assim que puser em ordem seus pensamentos.

— Não posso! Ele está numa cabine telefônica situada no complexo de prisioneiros de Quantico!

— Ordene-lhe que ele lhe dê o número e que fique ao lado do telefone até você ligar de novo.

— Está bem, Choco... Teresa, Regina... Mrs. Secretária!

— Pare com isso, Warren. Faça o que estou dizendo!

O Secretário de Estado fez exatamente o que Regina Trueheart ordenou e depois debruçou-se sobre a mesa, com a cabeça apoiada nos braços e, conforme dizem, debulhado em lágrimas. — Alguém meteu água e eu fiquei na mó de baixo! — balbuciou. — Eles foram enviados de volta dentro de sacos de transporte de cadáveres!

— Quem?

— Os Quatro Sujos. É horrível!

— Eles estavam mortos, sejam eles quem forem?

— Não, havia buracos na lona. É pior do que a morte. Eles estão envergonhados! Nós todos estamos envergonhados! — Pease levantou o rosto molhado de lágrimas, como que a suplicar uma execução rápida.

— Warren, meu querido, deixe lá isso. Você tem um trabalho para efetuar e pessoas como eu estão aqui para o ajudar a consegui-lo. Lembre-se da Fern de North Mall, a nossa santa padroeira e a nossa inspiração. Ela não permitiria que nenhum dos seus chefes se desnorteasse, nem eu o permitirei.

— Ela era secretária, você é uma estenógrafa do grupo de segurança...

— Muito mais, Warren, ah, muito mais — interrompeu Regina. — Sou uma borboleta que vagueia por aí, com o ferrão de uma abelha. Eu voo de uma missão secretíssima para outra, ficando de olho em todos vós, ajudando-os. Essa é a missão atribuída por Deus a todas as Truehearts.

— Você não pode ser a minha secretária?

— E tirar essa tarefa de nossa querida, dedicada e anticomunista mãe, Tyrania? Certamente que está brincando.

— Tirana é sua mãe...?

— Tenha cuidado, Warren. Subagaloo, lembra-se?

— Oh, meu Deus, Arnold. Sinto muito, sinceramente, sinto muito... uma grande mulher, digna de admiração.

— Quanto ao assunto em questão, Sr. Secretário — disse a estenógrafa, sentando-se com o bloco e as páginas dobradas firmemente seguras, numa postura mais uma vez rígida. — Como sabe, tenho acesso a documentos de máxima segurança, por isso, o que posso fazer para ajudar?

— Não é disso que se trata...

— Compreendo — interrompeu Regina Trueheart. — Sacos de transporte de cadáveres com orifícios para entrada de ar, cadáveres que não estavam mortos...

— Vou-lhe dizer, a guarda de honra inteira quase teve um ataque cardíaco em massa! Dois estão no hospital da base, três exigiram dispensa imediata do serviço por motivos psiquiátricos e quatro desertaram ou ausentaram-se sem licença, atravessando os portões a correr e a gritar coisas sobre soldados a erguer-se de entre os mortos para amaldiçoar os oficiais que os abandonaram.... Oh, meu Deus, se isto for divulgado... oh,Jesus!

— Eu sei, Sr. Secretário — a Estenógrafa de Primeira Classe do Grupo de Segurança levantou-se. — Embaraço, Sr. Secretário, todos nós já passamos por isso... Está bem, Warren, estamos juntos nisto. O que vamos começar a retalhar?

— Retalhar? — o olho esquerdo de Pease estava agora a girar para trás e para diante à velocidade do laser.

— Compreendo — disse Regina, que, prontamente, sem o menor sinal de sensualidade, levantou o vestido até a cintura. Documentos a serem retirados, é claro. Como pode ver, estou totalmente preparada para cumprir a missão.

— hein? — com o olho esquerdo fixo, o Secretário de Estado ficou atônito com o que viu. Costuradas nos collants da Mrs. Trueheart, dos joelhos às coxas, havia bolsas de náilon marrons. — Que... que incrível — resmungou Pease.

— Naturalmente precisamos tirar todos os clips de metal e, se precisarmos de mais espaço, o meu sutiã tem um forro com fecho de correr e a parte de trás da combinação tem um forro especial de seda que pode acomodar os documentos maiores.

— Você não está entendendo — disse o Secretário, batendo com o queixo na beira da mesa quando a estenógrafa deixou o vestido voltar à posição normal. — Ai!

— Concentre-se apenas nos negócios, Warren. Agora, o que não compreendo? As garotas Trueheart estão preparadas para todas as emergências.

— Nada foi escrito! — explicou, em pânico, o Secretário de Estado.

— Estou vendo... sem registro, tudo com caráter secretíssimo, comunicações não autorizadas, é isso?

— O quê? Você trabalha para a CIA...?

— Não, é a minha irmã mais velha, Clytemnestra, que trabalha. É uma garota muito calma... Portanto, nosso problema tem origem nas fugas na infraestrutura não aprovada; as informações verbais não registradas provocaram um desvio tortuoso para ouvidos proibidos.

— Deve ter sido isso, mas não podia ser! Ninguém que soubesse podia tirar benefícios da traição ao segredo dos nossos lunáticos em Boston.

— Sem fatos específicos, Sr. Secretário, que, claro, podiam ser revelados pelo Pentotal, mas nunca, nunca diante de qualquer comitê sub-humano do Congresso... por favor, me dê um resumo da operação. Pode fazer isso, Warren? Se isso ajudar, vou mostrar meus bolsos de novo...

— Não faria mal nenhum. — Ela o fez e o olho esquerdo de Pease foi deixando lentamente de se mover, até parar. — Bem, você compreende — começou ele, com saliva nos lábios. — Certos meliantes, liderados por um maníaco, querem arruinar a nossa primeira linha de defesa, ou seja, nossos fornecedores e uma seção da nossa Força Aérea que tem responsabilidades de cão de guarda internacional.

— Como, meu querido? — Trueheart transferiu o peso do corpo de uma perna para a outra e depois de novo para a primeira.

— Ai.

— O quê, Warren? Eu perguntei como.

— Ah, sim, claro... Bem, eles alegam que o local onde está situada uma imensa e muito importante base da Força Aérea pode pertencer a um grupo de pessoas — na realidade, selvagens — por causa de um tratado idiota firmado há mais de cem anos, tratado esse que nunca existiu, é claro! É tudo uma loucura.

— Tenho certeza que sim, mas isso é verdade, Sr. Secretário? — mais uma vez as pernas descobertas de Regina tiveram de executar uma sucessão de mudanças de equilíbrio, cinco, mais precisamente.

— Oh, meu Deus...!

— Sente-se! Isso é verdade?

— A Suprema Corte está analisando. O Presidente manterá as discussões em sigilo por mais cinco dias, com base na segurança nacional, até os meliantes comparecerem em juízo para o interrogatório oral, que ocorrerá no dia anterior ao fim do prazo. Temos quatro dias para encontrar os canalhas e mandá-los para seus territórios de caça, que nada têm a ver com a área da segurança nacional. Malditos selvagens!

Regina Trueheart largou imediatamente o vestido. — Já chega disso!

— Ai!... O quê?

— Nós, garotas Trueheart, não aprovamos a linguagem obscena, Sr. Secretário. Só serve para revelar a ausência de um vocabulário aceitável e é extremamente ofensiva para as pessoas que frequentam a igreja.

— Ora, deixe disso, Vergyna...

— Regina!

— Estou do seu lado... mas não entende que às vezes um pouco de linguagem profana expressa melhor o que se quer dizer? Quando se está estressado, ela sai naturalmente.

— Você parece aquele horrível escritor francês, Anouilh, que costumava desculpar tudo.

— Annuie quem?

— Esqueça... Esse círculo seguro de pessoas a par do que acontecia estava confinado aos mais altos escalões do Governo e a um número ainda menor de civis fora do Governo?

— O menor número possível de cada grupo!

— E todos esses cadáveres vivos foram recrutados sigilosamente para cumprir sua missão, o que obviamente não conseguiram?

— O recrutamento foi tão sigiloso que eles não entenderam o que tinham que fazer! Mas, na verdade, não tinham mesmo que entender, são malucos.

— Fique aqui, Warren — disse a Trueheart, colocando o bloco de estenografia na mesa e alisando o vestido. — Volto já.

— Aonde vai?

— Vou falar com sua secretária, com minha mãe. Volto já e não se atreva a falar ao telefone!

— Claro que não, bolsos... quer dizer...

— Cale-se! Vocês, nomeados, são muito, muito estranhos! — Com estas palavras, a estenógrafa do grupo de segurança saiu para o escritório exterior e fechou a porta.


Warren Pease, Secretário de Estado e proprietário de um iate de pesca, que ele ansiava por atracar num clube aceitável, estava dividido entre cortar os pulsos e ligar para a sua antiga sociedade de corretagem e oferecer todo o tipo de informações internas do Governo, de modo a poder reivindicar a sua antiga sociedade. Meu Deus, por que ele sucumbira ao apelo do ex-colega de quarto, o Presidente, para integrar a administração? Socialmente, é claro, havia vantagens, mas também desvantagens... Era preciso ser delicado com pessoas pura e simplesmente impossíveis de aguentar e havia também aqueles jantares horríveis em que, não só tinha de se sentar ao lado, como também tinha de aceitar tirar o retrato ao lado de negros. Ah, não, nem tudo eram flores! Os sacrifícios que se tinha de fazer poriam à prova a paciência de um santo... e agora isto! Sacos de transporte de cadáveres com corpos vivos e a sua própria gente atrás do seu escalpo! Como a vida se tornara grotesca! É claro, ele não tinha uma lâmina, nem tão pouco se ia atrever a usar o telefone, de modo que não podia fazer outra coisa senão esperar, suando profundamente. Em questão de alguns agonizantes minutos, a espera terminou. Só que, em vez de Regina Trueheart, foi a mãe dela, Tyrania, quem marchou para o escritório, fechando a porta com firmeza.

A matriarca do clã Trueheart era feita da matéria com que se constroem as lendas. Uma mulher notável, com feições teutônicas marcadas e cintilantes olhos azuis-claros, com um pouco mais de um metro e oitenta de altura e um corpo que se mantinha alto e desafiador, negando, com a sua imponência, os seus cinquenta e oito anos. Como a sua mãe antes dela, que chegara com as legiões de secretárias e burocratas do Governo durante a Segunda Guerra Mundial, Tyrania era uma veterana da burocracia de Washington, com um espantoso conhecimento de todos os seus becos e atalhos, loucuras e abusos flagrantes. Também como a sua mãe, criara as filhas para servir as bizantinas infraestruturas das miríades de repartições, departamentos e órgãos do Governo. Tyrania acreditava que o destino das mulheres da sua família era conduzir os líderes e futuros líderes pelos campos de minas de Washington, de forma a que eles pudessem exercitar os talentos geralmente fracos que possuíam. No fundo do seu coração, a líder máxima das Trueheart entendia que eram mulheres como ela e as suas filhas que verdadeiramente conduziam o governo da nação. Os homens é que eram, na realidade, o sexo fraco, tão vulneráveis a tentações e a tolices. Sem dúvida que esta convicção era responsável pelo fato de há três gerações não nascer nenhuma criança do sexo masculino na família. Era pura e simplesmente inaceitável.

Tyrania examinou o claramente perturbado Secretário de Estado, havendo no seu olhar longo e silencioso uma mistura de piedade e resignação.

— Minha filha me contou tudo o que você lhe disse, assim como descreveu sua libido, aparentemente superexcitada — disse ela, com firmeza, mas em voz baixa, como se estivesse repreendendo um garoto pequeno e confuso no escritório da diretora.

— Sinto muito, Mrs. Trueheart! Sinceramente. É que foi um dia horrível e eu não quis fazer nada de errado.

— Está bem, Warren, não chore. Estou aqui para ajudar e não para fazer com que se sinta culpado.

— Muito obrigado, Mrs. Trueheart!

— Mas para que possa ajudar, primeiro tenho que lhe fazer uma pergunta muito importante. Você vai responder com sinceridade, Warren?

— Sim, sim, vou!

— Ótimo... Agora diga-me, entre o tal círculo muito pequeno de civis, pessoas não pertencentes ao Governo a par dessa operação de contra-ataque, algum deles lucra com essa base aérea que está, por acaso, ameaçada?

— Todos, pelo amor de Deus!

— Então observe um deles, Warren. Está traindo os outros.

— O quê...? Por quê?

— A longo prazo, não posso responder enquanto não dispuser de mais dados, como o movimento de ações, mas a curto prazo a resposta é óbvia.

— É?

— Ninguém na administração, com a sua exceção, aceitaria uma solução tão tortuosa que recorresse a homens encarcerados numa prisão militar, por seu temperamento violento. As lições de Watergate e do Irangate deixaram marcas indeléveis, por mais repulsivas e antipatrióticas que possam ser. Resumindo ao máximo, houve muitas acusações.

— Mas por que sou a exceção?

— Você é muito novo e inexperiente nesta cidade. Não saberia como reunir os assessores do Presidente para esse tipo de operação clandestina. Todos fugiriam se ouvissem uma sugestão dessas, com exceção, talvez, do Vice-Presidente, que provavelmente não saberia do que você estava falando.

— Você acha que é um dos... civis?

— Eu raramente erro, Warren... Bem, errei uma vez, mas na realidade foi o meu marido. Desde que nós, mulheres, o pusemos para fora de casa, ele fugiu para o Caribe e agora aluga o seu veleiro decadente nas Ilhas Virgens. Um ser humano totalmente desprezível.

— Ah, sim? Por quê?

— Porque afirma ser uma pessoa completamente feliz, o que, como todos nós sabemos, é inaceitável numa sociedade tão complexa como a nossa.

— A sério...?

— Sr. Secretário, vamos concentrar-nos no problema imediato? Sugiro-lhe vivamente que coloque os “sacos de corpos” em total isolamento, acabe com quaisquer histórias que saiam de Quantico em consequência de bebedeiras e, às escondidas, entre em contato com o Zero Zero Zero-traço-Zero Zero Seis, em Fort Benning.

— Que diabo é isso?

— Não é o que, mas quem — replicou Tyrania. — São os Seis Suicidas...

— Como os Quatro Sujos? — interrompeu Pease, franzindo as sobrancelhas.

— A anos-luz de distância. São atores.

— Atores? O que eu quero com atores?

— Esses são únicos — disse Trueheart, inclinando-se para a frente e baixando o tom de voz. — Podem matar por boas críticas, o que nenhum deles já teve em abundância.

— Como eles chegaram a Fort Benning?

— Por não terem pago o aluguel.

— O quê?

— Não trabalham há anos. Só frequentavam as aulas e serviam à mesa.

— Não entendo uma única palavra do que diz!

— Na realidade, é muito simples, Warren. Eles entraram no Exército para formar uma companhia de teatro e comer com maior regularidade. Naturalmente, um oficial criativo na G-Dois viu as possibilidades e inaugurou um novo programa de operações secretas.

— Por serem atores?

— Bem, de acordo com o general encarregado desse programa, eles estavam... estão também em grande forma física. Você sabe, todos esses filmes de Rambo de que participavam como figurantes. Os atores podem ser muito vaidosos com suas aparições.

— Mrs. Trueheart! — exclamou o Secretário de Estado. — Quer fazer o favor de me dizer aonde nos leva esta conversa?

— A uma solução, Warren. Falarei apenas em termos abstratos, por isso há total negabilidade, mas tenho certeza de que seu intelecto afiado e preparado compreenderá.

— Essas são as primeiras palavras que, para mim, fazem sentido.

— Os Seis Suicidas são capazes de representar qualquer pessoa e qualquer coisa. São mestres em disfarce e dialetos e podem conseguir a penetração impossível.

— Isso é uma loucura. Eles estariam entrando em nós mesmos!

— Bem visto. Isso nos daria uma visão invejável.

— Espere um minuto — Pease deu uma volta na cadeira e parou com o olhar fixo nas bandeiras cruzadas dos Estados Unidos e do Departamento de Estado, vendo, em sua imaginação, um retrato de Geronimo em uniforme de general, entre as duas bandeiras. — É isso mesmo! — gritou ele. — Sem acusações, sem CPIs — é perfeito!

— O que é perfeito, Warren?

— Os atores.

— Claro.

— Os atores podem ser quem quiserem... conseguem convencer outras pessoas do que na realidade não são, não é verdade?

— É verdade. Foram treinados para isso.

— Nada de assassinatos, acusações ou malditos interrogatórios na Colina.

— Bem, eu não iria tão longe sem comprar alguns senadores, o que seria possível graças a nossos fundos de emergência...

— Estou vendo agora — interrompeu Pease, virando-se para a frente, os olhos arregalados de excitação. — Eles desembarcam no Aeroporto Kennedy, com faixas vermelhas, talvez barbas e chapéus de feltro... uma delegação.

— Uma o quê?

— Da Suécia! Uma delegação do comitê Nobel. Estudaram a história militar do século XX e vieram procurar o General MacKenzie Hawkins para lhe concederem o Prêmio Nobel da Paz, por ser o maior soldado do nosso tempo!

— Talvez eu devesse chamar um médico, Warren.

— De maneira nenhuma, Sra. Trueheart, você me deu a solução! O ego desse maluco é maior do que o Everest!

— O ego de quem?

— Do Cabeça de Trovão.

— Quem?

— MacKenzie Hawkins! Ganhou a Medalha de Honra do Congresso duas vezes.

— Acho que devíamos rezar em silêncio ao Deus Todo-Poderoso, por ter feito dele um americano e não um comunista...

— Besteira! — explodiu o Secretário de Estado. — É o idiota do milênio. Vem correndo de onde estiver para receber o prêmio... Depois é a Suécia, aponta para o norte, sempre na direção norte! Um avião perdido... Lapônia, Sibéria, a tundra, o que importa?

— Apesar da sua maneira obscena de falar, quando você diz norte, os seus olhos têm o brilho da verdade luminosa, a nossa verdade... O que eu posso fazer, Sr. Secretário?

— Para começar, descubra a forma de entrar em contato com o oficial responsável por esses atores e depois mande preparar meu avião, para me levar a Fort Benning... Perfeito!

Os dois carros alugados seguiram velozmente para o sul, pela 93 rumo a Boston, com Paddy Lafferty dirigindo o primeiro e sua mulher, o segundo, uns dois quilômetros atrás. Aaron Pinkus ia na frente, ao lado de seu motorista, enquanto Sam Devereaux, a mãe e Jennifer Redwing iam no banco traseiro, a advogada índia entre a mãe e o filho. O segundo veículo transportava o general MacKenzie Hawkins ao lado de Mrs. Lafferty, enquanto os Desis Um e Dois iam atrás, jogando baralho.

— Agora vai me ouvir com atenção, menina! — disse a gorducha Erin Lafferty, de finas feições célticas, ao telefone do carro. — Quero que o grandão coma uma tigela cheia de aveia com leite verdadeiro, não aquela aguinha que o avô bebe, e duas fatias de pão com ovo e fritas... dois ovos, entende?... Está bem, garota, ligo mais tarde.

— São seus filhos? — perguntou o Hawk um tanto desastradamente, quando Mrs. Lafferty desligou.

— Tem miolos nessa cabeça, homem? Acha que eu tenho cara de mulher com filhos pequenos?

— É que não pude deixar de ouvir a conversa...

— É a mais nova, Bridget, que está tomando conta dos filhos do meu mais velho, o segundo mais velho, enquanto os pais estão num cruzeiro... imagine, um cruzeiro...

— Seu marido foi contra?

— Como poderia? Dennis é um grande contador, com todas aquelas letrinhas depois do nome. É ele que cuida de nossos impostos.

— Entendo.

— Pois olhe, nunca tenha filhos mais inteligentes do que você. É um verdadeiro inferno. — O telefone tocou e Mrs. Lafferty atendeu. — O que há, Bridget? Não consegue encontrar a geladeira, garota?... Ah, é você, Paddy querido? — Erin Lafferty estendeu o telefone para Hawkins. — Mr. Pinkus quer lhe falar, General.

— Muito obrigado... Comandante?

— Não, ainda é Paddy, grande General. Passo já a chamada ao patrão, mas antes queria dizer para não prestar atenção a minha mulher. É uma boa garota, mas nunca esteve num verdadeiro combate, se é que entende o que quero dizer.

— Compreendo, artilheiro. Mas se eu fosse você, verificaria se o “grandão” está comendo sua aveia com leite verdadeiro.

— Ah, ela falou de novo do café da manhã, hein? As avós podem significar o fim da boa vida, General... Aqui está Mr. Pinkus.

— General?

— Comandante? Quais são as coordenadas do mapa?

— O quê?... Ah, sim, para onde estamos indo. Sim, bem, acabei de conseguir estadia para nós na casa de verão do meu cunhado, em Swampscott. Fica na praia e é muito agradável. Como ele e a irmã de Shirley estão na Europa, a casa está completamente disponível.

— Ótimo, Comandante Pinkus. Um acampamento confortável, em boas condições de combate, é muito bom para o moral da tropa. Tem o endereço? Vou ter que comunicar a Little Joseph, que está em Boston, pois nosso pessoal de apoio não deve demorar.

— É conhecida como a antiga propriedade Worthington na Beach Road, cujo dono atual é Sidney Birnbaum. Não estou certo de que tenha um número, mas a muro da frente é todo pintado de azul-real, o que atraiu muito a irmã da Shirley.

— Já chega, Comandante. Com certeza nosso pessoal de apoio saberá encontrar a casa. Mais alguma coisa?

— Diga à mulher de Paddy para onde estamos indo. Se nos separarmos por causa do trânsito, ela saberá o caminho.

O Hawk transmitiu a informação a Erin Lafferty, que exclamou:

— Deus seja louvado! Vou avisar os rapazes kosher e deixe-me dizer uma coisa, General, eles sabem realmente onde encontrar a melhor carne e os legumes mais frescos!

— Presumo que já esteve lá.

— Se já estive lá! Não diga nada ao pároco da minha igreja, mas o grande Sidney e sua querida mulher, Sarah, me pediram que fosse madrinha de seu menino, Joshua... à maneira judaica, entende? Josh é como se fosse meu filho, Paddy e eu estamos sempre rezando para que ele e Bridget se deem bem, compreende?

— O padre da sua paróquia...

— O que ele sabe? Bebe todos esses vinhos franceses e nos aborrece de morte com seus bouquets. Um perdedor.

— O verdadeiro, o bom caldo de cultura — disse o Hawk, falando em voz baixa. — Já pensou em se candidatar a Papa? — acrescentou ele, rindo. — Uma vez conheci um que pensava como a senhora.

— Essa é boa! Uma irlandesa burra como eu pensando como o Papa?

— “Os humildes herdarão a terra”, pois sobre seus ombros repousa a moralidade de toda a humanidade.

— Ei, está tentando me cantar? É que se estiver, meu Paddy é capaz de quebrá-lo em dois!

— Eu nem sonharia com uma coisa dessas, cara lady — retorquiu o Hawk, examinando o perfil de Erin Lafferty. — E tenho certeza de que ele me quebraria mesmo em dois — acrescentou o soldado, que era comprovadamente o oficial mais eficiente no combate manual que já servira no Exército. — Ele me demoliria, claro.

— Bem, ele está fazendo progresso, mas meu rapaz ainda tem muita garra.

— Ele tem você e isso é muito mais importante.

— Mas o que pretende? Sou uma senhora de idade, pelo amor de Deus!

— E eu sou também um homem de idade e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Só estou dizendo que é um privilégio conhecê-la.

— Você me confunde, soldado!

Erin Lafferty pisou fundo no acelerador e seguiu em frente a toda a velocidade.

Wolfgang Hitluh, nascido Billy-Bob Bayou, atravessou o portão e seguiu os sinais do amplo corredor que ia dar à área de desembarque de bagagem do aeroporto Logan. Correspondendo a uma terça parte da bem paga unidade de segurança recrutada confidencialmente pela Manpower Plus Plus, ele deveria encontrar os seus dois Kameraden no estacionamento coberto em frente à estação de táxis. Como identificação, levava um Wall Street Journal dobrado, com vários artigos claramente marcados com círculos vermelhos, embora ele tivesse obstinadamente pedido que fosse um exemplar de Mein Kampf.

Se não estivesse precisando tanto de um emprego, teria recusado a oferta por questão de princípio. O Journal era um símbolo bem conhecido das democracias decadentes e ávidas de dinheiro e deveria ser queimado juntamente com noventa por cento de todos os jornais e revistas do país, a começar pelos detestáveis Amsterdam News e Ebony, publicados no e para o Harlem, um fervilhante antro de arruaceiros negros de segunda, da mesma forma que Wall Street era um traiçoeiro campo armado do dinheiro judeu! Infelizmente, porém, Wolfgang precisava mesmo desse emprego, já que os seus cheques do subsídio de desemprego tinham sido suspensos — por um desconfiado funcionário preto do Fundo de Desemprego! — e, por isso, ele pusera de lado os seus princípios e aceitara o adiantamento de duzentos dólares e um bilhete de avião.

Tudo o que sabia era que ele e dois dos seus Kameraden iam proteger um grupo de sete pessoas que estavam escondidas, sendo três delas militares. Isto significava que haveria seis mercenários a tomar conta de quatro civis... um doce de coco, ou melhor, um pedaço de Strudel, coisa que ele passou a adorar nos dois meses em que esteve em glorioso treino com seu Meister do Quarto Reich, nas montanhas bávaras. Wolfgang Hitluh, com o Journal numa das mãos e uma mala na outra, desviou-se do trânsito e atravessou as duas faixas descobertas que davam para o estacionamento. Ele não podia ser visto, pensou, caminhando sob o sol de fim de tarde para a enorme garagem. De acordo com a Manpower Plus Plus, era tudo tão secreto que ele não poderia deixar escapar uma só palavra, nem mesmo para o Führer, se estivesse vivo... o que era sempre uma possibilidade, natürlich! A missão consistia, obviamente, na proteção de altos funcionários, tão importantes que o Governo não podia confiar nos tipos fracos e não-arianos que se tinham infiltrado nos Serviços Secretos... “Onde estavam seus Kameraden?“, perguntou a si mesmo.

— Você é Wolfie? — perguntou um negro enorme, emergindo da sombra de um pilar redondo de cimento e aproximando-se de Hitluh.

— O quê?... Quem? O que você disse?

— Você ouviu bem, baixinho. Você tem o jornal e nós vimos a tinta vermelha quando atravessou aquelas duas faixas que dão acesso ao estacionamento — o gigante negro estendeu a mão e sorriu. — Prazer em conhecê-lo, Wolf1... é um nome dos diabos!

— Sim, bem... Acho que é — o nazista aceitou a mão do outro como se o contato fosse contagiá-lo para o resto da vida.

— Parece que isso vai ser bom, irmão.

— Irmão?

— Aqui atrás de mim — continuou o enorme homem, apontando para trás — deixe-me apresentá-lo ao nosso parceiro e não se deixe enganar pela sua aparência. Depois de nos termos separado, ele ansiava por vestir de novo a sua roupa habitual. Vou-lhe dizer uma coisa, Wolfie, você não iria acreditar no modo como falam essas cartomantes velhas e os doidos dos seus maridos bigodaças!

— Cartomantes...?

— Vá, Roman, saia daí e venha conhecer o Wolfie!

Um segundo vulto saiu da sombra do pilar, um homem musculoso de camisa laranja, folgada, com uma larga faixa azul na cintura, por cima de umas calças pretas justas como luvas, com pequenos caracóis de cabelo negro caindo na testa; usava também um brinco de ouro numa das orelhas. “Um cigano!”, pensou Wolfgang. “A escória dos moldavos, piores do que judeus e negros! Deutschland Über Alles, um cigano!”

— Hallo, Senhorrr Wolfowitz! — exclamou o homem do brinco, estendendo a mão, com uns dentes tão brancos que até ofuscavam, por baixo de um bigode preto, a antítese da visão que Wolfgang tinha de um Kamerad. — Posso dizer, pelo formato dos seus olhos, que você terá uma vida muito longa, com grandes lucros financeiros! Não exijo dinheiro por esta informação preciosa... nós trabalhamos juntos, não é?

— Oh, grande Führer — cochichou Hitluh com os seus botões, ao mesmo tempo em que apertava a mão do outro — onde estás?

— O que foi, Wolfie? — quis saber o negro enorme, pousando a mão imensa e forte sobre o ombro de Wolfgang.

— Nada, nada!... Tem certeza de que não há nenhum erro? Vocês são mesmo da Manpower Plus Plus?

— De nenhum outro lugar, irmão, e pelo que Roman e eu podemos imaginar, isso vai ser como comprar pão na padaria. A propósito, meu nome é Cyrus, Cyrus M. O nome do meu companheiro é Roman Z e você é Wolfie H. Naturalmente que nunca perguntamos o que significam as letras dos nossos nomes... o que não faria, realmente, qualquer diferença, já que elas são tão diferentes, não é verdade?

— Jawohl — Wolfgang acenou afirmativamente com a cabeça e depois empalideceu. — Tem toda razão... Bruder...

— O quê?

— Irmão — traduziu apologeticamente Hitluh, no mesmo instante. — Irmão, eu quis dizer irmão!

— Não é preciso ficar nervoso, Wolfie, eu compreendi. Também falo alemão.

— Fala?

— Que diabo, claro que sim. Por que acha que estive na prisão?

— Porque fala alemão...

— Mais ou menos isso, baixinho — disse o gigante de pele escura. — Sabe, sou químico do Governo e fui emprestado a Bonn, para trabalhar numa fábrica em Stuttgart e colaborar no projeto de um fertilizante, só que não era.

— Não era o quê?

— Fertilizante... oh, não passava de gás, um gás muito pouco saudável. A caminho do Oriente Médio.

— Mein Gott! Talvez houvesse razões...?

— Claro que havia. O dinheiro e o desperdício de muitas pessoas que os patrões consideravam não muito importantes. Houve uma noite em que três deles me encontraram analisando os ingredientes finais. Me chamaram de Schwarzer e avançaram para mim, sacando as armas... Foi isso mesmo.

— Foi isso o quê?

— Atirei os três boches dentro dos barris, o que significa que eles não poderiam aparecer no Tribunal para contestar minha alegação de autodefesa... Assim, no interesse das relações diplomáticas, passei cinco anos na prisão aqui, para não passar cinquenta lá. Pensei que faltavam três meses, de modo que Roman e eu fugimos ontem à noite.

— Mas nós fomos contratados como mercenários, não como químicos!

— Um homem pode ser muitas coisas, baixinho. Para pagar meus estudos em duas universidades durante sete anos, tinha que tirar uns meses de folga de vez em quando. Angola... dos dois lados, aliás, Omã, Karachi, Kuala Lumpur. Não serei um desapontamento para você, Wolfie.

— Senhorrr Wolfowitz — interrompeu Roman Z., esticando o peito coberto de tecido laranja e colocando os pés como se fosse executar a dança de algum dervixe cigano. — Encontra-se diante do maior de todos os homens com a faca, uma faca silenciosa que nunca esperaria encontrar!... Corta, corta, parada, a fundo! — As palavras foram acompanhadas por gestos selvagens e movimentos giratórios rápidos, ao mesmo tempo que a faixa azul chicoteava o ar e a camisa laranja ficava mais enfunada. — Pergunte a qualquer pessoa nas montanhas da Servo-Croácia!

— Mas você esteve na prisão aqui...

— Passei algumas centenas de cheques frios, o que posso dizer? — contou Roman Z, em voz desconsolada e mãos estendidas numa súplica. — A gente emigra, sejam quais forem os métodos usados e chega a uma terra estrangeira, onde ninguém nos compreende.

— Pronto, Wolfie — disse Cyrus M, com evidente determinação na voz. — Agora você sabe tudo a nosso respeito, e quanto a você?

— Bem, companheiros, sou o que algumas pessoas chamam de investigador subterrâneo, um daqueles investigadores procurados pela polícia...

— E também é sulista... um rapaz sulista que fala alemão — interrompeu Cyrus. — É uma combinação estranha, não?

— Você percebeu que sou do sul?

— Isso se revela claramente quando você fica numa espécie de excitação, Wolfie. Por que está tão excitado, baixinho?

— Não, Cyrus. Estou apenas ansioso para começar com essa história!

— Vamos começar agora mesmo, pode apostar seu rabo. Apenas gostaríamos de saber um pouco mais sobre o nosso parceiro. E que pode acontecer que nós tenhamos de colocar as nossas vidas nas suas mãos, você entende isso, Wolfie, não entende?... Agora, como um bom rapaz como você aprendeu alemão? Isso fez parte da tal investigação subterrânea de que falou?

— Isso mesmo! — respondeu Wolfgang, com um sorriso simplório e petrificado colado aos lábios. — Veja, fui treinado para me infiltrar em todas as cidades alemãs, tais como Berlim e Munique, para procurar comunistas sujos, mas sabe o que descobri?

— O que descobriu, mein Kleiner?

— Descobri que o nosso Governo chorão olha para o outro lado e não se rala minimamente!

— Está se referindo a todos esses filhos da mãe comunistas que costumam andar em volta da Porta de Brandenburgo e passear na Unter den Linden?

— Isso mesmo.

— Sie sprechen nicht sehr gut Deutsch.

— Bem, não aprendi assim tanto para poder entender um alemão falado tão depressa, Cyrus, mas deu para pegar o sentido.

— Claro, eu sei como é. Só umas palavras e umas frases-chave...

Sem qualquer aviso, o enorme negro ergueu o braço em ângulo oblíquo.

— Heil Hitler!

— Sieg Heil! — berrou Wolfgang, tão alto que muitos passageiros recém-chegados ao Aeroporto de Logan viraram as cabeças, olharam espantados e imediatamente se afastaram da cena.

— A parte pior da cidade, Wolfie, a Porta de Brandenburgo, ficava do outro lado do Muro, antes de ter sido derrubado. Eles eram todos comunas — Cyrus M. puxou, de repente, o atônito Hitluh para a sombra do pilar e, com um soco, fez o neonazista perder a consciência.

— Por que diabos você fez isso? — exclamou o cigano, confuso, seguindo o colega de prisão para a área obscurecida.

— Posso sentir o cheiro desses filhos da mãe a quilômetros de distância — retorquiu o enorme químico negro, encostando a figura imobilizada de Wolfgang na pedra e arrancando a bolsa do nazista de sua mão direita. — Abra e jogue tudo no chão.

Roman Z. obedeceu e a capa vermelho-sangue de Mein Kampf destacou-se como um diadema de rubis.

— Este não é boa peça — disse o cigano, abaixando-se e apanhando o livro. — O que fazemos agora, Cyrus?

— Ouvi ontem no rádio uma notícia sobre a minha cela que me chamou a atenção. E acredita que isso aconteceu aqui mesmo em Boston?

 

THE BOSTON GLOBE

NAZISTA AMERICANO ENCONTRADO NU NA ENTRADA DA CENTRAL DE POLÍCIA

Exemplar de Mein Kampf preso ao peito


Boston, ago. 26 — O corpo contorcido de um homem nu com uma larga fita adesiva cobrindo a boca e o peito, sobre o qual havia um exemplar de Mein Kampf, de Adolf Hitler, foi largado por dois homens nos degraus da escada da Central de Polícia da Rua Cambridge, às 8h10 da noite de ontem, fato que parece confirmar um grotesco padrão de atividades criminosas nudistas. Sete testemunhas que se encontravam nas redondezas a essa hora e que se recusaram a identificar-se disseram que um táxi parou na calçada e dois homens, um deles vestido de forma exuberante e o outro um negro enorme, transportaram o corpo até a escada, regressaram ao táxi e desapareceram em grande velocidade. A vítima foi identificada como Wolfgang A. Hitluh, um nazista americano procurado pela polícia, registrado com o nome de Billy-Bob Bayou, em Serendipity Parish, Louisiana, presumindo-se que seja violento. As autoridades estão atônitas e confusas, pois o sr. Hitluh, como os quatro homens nus encontrados no telhado do hotel Ritz-Carlton dois dias atrás, alega imunidade do Governo, dizendo que estava a cumprir a sua tarefa numa missão altamente secreta. O funcionário do FBI encarregado do setor de informações, ao negar qualquer envolvimento daquele órgão, fez o seguinte comentário: “Não permitimos aos nossos agentes que tirem as suas roupas em quaisquer circunstâncias, de preferência, nem sequer as suas gravatas”. Um porta-voz da CIA, negando também qualquer conhecimento das atividades do sr. Hitluh, expediu a seguinte declaração: “Como todos sabem muito bem, a Carta de 1947 proíbe a Agência de atuar em território nacional. Nos poucos casos em que os nossos serviços são requeridos pelas autoridades nacionais, eles só podem ser cedidos por decisão do diretor e sob a supervisão do Congresso. Se o falecido patriota Vincent Mangecavallo foi o responsável pelo ocorrido, não há qualquer indicação em nossos arquivos. Assim sendo, perguntas devem ser dirigidas àqueles (dois adjetivos cortados) no Congresso.”

 


THE BOSTON GLOBE


(Página 72, Publicidade)


Ago. 26 — Um táxi pertencente a Abul Shirak, da Center Avenue 3024, foi furtado por um breve período de tempo ontem à noite, enquanto o seu dono tomava café no restaurante Liberation. Abul Shirak comunicou o furto à polícia; depois, às 8h35 da noite, entrou em contato novamente com os policiais, para contar que o veículo tinha sido devolvido. Quando interrogado pela polícia, Shirak disse que apenas se lembrava de se ter sentado ao lado de um homem com uma camisa de seda laranja e que usava um brinco de ouro, que travou com ele uma conversa muito animada, após o que Shirak descobriu que as chaves do seu carro tinham desaparecido. Não se espera que as investigações prossigam, já que o Sr. Shirak afirmou ter sido pago.

 


— Quero que você me dê uma resposta, seu cannoli inglês bem falante! — berrou Vinnie Bam-Bam, de peruca vermelha, numa cabine telefônica na Collins Avenue em Miami Beach, Flórida. — Que porra é que aconteceu?

— Vincenzo, não fui eu que escolhi o maluco, foi você — disse a voz de Smythington-Fontini de sua suíte no Carlyle Hotel de Nova York. — Você se lembra, eu o adverti.

— Ele nunca teve oportunidade de fazer coisa alguma! Esses brutamontes podem ser programados para colocar seu rabo nu no buraco de um rato, mas ele entrou em curto-circuito antes de conseguir encontrar o próprio rabo!

— O que esperava de um negro e de um cigano colaborando com um nazista fanático? Creio que já falei disso.

— Você também disse que esses palhaços só ligavam para dinheiro, não foi?

— Nesse ponto, preciso corrigir um pouco minha opinião. Por outro lado, devo dar-lhe a boa notícia. Nossas duas primeiras escolhas estabeleceram contato com o general e estão neste momento num novo local, tendo assumido seus postos.

— Como você sabe?

— A Manpower Plus telefonou informando. O operacional Cyrus M. ligou para eles de um lugar chamado Swampscott e disse-lhes que estava tudo sob controle. Disse também que não tinha interesse em que o general o promovesse a coronel. Está satisfeito agora, Vincenzo?

— Puta que o pariu, não! Você leu o que esses filhos da mãe da Agência disseram de mim? Que eu podia ter feito todas essas combinações sem dizer nada a ninguém. Que história é essa?

— Isso não é novidade, Vincenzo. Não há nada melhor do que um homem morto para se poder deitar as culpas em cima... se é que há alguma culpa nessa história. E mesmo que você se erga de entre os mortos numa das ilhas mais afastadas do arquipélago das Dry Tortugas, algumas coisas não terão mudado. Foi você.

— Por seu intermédio!

— Sou invisível... Bam-Bam. Daqui por diante, se estiver interessado em deixar as Tortugas, trabalhe só para mim, capisce? Sente-se, Vincenzo, não fique em pé.

— Não acredito nisso!

— Por que não? Você mesmo disse. Sou filho da minha mãe... Execute o que tem que fazer em Wall Street, meu amigo. Vou obter um megalucro e você vai... bem, decidiremos isso mais tarde.

— Mamma mia!

— Bem lembrado, meu velho.

 

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1 Lobo.


19

A enorme sala de estar da casa de verão dos Birnbaum dava ; para a praia, através de uma série de portas de correr que a separavam de uma grande varanda de pau-brasil que tinha a extensão do prédio. O dia raiava e o céu estava encoberto, o mar lá embaixo mostrava-se revolto, agitando-se numa rebelião aquática, com as ondas curtas e intensas a rebentar na areia com raiva, recuando .relutantemente mas com promessa de regresso.

— Vai ser um dia horrível, não vai? — disse Sam Devereaux, saindo da cozinha com uma caneca de café.

— Não parece muito promissor — retorquiu o negro gigante que na noite anterior se apresentara a todos como Cyrus M.

— Passou a noite inteira acordado?

— Já é hábito. Conheço Roman Z, mas não os dois hispânicos, Desis Um e Dois... afinal de contas, o que são esses apelidos?

— O que é Cyrus M?

— Na realidade, é Cyril e o M está lá por causa da minha mãe, que me ensinou a maneira de conseguir sair de uma terrinha atrasada no delta do Mississippi. Os livros tiveram a sua contribuição, mas asseguro que a ênfase foi a determinação.

— Acho que você podia ter jogado na NFL.

— Ou segurando um bastão de basebol, ou praticado boxe, ou sido o Behemot Negro na luta livre?... Deixe disso, advogado, a menos que seja o melhor vai acabar cheio de contusões, com a metade do cérebro e sem lugar para ir. Garanto que eu não teria sido o melhor. A alma não estava nisso.

— Você fala como um homem que estudou.

— Eu estudei.

— É tudo o que tem a dizer.

— Veja se entende isso, advogado. Sou contratado para protegê-los, não para contar a história da minha vida — disse Cyrus, amavelmente.

— Está bem. Desculpe... Qual é a sua análise da situação atual, já que é para isso que estamos pagando?

— Já fiz o reconhecimento do terreno de todos os pontos, da praia até as dunas na direção da estrada. Estamos numa posição vulnerável, mas ao meio-dia já não estaremos.

— O que quer dizer?

— Liguei para minha empresa, a empresa que me contrata, e disse para mandarem seis máquinas de disparar arame, que trabalham com pilhas de lítio e antenas na altura da cintura... elas se misturam com a mata e cobrirão a costa.

— Que diabo é isso?

— Qualquer objeto que se mova com densidade aproximada de vinte e cinco quilos e atravesse a linha delimitada pelo arame fará detonar um alarme que vai poder ser ouvido pelo menos a oito quilômetros de distância.

— Você conhece seu ofício, Cyrus M.

— Espero que conheça o seu — resmungou o guarda, levando os binóculos aos olhos e esquadrinhando o areal.

— Que observação estranha.

— Acho que quis dizer impertinente — o sorriso de Cyrus pôde ser visto por baixo dos binóculos.

— Sim, suponho que se pode dizer isso, mas continua uma observação estranha. Não se importa de explicar?

— Provavelmente sou mais velho do que pensa, sr. D., e tenho excelente memória — Cyrus ajustou o foco dos binóculos e continuou serenamente, num tom casual. — Quando omos apresentados ontem à noite — usando nossos noms de guerre, claro — e recebemos as instruções do General, minha mente viajou para trás alguns anos... Tendo passado algum tempo no Extremo Oriente, as reportagens dos jornais sobre essa parte do mundo normalmente atraem minha atenção... Seu general é o mesmo que foi expulso da China por profanar um monumento nacional em Pequim, não é? Na realidade, lembro inclusive do nome — General MacKenzie Hawkins —, que se ajusta perfeitamente a “comandante H”, mas como sempre o tratam de “general”, o posto é óbvio... É ele, o mesmo general que deixou Washington com diarreia devido a seu julgamento na China.

— Não reconheço uma só ponta de verdade na sua ridícula conjectura, por isso pergunto, onde é que quer chegar?

— Bom, tem a ver com a forma como fui recrutado para este trabalho — Cyrus fez girar os binóculos lentamente, para trás e para a frente, com a cabeça e os ombros imensos a moverem-se , como o torso animado de uma estátua impressionante e não menos ameaçadora, atendendo às suas linhas esculpidas. — Veja o senhor, tenho trabalhado para este grupo, de forma intermitente, há um bom número de anos, muito mais nos primeiros tempos, para ser franco, mas o fato é que conheço o grupo e sei que as regras não mudam. Em qualquer missão normal, dão-nos um resumo da situação, conciso mas profundo...

— O que isso significa, exatamente? — quis saber Sam.

— Nomes, origens, rápidas pinceladas verbais descrevendo a natureza do trabalho...

— Por quê? — interrompeu Devereaux.

— Ei, advogado — disse Cyrus em voz baixa, baixando os binóculos e encarando Sam. — Agora está mesmo no papel de advogado, não está?

— Já que, obviamente, sabe que sou advogado, o que estava esperando?... A propósito, como descobriu?

— Os advogados são todos iguais — retorquiu o guarda, dando uma gargalhada. — Não esconderiam o que são nem que fossem mudos... fariam com que as mãos saltassem dos pulsos para discutir em mímica.

— Ouviu o que eu disse?

— Ouvi os três — o velho, a senhora de pele bronzeada que não precisa do sol para ficar assim e você. Se bem se lembra, o General ordenou-me que fizesse uma ronda pela casa por algumas horas, verificando cada local de entrada. Os três ficaram acordados depois que sua mãe — pelo menos, acho que é sua mãe — e o “Comandante H” — que, na realidade, poderia ser Preparação H — terem ido para a cama. Digamos que eu me envolvi com a lei algumas vezes na minha vida adulta, de modo que sei quando estou ouço advogados falando.

— Está bem — concedeu Devereaux. — Minha primeira pergunta foi: por que os senhores, meros guardas armados, recebem resumos da situação ao serem contratados para um trabalho?

— Porque não somos meros guardas, somos mercenários...

— São o quê? — gritou Sam.

— Soldados combatentes que podem ser contratados, e fale baixo.

— Oh, meu Deus! — lamentavelmente, com a prece mal dirigida, Devereaux entornou o café da caneca no colo, molhando a calça. — Jesus, está quente!

— Café bom geralmente está quente.

— Cale-se! — exclamou Sam, inclinando-se e puxando a calça inutilmente. — Mercenários?

— Ouviu bem e isso responde à primeira pergunta, ou seja, por que recebemos uma descrição da missão. Eu diria... A sabedoria convencional diz que mercenários aceitam qualquer missão pelo dólar todo-poderoso, mas não é verdade. Já oscilei entre dois lados quando isso não tinha importância, mas não quando tem relevância. Pura e simplesmente não aceito o trabalho... E também não aceito se não me sinto à vontade com os outros, motivo pelo qual não se encontra aqui o terceiro “guarda”.

— Era para estar aqui mais alguém?

— Ele não está aqui, de forma que não adianta falar nisso.

— OK, OK! — Devereaux endireitou-se e continuou, com toda a dignidade que conseguiu aparentar. — O que me leva à segunda pergunta, o que era... qual era?

— Não a chegou a formular, advogado, deixei em aberto.

— Esclareça, por favor.

— Por que não nos deram um resumo completo desta missão?... Com base na minha longa experiência, tentarei dar-lhe uma resposta razoável.

— Por favor, tente.

— Disseram-nos que vocês seriam sete, três militares, e este segundo fato se destinava a dourar o trabalho. Nenhum fato, nenhuma descrição de potenciais inimigos, fragmento de política, no sentido mais amplo, como a discussão da legalidade ou não de uma causa... essencialmente nada, a não ser números, que podem não ter significado. Isso lhe diz alguma coisa?

— O óbvio — replicou Sam. — As circunstâncias da missão, como você a denomina, devem continuar secretas.

— Isso é conversa de governo, aí é aceitável, mas não de merc...

— Merc...?

— Linguagem de mercenário. Aceitamos riscos por muitos dólares, mas não temos obrigação de operar no escuro. Isso é para funcionários de carreira dos serviços de informações, que se embrenham camuflados no Camboja ou em Tanganica e se dão por felizes se suas famílias receberem pensão completa se não voltarem para casa. Está entendendo a diferença?

— Até agora não foi muito difícil de entender, mas não sei aonde quer chegar.

— Vou explicar. As páginas que faltam neste argumento significam duas possibilidades. A primeira é uma intervenção do governo não aprovada, o que significa que ninguém pode saber nada, pois quem souber, funcionário governamental ou não, pode acabar em Leavenworth, Kansas, ou no fundo de um esgoto... e a segunda possibilidade é ainda menos promissora.

— Mas diga qual é, está bem? — disse Devereaux, com os olhos ansiosos estudando o rosto impassível de Cyrus M.

— Um golpe, advogado.

— Golpe...?

— Sim, mas não do tipo amável, destinado a pegar uma armadilha um vigarista ou mesmo um corrupto, e sim um golpe muito mais letal... Há um termo apropriado; chamam de “golpe permanente”.

— Permanente?

— Sem recuperação.

— Você quer dizer...

— Dum-dum-tee-dum, dum-tee-dum-tee-dum-tee-dum — cantarolou o enorme mercenário.

— O quê? — berrou Sam.

— Fale baixo!... Estou tentando explicar a segunda possibilidade. Constrói-se uma muralha de proteção para disfarçar a verdadeira intenção. Execução.

— Meu Deus!... Mas por que está me contando isso?

— Porque posso fazer com que Roman Z e eu sejamos afastados da missão.

— Por quê?

— Não gostei do terceiro mercenário que mandaram; além disso, sabendo agora quem é o Comandante H, vejo que há mesmo alguém atrás do General e, provavelmente, de todos vocês, já que estão no mesmo barco. Podem ser lunáticos, mas pelo que posso ver, não merecem isso, especialmente a garota, e não quero tomar parte nessa história... Monto as armadilhas com as pilhas de lítio, se é que vão chegar aqui algum dia, e depois pensaremos no assunto.

— Meu Deus, Cyrus...!

— Pensei ter ouvido vozes e também alguns gritos — disse Jennifer Redwing, entrando na sala pela porta que dava acesso à cozinha, com uma xícara de chá. — Sam Devereaux! — gritou ela, com os olhos fixos na calça do advogado. — Você fez isso outra vez!


Os seis homens tinham idades entre os vinte e seis e os trinta e cinco anos, alguns com mais cabelo, outros com menos, uns mais altos e outros mais baixos, mas havia três constantes que se aplicavam a todos. Cada rosto tinha uma “aparência” distinta, fossem as feições largas ou não, com olhos penetrantes ou neutros, o rosto em si tinha uma aparência de urgência, de... enfrentemos a coisa, de teatralidade. E cada corpo era um corpo treinado pelos muitos anos a estudar acrobacia, esgrima, dança (moderna e de music-hall), artes marciais (para contratação como duplos, de acordo com o sindicato, Screen Actors Guild, reações de surpresa tardia e quedas espalhafatosas (caraterísticas das comédias de segunda e das farsas) e movimento de trajes caraterísticos (de grande utilização em Shakespeare e nos autores gregos). Por último, cada par de cordas vocais era capaz da mais ampla extensão, juntamente com uma gama ainda mais ampla de dialetos (indispensáveis para a locução em anúncios publicitários). Tudo isso era essencial para seu ofício — não para a sua arte! — e naturalmente para seus currículos, que tinham caído, com a regularidade de um staccato, nas mesas de agentes e produtores que não ficaram muito impressionados. Eles eram atores, os seres humanos mais incompreendidos e extorquidos da face da Terra... sobretudo quando desempregados. Numa palavra, eram únicos.

A sua unidade também era única nos anais das operações secretas. Foi inicialmente formada por um idoso coronel da G-2 em Fort Benning, que era um viciado em filmes, televisão e teatro.

Tinha fama de cancelar sessões de treino noturno se elas interferissem com algum filme a que queria assistir em Pittsfield, Phoenix ou Columbus; dizia-se também que apanhava boleia de transportes da Força Aérea para ver certas peças em Nova York e Atlanta. Mas, por ser mais acessível, a televisão era o seu narcótico pessoal. A sua quarta esposa confirmou, no decurso do processo de divórcio, que muitas vezes ele passava a noite inteira diante do aparelho de TV e que, por vezes, assistia a dois ou três filmes de horário tardio ao mesmo tempo, o que conseguia através da mudança de canais por controle remoto. Por isso, quando seis atores verdadeiros, absolutamente genuínos, apareceram em Fort Benning, naturalmente que sua imaginação passou a funcionar a todo o vapor... alguns oficiais seus companheiros diriam que o velho amigo deixara a imaginação fugir do seu controle.

Ele acompanhou cada um deles durante o treino básico, maravilhando-se com a sua capacidade física, como com a propensão que tinham para chamar a atenção de uma multidão sobre si mesmos, mas sempre de uma forma positiva. Ficava assombrado com a forma como cada um deles, instintivamente, se misturava com tanta naturalidade com o seu ambiente mais próximo e com o ambiente mais estranho que o rodeava, num momento usando a linguagem das ruas com os recrutas urbanos, no momento seguinte usando a linguagem doméstica dos rapazes do campo.

O Coronel Ethelred Brokemichael — ex-Brigadeiro Brokemichael até o imbecil daquele advogado de Harvard do escritório do Inspetor Geral tê-lo erradamente acusado de tráfico de drogas no Sudeste Asiático! Drogas? Ele não sabia distinguir uma coca de uma cola! Facilitara o transporte de medicamentos e quando lhe ofereciam dinheiro, dava a maior parte dele a orfanatos, ficando com uma quantia pequena para futuros bilhetes de teatro. Mas com aqueles atores, sabia que tinha encontrado o seu caminho de regresso ao posto que tanto merecia. (Frequentemente se perguntava por que o primo Heseltine optara por renunciar, quando ele é que tinha sido severamente repreendido e humilhado, e não Heseltine, esse principiante chorão que queria sempre os uniformes mais janotas de alguma maldita opereta.) Fosse como fosse, ele encontrara! Um conceito totalmente original para operações clandestinas: uma unidade de atores treinados, profissionais, capazes, como camaleões, de alterar aparências e atitudes, de acordo com qualquer alvo que precisassem penetrar. Uma companhia de repertório, viva e atuante, composta por agents provocateurs! Uma companhia vitoriosa!

Assim, o humilhado Coronel Ethelred Brokemichael, recorrendo aos favores de conhecidos muito bem situados no Pentágono, teve o seu pequeno grupo de artistas colocado sob o seu comando exclusivo, com a missão de o aperfeiçoar da forma como melhor entendesse e de o mandar para o campo, quando os projetos secretos o exigissem. Pensara em chamá-los Equipe Z1 mas os atores, em uníssono, rejeitaram o nome. Recusaram-se a aceitar a última letra do alfabeto e como a primeira devia estar, sem dúvida alguma, ligada a algum direito de autor2, insistiram num outro nome, pois, se algum dia surgisse uma série de televisão, queriam o controle do elenco, argumentos e direitos conexos e subsidiários, por esta ordem.

O nome surgiu com sua terceira infiltração em nove meses, quando penetraram num bando famoso das Brigadas Vermelhas em Colonna, Itália, e libertaram um diplomata americano refém. Tinham conseguido isso com a publicação de um anúncio nos jornais, no qual afirmaram que eram os melhores comunistas fornecedores de refeições da cidade. Foram então contratados pelas Brigadas para fornecer a comida para uma festa de aniversário do seu violento chefe terrorista, no esconderijo que era sede do comando.

O resto, como diz o clichê, foi zuppa dianitra, sopa de pato, algo tão fácil como “canja de galinha”. No entanto, no mundo das operações clandestinas, a lenda tinha nascido. Os Seis Suicidas eram uma força que precisava ser levada a sério.

Operações subsequentes em Beirute, Gaza, Osaka, Singapura e Basking Ridge, New Jersey, só serviram para aumentar a reputação da unidade. Conseguiram infiltrar-se e sequestrar alguns dos mais selvagens criminosos do mundo, de vendedores de drogas e armas a assassinos contratados e grandes agentes imobiliários e, em todas essas missões arriscadas, jamais sofreram baixa.

Também nunca tinham disparado uma arma, ou desembainhado um punhal, ou lançado uma granada. Contudo, só um homem tinha conhecimento disso, um militar reintegrado no posto de Brigadeiro: Ethelred Brokemichael. Que desgraça! Os famosos Seis Suicidas, o suposto padrão de todos os esquadrões da morte, jamais liquidaram um só inimigo... limitavam-se a falar entre o início e o fim de todas as missões potencialmente fatais que lhes foram atribuídas. Absolutamente humilhante!

Quando o Secretário de Estado Warren Pease chegou a Fort Benning e seguiu num jipe de dois lugares até o ponto mais distante dos noventa e oito mil acres que constituíam a reserva do Exército, para dar as suas instruções ultrassecretas a Brokemichael, este viu luz ao fundo do seu túnel pessoal, a sua própria vingança pessoal! A conversa desenrolou-se como se segue:

— Já esclareci tudo com o nosso pessoal na Suécia — disse Pease. — Vai ser dito ao comitê do prêmio Nobel que é uma crise nacional e, afinal de contas, quanto arenque é que vamos ter de importar? Nessa altura, os seus rapazes apanham um avião em Washington, não em Estocolmo, tendo supostamente falado com o Presidente, e o presidente da Câmara de Boston recebe-os no aeroporto com uma conferência de imprensa, limusines e batedores de motocicleta, toda a enchilada.

— Por que Boston?

— Porque é a Atenas da América, a sede da sabedoria, o lugar de onde uma delegação dessas deve falar.

— Por acaso também é o lugar onde Hawkins está?

— Achamos que é possível — interrompeu o Secretário de Estado. — O que é certo, porém, é que ele não pode fugir desse prêmio.

— Pelo amor de Deus, o Hawk faria explodir um acampamento vietcong em Hanói e atravessaria o Pacífico a nado para conseguir um prêmio Nobel! Meu Deus, o Soldado do Século! O velho Georgie Patton vai mandar relâmpagos lá de cima.

— E assim que ele aparecer, seus rapazes pegam e lá vamos nós atravessar o Atlântico rumo ao norte, ao extremo norte. Ele e todos os filhos da mãe antipatrióticos que trabalham com ele.

— Quem podem ser? — perguntou o general Brokemichael, apenas levemente interessado.

— Bem, o primeiro é um advogado de Boston, o que defendeu Hawkins em Pequim, um cara chamado Devereaux...

— Hein?! — gritou o brigadeiro, seu urro comparável a uma explosão nuclear no deserto. — O filho da mãe de Harvard? — guinchou, as veias do pescoço idoso tão pronunciadas que o Secretário de Estado achou que ele exalaria o último suspiro ali mesmo, no canteiro de flores silvestres.

— Sim, creio que estudou em Harvard.

— Ele está morto, morto, morto! — gritou o general, que subitamente começou a esmurrar o ar da Georgia e a chutar a terra com suas bem desnecessárias botas de paraquedista. — Ele já pertence à história, prometo!... — Brian Donlevy disse isso em Zindelneuf no filme Beau Geste.


Marlon, Dustin, Telly e Duke se sentaram nas quatro cadeiras giratórias do Air Force Two, enquanto Sylvester e Sir Larry estavam na mesa de reuniões na parte central do avião. Todos se puseram a dar uma vista de olhos pelas linhas que tinham escrito, bem como pelas entradas que originariam conversas espontâneas e desconexas. Quando a aeronave oficial iniciou a sua descida sobre a área de Boston, ouviu-se o burburinho causado pelas seis vozes diferentes, todas fortemente entrelaçadas com interpretações individuais de um dialeto sueco aplicado ao idioma inglês. Cada rosto tinha também um espelho diante de si, já que os guerreiros dos Seis Suicidas tiveram de verificar a maquiagem — três barbichas, dois bigodes e uma peruca para Sir Larry.

— Olá, pessoal! — gritou um homem jovem e louro emergindo de uma cabine fechada na retaguarda do aparelho. — O piloto disse que eu podia sair agora.

A cacofonia de vozes acalmou-se quando o Vice-Presidente dos Estados Unidos caminhou, sorridente, pelo corredor do avião. — Não é engraçado? — disse ele alegremente.

— Quem é essa? — perguntou Sylvester.

— Esse — corrigiu Sir Larry, ajustando a peruca — Quem é ele, Sly?

— Claro, claro, mas o que é?

— Meu avião — retorquiu o herdeiro legítimo do Salão Oval. — Não é uma maravilha?

— Sente-se aí, peregrino — disse O Duke. — Se quiser alguma comida ou alguma bebida, basta apertar um desses botões aí.

— Eu sei, eu sei. Todos esses caras simpáticos são a minha tripulação!

— Ele-ele-ele-ele é... o... Vice-Vice-Vice... vocês sabem — exclamou Dustin, sacudindo a cabeça em círculos. — Ele nasceu precisamente-precisamente-precisamente às onze e vinte e dois da manhã de 1951... exatamente seis-seis-seis anos, doze dias, sete horas-horas-horas e vinte e dois-dois-dois minutos depois dos japoneses-japoneses-japoneses se terem rendido no encouraçado-çado-çado Missouri.

— Vamos, Dusty! — gritou Marlon, coçando o braço esquerdo. — Estou cansado desses bit-bit-bit, tem que entender de onde venho, hein, Dusty?

— Você e seu elétrico-elétrico-elétrico!

— Ei, vamos, cara de bebê, quer um pirulito?? — perguntou Telly, sorrindo para o VP, mas com olhos que não sorriam. — Você é legal, rapaz, mas sente aí e cale o bico, está bem? Temos trabalho a fazer, entende?

— Disseram-me que eram atores! — disse o Vice-Presidente, deixando-se cair numa poltrona em frente aos quatro, o rosto brilhando de excitação. — Muitas e muitas vezes pensei que gostaria de ser ator. Sabem, há muitas pessoas que acham que eu pareço um astro do cinema...

— Ele não sabe representar! — proclamou Sir Larry, furioso, mas num inglês refinado, do seu lugar atrás da mesa. — Deve tudo à sorte e à pistola e a essa cara estúpida e implausível, totalmente despida de personalidade.

— Um diretor sofrível... um diretor-diretor-diretor — sugeriu Dustin.

— Está maluco ou quê? — arrotou Marlon. — Aquilo foi a escolha do elenco. Os atores o conquistaram!

— Talvez ele tenha escolhido o elenco — sugeriu Sylvester. — É bem possível, cara.

— Ouçam-me, peregrinos — disse O Duke, com os olhos semicerrados, vagueando entre as cadeiras. — Está tudo relacionado ao negócio sujo desses agentes que se apoderam de terras e são ladrões de gado. É o que se chama “negócio das pirâmides”. Pega-se a estrela e leva-se junto toda a merda que há embaixo.

— Puxa, foi mesmo uma fala de ator! — explodiu o Vice-Presidente.

— Não passa de merda, menino, e não aproxime sua cara bonita.

— Telly! — exclamou Sir Larry furioso. — Quantas vezes já lhe disse que algumas pessoas conseguem dizer obscenidades sem problema, mas você não, meu caro! Vindo de você, é ofensivo demais.

— Ei, cara — intrometeu-se Marlon, fazendo contorções faciais diante do espelho. — Que diabos ele deveria dizer, “Que vergonha, grande César”? Tentei umas duas vezes e não funcionou.

— Você não fala tão bem, Marley — disse Sylvester, colando a barbicha. — Tem que falar bem de verdade para fazer com que essas palavras idiotas tenham algum sentido.

— Você é que devia falar, seu vagabundo!

— Além disso, não vou beber muito dessa cerveja do Jake, que, para mim, é um dólar a caneca!

— Ei, ótimo, Sly! — gritou Marlon na sua voz perfeitamente normal do Midwest, sem omissão de sílabas nem baboseiras. — É realmente fantástico!

— Foi ótimo sim, meu rapaz — disse Telly, como se fosse um culto professor universitário de inglês.

— Somos capazes de fazer tudo — acrescentou Dustin, alisando o bigode.

— Bem, é bom que estejamos realmente ótimos no Aeroporto de Logan, cavalheiros — disse O Duke, verificando o seu nariz ligeiramente avermelhado e falando com uma voz caraterística de um executivo de alto escalão.

— Com os diabos, nós somos mesmo ótimos! — gritou Sir Larry, num tom de voz reminiscente da área de Okefenokee Swamp.

— Meu Deus — exclamou Sylvester, com as vogais da Escola de Arte Dramática de Yale surgindo, enquanto olhava espantado para o Vice-Presidente. — É mesmo aquele!

— Ele mesmo, Sly! — disse Larry, voltando rapidamente ao seu inglês aristocrático. — Pelo menos, acho que é assim que se diz.

— Uma língua em evolução natural legitima seu uso — retaliou Sylvester, não tirando os olhos do Vice-Presidente. — Agradecemos a possibilidade de uso de sua aeronave, Sr. Vice-Presidente, mas como se explica isso?

— O Secretário de Estado achou que causaria uma boa impressão em Boston e como eu não estava fazendo nada... quer dizer, eu faço muita coisa, mas esta semana não estava fazendo nada, e disse, “Claro, por que não?” — O herdeiro legítimo inclinou-se um pouco para a frente, numa atitude conspiratória. — Fui eu que assinei o “despacho“.

— O quê? — perguntou Telly, tirando os olhos do espelho.

— O despacho de autorização para sua operação.

— Nós sabemos do que se trata, jovem — disse O Duke, com a voz cultivada refletindo seu atual papel de supervisor geral. — Mas creio que só o Presidente pode assinar esses documentos.

— Bem, ele estava no banheiro e eu estava lá na hora, de forma que disse “Claro, por que não?”

— Companheiros tespianos — proclamou Telly, regressando a seu espelho, com um vibrato saído da famosa instituição teatral conhecida como The Players, no Gramercy Park de Nova York. — Se não tivermos êxito, o Congresso oferecerá a este jovem um jantar de homenagem que ele jamais esquecerá.

— Na realidade, fiz novos amigos por lá...

— Com ele no espeto-espeto-espeto — completou Dustin, sacudindo a cabeça. — Durante exatamente-exatamente-exatamente quatro-quatro horas, vinte-vinte-vinte minutos e trinta e dois-dois-dois segundos. Seu rabo ficará extremamente bem passado.

— Ah, um churrasco! Gosto disso. Mostra que eles realmente gostam de você!

— Vai nos apresentar na coletiva de imprensa do aeroporto? — perguntou Marlon ceticamente, o sotaque caloroso e tranquilo do Midwest bem pronunciado.

— Eu? Não, o presidente da Câmara estará a sua espera. Na realidade, não devo sair do avião antes de mais ou menos uma hora e, nessa altura, sem nenhum jornalista à espera.

— Então por que saltar do avião? — perguntou o erudito ex-aluno de Yale, que chamava a si mesmo de Sylvester. — Estamos usando equipamento da Força Aérea para nos levar para...

— Não me diga! — gritou o Vice-Presidente, tapando os ouvidos com as mãos em concha. — Eu não devo saber coisa alguma!

— Não deve saber? — indagou O Duke. — Mas se assinou o despacho.

— Bem, claro, por que não? Quem lê essas idiotices?

— Poor Jud is daid, a candle lights his haid3 — cantou Telly em voz baixa, sentado em sua cadeira giratória, sendo seu baixo barítono perfeitamente aceitável para a comovente canção de Rodgers e Hammerstein.

— Repito — repetiu Sylvester. — Por que então deixar o avião?

— Tenho que saltar. É que um filho da mãe qualquer roubou o carro da minha mulher em nossa casa — o carro dela, não meu — e eu tenho que identificá-lo.

— Está brincando! — disse Dustin, sem excentricidade na voz. — Está aqui em Boston?

— Disseram que foi trazido para cá por uns caras muito detestáveis.

— E o que vai fazer? — quis saber Marlon.

— Vou chutar o rabo de um filho da mãe até o décimo oitavo buraco e depois, para trás, até o primeiro, é o que vou fazer!

Uma vez mais houve um breve silêncio quando The Duke4 se ergueu em toda a sua altura e pediu a atenção dos companheiros para o Vice-Presidente, falando depois na mesma gíria do seu homônimo. — Afinal de contas, pode estar correto, peregrino. Talvez até possamos ajudar.

— Bem, claro, eu nunca praguejo, pelo menos raramente o faço...

— Pragueje, menino — interrompeu Telly, enfiando a mão no bolso do colete e tirando um pirulito. — Coma um pirulito e não recue. Pode ser que tenha feito aqui alguns amigos. Acho que poderá usá-los.

— Preparar para a nossa descida final no Aeroporto Logan de Boston — ouviram-se as palavras vindas do alto-falante do Air Force Two. — Pouso previsto em dezoito minutos.

— Ainda há tempo para uma bebida, sr. Vice-Presidente — disse Marlon, com a sua voz suave, observando o político jovem e louro. — Tudo o que tem a fazer é chamar seu comissário.

— Por que não? — o Vice-Presidente dos Estados Unidos apertou com rebeldia o botão e após alguns momentos — talvez longos demais — apareceu o comissário da Força Aérea, que, por acaso, não demonstrou muito entusiasmo.

— O que quer? — perguntou o cabo, procurando intimidar insistentemente o jovem VP.

— O que disse, peregrino? — berrou The Duke ainda em pé.

— Desculpe...?

— Sabe quem é este homem?

— Sim, claro que sei!

— Então sente-se ereto na sela e galope, não trote!

Em muito menos minutos do que sua chegada podia ter indicado, o cabo e um segundo tripulante voltaram com bebidas para todos. E todos sorriram quando ergueram seus copos.

— A sua, Sr. Vice-Presidente — brindou Dustin, em sua voz clara e precisa.

— Eu o secundo — disse Telly. — E esqueça o pirulito, meu amigo.

— Terceiro...!

— Quarto...!

— Quinto...!

— Sexto! — finalizou The Duke, acenando com a cabeça, na melhor tradição do reconhecimento corporativo.

— Eita, vocês são realmente os maiores!

— Ser amigos do Vice-Presidente dos Estados Unidos constitui para nós um conveniente e ubíquo privilégio — disse o amável Marlon, olhando para os demais enquanto bebia.

— Eita, não sei o que dizer. Sinto-me como se fosse um de vocês!

— E é, peregrino, é um dos nossos — disse O Duke, erguendo o copo pela segunda vez. — Também o lixaram.


Jennifer Redwing, com o apoio entusiástico de Erin Lafferty e com a mão de obra de sous-chef dos dois Desis, organizou um churrasco multinacional na varanda de pau-brasil. Como a churrasqueira de aço estava dividida em quatro áreas para diferentes assados, cada uma regulada por um controle separado, e se podia atender todos os gostos. A mulher de Paddy Lafferty contatou os rapazes kosher em Marblehead e fez com que eles lhe fornecessem o melhor salmão e as galinhas mais frescas, depois ligou para os rapazes de Lynne e encomendou os melhores filés que tivessem no estoque.

— Não sei o que posso fazer por você, sua garota ultrajantemente bonita — exclamou Erin, abrindo muito os olhos para Jennifer, na cozinha. — Tentar alguma carne de búfalo?

— Não, querida Erin — respondeu Jennifer, rindo, enquanto descascava batatas enormes de Idaho que tinham encontrado na despensa. — Vou assar umas postas de salmão.

— Ah, é do tipo dos seus peixes índios dos rios cheios de correntes?

— Mais uma vez não, Erin. É uma daquelas refeições com pouco colesterol que todos nós devíamos comer.

— Experimentei esse tipo de refeição com Paddy e sabe o que ele me disse?... Disse que ia dizer ao bom Deus em pessoa, cara a cara, veja bem, que, se ele não queria que seus filhos de sangue vermelho comessem bife, por que é que tinha posto na Terra criaturas comestíveis?

— Seu marido chegou a ter alguma resposta?

— Pelo que me disse, parece que sim. Dois anos atrás, graças a Mr. Pinkus, visitamos nossas raízes na Irlanda e Paddy sentou-se no chão e beijou a Pedra de Blarney. Quando se levantou, disse: “Recebi a mensagem, patroa. No que diz respeito a bifes, eu sou a exceção e esta é a pura verdade!“

— E você aceitou isso?

— Ora, ora, menina — retorquiu Erin Lafferty, sorrindo docemente, mas não com inocência. — Ele é meu homem, o único homem que eu quis em toda a minha vida. Depois de trinta e cinco anos, vou pôr em causa suas visões?

— Então dê-lhe a carne que ele quiser.

— Sim, Jenny, mas retiro toda a gordura e ele grita como o diabo que o homem do açougue está nos enganando, ou então, que estou cozinhando mal.

— E o que você faz?

— Bebo um copo extra de uísque, menina, e, por vezes, apalpo-o num lugar que faça com que sua mente se liberte da boca.

— Você é uma mulher notável, Erin.

— Oh, pare com isso, menina! — disse a mulher de Paddy Lafferty, rindo, enquanto picava a alface para a salada. Quando arranjar um homem só seu, vai aprender algumas coisas. A primeira é como mantê-lo vivo; a segunda é não deixar que a bateria dele arrie, e isso é tudo o que precisa saber!

— Invejo-a, Erin — Redwing examinou o rosto de feições finas, embora gordinho. — Você tem algo que acho que nunca terei.

— Por que não, menina? — Erin parou de picar a alface.

— Não sei... Talvez eu tenha que ser mais forte do que qualquer homem que me queira para casar. Não me deixo subjugar.

— A menina quer dizer, ficar por baixo, sem maldade, do cara que se casar com você.

— Sim, acho que quero dizer isso. Não posso ser subserviente.

— Não tenho certeza de saber o que significa isso de sub... subserviente, mas imagino que seja uma coisa parecida com inferior?

— Exatamente.

— Pois bem, não há uma maneira melhor? Como o que eu faço com o Paddy, com quem quero passar o resto da minha vida, dizendo-lhe que pode continuar a comer os seus grandes bifes, mas sem que ele fique sabendo que eu retiro a gordura. Ele obtém o que quer, e então para de reclamar, mas a porcaria da gordura vai pro lixo até ele cravar os dentes no último pedaço que falta para chegar ao osso. Entende o que quero dizer? Dê ao gorila o pequeno e último sabor que vem do osso e ele esquece o resto. Fica feliz assim.

