Biblio VT
10
De forma geral, cavalheiros, o mundo é muito sanguinário; e tudo que almejam num assassinato é um derramamento copioso de sangue. Quanto a isso, a exibição espalhafatosa lhes é suficiente. O conhecedor esclarecido, porém, é mais refinado em seu gosto.
Penny Burgess encheu até a borda sua taça de Chardonnay californiano da garrafa que tirou do congelador e voltou até a sala de estar a tempo de ouvir as manchetes do noticiário local da BBC. Nada novo com que se preocupar, a repórter pensou com alívio. Um assalto armado sobre o qual ela podia se atualizar logo que acordasse pela manhã. A polícia ainda estava interrogando um homem em relação aos assassinatos em série de gays, mas nenhuma acusação havia sido feita ainda. Penny bebericou seu vinho e acendeu um cigarro.
Eles teriam que se mexer logo, pensou ela. Pela manhã, precisariam fazer alguma acusação criminal ou deixá-lo ir embora. Até agora, ninguém tinha uma pista da identidade do suspeito, o que era bem impressionante. Todos os jornalistas estavam contando de maneira decisiva com seus respectivos contatos pessoais na polícia, mas dessa vez o reservatório de informações se recusara de forma resoluta a permitir qualquer vazamento. Penny concluiu que era melhor dar uma olhada nas listas de audiência dos juízes leigos pela manhã. Havia uma chance remota de que os policiais tivessem algo bem inócuo para acusar seu suspeito, de modo que pudessem continuar com ele, enquanto vasculhavam em busca das pistas de que precisavam para fazer uma acusação convincente de múltiplos assassinatos.
Quando houve um corte nas notícias para a previsão do tempo, o telefone tocou. Penny se esticou sobre a mesa auxiliar ao lado do sofá e agarrou o aparelho.
— Alô.
— Penny? É o Kevin.
Aleluia, pensou Penny, enquanto se sentava e esmagava o cigarro. Tudo que ela disse, porém, foi:
— Kevin, meu amigo. Como vão as coisas?
Ela vasculhou a bolsa em busca de um lápis e seu caderno.
— Surgiu uma coisa que pode atrair seu interesse — disse o inspetor de polícia com cautela.
— Não seria a primeira vez — respondeu Penny de modo sugestivo. Seus encontros sexuais ocasionais com o muito bem-casado Kevin Matthews lhe oferecem mais que uma posição vantajosa na Polícia Metropolitana de Bradfield. Ele se revelou um dos melhores amantes que ela tivera. Só desejava que o investigador pudesse superar com mais frequência a sua culpa católica.
— Isso é sério — protestou Kevin.
— Também estava falando sério, garanhão.
— Escuta, você quer ou não essa informação?
— Com certeza. Principalmente se for o nome do cara que vocês prenderam como o Assassino de Bonecas.
Ela ouviu a respiração abrupta.
— Você sabe que não posso lhe contar isso. Há limites.
Penny suspirou. Era a história do relacionamento deles.
— Tudo bem, então o que pode me contar?
— Popeye foi suspenso.
— Ele está fora do caso? — perguntou Penny, com a cabeça a mil. Tom Cross? Suspenso?
— Ele está fora do emprego, Pen. Ele foi dispensado enquanto aguarda ação disciplinar.
— Quem fez isso? — Céus, isso era uma história e tanto. O que Popeye Cross tinha aprontado dessa vez? Ela sentiu um pânico momentâneo. E se ele foi pego dando o nome do suspeito para um dos seus concorrentes? Ela quase não ouviu a resposta de Kevin.
— John Brandon.
— Por que diabos ele fez isso?
— Ninguém comentou isso — disse Kevin. — Mas a última coisa que, ele fez, antes de ver Brandon, foi realizar uma busca na casa de nosso suspeito.
— Uma busca legal? — sondou Penny.
— Pelo que sei, ele tinha razões suficientes de acordo com a legislação sobre indícios criminais — contou Kevin com cautela.
— Então o que está acontecendo, Kevin? Popeye plantou provas ou o quê?
— Não sei, Pen — disse Kevin, melancolicamente. — Olhe, eu preciso ir. Se eu ouvir mais alguma coisa, ligo para você, tá?
— Tudo bem. Obrigada, Kev. Você é um amor.
— Bem, falo com você em breve.
A linha ficou muda. Penny largou o telefone de volta na base e se levantou num salto. Andou apressadamente pelo quarto, tirando seu roupão no caminho. Cinco minutos depois, estava correndo os dois andares de escada do seu apartamento para a garagem no subsolo. No carro, verificou o endereço em sua agenda, depois partiu, ensaiando mentalmente o que diria quando chegasse em frente à porta.
Foi Tony quem saiu do abraço primeiro. Seu corpo se retirou num gesto que transformou dez centímetros em um metro.
Tentando manter a leveza das coisas, para encobrir o constrangimento que tinha surgido entre eles, Carol se justificou:
— Desculpe, você parecia precisar de um abraço.
— Não há nada de errado nisso — disse Tony, tenso. — Usamos isso o tempo todo na terapia de grupo.
Ficaram parados por um momento, os olhos sem se encontrar completamente. Depois, Carol se moveu para o lado de Tony, passou uma das mãos pelo braço firme dele e o guiou pelo pátio da universidade.
— Então, quando posso ver esse perfil?
A conversa voltava a um terreno seguro, mas Carol ainda estava próxima demais para ser confortável. Tony podia sentir a tensão dentro de si, como uma fria mão que comprimisse seu peito. Ele se forçou a falar num tom de voz normal e calmo.
— Quero trabalhar mais algumas horinhas agora, e amanhã de manhã cedo me envolvo nisso de novo. Devo ter um esboço pronto para você no início da tarde. Que tal três horas?
— Ótimo. Olhe, você se importa que eu fique por aqui enquanto trabalha? Pode ser bom reler algumas daquelas declarações, e não vou ter paz se voltar para Scargill Street.
Tony dava a impressão de estar em dúvida.
— Acho que sim.
— Prometo não lhe perturbar, dr. Hill — implicou Carol.
— Droga. — Tony estalou os dedos, fingindo decepção. Olhe para você, pensou sarcasticamente. Passando por um ser humano, seguro de todos os movimentos. — Na verdade, não é isso. Só hesitei porque não estou acostumado a trabalhar com outra pessoa na sala.
— Não vai nem perceber que estou aqui.
— Duvido muito — disse Tony. Ela podia interpretar isso como um elogio, mas ele sabia a verdade.
Penny apertou a campainha da casa não geminada, uma imitação do estilo Tudor, numa das ruas mais seletas da zona sul de Bradfield. Mesmo com o salário de superintendente, a casa deveria estar além das posses de Tom Cross. Entretanto, a reputação de sortudo de Popeye tinha aumentado há alguns anos quando ganhou um montante de cinco dígitos na loteria esportiva. A festa que se seguiu ficou na história da polícia. Agora, parecia que ele tinha perdido seu amuleto da sorte em algum lugar pelo caminho.
Uma luz se acendeu no corredor e alguém cambaleava para a porta, transformada numa massa amorfa pelo vitral.
— Mistura de Sexta-feira 13 e Halloween — murmurou Penny, e ouviu a maçaneta girar.
Com um estalo, a porta se abriu, apenas alguns centímetros cheios de suspeita. Penny inclinou a cabeça e sorriu para a forma atrás da porta.
— Superintendente Cross — cumprimentou ela, a nuvem branca de seu hálito encontrando a espiral de fumaça vinda da porta. — Penny Burgess, do Sentinel Times.
— Eu sei quem você é — rosnou Cross, com a pronúncia embaralhada pela bebida evidente nessas poucas palavras. — Que diabos você quer aqui a essa hora da noite?
— Fiquei sabendo que teve um probleminha no trabalho — arriscou Penny.
— Você ouviu errado então, senhora. Agora dê o fora.
— Olhe, vai estar em toda a mídia amanhã. O senhor estará cercado. O Sentinel Times sempre o apoiou, senhor Cross. Estivemos de seu lado durante toda a investigação. Não sou nenhum figurão de Londres vindo aqui chutar cachorro morto. Se o senhor foi afastado, nossos leitores têm o direito de ouvir o seu lado da história.
A porta ainda estava aberta. Se ela havia conseguido dizer isso tudo sem que ele lhe batesse a porta na cara, havia chance de que fosse conseguir extrair algo útil dele.
— O que lhe faz pensar que estou fora do caso? — perguntou Cross, em tom desafiador.
— Fiquei sabendo que foi suspenso. Não sei por qual motivo, mas é por isso que gostaria de ouvir o seu lado da história, antes de recebermos o boletim oficial.
Cross lhe dirigiu um olhar zangado, seus olhos cor de groselha pareciam se injetar ainda mais para fora.
— Não tenho nada a declarar — resmungou ele, sílaba por sílaba.
— Nem mesmo em off? O senhor está disposto a não fazer nada e deixar que eles manchem a sua reputação depois de tudo que fez pela força?
Cross abriu mais a porta e percorreu com o olhar o acesso de veículos até a rua.
— Você está sozinha? — perguntou ele.
— Nem na minha redação sabem que estou aqui. Acabo de ficar sabendo.
— É melhor você entrar por um minuto.
Penny entrou num hall que parecia um catálogo da estamparia Laura Ashley. Na extremidade oposta do corredor, uma porta estava semiaberta; as vozes da televisão, identificáveis mesmo naquela distância. Cross a guiou na direção oposta até uma sala de estar comprida. Quando ele ligou as luzes, os olhos de Penny foram bombardeados por mais objetos decorativos do que seriam encontrados num armarinho. A única coisa que as cortinas, carpetes, tapetes, papéis de parede, tecidos de lã e almofadas espalhadas tinham em comum eram os tons de verde e creme.
— Que bela sala — gaguejou Penny.
— Você acha? Na minha opinião, é uma porcaria. A patroa diz que é o melhor que o dinheiro pode comprar, que é o único argumento que já ouvi para ficar sem um tostão.
Cross resmungou, dirigindo-se ao armário de bebidas. Ele se serviu de um drinque generoso de um decantador. Em seguida, como algo que lhe tivesse ocorrido depois, disse:
— Você não vai querer, tendo que dirigir depois.
— Exatamente — disse Penny, forçando simpatia em sua voz. — Não dá para arriscar com os seus rapazes nas estradas.
— Você quer saber por que aqueles canalhas frouxos me suspenderam? — indagou ele, de modo agressivo, esticando a cabeça para a frente como um jabuti faminto.
Penny fez que sim, sem ousar pegar seu caderno.
— Porque eles preferem seguir o que a porcaria de um doutor afrescalhado diz a ouvir um policial de verdade, é por isso.
Se Penny fosse um cachorro, suas orelhas estariam de pé com atenção. Como não era, ela se contentou em erguer educadamente as sobrancelhas.
— Um doutor? — incentivou.
— Eles trouxeram esse psicólogo bundão para fazer nosso trabalho. E ele diz que o veadinho que prendemos é inocente, então que se danem os indícios. Mas eu sou policial há vinte e tantos anos, e confio nos meus instintos. Pegamos o filho da mãe, posso sentir isso. Tudo que fiz foi tentar me certificar de que ele ficaria atrás das grades até que tivéssemos resolvido todas as malditas questões pendentes.
Cross bateu o copo vazio no armário.
— E eles tiveram a porra da cara de pau de me suspender!
Fabricando provas, então. Embora Penny estivesse desesperada para saber mais sobre o misterioso doutor, ela sentiu que o melhor a fazer era deixar que Cross expressasse seus ressentimentos antes.
— De que eles o acusam? — perguntou ela.
— Não fiz nada de errado — respondeu ele, servindo-se de outro drinque no decantador.
— O problema com o maldito Brandon é que ele vem carimbando papel há tanto tempo que se esqueceu do verdadeiro sentido do trabalho. Instinto. É disso que se trata. Instinto e trabalho pesado. Não um médico de maluco com a cabeça cheia de ideias estapafúrdias como se fosse a merda de um assistente social.
— Quem é esse cara, então? — arriscou Penny.
— Dr. Tony Hill. Um merdinha do Ministério do Interior. Senta em sua torre de marfim e nos diz como pegar bandidos. Ele não entende mais do trabalho da polícia do que eu de física nuclear. Mas o bom doutor diz: “deixe o veadinho ir”, então Brandon responde: “tudo que o mestre mandar faremos todos”. E só porque não concordo, sou expulso aos pontapés.
Cross engoliu mais uísque, com o rosto corado tanto de raiva quanto pela bebida.
— Todo mundo acha que estamos lidando com o mestre do crime, não com uma bicha burrinha que teve um pouco de sorte até agora. Não precisamos desses espertalhões com uma droga de “doutor” antes do nome para capturarmos essa escória. Tudo que se consegue com isso é fazer o veadinho homicida ficar cheio de si.
— É correto dizer, então, que o senhor discorda da linha de investigação? — perguntou Penny.
Cross bufou.
— Pode-se dizer que sim. Guarde minhas palavras: se eles deixarem esse bosta voltar às ruas, vamos estar diante de mais um cadáver.
Para a surpresa de Tony, Carol provou ser fiel à sua palavra. Ela se sentou à mesa dele, tratando de dar conta da pilha de declarações enquanto ele continuava trabalhando em seu computador. Longe de distraí-lo, ele achou a presença dela curiosamente tranquilizadora. Não teve dificuldade em continuar com o perfil de onde havia parado mais cedo.
Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu. Nesse caso, há três sinais principais de escalada de violência. As feridas na garganta se tornaram cada vez mais profundas e precisas. A mutilação sexual evoluiu de alguns cortes hesitantes na região genital à amputação completa. E as marcas de mordidas que inflige, e depois corta, aumentaram em número e profundidade. Apesar disso, ele conseguiu permanecer suficientemente no controle da situação a ponto de encobrir seus rastros.
É difícil avaliar se o nível de tormento causado por ele está aumentando ou não, já que ele parece estar usando diferentes métodos de tortura em cada caso. O fato de que precisa do estímulo desses métodos diferentes é, contudo, por si só, uma forma de aumento progressivo.
A julgar pelo laudo do legista, a sequência de eventos parece ter sido:
1. Captura, usando algemas e amarras em volta dos tornozelos.
2. Tortura, incluindo atos motivados sexualmente como morder e chupar.
3. Golpe fatal na garganta.
4. Mutilação genital posterior à morte.
O que isso nos diz sobre o assassino?
1. Ele tem fantasias sofisticadas e altamente desenvolvidas, que está explorando por meio de seus métodos de tortura.
2. Ele tem um lugar de matança. As quantidades de sangue e outros fluidos corporais gerados por sua atividade não poderiam ser limpos prontamente num ambiente doméstico normal: seria arriscar muito além do que os seus demais comportamentos cautelosos indicam. Quase certamente ele dispõe de um local para apagar seus vestígios dos assassinatos. Esse local deve possuir também energia elétrica, de modo que possa acender luzes e usar uma câmera de vídeo. Devemos procurar algo como uma garagem trancada, um prédio que fornece segurança, e que provavelmente tem água corrente e eletricidade. Pode ser também uma área isolada, evitando assim a possibilidade de os gritos de suas vítimas serem ouvidos. (Ele quase com certeza remove as mordaças enquanto as tortura; quer ouvi-las gritar e implorar por misericórdia.)
3. Ele é obcecado pela tortura e obviamente tem habilidades manuais suficientes para construir seus próprios aparatos de suplício. Ele não parece ter recursos médicos ou de açougueiro, a julgar pela natureza desajeitada e hesitante dos primeiros cortes na garganta e das mutilações genitais.
Tony tirou os olhos da tela e olhou para Carol. Ela estava totalmente absorvida na leitura, com a familiar ruga entre os olhos. Será que ele estaria maluco em recusar o que ela parecia estar oferecendo? Mais do que ninguém com quem ele tivesse se envolvido, ela entenderia as pressões do seu trabalho, os altos e baixos que penetravam a mente de um psicopata. Era inteligente e sensível, e se ela se comprometesse de forma tão dedicada a um relacionamento quanto à carreira, talvez fosse forte o bastante para lidar com os problemas ao seu lado, em vez de usá-los contra ele.
Notando de repente o olhar de Tony sobre ela, Carol ergueu os olhos e lhe dirigiu um sorriso cansado. Naquele instante, ele se decidiu. De jeito nenhum. Já tinha problemas suficientes para lidar com todas as bobagens que povoavam sua cabeça sem permitir que outra pessoa o fizesse refém da sorte. Carol era simplesmente esperta demais para se permitir aproximar.
— Indo bem? — perguntou ela.
— Estou começando a ter uma noção de como é o assassino — admitiu Tony.
— Isso não pode ser muito prazeroso — disse Carol.
— Não, mas é para isso que sou pago.
Carol fez que sim.
— E aposto que é gratificante. E excitante?
Tony sorriu ironicamente.
— Pode-se dizer que sim. Às vezes me pergunto se isso não me torna tão desequilibrado quanto eles.
Carol riu.
— Não só você. Dizem que os melhores policiais na captura de ladrões são os que conseguem entrar na cabeça dos criminosos. Então, se eu quiser ser a melhor no que faço, tenho de pensar como uma criminosa. Isso não significa, porém, que eu queira fazer o que fazem.
Estranhamente confortado pelas palavras de Carol, Tony voltou para sua tela.
O tempo que o assassino passa com suas vítimas pode também fornecer indicadores. Em três dos quatro casos, o assassino parece ter feito contato no início da noite e ter descartado os corpos nas primeiras horas da manhã seguinte. Curiosamente, no terceiro caso, ele passou mais tempo com a vítima, ao que parece mantendo-a viva por quase dois dias. Esse foi o assassinato que ocorreu no Natal.
Pode ser que normalmente ele não consiga passar muito tempo com a vítima devido a outras exigências em sua vida, exigências que foram alteradas no período do Natal. Essas são mais provavelmente relacionadas ao trabalho do que domésticas, embora seja possível que ele esteja num relacionamento com alguém que tenha voltado sozinho para ver a família no Natal, dando-lhe, assim, tempo para permanecer com sua vítima. Outra possibilidade é que o tempo prolongado que passou com Gareth Finnegan tenha sido um presente de Natal bizarro para si mesmo, uma recompensa pelo bom desempenho de seu “trabalho” anterior.
O curto espaço de tempo que se passou entre os assassinatos e o descarte dos corpos sugere que ele não usa bebida nem drogas em nenhum grau significativo durante a tortura e os assassinatos. Ele não arriscaria ser parado pela política por dirigir de modo errático enquanto carregava um corpo no porta-malas, seja vivo ou morto. Além disso, embora pareça ter usado os carros das vítimas ocasionalmente, é claro que ele também possui um carro próprio. O mais provável é que esse seja um veículo razoavelmente novo e em boas condições, já que ele não pode se dar ao luxo de arriscar ser parado numa blitz pela polícia.
Tony clicou em “salvar” em seu computador e relaxou com um sorriso satisfeito. Não era o momento perfeito, mas também não haveria melhor hora para parar. No dia seguinte pela manhã, ele concluiria a detalhada lista de verificações de características que esperaria encontrar no Faz-tudo, e traçaria propostas de possíveis medidas a serem tomadas pelos policiais no caso.
— Terminou? — perguntou Carol.
Ele se virou e a viu recostando-se na cadeira, com a pilha de pastas fechadas.
— Não percebi que você tinha terminado — comentou ele.
— Faz dez minutos, eu não queria atrapalhar seus dedos, que estavam voando na digitação.
Tony odiava que outras pessoas o estudassem como ele as estudava. A ideia de ser um paciente, alvo do exame que ele mesmo fazia, era um desses pesadelos que lhe faziam acordar banhado em suor.
— Tive o suficiente por esta noite — disse ele, fazendo uma cópia do arquivo num disquete que logo colocou no bolso.
— Vou lhe dar uma carona para casa.
— Obrigado — agradeceu Tony, levantando-se. — Nunca consigo fazer o esforço de trazer o carro para a cidade. Para dizer a verdade, não gosto muito de dirigir.
— Não o culpo. O trânsito da cidade é infernal.
Quando Carol estacionou do lado de fora da casa de Tony, ela disse:
— Alguma chance de entrar para uma xícara de chá? Sem falar em fazer xixi?
Enquanto Tony preparava a chaleira, Carol escapava para o banheiro no andar de cima. Desceu as escadas com o som de sua própria voz na secretária eletrônica. Parou na base da escada, espiando enquanto ele se inclinava na mesa, de papel e caneta na mão, ouvindo suas mensagens. Ela aproveitou sua sensação de crescente familiaridade com o rosto e as linhas do corpo dele. A voz dela terminou e a máquina emitiu um bipe. “Oi, Tony, é o Pete”, anunciou a voz seguinte. “Tenho de estar em Bradfield na próxima quinta-feira. Tem jeito de eu dormir aí e tomarmos uma cerveja na quarta à noite? Parabéns por entrar na equipe de investigação do Assassino de Bonecas, aliás. Espero que pegue o filho da mãe.” Bipe. “Anthony, meu querido. Onde você pode estar? Estou deitada aqui, ansiosa por você. Temos um assunto inacabado, gostosão.”
Ao ouvir o som da voz, Tony se levantou e passou a olhar fixamente a máquina. A voz era rouca, sexy, íntima. “Não acho que pode...” Tony estendeu a mão e interrompeu a voz abruptamente.
Isso é que é não estar envolvido com ninguém, pensou Carol amargamente. Ela apareceu no vão da porta.
— Vamos deixar o chá para lá. Vejo você amanhã — disse ela, a voz fria e instável como gelo numa poça de inverno.
Tony se virou, com pânico nos olhos.
— Não é o que parece — deixou escapar sem pensar. — Nunca nem mesmo vi a mulher!
Carol saiu porta afora e percorreu o corredor. Enquanto mexia na fechadura, Tony falou friamente.
— Estou dizendo a verdade, Carol. Embora não seja da sua conta.
Ela se virou de lado. Encontrou um sorriso em algum lugar e disse:
— Você está certo. Não é mesmo da minha conta. Até amanhã, Tony.
O som da porta se fechando reverberou pela cabeça de Tony como uma britadeira.
— Ainda bem que você é psicólogo — disse para si mesmo amargamente, enquanto se deixava cair contra a parede. — Um leigo poderia ter arruinado tudo. Você realmente acredita em tornar o trabalho uma moleza, não é, Hill?
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 011
Quando Gareth me deu um meio sorriso no bonde, tive certeza de que meus sonhos estavam a ponto de se realizarem. Por causa de um incidente inesperado no trabalho, e todas as horas extras que ele fazia, não conseguia segui-lo havia mais de uma semana.
A imagem dele tinha me embalado no sono quando chegava em casa do trabalho em horários fora do normal, e sua voz vibrava ansiosa em meus ouvidos, mas precisava vê-lo em carne e osso. Programei meu despertador para ter tempo suficiente e estar do lado de fora de sua casa antes que ele saísse para o trabalho, mas meu cansaço era tamanho que não acordei quando o aparelho tocou. Na hora que comecei a acordar, percebi que minha única chance era alcançar o bonde de Gareth algumas paradas depois.
O bonde estava entrando na estação quando corri para a plataforma. Vasculhei ansiosamente o primeiro vagão, mas não consegui vê-lo. A ansiedade subia em minha garganta como bile. Depois, vi sua cabeça brilhante; ele estava sentado bem ao lado da porta do segundo vagão. Forcei a passagem pela multidão e consegui ficar bem ao seu lado, meus joelhos se esfregando nos dele. Com o contato físico, ele levantou o olhar. Os cantos de seus olhos se crisparam, e um sorriso passou por sua boca. Sorri de volta e disse:
— Desculpe.
— Sem problema — respondeu ele. — Esse bonde fica mais cheio a cada dia.
Eu queria continuar a conversa, mas dessa vez não pude pensar em nada para dizer. Ele voltou ao The Guardian e tive de me contentar em observá-lo do canto de minha visão periférica enquanto fingia olhar a paisagem do lado de fora da cidade que passava. Não era muito, eu sei, mas era um início. Ele reconheceu minha presença; sabia que eu existia. Agora, podia ser apenas uma questão de tempo.
Shakespeare acertou quando disse: “A primeira coisa a fazer: vamos matar todos os advogados.” Dessa forma, pelo menos, haveria menos mentirosos de um modo geral. Até as palavras rimavam: jurídico, inverídico. Eu não devia ter esperado nada diferente de um homem que, um dia, fala a favor do reclamante e, no outro, a favor do réu.
Estacionei bem na esquina da casa de Gareth, onde podia observá-lo vir para casa sem que me visse, graças à película nas janelas do meu 4x4. A casa dele não tinha sebe, de maneira que eu podia acompanhá-lo do lado de dentro de sua sala de visitas a partir do meu ponto de vista privilegiado.
Eu conhecia seus hábitos a essa altura. Ele chegava em casa logo depois das seis, ia para a cozinha para pegar uma lata de Grolsch, e retornava para a sala, onde bebia sua cerveja e assistia à TV. Depois de cerca de vinte minutos, pegava alguma coisa para comer na cozinha — pizza, comida congelada, batatas assadas. Cozinhar obviamente não era o seu forte. Quando estivéssemos juntos, eu teria de assumir a responsabilidade por essa parte de nossa vida.
Depois das notícias, ele saía da sala, provavelmente para trabalhar em outro cômodo. Eu imaginava livros de direito enfileirados em prateleiras de pinho. Depois, ou ele voltava para a TV mais tarde ou andava até o pub na esquina para tomar algumas cervejas Lager.
Gareth precisava de alguém com quem pudesse dividir sua vida, eu pensava enquanto aguardava que ele voltasse para casa. Eu era a pessoa certa para isso. Gareth seria meu presente de Natal.
Às cinco e quinze, um Volkswagen Golf branco entrou suavemente na vaga, logo depois da casa de Gareth, e uma mulher saiu. Ela se inclinou para dentro do carro e pegou uma pasta abarrotada de arquivos e uma bolsa a tiracolo. Achei sua fisionomia vagamente familiar enquanto andava pela calçada. Pequena, com cabelos castanho-claros puxados para trás num rabo de cavalo bem preso, óculos grandes de tartaruga, vestido preto, blusa branca com um babado de renda no pescoço.
Quando ela virou no portão de Gareth, eu mal pude acreditar. Pelos poucos segundos que levou para chegar à porta, eu tentei me convencer de que ela era sua corretora imobiliária, sua vendedora de seguros, uma colega passando para deixar alguns papéis. Qualquer coisa. Qualquer coisa.
Então, ela abriu a aba da bolsa e tirou uma chave. Minha mente gritou: “não!” enquanto ela inseria a chave na fechadura e entrava. A porta da sala de estar se abriu e ela deixou a pasta ao lado do canapé. Depois, sumiu novamente. Dez minutos mais tarde, estava de volta, enrolada no roupão felpudo branco de Gareth.
Para falar a verdade, estou com Shakespeare e não abro.
Era a época do ano para ser alegre, então me forcei a não deixar minha decepção influenciar meu estado de espírito. Em vez disso, me concentrei em pesquisar algo adequado para a época, algo bárbaro, próprio do bom e velho simbolismo cristão. Não há mesmo muito que se possa fazer com uma manjedoura e cueiros, então me permiti alguma licença artística e parti para a outra extremidade da vida.
A crucificação como forma de punição foi provavelmente emprestada pelos romanos dos cartagineses. (Interessante como se referiam a todos os demais como bárbaros...) Eles a adotaram por volta da época das Guerras Púnicas e aquela era, inicialmente, uma punição reservada apenas a escravos. O que parece apropriado o bastante, já que esse era o único papel para o qual esperava que Gareth servisse agora. Mais tarde, nos tempos do império, a punição tornou-se mais geral, aplicada a qualquer local que cometesse a temeridade de se comportar mal depois que os romanos tinham vindo gentilmente conquistar — desculpe, civilizar — seu povo.
Tradicionalmente, o criminoso era açoitado e forçado a carregar uma cruz pelas ruas até o lugar onde uma estaca alta tinha sido enterrada. Depois, era pregado na cruz e puxado para cima por um sistema de polias. Seus pés eram às vezes pregados, às vezes amarrados na estaca. Ocasionalmente, a morte por exaustão recebia uma mãozinha dos soldados, que quebravam as pernas da vítima, o que devia lhe conceder uma passagem misericordiosa para o estado inconsciente. Para os meus objetivos, porém, decidi optar pela cruz de santo André, mais decorativa. Por um lado, ela aplicaria tensões mais interessantes nos músculos de Gareth. Por outro, caso ele se mostrasse à altura da ocasião, facilitaria muito o acesso.
Curiosamente, a crucificação nunca foi usada como punição para soldados, exceto pelo crime de deserção. Talvez os romanos tivessem a concepção correta no final das contas.
11
Mas quem, nesse ínterim, era a vítima, a cuja morada ele corria? Porque certamente ele não poderia jamais ser tão indiscreto a ponto de navegar num cruzeiro itinerante em busca de alguma pessoa que encontrasse casualmente para assassinar? Ah, não: ele tinha encontrado uma vítima que o satisfazia algum tempo antes, isto é, um antigo e muito íntimo amigo.
Brandon olhava sombriamente para a folha de papel na máquina de escrever. Tom Cross podia estar bem longe da ideia de policial perfeito do chefe de polícia assistente, mas ele sempre pareceu ser bom em capturar bandidos. Comportamentos absurdos como o daquela noite serviam apenas para pôr em dúvida toda a sua carreira. Para quantas outras pessoas Cross havia armado ao longo dos anos, sem que ninguém percebesse? Se Brandon não tivesse, ele mesmo, flexibilizado as regras e levado Tony em sua busca ilícita, ninguém teria duvidado da “prova” que Tom Cross tinha apresentado. Ninguém, a não ser Stevie McConnell, teria sabido que duas das três “descobertas” do superintendente tinham sido plantadas por ele. Só de pensar nas consequências disso, Brandon já ficava com uma sensação de suor frio nas costas.
Cross tinha deixado Brandon sem nenhuma opção a não ser suspendê-lo. A audiência disciplinar que inevitavelmente se seguiria seria dolorosa para todos os envolvidos, mas essa era a menor das preocupações de Brandon. Ele estava muito mais preocupado com o efeito no moral da divisão de homicídios. A única forma de combater isso era assumir pessoalmente a responsabilidade direta pela investigação. Agora, tudo que precisava fazer era convencer o chefe de polícia de que ele estava certo. Com um suspiro, Brandon puxou a última folha de papel da máquina e inseriu outra.
Seu memorando para o chefe superior era breve e direto. Com isso só restava uma tarefa pendente antes que pudesse ir para cama. Suspirando, Brandon olhou para o relógio. Trinta minutos para a meia-noite. Ele empurrou a máquina para longe e começou a escrever numa folha de seu formulário de memorando pessoal. “Para o detetive-inspetor Kevin Matthews. De John Brandon, chefe de polícia assistente (Criminal). Assunto: Steven McConnell. Em seguida à suspensão do superintendente Cross, assumo o comando direto da divisão de homicídios. Não há fundamento para acusar McConnell de nada a não ser agressão. McConnell deve ser posto em liberdade mediante fiança, aguardando a decisão da data de julgamento pela acusação de agressão, e deve comparecer à Scargill Street em uma semana de modo que possamos fazer mais interrogatórios caso surjam indícios adicionais. Tendo em vista sua recusa em fornecer qualquer informação sobre seus contatos, ou qualquer nome de pessoas que possa ter apresentado a Gareth Finnegan e Adam Scott, devemos acompanhar qualquer contato que faça. Um mandado para grampear seu telefone deve também ser obtido, com base em sua conexão com Scott e Finnegan, e o contato que agora sabemos que tinha com Damien Connolly em sua atividade profissional. Nossas investigações dos quatro assassinatos relacionados devem continuar numa frente ampla, embora sugiro que, após sua soltura, mantenhamos McConnell sob vigilância. Haverá uma reunião de policiais graduados sobre o caso amanhã ao meio-dia.” Brandon assinou o memorando e o selou num envelope. Bela maneira de fazer amigos e influenciar as pessoas, ele pensou enquanto descia as escadas até o sargento de plantão. Brandon rezava que Tony Hill tivesse razão sobre Stevie McConnell. Se Tom Cross estivesse certo em seguir seu instinto, não seria apenas o moral do Departamento de Investigações Criminais que estaria em risco.
Carol despencou sobre a mesa de jantar, o queixo descansando em seus braços dobrados, uma das mãos fazendo cócegas na barriga de Nelson.
— O que você acha, rapaz? Ele é ou não é mais um cafajeste mentiroso?
— Purr — respondeu o gato com uma entonação ascendente, os olhos quase fechados.
— Achei que fosse dizer isso. Concordo, sei como os escolher — suspirou Carol. — Você tem razão, eu devia ter mantido distância. É o que acontece quando a gente precisa tomar a iniciativa. Você leva o fora. Eles geralmente não veem de um jeito tão estranho, no entanto. Pelo menos agora eu sei por que ele ficava se retraindo. Melhor sem ele, gato. A vida já é dura o suficiente sem eu ser a outra.
— Mrrr — concordou Nelson.
— Ele deve achar que sou uma perfeita idiota, esperando que eu acredite que alguém completamente desconhecido deixa mensagens daquele tipo em sua secretária eletrônica.
— Raurr — reclamou Nelson, rolando sobre as costas, batendo nos dedos de Carol com as patas.
— Muito bem, então você também acha isso ridículo. Mas o homem é psicólogo. Se ele fosse inventar alguma coisa para explicar o fato de que mentiu para mim, tornaria a alegação muito mais plausível do que chamadas telefônicas esquisitas. Tudo que ele tinha de dizer era que se tratava de alguém com quem ele tinha terminado, mas que se recusava a entender o recado.
Carol esfregou os olhos, espantando o sono. Bocejou e levantou-se num movimento lânguido.
A porta do quarto de empregada que Michael usava como escritório se abriu e ele ficou parado na entrada.
— Achei que tinha ouvido vozes. Você podia conversar comigo, sabe. Pelo menos, eu respondo.
Carol deu um sorriso cansado.
— Nelson também. Não é culpa dele que a gente não fale a língua dos gatos. Não queria incomodar você; percebi que estava trabalhando.
Michael andou até o armário de bebidas e serviu-se de uma pequena dose de uísque.
— Estava só testando o jogo, tentando identificar os bugs no que desenvolvemos até agora. Nada de mais. Como foi o seu dia?
— Nem me pergunte. Eles nos mudaram para a Scargill Street. O lugar é um buraco. Imagine voltar a fazer seus cálculos num ábaco, e você poderá imaginar o meu ambiente de trabalho atual. A atmosfera é uma merda, e Tony Hill é comprometido. Fora isso, tudo está maravilhoso.
Carol seguiu o exemplo de Michael e se serviu de um drinque.
— Quer conversar a respeito? — perguntou ele, sentando-se no braço de um dos sofás.
— Obrigada, mas não.
Carol engoliu seu drinque de uma vez, tremeu com o efeito da bebida e disse:
— Trouxe uma leva de fotos, aliás. Quando você pode dar uma olhada nelas?
— Arrumei algum tempo no computador que tem o software amanhã à noite. Está bom para você?
Carol pôs os braços em volta de Michael e lhe deu um abraço.
— Obrigada, maninho.
— O prazer é meu. — Ele devolveu o abraço. — Você sabe como gosto de um desafio.
— Estou indo dormir — avisou ela. — Foi um dia longo.
Assim que Carol desligou a luz, sentiu o baque familiar de Nelson pousando ao pé da cama. Era reconfortante sentir seu calor em suas pernas, embora não fosse substituto para o corpo que ela esperara mais cedo, naquela mesma noite. É claro, logo que sua cabeça bateu no travesseiro, seu sono desapareceu. A exaustão ainda estava presente, mas a cabeça raciocinava a mil. Quisera Deus que, até a tarde de amanhã, o constrangimento entre ela e Tony já tivesse evaporado. A pontada de humilhação ainda estaria lá, mas ela era adulta e profissional. Agora que sabia que ele estava fora de alcance, ela não o colocaria numa posição difícil novamente; e agora que ele sabia que ela sabia, talvez pudessem relaxar. Seja como for, o perfil devia fornecer terreno neutro mais que suficiente entre eles. Ela mal podia esperar para ver o que ele apresentaria.
No outro lado da cidade que dormia, Tony também estava deitado em sua cama, olhando para o teto, traçando mapas rodoviários imaginários nas fissuras em volta da roseta de gesso. Ele sabia que não havia sentido em desligar a luz de sua luminária ao lado da cama. O sono lhe fugiria e, na escuridão, ele começaria a sentir o lento estrangulamento da claustrofobia se aproximando. Contar carneiros nunca lhe interessou; nas lentas vigílias da noite era a hora em que Tony se tornava o próprio terapeuta.
— Por que você teve de ligar esta noite? Eu gosto de Carol Jordan. Sei que não a quero em minha vida, mas não queria magoá-la tampouco. Ouvir sua adulação na secretária eletrônica deve ter doído como um tapa na cara, depois que eu disse que não havia ninguém em minha vida — murmurou ele. — Uma pessoa de fora diria que mal nos conhecemos, que tudo que aconteceu esta noite foi um exagero. Mas as pessoas de fora não entendem a conexão, a intimidade que surge do nada quando vocês estão trabalhando em contato direto na busca de um criminoso, quando o tique-taque do relógio leva embora a vida da próxima vítima.
Ele suspirou. Pelo menos, ele não tinha deixado escapar a única coisa que poderia ter convencido Carol de que ele não estava mentindo, a verdade que ele mantinha tão cuidadosamente trancada dentro de si. Era isso que ele dizia a seus pacientes? “Desabafe. Não importa o que seja, falar será o primeiro passo para eliminar a dor.”
— Que monte de conversa fiada — disse ele amargamente. — É só mais um dos truques na cartola mágica, criados para legitimar minha curiosidade lasciva, adaptados para libertar as mentes perturbadas dos desajustados que são levados a realizar suas fantasias de uma forma à qual a sociedade não pode se adaptar. Se eu contasse a Carol a verdade, dissesse a palavra com “i”, isso não teria levado a minha dor. Teria feito apenas com que eu me sentisse um merda ainda maior. Tudo bem para velhos serem impotentes, mas homens da minha idade que não conseguem uma ereção são uma piada.
O telefone tocou, assustando-o. Ele se virou, procurando o aparelho.
— Alô — atendeu, com a voz hesitante.
— Anthony, finalmente. Ah, como senti sua falta!
Sua onda de raiva da voz lânguida e rouca morreu tão rápido quanto tinha se espalhado. Qual era o sentido de ficar irado com ela? Angelica não era o problema. O problema era ele.
— Recebi sua mensagem — disse ele, resignado. Ela não tinha causado o constrangimento com Carol; não haveria motivo para embaraço algum se ele não fosse um exemplo patético de homem. Não fazia sentido sequer pensar em relacionamentos com mulheres simpáticas e normais. Ele teria estragado tudo com Carol, do mesmo jeito que sempre tinha estragado com outras mulheres, assim que elas se aproximavam. O melhor que podia esperar era sexo por telefone. Pelo menos aquilo gerava uma espécie de igualdade; permitia que os homens fingissem não só orgasmo mas também a ereção.
Angelica deu uma risadinha.
— Achei que ficaria contente em receber meu recado quando voltasse para casa. Espero que não esteja cansado demais para um pouco de diversão.
— Nunca estou cansado demais para esse tipo de diversão — incentivou Tony, engolindo a própria repugnância que ameaçava tomá-lo. Pense nisso como terapia, disse a si mesmo. E ao relaxar, permitiu que a voz fluísse por ele, com a mão passeando do seu peito até a virilha.
Os faxineiros estavam fofocando no elevador quando Penny Burgess surgiu no terceiro andar do escritório do Bradfield Evening Sentinel Times. Ela andou até a sala da redação, acendendo as luzes ao passar, cantarolando com os lábios fechados uma melodia desafinada. Jogou a bolsa na mesa ao lado do computador e se conectou. Executou os comandos que a levaram ao banco de dados da biblioteca e pressionou a tecla de “pesquisa”. Eram oferecidas cinco opções: 1. Assunto; 2. Nome; 3. Por linha; 4. Data; e 5. Fotos. Penny clicou em 2. No prompt do “sobrenome”, ela digitou “Hill”. No prompt do “nome”, ela teclou “Tony”; e como “título”, ela inseriu “Dr.”. Depois se recostou na cadeira e esperou enquanto o computador buscava entre os gigabytes de informações armazenadas em sua imensa memória. Penny abriu o maço de cigarros e puxou o primeiro do dia. Tinha dado apenas algumas tragadas quando a tela piscou “Encontrados (6)”.
A repórter acessou os seis itens e os exibiu na tela. Eles apareceram por data, em ordem reversa. O primeiro era um recorte de dois meses atrás do Sentinel Times, escrito por um colega jornalista. Embora o tivesse lido na época, ela havia esquecido completamente dele. Enquanto relia, Penny assobiava baixinho.
DENTRO DA MENTE DE UM ASSASSINO
O homem que o Ministério do Interior escolheu para liderar a caçada de serial killers falou hoje sobre o último assassinato que aterrorizou a comunidade gay da cidade.