— Está sugerindo que nós, mulheres, devemos manipular nossos parceiros masculinos?

— E o que fazemos há tantos anos?... Até vocês aparecerem com todo esse barulho, tínhamos tudo sob controle. Digam qualquer coisa, mas deem-lhes seu próprio perfume.

— Notável — disse, pensativamente, a filha dos Wopotamis.

Subitamente, da imensa sala de estar contígua à cozinha, vieram gritos de angústia ou júbilo, ou de ambos... era impossível diferenciar. Jennifer deixou cair uma batata no chão, enquanto Erin, involuntariamente, atirou uma cabeça de alface contra um objeto luminoso, partindo um tubo comprido de néon e fazendo com que as partículas do vidro caíssem dentro da sua tigela de salada. Desi Primeiro apareceu, abrindo a porta com tamanha força que ela foi bater na sua cara, destruindo a cirurgia dentária provisória que tinha sido feita na sua boca.

— As senhoras! — gritou ele. — Venham cá e vejam a TV! É loco... é tão louco como vacas com testículos!

As duas mulheres correram para fora da cozinha e quando entraram na sala de estar, olharam com total assombro para a tela da televisão. Viram seis visitantes de Boston, obviamente importantes, todos em roupas formais, uns com barbas curtas e bem aparadas, outros de rosto liso ou com bigodes encerados e todos com chapéus de feltro pretos na cabeça. Eram recebidos pelo presidente da Câmara de Boston, que deixava bem evidente sua incapacidade de expressar os cumprimentos da cidade.

— Por isso, damos as boas-vindas a Bahsten, cavalheiros do comitê Nobel da Suécia, e apresentamos nossos calorosos agradecimentos por terem escolhido a grande Universidade de Harvard para seu simpósio sobre relações internacionais e pela sua investigação do paradeiro do Soldado do Século, nomeadamente, um certo General MacKenzie Hawkins, que os senhores presumem encontrar-se nas nossas fronteiras do extremo oeste e que estará a ouvir ou a assistir a esta emissão... quem é que escreveu esta merda?

— Interrompemos a emissão para uma informação atualizada dos acontecimentos — intrometeu-se a voz do locutor, assim que a tela ficou muda. — O ilustre comitê do prêmio Nobel chegou a Boston para participar no simpósio de Harvard sobre relações internacionais. Porém, seu porta-voz, Sir Lars Olafer, afirmou na chegada, minutos atrás, que era também intenção do comitê descobrir o paradeiro do General MacKenzie Hawkins, duas vezes condecorado com a Medalha de Honra do Congresso e distinguido pelo comitê Nobel como o Soldado do Século... O automóvel do presidente da Câmara partirá em pouco tempo para o Hotel Four Seasons, onde o comitê sueco ficará instalado durante o simpósio de Harvard... Só um minuto, por favor. Temos uma chamada telefônica do Reitor da Universidade de Harvard... Que simpósio? Como vou saber, você é o dirigente, não eu!... Desculpem, senhores espectadores, um pequeno problema de comunicação em Cambridge... Agora, voltemos à nossa programação normal, uma reexibição do nosso programa mais popular, Atenção Aos Seus Investimentos.

— Alguém mande entrar os anões...!

MacKenzie Hawkins levantou-se da cadeira e urrou: — Bolas, Soldado do Século! Ouviram isso? Claro, tinha que acontecer, mais cedo ou mais tarde, mas o fato é que isso faz de mim o mais orgulhoso oficial combatente que já existiu! E permitam que eu lhes diga, meninos e meninas, tenciono partilhar esta grande honra com cada recruta que tenha servido sob o meu comando, porque são eles, os soldados, os verdadeiros heróis e eu quero que o mundo saiba disso!

— General — disse com calma, mesmo com gentileza, o gigantesco negro mercenário —, temos de conversar.

— Sobre o que, Coronel?

— Nem sou coronel, nem você é o Soldado do Século. Isto é uma encenação.

 

________________

1 The Z Team, no original. (N.T.)

2 The A Team é o título de uma série televisiva americana. (N.T.)

3 A pobre Jud está morta, uma vela ilumina sua cabeça. (N.T.)

4 The Duke era o tratamento popular do ator John Wayne (Duke é um termo da gíria que significa “punho”). (N.T.)


20

O silêncio foi ao mesmo tempo elétrico e comovente. Era como se todos os que estavam ali presentes testemunhassem a dor de um animal enorme e fiel traído pelo dono que o abandonara aos caprichos assassinos de uma matilha de lobos. Jennifer Redwing caminhou silenciosamente até a televisão e desligou-a, enquanto MacKenzie Hawkins encarava fixamente Cyrus.

— Acho que o senhor se deveria explicar, Coronel — disse o general, com os olhos a exprimirem simultaneamente assombro e dor. — Ambos acabamos de assistir a um noticiário de televisão e de ouvir as palavras pronunciadas por um distinto visitante estrangeiro, porta-voz do comitê sueco do prêmio Nobel; e, a menos que a minha audição esteja a funcionar tão mal que já não tenha conserto, ele anunciou que eu iria receber o prêmio Soldado do Século. Como este programa de televisão e as notícias divulgadas serão, indubitavelmente, vistos por milhões de pessoas em todo o mundo civilizado, imagino que uma encenação seria impensável.

— O golpe máximo permanente — disse Cyrus M em voz baixa. — Tentei explicar isso aos seus colegas, a menina R. e o Sr. D.

— Tente de novo, Coronel, agora comigo.

— Repetindo o que já disse, eu não sou um coronel, General...

— E eu não sou o Soldado do Século — interrompeu Hawkins. — Suponho que faça questão de repetir isso também.

— O senhor pode fazer jus a essa honra, mas ela nunca poderia vir de alguém associado ao comitê do prêmio Nobel.

— O quê?

— Deixe-me explicar-lhe, para que não haja mal-entendidos.

— O senhor é, por acaso, advogado? — interrompeu Aaron Pinkus.

— Não, mas entre outras coisas, sou químico.

— Químico? — exclamou o cada vez mais atônito Hawkins. — Então que diabos pode saber sobre qualquer coisa?

— Bem, certamente que não estou no mesmo nível de Alfred Nobel, que também era químico e inventou a dinamite e que, como muitos acreditam, para amenizar a culpa por sua invenção criou os prêmios Nobel, nenhum dos quais poderia jamais ser associado à guerra. O conceito de um Soldado do Século seria um anátema para o comitê do Nobel.

— Que está querendo dizer exatamente, Cyrus?

— Um desenvolvimento do que eu lhe disse hoje de manhã. A armadilha para pegar o General Hawkins...

— Sabe meu nome? — exclamou MacKenzie.

— Ele sabe seu nome, Mac, e depois? — disse Devereaux.

— Como?

— Esqueça, General — replicou Redwing. — No momento ele é minha testemunha... Está bem, Cyrus, é uma armadilha. E que mais? Pelo tom da sua voz, eu diria que há algo mais.

— Esta já não é uma operação de segunda categoria empreendida por lunáticos com complexo de Alexandre, o Grande. É uma operação solo de algum filho da mãe muito bem situado no Governo.

— Washington? — perguntou Aaron Pinkus, incrédulo.

— Alguém em Washington — retificou o mercenário. — Não é um esforço coletivo, já que o risco de vazamento seria muito grande, e sim de uma autoridade que pode montar sozinha uma operação assim.

— Por que diz isso? — insistiu Aaron.

— Porque o comitê do Nobel na Suécia é puro e para torná-lo impuro, mesmo que temporariamente, seria preciso a ação de uma pessoa muito importante. Afinal, qualquer jornalista respeitável pode ligar para Estocolmo e pedir confirmação. Suspeito que essa confirmação já foi dada.

— Puxa, então é jogo duro mesmo! — exclamou Sam Devereaux.

— Creio que disse isso de manhã.

— Você também disse que estava pensando em cair fora, juntamente com Roman Z, logo que as tais armadilhas com pilhas de lítio tivessem sido montadas... Estão montadas, Cyrus. E agora? Vai nos deixar?

— Não, mudei de ideia. Vamos ficar.

— Por quê? — quis saber Jennifer Redwing.

— Suponho que esteja esperando alguma declaração racial profunda, do tipo em que nós, negros, desenvolvemos nosso sexto sentido para sobreviver à Ku Klux Klan, e como ficamos tremendamente irritados quando o Governo se comporta de maneira semelhante. Isso é vudu.

— Ei, o grandalhão fala bem, não fala? — interrompeu Mrs. Lafferty.

— Mais tarde, querida Erin — disse Redwing, com sua atenção concentrada em Cyrus. — Está bem, senhor mercenário, nada de vudu racial, do qual sei alguma coisa. Por que vai ficar?

— É importante?

— Para mim é.

— Posso entender — disse Cyrus, sorrindo.

— Pois eu não! — explodiu MacKenzie Hawkins, esmagando com os dedos o charuto que levou à boca.

— Então deixe o cavalheiro responder — replicou Aaron Pinkus. — Se me perdoa, General, faça o favor de se calar.

— Um comandante não dá uma ordem dessas a outro!

— Uma ova! — exclamou Aaron, sacudindo subitamente a cabeça, como se quisesse saber de onde as palavras tinham vindo. — Meu Deus, sinto muito!

— Não lamente — interrompeu Sam. — O que dizia, Cyrus?

— O.K. sir — disse o mercenário, olhando para Devereaux. — O que contaram aos outros?

— Tudo o que você nos contou. Só que não foi aos outros; apenas a Aaron. Não incluímos Mac, ou seus “ajudantes”, ou minha mãe aqui...

— Por que diabos não me contaram? — berrou o general. — Seja lá o que for!

— Precisávamos de mais alguma coisa para prosseguir, antes de você ter começado a dar ordens — retorquiu Sam laconicamente, virando-se de novo para Cyrus. — Incluímos também suas dificuldades em Stuttgart e os efeitos posteriores. Sua “libertação” da prisão, por assim dizer.

— Não faz mal. Se esta for a confusão em que estou pensando e Roman Z e eu pudermos ajudá-los, minha opinião é que não vai usar isso contra nós.

— Tem minha palavra — insistiu Redwing.

— Não ouvi absolutamente nada — acrescentou Devereaux.

— Não teria conseguido ouvir. Suas perguntas foram inábeis, enquanto as de Miss R. foram diretas e fizeram sentido. Ela deixou bem claro que, para acreditar em mim, precisava de alguma garantia. Eu me limitei a dar.

— No que me diz respeito, tudo isso corresponde ao “disse que disse”, e é inadmissível — disse Pinkus.

— Meus interrogatórios nunca são inábeis — resmungou Sam.

— Bem, você tinha muita coisa na cabeça... assim como na calça — disse Jennifer serenamente. — Você diz que sua decisão de ficar não é racial, Cyrus, mas ninguém tocou nessa questão a não ser você. Estará protestando demais? Você foi um homem negro injustamente condenado; se isso acontecesse comigo, uma índia, eu ficaria louca de ódio e permaneceria assim por muito tempo. Ia querer contra-atacar para me vingar, atingindo qualquer símbolo de autoridade e não sei se a causa teria importância. É por isso que você fica?

— Sua psicologia está correta, mas não é aplicável ao caso. Basicamente, não obstante minha argumentação de autodefesa, fui posto na cadeia, não porque seja negro, mas porque sou engenheiro químico de primeira. Talvez alguns idiotas em Stuttgart tenham pensado que um Schwarzer não fosse capaz de analisar a fase final de síntese dos compostos...

— Puxa, ele é bom! — exclamou Mrs. Lafferty.

— Por favor, querida Erin.

— Mesmo assim — continuou Cyrus —, a ordem para aquele contrato foi aprovada pelo chefão da Comissão de Controle de Armamento, a quem eu pessoalmente alertei por escrito e por mensageiro diplomático que não cheguei a conhecer. Um indivíduo sujo indicado pelo Governo e com a mão na máquina registradora que nunca deixou minhas suspeitas chegarem ao resto da comissão. Fui... perdoem a expressão, posto no escuro e isso não teve nada a ver com minha cor, pois os relatórios analíticos não incluem essa informação.

— Como sua experiência em Stuttgart está relacionada à coletiva de imprensa no aeroporto Logan? — perguntou Pinkus.

— Por estar intimamente relacionado a tudo o que contei a seus sócios sobre as circunstâncias desta missão, tenho de voltar àquele sexto sentido que neguei, pois isso não tem qualquer orientação racial e tem antes a ver com corrupção, corrupção governamental. Um homem poderoso, com o controle de armas, foi capaz de tirar este corpo preto de uma prisão alemã, onde teria ficado cinquenta anos se conseguisse sobreviver um único mês, fazendo pressão sobre os tribunais de Bonn e fazendo um acordo comigo. Subitamente, fez-se silêncio naquela fábrica de produtos químicos, e a minha parte no acordo era pegar cinco e cumprir talvez um, se mantivesse a boca fechada, tudo pelas aparências. E não me digam que não houve suborno.

— Mas você fechou o acordo — disse Jennifer sem meias palavras. — Um negócio conveniente.

— Eu não estava muito entusiasmado com o fato de ser o único negro numa prisão alemã, onde muitos dos detidos são skinheads maníacos esperando que Adolf ressuscite dos mortos.

— Desculpe, eu compreendo. Nós também desenvolvemos nosso sexto sentido.

— Não, por favor, não peça desculpas — protestou o mercenário com suavidade. — Quando eu via aqueles filmes na televisão do presídio, todas aquelas pessoas abatidas pelos produtos químicos que eu conhecia, sentia vergonha de mim mesmo.

— Ora, deixe disso, Coronel...

— Pelo amor de Deus, pare com isso, sir. Eu não sou coronel.

— Não, estou falando sério! — continuou Devereaux rapidamente. — O que você podia fazer estando encarcerado por cinquenta anos, se sobrevivesse cinquenta minutos aos skinheads?

— Esse foi meu raciocínio e foi também o motivo pelo qual fugi com Roman Z. Esse tipo de coisa tem de acabar, cara!

— E acha que o General Hawkins está agora passando por uma variante do que você experimentou? — perguntou Aaron, inclinando-se para a frente. — E a prova é o noticiário a que acabamos de assistir.

— Eu direi que não posso acreditar que exista um prêmio Nobel para o Soldado do Século. Em segundo lugar, por que esse suposto comitê voa para Boston, o único aeroporto nas redondezas em que o general já foi atacado, o que significa que foi seguido pelo serviço de informações do Governo, muito avançado em termos de alta tecnologia? Em terceiro lugar, aquele quarteto de loucos confusos e psicopatas que tentaram atacá-los em Hooksett era rigorosamente composto de pobres débeis mentais, não sujeitos a sanções, pessoas que, segundo meu palpite, vocês nunca descobririam, mesmo subornando o guarda do asilo. Também chegaram à mesma conclusão, através de uma marca da lavanderia da prisão impressa numa calça, e os mandaram de volta em sacos de transporte de cadáveres.

— Malditas lesmas! — urrou MacKenzie Hawkins. — O que nós devolvemos foi uma mensagem... Será que alguém pode me dizer do que estamos falando?

— Esclareceremos tudo depois, Mac — respondeu Sam, com a mão no ombro de Cyrus. — Se bem entendi — disse Devereaux —, temos de descobrir quem está a dirigir esta operação, é isso?

— É isso mesmo — disse o mercenário. — Já que o ataque que sofreram em New Hampshire pode ter tido a mesma origem, mas eles foram mais longe... talvez tenham ido longe demais e isso significa que podem estar vulneráveis.

— Por que diz isso? — perguntou Pinkus.

— Esses camaradas vieram no Air Force Two — respondeu Cyrus. — São civis estrangeiros, a quem foi cedida a segunda mais importante aeronave do país, o que quer dizer que essa permissão tem de ter partido de uma das seguintes fontes: a Casa Branca, que podemos pôr de lado, pois eles têm já preocupações bastantes com esse rapaz; a CIA, que devemos rejeitar de imediato, já que metade do país pensa, com razão, que suas iniciais significam Caught In the Act1 e, provavelmente, não se arriscariam a cometer outro fiasco; e, finalmente, o Departamento de Estado, que ninguém sabe bem o que faz, mas que, de qualquer forma, faz. Meu palpite é um dos dois últimos; e se pudermos descobrir qual é, restringiremos bem o número de pessoas que poderiam ter ordenado a saída do avião. Entre eles está o bandido da história.

— Quem sabe, o Departamento de Estado e a CIA? — sugeriu Pinkus.

— Nem pensar. Um não confia no outro. E há também um risco muito grande de fuga de informações, quando se conjugam forças.

— E se descobrirmos que é um dos dois? — perguntou Sam.

— O que acontece?

— Nessa altura nós abanaremos os ossos de todos os possíveis figurões de Washington até que chocalhem. Temos de descobrir quem está por trás da operação — quer dizer, uma identificação realmente completa da pessoa, com nome, posto e número de série — pois é a única maneira de assegurarmos a nossa integridade.

— Como?

— Exposição, Sam — disse Jennifer. — Ainda vivemos num Estado de Direito, numa nação de leis e não de maníacos escondidos em Washington.

— Quem disse isso?

— É um ponto discutível — concordou Redwing. — O que devemos fazer, Cyrus?

— O melhor seria mandar alguém que faça o papel do General ao hotel que eles referiram, comigo e com o Roman Z, como assessores civis. É normal que um general na reserva com duas medalhas do Congresso tenha direito a dois assessores.

— E os Desis Um e Dois? — perguntou Aaron. — Vão ficar magoados.

— Por quê? Eles vão ficar com o verdadeiro Hawkins.

— Ah, claro. Esta cabeça fraca está a envelhecer. Tudo está indo depressa demais.

— Além disso, eles são bons rapazes e vocês devem ficar aqui protegidos — Cyrus parou de falar, subitamente consciente do olhar fixo e fulminante de Eleanor Devereaux. — Ei, cara, aquela senhora não gosta de mim — murmurou.

— Ela não o conhece — disse Sam, em voz baixa. — Quando o conhecer, fará uma doação importante para o Fundo Escolar Negro Unido, prometo.

— Claro, um mercenário negro não se pode desperdiçar... Raios, não há ninguém aqui que possa se fazer passar pelo General. Temos que pensar em outra coisa.

— Espere um pouco! — interrompeu Pinkus. — Shirley e eu apoiamos grupos locais de teatro... ela gosta de fazer fotos nas noites de estreia. Há um ator que é um dos nossos favoritos, um homem já de certa idade e que trabalhou em muitas peças da Broadway; sua atual situação poderia ser chamada de semiaposentadoria. Tenho certeza de que conseguiria convencê-lo a nos ajudar, por uma certa quantia, claro... Apenas se ele estiver completamente seguro.

— Dou minha palavra quanto a isso — garantiu Cyrus. — Nenhum possível dano poderá lhe acontecer, pois Roman Z e eu estaremos a seu lado.

— Um ator? — exclamou Devereaux. — Isso é uma loucura!

— Para falar a verdade, frequentemente ele parece ser meio maluco — o telefone tocou na mesa ao lado da cadeira de Aaron, que atendeu de imediato. — Sim?... É para você, Sam. Creio que é a prima Cora.

— Oh, meu Deus, esqueci dela por completo! — disse Devereaux, contornando a mesa para atender.

— Eu não esqueci — interrompeu Eleanor. — Falei com ela ontem à noite, mas não lhe disse onde estávamos, nem lhe dei o número do telefone.

— Cora — exclamou Sam. — Como... falou com ela, Mãe? Por que não me disse?

— Não me perguntou. Mas está tudo bem lá em casa. A polícia anda por lá constantemente e eu acho que ela tem alimentado a força policial inteira.

— Cora? Mamãe diz que está tudo bem por aí.

— A importante está cheia de chá, Sammy. O maldito telefone toca o dia inteiro e ninguém pode ou quer me contar onde estão.

— Como descobriu este número?

— Pela filha do Paddy Lafferty, Bridget. Disse que Erin lhe deu o número, para o caso de haver algum problema com os netos.

— Isso faz sentido. O que há? Quem tem ligado?

— Para você, ninguém, Sambo... para todos, menos você!

— Quem?

— Primeiro foi para aquele general maluco, depois para aquela índia de pernas compridas, que não deveria ter autorização para andar na rua. Pelo menos uns vinte telefonemas para cada um deles, todos dos mesmos indivíduos, mais ou menos de meia em meia hora.

— Como se chamam?

— Um não quis dizer e o outro você não vai acreditar. O primeiro parecia apavorado, como você fica às vezes, Sammy. Não para de gritar que a irmã deve ligar para o irmão imediatamente.

— Certo, eu aviso. E o outro, o tal que liga para o general?

— Bem, você vai achar que eu andei bebendo de novo quando ouvir o nome dele, mas não tenho, porque há muitos policiais por aqui... Rapaz, que conta do açougue você vai ter pra pagar...

— O nome, Cora?

— Johnny Nariz de Bezerro, acredita, Sammy?

— Johnny Nariz de Bezerro? — disse Sam Devereaux, em voz baixa.

— Nariz de Bezerro...? — repetiu Jennifer.

— Nariz de Bezerro! — berrou o Hawk. — Minha segurança tem tentado entrar em contato comigo? Largue esse telefone, tenente!

— Meu antigo cliente me procurando! — gritou Redwing, chocando-se com o general, quando ambos correram para Sam.

— Não! — gritou Devereaux, tirando o telefone do alcance dos dois. — Nariz de Bezerro é para Mac. Seu irmão quer que você ligue para ele.

— Dê-me esse telefone, cara!

— Não, primeiro eu!

— Se todos vocês se acalmarem — disse Pinkus, levantando a voz —, meu cunhado tem pelo menos três, possivelmente quatro linhas instaladas, duas pelo menos só para a irmã da Shirley e há telefones espalhados pela casa toda. Basta que cada um encontre um aparelho e aperte um botão que não esteja aceso.

Quando o Hawk e Jennifer correram à procura de telefones separados, verificou-se uma situação semelhante ao breve pandemônio de um recreio num jardim de infância. Mac localizou um na varanda e abriu a porta de vidro com um vibrante estrondo; Redwing viu outro em cima de uma mesa branca antiga, encostada na parede de trás. A subsequente cacofonia das vozes fragmentou o silêncio da noite de Swampscott.

— Adeus, Cora.

— Charlie, sou eu!

— Nariz de Bezerro, fala Cabeça de Trovão!

— Está brincando, mano caçula, diga que está brincando!

— Que diabo, hora zero menos quatro dias!

— Não está brincando...?

— Devolva minha minha aprovação e assine C.T. Chefe do Povo Mais Oprimido Desta Nação!

— Envie uma passagem de avião para Samoa Americana, Charlie. Encontro lá com você.

O Hawk e Jennifer desligaram os respectivos telefones, o primeiro triunfante, a segunda derrotada. O general caminhou a passo largo pela porta da varanda, como o comandante de uma legião romana a entrar pelos portões de Cartago, enquanto Redwing se afastava da elegante mesinha branca, como o teria feito um delicado passarinho perdido e fustigado por ventos nada cordiais.

— O que há, minha querida? — perguntou Aaron com gentileza, obviamente tocado pelo desânimo de Jennifer.

— O pior — respondeu ela. — O elevador para o inferno.

— Ora vamos, Jennifer...

— Jatos Lear e limusines, poços de petróleo na Lexington Avenue e destilarias de bebidas na Arábia Saudita.

— Oh, meu Deus... — murmurou Sam. — O Supremo Tribunal.

— Mesmo no alvo! — urrou o Hawk. — Todos os tiros a acertarem no centro do alvo! O Supremo Tribunal.

— O senhor vai mandar-nos de volta para a cadeia? — gritou Desi-Um.

— Heneral, por que vai fazer uma coisa dessas?? — quis saber o atônito Desi-Dois.

— Perceberam mal, capitães. Os senhores estão a subir dentro da tropa de choque, têm excelentes carreiras militares em perspectiva.

— Estejam todos calados! — foi a vez de Devereaux gritar, ficando depois um tanto assustado ao ver que era obedecido. — Está bem, Red, você primeiro. O que o seu irmão disse?

— O que aí o Cro-Magnon acaba de confirmar. O Charlie ligou para o Johnny Nariz de Bezerro para ver se estava tudo bem lá na reserva e o Johnny estava a subir pelas paredes, a tentar encontrar o seu mutante. Chegou um telegrama ontem de manhã a exigir resposta imediata, por telefone ou por fax... o General Balas Bombas, aliás, Trovão Maluco, deve comparecer perante o Tribunal no prazo de cinco dias, contados a partir das três da tarde de ontem, para certificar a sua autoridade tribal e apresentar a sua causa. Está tudo acabado, à exceção do longo e agonizante processo de observação da destruição de um povo. As alegações no Tribunal vão ser públicas.

— Nós conseguimos, Sam! A velha equipe não perdeu a classe!

— Nada! — trovejou Devereaux. — Eu não fiz absolutamente nada! Não tenho nada a ver com você.

— Bem, odeio contradizê-lo, filho...

— Não sou seu filho!

— Não, ele é meu filho — disse Eleanor. — Alguém o quer?

... você é o advogado oficial legalmente mandatado — completou Hawkins, num tom de voz um pouco menos audível do que antes.

— Ah, não, esse convite foi para você, não foi para mim!

— Errado de novo, sir — disse Jennifer, desconsoladamente. — Você substituiu não só o meu irmão, que não estava autorizado, como também me substituiu, por capricho do seu Homem-Macaco. Charlie foi muito claro, além de ter ficado pessoalmente aliviado. O convite incluía um certo Samuel L. Devereaux, Esquire, advogado da tribo Wopotami.

— Eles não podem fazer isso!

— Pois fizeram e o Charlie quer agradecer a quem quer que se chame S.L. Devereaux de todo o coração. Disse que “Adoraria pagar uma bebida a esse palerma, mas não acho que ele vá conseguir viver o suficiente“.

— General — disse a voz tranquila de Cyrus M e as palavras que proferiu soaram como trovões distantes. — Esquecemos o Soldado do Século?

O rosto do Hawk ficou branco; os seus olhos vaguearam em curtos movimentos espasmódicos, sem ver nada, traduzindo apenas as fúrias do seu conflito interior.

— Oh, Jesus e César! — murmurou ele guturalmente, ao deixar-se cair na poltrona em frente a Pinkus. — Meu Deus, o que eu faço?

— É uma armadilha, General, sinceramente acredito nisso — acrescentou o enorme mercenário negro.

— E se o senhor estiver errado?

— Não há nada na história do comitê Nobel que possa fundamentar um erro desse tipo.

— História? Pelo amor de Deus, homem, não há nada nos últimos quarenta anos da História que possa fundamentar a queda do Muro de Berlim ou o desmantelamento da União Soviética! As coisas estão a mudar por toda a parte.

— Algumas coisas nunca mudam. Estocolmo nunca muda.

— Bolas, Coronel, eu dei a minha vida, devotei a minha vida ao Exército e fui lixado por uns políticos amaricados e merdosos! Sabe o que esse prêmio significa para mim... para cada homem que serviu sob o meu comando em três guerras?

— Só um momento, General — Cyrus olhou para Devereaux. — Posso fazer-lhe uma pergunta... Sam... posso tratá-lo por Sam, já que ultrapassamos a situação de guarda contratado?

— “Patrão” não seria adequado para nenhum de nós. Claro, o que é?

— Essa armadilha, como eu sei perfeitamente bem que é, tem alguma coisa a ver com essa história da Suprema Corte que os senhores têm estado a discutir aos gritos? Compreendo a sua segurança, mas os senhores precisam da minha ajuda e, com toda a sinceridade, não posso proporcioná-la em termos profissionais sem saber mais do que sei. Como químico, exijo equações precisas dos componentes por parte dos meus subordinados; como mercenário, tenho de conhecer os componentes fundamentais, a fim de agir em conformidade.

Devereaux voltou-se primeiro para Aaron, que, sem hesitação, acenou com a cabeça em sinal de aprovação, e, em seguida, virou-se para Jennifer, que fez uma pausa e depois aquiesceu relutantemente. Por fim, encaminhou-se para Eleanor, sentada no sofá.

— Mãe, eu ficaria muito feliz se você e a Mrs. Lafferty pudessem encontrar alguma coisa para fazer na cozinha.

— Ligue para Cora — disse a grande senhora de Weston, Massachusetts, sem se mover.

— Ei, vamos, menina elegante — exclamou Erin Lafferty. — Preciso me livrar da tigela da salada e você pode nos fazer um chá! Adivinhe o que encontrei, Mrs. Magnífica? Hennessy, VSOP!

— Ela tem falado com a nossa prima desavergonhada — disse Eleanor, levantando-se imediatamente. — Já passa da hora do chá, não passa? Vamos, Aaron, vamos fazer o chá.

— É Erin, Mrs....

— Sim, claro, você não parece ser judia. Gosta de camomila?

— Não, gosto de Hennessy.

— Vê-se claramente a influência de Cora. Você a conhece há muito tempo?

— Bem, ela é do lado romano e eu sou do outro, mas nos encontramos nesse comitê que formamos tentando fazer com que aqueles idiotas se unam...

— Conversaremos sobre isso no chá, Errol, e talvez eu entre no seu comitê. Claro, sou uma Nobre Anglicana.

— Cora não conseguiria soletrar isso. — E as duas senhoras saíram de braço dado pela porta da cozinha.

— Desis Um e Dois — disse Sam —, querem parar de fazer essas caras? Tudo o que o General Mac prometeu vai acontecer, acreditem em mim, que conheço tanto as coisas boas como as ruins... e as suas são apenas boas.

— Particular — explicou o Hawk. — Confidencial, comprenden?

— É claro, cara, nós saímos com o romano gitano. Ele é maluco, sabe? Ele viaja muito e está sempre sorrindo. Mas tem que ser bom nas ruas, entende? Podemos nos dar bem juntos.

— Tenham sempre presente em suas cabeças, capitães! — gritou MacKenzie. — Estão agora sob meu comando! Acabaram as ruas, os assaltos, os roubos ou a hostilidade com os civis! Será que não aprenderam nada?

— Tem razão, Heneral — respondeu Desi-Um, constrangido. — Às vezes, a gente escorrega sem pensar. Agora somos cavalheiros e oficiais e temos de pensar de forma diferente. Tem razão... Vamos sair com o loco gitano — Desis Um e Dois dirigiram-se para o foyer e saíram pela porta da frente.

— Que história é essa? — quis saber Cyrus, com os olhos fixos no foyer deserto. — Entendi o espanhol, mas não o seu “comando” e o fato de eles serem capitães. Em que exército?

— No Exército dos Estados Unidos, Coronel... oh, desculpe, não gosta de ser tratado de coronel... Digamos que eu os esteja treinando, pois podíamos fazer muito pior.

— Deixe pra lá, General — disse o mercenário, sacudindo a cabeça. — Está fora do meu alcance e neste momento prefiro me concentrar... neste exato momento, no ponto em que estamos. Será que alguém pode explicar?

Trocaram-se olhares, mas foi Jennifer Redwing, filha dos Wopotamis, que levantou a mão e insistiu em falar. Ela contou tudo o que sabiam sobre a petição dos Wopotamis para a Suprema Corte e depois, persuasivamente, definiu o que ela acreditava ser a destruição dos Wopotamis, prestes a ocorrer, em consequência da ação no Tribunal, qualquer que fosse o caminho que ela tomasse.

— Com o mero fantasma da ação diante de si, todo o Governo Federal reagirá furiosamente, transformando o nosso povo em traidores e párias, levando por diante a condenação da nossa terra, fechando a reserva e dispersando os que lá moram. Washington tem de fazer isso, já que é imprescindível a preservação absoluta do Comando Aéreo Estratégico e, não menos importante, de todo um exército de fornecedores do Departamento de Defesa — que diabo, do próprio Pentágono ; que vão querer o nosso sangue... Por outro lado, teremos hordas de arrivistas de todos os credos a lançar-se sobre a tribo e a corromper todos os que encontrarem pela frente, na esperança de uma fatia de um bolo improvável, mas potencialmente legal, ou de publicidade, mas todos com os olhos no essencial. Meu Deus, haverá mais Coligações Arco-íris atrás do dinheiro do que as cores que existem num Jackson Pollock e serão tão loucas como... Por fim, nada restará de nós a não ser censura e decadência, um povo empanturrado de maledicência, avareza e podridão, que acabará por perder uma luta em que não pode haver vencedor e será abandonado. Não é o que desejo para os meus irmãos e irmãs, a quem sinceramente amo... Pronto, disse o que tinha a dizer e espero que o senhor tenha prestado atenção ao que eu disse, General Gengis Khan.

— Com exceção do comentário final — disse Aaron Pinkus, colado à cadeira — foi um belo sumário... Não julgo o comentário que você fez, minha querida, mas apenas o efeito que teria sobre um júri, que, desconfio, seria negativo.

— Quanto a isso não sei, Comandante — MacKenzie Hawkins manteve-se imóvel, encarando, olhos nos olhos, a filha dos Wopotamis. — Imaginando que eu fazia parte do júri, devo dizer que o que ela disse teve um efeito bastante positivo sobre mim.

— O que está a querer dizer, Mac? — perguntou Devereaux, com uma expressão nitidamente a antecipar o inesperado.

— Posso apresentar a minha posição, pequena senhora? — disse o Hawk, pondo-se em pé... Desculpe, você não é “pequena” em sentido nenhum, mas é uma senhora e ao usar esse termo não pretendo desrespeitá-la.

— Vá em frente — disse Jennifer, glacialmente.

— Comecei este empreendimento uns três anos atrás, com algumas ideias na cabeça, nenhuma delas muito clara, pois sou um soldado e não um pensador, salvo no que diz respeito à estratégia militar. O que quero dizer é que não sou nenhum intelectual e não perco muito tempo a tentar analisar certas coisas, como motivos, moralidade ou justificações e todas as outras coisas desse tipo. Se fosse fazer isso, teria perdido um número muito maior de excelentes rapazes em combate do que o que mostram os meus registros... Certamente que estava à procura de uma jogada magnífica — não posso pensar em coisas pequenas —, pois é um tipo de desafio que atrai este velho soldado abandonado. Além disso, tinha de ser divertido e quem tivesse feito ou estivesse a fazer algo de errado deveria ficar com o cartaz preso às costas. Acho que estou a tentar dizer que nunca foi minha intenção prejudicar os meios para a obtenção do licenciamento, mas sim apenas aqueles que precisassem de pagar nomeadamente, os que tivessem feito algo de errado.

— Mas está prejudicando os “meios” — interrompeu Jennifer, furiosa. — Nomeadamente, o meu povo, e o senhor sabe-o muito bem!

— Posso terminar, por favor?... Quando soube o que aconteceu com os Wopotamis há mais de cem anos, isso, de certa forma, fez-me pensar no que me tinha acontecido... e pelo que posso deduzir da história que o Coronel Cyrus contou, do que aconteceu também a ele... Fomos todos sacrificados por figurões do Governo, que, ou estavam com a mão no cofre, ou estavam a realizar as suas ambições políticas, ou eram simplesmente uns vulgares mentirosos a abusar da confiança que neles tinha sido depositada! Não importa se foi há um século, há uma década, há três meses ou ontem. Nas palavras aqui do nosso amigo mercenário, isso tem de acabar! Temos o melhor sistema de vida que o mundo já conheceu, mas vai sempre aparecer alguém para estragar tudo.

— Nenhum de nós está disputando o grande prêmio do céu, Mac — disse Devereaux em voz baixa.

— Claro que não, Sam, mas ninguém nos elegeu ou nomeou, ou fez com que jurássemos só agir no interesse de duzentos milhões de pessoas que não conhecemos. Agora, se o coronel aqui está certo, há alguém lá em cima tentando impedir um cidadão, não apenas eu, mas um cidadão, de exercer seu direito constitucional de comparecer perante a Suprema Corte. E lá vamos nós de novo!... E se aqui o nosso amigo, que não gosta de ser tratado de coronel, estiver errado e eu for realmente o Soldado do Século... bem, eu não posso aceitar esse grande prêmio se não tentasse descobrir se há ou não um enorme canhão do Governo tentando impedir o tal cidadão, que, por acaso, sou eu.

— Uma análise muito bem feita, General — disse Aaron, recostando-se na poltrona. — Na realidade, para um homem não formado em leis, foi bem notável.

— O que quer dizer com isso, de ele não ser formado, Mr. Pinkus? — objetou Jennifer, deixando transparecer na voz uma ponta de ciúme. — Ele redigiu a maldita petição.

— Concordo que ele a tenha construído, minha querida, adaptando cuidadosamente expressões e frases dos livros que conviessem a seus pontos de vista. Isso é compilação, não é criação.

— E eu afirmo — disse Sam —, com um certo ego à parte, que isso é irrelevante. — Virou-se para o Hawk. — Mas estou intrigado com alguns tópicos que você não levantou e se, para você, eles não provam que há alguém muito importante tentando nos deter, então não sei o que poderá prová-lo. Permita-me que lembre...

— Filho, estou bem na sua frente — interrompeu Hawkins rápida e firmemente. — Você está se referindo aos assaltos anteriores.

— Sim, Mac. Os dois hotéis, a viatura da polícia na minha casa e os quatro gorilas armados até os dentes na cabana de esqui. Quem mandou essa gente? A fada Sininho?

— Nunca teríamos descoberto, rapaz, aceite a minha palavra. Você não sabe como essas coisas são montadas... com espelhos e fumaça e tantos nós cegos que seria necessário muito mais tempo do que o gasto no Irã-contras para descobrir quem está onde e com que função. Que diabo, Sam, eu inventei esses procedimentos nas costas de cinquenta linhas inimigas. É por isso que fiz o que fiz e em todas as situações mandei-lhes uma mensagem dizendo que não conseguiriam!

— Receio não estar entendendo — disse Aaron, atônito.

— Nem eu — acrescentou uma perplexa Jennifer.

— Vocês são advogados ou vendedores de sapato? — exclamou MacKenzie, exasperado. — Quando se está no meio de um julgamento de vida ou morte e se precisa de uma informação que se sabe que existe mas ninguém quer dar, o que se faz?

— Um novo interrogatório vigoroso — replicou Pinkus.

— Com grande ênfase no perjúrio — acrescentou Redwing.

— Bem, suponho que possam ter alguma razão, mas não estamos num tribunal. Há uma outra forma...

— Você provoca — interrompeu Devereaux, com os olhos, momentânea e divertidamente em contato com os do Hawk. — Você faz uma declaração ultrajante ou uma série de afirmativas que provocam uma resposta hostil, que confirma a informação.

— Bolas, Sam, eu sempre disse que você era o melhor! Lembra-se de Londres, na Belgrave Square, onde eu lhe disse como lidar com aquele traidor...

— Nós não vamos fazer referência a seus relacionamentos anteriores, General! — ordenou Aaron. — Não queremos ouvir uma só palavra a esse respeito.

— Além de ser irrelevante — disse Jennifer, na defensiva.

— Ah, entendo! — exclamou Sam, com um sorriso falso para sua Afrodite índia. — Você não suporta que eu diga alguma coisa em que você não pensou!

— Irrelevante!

— Quando essas duas crianças pararem de brigar — disse Pinkus —, quer fazer o favor de explicar sua estratégia, General?

— Se aqui o Coronel — o meu coronel — estiver certo, a explicação está estacionada numa pista do aeroporto Logan. O Air Force Two, Comandante! Quem o mandou?... A não ser, é claro, que eu seja realmente o Soldado do Século, caso em que estaríamos numa embarcação destinada a invasão pela costa mas sem motor, sendo empurrada pela maré para uma praia muito fortificada, sem podermos realizar qualquer manobra de proteção.

— Não vou tentar seguir esse raciocínio, mas... — de repente Aaron se calou e virou a cabeça em várias direções até descobrir o que faltava. Era o mercenário Cyrus M., cujo corpo enorme ocupava totalmente uma cadeira antiga junto à elegante mesinha branca e que estava de boca aberta olhando fixamente para eles com os seus grandes olhos negros. — Ah, está aí, Coronel.

— O quê?

— Estava ouvindo?

Cyrus acenou afirmativamente com a enorme cabeça e respondeu lenta e precisamente.

— Sim, ouvi tudo, Mr. Pinkus — começou, em voz baixa — e posso dizer que acabo de tomar conhecimento da história mais extraordinária desde que uns palhaços afirmaram que a fusão nuclear podia ser realizada em água gelada por doze centavos o litro... São malucos! São doidos, insensatos, podem ser dados como loucos!... Há alguma parte do que disseram que seja verdade?

— É tudo verdade, Cyrus — disse Devereaux.

— Em que diabo de coisa fui me meter? — urrou o gigante químico negro... desculpe minha linguagem, Miss Redwing. Estou tentando pôr tudo isso numa equação e não é fácil.

— Não há necessidade de desculpas, Cyrus, e por que não me trata de Jenny? Não gosto muito da “miss”.

— Voodoo — disse o mercenário, levantando-se da cadeira, mas suficientemente consciente para olhar para trás, a fim de ver se não a tinha partido. — Se é verdade — continuou ele, caminhando em direção ao trio de advogados e ao maníaco “Soldado do Século”, cuja expressão intensa provocou nitidamente em Cyrus um extremo desconforto — se é verdade... não creio que haja qualquer outra alternativa senão pôr à prova esse comitê Nobel. Contrate o seu ator, Mr. Pinkus. Vamos entrar em cena.

 

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1 “Apanhados no ato” (N.T.)


21

A trégua trouxe paz à casa de praia de Swampscott, Massachusetts, um prelúdio adequado das batalhas que havia pela frente. Sob a liderança neutra de Aaron Pinkus, foi redigido um documento subscrito pelo General MacKenzie Hawkins, também conhecido como Cabeça de Trovão, atual chefe dos Wopotamis, e Sunrise Jennifer Redwing, porta-voz ad hoc da referida tribo, pelo qual todos os poderes de representação eram transferidos para Miss Redwing, devendo ser assinado por ambos os interessados e ser autenticado notarialmente. Samuel Lansing Devereaux, advogado oficial provisoriamente mandatado, consentia em renunciar a todos os seus deveres, após uma comparência conjunta com a mandatária permanente da tribo, a acima citada Miss Redwing, perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, caso tal comparência conjunta fosse necessária.

— Não estou certa de ter gostado da última parte — declarou Jennifer.

— Eu não gosto de nada! — disse Sam.

— Então não assino — o Hawk mostrou-se inabalável. — Mudar de advogado no último minuto pode significar um escorregão, um atraso, e eu pus nisso sangue, suor, dinheiro e tolerância demais para aceitar agora esse tipo de coisa. Além do mais, Miss Red, eu concedi-lhe o controle total sobre todas as negociações, por isso, o que você quer mais?

— O que mais?... Nenhum comparecimento, nenhuma petição, nenhum Supremo Tribunal.

— Ora vamos, minha querida — disse Aaron. — É tarde demais para isso. Não só a audiência já está marcada, como também você poderia estar a perder uma genuína oportunidade para o seu povo. Com você no comando, com toda certeza o tal elevador para o inferno pode ser detido.

— Sim, claro — concordou Jennifer. — Se a coisa for realmente séria, fazemos um rápido acordo com o Gabinete das Relações com os Índios, talvez dois ou três milhões de dólares e a vida continua, sem ondas. Poderíamos construir quatro ou cinco escolas na reserva e contratar alguns bons professores...

— Definitivamente, não assino! — trovejou o Hawk.

— Por que, General? Esse dinheiro não dá para seu pagamento?

— O meu pagamento? Não preciso de dinheiro... Sam e eu temos mais dinheiro na Suíça do que seríamos capazes de gastar!

— Mac, cale essa boca!

...todo ele obtido legalmente da escória da terra, que, asseguro, nunca nos processará por isso!

— Já chega, General! — Aaron Pinkus pôs-se em pé o mais depressa que pôde. — Não haverá mais referências, verbais ou escritas, a acontecimentos anteriores, a respeito dos quais nada sabemos.

— Por mim, tudo bem, Comandante, mas ainda assim deixarei bem clara a minha posição. Não gastei três anos da minha vida para agora fazer acordos por um punhado de dólares que qualquer fornecedor do Comando Aéreo Estratégico nos desse como dinheiro de bolso.

— Nós? — exclamou Jennifer. — Eu pensei que não quisesse nada.

— Não estou falando de mim, estou falando do princípio em causa.

— Do que está falando — perguntou Redwing sarcasticamente —, do principal ou dos juros sobre o principal?

— Você sabe muito bem do que estou falando, little lady. Você está vendendo a tribo... minha tribo, por sinal.

— O que você tinha em mente, Mac? — perguntou Devereaux, sabendo de antemão que era inútil tentar fazer com que o Hawk mudasse de ideia... em princípio.

— Começaremos com quinhentos milhões, uma bonita soma redonda — que, para o Pentágono, não vale absolutamente nada, uma compra muito barata.

— Quinhentos milhões — o rosto bronzeado de Jennifer ficou mais escuro devido ao súbito afluxo de sangue à cabeça. — Está louco!

— Você pode sempre reduzir a intensidade do fogo de sua artilharia, mas não pode aumentá-lo se não houver artilharia de reserva... É, é isso mesmo, quinhentos ou não assino. Talvez devêssemos incluir isso no documento, Comandante, como um aditamento, ou o que quer que queiram chamar.

— Não seria prudente, General — disse Pinkus, dando uma olhada para Sam. — Se fosse examinado, poderia ser considerado pré-condição próxima de conluio fraudulento.

— Então eu quero um papel separado — disse MacKenzie, franzindo a testa. — Ela não vai vender meu povo no rio negro dos maus espíritos.

— O seu... Oh, meu Deus! — Jennifer afundou no sofá. — O rio negro dos... oh, merda.

— Nós, mais velhos, reprovamos vigorosamente o uso desse tipo de linguagem por parte de nossas mulheres.

— Eu não sou... oh, esqueça!... Quinhentos milhões... nem sequer consigo imaginar tanto dinheiro! Seremos arruinados, devastados, nossa terra será condenada e comprada por bagatela, os contribuintes se sentirão ultrajados, editoriais em toda a mídia nos apontarão como selvagens ignorantes e ladrões...

— Miss Redwing — interrompeu Aaron e o tratamento formal e a voz áspera fizeram com que Jenny dirigisse um olhar curioso ao famoso advogado que se fizera tão amigo dela.

— Sim... Mr. Pinkus?

— Vou preparar um protocolo de intenções, afirmando bem claramente que você, procurando dar o melhor dos esforços, iniciará as negociações... se e quando essas negociações tiverem lugar, de acordo com os desejos do chefe Cabeça de Trovão, também conhecido como General MacKenzie Hawkins. Aceita esta pesada responsabilidade?

— Que diabo! — Jennifer ia dizer Que diabo, claro que sim!, mas o brilho nos olhos de Aaron a deteve. — Muito bem, General, acabou a linguagem colorida. Sei reconhecer quando fui derrotada por um espírito litigante superior. Assinarei os documentos.

— Assim é melhor, pequena lady — disse o Hawk, acendendo um charuto já meio esfrangalhado, levantando a perna e riscando o fósforo na parte superior das calças de pele de gamo. — Você verá, Miss Red, que a responsabilidade do comando não vai acabar com uma única vitória. Nós seguimos sempre em frente, sempre a tomar conta dos excelentes soldados que nos seguem!

— Isso é muito encorajador, General — disse Jennifer, sorrindo docemente.

— Vocês são só coração e ferroada — disse Sam. — Sobretudo você, Pocahontas.

Aaron Pinkus entrou no escritório do cunhado e ligou para a sua secretária pessoal, dizendo-lhe para entrar em contato com Paddy Lafferty, para que este a trouxesse a Swampscott, e para trazer o seu carimbo de notário. A senhora de cabelos grisalhos chegou a Swampscott com os olhos congestionados e as pálpebras pesadas, sem dúvida o resultado de uma gripe feroz, e datilografou os dois documentos. Foram cerimoniosamente assinados e quando Aaron, muito cortês, acompanhou a sua secretária nitidamente doente até a porta, agradecendo-lhe por ter atendido seu pedido apesar da sua condição, a mulher, ligeiramente desconcentrada, perguntou:

— Conhece alguém chamado Bricky, Mr. Pinkus? Ele tem perguntado por você.

— Bricky?... Qual é o sobrenome?

— Não estou certa de ter entendido... parecia mudar.

— Você não está bem, minha querida. Quero que tire uns dias de folga e mandarei o meu médico visitá-la. Abraão que me perdoe, mas realmente eu faço-a trabalhar demais.

— Era um jovem muito bonito. De cabelo escuro reluzente, vestido impecavelmente...

— Cuidado agora, veja onde põe o pé.

— Estava sempre a querer saber onde é que o senhor estava...

— Calma agora, devagar, há dois degraus a descer até a laje... Paddy, você está aí?

— Aqui mesmo, patrão! — foi a resposta de Lafferty, vinda do caminho circular de acesso dos automóveis, ao mesmo tempo em que o motorista emergia das sombras e subia correndo o caminho para a varanda. — Sabe de uma coisa, acho que ela tem exagerado na bebida, Mr. Pinkus.

— É da gripe, Paddy.

— Se é o que o senhor diz, patrão — Lafferty conduziu a secretária, pondo o seu braço esquerdo em seu ombro, para ajudá-la a descer até o carro.

— Bricky é meu querido, meu querido, meu querido...! — as palavras pairaram no ar, levadas pela música, e esvaíram-se contra os altos pinheiros que rodeavam o caminho circular. — Ele é o meu único rapaz! — o meu único rapaz!

Aliviado, Aaron virou-se para a porta da frente, mas, quando se preparava para entrar, parou, com a cabeça inclinada a denotar a sua perplexidade... Bricky... Binky?... Binghamton Aldershot, conhecido também no Cabo por Binky, a coisa mais próxima que havia em Boston de um financeiro internacional, escondido atrás dos portões de ferro do seu banco de Beacon Hill?... Não havia um sobrinho? Um jovem conquistador com um apelido similar, a quem os Aldershots mantinham numa tênue corda bamba financeira, visando apenas impedir que o idiota envergonhasse a família... Não, era impossível. A sua secretária pessoal de quinze anos era uma mulher madura, já tinha sido uma noviça e renunciara aos votos, optando por um mundo mais material, mas, mesmo assim, era uma mulher profundamente dedicada à sua fé. Isso seria ridículo. Era uma coincidência. Pinkus abriu a porta e entrou no preciso momento em que o telefone tocava.

— Ok, Cyrus! — gritou Sam Devereaux no bocal do telefone. — Lembre-se, ele é um ator, por isso não perca a calma!... O quê? Ele quer um contrato que estipule seu estatuto de estrela?... Com quem... o quê? O nome impresso... em cima e em caracteres do mesmo tamanho do título? Que grande merda!... E o dinheiro, ele fez alguma exigência quanto a dinheiro?... Nada, só o estatuto? Meu Deus, escreva lá o que ele quiser e traga-o aqui!... Uma série de apresentações da peça, impossibilidade de demissão durante os ensaios sem uma indenização completa? Que diabos isso quer dizer?... Eu também não sei, mas ponha no contrato.


Uma hora e vinte e dois minutos depois, a porta da frente abriu-se e o cigano de camisa laranja com uma faixa azul comprida entrou cambaleando no foyer, rodopiando como se estivesse no balé, até que chegou na entrada da grande sala de estar onde os três advogados e o General MacKenzie Hawkins estavam sentados em semicírculo. Todas as cabeças se viraram para Roman Z quando ele fez sua apresentação.

— Linda, linda senhora, e os senhores, cavalheiros de... bem, aparência adequada. Apresento-lhes agora o coronel Cypress, um homem que tem a força de uma árvore do Mediterrâneo, que tem uma declaração a fazer.

— Já chega de falar dele! — ouviu-se o cochicho, vindo do foyer no escuro. — Sou eu, seu casca grossa!

Apareceu a figura enorme e envergonhada do mercenário negro.

— Olá, amigos — disse Cyrus, tão embaraçado quanto um homem normalmente confiante poderia ficar. — Gostaria de apresentar um artista que apareceu em muitos dos grandes espetáculos da Broadway do nosso tempo e que tem obtido excelentes críticas, unânimes...

— Isso é muito superficial, seu idiota!

— Um ator de suprema profundidade e ampla perversidade...

— Di-ver-sida-de, seu burro!

— Bolas, cara, faço o melhor que posso.

— Introduções compridas, inadequadamente apresentadas, matam uma entrada em cena. Saia da minha frente!

O homem alto e esbelto desceu os poucos degraus que davam para a sala com um talento e uma energia que negavam a sua idade. Com o cabelo grisalho e solto, feições bem marcadas e olhos cintilantes que sugeriam milhares de entradas elétricas em cena, ele assombrou o pequeno grupo à sua frente, como fizera com incontáveis casas cheias no passado. O seu olhar fixou-se em Aaron Pinkus; aproximou-se do advogado com uma reverência cortês.

— Convocou-me, sir, e eu obedeci. Sou seu criado e o mais ousado dos cavaleiros andantes, sir!

— Ora, Henry — disse Aaron, levantando-se e apertando a mão do ator. — Isso foi mesmo maravilhoso! Fez com que eu me lembrasse de seu espetáculo solo para o Hadassah da Shirley, um excerto do Príncipe Estudante, creio.

— Não me lembro das minhas apresentações menores, perdoe-me o termo, fora da cidade, meu caro rapaz... Contudo, creio que tenha sido aproximadamente há seis anos e meio, no dia doze de março, se não estou enganado, às duas da tarde. Recordo-me vagamente, porque não creio que estivesse com minha melhor voz nesse dia.

— Certamente que estava, foi esplêndido... Agora deixe-me apresentá-lo a meus amigos...

— Meu dó sustenido não estava cheio — continuou o ator — mas também, o piano era um pavor... você dizia, Aaron?

— Os amigos, queria que os conhecesse.

— Certamente que desejo conhecer, sobretudo esta adorável criatura. — Sir Henry pegou amão esquerda de Jenny e levou-a aos lábios, com os seus olhos a penetrarem nos dela ao beijar delicadamente as costas da sua mão. — Torna-me imortal ao tocar em mim, doce Helena... Já pensou alguma vez numa carreira teatral?

— Não, mas já trabalhei algum tempo como modelo — retorquiu Redwing, que, além de ter sido apanhada desprevenida, desfrutou modestamente o momento.

— Um passo, querida criança, apenas um passo, mas na direção certa. Talvez almocemos um dia. Dou aulas particulares e quanto aos honorários, digamos que são, em certos casos, dispensáveis.

— Ela é uma advogada, pelo amor de Deus! — exclamou Sam, sem saber ao certo por que se mostrava tão inflexível.

— É um tremendo desperdício — disse o ator, soltando lentamente a mão de Jenny. — Como disse o Poeta em Henrique VI, Segundo ato, “A primeira coisa que temos que fazer é matar todos os advogados”... Claro que isto não se aplica a você, Aaron, pois tem alma de artista.

— Sim, bem, deixe-me apresentá-lo, Henry. A atriz — a advogada — é Miss Redwing.

— Enchanté, mademoiselle...

— Antes que maltrate de novo a mão dela, sou Sam Devereaux e também sou advogado.

— Shakespeare tinha intuições fantásticas.

— E este cavalheiro com traje índio é o General MacKenzie Hawkins...

— Ah, é ele! — exclamou o ator, agarrando a mão do Hawk e apertando-a firmemente. — Vi aquele filme sobre ele... como pôde aguentar aquilo? Não teve influência na escolha do elenco, no roteiro? Meu Deus, aquele asno que representou seu papel deve ter usado batom!

— Acho que usou, sim — disse o general com desconfiança, mas sem esconder que tinha ficado um pouco impressionado.

— Senhores — interrompeu Pinkus —, quero que conheçam Henry Irving Sutton, cujo lar ancestral é Sutton Place, Inglaterra, a quem os jornais frequentemente se referem como Sir Henry Irving S., numa homenagem ao grande ator vitoriano com quem frequentemente é comparado. Um notável artista do palco...

— Quem disse? — perguntou Sam, petulantemente.

— Mentes pequenas têm grandes dúvidas — respondeu Henry Irving Sutton, olhando com assombro para Devereaux.

— Quem disse isso, o Gato Felix?

— Não, foi um autor teatral francês chamado Anouilh. Duvido que tenha ouvido falar dele.

— Ah, sim? Que tal “Nada resta a fazer senão gritar!”... hein? Que tal?

— Antígona, mas sua tradução está incorreta. — Sutton virou-se para Hawkins. — General, faça-me um favor... peço-lhe na qualidade de antigo segundo-tenente do teatro de operações africano, onde o ouvi falar muitas vezes, tantas quantas não o ouvi falar contra Montgomery.

— Esteve lá?

— No Serviço de Informações de Combate, ligado à OSS-Tobruk.

— Vocês eram o máximo! Conseguiram enganar os boches no grande Saara. Eles não sabiam onde estavam nossos tanques!

— Muitos de nós eram atores que falavam um pouco de alemão. Na realidade, fomos supervalorizados... era tão fácil representar soldados morrendo de sede e dar informações erradas ao entrar em coma... Era mesmo muito simples.

— Vocês usavam uniformes inimigos. Podiam ter sido fuzilados!

— Talvez, mas onde é que se tem a oportunidade de desempenhar esse tipo de papel?

— Pois bem, que se dane! Seja o que for, soldado, eu farei.

— Que se dane de novo — resmungou Devereaux. — Ele está sempre fazendo isso comigo.

— Quero que fale, General, de preferência recitando algo que ambos conheçamos, pode ser, digamos, umas rimas ou uma poesia, ou talvez a letra de uma canção, repetindo o que lhe agradar. E quero também que fale normalmente ou que grite, o que for mais natural.

— Vamos ver — disse o Hawk, entortando os olhos. — Sempre fui um pouco parcial em relação àquela velha canção do Exército, sabe qual é, “Pelas colinas, pelos vales, seguiremos o caminho empoeirado...”

— Não cante, General, basta recitar as palavras — ordenou o ator, começando imediatamente a imitar, com as suas expressões faciais, as de MacKenzie e fazendo sair sons em voz baixa, à medida que o velho guerreiro ia desfiando marcialmente os versos de The Caissons Go Rolling Along. Até que, de repente, como se as duas vozes de uma canção de roda se estivessem a fundir, uma a desaparecer e a outra a manter-se, Henry Irving Sutton estava a falar sozinho, com uma entoação e uma cadência, uma expressão corporal e contorções faciais quase idênticas às do Hawk.

— Bolas! — exclamou o general, tão confuso quanto assombrado. — Notável, Henry!

— Nada mal, se me permitem.

— É um ator fantástico, Sr. Sutton!

— Oh, não, querida filha do Eliseu — protestou Sir Henry Irving S. modestamente. — Isto não é representação, é mímica, o que qualquer cômico de segunda categoria consegue fazer. A menina é enganada pelos gestos e expressões, tanto quanto pelas entoações vocais... Eu explico isto minuciosamente nas minhas aulas particulares. Almoço?

— Por que diabo é que não o puseram a fazer o meu papel naquele maldito filme?

— Um agente péssimo, mon général, o senhor não faz ideia de como é... Imagine um destacado oficial de estado-maior que não pode mostrar o seu valor em combate porque o seu suposto superior receia que a organização se desintegre... no meu caso, foi um salário regular pago por uma telenovela.

— Eu mandaria fuzilar esse filho da mãe!

— Tentei isso. Felizmente, errei... Almoço, Miss Redwing?

— Acho que deveríamos nos limitar ao assunto em questão — disse Pinkus com firmeza, indicando as poltronas e o sofá para que todos se acomodassem. Sam correu para sentar entre Jennifer e Sutton.

— Naturalmente, Aaron — concordou o ator, fulminando o intruso com um olhar. — Eu só queria aliviar uma pequena alma que parece pertencer às Antilhas Pequenas, não sei se entendeu a metáfora mista.

— É singularmente óbvio, Cocas, o Sapo — disse Devereaux.

— Sam!

— Está bem Jenny, estou a exagerar na reação. Nunca faço isto no Tribunal.

— Negócios? — Pinkus fez um sinal para Cyrus, que, propositadamente, estava a procurar permanecer tão longe de Henry Irving S. quanto possível, pois a viagem com o ator desde Boston havia posto à prova, se não a sua saúde mental, pelo menos a sua paciência. — Será que o seu colega não deveria juntar-se a nós?? — perguntou Aaron.

— Eu direi tudo o que ele precisa saber — disse Cyrus, sentando-se. — Gostaria de manter tudo isto o mais simples possível. Para falar verdade, o conjunto formado pelo Roman Z e pelo seu novo recruta não parece ser o mais harmonioso. Mas eu saberei lidar com a situação.

— Você tem uma ótima voz grave, rapaz — interrompeu sir Henry nitidamente aborrecido por não ter conseguido ouvir Cyrus e o velho advogado. — Já cantou alguma vez Ol'Man River?

— Não me faça perder a paciência, cara — retorquiu o mercenário.

— Não, estou falando sério. Um remake de Showboat...

— Henry, meu amigo, tudo isso pode vir depois — interrompeu Aaron, erguendo ambas as mãos num gesto dissuasor. — Não temos muito tempo.

— Claro, meu caro rapaz, a cortina tem de subir.

— O mais cedo possível — concordou Cyrus. — Talvez até hoje à noite, de preferência hoje à noite, se conseguirmos.

— Como acha que devemos fazer? — indagou Jennifer.

— Posso estabelecer contato com esse pseudocomitê Nobel, na qualidade de assessor do General — respondeu o mercenário. Trouxe roupas decentes na mala, mas teremos de arranjar algo para Roman vestir.

— Meu cunhado tem um armário cheio de roupas e ele é mais ou menos do tamanho de seu colega... faz musculação, apesar da idade. Além do mais, Mrs. Lafferty é uma excelente costureira...

— Então está resolvido — interrompeu o impaciente Cyrus.

— Só temos que tentar descobrir quem são realmente esses palhaços do Air Force Two e como lidar com eles.

— Eu já fiz isso — informou MacKenzie Hawkins, acendendo de novo o charuto mascado.

— O quê?

— Como?

— Quando?

O tumulto das vozes aturdidas assaltou o Hawk, que se limitou a erguer as sobrancelhas cerradas e a formar um anel de fumaça com a boca.

— Por favor, General! — pressionou Cyrus. — Isso é importante. O que fez?

— Vocês, advogados e químicos, pensam que são espertos, mas têm umas memórias muito curtas...

— Pelo amor de Deus...

— Sobretudo você, Sam. Foi você quem imaginou o que estaria acontecendo; claro que eu estava na frente, mas fiquei orgulhoso com sua análise.

— Do que está falando?

— Do Little Joey, rapaz! Ele ainda está lá...

— Quem?... Onde?

— Naquele hotel, o Four Seasons. Falei com ele há meia hora e ele está por dentro de tudo.

— Por dentro de quê? Você não pode confiar nesse filho da mãe, Mac, foi você mesmo que disse!

— Agora posso — disse o Hawk, enfaticamente. — Ele abusa flagrantemente de seus privilégios nas gratificações diárias, o que é sinal seguro de que é um subordinado independente, e tenta repetidamente me provocar... aí está um homem em quem se pode depositar alguma fé.

— Essa lógica me escapa — disse Pinkus.

— Ele é maluco — disse Jennifer em voz baixa, com os olhos, muito abertos e descrentes, fixos no general.

— Não estou assim tão seguro quanto a isso — comentou Cyrus. — Um subordinado hostil revela sua posição. Não é provável que seja mais prejudicado por ele, só porque fez isso.

— Você também é maluco — disse Devereaux.

— Nem tanto — o mercenário negou com cabeça. — Há um ditado que vem do tempo das guerras dos cossacos: “Beije a bota antes de cortá-la fora com seu sabre.”

— Gostei, gostei — exclamou o ator. — Uma perfeita cortina de segundo ato!

— Talvez eu seja maluca também — acrescentou a filha dos Wopotamis — mas acho que os estou a perceber.

— Espero que sim — disse Sam, sarcasticamente. — Para seu esclarecimento, Mrs. advogada, não se lança uma suspeita sobre si mesmo antes de se cometer um crime.

— Sabichão — resmungou Redwing. — Entendo onde é que quer chegar, Cyrus, e então, o que fazemos?

— A questão é, o que o General fez?

— É bastante aceitável — disse o Hawk. — E, atendendo ao seu passado, acho que o senhor aprovará... Dei instruções ao Little Joseph — que, embora avançado em anos, é um batedor de infantaria nato — para examinar a situação de todos os ângulos do campo de batalha. Ele inspecionará acampamentos, localização das tropas de apoio logístico e de fogo, caso exista, rotas de fuga, se necessário, e a melhor camuflagem que se possa usar para atingir o alvo zero.

— Zero quê? — exclamou Sir Henry.

— Não, não, Henry, tenho certeza de que o General está exagerando! — interrompeu Pinkus, lançando um olhar severo a MacKenzie e depois desviando-o para Cyrus. — Garantiu que não haveria violência, que não deixariam de ser tomadas todas as medidas de segurança!

— Não haverá violência alguma, Mr. Pinkus. O General está apenas usando termos militares para descrever os aposentos do pseudocomitê no hotel e os trajes adequados...

— Não interpretou bem o que eu disse, Aaron, querido rapaz! — O ator se levantou, o perfil do lado direito, queixo firme e olhos cintilando. — Eu recebo de bom grado a missão como uma tarefa gloriosa, qualquer que ela seja. Lembra-se, General, de quando nos juntamos aos ingleses e abrimos caminho até El Alamein?

— Claro que me lembro, major Sutton!... Acabo de promovê-lo, saltando alguns graus na hierarquia militar... prerrogativa do comando, é claro.

— Aceito o posto, General — Sir Henry virou-se e fez continência, ao mesmo tempo em que o Hawk se levantava e respondia. — Tragam esses degenerados! Uma vez no interior da brecha, fechem as muralhas com a nossa equidade morta... e também com o Sindicato dos Atores de Cinema e a AFTRA, é claro. Não tememos ninguém... faz o sangue ferver, não é, General?

— Rapazes, vocês foram realmente os melhores no grande Saara. Tiveram toda a coragem do mundo, soldado.

— Coragem, que diabo, era a síntese adequada da técnica clássica e do melhor de Stanislavski, não esse disparate do método prescrito por gurus de quinta categoria, que ensinam que limpar o nariz com a ponta do dedo é mais aceitável do que assoá-lo.

— Fosse como fosse, Major, sobreviveu. Lembra-se das redondezas de Benghazi, quando a brigada...

— Eles são malucos! — Sam cochichou para Jennifer. — Estão no meio de um tufão, remando numa canoa furada.

— É melhor você se controlar, Sam! Os dois são... bem, ambos são maiores do que a vida e é confortável ver uma coisa dessas.

— O que está querendo dizer com isso?

— Bem, num mundo de burocratas de terno e gravata, é um alívio saber que há homens que ainda são capazes de caçar tigres assassinos.

— Conversa fiada antediluviana e imatura!

— Sim, eu sei — disse Redwing, sorrindo. — Não é bom ver que ainda existe?

— E você diz que é uma mulher emancipada...

— Embora eu seja, acho que nunca afirmei que fosse... isso é mesmo antediluviano. Mas esses velhos não são, eles estão apenas revivendo um mundo que conheceram. Reconheço a existência desse mundo e o que eles fizeram para torná-lo melhor. Quem não reconheceria?

— Você está transbordante de bondade, queridinha!

— E por que não? Tribunal à parte, ganhei todas as questões que levantei. Na realidade, ganhei demais, e me sinto reconhecida.

— Com um pouco de “espelhos e fumaça”, como disse nosso general. “Os melhores esforços” ainda é um eufemismo para “Está bem, vou tentar, mas se não conseguir chegar a parte alguma, bato em retirada. Rapidamente.”

— Fale nisso e vai descobrir como sou emancipada, advogado — disse Jennifer com serenidade, mais uma vez sorrindo. — Não lhe restará nada com que borrar as calças... Vamos interromper as histórias de guerra, está bem?

— Mac! — gritou Devereaux, fazendo com que os dois veteranos da campanha do Norte da áfrica o fitassem como se ele fosse uma lesma horrorosa que aparecesse num prato de spaghetti. — Como sabe que esse tal Little Joseph vai mesmo fazer o que você disser? Você descreveu um verme... pode ser que não o prejudique, mas é, ainda assim, um verme. E se ele lhe disser algo que acha que você deseja ouvir?

— Ele não poderia fazer uma coisa dessas, Sam. Sabe, eu falei com o oficial superior dela, que, posso garantir, tem patente muito alta, a mesma categoria que o Comandante Pinkus e que eu... com talvez um pouco mais de influência onde ela é relevante.

— E daí?

— E daí que essa pessoa muito importante tem fortes razões pessoais para querer que completemos nossa missão, o que não poderemos fazer se não conseguirmos comparecer perante a Suprema Corte dentro de oitenta e sete horas, a contar deste preciso momento.

— Oitenta e sete o quê? — indagou um confuso Aaron.

— Estamos em contagem regressiva, Comandante. O objetivo será atingido em, aproximadamente, oitenta e sete horas.

— Esse objetivo tem algo a ver com o “alvo zero”? — insistiu o velho advogado.

— Major Sutton, consegue imaginar que esse cara tenha estado na Praia de Omaha?

— Provavelmente cumprindo serviço militar, General...

— Sim, estava, e com um rifle, e não um código.

— Alvo zero, meu caro Aaron, é o objetivo imediato. Não há nenhum objetivo antes dele... por isso mesmo é que é zero. Por exemplo, na marcha para El Alamein, tínhamos, em primeiro lugar, que tomar Tobruk, que, assim, era o alvo zero. El Alamein era o objetivo final. Na verdade, nas crônicas de Froissart — nas quais Shakespeare baseou suas histórias, juntamente com Holinshed, são mencionados os termos...

— Chega, chega! — gritou um exasperado Devereaux. — Que raios isso tem a ver com um vigarista chamado Little Joseph, que está no Four Seasons? Repetindo, Mac, o que o leva a pensar que ele fará o que você lhe ordenar? Ele já mentiu antes.

— Obviamente, em circunstâncias bem diferentes — disse Jennifer, antes que o Hawk pudesse responder. — Não se esqueça de que ele é subordinado do tal oficial superior muito importante.

— Bem no alvo, Miss Red. É como saber se o Joseph continua a respirar ou não. — Bem, se é esse o caso...

— É o caso — confirmou Hawkins. — Como você sabe muito bem, não cometo erros nessa área. Além da Belgrave Square, em Londres, será que tenho que lembrar aquele country club em Long Island, ou o aviário em Berlim, ou aquele sheik maluco em Tizi Ouzou que queria trocar minha terceira mulher por dois camelos e um pequeno palácio?

— Chega, General! — disse Pinkus com firmeza. — Lembro-lhe que não haverá reminiscências de acontecimentos passados desse tipo. E agora, sentem-se e vamos continuar a tratar do negócio que temos em mãos.

— Certamente, Comandante!

Os dois veteranos de El Alamein se sentaram e o Hawk continuou. — Mas não podemos fazer muita coisa enquanto Little Joseph não apresentar seu relatório.

— E como ele vai fazer isso? — perguntou Devereaux. — Por pombo correio, que virá diretamente de sua janela no hotel para o principado de Tizi Ouzou?

— Não, filho, por telefone. — E, nesse mesmo instante ou como Sir Henry poderia dizer, mesmo na hora da deixa, o telefone tocou. — Eu atendo — disse o Hawk, levantando-se e caminhando rapidamente para a mesinha branca antiga encostada na parede. — Tenda Fumegante do Acampamento — disse, com o telefone ao ouvido.

— Ei, fazool — surgiu na linha a voz excitada de Little Joey, o Mortalha. — Não vai acreditar na merda em que se meteu! Juro pela sepultura da minha tia Angelina que nenhum sapateiro, inclusive o palhaço do meu tio Guido, vai poder limpar suas botas!

— Acalme-se, Joseph, e fale com clareza. Só quero que me dê o reconhecimento do terreno, os fatores relevantes.

— Que linguagem maluca é essa?

— Estou surpreso por ver que não se lembra da linguagem da campanha da Itália...

— Nessa época eu estava mais embaixo. Do que está falando?

— Das estatísticas técnicas, de quando você os observou no hotel...

— Não é de admirar que vocês, fazools, chupem o sangue dos contribuintes! Nenhum filho da mãe consegue compreendê-los... vocês assustam!

— O que você descobriu, Joseph?

— Para começar, se esses palhaços são suecos, eu nunca comi uma almôndega norueguesa, ou então comi uma vez, porque uma bomberinna loura, com quem eu costumava sair há séculos atrás, fazia almôndegas para provar que a variedade da Guiné não era tão...

— Joseph, essa história é comprida? O que você descobriu?

— Está bem, está bem... Eles têm três suítes, cada uma com dois quartos, e, distribuindo grana entre arrumadeiras e garçons, descobri que todos falam um americano normal, sabe, inglês. Descobri também que são malucos, sabe, completamente doidos. Andam olhando espelhos e falando com seus botões de uma forma engraçada, como se não soubessem para onde estão olhando.

— E tropas de apoio, armamento?

— Não têm nada! Verifiquei todas as escadas e até mesmo os quartos mais próximos com um enchilada chamado Raul, que me custou duzentas das pequenas só para dar uma olhada no registro de hóspedes... ninguém nas proximidades pode ter qualquer relação, mesmo por coincidência. A única possibilidade seria um palerma chamado Brickford Aldershotty, que acabou hóspede por uma única noite.

— Vias de fuga?

— Os cartazes indicam as escadas, o que posso dizer mais?

— Então você está dizendo que a praia está limpa...

— Que praia?

— Alvo zero, o hotel, Joseph!

— Qualquer pessoa pode entrar ali como em qualquer igreja em Palermo num domingo de Páscoa.

— Mais alguma coisa?

— Sim, aqui estão os números dos quartos — o Mortalha deu os números e depois acrescentou: — Outra coisa, seja qual for a pessoa que mandar, tem que ter músculos, entende o que quero dizer?

— Explique-se melhor, Joseph.