O psicólogo forense Tony Hill faz, há um ano, um grande estudo, com financiamento do governo, que levará à criação de uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais similar à unidade do FBI que figurou no filme O silêncio dos inocentes.
Dr. Hill, de trinta e quatro anos, foi psicólogo clínico-chefe no Blamires Hospital, o sanatório de segurança máxima que abriga os criminosos mais insanos e perigosos do Reino Unido, incluindo o assassino em massa David Harney e o serial killer Keith Pond, o Maníaco da Autoestrada.
Dando seu veredicto, dr. Hill esquivou-se: “Não fui convocado pela polícia para oferecer consultoria em nenhum desses casos, então não sei mais do que seus leitores sobre eles.”
Ou o dr. Hill vinha mentindo para o colega de Penny, ou seu envolvimento formal com o caso surgiu depois da entrevista. Se esse fosse o caso, Penny conseguia ver como explorá-lo de uma forma que interessaria seu editor. Ela conseguia visualizar a manchete agora. “POLÍCIA SEGUE A PISTA DO BEST NA CAÇADA DO ASSASSINATO.” Ela passou os olhos rapidamente pelo resto do artigo. Não lhe disse nada que ela já não soubesse, embora estivesse interessada que o dr. Hill tivesse especulado sobre as discrepâncias no terceiro assassinato poderem significar a existência de dois assassinos nas ruas. Essa era uma ideia que parecia ter desaparecido sem deixar rastros. Uma boa pergunta para Kevin da próxima vez que ela conseguisse estabelecer uma conversa por telefone com ele.
O recorte seguinte era do The Guardian, e anunciava a criação do programa do Ministério do Interior para desenvolver uma força-tarefa nacional para lidar com criminosos em série. O projeto teria sede na Bradfield University. O artigo lhe fornecia mais informações sobre o histórico do dr. Hill, e ela anotou apressadamente os detalhes de sua carreira no caderno. Não é burro, esse cara. Penny teria de ter cuidado ao lidar com ele. Ela bateu nos dentes com a caneta e se perguntava por que o Sentinel Times não tinha feito uma matéria especial sobre o estudo, com um perfil do dr. Hill. Talvez eles tivessem tentado e recebido um não. Ela teria de verificar com seus colegas da seção Especiais.
Os dois próximos recortes eram de um tabloide de circulação nacional, uma série em duas partes sobre serial killers que foi programada para coincidir com o lançamento de O silêncio dos inocentes. O dr. Hill foi citado nos dois artigos, falando em termos gerais sobre o trabalho dos criadores de perfis criminais psicológicos.
Os dois últimos textos tratavam de um de seus mais importantes pacientes, Keith Pond, o chamado Maníaco da Autoestrada. Pond tinha sequestrado cinco mulheres das áreas de serviço da rodovia, depois as estuprado de modo selvagem e as assassinado. No momento do julgamento, apenas dois dos corpos haviam sido encontrados. Mas, após a terapia prolongada com o dr. Hill, Pond revelara o paradeiro dos outros três corpos. O dr. Hill foi saudado como um operador de milagres pela família enlutada de uma das vítimas. Um dos dois artigos havia tentado um perfil do psicólogo Hill, mas eles tinham informações escassas para prosseguir. Como de hábito, o jornalista não deixou que isso fosse um empecilho para uma boa história.
Tony Hill, que nunca se casou, dedica-se ao seu trabalho. Um ex-colega disse: “Tony é um viciado em trabalho, casou-se com o emprego.
“Ele é totalmente motivado pelo desejo de compreender o que interessa aos seus pacientes. Provavelmente não há outro psicólogo no país que tenha a mesma habilidade para entrar na mente perturbada de criminosos e descobrir o que os faz agir como agem.
“Às vezes, eu achava que ele se identifica mais com os assassinos em massa do que com as vítimas.”
O recluso dr. Hill mora sozinho e tem fama de não socializar com os colegas. Fora estudar as mentes dos serial killers, ao que parece, o único passatempo a que se permite é caminhar nas montanhas. Nos fins de semana de folga, ele regularmente vai até o Parque Nacional Lake District ou o Yorkshire Dales e caminha pelas colinas.
— Parece bem divertido — disse Penny em voz alta, escrevendo apressadamente em seu bloco. Ela retornou ao menu principal, onde havia selecionado a quinta opção. Novamente, digitou o nome de Tony para uma pesquisa de imagem. Os bancos de dados revelaram que havia uma foto no arquivo. Penny a acessou e olhou fixamente o rosto que aparecia na tela. — Achei! — exclamou ela. Ela só o tinha visto uma vez antes, mas agora sabia quem era o novo escudeiro de Carol Jordan.
Penny se reclinou no assento, saboreando seu terceiro cigarro, e percebeu que a redação estava começando a encher. Uma rápida ligação, depois ela podia se reservar um tempo para ter o prazer de um prato de fritura na cantina. Estendendo a mão e pegando o telefone, discou o número residencial de Kevin Matthews. Ele atendeu no segundo toque.
— Detetive Matthews — murmurou sonolentamente.
— Oi, Kev, é Penny — disse ela, saboreando o silêncio espantado que saudou seu anúncio. — Desculpe incomodá-lo em casa, mas pensei que você preferiria responder às minhas perguntas aí em vez de no escritório.
— Q-Quê? — gaguejou ele. Depois, abafando o fone. — Sim, é trabalho. Volte a dormir, amor.
— Há quanto tempo o dr. Tony Hill está na equipe?
— Como você ficou sabendo disso? Merda, isso era para ser altamente sigiloso — explodiu ele, com o nervosismo se transformando em raiva.
— Tsc, tsc, Kev. Ela nunca vai voltar a dormir se você gritar assim. Não importa como sei, só fique agradecido de poder negar com a mão no coração que veio de você. Há quanto tempo, Kev?
Ele limpou a garganta.
— Só alguns dias.
— Foi ideia de Brandon?
— Tudo bem. Olhe só, realmente não posso falar disso. Deve ser mantido em segredo.
— Ele está fazendo um perfil, não é?
— O que você acha?
— Trabalhando com Carol Jordan? É a queridinha de Brandon, não é?
— Ela é a intermediária. Olhe, eu preciso ir. Falo com você sobre isso depois, está bem?
Kevin tentou parecer ameaçador, mas não conseguiu.
Penny sorriu e expirou devagar toda a fumaça que tinha na boca.
— Obrigada, Kev. Devo a você um favor muito especial.
Ela colocou o fone de volta no gancho, limpou a tela e abriu um arquivo de artigo.
“Exclusivo. De Penny Burgess”, digitou ela, deixando para lá o café da manhã. Ela tinha coisa muito mais importante para fazer.
Tony estava de volta em frente à sua tela às oito e meia. Em vez da culpa que esperava sentir por seu encontro erótico, ele se sentiu revigorado. Permitir-se ter satisfação com Angelica tinha, de alguma forma, o liberado e relaxado. Por mais surpreendente que achasse que isso era naquelas circunstâncias, ele realmente se excitara enquanto as palavras dela o guiavam num encontro sexual imaginativo e escabroso. Ele não tinha, na verdade, conseguido sustentar sua ereção a ponto de chegar ao orgasmo, mas como não havia ninguém presente para compartilhar seu fracasso, não parecia importar. Talvez mais algumas ligações de Angelica fossem tudo o que ele precisava para contemplar a realidade com algo mais brando do que o pânico irremediável.
Mas não no trabalho. O que ele precisava agora era completa paz. Ele já tinha instruído sua secretária para não transferir nenhuma ligação, e desligou a campainha de sua linha direta. Nada nem ninguém ia interromper o fluxo de seus pensamentos. Sua sensação de satisfação continuava enquanto lia o trabalho que fizera no dia anterior. Ele estava pronto agora para pôr sua carreira em risco e declarar por escrito suas conclusões sobre o Faz-tudo. Tony se serviu de uma xícara de café da garrafa térmica e respirou fundo.
Estamos lidando com um serial killer que certamente matará novamente, a menos que seja pego. O próximo homicídio acontecerá na oitava segunda-feira após a morte de Damien Connolly, a não ser que algum gatilho acelere isso. O que talvez pudesse levá-lo ao descontrole e provocar uma escalada extrema seria algum evento catastrófico que causasse a perda do que estiver usando para manter a fantasia viva. Como, por exemplo, se ele estiver usando vídeos, o dano a suas fitas poderia ocasionar a perda do controle. Outra situação possível é que uma pessoa inocente seja acusada dos assassinatos. Isso seria uma afronta tão grande à ideia que tem de si mesmo que ele poderia cometer seu próximo assassinato antes do cronograma.
Acredito que é provável que ele já tenha selecionado sua próxima vítima e esteja se familiarizando com os movimentos e o estilo de vida dela. Provavelmente, o escolhido é um homem desconhecido da comunidade gay. Ele será, para todos os efeitos, um homem hétero vivendo um estilo de vida heterossexual.
O fato de que sua última vítima era um policial é perturbador. É muito provável que essa tenha sido uma decisão deliberada, e não um acidente ou coincidência. O assassino está mandando uma mensagem para a investigação. Ele está exigindo que o notemos, que o levemos a sério. Ele está também nos dizendo que ele é o melhor; ele pode nos pegar, mas nós não podemos pegá-lo. Há uma teoria de que um comportamento desses é uma espécie de convite à captura, mas não acredito que seja isso que esteja acontecendo nesse caso.
É possível que seu próximo alvo seja também um policial, talvez mesmo alguém que esteja trabalhando na investigação. Isoladamente, isso não será motivo suficiente para que o assassino o escolha, ele deve também se encaixar no critério de vítima que delineou em sua cabeça a fim de que o assassinato assuma seu significado completo para ele. Eu recomendaria enfaticamente que qualquer policial que se enquadre no perfil da vítima aplicasse vigilância extra em todos os momentos, observando qualquer veículo suspeito estacionado próximo à sua casa e verificando se está sendo seguido na ida e na volta do trabalho e dos eventos sociais.
A perseguição e a preparação servem dois objetivos principais para o assassino: reduzem os possíveis fatores de surpresa quando ele vier a realizar o assassinato, e abastecem sua fantasia, que é um aspecto crucial na vida dele.
Nosso assassino é provavelmente um homem branco, com idade entre vinte e cinco e trinta e cinco anos. É esperado que ele tenha pelo menos um metro e setenta e oito de altura, seja bem musculoso, com considerável força na parte superior do corpo. Apesar disso, provavelmente tem uma imagem ruim do próprio corpo. Ele pode fazer exercícios numa academia, mas, se puder pagar, ele preferirá usar seu próprio equipamento na privacidade de seu lar. Ele é destro.
Ele não parece um marginal. Sua aparência é absolutamente comum. Tem um comportamento que não levanta suspeitas. É o tipo de sujeito que não chamaria atenção, e certamente não se suspeitaria que fosse um assassino de várias vítimas. Ele pode ter tatuagens e/ ou cicatrizes autoinfligidas, mas essas provavelmente são bem discretas.
O assassino também é bastante familiarizado com Bradfield, e seu conhecimento de Temple Fields é claramente atual. Isso implica alguém que vive e, provavelmente, trabalha na cidade. Não acho que seja um visitante casual, nem um ex-morador que simplesmente volta aqui para matar. Não há padrão geográfico óbvio nas casas ou lugares de trabalho de suas vítimas, exceto que todas vivem em razoável proximidade de uma linha de bonde. A casa da primeira vítima é, muito provavelmente, mais próxima em termos geográficos do lugar em que o assassino mora ou trabalha. Analisando o histórico geral e o estilo das vítimas, e observando o princípio de que ele está mantendo esse tipo de ambiente que conhece e compreende, eu suspeitaria que o assassino mora numa propriedade própria em vez de alugada, uma casa e não um apartamento, uma área do subúrbio de propriedades similares às das vítimas. É provável que as casas das vítimas valham mais do que a do assassino; esses são homens que, de certa forma, são uma aspiração para ele.
É presumível que tenha inteligência acima da média, embora não esperaria que tivesse um diploma universitário. Seu histórico escolar é provavelmente irregular, com pouca frequência e notas muito variadas. Ele nunca cumpriu seu potencial ou as expectativas que outras pessoas têm dele. A maioria dos serial killers tem um histórico profissional ruim, pulando de emprego em emprego, sendo despedido com mais frequência do que pedindo demissão. Mas esse homem exibe um nível de controle extraordinário na realização de seus assassinatos, de modo que esperaria que ele fosse capaz de manter uma ocupação fixa, possivelmente até uma função com algum grau de responsabilidade e planejamento. Contudo, não acho que esse trabalho envolva muito contato com outros seres humanos, já que seus relacionamentos com outras pessoas são caracterizados por sua natureza deficiente. Suas vítimas são todos funcionários administrativos, com a exceção pouco importante de Damien Connolly, que indica em minha opinião que ele provavelmente opera em um ambiente de trabalho similar. Eu não ficaria surpreso se o encontrasse numa função relacionada à tecnologia, possivelmente informática. Essa é uma área de emprego onde as pessoas podem manter bons empregos sem ter habilidades interpessoais significativas. Os empregados que não se adaptam são aceitos no mundo estranho dos engenheiros de software; na verdade, eles costumam ser muito valorizados uma vez que é difícil substituí-los. Duvido que nosso assassino seja uma pessoa de vanguarda criativa no mundo do software, mas não me surpreenderia que ele fosse gerente de sistemas ou desenvolvedor de programas. Ele provavelmente não se dá bem com seus chefes, sendo inclinado a ser insubordinado e argumentador.
Está na classe média em relação ao seu trabalho, suas aspirações, suas roupas e sua casa, embora possa pertencer à classe trabalhadora de origem. Ele é bom com as mãos, mas estou inclinado a pensar que não está numa ocupação manual, nem que seja por causa do alto grau de planejamento envolvido nesses assassinatos.
Socialmente, ele se sente isolado. Pode não ser necessariamente um ermitão, mas não se conecta às pessoas. Ele se sente alguém de fora. É provável que tenha desenvolvido habilidades sociais superficiais, mas, de alguma forma, seu comportamento sempre é inadequado. Ele é o que ri alto demais, o que pensa que está fazendo piadas quando está na verdade sendo profundamente ofensivo, o que às vezes parece ter viajado num devaneio particular. É aquele que não tem, na verdade, nenhum amigo; que se integra ao grupo, mas nunca desenvolve certo grau de intimidade. Ele tem pouca percepção de suas deficiências sociais. Prefere ficar sozinho com suas fantasias, porque, quando os outros estão envolvidos socialmente, não pode controlar completamente o que ocorre em torno de si.
É perfeitamente possível que não viva sozinho. Se ele morar com alguém, deve ser com uma mulher e não com um homem. Como os homens o atraem sexualmente, e ele não pode aceitar isso, não estará sob nenhuma condição vivendo com um homem, nem mesmo em uma relação platônica. Seus relacionamentos com as mulheres podem muito bem ser sexuais, mas ele não será um amante entusiasmado ou bem-sucedido. Seu desempenho será apenas adequado, e ele pode vivenciar problemas em conseguir e/ou manter uma ereção. Contudo, não fica impotente durante a execução de seu crime, e quase com certeza consegue realizar um ato sexual completo de algum tipo com suas vítimas.
Tony interrompeu o trabalho e olhou pela janela. Às vezes parece o ovo e a galinha. Ele tinha empatia por seus pacientes porque também conhecia as frustrações e a raiva da impotência, ou seus problemas sexuais aumentaram justamente para que pudesse desempenhar melhor seu trabalho?
— Isso importa? — disse ele com impaciência. Correu uma das mãos pelo cabelo e concentrou-se novamente na tela.
Se ele estiver morando com uma companheira, ela quase com certeza não terá nenhuma suspeita de que seu namorado é o assassino. É, portanto, bem provável que seu primeiro instinto seja o de lhe fornecer um álibi, já que, em seu coração, ela sabe que não poderia ser ele de modo algum. Qualquer suspeito cujo álibi tenha sido fornecido unicamente por namoradas ou esposas não deve, portanto, ser eliminado com base apenas nisso.
Ele transita em carro próprio, que está em boas condições (ver anteriormente). E nas noites de segunda-feira, fica livre para circular sem impedimento ou obrigação de estar em algum lugar.
Sua personalidade é altamente estruturada, um maníaco por controle. Do tipo que tem um chilique porque sua namorada esqueceu de comprar seu cereal favorito. Ele acredita que tem boas razões para fazer o que faz; acha que, com seus crimes, na verdade, tudo que está realizando são as ações que todas as outras pessoas querem, mas para as quais lhes falta coragem. Ele é muito melindroso e sente que o mundo conspira contra ele; como é possível, uma vez que é tão brilhante e talentoso, que não esteja administrando a empresa, em vez de fazer esse trabalho reles? Como é possível, já que é tão charmoso, que não esteja saindo com algum supermodelo? A resposta é: o mundo está decidido a trapacear contra ele. Ele possui a visão egocêntrica da criança mimada e não tem percepção do impacto de seu comportamento nos outros. Tudo que vê é a forma como os eventos o afetam.
Ele vive em constante fantasia e devaneio. Suas fantasias são construídas de modo elaborado e parecem mais significativas para ele do que a realidade. Seu mundo de fantasia é onde ele se refugia para tomar decisões e também sempre que encara qualquer tipo de contratempo ou obstáculo em sua vida cotidiana. Suas fantasias provavelmente envolvem violência e sexo, podendo também ser fetichistas. Essas fantasias não permanecem estáticas; elas perdem seu poder e precisam continuar sendo desenvolvidas.
Ele tem certeza de que pode realizar suas fantasias sem que ninguém seja capaz de impedi-lo. Tem suprema confiança de que é mais esperto do que a polícia; não está planejando para o dia em que for pego. Ele acha que é esperto demais para isso. Ele foi muito cuidadoso em apagar os vestígios forenses, que é o motivo pelo qual, como já descrevi à inspetora Jordan, estou convencido de que o fragmento de pele de veado russo deixado na cena do quarto assassinato é uma cortina de fumaça do tipo mais flagrante. Ele está quase certamente mantendo um olhar atento à investigação, e sem dúvida vai morrer de rir enquanto tentamos descobrir a origem do couro. Mesmo que a polícia o rastreie, suspeito que quando encontrarmos o assassino não haverá nada entre suas posses que vá ligá-lo remotamente ao couro.
Se ele tiver algum tipo de ficha criminal, é provável que seja juvenil. Os possíveis crimes são: vandalismo, pequenos incêndios, roubo, crueldade com crianças mais jovens ou animais, agressão contra professores. Contudo, em algum momento determinado, nosso assassino aprendeu um enorme autocontrole, e supostamente não tem registro criminal como adulto.
Ele se mantém atualizado da investigação o máximo possível e prospera com a publicidade, contanto que ela pareça lhe conceder o glamour e o respeito a que almeja. É interessante que a sepultura de Adam Scott tenha sido profanada logo após o segundo assassinato. Isso pode ter sido uma tentativa de alavancar o perfil de seus crimes. Ele é possivelmente alguém que tem contatos com policiais e, caso tenha, se esforça para usar isso como forma de obter informações sobre o andamento da investigação. Qualquer policial que sentir que está sendo estimulado a fornecer informações dessa maneira deve ser encorajado a relatar isso aos oficiais superiores na divisão de homicídios.
Tony salvou seu arquivo e leu o texto inteiro novamente. Alguns dos psicólogos com que tinha trabalhado incorporavam grandes blocos de histórico sobre os prováveis antecedentes da infância do assassino, bem como uma lista de verificação de comportamentos que o assassino poderia ter exibido enquanto estava crescendo. Tony não. Não havia tempo suficiente para esse tipo de informação, uma vez que um suspeito estava pronto para o interrogatório. Tony nunca se esquecia de que os policiais com quem ele lidava estavam nas ruas na linha de frente. Homens como Tom Cross, que não dava a mínima ao tipo de infância terrível que o suspeito tivesse suportado.
Pensar no superintendente aguçou o olhar crítico de Tony. Convencê-lo do valor do perfil seria um pesadelo.
A primeira edição do Bradfield Evening Sentinel Times chegou às ruas pouco antes do meio-dia. Os que procuravam ansiosamente apartamentos, empregos e promoções pegaram os primeiros exemplares com os vendedores de rua sem sequer olhar o que estava na capa. Iam direto à seção de classificados, esperando que atendessem suas necessidades e mantendo a primeira e a última páginas visíveis para o proveito dos passantes. Qualquer um, curioso o bastante para olhar as manchetes garrafais, teria lido “CHEFE DA CAÇADA AO ASSASSINO DISPENSADO. Exclusivo, de nossa correspondente criminal, Penny Burgess.” Mais abaixo na página, a coluna inferior da direita era tomada por uma fotografia de Tony com os dizeres “POLICIAIS DE HOMICÍDIOS SEGUEM A PISTA DO BEST. Exclusivo, de Penny Burgess.” Se eles tivessem ficado intrigados o bastante para comprar seu próprio exemplar, teriam lido um subtítulo que dizia: “Psicólogo famoso integra a caçada ao Assassino de Bonecas, veja a matéria na p. 3.”
Num escritório bem acima da confusão das ruas de Bradfield, alguém olhava fixamente o jornal, com a excitação revolvendo dentro de si. As coisas estavam indo muito bem. Era como se a polícia estivesse concretizando suas próprias fantasias, provando que desejos realmente podem se tornar realidade.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 012
O mundo todo estava nas ruas da cidade, comprando presentes de Natal que ainda estariam pagando durante a Páscoa. Idiotas. Eu estava na minha masmorra, garantindo que teria um Natal inesquecível. Muito embora fosse ser o último de Gareth neste mundo, eu tinha certeza de que todos os detalhes estariam tão claramente gravados em sua memória quanto em minha fita de vídeo.
Planejei nosso encontro com todo o cuidado e precisão que pude. A chegada da piranha significava que eu não poderia arriscar capturá-lo em casa como havia feito com Adam e Paul. Teria de criar planos alternativos.
Enviei-lhe um convite. Imaginei que a véspera de Natal já estaria comprometida, fosse com a família ou com a piranha, então escolhi 23 de dezembro. Eu o elaborei de uma forma que sabia que ele não poderia resistir e que nunca ousaria mostrar à vaca. A última frase dizia “Entrada apenas com convite”. Era um toque de inteligência. Significava que ele teria de trazer consigo a única prova de contato entre nós.
As indicações no verso levavam, se ele tivesse se importado em verificar previamente, a uma casa de verão isolada no alto das charnecas entre Bradfield e Yorkshire Dales; o lado oposto da cidade até Start Hill Farm e minha masmorra. Eu esperava que a casa de campo estivesse alugada para o Natal, mas não tinha nenhuma intenção de permitir que Gareth chegasse tão longe.
Era um tipo de noite clichê de Natal: uma lua crescente branquíssima, estrelas piscando como pedaços de diamante num relógio de luxo, grama e sebes pesadas de geada. Estacionei na beira da estrada de faixa única da charneca que levava até a casa de campo de férias e a algumas fazendas. A distância, conseguia ver a estrada de pista dupla que ficava no caminho até Bradfield, como uma trilha de luzes encantadas estendida sobre a cordilheira de Pennines.
Acendi minha luz de emergência, saí do 4x4 e abri o capô. Pus o que precisava ao alcance da mão, depois me reclinei na lateral dianteira e aguardei. Estava muito frio, mas não me importei. Tinha calculado bem. Estava esperando há apenas cinco minutos quando ouvi o som de um motor lutando para subir a inclinação íngreme. As luzes oscilavam contornando a curva abaixo de mim. Saí do carro, acenando furiosamente, com uma aparência congelada e preocupada.
O velho Escort de Gareth parou abruptamente na frente do 4x4. Dei alguns passos hesitantes na direção dele, enquanto ele abria a porta e saía.
— Algum problema? — perguntou. — Infelizmente não sei quase nada sobre carros, mas se eu puder lhe dar uma carona...
Sorri.
— Agradeço por parar — disse eu. Não havia sinal em seu rosto de que me reconhecera quando me aproximei. Odiei-o por isso. Voltei até o 4x4, gesticulando sob o capô. — Não é nada sério. Só que preciso de três mãos. Se você puder segurar essa parte no lugar enquanto eu uso a chave inglesa nesta porca...
Apontei para o motor. Gareth se inclinou sob o capô. Peguei a chave inglesa e acertei-lhe em cheio com ela.
Dentro de cinco minutos, ele estava no porta-malas de seu próprio carro, mais amarrado que um peru de Natal. Eu estava com suas chaves do carro, a carteira e o convite que lhe enviara. Dirigi de volta pela cidade até a fazenda, onde despejei o corpo inconsciente sem nenhuma cerimônia pelas escadas do porão. Não tinha tempo para fazer mais nada, não se eu quisesse voltar ao 4x4.
Conduzi o carro de Gareth até o centro de Bradfield, deixando-o em Temple Fields num beco perto de Crompton Gardens. Ninguém me viu; estavam todos muito ocupados festejando. Foi apenas uma caminhada de dez minutos pela cidade até a estação ferroviária.
Uma viagem de trem de vinte minutos e mais quinze caminhando rapidamente me trouxeram de volta ao 4x4. Com cautela, me aproximei. Não havia sinal de vida, nenhuma indicação de que alguém estivesse se intrometendo. Dirigi de volta para Start Hill Farm assobiando uma canção de Natal.
Quando acendi as luzes do porão, os olhos castanho-escuros de Gareth se iluminaram com um ódio furioso contra mim. Gostei disso. Depois do terror patético de Adam e Paul, era revigorante ver um homem que tinha alguma coragem. O som abafado que saía de trás da fita em sua boca era mais um grunhido furioso que um apelo.
Inclinei-me sobre ele e alisei para trás seus cabelos que caíam na testa. A princípio, ele fez movimentos bruscos afastando-se de mim, depois se tornou calmo e quieto, seus olhos mostrando reflexão.
— Assim é melhor. Não é preciso lutar, não é preciso resistir.
Ele assentiu com a cabeça, depois grunhiu, fazendo um sinal com os olhos para sua mordaça. Ajoelhei-me diante dele e peguei uma ponta do esparadrapo. Depois que a segurei com firmeza, retirei-a num único movimento rápido. É mais gentil do que fazer isso gradualmente.
Gareth ajeitou o maxilar, lambendo os lábios secos. Ele me fuzilou com os olhos.
— Uma porra de uma festa — rosnou ele, com a voz um pouco trêmula.
— É exatamente o que você merece.
— Como diabos você chegou a essa conclusão? — interpelou ele.
— Você foi feito para mim. Mas se envolveu com aquela vagabunda. E tentou fazer disso um segredo.
Surgiu uma luz em seus olhos.
— Você é... — começou ele.
— Isso mesmo — interrompi. — Então agora você sabe por que está aqui.
Minha voz era tão fria quanto o piso de pedra. Levantei-me de repente e andei até o banco onde havia disposto o meu equipamento.
Gareth estava falando novamente, mas ignorei o som de sua voz. Sei como os advogados podem ser persuasivos e, por mais que ele me bajulasse, não permitiria que causasse nenhum desvio no meu caminho. Abri a sacola Ziplock e tirei o algodão com clorofórmio. Voltei-me para Gareth e ajoelhei-me diante dele. Com uma das mãos, agarrei seus cabelos e, com a outra, apliquei o algodão em sua boca e nariz. Ele lutou de modo tão convulsivo que acabei com um tufo de cabelo em minha mão antes que ele perdesse a consciência. Ainda bem que estava usando minhas luvas de látex, caso contrário seus cabelos teriam me cortado. A última coisa de que precisava era meu sangue se misturando ao dele.
Quando ele apagou, cortei fora suas roupas. Tirei a correia do berço de Judas e a fechei em seu peito, sob as axilas. Eu havia prendido uma roldana rudimentar e um guincho a uma das vigas no teto, e amarrei o gancho na correia. Ergui o corpo de Gareth com o guincho até que ele balançou como visco ao vento. Quando já estava lá em cima no ar, foi questão de segundos até abrir as algemas e prendê-lo à minha árvore de Natal.
Parafusei duas tábuas na parede no formato da cruz de santo André e cobri-as com ramos espinhosos de abeto norueguês. Para cada braço da cruz eu prendi correias de couro que amarrei em volta dos pulsos e tornozelos dele. Abri os punhos fechados de Gareth e prendi com fita suas mãos espalmadas na cruz. Por fim, removi o gancho e deixei que as correias no pulso recebessem a pressão. O corpo dele desabou de modo alarmante, e por um momento eu me preocupei que não tivesse instalado correias fortes o bastante. Houve um breve ranger do couro na madeira, depois o silêncio. Ele pendia como um apóstolo martirizado na parede da masmorra.
Peguei minha marreta e os ponteiros afiados que tinha escolhido para o trabalho. Ficaríamos juntos agora até a noite de Natal. Eu pretendia saborear cada minuto de nossas quarenta e oito horas.
12
Pouquíssimos homens cometem assassinato por princípios filantrópicos ou patrióticos... Quanto à maioria dos assassinos, eles são donos de personalidades muito falhas.
Os quatro detetives-inspetores estavam sentados com o rosto sem expressão, no que antes era o escritório de Tom Cross, quando John Brandon lhes deu a versão oficial da suspensão do superintendente. Às vezes, Brandon desejava ser ainda um dos oficiais, capaz de explicar seus motivos sem parecer sabotar o próprio cargo ao agir dessa forma.
— O que temos de fazer é deixar isso para trás e avançar com a investigação — disse ele bruscamente. — Pois bem, qual é a situação de McConnell?
Kevin se inclinou para a frente em seu assento.
— Fiz como instruiu, senhor. Ele deixou nossa prisão um pouco antes da meia-noite, e tenho uma equipe o monitorando desde então. Andou direitinho na linha até agora. Foi direto para casa, pareceu ir para a cama, a julgar pelas luzes. Estava de pé às oito horas da manhã, e foi trabalhar. Tenho um dos rapazes na academia, fazendo-se passar por associado, e outro fora na rua.
— Continue assim, Kevin. Mais alguma coisa? Dave, algo interessante no sistema?
— Estamos acompanhando muitas placas de carro e indivíduos envolvidos em qualquer crime gay, tanto no ataque a homossexuais quanto em atentados ao pudor. Estamos também prestes a cruzar os dados dessas listas com os que Don Merrick vem obtendo com as agências de viagem a respeito de pessoas que reservaram férias na Rússia. Depois que tivermos o perfil, talvez tenhamos alguns suspeitos, mas é uma pedreira no momento, senhor.
Carol interveio:
— Algumas das associações de levantamento de peso disseram que nos forneceriam listas de seus membros que estiveram na Rússia ou competiram contra equipes russas.
— Eba, mais porcarias de listas — comentou Dave, fazendo uma careta.
— Tenho um contato na indústria de couro — disse Stansfield. — O maior importador no Reino Unido. Perguntei-lhe sobre a tira de couro, e ele disse que, como era pele de veado, provavelmente não é de uma jaqueta comum ou de um jardineiro. Mais provável que fosse alguém com um pouco de influência pessoal, mas nenhum poder de verdade. Sabe como é. Alguém como um detetive-inspetor.
Sorriu.
— Ou um funcionário da prefeitura de baixo escalão. Um subchefe da estação ferroviária. O imediato de um navio. Esse tipo de coisa.
Dave sorriu.
— Vou dizer à equipe HOLMES para vigiar ex-funcionários da KGB.
Brandon começou a dizer algo, mas foi cortado pelo toque do telefone.
— Brandon falando... — Seu rosto perdeu toda a expressão, tornando-se rígido como a madeira dos caixões que ele parecia estar carregando. — Sim, senhor. Vou para aí imediatamente.
Ele pôs o telefone no gancho suavemente e se levantou.
— O chefe de polícia está interessado em saber como essa edição noturna do jornal saiu desse jeito — disse ele, atravessando a sala e parando ao lado da porta com uma das mãos na maçaneta.
— Tenho certeza de que quem lavou nossa roupa suja na pia da senhora Burgess vai esperar que eu consiga convencer o chefe de polícia a não fazer dele um exemplo.
Ele dirigiu a Carol um sorriso frio.
— Ou dela, na verdade.
Tony trancou a porta de seu escritório atrás de si e ofereceu à secretária do projeto um aceno alegre e um sorriso.
— Estou saindo para almoçar, Claire. Provavelmente vou ao Café Genet em Temple Fields. A inspetora Jordan deve chegar às três, mas vou estar de volta antes disso. Tudo bem?
— Tem certeza de que não quer retornar algumas dessas ligações dos jornalistas? — interpelou Claire.
Tony se virou, continuando a andar para trás pelo escritório.
— Que jornalistas? — perguntou ele.
— Primeiro, aquela Penny Burgess do Sentinel Times. Ela vem tentando de meia em meia hora desde que cheguei. Depois, na última hora, as ligações têm vindo de todos os jornais nacionais, e da Rádio Bradfield.
Tony franziu a testa, intrigado.
— Por quê? Eles disseram o que queriam?
Claire ergueu o exemplar do Sentinel Times que tinha saído rápido para comprar na banca do campus.
— Não sou psicóloga, Tony, mas acho que pode ter algo a ver com isso.
Tony ficou paralisado. Mesmo do outro lado do escritório ele conseguia ler as manchetes e identificar sua própria fotografia em exibição com destaque na primeira página do jornal. Como uma partícula de ferro atraída por um ímã, Tony se aproximou do jornal até que conseguiu ler o nome de Penny Burgess nos dois artigos.
— Posso ver? — perguntou ele com a voz rouca, estendendo a mão para pegar o jornal.
Claire o entregou e observou a reação dele. Ela gostava de seu chefe, mas era humana o bastante para apreciar o desconforto dele em ser exposto na edição noturna do jornal. Tony virou às pressas a primeira página, procurando o artigo completo sobre si mesmo. Com uma sensação de crescente horror, ele leu:
Dr. Hill tem boas qualificações para entrar na mente distorcida do Assassino de Bonecas. Além de seus dois títulos universitários e uma grande experiência em lidar diretamente com os pervertidos criminosos que aterrorizam a sociedade, tem a reputação de ser muito determinado.
Um colega disse: “Ele se casou com o emprego. Ele vive para o trabalho. Se alguém pode pegar o Assassino de Bonecas, é Tony Hill.
“É apenas uma questão de tempo agora, estou convencido. Tony é incansável. Ele não vai desistir até que esse filho da mãe esteja bem trancafiado.
“Vamos encarar a verdade, Tony tem um cérebro privilegiado. Esses serial killers podem ter QIs altos, mas eles nunca são muito espertos quando se trata de ficar fora da prisão.”
— Santo Deus — resmungou Tony. Fora o fato de que nenhum colega que se prezasse jamais faria declarações como essa, o artigo era equivalente a uma incitação ao Faz-tudo. Parecia um desafio. Ele tinha certeza de que o assassino encontraria um jeito de responder a isso. Tony jogou o jornal na mesa, olhando-o furiosamente.
— Ultrapassa um pouco os limites — disse sua secretária com empatia.
— É uma baita irresponsabilidade, sem falar nos limites — respondeu Tony, aborrecido. — Ah, que se dane isso. Vou almoçar. Se o chefe de polícia ligar, diga que não volto mais hoje.
Ele andou de novo até a porta.
— E quanto à inspetora Jordan? E se ela ligar?
— Pode dizer a ela que saí do país. — Com a porta aberta, ele parou. — Não, é só brincadeira. Diga a ela que estarei aqui para nossa reunião.
Enquanto esperava pelo elevador, Tony se deu conta de que nada em sua experiência tinha lhe preparado para o desafio do confronto direto com um assassino. Era algo com que ele teria de lidar usando seus instintos.
• • •
Kevin Matthews bebeu todo o quartilho de cerveja e acenou para a garçonete do bar.
— Mesmo que seja uma cortina de fumaça, ainda assim ele precisa ter tido acesso a essa porcaria de pedaço de couro desconhecido, não é? — perguntou teimosamente a Carol e Merrick. — Mais uma?
Merrick fez que sim.
— Vou tomar um café desta vez, Kevin — disse Carol. — E nos passe um cardápio, por favor. Tenho a sensação de que vou ficar aqui para uma longa sessão com o doutor, e ele tem um hábito desagradável de esquecer a comida.
Kevin pediu as bebidas, depois se virou para Carol. Com a persistência que tinha lhe garantido a promoção, ele disse:
— Mas estou certo, não estou? Para plantar o couro assim, não só ele teve acesso ao tecido como também sabe o quanto é incomum.
— Concordo — disse Carol.
— Então não é perda de tempo tentar levantar a origem, é?
— Nunca disse que era — alegou Carol, com paciência. — Pois bem, você vai me informar sobre o que aconteceu com Tom Cross ou vou ter que imitar nosso assassino e trazer os aparelhos de tortura?
Enquanto Kevin explicava o que tinha acontecido, a atenção de Merrick se desviou. Ele já tinha ouvido a história mais vezes do que precisava. Reclinou no bar e observou a clientela. O Sackville Arms não era o pub mais próximo da delegacia na Scargill Street, mas ele vendia chope Tetleys, de Yorkshire, e Boddingtons, de Manchester, que inevitavelmente chegavam à polícia local. O pub ficava nos limites de Temple Fields, o que lhe dava um atrativo extra para os policiais locais quando a delegacia da Scargill Street ainda estava aberta. Como consequência, prostitutas e pequenos criminosos que queriam repassar recados para seus contatos pessoais da força podiam conseguir isso sem dificuldade. Contudo, nos poucos meses que o posto policial de Scargill Street ficou em desuso, o pub tinha mudado sutilmente. Os fregueses tinham se acostumado a ter o lugar para si mesmos, e havia uma distância claramente perceptível entre os policiais e o resto dos clientes. Os oficiais que vinham usando o pub numa tentativa de recrutar novas fontes da parte vulnerável da comunidade foram recebidos com frieza. Mesmo com um serial killer à solta, ninguém queria voltar ao hábito de informar agora que tinham se livrado dele.
Com os olhos de policial, Merrick percorreu a sala, classificando os bebedores. Prostituta, traficante, michê, cafetão, homem rico, homem pobre, mendigo, fracote. A voz de Carol o perturbou, fazendo-o interromper seu exame.
— O que acha, Don? — Foi o que conseguiu ouvir.
— Desculpe, estava viajando. O que acho do quê?
— Que já é hora de gerarmos alguns de nossos próprios cacoetes entre as “primas”, em vez de contarmos com as garotas da Delegacia de Costumes. Elas estiveram tantas vezes em volta das casas, que eu sairia para verificar se me dissessem que estava chovendo.
— Deixe as prostitutas para lá — disse Merrick. — Precisamos saber um bocado mais sobre como a comunidade gay funciona. Não quero dizer os caras que saíram do armário e frequentam o Hell Hole. Quero dizer os enrustidos. Os que não dão pinta. São esses que podem ter encontrado esse pervertido antes. Quero dizer, de tudo que já li sobre serial killers, às vezes eles não chegam a matar na primeira vez, apenas fazem uma tentativa. Como o Estripador de Yorkshire. Então talvez haja algum cara amedrontado no armário e que tenha sofrido com algum gesto de violência. Esse pode ser o caminho para uma descoberta.
— E Deus sabe que precisamos de uma — disse Kevin. — Mas se não sabemos como as relações são estabelecidas, como nos conectamos?
Carol, pensativa, disse:
— Quando em dúvida, pergunte a um policial.
— Fazer o quê? — perguntou Kevin.
— Há policiais gays na ativa. Mais do que a maioria, eles devem saber como manter a discrição. Eles poderiam nos contar.
— Isso não responde à pergunta — protestou Kevin, com insistência. — Se eles estão tão ocupados mantendo-se discretos, como saberemos quem são eles?
— A Polícia Metropolitana tem uma associação de policiais gays e lésbicas. Por que não entramos em contato, em sigilo, e pedimos a ajuda deles? Alguém deve ter alguns contatos em Bradfield.
Merrick olhou Carol com admiração, Kevin fez o mesmo com frustração, e os dois se perguntaram em silêncio como que a inspetora Jordan sempre tinha uma resposta.
Tom Cross olhou a primeira página do Sentinel Times com um sorriso de satisfação movendo seu cigarro para cima e para baixo. A senhora Burgess pode ter achado que estava no controle de seu encontrozinho na noite anterior, mas Tom Cross sabia que era diferente. Ele armou a teia e ela caiu como uma mosca, fazendo exatamente o que ele esperava dela. Não, verdade seja dita. O que ela tinha feito era melhor do que ele tinha esperado. Aquela frase sobre a polícia indo aos trancos e barrancos atrás do Sentinel Times quando se tratava de procurar o maldito dr. Hill era muito boa.
Haveria muitos homens furiosos na polícia de Bradfield hoje. Esse foi o elemento de vingança do jogo de Tom Cross com Penny Burgess. Mas outra pessoa ficaria zangada também. Quando lesse a edição desta noite, o assassino ficaria mais do que simplesmente irritado.
Tom Cross apagou o cigarro e bebeu ruidosamente de sua caneca de chá. Dobrou seu jornal, colocou-o na mesa em frente e olhou para fora da janela. Acendeu outro cigarro. Ele começaria a instigar o Assassino de Bonecas. Provocado, ele passaria a ficar descuidado, a cometer enganos. E quando Stevie McConnell fizesse isso, Tom Cross estaria pronto à sua espera. Ele ia mostrar àqueles canalhas miseráveis como é que se pegava um assassino.