— Bem, uma criada de olho vivo chamada Beulah contou que os palhaços quebram garrafas, deixam os estilhaços no chão com as pontas de vidro viradas para cima e fazem flexões em cima delas, às vezes duzentas flexões. Eu disse, que besteira!


22

Meat D'Ambrosia entrou pela porta giratória de vidro do edifício Axel-Burlap, na Wall Street, Manhattan, pegou o elevador até o nonagésimo oitavo andar, abriu caminho através de outras portas de vidro e apresentou seu cartão a uma escultural recepcionista inglesa.


SALVATORE D'AMBROSIA, CONSULTOT.


O cartão tinha sido impresso por um primo seu numa gráfica de Rikers Island, a prisão da cidade.

— Gostaria de falar com um tal Ivan Salamander — disse Salvatore.

— Ele está a sua espera?

— Isso não interessa, ligue, gatinha.

— Sinto muito, Sr. D'Ambrosia, mas ninguém fala com o presidente da Axel-Burlap sem notificação prévia e certamente que não o recebe pessoalmente sem uma entrevista previamente marcada.

— Faça um teste, queridinha, e pode acontecer que eu tenha de quebrar a sua mesa.

— O quê?

— Ligue, capisce?

O Sr. D'Ambrosia foi prontamente recebido no sanctum sanctorum forrado com lambris de nogueira de um tal Ivan Salamander, presidente da terceira maior sociedade corretora de Wall Street.

— O que... o quê? — guinchou o macilento Salamander, um cara de óculos, sempre enxugando o suor que escorria permanentemente da linha do cabelo. — Precisava assustar dessa maneira a porcaria de uma recepcionista que tem toneladas de classe, pela qual paguei transporte aéreo, um casaco de visom e um salário cujo montante minha mulher não pode descobrir?

— Precisamos conversar, Sr. Salamander e, mais importante, precisa me ouvir. E sua secretária particular não ficou assim tão perturbada.

— Certamente, certamente, eu disse a ela para ficar fria! — gritou Ivan, o Terrível, o apelido de Salamander em Wall Street. — Acha que sou idiota? Idiota é que não sou, Sr. Brutamontes, e preferia que dissesse o que tem para me dizer numa dessas pocilgas onde servem spaghetti podre no Brooklyn!

— Meus associados e eu também não somos muito apreciadores desse seu salame e desse seu peixe fedorento. Suas delicatessen empestam todo o bairro.

— Já que as nossas diferenças culinárias estão resolvidas, o que devo ouvir de tão valioso de um soldado de rua? Hein, hein?

— O que tenho aqui comigo provém do grande homem em pessoa e se tiver instalado aqui uma daquelas gravações, ele vai cortar seu pescoço. Capisce?

— Dou-lhe a minha palavra, a minha palavra, não tenho nada disso aqui! Acha que eu sou maluco? O que diz o grande homem?

— Compre ações da defesa, sobretudo aeronáutica e afins... Espere um pouco, tenho que ler isso — D'Ambrosia enfiou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel. — Pronto, aqui está. "Aviões e tudo relacionado a fornecimento de componentes”. Componentes, é a palavra que não conseguia lembrar.

— Isso é uma loucura! A indústria da defesa escorre pelo ralo, com orçamentos cortados em toda parte!

— Aqui está o resto do recado e, repito, se houver alguma fita rodando, será pendurado num gancho de matadouro.

— Nunca, nunca, você é meshuga?

— As coisas têm mudado muito — Meat olhou outra vez suas instruções e, durante algum tempo, ficou lendo em silêncio, mexendo os lábios. — O.K., aqui está... “Ocorreram fatos alarmantes” — D'Ambrosia continuou a sua recitação mecânica —, “dos quais o país não pode saber muito a respeito, porque poderiam dar pânico...”

— Quer dizer causar?

— Estou do seu lado. Tanto faz.

— Continue.

— Têm havido muita interferência nas transmissões militares via satélite sub... subestratosféricas, pelo que se pode concluir que as aeronaves de alta altitude estão... ferrando tudo.

— Alta altitude — tipo U-2? Os russos estão de volta?

— “O equipamento inimigo ainda não foi identificado” — retorquiu Meat, lendo, o melhor que podia. — “... e, no entanto, os incidentes aumentaram em número e ferocidade, e... os Kremlins da Rússia... confirmaram secretamente esses acontecimentos.” — Aqui, Salvatore D'Ambrosia, também conhecido por Meat, dobrou o pedaço de papel e continuou sozinho: — “A Terra inteira, especialmente os U.S. da A., estão em alerta secreto de emergência. Podem ser os chinas ou os árabes ou os hebreus lançando todas essas besteiras...

— Isso é uma loucura!

— Ou ... — Salvatore D'Ambrosia baixou a voz e se benzeu, fazendo o sinal da cruz corretamente em seu largo peito —, coisas sobre as quais nada sabemos, lá de cima. — Meat ergueu os olhos para o teto, em seu olhar uma oração, se não um pedido de misericórdia.

— O que? — gritou Salamander. — Esse é o maior pedaço de queijo da Guiné que eu já ouvi! Aeronáutica! Discos voadores! Está cheio de ... hoo-hoo, espere um minuto ... é positivamente, absolutamente brilhante. Coisa que nenhum corretorzinho de ações poderia inventar!... Temos um novo inimigo para o qual devemos armar o mundo. UFOs!

— Pegou então o sentido do que o homem mandou dizer?

— Se peguei? Adorei!... — Um súbito pensamento cruzou seu cérebro. — Que grande homem? Ele foi fazer companhia aos peixes!

Aquele era o momento para o qual Meat se preparara e que ensaiara até conseguir fazer, mesmo com a cabeça encharcada de Chianti. Enfiou a mão no outro bolso e tirou um envelope pequeno com uma tarja preta, igual em tamanho e aparência a um cartão de luto. Entregou-o ao fascinado Salamander com nove palavras simples que repetiria até mesmo em seu leito de morte: — Se soltar uma só palavra disso... deixa de respirar.

Com o olhar desconfiado oscilando entre a cara de Meat e o envelope agourento, Ivan o Terrível pegou seu reluzente punhal de cobre para abrir cartas, introduziu-o num canto do envelope... cortou o papel e retirou a mensagem. No mesmo instante, seu olhar procurou a parte de baixo, as iniciais rabiscadas que ele conhecia tão bem. Arquejou, levantou a cabeça e fixou os olhos em Salvatore D'Ambrosia.

— Isso é mais do que impossível! — murmurou.

— Tenha cuidado — disse Meat, não mais alto do que Salamander, ao mesmo tempo em que passava lentamente o dedo indicador pela garganta. — Lembre-se, deixa de respirar. Leia.

Morrendo de medo, com as mãos tremendo, Ivan começou pela parte de cima da página.

 

Siga as instruções como transmitidas verbalmente pelo mensageiro. Nem sequer pense em desobedecer a um único ponto. Estamos no meio de uma operação de máximo sigilo, só para seus olhos, secretíssima, cortina negra, tipo só sabe quem precisa. Tudo lhe será explicado num período razoável de tempo. Agora, na frente do mensageiro, queime este papel e o envelope, ou, com amor no coração, o mensageiro será forçado a queimar você.

Eu voltarei.

VM.

 

— Tem fósforo? — perguntou, em voz baixa, o petrificado Salamander. — Deixei de fumar por motivo de saúde. Seria uma pena se fosse “queimado”, já que não fumo.

— Claro — disse Meat, atirando uma caixa de fósforos em cima da mesa. — Depois de queimar o papel, fará outra coisa antes de eu ir embora.

— Diga. Quando recebo mensagens do além, eu não hesito.

— Pegue o telefone e compre cinquenta mil ações da Petrotoxic Amalgamated.

— O quê...? — Ivan, o Terrível, deu um grito agudo, com a testa cheia de gotas de suor. Depois, aterrorizado, viu D'Ambrosia enfiar a gigantesca mão direita embaixo do casaco. — Sim, certamente, claro. Por que não? Vamos comprar setenta e cinco, por que não?


Mais cinco visitas de cortesia semelhantes foram feitas por Meat, o Mensageiro, todas com resultados similares — um grito a mais, um grito a menos —, dando origem a uma orgia de compra, compra, compra, que já não se via desde que o índice Dow Jones subiu três mil e continuou a subir. Como consequência natural, as cenouras estimularam os burros (os cavalos podem não ser brilhantes, mas são mais espertos) em suítes executivas espalhadas por toda a nação. Uma louca diversificação e um consumado excesso de ofertas foram a ordem do dia e as ordens de compra subiram aos bilhões. Alguma coisa realmente grande estava acontecendo e os rapazes espertos do dinheiro e a fraternidade dos conglomerados iam subir naquele fantástico balanço de balanços econômicos.

 

Compre essas empresas de computadores, que se lixe o preço!

Consiga o controle de todas as empresas subsidiárias com subcontratos no fornecimento de peças na Georgia e não me aborreça com números!

Estamos negociando uma posição de força, seu idiota! Quero a maioria na McDonnell Douglas, Boeing e Rolls-Royce Aeroengines, e, pelo amor de Deus, não pare de fazer ofertas enquanto não conseguir tudo!

Compre a Califórnia!

 

Com base numa ficção inflacionada, envolta num mistério capaz de impressionar Little Joey, para não falar em Houdini e Rasputin, bilhões de dólares em débitos foram acumulados pelos inimigos de Vincent Francis Assisi Mangecavallo, que, sentado à sombra de um chapéu-de-sol em Miami Beach, Flórida, com um charuto Monte Cristo na boca, um telefone celular ao lado, bem como um rádio portátil e uma margarida na bandeja de plástico na sua frente, exibia um largo sorriso.

— Acompanhem a onda grande, seus cowboys de country club — disse a si mesmo, pegando o copo e, com a mão livre, ajeitando a peruca ruiva. — Esperem até que o mar seque como aquele de Moisés... que descanse em paz! Vocês serão sugados para a areia, seus filhos da mãe! Quando quiserem fazer um contrato para acabar comigo, é melhor lerem as letrinhas pequenas. Penicos no Cairo, este será seu destino!


Sir Henry Irving Sutton sentou, rígido e furioso, na cadeira da cozinha, enquanto Erin Lafferty enfiava a tesoura na sua graciosa coroa de glória grisalha.

— Apare, criada, apare só, ou então vai passar o resto da sua vida miserável na cozinha!

— Você não me assusta, seu velho chato — disse Erin. — Eu o via naquele programa que passava à tarde, Forever All Our Forevers, Para Sempre Todos os Nossos Para Sempre... há quanto tempo foi isso? Dez anos?... Sei tudo de você, rapaz.

— Como?

— Você estava sempre gritando e brigando com esses garotos, até deixá-los malucos. Depois se trancava e chorava, dizendo a si mesmo que a vida que eles tinham levado era muito fácil e que precisavam ser mais matreiros, de forma a que pudessem enfrentar os terríveis infortúnios que viriam... e por Jesus, Maria e José, essas palavras pareciam saídas do Evangelho! Como sofriam! Mas, na realidade, você tinha pena, por todas as coisas más que precisava lhes dizer, desejando não ter que dizer... Ora, no fundo, no fundo, você é um molengão, avô Weatherall!

— Eu só estava desempenhando um papel, Mrs. Lafferty.

— Pode chamar-lhe o que quiser, Sr. Sutton, mas para mim e para todas as meninas do velho Sul, você era o único motivo pelo qual assistíamos a esse programa idiota. Estávamos todas apaixonadas por si, rapaz.

— Eu sabia que esse filho da mãe nunca me conseguiria um contrato decente! — exclamou o ator, num fio de voz.

— O que disse?

— Nada, querida senhora, nada. Corte, corte! A senhora é nitidamente uma mulher de muito bom gosto.

A porta da cozinha foi escancarada e surgiu o gigantesco Cyrus, com o rosto escuro a brilhar de animação.

— Estamos no ar, General!

— Ótimo, meu rapaz! Onde está meu uniforme? Sempre fiquei muito bem com uma plumagem militar.

— Nada de plumas, nada de uniformes, isso está fora de questão.

— Pelo amor de Deus, por quê?

— Para começar, o General já não é general, por pressão do Pentágono e de quem quer que tenha influência em Washington, inclusive da Casa Branca. Em segundo lugar, chamaria atenção para nós, o que não é prático.

— É difícil entrar num papel sem o equipamento adequado, o que, naturalmente, inclui a roupa certa, como um uniforme... Na realidade, como general, estou acima de você, Coronel.

— Se quer entrar nesse jogo, senhor ator, o senhor está a representar o papel de um general; foi promovido em serviço a major e a mim, foi-me atribuído o posto de coronel. O senhor perde, Sir Henry.

— Malditos civis impertinentes...

— Onde diabo é que o senhor está, ainda na Segunda Guerra Mundial?

— Não, eu sou um artista! E os senhores são todos civis... e químicos...

— Homem, você e o Hawkins têm mais em comum do que El Alamein. Mas muitos dos generais que conheci eram também atores. Ande, vamos. Eles nos esperam às vinte e duas.

— Vinte e duas o quê?

— Horas, Major, ou General, se preferir. É assim que os militares dizem dez horas da noite.


As três suítes do comitê Nobel eram contíguas, tendo os quartos do meio sido designados como a área de reunião entre o augusto General MacKenzie Hawkins, o Soldado do Século, e os distintos “visitantes de Estocolmo”. Conforme negociações feitas com o ajudante do general, o coronel Cyrus Marshall da reserva do Exército dos Estados Unidos, a conferência deveria ser privada, sem cobertura da imprensa ou distribuição de comunicados. Como o coronel explicou, embora o famoso combatente se sentisse extremamente honrado com o prêmio, estava atualmente em reclusão, a escrever as suas memórias, Paz com Sangue, e queria conhecer a extensão dos seus compromissos de viagem e com a mídia, antes de tomar a decisão de aceitar. O porta-voz do comitê, Lars Olafer, reagiu ao encontro secreto com tamanho entusiasmo que o coronel Cyrus resolveu adicionar armas de gás paralisante ao arsenal completo que ele e Roman Z levariam disfarçadamente. A armadilha seria invertida, na melhor tradição das forças subterrâneas, e Cyrus sabia exatamente como proceder. Tratava-se de prender esses ratos, de os imobilizar, de os arrastar em pés e mãos atados e de os submeter a um interrogatório que geralmente era descrito como psicologicamente macabro, mas sem sofrimento físico. Do estilo de se colocarem picadores de gelo diante dos seus olhos.

— Eu ficaria muito mais impressionante de uniforme! — exclamou Sutton, furioso, percorrendo o corredor do hotel vestido com um terno risca de giz recrutado em seu apartamento de Boston. — Esta maldita roupa seria adequada para A Milionária, de Shaw, mas não para esta missão.

— Ei, você está lindo — disse Roman Z, apertando a bochecha de Sutton para espanto do ator. Só deveria, talvez, pôr uma flor na lapela, daria uma certa distinção.

— Para com isso, Roman — disse Cyrus, em voz baixa. — Ele está ótimo... Está pronto, General?

— Você está falando com um profissional, caro rapaz. A adrenalina flui quando chega o momento. Agora, começa a magia! Bata na porta, preceda-me, como é tradição, e farei minha entrada.

— Lembre-se, velhinho — advertiu o mercenário na porta. — É um ator extraordinário e eu reconheço isso, mas, por favor, não se entusiasme e não os assuste demais. Queremos saber tudo o que for possível antes de fazermos nossa jogada.

— Virou diretor, Coronel?... Pois permita que eu lhe explique que há três coisas muito importantes no teatro: talento, gosto e tenacidade e dentro da segunda categoria está contido o conselho de Hamlet aos atores. Lembro-me de uma vez em Poughkeepsie...

— Deixe a aula para outra ocasião, Sr. Sutton. Por ora, vamos fazer com que a magia comece, O.K.? — Cyrus bateu na porta da suíte, assumindo toda a sua estatura militar e seu porte ereto. A porta foi aberta por um homem de cabelos brancos e barbicha grisalha e pince-nez equilibrado sobre o nariz. — Coronel Marshall — continuou Cyrus, apresentando-se. — Chefe ajudante de campo do General MacKenzie Hawkins.

— Välkommen, Coronel — disse a imitação de delegado idoso, supostamente da Suécia; falava com um sotaque escandinavo tão forte que fez o viajado Cyrus estremecer. — Temos um enorme prazer em conhecer o grande general — o delegado, inclinando-se obsequiosamente, recuou de modo a permitir a entrada do celebrado Soldado do Século, que atravessou a porta como um Colosso de Rodes que pudesse andar, com um agitado Roman Z a caminhar depressa à sua retaguarda.

— Sinto-me profundamente honrado, cavalheiros! — exclamou o ator, com uma forma de falar parecidíssima com a do General MacKenzie Hawkins. — Não apenas honrado como também dignificado pela sua escolha deste ator de composição nos maiores conflitos do nosso tempo. Eu apenas fiz o melhor que podia e, como um velho soldado temperado pelas batalhas, só posso dizer que tudo o que fizemos se deveu aos nossos heroicos mortos, essas bravas almas que, sobrevivendo, impeliam-nos para a frente, para a vitória!

De repente ouviu-se um burburinho de muitas vozes e vários sotaques, nenhum deles tendo qualquer coisa a ver com a língua sueca.

— Meu Deus, é ele!

— Por Deus, é mesmo!

— Não acredito! Eu pensava que ele tinha morrido há anos!

— Nunca no palco, nunca! Ele nunca morreu em cena, foi sempre magnífico!

O melhor ator secundário do nosso tempo! O Walter Abel dos anos setenta e oitenta. O brilho personificado!

— Que diabos está acontecendo aqui? — gritou o coronel Cyrus, com a voz naturalmente bem dotada mas sem treino, não fazendo sombra à unidade clandestina de atores de Ethelred Brokemichael. — Será que alguém pode me dizer? — berrou ele, tentando ser ouvido por entre a algazarra que os Seis Suicidas faziam, reunidos em torno do “General MacKenzie Hawkins”, apertando sua mão, dando palmadinhas nas suas costas, podendo-se ver até um mais excitado beijando seu anel do Clube de Atores. — Que diabo! Alguém quer fazer o favor de me explicar o que está acontecendo?!

— Deixe-me tentar! — disse Dustin, afastando-se dos demais, com o olhar deslumbrado. — Você foi obviamente recrutado na parte final desta operação, de forma que não teria meios de saber, mas este não é o palhaço do Hawkins, mas sim um dos maiores atores do nosso teatro! Todos nós o vimos quando era mais jovem, estudamos suas interpretações e o seguimos até o Joe Allen's, que é um bar muito frequentado por atores. Depois o bombardeamos de perguntas, tentando absorver tudo o que ele pudesse compartilhar.

— Compartilhar o quê? Do que está falando?

— Este homem é Henry Irving Sutton! O Sutton, Sir Henry...

— Sim, eu sei — interrompeu Cyrus, falando em voz baixa e deixando transparecer a essência de uma derrota abjeta. — Assim chamado em homenagem a um ator inglês morto há muitos anos... Espere um momento! — gritou, de repente, o mercenário. — Quem são vocês?

— Só damos nome, posto e número de série — retorquiu Marlon, ouvindo a pergunta de Cyrus e, relutantemente, desviando a atenção do adulado Sutton, que aceitava os louvores de seus pares com brilhante humildade. — Digo isso com tristeza, Coronel, pois uma vez fiz um pequeno papel num filme de Sidney Poitier e ele também é um artista maravilhoso.

— Nome, posto e... que história é essa?

— Exatamente o que eu disse, Coronel. Nome, posto e número de série, de acordo com as leis da Convenção de Genebra. Nada mais.

— São soldados?

— E dos mais completos — respondeu Dustin, olhando para seu herói, ou seja, Henry Irving Sutton, que fazia perdurar o encantamento dos adoradores contando histórias de antigos triunfos. — Aceitamos os riscos do combate sem uniforme, mas até hoje isso não tem sido problema.

— Combate?

— Atividades secretas selecionadas, operações cinzentas... negras... a referência a “negras” nada tem a ver com raça, claro.

— Eu sei o que é black op, só não sei quem são vocês!

— Acabei de lhe dizer, somos uma unidade militar especializada em atividades clandestinas, em missões que envolvem segurança máxima.

— E essa história do comitê Nobel é uma dessas operações?

— Aqui entre nós — disse Dustin confidencialmente, aproximando-se de Cyrus —, tem sorte de sermos quem somos, senão sua aposentadoria escorreria pia abaixo. Esse homem não é o General Hawkins! Foi enganado, Coronel, vigarizado, se entende o que quero dizer.

— Fui...? — disse Cyrus, olhando fixamente, como num estado catatônico.

— Com certeza que foi, como obviamente também Mr. Sutton... Sir Henry. Ele nunca macularia sua magnífica reputação se envolvendo numa conspiração global destinada a arruinar a primeira linha de defesa da nação. Nunca!

— Primeira linha de defesa... conspiração global...?

— Nossas instruções vão até esse ponto, Coronel.

— Isso é demais! — exclamou Cyrus, como se estivesse saindo de um transe. — Quem são vocês e de onde é que vêm?

— De Fort Benning, sob o comando do Brigadeiro Ethelred Brokemichael. Nossos nomes específicos não são relevantes nem necessários nesta conjuntura. Basta dizer que nos chamam de Os Seis Suicidas.

— Os Seis...! Meu Deus, o máximo da Força Delta? A unidade antiterrorista mais eficiente que já entrou em ação até hoje!

— Sim, é o que temos ouvido por aí.

— Mas são... são...

— Atores? Isso mesmo, somos atores.

— Atores? — Cyrus gritou tão forte que Henry Irving Sutton e seus adoradores ficaram em silêncio, olhando para o mercenário com espanto. — São... são todos atores?

— E o mais perfeito grupo de confrades que já encontrei em muitos anos, Coronel. Representam seus papéis com perfeição. Repare no cuidado que tiveram com a roupa, o corte europeu apropriado, as cores discretas, como convém a distintos acadêmicos. Extasie-se também perante a extrema atenção que deram aos efeitos capilares... uns toques de cinza, nada de exageros, para acrescentar alguns anos às suas idades. E a postura deles, Coronel, os ombros sempre tão ligeiramente encurvados e as pequenas concavidades dos seus peitos, conforme observamos ao entrar; e o pince-nez e os óculos de armação de tartaruga, tudo marcas de homens com profissões sedentárias e com os olhos cansados... Sim, Coronel, eles são, na realidade, atores... excelentes atores.

— Ele repara em tudo!

— Que poder de observação!

— Em cada detalhe, sem exceção...

— Os detalhes, cavalheiros — proclamou Sutton —, são as nossas armas secretas, nunca se esqueçam. — Um coro de “Nunca!” “Certamente que não!” e “Como poderíamos?” seguiu-se à proclamação, até que o velho ator levantou as mãos. — Mas é claro que não preciso, realmente, de lhes dizer uma coisa dessas. Estou a ver que enganaram vários milhões de pessoas com o seu desempenho no aeroporto... Muito bem, sacerdotes de Tespis! Agora quero conhecer cada um de vós. Os seus nomes, por favor.

— Bem — começou, nada sutilmente, o porta-voz, Lars Olafer, acenando com a cabeça para os mercenários —, se não estivessem aqui certas pessoas, nós nos apresentaríamos entusiasticamente com nossos nomes verdadeiros, mas temos ordens para usar os nomes de código, o que, no meu caso, é muito embaraçoso.

— Por quê?

— Para ser franco, tenho um título imerecido, que você ganhou, mas eu não... Sou tratado por Sir Larry, pois meu primeiro nome é Laurence.

— Com “u”?

— Ah, sim, claro.

— Então eu digo que fez por merecer. Quando Larry e Viv1 estavam juntos, tomamos muitas cervejas, e, na realidade, há uma certa semelhança entre você e esse magricela do qual se gostava com muita facilidade. Representei o Primeiro Cavaleiro no Becket dele e do Tony Quinn, claro.

— Eu podia morrer aqui neste instante...

— Esteve ótimo!

— Magnifico!

— Extraordinário!

— Aceitável, se me permitem.

— Acabemos com essa palhaçada, se me permitem! — berrou Cyrus, com as veias salientes no pescoço grosso.

— Sou The Duke.

— Eu sou Sylvester.

— Meu nome é Marlon.

— Dustin... sabe, sabe... estou certo, estou certo, certo, certo?

— Telly é apelido, General, querido. Quer um pirulito?

— São todos soberbos!

— E tudo isso é um absurdo! — gritou Cyrus, agarrando as lapelas de Dustin e Sylvester. — Ouçam-me, seus filhos da mãe!

— Ei, meu bom companheiro preto — disse Roman Z em voz baixa, dando umas palmadas nas costas largas do recente companheiro de cela. — Não faça sua pressão subir, cara!

— Pressão o cacete, eu devia era dar um tiro em cada um desses filhos da puta!

— Ora, peregrino, isso é completamente primário — disse The Duke. — É que, você vê, nós não acreditamos na violência. Na realidade, não passa de um estado de espírito.

— Estado de quê? — urrou o mercenário de pele escura.

— De espírito — explicou O Duke. — Freud chamou a isso um prolongamento frenético da imaginação e usamo-lo muito nas aulas de interpretação, normalmente com um certo aperfeiçoamento, é claro.

— Claro! — Cyrus libertou os seus reféns indefesos. — Eu desisto — resmungou, sentando-se na poltrona mais próxima, enquanto Roman Z massageava seus ombros. — Eu desisto! — repetiu aos gritos, os olhos arregalados apreciando o bando de lunáticos que tinha pela frente. — Vocês são os Seis Suicidas? A unidade antiterrorista da Força Delta, que inspirou canções? Nada faz sentido!

— De certa forma, tem razão, Coronel — disse Sylvester, na sua voz normal da Escola de Arte Dramática de Yale —, pois nunca tivemos de disparar uma arma ou de ferir alguém a um nível mais sério do que um pulso torcido ou, na pior das hipóteses, uma costela partida... Nós pura e simplesmente não trabalhamos assim. Como o senhor compreenderá, é mais fácil para toda a gente. Entramos e saímos das missões com as nossas representações, frequentemente intimidando os alvos, mas, de vez em quando, fazendo um ou dois amigos.

— Vocês fugiram de um hospício — disse Cyrus — ou talvez não sejam realmente deste planeta — acrescentou, confuso.

— É muito severo conosco, Coronel — protestou Telly, na sua habitual voz culta. — Se todos os exércitos do mundo fossem compostos de atores, as guerras seriam montadas como produções civilizadas e não como matanças selvagens. Os méritos seriam concedidos pelos desempenhos, individuais e coletivos... os melhores discursos, as rosnadelas mais convincentes, as melhores reações da multidão...

— Além disso, é claro — interrompeu Marlon —, seriam também atribuídos pontos pelos figurinos e pela cenografia, pelos adereços mais criativos, armas e marcações de mise en scène...

— Assim como pela intriga e pelo desenvolvimento da narrativa — interrompeu O Duke. — Suponho que poderiam ser designados como táticas militares.

— Não vamos esquecer a direção, pelo amor de Deus — exclamou Sir Larry.

— E a coreografia — acrescentou Sylvester. — Nessas circunstâncias, um coreógrafo teria que ser uma extensão orgânica de qualquer diretor.

— Maravilhoso, simplesmente maravilhoso! — exclamou Henry Irving Sutton. — Poderia ser criada uma academia internacional de artes teatrais para fazer uma apreciação das forças terrestre, aérea e naval. Naturalmente que seriam incluídos consultores militares, por causa das semelhanças e das questões de autenticidade, mas o seu papel seria secundário, a apreciação visaria, essencialmente, a criatividade, a convicção, a caraterização, a paixão!... a Arte!

— É isso mesmo, peregrino!

— Ei, Stella, ele entendeu!

— Você... você... você está com... com... com isso!

— Articule o discurso, suplico...

— Lindo, querido. Aceite um pirulito!

— Bem, bem, não precisamos de morteiros para arrebentar nativos!

— O quê?

— Bem, ele precisa estar certo, entende o que quero dizer? Ninguém é baleado. Ninguém estica o pernil!

— Eeeeowweeeah! — gritou Cyrus, um grito digno da frase de Anouilh. — Chega! Eu realmente não aguento mais!... Você, Sir Henry Merda de Cavalo! Você foi militar... ouvi esse doente mental do Hawkins dizer que você foi um herói e e o diabo no Norte da África! O que aconteceu a esse herói?

— Num sentido primitivo, Coronel, todos os soldados são atores. Ficamos apavorados, mas tentamos fingir que não sentimos medo; sabemos que, a qualquer momento, as nossas preciosas vidas podem ser-nos tiradas, mas pomos de lado esse conhecimento, pela razão irracional de que o objetivo imediato é mais importante, embora, no fundo das nossas mentes, compreendamos que se trata de uma simples estatística num mapa. O problema com os soldados em combate é que eles têm de se tornar atores sem o treino adequado, treino profissional... Se todos os soldados de infantaria encharcados, enfiados na lama, compreendessem as regras, eles fariam como Telly disse e rosnariam ferozmente quando atirassem por cima das cabeças dos outros rapazes que não conhecem, mas com quem poderiam, noutra ocasião, tomar uma bebida nalgum bar.

— Besteira! E o que me diz dos valores e das crenças? Já lutei em lados diferentes, mas nunca contra aquilo em que acreditava!

— Bem, então é um homem de moral, Coronel, e louvo-o por isso. No entanto, também luta pelo motivo mais questionável de todos. Dinheiro.

— E por que esses palhaços estão lutando?

— Não faço a menor ideia, mas duvido que seja pela remuneração financeira. No meu entender, estão satisfazendo suas ambições teatrais inatas... de um modo bem heterodoxo, mas, claramente, com considerável sucesso.

— Concedo-lhes isso, sem dúvida alguma. — disse Cyrus, voltando-se para Roman Z. — Pegou tudo? — perguntou.

— Tudo e todos, meu amigo duradouro.

— Ótimo — o enorme químico voltou-se para os atores, escolheu Dustin e disse: — Você, baixinho, venha cá. — O pequenino ator lançou um olhar indagador aos camaradas. — Pelo amor de Deus, homem, só quero falar com você em particular. Acha que o meu amigo e eu iríamos querer enfrentar o grupo completo dos Seis Suicidas?

— Se eu fosse você, nem pensaria em enfrentar o Dustin, peregrino. Ele pode não ser do seu tamanho, mas, no karatê, ele é cinturão negro de décimo dan, que é o grau mais alto.

— Ora, vamos, Duke, eu nunca uso essa técnica, a menos que estivéssemos todos numa grande enrascada. Certamente que nunca contra um tipo simpático como o Coronel. Ele está apenas aborrecido, eu percebo isso... Não se preocupe, Coronel, eu nunca o iria magoar. O que é? — Dustin acompanhou um espantado Cyrus até um canto da suíte, onde o mercenário se pôs a olhá-lo fixamente, de cima para baixo — assim mesmo — para o ator.

Estavam na janela, por onde se podiam ver as luzes noturnas de Boston a formar um clarão à volta da cidade, e Cyrus falou em voz baixa.

— Você provavelmente estava certo minutos atrás, quando disse que eu poderia perder a minha pensão. Realmente cheguei tarde, só há alguns dias, e não tinha nenhuma razão para pensar que esse homem não fosse Hawkins. Que diabo, pelo que vi na televisão, este homem parece o general e fala como ele... por que não poderia ser ele? Estou realmente agradecido, Dustin.

— Tudo bem, Coronel. Estou seguro de que faria o mesmo por mim, se as nossas posições fossem as inversas... digamos que se alguém estivesse a fazer-se passar por Harry Belafonte, o senhor, sendo preto, saberia quem ele era realmente, mas eu não.

— O quê...? Ah, sim, certamente que saberia, Dustin, certamente que saberia. Mas só para que eu possa ter um quadro mais nítido de todo este negócio sujo — oficialmente, como compreende, e já que ambos estamos do mesmo lado — pode-me dizer, exatamente, qual é a sua missão?

— Bem, como estamos sujeitos a restrições do tipo só-saber-o-necessário e já que é coronel, vou-lhe contar o que posso, que é tudo o que nós sabemos. Devemos estabelecer contato com o General Hawkins, raptá-lo juntamente com todos os que estiverem à sua volta, levá-lo para a base do Comando Aéreo Estratégico em Westover, aqui mesmo em Massachusetts.

— Sem voltar ao Air Force Two no aeroporto Logan?

— Não, isso foi só para a conferência de imprensa... Sabe, na realidade, o Vice-presidente não é um mau tipo. É claro, não penso que ele seja capaz de representar..

— Ele estava no avião?

— Claro, mas só o deixaram sair mais tarde.

— Então por que ele estava lá?

— Uns bandidos roubaram um dos seus carros e mais tarde o carro foi encontrado aqui em Boston...

— Esqueça... Não é pertinente. Então você rapta o general e quem quer que esteja com ele, dirige-se para a base do CAE em Westover e depois?

— PSDMT, Coronel.

— Como?

— “Para ser determinado mais tarde”, mas nos disseram para levar pijamas e ceroulas, o que faz presumir que o clima será mais frio.

— Suécia — disse o mercenário.

— Foi o que nós pensamos, mas depois o Sylvester, que esteve num cruzeiro na Escandinávia a bordo do Annie... e soubemos, sobretudo por ele, que foi uma maravilha..., disse que o verão de lá não é muito diferente do nosso.

— Não é.

— Então achamos que seria mais ao norte..:

— Tipo os fiordes de gelo — completou Cyrus.

— Onde quer que fosse... receberíamos ordens suplementares mais tarde.

— Como depositar corpos congelados para serem descobertos no ano 3000, para fins de pesquisa médica.

— Não sei nada sobre isso, Coronel.

— Espero mesmo que não saiba... Além desse brigadeiro Broke... Brokethel...

— Brokemichael, Coronel. Brigadeiro Ethelred Brokemichael.

— Está bem, entendi. Mas além dele, você não tem ideia de quem pode ser o responsável por esta missão?

— Não está na nossa esfera de atribuições, Coronel.

— Pode apostar sua pele em como não está.

— Coronel...?

— Vamos partir, Roman — disse Cyrus abruptamente, caminhando para a porta do hotel, acompanhado pelo cigano, que tinha se colocado a seu lado, após ter ouvido um sonoro estalido metálico. — Não tentem nos seguir, porque seria inútil; somos tão peritos na nossa profissão quanto vocês no palco, acreditem em mim. E quanto a você, Sr. Sutton, não sei muito sobre a arte de representar, mas suponho que seja dos melhores, de forma que pode ficar aqui conversando com seus amiguinhos o tempo que quiser... Receio que esta noite tenhamos usado com vocês um velho truque de mercenários. Podem ter estranhado por que meu amigo ficou pulando o tempo todo de um lado para o outro, examinando cada um, e agora vou contar a razão. Aquele cravo vermelho na lapela dele contém uma câmera miniaturizada de alta velocidade; temos um mínimo de doze fotos de seus rostos. E sob o paletó tenho um gravador ainda ligado; cada palavra dita aqui esta noite está gravada.

— Um momento, por favor! — exclamou Sir Henry.

— O quê? — Cyrus enfiou a mão no paletó e tirou uma enorme e feia Magnum 357, ao mesmo tempo em que Roman Z movia subitamente a mão nas costas e exibia uma faca de mola com uma lâmina de 30 centímetros de comprimento.

— Meus honorários — disse Sutton. — Faça com que Aaron os mande por mensageiro para o meu apartamento. E diga-lhe para juntar mais algumas centenas, pois pretendo levar meus recém-encontrados amigos e companheiros ao melhor restaurante de Boston.

— Sir Henry! — disse Sylvester, tocando na manga do grande homem. — Aposentou-se mesmo?

— Semiaposentadoria, querido rapaz. Faço pequenos papéis, ocasionalmente, sabe como é, para manter o sangue circulando. Acontece que tenho um filho aqui em Boston, não consigo lembrar de qual casamento, que está muito bem de vida e insistiu para que eu fique com uma das centenas de apartamentos que ele construiu. Claro que devia mesmo fazer isso; nos bons tempos, eu o mandei para diversas universidades para que ele conseguisse ficar com todas aquelas letrinhas depois do nome. Uma doçura de filho, devo dizer, mas nunca um ator! Um desapontamento e tanto, pode crer.

— Que tal o Exército? Poderia ser nosso diretor! Provavelmente, eles o promoveriam imediatamente a general!

— Ah, mas lembre-se, meu jovem colega, do que Napoleão disse: “Dê-me muitas medalhas e eu ganharei qualquer guerra para você”. Mas para os atores seguirem em frente, são necessários os cartazes, o destaque do nome! Progressivamente maior, até que seu tamanho seja igual ao do título da peça. Agora, como vocês representam em segredo, como o Exército poderia reconhecer seu valor?

— Que loucura — murmurou Cyrus para Roman Z. — Vamos sair daqui!

Saíram, e ninguém na suíte percebeu.

— Já que você está formalmente registrado como advogado oficial dos Wopotamis, suponho que isso seja inteiramente possível — Aaron fez uma pausa, franzindo o sobrolho, com a cabeça inclinada. — Por outro lado, Brokemichael não poderia ter dado ordens para que a sua unidade deveras original entrasse em ação por conta própria e certamente que não teria acesso ao Air Force Two.

— O que significa que ele recebeu ordens de alguém que tinha quer a autoridade, quer o acesso — completou Redwing.

— Exatamente, minha querida, e é aí que reside o nosso enigma. Esse Brokemichael não revelaria o nome do seu superior mesmo que pudesse, e, parafraseando o General Hawkins, a cadeia de comando estará tão enrolada que não indicará coisa alguma.

 

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1 Referência aos atores Laurence Olivier e Vivien Leigh. (N. T.)


23

— Está tudo aqui! — exclamou Jennifer, ouvindo a fita e contemplando as fotografias ampliadas sobre a mesa de café na casa de verão, na praia de Swampscott. — É uma conspiração, uma conspiração forçada, mas envolvendo claramente os níveis mais altos do Governo!

— Não há dúvida quanto a isso — concordou Aaron Pinkus sentado na sua poltrona —, mas quem é que vamos procurar? Essa história de cada um só saber o necessário impossibilita-nos de seguir o rastro.

— O que me diz desse tal Brokemichael? — perguntou Devereaux. — É o filho da mãe que eu peguei no Triângulo Dourado...

— E confundiu o primeiro nome dele com o do primo — lembrou Jennifer. — Idiota.

— Ei, olhe lá, quantas vezes é que você se deparou com nomes como Ethelred e Heseltine? Ambos são tão esquisitos que o difícil é não os confundir.

— Não para um advogado observador...

— Ah, vamos lá, Pocahontas, você não foi capaz de distinguir entre um interrogatório duro e a extrema provocação!

— Vocês dois, querem parar com isso — disse um exasperado Pinkus.

— Eu só quis dizer que ele podia estar atrás de mim — explicou Sam. — Meu Deus, se ele viu o meu nome na pasta do Hawk, deve ter expelido fogo pelas narinas, como um lança-chamas! Pelo menos, dentro do espaço de tempo disponível... oitenta e poucas horas, se tanto.

— Temos a prova — disse Devereaux. — As fotografias, a fita onde toda a operação é descrita por dois participantes... perpetradores, se preferir. Poderíamos abrir o jogo e tornar tudo público... por que não?

— O estresse prejudicou sua percepção normal, Sam — respondeu Pinkus com delicadeza. — Em toda esta operação está embutido o conceito da negabilidade. Ou seja, todos podem negar o que não sabem. Como disse nosso amigo Cyrus, que agora está na praia com Roman Z, certamente consumindo uma grande quantidade de vodca, “são todos lunáticos”... Aí está a negabilidade. Lunáticos, irracionalidade, pessoas malucas. Atores.

— Calminha aí, Aaron. Eles não podem negar o Air Force Two, isso é pesado demais.

— Ele tem razão, Mr. Pinkus. A autorização para o uso do avião tem de vir lá de cima.

— Muito obrigado, princesa.

— Eu concedo quando é merecido.

— Eita, que prelúdio!

— Oh, cale-se.

— Eu disse que o estresse o tinha prejudicado, mas eu estou muito pior. Você apontou um argumento ofuscantemente óbvio...

— Não, não apontou — ouviu-se a voz gutural de MacKenzie Hawkins, vinda da cozinha às escuras, cuja porta se encontrava parcialmente aberta. A porta abriu-se ainda mais e a figura do Hawk emergiu, vestido apenas com short estampado de camuflagem verde e preto e camiseta. — Desculpe minha aparência, pequena... Sra. Redbird...

— Redwing.

— Desculpe mais uma vez, mas quando ouço vozes no acampamento às três da manhã, o meu instinto natural é fazer rapidamente uma ronda e não me vestir para um baile no clube dos oficiais.

— Você dança, Mac?

— Pergunte às minhas meninas, filho. Ensinei-lhes tudo, da mazurca à verdadeira valsa vienense. Os soldados foram sempre os melhores dançarinos; eles têm de agradar muito depressa às senhoras... as licenças são curtas.

— Por favor, Sam, a observação do General, se quiser — disse Aaron, olhando para o Hawk. — Por que o meu competente empregado está errado a respeito do avião do Vice-Presidente? É a segunda mais importante aeronave deste país.

— Porque o Air Force Two pode ser manipulado por uma dezena de ministérios e órgãos do Governo, por razões cosméticas. Qualquer membro do staff do VP pula de alegria quando lhe surge uma oportunidade de tirar a sua mercadoria das sombras... Não se lembra, rapaz, de quando pousei em Travis, vindo de Pequim pela rota das Filipinas após o julgamento de Chink, e fiz aquele discurso de causar vômitos sobre “soldados velhos e cansados“? Tive de incluir nele um agradecimento eterno ao Vice-Presidente por ter mandado seu avião pessoal.

— Eu lembro, Mac.

— Você sabe onde estava o Vice-Presidente, Sam?

— Não, não sei — disse Devereaux.

— Estava numa situação embaraçosa com uma das minhas mulheres, que não o deixaria seguir para a segunda base em L. A., pois estava tão bêbado como uma mosca numa garrafa de bourbon e tão incapaz de cumprir a tarefa de seus desejos como essa mosca.

— Como você sabe disso?

— Porque senti o cheiro da fraude naquela história e quis saber a que nível é que aquilo subia em D. C. Mandei a minha menina trabalhar para ver se conseguia descobrir.

— E ela descobriu? — perguntou, incrédulo, Pinkus.

— Claro que sim, Comandante. Esse orador de língua torcida caiu, batendo com a cara no chão, com as calças enroladas nos tornozelos, a perguntar à boa e velha Ginny quem eu era! Aí é que eu soube até onde é que ele subira em Washington, esse cachorro sujo que me tinha preso pelo rabo, fazendo coisas feias a este velho soldado... Foi quando me decidi realmente a seguir uma vida diferente e o recrutei, Sam.

— Eu teria preferido que você não se tivesse lembrado de mim... A Ginny seduziu o Vice-Presidente?

— Você não estava ouvindo, filho. Essa garota tem bom gosto e aquela cara gorda e asséptica dele não correspondia ao seu gosto.

— Reminiscências à parte — interrompeu Aaron, sacudindo a cabeça como se quisesse apagar imagens proibidas. — Mas o que está dizendo, exatamente, General?

— Que agora temos uma estratégia de contra-ataque, Comandante. Será um pouco complicado, mas conseguiremos.

— Fale inglês, Mac.

— Que diabo, rapaz, a coisa tem funcionado desde a Normandia até Saipan! De Pinchon até o Mekong... quando os malditos chefões não a fizeram ir pelos ares com as suas bocas enormes.

— Eu repito, fale inglês, Mac.

— Desinformação, Sam, dentro da cadeia de comando.

— Falei nisso há um momento atrás — interrompeu Pinkus.

— Na cadeia de comando.

— Eu sei — reconheceu o Hawk. — Ouvi tudo o que disseram nos últimos vinte minutos, descontando o breve instante em que fui à praia levar uma garrafa de vodca ao coronel Cyrus... Esses atores fizeram mesmo com que ele fosse pelos ares, não fizeram?

— A sua desinformação, General? — pressionou Aaron.

— Bem, na realidade ainda não trabalhei a ideia, mas o caminho está tão claro como uma mancha de óleo na neve recente... “Brokey O Dois.”

— Quem?

— O quê?

— Acho que sei — disse Jennifer. — Brokemichael... não o Heseltine das Relações com os índios, mas o que comanda esses tipos a partir de Fort Benning. Ethelred.

— Tem razão. Ethelred Brokemichael foi a pior coisa que West Point já produziu. Ele nunca deveria ter entrado para o Exército, mas este estava presente em ambos os lados das suas famílias, você sabe como é, filhos de irmãos no Exército. Mas o que é desconcertante é o fato de Ethelred ser, na realidade, um oficial mais imaginativo do que Heseltine, que tinha uma fraqueza. Viu um número excessivo de filmes onde generais viviam como : reis e tentou fazer o mesmo com o salário de general, que não permite que se seja senhor de castelos.

— Então eu estava certo — disse Devereaux. — Ele estava a ganhar umas massas por fora.

— Claro que você estava certo, Sam, mas ele não era nenhum supercriminoso; era mais um intermediário inconsciente do que qualquer outra coisa. Era como se ele estivesse num filme, a receber uma espécie de homenagem pessoal prestada por muitas pessoas que ele não conseguia compreender, mas para as quais fazia pequenos favores.

— Ele embolsou a massa, Mac.

— Alguma, mas não o bolo todo e nem sequer uma importância próxima da que você afirmou. Se o Exército tivesse podido provar isso, ele teria sido expulso com a sua massa. Mas o que está nos registros e salvou a sua pele foi o fato de ter dado muito dinheiro a orfanatos e a campos de refugiados. Houve quem fizesse muito pior.

— Isso dificilmente serviria de desculpa — disse Pinkus.

— Também acho que não, mas como o Sam disse, quem é que por aqui está a concorrer ao grande prêmio da bondade? — O Hawk fez uma pausa e dirigiu-se a uma janela que dava para a praia. — Além do mais, tudo isso pertence agora à História e eu conheço o Brokey O Dois. Não me tem em grande consideração, pois eu conhecia melhor o Heseltine e os dois não se davam, mas nós falamo-nos... E falar-nos-emos e, ou eu descubro quem está por trás de todo esse fandango ou o Dois vai ficar exposto de tal forma que terá de se despedir dos seus alamares dourados.

— O senhor está-se a esquecer de uma ou duas negativas, General — interrompeu Aaron. — Para começar, quando souberem que os “Seis Suicidas” falharam, estou certo de que Brokemichael será colocado fora do seu alcance ou mesmo fora do alcance de qualquer pessoa, pela simples razão de que através dele se poderá saber o nome da pessoa que ordenou a saída do Air force Two.

— Ninguém vai saber, Comandante — disse Hawkins, afastando-se da janela. — Pelo menos durante as próximas vinte e quatro horas e tenho certeza de que o senhor será capaz de me arranjar um jatinho particular para me levar a Fort Benning amanhã de manhã, bem cedo.

— Vinte e quatro horas? — exclamou Jennifer. — O senhor não pode garantir isso. Esses atores podem ser lunáticos, mas são profissionais de operações secretas.

— Deixe-me explicar, Miss Redwing. Os meus ajudantes, Desi Um e Desi Dois, estão em contato comigo via rádio... Sir Henry Sutton e os chamados Seis Suicidas estão neste instante a fechar o restaurante Joseph's na rua Dartmouth, bem bebidos e animados. Meus ajudantes levarão vocês não ao hotel, mas à cabana de esqui, onde passarão o dia se recuperando. E quando estiverem prestes a voltar ao normal, Desi-Dois, que não só é um excelente mecânico como também, segundo me informou Desi-Um, cozinheiro de primeira, vai temperar seu rancho com um molho feito de tomate, tequila, gim, conhaque, álcool de cereais farmacêutico e um líquido sedativo de potência indeterminada que vai garantir o prazo de que falamos, Miss Redwing. Podemos ter mais do que vinte e quatro horas, talvez quase uma semana, se isso for de alguma utilidade.

— Francamente, General — contrapôs a filha dos Wopotamis —, até mesmo homens inutilizados por drogas e álcool, especialmente militares treinados, encontram momentos de lucidez em que podem usar o telefone.

— O telefone não estará funcionando... a rede terá sido derrubada por um raio durante a tempestade.

— Que tempestade?

— A tempestade que caiu sobre as montanhas depois que se recolheram para ressonar um pouco.

— Quando acordarem, pegam a limusine e saem dali a toda velocidade — sugeriu Devereaux. — Os freios e o eixo da direção estarão quebrados porque o terreno é muito acidentado.

— Eles pensarão que foram sequestrados e tomarão as medidas apropriadas, ou seja, medidas físicas! — disse Pinkus.

— Há alguma possibilidade de isso acontecer, mas não é muito grande. D-Um explicará que o Comandante, em sua sabedoria, achou que seria melhor que o grupo dormisse em sua casa de férias, após as comemorações de hoje, do que correr o risco de embaraços no hotel.

— E quanto ao hotel, Mac? — perguntou Sam, ansioso. — Brokemichael e sua gente entrarão no hotel com a unidade para tomar conhecimento dos relatórios atualizados dos acontecimentos, se é que não querem saber outras coisas.

— Little Joseph estará controlando os telefones na suíte do meio.

— E que diabos ele vai dizer? — insistiu Devereaux. — Olá, sou o Sétimo Suicida e os rapazes estão no Bar do Joe desanuviando a cabeça?

— Não, Sam, ele vai deixar bem claro que foi contratado apenas para receber recados e que seus patrões temporários saíram a negócios. Nada mais.

— Parece ter pensado em tudo — concedeu Aaron, acenando com a cabeça. — É notável.

— É minha segunda natureza, Comandante. Essas táticas de contrainsurreição são de jardim de infância.

— Ah, não, Mac, você esqueceu uma coisa — Devereaux exibi um sorriso sardônico típico de advogado. — Hoje em dia todas as limusines têm telefone.

— Bem pensado, filho, mas Desi-Um pensou nisso horas atrás...

— Não me diga que ele vai quebrar a antena. Seria um pouquinho óbvio, não?

— Não precisa. Hooksett fica fora do alcance celular; a torre lá em cima ainda não está pronta. Desi-Dois atravessou algumas dificuldades para descobrir isso; ele disse que dirigiu vinte minutos na estrada até conseguir entrar em contato com D-Um em Boston, na noite de anteontem, para contar onde fica exatamente a cabana.

— Alguma outra objeção, advogado? — perguntou Redwing.

— Vai acontecer alguma coisa terrível — exclamou Sam. — Acontece sempre quando ele pensa em tudo!


O jato Rockwell cruzou os montes Apalaches, preparando-se para a descida sobre a área de Fort Benning, mais concretamente sobre um campo de aviação privado, a vinte quilômetros a norte da base do Exército. O único passageiro a bordo era The Hawk, mais uma vez trajando seu terno cinza, com seus óculos de armação de metal e o cabelo grisalho cortado à escovinha, coberto pela peruca ruiva sem brilho, agora muito bem penteada por Erin Lafferty. O antigo general estivera ao telefone em Swampscott desde, aproximadamente, as quatro e meia da manhã até as cinco e meia, tomando as suas providências. O primeiro telefonema que tinha feito fora para Heseltine Brokemichael, que ficou pura e simplesmente em êxtase ante a perspectiva, qualquer que ela fosse, de arruinar a vida do seu odiado primo Ethelred. Dezassete telefonemas depois, todos eles feitos e recebidos através das linhas da casa da praia, estava aberto o caminho para permitirem a entrada na base de um certo articulista, que atualmente apurava a situação militar soviética pós-desmembramento. Às 8h o Brigadeiro Ethelred Brokemichael, que se passava por Relações Públicas da Base, foi alertado pelo Relações Públicas do Pentágono para que esperasse o jornalista muito influente e o escoltasse pelo complexo militar. Para Brokey O Dois era uma missão relativamente rotineira, na qual fazia bom uso de seu pequeno talento teatral, que ele, naturalmente, não considerava nada pequeno. Às 10h, Ethelred Brokemichael desligou o telefone do escritório, tendo instruído a secretária do Corpo Auxiliar Feminino para que mandasse entrar o repórter. O brigadeiro estava plenamente preparado para repetir o desempenho de Relações Públicas que vinha praticando há um bom número de anos.

O que ele não estava preparado para ver era aquele homem idoso e corpulento, um tanto encurvado, de óculos e cabelos ruivos, que entrou de maneira tímida pela porta de seu escritório, agradecendo profusamente à sargento que a abriu. Havia algo de familiar naquele homem, uma aura talvez, que negava a imagem da cortesia solícita. Havia mesmo o som abstrato de um trovão distante... ouvido apenas por Brokey O Dois, mas que, sem dúvida alguma, estava presente. O que havia por trás daquele personagem amalucado, que podia muito bem ter acabado de sair do filme As Grandes Esperanças, um contador grandalhão, desajeitado, subserviente, tentando acalmar a velha senhora... ou será que ele estava a confundir o papel com aquele cara alto que atua em Nicholas Nickleby?

— É muita bondade sua reservar parte do seu valioso tempo para minha modesta pesquisa, sr. Brigadeiro — disse o jornalista numa voz tranquila, embora um pouco rouca.

— É meu trabalho — disse Brokemichael, com um sorriso repentino que faria justiça a Kirk Douglas. — Somos os servidores armados do povo e queremos que ele compreenda inteiramente nossas contribuições para a defesa do nosso país e para a paz no n_n mundo... Por favor, sente-se.

— Essa afirmação foi maravilhosa e comovente — o escritor ruivo sentou-se em frente à mesa, puxou um bloco e uma caneta esferográfica e começou a rabiscar umas palavras. — Importa-se se eu o citar? Atribuirei tudo a uma “fonte bem colocada”, se preferir.

— Certamente que não... pode atribuir a mim. — Seria este o tal jornalista influente que fizera o RP do Pentágono dar tantas voltas para lhe arranjar alojamento? Esse estranho idoso de voz áspera não passava de um civil comprovadamente maluco e receoso de uniforme. A manhã seria canja. — No Exército, não nos escondemos atrás de fontes secundárias e anônimas, Sr... Sr...

— Harrison, Brigadeiro Lex Harrison.

— Rex Harrison...?

— Não, Alexander Harrison. Meus pais me deram o diminutivo de Lex há muitos anos e eu sempre assino minhas matérias com esse nome.

— Ah, sim, claro... só que surpreende, se entende o que eu quero dizer... Estou falando de Rex Harrison.

— Sim, o sr. Harrison costumava se divertir muito com a semelhança. Uma vez, ele me perguntou se podíamos trocar... ele escreveria uma reportagem e eu faria o Henry Higgins por ele. Uma morte inoportuna; ele era um homem adorável.

— Conheceu Rex Harrison?

— Por intermédio de amigos comuns...

— Amigos comuns?

— Na realidade, Nova York e L. A. são cidades pequenas quando se é escritor ou ator... mas meus editores não estão interessados em mim e nos meus companheiros de bebida no Polo Lounge, sr. Brigadeiro.

— Polo Lounge...?

— É um lugar da predileção dos ricos e famosos e de todas as outras pessoas de L. A. que querem ser ricas e famosas... Agora, voltando aos meus editores, eles estão interessados no poder militar e na forma como este está reagindo à supremacia da economia. Podemos começar a entrevista?

— Certamente, sim... claro. Eu direi o que quiser, só que sempre tive um enorme interesse por teatro e cinema... e até mesmo por televisão.

— Meus amigos escritores e artistas poriam a televisão em primeiro lugar, Brigadeiro. É aquilo a que chamam “dinheiro de sobrevivência“. Não se consegue viver apenas do teatro e os filmes são muito poucos.

— Sim, já ouvi isso dito por... bem, não interessa, mas é uma opinião sincera, vinda de quem está do lado de dentro, de quem realmente sabe como é!

— Não traí nenhum segredo, palavra de honra — disse o jornalista. — Até mesmo Greg, Mitch e Michael admitiriam isso.

— Oh, meu Deus, naturalmente! Não é de admirar que o RP do Pentágono tenha considerado este velho jornalista de voz rouca como muito influente. É óbvio que ele já andava por aí há anos e era intimo de gente famosa que o Pentágono tentava constantemente seduzir para seus anúncios de televisão. Meu Deus! Rex Harrison, Greg, Mitch e Michael... ele conhecia todo mundo! Frequentemente vou de avião até Los Angeles... Sr. Harrison. Talvez possamos nos encontrar um dia... no Polo Lounge.

— Por que não? Passo lá metade do tempo e a outra metade em Nova York, mas para dizer a verdade, é na Costa que as coisas acontecem. Quando for lá, basta aparecer no Po-Lounge e diga ao Gus, o barman, que está me procurando. Marco sempre o ponto ali, quer esteja hospedado no Beverly Hills, quer não. É assim que as pessoas ficam sabendo que estou na cidade, o Paul... Newman, é claro, a Joanne, os Pecks, o Mitchum, o Caine e até mesmo alguns recém-chegados como os dois Tom, Selleck e Cruise, Meryl e Bruce... a gente boa.

— A gente boa...?

— Bem, sabe, os verdadeiros, os rapazes e as meninas com quem me dou...

— Eu adoraria conhecê-los! — interrompeu Brokemichael, com os olhos a parecerem dois pires enormes com faiscantes anéis castanhos. — Posso organizar o meu plano de trabalho a qualquer hora!

— Ei, Brigadeiro, vamos com calma — disse o repórter, ainda mais rouco. — Essas pessoas são profissionais do ramo. Já andam por aí há bastante tempo e, por isso mesmo, não gostam de desvios para a terra dos amadores.

— O que quer dizer com isso?

— Bem, um simples interesse por cinema ou por televisão, ou pelo que quer que seja, não o torna exatamente um membro da irmandade, percebe? Que diabo, toda a gente quer ver de perto esses rostos — às vezes eles tratam-se por “rostos”, numa espécie de insulto a eles próprios —, mas acontece que, por baixo desses rostos existem pessoas de carne e osso, gente que sabe quem é que pertence ao seu território e que impõe limites, para que não haja invasões.

— Afinal o que está a querer dizer-me?

— Por outras palavras, o senhor não é um profissional, Brigadeiro, o senhor é um fã... e isso eles podem encontrar em qualquer esquina, encontram até mais do que aquilo que conseguem aguentar. Os profissionais não convivem com os fãs, toleram-nos... Será que poderíamos voltar à entrevista, por favor?

— Sim, sim, claro — respondeu o frustrado Brokemichael — mas eu acho — sei perfeitamente bem — que o senhor está a subestimar o meu compromisso com o mundo das artes cênicas!

— Ah, a sua mãe foi atriz nalgum teatro comunitário, ou o seu pai representou numa peça de liceu?

— Nem uma coisa nem outra, embora a minha mãe sempre tivesse querido ser atriz... Como os seus pais lhe disseram que, se fosse atriz, iria para o inferno, ela fez bastante mímica... Quanto ao meu pai, era um coronel... porra, ultrapassei esse filho da puta!... Mas eu herdei o gosto da minha mãe pelo teatro, eu amo realmente o teatro e os bons filmes e a TV, sobretudo os filmes antigos. Sinto eletricidade quando assisto a um espetáculo que realmente me comova. Eu choro, rio. Sou todos e cada um dos personagens que aparecem na tela ou no palco. É a minha outra vida!

— Receio que seja uma fantasiosa reação de amador — disse o jornalista de voz áspera, regressando ao seu bloco de notas.

— Ah, o senhor acha isso? — protestou Brokemichael, com a voz tensa e emocionada. — Então deixe-me dizer-lhe uma coisa — podemos ter uma conversa confidencial, sem canetas ou blocos de notas?

— Por que não? Estou aqui só para ter uma visão do quadro geral...

— Esteja calado! — cochichou Brokey O Dois, levantando-se da sua secretária e depois agachando-se e esgueirando-se em direção à porta, onde ficou à escuta, como se estivesse a desempenhar um papel na Ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht. — Eu chefio a companhia teatral de maior categoria nos anais da história militar! Fui eu que os treinei, orientei e levei ao zênite dos seus talentos, de modo que agora são considerados uma unidade antiterrorista de classe mundial, capaz de obter êxito quando todos os outros falham! Pergunto se isso é coisa de amadores.

— Ora, Brigadeiro, eles são soldados treinados para esse tipo de coisas...

— Não, não são! — explodiu Brokemichael, com o seu murmúrio a crescer para um quase silvo. — São atores, verdadeiros atores profissionais! Quando se alistaram como grupo, vi as oportunidades à minha frente. Quem melhor para se infiltrar e sabotar a retaguarda do inimigo do que homens treinados para entrar na pele de outras pessoas? E o que poderia ser melhor do que uma unidade de atores familiarizados com o trabalho uns dos outros, uma companhia teatral capaz de dar a ilusão total de espontaneidade, de naturalismo, de... realidade, a operações clandestinas, sr. Harrison?. Eles foram feitos para isso e eu tornei tudo isso possível!

A reação do jornalista foi a de um indivíduo rabugento reconhecendo, de má vontade, um ponto válido onde pensara não existir nenhum. — Bem... OK! Uma ideia brilhante, sr. Brigadeiro... Posso mesmo garantir que é brilhante.

— Não é exatamente uma coisa de amadores, certo? Atualmente, todos querem seus serviços. Inclusive agora, neste exato momento, estão comprometidos na luta contra um dos homens mais poderosos do país.

— Ah sim? — o homem chamado Harrison franziu a testa em sinal de interrogação, com um leve sorriso cínico modelando seus lábios. — Então eles não estão na base, de modo que não posso conhecê-los... e nossa conversa não pode ser publicada, de forma que não posso escrever sobre eles?

— Pelo amor de Deus, tudo secreto, não se pode publicar uma só palavra!

— Então, francamente, sr. Brigadeiro, falando como repórter, só tenho uma fonte... você. Nenhum editor do mundo aceitaria uma só fonte e os meus amigos do Polo Lounge dariam uma gargalhada enquanto comiam seus ovos beneditinos com farelo de aveia, dizendo que, se fosse verdade, daria um ótimo roteiro de filme... opinião com a qual eu estaria de acordo.

— Mas é verdade!

— Quem diz isso, além de você?

— Bem, eu... não posso!

— É uma pena. Se houvesse um grão de verdade nisso;provavelmente eu poderia vender uma história por uns dois ou três mil dólares. E com o que eles chamam “adaptação para o cinema”, que é um resumo feito nos joelhos, como os resumos dos livros que nos mandavam ler no liceu, por talvez meio milhão. O mundo das lantejoulas brindaria a sua saúde.

— Oh, meu Deus, é verdade! Acredite em mim!

— Eu posso acredita, mas isso não valeria uma Pellegrino com lima no Po Lounge. Para que esse tipo de coisa levante voo, precisa de credibilidade... Ora, Brigadeiro, eu acho realmente que devíamos voltar à entrevista.

— Não! Estou perto demais dos meus sonhos... Paul e Joanne, Greg e Mitch e Michael... todos oboa gente!

— Que são...

— Tem que acreditar em mim!

— Como? — resmungou o velho jornalista. — Não posso sequer escrever uma palavra, é conversa confidencial.

— Bem, ouça só isto — exclamou Brokey o Dois com os olhos em brasa, enquanto o suor escorria pelo seu rosto. — Nas próximas vinte e quatro horas, minha companhia de repertório antiterrorista vai capturar um dos inimigos mais perigosos que este pais já conheceu.

— Essa é uma afirmação e só, Brigadeiro. Tem alguma coisa que a confirme e que eu possa documentar?

— Existe um meio-termo entre declarações públicas e particulares?

— Bem, suponho que seja a revelação pós-ocorrência do fato confidencial, ou seja, nada pode ser publicado até que o evento ocorra, e mesmo então, a publicação só poderá ser feita “em segundo plano”.

— O que isso quer dizer?

— Não são usados nomes específicos, nem são reveladas as fontes.

— Aceito isso!

— Pois terá — resmungou o jornalista.

— Como?

— Nada. Vá em frente, Brigadeiro.

— Eles-estão-em-Boston-Massachusetts — disse Brokemichael rapidamente, sem modular a voz, com os lábios mal se mexendo.

— Isso é bom.

— Tem lido jornais ou visto televisão? — perguntou o brigadeiro, falando de novo rapidamente, em tom confidencial.

— De vez em quando, não se pode escapar.

— Teve conhecimento de um comitê do prêmio Nobel que foi para Boston no avião do Vice-Presidente?

— Acho que tive, sim — respondeu o jornalista, franzindo a testa num esforço de memória. — Algo sobre um discurso em Harvard e o anúncio de um prêmio qualquer para um general... O Soldado da Década, ou algo de parecido. Vi na TV.

— Impressionante, não acha? — disse Brokey o Dois, formulando a pergunta de forma cantada.

— Bem, qualquer comitê que represente a Fundação Nobel não é de se negligenciar.

— Concorda então que era um distinto grupo de cientistas e estudiosos de história militar, certo?

— Sem dúvida. O pessoal do Nobel não se mistura com burocratas, nem precisam. Mas o que tudo isso tem a ver com sua companhia de teatro antiterrorista?

— São eles!

— Eles quem?

— Esse comitê Nobel! São meus homens, meus atores!

— Brigadeiro, mantendo-me estritamente no campo das confidências particulares, pergunto-lhe: será que não esteve bebendo hoje de manhã?... Ei, olhe, não sou nenhum jovem sonhador... como os amigos do Po-Lounge, já andei por muitos lugares, às vezes com uma garrafinha no bolso...

— Estou dizendo a verdade! — fulminou Brokemichael, falando com sua áspera sotto voce de uma forma tão intensa, que as veias do pescoço ficaram roxas. — E eu nunca tomei uma gota de álcool antes do meio-dia, que é quando o Clube dos Oficiais abre. Esse “comitê Nobel” é, na realidade, minha unidade clandestina, são meus atores!

— Talvez seja melhor marcar outra data para esta entrevista...

— Eu posso provar! — O líder dos Seis Suicidas correu até um armário, abriu bruscamente uma gaveta e tirou de lá algumas pastas de cartolina parda. Depois correu de volta para a mesa, jogando nela as pastas, que se abriram, espalhando dúzias de fotos. — Aí estão eles! Conservamos registros de seus vários disfarces, para evitar repetição nas operações, no caso de haver vigilância documentada... Aqui, aqui! Estas são as últimas fotos — o cabelo, algumas barbas curtas, os óculos, e até mesmo as sobrancelhas. São os homens que viu na televisão, na coletiva do aeroporto Logan, em Boston! Olhe, olhe!

— Raios me partam — disse o jornalista, ficando em pé e examinando as fotos 18x24. — Creio que tem razão.

— Eu tenho razão! Eles são os Seis Suicidas, minha criação!

— Mas por que estão em Boston?

— Isso é ultrassecreto, classificação máxima das máximas.

— Bem, Brigadeiro, detesto dizer isso, mas mostrou apenas algumas imagens sem qualquer ligação entre si. Não fazem sentido sem uma explicação. Lembre-se de que estamos trabalhando com uma “revelação pós-ocorrência”, de modo que não há problema, pode contar.

— Meu nome não pode ser revelado, exceto aos seus amigos do Po-Lounge. Meu desejo de conhecê-los é tão grande que mataria para que isso acontecesse.

— Tem minha palavra de jornalista — respondeu o homem que dizia se chamar Harrison.

— Bem, esse general que citou, esse ex-general caído em desgraça, é um traidor da pátria. Não vou entrar em detalhes, mas se ele conseguir realizar seu plano, a nação perderá sua capacidade de primeiro e segundo ataques.

— Ele é que é o tal... Soldado-não-sei-o-quê? — interrompeu Harrison.

— “Soldado do Século”, mas isso é besteira, não passa de uma armadilha para pegá-lo! E meus homens, meus atores, é que estão agora executando isso!

— Sinceramente, sinto muito em saber disso, Brigadeiro, sinto muito mesmo.

— Por quê? Ele é demente.

— Ele é o quê?

— É um doido, um caso mental...

— Então por que é tão importante?

— Porque ele e um advogado de Harvard especializado em direito criminal — e acentuo o criminal... a respeito do qual sei algumas coisas, estão metidos numa fraude enorme contra nosso maravilhoso governo e que nos custaria, sobretudo ao Pentágono, mais milhões do que podemos arrancar do Congresso num século!

— Que fraude é essa?

— Não conheço os detalhes, só o essencial, e deixe que lhe diga, é um Rocky Horror Picture Show... já viu esse filme?

— Sinto muito — resmungou o jornalista, deixando evidenciar sua hostilidade, embora, aparentemente, esta não fosse evidente para Brokey o Dois. — Quem é esse general? — desabafou finalmente Harrison.

— Um filho da mãe louco chamado Hawkins, um verdadeiro encrenqueiro, sempre foi.

— Eu lembro desse nome. Ele não ganhou a Medalha do Congresso duas vezes?

— Também é maníaco: oitenta por cento dos que recebem essa medalha morrem antes de serem condecorados. Como ele não morreu? Pode ser que exista uma outra história, quem sabe?

— Auuagh! — tossiu o jornalista, os olhos faiscando. — Como o Air Force Two pode ter levado esses impostores para Boston? — perguntou, retomando uma postura aparentemente mais controlada.

— Para dourar a pílula na coletiva de imprensa. Ninguém pode ignorar o avião do Vice-Presidente.

— Mas também não se pode alugá-lo num balcão da Hertz. É um aparelho intocável.

— Não para algumas pessoas...

— Ah, sim, mencionou um figurão... “um dos homens mais poderosos do país”, acho que disse isso.

— Um posto muito alto, quase no topo. Classificação máxima.

— Agora, esse tipo de informação confidencial impressionaria meus amigos de Hollywood. Eles provavelmente o colocariam num avião até a Costa para reuniões... tudo muito sigiloso, claro.

— Reuniões?

— Eles veem longe, Brigadeiro, bem longe, tem que ser assim. Um filme começa com uma ideia muito genérica; o desenvolvimento dessa ideia demora uns dois anos. Meu Deus, todas as grandes estrelas da indústria ficariam a seus pés, encontraria todos eles, para a escolha prévia do elenco.

— Todos...?

— Claro, mas acho que isso está fora de questão, já que não pode me contar — numa base de pós-ocorrência do fato confidencial — quem é o chefão. Mais tarde, qualquer idiota poderá revelar o seu nome, o que, provavelmente, fará; a sua oportunidade de o fazer é agora. Depois disso, o senhor deixará de ser uma pessoa importante... Bem, deixe lá, umas vezes ganha-se, outras vezes perde-se. Vamos continuar com a entrevista, Sr. Brigadeiro. Os cortes nos gastos da Defesa que afetam diretamente a situação do efetivo, o que, por sua vez, afeta o moral da tropa...

— Espere um momento! — um apoplético Brokey o Dois andou para trás e para a frente, olhando as fotos da sua magnífica criação/obsessão. — Como diz, quando a história for revelada, o que vai acontecer um dia, eu deixarei de ser uma pessoa importante e qualquer idiota poderá ficar com os louros do que eu fiz. Meu Deus, isso vai acontecer! Vão fazer um filme e eu não tomarei parte nele. Provavelmente terei que pagar cinquenta dólares só para me sentar num cinema e ver o que fizeram com minha obra-prima. Meu Deus, é terrível!

— A vida é assim mesmo, como naquela canção do Old Blue Eyes — disse o jornalista, descansando a caneta sobre o bloco de notas. — A propósito, o Francis Albert está à procura de um bom papel... pode até desempenhar o seu.

— Francis Albert...?

— Estou falando do Frank, naturalmente, Sinatra, claro.

— Não! — trovejou o brigadeiro. — Fui eu que fiz isso tudo e da minha maneira!

— Como?

— Está bem, eu digo-lhe — disse Brokemichael, coberto de suor. — Mais tarde, ele provavelmente agradecer-me-á, talvez encontre outra estrela para mim e mesmo que não encontre, pode muito bem pagar os cinquenta dólares e assistir ao filme, ao meu filme.

— Não o estou a perceber, sr. Brigadeiro.

— O Secretário de Estado! — murmurou Brokey o Dois. — É por causa dele que os meus Seis Suicidas estão numa missão em Boston. Chegou ontem incógnito, ninguém na base sabia quem era, sua identidade tinha sido forjada!

— Bingo! — gritou o Hawk, saltando da cadeira e arrancando a peruca ruiva da cabeça. — Gotcha, Dois! — continuou ele, gritando, ao mesmo tempo em que se livrava do colarinho e da gravata e tirava os óculos. — Como vai, velho companheiro, seu miserável filho de uma cadela?

Ethelred Brokemichael não foi capaz de pronunciar uma só palavra; em resumo, ficou paralisado. Uma série de grunhidos combinados com guinchos agudos e anasalados emergiram de sua boca aberta, na metade inferior de seu rosto contorcido. — Ahhhhh... ahhhh!

— Isso é maneira de cumprimentar um velho companheiro, mesmo que se trate de um maluco e desajustado a quem, provavelmente, não deveriam ter condecorado duas vezes com a Medalha do Congresso?

— Aiya... aiya!

— Ah, esqueci, ele também é um traidor e um encrenqueiro e talvez haja alguma história por trás das medalhas, como ter dirigido o fogo da sua própria tropa contra ele mesmo, quem sabe.

— Nyahh... nyahh!

— Quer dizer que não acredita que isso funcionasse, palerma!

— Mac, pare com isso! — gritou Brokey o Dois, recuperando-se o suficiente para conseguir protestar. — Não sabe o que estou passando... um divórcio... a vaca está me arrancando o couro... e tenho lutado contra Washington para conseguir fundos e manter minha unidade contente... meu Deus, tenho que arranjar plateias cativas para seus malditos recitais, embora os recrutas não entendam uma única palavra e fumem cigarros esquisitos para sobreviver ao sofrimento... Tenha pena, Mac, eu só estou tentando sobreviver! O que você teria feito, você teria feito, mandado o Secretário de Estado enfiar?

— Provavelmente.