Tony estava de volta ao escritório às dez para as três. Mesmo assim, não chegou cedo o bastante para superar Carol.
— A inspetora Jordan chegou — avisou Claire assim que ele abriu a porta da antessala. Ela gesticulou com a cabeça para o escritório dele.
— Ela está lá esperando. Disse a ela que você voltaria.
O sorriso em resposta de Tony foi tenso. Enquanto agarrava a maçaneta da porta, ele fechou os olhos bem apertados e respirou fundo. Expondo o que esperava ser um sorriso de boas-vindas no rosto, Tony abriu a porta e entrou em seu escritório. Ao ouvir o som da porta, Carol se virou da janela em que estivera olhando para fora e lhe deu um olhar frio e considerado. Tony fechou a porta atrás de si, reclinando-se.
— Você parece que acabou de pisar numa poça mais funda que seu sapato — comentou Carol.
— É uma melhora, então — respondeu Tony, com mais do que um toque de ironia. — Geralmente me sinto como se tivesse pisado numa poça mais funda que a minha cabeça.
Carol deu um passo em direção a ele. Ela ensaiara o que diria.
— Não há necessidade de se sentir assim comigo. Na noite passada... Bem, você não foi muito franco e interpretei erradamente os sinais. Então podemos esquecer tudo isso e nos concentrar no que é realmente importante entre nós?
— E o que seria? — Tony soou impessoal como um terapeuta, sua pergunta mais um convite à conversa do que um desafio.
— Trabalharmos juntos para pegar esse assassino.
Tony se afastou da porta e foi até a segurança de seu assento, com cuidado para manter a mesa entre eles o tempo inteiro.
— Tudo bem para mim.
Ele deu um sorriso torto.
— Acredite em mim, sou muito melhor em relacionamentos profissionais do que do outro tipo. Pense que foi salva pelo gongo.
Carol circundou o lado oposto da mesa e puxou uma cadeira. Cruzou as pernas vestidas em calças compridas e juntou as mãos sobre o colo.
— Então vamos dar uma olhada nesse perfil.
— Não precisamos nos comportar como se fôssemos estranhos — disse Tony baixinho. — Respeito você e admiro o modo como é tão aberta ao aprendizado de novos aspectos do trabalho. Olhe, antes... antes do que aconteceu na noite passada, parecíamos nos encaminhar para uma amizade que ia além do trabalho. Era uma coisa tão ruim assim? Não podemos nos contentar com isso?
Carol deu de ombros.
— Não é fácil fazer amizades depois de expor suas fraquezas.
— Não acho que demonstrar que alguém atrai você é necessariamente uma fraqueza.
— Estou me sentindo boba — disse Carol, sem ter certeza por que estava se abrindo desse jeito. — Eu não tinha direito de esperar nada de você. Agora, estou com raiva de mim.
— E de mim também, imagino — concluiu Tony. Isso estava se mostrando menos traumático do que ele tinha imaginado. Suas técnicas de aconselhamento não tinham enferrujado pela falta de uso, pensou ele com alívio.
— Em grande parte comigo mesma. Mas posso lidar com isso. O importante para mim é que façamos o trabalho.
— Para mim também. É bem raro encontrar um policial que parece compreender o que estou tentando fazer.
Ele pegou os papéis na mesa.
— Carol... Não é nada com você, sabe. Sou eu. Tenho meus próprios problemas com os quais preciso lidar.
Carol o fitou longamente. Ele sentiu um rápido tremor de pânico quando percebeu que não conseguia ler seus olhos. Ele não fazia ideia do que ela estava sentindo.
— Entendo o que diz — respondeu ela, com a voz fria. — Falando em problemas, nós não temos trabalho a fazer?
• • •
Carol sentou-se sozinha no escritório de Tony com o perfil do serial killer. Ele tinha deixado que ela o lesse enquanto trabalhava na sala ao lado com sua secretária, atualizando-se com relação à correspondência empilhada desde que Brandon o tinha sequestrado há apenas alguns dias. Ela não conseguia se lembrar de já ter estado tão fascinada com um relatório em sua carreira. Se esse era o futuro da polícia, ela queria muito fazer parte dele. Finalmente, chegou ao fim do texto principal e passou para uma folha separada.
Pontos a considerar:
1. Alguma das vítimas já tinha mencionado a um amigo/parente que tinha sido alvo de uma abordagem homossexual indesejada? Caso sim, quando, onde e por quem?
2. O assassino é um perseguidor. Seu primeiro encontro com suas vítimas provavelmente ocorre muito tempo antes de ele matar — semanas, e não dias. Onde ele os está encontrando? Pode ser algo tão banal como onde lavam roupa, onde colocam sola nos sapatos, onde compram sanduíches, onde instalam pneus ou escapamento em seus carros. Considerando que todos moravam próximos à rede de bonde, acho que devemos verificar se as vítimas usavam os bondes regularmente para ir e vir do trabalho ou para sair à noite. Sugiro que verificações completas de antecedentes sejam realizadas, abrangendo contas bancárias, extratos de cartão de crédito, e indícios casuais de colegas, namoradas e familiares. Isso pode ajudar a revelar suspeitos.
3. Há alguma indicação de que as vítimas estavam reservando a noite em questão para algum objetivo específico? Gareth Finnegan mentiu a respeito para a namorada — algum dos outros também?
4. Onde ele está executando seus assassinatos? É improvável que seja em sua casa, já que teria calculado a possibilidade de ser preso, e teria se esforçado para evitar deixar vestígios forenses lá. Ela também precisa ser grande o suficiente para que construa e use os mecanismos de tortura que estamos presumindo nesses casos. Pode ser uma garagem trancada e isolada, ou uma unidade em uma propriedade industrial que fica deserta à noite. Não nos esqueçamos de que ele quase certamente mora em Bradfield. É possível que exista uma propriedade rural isolada à qual ele tenha acesso sem ser perturbado.
5. Ele deve ter aprendido sobre instrumentos de tortura em algum lugar de modo que pudesse construir os próprios. Pode valer a pena verificar com livrarias e bibliotecas se algum de seus clientes fez perguntas ou encomendou livros sobre o assunto.
Carol voltou algumas páginas, relendo parágrafos que tinham chamado sua atenção na primeira leitura. Ela achava difícil crer na velocidade com que Tony tinha assimilado as pilhas de arquivos que ela lhe entregara. Não apenas isso, mas ele extraiu deles os elementos centrais que criaram, pela primeira vez na mente de Carol, uma imagem, ainda que vaga, do homem que ela estava caçando.
Mas o perfil também levantava dúvidas, e uma dessas não havia ocorrido a Tony. Ela se perguntava se ele não se referira a elas por tê-las descartado de imediato. Qualquer que fosse a razão, ela precisava saber. E precisava encontrar uma maneira de perguntar que não parecesse um ataque.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 013
Eu detestava deixar Gareth em suspenso, mas tinha que sair para realizar uma pequena tarefa. No carro dele, encontrei alguns dos cartões de Natal que sua empresa enviava para os clientes preferenciais, já assinados por todos os sócios. Dentro de um deles, como uma caneta-tinteiro, um molde de estêncil e o sangue de Gareth, escrevi em maiúsculas: UM FELIZ NATAL PARA TODOS OS SEUS LEITORES; SEU PRESENTE DE NATAL EXCLUSIVO ESTÁ ESPERANDO NOS ARBUSTOS DO CARLTON PARK ATRÁS DO CORETO. CUMPRIMENTOS DE FIM DE ANO DO PAPAI NOEL. Não era fácil escrever com sangue, ele ficava coagulando na ponta, e eu precisava limpar muitas vezes. Por sorte, sangue não faltava.
Enderecei um envelope com plástico bolha ao editor do Bradfield Evening Sentinel Times e pus o cartão dentro dele, junto com um vídeo que tinha feito algumas semanas antes, quando comecei a planejar o que fazer com Gareth. Já tinha decidido alterar meu modus operandi ligeiramente. Temple Fields era certamente perigosa agora. Mesmo que as bichas estivessem muito bêbadas e drogadas para serem vigilantes, a polícia estaria atenta para algo além de banheiros públicos utilizados ocasionalmente para sexo. Mas a trilha natural nos arbustos de Carlton Park é quase tão difamada quanto uma área de encontros casuais.
Cedo em uma manhã chuvosa de domingo, quando não havia ninguém, dirigi até Carlton Park com minha filmadora. Comecei pelo coreto de ferro forjado. Andei em volta dele, filmando-o de todos os ângulos. Não demoraria muito até que alguém no escritório do BEST reconhecesse o ponto de referência. Afinal, Carlton Park é o maior parque dentro dos limites da cidade, e há um concerto de uma orquestra de instrumentos de metal lá todos os domingos, de abril a setembro. Eu mantinha deliberadamente a câmera ao nível do peito, em vez de no ombro. Lera sobre ocasiões em que estimativas de altura corretas tinham sido feitas simplesmente do ângulo que as fotografias tinham sido tiradas. Se algum cientista forense ia retirar alguma conclusão desse vídeo, queria ter certeza de que seria errada.
Deixando para trás o coreto, desci a trilha natural até os arbustos. Movi a câmera pela vizinhança onde achava que deixaria o corpo, depois parei de filmar. Não passei por ninguém no meu caminho de volta ao 4x4. Foi provavelmente por sorte, já que estava sorrindo de orelha a orelha com o pensamento do editor de notícias intrigado com minha mensagem de Natal.
O vídeo também serviria a duas outras funções. Primeiro, minimizaria o tempo de identificação do corpo de Gareth, o que significava que a mídia teria bastante para repercutir num período que sempre era estagnado em notícias. E, em segundo lugar, despistaria a polícia numa procura inútil sobre quem poderia ter tido acesso aos cartões de Natal.
Poderiam até concluir que alguém ligado ao trabalho tinha decidido silenciá-lo e fazer com que parecesse um assassinato por imitação, jogando o corpo numa área de público gay. Justamente o tipo de coisa que um cliente enlouquecido e desiludido faria. Se eu tivesse muita sorte, eles poderiam até fazer a piranha passar por algum problema também.
Dirigi até o centro da cidade para postar o pacote na agência principal dos correios. Havia bastante presenteadores em pânico para que eu parecesse incomum. Parei numa loja de bebidas no caminho de volta para comprar uma garrafa de champanhe. Normalmente não bebo quando estou trabalhando, mas essa era uma ocasião especial.
Quando voltei, Gareth estava semiconsciente, resmungando de modo incompreensível.
— Papai Noel chegou — anunciei alegremente enquanto descia as escadas.
Retirei a rolha do champanhe e servi duas taças. Peguei uma delas para Gareth e, na ponta dos pés, gentilmente ergui sua cabeça pendente. Segurei a taça em seus lábios e virei.
— Você vai gostar disso — disse eu. — É Dom Perignon de boa safra.
Seus olhos se esbugalharam. Por um momento, ele pareceu perplexo; depois, se lembrou e me fitou com um olhar de puro ódio. Mas ele estava sedento e não pôde resistir ao champanhe. E engoliu-o com avidez, sem saborear nada. Em seguida, cuspiu no meu rosto, com um olhar de estranha satisfação.
— Você usufruir disso é um desperdício — esbravejei. — Como todas as coisas boas da vida. — Recuei e lancei a taça contra seu rosto. Ela se despedaçou no nariz dele, cortando sua bochecha em tiras. Estava feliz porque tia Doris não ia voltar. Ela recebera aquele conjunto de seis taças de cristal frágeis como um presente de bodas de prata, e nunca as tinha usado, aterrorizada que alguém pudesse quebrá-las. Tinha razão em se preocupar.
Gareth sacudiu a cabeça.
— Você é o mal — balbuciou. — Puro mal.
— Não, não sou — respondi baixinho. — Sou a justiça. Lembra da justiça? É o que você devia representar.
— Isso é doentio, sua aberração — respondeu ele.
Não conseguia acreditar que ele ainda tinha energia para bravatas. Era hora de mostrar a ele quem é que mandava. Eu já tinha fixado suas mãos na cruz com alguns ponteiros. O sangue tinha coagulado em volta deles, preto e duro. Agora era a vez dos pés.
Quando me viu pegar as ferramentas na bancada, ele finalmente se rendeu.
— Não há necessidade disso — disse ele desesperadamente. — Por favor. Você ainda pode me deixar ir. Eles nunca encontrariam você. Não faço ideia de onde estamos. Não sei quem você é, onde mora, no que trabalha. Você podia se mudar de Bradfield, e eles nunca lhe encontrariam.
Aproximei-me. As lágrimas se empoçavam em seus olhos e transbordavam, correndo pelo sangue em sua bochecha. Elas deviam ter doído, mas ele não se encolheu.
— Por favor — suspirou ele. — Não é tarde demais. Mesmo que você tenha matado aqueles outros homens. Foi você quem os matou?
Ele era esperto, eu tinha de admitir. Tão esperto que se prejudicava. Ele acabara de conseguir um pouco mais de sofrimento. Virei-me e deixei a marreta e o ponteiro na bancada. Deixe que pense que estou em dúvida. Deixe que passe a noite convencido de que eu teria misericórdia. Isso tornaria o dia de Natal ainda mais prazeroso.
Fechei a porta do porão atrás de mim e subi até a cama, junto com meus vídeos e uma boa garrafa de champanhe ainda cheia. Estava tendo o melhor Natal que já tivera. Lembrei-me de todos aqueles anos de esperança angustiada, rezando que aquele fosse o ano em que minha mãe compraria presentes como os que as outras crianças ganhavam. Mas tudo que ela fez foi me decepcionar. Agora eu tinha entendido que só eu poderia me dar aquilo que ansiava; sabia que, pela primeira vez na vida, eu poderia esperar pelo tipo de Natal que as outras pessoas tinham, cheio de surpresas, satisfação e sexo.
13
Interpretando seus atos à luz desses vestígios silenciosos que deixou para trás, a polícia percebeu que ultimamente ele devia ter ficado ocioso. E o motivo que o guiava é notável; porque registra imediatamente — que sua busca pelo assassinato não ocorria simplesmente como um meio de atingir um fim, mas como um fim para si mesmo.
O Wunch of Bankers era um dos poucos estabelecimentos do centro da cidade onde Kevin Matthews se sentia seguro de encontrar Penny Burgess. Um pub divertido com um rap alto e estridente e uma decoração modelada de acordo com novelas de TV — como o Rover’s Return Snug, a Woolpack Eaterie, o Queen Vic Lounge e o Cheers Beer Bar — era o último lugar em que ele provavelmente encontraria outro policial, ou Penny, outro jornalista.
Kevin fez uma careta quando suas papilas gustativas se contraíram com o café forte e amargo que se escondia sob uma espiral de espuma e que mais parecia resíduo industrial do que um cappuccino. Onde diabos estava ela? Ele olhou seu relógio pela vigésima vez. Penny havia prometido que estaria lá o mais tardar às quatro horas, e agora já tinham se passado dez minutos. Empurrou a xícara pela metade para longe e pegou, na banqueta ao seu lado, a capa impermeável da última moda. Ele estava prestes a se levantar quando a porta giratória do pub emitiu um silvo e Penny apareceu. Ela acenou e se encaminhou direto para a mesa dele.
— Você disse quatro horas — saudou-a Kevin.
— Meu Deus, Kevin, você está ficando mesmo turrão com a velhice — reclamou Penny, dando-lhe um beijinho na bochecha enquanto sentava no assento ao lado dele. — Faça um favor, me dê uma daquelas águas minerais com um toque de frutas silvestres — disse ela, com a voz zombando das pretensões de seu drinque escolhido.
Quando Kevin retornou com um copo já suado por fora, Penny imediatamente pôs uma das mãos de um modo possessivo na parte interna da coxa dele.
— Hum, obrigado — agradeceu, bebericando seu drinque. — Então o que há de novo? Por que o encontro urgente?
— O jornal de hoje — explicou ele, com a voz inexpressiva. — Jogou mesmo merda no ventilador.
— Ah, bom. Talvez assim a gente consiga alguma providência concreta. Como encontrar um suspeito contra o qual tenham algum indício.
— Você não está entendendo. Eles estão procurando o informante. O chefe de polícia chamou Brandon para ser repreendido esta manhã, e a conclusão foi que o Ministério do Interior abriu um inquérito para investigar o vazamento. Penny, você precisa tirar o meu da reta — disse Kevin desesperadamente.
Penny acendeu um cigarro sem pressa.
— Você está me ouvindo?
— É claro que estou, querido — disse Penny, automaticamente com voz suave, sua mente já planejando o artigo do dia seguinte. — Só não entendo por que você está ficando tão agitado. Você sabe que um bom jornalista nunca revela suas fontes. Qual é o problema? Você acha que não sou boa o bastante como jornalista?
Penny se esforçava para ouvir a resposta de Kevin em vez da voz em sua cabeça que recitava manchetes.
— Não é que não confie em você — falou impacientemente. — Estou preocupado com o pessoal do trabalho. Todo mundo vai estar desesperado para que as suspeitas não recaiam sobre si, então qualquer um que saiba sobre nós vai ficar bem ansioso para contar para o Ministério do Interior. E, quando souberem que nós, bem, você sabe. Vai ser o fim. Vou estar acabado.
— Mas ninguém sabe sobre nós. Garanto que, por mim, ninguém sabe — respondeu Penny calmamente.
— Achei que ninguém soubesse também, mas Carol Jordan disse uma coisa que me fez achar que ela sabe.
— E você acha que Carol vai dedurar você para o Ministério do Interior? — interrogou Penny, não conseguindo esconder a incredulidade que sentia. Ela não tivera muitas interações com a policial mais glamorosa do Departamento de Investigações Criminais, mas o que sabia da inspetora não a inclinava a imaginá-la no papel de alcaguete.
— Você não a conhece. Ela é absolutamente implacável. Ela quer ir até o fim, essa moça, e ela me entregaria assim que pensasse que isso a faria subir mais um degrau na carreira.
Penny balançou a cabeça, exasperada.
— Você está exagerando. Mesmo que Carol Jordan tenha misteriosamente descoberto que estamos saindo, tenho certeza de que está ocupada demais se cobrindo de glória por sua ligação com o dr. Hill para se preocupar em entregar você. Além disso, se a gente pensar racionalmente, ela não tem nada a ganhar ficando com a reputação de dedo-duro entre os colegas.
Kevin meneou a cabeça, em dúvida.
— Eu não sei, Penny, você não faz ideia de como é neste trabalho. Estamos todos trabalhando dezoito horas por dia, e não estamos chegando a lugar algum.
Penny alisou a parte interna da coxa dele.
— Querido, você está sob muita pressão. Veja bem, vou lhe propor uma coisa. Se tudo isso vier à tona e alguém dedurar você, o Ministério do Interior certamente vai vir até nós cobrando explicações. Eles vão procurar que corroboremos. Se isso acontecer, vou fazer parecer que Carol Jordan é minha fonte, tudo bem? Isso deve embaralhar as coisas.
O sorriso de Kevin valia a conversa fiada, concluiu ela. Isso e uma ou duas outras coisas nele. Tranquilizado, ele se levantou de um salto.
— Obrigado, Pen. Ouça, preciso ir a um lugar. Ligo para você em breve para que a gente possa se encontrar, tudo bem?
Ele se inclinou e lhe presenteou com um beijo intenso.
— Mantenha-me informado, gostosão — falou Penny baixinho a Kevin, que já se retirava de costas para ela. Antes mesmo que ele chegasse à porta, o artigo dela já começava a se formar. Ah, sim, ela conseguia vê-lo agora.
A polícia de Bradfield está dedicando novos contingentes à caçada do serial killer que fez quatro vítimas e pôs os homens em risco como nunca antes.
No entanto, os policiais extras não irão integrar a busca pelo monstruoso Assassino de Bonecas. Seu trabalho será policiar a própria polícia.
O comando da força está tão alarmado pela precisão das matérias do Sentinel Times sobre os assassinatos que montou uma caçada em grande escala ao informante para descobrir a fonte de nossas matérias. Em vez de pegar o assassino, o objetivo é rastrear os colegas policiais que concordam com a visão de que o público aterrorizado tem direito de saber o que está acontecendo.
Carol abriu a porta que dava para a antessala e disse:
— Terminei. Podemos conversar?
Tony ergueu os olhos de sua posição na tela do computador de modo distraído, levantou um dedo e disse:
— Sim, claro, um minuto apenas. — E terminou o que estava fazendo.
Carol se retirou e respirou fundo. Por mais profissional que tentasse ser, ela não conseguia evitar a onda de atração que sentia por aquele homem. Ignorá-la era uma tarefa mais na teoria do que na prática. Momentos depois, Tony se juntou a ela. Ele se sentou na borda da mesa, com os cabelos em pé como o Pestinha do desenho Pestinha & Feroz, porque ficava passando os dedos por eles enquanto se concentrava.