— Ah, sim, bem, nunca precisou pagar um único centavo de pensão alimentar.

— Claro que não. Ensinei minhas meninas a tomarem conta de si mesmas e, por Deus, foi o que fizeram. E se eu estiver sem dinheiro, qualquer uma delas paga o que eu precisar.

— Eu nunca vou entender isso, nunca.

— É simples. Cuidei de todas e de cada uma delas e ajudei-as a serem melhores do que eram. Você não se importou e não ajudou.

— Pois bem, Mac, esse zarolho desse Pease apresentou argumentos do diabo contra você! E quando me disse que esse safado do Devereaux estava envolvido, fiquei maluco, completamente maluco.

— É uma vergonha, Dois, pois é por causa desse safado do Devereaux que eu estou aqui... para ajudá-lo a escapar da maior encrenca de sua vida.

— O quê?

— Já está na hora de ter um pouco de piedade, sr. Brigadeiro. Agora Sam Devereaux sabe que exagerou nas acusações e quer compensar o que fez quando era mais jovem. Acha que eu me arriscaria a vir até aqui e invadir o campo do inimigo, se ele não tivesse insistido?

— De que diabo está falando?

— Você caiu numa tremenda armadilha, Brokey. Sam descobriu e, literalmente, me mandou pegar um avião para avisar.

— O quê? Como?

— É um processo sem importância contra o Governo... tem sempre alguém processando o Governo... mas este está causando grande embaraço a Warren Pease, que é um político muito consciente da importância da imagem. Ele quer que o problema seja eliminado e então contrata você e sua equipe para fazer o serviço sujo, convencendo-o de que é uma grande crise nacional e, no momento em que você conseguir o que ele quer, vai dizer que não o conhece! O processo é arquivado, porque os queixosos não aparecem no Tribunal, certamente que alguém levanta um protesto e a pista da eliminação dos queixosos aponta diretamente para os Seis Suicidas... e para você. Um oficial brigadeiro que mal conseguiu escapar de sérias acusações no Triângulo Dourado. Estaria liquidado, Brokey.

— Que merda! Talvez eu devesse chamá-los de volta.

— Se eu fosse você, também inseriria um memorando oficial em seus arquivos, com a data de ontem, dizendo que reconsiderou a questão e mandou recolher suas tropas, por convicção de que a missão estava além da autoridade militar constitucional. Se o Congresso investigar, enforque Pease, não a si mesmo.

— Diabos me levem se não é isso que vou fazer... Mac, como sabe tanto sobre L. A., a Costa e o Polo Lounge e todas as outras coisas?

— Esqueceu que fizeram um filme sobre mim, companheiro. Trabalhei lá como consultor durante dez semanas de loucura, por cortesia dos merdosos do Pentágono, que pensaram que o filme faria maravilhas pelo recrutamento voluntário.

— Eles afundaram completamente, todo mundo sabe disso. Foi o pior filme que já vi e considero-me um perito. Era mesmo horrível e, muito embora eu o tivesse odiado, tive muita pena de você.

— Eu também detestei, mas houve compensações que apenas esse local pode proporcionar... Chame seus homens de volta, Dois. Está sendo levado ao papel de bode expiatório.

— Vou chamar, vou chamar. Só tenho que descobrir uma forma de fazer isso.

— Pegue o telefone e dê a ordem, é tudo o que tem a fazer.

— Não é assim tão fácil. Meu Deus, estou dando uma contraordem ao Secretário de Estado! Talvez eu esteja ficando doente...

— Está amarelando, Dois?

— Pelo amor de Deus, tenho que pensar!

— Então, então pense também nisso — o Hawk desabotoou o casaco e exibiu um gravador amarrado ao peito. — Um coronel que recentemente promovi sugeriu que eu viesse “armado”, foi como ele chamou. Cada palavra dita nesta sala foi gravada.

— Você não presta, Mac!

— Ora, Brigadeiro, somos apenas uma dupla de velhos e eu também tenho que sobreviver... Como é aquela frase? “Se o demônio não te pegar, as profundezas te pegam”.

— Nunca tinha ouvido isso.

— Eu também não, mas até que se adapta mais ou menos à situação, não acha?


24

Vincent Mangecavallo atravessou o piso de mármore branco do condomínio em Miami Beach, a caminho da sala de ginástica do apartamento. Uma vez mais, estremeceu perante o mobiliário cor-de-rosa espalhado por toda a parte — poltronas, sofás, abajures, tapetes e até mesmo um candelabro na sala de estar com algumas centenas de conchas também cor-de-rosa e que dava a impressão de que ia cair na cabeça de alguém a qualquer momento. Vinnie não era nenhum decorador, mas a interminável combinação de rosa e branco só servia para lhe sugerir que o famoso decorador que seu primo Ruggio contratara era também um astro do balé.

— Não é rosa, Vin — dissera Ruge na antevéspera, pelo telefone. — É pêssego, só que se diz pêche.

— Por quê?

— Porque rosa é barato, pêssego é mais caro e pêche atravessa o telhado. Eu não sei dizer qual é a diferença e, para ser franco, acho que a Rose também não, mas isso a deixa feliz, entende?

— Da forma como você vive, Cugino, deveria fazer sua mulher feliz o tempo todo. No entanto, de qualquer modo, agradeço por me deixar usar o apartamento.

— Pelo tempo que quiser, Vin. Não podemos aparecer por aí, pelo menos por um mês e, nessa altura, já terá voltado ao seio dos vivos. Temos negócios urgentes com a família de El Paso... mas, é verdade, veja o ginásio que eu construí, com sauna e tudo.

— Neste momento é para onde estou pensando em ir, quando acabar de falar com você... até vesti um roupão atoalhado rosa, meio curto.

— Esse é para as garotas. Tenho azuis no ginásio.

— O que há com os rapazes de El Paso, Ruge? — perguntou Vincent.

— Eles querem controlar todo o mercado de selas de couro, o que abrange não apenas os falsos ranchos de vaqueiros em Nova York e Pensilvânia, como também todos os clubes de caça chiques do oeste de Jersey e da Nova Inglaterra.

— Bem, salvo o devido respeito, Ruge, essa história dos cavalos é mais para o faroeste, sabe disso, não sabe? E as selas também devem ter a ver com os vaqueiros, não é? Faroeste, certo?

— Bobagem, Vin. A maior parte das selas é feita no Brooklyn e no Bronx. Você estende um dedo para esses civis e eles querem logo o braço e isso nós não podemos tolerar.

— Compreendo sua posição. Juro pela minha falecida mãe que eu nunca me intrometeria em sua vida.

— Sua mãe não está morta, Vinnie. Está em Lauderdale.

— É apenas um modo de dizer, primo.

— Ei, Vin, sabe de uma coisa? Amanhã vou ao seu enterro! Não é uma coisa impressionante?

— Vai falar de mim?

— Claro que não, eu pertenço às classes baixas. Mas o cardeal vai dizer algumas palavras. Ei, cara, um cardeal, Vinnie!

— Não o conheço.

— Sua mãe ligou, chorou muito e causou um grande impacto na lista de contribuições. Ele falará.

— Vai causar um impacto maior quando eu ressuscitar... Mais uma vez, obrigado pelo apartamento, Cugino.

Mangecavallo fez uma pausa sob o candelabro de conchas cor-de-rosa, refletindo sobre a conversa telefônica que tivera com Ruggio dois dias antes. Como agora, estava também a caminho do pequeno e sofisticado ginásio, onde evitou deliberadamente o novíssimo equipamento Nautilus, como se, pelo simples fato de tocá-lo, uma pessoa pudesse contrair gonorreia. A súbita lembrança daquela conversa fez com que Vincent se desse conta de que estava na altura de fazer outra chamada. Não era uma chamada que o entusiasmasse muito, mas tinha de ser feita, podia ser que lhe dessem uma informação que o fizesse mais feliz do que se tivesse levado um banco à falência em Las Vegas. Mas havia um problema. A notícia de que estava vivo e bem de saúde e a puxar os cordelinhos estava confinada a muito poucas pessoas: os idiotas de Wall Street que constavam da agenda de Meat e que ficariam com as suas bocas seladas com cimento, pois, de contrário, teriam mais tarde de enfrentar o resto das suas vidas sem o dinheiro que imaginavam vir a fazer, e o seu primo Ruggio. Ruge também era uma necessidade, já que Vince precisava de uma residência onde pudesse ficar escondido em segurança, até que chegasse o dia em que Smythington-Fontini fosse buscá-lo e o levasse de avião para o local de seu salvamento miraculoso, nas Dry Tortugas.

Contudo, Abul Khaki não estava nessa lista exclusiva, nem deveria estar, mas ele também era uma necessidade. No mundo das finanças internacionais, Abul era tão vigarista quanto Ivan Salamander; o que o tornava mais perigoso — ou bem-sucedido, dependendo do ponto de vista — era o fato de ele não ser cidadão americano e de lhe pertencerem mais sociedades holding sediadas fora do continente, em lugares como Bahamas e Caymáns, do que qualquer outra pessoa, desde que os piratas tinham enterrado umas duas mil arcas no Caribe. Além disso, como Khaki era um daqueles emirados com os quais Washington procurava constantemente estabelecer ligações às escondidas, dispunha de certas proteções, das que são concedidas quando o Governo conclui negociações obscuras com gente politicamente impopular. Gente que, por exemplo, podia trocar uns poucos milhares de mísseis e uma Bíblia do Rei James por três presos e uma prostituta de Damasco. Abul Khaki era um caso de imunidade com pernas.

Quando Mangecavallo soube das ocultas credenciais de Abul, estabeleceu uma ligação com o árabe, benéfica para ambos. Khaki tinha uma posição privilegiada no domínio do comércio marítimo, com cargueiros ancorados em portos do mundo inteiro, às vezes carregando mais do que petróleo. Após alguns malogros embaraçosos, Vinnie fez saber a Abul que ele e seus amigos tinham influência considerável nas docas... — “de Nova York a Nova Orleans, com alguns pontos pelo meio. Eles estão fechados, Sr. Cocky”.

— É Khaki, sr. Mangecuvilo.

— É Mangecavallo.

— Estou certo de que acabaremos por conseguir pronunciar o nome um do outro.

Foi o que aconteceu, além de que, como se costuma dizer, uma coisa leva à outra, incluindo certos serviços financeiros prestados por Abul ao amigo Vincent. E, perante a firme sugestão, por parte dos dons dos três estados e de Palermo, de que Mangecavallo tentasse o cargo de diretor da CIA, Vinnie procurou Khaki.

— Tenho um problema, Abul. Os dons pensam alto, e isso é ótimo, mas não gostam muito de detalhes, e isso é péssimo.

— Diga qual é o problema, por favor, meu querido amigo que tem os olhos e a velocidade do falcão do deserto... embora, na realidade, eu nunca tenha estado no deserto. É muito quente, é o que me dizem.

— Esse é que é o problema, meu amigo. O calor... Tenho alguma grana escondida em contas espalhadas por todo o país, sob nomes diferentes. Assim que eu conseguir aquele emprego em Washington, e vou conseguir, não poderei voar entre trinta e oito estados para levantar minha grana, grande parte da qual gostaria que se mantivesse secreta.

— É absolutamente imperativo, diria eu.

— Com certeza.

— Tem os talões de cheques das contas?

— Todos os quatro mil duzentos e doze — Vinnie permitiu-se um sorriso denunciador.

— Ahhh, o olhar do camelo diz mais do que o que se pode deduzir do ronco de seus vários estômagos.

— Uma coisa desse tipo.

— Confia em mim, Vincent?

— Claro, tenho que confiar... assim como você tem que confiar em mim, capisce?

— Com toda certeza. A cauda do cão do beduíno agita-se em sinal de triunfo pela sua sobrevivência... Já encontrou um beduíno? Não tem importância.

— As contas bancárias? Os talões de cheques?

— Assine algumas dúzias para encerramento e cobrança e traga-me todos. Na minha folha de pagamento tenho um pintor, um homem de talento extraordinário, capaz de imitar a assinatura de qualquer pessoa, viva ou morta, e que tem feito isso com frequência, obtendo daí vantagens financeiras consideráveis. Eu mesmo tratarei de seu portfólio, Vincent, um fundo fictício, por assim dizer, sob a égide de uma das mais respeitáveis sociedades de advogados de Manhattan.

— Tudo?

— Não seja ridículo. Só uma quantia compatível com a posição de um importador bem-sucedido. É com a quantia restante que você vai ganhar dinheiro e eu garanto que não haverá pistas que possam ser seguidas.

Abul Khaki tornou-se o contador não oficial de Mangecavallo, com cerca de quatro milhões de dólares no mercado e sete vezes essa quantia em sociedades holding sediadas fora do continente. Mesmo assim, não foi nem a amizade prestimosa, nem o serviço prestado, que compeliram Vincent a ligar para Abul. Foi simplesmente o fato de Khaki saber mais sobre as bolsas de valores do mundo todo do que qualquer outra pessoa que Mangecavallo conhecia, tendo grande parte desse conhecimento sido adquirido por vias ilegais e a parte restante por sua perspicácia financeira. E, mais do que qualquer outro homem, Abul Khaki manteria a boca fechada. Era um dado adquirido, sua própria sobrevivência dependia eternamente dessa condição, esqueçam a história do cão do beduíno.

— Não acredito! — gritou o árabe, que estava nesse momento em Monte Carlo, após Vincent ter usado um de seus nomes de código para falar com ele.

— Acredite, Abul, eu conto tudo mais tarde...

— Você não compreende. Ontem fiz uma remessa de coroas de flores, no valor de dez mil dólares, para sua cerimônia fúnebre e assinei em meu nome e no do governo de Israel, por intermédio do meu escritório em Nova York!

— Por que fez isso?

— Bem, eu tinha negócios com o Likud e a associação do meu nome ao deles podia levar a futuros compromissos.

— Isso não me atinge — disse Vincent. — Sempre me dei bem com o Mossad.

— Não me surpreende... mas você voltou dos mortos! O choque me deixou fora de mim, todo o meu corpo treme. Vou perder tudo no bacará. Centenas de milhares de dólares!

— Não jogue.

— Com os três gregos meus parceiros sentados na mesa? Você está maluco?... O que você está fazendo, Vincent? A areia do deserto rodopia e cega meu universo!

— Você nunca esteve no deserto, Abul.

— Mas já vi fotos... apavorantes, exatamente como sua voz me apavora agora, vinda não sei de onde, mas devo presumir que não seja etérea.

— Já lhe disse, explico mais tarde... após meu salvamento.

— Salvamento...? Muito obrigado, querido Vincent, mas não quero ouvir nem mais uma palavra e insisto nisso.

— Então finja que eu não estou aqui, quem está aqui é um investidor interessado. Como está o mercado nos Estados Unidos?

— Como está? Ficou completamente louco. Tantos subterfúgios, tantas negociações secretas, fusões, compras, controle de ações; começou tudo de novo! Uma verdadeira loucura!

— O que dizem os oráculos?

— Os oráculos não estão dizendo nada a ninguém, nem mesmo a mim. Comparado ao mercado, o mundo dos espelhos de Alice é um lugar de lógica incontestável. Nada faz sentido, nem mesmo para mim.

— O que me diz das empresas que trabalham para a defesa?

— Como vocês italianos dizem, estão pazzo! Quando deveriam estar quietas, esperando a conversão dos equipamentos um pouco em toda parte, estão atingindo alturas recordes. Moscou me liga, lá estão furiosos e assustados, perguntaram o que eu achava, mas não tive resposta para dar. Meus contatos na Casa Branca contam que o Presidente esteve em dezenas de reuniões por telefone com todo mundo no Kremlin, assegurando que deve ser tudo por causa da abertura dos mercados do Oriente e das conversões, já que o orçamento do Pentágono continua drasticamente cortado... Estou dizendo, Vincent, está tudo pazzo!

— Não, não está, Abul. Está tudo perfeito... Manterei contato, agora tenho que tomar uma sauna.


Warren Pease, Secretário de Estado, estava fora de si, no limite extremo da ansiedade. Seu olho esquerdo estava nesse momento incontrolável, movendo-se para a frente e para trás, como um raio laser tentando focar num alvo fugidio.

— Que história é essa de não conseguir encontrar o Brigadeiro Ethelred Brokemichael? — gritou ao telefone. — Ele está sob minhas ordens... esqueça, sob as ordens do Presidente dos Estados Unidos, que aguarda que ele lhe apresente seu relatório pelo número de telefone ultrasseguro que eu lhe dei, pelo menos, uma dúzia de vezes! Quanto tempo acha que o Presidente dos Estados Unidos vai esperar um idiota de um brigadeiro, hein?

— Estamos fazendo o melhor que podemos, Secretário — disse a voz exausta e assustada proveniente de Fort Benning. — Não podemos entrar em contato com quem não está aqui.

— Mandaram equipes de busca?

— Para todos os cinemas e restaurantes, de Cuthbert a Columbus e Hot Springs. Verificamos sua agenda, seus telefonemas para fora...

— Encontraram alguma coisa?

— Nada de produtivo, mas descobrimos um fato estranho. O Brigadeiro Brokemichael fez vinte e sete ligações para um hotel em Boston, num período de duas horas e meia. Naturalmente ligamos para o hotel e perguntamos se o brigadeiro tinha deixado algum recado...

— Meu Deus, você não disse quem era, ou disse?

— Só disse que era assunto oficial de governo, nada de específico.

— E?

— Riram do nome... em quatro ocasiões diferentes. Eles asseguraram que o brigadeiro não estava lá e que nunca tinham ouvido falar dele... se é que existia alguém com um nome desses.

— Continue procurando! — Pease bateu violentamente o telefone, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, furioso, na sua sala do Departamento de Estado. O que teria feito aquele idiota do Brokemichael, onde se meteu? Como se atrevia a desaparecer no meio daquela malha de informações militares, onde existiam mais rachas e nós do que em todo o Parque Nacional da Sequoia?! Será que ele achava que podia se desvincular do Secretário de Estado?... Talvez tivesse morrido, pensou Pease... Não, isso não ajudaria, apenas complicaria as coisas... ainda assim, se alguma coisa tivesse dado errado, não havia nada que o ligasse ao excêntrico brigadeiro que criara a arma letal que eram os Seis Suicidas. Warren chegara à base do Exército com os papéis certos, claro, mas não estavam em seu nome... além do mais, usara uma peruquinha ruiva cobrindo o cabelo que começava a faltar. Quanto aos registro de entradas e saídas em Fort Benning, um contador de baixo nível hierárquico do Pentágono, sem traços especiais que o caraterizassem, passara por ali apenas para prestar uma homenagem ao brigadeiro... A peruquinha vermelha tinha sido um toque de gênio, já que a linha recuada de seu cabelo era muito explorada pelos cartunistas políticos. Onde estaria esse filho da mãe?

O telefone interrompeu seus pensamentos; correu para o atender, verificando que três botões estavam iluminados e, subitamente, um quarto. Apertou o botão correspondente à sua secretária, que estava a piscar, e atendeu o telefone, na esperança de ainda ouvir as palavras “Fort Benning na linha”. A sua esperança, porém, desvaneceu-se quando, após trinta segundos de sofrimento, a vaca informou com frieza:

— O senhor tem três e agora quatro ligações que eu só posso descrever como sendo de caráter pessoal, Sr. Secretário, já que ninguém quer dizer o que deseja e eu não reconheço os nomes, pelo menos, pela forma como me foram transmitidos.

— E que nomes eram?

— Bricky, Froggie, Moose e...

— Está bem, está bem — interrompeu Warren, ao mesmo tempo confuso e furioso. Eram os seus parceiros sociais-sociais e mais alguma coisa — do Fawning Hill Country Club! Não deviam nunca ligar-lhe para o seu escritório, isso era a Bíblia! Mas, é claro, eles não tinham ligado; “Bricky”, “Froggie”, “Moose” e, sem dúvida, “Doozie”, tinham feito as ligações individualmente. Meu Deus, o que acontecera para que todos quisessem falar com ele? — Eu atendo pela ordem, mãe Tyrania — disse, dando uma pancada na cabeça para acalmar o olho esquerdo cheio de estresse.

— Eu não sou a Tyrania, Sr. Secretário. Sou sua filha mais nova, Andromeda Trueheart.

— Você é nova?

— Comecei ontem, Sr. Secretário. A minha família achou que, neste momento, o senhor precisaria de um serviço extremamente eficiente e minha mãe está de férias em Beirute.

— Ah sim? — visões de cintas-ligas encheram o espaço que restava na imaginação de Pease. — Você é a filha mais nova...?

— As suas ligações, Sr. Secretário.

— Sim, sim, passe-me a primeira... “Bricky”, não é?

— É sim, Sr. Secretário. Direi aos outros que esperem.


— Bricky, que história é essa de ligar para cá?

— Pease, minha velha raposa — disse Bricky, o banqueiro da Nova Inglaterra, transbordando de encanto subterrâneo. — Vou fazer de você o ex-aluno mais coberto de honrarias na reunião da nossa turma.

— Pensei que tivesse dito que eu não podia ir.

— Tudo mudou, naturalmente. Eu não tinha ideia do que sua mente incrível ia evocar. Você é um trunfo para nossa turma, velho companheiro... Não vou tomar seu tempo, sei que está ocupado, mas se algum dia precisar de um empréstimo, basta pegar o telefone. Ligue cedo, para podermos almoçar juntos... pago eu, claro.


— Froggie, que diabo está acontecendo? Acabo de saber pelo Bricky...

— Estou certo de que não preciso dizer, meu Midas reencarnado, velho amigo, e com certeza que não diria por este telefone — retorquiu o louco cínico de Fawning Hill. — Nós todos conversamos e quero que saiba que Daphne e eu esperamos que você e sua querida esposa sejam nossos convidados no Baile das Debutantes de Fairfax, no mês que vem. Será o convidado de honra, claro.

— Serei?

— Naturalmente. Nada é demais quando se trata de um de nós, não é verdade?

— É muito amável de sua parte...

— Amável? Você é que é incrivelmente amável, meu caro. Pura e simplesmente ma-ra-vi-lho-so!


— Moose, quer fazer o favor de me dizer...

— Com os diabos, seu patife, pode jogar no meu clube sempre que quiser! — exclamou o presidente da Petrotoxic Amalgamated. — Esqueça o que esse idiota disse antes, seria um privilégio brandir um ferro de seis com você.

— Eu não entendo...

— Claro que entende e também é claro que não pode falar. Mas deixe que diga, meu velho companheiro, você é o número um no meu registro social, nunca esqueça... Tenho que ir; acabei de me eleger presidente do conselho de administração, mas se quiser, o cargo é seu.


— Doozie, falei ainda agora com Bricky, Froggie e Moose e tenho que dizer que estou atônito.

— Eu compreendo, velho amigo. Tem gente no seu escritório, não é? Basta dizer “sim” e falarei de acordo.

— Eu digo “não” e pode dizer o que bem entender!

— E quanto a escutas em seu telefone?

— Absolutamente impossível. O escritório é “varrido“ todas as manhãs e há protetores de chumbo no exterior, a fim de bloquear qualquer vigilância eletrônica.

— Ótimo, parceiro, está controlando bem tudo o que acontece por aí.

— Na realidade, é um procedimento de rotina... Doozie, que diabos está acontecendo?

— Está me testando, patife?

O Secretário de Estado fez uma pausa; como nada mais parecia dar certo, talvez fosse esta a forma correta de agir.

— Talvez esteja, Doozie. Talvez eu queira me certificar de que todos vocês entenderam.

— Vamos colocar a questão da seguinte maneira, Secretário, meu caro amigo. É o cérebro mais criativo que nosso pessoal produziu, desde que esmagamos os sindicatos nos anos 20. E usou apenas a imaginação, sem disparar um único tiro num maldito socialista ou num congressista de esquerda!

— Sou obrigado a pressioná-lo, Doozie — disse um Warren Pease aturdido, o suor começando a aparecer na linha do cabelo já recuada. — Diga exatamente como eu fiz isso.

— Os OVNIs! — exclamou Doozie. — Como esse socialmente inaceitável Ivan Salamander colocou a questão, muito confidencialmente, é claro, teremos que armar o mundo inteiro! Brilhante, meu caro, absolutamente brilhante!

— OVNIs? Do que está falando?

— De alta categoria, amigão, muito alta categoria.

— OVNIs...? Oh, meu Deus!


O jato Rockwell transportando o Hawk aterrissou no aeroporto em Manchester, New Hampshire, uns quinze quilômetros ao sul de Hooksett. A decisão de contornar Boston e voar diretamente para Manchester tinha sido de Sam Devereaux, e seu raciocínio era de que se Mac havia sido pego anteriormente pela vigilância de alguém no Logan e isso podia acontecer novamente, então por que correr o risco? Além do mais, as coisas estavam acontecendo a um ritmo acelerado e, se uma ou duas horas de carro podiam ser evitadas, não havia que hesitar. Agora, o próximo passo de Mac era dispersar os Seis Suicidas, que, conforme dissera Desi-Um, estavam totalmente inutilizados graças ao talento culinário de Desi-Um. O resto ficaria por conta do poder de persuasão de Mac.

Paddy Lafferty, com o peito inchado de orgulho e adoração pelo seu herói, esperou o general na limusine de Pinkus e, maravilha das maravilhas, o grande homem decidiu, mais uma vez, sentar-se à frente, ao lado de Paddy.

— Diga-me uma coisa, artilheiro — perguntou o Hawk enquanto seguiam velozmente rumo ao norte, na direção de Hooksett. — o que você sabe sobre atores, quer dizer, atores mesmo?

— À exceção de Sir Henry, não sei grande coisa, General.

— Bem, esse é especial, acho eu; tem um registro de tudo o que fez. E os que não têm?

— Pelo que eu leio nos jornais e revistas que a Mrs. Pinkus deixa no carro, estão sempre todos à espera que os descubram, para que possam obter registros do que fizeram. Pode não ser muito brilhante, mas é o que eu penso.

— É muito brilhante, Paddy. Essa é a resposta.

— A que, General?

— À questão de saber como se pode fazer com que certas pessoas mudem de opinião sem que tenham de pensar muito.

Oito minutos depois, o Hawk entrava na cabana de esqui. Era uma tarde luminosa de verão e Desi-Dois tinha acabado de servir um café da manhã tardio; os resultados eram evidentes. Os membros letais dos Seis Suicidas estavam tão perto da terra dos zombies como os cadáveres nos caixões. Estavam sentados em redor da sala de estar, a olhar para os seus próprios horizontes pessoais, como se fossem peixes mortos com a cabeça para baixo, num cais de New Bedford. A única exceção era Sir Henry Irving Sutton, que, nitidamente, já tinha dado a volta àquela sala algumas vezes e estava tão desagradavelmente cheio de vida como uma gralha negra a gralhar no meio de uma ressaca maciça e coletiva.

— Vamos, cavalheiros! — exclamou Sir Henry, esbofeteando delicadamente vários rostos e dando cotoveladas em várias costelas enquanto ia dando a volta na sala. — O nosso multicondecorado general da campanha do Norte da África veio falar conosco.

— Muito bem dito, Major — aprovou o Hawk. — Não vou tomar muito seu tempo, homens, apenas o suficiente para atualizá-los.

— Atualizar-nos?

— Que atualização é essa?

— Arranjou uma namorada, Marlon?

— Não entendo o que ele quer dizer.

— Quem é ele?

— Dê-lhe um pirulito, querido.

Um por um, os olhos arregalados dos seis intrépidos peixes fixaram-se no Hawk, que caminhou até a escada, subiu dois degraus e dirigiu-se aos membros da unidade antiterrorista.

— Cavalheiros — começou, na sua melhor tradição estentórea — e são cavalheiros, além de notáveis atores e soldados —, meu nome é Hawkins, MacKenzie Hawkins, o general reformado que os senhores deveriam encontrar e prender.

— Meu Deus, é ele!

— Igual às fotos...

— Alguém se mexa...!

— Esquece.

— As minhas pernas não funcionam, peregrino.

— Esperem, senhores! — exclamou o Hawk —, embora eu não pense que seja mesmo necessário mandá-los esperar, pelo que vejo na minha frente... Acabo de voltar de Benning, onde me reuni com meu bom amigo e camarada de armas de longa data, o Brigadeiro Ethelred Brokemichael, seu comandante. Ele envia congratulações por mais um trabalho bem feito, juntamente com novas ordens bem concisas... Esta missão foi cancelada, abortada, enfiada numa máquina de retalhar papel.

— Ei, peregrino! — disse O Duke, batendo inutilmente nos joelhos. — Quem disse isso?

— O Brigadeiro Brokemichael.

— Por que ele não ligou-gou-gou... pessoal-pessoal-pessoalmente?

— Deve ser o tal Dusty.

— Não sou, seu palerma! — disse Sly ameaçadoramente. — Você fica aí parado imitando Rosencrantz em Helsingør. Mas por que deveríamos acreditar no que diz, hein, hein? Por que ele mesmo não fala conosco?

— Ele... nós... tentamos repetidamente ligar de Fort Benning. O telefone daqui não está funcionando.

— Como isso pôde acontecer, querido?

— Por causa da tempestade?

— Que tempestade, caro rapaz? Não me lembro de ventos fortes ou do barulho de trovões pelas charnecas.

— Sir Larry...?

— Não me venha com isso ou com Stella, nem com outra porcaria qualquer, já temos problemas que cheguem!

— Marlon...?

— A questão, peregrino, é: por que deveríamos acreditar em você? Os índios estão sempre nos enganando. Os tambores de guerra silenciam, pensamos que vamos ter uma pausa e é então que os selvagens sedentos de sangue atacam. É nessa hora que nós temos que parar o massacre.

— Você devia trabalhar nisso, Duke. Conheci o verdadeiro Duke quando fizeram aquele filme sobre mim e, não sei se você sabe, ele não tinha um único osso adverso no corpo.

— Você conheceu o Duke...?

— Ouçam com atenção! — berrou o Hawk, assustando os homens... pelo menos, o suficiente para atrair atenção. — O Brigadeiro Brokemichael e eu não só chegamos a uma trégua honrosa, como também a uma firme conclusão. Em termos simples, senhores, ambos fomos ludibriados por políticos corruptos que usavam o único talento que os senhores têm para concretizar suas ambições. Conforme todos sabem, nada é escrito sobre suas operações de segurança máxima, os objetivos são transmitidos oralmente, e, em conformidade com essa diretiva, meu grande amigo, Brokey, o Dois... expressão afetuosa, a propósito... autorizou-me a lhes dizer que a missão está cancelada, e, juntamente com esta ordem e à luz de sua magnífica folha de serviços nestes últimos cinco anos, ele providenciou para que todos sejam transferidos para suítes no Waldorf-Astoria, em Nova York.

— Por que lá? — perguntou Marlon, sem mastigar as palavras.

— Por quê? — quis saber Dusty, sem se repetir.

— Uma informação agradável — acrescentou Sir Larry.

— Na realidade, é muito simples — disse o Hawk. — Seu tempo de serviço acaba em seis meses e, tendo em conta a contribuição extraordinária que deram às Forças Armadas e à redução das tensões mundiais, o Brigadeiro Brokemichael conseguiu para todos entrevistas com os chefões de vários estúdios, que virão de Hollywood. Eles estão ansiosos para transformar sua história em filme.

— E eu?? — berrou um atormentado Sir Henry.

— Desconfio que vá representar o papel do Brigadeiro Brokemichael.

— Assim é melhor.

— Estou sem fala, peregrino — disse O Duke.

— Isso é tudo que sempre desejamos — disse Marlon, num inglês perfeito. — Tudo com que sempre sonhamos!

— Sensacional...!

— Estupendo...!

— Representaremos nosso próprio papel...!

— E estaremos juntos...!

— Viva Hollywood...!

Como um bando de leões feridos atirados por chuvas torrenciais na savana africana, os Seis Suicidas lutaram para ficar em pé e, tropegamente, apoiaram-se uns nos outros, formando um círculo imperfeito. E, como marionetas desconjuntadas, começaram a dançar em volta desse círculo imperfeito, seus corpos batendo, no meio a grandes — embora dolorosas — gargalhadas. Na sala de estar da antiga cabana de esqui, criaram uma hora, nascida de uma tarantella, com doses generosas de um acampamento de mineiros bêbados. Crescendos de triunfo encheram a sala no momento em que Desi-Um caminhou até a escada e falou com o Hawk.

— Você é realmente um grande homem, Heneral! Olhe como eles estão felizes... fez com que eles se sentissem maravilhosamente!

— Sim, bem, vou lhe dizer uma coisa, D-Um — disse MacKenzie, tirando do bolso um charuto mutilado. — Eu não estou me sentindo assim tão bem. Sinto-me do tamanho de um rato de esgoto e dez vezes mais sujo.

Pela primeira vez, desde o encontro inicial no banheiro dos homens do aeroporto Logan, em Boston, Desi-Um olhou com reprovação para o Hawk. Um olhar demorado e duro.


Warren Pease, de pijama, voou escada abaixo em sua casa moderadamente elegante situada nos subúrbios de Fairfax. Atravessou correndo a sala de estar, aproveitando a luz do corredor, não acertou com a porta do escritório e bateu na parede, ficou em pânico e correu para o telefone que piscava. Apertou três botões até acertar, procurou tateando o abajur de sua mesa e, ao acendê-lo, deixou-se cair sobre a cadeira, gritando.

— Onde diabos esteve? São quatro da manhã e ninguém conseguiu encontrá-lo! A cada hora que passa, aproximamo-nos mais da catástrofe e desaparece. Exijo uma explicação!

— Começou com uma dor de estômago, Sr. Secretário.

— O quê? — guinchou Pease.

— Problemas de estômago. Gases, Sr. Secretário.

— Não acredito! O país se defrontando com um desastre e você a ter gases?

— Não é uma coisa que se possa controlar...

— Onde estava? Onde está esta sua maldita unidade? O que está acontecendo?

— Bem, a resposta à sua primeira pergunta está diretamente relacionada com a segunda e a terceira.

— O que disse...?

— Sabe, a minha acidez... o gás... foi causada pelo fato de eu não ter conseguido determinar a localização da unidade em Boston, de modo que fui — secretamente — ver se os encontrava.

— Secretamente... onde?

— A Boston, é claro. Consegui uma boleia num avião de reconhecimento da Força Aérea que saía de Macon e cheguei lá por volta das três horas da tarde — de ontem, é claro. Como é natural, fui imediatamente para o hotel — é um hotel muito bom...

— Fico tão contente por saber isso. E então?

— Bem, eu tive de ser muito cauteloso, é claro, pois não iríamos querer uma ligação oficial, penso que concorda comigo.

— Com todos os nervos destruídos do meu corpo! — urrou o Secretário de Estado. — Pelo amor de Deus, o senhor não usou o seu uniforme?

— Por favor, Sr. Secretário... eu fui disfarçado. Usei um traje civil e, ao pensar na possibilidade de esbarrar com algum dos procuradores reformados do Pentágono, surgiu-me uma ideia esplêndida. Procurei na parafernália da minha unidade e descobri uma peruca que se ajustou perfeitamente à minha cabeça. Um pouco ruiva demais para o meu gosto, mas com madeixas grisalhas...

— Está bem, está bem! — interrompeu Pease. — O que descobriu?

— Um homenzinho estranho numa das suítes... eu sabia os números dos quartos, naturalmente. Reconheci logo a voz dele, já que tínhamos falado ao telefone muitas vezes, quando eu ainda estava em Benning. É um velhinho inofensivo que os rapazes contrataram para receber e transmitir mensagens, o que revelou esperteza da parte deles. Não podia subir muito e isso era uma vantagem; limitava-se a receber e a transmitir mensagens.

— O que ele disse, pelo amor de Deus?

— Repetiu o que já muitas vezes me tinha dito ao telefone, mais vezes do que as que fui capaz de contar. Os seus patrões temporários tinham saído para tratar de negócios; ele não sabia mais do que isso.

— Só isso? Eles pura e simplesmente desapareceram?

— Tenho de presumir que estejam a aproximar-se do alvo, Sr. Secretário. Conforme expliquei, eles têm amplos parâmetros no que diz respeito às suas missões, pois muita coisa depende de reações instantâneas, que eles são treinados para inventar.

— Besteiras! — gritou Pease.

— Não, Sr. Secretário, chama-se isso de improvisação... “improv”, para abreviar.

— Está dizendo que não sabe o que está acontecendo. Não há comunicação, pelo amor de Deus!

— Há muitas ocasiões em que não se pode confiar no equipamento telefônico, tanto civil como pró-governamental.

— De quem é essa frase? Da Pantera Cor-de-Rosa? Por que não atendeu minhas ligações?

— No avião de reconhecimento da Força Aérea que peguei para Boston, Secretário? Quer que as aeronaves tenham seu número registrado nos computadores?

— Não, com os diabos!

— E quando cheguei a Boston não tinha como saber que me ligou...

— Não procurou seu escritório para saber se sua unidade desaparecida tinha ligado à sua procura...

— Operamos completamente no escuro. Eles só têm dois números; um do meu escritório de Benning, que está no banheiro, mas que ativa uma luz sob minha mesa, e o outro em meu apartamento, que fica no armário e ativa uma fita magnética que toca There's no Business Like Show Business. Naturalmente que tenho um controle remoto para ambos e não havia nada gravado neles.

— Acho que posso cortar meus pulsos... O que todas essas maluquices significam é que ninguém pode falar com quem tem autoridade.

— Uma vez retirada, é duas vezes retirada de exposição... Esta é uma fala do filme Thirty-two Rue Madeleine. Já viu? Com Cagney e Abel, simplesmente maravilhoso.

— Não quero ouvir falar de nenhum maldito filme, soldado. Só quero ouvi-lo dizer que o seu bando de gorilas capturou Hawkins e levou-o para a base do Comando Aéreo Estratégico em Westover! É só o que eu quero ouvir e se não ouvir o que eu quero muito brevemente, é possível que isso signifique o fim para todos nós! Bastariam dois juízes, com apoio desses eternos e previsíveis radicais de esquerda!

— Para todos nós, Secretário, ou só para alguns de nós? Por exemplo, para um outrora despromovido brigadeiro e para a unidade muito bem-sucedida que ele criou?

— O quê?... Não se atreva a bancar o engraçadinho comigo, soldado!

— Bem, Secretário, se me permite a curiosidade, por que, de um ponto de vista militar, está tão preocupado com as atividades de Mac Hawkins, quaisquer que elas sejam? O mundo está mudando, o relacionamento entre as grandes potências é menos hostil e, no que diz respeito às menores, podemos juntá-las todas num canto e explodi-las, como fizemos com o Iraque. Por toda parte, de ambos os lados, reduzimos pessoal e equipamentos a cada dia que passa... Ora, ainda ontem de manhã, um famoso jornalista foi me entrevistar em Benning; faz reportagem sobre a reação do Exército à supremacia da economia sobre o poder militar na era pós-soviética, o fim da guerra fria.

— P... p... pós-guerra fria? — gaguejou o Secretário de Estado, inclinando-se na mesa, com o suor a agravar a rotação do olho esquerdo. — Vê se acorda, soldado! O que me diz de uma ameaça muito mais perigosa, a maior ameaça que é capaz de imaginar?

— China, Líbia, Israel?

— Não, seu idiota! As pessoas esquisitas... quem sabe até que ponto serão capazes de ir?

— O quê?

— Os... os... OVNIs!


25

Jennifer Redwing saiu a correr da água, diante da casa de praia de Swampscott. Puxou as alças do maiô, um dos muitos que encontrara nas cabanas para hóspedes e atravessou velozmente a areia até a escada do terraço, em cujo corrimão tinha pendurado uma toalha. Enxugou vigorosamente as pernas e os braços, atirou o cabelo para trás e massageou o couro cabeludo. Quando abriu os olhos, deparou-se com Sam Devereaux sorrindo para ela, sentado numa cadeira instalada na varanda.

— Mas que grande nadadora — disse ele.

— Aprendemos a nadar quando atraíamos os colonos para as corredeiras... ficávamos nadando de um lado para o outro e olhando enquanto se afogavam — respondeu Jenny, rindo.

— Sabe, até posso acreditar nisso.

— Você sabe que, provavelmente, é verdade — Redwing subiu os degraus e caminhou pela varanda, embrulhando-se na toalha. — Que bom — acrescentou, olhando para a mesa de Plexiglas fosco. — Um bule de café e três xícaras.

— Na realidade, são canecas. Não sei tomar café em xícara.

— Que engraçado, eu também não — disse Jenny, sentando-se. — Acho que é por isso que chamo de xícara; é intermutável. Devo ter uma dúzia no meu apartamento, quase todas diferentes.

— Devo ter duas dúzias e só quatro são iguais. Claro que essas são da minha mãe. Uma espécie de cristal verde e eu nunca uso.

— Chama-se Cristal Irlandês, horrivelmente caro... tenho duas e também nunca uso.

Ambos riram e seus olhares ficaram presos um ao outro; o momento foi breve, mas não passou despercebido.

— Meu Deus — disse Sam —, conversamos por quase um minuto sem atirar farpa um no outro. O acontecimento merece celebração, por isso, vou lhe servir uma xícara... caneca... de café.

— Obrigada. Preto, por favor.

— Isso ajuda. Esqueci do creme, do leite e daquele pó branco que eu evito usar, pois dá a impressão de que vamos acabar na cadeia pela simples posse.

— Para quem é a terceira xícara... caneca? — perguntou a Afrodite índia, aceitando o café.

— Para Aaron. Minha mãe está lá em cima; apaixonou-se pelo Roman Z, que disse que lhe prepararia um café cigano e o levaria. Cyrus não vai permitir isso, mas está curtindo uma ressaca na cozinha.

— Você não acha que ele devia ficar de olho no Roman?

— Você não conhece a minha mãe.

— Talvez eu a conheça melhor do que você e essa é a razão pela qual fiz essa pergunta. — Mais uma vez seus olhos se encontraram, só que agora o riso foi mais alto e mais... caloroso.

— Você é uma índia mazinha e eu devia tirar-lhe o café.

— Nem pensar! Acho que este é um dos melhores cafés que já provei.

— Verdade, estou de acordo. Foi Roman Z que o preparou. Com certeza ele vasculhou as dunas e pegou pequenos ouriços-do-mar para misturar com a borra, mas se você começar a uivar, arranjo uma navalha e corto sua barba.

— Oh, Sam — Jenny tossiu, voltando a pôr a caneca na mesa. — Você, às vezes, pode ser divertido, mesmo que seja um dos homens mais irritantes que eu conheço.

— Irritante? Eu? Que o céu não permita... Mas, diga-me, “divertido” em termos índios significa que existe uma trégua entre nós?

— Por que não? Eu ainda pensei nisso ontem à noite, antes de dormir: temos algumas montanhas difíceis para escalar e não vamos conseguir chegar ao outro lado se ficarmos apunhalando um ao outro. Daqui para frente serão disparadas muitas balas na nossa direção, legalmente e, provavelmente, por outras vias, que em nada contribuirão para a normalidade da minha pressão sanguínea.

— Então por que não me deixa assumir o comando, como diria o Hawk? Não a trairei na audiência.

— Eu sei que não, mas o que o faz pensar que tem mais capacidade do que eu para lidar com as “outras vias”? Se disser que é por ser homem, voltamos às punhaladas.

— Bem, agressões à parte, suponho que essa seja uma parte natural da questão, mas com menos importância. A parte mais importante é o fato de eu conhecer Mac Hawkins, sei como ele reage em situações de tensão. Posso inclusive antecipar o que ele faz, e deixe-me dizer, não há ninguém neste mundo que eu gostaria mais de ter a meu lado numa situação de perigo do que Mac.

— O que você está dizendo é que trabalham bem em equipe, formam uma boa dupla.

— Eu sou o cavalo menor, mas já trabalhamos assim no passado. Já o chamei filho da puta tortuoso mais vezes do que um computador seria capaz de calcular, mas quando a coisa fica feia, muito feia mesmo, agradeço à lua e às estrelas a tortuosidade que Deus lhe deu. Posso inclusive sentir quando ele vai tirar alguma coisa daquela sua incrível mochila militar. Eu sinto e vou na onda.

— Então, você tem que me ensinar a fazer o mesmo, Sam.

Devereaux fez uma pausa, olhando para a caneca de café; depois, encarou-a.

— Você se aborrece se eu lhe disser que isso pode ser imprudente? Até mesmo um empecilho?

— Você quer dizer que eu atrapalharia a dupla de bons amigos?

— Para ser inflexível, sim.

— Então teremos que arriscar minha incompetência.

— Vamos recomeçar o tiroteio?

— Vamos, Sam, eu sei o que está fazendo e agradeço. Na realidade, é tentador, já que não sou uma idiota e não me vejo como uma mulher-comando, mas é meu povo. Não posso pura e simplesmente desaparecer; eles têm que saber que eu estou lá, que eu estava lá. Para que me ouçam, eles têm que me respeitar e, seja ou não do seu agrado, não me respeitarão se eu me esconder, enquanto outra pessoa trata dos problemas legais, dos problemas legais da tribo.

— Entendo o que quer dizer. Não gosto, mas entendo — ouviu-se, nesse instante, o barulho de uma porta batendo e passos que ecoaram na sala de estar. Pouco depois, Aaron Pinkus saiu da casa, seu corpo frágil enfiado em bermuda branca e camiseta azul, a cabeça coberta por um boné amarelo de golfe. Pestanejou sob o sol forte e dirigiu-se para a mesa.

— Bom dia, patrão benevolente — disse Devereaux.

— Bom dia, Sam, Jennifer — respondeu Aaron, sentando-se, enquanto Redwing lhe servia café. — Obrigado, minha querida... Pensei ter ouvido vozes aqui fora, mas como o tom não era alto nem cheio de xingamentos, não achei que fossem vocês.

— Estamos negociando um armistício — disse Devereaux. — Eu perdi.

— Até aqui, as coisas estão progredindo — comentou o respeitado advogado, assentindo e dando um gole na caneca. — Eita, mas que café excelente!

— Feito com águas-vivas e algas marinhas imundas.

— O quê?

— Não ligue, Mr. Pinkus. Roman Z fez o café e Sam está com ciúme.

— Ora, por Roman e minha mãe? Ei, não sou desse tipo.

— Roman Z e Eleanor? — Os olhos de Aaron se arregalaram sob a pala do boné amarelo. — Talvez eu devesse entrar e sair de novo. As coisas estão um pouco desconexas.

— Não se preocupe, estamos apenas falando de coisas tontas e banais.

— Não sei se são banais, minha querida, mas são extremamente tontas... Quase tanto quanto a ginástica mental do nosso amigo General Hawkins. Acabo de falar com ele ao telefone.

— O que está acontecendo? Como estão as coisas na cabana?

— Aparentemente, a cabana de esqui está transferindo seu “acampamento“ para três suítes no Waldorf-Astoria em Nova York.

— Hein?

— Eu não fui mais concreto do que você, Sam.

— Quer dizer que ele eliminou o problema — disse Jennifer, alegremente.

— E assumiu vários novos problemas, pelo que entendi — acrescentou Pinkus, olhando para Devereaux. — Ele pediu que você abrisse uma linha de crédito no valor de cem mil dólares no Waldorf e que não se preocupasse. Como o problema é dele, irá transferir recursos de Berna para Genebra... assuntos que faço questão de não tomar conhecimento... Você consegue fazer isso, ele consegui-lo-á? Deixe lá, não é nada!

— Na realidade, é uma simples transferência realizada por computador, um crédito bancário a ser sacado pelo credor designado...

— Eu sei como isso é feito, não é essa a questão!... Deixe lá, não é nada!

— Esse é um problema — disse Redwing. — Quais são os outros?

— Não estou inteiramente certo. Ele perguntou-me se eu conhecia alguns produtores de cinema.

— Para quê?

— Não tenho ideia. Quando eu contei que conheci um jovem na sinagoga... na realidade, ele foi expulso de lá, que, vim a saber mais tarde, tinha produzido diversos filmes pornô e que, tirando esse indivíduo, não conhecia mais ninguém na indústria, ele disse para não me preocupar, que seguiria outra direção.

— Esta é uma das ocasiões em que sinto que está sendo preparada uma estratégia tortuosa.

— Premonição de Devereaux? — perguntou Jenny.

— Profecia de Devereaux — respondeu Sam. — O que mais, Aaron?

— Algo ainda mais estranho. Ele queria saber se tínhamos algum cliente com problemas nos olhos, concretamente um olho esquerdo desgarrado e, de preferência, que precisasse de uma injeção de dinheiro imediata.

— Estranho? — questionou Redwing. — Parece louco!

— Nunca subestimem o tortuoso, como diz o evangelho segundo Oliver North com tocante sinceridade — Devereaux fez uma pausa. — Não consigo me lembrar de nenhum cliente que seja assim, mas, se pudesse, enfiá-lo-ia diretamente num Capítulo Onze só por causa do que o Mac tem na mochila, seja lá o que for... Deixando de lado essas questões inúteis, qual é o nosso próximo passo, chefe? Você e o Hawk discutiram o que faremos agora?

— Rapidamente. Temos dois dias e meio até a audiência, quando você, Jennifer e o general deverão sair de um ou mais veículos, subir os degraus do prédio da Suprema Corte, aguardar no saguão que os funcionários encarregados autorizem sua entrada, passar pela segurança e, finalmente, ser levados ao gabinete do Juiz-Presidente.

— Haha, já estou ouvindo Mac falando — interrompeu Sam.

— Exatamente — concordou Pinkus. — Creio que foram estas as suas palavras, ou, pelo menos, parecidas com estas, descontando uma ou duas vulgaridades... talvez três. Ele disse que é preciso abordar a situação como se fosse a insurreição de três homens atrás das linhas do inimigo.

— O que é muito tranquilizador — disse Redwing, engolindo em seco. — O que ele espera que aconteça, uma interdição contrainsurrecional, em que podemos ter as cabeças arrebentadas?

— Não, ele excluiu a possibilidade de violência... seria contraproducente, já que poderiam ser apanhados.

— Graças a Deus pelos pequenos favores — acrescentou Jenny.

— Mas ele não excluiu a possibilidade de uma interdição, você acertou nessa parte, inclusive na palavra. Ele acha que a contraestratégia será “interditar” ele mesmo, ou o Sam, ou ambos, impedindo seu acesso aos aposentos do Juiz-Presidente, pois sem sua presença a audiência não tem valor jurídico. O recorrente e o advogado precisam comparecer juntos.

— E eu?

— Sua comparência, minha querida, é de sua livre escolha... insistência, se preferir, como parte interessada e não por uma exigência legal. No entanto, como você sabe muito bem, os acordos que você assinou com o general e com o Sam e que foram autenticados notarialmente são legalmente válidos. Nesta situação, a parte interessada acaba por ter uma influência preponderante sobre a causa, em benefício do recorrente, não se trata de uma circunstância casual.

— Pense nos julgamentos da Mafia, onde se veem certos espectadores a rondar as mesas dos defensores — disse Devereaux, dirigindo-se a Jenny, mas logo desviando o olhar para Pinkus. — Por que não ficamos aqui até depois de amanhã, mais ou menos ao meio-dia, nessa hora pegamos nosso avião para Washington e depois táxis comuns até a Suprema Corte? Não consigo ver isso como um problema. Ninguém sabe onde estamos, com exceção do homem que contratou Cyrus e Roman para nossa guarda, o tal com quem Mac falou. Até mesmo Cyrus concorda agora com Hawk; seja ele quem for, o tal homem quer nos ver bem e vivos comparecendo à audiência.

— Cyrus também quer saber por que — disse Redwing. — Ou ele não tocou nesse ponto?

— Mac falou com ele; eu estava lá. Esse tal “Comandante Y” está a ajustar as contas com as pessoas que querem impedir a realização da audiência, o que significa impedir-nos de lá chegar.

— Aparentemente, minha querida, nosso benfeitor desconhecido era anteriormente fiel aliado dos que estão contra nós, até que soube que essas mesmas pessoas tinham planos para ele. Alguma coisa parecida com um sacrifício político, se não chegasse mesmo a um sacrifício humano, nenhum dos quais é muito insólito em Washington, de acordo com o que disse o general.

— Mas Mr. Pinkus... — Jennifer semicerrou os olhos, contraindo as feições do bonito rosto, em parte por causa do sol da manhã, mas também devido a um pensamento perturbador. — Há algo que nos escapa, algo que é vital, na minha opinião. Talvez eu seja paranoica quanto ao Chefe Cabeça de Trovão, e por que não seria? Mas ontem à noite, Hawkins só nos disse que estava tudo sob controle... sob controle. O que isso significa?... Ok, de algum modo ele conseguiu impedir que esses atores-guerrilheiros arrebentassem conosco em alguma ravina, é sempre numa ravina, num penhasco ou num bordel, mas como? O que aconteceu em Fort Benning? Todos nos sentimos tão aliviados ao saber disso que pudemos dormir descansados, mas nunca perguntamos.

— Não é bem assim, Jennifer. Antes desta manhã, ele e eu concordamos em não falar de coisas particulares ao telefone, pois, como ele argumentou, um grupo de ataque tinha sido mandado atrás de nós em Hooksett e uma escuta ilícita da linha telefônica seria rotina.

— Pensei que a linha de Hooksett tivesse sido cortada — interrompeu Devereaux.

— Isso foi dito só para constar, na realidade não foi cortada. Ele não podia dizer ontem à noite o que disse hoje de manhã.

— A escuta ilícita foi descoberta? Como ele podia saber...

— Não precisava. Esta manhã ele estava telefonando do Sophie's Dinner, na Noventa e Três. Chegou a elogiar a Kielbasy1 com ovos.

— Por favor, Mr. Pinkus, o que ele disse sobre Fort Benning?

— Pouco, minha querida, muito pouco, mas o bastante para fazer com que este idoso advogado ficasse pensando no que teria acontecido ao Estado de Direito nas mãos desses guardiães de tal conceito... Pensando melhor, gostaria de saber por que ainda me espanto.

— Essa é bem pesada, Aaron.

— O que o general me disse tem uma tonelagem considerável. Parafraseando nosso soldado tão condecorado, a ação hostil contra nós, essencialmente contra as leis que regulam a divulgação de ofensas públicas, emana do escritório de uma das nossas mais poderosas figuras públicas, que escondeu suas atividades a ponto de sua não existência. Ele não pode ser confrontado, não há uma só coisa com que ele possa ser confrontado...

— Porra! — explodiu Devereaux.

— Com tudo o que aconteceu, tem que haver alguma coisa! — exclamou Jennifer. — Espere um minuto... esse gangster do Brooklyn, o tal que Hawkins pôs fora de combate no hotel Caesar qualquer coisa. Ele foi preso!

— Por intermédio dele chegou-se ao falecido diretor da CIA — disse Pinkus.

— Isso me diz alguma coisa — observou Sam.

— Aqueles homens nus no Ritz...?

— Repudiados por Washington inteira, inclusive o zoo. Depois disso sua fiança foi paga por alguém que se disse de um culto nudista na Califórnia e desapareceram.

— Bolas — disse Jenny, tão desencorajada quanto furiosa. — Nunca deveríamos ter permitido que Hawkins despachasse esses quatro lunáticos armados de volta para onde quer que fosse. Tínhamos todos nas mãos por tentativa de assalto com armas mortais, invasão de propriedade, máscaras, armas, granadas... até mesmo uma testa tatuada. Fomos idiotas em deixar que Charuto de Trovão nos convencesse!

— Minha querida, eles não sabiam de absolutamente nada; nós os interrogamos minuciosamente... para nada, a não ser incoerência. São psicopatas maniacamente programados, tão passíveis de desmentido quanto os nudistas. Entregá-los à polícia significaria revelar nosso paradeiro... Pior ainda, sinto-me embaraçado por dizer, pois a cabana está em nome da minha firma, mas isso teria feito despertar um considerável interesse por parte da mídia.

— Não tenho o hábito de mandar flores para Mac — acrescentou Devereaux —, mas ele estava certo: ao mandá-los de volta, criamos o clima que estave diretamente na origem da viagem desses malucos Seis Suicidas para Boston.

— E para o Brigadeiro Ethelred Brokemichael — disse Aaron, sorrindo tão maliciosamente quanto lhe foi possível.

— O que está querendo dizer, Mr. Pinkus? Deixou bem claro ontem que Brokemichael estaria fora de alcance, enviado a um posto que nem consta dos mapas. Disse também que Washington não poderia permitir a revelação do nome do oficial que autorizou o voo do Air Force Two... eu lembro disso porque concordei.

— E ambos estávamos certos, Jennifer, mas não tínhamos o talento do general, a sua capacidade de ser tortuoso, como creio que Sam diria. Esse excelente militar tático tinha um gravador ativado por voz amarrado no peito durante toda conversa com o Brigadeiro Brokemichael. O Pentágono não podia mandar Brokey Dois para um lugar tão longe que ficasse fora de alcance... Devo dizer, porém, que o General Hawkins quer que se saiba que foi nosso mercenário-químico, o Coronel Cyrus, que sugeriu o esquema.

— Presumo que o nome dessa poderosa figura pública apareça na gravação — disse Sam, controlado mas com esperança no rosto.

— Com toda a clareza. Inclusive aparece o detalhe de ele ter entrado na base sem ser reconhecido.

— Quem diabos é ele? — pressionou Devereaux.

— Receio que nesta altura nosso general não queira revelar o nome.

— Ele não pode fazer isso — exclamou Redwing. — Estamos todos juntos, temos que saber!

— Ele diz que se Sammy soubesse viraria um canhão disparando a esmo e... montaria em seu cavalo e conduziria a tropa para a batalha... em detrimento da estratégia de Hawkins. A imagem foi exata e precisa. Eu sei, porque testemunhei inúmeras indignações jurídicas do Sam.

— Mas eu nunca me transformo num canhão disparando a esmo — protestou Devereaux.

— Devo lembrar as várias críticas em voz alta que já fez no tribunal?

— Inteiramente justificadas!

— Eu nunca disse que não eram... se fossem injustificadas, você estaria em outra firma. Você provocou a aposentadoria de, pelo menos, quatro juízes no distrito de Boston.

— Está vendo?

— O general diz que você montou em seu cavalo, subornando pilotos e roubando helicópteros em algum lugar da Suíça para ir até Roma, e não gostaria de vê-lo repetir essa atuação.

— Eu tive que fazer isso!

— Por que, Sam? — perguntou Jennifer em voz baixa. — Por que teve de agir dessa forma?

— Porque não era correto. Era moral e eticamente incorreto, contra todas as leis do homem civilizado.

— Oh, Deus, Devereaux, pare com isso! Você consegue mesmo me virar... esqueça isso.

— O quê?

— Esqueça!... Então o Baú de Trovão não vai contar, Mr. Pinkus. O que fazemos agora?

— Esperamos. Ele mandou fazer uma cópia da gravação e Paddy Lafferty virá entregá-la hoje à noite. Se não tivermos notícias do general em vinte e quatro horas, devo usar a influência que tenho, seja ela qual for, para chegar ao Presidente dos Estados Unidos e fazê-lo ouvir a gravação, pelo telefone.

— Isso é um encargo muito pesado — disse Sam, em voz baixa.

— O mais pesado de todos — concordou Jennifer.

Embora a viagem na limusine de Aaron Pinkus em direção ao sul, desde Hooksett até a cidade de Nova York, tenha sido um pouco incômoda na parte de trás da viatura — os Seis Suicidas sentaram-se três a três, em frente uns dos outros, enquanto o Falcão se sentou na frente, ao lado de Paddy Lafferty —, várias coisas foram efetuadas. A primeira foi possível por causa de uma breve parada num shopping de Lowell, Massachusetts, onde o general comprou mais dois gravadores e uma caixa de fitas magnéticas de uma hora, o bastante, no seu entender, para a viagem até Nova York. Mac comprou também um pequeno cabo com um dispositivo incorporado que lhe permitia transcrever o material gravado de uma fita para uma outra num segundo gravador, duplicando assim qualquer diálogo gravado.

— Deixe que eu mostro como se faz — disse o rapaz da Rádio Shack. — É bem simples.

— Filho — retorquiu apressado o Hawk. — Eu já ligava transmissores pré-históricos entre diversas cavernas antes de você saber ligar um rádio.

De volta à limusine e ativado o primeiro dos gravadores recém-comprados, Mac virou-se para os homens de Brokemichael, sentados na parte de trás do veículo.

— Cavalheiros — começou — já que serei a ligação entre os senhores e as pessoas da indústria do cinema que irão conhecer, o seu comandante, o meu amigo Brokey, sugeriu que me dessem um relato completo das suas experiências, tanto individuais como coletivas, como membros dos incrivelmente bem-sucedidos Seis Suicidas. Isso ajudar-me-á nas minhas conversações posteriores com os grandes produtores... E não se deixem perturbar pela presença do Sr. Lafferty... Sargento de Artilharia Lafferty. Estivemos juntos nas Ardennes.

— Eu poderia morrer aqui mesmo, com minha alma santificada — murmurou Paddy.

— O que foi, artilheiro?

— Nada, General. Vou conduzir como nos ensinou quando atravessamos Roubaix. Como um relâmpago lubrificado, lembro bem.

Quando o imenso automóvel arrancou em alta velocidade, teve início um período de quatro horas de narrativa sem interrupção, a história completa da unidade chamada Os Seis Suicidas... sem interrupção, isto é, à exceção dos momentos em que os membros do grupo se interrompiam uns aos outros, o que era frequente, com uma energia, no mínimo, explosiva. Quando atingiram o Boulevard Bruckner, após terem atravessado a ponte de acesso ao East Side de Manhattan, o Hawk ergueu a mão esquerda, desligando com a direita o gravador.

— Já chega, cavalheiros — disse, com os ouvidos retinindo devido aos crescendos das vozes melodramáticas vindas dos bancos traseiros. — Agora já tenho o quadro completo. eu e seu comandante agradecemos.

— Oh, céus! — exclamou Sir Larry. — Acabo de me lembrar! Nossas roupas precisam muito ser passadas a ferro. Não ficaria bem sermos vistos no Waldorf com roupas amarrotadas. Ou então, só Deus sabe, no Sardi's!

— Bem lembrado — havia um problema que Hawkins não considerara e nada tinha a ver com roupas. A última coisa de que precisavam era que os exuberantes atores-comandos fossem vistos desfilando onde quer que fosse! Sobretudo, seis artistas animadíssimos, convictos de que estavam prestes a fazer um enorme sucesso. “Meu Deus!”, pensou MacKenzie, recordando seus breves dias em Hollywood: qualquer ator, ainda mais desempregado, precisa de indícios de que um papel cobiçado estaria disponível em pouco tempo, para que seu esquema pessoal comece a trabalhar. Ele nunca culpava os atores, pois um talento sem recompensa precisa de confiança... mas não era a hora indicada para os Seis Suicidas regressarem a suas vidas pré-clandestinidade. Sardi's! Uma instituição teatral!

— Já sei — continuou o Hawk —, assim que chegarmos aos quartos, mandaremos tudo para a lavanderia do hotel.

— Quanto tempo isso leva? — perguntou O Duke, com ar de presidente de conselho de administração.

— Bem, na realidade isso não tem importância — replicou Mac —, pelo menos por hoje à noite e talvez também amanhã.

— O quê? — disse Marlon.

— Ei, deixe disso! — acrescentou Sylvester.

— Há anos que não vejo os Anos 40 do Oeste! — interrompeu Dustin.

— E Mr. Sardi é meu amigo íntimo — disse Telly. — É o proprietário, aliás um ex-fuzileiro.

— Desculpem, cavalheiros — interrompeu o Hawk. — Receio que eu não tenha sido claro quanto a esse acampamento: pensei que compreenderiam.

— Compreender o quê? — Sly falou de novo, sem amabilidade. — Você está falando como um agente.

— Suas reuniões futuras exigem... o maior sigilo. Embora seu esplêndido comandante, o Brigadeiro Brokemichael, vá lutar por vocês com essa gente de Hollywood, ainda estão no Exército e tudo vai desmoronar se a notícia for divulgada. E quando eu falo em desmoronamento, é desmoronamento mesmo. Assim, ficarão confinados a seus alojamentos até ordem em contrário.

— Telefonaremos — sugeriu Marlon.

— Nada disso!... Todas as comunicações estão sob o estatuto de “cortina negra”.

— Isso é para emergências — disse Dustin. — Interceptação de frequências.

— É exatamente do que estamos falando. Esses políticos canalhas que tentaram nos jogar uns contra os outros querem arruinar seus filmes, suas carreiras. Querem tudo só para eles!

— Sacanas nojentos — exclamou O Duke. — Não nego que muitos são atores, mas não prestam para nada!

— Não há um único pensamento honesto nas suas motivações — acrescentou Sylvester.

— Nem um grama de verdade — afirmou Marlon, enfaticamente.

— Terão que admitir que há técnica — disse Sir Larry. — Mas é pavloviano, uma coisa superensaiada, por assim dizer.

— É isso mesmo! — confirmou Telly. — Expressões programadas, truques sonoros e testas franzidas quando esquecem as falas... quando as pessoas vão acordar?

— Bem, eles podem tentar representar, mas não são atores! — exclamou The Duke. — Macacos me mordam se souberem alguma coisa por nós!... Vamos ficar confinados aos alojamentos e fazer tudo o que quiser, General!


MacKenzie Hawkins, bem vestido mas nada impressionante em seu terno cinza, óculos de armação de metal, peruca ruiva e ombros ligeiramente encurvados, atravessou o hall coberto de tapetes e cheio de gente do Waldorf, procurando um telefone público. Passava um pouco da uma da tarde e os atores-soldados dos Seis Suicidas estavam escondidos em segurança em suítes vizinhas do décimo segundo andar. Poupados da comida deletéria de Desi-Um, revigorados por grandes quantidades de alimentos saudáveis e restauradores, exercícios e uma noite decente de sono sem aranhas subindo pelas paredes, toda a unidade estava totalmente recuperada e num estado de espírito exuberante. Os homens tinham assegurado que levavam os uniformes de combate, um dado importantíssimo, e ficariam em suas suítes e não dariam telefonemas para fora, por maior que fosse a tentação. Enquanto se acomodavam, The Hawk pegou o gravador que usara em Fort Benning, transcreveu a gravação de toda a conversa com Brokey, o Dois, deu a cópia a Paddy Lafferty e ordenou-lhe que a levasse a Swampscott. Agora, atirando várias bolas para cima ao mesmo tempo, precisava dar alguns telefonemas imperceptíveis — o primeiro para Little Joseph, em Boston; o segundo para um almirante aposentado e pedante que vendera a alma ao diabo para conseguir trabalhar para o Departamento de Estado e que também devia a Mac um favor, por ter salvo sua pele após um erro de cálculo num navio de guerra ao largo da Baía de Wonsan, na Coreia; e, finalmente, para uma das suas amigas mais queridas e antigas, a primeira de suas quatro deliciosas esposas, Ginny, em Beverly Hills, Califórnia. Ele discou zero, introduziu o número do cartão de crédito e discou o número desejado.

— Little Joseph, fala o general.

— Ei, fazool, por que demorou tanto? O chefão quer falar com você, mas não na casa de Swampscott, pois não sabe o que pode haver nos telefones!

— Isso se ajusta a minha estratégia, Little Joseph. Quero falar com ele — The Hawk olhou o número do telefone que estava usando. — Você pode entrar em contato com ele?

— Claro. De meia em meia hora ele passa por um telefone na Collins Avenue, em Miami Beach. Vai acontecer de novo em uns dez minutos.

— Ligo para ele diretamente?

— De maneira nenhuma, fazool. Ele liga para você e não o contrário, a ordem é essa.

— Tudo bem, diga para ligar para este número de Nova York, mas dê-me vinte minutos. — Mac deu o número do telefone público do Waldorf e desligou. Em seguida meteu a mão no bolso do paletó e tirou um pequeno bloco de notas, que folheou até encontrar a página que queria. Mais uma vez, usou o cartão de crédito. — Olá, Angus, como vai o touro dos pampas norte-coreanos que, por um simples acaso, explodiu nossas estações de rádio enterradas na praia de Wonsan?

— Quem diabos está falando? — devolveu a voz áspera de um antigo almirante que já tomara três martinis.

— Só um palpite, Frank. Vai querer rever o sistema de coordenadas de dezesseis polegadas?

— Hawk? É você?

— Quem mais seria, marinheiro?

— Você sabe muito bem que me deram informações erradas...

— Ou leu mal os números... números que eram só para você, Frank.

— Pare com isso, Hawk! Como eu ia saber que você estava lá? Alguns quilômetros a mais ou a menos, quem sabia, quem é que se importava?

— A minha pele se importava, Frank, bem como a minha equipe. Estávamos bem atrás das linhas.

— Acabou! Estou aposentado!

— Mas você é consultor, Frank, um grande e respeitado perito do Departamento de Estado em assuntos militares do Extremo Oriente. Com direito a todas as festas, mordomias, aviões particulares e férias, por gentileza dos fornecedores.

— Eu valho cada centavo que ganho!

— Mas é incapaz de distinguir uma praia da outra... alguns quilômetros a mais ou a menos. Será que é mesmo um perito?

— Hawk, dê-me uma oportunidade! Desenterrar velhas histórias não vai fazer bem a nenhum de nós. Meu Deus, vi na televisão que você ia receber um grande prêmio da Suécia, por isso o que quer de mim? Eu apanho umas coisinhas e cuido do meu jardim... com artrite e tudo. E então?

— Você fala com o Departamento de Estado.

— Falo e dou a eles o que tenho de melhor.

— Pois aqui está mais uma coisa para você dar, Frank, se não quiser que o Soldado do Século denuncie um dos maiores erros cometidos na Coreia — o Hawk detalhou em seguida seu aditamento.


A chamada para Beverly Hills não começou bem.

— Mrs. Greenberg, por favor?

— Não há nenhuma Mrs. Greenberg nesta residência — disse a fria voz de um britânico vinda da Califórnia.

— Devo ter ligado então para o número errado...

— Não, o nome é que está errado. O Sr. Greenberg saiu desta casa há mais de um ano. Será que, por acaso, gostaria de falar com lady Cavendish?

— É Ginny?

— É lady Cavendish. Posso perguntar quem fala?

— Fala o Hawk, isso é suficiente.

— “Hawk”? Como a revoltante ave predatória?

— Muito revoltante e muito predatória. Agora, diga a lady Caviar, ou seja qual for o nome dela, que estou na linha!

— Vou dizer, mas não garanto nada.

O silêncio abrupto foi quebrado pela voz alta e excitada da primeira mulher de Mac.

— Queridinho, como vai?

— Eu estava melhor antes de falar com esse palhaço, de quem deviam ter tirado as adenoides. Quem é ele?

— Ah, veio para cá com Chauncey. Há anos que é o mordomo da família.

— Chauncey?... Cavendish?

— Lord Cavendish, queridinho. Tem montanhas de dinheiro e todos querem conhecê-lo. Está na lista A de qualquer pessoa.

— Lista A?

— Convites, queridinho.

— O que aconteceu com Manny?

— Aborreceu-se de viver com uma mulher mais velha, de forma que o libertei em troca de uma boa quantia.

— Porra, Ginny, você não é nenhuma velha!

— Aos olhos de Manny, qualquer garota com mais de dezesseis já dobrou o Cabo da Boa Esperança... Mas chega de conversa sobre mim, querido, você o o tal. Sinto tanto orgulho de você, Hawk — o Soldado do Século! Suas outras ex-mulheres também se sentem muito orgulhosas!

— Pois é, mas é melhor parar com a festa, garota, pode ser tudo encenação.

— O quê? Não aceito uma coisa dessas, nenhuma de nós aceita!

— Ginny — interrompeu MacKenzie —, não tenho tempo. Os canalhas de Washington querem me pegar de novo e eu preciso de ajuda.

— Vou telefonar para as garotas hoje à tarde. O que podemos fazer e a quem fazer?... Claro que não se pode contar com a Annie. Ela voltou para uma daquelas colônias de leprosos, se não me engano, e Madge está na Costa Leste... Nova York, Connecticut ou outro lugar assim, mas vou procurá-la, bem como Lillian, para uma conversa

— Na realidade, eu só estava querendo falar com você, Ginny, pois acho que pode me ajudar.

— Eu, Hawk? Olha, aprecio sua galanteria, mas sou mesmo a mais velha. Admiti-lo não me causa exatamente uma grande emoção, mas Midgey e Lil provavelmente são mais adequadas às suas necessidades. Ambas ainda são lindas de se ver. Claro que Annie continua campeã nesse departamento, mas acho que as roupas que ela usa atualmente assustariam qualquer um.

— Você é uma mulher generosa, Ginny, mas não é nada disso... Ainda fala com Manny?

— Só por intermédio dos advogados. Ele quer algumas pinturas que compramos, mas diabos me levem se vou deixar esse sacana tarado levar alguma coisa.

— Porra, lá se vai minha esperança!

— Diga o que é, Hawk. Do que precisa?

— Preciso de um daqueles roteiristas que ele contrata no estúdio para pensar uma história para mim.

— Vão fazer outro filme sobre você?

— Diabos, não! Nunca!

— Ainda bem. Então, para que precisa de um roteirista?

— Para trabalhar num material de primeira, incrível mas totalmente verdadeiro, que quero mostrar aos mandachuvas de Hollywood, só que precisa parecer bom e precisa ser feito rapidamente. Tipo em vinte e quatro horas, talvez.

— Um dia?

— Que diabos, seriam não mais de cinco ou dez páginas, só que precisa ser pura dinamite, Ginny. Tenho tudo aqui em fitas. Com certeza Manny deve conhecer alguém que possa fazer isso...

— E você também, queridinho! O que me diz da Madge?

— Quem?

— Sua número três, mon général.

— Midgey? O que há com ela?

— Você não lê a imprensa especializada?

— Que imprensa?

— Hollywood Reporter e Daily Variety, as bíblias da terra das laranjas.

— Também não sou muito bom na verdadeira Bíblia. O que há lá de interessante para ler?

— Madge é a escritora de mais sucesso atualmente! Ela até pode sair da cidade e escrever em Nova York ou em Connecticut. O último roteiro dela foi o de Vermes Lésbicos Homicidas Mutantes e foi um arraso geral!

— Macacos me mordam! Sempre soube que Midgey tinha uma certa inclinação literária, mas...

— Não deve usar a palavra “literária”! — interrompeu lady Cavendish. — Aqui é morte certa... Olha, vou lhe dar o telefone dela, mas antes de ligar me dê uns minutinhos para eu telefonar para ela e avisar que aguarde seu telefonema. Ela vai ficar tão entusiasmada!

— Ginny, eu estou em Nova York.

— Ela é mesmo uma felizarda! Está no dois-zero-três.

— O que é isso?

— Código da área, um lugar chamado Greenwich que não fica na Inglaterra. Telefone em cinco minutos, queridinho. E quando tudo isso acabar, seja lá o que for, tem que vir me visitar e conhecer Chauncey. Ele gostaria muito, porque é seu grande admirador... Chauncey foi do Quinto de Granadeiros; Quinto, Décimo Quinto, Quinquagésimo, nunca sei direito.

— Os Granadeiros estavam entre os melhores, Ginny, você realmente melhorou e pode apostar que vou visitá-la!


O sol brilhava sobre MacKenzie Hawkins quando ele desligou o telefone público no hall do Waldorf, tendo gravado o número de sua terceira esposa no balcão de fórmica com a ponta do canivete. Estava tão satisfeito com o rumo dos acontecimentos que enfiou a mão no bolso do paletó, tirou um charuto, mascou-o até os líquidos fluírem, hora em que o acendeu com um fósforo de campanha que também raspou no balcão. Uma senhora de aspecto matronal, num vestido de verão em estampado berrante, que estava no telefone a sua esquerda, começou a tossir violentamente. Lançou um olhar fulminante a The Hawk, entre dois acessos de tosse, e conseguiu vomitar:

— Um homem de aparência tão decente com um hábito tão desprezível!

— Não é pior que o seu, senhora. A gerência insiste em que pare de levar jovens halterofilistas para seu quarto.

— Meu Deus, quem disse...? — lívida, afastou-se correndo, em pânico, quando o telefone de Mac tocou.

— Comandante Y? — disse Hawkins, em voz baixa.

— General, está na hora de nos encontrarmos.

— Ótimo, Comandante! Mas se oficialmente continua morto, como vamos conseguir?

— Arranjei um disfarce que nem minha mãe reconheceria, que descanse em paz.

— Sinto muito por sua perda, meu amigo. É sempre duro perder a mãe.

— Pois é, ela está em Lauderdale... ouça. Tenho muitas coisas na cabeça, temos de falar depressa, principalmente sobre como vai chegar à audiência daqui a dois dias. Tem algum plano?

— Estou pensando num, Comandante, motivo pelo qual queria uma reunião. Estou muito impressionado com o destacamento que nos mandou...

— Destacamento? Que destacamento?

— Os mercenários.

— Quem?

— Os dois homens que contratou para a nossa proteção adicional.

— Ah, sim, é que ando com a cabeça cheia. Peço desculpas pelo nazista, achei que ele se barbearia com merda de porco se mandasse.

— Nazista? Que nazista?

— Ah, sim, esqueci. Ele se perdeu. E então, qual é o plano?

— Primeiro, eu queria sua permissão para incluir o destacamento.

— Inclua o que bem entender... a que destacamento se refere?

— Os guardas, Comandante.

— Ah, sim, desculpe pelo tal alemão. Olhe, tenho que falar depressa e já que seu plano ainda não é sólido, eu me sentiria muito melhor se o senhor e esse maluco do seu advogado estivessem na minha presença, entende o que quero dizer?

— Sam? Ouviu falar de Sam Devereaux?

— Não pronunciado dessa forma, mas compreendo que, quando escapou a informação de que esse tal Devereaux era seu advogado e chegou aos ouvidos do Exército no Ministério da Defesa, o pessoal quis ver sangue, tipo introdução de uma granada em suas hemorroidas. Parece que quando trabalhou na Inspeção Geral ele pôs os dedos no militar errado, um maluco do Exército no Camboja.

— Isso já foi tudo resolvido, Comandante, o erro já foi reparado.

— Pode ter saído da sua boca diretamente para o ouvido de Deus, mas não chegou ao conhecimento do Estado-Maior Conjunto. Uns dois ou três caras de West Point querem enforcar o filho da puta. Ele está, juntamente com você, no topo da lista dos mais procurados.

— Eu não tinha contado com essa complicação — disse o Hawk laconicamente. — Não há motivo para tanta hostilidade, na realidade não há.

— Hoo-hay, como diria Little Joey — berrou Vinnie o Bam-Bam. — Talvez tenha esquecido do fim do caminho com esse seu truque! CAE... neste caso, não tem nada a ver com um saco de batatas.

— Sim, eu compreendo, Comandante, mas uma solução não violenta ainda é possível... improvável, mas possível. Vale uma tentativa.

— Deixe que lhe diga o que tenho em mente — interrompeu Mangecavallo. — Quero você e o tal lasagna jurídico aqui em D.C. hoje à noite. Pego um avião para o norte, vocês pegam um para o sul e eu guardo os dois num abrigo seguro até levá-los de carro blindado para o Tribunal. O que pode ser melhor?

— Tem claramente pouca experiência com gray to black operations, Comandante Y. Romper a linha do inimigo é simples; o que conta é o modo como se infiltra. Cada ponto na direção do alvo zero precisa ser calculado.

— Fale uma língua que eu possa entender, homem!

— Cada barreira no caminho para o gabinete do Juiz-Presidente precisa ser transposta. Há uma maneira de fazer isso... talvez.

— Talvez? Não temos tempo para dúvidas!

— Talvez tenhamos. E eu concordo com você quanto ao encontro de hoje à noite em Washington, só que eu é que vou dizer onde será... No Lincoln Memorial, a duzentos passos da parte da frente e a duzentos passos para a direita, às oito em ponto. Entendeu, Comandante?

— Entender o quê? Só ouvi besteiras!

— Não tenho tempo para civis de cabeça quente — disse MacKenzie. — Também tenho muitas coisas na cabeça. Esteja onde eu lhe disse!


— Brokey, Mac falando — disse Hawkins, retirando seu cartão de crédito telefônico quando os acordes de There's No Business Like Show Business foram interrompidos pela voz de Brokemichael.

— Meu Deus, você não sabe o que me fez, Mac! O maldito Secretário de Estado, pelo amor de Deus. Ele quer me crucificar!

— Confie em mim, Brokey, e pode ser que você o crucifique. Agora ouça e faça exatamente o que vou dizer. Pegue um avião para Washington e...


— Frank, Hawk falando. Você conseguiu? Falou com esse filho da puta zarolho do Secretário de Estado, ou você já passou à história para essa gente?

— Eu fiz o que você pediu, seu canalha, e tudo o que ele quer são minhas divisas e minhas mordomias, seu coveiro! Estou morto!

— Au contraire, almirante, pode ser que você tenha feito subir o preço de seus serviços de consultoria. Ele sabe a hora, conhece o lugar?

— Ele disse para enterrar a mensagem sabe onde e nunca mais lhe telefonar!

— Ótimo. Ele estará lá.

MacKenzie recuou, afastando-se do telefone, acendeu de novo o charuto e olhou para o bar ao ar livre do outro lado do pátio apinhado de gente. Sentiu vontade de visitar o santuário obscurecido de memórias antigas, quando era um jovem oficial apaixonado, sempre temporária e genuinamente apaixonado por alguém, mas sabia que não tinha tempo para isso, embora desejasse ter ali... Madge, a terceira esposa, para ele tão linda e importante quanto as outras; ele as amara todas, não só pelo que eram, mas pelo que podiam vir a ser. Uma vez, quando ele e um tenente muito instruído tinham se escondido numa caverna norte-vietnamita perto da trilha de Ho Chi Minh e a única coisa a fazer para preencher o tempo era conversar cochichando, eles tinham trocado suas histórias de vida. Nada mais havia a fazer senão ser descoberto e morrer.

— Sabe o que é, Coronel?

— O que é, rapaz?

— Complexo de Galateia. Quer transformar cada bela imagem de pedra numa coisa da realidade e do conhecimento.

— Onde aprendeu essa merda?

— Em Psicologia I, na Universidade de Michigan, Coronel.

E que mal havia nisso, se a imagem fosse de pedra ou de carne e osso? O fato é que Madge, como as outras, tinha um sonho longínquo, ser escritora. Pessoalmente, Mac duvidara de suas tentativas, mas não se podia negar sua capacidade de prender a atenção dos leitores com suas personagens avançadas e suas histórias loucas... Por isso, chegara a hora de Midgey. Não era exatamente uma Tolstoi, mas o tal Vermes Lésbicos Homicidas Mutantes tinha com certeza seu lugar e, por pior que fosse esse lugar, tinha certeza de que sua terceira esposa manteria as coisas numa ótica bem-humorada. MacKenzie virou-se para o telefone, introduziu o cartão e digitou os números. O sinal de chamada parou; atenderam o telefone, mas tudo o que conseguiu ouvir foram gritos de horror, de terror.

— Socorro, socorro! — gritou uma voz aguda de mulher do outro lado da linha. — Os vermes rastejam pelo chão e pelas paredes! Milhares deles! Estão me perseguindo! Vê-se que está nas suas cabeças! Vão me atacar!

Seguiu-se um silêncio abrupto, o silêncio do pavor.

— Aguenta aí, Midgey, estou a caminho! Qual é o raio do endereço?

— Ora, vamos, Hawk — disse uma voz calma que subitamente surgiu na linha. — O que ouviu foi só uma fita promocional.

— O quê...?

— Uma fita promocional, isso que eles põem nos anúncios do rádio e da televisão. Os garotos adoram e os pais querem me ver deportada.

— Como sabia que era eu?

— Ginny telefonou minutos atrás e ninguém conhece esse número, a não ser nós, suas ex-mulheres, e meu agente, que nunca liga, a menos que haja algum problema e, por incrível que pareça, nunca há! Foi você que fez isso por mim, Mac e eu nunca saberei como agradecer.

— Então Ginny não falou com você?

— Ah, a tal história do roteiro, a proposta de dez páginas; claro que ela falou. Já contatei o serviço de mensageiros e estão só à espera do teu endereço. Entrega as fitas ao motorista e terás qualquer coisa amanhã de manhã. Meu Deus, é o mínimo que posso fazer!

— É uma garota maravilhosa, Midgey, fico muito agradecido.

— “Garota bestial”... isso é mesmo típico de você, Hawk. Mas, para dizer a verdade, é o tipo mais bestial que qualquer uma de nós já conheceu, embora às vezes ache que foi longe demais com a Annie.

— Não fui eu que...

— Nós sabemos; ela se mantém em contato conosco e todas prometemos não contar nada. Meu Deus, quem acreditaria?

— Ela é feliz, Madge.

— Eu sei, Mac. É aí que está seu gênio.

— Não sou gênio nenhum... exceto, talvez, em certas situações militares.

— Não tente vender essa história a quatro garotas que não tinham onde cair mortas quando você apareceu.

— Estou no Waldorf — disse Hawkins abruptamente, livrando-se de uma lágrima que teimava em escorrer do seu olho, revoltado com seu aparecimento. — Diga ao serviço de mensageiros para o motorista ir diretamente à suíte Doze A; está em nome de Devereaux, para o caso de o deterem .

— Devereaux? Sam Devereaux? Aquele rapaz lindo e delicioso?

— Fique aí no dois-zero-três, Midgey. Ele envelheceu muito e tem mulher e quatro filhos.

— Filho da mãe, isso é que é uma tragédia! — exclamou a terceira esposa de MacKenzie Hawkins.

 

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1 Salsicha defumada polonesa. (N. T.)


26

O dia em Swampscott foi de enfado, a falta de atividade fez com que os três advogados fizessem constantes telefonemas para os seus escritórios, na esperança de que alguém quisesse saber as suas opiniões, conhecimentos, decisões... qualquer coisa. Infelizmente para todos, com os jogos do verão no máximo da diversão, ninguém parecia precisar de nada, a não ser pequenas informações relativas a problemas inconsequentes. A ociosidade, agravada pela frustração de não se saber o que Hawk estava fazendo, levou a um certo mau humor, sobretudo entre Sam e Jennifer, com esta última a meditar, mais uma vez, sobre a loucura de toda aquela situação.

— Por que você e a sua contrafação mental de general tiveram que se meter na minha vida, nas nossas vidas?

— Ei, espere aí, eu não me meti na sua vida, foi você que pegou um táxi para ir a minha casa!

— Eu não tinha escolha...

— Claro que não, o taxista puxou uma pistola e disse que era para lá que você ia...

— Eu tinha que encontrar Hawkins.

— Se bem me lembro, e sei que me lembro bem, quem o encontrou primeiro foi Charlie Sunset. E em vez de dizer “Não, você não pode brincar na caixa de areia da tribo”, disse “Claro que sim, homem, vamos fazer um castelo.”

— Isso é injusto, injusto! Ele foi enganado.

— Então, como advogado, é bom que seja o mais rápido na fila das ambulâncias, pois vai ser a única forma de arranjar clientes.

— Não vou ouvir mais... você é intolerante.

— No que se refere a desculpas de débeis mentais, sem dúvida que sou.

— Vou nadar...

— Não devia.

— Por que não?

— Não acha que há tubarões enfurecidos demais no mar?

— Se houver, diga adiós a Aaron e a minha mãe, assim como a Cyrus e a Roman Z.

— Estão todos nadando?

— Minha mãe e Aaron queriam nadar e nossos mercenários disseram que eles não podiam ir sozinhos.

— Que gentileza.

— É claro que, se as pessoas que eles protegem morressem afogadas, eles não receberiam seu dinheiro.

— Então por que eu não deveria juntar-me a eles?

— Porque o grande Aaron Pinkus de Boston disse que você devia ler e reler a petição do Mac até que seja capaz de citá-la de cor. Como amicus curiae, pode ser que você seja desafiada pelo Tribunal.

— Já li e reli essa petição e não há um único artigo que eu não consiga citar.

— O que achou?

— É brilhante... irritantemente brilhante e eu a odeio!

— Foi essa, exatamente, a minha primeira reação. Ele não tinha o direito de ser capaz de redigi-la... Será que é verdade?

— Você sabe que pode muito bem ser. As lendas que ouvimos desde crianças passaram de geração em geração e, sem dúvida, foram exageradas e desvirtuadas no processo, têm muitas correlações melodramáticas. Mesmo de um ponto de vista simbólico.

— Por que “simbólico”?

— Fábulas de animais antropomorfizados. O cruel lobo albino ludibriando as cabras de pelo escuro, fazendo com que fossem pastar na passagem de uma montanha, de onde só se podia fugir através das chamas do incêndio de uma floresta, um incêndio que se espalhou a partir da passagem e atravessou os campos, tirando-lhes a comida e as casas.

— O banco de Omaha que pegou fogo? — perguntou Devereaux.

— Pode ser. Quem sabe?

— Vamos nadar — disse Sam.

— Desculpe ter explodido...

— Uma erupção de vez em quando esfria o vulcão. É um velho provérbio índio... navajo, creio.

— O advogado de língua viperina tem caudas de cavalo no cérebro — disse Jennifer Redwing, rindo em voz baixa. — As terras planas dos navajos não têm montanhas, muito menos vulcões.

Sam se virou para Jenny.

— Você nunca viu um navajo fulo da vida porque a mulher deu uma pulseira de turquesa ao cara da tenda ao lado?

— Você é incorrigível. Venha, vamos nos vestir.

— Deixe-me levá-la até a cabana... não é a Casbah, mas serve.

— Deixe-me ensinar-lhe um verdadeiro provérbio índio. Wanchogagog manchogagog. Em inglês quer dizer que há duas cabanas, uma para as meninas e outra para os meninos, e significa algo como “você pesca no seu lado, eu pesco no meu”.

— Que coisa mais esotérica, para não dizer vitoriana.

A porta da cozinha se abriu e apareceram os dois Desis, Um e Dois, nitidamente agitados.

— Onde está o gigante negro Cyrus? — perguntou Desi-Um. — Precisamos ir!

— Ir para onde? Por quê?

— Para Boston, Mr. Sam — respondeu D-Dois. — Ordens do heneral.

— Vocês falaram com o general? — indagou Redwing. — Não ouvi o telefone tocar.

— Nenhum teléfono tocou aqui — disse D-Um. — Ligamos para o hotel de hora em hora para falar com José Pocito.

— O que vão fazer em Boston? — quis saber Devereaux.

— Vamos pegar esse ator maluco, o tal Major Sutton, e levá-lo ao aeroporto. O grande general falou com ele e ele vai estar nos esperando.

— O que está acontecendo? — perguntou Jennifer.

— Não estou certo de que você deva perguntar — advertiu Sam, o advogado.

— Estamos com pressa — disse Desi-Um. — O major Sutton tem que parar numa loja para comprar um traje adequado. Onde está o coronel Cyrus?

— Na praia — respondeu, perplexa, Redwing.

— Vá buscar o carro, D-Dois — ordenou D-Um. — Eu pego o coronel e encontro você na garagem. Pronto!

— Si, amigo!

Os dois ajudantes saíram correndo, um pela varanda, o outro pelo foyer, na direção da garagem situada fora do caminho circular de acesso dos carros.

— Eu disse alguma coisa sobre a “profecia de Devereaux”?

— Por que ele nos mantém no escuro?

— É a parte tortuosa da sua estratégia igualmente tortuosa.

— O quê?

— Ele não lhe conta nada até que tenha ido tão longe que a coisa se torne irreversível. Não se pode voltar.

— Oh, que maravilha! — exclamou Redwing. — E se ele estiver completamente errado?

— Mac tem certeza de que isso não é possível.

— E você?

— Se você puser de lado a premissa original, que está sempre errada, o registro dele não é ruim.

— Não basta!

— Na realidade, é um currículo fantástico, diabos o levem!

— Por que não me sinto mais tranquila?

— Porque o “diabos o levem”, no fim da frase significa que vai até o limite de sua capacidade e um dia ele dá um passo em falso e todos nós caímos.

— Mac vai fazer com que Mr. Sutton o personifique, não é?

— Provavelmente. Ele o viu em ação.

— Gostaria de saber onde.

— Nem pense nisso. É mais fácil assim.


Johnny Nariz de Bezerro, resplandecente no seu traje de pele de gamo coberto de contas brilhantes, contemplava, desolado, a chuva que caía diante da janela da bilheteria da Carroça Wopotami de Boas-Vindas, uma enorme estrutura pintada de maneira espalhafatosa e que tinha a forma de uma carroça coberta, com os quatro lados de uma colorida tenda índia surgindo no centro da estrutura de lona. Quando o chefe Cabeça de Trovão desenhara o projeto e trouxera carpinteiros de Omaha para construí-lo, os habitantes da reserva tinham ficado espantados. Olhos de Águia, do Conselho de Anciãos, interrogara Nariz de Bezerro.

— O que esse lunático está fazendo agora? Isso aí vai ser o quê?

— Ele diz que representa as duas imagens mais associadas ao velho Oeste. A carroça coberta dos pioneiros e a tenda simbólica de onde saíram as tribos selvagens para matá-los.

— Ele é só coração e miolos esmagados. Diga-lhe que precisamos alugar uns Caterpillar, umas máquinas de ceifar, uns dez mustangs no mínimo e, pelo menos, doze operários.

— Para quê?

— Ele quer que limpemos o campo do norte e montemos “grupos de ataque”.

— Mustangs?

— Não estou falando dos carros, estou falando dos cavalos. Se vamos galopar à volta das carroças dispostas em círculos, é melhor ensinar os jovens a montar e os poucos pôneis que temos não aguentam ir de um extremo do campo ao outro.

— Está bem, mas por que os operários?

— Nós podemos ser selvagens, Nariz de Bezerro, mas coletivamente somos o “Nobre Selvagem”. Não fazemos esse tipo de trabalho servil.

Isso tinha acontecido meses atrás e agora era uma tarde em que chovia copiosamente, não havia veranistas comprando um monte de souvenires oriundos de Taiwan. Johnny Nariz de Bezerro levantou-se do banco em frente à janela da bilheteira e atravessou a entrada estreita forrada de couro, entrando no seu confortável alojamento. Ligou o aparelho de televisão, mudou para os canais da televisão por cabo, a fim de assistir a um jogo de basebol, e sentou-se na sua confortável cadeira Barcelona, querendo gozar aquele fim de tarde a ver um jogo duplo de basebol. Foi, porém, selvaticamente interrompido pela campainha de um telefone — o telefone vermelho. Cabeça de Trovão.

— Aqui estou, chefe — exclamou Johnny, tirando o telefone de cima de uma mesa de parqué Adolfo.

— Plano A-Um. Execute.

— Está brincando... tem que estar brincando!

— Um oficial-general não brinca, não quando o ataque está em curso. É o código Verde Brilhante! Alertei o avião no aeroporto e as empresas de ônibus de Omaha e Washington. Está tudo pronto. Vocês partem de madrugada, por isso comecem a espalhar a notícia. Todas as mochilas deverão estar arrumadas e verificadas às vinte e duas horas e todo o contingente fica proibido de entrar no bar. Isto é o evangelho, soldado. Não haverá peles-vermelhas de ressaca na minha brigada. Nós marchamos!

— Tem certeza de que não quer uma ou duas semanas para pensar nisso, CT?

— As ordens estão dadas, Sargento Nariz de Bezerro. É muito importante que haja uma execução rápida!

— É mais ou menos isso que me preocupa, Grandalhão.


O pôr-do-sol chegou e foi embora, a imponente estátua de Lincoln viu-se banhada pelos refletores, enquanto turistas fascinados andavam de um lado para outro, à procura de diferentes ângulos da obra-prima. A exceção era um homem de aparência estranha, que parecia furtivamente preocupado com a relva debaixo dos seus pés. Ele afastou-se do memorial, caminhando em linha reta, a praguejar em voz baixa contra os turistas com quem chocava e, de vez em quando, esmurrando os estômagos e as máquinas fotográficas dos intrusos, ao mesmo tempo que ajustava a peruca ruiva que insistia em cair sobre as suas orelhas e o seu pescoço.

Vincent Mangecavallo não nascera e fora criado no Mondo Italiano do Brooklyn sem aprender umas coisinhas. Sabia como era preferível chegar a um encontro muito tempo antes da hora marcada, pois, às vezes, qualquer descuido pode transformar a pessoa numa carcaça pendurada num gancho de um matadouro. O problema que Vinnie o Bam-Bam tinha era com a palavra “passos”: o que diabo era um passo? Um pé, uma jarda, uma jarda e meia ou alguma coisa entre um e outro? Tinha ouvido histórias dos velhos tempos na Sicília, onde se travavam duelos com pistolas Lupo, sendo a linha de fogo marcada por passos que os inimigos davam, curtos ou longos, contados por um árbitro ou, às vezes, marcados por um tambor e em que ninguém prestava muita atenção, pois vencia sempre o tipo que enganava. Mas aquilo era a América. “Passos“ devia ser mais específico, no interesse da honestidade e da justiça.

Além do mais, como diabos ele podia manter uma contagem precisa à noite no meio de toda aquela gente? Chegava, digamos, ao número sessenta e três e esbarrava nuns palhaços, a peruca escorregava e o impedia de ver e quando recomeçava a contar já tinha esquecido do número de antes. Tinha que voltar e começar de novo! Merda! Na sexta tentativa, já estava na reta final, quando chegou a uma árvore enorme com uma placa de metal no tronco informando a data de plantio por um presidente qualquer no ano um — quem se importava com uma coisa dessas? —, mas havia um banco circular em volta da maldita árvore que fazia um pouco mais de sentido. Podia sentar e o seu rosto não seria obrigatoriamente visto pelo general maluco que encontraria para troca de informações.

Naturalmente, Vincent decidiu afastar-se da árvore e esperar à sombra de outra... a quantos malditos passos dali, quem sabia? Mas ele sabia o que devia esperar: um palhaço velho e alto a andar à volta da árvore com a placa e, provavelmente, com um cocar índio na cabeça.

Ao observar a figura obesa que contornava o ponto de encontro, o Brigadeiro Ethelred Brokemichael, vestido de uniforme, ficou atônito! Ele nunca gostara de MacKenzie Hawkins; na realidade, era o inverso, já que Mac era amigo de Heseltine, mas sempre respeitara o talento e a capacidade do velho e duro soldado. Nesse momento, porém, teve de questionar todos aqueles anos de silenciosa admiração. O que ele acabara de observar era um ridículo exercício da técnica de encontro clandestino... ridículo uma ova, era grotesco! Era óbvio que Hawkins pedira emprestado ou comprara um blusão destinado a um homem corpulento, que recheara com alguma coisa, e para esconder a altura, caminhava, ou melhor, quase que se movia como um macaco entre as multidões no Lincoln Memorial — para trás e para frente, para trás e para frente, um gorila procurando fruta caída no chão da floresta. Foi uma visão que deixou enojado o criador dos Seis Suicidas! E não podia haver engano por parte de Brokey, o Dois, pois o Hawk ainda usava aquela peruca ruiva idiota, só que, na noite quente e úmida de Washington, ela caía a todo instante em seus olhos. Era óbvio que ele nunca ouvira falar do líquido adesivo, o que qualquer pessoa familiarizada com o teatro saberia; falando de amadorismo, MacKenzie Hawkins era o neófito de um noviço!

A peruca de Brokey, por pura coincidência apenas ligeiramente ruiva — castanho-avermelhada, na realidade —, mantinha-se no devido lugar, presa por uma fita cor da pele da Max Factor, fita esta que se distinguia da linha do cabelo, sobretudo sob a luz suave, um “âmbar discreto”, na gíria teatral. O profissionalismo ia ganhar o dia, pensou Brokemichael, decidindo a surpreender o Hawk, que se retirara para uma posição de observação embaixo de um enorme e frondoso bordo japonês, a dez metros do ponto de encontro. Brokey o Dois sentiu-se feliz da vida; Mac fizera dele um idiota em Benning e agora retribuía o favor.

Ele descreveu um círculo amplo, progredindo pela orla da multidão já menos iluminada pelas lâmpadas do monumento, passando de vez em quando por outro uniforme, cujo braço reagia instantaneamente com a continência devida ao seu posto. Ao se aproximar do bordo pelo flanco leste, as continências intermitentes fizeram com que Brokey se interrogasse de novo por que o Hawk insistira em que usasse o uniforme num encontro secreto. Quando continuou perguntando, a única resposta que teve foi:

— Use e não discuta e inclua todas as malditas medalhas que ganhou ou concedeu a si mesmo! Lembre-se, tudo o que conversamos em Benning está gravado em fita. Na minha fita.

Brokey, o Dois chegou ao bordo e, lentamente, com as costas viradas para o tronco, foi andando de lado, em torno da casca da árvore, até que, de uma forma silenciosa, viu-se ao lado do antigo soldado realmente amador que o fizera de tolo e agora olhava intensamente para o chão. Mas a verdadeira estupidez em tudo isso foi que, em vez de ficar em pé para ver melhor, o idiota mantinha os joelhos apertados e o pescoço encolhido, mantendo a baixa estatura do disfarce sob a escura sombra da árvore. Que amadorismo!

— Espera alguém? — perguntou Brokey em voz baixa.

— Que merda! — explodiu o civil disfarçado, abanando a cabeça com tanta força que a peruca ruiva rodou noventa graus para a esquerda e as suíças desceram pela testa. — É você?... Claro que sim, tem os filamentos de bronze!

— Pode levantar agora, Mac.

— Levantar de quê?

— Ninguém pode nos ver aqui, pelo amor de Deus. Mal consigo ver meus pés, mas não tenho a menor dúvida de que vejo essa sua peruca idiota. Acho que está ao contrário.

— É, bem, a sua também não está totalmente perfeita, soldado! — disse o civil, ajustando a peruca. — Muitos dons mais velhos que são carecas usam essa merda com a fita da Max Fator que tira as rugas da testa... consegue-se sempre ver, mas, naturalmente, ninguém diz uma palavra.

— O que você quer dizer com “ver”? Como se consegue ver com esta luz?

— Porque, seu idiota, a luz se reflete na fita clara.

— Está bem, está bem, Mac. Agora fique em pé, para podermos conversar.

— Você é alguns centímetros mais alto, o que quer que eu faça? Que vá ao centro da cidade e compre sapatos de sola dupla ou, quem sabe, pernas de pau? O que há com você?

— Você então não é...? — Brokey, o Dois inclinou-se, com o pescoço esticado. — Você não é o Hawkins!

— Espere aí, amigo! — gritou Mangecavallo — Você não é o Hawkins! Eu tenho fotos!

— Quem é você?

— E quem é você?

— Estou aqui para encontrar o Hawk... ali! — exclamou Brokemichael.

— Eu também!

— Usa peruca ruiva...

— Você também...

— Ele usou uma em Benning!

— Em comprei a minha em Miami Beach...

— Arranjei a minha no enorme armário da minha unidade.

— Gosta de pêche também, hein?

— Do que está falando?

— Do que você está falando?

— Espere um momento! — os olhos de Brokemichael tinham se desviado, com a raiva, para a árvore do encontro, a tal com a placa. — Olhe! Está vendo a mesma coisa que eu?

— Refere-se ao padre magricela de terno preto e gola branca, farejando o lugar do encontro como um doberman que vai fazer xixi?

— É exatamente a pessoa de que estou falando.

— E então? Pode ser que só queira sentar no banco... lá está, como um conjunto de tabuinhas em volta da árvore...

— Eu sei — disse Brokey, o Dois, semicerrando os olhos para ver se distinguia mais algum detalhe. — Agora, veja — continuou, quando o clérigo ficou iluminado pelo clarão oeste dos refletores distantes. — O que vê?

— O colarinho, o terno e o cabelo vermelho, e então?

— Amadorismo — determinou o criador dos Seis Suicidas. — Não é cabelo, é uma peruca; e, como a sua, uma péssima peruca. Comprida demais na nuca e larga demais nas têmporas... É estranho, parece que me lembro de já tê-lo visto antes.

— Que nuca e que templos? O que a religião tem a ver com isso?

— Não é templo, é têmpora. A questão é a peruca. Não está devidamente ajustada.

— Ah, esqueci, pêche. Tenho que encontrar um soldado poofereeno na maior entrevista da minha vida... não é que eu pessoalmente tenha algum problema, compreende?... É que esta não é a ocasião adequada para intolerâncias pecaminosas!

— Quem sabe se as perucas não serão símbolos...?

— De que, pelo amor de Deus? Vamos aderir a algum protesto?

— Não está vendo? Ele fez com que todos usássemos perucas vermelhas!

— Ele não me fez absolutamente nada, já lhe disse. Comprei a minha em Miami Beach, numa loja maluca perto do Fontanbloo.1

— E eu encontrei a minha no armário da minha unidade...

— Que grande unidade...

— Mas ele usava uma peruca vermelha quando foi me ver... Meu Deus, foi uma motivação subliminar...!

— Sub o quê?

— Ele já usou a palavra “vermelho” com você... mais de uma vez?

— Talvez, não sei. A questão gira toda em torno dos índios... peles vermelhas, entende o que quero dizer? Talvez ele tenha dito “peles vermelhas”, sabe? Mas eu nunca o vi, só falei com ele pelo telefone.

— Aí está! Ele usou a voz como a força subconscientemente motivadora da convicção. Stanislavski escreveu extensamente sobre isso.

— Um comuna?

— Não, Stanislavski, um deus do teatro.

— Ah, polonês, hein? Bem, temos que fazer concessões.

— Que questão? — perguntou subitamente Brokey, o Dois, baixando a cabeça bruscamente em frente ao estranho de peruca vermelha. — E de que questão está falando?

— Do processo da tribo Wop que está na Suprema Corte, do que mais seria?

— Nas Forças Armadas, General — disse Brokemichael com firmeza, pondo-se bem ereto —, não permitimos senhas com preconceitos étnicos, como é o caso de wop. Os notáveis cidadãos ítalo-americanos desta nação, filhos e filhas de Leonardo Michelangelo e Rocco Machiavelli devem ser tratados com o maior respeito pelas suas contribuições. Os Capones e os Valachis foram aberrações.

— Vou à missa amanhã e acenderei uma vela pela sua sobrevivência, para o caso de vir a encontrar filhos e filhas dos dois últimos. Enquanto isso, o que fazemos agora?

— Acho que devíamos ter uma conversa com nosso padre ruivo.

— Boa ideia. Vamos.

— Ainda não! — disse uma voz profunda e áspera, vinda de trás. — Fico satisfeito por vê-los aqui, cavalheiros — continuou o Hawk, contornando o tronco do bordo, com sua peruca ruiva aparada pegando a luz filtrada pelas folhas da árvore. — É um prazer vê-lo de novo, Brokey... e, quanto a você, presumo que seja o Comandante Y. É um grande prazer conhecê-lo, seja lá quem for.


Tanto quanto permitia o medo que sentia, Warren Pease, Secretário de Estado, estava satisfeito consigo mesmo, até mesmo impressionado. Quando vira aquele padre a discutir com um motorista de táxi por causa de uma tarifa, em frente ao hotel Hay-Adams, tivera uma inspiração... iria ao encontro como um religioso! Se não gostasse do que visse ou ouvisse, poderia afastar-se com impunidade. Afinal de contas, ninguém é duro com um padre ou ministro religioso em público, pura e simplesmente porque não seria adequado e, sobretudo, porque chamaria a atenção.

E, é claro, não comparecer ao encontro seria loucura, apesar do que dissera ao chato daquele almirante que estava sempre a apresentar documentos de despesa referentes a viagens para lugares onde nunca ia, para ver pessoas que nunca via, por conta de negócios do Departamento de Estado que simplesmente não existiam. Pease repreendera-o fortemente pelo telefone, não para corrigir os abusos do almirante, mas para descobrir o que ele realmente sabia... e como o soubera. As respostas foram mínimas, confusas e perturbadoras o suficiente para convencer Warren a cancelar a agenda daquela noite e a comprar uma gola de clérigo e rabat. Tinha um terno preto para enterros oficiais e a inspirada peruca vermelha completava o traje.

Ao caminhar por entre a multidão que visitava o Lincoln Memorial, as palavras do almirante ressoaram de novo em seus ouvidos.

— Secretário, um camarada de longa data pediu-me para lhe transmitir uma mensagem, uma mensagem que pode levar à solução de seu problema mais premente... crise, foi como ele o descreveu.

— Do que está falando? O Departamento de Estado tem dezenas de crises todos os dias e como o meu tempo é o mais precioso de Washington, agradeço-lhe que seja mais preciso.

— Receio não poder ser preciso. O meu velho camarada deixou bem claro que era algo que ia para além do que eu posso saber. Ia mesmo muito para além.

— Isso não me diz nada. Seja mais claro, marinheiro.

— Ele disse que tinha algo a ver com um grupo de americanos de origem — seja qual for o significado disto — e com certas instalações militares, sejam elas quais forem.

— Oh, meu Deus! O que mais é que ele disse?

— Ele foi muitíssimo reservado, mas, mesmo assim, disse que havia uma solução que poderia encerar os seus esquis.

— Encerar? Os meus quê?

— Esquis... Francamente, Sr. Secretário. Não sou adepto de esportes de inverno, mas, em termos militares, devo presumir que essa referência em código significa que alcança seu objetivo muito mais rapidamente se se encontrar com ele assim que for possível, o que é, basicamente, sua mensagem.

— Qual é o nome desse seu camarada, Sr. Almirante?

— Revelar o nome dele significaria me envolver numa situação com a qual nada tenho a ver. Sou apenas um mensageiro, Sr. Secretário, nada mais. Ele poderia ter escolhido dezenas de outros ex-militares e eu gostaria que o tivesse feito.

— E eu poderia verificar um grande percentual de seus comprovantes de despesas e a necessidade dessas deliciosas viagenzinhas que faz em aviões diplomáticos! Como reage a isso, marinheiro?

— Só estou transmitindo uma mensagem, Secretário. Não estou envolvido!

— Não está envolvido, hein? Isso é o que diz, mas por que eu deveria acreditar em você? Talvez faça parte dessa conspiração maligna.

— Que conspiração, pelo amor de Deus?

— Ah, isso é o que você gostaria de saber, não é verdade? Gostaria muito que eu lhe contasse todos os detalhes dessa terrível confusão, para que pudesse escrever um livro, como todos esses funcionários públicos excelentes e altruístas que foram injustamente acusados por não terem feito mais, para além do que qualquer outra pessoa faria, ao mesmo tempo que desistem das suas opções de compra de ações e vêm aqui para baixo.

— Não sei do que está falando!

— O nome, marinheiro, o nome!

— Para que possa escrever um livro e pôr o meu nome nele? De maneira nenhuma!

— Bem, já que me fez desperdiçar meu tempo, pode muito bem transmitir o resto da mensagem. Onde e quando esse monstro sem nome pensa que vou encontrá-lo? — O almirante disse. — Muito bem! Já esqueci o que disse, seja lá o que for. Agora desapareça daqui, marinheiro e nunca mais fale comigo, a menos que seja para me dizer que se demite da função de consultor!

— Ei, Sr. Secretário, eu não quero problemas, juro por Deus!... Olhe, eu falo com o grande amigo do Presidente, o Subagaloo, e ele dirá...

— Com Arnold? Não, não fale com Arnold, nunca fale com Arnold! Ele vai colocar você numa lista, ele o terá numa lista... uma lista, uma lista, uma lista terrível e intolerável!

— Está se sentindo bem, Sr. Secretário?

— Estou bem, estou bem, ficarei bem, mas nunca, de forma alguma, fale com Arnold Subagaloo. Ele o colocará na lista dele, na lista, uma lista irascível, medonha, uma lista de execução!... É assunto encerrado e agora desapareça daqui, marinheiro!

Pois bem, ele pusera para fora do escritório aquela sanguessuga, pensou Pease, sorrindo docemente para uma velhinha exageradamente maquiada que o fitava com olhar de admiração quando ele se aproximou. O encontro seria na árvore mais adiante, pensou. Uma localização nada inspirada e Warren se perguntou por que MacKenzie Hawkins, também conhecido como Chefe Cabeça de Trovão, da nefanda tribo dos Wopotamis, o escolhera. O local era mal iluminado, mas talvez isso fosse bom. Havia multidões a menos de trinta metros... mas isso também não era ruim; havia muita proteção, em quantidade. Claro que o maníaco do Hawkins tomara todas aquelas precauções pensando na própria segurança e não no interesse do Secretário de Estado. Indubitavelmente, ele pensara que o Governo teria agentes armados em toda a área para capturá-lo, mas esse tipo de demonstração de força era a última coisa que todos os homens do Presidente queriam. Seria terrível se a mídia descobrisse que tinha sido montada uma armadilha para apanhar um militar duas vezes condecorado com a Medalha de Honra do Congresso. Pease semicerrou os olhos por causa da pouca luz embaixo da árvore e olhou o relógio; chegara quase trinta minutos antes. Ótimo! Ficaria ao lado da árvore e esperaria... e observaria. Deu a volta ao tronco e parou, aborrecido por ver que a velha baixinha de bochechas vermelhas estava esperando.

— Abençoe-me, padre, porque pequei — disse ela em voz aguda e trêmula, parando na sua frente e barrando seu caminho.

— Sim, bem... vox populi e tudo isso. Alguns de vocês não são perfeitos, mas é assim que são as coisas...

— Eu gostaria de me confessar, Padre. Eu preciso me confessar!

— O que é, provavelmente, muito louvável, mas não creio que este lugar seja o mais adequado. Além do mais, estou com pressa.

— A Bíblia diz que, aos olhos do Senhor, um deserto pode se tornar a Casa de Deus, se assim o desejar o espírito de um pecador.

— Já lhe disse que estou com pressa.

— E eu estou lhe dizendo para ficar perto dessa árvore.

— Ah, tudo bem, está perdoada, não importa o que fez... o que disse?

— Ouviu bem, seu pederasta! — sussurrou a agora grotesca megera, com a voz subitamente mais grave e áspera, tirando uma navalha das dobras do vestido e abrindo-a. — Agora vá para trás da árvore, senão, a última coisa com que se preocupar será seu voto de castidade.

— Oh, meu Deus... você não é mulher, é um homem!

— Isso é discutível, mas o que sou mesmo é um cortador... adoro cortar Agora, mexa-se!

— Por favor, por favor, não me machuque, não... oh, meu Deus... não me corte! — Com o corpo todo tremendo, o Secretário de Estado deu alguns passos, desajeitadamente, para a sombra da árvore. — Não devia fazer isso. Cortar um padre é um pecado muito, muito grande.

— Estava observando você há quinze minutos, seu pederasta — sussurrou o homem/mulher, os lábios enrugados pintados de vermelho e as pálpebras inchadas, de roxo. — Com esse horrível tapete na cabeça, é uma vergonha para os tarados honestos do mundo inteiro!

— O quê...?

— Como se atreve a andar por aí assim? Procurando garotinhos, seu canalha? E vestido de padre? É revoltante!

— Ora, francamente, senhora... senhor, seja lá o que for...

— O que disse? Está me insultando, Cara de Cobra?

— Palavra de honra que não, nunca! — o olho esquerdo de Pease entrou em órbita. — Estou só dizendo que não está entendendo.

— Eu compreendo, sim! Tarados como você trazem sempre muita grana no bolso para o caso de alguém tocar um apito. Passe-a para cá, seu pervertido!

— Dinheiro, você quer dinheiro? Pelo amor de Deus, leve tudo o que tenho! — o Secretário enfiou a mão no bolso e tirou várias notas dobradas. — Aqui está, leve, leve, pode levar...

— Levar o quê? Isso é uma ninharia... Vou ter que passar a navalha em seus bolsos antes de começar a cortar pra valer! — O monstro andrógino obrigou Pease a ficar atrás da árvore. — Se fizer o menor ruído, seus lábios vão cair no chão, seu menino sujo!

— Por favor — suplicou o Secretário de Estado. — Você não sabe quem eu sou.

— Mas nós sabemos! — interrompeu uma voz estranha e grave vinda das sombras mais adiante. — O.K., Brokey... você também, Comandante Y, desarmem-no! Agora! — Como se fossem um só, o idoso ex-aluno de West Point e o corpulento capo supremo de meia-idade do Brooklyn atacaram, o primeiro arrancando a navalha da mão que a segurava e o último agarrando as pernas envoltas pela saia larga e florida.

— Uma porra de uma fulana! — berrou Mangecavallo.

— Um travesti é que é! — gritou Brokemichael, arrancando a peruca grisalha do assaltante de cara enrugada e grosseira.

Vinnie, o Bam-Bam, viu no mesmo instante seu erro e começou a esmurrar a feia figura, exageradamente pintada, que caía no chão.

— Seu pedaço podre de mozzarella! — urrou.

— Deixe-o ir, Comandante! — ordenou o Hawk.

— Por quê? — perguntou Brokey, o Dois. — Esse canalha devia estar atrás das grades!

— Com a porra das pernas quebradas! — acrescentou o supostamente falecido diretor da CIA.

— Vamos apresentar queixa, cavalheiros?

— O quê...? — Brokemichael recuou um passo quando Mangecavallo levantou a cabeça, a peruca ruiva de novo torta e uma fita agora cobrindo parcialmente o nariz e mal se vendo seus olhos. — Ele tem razão, Comandante sei-lá-o-que — disse Brokey, o Dois.

— Pois é, bem, talvez ele tenha mesmo — concordou Vincent, administrando uma última joelhada nas costelas do assaltante. — Desapareça daqui, seu verme!

— Ei, amigos! — ganiu o assaltante, sorrindo exuberantemente ao agarrar sua peruca enquanto se levantava. — Querem ir a minha casa? Podíamos mesmo organizar um baile.

— Fora daqui!

— Vou já, vou já. — Com a saia esvoaçar, o assaltante atravessou correndo o gramado e desapareceu no meio da multidão.

— Oh, meu Deus, oh, meu Deus...! — repetia, com a voz trêmula, o vulto deitado de bruços no chão ao lado de Hawkins, o rosto mergulhado na grama e as mãos crispadas na cabeça. — Muito obrigado, muito obrigado! Eu podia ter sido morto!

— Por que não se vira, não se levanta e vê se quer continuar vivo? — perguntou o Hawk delicadamente, metendo a mão no bolso e tirando um gravador.

— O quê?... O que está dizendo? — lentamente, Warren Pease soergueu-se, girou dolorosamente e, da posição sentada em que ficou, viu em primeiro lugar o resplandecente uniforme à direita e depois o rosto. — Brokemichael! O que está fazendo aqui?

MacKenzie pôs o gravador para funcionar e o som da voz de Brokemichael se fez ouvir, com clareza: “O Secretário de Estado. É por causa dele que meus Seis Suicidas estão numa missão em Boston!... Esse zarolho desse Pease disse cobras e lagartos de você!”

— Só que nada do que ele disse era verdade, certo, Secretário? — disse o Brigadeiro Brokemichael quando o Hawk desligou o gravador. — Foi um sacrifício. Um velho soldado que não podia sair de baixo daquela nuvem de suspeita e a sua unidade de excelentes rapazes. Éramos carne de canhão, como aqui o Mac. Ele não é meu melhor amigo, mas também não merece ser largado num iceberg do Ártico.

— Do que está falando?

— Talvez eu não o tenha apresentado. Este é o ex-General MacKenzie Hawkins, duas vezes condecorado com a Medalha de Honra do Congresso, que o senhor primeiro tentou... digamos, “neutralizar”..., tendo depois ordenado aos homens da minha unidade que o sequestrassem, com destino TBDL, to be determined later, “a ser determinado depois”, mas claramente no norte, no extremo norte.

— Não posso dizer que esteja satisfeitíssimo por conhecê-lo, Sr. Secretário — disse o Hawk. — Perdoe-me por não lhe estender a mão.

— Isto é uma loucura, é uma absoluta loucura! Há grandes questões em jogo, a última força, a força de ataque da nação!

— E a única forma de colocar tudo nos eixos é livrarmo-nos dos que se queixam? — perguntou MacKenzie. — O senhor não pode falar, pode apenas livrar-se dos chatos que o aborrecem, os quais, a propósito, têm entre as mãos um caso perfeitamente legítimo.

— Está distorcendo tudo! Há outras questões, problemas econômicos, perdas financeiras fantásticas... meu Deus, meu barco, o clube Metropolitan, minha reunião de turma, a vida que mereço, para a qual nasci! Vocês não entendem!

— Eu entendo, seu fedorento — disse Vincent Mangecavallo, dando alguns passos à frente sob a pálida luz. — Certas pessoas podem ser úteis para você, mas você não tem utilidade para elas!

— Quem é você? Já o vi antes, conheço sua voz, mas não posso... não posso...

— Talvez porque minha própria mãe, que descanse em paz em Lauderdale, também não me conhecesse, graças ao meu fantástico disfarce — Vinnie retirou a peruca e acocorou-se em frente ao Secretário de Estado. — Olá, fazool, como vai? Talvez seus rapazes do country club tenham feito explodir o barco errado, o que acha?

— Mangecavallo!... Não, não! Eu fui ao seu funeral no outro dia! Você desapareceu, você está morto! Isso não está acontecendo!

— Talvez não esteja, seu grande diplomata, talvez tudo não passe de um pesadelo provocado pelo mal que existe na sua alma podre. Talvez eu tenha acabado de me levantar dos braços de Morfina...

— Morfeu, Comandante Y, Morfeu.

— Isso mesmo... Vim dos mortos, atravessando o grande rio, para assombrar vocês, seus canalhas, que pensam que são superiores, como se tudo o que comessem saísse transformado em creme de baunilha. Pois é, fazool, estou de volta, vindo dos peixes, e os tubarões vieram comigo. Eles me respeitam; você nunca me respeitou.

— Auggh! — de repente, com um grito agudo e penetrante que perturbou as multidões iluminadas pelas luzes do Lincoln Memorial, o Secretário de Estado contorceu-se como um réptil apanhado numa armadilha, ficou em pé de um salto e desatou a correr, gritando histericamente.

— Tenho que pegar esse filho da mãe! — berrou Mangecavallo, levantando-se, mas não facilmente, por causa do peso. — Ele vai contar tudo.

— Esqueça! — exclamou o Hawk. — Ele está acabado.

— De que está falando? Ele me viu!

— Não faz mal. Ninguém acreditará nele.

— Mac, o que você diz não faz sentido! — insistiu Brokey, o Dois. — Sabe quem é esse homem?

— Claro que sei e faz sentido, sim... Então você é o tal italiano que dirigia a Agência?

— Sim, uma longa história e não gosto de histórias longas. Fui derrubado. Merda!

— A emotividade melodramática é um dos maiores dons do seu povo, signore. Pense nas grandes óperas... ninguém mais senão os italianos poderiam tê-las criado. Capisce italiano?

— Claro que falo italiano.

— Lo capirete inoltre.

— É bonito, mas esse cannoli vai estragar tudo!

— Não, não vai não, signor Mangecavallo... Brokey, lembra do Frank Heffelfinger?

— Finger Frank,2 o cara cujos dedos nunca acertavam as polegadas? Quem não se lembra? Destruiu as praias erradas em Wonsan. Naturalmente nunca falamos disso, sobretudo agora que ele é o favorito do Presidente no Departamento da Marinha.

— Falei com Frank. É por isso que Pease esteve aqui.

— E depois?

— A esta hora, Finger Frank está esperando junto ao telefone. Ele tem outra ligação para fazer. Para seu grande amigo, o Presidente.

— Para falar sobre o quê?

— Sobre o estado mental de Pease, que é resultado de uma conversa telefônica muito estranha que Frank teve com o Secretário esta tarde. Após pensar nisso o dia inteiro, ele decidiu contar suas preocupações ao amigo da Casa Branca... Vamos, temos que encontrar uma cabine telefônica. E tenho que pegar o trem de volta para Nova York o mais depressa possível.

— Ei, soldado! — exclamou Mangecavallo. — O que me diz de irmos à tal audiência?

— Está tudo sob controle, Comandante Y. Vai estar com os Wopotamis. Naturalmente vou precisar saber suas medidas, mas podemos resolver isso rapidamente. As índias são excelentes costureiras... quase tão boas como a Sra. Lafferty!

— Índias? Temos índias de sangue irlandês? Esse cara é pazzo...

— Tenha fé, Diretor. The Hawk se move sempre de maneira misteriosa.

— Vamos, cavalheiros — ordenou MacKenzie. — Tripla marcha acelerada. Há uma cabine telefônica no estacionamento. Em frente!

Os três homens de peruca vermelha atravessaram correndo a distância que os separava do telefone, com diferentes graus de falta de fôlego. As únicas palavras que se ouviam, porém, eram as de Vinnie, o Bam-Bam, que repetia sem parar: Mannagia, mannagia! Está tudo louco! Pazzo, pazzo, pazzo!

 

THE WASHINGTON POST

SECRETÁRIO DE ESTADO LEVADO PARA

PAVILHÃO PSIQUIÁTRICO DO

HOSPITAL WALTER REED


Warren Pease, Secretário de Estado, envergando traje de padre católico, foi preso ontem à noite, quando corria em estado de choque entre as multidões que visitavam o Lincoln Memorial. De acordo com a polícia e com testemunhas oculares, o Sr. Pease gritava sem parar que um “espectro”, que ele não podia ou não queria identificar, tinha “ressurgido dos mortos” e tinha “voltado para assombrar a sua alma podre”. Ele também afirmou que um “hermafrodita pintado vindo do inferno” tinha ameaçado rasgar “os seus bolsos e a sua garganta” porque ele/ela decidiu que ele era um (palavra expletiva eliminada), o que ele gritara incansavelmente que não era, pois “tinha-a perdoado pelos seus pecados”.

O Secretário nunca foi ordenado padre ou ministro e não teria poderes para conceder absolvição religiosa. (Nossos editores investigaram esse fato diligentemente.)

Um relatório tardio da Casa Branca, no entanto, pode lançar luz sobre esse evento incrível. Maurice Fitzpeddler, secretário de imprensa, disse que o país deveria expressar compreensão pelos estressados e sobrecarregados Pease e sua família, embora, quando questionado, Fitzpeddler admitisse que o secretário era divorciado e não tinha família. Além disso, o presidente, por intermédio de Fitzpeddler, recebeu telefonema ontem sobre o estado de extrema tensão do secretário. Ele pediu que o país reze pela recuperação de Pease e por "sua libertação da camisa de força".

Deve-se notar aqui que o chefe de gabinete do presidente, Arnold Subagaloo, sorriu durante toda a coletiva de imprensa. Quando perguntado sobre sua expressão, o chefe de gabinete mostrou à imprensa o dedo médio ereto.

 

________________

1 Fontainebleau Miami Beach, hotel em Miami. (N.T.)

2 Frank do dedo (N.T.)


27

Passava pouco da meia-noite quando MacKenzie Hawkins entrou no hall do Waldorf-Astoria e dirigiu-se à recepção para saber se havia mensagens para a Suíte 12A... nada de nomes, apenas o número da suíte. Havia duas:

 

Ligar para Beverly Hills.

Ligar para a Cidade dos Vermes.

 

Como na Califórnia eram três horas mais cedo, decidiu ligar primeiro para Madge, em Greenwich, Connecticut. Atravessou de novo o hall atrás de um telefone.

— Midgey, desculpe por ser tão tarde, mas é que acabo de chegar.

— Não se preocupe, querido, ainda estou trabalhando no texto. Estará pronto em menos de uma hora e mando em seguida por um serviço de entrega. Deve tê-la em mãos às duas e meia. Hawk, é sensacional. Campeão de bilheteiras em todos os mercados!

— Vamos, Midgey, não comece a falar como os caras de Hollywood, é difícil de suportar.

— Desculpe, tem razão, querido. Só que todo mundo fala assim para despertar o entusiasmo por um projeto. Quanto mais entusiasmo, melhor.

— Marche ao som de seu próprio tambor, garota. Tem classe de sobra para isso.

— Com vermes, Mac?

— Bem, deu forma a uma mercadoria.

— Pode contar com isso, eu contei.

— Mas fico satisfeito por ver que acha que os Suicidas têm chance... sinceramente, foi o que eu achei também.

— Querido, é puro ouro!... Ouro, Mac, estou falando de ouro. atores viajando pelo mundo inteiro como uma unidade antiterrorista, e são verdade!

— Acha que eu poderia fazer com que alguém da Costa Oeste se interesse...

— Interesse? — interrompeu ela. — Então ainda não falou com Ginny?

— Não, lembrei que lá ainda era muito cedo e liguei para você primeiro.

— Falei com ela depois de ter ouvido as fitas e foi uma conversa bem longa. Pode se preparar para uma surpresa, Mac. Ela está enredando desde as três e meia, hora da Califórnia.

— Enredando? Midgey, essa é uma linguagem muito esquisita e não sei se aprovo. Parece vulgar.

— Nada disso, querido, é uma expressão comum. Basta pegar o substantivo “rede” e transformá-lo em verbo.

— Ah, bom...

— Mas, Hawk, precisa me ouvir — interrompeu Madge da Cidade dos Vermes. — Eu sei que às vezes você fica um pouco superprotetor em relação a nós, suas ex-mulheres, e nós o amamos por isso, mas tem que me prometer uma coisa.

— O que é?

— Não bata em Manny Greenberg. Não dê nada de mão beijada a ele, mas também não quebre a cara dele.

— Ora, deixe disso, Midgey, isso é completamente vulgar...

— Tenho que ir, Mac. Estou quase na última linha e meu processador de texto já está soltando fumaça. Ligue para Ginny, querido. Beijinhos.

— Residência de Lord e Lady Cavendish — anunciou o anglicano adenoidal na linha da Califórnia. — Nome, por favor?

— Guy Burgess de Moscou.

— Está bem, eu atendo! — interrompeu Ginny com rapidez. — Ele é um velho tão chato, Basil.

— Sim, madam — disse o mordomo, numa monotonia devastadora, desligando o telefone.

— Mac, queridinho, há horas que espero sua ligação. Tenho notícias maravilhosas!

— O que, segundo depreendi da conversa com Madge, inclui não entrar em combate mano a mano com Manny.

— Ah, ele... não, não bata nele, ele pode ser útil num leilão, mas não se estiver no hospital. Para falar a verdade, foi com Manny que comecei a quebrar minha regra de nunca falar com ex-maridos enquanto meus advogados estiverem falando com os deles, e funcionou.

— O que funcionou? E que leilão?

— Midgey diz que o conceito não só é sensacional, é também um marco na história do cinema! Ela diz que está tudo lá, tudo mesmo! Atores másculos — seis! — voando pelo mundo inteiro para libertar reféns, para capturar terroristas, e são reais! Dei só uma ideia ao Manny... depois de ele prometer deixar as pinturas para mim, claro, e quando eu disse que Chauncey estava disposto a falar com uns amigos em Londres, Manny gritou para a secretária que mandasse preparar o avião do estúdio.

— Ginny, pelo amor de Deus, mais devagar! Está pulando de um assunto para o outro e não consigo compreender... Agora conte, o que Manny está fazendo e o que fez esse tal Chauncey... e quem diabos é ele?

— O meu marido, Mac!

— Ah, o dos Granadeiros, sim, lembro-me agora. Eram regimentos bons mesmo, todos eles; de primeira categoria em combate. E o que ele fez?

— Eu já disse. Ele é um grande admirador seu e, quando Madge ligou e começou a explicar o que você tinha nessas fitas, pedi a ele que entrasse na linha, por ele ser tão militar e tudo mais...

— E o que ele achou?

— Disse que era similar ao Quarto... ou Quadragésimo?... Comando Real recrutado no Old Vic e que teve “apenas sucesso marginal”, como ele disse, porque passavam a vida “quebrando o silêncio”. Ele quer conversar com você sobre isso e quer comparar as observações de cada um.

— Puxa, ponha-o no telefone, Ginny!

— Não, Mac, não há tempo. Além do mais, ele não está em casa. Está naquela fábrica de armas em Santa Bárbara, jogando polo com a colônia inglesa.

— Então, o que ele fez?

— Hawk, você deve estar cansado e precisado de uma massagem nos ombros. Eu já disse, ele achou que o que Midgey está fazendo para você tinha todas as caraterísticas de um megassucesso e ligou para alguns amigos em Londres, a fim de lhes dar a notícia.

— E daí?

— Eles vão pegar o Concorde amanhã cedo e estarão aqui antes de saírem de Londres.

— Estarão onde?

— Em Nova York. Para ver você.

— Amanhã... hoje?

— Onde você está, sim.

— E seu ex, Greenberg?

— Amanhã de manhã... hoje de manhã para você. Além do mais, como eu tinha o número de telefone dos amigos de Manny e Chauncey na minha agenda... e como por aqui todo mundo controla tudo, inclusive listas de passageiros de companhias aéreas e os voos dos estúdios, liguei para alguns figurões que querem Chauncey em seus jantares e deixei escapar certas informações secretas. Você vai ter um dia atarefado, queridinho.

— Por César, você é maravilhosa! Mas sinceramente, Gin, eu sabia que vocês, garotas, me ajudariam, mas pensei que seria mais tarde, tipo no início da semana que vem... não de sexta a segunda, claro, porque estou meio amarrado a outros empreendimentos...

— Mac, você disse e eu cito: em um dia!

— Bem, é certo que eu disse isso, mas foi para me livrar dessa história da redação, e, de alguma forma, para passar às mãos dos chefões de Beverly Hills no fim de semana e pôr as coisas rolando na segunda ou terça-feira.

— Olhe aqui, meu grande ex-marido e querido amigo, o que está tentando dizer?

— Bem, Gin-Gin...

— Pare de me tratar de Gin-Gin, Hawk. Começou a me tratar assim quando conheceu Lillian naquele ginásio arruinado e decidiu que ela precisava mais de ajuda do que eu. Depois Lil contou que quando você conheceu Midgey, naquela farra de coca em que você não parou de perguntar onde estava a cola, começou a tratá-la de “Lilly Lilly”. O que é, Mac? Nós te amamos, sabe disso. Por que amanhã de manhã é um problema? Se for outra esposa nós compreenderemos e a protegeremos quando chegar a hora.

— Não é nada disso, Ginny. Mas é muito importante... para muita gente, muita gente desvalida.

— Está atacando moinhos de vento de novo, não é, meu querido amigo? — disse lady Cavendish suavemente. — Se quiser, cancelo tudo. Posso fazer isso... na realidade, você também pode, basta que não atenda o telefone ou a porta. Os abutres só têm o número do quarto, a Suíte Doze A, sem nome nem identificação.

— Não, não, eu cuido disso... nós cuidamos disso.

— Nós?

— Tenho aqui todos os rapazes. Pensei em segurá-los até que meu outro problema esteja resolvido.

— Os Seis Suicidas? — exclamou Ginny. — Estão todos aí no Waldorf?

— O bando todo, garota.

— São musculosos?

— São isso e mais do que isso em tamanhos variados. Mas o que é importante é que eles contam comigo.

— Então dê, Mac. Você nunca falhou com nenhuma de nós.

— Com uma, talvez.

— Com Annie?... Nada disso. Ela conseguiu falar comigo na semana passada, através de um circuito de rádio com muita estática. Ela conseguiu tirar uma dúzia de crianças realmente doentes de uma ilha no Pacífico e levar para tratamento em Brisbane. Ela está feliz como pode ser. Não é disso que se trata? Ser feliz consigo mesma? Foi isso que você nos ensinou.

— Diga-me, ela mencionou Sam Devereaux alguma vez?

— Sam...

— Você me ouviu, Ginny.

— Bem, sim, mas acho que você não quer ouvir, Mac. Deixe pra lá..

— Quero ouvir. Ele é meu amigo.

— Ainda?

— Pelas circunstâncias, sim.

— Tudo bem... Ela diz que se lembra dele como o único homem com quem dormiu. Foi “uma comunhão de amor”, foi assim que ela disse. Todos os outros estão esquecidos.

— Ela vai voltar?

— Não, Mac. Ela encontrou o que você queria que ela encontrasse... o que você queria que todas nós encontrássemos. Conforto em nossa própria pele, lembra-se de nos dizer isso?

— Que diabo de psicopapo! — exclamou Hawkins, mais uma vez enxugando uma lágrima no canto do olho. — Não sou nenhum salvador de almas, só sei de quem gosto e de quem não gosto. Não me ponha na porra de um pedestal!

— Como queira, Hawk e, de qualquer forma você o esmagaria.

— Esmagaria o quê?

— O pedestal. E agora, quanto a amanhã de manhã?

— Vou cuidar disso.

— Seja bom com os abutres, Mac. Seja bom e não se comprometa, eles não suportam isso.

— O que quer dizer?

— Quanto melhor você for, mais eles suam e quanto mais suam, melhor para você.

— Tipo olhar de cima o pessoal inimigo do serviço de informações em Istambul, não é?

— Isso é Hollywood, Mac.


De manhã, mais precisamente, ao raiar do dia, o telefone da Suíte 12A começou a tocar. Hawkins, deitado de costas no chão da sala de estar, estava preparado. Tinha recebido o Tratamento Conceitual de Madge às 2h03 da madrugada e por volta das três acabara de ler, reler e absorver as dezoito páginas de alta tensão escritas por sua terceira esposa. Nessa hora tirara o telefone da mesa e o colocara no tapete, perto da cabeça, e deitara-se para dormir algumas horas. O repouso era uma arma para o combate iminente, tão necessário quanto o armamento superior. Contudo, Midgey fizera um trabalho tão soberbo — uma narrativa explosiva, ressaltando de cada página um grande dinamismo, em termos de energia, ação e diversificação do desenho das personagens — que o sono tão necessário foi adiado por quase trinta minutos, enquanto o Hawk considerava a ideia de se tornar produtor de cinema.

Que diabo, não! Omaha e os Wopotami tomarão todo o meu tempo. Agarre-se às prioridades, soldado!

De repente, o toque cortante ecoou nas paredes da sala.

— Sim? — disse Mac, com o telefone no chão, junto ao seu ouvido esquerdo.

— Fala Andrew Ogilvie, General.

— O quê?

— Sim, eu disse “General”, cara. Receio que meu antigo companheiro dos Granadeiros tenha quebrado as regras e me contado quem você é. Teve uma guerra esplêndida, meu velho. Fiquei muito impressionado, muito impressionado.

— E telefonou muito cedo — disse Hawkins. — Esteve realmente nos Granadeiros?

— Um jovem bisonho para ser honesto, como Cavvy.

— Cavvy?

— Lord Cavendish, claro. Ele também teve uma ótima guerra. Meteu-se bem no meio da lama e dos projéteis de morteiro e nunca se deu mal, se é que me entende.

— Sim, esplêndido, ótimo. Mas é cedo demais e meus soldados ainda não estão prontos para entrar em ação. Tome um chá matinal e volte em uma hora. É o primeiro, garanto.

Ao desligar, Mac ouviu uma batida leve na porta do corredor. Levantou-se e se aproximou da porta em sua roupa interior camuflada.

— Sim?

— Ora, quem acha que pode ser? — gritou o intruso. — Eu sabia que era você, reconheceria esse rosnar em qualquer lugar!

— Greenberg?

— Ora, querido, quem mais poderia ser? Minha linda e adorável esposa, que me pôs para fora de casa sem qualquer motivo e me confundiu com um maço de notas... mas também, que importância tem isso, ela é uma boneca..., fez um resumo da coisa e vi logo que só podia ser você! Deixe-me entrar, amigo? O.K., O.K? Podemos fazer um acordo!

— É o segundo na fila, Manny.

— Já tem vigarista metido nisso? Ei, ouça, coração, tenho todo o estúdio comigo, absolutamente todo o pessoal! Para que negociar com gente de segunda linha, hein?

— Porque são os donos da Inglaterra, eis por quê.

— Mentira! Eles fazem aqueles filmes idiotas em que todo mundo fala e ninguém sabe o que diz, pois todos têm bolhas de peixe na boca!

— Outros pensam de outro modo.

— Que outros? Para cada James Bond fazem cinquenta Gandhis que nunca pagam o que custaram e não deixe que lhe digam o contrário!

— Volte em três horas, Manny, e ligue primeiro do lobby.

— Mac, dê-me uma oportunidade! Todos no estúdio estão de olho em mim!

— Estou dando, seu tarado. Talvez encontre uma garota no lobby que não seja muito perspicaz.

— Ei, isso é calúnia! Eu processo aquela cadela!

— Agora vá embora, Manny, ou nem se dê ao trabalho de voltar.

— Está bem, está bem.

O telefone tocou de novo, afastando Hawkins da porta, embora ele preferisse esperar para se certificar de que Greenberg tinha mesmo saído.

— Sim? — disse o Hawk, pegando o telefone do chão.

— Suíte 12A?

— É, e daí?

— Fala Arthur Scrimshaw, chefe de planejamento das Produções Holly Rock, a rocha de Hollywood, com vendas mundiais que fariam abalar sua imaginação se eu tivesse autorização para revelá-las, e, além do mais, recebedora de dezesseis indicações para o Oscar no decurso dos últimos... bem... anos.

— Quantos Oscar ganhou, Sr. Scrimshaw?

— Estive muito perto, muito perto. Poderia ter sido em qualquer hora. E, por falar de tempo, descobri na minha agenda completamente louca que tenho algum tempo disponível para almoçar com você... que tal um poderoso café da manhã?

— Volte daqui a quatro horas...

— Peço perdão. Talvez eu não tenha sido muito claro...

— Foi perfeitamente claro, Scrimmy, e eu também. É o terceiro da lista e isso quer dizer daqui a quatro horas, deixando uma hora para meu pessoal se preparar.

— Tem certeza de que quer tratar o chefe de planejamento da Holly Rock desta forma?

— Não tenho escolha possível, Artie, meu rapaz. Já está tudo ocupado na minha agenda.

— Bem... nesse caso, e já que está numa suíte, será que, por acaso, não tem uma cama extra?

— Uma cama...!

— São os malditos contadores, compreende? Eu deveria demitir todos eles...Franzem a testa para reservas extemporâneas e eu não consigo pregar olho nos voos noturnos de Los Angeles! Vou lhe dizer uma coisa, estou exausto!

— Tente a missão do Exército de Salvação na Bowery. Eles aceitam qualquer contribuição acima de dez centavos... Quatro horas! — The Hawk desligou violentamente o telefone e colocou-o na mesa, mas, ao se virar para ir ao quarto mais próximo, ele tocou de novo. — Bolas, quem é agora? — urrou.

— Estou falando dos Estúdios Emerald Cathedral — começou a voz melíflua com forte sotaque sulista. — Um passarinho patriota e temente a Deus trouxe-nos uma informação sobre um grande filme patriótico que deseja fazer, um filme baseado em fatos! E deixe-me dizer-lhe uma coisa, rapaz, não estamos com esses judeus e esses negros que mandam na indústria do cinema. Somos cristãos puros, verdadeiros americanos que desfraldam a bandeira e que acreditam que o poder é para respeitar e queremos contar a história de americanos que fazem o trabalho de Deus. Temos também montes de dólares... alguns milhões, de fato. Nossos programas de TV aos domingos e nossas revendedoras de carros usados, onde cada vendedor é um sacerdote cristão, são verdadeiras minas de urânio semanais.

— Estejam no Lincoln Memorial em Washington, D.C., à meia-noite de hoje — ordenou Hawkins serenamente. — E usem capuzes brancos na cabeça para que eu possa reconhecê-los!

— Não é um pouco óbvio?

— Vocês são antimilitares covardes, do tipo antiamericano liberal?

— Claro que não! Nós colocamos nosso dinheiro onde estão nossas bocas e temos muito de ambas as coisas. Somos os rapazes do Jesse!

— Se é o Jesse que eu conheço, peguem um avião e estejam em Washington hoje à noite. Posicionem-se cento e vinte metros na frente da estátua e cento e oitenta na diagonal, à direita, e encontrarão a casa da guarda de honra; os homens lá dirão onde estamos.

— Temos então um negócio em perspectiva?

— Um negócio que nem sequer pode imaginar. Lembre-se dos capuzes. São importantíssimos!

— O.K., rapaz!

Após desligar, MacKenzie dirigiu-se ao quarto mais próximo e bateu na porta.

— Alvorada, homens! Vocês têm uma hora para cuspir, lustrar os sapatos e comer antes de entrarmos em nosso plano de ação. Não se esqueçam que têm com vocês os seus uniformes de instrução e armas pessoais. Façam seus pedidos ao serviço de quarto.

— Já fizemos ontem à noite, General — gritou a voz de Sly do interior do quarto. — O café da manhã estará aqui em vinte minutos.

— Já estão em pé?

— Claro que sim, General — replicou Marlon. — Já saímos e já corremos quarenta ou cinquenta quarteirões.

— Mas não têm portas que dão para o corredor...

— É verdade que não temos, General — concordou Sylvester.

— Não os ouvi saindo e eu ouço tudo!

— Quando queremos, podemos ser muito silenciosos, General — acrescentou Marlon. — E devia estar muito cansado. Nem sequer se mexeu... Nos vemos todos aqui para o petit déjeuner.. para o café da manhã, General.

— Bolas!

Para irritação do Hawk, o telefone tocou de novo. Furioso, mas resignado, voltou à mesa e pegou o estridente instrumento.

— Sim?

— Ahh, é um grande prazer ouvir sua bela voz — disse um homem que devia ser oriental. — Esta alma indigna está ansiosíssima por conhecê-lo.

— Prazer em conhecê-lo também, mas quem é você?

— Yakataki Motoboto, mas meus amigos de Hollywood me chamam de Cruiser, “Cruzador”.

— Entendo o motivo. Volte a ligar em cinco horas, mas da cabine telefônica da entrada.

— Ah, sim, está sendo cuidadoso, sem dúvida, mas talvez eu possa passar por cima de suas condições, já que creio que agora somos proprietários desse belo hotel e do seu hall de entrada.

— Do que está falando, Motorboat?

— Também somos os donos de três dos maiores estúdios de Hollywood, estimado amigo. Sugiro que me veja em primeiro lugar, senão, muito lamentavelmente, poderemos ter de expulsá-lo de imediato.

— Não pode não, Tojo. Lá embaixo sua recepção tem uma linha de crédito em nosso nome no valor de cem mil dólares. Enquanto os recursos forem suficientes, não pode nos expulsar. É a lei, Bonsai, a nossa lei.

— Aiyeee! Está testando a paciência desta pobre alma. Eu represento as Empresas Toyhondahai U.S.A. Motion Picture Operations!

— Bom pra você! Eu represento seis guerreiros que fazem seus samurais parecerem fornecedores de merda de galinha... Cinco horas, China, ou eu ligo para meus amigos da Dieta de Tóquio e as faturas isentas de impostos de sua sociedade serão apreendidas por motivo de corrupção.

— Aiyee!

— Por outro lado, volte em cinco horas e tudo será perdoado. — The Hawk desligou o telefone e foi abrir sua mochila, que estava no sofá. Já estava na hora de se vestir. O terno cinza, não a jaqueta de pele de gamo.


Dezenove minutos e trinta e dois segundos depois, os Seis Suicidas estavam em posição de sentido, formando uma fileira de tropas soberbamente condicionadas preenchendo impressionantemente suas roupas de combate camufladas, os coldres laterais das armas calibre .45 amarrados firmemente em suas cinturas invejáveis. Foram-se as manifestações teatrais com seus "nomes"; os slouches, swaggers e as imitações vocais haviam desaparecido. Em seu lugar havia rostos duros, linguagem aguda e precisa, e a postura de soldados relativamente jovens, mas experientes, cada um com características marcantes, olhos claros que não piscavam, que mantinham intensidade e percepção. No momento eles estavam passando pela inspeção de seu comandante substituto.

— É isso aí, meninos, vocês entenderam! — gritou o Hawk, aprovando. — Lembrem-se de que esta é a imagem que querem exibir quando olharem para vocês pela primeira vez. Duros, mas inteligentes, marcados por batalhas, mas humanos, acima da multidão, mas com um toque comum. Deus, adoro que meus homens tenham essa aparência! Que diabo, precisamos de heróis! Ansiamos por almas corajosas que sejam capazes de entrar na boca da morte, nas mandíbulas do inferno....