— Então, qual é o veredicto?
— Estou impressionada — disse ela. — Realmente reúne todos os dados. Há uma ou duas questões, no entanto.
— Só uma ou duas? — perguntou Tony, com a voz próxima a uma risada.
— Você fala muito sobre como ele deve ser forte para superar suas vítimas e movê-las por aí. Além disso, especula sobre como chega até elas numa posição vulnerável a princípio. Estava me perguntando se talvez pudessem ser dois.
— Continue — incentivou Tony, nenhum sinal de frieza em sua voz.
— Não quis dizer dois homens. Digo um homem e outra pessoa que pareça vulnerável. Talvez um adolescente ou, mais provavelmente, uma mulher. Não sei, talvez mesmo uma pessoa numa cadeira de rodas. Enfim, um parceiro no crime.
Carol mexia nos papéis, pondo-os de volta em ordem. Tony não disse nada. Depois de alguns momentos observando seu rosto sem expressão, ela acrescentou:
— Sei que você provavelmente já pensou nisso, só estava imaginando se era uma possibilidade que deveríamos ainda ter em mente.
— Desculpe, não quis parecer que estava ignorando você — respondeu Tony, às pressas. — Estava analisando a ideia, pesando-a com o que sabemos e o perfil. Uma das primeiras coisas que considerei foi se era ou não alguém sozinho. Tendo em conta as vastas probabilidades, concluí que era. Casos como o dos Assassinos da Charneca, onde há duas pessoas agindo em conjunto para realizar atrocidades são incrivelmente raros, para início de conversa. Além disso, eu esperaria encontrar mais variações na metodologia e na patologia se houvesse duas pessoas envolvidas; é difícil acreditar que suas fantasias coincidiriam tão exatamente. Mas é interessante que você tenha levantado isso. Está certa quanto a um aspecto. Se ele estiver trabalhando com uma mulher, isso explica como se aproxima de suas vítimas sem que elas ofereçam resistência.
Tony se sentou olhando fixamente para a frente, as sobrancelhas abaixadas enquanto pensava.
Carol ficou imóvel em seu assento. Por fim, Tony se virou para olhá-la e disse:
— Vou continuar com a teoria do criminoso que trabalha sozinho. Sua ideia é interessante, mas não consigo ver indícios que me convençam de que eu deva alterar a situação mais provável.
— Certo, entendido — disse Carol calmamente. — Prosseguindo desse ponto, você já considerou a possibilidade de um travesti? Como você disse, uma mulher podia chegar perto sem que eles oferecessem resistência. E se a mulher fosse um homem travestido? Isso não teria o mesmo efeito?
Tony pareceu assustado por um momento.
— Talvez você devesse pensar em se candidatar à força-tarefa quando ela estiver montada — tergiversou ele.
Carol sorriu.
— Me bajular não vai levar você a lugar algum.
— Falo sério. Acho que você tem o que é preciso para esse tipo de trabalho. Viu, não sou infalível. Eu não tinha considerado realmente um travesti. Pois bem, por que ignorei essa possibilidade? — refletiu ele, pensando em voz alta. — Deve haver alguma razão inconsciente para eu rejeitar a ideia antes mesmo que ela chegue à parte consciente da mente... — Carol abriu a boca para falar, mas ele disse: — Não, espere, por favor, deixe-me descobrir isso.
As mãos dele correram por seus cabelos de novo, ajeitando os fios escuros espetados.
Ela se rendeu, dizendo a si mesma que ele era tão arrogante quanto o resto, incapaz de aceitar que podia ter apenas deixado escapar algo. Pare de se enganar que ele é diferente, disse enfática para si mesma.
— Certo — disse Tony, sua voz cheia de satisfação. — Estamos lidando com um sadista sexual, concorda?
— Sim.
— Sadomasoquismo é a ilusão de poder dos fetiches sexuais. Mas travestismo é o completo oposto disso. Travestis querem assumir o papel supostamente mais fraco que as mulheres têm na sociedade. A base do travestismo é a crença de que as mulheres têm um poder sutil, o poder de seu gênero. Ele não poderia ser mais distante da transação bruta de dor e poder que os sadomasoquistas almejam. Isso não faz parte de modo algum das fantasias dos travestis. Para convencer as vítimas de que elas estavam lidando com uma mulher e não com um homem vestido de mulher, o assassino teria que ser um transformista talentoso. No entanto, ele também teria de ser um sádico sexual, o que seria algo único na minha experiência de psicologia clínica. Os dois simplesmente não ocorrem juntos — explicou Tony com um ar definitivo. — O mesmo se aplica a um transexual. Provavelmente ainda mais, na verdade, por causa da orientação psicológica pela qual eles têm de passar antes de serem aceitos para tratamento.
— Então, você está desconsiderando — concluiu Carol, sentindo-se arrasada de um modo irracional.
— Nunca desconsidero nada. Isso é pedir para fazer papel de bobo neste jogo. O que acho é que é tão improvável que não estaria disposto a incluir num perfil, porque a mera inclusão poderia levar as pessoas a seguirem a direção errada. Mas, com certeza, mantenha isso em mente. Você está pensando do modo certo. — Ele sorriu inesperadamente, eliminando a pontada de condescendência de suas palavras. — Como eu disse no início, Carol, juntos podemos decifrar isso.
— E você está absolutamente convencido de que não é uma mulher? — perguntou ela.
— O lado psicológico está todo errado. Levando em conta o ponto mais óbvio, o assassino é um obsessivo, e isso tende a ser um traço masculino. Quantas mulheres você conhece que andam em plataformas de estações na chuva em anoraques escrevendo números de trem?
— Mas e quanto àquela síndrome, como se chama, em que as pessoas ficam obcecadas por outras a ponto de transformar suas vidas numa agonia? Achava que eram principalmente mulheres que sofriam disso.
— Síndrome de Clérambault — disse Tony. — E, sim, são principalmente as mulheres que sofrem dela. Mas elas apenas se concentram numa pessoa, e a única pessoa que é capaz de morrer como resultado é o doente, que às vezes comete suicídio. A questão é que as obsessões e compulsões das mulheres são diferentes das dos homens. As obsessões dos homens dizem respeito ao controle; eles colecionam selos e os catalogam, eles colecionam calcinhas de todas as mulheres com quem dormiram. Eles precisam de troféus. As obsessões das mulheres dizem respeito à submissão; nos transtornos alimentares, é a obsessão que as domina e controla, e não o contrário. Uma mulher que sofra da Síndrome de Clérambault e tenha se casado com o objeto de seu desejo seria provavelmente o ideal machista da esposa perfeita. Esse padrão não se encaixa no nosso assassino.
— Entendo o que quer dizer. — Carol estava relutante em desistir da única ideia nova com que tinha contribuído para o processo de criação de perfil.
— Acrescente a isso a pura força física envolvida aqui — continuou Tony, notando sua relutância. — Você está em forma. É provavelmente bem forte para sua altura. Sou só alguns centímetros mais alto. Mas por qual distância acha que conseguiria me carregar? Quanto tempo você levaria para pegar meu corpo do porta-malas do carro e jogá-lo por sobre um muro? Você conseguiria me colocar sobre seu ombro e me carregar pela Carlton Park até a moita? Agora se lembre que todas as vítimas eram mais altas e mais pesadas que eu.
Carol deu um sorriso triste.
— Tudo bem, você venceu. Estou convencida. Houve outra coisa que me ocorreu.
— Diga.
— Lendo o seu perfil, minha impressão é de que a razão que você propõe para a manutenção dos intervalos entre os homicídios simplesmente não é forte o bastante — começou ela, hesitante.
— Você notou isso também — disse ele ironicamente. — Também não me convenceu. Mas não consegui pensar em nenhuma outra coisa que explicasse. Nunca encontrei nada parecido, nem na literatura. Todos os criminosos em série que conheço passam por um aumento progressivo.
— Tenho uma teoria que pode dar conta do problema — disse Carol.
Tony se inclinou para a frente, com uma expressão de profundo interesse.
— Diga, Carol — disse ele.
Sentindo-se como um dourado num aquário, Carol respirou fundo. Ela queria a atenção dele, mas não estava bem certa de que gostava agora que a tinha.
— Lembro do que você me disse há alguns dias sobre os intervalos. — Ela fechou os olhos e recitou: — “Com a maioria dos serial killers, o intervalo entre os assassinatos tende a diminuir bem drasticamente. É a fantasia deles que dispara os assassinatos para começar, e a realidade nunca se compara exatamente com a fantasia, não importa o quanto eles refinem seus procedimentos de assassinato. Mas quanto mais ao extremo eles chegam, mais embotadas ficam suas sensibilidades e mais estímulos eles precisam para conseguir a exaltação sexual que o assassinato fornece. Por isso, os assassinatos precisam se tornar mais frequentes. Shakespeare já dizia: ‘Como se o aumento do apetite tivesse sido causado por aquilo que o alimentara.’” Estou certa?
— Impressionante — suspirou Tony. — Você consegue fazer isso com itens visuais também ou só os auditivos?
Exasperada, Carol ergueu os olhos.
— Auditivos apenas, lamento. De qualquer forma, quando li a parte no perfil onde você sugere que ele pode trabalhar com computadores, tive um estalo. A pergunta que você não colocou, mas que está obviamente perturbando você, é: por que ele não está ficando dessensibilizado para os vídeos mais rapidamente à medida que o tempo passa?
Tony fez que sim. O ponto que ela levantava era poderoso e precisamente o que o perturbava. Ele pesquisou para encontrar uma resposta que satisfizesse a ambos. Buscando a solução enquanto prosseguia, ele disse:
— Suponha, para considerar todas as hipóteses, que o primeiro vídeo tenha o potencial para mantê-lo estável por doze semanas. Mas ele já tem organizado o processo de capturar sua segunda vítima, e o momento oportuno surge antes que ele esteja realmente compelido a matar de novo. Ele simplesmente não resiste à oportunidade quando ela se apresenta de modo tão perfeito. Depois disso, ele percebe que deixou oito semanas entre os assassinatos e decide que oito semanas será o seu padrão. Até o momento, os vídeos o permitiram manter isso. Talvez isso vá mudar agora.
Carol balançou a cabeça.
— É plausível, mas não estou convencida.
Tony sorriu.
— Graças a Deus. Também não estou. Tem de haver uma explicação melhor, mas não sei qual é.
— O quanto sabe sobre computadores? — perguntou ela.
— Sei onde fica o botão de ligar e desligar e como usar o software que preciso para trabalhar. Fora isso, sou um idiota.
— Bem, então somos dois. Meu irmão, porém, é um jovem gênio dos computadores. Ele é sócio numa empresa de software de jogos. A coisa com que ele trabalha é de última geração. Agora mesmo, ele e o sócio estão desenvolvendo um sistema de baixo custo que permitirá que os usuários ponham imagens de si mesmos nos jogos que estão usando. Em outras palavras, em vez de ser um Arnold Schwarzenegger metendo porrada nos vilões na tela em O exterminador do futuro 2, poderia ser Tony Hill. Ou Carol Jordan. A questão é: já existem hardwares e softwares que permitem a digitalização de fitas de vídeo e a importação de imagens para o computador. Acho que chamam isso de imagens digitalizadas. De qualquer forma, depois que tiver isso no computador, você poderá manipulá-lo exatamente como deseja. Pode incorporar instantâneos ou trechos de outros vídeos. Pode sobrepor as coisas. Quando eles compraram o hardware original há seis meses, Michael me mostrou uma sequência que tinha feito de si mesmo. Ele gravou em fita parte da conferência do Partido Conservador e também importou um guia de sexo em vídeo. Depois, selecionou todos esses rostos de ministros do governo enquanto faziam seus discursos e os sobrepôs no vídeo de sexo. — Com a lembrança, Carol bufou numa risada. — Era um pouco tremido, mas, acredite em mim, você nunca deve ter visto John Major e Margaret Thatcher se dando tão bem! Redefiniu todo o sentido da palavra “burocratês”!
Tony fitou Carol num silêncio aturdido.
— Você está de brincadeira comigo — disse ele.
— É a explicação perfeita de por que os vídeos conseguem mantê-lo sob controle.
— Isso não significaria que ele teria de ser um verdadeiro nerd, como o seu irmão?
— Acho que não — respondeu Carol. — Pelo que entendi, as técnicas reais envolvidas são muito simples. Mas o software e os periféricos necessários para fazer isso são incrivelmente caros. Podíamos estar falando em duas ou três mil libras só por um dos produtos. Então, ou ele trabalha para uma empresa onde tem esse tipo de equipamento disponível para uso e possui privacidade para realizar esses trabalhos, ou então ele é um viciado em computadores com muito dinheiro disponível.
— Ou um ladrão — acrescentou Tony, meio de brincadeira.
— Ou um ladrão — concordou Carol.
— Não sei — disse Tony em dúvida. — Responde ao problema, mas é totalmente bizarro.
— E o Faz-tudo não é? — contestou Carol de modo agressivo.
— Ah, ele é bizarro, é verdade, mas não tenho certeza de que é tão equilibrado assim.
— Ele constrói máquinas de tortura. Isso seria muito mais fácil com um programa de computador de design, Tony. Algo o está mantendo estável em seu ciclo de oito semanas. Por que não isso?
— É uma possibilidade, Carol, não mais que isso nesse estágio. Olhe, por que você não faz algumas investigações preliminares para ver o quanto isso seria plausível na prática?
— Você não quer incluir isso no perfil? — perguntou Carol, amargamente decepcionada.
— Não quero prejudicar as coisas que sinto que são muito prováveis incluindo algo que é realmente apenas uma proposta experimental por enquanto. Você mesma admitiu que essa ideia foi fruto de uma das poucas partes do perfil que não passam de especulação. Não me entenda mal, não estou querendo arranjar defeitos. Acho que sua teoria é brilhante. Mas teremos de trabalhar muito duro para que ela supere a resistência de certos grupos ao perfil como um todo. Mesmo pessoas que estão apoiando abertamente o desenvolvimento desse perfil não concordarão necessariamente com partes dele. Então não vamos lhes dar nenhum alvo fácil. Vamos fundamentar o perfil, apresentá-lo embalado para presente, de modo que os críticos não possam arruinar tudo de cara. Certo?
— Certo — concordou ela, sabendo em seu coração que ele tinha razão. Carol pegou uma folha de papel e uma caneta. — Verificar fabricantes de software e consultorias na área de Bradfield — murmurou para si mesma enquanto escrevia. — Checar com Michael os fabricantes do hardware/software necessário, depois apurar os registros de venda. Verificar roubos recentes.
— Grupos de usuários — acrescentou Tony.
— Sim, obrigada — disse Carol, adicionando o item à sua lista. — E fóruns de discussão. Ah, eu vou ser muito popular com a equipe do HOLMES.
Ela se levantou.
— Vai ser um longo trabalho. É melhor eu pôr a mão na massa. Vou levar isso para Scargill Street agora e entregá-lo ao sr. Brandon. Vamos precisar que você venha e explique tudo.
— Sem problema — disse Tony.
— Estou feliz que algo não seja.
Tony olhou para fora da janela do bonde, observando as luzes da cidade passarem numa névoa chuvosa. Havia certa aparência de casulo no interior branco brilhante do bonde. Sem pichação, aquecido, limpo; parecia um lugar seguro para estar. Quando o condutor se aproximou do semáforo, ele emitiu o toque soprado. Soava como um ruído da infância, o tipo de apito que um trem de desenho animado produziria, concluiu.
Ele se virou da janela e estudou secretamente a meia dúzia de outros passageiros no bonde. Qualquer coisa que tirasse sua mente do estranho vazio que sentia agora que tinha entregado seu perfil. Não significava que esse era o fim do envolvimento com o caso. Brandon contara a Carol que ele teria uma reunião diária com ela.
Tony se arrependia de não ter sido mais encorajador quanto à teoria sobre os computadores, mas anos de treinamento e prática haviam deixado arraigado o hábito da cautela. A ideia em si era brilhante. Depois que ela tivesse feito alguma pesquisa sobre o lado prático do que estava sugerindo, ele ficaria muito satisfeito em endossá-la com seus colegas. Mas, para garantir a credibilidade do perfil, ele precisava manter à distância ideias que um policial mediano descartaria como ficção científica.
Ele se perguntava como a polícia estava se saindo naquela noite. Carol tinha ligado para ele para dizer que as equipes estavam nas ruas em Temple Fields, procurando entre os frequentadores habituais da área, tentando ver se as sugestões de perfil geravam alguma identificação de suspeito. Com sorte, talvez obtivessem alguns nomes com os quais fariam referência cruzada nos dados disponíveis no HOLMES, seja por antecedentes criminais ou placas de automóveis cujos proprietários registrados foram inseridos no sistema.
— Próxima parada estação Bank Vale, estação Bank Vale próxima parada — anunciava a voz eletrônica nos alto-falantes. Com um sobressalto, Tony percebeu que tinha deixado o centro da cidade muito para trás e estava chegando ao outro lado do Carlton Park, menos de um quilômetro e meio de sua casa. A estação Bank Vale chegou e foi embora, e Tony se virou em seu banco, pronto para se dirigir à saída quando a próxima parada fosse anunciada.
Ele caminhou rapidamente pelas ruas organizadas do subúrbio, passou pelos campos esportivos da escola, circundando o pequeno bosque denso que era tudo que restava da fazenda que tinha dado nome à região de Woodside. Tony olhou para as árvores enquanto passava apressadamente por elas, pensando ironicamente que o caminho que cortava em diagonal pelo bosque quase com certeza estaria completamente deserto. Primeiro foram as mulheres que voltavam para casa sozinhas que o abandonaram. Depois, foram as crianças, que os pais preocupados mantinham distantes do lugar. Agora, em Bradfield, eram os homens que estavam aprendendo as lições amargas da vida em risco.
Tony entrou em sua rua, desfrutando a quietude do beco sem-saída. Ele atravessaria aquela noite de alguma forma. Talvez fosse ao supermercado comprar os ingredientes para um biryani de frango. Talvez alugasse um filme ou atualizasse sua leitura.
Enquanto virava a chave na fechadura, o telefone começou a tocar. Deixando cair sua pasta, Tony correu para o telefone, chutando a porta atrás de si. Ele pegou o aparelho, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, a voz dela pingou em seu ouvido como azeite de oliva quente que alivia uma dor de ouvido.
— Anthony, querido, você parece ofegante por mim.
Ele conseguiu evitar pensar nisso por todo o caminho para casa, mas sabia que vinha esperando por aquilo.
Brandon tinha desligado a luminária ao lado da cama a menos de um minuto quando o telefone tocou.
— Você bem devia saber — murmurou Maggie, enquanto ele se arrastava do calor solícito dela e se esticava para pegar o aparelho.
— Brandon — rosnou ele, identificando-se.
— Senhor, aqui é o inspetor Matthews — disse a voz cansada. — Acabamos de pegar Stevie McConnell. Os rapazes o prenderam no porto de balsas em Seaford. Ele estava prestes a embarcar para Roterdã.
Brandon levantou o corpo e se sentou sobre o edredom embaralhado, ignorando os protestos de Maggie.
— O que eles fizeram?
— Bem, senhor, eles não acharam que havia muito que pudessem fazer, uma vez que ele está solto sob fiança e não há condições que possa violar.
— Ele está detido? — Brandon estava fora da cama e abria a gaveta de roupa íntima.
— Sim, senhor. Eles estão com ele na sala da alfândega.
— Sob que alegação?
— Agredir um policial.
A voz de Kevin de alguma forma convocava a imagem de um sorriso tão incorpóreo quanto o do gato de Alice no país das maravilhas.
— Eles me ligaram para perguntar o que deviam fazer em seguida, e, uma vez que o senhor tomou um grande interesse pessoal no caso, achei que devia perguntar ao senhor primeiro.
Não force a barra, pensou Brandon furioso. Tudo que disse, porém, foi:
— Eu teria achado que era bem óbvio. Prenda-o por atrapalhar uma investigação criminal e traga-o de volta para Bradfield.
Ele lutou para entrar numa cueca samba-canção e se inclinou para pegar as calças nas costas de uma cadeira.
— Pedimos então aos juízes leigos para recusarem a liberdade em fiança dessa vez? — A voz de Kevin era tão doce que estava prestes a lhe custar os dentes, e não por nenhuma cárie.
— Isso é o que normalmente faríamos se tivéssemos fundamentos para isso, inspetor. Obrigado por me manter informado.
— Mais uma coisa, senhor — disse Kevin, de modo servil.
— O quê? — rosnou Brandon.