— Você disse errado, general, é o contrário.

— A mesma coisa maldita.

— Na verdade, não. Ele quer William Holden nas últimas cenas de A ponte do Rio Kwai.

— Ou John Ireland no OK Curral.

— Que tal Dick Burton e Big Clint em Eagles Dare?

— Ou Eroll Flynn em qualquer coisa.

— Não se esqueça de Connery em Os Intocáveis.

— E Sir Henry Sutton como cavaleiro em Becket?

— Absolutamente!

— E quanto a Sir Henry? Estamos aqui, mas onde ele está? Nós o consideramos agora parte do grupo, sobretudo quanto à questão do cinema.

— Está em outra missão, homens. Uma missão muito vital; ele os encontrará mais tarde... Agora, de volta à missão que temos diante de nós.

— Podemos relaxar, senhor?

— Sim, sim, claro, mas não percam essa, essa...

— Imagem coletiva, General? — perguntou Telly, de modo gentil.

— Sim, era isso que eu queria dizer... eu acho.

— E estaria absolutamente certo, General — acrescentou Sly, o ex-aluno de Yale. — É que, basicamente, formamos um conjunto. Tem muito de improvisação e está em harmonia com a ideia de uma totalidade interativa, por assim dizer.

— Totalidade? Sim, claro... Agora ouçam. Os caras de Hollywood e de Londres que vão conhecer não sabem o que esperar, mas quando virem seis militares másculos... como diz uma querida amiga que está por dentro da mentalidade dessa gente..., verão também muitos dólares. Sobretudo porque são reais e é aí que reside sua diferença. Vocês não terão que se vender a eles; vai ser o contrário. Vocês é que vão escolher, não serão os escolhidos; eles podem querer comprar, mas vocês podem não querer vender. Têm certos padrões.

— Isso não é perigoso? — perguntou O Duke. — São os produtores que controlam o dinheiro, e não os atores.

— Senhores — disse o Hawk —, esqueçam suas vidas anteriores e aquilo que conseguiram ou que não conseguiram fazer. A partir de agora, vocês é que botam fogo no mundo! É o que eles verão enquanto o dinheiro flui para suas caixas registradoras. Vocês não são apenas atores profissionais, são soldados, comandos em vários disfarces para cumprir suas missões.

— Oh, inferno — disse Dustin, dando de ombros. — Qualquer um com técnicas avançadas de representação pode fazer isso, sobretudo atores que, como nós, nunca chegaram propriamente a entusiasmar a Broadway, para não falar de Hollywood.

— Nunca mais diga isso! — gritou MacKenzie.

— Desculpe, General, mas acho que é a verdade.

— Então mantenha em segredo, filho! — disse o Hawk. — Aqui lidamos com “grandes ideias”. Pensar grande, nada de ideias menores.

— O que significa isso? — quis saber Sly.

— Não desçam a detalhe; a atenção deles não consegue guardar nada — MacKenzie foi até a mesa e pegou uma série de páginas presas por um clipe que representavam o esforço literário da sua terceira esposa e virou-se para a unidade. — Isto aqui é o que se chama de esboço, ou “tratamento”, ou algo assim meio idiota e só há um exemplar, a fim de mantermos o máximo de segurança. É um sumário de grande intensidade de suas atividades nos últimos anos e, se me permitem, é um verdadeiro míssil nuclear. Quando esses abutres chegarem, eu darei este exemplar a cada um deles e direi que têm quinze minutos para ler e fazer perguntas, embora as respostas estejam sujeitas aos interesses da segurança nacional. Quero que se sentem naquelas cadeiras em semicírculo, mantendo essa coisa coletiva de que falam.

— Imagem coletiva de força silenciosa com uma mistura de inteligência e percepção? — sugeriu Telly, o professor.

— É, é isso mesmo. E talvez não fizesse mal se batessem nos coldres dos seus .45 toda vez que eu disser “segurança nacional”.

— Você, Sly; depois você, Marlon — ordenou O Duke.

— O.K.

— O.K.

— Agora, aqui está o grande truque — continuou o Hawk, rapidamente. — No início, respondam às perguntas dos palhaços com suas vozes normais, depois eu faço um sinal e passam a personificar as pessoas, os atores que imitaram diante de mim e do Coronel Cyrus.

— Temos muitas outras — disse Dustin.

— Essas bastam — retorquiu Hawkins. — Foram extremamente convincentes.

— Qual é o objetivo? — perguntou o cético Marlon.

— Pensei que vissem logo qual era. Provamos que vocês são profissionais realmente talentosos e que só fizeram o que fizeram porque são atores.

— Isso não nos atinge, peregrinos — disse O Duke, regressando à sua persona histriônica. — Com os diabos, não foram muitos os chefões no negócio que nos ouviram.

— Confiança, homens. Vocês têm tudo! — o telefone tocou de novo. — Está na hora da comida, senhores — prosseguiu MacKenzie, pegando o telefone, enquanto os Seis Suicidas corriam para as mesinhas do serviço de quarto. — Com quem estou falando?

— Com o décimo segundo filho do sheik de Tizi Ouzou, pela sua vigésima segunda esposa — disse a voz suave do outro lado da linha. — Trinta mil camelos poderão ser seus se a nossa conversa gerar frutos, da mesma forma que cem mil cães ocidentais poderão morrer se os frutos forem estéreis.

— Faça um suco! Volte a ligar em seis horas ou vá enterrar suas balas na areia do deserto!


Sete horas depois, o bom navio, Hawk's Assault, tinha feito sua incursão inicial pelas águas turbulentas da indústria cinematográfica. No seu rastro incerto e lutando para não se afogarem, estavam um antigo granadeiro britânico chamado Ogilvie, que se mostrou um grande fanfarrão no que diz respeito aos nativos das colônias; um tal Emmanuel Greenberg, cujo choro copioso a todos comoveu, à exceção de um tal MacKenzie Hawkins; um determinado chefe do planejamento da Holly Rock chamado Scrimshaw, que se encontrava exausto e acabou dizendo que se contentaria, temporariamente, com uma cama pela qual não tivesse que pagar; um guinchante “Cruzador” Motoboto, que deixou bem claro que campos de prisioneiros em Hollywood não estavam inteiramente fora de questão; e, por fim, um rabugento sheik Mustacha Hafaiyabeaka, envolto em túnicas esvoaçantes, que fez comparações constantes e odiosas entre excremento de camelos e o dólar americano. Cada um deles tinha muitas esperanças de ser escolhido como a força produtora por trás do filme mais espetacular dos tempos modernos e todos, atônitos e sem fala frente aos seis extraordinários atores-comandos, concordaram sem reservas que eles seriam perfeitos no filme que ilustraria suas proezas. Só Greenberg deu uma sugestão: “Que tal um pouco de pele, amigos? Sabem como é, algumas garotas, só para que não haja perguntas, compreendem?” Os Seis Suicidas concordaram entusiasticamente, em especial Marlon, Sly e Dustin. — Grana de trinta e seis quilates! — cochichou Manny, ainda mais entusiasticamente.

Foram distribuídos cartões de visita, mas Hawkins foi bem claro: nenhuma decisão seria tomada antes do início da semana seguinte. Quando o último dos concorrentes foi embora — ou seja, o rabugento décimo segundo filho do sheik de Tizi Ouzou, pela sua vigésima segunda esposa —, MacKenzie virou-se para sua Força Delta de elite e fez seu julgamento. — Foram grandes, cada um de vocês. Eles ficaram hipnotizados, foram pelos ares, arrancados de suas tocas... conseguiram!

— Além do fato de termos apresentado um espetáculo bem bom — disse o erudito Telly —, não sei exatamente o que fizemos.

— Será que perdeu seu colete antiaéreo, filho? — interrompeu Hawkins, espantado. — Será que não ouviu o que eles disseram? Eles querem tanto este projeto que chegaram a dizer asneiras!

— Bem — observou Dustin —, eu ouvi muito barulho, muitos gritos e súplicas e sobretudo o Sr. Greenberg chorando, ele foi particularmente eficaz, lembrando um coro grego, mas não estou certo do significado de tudo o que aconteceu.

— Não vimos ninguém puxando um contrato para assinarmos — disse Marlon.

— Não queremos nenhum contrato. Ainda não.

— Quando é que termina esse “ainda”, General? — perguntou Sir Larry. — É que nós já passamos por tudo isso antes. Há sempre muita conversa, mas bem poucas folhas de papel. O papel constitui um compromisso, General; o resto não passa de... bem de... conversa.

— Se bem me lembro, senhores, as negociações devem ficar por conta dos negociadores. Nós somos o lado criativo; nós fazemos e eles regateiam.

— Quem é que negocia por nós, se alguém realmente nos quiser... peregrino?

— Bem lembrado, Duke. Talvez seja melhor eu dar um telefonema.

— Eu pago — disse Sly.

Mas foi o telefone do Waldorf-Astoria que tocou. O Hawk atravessou a sala até a mesa.

— Sim, quem fala?

— Queridinho, não pude esperar mais! Como vai tudo?

— Ah, olá, Ginny, correu tudo bem, mas como os rapazes estavam me explicando, podemos ter um problema.

— Manny?... Você não o matou, não é, Mac?

— Que diabo, não. Para falar a verdade, os rapazes até que gostaram dele.

— A história do choro, hein?

— Acertou.

— Ele é muito bom nisso, o filho da mãe... Então, qual é o problema?

— Bem, como dizem os homens, é ótimo que os abutres tenham gostado de nós ou, pelo menos, que tenham fingido que gostaram, mas como conseguir alguma coisa no papel...

— Já está tudo combinado, Mac. A agência William Morris está tratando de tudo com o pessoal bem do topo. Os próprios Robbins e Martin.

— Robbins e Martin? Parece uma loja chique de artigos de homens.

— É chique sim e todos nós deveríamos ter a esperteza que eles têm, queridinho. Não se trata apenas de esperteza, eles falam um inglês que todos conseguem compreender, e não o que se fala em Hollywood. É por isso que confundem todo mundo e levam a grana para casa. Eles começarão a trabalhar quando eu lhes disser.

— Diga-lhes para começarem a trabalhar no início da semana que vem, certo, Ginny?

— Claro. Onde você vai estar e quem apareceu aí, além de Manny?

— Espere um pouco, tenho aqui os cartões deles — o Hawk pegou os cartões da mesa e leu-os para a ex-esposa.

— Não apareceu um estúdio maluco da Geórgia ou da Flórida? Claro que nenhuma empresa legalmente constituída do Sul negociaria com eles, mas têm diversas catedrais cheias de dinheiro e podem fazer subir os lances.

— Tenho uma ideia. Talvez eles se metam numa encrenca hoje à noite, em Washington.

— O quê?

— Esqueça, Ginny.

— Eu conheço esse tom de voz; já esqueci. E agora você. Onde vai estar?

— Ligue para Johnny Nariz de Bezerro na reserva Wopotami, perto de Omaha, ele saberá dizer onde pode me encontrar. Anote o número dele. — Hawkins deu-lhe o número. — Já anotou?

— Claro, mas o que é um Nariz de Bezerro e que diabos é um Wopotami?

— Ele faz parte desse povo oprimido e privado de direitos civis.

— Seus moinhos de vento, Mac?

— Fazemos o que podemos, minha jovem.

— Quem é, desta vez, querido?

— Maus protetores da República, de comportamento muito ruim.

— Ah, os merdinhas de D. C.?

— E os seus antepassados de há cem anos, Ginny.

— Que delícia!... Mas como conseguiu envolver Sam nisso?

— Ele é um homem de princípios, muito mais maduro do que antes e com nove filhos... conhece bem a diferença entre o certo e o errado.

— Nove? Pensei que você tivesse dito sete!

— Eu me confundi, mas posso garantir que ele também. Mas se tornou um homem muito mais tolerante.

— Foi exatamente o que eu quis dizer! Como o convenceu a voltar? Esse belo rapaz achava que você é Ali Baba e os quarenta ladrões caminhando juntos sobre duas pernas...

— Bem, como já disse, ele mudou, amadureceu com os anos. Provavelmente isso tem a ver com seu ar abatido e a artrite que o faz andar meio encurvado... Acho que nove filhos fariam com que isso acontecesse a qualquer um — disse MacKenzie.

— Graças a Deus que ele se recuperou da paixão pela Annie. Todas nós estávamos muito preocupadas com ele... Mas sete filhos... nove? O que a mulher dele faz, tem dois ou três de cada vez?

— Bem, nós realmente não... — Para a sorte de MacKenzie Hawkins, houve várias interferências na linha, surgindo depois a voz excitada da telefonista.

— Suíte 12A, tenho uma chamada de emergência! Por favor, termine a conversa para que eu possa transferir.

— Adeus, Ginny, entramos em contato mais tarde. — MacKenzie bateu o telefone e segurou-o no descanso; tocou três segundos depois e ele levantou-o de novo. — Suíte 12A. Quem fala?

— Redwing, seu monstro pré-histórico! — berrou Jennifer, diretamente de Swampscott, Massachusetts. — Sam ouviu a fita do Brokemichael ontem à noite e foi preciso que Cyrus, Roman e os dois Desis o segurassem! Por fim, Cyrus conseguiu enfiar praticamente uma garrafa inteira de uísque dentro dele...

— Quando passar o efeito ele voltará a seu juízo normal — interrompeu The Hawk. — É o que sempre acontece.

— É simpático de sua parte dizer isso, mas é claro que nunca saberemos.

— O que aconteceu?

— Ele desapareceu!

— Impossível! Com meus ajudantes, Roman Z e o coronel aí?

— Esse filho da mãe sabe se esgueirar, Rabo de Trovão. A porta do quarto estava fechada e pensamos que ainda estivesse dormindo, mas depois, cinco minutos atrás, Roman, que estava patrulhando a praia, notou uma lancha passando a uns quinhentos metros da costa e viu um vulto sair das dunas correndo, cair na água e subir a bordo!

— Sam?

— Os binóculos não mentem e a visão do Roman Z deve ser muito boa, a julgar pelo seu longo currículo.

— Droga, lá vai ele de novo! É a Suíça tudo outra vez!

— Quer dizer, quando o Sam tentou detê-lo...

— E quase conseguiu, o diabo do rapaz! — reclamou The Hawk, revolvendo furiosamente os bolsos à cata de sua chupeta, ou seja, de um charuto mutilado. — Ele deve ter telefonado para alguém.

— É óbvio, mas quem?

— Como eu saberia? Não o vejo há anos... ainda assim, o que ele pode fazer?

— Ontem à noite ele ficou o tempo todo berrando contra os manipuladores em posições importantes, os corruptos que estão vendendo o país e que deveriam ser denunciados e disse que era isso mesmo que ele ia fazer...

— Pois é, ele se preocupa muito com esse tipo de coisa. Acredita mesmo nisso.

— E você, não? Acho que o ouvi dizer praticamente a mesma coisa no Ritz-Carlton, General.

— Acredito, mas há um tempo e um lugar certos para se agir de acordo com esses princípios e não é agora!... No entanto, o que ele pode realmente fazer? Um advogado histérico de olhos congestionados e roupa molhada, correndo para um jornal, como ele sugeriu, e uma história como a nossa? Eles não têm nenhuma forma de confirmar; telefonariam para um hospital ... psiquiátrico pedindo para buscá-lo.

— Acho que não contei um detalhe — disse Jennifer.

— O quê?

— Ele está com a fita do Brokemichael.

— Por Sherman em Atlanta, você deve estar brincando, senhora pele-vermelha!

— Com todo o meu coração pele-vermelha, eu gostaria de estar. Não conseguimos encontrá-la em parte alguma.

— Pelas santas pistolas de Georgie Patton! Ele pode acabar com tudo. Temos que detê-lo!

— Como?

— Chame os jornais de Boston, as estações de rádio e de televisão e diga-lhes que um lunático fugiu da maior instituição psiquiátrica de Massachusetts.

— Não vai adiantar grande coisa quando ouvirem a fita. Primeiro mandarão fazer cópias; em seguida, exames de impressões vocais para comparar com as do seu amigo Brokemichael, recolhendo-as de gravações dos noticiários ou mesmo de chamadas telefônicas.

— Eu ligo para o Brokemichael e digo a ele para ficar longe do telefone!

— O telefone...? — disse Jennifer, pensativa. — É isso! Todas as companhias telefônicas têm listas computorizadas de todos os números chamados; é um procedimento padrão para emissão das faturas. Tenho certeza de que o Sr. Pinkus pode conseguir um mandado.

— Para quê?

— Para sabermos o número para o qual Sam ligou, quando telefonou daqui, do Birnbaum! À exceção da ligação desta manhã, ninguém mais usou o telefone.

— Alguém usou, e seu nome é Devereaux.


Graças às exemplares relações de Aaron Pinkus com as autoridades, a sugestão de Redwing foi prontamente efetivada.

— Fala o Tenente Cafferty, do Departamento de Polícia de Boston. Temos a informação que procura.

— Muito obrigado, Tenente Cafferty. Se não fosse uma emergência, não teria abusado da sua gentileza, recorrendo a seus serviços.

— Ora, advogado, não deu trabalho nenhum. Afinal de contas, todos os anos, no jantar anual do departamento, come-se “carne de conserva com couve à Pinkus”.

— Uma contribuição insignificante, comparada aos serviços que prestam a nossa querida cidade.

— Bem, pode ligar a qualquer hora... Aqui está o que conseguimos na companhia telefônica. Durante as últimas doze horas houve apenas quatro telefonemas feitos do número de Swampscott, tendo o último ocorrido há seis minutos, para a cidade de Nova York...

— Sim, temos conhecimento desse, Tenente. Os outros três, por favor.

— Dois foram para sua casa, Mr. Pinkus. O primeiro às seis e trinta e três da tarde de ontem e o outro hoje de manhã...

— Ah, sim, eu queria falar com Shirley, minha esposa. Esqueci.

— Todos aqui conhecemos sua patroa, e sabemos que grande senhora ela é. Tão alta e graciosa, sir.

— Alta? Não, na realidade ela é até bem baixa. Deve ser o penteado. Deixe para lá, qual foi o quarto telefonema, por favor?

— Foi feito para um número que não consta da lista, às sete e doze da manhã de hoje, para a residência de Geoffrey Frazier...

— Frazier — interrompeu Aaron involuntariamente. — Que coisa extraordinária...!

— Ele é muitas coisas, se não se importa que eu diga, Mr. Pinkus, inclusive um grande chato, desculpe a linguagem.

— Tenho certeza de que o avô dele diz coisas bem piores, Tenente Cafferty.

— Ah, eu já falei com ele, sir! Sempre que trancamos o rapaz na cadeia, o velho pede para ficarmos com ele mais alguns dias.

— Muito obrigado, Tenente, ajudou muito.

— Sempre às ordens, sir.

Aaron desligou o telefone e lançou um olhar irônico para Jennifer.

— Pelo menos sabemos como Sam encontrou a fita; ele usou a linha privativa de Sidney no estúdio. Foi onde a passamos ontem à noite.

— Mas não foi isso que o chocou, ou foi? É alguém chamado Frazier, não é?

— Exatamente. Um dos mais encantadores, eu poderia mesmo dizer adoráveis, homens que já conheci. Uma pessoa totalmente simpática, cujos pais morreram há alguns anos, quando Frazier Senior tentou aterrissar seu hidroavião na Grand Corniche de Monte Carlo. Geoffrey foi colega de turma de Sam em Andover.

— Aí está por que ele ligou.

— Duvido. Sam não odeia ninguém, isso não está em sua personalidade, realmente, nem mesmo MacKenzie Hawkins, como você viu. Mas ele desaprova, desaprova profundamente.

— Desaprova... em que sentido e por que esse Frazier?

— Porque Geoffrey abusou de seus privilégios, desperdiçou-os. Ele é um alcoólico funcional cujo único propósito na vida é perseguir o prazer e evitar a dor... E, decididamente, Sam não precisa de um homem assim.

— Precisou hoje, há uns dez minutos, na praia.

— O general tem razão, temos que detê-lo! — disse Aaron subitamente, voltando para o telefone.

— Como?

— Se soubéssemos para onde ele foi com a lancha, teríamos uma pista por onde começar.

— Ele pode ter ido a qualquer lugar...

— Não, não é bem assim — disse Aaron. — As coisas mudaram aqui no litoral; a Guarda Costeira e a Polícia Marítima estão em alerta constante, não só por causa dos navegadores negligentes, mas também por causa das pessoas que trazem substâncias ilegais por intermédio de outra embarcação ancorada mais ao largo. Os que têm casa na praia são alertados para relatar qualquer atividade suspeita na área marítima em frente a suas residências.

— Então alguém já pode ter ligado — interrompeu Jennifer. — A tal lancha veio até a costa.

— Sim, mas Sam embarcou, ninguém ficou em terra.

— Teríamos então a síndrome do por-que-me-envolver? — concluiu Jennifer.

— Exatamente.

— Então, por que não chamamos a Guarda Costeira?

— Eu chamaria num segundo, se soubesse que tipo de barco era, ou qual seu tamanho, modelo ou cor, ou ainda a marina onde fica ancorado — Pinkus pegou o telefone e acrescentou, enquanto discava: — Mas acabei de me lembrar que sei de uma outra coisa, uma outra pessoa.


Um dos pontos mais elevados e isolados de Boston é um pedaço de terreno no alto da Colina Beacon, chamado Praça Louisburg. É um conjunto de elegantes residências construídas originariamente na década de 1840, com um parque pequeno e muito bem cuidado, delimitado na extremidade norte por uma estátua de Colombo e no sul por um monumento a Aristides, o Justo. Não é isolado fisicamente, é claro: a correspondência precisa ser entregue, o lixo precisa ser recolhido e os criados que lá trabalham de dia precisam chegar lá da melhor maneira que puderem, sem deixar seus veículos velhos entre Rolls-Royces, Porsches e outras imitações americanas desses carros que caíssem nas graças dos proprietários de Louisburg. Esses proprietários, contudo, são demograficamente semidemocratas — com “d” minúsculo, presumivelmente —, pois há dinheiro muito, muito antigo, dinheiro antigo, dinheiro de primeira geração e dinheiro ganho recentemente. Há herdeiros, corretores da Bolsa, advogados, diversos administradores de sociedades e médicos, especialmente um médico que é um importante romancista americano e a quem a classe média gostaria de pôr em estado de coma, mas não consegue, pois ele é muito bom em ambas as profissões.

Questões demográficas à parte, só um telefone tocou nesse momento e foi na casa decorada com muito bom gosto e com o dinheiro mais antigo de Boston, designadamente, a residência de R. Cookson Frazier. No mesmo instante em que o telefone tocou, o idoso e ativo cavalheiro, vestido com calções de ginástica vermelhos, manchados de suor, lançou com precisão uma bola ao pequeno cesto que ele mandara construir no andar superior da casa. Com os tênis rangendo na madeira dura do piso, voltou-se com ar interrogativo para o sítio de onde vinha aquela intrusão estridente. A indecisão momentânea terminou quando ele se lembrou, ao terceiro toque, que a sua governanta fora ao mercado. Enxugando a testa sob o cabelo branco, caminhou até o telefone de parede.

— Sim? — disse, parcialmente sem fôlego.

— Sr. Frazier?

— É o próprio.

— Fala Aaron Pinkus, Sr. Frazier. Já nos encontramos várias vezes, a última foi no baile de caridade do Museu Fogg, creio.

— Foi sim, Aaron, e por que o “Sr. Frazier”? Você é quase tão velho quanto eu e ambos concordamos que você não aparentaria a idade que tem se fizesse mais exercício.

— É verdade, Cookson, é verdade. Parece que nunca há tempo suficiente.

— É possível que não haja, mas provavelmente você vai ser o homem mais rico do cemitério.

— Há muito tempo que desisti dessas ambições.

— Eu sei, só o irrito por estar suando como um porco, o que é uma pobre metáfora, disseram-me que os porcos não suam... O que posso fazer por você, meu velho?

— Receio que tenha a ver com seu neto...

— Você receia? — interrompeu Frazier. — Pois eu estou aterrorizado! O que é agora? — Pinkus começou a contar a sua história, mas em oito segundos, à menção de uma lancha, o velho interrompeu-o, gritando triunfantemente. — É isso mesmo! Peguei-o!

— Como é, Cookson?

— Posso colocá-lo fora de circulação!

— O quê...?

— Ele não tem permissão legal para pilotar seu barco... nem seu carro, nem sua motocicleta, nem seu veículo de neve. Ele foi considerado ameaça em terra, mar e neve!

— Você o mandaria para a cadeia?

— Cadeia? Meu Deus, não. Mandaria para um desses lugares que podem consertá-lo! Meus advogados já tomaram todas as providências. Se ele for apanhado em qualquer violação, não havendo ferimentos ou ações indenizatórias, o tribunal me dará autorização para tomar minhas próprias medidas de custódia.

— Você quer interná-lo num sanatório?

— Prefiro usar outro termo, como “centro de reabilitação” ou qualquer outra palavra do tipo.

— Para pôr a questão nesses termos, ele deve tê-lo aborrecido para valer.

— Sim, sem dúvida, mas talvez não da forma que você pensa. Eu conheço esse rapaz e o amo extremadamente... meu Deus, ele é o último dos Fraziers homens!

— Compreendo, Cookson.

— Não creio que compreenda. Veja bem, seja qual for a sua personalidade, fomos nós, a nossa família, que o fizemos ser o que ele é, como eu fiz com o meu próprio filho. E o meu caso é muito pior, pois ao menos andava por aí, estava vivo. Mas, conforme disse, eu o conheço, e, por baixo daquela aparência de estúpido encantador, há um cérebro, Aaron! Há um outro homem embaixo do rapazinho mimado, sinto isso, creio verdadeiramente nisso!

— Ele é uma pessoa de quem é muito fácil gostar e certamente que eu não poderia contradizê-lo.

— Você não acredita em mim, não é?

— Não o conheço tão bem quanto você, Cookson.

— Os jornais e o pessoal da televisão acham que o conhecem, é evidente. Em cada confusão que se mete, lá vêm os rótulos: “Herdeiro de enorme fortuna preso de novo por embriaguez” e “Playboy de Boston, vergonha para a cidade”, et cetera, et cetera, et cetera.

— Aparentemente, esses fatos ocorreram.

— Claro que sim. Foi por isso que a notícia que você trouxe foi o maior presente que podia me dar. Posso agora exercer um controle sobre esse delinquente adulto.

— Como? A lancha está na água e nós não sabemos para onde ele vai.

— Você disse que ele parou na praia de Swampscott há cerca de vinte minutos.

— Ou talvez um pouco menos.

— O regresso à marina demoraria, pelo menos, quarenta ou quarenta e cinco minutos.

— E se ele não estiver indo para a marina? Suponha que ele vá para qualquer outro lugar?

— Ao norte de Swampscott, a doca mais próxima que abastece embarcações vindas de fora fica em Gloucester e essas lanchas bebem combustível como seis árabes num bule de chá. Gloucester fica a apenas meia hora.

— Como você sabe tudo isso?

— Fui comandante da Polícia Marítima em Boston por cinco períodos consecutivos; claro que sei tudo isso. Estamos perdendo tempo, Aaron! Tenho que ligar para a polícia e para nossos amigos da Guarda Costeira. Eles o encontrarão.

— Uma coisa, Cookson. A bordo está um associado meu chamado Devereaux, Samuel Devereaux, e é fundamental que ele seja detido pelas autoridades e entregue a mim.

— Problemas, hein?

— Não chega a ser grande coisa. A verdade é que o rapaz é impetuoso. Eu explico mais tarde.

— Devereaux? Tem alguma ligação com Lansing Devereaux?

— É filho dele.

— Era um excelente homem, o Lansing. Morreu cedo demais para um cara com a capacidade que ele tinha. Levou-me a vários investimentos lucrativos.

— Diga-me uma coisa, Cookson. Depois da morte dele, você entrou alguma vez em contato com a viúva?

— E como não o faria? Ele era o cérebro, eu não passava de um investidor menor. Transferi meus lucros para a conta dela. Como disse, podia ter sido de outra forma?

— Aparentemente sim, para um bom número de pessoas.

— Malditos sanguessugas... Tenho que desligar e fazer umas ligações, Aaron, mas agora que nos falamos, vamos marcar um jantar.

— Será um grande prazer.

— Com sua linda esposa, a Shelly... uma mulher tão alta e graciosa.

— O nome é Shirley e, na realidade, ela não é alta, é o seu... ah, deixe pra lá.


28

O céu ficou subitamente cinzento e as nuvens escuras se avolumaram na proporção direta do enfurecimento do oceano. Ao largo da costa de Massachusetts, Sam Devereaux agarrou-se à amurada de aço inoxidável da lancha, perguntando a si mesmo que espírito o teria possuído para chamar Geoff Frazier, um homem que ele detestava...

Bem, talvez “detestar” fosse forte demais. Ninguém que conhecesse o Frazie Doido1 — como às vezes o chamavam afetuosamente — poderia realmente detestá-lo, pois o “Cadete do Espaço” — como frequentemente era tratado — tinha o coração tão grande quanto a renda mensal que herdara, a qual Geoff Frazier daria de boa vontade a qualquer pessoa que estivesse em situação aflitiva. O que perturbava Sam nesse momento eram as manobras loucas de Frazier para abrir caminho entre as ondas monstruosas com sua lancha estreita de dois motores.

— Tem que ser assim, meu velho — gritou o sorridente piloto, o quepe de banda, um quepe de capitão cheio de bordados. — Essas casquinhas de noz podem virar se se você não enfrentar a onda primeiro.

— Quer dizer que podemos afundar?

— Para falar a verdade, não tenho certeza; isso nunca aconteceu! — Uma onda gigantesca varreu a lancha, por cima do para-brisa, encharcando os dois homens. — Sensacional, não é, amigo?

— Geoff, você está sóbrio?

— Talvez um pouquinho tocado, meu velho, mas isso não vai interferir — gritou Frazier. — A bebida faz sempre a pessoa se sentir melhor nessas tempestades repentinas! Dá-lhe uma vantagem sobre a natureza, entende o que eu quero dizer?... Está ouvindo, Devvy?

— Infelizmente, sim, Frazie.

— Não há razão para se preocupar. Às vezes, essas ondas desaparecem tão depressa como se formam!

— Quanto tempo?

— Não mais do que uma hora, mais ou menos — gritou Frazier, sorrindo alegremente. — O nosso único problema será encontrar uma bacia até lá.

— Uma bacia?

— Não posso avançar enquanto não encontrarmos um retiro aconchegante, por assim dizer.

— Explique melhor!

— Expliquei, meu velho. Uma enseada que reduza o vento e a água, e há muito poucas nesta costa.

— Vá em direção à praia!

— Há muitas pedras e quebra-mares, Devvy, e essas coisinhas não são as mais fáceis de controlar com este tempo.

— E se...?

— Esquece...

— Que diabo, para a praia! Há toda uma extensão de areia na nossa frente, sem uma pedra à vista, e eu tenho coisas importantes para fazer!

— Bem, rochas e bancos de areia não são os únicos obstáculos, meu velho — gritou Frazier. — Embarcações como esta invadindo propriedade privada não são exatamente visões bem-vindas e se olhar com mais atenção, verá que só há casas nas dunas!

— Entrou areia adentro meia hora atrás, em Swampscott!

— Lá embaixo, as pessoas como eu pagam por um pedaço de praia que nunca usam, só para que os vizinhos não possam nos ouvir ou poluir nossas águas. Além disso, todos conhecem a casa dos Birnbaums e qualquer pessoa que leia as colunas sociais sabe que eles estão nos leilões de bens imobiliários em Londres. Lá eu me arrisquei, Devvy, mas aqui não... não com esta tempestade e não com meus problemas passados!

— Que problemas...?

— Violações idiotas de regras de trânsito, meu velho. Nada que seja motivo de preocupação, mas há maçãs podres em todas as caixas com bom aspecto, sabe disso!

— Que maçãs? Que caixas? — urrou Sam, no mesmo instante em que duas vagas o cobriram, deixando-o completamente encharcado.

— A estúpida da Polícia Marítima do avô... delatores, todos eles, me odeiam porque minha lancha é mais rápida do que as deles!

— De que diabo está falando, Frazier? — Uma tremenda guinada que o fez voar e o subsequente choque em outra onda fizeram com que Devereaux largasse a grade; foi atirado no convés, agarrando o puxador de um pequeno armário e o arrancando. Com a força, sua cabeça foi empurrada para dentro do armário. — Socorro! — gritou Sam. — Estou preso!

— Não consigo ouvi-lo, Devvy, mas não se preocupe, meu velho! Já consigo ver a sinalização de Gloucester lá adiante. Como eles costumam dizer, “vermelho virar à direita”.

— Vermelho... mftt... mftt!

— Tem que falar mais alto, Devvy! Não consigo ouvir com este vento, mas ficaria muito grato se me abrisse uma garrafa de Dom Perry. Há uma caixa gelada no compartimento da popa, seja simpático, sim?... Basta fazê-la rolar pelo convés, como costumávamos fazer com as garotas de Holyoke, lembra? O movimento centrífugo faz perder apenas metade do precioso líquido. Física I-II no nosso querido e velho Andover! A coisa mais importante que já aprendi!

— Mftt... auu... aai! — guinchou Sam, puxando a cabeça para fora da reentrância do convés e ficando com um rolo de corda branca em volta do crânio. — Quer uma garrafa de champanhe, quando estamos no meio de um furacão? É maluco, Frazie, completamente maluco!

— Ora, deixe disso, amigo, isto é apenas uma forte tempestade, mais nada — o sorridente capitão, com a viseira do quepe de autoridade sobre a orelha direita, virou-se e olhou seu passageiro, que estava de bruços no convés e com a corda em volta da cabeça. — Ora, vamos lá, meu velho, essa é sua coroa de espinhos? — perguntou às gargalhadas.

— Não vou buscar champanhe e exijo que me leve para a praia ou eu pessoalmente tomo as providências legais para que seja declarado incapaz de pilotar em alto mar!

— A duzentas jardas de distância da costa?

— Sabes o que quero dizer! — No momento em que Devereaux se levantava, uma outra onda enorme abateu-se sobre seus ombros, atirando-o de novo no convés. — Frazier! — gritou Sam, agarrando-se mais uma vez à grade de aço inoxidável da amurada. — Você só se importa com você mesmo?

— O que, por si só, ou por mim só, é um vasto território, cara, mas é claro que sim. Eu me importo com velhos amigos que ainda me consideram amigo. Eu me importo com você, porque me chamou quando precisou de ajuda!

— Não posso negar isso — disse Devereaux, decidindo abrir o depósito de gelo da popa, pensando subitamente que Frazier, afinal, poderia precisar daquela “ligeira vantagem sobre a natureza”.

— Oh, oh! — trovejou o capitão da missão de salvamento de Swampscott. — Temos um problema, Devvy!

— O quê?

— Um daqueles delatores da polícia idiota do meu avô deve ter nos localizado!

— O quê?

— Há uma embarcação da G.C. atrás de nós, amigão! Vire-se para a popa e olhe!

— Mas que grande merda! — murmurou Sam entre dentes quando viu que, a algumas centenas de metros atrás deles, a proa de um barco-patrulha da Guarda Costeira com listras vermelhas vinha saltando sobre as ondas, afiada como uma lâmina. Depois, por entre as erráticas rajadas de vento, ouviu o som de uma sirene. — Eles estão tentando nos fazer parar? — berrou.

— Vamos pôr as coisas nesses termos, amigo, não é uma visita de cortesia!

— Mas eu não posso ser detido! — berrou Devereaux, abrindo uma garrafa e fazendo-a rolar sobre o convés. — Eu tenho que entrar em contato com as autoridades — a polícia, o FBI, o Boston Globe, alguém! Tenho de denunciar um dos mais poderosos homens de Washington, que fez uma coisa terrível! Eu preciso fazer isso! Se a Guarda Costeira ou alguém do Governo descobrir o que eu sei, vai querer me deter!

— Isso parece sério, rapaz! — gritou Frazier, com a voz levada pelo vento, por entre a espuma das ondas, enquanto apanhava a garrafa. — Mas eu tenho que fazer uma pergunta! Não está transportando pequenas pílulas ou pacotinhos de pó ou alguma coisa assim, está, amigo?

— Meu Deus, claro que não!

— É que eu tenho mesmo que me certificar disso, Devvy, por favor, tem que compreender!

— Acredite em mim, Frazie — berrou Sam, por cima dos trovões que agora se faziam ouvir na tempestade da Nova Inglaterra. — Estamos a falar de um homem que pode modelar a política nacional e que é considerado, depois do Presidente, o homem mais poderoso do nosso Governo! Ele é um mentiroso, um escroque e contrata assassinos! Tenho tudo aqui no meu bolso!

— É a confissão de alguém?

— Não, uma fita que confirma toda a conspiração!

— Isso é sério, não é?

— Leva-me até a praia, Frazie!

— Então sugiro que se segure mesmo, companheiro!

Os minutos seguintes, cujo número aproximado um histérico Devereaux nunca conseguiria determinar, foram gastos mergulhando, rodando e submergindo em todos os círculos do inferno de Dante. Frazie Doido tornou-se, subitamente, um Ahab maníaco, mas, em vez de tentar matar a grande besta, fazia o melhor que Deus lhe ordenava para evitar suas enormes mandíbulas. Como um satânico capitão do reino dos infernos, o sorridente Geoffrey, levando esporadicamente a garrafa de Dom Perignon aos lábios, chicoteava a máquina sob os seus pés para que obedecesse às suas ordens, enquanto fazia girar a roda do leme repetidamente para trás e para a frente, recorrendo à sua perícia para enfrentar e desviar-se das ondas furiosas que surgiam de todos lados.

O barco-patrulha, menos manobrável, seguia atrás, obviamente capitaneado por um oficial furioso da Guarda Costeira. Juntamente com a irrupção dos lamentos da sirene, ouviam-se ordens gritadas pelo alto-falante.

— Desliguem os seus motores e dirijam-se para a marca sete a noroeste! Repito, seu louco, marca sete e desligue essa merda!

— Melhor do que isto não conseguíamos — berrou o capitão Frazie Doido ao seu atônito passageiro. — Ele é bom tipo!

— O que estás a dizer? — gritou Sam. — Eles vão nos abordar com cutelos, facas e pistolas e vão nos prender!

— Eles vão me capturar, sem dúvida, meu velho, mas quanto a você, não capturam se fizer o que eu disser — Frazie não reduziu as rotações dos seus dois motores, mas continuou a enfrentar as ondas no sentido contrário ao da tempestade até a lancha ter tomado aproximadamente o rumo noroeste. — Agora ouça, Devvy! Não passo por aqui há algum tempo, mas essa história da “marca sete, fez agitar minha memória. Fica a cerca de cento e cinquenta jardas à esquerda de uma formação rochosa enorme que emerge da água, uma massa pequena de terra que corta o vento... os homens dos veleiros se queixam frequentemente dessa rocha, dizendo que são mais de cem metros de ar parado.

— Rochas? Ar parado?... Pelo amor de Deus, Frazier, estou lutando pela minha sanidade, pela integridade do meu país!

— Só um segundo, rapaz! — gritou o salvador de Devereaux, atirando a garrafa de champanhe de encontro à parte de cima do painel. — Quebrou a rolha, cara, está entalada no gargalo da garrafa! — Com o Dom Perignon de volta aos lábios, acrescentou: — Pronto, assim está melhor! O que disse, amigo?

— Oh, meu Deus, você é insuportável!

— Acho que já ouvi isso antes — as palavras de Frazier foram interrompidas por uma guinada a estibordo e pela subsequente chuva de espuma que caiu em seu rosto. — Porra! A água salgada nunca combinou bem com champanhe!

— Frazie...!

— Ah, sim, agora ouça, Devvy!... Quando atingirmos a marca sete, eu reduzo a velocidade na área mais calma... será o sinal para se preparar para abandonar a embarcação, por assim dizer.

— Tipo “homem ao mar“, onde esses fascistas que nos seguem poderão me pegar?

— Eu disse preparar, não executar...

— Pelo amor de Deus, use outros termos!

— Quando eu reduzir a velocidade, vá para estibordo, mas coloque-se por baixo da amurada. Eu acelero repentinamente o máximo possível e faço um arco bem largo a bombordo, levando-o até uns quarenta ou cinquenta metros da praia. Nessa hora, caia na água... a espuma vai ocultar seu desaparecimento, enquanto eu continuo oferecendo uma alegre perseguição a nossos comandos aquáticos!

— Meu Deus, Frazie! Faria isso por mim?

— Pediu minha ajuda, Devvy...

— Claro, mas foi porque eu sabia que tinha uma lancha rápida e... e... bem, eu mais ou menos pensei...

— Que o “Frazie Doido” podia ser exatamente o homem de que precisava, sendo ele o que era?

— Sinto muito, Geoff. Não sei realmente o que dizer.

— Não se preocupe, amigo, isso está muito divertido!

— Pode se meter numa grande encrenca, Geoff, e em nenhum momento eu considerei essa hipótese, palavra que não considerei!

— Claro que não. Você é a pessoa mais irritantemente sincera que já conheci. Segure-se aí, Devvy, estamos chegando.

Eles entraram no canal estreito que tinha a marca vermelha sete. A lancha reduziu a velocidade abruptamente, sobre águas mais calmas. A patrulha da Guarda Costeira se aproximou e ficou a menos de trinta jardas de distância.

— Preste atenção! — ouviu-se uma voz agitada vinda do alto-falante. Foi identificado como Geoffrey Frazier e seu passageiro é um homem chamado Samuel Devereaux e estão ambos presos. Faça parar o seu barco e três dos homens da minha tripulação abordarão sua lancha e tudo ficará sob seu controle.

— Geoff! — gritou Sam Devereaux, deitado de bruços no convés de estibordo. — Eu realmente não esperava que uma coisa dessas fosse acontecer...

— Cale-se, meu velho! Mais alguns momentos, assim que eles reduzirem a velocidade do barquinho deles, e eu acelero de novo e me lanço para a praia. Faço um sinal quando achar que já chegamos o mais perto possível da praia e, nessa hora, você escorrega para dentro da água. Entendeu?

— Sim e nunca esquecerei! Não só isso, vou defendê-lo no tribunal com todos os conhecimentos jurídicos que a Aaron Pinkus e Associados possa ter!

— Isso é muita consideração de sua parte, amigo... está bem, Devvy, aqui vamos nós!

Com estas palavras, a poderosa lancha lançou-se para a frente com tanta força que a sua proa ergueu-se acima da água, como uma garça a levantar voo. O ronco dos motores abafou todos os demais sons quando a lancha saiu da área protegida, entrando nas águas furiosas que estavam para além da marca sete. Nessa altura, fiel à sua palavra, Frazier iniciou uma larga curva para a esquerda, fazendo subir uma imensa cortina de espuma a estibordo, uma parede contínua de espuma densa e de água do mar que propiciava uma cobertura completa para qualquer atividade que se desenrolasse à frente ou atrás dela... como, por exemplo, um vulto de homem a rolar por cima da amurada para cair na água.

Foi isso, precisamente, o que um determinado, ainda que ansioso, Sam Devereaux fez, muito pouco animado pelas últimas palavras do seu capitão, gritadas enquanto acenava:

— Agora, meu velho e eu sei que vais conseguir. Tu fizeste parte da equipe de natação da escola!

— Não, Frazie! Era uma equipe de tênis! Eu não consegui entrar na equipe da natação!

— Ah, desculpa... e lá vais tu!

Fustigado pelas ondas, Sam manteve a cabeça meio submersa, enquanto o barco-patrulha da Guarda Costeira virava para a esquerda, perseguindo seu antigo colega de turma, com o alto-falante troando:

— Pode correr mas não conseguirá se esconder, seu filho da puta! Nós o pegamos desta vez... resistiu à prisão e bebeu enquanto pilotava o barco, pondo em risco irresponsavelmente a vida de seu passageiro, que também está preso! Nossa, vou espremer você!

Subitamente, ouviu-se o som de um alto-falante muito mais poderoso, vindo do barco de Frazier, que deixou Devereaux — que mal conseguia respirar —, ainda mais atônito. O barulho que dele saía era semelhante ao das sirenes dos navios de longo curso, amortecendo o som que provinha do outro alto-falante.

— ... que também está preso... um homem chamado Samuel Devereaux e estão ambos presos.

Presos? Ele estava preso? Tinha ouvido vagamente essas palavras quando estava agarrado ao convés, mas, histérico como estava, não as tinha interiorizado. Preso E tinham mencionado o seu nome! Oh, meu Deus, sou um fugitivo! Estavam à sua procura; provavelmente havia uma busca policial! Isso só podia significar que o Aaron, a Jenny, o Cyrus, o Roman e os dois Desis tinham sido apanhados e forçados a confessar tudo! Quanto a Mac, provavelmente fora executado!... E Jenny, o novo amor da sua vida... eles iriam magoá-la, talvez lhe fizessem coisas terríveis. Esses homens desesperados de Washington não se deteriam perante coisa alguma!

Muito bem, eles não tinham contado com Samuel Lansing Devereaux, advogado importante, vingador dos maltratados e flagelo dos corruptores por toda a parte! E ele tinha aprendido com um mestre — mal orientado, antediluviano, sem dúvida — mas, mesmo assim, um mestre! Mestre da mentira, do furto e de toda a espécie de truques, todos esses excelentes atributos que tinham feito dele o Soldado do Século! Sam usaria cada recurso tortuoso, cada truque nefando que aprendera com o Hawk para divulgar a verdade e libertar os seus companheiros. Não apenas para libertar os seus companheiros, mas também para livrar o seu país das garras desses insidiosos manipuladores. Não apenas para libertar seus companheiros e salvar o seu país, mas também para fazer com que a gloriosa Sunrise Jennifer Redwing entrasse na sua vida para sempre! E faria tudo isso com uma fita gravada, guardada de forma segura dentro de um saco plástico lacrado que encontrara na cozinha de Birnbaum e que agora se encontrava dentro do seu bolso mais fundo. Tossindo e engolindo água do mar, Devereaux lutou com todas as suas forças contra a corrente e as ondas que arrebentavam na praia. Tinha que pôr em funcionamento a parte inventiva do cérebro e, como Mac frequentemente deixara bem claro, precisava estar preparado para criar imediatamente alguma ficção que pudesse fundamentar fatos falsos, tipo “Que bom que consegui chegar à praia! Meu barco virou!”

— Ei, você aí! — gritou a adolescente que saíra de casa correr para felicitá-lo na beira d'água. — Aposto como está contente por ter chegado aqui, à terra, quero dizer. Seu barco virou no temporal?

— Sim... bem, sim, virou. O mar está bem difícil.

— Não sentiria tanto se estivesse num barco decente. E se estivesse num pot,2 bastaria que chegasse à marca sete.

— Menina, não tenho o hábito de fumar essas coisas.

— O quê?

— Não costumo usar o que você disse...

— Ah, refere-se ao pot? Meus conhecidos também não usam! Estava falando desses barcos que sujam a água com óleo e outras coisas.

— Ah, sim, claro! E que eu estou ainda um pouco desorientado. — Sam levantou-se com pouca firmeza nas pernas, metendo a mão no bolso onde estava a fita. Estava no mesmo lugar. — Acontece que estou com muita pressa...

— Aposto que sim — interrompeu a garota. — Quer ligar para sua marina ou para a Guarda Costeira ou, provavelmente, para sua companhia de seguros? Pode usar o nosso telefone.

— Você não está sendo um pouco confiante demais? — perguntou Devereaux, como o advogado que havia dentro dele exigindo a indagação. — Sou um estranho lançado pelo mar em sua praia.

— E meu irmão mais velho é campeão de luta livre da Nova Inglaterra. Lá está ele!

— Ah sim? — Sam ergueu os olhos em direção à casa. Um gorila de cabelo cortado à escovinha, rosto bonito e braços musculosos insolitamente compridos — que quase chegavam aos joelhos, se é que não os ultrapassavam — vinha a descer a escada que dava acesso à praia. — Belo rapaz.

— Ah, claro, todas as garotas são loucas por ele, mas espere só até que elas descubram!

— Descubram? — Devereaux teve a perturbadora sensação de que algum segredo terrivelmente íntimo da família estava prestes a ser divulgado. — Algumas pessoas são apenas diferentes, minha querida, mas todos somos filhos de Deus, conforme dizem os profetas. Seja tolerante.

— Por quê? Ele quer ser advogado! Será que isso é o cúmulo da loucura?

— É mesmo o cúmulo — murmurou Sam, quando o campeão de luta livre da Nova Inglaterra se aproximou. — Desculpem incomodar — disse Devereaux. — Meu... barco... não era suficientemente bom e virou.

— Provavelmente, o vento também contribuiu — disse simpaticamente o rapaz — e também é provável que seja seu primeiro barco.

— Como soube?

— É bem óbvio. Calça comprida, camisa listrada, meia preta e um mocassim marrom... só não sei como não perdeu esse.

Devereaux baixou os olhos para os pés. Realmente o lutador tinha razão, ele tinha apenas um sapato.

— Acho que foi idiotice minha, eu devia ter usado tênis.

— Topsiders — corrigiu a garota.

— Esqueci, naturalmente, e era meu primeiro barco.

— À vela? — perguntou o rapaz.

— Sim, à vela... com duas velas, uma grande e uma pequena na frente.

— Puxa — exclamou a irmã adolescente. — Não há dúvida de que era mesmo o primeiro barco dele, Boomer!

— Seja tolerante, menina. Todo mundo tem um primeiro barco. Eu tive que nadar para buscar seu primeiro Comet na marca três, lembra?

— Seu monstro, você prometeu...

— Acalme-se... Você pode entrar. Pode se secar e usar o telefone.

— Na realidade, estou com uma pressa terrível... Para ser franco, tenho que procurar as autoridades para falar sobre uma questão muito urgente e o telefone não vai adiantar nada. Tem que ser pessoalmente.

— Você é traficante? — perguntou o rapaz, rispidamente. — Com certeza não é marinheiro.

— Não, nada a ver com narcotráfico. Sou apenas um homem com uma informação e precisa transmiti-la com urgência.

— Tem alguma identificação?

— É necessário? Eu pago para me levar ao lugar aonde tenho que ir.

— É mesmo necessário que se identifique. Estou no ano preliminar de Direito na Tufts e isso está na disciplina de Procedimentos Iniciais Um. Quem é você?

— Está bem, está bem! — Sam enfiou a mão no bolso de trás e conseguiu extrair a carteira molhada, inchada. Não era provável que a caçada de que era alvo já fosse do conhecimento público; os canalhas de Washington eram cuidadosos demais para isso. — Aqui está a minha habilitação — acrescentou, entregando-a ao lutador.

— Devereaux! — exclamou o rapaz. — Samuel Devereaux?

— Então a notícia já saiu no rádio? — quis saber Sam, contendo a respiração, ao mesmo tempo em que tentava desesperadamente inventar uma ficção, conforme o Hawk ensinara. — Então eu preciso explicar o outro lado da história e você precisa me ouvir.

— Não soube de nada pelo rádio, mas vou ouvir tudo o que disser! Você acabou com aqueles juízes podres. É uma lenda viva, uma espécie de nova lenda, para todos que vamos estudar Direito. Arquitetou as acusações de prevaricação contra esses patifes, como num manual jurídico! E foram todos condenados!

— Bem, eu estava aborrecido...

— Mana, abrace esta fortaleza — interrompeu, com um sorriso alegre, o futuro advogado. — Quando o pai e a mãe voltarem, diga que saí de carro com um homem que vai estar na Suprema Corte, para levá-lo aonde ele quiser.

— Provavelmente o melhor seria irmos ao FBI — sugeriu imediatamente Sam. — Sabe onde fica o escritório local?

— Há um em Cape A. Aparece muito nos jornais... sabe como é, barcos de narcos.

— Quanto tempo para chegar lá?

— Não mais do que dez ou quinze minutos.

— Vamos!

— Tem certeza de que não quer entrar e vestir roupas secas? Meu pai é assim magrinho.

— Não há tempo. As questões em jogo são muito importantes, acredite em mim!

— Vamos embora! O jipe está lá na frente.

— Que doidice — disse a adolescente.


— Atchim!

— Saúde — disse Tadeusz Mikulski, agente especial do FBI, com a sua voz inexpressiva e o seu rosto inflexível a negar a bênção. Na verdade, enquanto estudava a estranha figura sentada à frente da sua secretária, um homem com um só sapato calçado, que estava nitidamente debaixo de uma grande tensão e cujas roupas molhadas faziam poças no chão, o agente Mikulski lembrou a si mesmo que se iria aposentar daí a oito meses, quatro dias e seis horas, não é que ele estivesse a contar o tempo. — Está bem, Mr. Devereaux — continuou, dirigindo o olhar para os vários documentos de identificação encharcados que foram retirados da carteira daquele. Vamos começar de novo.

— É Devereaux — corrigiu Sam.

— Olhe, Sr. Devereaux, eu falo inglês, polonês, russo, lituano, checo e, acredite ou não, finlandês, devido à influência estônica sobre a língua, mas o francês sempre me escapou. Talvez seja uma aversão natural. Minha mulher e eu passamos uma semana em Paris e ela gastou a maior parte do meu salário anual no tempo em que lá estivemos... Agora que já está explicado o meu erro, podemos começar tudo de novo?

— Quer dizer que nunca ouviu falar do meu nome?

— Tenho certeza de que a falta é minha, mas duvido também que tenha ouvido falar de Casimiro III, conhecido como Carlos, o Grande, Rei da Polônia no século quatorze.

— Está louco? — exclamou Sam. — Foi um dos mais brilhantes governantes-diplomatas do seu tempo! A sua irmã ocupava o trono da Hungria e ele aprendeu na corte o que precisava saber para unificar a Polônia. Os seus tratados com a Silésia e a Pomerânia foram modelos de prudência jurídica.

— Está bem, está bem! Então talvez eu tenha ouvido falar no seu nome ou tenha-o lido nos jornais.

— Não é isso que eu estou a perguntar, agente Mikulski-Devereaux inclinou-se para a frente na sua cadeira, deixando, infelizmente, escapar uma gotinha de água por entre os botões. — Estou falando da caçada — cochichou.

— O programa de televisão antigo?

— Não, estou falando de mim!... Tenho de presumir que ela tenha sido divulgada por esses canalhas de Washington, pois os meus companheiros foram obviamente aprisionados — talvez até mesmo torturados, para que descobrissem a história do barco do Frazier —, mas há ocasiões em que os subordinados precisam aprender a lição do “eu só estava cumprindo ordens!”... Não pode me prender, Mikulski, tem que ouvir antes o que tenho para contar e precisa ouvir a gravação que confirma tudo o que eu vou dizer!

— Você ainda não disse nada. Tudo o que fez foi molhar meu chão e perguntar se meu escritório tem microfones escondidos.

— Porque o braço desse governo conspiratório dentro-do-Governo é o mal personificado! Essa gente não se deterá diante de nada! Eles roubaram meio estado de Nebraska!

— Nebraska?

— Há mais de cem anos atrás!

— Cem... está brincando?

— Foi uma coisa trágica e obscena, Mikulski! Temos a prova e eles farão qualquer coisa para nos impedir de comparecer à Suprema Corte amanhã, para que sejamos considerados personae delectae!

— Ah, sim, isso — disse o agente do FBI, apertando uma tecla do telefone. — Prepare o serviço de psiquiatria — disse, em voz baixa.

— Não! — berrou Sam, puxando o saco plástico lacrado do bolso. — Ouça só isto! — pediu ele.

O agente Mikulski pegou o saco plástico que pingava sem parar, molhando profusamente o seu mata-borrão limpo, retirou a fita e colocou-a no gravador que tinha na mesa. Apertou o botão. Houve uma súbita erupção de ruídos, seguida de um esguicho circular de água que molhou os rostos de ambos os homens, ao mesmo tempo que a estreita fita preta rebentava, espalhando-se pela sala em pequenos fragmentos.

— Não acredito! — gritou Devereaux. — Misturei a linha amarela com a azul para conseguir o verde nesse saco e lacrei-o! Esses anúncios são uma treta!

— Talvez a sua vista não esteja lá muito boa — disse Mikulski — embora eu tenha de concordar com você. Não consigo congelar uma kielbasy numa dessas porcarias.

— Estava tudo ali... tudo! O general, o Secretário de Estado, toda a conspiração!

— Para roubar o Nebraska?

— Não, isso foi há cento e doze anos atrás. Os agentes federais queimaram o banco onde os tratados Wopotamis estavam guardados.

— Não fui eu, amigo. Nessa altura, os meus avós ainda estavam a atirar merda de vaca uns aos outros em Poznan... Woppa-o quê?

— Outro general, o meu general, reuniu tudo a partir do que encontrou nos arquivos.. para além dos registros que ele sabia que faltavam!

— Arquivos...?

— O Gabinete das Relações com os índios, naturalmente.

— Ah, sim, naturalmente.

— Veja, ele só conseguiu fazer isso porque há outro general com o mesmo nome do general que foi perversamente recrutado pelo Secretário de Estado. Ele se aposentou porque houve uma confusão de nomes quando eu deduzi umas acusações de tráfico de drogas contra seu primo...

— Por falar nisso — interrompeu Mikulski —, que marca de cigarros fuma?

— Estou tentando parar de fumar... também devia.... De qualquer forma, foi um grande erro e esse outro general foi nomeado para o Gabinete das Relações com os índios, e o meu general — que é amigo dele — conseguiu penetrar nos arquivos selados e redigiu uma petição baseada nesses documentos. Na realidade, é tudo muito simples.

— Sem dúvida alguma — concordou Mikulski inexpressivamente, acenando lentamente com a cabeça, com os seus olhos grandes fixos em Sam, ao mesmo tempo que a sua mão se deslocava, centímetro a centímetro, em direção à sua consola e ao intercomunicador.

— Está a ver, a tribo Wopotami podia ser proprietária de todo o território correspondente a Omaha e redondezas.

— Claro, claro... Omaha.

— O C.A.E., agente Mikulski! O Comando Aéreo Estratégico! De acordo com a lei, se a propriedade usurpada ilegalmente for reivindicada pelos legítimos donos, estes têm direito a quaisquer benfeitorias que tenham sido efetuadas na propriedade usurpada. Isto é básico.

— É realmente básico, ah, sim, é realmente básico.

— E porque certas pessoas corruptas no Governo se recusam a negociar, a sua intenção é eliminar todo e qualquer problema, impedindo a comparência dos recorrentes perante a Suprema Corte, que já admitiu a discussão da causa dos Wopotami e talvez possa vir a decidir a seu favor.

— Pode vir a fazer isso...?

— É inteiramente possível... a hipótese é remota, mas possível. Esses sacanas sujos de Washington contrataram um tipo chamado Goldfarb e juntaram os Quatro Sujos e os Seis Suicidas para nos deter!

— Um sujeito chamado Goldfarb...? — resmungou o fascinado Mikulski, fechando, momentaneamente, os olhos grandes e tristes.

... os Quatro Sujos e os Seis o quê?

— Enviamos os Quatros Sujos de volta para a sua base enfiados em sacos de transporte de cadáveres.

— O senhor matou-os?

— Não, Desi Arnaz II misturou soporíferos na comida e havia buracos nos sacos para respirarem.

— Desi Arnaz...? — O agente especial Mikulski não podia continuar; era um homem derrotado.

— Agora, com certeza que já está claro para você, ou pelo menos deveria estar, que devemos agir de forma rápida a fim de desmascarar o Secretário de Estado e todos os que o rodeiam e que querem negar, pela violência, os direitos fundamentais da tribo Wopotami!

Silêncio.

Por fim:

— Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Sr. Devereaux — disse, serenamente, o homem do FBI, usando para isso todos os recursos que lhe restavam. — O que é óbvio para mim é que o senhor é um homem que está num tal estado de perturbação que me é impossível ajudá-lo. Agora, temos três opções. Primeira, posso ligar para o hospital de Gloucester e recomendar tratamento psiquiátrico para si; segunda, posso telefonar para os nossos amigos do Departamento de Polícia e pedir que o levem preso até que aquilo por que o senhor tem estado a passar desapareça; ou, finalmente, posso esquecer que o senhor entrou no meu escritório encharcado, com um só sapato calçado e a inundar o meu chão, e deixá-lo ir embora, confiando em que os seus poderes imaginativos o conduzam até uns amigos que o possam ajudar.

— Não acredita em mim! — berrou Sam.

— Por onde quer começar? Pelo Desi Arnaz II e por um cara chamado Goldfarb? Ou pelos sacos com buracos para respirar e três generais que não durariam dois minutos no Pentágono sem serem enfiados em camisas de força?

— Tudo o que contei é verdade!

— Estou certo de que é verdade para você e lhe desejo tudo de bom. Além disso, se quiser, posso arranjar-lhe um táxi. O senhor tem dinheiro suficiente na carteira para ir de táxi até Rhode Island e a outra delegação do FBI fora deste estado.

— Está sendo negligente no cumprimento de seus deveres, agente Mikulski.

— Minha mulher diz o mesmo, no que respeita às contas. O que eu posso dizer? Sou um fracasso.

— O senhor é um burocrata chorão, com medo de enfrentar pessoas que querem deitar para o lixo as leis e os direitos constitucionais do nosso país!

— Ei, o senhor tem o Desi Arnaz, esse tal Goldfarb e dois generais malucos. Para que precisa de mim?

— O senhor é uma vergonha.

— Está bem, aceito isso... Agora, a menos que vá limpar o meu chão e enxugar a minha mesa, por favor, desapareça daqui, está bem? Tenho de trabalhar. A turma do primeiro ano da escola secundária de Cape A“ vai fazer uma marcha sobre a Câmara Municipal, a exigir direitos de voto iguais.

— Que graça, que graça!

— Eu também achei muito engraçado.

— Pois não teve graça nenhuma e não preciso da sua ajuda para o meu transporte. Acontece que o meu motorista é o campeão de luta livre da Nova Inglaterra!

— Se está vendendo bilhetes, compro um, se fizer o favor de ir embora — disse o agente do FBI, reunindo as coisas de Devereaux e as entregando.

— Não esquecerei disso, Mikulski — retorquiu Sam, levantando-se com toda a dignidade gotejante que lhe era possível aparentar naquelas circunstâncias, já que estava só com um pé de sapato. — Como profissional de tribunal, tenciono mover uma ação contra o Departamento de Justiça. Sua negligência não pode ser tolerada.

— Faça isso, amigo, veja é se não escreve errado o nome, está bem? Não vamos querer uma confusão como a que armou com esses dois generais, ou vamos? Há muitos Mikulskis por aqui.

— Acha que sou louco, não é?

— Os médicos é que devem dizer isso, não eu, mas, para ser franco, inclino-me nesse sentido.

— Vai ver só! — disse Sam, o Vingador, virando as costas e mancando para a porta, escorregando duas vezes no chão molhado. — Vai ter notícias minhas! — acrescentou, batendo a porta atrás de si.

Infelizmente, o agente especial Mikulski teve mesmo notícias de Sam, precisamente três minutos e vinte e um segundos após sua saída. O homem do FBI engolia sua quarta dose de Maalox, quando a linha principal da consola tocou; ele apertou o botão e pegou o telefone.

— Mikulski, FBI.

— Olá, Teddy, é Gerard, aqui da base — disse o comandante do posto da Guarda Costeira do 10º Distrito de Massachusetts.

— O que posso fazer por ti, marinheiro?

— Estou ligando com o palpite de que talvez possa me dar informações sobre o alerta Frazier-Devereaux.

— O quê...? — perguntou o agente especial, com uma voz que mal se ouvia. — Devereaux, você disse?

— Isso mesmo, pegamos esse doido bêbado do Frazier, mas não o Devereaux, e o Frazier não quis abrir o bico. Deu um sorriso imbecil e fez sua ligação.

— “Não quis”? “Deu”?... Pretérito perfeito?

— É tudo uma maluquice, Teddy. Tivemos que libertá-lo e é isso que não conseguimos compreender. Afinal, o que foi esse alerta estúpido? Quase derretemos um motor, perdemos três homens num bote salva-vidas e batemos em três boias, que vamos ter que pagar, e tudo para nada! Devereaux desapareceu e nem ao menos sabemos por que o procuravam. Pensei que vocês, federais, poderiam informar.

— Nem chegamos a receber o alerta — disse Mikulski, desanimado. — Conta-me o que aconteceu, Gere — o comandante Gerard assim o fez e o agente federal empalideceu, esticando o braço para chegar ao seu Maalox. — Esse filho da puta do Devereaux acabou de sair daqui há uns cinco minutos. O homem é maluco! Que diabo é que eu fiz?

— Se não recebeu o alerta, não fez nada, Teddy. Expedimos nosso relatório por telex e foi tudo o que pudemos fazer... Aguente aí, acabo de receber um bilhete. Um rapaz chamado Cafferty, da polícia de Boston, está ao telefone. Conhece-o?

— Nunca ouvi falar.

— Espere um momento. O maldito alerta teve origem na polícia de Boston! Vou dar a esse filho da mãe uma salva de artilharia de que ele nunca se esquecerá! Falamos mais tarde, Teddy.

— Oito meses, quatro dias, cinco horas e meia — resmungou Mikulski, abrindo a gaveta e olhando o calendário onde assinalava o tempo que faltava para sua aposentadoria.

 

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1 No original, Crazie Frazie. (N. T.)

2 Pot pode ser penico ou marijuana, entre outras coisas. (N. T.)


29

O campeão de luta livre da Nova Inglaterra conduziu seu jipe pelo acesso à casa dos Birnbaum em Swampscott.

— Chegamos, Mr. Devereaux. Já tinha visto esta casa do mar, mas nunca de perto. Um autêntico espanto, não acha?

— Eu o convidaria para entrar, Boomer, mas a conversa vai ser bem pesada e muito confidencial.

— Aposto que vai! Você vem dar na nossa praia, depois o FBI, depois aqui... nossa, cara. Mas pode confiar em mim, eu não estava fazendo insinuação nenhuma, palavra. Vou desaparecer rapidamente e se alguma autoridade me perguntar, nunca o vi.

— Bem colocado... falando em termos jurídicos. No entanto, insisto em pagar.

— De jeito nenhum, Mr. Devereaux, foi uma honra. Mas, se não se importa, tomei a liberdade de escrever meu nome, para o caso de, em alguns anos, talvez, considerar a hipótese de me admitir como seu escriturário. Sem privilégios especiais, eu não quereria isso.

— Não, acho que não quereria, Boomer — disse Sam, pegando o papel e perscrutando os olhos claros e ansiosos do estudante que se preparava para a Faculdade de Direito. — Mas se eu quiser concedê-los, você não poderá fazer nada.

— Desculpe, mas tenho que ser bom. Aprendemos isso no treino de luta.

— Então deixe-me dizer-lhe uma coisa: com essa afirmação, você não terá que nos procurar, nós o encontraremos... Obrigado,

— Boa sorte! — Devereaux saltou do jipe, que fez deu ré e desapareceu pelo portão. Olhou para a fachada imponente da casa de praia dos Birnbaum, respirou fundo e subiu o caminho que ia dar na porta de entrada. Tudo seria muito mais simples se tivesse os dois sapatos, ponderou, enquanto tocava a campainha.

— Macacos me mordam! — berrou o enorme mercenário químico, Cyrus, ao abrir a porta. — Não sei se o abraço ou mato, mas vamos, entre, Sam.

Devereaux arrastrou-se com dificuldade para o foyer; todos repararam em suas roupas sujas, no cabelo emaranhado e no pé sem sapato. Esse “todos” consistia em Cyrus, Aaron Pinkus... e no grande amor de sua existência eterna, Jennifer Redwing, que ficou olhando para ele em pé, na outra ponta da sala. O que havia nos seus olhos alertas — zangados? — ele não sabia dizer.

— Sammy, nós soubemos de tudo! — gritou Aaron, que raramente gritava, se é que isso jamais acontecera, levantando-se do sofá, que contornou com agilidade para saudar seu funcionário, agarrando seus braços e colando a cabeça branca na bochecha esquerda de Sam. — Graças a Abraão, você está vivo!

— Não foi assim tão difícil — disse Devereaux. — Frazie pode ser doido, mas sem dúvida que sabe pilotar uma lancha... além disso, teve esse menino que foi campeão de luta livre da Nova Inglaterra...

— Nós sabemos pelo que você passou, Sammy! — exclamou Pinkus. — Tanta coragem, tanta ousadia... Tudo porque decidiu agir de acordo com seus princípios!

— Foi burrice, Devereaux — disse Cyrus —, mas você tem coragem, homem, reconheço isso.

— Onde está a mamãe? — perguntou o vingador, evitando os olhos de Jenny.

— Ela e Erin voltaram para Weston — respondeu Aaron. — Parece que a prima Cora caiu dentro de uns bules de chá.

— E os dois Desis patrulham a praia com Roman Z — acrescentou Cyrus.

— Eles deixaram passar o jipe de Boomer, o carro em que eu estava — disse Sam, deixando transparecer sua reprovação.

— Não exatamente — contestou o mercenário. — Por que que você acha que eu estava na porta? Desi-Um comunicou pelo rádio que o loco alto estava de volta.

— Ele sempre teve jeito com as palavras — disse Devereaux, virando lentamente a cabeça e olhando para Jenny. — Olá — disse cautelosamente.

Foi como um minueto filmado em câmera lenta, enquanto Aaron Pinkus e Cyrus M se afastavam discretamente. Com os olhos marejados de lágrimas, Sunrise Jennifer Redwing atravessou correndo o hall coberto de tapetes, ao mesmo tempo em que Sam descia galantemente, ainda que sem muita firmeza, os degraus de mármore da sala. Devereaux ficou parado e ela correu para seus braços. Abraçaram-se e seus lábios se encontraram numa agonia e num deleite intensos.

— Sam — gritou ela, abraçando-o com força. — Oh, Sam, Sam, Sam! Foi tudo como na Suíça, não foi? O Mac me contou! Você fez o que fez porque sabia que era o certo, legal e moralmente certo! Pular de uma lancha e nadar quilômetros e quilômetros no meio de um temporal! Deus, eu te amo!

— Bem, não foram tantos quilômetros assim, talvez só uns quatro ou cinco...

— Mas você fez! Estou tão orgulhosa!

— Não foi nada.

— Foi tudo!

— Fracassei. A fita se afogou.

— Mas você não, querido. Você não se afogou!

Subitamente, houve uma erupção de estática e ouviu-se uma voz hispânica grasnando no rádio de Cyrus.

— Ei, mamãe! Uma limusine enorme está se aproximando rapidamente da casa! Quer que a exploda?

— Ainda não Desi! — — ordenou o mercenário. — Cubra a porta; você, Roman, venha para a frente, todas as armas prontas para disparar!

Momentos mais tarde, a voz de Roman Z, com o seu sotaque caraterístico da Europa Central, pôde ser ouvida:

— É apenas um homem de cabelo branco caminhando para a porta. Seu motorista está ouvindo música dentro do carro. Uma música horrorosa.

— Atenção — ordenou Cyrus, tirando a arma do coldre. Se eu tiver que atirar, avancem em convergência.

— O que é isso? Você entendeu?

— Sem problema. Com certeza que o velho não vai enfiar a mão no bolso para pegar uma pistola.

— Fora. Estado de alerta!

— Alerta o quê...?

— Fora!

— O quê...?

A campainha da porta tocou no preciso momento em que Cyrus sinalizava para que Pinkus, Jenny e Devereaux se afastassem de uma possível linha de fogo. Cyrus escancarou a porta, com a arma a seu lado, mas quem olhava para ele era um pacato cavalheiro alto, magro e idoso.

— Você é o mordomo, presumo — disse R. Cookson Frazier, não deixando que sua cortesia genuína fosse minimamente posta em causa pela ansiedade. — Preciso ver imediatamente seu patrão, é assunto da maior urgência.

— Cookson! — exclamou Aaron Pinkus, saindo de trás de uma janela com cortina. — O que você está fazendo aqui?

— É inacreditável, Aaron, absolutamente inacreditável! — disse Frazier, balançando um papel enquanto descia correndo os degraus de mármore, os braços erguidos em apoplética incredulidade. — Você e eu e toda a cidade de Boston fomos enganados, meu velho, completamente enrolados!

— Explique-se melhor, Cookson.

— Veja isto! — De repente surgiram os vultos enlaçados de Jennifer e Sam, vindos de um canto obscurecido da sala, o mais afastado do lado direito. — Quem são eles? — berrou Frazier.

— O jovem com apenas um sapato e a roupa em triste estado é Samuel Devereaux, Cookson...

— Ah, o filho do Lansing. Era um homem muito bom, seu pai. Que pena ter sido afastado do nosso convívio tão cedo.

— E nossa amiga é Jennifer, Jennifer Redwing... Cookson Frazier.

— Que lindo bronzeado, minha filha. É do sol do Caribe, com certeza. Tenho uma casa em Barbados... acho. Você e o filho do Lansing precisam ir lá passar uns bons tempos... há anos que não vou lá.

— O que é tão inacreditável, Cookson?

— Como eu disse, olhe isto! — o velho cavalheiro exibiu o papel. — Isso aqui chegou a minha casa por um fax que tem linha que não pode ser interceptada e não tem memória, de acordo com Washington... um momento só, meu velho, todo mundo aqui é de confiança?

— Tem minha palavra, Cookson. O que diz aí?

— Leia você. Ainda estou em estado de choque.

Aaron pegou o papel fino do fax, examinou o texto e, lentamente, sentindo-se confuso, foi se deixando cair na poltrona mais próxima.

— Está fora da minha compreensão — disse.

— O que é? — indagou Devereaux, um braço protetor nos ombros de Jennifer.

— Diz o seguinte: “Este comunicado é altamente secreto e deve ser destruído após leitura cuidadosa, restrita aos mais altos escalões governamentais. Geoffrey C. Frazier, nome de código Rumdum, é um agente secreto altamente eficiente e muito condecorado que trabalha para o Governo Federal. Age, por conseguinte, com a máxima preocupação pela segurança, pela credibilidade e pelo disfarce do agente Frazier.” Está assinado pelo diretor do Departamento de Narcóticos. Palavra de honra.

— O rapaz é um maldito Pimpinela Escarlate! — exclamou Cookson Frazier, deixando-se cair na poltrona ao lado da de Aaron. — Em nome de Deus, o que devo fazer?

— Para começar, eu diria que você deveria se sentir muito orgulhoso, além de aliviado. Foi você mesmo que disse que havia outro homem dentro de seu neto e tinha razão. Em vez de um estroina, ele é um profissional altamente bem sucedido e muito condecorado.

— Sim, mas por Deus, meu velho, a única maneira pela qual ele pode continuar bem sucedido, sem ser morto, consiste em trazer mais desonra para a família!

— Eu não tinha pensado nisso — disse Pinkus, franzindo a testa e acenando com a cabeça em sinal de aprovação. — Mas certamente que um dia a verdade será revelada e todos os louvores serão lançados sobre os Fraziers de Boston.

— Se chegar esse dia, Aaron, o último representante masculino dos Fraziers de Boston terá que desaparecer em Hapensack ou na Terra do Fogo e adotar outro nome. Será um homem marcado!

— Também não tinha pensado nisso!

— Proteção — disse Cyrus, descendo a escada. — E a proteção altamente eficiente pode ser comprada, Sr. Frazier.

— Desculpe, Cookson, este é... o Coronel Cyrus, um perito em segurança.

— Meu Deus do Céu, desculpe minha estupidez quando o encontrei na porta, Coronel. Aceite meu sincero pedido de desculpas.

— Não houve ofensa. Nessa área, um engano perfeitamente compreensível. Contudo, eu não sou realmente coronel.

— Como?

— O que ele quer dizer — exclamou Sam, dirigindo um olhar penetrante ao mercenário — é que é militar reformado. Não pertence a nenhum exército... ou melhor, ao Exército.

— Compreendi — disse Frazier, virando-se de novo para o aturdido Cyrus. — Bem, é obvio que seus conhecimentos em questões de segurança constituem pontos a seu favor. Aaron só contrata os melhores. A propósito, embora provavelmente seja um assunto cuja importância não justifica que perca seu tempo com ele, tenho um sistema de alarme em minha casa que me deixa desorientado. Passo o tempo desligando-o.

— Ou as cabeças estão sujas ou se sobrepõem no circuito — disse Cyrus, de forma um pouco brusca, franzindo a testa para Devereaux. — Chame o serviço de manutenção da empresa que instalou seu alarme e peça que verifique os relés.

— Ah, sim? Só isso?

— É um problema comum nos sistemas domésticos — respondeu o mercenário, esforçando-se para entender a expressão facial de Sam. — Até mesmo uma falta de corrente momentânea pode avariar esses circuitos.

— Tenho certeza de que o Coronel teria o maior prazer em dar uma olhada nisso, não é, Coronel? — disse Devereaux, acenando afirmativamente com a cabeça como um louco, por trás da cabeça de Cookson Frazier.

— Quando terminar meu trabalho em prol das preocupações de Mr. Pinkus com a segurança... certamente que sim — respondeu o hesitante soldado da fortuna e químico, claramente confuso. — Talvez num dia qualquer da semana que vem — concluiu, com voz fraca.

— É uma boa pessoa! — exclamou Frazier, batendo com a mão no braço da poltrona e regressando subitamente a seu estado de perplexidade anterior. — Não consigo entender meu neto. É absolutamente inacreditável.

— E eu que só consigo lembrar dele como Crazie Frazie, de quepe caído bebendo direto da garrafa de champanhe... provavelmente cheia de água mineral? — disse Sam. — Só que nunca vi ninguém pilotar uma lancha daquela forma, nem sequer no cinema.

Nessa altura, como que por imposição de um roteiro cinematográfico, o telefone tocou e foi prontamente atendido pelo coronel Cyrus.

— Sim? — disse o mercenário, suavemente.

— Seguimos em frente, soldado — disse a voz de MacKenzie Hawkins, de Nova York. — Anulamos o Plano A, agora arriscado demais, e vamos em frente com o Plano B, conforme discutimos uma hora atrás. Há notícias do tenente Devereaux?

— Ele está aqui, General — respondeu Cyrus serenamente, cobrindo o bocal do telefone, enquanto os outros discutiam com excitação as aventuras marítimas de Sam com o agente secreto Geoffrey Frazier. — Chegou há poucos minutos e está em péssimo estado. Quer falar com ele?

— Meu Deus, não! Sei em qual fase ele está, a que eu chamo “de Coelho Honrado”. Quais foram os danos?

— Que saibamos, nenhum; ninguém acreditou nele. Parece que a fita foi destruída.

— Agradeço a Aníbal os favores, grandes e pequenos, mas eu sabia que ele ia aparecer. Sam nunca faz bem esse tipo de coisa... Então, ainda não deu início aos planos com ele?

— Com ninguém; não houve tempo. Mr. Pinkus tem falado ao telefone com a polícia de Boston desde que a Guarda Costeira informou ter localizado o barco onde Sam estava.

— Um barco? A Guarda Costeira?

— Chegamos à conclusão de que houve uma grande caçada e o aspecto do tenente confirma isso, roupa molhada, um único pé de sapato etc.

— A Suíça de novo, droga!

— Foi o que deduzimos também, pelo menos, a namorada deduziu. Ela está toda entusiasmada com ele, como se ele tivesse voltado para casa com uma perna... provavelmente porque está com um sapato.

— Ótimo! Preocupe-se sobretudo com a garota quando explicar o plano, Coronel. Ela o convence se você a convence. Eu sei como esse rapaz fica quando excitado, todas as minhas mulheres me contaram.

— Não entendo, General.

— Não tem importância. Lembre-se apenas de que nossos inimigos estão desesperados e a única maneira de boicotar nossos esforços é nos impedir de chegar à Suprema Corte. É lá que Sam pode subir ao púlpito e dizer o que quiser, denunciar quem quer que seja, gritar o mais alto que puder. Mas só lá, Coronel. Ele não chegaria à primeira instância em Washington. Eles protegem seus territórios e o explodiriam apenas pelo barulho.

— Já que posso garantir pessoalmente que a reação de Washington será essa, não é difícil ser convincente — disse Cyrus. — Mas por que o Plano B? Pensei que tivéssemos concordado que o Plano A era totalmente viável.

— Não sei quem é minha fonte privilegiada, o informante de quem lhe falei...

— O figurão do Governo que todos acham que está morto — interrompeu o mercenário.

— Esse mesmo e permita que lhe diga, ele quer ver sangue. A propósito, deixou bem claro que estamos diante da possibilidade de sermos liquidados com muitas baixas... muitas mesmo, Coronel.

— Meu Deus, eles chegariam a esse ponto?

— Eles não têm escolha, soldado. Com fusões e megacompras, todo esse pessoal tem setenta por cento das indústrias da Defesa e devem tantos bilhões de dólares que precisariam de uma Terceira Guerra Mundial para se salvar.

— Qual acha que será a estratégia deles, General?

— Não acho, eu sei! Eles contrataram a ralé deste mundo para nos deter: pistoleiros, “seguranças” de sindicato que alugam serviços e, provavelmente, mercenários como você, que querem ganhar uma grana.

— Estamos num país de economia livre — disse Cyrus, agora cochichando, enquanto olhava Aaron, Jenny e Sam, que, por sua vez, olhavam para ele. — E há muitas questões econômicas envolvidas... Não posso falar mais. Seu informante supostamente falecido disse quando e como essas pessoas desagradáveis entrariam em cena?

— Estarão em toda parte! No meio da multidão, entre os guardas da Corte, até mesmo nos gabinetes dos juízes!

— Uma situação difícil, General.

— O Plano B cria o tipo de distração de que precisamos, Coronel. Ninguém está contente com isso, sobretudo os Wopotamis, mas está tudo no lugar. Eles farão o melhor que puderem.

— Como esse maluco do Sutton está reagindo a tudo isso? — quis saber Cyrus. — Esse filho da puta não é meu favorito, mas reconheço que é um grande ator.

— O que posso dizer? Ele afirma que fará o maior desempenho da vida!

— Se ele viver para ler as críticas... Vou desligar, General, até amanhã de manhã.

— E nossos Desis e Roman Z? — interrompeu Hawkins subitamente. — Com a história dos meus Seis Suicidas, não os incluí no cenário.

— Se acha que vou deixá-los de fora, devia estar lavando latrinas, General.

— Gostei da sua resposta, Coronel.

— Vou desligar.


Foi um chocado R. Cookson Frazier que regressou à praça Louisburg na sua limusine, enquanto na casa da praia um sexteto atônito encarava Cyrus, em pé, na frente da mesa branca antiga. Jennifer Redwing estava sentada no sofá entre Aaron Pinkus e Sam Devereaux, os dois Desis atrás deles, a ladeando seu novo amigo, Roman Z. Todas as bocas estavam abertas e todos os olhos fixos no coronel promovido em combate.

— É este o cenário, pessoal — disse o imponente mercenário negro —, e falando como oficial de ligação do General, se alguém quiser pode sair. No entanto, e dado que já fui confrontado com muitas estratégias de infiltração, devo dizer-lhes que não são muito melhores. Não foram os jornais que fizeram com que o General Hawkins se transformasse numa lenda viva... ele é autêntico, é bom demais e não afirmo isso levianamente.

— Como diz Mrs. Erin, ele fala muito bem para um irmão negro, hein, D-Um?

— Calado, D-Dois.

— Obrigado pelo comentário elogioso.

— Viu o que eu quis dizer?

— Se me permitem — disse Aaron Pinkus, chegando um pouco para a frente na poltrona —, esta charada altamente complicada, por mais engenhosa que seja, parece-me... bem, muito complicada, digamos, teatral demais. É mesmo necessária?

— Para responder em termos genéricos, Mr. Pinkus, teatro mais complexo é a melhor diversão.

— Podemos compreender isso, Cyrus — disse Jennifer, a mão esquerda segurando a mão direita de Devereaux. — Mas, como diz Mr. Pinkus, é mesmo necessário? Acho que a ideia de Sam de simplesmente saltar do avião e pegar um táxi até o Supremo Tribunal, sem limusines, sem chamar atenção sobre nós... é mais razoável.

— Em circunstâncias normais seria mais razoável, mas não estamos em circunstâncias normais. Vocês têm inimigos poderosos e muito competentes, o tipo de competência que seu amigo Sam quer expulsar do Governo, mesmo com o risco da própria vida, conforme testemunhamos hoje.

— Ele foi maravilhoso — exclamou Jennifer, comprimindo os lábios na bochecha esquerda de Devereaux. — Nadar todos aqueles quilômetros no meio de uma tempestade...

— Não foi nada — disse Sam. — Só uns seis ou sete, talvez oito... Se bem o compreendo, Cyrus, você diz que a “diversão”, como chama, é necessária, porque nossos inimigos muito competentes tencionam nos interceptar fisicamente antes que possamos entrar no edifício da Suprema Corte, é isso?

— Basicamente, sim.

— Basicamente? O que mais, além disso?

— Com ramificações — respondeu o mercenário laconicamente.

— Não vou fingir que entendo, mas se há razão para acreditar que existe uma ameaça, podemos requisitar proteção da polícia, e ainda contando com vocês, se estiverem mesmo conosco, do que mais é que poderíamos precisar?

— De uma ou duas coisas que não mencionei.

— O quê?

— Olhem, vocês três são os advogados, não eu, e Washington não é Boston, onde o ensopado de carne de Mr. Pinkus tem efeito positivo sobre o Departamento de Polícia. Em D.C., quando se pede proteção policial, é melhor apresentar uma razão que justifique o pedido. Que diabo, esses caras não conseguem dar conta dos problemas locais.

— E a “justificativa do pedido” significaria, naturalmente, a citação de nomes em altas posições — interrompeu Jenny —, e mesmo que conseguíssemos outra cópia da fita não ousaríamos usar como prova.

— Por que não? — exclamou Devereaux, furioso. — Estou farto de pisar em ovos. A lei foi quebrada, a confiança pública violada, então, por que diabos não?

— As patas do gato foram criadas com um propósito, Sam — disse Pinkus.

— Ah, só me faltava essa! Meu chefe virar profeta. Punjabi dos Himalaias, importa-se de descer da montanha e explicar isso, Aaron?

— Está perturbado, meu querido...

— Diga alguma coisa que eu não saiba!... Talvez tenham sido dez quilômetros e aquela tempestade pudesse ser classificada como um furacão... categoria 5, ou sei lá como chamam isso.

— O que estou tentando dizer — explicou Pinkus, a voz calma e os olhos elétricos fixos em Devereaux — é que uma aproximação silenciosa para pegar uma presa é geralmente mais eficiente do que disparar alarmes.

— Ou, em outras palavras — acrescentou Cyrus —, nenhum policial de Washington, com fita ou sem fita, vai prender alguém como o Secretário de Estado.

— Ele está num asilo de loucos!

— Mais uma razão para o Estado manter o equilíbrio — disse o mercenário-químico. — Creia-me, eu sei como é.

— É tudo corrupção!

— Só alguns — insistiu Jennifer. — A grande maioria é de burocratas dedicados que trabalham muito e são mal pagos... burocratas no melhor sentido da palavra, homens e mulheres que dão o melhor de si para resolver os problemas de miríades de departamentos onde trabalham para políticos à cata de votos. Não é fácil, querido.

— O quê? — Devereaux soltou a mão que Redwing segurava, levou-a à testa e recostou-se no sofá. — Está bem — disse, cansado. — Sou o garoto mais burro do quarteirão. As pessoas fazem coisas terríveis e todos se calam. A responsabilidade foi atirada pela janela!

— Não é verdade, Sam — corrigiu Aaron. — Você nunca construiu um caso dessa forma, eu conheço você. Cobre todas as possíveis vias de fuga antes da apresentação inicial e de cada contra-argumentação subsequente. É por isso que você é o melhor advogado da minha firma, quando está controlado.

— Certo, certo. Seremos palhaços de circo amanhã. Quais são os itens não mencionados, Cyrus?

— Coletes à prova de balas e capacete de aço sob o chapéu — respondeu o mercenário, como se tivesse acabado de enumerar os ingredientes de uma receita de biscoitos.

— O quê?

— Você ouviu. Estamos falando agora de coisas muito sérias. Haverá mais bilhões... sim, eu disse bilhões, em jogo amanhã do que consegue imaginar.

— Caramba! — gritou Desi-Um. — Ele fala bem mesmo!

— Calado! Podemos ser muertos!

— Não ligo! Ele tem razão!

— E eu concordo, e daí? Somos locos!

— Está nas cartas do tarô, meus amigos — gritou Roman Z, rodopiando sem sair do lugar; sua esvoaçante faixa azul sobre a camisa laranja ocultando a retirada da faca de lâmina comprida. — A lâmina de Romady cortará as gargantas de quem quer que ataque nossa causa sagrada... qualquer que seja essa causa.

— Ei, Cyrus, que história é essa? — urrou Devereaux. — Nessas circunstâncias, não permitirei que Jenny ou Aaron tomem parte disso!

— Não fale por mim! — gritou a Afrodite dos sonhos de Sam.

— Nem por mim, rapaz! — disse Pinkus, levantando-se do sofá. — Você esquece que estive na Praia de Omaha. Minha contribuição pode não ter sido relevante, mas ainda tenho os estilhaços que provam meu esforço. Era mesmo uma causa sagrada e há aqui um nítido paralelismo. Quando os homens negam pela força o direito dos outros, o único resultado é a tirania. E não vou tolerar isso em nosso país!

— Atchim, atchim, atchim!


30

5h45 A.M. À medida que ia amanhecendo sobre a linha de arranha-céus de Washington, ficando esta envolvida num manto púrpura, os silenciosos salões de mármore da Suprema Corte iam gradualmente ganhando vida, já que as equipes de mulheres da limpeza começavam a empurrar os seus carrinhos de uma porta para a outra. As bandejas continham novas caixas de sabão, toalhas limpas, novos rolos de papel higiênico e, na frente de cada carrinho, um saco plástico pendurado para o lixo da véspera.

Um carrinho, porém, distinguia-se de todos os outros na magnífica estrutura dedicada às leis de Deus e da Nação. Também a senhora de cabelos grisalhos que o empurrava era distintamente diferente das demais espalhadas pelo prédio. Se se olhasse mais de perto, via-se que as suas madeixas cinzentas estavam perfeitamente penteadas, que a sombra azul que usava nos olhos era discreta e que, por engano, usava uma pulseira de brilhantes e esmeraldas que valia muitas vezes o salário anual das outras senhoras. Usava também um distintivo grande de plástico preso ao bolso do uniforme, que dizia: TEMPORÁRIA. AUTORIZADA.

O que tornava o seu carrinho diferente era o saco plástico suspenso para a coleta do lixo. Já estava cheio antes mesmo de ela ter chegado ao primeiro escritório da área que lhe fora designada, um escritório onde, resmungando, se recusou a entrar, ao passar pela porta:

— Escremento!... Vincenzo, seu pazzo. O melhor e mais amado filho da minha mais querida irmã devia estar num hospital para dementi. Eu podia comprar todas as estátuas deste prédio!... Então, por que eu trabalho?... Por que meu adorado sobrinho não quer que meu marido, que, por sinal, não presta, trabalhe? Mannaggia... Ah, aqui está o armário. Bene! Deixo tudo aqui, vou para casa, vejo um pouco de televisão e depois saio com as garotas para umas comprinhas. Molto bene!

 

8h15 A.M. Quatro automóveis dificilmente identificáveis, de cor castanha e preta, pararam bruscamente na Rua Um, perto da esquina com a Capitol. Três homens de terno escuro saltaram de cada um deles, todos de sobrolho franzido e com os olhos parecidos com os de um robot. Eram pistoleiros contratados para um serviço e falhar significava ter de voltar à mais desprezível das suas antigas tarefas no sindicato... um destino pior do que a morte. Doze profissionais dedicados que não tinham ideia do que iam fazer, a única coisa que sabiam era que os dois homens cujos retratos levavam nos bolsos não poderiam de forma alguma entrar na Suprema Corte, do outro lado da rua. Não havia problema.

Nunca encontraram Jimmy Hoffa.

 

9h12. Dois veículos com placas oficiais estacionaram momentaneamente em frente à Suprema Corte. De acordo com as ordens do Procurador-Geral, os oito homens que deles saíram deviam prender dois indivíduos procurados por crimes ultrajantes contra o país. Cada agente do FBI tinha um retrato do antigo general, hoje totalmente desacreditado, de nome MacKenzie Hawkins, bem como do seu cúmplice, um advogado do submundo chamado Samuel Lansing Devereaux, também procurado por traição durante o seu período de serviço militar, nos últimos dias da intervenção no Vietname. Não havia prescrição legal para os seus crimes. Ele tinha posto em causa a reputação dos seus superiores, ao mesmo tempo que lucrava com a desgraça que lhes causara. Os agentes federais odiavam gajos como esse... como eram capazes de fazer essas coisas?

 

10h22. Um furgão azul-escuro parou junto na calçada do Capitólio, do lado da Suprema Corte. As portas traseiras se abriram e saltaram sete comandos rangers, com uniformes de combate camuflados, verde e preto, as armas escondidas nos bolsos largos. Afinal, eles não queriam ser conspícuos. Sua missão secreta fora definida, pessoalmente, pelo pequenino Secretário de Defesa... oralmente, nada por escrito.

— Cavalheiros, esses dois indivíduos reles querem inutilizar a primeira linha das forças aerotransportadas do nosso país, é tudo o que lhes posso dizer. Eles têm de ser detidos a qualquer preço. Nas palavras do grande comandante, “Façam-nos subir, Scotty”... para bem longe das nossas vistas! —.. Os comandos odiavam essa ralé! Se alguém tinha de acabar com os pilotos, seriam eles a fazê-lo. Os rapazes da aviação eram contemplados com todas as manchetes e ainda voavam para casa no fim do dia para comer um bom bife, enquanto eles continuavam na lama! Não! Se alguém ia acabar com a Força Aérea, seriam eles!

 

12h03 P.M. MacKenzie Hawkins, com as mãos na cintura, examinou a figura de Henry Irving Sutton no quarto do hotel, acenando com a cabeça em sinal de aprovação.

— Que diabo, sr. ator, podia ser eu!

— Não seria difícil, mon général — disse Sutton, tirando o quepe com bordados dourados e deixando ver o cabelo escovinha. — O uniforme assenta-me muito bem e as condecorações são, na realidade, impressionantes. O resto é apenas entoação vocal, o que é simples. A minha participação vocal em anúncios publicitários, incluindo a de um gato doente, pagou os estudos universitários de um dos meus filhos... só não consigo lembrar-me de qual.

— Mesmo assim, quero que use um capacete de combate...

— Não seja ridículo, ia estragar o efeito e prejudicar o objetivo pretendido. O meu papel é atrair os homens e não assustá-los. O capacete ia transmitir a iminência de um conflito, o que implica medidas defensivas, como pessoal com armas escondidas. A motivação deve ser nítida e consistente, General, e não confusa, para que não perca sua audiência.

— Também pode perder... bem, sabe que também pode virar alvo.

— Para falar a verdade, não penso assim — disse o ator, com os olhos brilhando por causa da afirmação incompleta do Falcão. — Isso não é nada, comparado com seu caso. E se formos comparar com as areias do Norte da África, isto é praticamente uma ação de bastidores. De qualquer forma, é um risco menor, pelo qual estou sendo bem recompensado... A propósito, como vão as coisas com seus guerreiros de Stanislavski, os Seis Suicidas?

— Houve uma mudança de planos...

— Ah sim? — interrompeu Sir Henry de forma penetrante, com desconfiança.

— Tudo para o bem de todos — disse Hawkins rapidamente, reconhecendo logo a expressão de quase pânico do ator, a marca de uma profissão em que um “conseguiu, querido, você é fantástico!” pode, na realidade, querer dizer “o cara é um perdedor, arranjem alguém com classe, como o Sonny Tufts”. — Eles chegarão a Los Angeles às quatro da tarde. Minha mulher, minha ex-mulher — uma das minhas ex, a primeira — queria que eles continuassem lá, para poder ficar de olho neles, é o instinto maternal.

— Que meigo — o ator tocou as duas estrelas que tinha no colarinho. — Mas, permita-me a grosseria, mudou alguma coisa quanto à minha aparição no filme?

— De maneira nenhuma. Os rapazes o querem também e tudo o que eles quiserem vão ter.

— Tem certeza? Sabe que eles não têm quociente de reconhecimento.

— Eles não precisam disso. Estão por trás do maior super-hiper-mega-blaster sucesso, seja lá o que for isso, que a Capital dos Tontos da Costa Oeste possa lembrar. De qualquer forma, tudo está nas mãos da agência William Morris e...

— William Morris?

— Não é esse o nome?

— Certamente que é. Acho que uma das minhas filhas trabalha como advogada no departamento jurídico deles. Provavelmente arranjou o emprego por ser minha filha. Qual é o nome dela...? Eu a vejo todo Natal...

— O negócio está sendo tratado por dois homens chamados Robbins e Martin e a minha mulher, a minha ex... você sabe, diz que são os melhores.

— Sim, sim, claro, li tudo sobre eles na imprensa especializada. Creio que a minha filha... Becky ou Betty... bem, é um desses nomes... foi noiva desse tal Robbins... ou teria sido Martin? Sim, eles realmente devem ser esplêndidos, pois ela é uma garota muito inteligente... Antoinette, este é o nome dela! Me dá sempre suéteres duas vezes maiores do que o porra do meu tamanho, mas isso é porque eu sempre pareci ser muito grande. O nome disso é presença, você sabe...

— Acho que agora sei... Os rapazes estão indo para a Costa agora, tudo primeira classe, foi o que minha Ginny contou.

— Naturalmente. Não se enviam seis diamantes de metrô sem qualquer serviço de atendimento. Estou admirado de não terem seu próprio avião.

— Minha ex-mulher explicou isso. Ela contou que um Lear foi dado como perdido na tundra do Alasca há três semanas e que o encontraram ontem, duas horas depois de um estúdio rival ter assinado um contrato com um sujeito chamado Warner Batty. Disse que todos os estúdios e agentes contratam pessoas que só "cuidam" de voos particulares e, se alguma coisa parecer suspeita, subornam os pilotos.

A campainha da porta do quarto tocou, assustando os homens.

— Quem pode ser? — cochichou o Hawk. — Henry, você contou a alguém...

— Absolutamente ninguém! — disse o ator, também cochichando, mas muito mais enfaticamente. — Segui o roteiro, meu caro rapaz, nem uma alteração na direção de cena! Registrei-me, muito respeitavelmente, como um vendedor de tubos de Akron... terno de poliéster adequado, postura cansada... uma soberba atuação, se posso dizer.

— Quem seria então?

— Deixe comigo, mon général — Sutton caminhou até a porta e assumiu a postura cambaleante de um bêbado, desapertando a gravata e desabotoando parcialmente a túnica. Esconda-se no armário, MacKenzie — disse, falando em voz baixa para em seguida elevar o timbre, acrescentando com voz de bêbado: — Sim, o que é? Isto é uma festa particular, eu e minha mulher não queremos pessoas que não foram convidadas!

— Ei, fazool! — foi a resposta grosseira que veio da porta —, se acha que vai recorrer a um de seus malditos jogos, daqueles que usava em Boston, é melhor parar! Deixe-me entrar!

Sir Henry virou a cabeça; a porta do armário abriu-se simultaneamente, vendo-se o rosto de MacKenzie Hawkins congestionado pelo choque. — Oh, meu Deus, é o Little Joseph!... Deixe-o entrar. —

— E então? — disse Joey com as mãos cruzadas atrás das costas, quando a porta foi fechada, e esticando-se tanto quanto seu metro e sessenta permitiam. — Se a cabeça desse fazool que está me espreitando ali do armário for a da sua mulher, soldadinho, você está numa grande encrenca com sua tropa.

— Quem é esse anão que obviamente fala a língua dos anões? — perguntou indignado o ator.

— Você é um alvo fácil, fazool número dois. Assim que você entrou em contato com o fazool grande na Rua F com a 10, todo contraído e nervoso como se estivesse com delirium tremens, vi logo que você era o contato. Não enganou ninguém.

— Está pondo em causa a minha técnica? Eu, que já recebi elogios de mil críticos em todo o país!

— Quem é esse sundae de chocolate quente? — perguntou Little Joey, no momento em que um perplexo Hawk saía do armário — Penso que talvez o Bam-Bam e eu devêssemos saber, entende o que quero dizer?

— Joseph, o que está fazendo aqui? — urrou MacKenzie, o espanto desvanecendo e dando lugar a um tom ameaçador.

— Acalme-se, fazool. Vinnie guarda seus interesses no fundo do coração, deve saber disso. Lembre-se, sou o Mortalha. Posso estar em qualquer lugar e me deslocar para qualquer lugar sem que ninguém perceba minha presença. Não me viu hoje de manhã, quando chegou ao Aeroporto Nacional vindo de Nova York, e eu estava bem atrás de você.

— E então?

— Tenho coisas para contar. Bam-Bam quer saber se deve chamar uma brigada de pistoleiros de Toronto.

— De modo nenhum!

— Como ele pensou; não há tempo... Está bem, então ele quer que saiba que abençoada tia Angelina dele fez o que você queria que ela fizesse porque o marido, Rocco, é um filho da mãe que não presta e ela ama o sobrinho Vincenzo. O que você queria está no segundo armário do corredor, do lado direito.

— Ótimo!

— Nem tudo está tão bem assim. Bam-Bam é um cara orgulhoso, fazool, e seus companheiros americanos não são tão bons para ele. Bam-Bam diz que o tratam como lixo e que as penas em sua cabeça não lhe ficam bem!

 

12h18 P.M. O gerente do hotel Embassy Row, na Massachussetts Avenue, não estava preparado para o comportamento de um dos seus mais estimados hóspedes, ou seja, Aaron Pinkus, o advogado. Como era habitual, sempre que o celebrado causídico viajava para Washington, era tido como certo que a sua estada era confidencial, como, na realidade, acontecia com qualquer hóspede que pedisse a mesma coisa, mas nessa tarde Mr. Pinkus levara as condições sigilosas a um ponto extremo. Insistira para que ele e os seus acompanhantes utilizassem a entrada de serviço e subissem para as suítes — contíguas — pelo elevador de carga. Além disso, apenas o próprio gerente deveria ter conhecimento da presença do advogado; do livro de registro de entradas deveriam constar nomes fictícios e, dessa forma, quaisquer chamadas telefônicas que fossem feitas para ele deveriam ter como resposta que não havia nenhum Aaron Pinkus hospedado no hotel, o que, formalmente, era verdade. No entanto, se as chamadas especificassem apenas os números dos quartos, deveriam ser transferidas.

Não era típico de Pinkus dar instruções deste tipo, pensou o gerente, pensando, porém, que sabia o motivo. Washington estava um autêntico jardim zoológico e sem dúvida que um advogado tão qualificado como ele tinha sido chamado a prestar declarações perante o Congresso sobre os pontos complicados de algum projeto-lei que era objeto de interesses especiais. Obviamente que Pinkus trouxera um contingente dos mais brilhantes advogados da sua sociedade, para o assessorar durante as audiências.

Foi essa a razão pela qual o gerente ficou assombrado quando, numa hora em que rotineiramente verificava a recepção, apareceu um homem de camisa de seda laranja, faixa de seda azul e brinco de ouro na orelha esquerda, perguntando onde ficava a farmácia.

— É hóspede do hotel? — perguntou o funcionário, desconfiado.

— O que mais? — replicou Roman Z, exibindo a chave do quarto. O gerente olhou para ela de relance. Era o número da suíte de Pinkus.

— É ali — disse o mortificado recepcionista.

— Ótimo! Preciso de uma nova água-de-colônia! Pode pôr na conta, não?

Segundos mais tarde, dois homens bem morenos, em uniformes que o gerente não reconheceu, mas que achou serem de alguma revolução sul-americana, chegaram correndo.

— Onde ele foi, cara? — exclamou o mais alto, com várias falhas nos dentes.

— Quem? — perguntou o recepcionista, recuando.

— O gitano com um brinco de ouro! — disse o segundo hispânico. — Ele levou a chave do quarto, mas meu amigo apertou o botão errado do elevador. Nós subimos e ele desceu!

— Dois elevadores?

— Uma questão de seguridad, entende o que quero dizer?

— Segurança?

— É isso mesmo, gringo — respondeu o homem com falhas na dentadura, examinando o recepcionista vestido de fraque. — Você tem uma roupa bonita, como a que eu vesti na véspera da... no outro dia. Se você devolver de manhã, tem direito a um desconto no aluguel. Eu li num cartaz.

— Sim, bem, esta roupa não foi alugada.

— Você comprou essa roupa? Madre de Dios, que bom esse seu emprego!

— É um ótimo emprego — disse o atônito funcionário de fraque, olhando de relance para o gerente, ainda mais espantado do que ele. — Seu amigo foi à farmácia. É ali.

— Gracias, amigo. E conserve sempre este belo e rico emprego!

— Sem dúvida — murmurou o homem, enquanto os dois Desis atravessavam o hall correndo, atrás de Roman Z. — Quem é essa gente? — perguntou, virando-se para o gerente. — Essa chave é de uma das nossas melhores suítes.

— Testemunhas? — disse o atônito gerente, com um raio de esperança na resposta. — Sim, claro, só podem ser testemunhas. Provavelmente, é um interrogatório sobre algum deficiente mental.

— O quê?

— Deixe pra lá, depois de amanhã já terão ido embora.


Lá em cima, na suíte que Aaron Pinkus reservara para Jennifer, para Sam e para ele, o tão louvado advogado explicava as razões da escolha do hotel.

— Geralmente, conseguimos livrar-nos da curiosidade alheia se a enfrentarmos e a desencorajarmos — disse ele —, sobretudo se estivermos a lidar com uma instituição que lucra com a nossa preferência. Se eu tivesse feito reservas num hotel onde não sou conhecido, os boatos multiplicar-se-iam.

— E você não é um desconhecido nesta cidade — acrescentou Devereaux. — Pode confiar no gerente?

— Eu confiaria em qualquer circunstância, ele é uma excelente pessoa. Porém, como a carne é fraca e os caçadores de escândalos nesta cidade são uns abutres, sempre em busca de carne podre, eu deixei bem claro que ele era a única pessoa que sabia que estávamos aqui. Senti-me mal a fazer isso; não era necessário.

— Há a segurança e o “sinto muito”, Mr. Pinkus — disse Redwing, dirigindo-se para uma janela e contemplando a rua lá embaixo. — Estamos tão perto... de quê, não sei, mas assusta-me. Numa questão de dias, o meu povo será de patriotas ou de párias e neste exato momento o meu dinheiro está na terra dos párias.

— Jenny — começou Aaron, com um tom de tristeza reprimida na sua voz —, eu não queria alarmá-la, mas, pensando bem, nunca me perdoaria se não lhe contasse agora.

— Contar-me o quê? — Redwing se virou, encarando Pinkus. Depois olhou para Sam, que abanou a cabeça, negando qualquer conhecimento do que Aaron pretendia contar.

— Esta manhã, falei com um velho amigo, um colega dos velhos tempos que hoje é membro do Tribunal.

— Aaron! — exclamou Devereaux. — Você não contou nada do que houve esta tarde, ou contou?

— Claro que não. Foi apenas um telefonema social. Eu disse que estava aqui a serviço e que talvez pudéssemos jantar juntos.

— Graças a Deus! — suspirou Jenny.

— Foi ele quem telefonou esta tarde — disse Pinkus serenamente.

— O quê?

— O quê?

— Não disse nada de específico, notem bem, referiu-se apenas ao convite para jantar... Disse que era bem possível que não pudesse me ver, pois talvez estivesse escondido e sob proteção nos porões da Suprema Corte.

— O quê?

— Foi o que ele disse...

— E?

— Ele disse que hoje era um dos dias mais estranhos nos anais da Suprema Corte. Vai ocorrer uma sessão especial com os peticionários de um recurso que dividiu amargamente os juízes. Nenhum deles sabe qual será o voto final dos outros, mas estão determinados a fazer uso de sua responsabilidade inicial, que é a de tornar pública uma ação importante contra o Governo. Eles o farão imediatamente após a audiência.

— O quê? — gritou Redwing. — Hoje à tarde?

— No início eles mantiveram o recurso fora do calendário do tribunal, por razões de segurança nacional e atendendo à possibilidade de represálias contra os litigantes, os Wopotamis, creio; depois, parece que o Executivo exigiu que as notícias sobre o processo fossem mantidas em segredo.

— Graças a Deus! — exclamou Jennifer.

— E ao Presidente da Suprema Corte, Reebock — explicou Aaron —, que não é o cidadão mais simpático deste mundo, embora muito brilhante. Inexplicavelmente, contrariando sua tendência normal, Reebock agiu de acordo com a Casa Branca. Quando os outros juízes tomaram conhecimento disso, revoltaram-se, inclusive meu amigo. Ele deixou isso bem claro, juntamente com os demais, mesmo os que ideologicamente lhe eram contrários, defendendo o principio de que o Poder Executivo não tem o direito constitucional de impor restrições ao Poder Judiciário... Às vezes tudo se resume ao ego, não é verdade? Pondo de lado os dispositivos constitucionais que asseguram o equilíbrio dos três poderes, o ego é o grande igualador.

— Mr. Pinkus, meu povo estará nas ruas, nos degraus da Suprema Corte! Haverá um massacre!

— Não se o general jogar bem as cartas que tem, minha cara.

— Se houvesse uma carta errada para mostrar, ele mostraria! — gritou Redwing. — Esse homem é ódio instantâneo! Não há ninguém na Terra que ele seja incapaz de ofender!

— Mas você é que dá as cartas — interrompeu Devereaux. — Legalmente, ele não pode fazer absolutamente nada sem sua aprovação; seu contrato com ele representa uma imposição legal.

— E isso já o deteve? Pelo que conheço do seu dinossauro pré-histórico, ele passa por cima das leis da convivência internacional, do seu próprio governo, do Estado-Maior Conjunto, da Igreja Católica, dos conceitos universais de moralidade e até mesmo de você, Sam, que ele diz amar como um filho! Não é você que vai subir ao sacrossanto púlpito para denunciar a injustiça, mas ele, e para ganhar o pleito vai arrasar a porcaria do sistema e transformar os Wopotamis na maior ameaça que esta nação já enfrentou desde Munique, em 39! Ele será um raio que precisa ser desviado antes que uma centena de outras minorias descubram o quanto foram prejudicadas pelo Governo e aí então haverá distúrbios nas ruas, por toda parte... Podemos reparar essas coisas com tempo e prudência, mas não à maneira dele, que é o caos.

— Ela tem razão, Aaron.

— Mais uma vez, um brilhante resumo, minha querida, mas você desprezou uma lei fundamental da natureza.

— Que diabo de lei é essa, Mr. Pinkus?

— Resumindo ao máximo, ele pode ser detido.

— Pelo amor de Deus, como?

Nesse exato momento, a porta da suíte foi escancarada, batendo na parede e um furioso Cyrus ficou parado em seu vão. Só que era um Cyrus diferente. Envergava terno risca de giz extravagantemente dispendioso, sapatos Bally e um lenço no pescoço.

— Esses filhos da mãe saíram! — gritou ele! — Estão aqui?

— Você está falando de Roman e dos dois Desis?? — perguntou Sam, aflito. — Eles desertaram?

— Claro que não, mas parecem crianças na Disneylândia; precisam explorar tudo. Vão voltar, mas desobedeceram às ordens.

— Desobedeceram como, Coronel? — perguntou Pinkus.

— Bem, eu fui ao... eu fui ao banheiro e disse que ficassem onde estavam e quando saí tinham desaparecido!

— Acabou de dizer que voltariam — lembrou Devereaux. — Então, qual é o problema?

— Não se importa que esses doidos andem por aí pelos corredores?

— Na realidade, isso até que pode ser bem divertido — disse Aaron, rindo entre dentes. — Daria alguma vida ao bando de diplomatas que anda por aí de uma forma tão rígida que até se pode pensar que têm gases no duodeno... desculpe, minha querida.

— Mais uma vez, não é necessário pedir desculpas, Sr. Pinkus — disse Jennifer, olhando fixamente para o enorme mercenário. — Cyrus — continuou ela — você está tão... ah, não sei qual é a melhor palavra... mas tão... acho que é distinto.

— É a roupa, Jenny. Não uso um terno como este desde que quarenta e seis parentes na Georgia se reuniram e me compraram um no Peachtree Center, quando obtive meu doutorado. Antes disso não podia comprar um e certamente não poderia depois. Ainda bem que gostou; eu também gostei. Foi cortesia de Mr. Pinkus, cujos alfaiates saltam pelo buraco das agulhas quando ele espirra.

— Isso não é verdade, meu amigo — disse Aaron. — O fato é que eles compreendem o significado da palavra emergência... Nosso coronel não está magnífico?

— Impressionante — concordou Sam, relutante.

— O Colosso de Rodes vestido para uma reunião do conselho de administração da IBM — acrescentou Redwing, acenando com a cabeça em sinal de aprovação.

— Então eu talvez deva apresentar-lhes seu novo companheiro na audiência desta tarde... O juiz Cornelius Oldsmobile, que os acompanhará ao tribunal como um amicus curiae visitante, em caráter extraordinário, cortesia do meu velho amigo da Suprema Corte. Não tem permissão para falar, só pode observar, mas estará sentado ao lado do General Hawkins, que, logicamente, o verá como uma proteção. No fim da audiência, caso nosso general decida fazer comentários inflamados, o “juiz Oldsmobile” garantiu que há várias formas de impedi-lo, inclusive com um insulto metabólico, o que, para um homem da idade do general, determinaria sua remoção imediata.

— Aaron, sua raposa velha! — exclamou Sam, saltando da cadeira.

— A simples concepção desse plano deu-me muita dor de cabeça, mas é preciso considerar as alternativas, como sugere nossa linda Jennifer.

— Meu Deus, eu queria que você fosse trinta anos mais novo! — exclamou Redwing. — Que diabo, vinte era suficiente!

— Eu também, minha filha, mas agradeceria se nunca dissesse isso a Shirley.

— Talvez eu diga, se a Pocahontas aqui não se comportar bem — disse Devereaux. — Sabe, Aaron, podem ter sido dez, talvez quinze quilômetros no meio da tempestade, mas sou modesto demais para falar disso.


Arnold Subagaloo contorceu-se para acomodar sua estrutura volumosa na cadeira, convicto de que os braços dela o segurariam com firmeza, enquanto se dedicava a seu passatempo favorito quando estava no escritório. Ao levantar a mão para arremessar as flechas, seu corpo em forma de pera ficava confinado aos parâmetros impostos, assegurando uma pontaria melhor, já que haveria um mínimo de movimento lateral. Afinal, ele era um engenheiro par excelence, com QI de 785 e sabia tudo sobre qualquer coisa, à exceção de realpolitik, cortesia e dietas.

Subagaloo apertou o botão que fez recuar a cortina na parede, revelando um enorme painel fotográfico que se estendia de um lado a outro, de parede a parede, com as caras ampliadas de cento e seis homens e mulheres — todos inimigos! Liberais dos dois partidos, malucos ambientalistas, incapazes de ler um balanço, feminazis, sempre tentando subverter a ordem divina da superioridade masculina, e, acima de tudo, senadores e deputados que tinham a audácia de lhe dizer que ele não era o Presidente... Bem, talvez não fosse, realmente, mas em quem eles pensavam para Presidente? Em cada hora, em cada minuto!

No exato momento em que Subagaloo arremessava a sua primeira flecha, o telefone particular tocou, fazendo com que a ponta aguçada do míssil se desviasse e saísse por uma janela aberta à esquerda, originando o grito de um jardineiro que trabalhava no Jardim das Rosas.

— Esse filho da puta de novo! Eu desisto!

Arnold desconsiderou a observação gratuita... deveria ter acertado no homem entre os olhos, já que, com certeza, era membro de algum sindicato socialista-comunista, esperando ganhar duas semanas de salário como indemnização por vinte míseros anos de trabalho. Infelizmente, Subagaloo não foi capaz de levantar-se. As suas ancas avantajadas eram incapazes de passar pelos braços apertados da cadeira. Como não havia outra alternativa, atravessou o escritório com a cadeira provisoriamente colada ao rabo, em direção ao toque insistente do telefone.

— Quem é você e como conseguiu este número? — berrou o chefe do Estado-Maior.

— Calma, Arnold, é Reebock e estamos do mesmo lado nesta causa.

— Oh, Juiz-Presidente! Será que está prestes a me dar outro grande problema de que não preciso?

— Não, acabo de resolver o maior de todos os seus problemas.

— Os Wopotamis?

— Eles podem morrer de fome na sua estúpida reserva, quem se importa com isso? Ontem à noite, fiz um pequeno churrasco em minha casa para todo o Tribunal. Naturalmente, como a minha adega é a melhor de Washington, toda a gente se embebedou até os cornos, à exceção da juíza, que agora também já não conta. Tivemos uma conversa intelectual muito americana à beira da piscina. Muito erudita, muito judicial.

— E então?

— Seis a três contra os selvagens Wopotamis, isso é garantido. Dois dos nossos confrades estavam indecisos, mas viram a luz quando as nossas fornecedoras de comida tiraram a roupa e foram nadar. Os nossos dois corações vacilantes alegaram terem sido empurrados para dentro da piscina, mas não é isso o que as fotografias mostram. Um comportamento tão pouco digno da magistratura! Os tabloides iam delirar, deixei isso bem claro.

— Reebock, você é um gênio! Não ao meu nível, é claro, mas nada mal, nada mal mesmo... Mas vamos guardar isso aqui entre nós, está certo?

— Nós falamos a mesma linguagem, Subagaloo. O nosso trabalho é manter os não-americanos afastados do grosso da população. São perigosos, esses dissidentes, todos eles. Pode imaginar onde é estaríamos sem o imposto sobre o rendimento e sem essas leis dos direitos civis?

— No céu, Reebock, no céu!... Lembre-se, nunca falamos um com o outro. Porque acha que liguei para esse número?

— Como o conseguiu?

— Tenho um informante na Casa Branca.

— Quem, pelo amor de Deus?

— Ora, vamos, Arnold, não é justo.

— Acho que não é, pois eu também tenho um na Suprema Corte.

— Jogo empatado, meu amigo.

— Quais as outras novidades? — perguntou Arnold Subagaloo.


12h37 P.M. O enorme ônibus, alugado e pago por uma pessoa de quem a empresa nunca ouvira falar, parou em frente à imponente entrada da Suprema Corte. O motorista deixou-se cair para cima do volante enorme, com lágrimas de angústia a escorrerem dos seus olhos, grato por todos os seus passageiros estarem prestes a sair. Quilômetros atrás ele gritara, berrara e finalmente soltara um grito de terror:

— Fogo... cozinhar... não é permitido dentro do ônibus!

— Não estamos cozinhando, homem — disse uma voz firme atrás dele. — Estamos misturando as cores, o que significa que a cera precisa ser derretida.

— O quê?

— Está vendo? — de repente, um rosto grotescamente pintado pôs-se à frente de seus olhos, fazendo com que o ônibus guinasse e saísse de sua pista na autoestrada da Virginia, mas o motorista conseguiu esgueirar-se entre os demais veículos até poder voltar à sua faixa.

Seguiu-se então o que poderia ser descrito como uma série de ocorrências capazes de justificar os gritos do proprietário do motel Last Ditch, situado na periferia de Arlington, urrando por detrás de uma montanha de sacos de lona.

— Prefiro fazer explodir a merda deste motel a deixar esta gente voltar aqui! Que merda! Danças de guerra à volta de uma fogueira no estacionamento! Todas as pessoas dos outros quartos se foram embora, a correr, sem deixar um único níquel na minha máquina registradora!

— Você entendeu tudo errado, homem! Eram cantos de súplica. Você sabe, preces a pedir chuva e um bom parto e, às vezes, até garotas.

— Fora, fora, fora!

Depois que os sacos de lona foram levados para o ônibus, ficando um bom número deles amarrados ao teto, continuou a série de ocorrências intoleráveis entre a fumaça e o fedor dos lápis de cera Crayola derretidos.

— Está vendo, quando se mistura com parafina e se esfrega na pele, a massa se amolda e vai derretendo, escorrendo lentamente pelo rosto com o calor do corpo. Assusta muito os caras-pálidas... viu?

O motorista viu. Riscos de cores brilhantes, meio derretidos, descendo pelo rosto de um cara chamado Nariz de Bezerro. O ônibus quase bateu na traseira de uma limusine diplomática que exibia a bandeira da Tanzânia; em vez de bater, limitou-se a amassar o para-choque e logo em seguida guinou para a esquerda, ultrapassando a limusine e arrancando um espelho lateral, enquanto vários rostos negros de olhos dilatados olhavam espantados para os mais coloridos passageiros do ônibus.

Depois vieram os bum-bums, inicialmente lentos e graves, de, pelo menos, uma dúzia de tambores. Bum-bum, bum-bum, bum-bum... bum-bum, bum-bum!... Hai ya, hai ya, iiaiya! — o coro fanático subiu num crescendo histérico, enquanto a cabeça do motorista balançava para a frente e para trás sobre o volante, como um galo no cio, acompanhando a cadência. O alívio veio subitamente, quando os tambores e a cantilena cessaram de modo abrupto, aparentemente em obediência a uma ordem.

— Acho que nos enganamos, rapazes e garotas! — gritou o terrorista chamado Nariz de Bezerro. — Isso não é a celebração da noite de núpcias?

— Toca o Bolero de Ravel! — replicou uma voz masculina na traseira do ônibus cheio.

— Quem perceberia a diferença? — berrou uma mulher.

— Não sei — respondeu Nariz de Bezerro —, mas o Cabeça de Trovão disse que o Gabinete das Relações com os índios poderia mandar alguns peritos, já que ninguém nos espera ou sabe por que motivo estamos aqui.

— Se forem Mohawks vão bater com os pés! — desta vez, a voz era de um dos membros mais idosos da tribo. — Segundo a lenda, eles nos jogavam para fora das tendas sempre que nevava!

— Bem, nesse caso, vamos ensaiar a que saúda a aurora; seria apropriada.

— Qual é essa, Johnny? — disse outra mulher.

— Uma que parece uma tarantella...

— Apenas quando é cantada em andamento vivace, Nariz — corrigiu um guerreiro pintado, sentado na frente. — Quando em adagio, pode ser uma das canções tristes de Sibelius.

— Pois então vamos continuar como estávamos. Muito bem, garotas, vão para o corredor e ensaiem sua parte. Lembrem-se de que o Cabeça de Trovão quer algumas pernas para as câmeras de TV, mas nada de ligas. Temos que ser absolutamente puros.

— Aw, aw, aw... merda! — ouviram-se as vozes masculinas.

— Aqui vamos nós... agora!

Os tambores e o coro vocal começaram de novo, a que se veio juntar a batida dos pés femininos no corredor, enquanto o motorista tentava concentrar-se no trânsito cada vez mais intenso do Distrito de Colúmbia. Infelizmente, uma lata Sterno que estava embaixo de uma panelinha fervendo cheia de brilhantes crayolas vermelhos virou, pegando fogo na saia de contas de uma dançarina. Vários guerreiros foram rápidos para extinguir as chamas.

— Tira a mão daí! — gritou uma garota índia ofendida.


O motorista virou a cabeça bruscamente e foi exatamente nesse momento que o ônibus derrapou e foi bater numa boca de incêndio, arrancando a parte de cima e fazendo com que um jorro de água fosse lançado na Independence Avenue, molhando todos os carros e peões que estavam por perto. O regulamento da empresa exigia que o condutor de qualquer veículo envolvido num acidente deste tipo parasse imediatamente, comunicasse o acidente pelo rádio e esperasse pela polícia. Era uma norma da empresa que de forma alguma se aplicava a ele! — concluiu o motorista do ônibus cheio de terroristas selvagens com tinta de cera pingando do rosto. Ele estava a cinco quarteirões do destino e no momento em que o seu carregamento de bárbaros incendiários, a bater com os pés no chão e enfiados nas suas roupas de couro e contas, saltasse do ônibus com todos aqueles sacos de lona e cartazes de cartolina, ele voltaria para a garagem a toda a velocidade, rabiscaria um pedido de demissão, iria para casa, pegaria na mulher e, juntos, apanhariam o primeiro avião para um lugar o mais longe possível. Por sorte, o seu único filho era advogado e poderia tratar de tudo o que se relacionasse com as consequências da sua partida. Que diabo, ele sustentara aquele filho da mãe desprezível até a faculdade!... Após trinta e seis anos atrás de um volante, transportando tantos canalhas, um homem precisa ter consciência do momento em que deve parar. Como quando ele estava na França, durante a Segunda Guerra Mundial, esmagado pela artilharia dos boches, e aquele grande homem, o General Hawkins, assumira o comando da divisão e berrara:

— Chega um momento, soldados, em que ou acabamos com o tormento ou vamos atrás do inimigo! Eu digo que vamos seguir em frente! Eu digo que vamos atacar!

E, por Deus, eles foram. O grande homem teve razão naquele dia, mas aqui e agora não havia nada para atacar, nenhum inimigo armado querendo matá-lo, apenas exércitos de lunáticos querendo subir em seu ônibus e levá-lo à loucura! Trinta e seis anos, uma boa vida, uma vida produtiva... fora do ônibus. Mas agora, naquele momento crítico, nada restava, nada para atacar. Tinha chegado a hora de acabar com o tormento... Perguntou a si mesmo o que diria o grande General Hawkins. Achou que sabia:

— Se o inimigo não valer a pena, procure outro!

O motorista acabaria com o tormento. O inimigo não valia a pena.


O último terrorista a saltar do ônibus foi o que chamavam de Nariz de Bezerro, o maníaco com as grotescas listras de cera em cores brilhantes pingando do rosto.

— Aqui tem — disse o selvagem, entregando ao motorista uma pequena moeda de metal de valor irreconhecível. — O chefe Cabeça de Trovão queria que isso fosse dado à pessoa que nos levasse a nosso “destino”. Macacos me mordam se eu sei o que ele queria dizer, mas é toda sua, amigo. — Nariz de Bezerro desceu os degraus do ônibus aos pulos, mantendo em equilíbrio seu cartaz pregado num galho de árvore, sobre o ombro direito.

“... o nosso destino. Nada será igual depois da ação que vamos empreender Vamos atacar!” — O General MacKenzie Hawkins na França, quarenta anos atrás.

O motorista examinou a pequena moeda de metal e estremeceu. Era uma réplica da insígnia da sua divisão de há quarenta anos. Com a efígie do seu grande comandante! Um sinal dos céus? Dificilmente, já que ele e a sua mulher há muito tempo que evitavam a igreja. As manhãs de domingo eram preenchidas com aqueles programas de televisão onde os políticos alimentavam a sua raiva, que a sua mulher reduzia com um jarro de Bloody Marys com uma pitada de pimenta vermelha. Boa mulher, a sua esposa... Mas isto! A sua antiga divisão e as palavras do melhor comandante que já existira! Meu Deus, tinha de sair dali. Era muito estranho!

O motorista pôs de novo o motor para trabalhar, pisou fundo no acelerador e desceu a rua a toda a velocidade, vendo, pelo espelho retrovisor, uma multidão de caras-pintadas correndo atrás dele.

— Vão-se foder! — gritou, bem alto. — Eu e a minha garota vamos nos mudar para o Oeste, para um lugar tão longe que talvez fique já no Leste, quem sabe, um lugar assim como a Samoa Americana!

O que o motorista esquecera é que havia trinta e sete sacos de lona amarrados no teto do ônibus.


31

6h P.M. A campainha da porta da suíte tocou, Aaron e Sam saíram de vista, para evitar possível reconhecimento, Jennifer atravessou a sala, olhou de relance para a retaguarda e só então perguntou:

— Quem é?

— Por favor, Miss Janey! — respondeu a voz inconfundível de Roman Z. — Esta coisa é pesada!

Redwing abriu a porta e deu de cara com Roman, na frente dos dois Desis, que seguravam as alças de uma enorme arca, as testas molhadas de suor.

— Deus do céu, por que não pediram ao chefe dos mensageiros que mandasse trazer isso para cá?

— Meu querido amigo, que por acaso agora é um “coronel” brutal e desparafusado, disse para trazermos nós mesmos. — O cigano entrou. — Se não fosse assim, se ela caísse e abrisse, eu teria que cortar a garganta das pessoas que vissem o que tem lá dentro... Vamos, meus segundo e terceiro amigos queridos. Para cá!

— Não posso acreditar que Cyrus tenha dado uma ordem dessas — protestou Jennifer, enquanto os Desis Um e Dois se debatiam com a enorme mala, carregando-a para dentro da suíte e a deixando na vertical. — Podiam ao menos ter usado um carrinho.

— Que carrinho? — perguntou Desi-Um, enxugando a testa.

— Uma plataforma pequena com rodas e espaço suficiente para transportar bagagem pesada.

— Você disse para não usarmos um carrinho desses! — gritou D-Um para Roman.

— O magnífico coronel estava conversando com aquela gente maluca do caminhão e tudo o que ele disse foi “subam depressa com isso!”. Ele não disse “levem isso lá para cima nessa máquina e depressa”. Meu queridíssimo amigo é esperto; nunca se sabe quando uma coisa dessas pode ser uma armadilha. Já tentou sair de um supermercado empurrando um carrinho sem pagar? As campainhas começam a tocar, não é, miss Janey?

— Bem, há códigos de barra nas mercadorias que são neutralizados quando se passa pelas caixas...

— Estão vendo? Meu querido amigo salvou nossas vidas!

— Seus esforços serão recompensados — disse Aaron Pinkus, saindo depressa do quarto, com Devereaux atrás dele. — Abram isso — acrescentou, olhando para a arca.

— Não tem chave — disse Roman. — Só pequenos números na fechadura.

— Tenho os números — anunciou o impecável e dispendiosamente vestido Cyrus, aproveitando a porta aberta para entrar e fechando-a imediatamente atrás de si. — Receio que tenha precisado assinar uma guia de remessa adicional com minha firma, Mr. Pinkus.

— Deu meu nome?

— Claro que não, mas o fornecedor inicial pode vir atrás, se toda essa história der em nada.

— Eu cuido disso! — exclamou Sam. — Contratar prisioneiros fugitivos e mercenários foragidos para fazer o trabalho sujo deles, ah, moleza!

— Querido, estamos fazendo o mesmo — disse Jennifer.

— Ah, é?

— Pelo amor de Deus, abram a mala! Já estou sentindo a Shirley respirando na minha nuca, uma sensação não muito agradável. Não falo com ela desde ontem de manhã.

— Dê-me o número dela — disse Roman Z, enrolando a faixa azul no braço direito, na frente da camisa de seda laranja. — Há mulheres e mulheres, e muito poucas resistem aos meus encantos. Não é, meus queridíssimos amigos?

— Shirley conseguiria fazer com que o prendessem — disse Pinkus. — Duvido que seu balanço atinja os padrões dela.

— Pronto! — disse Cyrus, após manipular a fechadura e abrir a arca.

— Meu Deus! — exclamou Sunrise Jennifer Redwing. — Tanto metal!

— Eu avisei, Jenny — disse Cyrus, olhando a profusão de couraças e capacetes de aço pendurada no compartimento de onde pendiam cabides com roupas estranhas. — Isso é sério.


1h32 P.M. O conteúdo da enorme arca foi distribuído e deu-se início ao processo de infiltração-camuflagem. De acordo com as ordens do Hawk (com vários pontos acrescentados ou aperfeiçoados pelo que era agora seu assessor militar sênior, Cyrus), o objetivo inicial era enganar as patrulhas inimigas que os procurassem no meio da multidão do lado de fora, e, enganando-as, chegar ao grande átrio da Suprema Corte. Logo que chegassem ao seu interior, o segundo objetivo era passar pela segurança sem que Sam, Aaron, The Hawk ou Jenny revelassem as suas identidades. MacKenzie estava convencido de que os guardas certamente tinham sido alertados sobre ele e Devereaux e, já que Sam era empregado de Pinkus, provavelmente sobre Aaron também; e, como S. J. Redwing já tinha anteriormente apresentado alegações no Tribunal, era possível que seu nome também já constasse da lista, bastando para isso que alguém tivesse feito o dever de casa e se informasse de que ela era membro da tribo dos Wopotamis. A inclusão de Jenny podia ser um pouco forçada, mas isso também acontecia com os bilhões de dólares secretos que pertenciam aos gananciosos inimigos do “falecido” Vincent Mangecavallo.

O terceiro obstáculo dependia exclusivamente da circunstância de Sam, Aaron e Hawkins encontrarem um banheiro masculino e Jennifer, um feminino antes que lhes fosse franqueado o acesso à augusta sala de audiências. De acordo com as detalhadas plantas, conseguidas sabe-se lá como por “parentes” de Vinnie, o Bam-Bam, com a devida confirmação da sua tia favorita, Angelina a Go-Go, no corredor do segundo andar, onde ficava a sala de audiências, havia duas instalações dessas, nas extremidades opostas do salão de mármore. A razão para encontrar os banheiros nos leva de volta ao objetivo inicial de enganar os guardas da Suprema Corte e conseguir entrar no tribunal. O conteúdo da arca, porém, fez com que Jenny gritasse de seu quarto.

— Sam, isto é impossível!

— O quê? — quis saber Devereaux, saindo do segundo quarto com um andar desajeitado, vestido com um terno de xadrez volumoso, calça balão, formando um conjunto que fazia com que a sua estrutura frágil aparentasse ter mais trinta e cinco quilos em cima. O que era ainda mais bizarro era a sua cabeça. O crânio estava coberto por uma peruca castanha, com os caracóis a cair sob um chapéu que fazia lembrar um empadão, ou seja, um chapéu de copa lisa e abas reviradas para cima, o favorito dos universitários dos anos vinte. Ele empurrou a porta parcialmente aberta do quarto de Redwing e parou à entrada. — Posso ajudar?

— Yahhh!

— Está gritando. Isso é sim ou não?

— Você deve ser quem?

— De acordo com a habilitação e o título de eleitor que vieram com minha roupa, meu nome é Alby-Joe Scrubb e sou proprietário de um aviário num lugar qualquer... Quem é você?

— Uma ex-corista! — respondeu Jenny, tentando mais uma vez fechar a couraça no peito generoso. — Pronto! Deixe, já consegui!... Agora é vestir esta blusa verde de camponesa que não conseguiria excitar um gorila privado de sexo há anos.

— Ela me excita — disse Sam.

— Você está um degrau abaixo dos gorilas, é mais facilmente excitável.

— Ei, estamos do mesmo lado. Agora, sério, quem vai personificar?

— Digamos que seja uma mulher perdida, cujos seios volumosos sob este colete à prova de bala devem desviar a atenção dos guardas das formalidades de controle para a sala de audiências.

— O Hawk pensa em tudo.

— Desce até a libido — concordou Redwing, enfiando a blusa pela cabeça e puxando-a até a minissaia amarela. Inclinou-se parcialmente para a frente, olhando de relance para o contorno dos seios no interior da blusa. — É o melhor que posso fazer — disse, com um suspiro.

— Vamos trabalhar nisso...

— Calma aí, pirata... Agora vem a parte pior. A “cobertura da cabeça”, como diz um amigo meu da turma de 49.

— Aí está a diferença — observou Devereaux. — Seu cabelo está esquisito, todo preso atrás ou algo assim.

— Como preparação para a vingança mais que perfeita de seu homem de Neanderthal. — Jenny pegou uma caixa grande e tirou uma peruca loura platinada, apoiada num capacete de aço. — Esse capacete à prova de bala é tão pesado que vou ficar com o pescoço doendo pelo resto do ano, se é que vou viver até lá.

— Também tenho uma coisa dessas — disse Sam, enquanto Redwing colocava a peruca/capacete.

— Pode-se sacudir a cabeça em sinal negativo, mas se acenar afirmativamente se arrisca a quebrar o pescoço.

— Acenar com a cabeça não condiz com minha imagem.

— Entendo o que quer dizer. Se esta é a vingança mais que perfeita do Mac, qual seria a perfeita?

— É óbvio. Ele monta uma cena comigo e um “cliente” da Delegacia de Costumes e serei presa como prostituta.

— Sam! — gritou Aaron Pinkus na sala. — Preciso de ajuda.

— Estou sendo requisitado — Devereaux saiu apressadamente, com Jenny nos seus calcanhares. A visão que tiveram não poderia ter sido mais improvável, com a possível exceção das suas próprias imagens refletidas no espelho. Desaparecera o vulto franzino mas, sem dúvida alguma, distinto, do mais destacado advogado de Boston. Em seu lugar, envergando um casaco comprido preto e um chapéu igualmente preto e de copa muito baixa, sob o qual pendiam duas tranças de cabelo também preto, estava um rabi hassídico. — Está a receber confissões ou os senhores não fazem esse tipo de coisas? — perguntou Sam.

— Isso nem sequer remotamente tem graça — retorquiu Aaron, experimentando dar alguns passos à frente. Caminhando de forma vacilante, agarrou-se à beira de uma mesinha com abajur, que, naturalmente, caiu no chão. — Todo o meu corpo está envolvido em ferro! — exclamou, furioso.

— É para seu próprio bem, Mr. Pinkus — disse Jennifer, contornando Devereaux com rapidez para segurar o velho, agarrando-lhe os braços. — O Cyrus deixou bem claro que isto era necessário.

— Só que esta proteção vai me matar, minha filha. Na Praia de Omaha, eu carreguei uma mochila de vinte quilos às costas, o que quase me fez afogar nalguns centímetros de água, e eu era muito mais novo nesse tempo. Esta roupa interior de metal é muito mais pesada e eu sou muito mais velho hoje.

— O pior vai ser a escadaria exterior do Tribunal e como nós temos de nos separar, farei com que o Johnny Nariz de Bezerro arranje alguém para o ajudar.

— Nariz de Bezerro? Acho que me lembro desse nome; não é um nome que se esqueça facilmente.

— Ele é o chefão do Mac na tribo — disse Sam.

— Ah, sim, ele ligou para a casa do Sidney e a Jennifer e o nosso general tiveram uma sessão de gritos, se bem me lembro.

— Johnny Nariz de Bezerro e MacKenzie Hawkins formam uma equipe perfeita. Um é vigarista e o outro não presta. O Nariz de Bezerro ainda me deve dinheiro de uma fiança e o Hawkins deve-me a minha alma, assim como a minha carreira... Mesmo assim, o Johnny arranjará alguém para o ajudar. É melhor que arranje, se não quiser que eu o acuse por desaparecer com milhares dos dólares, dinheiro esse que o general Trovão Maluco utilizou para subornar o Conselho.

— Ele fez isso? — perguntou Devereaux.

— Na realidade, não tenho a menor ideia, mas seria perfeitamente natural que o Johnny o tivesse tentado.

Ouviram-se umas pancadas rápidas na porta. Sam foi abrir e, mais uma vez, ficou meio espantado com a enorme elegância de Cyrus.

— Entre, Coronel, embora, para falar sinceramente, esteja mais parecido com uma versão mais escura do Daddy Warbucks.1

— A ideia é essa, Sam, e, para alargar ainda mais os seus horizontes, gostaria que conhecesse dois amigos meus, ou melhor, do “Juiz Oldsmobile” — Cyrus entrou e gesticulou para Desi Um e Desi Dois, dando-lhes a entender que fizessem o mesmo. Não eram, contudo, os Desi Arnaz de sempre. D-Um, com dentes postiços, vestia terno cinza clássico e camisa azul que realçava a gola branca de clérigo. D-Dois, religioso também, mas de fé diferente, usava terno preto e colarinho de sacerdote, juntamente com uma cruz dourada que caía sobre o rabat. — Permitam que lhes apresente o reverendo Elmer Pristin, ministro episcopal, e seu companheiro de protesto, monsenhor Hector Alizongo, de uma diocese católica nas Montanhas Rochosas.

— Céus! — exclamou Aaron, deixando-se cair ruidosamente numa cadeira.

— Meu Deus! — acrescentou a prostituta loura platinada, ou seja, Jenny.

— Ele a escuta — disse D-Dois, fazendo o sinal da cruz e, em seguida, corrigindo o gesto e abençoando todos os presentes... de trás para a frente.

— Não seja blasfemo — resmungou Desi-Um.

— É louco. Incluí o cara na bênção e é um protestante idiota!

— Chega, pessoal — disse Devereaux. — Já recebemos a mensagem... Cyrus, por que tudo isso?

— Primeiro, quero saber se encontraram tudo. Havia uma lista de verificação de itens — Jennifer, Sam e Aaron, cheios de dúvidas, acenaram afirmativamente com a cabeça. — Ótimo — continuou o mercenário. — Há algum problema com seu equipamento camuflex?

— O que é isso? — perguntou Pinkus, sentado na sua cadeira.

— Uma abreviatura de camuflagem externa... nossos disfarces. Queremos que se sintam o mais à vontade possível nessas circunstâncias. Há algum problema?

— Para ser sincero, Coronel — respondeu Aaron — talvez devesse alugar um guindaste para me fazer andar por aí.

— Isso não chega a ser um problema, Cyrus — disse Redwing. — Vou arranjar alguém da tribo para ajudar Mr. Pinkus.

— Desculpe, Jenny, mas não pode haver comunicação alguma com os Wopotamis, seja de que tipo for. Além disso, não é necessário.

— Ei, espere um pouco — interrompeu Devereaux. — Meu venerado chefe mal pode caminhar com essa armadura medieval!

— Ele será acompanhado e assistido a cada passo por dois outros religiosos.

— Nossos Desis?

— Exatamente. Ideia do Hawkins, e é formidável... o Reverendo Pristin e o Monsignor Alizongo se associaram ao Chefe dos Rabis Rabinowitz num protesto religioso perante a Suprema Corte, por decisões recentes que consideram ser ao mesmo tempo anticristãs e antissemitas. Não é possível criar maior sensação, a não ser que se junte a isso a atitude antinegros, o que, naturalmente, faria diminuir a cobertura da televisão.

— É isso mesmo — concordou Sam. — A propósito, onde está Roman Z?

— Não quero nem pensar — retorquiu Cyrus.

— Ele não desertou, certo? — exclamou Jenny.

— Nem por um minuto. Há um velho ditado cigano roubado dos chineses que diz que o homem que salva a vida de outro pode viver a sua custa pelo resto da vida.

— Não creio que ele tenha entendido bem — disse Aaron. — Creio que é o contrário.

— Claro que sim — concordou Cyrus. — mas os ciganos mudaram e é tudo o que precisa saber.

— Mas onde ele está? — insistiu Redwing.

— Dei dinheiro a ele para alugar uma câmera de vídeo. Suspeito que neste momento ele esteja roubando uma de algum vendedor crédulo,dizendo que só quer verificar a refração da lente à luz do sol. Posso estar enganado,mas duvido.Ele detesta pagar pelo que quer que seja... creio que ele realmente acredita ser antiético.

— Ele devia se candidatar ao Congresso — disse Sam.

— Mas por que uma câmera? — quis saber Redwing.

— Foi ideia minha. Acho que devemos ter um registro audiovisual do protesto dos Wopotamis, tão extenso quanto possível, incluindo qualquer tentativa de determinados indivíduos de interferir, perturbar ou impedir cidadãos americanos de exercerem o direito de livre reunião e de petição.

— Eu sabia — exclamou Pinkus, com voz frágil, sentado na sua cadeira. — Ele pode ser soldado profissional e químico, mas também é um advogado.

— Nem por isso, sir — contestou Cyrus. — Por conta de algumas confusões vividas durante uma juventude turbulenta, eu... nós... tivemos de compreender certos direitos constitucionais.

— Espere um momento — disse Devereaux, com uma nota de ceticismo na sua voz tranquila. — Vamos pôr de lado essa história de “Nós venceremos” por um instante e cuidar desse assunto. Um vídeo não editado, com data e tempo contado em segundos em cada fotograma é geralmente considerado prova irrefutável, não é verdade?

— Acho que vários congressistas e senadores e um ou dois prefeitos concordariam com você, Sam —, disse o mercenário, com a sugestão de um sorriso no rosto. — Especialmente aqueles que trocaram temporariamente os ovos Benedict pela variedade em pó em louça nada elegante.

— Sim, e se tivermos uma fita com indivíduos específicos envolvidos em comportamento ilegal de natureza violenta durante o protesto dos Wopotamis...

— E — interrompeu Redwing, olhando para Devereaux, que assentiu, como se dissesse "esteja à vontade" — se esses indivíduos desagradáveis ??fossem identificados como estando sob as ordens de uma ou outra agência do governo, teríamos considerável vantagem legal.

— Não só pró-Governo — disse Cyrus. — Há um bando de gorilas no meio daquela multidão que foi pago para detê-los. Seus empregadores estão tão endividados que até pensar em vocês lhes dá uma vontade enorme de mastigar tapetes, ao mesmo tempo em que molham as calças.

— Obstrução violenta do processo legal — acrescentou Sam. — Na possibilidade de condenação a dez anos de cadeia, nem um só desses bandidos resistiria a contar tudo.

— Coronel, eu o saúdo! — disse Aaron, chegando para a beira da cadeira. — Mesmo que tudo dê errado, teremos posições secundárias de defesa.

— Eu chamo isso de fritar as bundas dos que fritariam a sua primeiro, Mr. Pinkus.

— Sem dúvida alguma! Sabe de uma coisa, com diploma de Direito ou não, quero que considere a possibilidade de aceitar uma posição na minha firma, digamos, como estrategista na área do direito criminal.

— Fico lisonjeado, sir, mas acho melhor conversar primeiro com seu amigo Cookson Frazier. Parece que ele tem uma casa no Caribe, duas na França, um apartamento em Londres... várias outras propriedades, cujo número ele não se recorda bem, na região de esqui do Utah ou do Colorado. Todas foram arrombadas e ele quer que eu cuide de sua segurança.

— Palavra de honra, que coisa maravilhosa para você! Será terrivelmente bem pago. E vai aceitar, claro.

— Talvez por umas poucas semanas, mas se houver alguma possibilidade concreta, gostaria de voltar ao laboratório. Sou engenheiro químico; é ali que está a verdadeira aventura.

— Agora já ouvi tudo — disse Devereaux, sacudindo a cabeça, o que fez seu chapéu girar.

Bateram furiosamente na porta. — Fiquem onde estão — disse Cyrus, calmo, enquanto os demais reagiam em estado de choque. — É Roman. Ele acha que sua entrada em qualquer sala é uma espécie de atuação, sobretudo quando a polícia está atrás dele.

O mercenário abriu a porta; a figura em pé no corredor era de fato Roman Z, mas, em vez de uma câmera de vídeo, tinha duas em cada mão, bem como uma grande bolsa de náilon pendurada no ombro largo por uma correia grossa. A camisa de seda laranja, a faixa de seda azul, a calça preta justa e o brinco de ouro tinham também desparecido. Agora, sua imagem era a de um profissional de mídia, dos que vemos saltando das vans das emissoras de televisão nas cenas de acidentes ou incêndios dos noticiários televisivos. Estava usando calça Levi's limpa, mas bem desbotada, e camiseta branca com os dizeres, em letras grandes, WFOG-TV IMPRENSA.

— Missão cumprida, meu queridíssimo amigo... Coronel — anunciou Roman, entrando na sala, com suas palavras diminuindo de intensidade, à medida que seus olhos absorviam a visão de Sam, Jenny e Aaron. — Será que há algum urso dançarino por aqui?

— Se houver, é você — disse Cyrus. — Os ursos saqueiam... Por que quatro câmeras?

— Talvez uma estrague — retorquiu o cigano, sorrindo. — Há muita fita também — acrescentou, apontando para a bolsa.

— Onde está o recibo?

— O quê?