— Os oficiais também precisaram fazer outra prisão.
— Outra prisão? Quem diabos mais eles tiveram de prender?
— O superintendente Cross, senhor. Ao que parece, ele estava tentando impedir à força que McConnell embarcasse.
Brandon fechou os olhos e contou até dez.
— McConnell foi ferido?
— Aparentemente não, senhor. Ele só ficou um pouco agitado. O superintendente ficou com um olho roxo, no entanto.
— Ótimo. Diga para deixarem Cross ir para casa. E peça a ele que me ligue amanhã, tudo bem, inspetor?
Brandon recolocou o telefone no gancho e se inclinou para beijar a esposa, que recuperara o edredom e estava bem enrolada como um arganaz hibernando.
— Hum — murmurou Maggie. — Tem certeza de que precisa ir?
— Não é minha definição de diversão, acredite em mim, mas quero estar presente quando eles trouxerem esse preso. Ele é o tipo de cara que pode cair da escada.
— Um problema com o equilíbrio dele?
Brandon sacudiu a cabeça com gravidade.
— Não o dele. Outras pessoas às vezes ficam um pouco desequilibradas, amor. Já tivemos um rebelde à espreita esta noite. Não vou arriscar mais. Vejo você quando puder.
Quinze minutos mais tarde, Brandon entrava na sala da delegacia de homicídios. Kevin Matthews estava debruçado sobre uma escrivaninha do outro lado da sala, segurando a cabeça nas mãos. Ao se aproximar, Brandon ouviu o ronco baixo da respiração de Kevin. Ele se perguntou quando alguém da delegacia teria tido sua última noite inteira de sono. Os erros graves eram resultado do cansaço e da tensão dos policiais. Brandon queria evitar desesperadamente que seu nome ficasse na berlinda dali a dez anos como o daquele homem que arquitetou um formidável erro judicial, e ele faria qualquer coisa para evitar isso. Havia apenas um problema nisso, reconheceu ironicamente para si mesmo enquanto se sentava de frente para Kevin. A fim de ter as rédeas da investigação, ele precisava trabalhar pelo mesmo número ridículo de horas que levava aos próprios erros de julgamento que queria evitar. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ele havia lido um livro com um dilema assim, fazia alguns anos, quando Maggie decidiu fazer aulas noturnas e fazer os exames de nível médio que não tinha concluído. Ela dissera que Ardil 22 era um livro maravilhoso, engraçado, brutal, de profunda sátira. Ele o achara quase excessivamente penoso. O livro lhe lembrava demais o trabalho. Especialmente em noites como a de hoje em que homens antes equilibrados se tornavam bandoleiros.
O telefone tocou. Kevin se mexeu, mas não acordou. Com uma expressão compreensiva, Brandon se esticou e apanhou o aparelho.
— Departamento de Investigações Criminais. Brandon falando.
Houve um confuso silêncio momentâneo. Em seguida, uma voz tensa disse:
— Senhor? Sargento Merrick na linha. Senhor, encontramos mais um corpo.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 014
Levar Gareth para o Carlton Park foi mais difícil do que eu previra. Eu havia feito o reconhecimento do lugar com cuidado e pensara que poderia dirigir até a estrada de acesso usada pelos jardineiros. O que eu não tinha levado em conta era a longa folga do Natal. A estrada estava bloqueada por duas colunas de metal encaixadas no asfalto e presas no lugar com cadeados pesados. Provavelmente eu conseguiria passar pela beirada da pista já que o 4x4 não teria problema em aplainar os pequenos arbustos que ladeavam a estrada. Mas eu deixaria inevitavelmente rastros de pneu e provavelmente minúsculos vestígios de tinta. Não tinha intenção de permitir que Gareth me privasse de minha liberdade, então essa não era uma opção para mim.
Estacionei o 4x4 atrás do galpão de depósito onde os funcionários do parque deixavam seus equipamentos. Pelo menos lá eu estava fora da vista tanto da estrada quanto do parque. Não haveria muitas pessoas por ali às duas horas na madrugada do dia seguinte ao Natal, mas o sucesso depende de esforço.
Saí do 4x4 e sondei em volta. O galpão estava fora de questão; ele tinha um alarme contra invasores. Mas os deuses estavam sorrindo para mim. Em volta da lateral do galpão, havia um pequeno carrinho de madeira do tipo que os carregadores de bagagem costumavam usar para percorrer as plataformas das estações na época em que os ferroviários não pensavam que mover bagagem fosse algo abaixo deles. Os jardineiros provavelmente o usavam para transportar plantas pelo parque. Empurrei-o de volta até o 4x4 e joguei o corpo nu de Gareth nele. Enfiei alguns sacos plásticos pretos de lixo em volta do cadáver, aplicando nos eixos um rápido borrifo de óleo lubrificante para consertar um rangido desagradável, e depois me encaminhei furtivamente para a moita.
Novamente, tive sorte. Não vi ninguém. Guiava o carrinho em volta até os fundos do coreto, próximo aos arbustos que encobriam a inclinação acentuada que havia atrás. No fim do caminho, empurrei-o na borda da grama e para dentro dos arbustos. Depois, com a preocupação de não deixar pegadas no chão mole, trepei no carrinho e rolei o corpo de Gareth para fora, entrando nos arbustos. Recuei e puxei o carrinho atrás de mim. Os arbustos pareciam um pouco maltratados, mas não havia sinal de Gareth. Com sorte, ele permaneceria sem ser descoberto até que o carteiro entregasse minha mensagem de Natal para o jornal.
Dez minutos mais tarde, o carrinho estava de volta no lugar e eu estava investigando furtivamente a saída do parque em uma alameda tranquila em frente ao adro. Muito embora as chances de que me identificassem fossem pequenas, aguardei até que a estrada principal estivesse visível antes de acender meus faróis. Ao contrário de Temple Fields, essa era exatamente o tipo de área onde algum insone intrometido notaria um veículo estranho na madrugada.
Dirigi para casa e dormi durante doze horas, acordando em tempo para algumas horinhas interessantes no meu computador antes de sair para trabalhar. Por sorte, foi uma noite agitada, por isso tive muitos problemas para tirar minha mente da ansiedade com o Sentinel Times do dia seguinte.
Eles me fizeram sentir orgulho, apesar do curto tempo que tiveram para lidar com minha mensagem. Obviamente, entraram em contato com a polícia de imediato e conseguiram convencê-la a levá-los a sério. Deram-me a primeira página completa com uma fotografia da minha mensagem, embora sem nada que identificasse a origem do cartão.
ASSASSINO ALERTA BEST!
A vítima nua e mutilada de um assassino doentio foi encontrada num parque da cidade após uma mensagem bizarra enviada ao Sentinel Times.
O assassino, que assina como “Papai Noel”, revela num terrível cartão de Natal que havia descartado o cadáver no Carlton Park.
O comunicado mórbido parecia ter sido escrito com sangue e estava rabiscado no cartão de Natal empresarial de uma das principais firmas de advocacia da cidade.
Veio acompanhado por um vídeo caseiro do local do corpo, que a equipe do BEST imediatamente reconheceu pelo característico coreto em Park Hill.
Alertado pelos nossos repórteres, um policial enviou um pelotão de policiais uniformizados e à paisana para a área mencionada do parque.
Depois de uma rápida busca entre os arbustos nas proximidades da trilha e do coreto, conforme indicado no vídeo, um policial uniformizado encontrou o cadáver de um homem.
De acordo com as fontes da polícia, o corpo estava nu. A garganta do homem tinha sido cortada e seu corpo estava mutilado.
Acredita-se que ele pode ter sido torturado antes de morrer.
Embora essa área de Carlton Park seja conhecida como um local de encontros casuais de homossexuais ávidos por sexo, a polícia não está no momento conectando esse crime ao assassinato de dois jovens, ocorrido anteriormente neste ano, cujos corpos foram descartados no “bairro gay” de Temple Fields.
O corpo ainda não foi identificado, e a polícia não divulgou uma descrição da vítima, que se acredita estava no final de seus vinte anos ou no início dos trinta.
O pacote, que foi postado na véspera do Natal em Bradfield, chegou aos escritórios do Sentinel Times no correio desta manhã, endereçado ao editor de notícias, Matt Smethwick.
O sr. Smethwick disse: “Meu primeiro pensamento foi que alguém estava fazendo uma brincadeira de mau gosto, principalmente porque conheço um dos advogados na referida firma.
“Depois percebi que meu amigo estava fora do país, de férias, esquiando, então não poderia ter sido ele quem postou o pacote.
“Telefonei para a polícia imediatamente e, por sorte, eles levaram a sério.”
Era de se supor. Nunca na vida falei tão sério. Apesar do que a polícia estava dizendo, o pensamento de que Gareth era o terceiro de uma série devia passar por suas mentes numa curta viagem. Certamente isso não escapou à atenção dos jornalistas, que usaram a mais recente descoberta como uma desculpa para repetir as matérias sobre os assassinatos de Adam e Paul. Quando a edição final da cidade chegou às ruas, eles tinham até encontrado um acadêmico de aluguel para tagarelar.
DENTRO DA MENTE DE UM ASSASSINO
O homem que o Ministério do Interior escolheu para liderar a caçada a serial killers falou hoje sobre o último assassinato que aterrorizou a comunidade gay da cidade.
Há um ano, o psicólogo forense Tony Hill realiza um amplo estudo, com financiamento do governo, que levará à criação de uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais similar à unidade do FBI que figurou no filme
O silêncio dos inocentes.
Dr. Hill, de trinta e quatro anos, foi psicólogo clínico-chefe no Blamires Hospital, o sanatório de segurança máxima que abriga os criminosos insanos mais perigosos do Reino Unido, incluindo o assassino em massa David Harney e o serial killer Keith Pond, o Maníaco da Autoestrada.
Dando seu veredicto, o dr. Hill afirmou: “Não fui convocado pela polícia para oferecer consultoria em nenhum desses casos, então não sei mais que seus leitores sobre eles.
“Reluto em fazer julgamentos apressados, mas, se fosse obrigado, eu diria que é certamente possível, e talvez provável, que os assassinatos de Adam Scott e Paul Gibbs tenham sido cometidos pela mesma pessoa.
“Superficialmente, o assassinato mais recente foi parecido, mas há certas diferenças cruciais. Para começar, o corpo foi descoberto num tipo de local bem diferente. Muito embora Carlton Park também seja conhecido como uma área de público gay, sua atmosfera é bastante diversa do ambiente da Temple Fields urbana.
“Além disso, o envio da mensagem para o Sentinel Times é uma variação importante. Nada similar aconteceu nos casos anteriores, e o assassino não faz referência às outras mortes.
“Isso me inclina a pensar que podemos estar lidando com pelo menos dois indivíduos diferentes neste caso.”
E assim por diante, tudo na mesma toada. Tudo dizendo em néon: “Não temos a menor ideia de por onde começar a procurar.” Não achei que me preocupar com Tony Hill fosse me tirar o sono à noite. Decidi que era hora de ensinar às autoridades algumas lições que elas não iam esquecer tão cedo.
14
Um homem não está obrigado a pôr olhos, ouvidos e entendimento no bolso de suas calças quando se depara com um homicídio. Se ele não estiver em coma absoluto, presumo que deve perceber que um assassinato é melhor ou pior que outro, com relação ao bom gosto. Os assassinatos têm suas pequenas diferenças e matizes de mérito, da mesma forma que estátuas, pinturas, oratórios, camafeus, entalhes e quejandos.
Tony estava esparramado em sua banheira, com uma taça de conhaque à mão. Lânguido, relaxado, extremamente cansado, ele não conseguia se lembrar da última vez que se sentira confortável e otimista assim. Suas experiências ao telefone com Angelica, aliadas à sua convicção de que fizera um bom trabalho no perfil, haviam lhe conferido esperança nova. Talvez ele não precisasse ser incapaz. Talvez pudesse se juntar ao resto do mundo, aqueles que lidavam com os problemas, que assimilavam o passado e moldavam seu mundo de acordo com o que queriam ver.
— Posso mudar minha vida — declarou.
O telefone sem fio tocou. Num movimento lento e fluido, Tony se esticou para pegá-lo. Ele não guardava nenhum terror para ele agora. Estranhamente, ele não temia mais as ligações de Angelica, mas as recebia com alegria.
—Alô — atendeu com animação.
— Tony, é John Brandon. Estou mandando uma viatura buscá-lo. Temos mais um.
Tony se sentou, a água formando pequenas ondas para cima e para baixo como um experimento num laboratório marinho.
— Você tem certeza?
— Carol Jordan e Don Merrick chegaram à cena do crime cinco minutos depois da chamada.
Tony apertou os olhos com força.
— Ah, meu Deus — murmurou. — Onde está o corpo?
— Nos banheiros públicos da Clifton Street. Temple Fields.
Tony se levantou e saiu da banheira.
— Vejo você lá — disse ele, desanimado.
— Tudo bem, Tony. O carro deve chegar em cinco minutos aproximadamente.
— Estarei pronto.
Tony cortou a ligação e saiu do banheiro, enxugando-se com uma toalha enquanto andava. Sua cabeça estava agitada. Ele pôs jeans, camiseta, camisa, suéter e uma jaqueta de couro, adicionando um par extra de meias quando se lembrou do frio da noite. A campainha tocou no momento em que ele estava amarrando os cadarços das botas.
No carro da patrulha, a atmosfera de tensão impedia qualquer possibilidade de pensamento construtivo enquanto eles voavam pelas ruas noturnas, a luz azul piscando em rápida sucessão contra o laranja espectral dos postes de iluminação. Sua companhia, uma dupla de policiais de trânsito machões, mantinha uma pose taciturna de absoluto controle que não se prestava à conversa. Cantando pneus, eles entraram a toda a velocidade na Clifton Street, o motorista forçando os freios ABS ao ver as fitas da polícia que impediam o acesso à parte central da rua.
Ergueram a fita para Tony, que se encaminhou para o meio da rua onde um grupo de viaturas e uma ambulância estavam estacionados em ângulos aparentemente aleatórios. Quando se aproximou, ele conseguiu ver que a placa que indicava os banheiros públicos estava acesa, contrastando com a escuridão ameaçadora do prédio. Ao lado da ambulância, identificou a figura destacada de Don Merrick, inconfundível com sua cabeça enfaixada. Ignorado pelos policiais que circulavam, Tony forçou o caminho até Merrick, que estava profundamente envolvido numa conversa ao celular. Ele deu um aceno rápido para sinalizar que o tinha visto.
— Tudo bem, obrigado, desculpe incomodar. — encerrou, desligando o telefone.
— Sargento — disse Tony. — Estou procurando o sr. Brandon. Ou a inspetora Jordan.
Merrick acenou positivamente com a cabeça.
— Os dois estão lá dentro. Vai querer dar uma olhada também, imagino.
— Quem encontrou o corpo?
— Uma das prostitutas. Ela alega que todos os banheiros femininos estavam cheios e, por isso, ela entrou no compartimento para deficientes. Quanto a mim, aposto que ela estava com um cliente. Ele deu no pé ao primeiro sinal de encrenca.
Com o canto dos olhos, Tony viu Carol surgir do banheiro. Ela veio direto até eles.
— Obrigada por vir — disse ela enquanto Merrick se distanciava e continuava fazendo suas ligações.
— Se eu dissesse que não perderia por nada, alguém quase com certeza entenderia do modo errado — respondeu Tony com ironia. — O que faz você pensar que seja o Faz-tudo?
— A vítima está nua, e sua garganta foi cortada. Ele obviamente foi trazido aqui numa cadeira de rodas, mas foi lançado ao chão. E, sobre ele, havia a primeira página do Sentinel Times da noite passada — respondeu Carol, com a voz tensa e os olhos abatidos. — Nós o provocamos, não foi?
— Nós, não. O jornal pode ter provocado; nós, não — disse Tony gravemente. — Não esperava que ele reagisse rápido assim, no entanto.
Merrick se aproximou novamente e disse com animação:
— Parece que rastreamos a cadeira de rodas. Uma se escafedeu da recepção de uma maternidade mais cedo à noite. Com um pouco de sorte, alguém pode ter visto.
— Bom trabalho, Don — disse Carol. — Vamos dar uma olhada, então? — perguntou ela a Tony. Ele assentiu e a seguiu, enquanto a detetive forçava com os ombros a passagem até a entrada do banheiro pelos policiais que circulavam. Tony andou devagar até os lavatórios, fazendo um inventário mental enquanto olhava em volta, consciente do piso emborrachado preto com círculos salientes, do padrão aparentemente aleatório dos azulejos cinza e pretos na parede, do grafite ousado, do ar úmido do esgoto não tratado, do cheiro de desinfetante mal disfarçando o mijo. No lado de dentro, os banheiros se dividiam em dois: homens na esquerda, mulheres na direita. O banheiro para deficientes ficava à direita, logo ao lado da entrada do feminino. Brandon e Kevin Matthews estavam parados ao lado da porta, olhando para dentro pelo amplo vão. Tony andou até eles e se juntou ao mau humor e à silenciosa comunhão dos dois. Um fotógrafo estava na porta, com um dos lados do corpo para fora, registrando uma cena que mexeria profundamente com um júri, desde que os homens de Brandon conseguissem levar o Faz-tudo até eles. A cada poucos segundos, a luz branquíssima do flash gravava a cena nas retinas dos homens que observavam.
Tony fitou o corpo estendido no chão. Encontrava-se, como Carol tinha dito, nu, mas não estava limpo. Havia manchas de algum tipo de substância escura e oleosa nos joelhos, cotovelos e em um dos tornozelos. E também manchas de sangue no corpo. O corte na garganta era extenso, mas não profundo o suficiente para ter causado a morte, suspeitava Tony. O tanto que ele conseguia ver, os órgãos sexuais não tinham sido lesionados, mas o reto e o ânus do homem e a carne macia em volta tinham sido removidos barbaramente com cortes profundos feitos por uma lâmina afiada. Uma onda cálida de alívio o percorreu, forçando-o a reconhecer o que ele vinha se recusando a pensar. Como Carol, ele também tinha medo que, de alguma forma, suas atividades tivessem provocado o Faz-tudo a interromper seu ciclo e atacar novamente. Desde o telefonema de Brandon, esse horror pousava em seu ombro como uma ave de rapina malévola.
Tony se voltou para Brandon e disse sem emoção:
— Não foi ele. Trata-se de um imitador.
• • •
Das sombras na extremidade da Clifton Street, com o colarinho do casaco virado para cima, Tom Cross se juntou às pessoas morbidamente interessadas, que pareciam surgir de debaixo da própria calçada, e observavam a dança ritual de uma investigação de cena de crime. Seus lábios se contorceram num sorriso apertado, e ele se aprofundou nas sombras. Tirou sua agenda do bolso interno e arrancou uma página para fazer anotações. Sob a luz tênue do poste de iluminação, ele escreveu: “Caro Kevin, aposto um tostão contra um relógio de ouro que o Assassino de Bonecas não cometeu esse crime. Abraços, Tom.”
Seaford tinha sido motivo de embaraço e dor, mas Tom Cross não era um homem que permitia que a humilhação ficasse no caminho de seu objetivo. Ele dobrou a anotação em quatro e escreveu: “Detetive-inspetor Kevin Matthews. Pessoal”. Depois, forçou o caminho pela multidão até que identificou o olhar de um dos policiais atrás da fita.
— Você sabe quem eu sou, não sabe, rapaz? — interpelou Cross.
O policial fez que sim com hesitação, lançando um rápido olhar para cada um dos lados, verificando quem observava seu encontro com o atual leproso da força.
Cross apresentou o bilhete.
— Certifique-se de que o inspetor Matthews receba isso, por favor.
— Sim, senhor — respondeu o policial com esperteza, envolvendo o bilhete em seu punho enluvado e encontrando um momento para se perguntar quem teria a coragem de dar a Popeye Cross um olho roxo como aquele.
— Vou me lembrar de você quando estiver de volta à rotina — disse Cross por sobre o ombro enquanto forçava o caminho pelos espectadores.
Cross cortou o caminho por um beco até o Volvo, estacionado em frente à saída de incêndio de uma boate. O dia tinha sido longe de satisfatório, e a manhã não guardava promessas de melhora. Mas a real convicção na veracidade de sua mensagem a Kevin Matthews fez Tom Cross sentir que houvera algum sentido em suas atividades.
— A autópsia vai me respaldar — disse Tony, com teimosia. — Quem quer que tenha matado esse cara, não foi nosso serial killer.
Bob Stansfield fechou a cara.
— Não vejo como pode ter tanta certeza, só por causa de algumas manchas de óleo.
— Não é só porque o corpo não estava limpo.
Tony marcava os pontos com seus dedos.