— O papel que mostra o montante do aluguel e o depósito que pagou à loja.

— Ah, eles não quiseram. Ficaram felizes de cooperar.

— Do que está falando, Roman? — perguntou Redwing.

— Coloquei na conta, Miss Janey... se é que você é Miss Janey, embaixo desse belo vestido.

— Na conta de quem? — quis saber Devereaux.

— Desta gente aqui! — o cigano apontou com orgulho para o letreiro na camiseta. — Eu estava com muita pressa e eles compreenderam.

— Não existe “essa gente”! — exclamou Cyrus.

— Um dia escrevo uma carta para eles. Digo-lhes que lamento muito.

— Por favor, Coronel — disse Pinkus, esforçando-se por se levantar com ajuda de Jenny. — Não temos tempo para uma auditoria. O que fazemos agora?

— É simples — respondeu Cyrus.

Não era.

 

2h16 P.M. Bum-bum, bum-bum, bum-bum... bum-bum,. bum-bum, bum-bum!... Hay-ya, hay-ya... hay-ya... hay-ya, hay-ya, hay-ya! Os tambores ressoavam enquanto os cantores batiam com os pés e cantavam, os cartazes eram erguidos e o povo ficava atordoado; a escadaria da Suprema Corte encheu-se de uma loucura Wopotami. Quando as dançarinas que protestavam iniciaram uma dança invulgarmente atraente e as suas saias voaram bem alto, os turistas ficaram furiosos, mais as mulheres do que os maridos.

— Jebediah, não podemos passar!

— Sim.

— Onde está a polícia?

— Sim.

— Olaf, essa gente doida não vai nos deixar passar!

— Sim.

— Devia haver uma lei!

— Sim.

— Stavros, isto nunca aconteceu no templo de Atenas!

— Sim.

— Pare de olhar!

— Não... ah, desculpe, Olympia.


Na esquina da rua do Capitólio, escondidos na reentrância de um portal, estavam dois homens altos. Um deles resplandecia num uniforme completo de general do exército, o outro vestia roupas esfarrapadas de vagabundo. O vagabundo saiu do esconderijo, deu uma olhada na ponta do prédio e voltou correndo para perto do general.

— As coisas estão evoluindo, Henry — disse MacKenzie Hawkins. — Eles estão mesmo ficando muito excitados!

— A imprensa já chegou? — perguntou Sutton, o ator. — Deixei bem claro que não entro em cena enquanto as câmeras não estiverem lá.

— Algumas estações de rádio já chegaram. Já vi pessoas com microfones.

— Não basta, meu caro amigo. Eu falei em câmeras.

— Está bem, está bem! — O Hawk saiu correndo de novo, deu outra olhada e voltou correndo. — Uma equipe de TV acaba de chegar!

— Qual é a estação? É uma rede?

— Como eu posso saber?

— Descubra, mon général. Tenho meus padrões.

— Cristo num balanço!

— Não é preciso blasfemar, MacKenzie. Olhe de novo.

— Você é impossível, Henry!

— Espero que sim. É a única forma de se chegar a algum lado neste negócio. Depressa, vá. Sinto-me impelido a representar; é o estímulo da plateia, quando você ouve as pessoas a entrar no teatro.

— Nunca sentiu nervosismo, medo da plateia?

— Meu bom amigo, eu nunca tive medo de plateia alguma, o medo que tenho é de mim mesmo. Atravesso o palco como um trovão.

— Merda! — o Hawk saiu correndo de novo, mas, em vez de voltar para junto do ator, permaneceu onde estava e viu o que estava à espera de ver. Quatro táxis pararam do outro lado da rua, com intervalos de poucos segundos. Do primeiro saltaram três homens em trajes religiosos: um padre, um ministro e um rabi idoso, o qual era ajudado pelos dois cristãos. Do segundo táxi emergiu a Marilyn Monroe das putas, a fazer oscilar as ancas... um pouco desajeitadamente, diga-se a verdade, mas quem é que estava a observar? O terceiro táxi depositou o camponês-mor da região dos Ozarks, com algo parecido com caca de galinha a pingar do chapéu de abas reviradas e a cair sobre as suas calças largas de xadrez. O quarto táxi se encarregou da tarefa banal de pagar as corridas dos que estavam na frente. Um negro enorme, elegantemente vestido, saltou dele, quase que encolhendo o carro.

Como estava programado, Jennifer, Sam e Cyrus caminharam em direções diferentes, sem sinais de reconhecimento entre eles, mas nenhum atravessou a rua em direção à Suprema Corte. Os três religiosos permaneceram na calçada, a discutir entre si, com a cabeça do rabi a fazer movimentos para a frente, enquanto os dois cristãos acenavam afirmativamente com as cabeças e abanavam-nas em sinal de desaprovação, alternadamente. The Hawk meteu a mão no bolso esfarrapado e tirou o rádio.

— Nariz de Bezerro, está-me a ouvir? Nariz de Bezerro, responda!... (Não havia necessidade de nome de código.)

— Não grite, C.T., esta coisa está no meu ouvido!

— O nosso contingente chegou...

— Bem como metade da população de tarados de Washington. E é mesmo metade... a outra metade gostaria de arrancar o escalpo às nossas mulheres!

— Diga-lhes para manter isso alto.

— Que altura? A da cinta-liga?

— Não é disso que eu estou falando! Continuem a cantar e batuquem ainda mais alto. Preciso dos próximos dez minutos.

— Eu aviso, C.T.!

O Hawk voltou a correr para a reentrância do portal. — Daqui a dez minutos, Henry, você faz a sua entrada em cena!

— Tanto tempo?

— Tenho de fazer umas coisas e quando eu voltar, saímos daqui juntos.

— O que você tem de fazer?

— Tenho que eliminar uns inimigos.

— O quê?

— Nada que seja motivo de preocupação. Eles são jovens e inexperientes — MacKenzie saiu a correr, vestido com a sua roupa de vagabundo.

E, um a um, os quatro comandos rangers, nos uniformes camuflados em verde e preto, sentiram um tapinha nas costas e, subsequentemente, foram deixados inconscientes por um velho mendigo. Acabaram arrastados até a sarjeta, onde seu rosto foi molhado com doses generosas de Southern Comfort, e ali foram deixados, estendidos no chão até recuperarem os sentidos.

Contudo, e a juntar à ansiedade de Sir Henry, os “dez minutos” passaram a doze, vinte e, finalmente, quase meia hora. O Hawk localizara cinco agentes federais de terno, colete e rosto de pedra, bem como seis cavalheiros cujas sobrancelhas grossas e testas largas situavam-se, certamente, num plano inferior ao dos gorilas africanos. Todos foram despachados de forma semelhante.

— Amadores! — murmurava o Hawk para si mesmo. — Que tipo de comandantes é que eles têm?... — Quem quer que fossem, sem dúvida que não se tinham esquecido das relações públicas! Um filho da puta qualquer vestido com uma camiseta passou o tempo todo a filmar com a sua câmera de vídeo, focando sobretudo os que se opunham aos manifestantes, no interesse, obviamente, dos indivíduos que lhes tinham dado suas ordens. Ha! Uma piada! Mas sempre que o Hawk tentava apanhar o filho da mãe com a câmera, ele girava como um maldito bailarino e desaparecia entre a multidão.

E era uma multidão compacta, quando Mac voltou para o portal. Só que Sir Henry Irving Sutton não estava lá! Onde diabo é que ele estaria?... O ator tinha-se afastado um pouco do prédio e estava atônito, a observar a confusão nos degraus do tribunal. Na frente dos quarenta e muitos manifestantes Wopotami, que continuavam a bater com os pés, a cantar e a bater nos seus tambores, , tinham surgido várias brigas, mas as violentas altercações não pareciam ter nada a ver com os índios.

— Oh, meu Deus! — disse o Hawk, pondo a mão no ombro de Sutton. — Já não sou o jovem de antigamente!

— Nem eu. E depois?

— Há alguns anos atrás, nenhum desses filhos da mãe se teria levantado. A não ser que houvesse um número muito maior do que o que eu vi.

— Quem?

— Esses palhaços que estão aos murros uns aos outros, ali no meio da multidão de turistas.

E, na realidade, lá estavam eles. Os agentes engravatados gritavam com os comandos camuflados, que avançavam na sua direção para os atirar por cima dos ombros, enquanto os gorilas, sabendo que, em qualquer briga, ou eles saíam vencedores ou voltavam a trabalhar na loja do sindicato, entravam na refrega munidos de soqueiras e bastões curtos de cabo flexível. Um tumulto de grandes proporções não estava apenas em preparação, já estava em curso. Os turistas, agredidos a soco e derrubados pelos combatentes, gritavam furiosos; os que estavam envolvidos no combate mortal, aturdidos devido à ausência de uniformes ou de qualquer outro objeto que lhes permitisse identificar os seus inimigos, atacavam qualquer coisa que se mexesse perto de si, enquanto o idiota com a câmera de vídeo não parava de gritar “Glorioso!” enquanto fazia as suas piruetas.

— Vai, Botão de ouro! — gritou Hawkins para o rádio.

— Certo, Narciso, mas temos um problema — ouviu-se a voz do Coronel Cyrus.

— Que problema?

— Está tudo bem com o trio religioso, mas perdemos a puta e o campônio! Pocahontas ficou uma fera quando uma turista atirou um punhado de bombinhas de carnaval nos pés dos dançarinos e gritou alguma coisa em grego. Nossa garota foi atrás dela e Sam foi atrás da nossa garota!

— Faça-os voltar, pelo amor de Deus!

— Quer mesmo que o Juiz Oldsmobile entre naquele bolo e parta uma meia dúzia de cabeças?

— Que se dane, não temos muito tempo! Já são quase quinze para as três e precisamos entrar, mudar de roupa e nos apresentar aos oficiais de justiça às três horas!

— Pode ser que nos concedam alguns minutos de tolerância — interrompeu Cyrus. — Até mesmo os juízes devem saber o caos que está aqui fora.

— Um caos Wopotami, Botão de Ouro! Mesmo sendo necessário, vamos dizer que não é no nosso interesse!

— Espere aí! Nosso campônio está trazendo de volta a Pocahontas... com a cabeça dela enfiada embaixo do seu braço, devo acrescentar.

— De vez em quando esse rapaz consegue fazer alguma coisa que preste!... Relate a situação e toca a andar!

— Vou fazer isso. Quando nosso general sai daí?

— Assim que vir o campônio e a princesa atravessando a rua, separadamente e com ela na frente... Onde estão os três zés religiosos? Não consigo vê-los!

— Nem poderia. Estão do lado de cá, abrindo caminho nessa confusão. Eu achava que o povo tinha mais respeito por padres e outros cidadãos desse tipo. Os dois Desis, Um e Dois, já esmurraram uns dez campônios e juro que vi D-Um afanando cinco relógios.

— Era só o que nos faltava, um pregador-assaltante!

— Pois é o que temos aqui, Narciso... desligo, aqui estão nossos dois advogados, Punch e Judy.2

— Chicote neles, Coronel. É uma ordem!

— Ouça, patrão, o senhor tem sorte em eu ser mais esperto do que o que pensa, senão eu poderia ter ficado ofendido.

— Como é?

— Deixe lá, os seus instintos estão certos. Desligo.

O Hawk enfiou o walkie-talkie no bolso do seu sobretudo esfarrapado e voltou-se para Sutton.

— Faltam poucos minutos, Henry. Está pronto?

— Pronto? — disse o ator, controlando a fúria — Seu idiota! Como posso dominar o palco com aquela barulheira toda?

— Vamos, Hank, umas duas horas atrás você disse que esse tipo de coisa era praticamente “nos bastidores”.

— Foi uma análise objetiva e não uma interpretação subjetiva. Não há papéis menores, só há intérpretes menores.

— Hein?

— Você é extremamente insensível no que diz respeito às artes, MacKenzie.

— Ah, sim?

— A linda Jennifer está a atravessar a rua... Meu Deus, a encarregada do guarda-roupa deveria ser demitida imediatamente! Ela parece uma rameira!

— É exatamente essa a ideia... Lá vai o Sam...

— Onde?

— Aquele cara de terno xadrez...

— Com aquele chapéu ridículo?

— Ficou com um ar diferente, não ficou?

— Ficou com um ar absolutamente estúpido!

— É o que nós queremos. Nada de advogados sabichões por aqui.

— Meu Deus! — exclamou o ator. — Viu aquilo?

— Viu o quê?

— O padre de terno cinza... ali... o que está subindo a escada com um outro padre e um homem que parece ser um velho rabino, entre os dois.

— Haha... O que aconteceu?

— Juro que o tal vigário acabou de dar um murro num homem e de roubar seu relógio. Arrancou o relógio do pulso dele!

— Maldição! Eu disse ao coronel que era só o que nos faltava, um pregador roubando seu rebanho.

— Você sabe...? Ora, que besteira a minha, claro que sabe. O homem velho com roupa de rabino é Aaron! E os outros dois são aqueles caras da Argentina ou do México, não sei bem!

— De Porto Rico, mas isso não tem importância. Eles chegaram ao alto da escada, vão entrar!... Ligue o rádio, General!

Saíram ruídos do rádio do Hawk; ele o tirou do bolso quando a voz de Cyrus irrompeu.

— Estou atravessando a rua. Deseje-me sorte!

— Todos os sistemas funcionam, Coronel... Nariz de Bezerro, está ouvindo?

— Estou aqui, não berre. O que é?

— Acabe com essas coisas de índio e passe para o hino nacional.

— O nosso é melhor, mas podemos cantar esse.

— Agora, Johnny! Nosso general está saindo!

— É para já, cara-pálida.

— Pronto, Henry! Veja se isso sai direito!

— Nunca me saí mal, seu bobão — disse o ator, respirando fundo, esticando-se até atingir toda a sua imponente estatura e caminhando, a passos largos, em direção à multidão tumultuosa e à súbita interpretação pelos Wopotami do hino nacional dos Estados Unidos. O coro era, numa palavra, espetacular. Aquelas vozes a subirem aos céus e a visão dos quarenta rostos pintados e chorosos, pertencentes aos habitantes primitivos do país, tiveram um efeito notável sobre a multidão. Até mesmo os comandos, ferozmente agressivos, em combate mortal com os bandidos dos sindicatos, mantiveram os seus adversários à distância, com os braços esticados e as mãos à volta dos seus pescoços. Os gorilas largaram as suas soqueiras e os seus bastões e ficaram a olhar fixamente para aquelas figuras trágicas que cantavam, com profunda emoção, o amor que sentiam por uma terra que lhes tinha sido roubada. Muitas lágrimas começaram a assomar aos olhos dos espectadores.

— Agora chegou o inverno da nossa desesperança! — urrou Sir Henry Irving Sutton, na sua voz mais estentórea, ao chegar ao quarto degrau da escada. — Os cães podem ladrar — prosseguiu, virando-se para a multidão —, mas nossos olhos veem com clareza. Um erro terrível foi cometido, e estamos aqui para repará-lo! Ser ou não ser, eis a questão...3

— Esse filho da mãe pode continuar assim horas a fio — cochichou MacKenzie pelo rádio. — Onde estão todos? Respondam pelos seus números!

— Estamos no salão grande de pedra, mas não pode compreender, Heneral...

— Tenho a princesa e o campônio comigo — disse Cyrus — e realmente não pode compreender!

— De que diabo estão falando?

— De um detalhezinho em que não pensou — explicou o mercenário. — Eles têm detectores de metal aqui e se Jenny, Sam ou Mr. Pinkus passarem pelos detectores, acionarão um alarme no prédio e, provavelmente, em quase toda a cidade de Washington.

— Oh, meu Deus! Em que este país está se transformando?

— Suponho que deveria dizer algo como “procure as razões”, mas neste exato momento estamos ferrados.

— Ainda não, Botão de Ouro — gritou o Hawk. — Nariz de Bezerro, ainda está ouvindo?

— Claro que estou, C.T., e nós também temos um problema. Nosso povo já não aguenta mais seu amigo Vinnie. Ele é um grande chato.

— O que ele fez? Ele só está com vocês desde a manhã de hoje... o que ele pode ter feito?

— Ele passa o tempo se queixando! Depois aparece o amigo dele, aquele baixinho que fala como uma galinha, e antes que se possa dizer Geronimo, já havia dezenas de jogos de dados por todo o motel, com o tal Joey não-sei-o-que correndo todos os quartos para acompanhar a ação. O que ele faz, é bom que se diga, com dados muito esquisitos. Ele “limpou” muitos guerreiros.

— Não há tempo para esse tipo de coisa!

— Então faça com que haja, C.T., enquanto seu general-muito-parecido-com-você, tenho que admitir, grita ali na escadaria. Nosso pessoal está furioso e já decidiu que isso não pode continuar. Querem correr com esses dois crápulas e querem seu dinheiro de volta!

— Eles terão seu dinheiro de volta, multiplicado por cinquenta, eu prometo!

— Que merda! Está vendo o mesmo que eu, C.T.?

— Estou na outra ponta e tem muita coisa acontecendo...

— Muitos caras vestidos com uma roupa engraçada, preta e verde, está irrompendo entre nossas fileiras... espere um segundo! Agora outros estão se juntando a eles, parecem jogadores de defesa de alguma equipe de futebol ou macacos em ternos de homens de negócios. Estão indo atrás do seu general!

— Execute o Plano B, Prioridade Número Um! Tire-o de lá! Não podemos deixar que seja ferido... Faça com que comece o canto e a dança. Agora!

— E o que me diz desses dois canalhas, Vinnie e o galinha?

— Sente em cima deles.

— Já fizemos isso no ônibus. O baixinho mordeu o rabo de Olhos de Águia.

— Execute a ordem. Vou avançar!


O coronel Tom Deerfoot4, comprovadamente o oficial mais inteligente da Força Aérea dos Estados Unidos e candidato certo à chefia do Estado-maior Conjunto, estava a passear pelas ruas de Washington, mostrando aos sobrinhos as paisagens de costume. Quando o trio virou à direita na Constitution Avenue rumo à Suprema Corte, os ouvidos do coronel captaram vários sons familiares, guardados algures, nos seus bancos de memória; cantos que remetiam para a sua infância, quarenta tantos anos antes, a norte do estado de Nova York, perto da fronteira canadense. Tom Pé de Veado era um índio mohawk puro, e as palavras e ritmos que ouviu não passavam de uma ligeira variação da linguagem da sua tribo.

— Ei, tio Tommy! — exclamou o seu sobrinho, um garoto de dezesseis anos. — Há ali um tumulto!

— Quem sabe se não seria melhor voltarmos para o hotel — sugeriu a sobrinha, uma jovem de quatorze anos.

— Não, vocês estão perfeitamente seguros — disse o tio. — Esperem aqui, volto já. Há qualquer coisa esquisita que se está a passar. — Pé de Veado, como se depreende do seu nome, era um esplêndido corredor e, em menos de trinta segundos, tinha chegado às proximidades da multidão confusa e rebelde que se encontrava na escadaria da Suprema Corte. Que loucura! Eram índios, cobertos de pintura de guerra, a bater com os pés, a dançar e a gritar a plenos pulmões, num protesto fanático cuja natureza foi difícil de determinar.

Nesse momento, voltaram as recordações, as lendas contadas pelos anciãos da tribo, de geração em geração. O idioma que estava a ouvir era similar mas diferente, as batidas dos pés que acompanhavam o canto eram uma imitação razoável, mas não eram autênticas. Meu Deus do céu! Eram os Wopotamis! Havia muitas histórias antigas que falavam de como os Wopotamis roubavam tudo o que viam, inclusive a língua que falavam, e nunca deixavam as suas tendas quando nevava! O Coronel Pé de Veado dobrou-se, perdido de riso, segurando a barriga com as mãos para não cair na calçada com um ataque histérico. O frenesi selvagem daquele canto de protesto, com sua dança altamente sugestiva, era a “Celebração da Noite de Núpcias”.

Os Wopotamis nunca conseguiam fazer coisa alguma direito!

— Nariz de Bezerro, ouça e execute! — cochichou o Hawk asperamente no rádio, enquanto abria caminho entre os dançarinos até a entrada do Tribunal.

— E agora? Já tiramos de lá seu general, que não para de berrar que “ainda não acabou“! Little Joey tem razão, ele é um fazool!

— Little Joey?... Fazool?

— Sim, fizemos um acordo. Ele vai nos devolve metade do dinheiro e eu fico com vinte por cento do seu lucro.

— Johnny, estamos numa crise!

— Não, não estamos, os dois vigaristas estão num bar no fundo da rua. Sabe de uma coisa, a peruca vermelha do Vinnie não favorece em nada sua imagem. Fica deselegante, entende o que quero dizer?

— Oh, meu Deus, você está falando como ele!

— Na realidade, depois que o conhecemos melhor, vemos que ele não é um cara ruim. Sabia que essas etnias índias são muito respeitadas em Las Vegas? Nevada foi um grande território pele-vermelha, sabia?

— Estou falando do presente! Plano B, Prioridade Dois, a invasão pacífica da Corte!

— Você perdeu a maldita cabeça! Está maluco! Podemos levar um tiro!

— Não, se caírem de joelhos e ficarem gemendo, logo que estiverem lá dentro. É antiamericano atirar em gente ajoelhada.

— Quem disse isso?

— Está na Constituição. Não se pode atirar numa pessoa ajoelhada, pois ela morreria em estado de graça, enquanto a pessoa que atira será fuzilada por Deus.

— Sério?

— Sério. Vá!

O Hawk voltou a meter o rádio no bolso do sobretudo esfarrapado, ainda no grande saguão da Suprema Corte, enquanto Cyrus mantinha Aaron, Jenny, Sam e os dois Desis num canto, longe dos detectores de metal em forma de arco.

— Agora ouçam — disse o químico-mercenário. — Quando os Wopotamis entrarem, o D-Um e o D-Dois erguerão os cordões de isolamento e vocês — Sam, Jenny e Mr. Pinkus — passam por baixo e se dirigem ao segundo andar. Usem a escada ou os elevadores, o que quiserem, e procurem o segundo armário à direita. Suas outras roupas estão lá. Troquem-se no banheiro e sigam para a sala de audiências, na extremidade oeste do saguão. Estarei à espera.

— E Mac? — indagou Devereaux.

— Se bem o conheço, e nesta altura acho que já o conheço bem, estará naquele armário antes de vocês, distribuindo a mercadoria. Ei, cara, como eu gostaria que esse homem tivesse comandado algumas das poucas campanhas em que estive. Eu sou bom, mas ele é o máximo, é um autêntico demônio!

— É uma recomendação, Cyrus? — quis saber Pinkus.

— É bom que acredite, Rabi. Eu o seguiria até o inferno e voltaria, porque sei que ele saberia voltar.

— Bem, ele nunca nadou vinte quilômetros debaixo de um furacão...

— Cale-se, Sam... Oh, oh, aí vêm eles!

— Grande Abraão! — murmurou Aaron Pinkus, no momento em que uma horda de Wopotamis, com as caras pintadas com cera a pingar grotescamente, irromperam pelas portas e imediatamente caíram de joelhos, cantando em uníssono, com as cabeças erguidas para o teto, a implorar aos seus deuses a restituição da sua dignidade. (Se alguém o soubesse, o que não acontecia, tratava-se ainda da “Celebração da Noite de Núpcias”.)

As armas de uma dezena de guardas foram sacadas e apontadas para as cabeças dos manifestantes. Nenhuma foi disparada. De alguma forma, estava escrito na Constituição, ou, pelo menos, estava entranhado nas mentes da polícia da Suprema Corte que não se disparava sobre quem estivesse a rezar. Em vez disso, soaram alarmes, mas não dos sensores; provinham de dentro do edifício. Numa questão de segundos, apareceram mais guardas, funcionários e pessoal da manutenção. O pandemônio aumentou.

— Agora! — cochichou Cyrus, no momento em que Desi Um e Desi Dois erguiam as grossas cordas de veludo. Sam, Aaron e Jenny mergulharam por baixo delas, durante a loucura com que se confrontaram a polícia e os funcionários do tribunal.

E foi durante esse novo e inesperado caos que MacKenzie Hawkins passou pelos detectores de metal, não tendo agradecido a ninguém, já que também não encontrou qualquer pessoa por perto, e correu para a escadaria que dava para o segundo andar.

Um problema. Naturalmente. A tia Angelina de Vinnie, o Bam-Bam confundira o segundo armário à direita com um compartimento de um grande máquina de ar condicionado, e assim, durante alguns preciosos minutos, o saco preto de plástico que tinha as suas roupas não pôde ser encontrado. De repente, houve uma explosão abafada, que nenhum deles realmente percebeu.

— Encontrei! — gritou Sam, empurrando, com seu entusiasmo, uma alavanca de comando do ar condicionado. — Parou tudo — acrescentou, espantado com a parada da enorme máquina.

— Quem se importa com isso? — retorquiu Jennifer, amparando Pinkus, enquanto The Hawk se aproximava correndo, jogando fora o sobretudo do mendigo.

— Ah, estão aí! — berrou ele. — A maldita porta da escada estava trancada pelo lado de dentro!

— Como entrou? — perguntou Devereaux, tirando do saco as roupas de Redwing.

— Ando sempre com alguns explosivos de plástico... nunca se sabe.

— Achei mesmo ter ouvido uma explosão — disse o exausto Pinkus.

— E ouviu mesmo — admitiu Hawkins. — Vamos.

— Onde fica banheiro feminino? — perguntou Redwing.

— Lá no fundo — respondeu MacKenzie, apontando para leste.

— Onde fica o nosso? — indagou Sam.

— Muito mais perto, bem ali à esquerda.

Separaram-se e, de repente, Jennifer gritou.

— Sam! Posso me vestir perto de você? Só temos três minutos e aquela porta está a dois campos de futebol de distância!

— Ei, como eu esperei essas palavras!

A puta platinada voltou correndo para perto do camponês criador de galinhas e ambos seguiram Pinkus e o Hawk. Jenny meteu-se num compartimento pequeno, enquanto os homens trocavam roupas e perucas pelos trajes mais dignos com que estavam vestidos sob a bizarra camuflagem externa.

A exceção foi The Hawk. No fundo do grande saco preto de lixo, dispostas em camadas para facilitar a remoção, estavam as peças completas do traje cerimonial do Cabeça de Trovão, chefe dos Wopotamis, incluindo o mais comprido e enfeitado cocar de penas já visto desde que os Okeechobees saudaram um cosmetólogo perdido, chamado Ponce de León, na costa da futura praia de Miami. Ele tirou rapidamente as calças de vagabundo e a camisa manchada, substituindo-as pelo conjunto de calças de pele de gamo e blusão de pele de búfalo adornado de contas. Em seguida, perante os olhares atônitos de Aaron e Sam, colocou cuidadosamente o gigantesco cocar sobre a cabeça. As penas cobriam inteiramente a altura de um metro e noventa que ia da cabeça de MacKenzie Hawkins ao chão coberto de ladrilhos.

Um minuto mais tarde, Redwing saiu do compartimento onde se vestira com um elegante traje escuro, a imagem de uma advogada fria e bem-sucedida, em nada receosa de enfrentar a Suprema Corte, mesmo que dominada por homens. O que momentaneamente a aterrorizou, contudo, foi a visão de MacKenzie Hawkins.

— Ahhh! — gritou.

— Foi exatamente o que eu senti — disse Devereaux.

— General — acrescentou Pinkus, colocando no título uma súplica sutil, mas ansiosa. — Isto não é um desfile de fantasias no Rose Bowl de Pasadena. Esses processos estão entre os mais sérios e veneráveis do nosso sistema judicial e o seu traje, por mais esplêndido que seja, não pode ser considerado adequado para a ocasião.

— Qual é a ocasião, Comandante?

— A ocasião em que apenas se vai definir o futuro da tribo Wopotami e o de um grande segmento da estrutura defensiva da Nação.

— Fico com a primeira parte. Caso encerrado. Além do mais, é tudo o que tenho, a menos que o senhor queira que eu entre lá como um membro dos Mendigos Anônimos... o que, de um outro ponto de vista, não seria má ideia.

— Ficamos com as penas — apressou-se a dizer Jennifer.

— Aquele sobretudo imundo ainda está, provavelmente, no corredor — disse Hawkins, pensativo. — Não há ninguém aqui em cima que o possa encontrar; toda a gente está lá embaixo... Pensem só nisto, um indigente pertencente a um povo oprimido e desvalido... em farrapos e talvez a segurar a barriga pela fome que sente.

— Não, Mac! — gritou Sam. — Eles levá-lo-iam daqui para fora, para lhe tirarem os piolhos.

— Suponho que é possível que isso possa acontecer — disse o Hawk, de sobrolho franzido. — Esta cidade não tem coração.

— Trinta e cinco segundos — anunciou Redwing, dando uma olhada ao relógio. — É melhor irmos.

— Não creio que um ou dois minutos de atraso possam ter importância — disse Aaron. — Há uma verdadeira insurreição lá embaixo, as massas estão a investir contra as barricadas, por assim dizer.

— Não é a investir, Comandante, mas sim a rezar Há uma grande diferença.

— Ele tem razão, Aaron, e a diferença não nos beneficia — disse Devereaux. — Quando os guardas perceberem que se trata basicamente de uma demonstração pacífica, o alerta será cancelado e os outros regressarão a seus postos. Você nunca esteve antes numa audiência como esta, pois não, chefe?

— Três ou quatro vezes — respondeu Pinkus. — Estabelece-se a autenticidade da identidade do recorrente, bem como a do seu advogado e a de quaisquer amici curiae que possam estar presentes. Em seguida, são apresentadas as alegações.

— Quem é que está à porta da sala de audiências, Comandante? Um guarda e um oficial de justiça, General. Bingo! — urrou o Hawk. — Um deles ou até ambos terá nosso nome numa lista. O aviso será dado via rádio e imediatamente aparecerão uma dúzia de tipos que nos levarão para fora da sala. Nunca conseguiremos entrar!

— Não está falando sério, com certeza — disse Jennifer. — Esta é a Suprema Corte. Ninguém consegue comprar guardas ou funcionários para fazer esse tipo de coisa.

— Tente pensar numa dívida de bilhões e em muita gente constrangida no Pentágono, bem como no Departamento de Estado e no de Justiça, além de algumas dezenas de sanguessugas no Congresso, e compare com umas poucas centenas de milhares de dólares espalhadas por estas paredes santificadas!

— O Mac tem razão — disse Sam.

— A carne é fraca — observou Aaron.

— Vamos sair daqui! — concluiu Redwing.

Foi o que fizeram, apressando-se tanto quanto o decoro lhes permitia em direção às imensas portas entalhadas que davam para a sala de audiências. Para seu alívio, viram o vulto imponente de Cyrus; e para seu espanto, viram também os dois Desis, ajoelhados um de cada lado de Cyrus, vestidos com os seus trajes religiosos.

— Coronel, o que os meus ajudantes estão fazendo aqui?

— General, que diabo é isso que tem vestido?

— É o manto da minha função tribal, é claro. Agora responda à minha pergunta!

— A ideia foi do Desi-Um. Ele disse que, já que tinham ido tão longe, mesmo sem saberem bem o motivo de tudo isto, acharam que lhe deveriam assegurar uma proteção adicional. Não tiveram qualquer problema em chegar aqui acima... lá embaixo parece que está a haver uma revolta num hospício.

— Que amor — disse Jennifer.

— Que burrice! — exclamou Devereaux. — Eles serão identificados, presos e interrogados e a nossa entrada ilegal será notícia de primeira página!

— O senhor não compreende — disse D-Um, no seu forte sotaque hispânico, erguendo a cabeça e conservando as palmas das mãos coladas uma na outra, em atitude de oração. — Número uno, nunca falamos. Número dos, somos misioneros que convertem os pobres bárbaros aos caminhos de Cristo. Quem é que pode prender estes padres? Além disso, se o tentarem, vão ficar sem andar por alguns meses, e só entram os senhores.

— Macacos me mordam — resmungou Hawkins, dirigindo um olhar afetuoso a seus ajudantes de campo. — Preparei-os bem. Em operações deste tipo, devemos ter sempre pessoal que garanta uma saída de emergência; normalmente são os primeiros a pegar os tiros. Hesitamos em contratá-los para essa função, porque conhecemos os riscos, mas não hesitaram em se apresentar como voluntários. Excelente atuação, homens.

— Isso é bonito, General — disse D-Dois —, mas se tiver problemas com a alma, eu é que posso resolvê-los, não meu colega. É que eu sou católico, ele é apenas um protestante... não conta.

O barulho atroador dos passos de uma pessoa a correr fez com que todos virassem a cabeça, assustados. O susto diminuiu rapidamente quando viram Roman Z a aproximar-se, com uma câmera de vídeo em cada mão, a bolsa de náilon pendurada no ombro balançando junto aos quadris e a camiseta da WFOG encharcada de suor.

— Meus queridos, meus amigos tão amados! — exclamou ele, parando, sem fôlego. — Não podem imaginar como eu fui magnífico! Filmei toda a gente, inclusive três pessoas que eu convenci, com o meu punhal, a revelar-me que vieram para aqui por ordem de um tal “procurador geral“ e de um homenzinho pequeno que é secretário de uma coisa a que chamam “defesa”. Filmei também um enorme jogador de futebol que me disse ser apenas um representante ignorante de uma coisa a que ele chama “Sociedade Fanny Hill”... pelos vistos, uma porcaria de sociedade, temos coisas melhores na Sérvia.

— Fantástico! — exclamou Sam. — Mas como subiu até aqui?

— Foi fácil! Lá embaixo, no grande átrio de mármore, está toda a gente a dançar e a cantar, como os meus antepassados ciganos. Homens vestidos com roupas esquisitas e de cara pintada estão a passar de mão em mão garrafas de sumo de fruta e toda a gente está tão feliz que fiquei a pensar nas montanhas da Morávia. Isto é absolutamente glorioso!

— Oh, meu Deus! — exclamou Jennifer. — A pinga que deita abaixo!

— O quê, minha querida?

— Pinga, dr. Pinkus. Somos capazes de fabricar a bebida mais embriagante alguma vez imaginada pelo homem, civilizado ou não. Os Mohawks dizem que a invenção é sua, mas nós aperfeiçoamos a fórmula e a tornamos vinte vezes mais potente. Está totalmente proibida na reserva, mas se existe alguém capaz de descobrir os velhos vinhos e de os pôr a uso, esse alguém só pode ser o canalha do Johnny Nariz de Bezerro!

— Eu diria que, neste momento, o comportamento dele é perfeitamente legítimo, particularmente no que diz respeito à oportunidade — disse Devereaux.

— Foi assim que vocês... nós... enganamos os colonizadores do Oeste — disse o Hawk.

— Isso é irrelevante, General.

— Sim, mas tem o seu interesse...

— Vamos entrar — disse Cyrus, num tom imperioso. — Esse tipo de bebida tem dois efeitos: o esquecimento e o súbito reconhecimento das responsabilidades, o que provoca pânico, uma coisa de que, de momento, não precisamos nem um bocadinho. Vou abrir a porta — abriu e acrescentou. — O senhor primeiro, General.

— Tem toda a razão, sr. Coronel.

MacKenzie Hawkins entrou na enorme sala coberta de lambris de mogno, com as penas a voar, seguido com muita dignidade pelo seu contingente de apoio. De repente, os sons ensurdecedores de um frenético canto de guerra índio encheram o sacrossanto recinto. No estrado semicircular, os juízes, que antes exibiam rostos de pedra, reagiram em pânico e, à uma, esconderam-se debaixo da mesa. Depois, um a um, foram emergindo, com os olhos arregalados e aterrorizados, mas aliviados por não ter havido qualquer violência. Várias bocas se abriram ante o monstro emplumado que tinham diante de si, um pouco mais abaixo. Não se levantaram, permanecendo no sítio onde estavam, com a expressão dos seus rostos a denotar o estado de choque em que se encontravam.

— O que diabo é que você fez? — cochichou Sam, atrás do Hawk.

— Um truquezinho que aprendi em Hollywood — respondeu MacKenzie com outro cochicho. — Uma banda sonora intensifica o clímax quando as palavras são inúteis. Tenho no bolso um gravador de volume triplo e alta impedância.

— Desligue essa merda!

— Só o desligarei quando esses figurões reconhecerem que o Cabeça de Trovão, chefe dos Wopotamis, está à sua frente e que a sua posição tribal exige respeito.

E mais uma vez, um a um, os atônitos magistrados da Suprema Corte levantaram-se lentamente... nenhum, porém, mostrando mais do que o tórax. A música foi diminuindo de intensidade, até que parou. Os juízes entreolharam-se e regressaram às suas cadeiras.

— Ouçam-me, sábios anciãos da justiça desta nação! — exclamou Cabeça de Trovão, com a sua voz a ecoar nas paredes. — O seu povo foi envolvido numa conspiração insidiosa destinada a defraudar os nossos direitos de propriedade, a tirar-nos os campos, as montanhas e os rios que satisfazem as necessidades de vida e de sobrevivência da nação Wopotami. Fomos confinados a guetos de florestas improdutivas e solo árido, onde nada cresce, a não ser ervas daninhas que ninguém deseja. Esta não era a nossa nação? A nação em que mil tribos existiam seja em época de paz, seja em época de guerra, como quando entraram em guerra conosco, da mesma forma que o fizeram com os espanhóis, depois com os franceses e os ingleses e finalmente entre vocês mesmos? Será que não temos mais privilégios do que os que foram conquistados e depois perdoados, absorvendo-os na sua cultura? Os negros deste país suportaram duzentos anos de servidão; nós aguentamos quinhentos. Será que este tribunal permitirá que isso continue?

— Eu não — disse um juiz, rapidamente.

— Nem eu — disse outro, ainda mais rapidamente.

— Certamente que eu também não — protestou outro ainda, abanando a cabeça com violência, o que fez abanar a sua papada.

— Oh, meu Deus, li esta petição dez vezes e de todas as vezes chorei — disse a juíza.

— Mas não devia — disse o Juiz-Presidente, olhando severamente para a juíza e desligando imediatamente os microfones para que o Tribunal pudesse conferenciar reservadamente.

— Eu o amo — cochichou Jenny no ouvido de Sam. — Mac disse tudo em poucas frases!

— Ele nunca nadou trinta e sete quilômetros em meio a um furacão em alto mar!

— Nosso general é muito eloquente — murmurou Pinkus. — Domina muito bem o assunto.

— Não fiquei muito contente com a comparação com os negros — disse Cyrus, também cochichando. — Que diabo, seus irmãos índios não foram postos a ferro nem foram vendidos, mas a estocada foi boa.

— Não, Cyrus, não fomos postos a ferro nem fomos vendidos — acrescentou Redwing. — Fomos apenas trucidados ou forçados a ir para lugares onde morremos de fome.

— Está bem, Jenny. Xeque-mate.

Os microfones foram ligados de novo.

— Sim, muito bem — disse um magistrado sentado à direita. — Já que o distinto causídico de Boston, Mr. Pinkus, o acompanha e assiste, certamente que aceitamos as suas credenciais, mas queremos saber se o senhor tem conhecimento da magnitude do que está em jogo no seu recurso.

— Nós só queremos o que é nosso. Tudo o mais é negociável... e qualquer outra coisa é intolerável.

— Isso não estava muito claro na sua petição, Chefe Cabeça de Trovão — disse o juiz negro num tom de desaprovação, ao mesmo tempo que pegava numa folha de papel. — O seu advogado oficial é um tal Samuel Lansing Devereaux, não é?

— É sim, e estou aqui, Meritíssimo — retorquiu Sam, dando alguns passos em frente, até ficar ao lado de Hawkins.

— É uma bela petição, jovem.

— Muito obrigado, Meritíssimo, mas para ser sincero...

— O senhor provavelmente levará um tiro na cabeça por causa disso — prosseguiu o juiz, como se Sam não tivesse aberto a boca. — No entanto, perpassa por todo o texto um certo toque venenoso, como se estivesse menos interessado em fazer justiça do que em obter vingança.

— Retrospectivamente, devo dizer que me senti ofendido com a injustiça, Meritíssimo.

— Não é pago para se sentir ofendido, advogado — disse um juiz sentado à esquerda. — É pago para demonstrar a verdade da sua petição. Sem que tantas pessoas mortas há tanto tempo pudessem se defender, fez insinuações surpreendentes.

— Com base nas provas descobertas, Meritíssimo. Na realidade eram insinuações, ou, se preferir, especulações. Nenhuma, contudo, sem o respectivo fundamento histórico corroborante.

— É historiador profissional, Dr. Devereaux?? — perguntou um dos juízes.

— Não, Meritíssimo. Sou advogado profissional capaz de descobrir e seguir pistas que revelem princípios e orientações e que possam contribuir para a comprovação dos fatos, como tenho certeza de que o Meritíssimo também é capaz.

— É uma grande gentileza de sua parte conceder tal capacidade a nosso colega — comentou um outro.

— Não tive intenção de ofender, Meritíssimo.

— No entanto, de acordo com as suas próprias palavras, é capaz de se sentir ofendido, advogado — observou a juíza. — Por isso, devo presumir que também é capaz de ofender.

— Quando penso que se justifica.

— Era aí que eu queria chegar, Mr. Devereaux, quando falei no toque cáustico de sua petição. No meu entender, queria nada mais, nada menos do que uma abjeta rendição do Governo, uma capitulação total que colocaria um fardo extraordinário sobre cada contribuinte deste país. Um ônus muito além da capacidade de absorção nacional.

— Se o Tribunal permite que eu interrompa — exclamou Cabeça de Trovão, chefe dos Wopotamis —, meu brilhante jovem advogado tem a reputação de se indignar quando sente que a causa é justa...

— O quê? — cochichou Sam, dando uma cotovelada nas costelas de Hawkins. — Não se atreva...

— Ele se atreve a seguir por onde os anjos temem fazê-lo, mas quem, entre nós, pode culpar o homem verdadeiramente sincero que acredita com paixão na justiça para os desvalidos? O meritíssimo afirmou que ele não é pago para ser ofendido... mas só em parte é que tem razão, já que ele não é pago, mas foi ofendido na altura própria, sem recompensa no futuro pelas suas apaixonadas crenças... E quais são as crenças que o fazem agir no nosso interesse? Permitam-me que eu tente explicar. Ou melhor ainda do que qualquer explicação da minha parte, sugiro que cada magistrado deste Tribunal visite uma dúzia de reservas onde vive o nosso povo. Para verem com os seus próprios olhos o que o homem branco fez com as outrora orgulhosas nações indígenas. Para ver nossa pobreza, nossa sordidez, nossa... sim, a nossa impotência. Perguntem-se então se poderiam viver dessa forma sem se sentirem ofendidos. Esta terra era nossa, e quando a tiraram de nós, de alguma forma entendemos que a nova nação que assim se formava, maior e única, poderia evoluir e que nós faríamos parte dela. Mas não, acabou por não ser assim. Fomos postos de lado, mandaram-nos para reservas isoladas, sem qualquer participação no seu progresso. Isso é História documentada e ninguém o pode contestar... Assim sendo, se o nosso advogado redigiu a sua petição com uma certa raiva — “causticidade”, se preferirem — o seu nome aparecerá nas crônicas legais do século XX como o Clarence Darrow dos nossos dias. Falando pelos esbulhados Wopotamis, nós adoramo-lo.

— Adoração, Chefe Cabeça de Trovão, não é assunto que diga respeito a este Tribunal — disse, em tom carrancudo, o corpulento juiz negro. — Uma pessoa pode... adorar o seu deus, um touro, um ícone ou o guru mais recente, mas esse fato não exercerá qualquer influência num tribunal judicial, nem poderia exercer. Aqui nós adoramos exclusivamente a lei. Decidimos com base no fato provável e não com base numa especulação convincente resultante de registros sem substância de há mais de cem anos atrás.

— Ei, espere um momento! — exclamou Sam. — Eu li essa petição...

— Pensávamos que a tivesse redigido, sir — interrompeu a juíza. — Não redigiu?

— Sim... bem, isso já é uma outra história, mas deixe-me contar, sou um excelente advogado, examinei atentamente aquela petição e as provas históricas que a fundamentam são praticamente irrefutáveis! Além do mais, se esta Corte não levar em consideração essas provas históricas para finalidades pragmáticas, estará provando que seus membros não passam de um bando de... de....

— De que, sir? — perguntou um juiz sentado do lado esquerdo do banco.

— Que diabos, vou dizer... de covardes!

— Eu te amo, Sam — murmurou Jennifer.

O ruidoso espanto de toda a Corte foi quebrado pelos gritos estentóricos do Chefe Cabeça de Trovão, também conhecido como MacKenzie Lochinvar Hawkins.

— Por favor, grandes deliberantes da justiça nesta terra que nos roubaram, posso falar?

— O que, seu inseto emplumado? — guinchou o Juiz-Presidente Reebock.

— Acabamos de testemunhar a reação de um homem honesto que se sentiu ultrajado, um advogado notável que está disposto a jogar fora uma carreira brilhante porque descobriu a verdade em documentos escondidos não destinados a vir a público. São homens assim, descomprometidos, que tornaram este país grande, pois souberam enfrentar a verdade e compreenderam sua majestade. A verdade, tanto a boa quanto a má, deve ser admitida em toda a sua glória e com todos os sacrifícios que exige, qual luz brilhante que conduz uma nova nação à sua majestade e glória. Tudo o que ele procura, tudo o que nós buscamos, tudo o que as nações índias querem é fazer parte desta grande terra que um dia foi nossa. Será que é assim tão difícil para esta Corte?

— Há graves considerações nacionais, General — disse o juiz negro, com a carranca desaparecendo. — Custos extraordinários e impostos severos sobre o corpo político desta Nação que não podem ser tolerados. Como muitos outros já disseram antes de nós, este é, muitas vezes, um mundo injusto.

— Então negocie, sir! — exclamou Cabeça de Trovão. — A águia não mergulha para destruir o pardal ferido. Por outro lado, como nosso jovem advogado disse, a águia poderosa que domina os céus pode ser uma maravilha quando voa, mas, o que é muito mais importante, é um símbolo eterno do poder da liberdade.

— Eu disse que...

— Cale-se!... Oh, senhores juízes, deixem que o pardal ferido encontre uma medida de esperança à sombra da grande águia. Não nos desterrem de novo, pois não nos resta qualquer outro lugar onde possamos vaguear. Deem-nos o respeito que há tanto tempo nos é devido... deem-nos a esperança de que precisamos para sobreviver. Sem ela nós morremos, nosso extermínio se completa. Desejam ter isso também em suas mãos? Elas já não estão suficientemente ensanguentadas?

Fez-se silêncio. Por todo o tribunal. Exceto: — Ei, Mac, nada mau — cochichou Sam pelo canto esquerdo da boca. E: — Magnifico! — cochichou Jennifer, atrás dele.

— Aguente aí, potrinha — replicou o Hawk, também sussurrando, virando a cabeça. — Agora é que são elas, como quando o meu amigo, o General McAuliffe, chamou os boches de “Malucos” na Batalha das Ardennes.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Aaron Pinkus.

— Prestem atenção — cochichou Cyrus. — Eu sei aonde o General quer chegar. Agora é que ele vai morder onde realmente dói, no ego inchado. Isso vai transformar a conversa fiada em coisas concretas.

— Não é conversa fiada — protestou Redwing. — É a verdade!

— Para eles é uma inevitável e verdadeira conversa fiada, Jenny, pois estão entre uma rocha e uma outra igualmente dura.

Os microfones foram desligados mais uma vez, enquanto os juízes conferenciavam. Finalmente, o juiz descarnado da Nova Inglaterra falou :

— Foi uma peroração comovente, Chefe Cabeça de Trovão — disse, sereno — mas essas acusações poderiam ser feitas em nome de numerosas minorias espalhadas por todo este país. A História não foi boa para essa gente, o que, pessoalmente, muito lastimo. Como disse um dos nossos presidentes, “a vida não é justa“, mas ela tem de prosseguir para o aperfeiçoamento da maioria e não das infortunadas minorias que tanto sofrem. Nós todos queríamos, de todo o coração, poder mudar este estado de coisas, mas isso excede a nossa capacidade. Schopenhauer descreveu esse fato como a “brutalidade da História“. Odeio a sua conclusão, mas reconheço a sua veracidade. O senhor poderia abrir comportas que talvez afogassem comunidades inteiras em todo o país, excedendo em muito o número dos litigantes.

— Qual foi a sua decisão, sir?

— Considerando tudo o que está em jogo, qual seria a sua reação se este Tribunal, na sua sabedoria, decidisse contra o seu pleito?

— Isso é bastante simples — respondeu o Chefe Cabeça de Trovão. — Declararíamos guerra contra os Estados Unidos da América, sabendo que contaríamos com a compreensão dos nossos irmãos em todo o país. Muitos milhares de homens brancos não sobreviveriam. Nós perderíamos, mas o seu povo também.

— Mas que merda! — entoou o Juiz-Presidente, na sua voz anasalada — Tenho uma casa no Novo México...

— A terra dos guerreiros apaches, sir? — perguntou o Hawk inocentemente.

— A cinco quilômetros da reserva — respondeu Reebock, engolindo em seco.

— Os Apaches são nossos irmãos de sangue. Que o Grande Espírito lhe conceda uma morte rápida e relativamente indolor.

— E Palm Beach? — perguntou outro membro da Suprema Corte, de sobrancelhas arqueadas.

— Os Seminoles são nossos primos. Fervem o sangue do homem branco para remover as impurezas... enquanto o sangue está no corpo, é claro; amacia a carne.

— Aspen...? — quis saber um outro, hesitante. — Quem está lá?

— Os impetuosos Cherokees, sir. São primos ainda mais próximos, devido à geografia. Contudo, temos exteriorizado muitas vezes nossa reprovação ao método que usam para se vingar. Amarram os inimigos de cabeça para baixo, sobre formigueiros de formigas assassinas.

— Augh! — exclamou Jennifer, enojada.

— Lake... Lake George? — perguntou um juiz muito pálido, sentado à esquerda, com a expressão do seu rosto a revelar o medo súbito que sentia. — Tenho lá uma linda casa de verão.

— Ao norte do estado de Nova York, sir? Mas ainda precisa perguntar? — MacKenzie baixou a voz, como que para confirmar o terror indizível que sentia. — Os campos onde os Mohawks caçam e enterram seus bravos?

— É algo assim... penso eu.

— Nossa tribo descende dos Mohawks, sir, mas, com toda sinceridade, achamos que o melhor era fugir e seguir para oeste, para longe dos nossos irmãos de sangue.

— Por quê?

— O guerreiro Mohawk é talvez o mais feroz e audaz de todos nós... mas, bem, estou certo de que o senhor compreende.

— Compreende... o quê?

— Quando provocados, eles incendeiam as tendas dos seus inimigos à noite, fazendo o mesmo ao resto da propriedade. É uma política de terra queimada que consideramos severa demais. É claro que os Mohawks ainda nos consideram como seus irmãos. Os laços de sangue não se desfazem facilmente. Eles unir-se-iam a nós na nossa luta, sem qualquer reserva.

— Acho que devemos conferenciar de novo! — exclamou o Juiz-Presidente Reebock. Os microfones foram desligados e os juízes, mexendo as cabeças, cochicharam, mais uma vez, entre si.

— Mac! — murmurou Redwing, exaltada. — Nada do que disse é verdade! Os Apaches descendem dos Atabascas e não têm nada a ver conosco, os Cherokees não amarrariam ninguém sobre um formigueiro, isso é ridículo, e os Semínolas são a mais pacífica das nações índias!... Os Mohawks... bem, eles gostam de jogar aos dados por causa do dinheiro que ganham, mas nunca atacaram ninguém que não os tivesse atacado ou roubado antes e certamente que não são partidários da política de terra queimada, pois precisam cultivar a terra!

— Por favor, filha dos Wopotamis — disse o Hawk, majestoso no seu traje de chefe, olhando para Jennifer. — O que esses burros desses caras-pálidas sabem?

— Está ofendendo todas as nações índias!

— E o que eles nos têm feito todos estes anos?

— A nós?

Os microfones estalaram de novo e, mais uma vez, ouviu-se a voz anasalada do Juiz-Presidente.

— Que conste dos anais que este Tribunal recomendará ao Governo dos Estados Unidos que entre em imediatas negociações com a nação Wopotami, a fim de encontrar uma solução razoável para os erros do passado. Sem discussão, este Tribunal reconhece a validade dos fundamentos jurídicos alegados pela recorrente. A publicitação será feita de imediato. A sessão está suspensa sine die! — depois, sem perceber que o microfone continuava ligado, o juiz Reebock acrescentou:

— Alguém ligue para a Casa Branca e diga ao Subagaloo para enfiar esta decisão onde ele sabe! Esse filho da mãe meteu-nos nesta embrulhada, ele está sempre a fazê-lo. Foi provavelmente ele quem mandou desligar o nosso ar condicionado. Estou a suar tanto que o suor está a escorrer pelo meu rabo!... Desculpe, minha querida.

A notícia do triunfo dos Wopotamis chegou ao saguão e à escadaria da Suprema Corte em questão de minutos. O Chefe Cabeça de Trovão, com seu traje de gala, caminhou pelo corredor de mármore até o enorme salão de entrada, esperando a adulação e a celebração de seu povo. Na verdade, acontecia uma celebração, embora sua razão de ser parecesse um pouco irrelevante para os celebrantes. A imensa galeria estava cheia de homens e mulheres de todas as idades, dançando, de valsas desajeitadas a hard rock, os participantes rodopiando e saracoteando ao som gravado de versões aceleradas de cantos originais índios que saía dos enormes alto-falantes. Até mesmo os guardas, os turistas e a polícia de D. C. aderiam à dança aqui e ali. O solene saguão era cenário de um louco carnaval.

— Oh, meu Deus! — exclamou Sunrise Jennifer Redwing, quando saiu do elevador com Sam e Aaron, no primeiro andar.

— Esta é uma ocasião festiva — disse Pinkus. — Seu povo está justificadamente exultante.

— Meu povo? Essa gente aí não é meu povo!

— O que quer dizer? — indagou Devereaux.

— Olhe só! Consegue ver um único Wopotami, uma única cara pintada ou saia de índia dançando, cantando ou gritando?

— Não, mas estou vendo muitos Wopotamis espalhados por aí.

— Eu também, só que não consigo entender o que estão fazendo.

— Bem, parece que eles estão indo de grupo em grupo, encorajando... haha! eles levam...

— Copos de papel! E garrafas de plástico... é o que Roman nos disse. Eles estão distribuindo a tal pinga!

— Uma ligeira correção — interveio Sam. — Estão vendendo.

— Eu mato aquele Nariz de Bezerro!

— Sugiro outra coisa, Jennifer — disse Aaron, dando uma gargalhada. — Coloque-o no seu comitê de finanças.

 

________________

1 Daddy Warbucks é um personagem dos quadrinhos Little Orphan Annie. (N.T.) (N. T.)

2 Punch & Judy é um tradicional show de marionetes com o Sr. Punch e sua esposa Judy. (N.T.)

3 Várias citações de títulos e ditos de livros e peças. (N.T.)

4 “Pé de Veado” (N.T.)


Epílogo

THE NEW YORK DAILY NEWS

WOPS TOMAM CAE

 

Washington, D. C., sexta-feira — Numa decisão surpreendente, a Suprema Corte sustentou a legitimidade de uma ação interposta pela tribo dos Wopotamis do estado de Nebraska contra o Governo Federal. Por decisão unânime, o Tribunal decidiu que um território de vários quilômetros quadrados dentro e em volta de Omaha constitui propriedade legítima dos Wopotamis, em conformidade com um tratado firmado pelo Quadragésimo Nono Congresso, em 1878. Essa área inclui o quartel-general do Comando Aéreo Estratégico. O Senado e a Câmara dos Representantes foram convocados em sessão extraordinária e advogados pertencentes a vários milhares de sociedades de juristas expressaram interesse pelas futuras negociações.

 

IL PROGRESSO ITALIANO

 

Questo giornale muove obiezone all'insensibilità del Daily News facendo uso di un'espressione etnica dispregiativa nella testata di ieri. Noi non siamo dei “pellarossa salvaggi”!

(Este jornal lamenta a insensibilidade do Daily News pelo uso de uma expressão étnica depreciativa em sua manchete principal de ontem. Não somos peles-vermelhas selvagens!)

 

HOLLYWOOD VARIETY

 

Beverly Hills, quarta-feira — Os Srs. Robbins e Martin, diretores da agência William Morris, anunciaram que um importante negócio foi concluído entre seus clientes, conhecidos apenas por serem seis atores fantásticos que trabalharam para o Governo como unidade antiterrorista nos últimos cinco anos, e Emmanuel Greenberg, produtor dos estúdios Consolidated-Colossal, para uma película de cem milhões de dólares cujos atores principais serão seus clientes, que interpretarão seus próprios papéis. Na coletiva de imprensa realizada no Merv's Place, o grande ator Irving Sutton fez uma aparição, afirmando que tinha ficado muito emocionado por deixar a aposentadoria para desempenhar um papel importante. Tudo indica que Greenberg também ficou muito comovido, chorando de vez em quando, incapaz de falar. Muitos presentes disseram que era seu orgulho excessivo, mas houve quem sustentasse que seu estado se devia às negociações. A ex-mulher de Greenberg, Lady Cavendish, também estava presente e não parou de sorrir.

 

THE NEW YORK TIMES

DIRETOR DA CIA ENCONTRADO VIVO

RESGATADO NO CARIBE

 

Miami, quinta-feira — Um iate pesqueiro, o Contessa, propriedade do industrial internacional Smythington-Fontini, percebeu uma coluna de fumaça numa ilha deserta nas Dry Tortugas. Era uma fogueira acesa na praia. Quando o Contessa se aproximou, a tripulação e os passageiros ouviram gritos de socorro em inglês e espanhol e três homens correndo para a água, dando graças por terem sido encontrados. Um desses homens era Vincent F.A. Mangecavallo, diretor da CIA, que até esta manhã era dado como perdido no mar desde a semana passada. Essa hipótese se baseava nos destroços do iate Gotcha Baby, que tinha o sr. Mangecavallo como passageiro e naufragou durante uma tempestade tropical. Os destroços incluíam vários objetos pessoais do diretor.

Sua sobrevivência é uma história de heroísmo extraordinário. De acordo com os dois argentinos da tripulação, que regressaram de avião para junto de suas famílias, no Rio de Janeiro, o diretor os arrastrou, literalmente, pelas águas infestadas de tubarões, já que ambos se seguraram em suas pernas, enquanto o Sr. Mangecavallo nadava até a ilha desabitada. Ao saber da notícia, o Presidente comentou: “Eu sabia que meu antigo colega da Marinha ia se safar!” O Departamento da Marinha fez um único comentário: “É uma boa notícia.”

 

No Brooklyn, Nova York, um certo Rocco Sabatini, ao ler a notícia do salvamento, comentou com a mulher, no café da manhã:

— Ei, que história é essa? Bam-Bam não sabe nadar!

 

THE WALL STREET JOURNAL

SÉRIE DE FALÊNCIAS CHOCA

AMÉRICA FINANCEIRA

 

Nova York, sexta-feira — Em praticamente todos os corredores das grandes empresas do país, veem-se advogados entrando e saindo apressadamente dos escritórios dos executivos e de reuniões de diretoria, tentando reagrupar dezenas de pequenos conglomerados. A sabedoria convencional diz-nos que é impossível, já que se verificou uma enorme escalada de dívidas no recente frenesi de compras, deixando muitos dos gigantes industriais da nação de bolsos vazios, envergonhados e, em muitos casos, com um súbito desejo de deixar o país.

De acordo com alguns relatos, no Aeroporto Internacional John Kennedy ouviu-se o presidente de uma dessas empresas gritando histericamente: “Em qualquer lugar, menos no Cairo! Não vou limpar penicos!” Não foi possível esclarecer o significado dessas palavras.

 

STARS AND STRIPES — O JORNAL DO EXÉRCITO DOS EUA

DESERTORES DE CUBA PROMOVIDOS A OFICIAIS

 

Fort Benning, sábado — Pela primeira vez no Exército, foram promovidos ao posto de primeiro-tenente, nesta base, dois antigos oficiais da máquina militar de Castro, altamente considerados e peritos em sabotagem, espionagem, operações secretas, informações e contrainformações, anunciou o chefe do Serviço de Informações, General Ethelred Brokemichael.

Desi Romero e seu primo Desi González, que desertaram de uma “situação intolerável na nossa Pátria”, chefiarão uma unidade das Forças Especiais que está sendo formada em Benning, após doutrinação linguística e a sujeição a tratamento de ortodontia.

O Exército dá as boas-vindas a homens tão corajosos e experientes, que arriscaram as vidas lutando pela liberdade e pela honra. Nas palavras do General Brokemichael, “poderia ser feito um grande filme com base em suas façanhas, devíamos pensar nisso”.


O verão estava acabando e a letargia se desvanecia, cada uma dessas coisas constituindo um prelúdio para os jogos cheios de energia do outono. O vento norte tornava-se cada vez mais frio pela manhã, lembrando aos habitantes de Nebraska que, em breve, ficariam frios, depois muito frios, até que, por fim, sentiriam o corpo entorpecido. Outro prelúdio, este para as neves do inverno. Tais pensamentos, porém, estavam muito longe das mentes da nação Wopotami, pois, enquanto tinham lugar as negociações com o Governo Federal, Washington considerou ser uma medida adequada mandar para a reserva duzentos e doze trailers dos mais modernos, para substituir as barracas cônicas e as estruturas decrépitas anteriormente usadas para as reuniões comunitárias e que muita gente também aproveitara como abrigo contra as neves do inverno. Claro que Washington não sabia que algumas centenas de cabanas perfeitamente adequadas tinham sido arrasadas com um bulldozer apenas algumas semanas antes e que as tendas, as tais barracas cônicas, eram anteriormente uma visão pouco familiar na reserva, a não ser umas poucas nas proximidades do portão dos turistas. MacKenzie Hawkins não era homem de pôr de lado as sutilezas ou as incoerências do terreno observável; nenhum militar o seria. Era tudo parte da estratégia e nunca nenhuma batalha foi vencida sem um plano.

— Ainda não posso acreditar — disse Jennifer, caminhando de mão dada com Sam por uma estrada de terra batida na reserva, com o campo à direita repleto de trailers enormes e extravagantes, cada um deles com uma antena parabólica instalada no teto. — Tudo está acontecendo como Mac previu.

— Então as negociações estão indo bem?

— De modo inacreditável. Se franzimos a testa só porque alguma coisa não está muito clara, eles ficam nervosos, recuam e fazem uma oferta melhor. Várias vezes tive que interromper o pessoal do Governo e explicar que os aspectos financeiros eram perfeitamente satisfatórios e que eu só queria que uma questão legal fosse esclarecida. Um advogado da Direção Geral de Contabilidade Pública gritou: “Se não gosta, não se preocupe, já está posta de lado!”

— É uma ótima posição para nós.

— Eu só queria pedir licença para ir ao banheiro.

— Esquece meu comentário... Mas por que está sendo tão gentil?

— Ora, Sam, o que eles estão oferecendo está tão escandalosamente além dos nossos sonhos mais loucos que seria um crime discutir.

— Então por que negociar? O que procura?

— Para começar, a garantia de um calendário legal para satisfação das nossas necessidades imediatas, como boas moradias, boas escolas, estradas pavimentadas, uma verdadeira e honesta aldeia, com auxílio financeiro inicial para lojas e estabelecimentos, para que se possa ganhar a vida decentemente e de acordo com a lei. E depois talvez umas guloseimas, como piscinas comunitárias e limpeza da montanha Olho de Águia, com um teleférico para esquiadores e um restaurante... mas, claro, esse tipo de coisa pode ser considerado parte integrante de nossas atividades comerciais. A ideia foi do Charlie; ele adora esquiar.

— Como vai ele?

— Querido, eu troquei as fraldas desse garoto e agora me sinto, às vezes, quase incestuosa em relação a ele.

— Hein?

— Ele é tão parecido com você! É rápido, inteligente e engraçado...

— Sou uma pessoa muito séria quando estou num tribunal — interrompeu Devereaux, sorrindo.

— Você é um lunático e ele também, mas sua maluquice é mitigada pela percepção rápida, pela memória irritante e pela capacidade de reduzir coisas complexas a simplicidades fundamentais.

— Não tenho a menor ideia do que seja isso.

— E ele também não, mas ambos fazem. Sabia que quando Hawkins redigiu a petição ele apareceu com uma mancha insignificante e insensata encontrada na história da nossa jurisprudência chamada non nomen amicus curiae? Quem poderia saber uma coisa dessas e mais ainda se lembrar dela?

— Eu. Jackson versus Buckley, 1827, um roubou porcos do outro...

— Cale-se! — Jenny largou a mão dele, mas depois pegou de novo.

— O que Charlie vai fazer quando isso acabar?

— Vou fazer dele um procurador da tribo. No inverno pode dirigir a estação de esqui.

— Isso não é terrivelmente limitado?

— Talvez, mas não creio. Alguém tem que ficar aqui, para se certificar de que Washington cumpra cada artigo do acordo de reconstrução. Quando se está envolvido com uma obra desse vulto, é melhor ter um advogado em tempo integral. Já fez alguma obra em casa que tenha terminado no prazo combinado? E devo acrescentar que consegui inserir cláusulas estabelecendo multas pesadas para cada aspecto da construção.

— É, Charlie terá muito o que fazer. O que mais você conseguiu na Cidade dos Tontos, como Mac chama Washington? Isto é, além das “necessidades imediatas”?

— É muito simples. Um fundo que não pode ser invalidado e que é irrevogável, tendo por base garantias irreversíveis do Tesouro de que, pelos próximos vinte anos, a tribo receberá anualmente dois milhões de dólares, quantia sujeita a atualização de acordo com a inflação.

— Isso é titica de galinha, Jenny.

— Não é não, querido. Se não tivermos êxito dentro de vinte anos é porque não merecemos. Não queremos viajar de graça, só queremos uma oportunidade para entrar no fluxo principal. E conhecendo meus Wopotamis, sem dúvida alguma que vamos passar a perna em vocês, caras pálidas. E mais, em vinte anos seu Presidente terá, provavelmente, um sobrenome tipo “Sol Poente” ou “Raio de Lua”, pode acreditar no que digo. Não foi à toa que aperfeiçoamos aquela pinga.

— E agora o quê? — indagou Devereaux.

— E agora o que o quê?

— E nós?

— Tinha que tocar nesse assunto?

— Já não estava na hora?

— Claro que sim, mas tenho medo.

— Eu protejo você.

— De quem? De você?

— Se for preciso. Na realidade, é muito simples e, como você mesma disse, Charlie e eu somos capazes de reduzir assuntos complexos a questões simples, que qualquer um pode compreender.

— Do que você está falando, Sam?

— De reduzir uma situação complicada a um problema muito simples.

— Posso perguntar o que é isso?

— Recuso-me a viver o resto da vida sem você, e, de alguma forma, fiquei com a ideia de que você sente a mesma coisa.

— Suponhamos que haja um grão de verdade nisso, um grão apenas, mesmo que seja grande como uma noz, conte-me, como será possível? Estou em San Francisco e você em Boston. Não é um bom compromisso.

— Com suas credenciais, Aaron contrataria você num minuto e com um salário sensacional.

— Com seu currículo, a Springtree, Basl & Karpas, de San Francisco, admitiria você como sócio antes de mim.

— Nunca poderia deixar Aaron, você sabe disso, mas você já deixou uma sociedade em Omaha. Por isso, pode ver que foi tudo reduzido a um simples e/ou, com base no pressuposto de que não podemos viver longe um do outro.

— Tem certeza?

— Claro que tenho. Você não?

— Recuso-me a responder, pois a resposta pode me incriminar.

— Não faz mal, tenho uma solução.

— Qual?

— Mac me deu um medalhão da antiga divisão dele na Segunda Guerra Mundial, a tal que venceu a batalha das Ardennes, que sempre carrego como talismã. — Devereaux enfiou a mão no bolso e tirou uma imitação de moeda, grande e leve, com a efígie de MacKenzie Hawkins gravada no centro. — Jogo-a para cima e deixo cair no chão. Sou cara, você, coroa. Se for coroa, volta para San Francisco e sofreremos a tortura dos condenados. Se for cara, vai para Boston comigo.

— Combinado — o medalhão rodopiou no ar e caiu na estrada de terra batida. Jennifer se abaixou. — Meu Deus, cara! — Quando ela estava pegando a moeda, a mão de Sam envolveu a sua.

— Não, Jenny, você não deve se abaixar dessa maneira!

— De que maneira?

— Faz muito mal à coluna! — Devereaux puxou-a, agarrando o medalhão com a mão direita.

— Sam, o que está dizendo?

— A primeira obrigação do marido é proteger a esposa.

— De quê?

— De dor na coluna — Devereaux pegou o medalhão entre os dedos e jogou-o no pasto à esquerda. — Já não preciso de talismãs — disse ele, abraçando Jenny. — Tenho você e essa é toda a sorte que jamais desejei ou precisei na vida!

— Ou talvez não quisesse que eu visse o outro lado da moeda — sussurrou Redwing no ouvido dele, ao mesmo tempo mordendo sua orelha com suavidade. — Hawk me deu uma dessas em Hooksett. A efígie dele de ambos os lados. Se tivesse dito coroa, eu mataria você.

— Minha devassa — sussurrou Sam, mordiscando os lábios dela como um chimpanzé que encontrou amendoins. — Há por aí algum campo isolado onde possamos passear?

— Agora não, seu apressadinho. Mac está nos esperando.

— Ele saiu da minha vida, acabou!

— Sinceramente, espero que sim, querido, mas sendo uma pessoa realista, a pergunta que faço é: por quanto tempo?

Eles contornaram a curva da estrada de terra batida, pela enorme tenda multicolorida, as camadas de pele falsa se agitando do alto até as estacas espalhadas pelo chão. Saía fumaça da abertura no teto da tenda.

— Ele está aí — disse Devereaux. — Vamos fazer uma despedida rápida e simples, tipo foi-bom-conhecer-você-e-fique-longe-das-nossas-vidas!

— É um pouco difícil, Sam. Repare no que ele fez pelo meu povo.

— Para ele é tudo um jogo, Jenny, será que não entende?

— Então ele faz um bom jogo, querido, não vê isso?

— Não sei, ele sempre me deixa confuso...

— Deixa pra lá — disse Redwing. — Ele vem saindo. Meu Deus, olhe para ele!


Sam não acreditava no que via. O general MacKenzie Lochinvar Hawkins, também conhecido como Cabeça de Trovão, chefe dos Wopotamis, não tinha absolutamente nenhuma semelhança com os dois personagens. Não havia um único traço do militar e muito menos a majestade do índio; na realidade, não dava dignidade a nenhuma dessas imagens. Pelo contrário, a atitude altaneira tinha sido substituída por um certo embaraço, pelo brilho do homem superficial, que, de alguma forma, era mais sólido, mais convincente. Uma boina amarela cobria parcialmente seu cabelo grisalho à escovinha; embaixo do nariz vigoroso, um bigode fino e escuro e, mais embaixo ainda, um lenço púrpura em vívido contraste com a camisa de seda rosa, combinando com a calça vermelha muito justa, cuja bainha pendia sobre mocassins Gucci brancos. Naturalmente que a mala era Louis Vuitton.

— Mac, por quem você está querendo se passar? — berrou Devereaux.

— Ah, estão aí — disse Hawk, sem responder à pergunta. — Pensei que teria que sair sem vê-los. Estou com uma pressa louca.

— Uma pressa louca? — disse Jennifer.

— Mac, quem é você?

— Mackintosh Quartermain — retorquiu Hawk, timidamente —, veterano dos Granadeiros Escoceses. Foi ideia da Gin-Gin.

— O quê?

— Estou a caminho de Hollywood — resmungou Hawkins. — Sou coprodutor e assessor técnico do filme de Greenberg.

— Filme?...

— Só para ficar de olho na imaginação financeira de Manny... e talvez algumas outras coisas, se aparecerem. Hollywood está numa situação difícil, como sabem. Precisa de alguns inovadores lúcidos... Olhem, foi maravilhoso vê-los, meus queridos, mas realmente estou com pressa. Vou me encontrar no aeroporto com meu novo ajudante... assistente... o Coronel Roman Zabritski, que trabalhou no cinema militar soviético. Nosso avião segue para a Costa.

— O Roman Z? — perguntou Redwing, espantada.

— O que aconteceu com Cyrus? — quis saber Sam.

— Está em algum lugar no sul da França, tomando conta de um dos castelos do Frazier. Foi atacado por vândalos.

— Pensei que ele quisesse voltar para o laboratório.

— Ah, sim, mas com o registro de prisão e tudo mais... bem, Cookson está comprando uma indústria química... Olhem, foi ótimo que tenham vindo me ver, mas realmente estou com muita pressa. Dê-me um beijo, minha querida, e se um dia quiser fazer um teste para o cinema, sabe onde me encontrar. — A atônita Redwing aceitou o abraço de Hawk. — E você, Tenente — continuou MacKenzie, abraçando Devereaux — ainda tem a melhor cabeça jurídica do planeta, à exceção, talvez, do Comandante Pinkus e desta mocinha aqui.

— Mac! — exclamou Sam. — Você não está vendo? Vai começar tudo de novo! Não vai restar nada de Los Angeles!

— Não, não é verdade, filho, de maneira nenhuma. Voltaremos aos dias de glória. — Hawk pegou sua mala Louis Vuitton, contendo as lágrimas. — Ciao, crianças — disse ele, virando-se rapidamente e saindo apressado pela estrada de terra batida e se tornando, nesse instante, um homem com uma missão.

— Por que sinto que um dia, num ponto qualquer de Boston, o telefone vai tocar e do outro lado da linha estará Mackintosh Quartermain? — disse Devereaux, pondo o braço no ombro de Jennifer, enquanto observavam o vulto de Hawk diminuindo à medida que se afastava.

— Porque é inevitável, meu querido, e não íamos querer de outro modo.

 

 

                                                                  Robert Ludlum

 

 

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