— Ele está na faixa etária errada. Ele tem vinte anos, talvez nem isso. Longe de estar no armário, ele era bem conhecido no meio gay. Você o teria identificado às três da manhã.
Kevin Matthews fez que sim.
— Bem conhecido na Delegacia de Costumes. Chaz Collins. Um ex-garoto de programa que trabalhava num bar e gostava de sexo selvagem.
— Exato — disse Tony. — Além disso, não há uma marca em seu pênis ou testículos, ao passo que nosso assassino foi progressivamente mais violento com esses órgãos. Tudo que foi informado à imprensa até agora é que as vítimas foram mutiladas sexualmente. Não indicamos como ou onde. Esse assassino interpretou isso como uma justificativa para se livrar de toda a região anal. Suspeito que fez isso porque estuprou a vítima antes de matá-la e queria garantir que a perícia não encontraria resquícios do seu sêmen.
Tony pausou para organizar seus pensamentos e para servir-se de outra xícara de café do bule que a cantina enviara com o carrinho de café da manhã pedido por John Brandon para sua reunião matinal.
— A cadeira de rodas — disse Carol. — Ele assumiu um grande risco roubando-a da maternidade. Não acho que se ajuste ao comportamento cauteloso que o serial killer vinha demonstrando até agora.
— E ele não foi torturado — acrescentou Kevin, com a boca cheia de rolinho de linguiça e ovo. — Ou pelo menos não de um modo óbvio.
Ele tinha um bilhete em seu bolso que determinaria sua visão tanto quanto qualquer coisa dita dentro dessa sala. Popeye podia estar fora do emprego, mas Kevin apoiaria o instinto dele contra o de qualquer outra pessoa.
Mas Bob Stansfield não estava disposto a desistir.
— Tudo bem, e se ele estiver fazendo de modo diferente para nos fazer pensar que é um imitador? E se ele estiver deliberadamente tentando nos confundir? Afinal, não dá para ignorar o jornal posto ali. E o perfil do dr. Hill nos alertou que o estresse da cobertura do jornal poderia atrapalhar seu padrão.
Tony continuou montando cuidadosamente um rolo de bacon e ovos. Ele esguichou um círculo de molho marrom em volta da gema, fechou a tampa, pressionou para que a gema se rompesse, depois disse:
— Não há nada errado nisso como teoria. É perfeitamente plausível que ele tente matar apenas para exibir suas habilidades. Não seria planejado com tanta antecedência como os outros, por isso sua escolha de vítima poderia ser muito diferente. Mas o padrão básico seria o mesmo.
— Mas é o mesmo — insistiu Stansfield. — Cortaram a garganta do rapaz do mesmo jeito que a dos outros. E esse filho da mãe bagunçou ele de verdade. Como você pode dizer que ele não foi torturado olhando o estado da bunda dele?
— Se eu tivesse que dar um palpite, apostaria cem contra um que Chaz Collins não morreu por causa do corte na garganta. Aposto que ele foi estrangulado com as mãos e sua garganta foi cortada depois para fazer com que parecesse uma das vítimas do serial killer. Acho que o que aconteceu aqui foi que o sexo selvagem saiu um pouco do controle. Chaz estava lutando enquanto era sodomizado, e seu parceiro o agarrou em volta da garganta para fazê-lo se acalmar. No frenesi do orgasmo, ele deve ter apertado forte demais e encontrado um cadáver em suas mãos. Sua única chance de se safar disso era fazer parecer obra do serial killer e, por via das dúvidas, caso não entendamos a mensagem, ainda deixou o jornal da noite anterior sobre o cadáver.
— É certamente plausível — disse Brandon, limpando meticulosamente seus dedos engordurados num lenço de papel de um pacote que tirou do bolso.
— Acho que Tony tem razão — disse Carol decididamente. — Minha primeira reação foi que essa era a quinta vítima, mas quanto mais penso a respeito, mais acho que estava errada. Você sabe o que encerra o assunto para mim?
Quatro pares de olhos a fitaram, confusos. Ela se sentiu sob mais pressão do que no banco de testemunhas.
— Ontem à noite não era segunda-feira.
Tony sorriu. Stansfield virou os olhos para cima. Kevin assentiu com relutância, e Brandon disse:
— Você acha que o dia da semana é importante a esse ponto para ele?
Carol fez que sim.
— Há obviamente algum motivo muito forte para ele escolher as segundas, seja porque é prático ou por alguma superstição. E seja o que for, significa muito para ele. Não acho que fosse violar isso só para mandar a gente se ferrar.
— Concordo com Carol — interveio Kevin. — Não só por causa do dia da semana. As outras coisas também.
Stansfield dava a impressão de estar surpreso.
— Bem, eu obviamente fui derrotado nessa votação — observou ele com bom humor. — Vai ser um caso diferente. Quem vai cuidar dele, então?
Brandon suspirou.
— Vou ter uma palavra com o superintendente-chefe Sharpies na central, jogar a responsabilidade para ele. Se não for um de nós, vai ser culpa do inspetor-chefe.
— Ele está doente e não veio trabalhar — lembrou Kevin de modo distraído.
— Sim, está. Bem, será passado para qualquer inspetor que tiver a má sorte de passar aqui pela manhã. No entanto, sei que os eventos da noite passada nos privaram da chance de dar ao perfil do dr. Hill a atenção que merecia, mas acho que devíamos... — Brandon foi interrompido por uma batida na porta.
— Entre — disse ele, tentando evitar que sua irritação transparecesse em sua voz.
O sargento uniformizado de plantão chegou com alguns envelopes.
— Estes acabaram de chegar, senhor. Um da perícia, outro do laboratório de patologia — informou, depositando-os na mesa em frente a Brandon.
Ele já tinha ido embora quando Brandon tirou um maço de folhas de cada.
Os outros esconderam sua impaciência enquanto Brandon passava os olhos nas descobertas preliminares do patologista.
— “Caro John” — leu em voz alta —, “sei que deve estar ansioso por algo sobre isso, já que, aparentemente, seu serial killer finalmente deixou alguns indícios forenses. A má notícia é que não acho que seja obra do mesmo criminoso. A vítima já estava morta por asfixia antes que a garganta fosse cortada. É provável que tenha sido estrangulado com as mãos. Além disso, não acho que ele foi cortado com a mesma lâmina que as outras quatro vítimas anteriores. Aparentemente, essa era uma lâmina mais grossa e mais comprida, mais parecida com uma faca de fatiar. Ao passo que, como você sabe, acredito que as anteriores foram feitas com algo mais parecido com uma faca para desossar. A hora da morte eu diria que foi entre oito e dez da noite passada. Vou lhe enviar um relatório completo assim que...” blá-blá-blá. Bem, parece que você tinha razão, Tony.
— Ainda bem que concordei em não discutir com você a tempo, senão eu ia ficar parecendo um bocó — disse Bob Stansfield, estendendo a mão para o psicólogo.
— Boa, doutor — disse Carol, sorrindo veladamente. Graças a Deus o resto da equipe finalmente estava começando a aceitar que Tony tinha algo que valia a pena para dizer. Era impressionante como a atmosfera se tornou diferente após a saída de Cross.
Kevin se mexeu desconfortavelmente na cadeira e disse:
— O que a perícia tem a dizer? Algo sobre nossos casos, ou são apenas coisas preliminares sobre Chaz Collins?
Brandon folheou os outros papéis.
— Preliminares... Preliminares... — Ele inspirou com força. — Céus — disse ele, com repugnância e perplexidade em sua voz.
— O que foi, senhor? — perguntou Carol.
Brandon esfregou uma das mãos em seu rosto comprido e olhou novamente para o papel, como se para verificar se não tinha se enganado.
— Eles vêm analisando as queimaduras no corpo de Damien Connolly. Tentando descobrir o que as causou.
Tony ficou imóvel, a última mordida de seu sanduíche a meio caminho da boca.
— Então qual é o veredicto? — interpelou Bob Stansfield, abruptamente.
— Isso é uma loucura completa — avisou Brandon. — A única explicação de que os peritos conseguiram se aproximar é a decoração para um bolo pronto.
— É claro — disse Tony de modo vago, um sorriso distante fazendo brilhar seus olhos. — Todos os formatos de estrelas diferentes. É óbvio, depois que alguém enxerga isso.
Ele ficou subitamente consciente de que os outros quatro estavam olhando para ele. Apenas Carol parecia preocupada. Nos outros rostos, ele viu expressões que tinha visto antes. Cautela, repugnância, nojo, incompreensão.
— Verdadeiro maluco — disse Stansfield amargamente. Ninguém tinha certeza se ele queria dizer o assassino ou Tony.
No dia em que Penny Burgess assumiu a editoria de crimes do Bradfield Evening Sentinel Times, ela resolveu que teria melhores contatos do que qualquer um dos seus antecessores homens tinha conseguido. Ela percebeu que os rituais masculinos da loja maçônica e da reunião social entre homens permaneceriam mundos fechados para ela, mas decidiu que nada importante aconteceria neles sem o seu conhecimento.
Não foi surpreendente, portanto, que seu telefone residencial tivesse tocado duas vezes entre seis e sete da manhã. As duas ligações eram de policiais, dando conta de que o homem que tinha sido interrogado anteriormente em relação aos Assassinatos de Bonecas tinha sido preso tentando deixar o país. O milagre foi contado sem dizer o nome do santo, mas o suspeito anônimo estaria de pé perante os juízes leigos naquela manhã para ser recolhido à prisão sob a acusação de tentar cometer obstrução de justiça. Em seguida à descoberta de um quinto corpo que havia deixado Penny de pé até mais de duas da manhã, a conexão era óbvia.
Penny sorriu com seus botões enquanto tomava sua segunda xícara de chá Earl Grey forte. Seria outra primeira página para ela naquela noite, desde que o editor e o advogado não perdessem a coragem. Ela deixou sua xícara e tigela de cereal na pia e pegou o casaco. De qualquer forma, seria um dia interessante.
• • •
Carol tinha sido escolhida para ir ao tribunal e garantir que tudo saísse de acordo com o planejado perante os juízes leigos.
Stansfield e Kevin tinham um acúmulo de investigações de rotina para dar conta, e Tony tinha ido a Leeds para cumprir um compromisso antigo com um psicólogo acadêmico canadense que estava participando de um congresso na cidade. Eles precisavam, justificou Tony, discutir algum aspecto esquisito do seu estudo da força-tarefa.
— Mapeamento conceitual — contou a ela enquanto roubavam alguns minutos juntos depois da reunião do grupo.
Teria dado na mesma se ele tivesse dito “mecânica quântica”, pensou ela ironicamente enquanto subia correndo as escadas do prédio do tribunal, com a gola virada para cima contra um vento leste que prometia chuva e neve antes do jantar. Ela teria de aprender muito se quisesse convencer alguém a considerá-la seriamente para essa força-tarefa, até aí estava claro.
Todos os pensamentos sobre a operação desapareceram assim que ela passou pela verificação de segurança e virou no corredor longo que abriga metade dos doze tribunais de juízes auxiliares. Em vez do agrupamento descontente e rebelde de transgressores menores e suas famílias deprimidas, ela deu de cara com uma aglomeração de jornalistas que circulava pelo local. Carol nunca vira tal quantidade de representantes da mídia num tribunal no sábado de manhã, normalmente o dia mais tranquilo da semana. No centro da multidão, podia ver Don Merrick que, de costas para a porta da sala de audiências do tribunal, parecia atormentado.
Carol imediatamente deu meia-volta. Mas era tarde demais. Ela não só tinha sido vista como também reconhecida por um dos muitos jornalistas que não eram gente de fora enviada pelas redes de mídia nacionais para farejar uma boa história. Quando ela virou no corredor, eles correram atrás dela. Todos exceto Penny Burgess, que se reclinou na parede e deu um sorriso cansado para Don Merrick.
— Você não foi a única que recebeu o telefonema cedo de manhã, afinal — disse ele, cinicamente.
— Infelizmente não, sargento. Pelo menos os rapazes parecem mais interessados na sua chefe do que em você.
— Ela tem melhor aparência.
— Ah, eu não diria isso.
— Foi o que ouvi dizer — disse Merrick, com ironia.
As sobrancelhas de Penny se ergueram.
— Você tem de me deixar pagar um drinque para você um dia desses, Don. Então vai descobrir por si mesmo se o boato é verdade.
Merrick balançou a cabeça.
— Acho que não, querida. A patroa não ia gostar disso.
Penny sorriu.
— Isso sem falar na chefe. Bem, Don, agora que o bando já foi embora a toda atrás da inspetora Jordan, você vai me deixar exercitar meu direito democrático de relatar os trabalhos dos juízes?
Don Merrick liberou o acesso à porta e acenou para que ela entrasse.
— Fique à vontade. Apenas lembre-se, sra. Burgess, os fatos, e nada mais que os fatos. Não queremos que pessoas inocentes sejam postas em risco, não é?
— Você quer dizer como o Assassino de Bonecas vem fazendo? — perguntou Penny com doçura, enquanto passava por ele e entrava na sala de audiências do tribunal.
• • •
Brandon fitava Tom Cross com descrença. Seu rosto estava contraído numa expressão de profunda vaidade, a órbita multicolorida de seu olho era a única ruptura numa imagem de presunçosa autossatisfação.
— Cá entre nós, John, você precisa admitir que eu acertei na mosca quanto a McConnell. Aquele presunto da noite passada não foi coisa do Assassino de Bonecas mesmo, não é? Bem, não poderia ter sido, poderia, porque nosso querido estava engaiolado lá embaixo.
Ignorando a ausência de cinzeiros no escritório do chefe de polícia assistente, Cross acendeu um cigarro e soprou, contente, uma baforada de fumaça no ar.
Brandon se esforçou, mas não conseguia encontrar as palavras. Dessa vez, foi incapaz de falar.
O outro olhou em volta vagamente em busca de algum lugar onde depositar suas cinzas, e se contentou com o chão, esfregando-as no tapete com a ponta do sapato.
— Então, quando quer que eu comece de volta no trabalho? — perguntou ele.
Brandon se recostou na cadeira e olhou para o teto.
— Se dependesse de mim, você nunca iria voltar a trabalhar nesta cidade — respondeu ele, com prazer.
Cross se engasgou com a boca cheia de fumaça. Brandon abaixou os olhos novamente e saboreou o momento.
— Que diabos, você se acha engraçado, John! — explodiu Cross.
— Nunca falei mais sério na vida — retrucou Brandon com frieza. — Chamei-o aqui esta manhã para alertá-lo. O que você fez a Steven McConnell ontem à tarde foi agressão. O arquivo continua aberto, superintendente. Se você chegar perto dessa investigação novamente, não hesitarei em acusá-lo. Na verdade, vou gostar disso. Não vou permitir que nenhum policial, no trabalho ou suspenso, lance esta força em descrédito.
Quando as palavras de Brandon penetraram fundo na mente de Cross, ele empalideceu, depois ficou roxo de raiva e humilhação. Brandon se levantou.
— Agora saia da minha sala e da minha delegacia.
Cross levantou-se como um homem abalado.
— Vai se arrepender disso, Brandon — gaguejou furiosamente.
— Não me provoque, Tom. Para o seu próprio bem, não me provoque.
Pensando rapidamente, Carol liderou os jornalistas em volta até o pequeno lounge do lado de fora do restaurante dos advogados.
— Tudo bem, tudo bem — acalmou ela, tentando abafar a gritaria deles com movimentos de mão exagerados. — Vejam só, se me derem apenas dois minutos, voltarei logo e responderei às suas perguntas, está bem?
Eles pareciam em dúvida, um ou dois nos fundos mostraram uma tendência para se deslocar de volta para as salas de tribunais.
— Por favor, pessoal — disse ela, massageando gentilmente o maxilar. — Estou com muita dor. Estou com uma dor de dente furiosa. Se eu não ligar para o meu dentista antes das dez, não tenho nenhuma chance de que ele me encaixe hoje. Por favor? Preciso de um tempinho. Depois, eu sou toda de vocês, prometo! — Carol forçou um sorriso de dor e escapou para o restaurante. Havia um telefone na parede oposta. Ela o pegou fazendo uma grande encenação ao procurar em seu diário e olhar uma página, enquanto discava o número conhecido do tribunal.
— Primeira vara, por favor.
Ela aguardou a conexão, depois disse ao atendente:
— Aqui é a inspetora Jordan. Posso falar com o Serviço da Procuradoria da Coroa? — Instantes depois, ela estava falando com o advogado da Procuradoria. — Eddie? Carol Jordan. Tenho cerca de trinta jornalistas aqui esperando que Steven McConnell apareça. Eles estão doidos para chegar às conclusões erradas, e acho que você pode preferir pressioná-lo agora enquanto estou com eles presos numa coletiva de imprensa improvisada. Pode arranjar isso com o escrivão?
Ela aguardou enquanto o advogado sussurrava com o escrivão.
— Dá para fazer, Carol — respondeu ele. — Obrigado.
Mantendo a farsa, Carol pôs o telefone no gancho e escreveu algo em seu diário. Depois, ela respirou fundo e se encaminhou até o bando.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 015
Damien Connolly, o policial por excelência. Eu não poderia ter encontrado uma pessoa melhor para ensinar uma lição à polícia, mesmo que tivesse procurado um ano inteiro. Mas ele já estava lá, na minha lista, figurando no meu top 10 pessoal. Era mais difícil persegui-lo do que os demais, porque seu padrão de turno muitas vezes estava em conflito com minhas horas de trabalho. Contudo, como minha avó sempre dizia, nada que vale a pena vem fácil.
Eu o enganei como de costume.
— Desculpe incomodar, mas meu carro quebrou e não sei onde fica o próximo telefone público. Posso usar seu telefone para ligar para a seguradora?
É quase risível a facilidade para passar pela porta da casa deles. Três homens mortos, e ainda assim eles não conseguem tomar a mais elementar das precauções. Eu quase tive pena de Damien, já que, entre todos, ele tinha sido o único que não tinha me traído. Mas precisava usá-lo como exemplo, para mostrar à polícia como ela era de uma inutilidade patética. Era irritante me surpreender concordando com a assim chamada “comunidade gay”, mas eles estavam cem por cento certos quando disseram que, enquanto supostos gays estivessem sendo mortos, a polícia não faria nada. Matar um dos seus seria a única coisa que me faria ganhar seu interesse. Finalmente, eles seriam forçados a me dar o reconhecimento e o respeito que eu merecia.
Para marcar isso, eu tinha projetado algo um tanto especial para Damien. Um método incomum de punição, usado ocasionalmente para agir como um exemplo terrível pour discourager les autres. Parece ter sido mais comumente usado nos casos de alta traição, onde homens tramavam para matar o rei. Apropriado, pensei. Afinal, o que era Damien se não uma parte integrante do grupo que, se pudesse, causaria a minha queda?
O primeiro registro desse tratamento na Inglaterra foi em 1238, quando algum nobre menos importante arrombou o aposento real em Woodstock com a intenção de matar Henrique III, que estava lá numa viagem de caça. Para demonstrar a qualquer outro possível traidor que o rei levava a sério atentados contra sua vida, o homem foi sentenciado a ter cada um dos membros destroçados por cavalos e depois ser decapitado.
Outro com pretensões a assassino real encontrou o mesmo destino na metade do século XVIII. O nome do aspirante simplesmente tinha de ser um mau presságio: François Damiens apunhalou o rei Luís XV em Versailles. Sua sentença dizia que “seu peito, braços, coxas e canelas deviam ser queimados com tenazes; a mão direita, empunhando a faca com que cometeu o referido ataque, devia ser queimada com enxofre; que óleo fervente, chumbo derretido, resina e cera misturados com enxofre fossem despejados em suas feridas; e depois seu corpo devia ser puxado e desmembrado por quatro cavalos”.
De acordo com os relatos da execução, os cabelos castanho-escuros de Damiens ficaram brancos durante a tortura. Casanova, aquele outro grande amante, relatou em suas memórias: “assisti a essa cena terrível durante quatro horas, mas fui várias vezes obrigado a virar o rosto e fechar os olhos enquanto ouvia seus gritos penetrantes, metade do corpo lhe tendo sido rasgada.”
Obviamente, eu não podia levar um tropel de cavalos para o porão. Portanto, tinha de criar meu próprio esquema. Construí um sistema de cordas e polias, presas ao piso e ao teto, ligadas com um desses guinchos elétricos usados em iates. Cada corda terminava numa manilha de ferro que seria presa em volta do pulso ou tornozelo. Ao ajustar o comprimento e a tensão nas cordas, eu havia suspendido Damien no ar, seus membros esticados num imenso X humano, seus genitais patéticos pendentes no meio como carne num açougue.
O clorofórmio teve um efeito pior nele do que em qualquer dos outros. Assim que chegou, ele vomitou violentamente, uma coisa não muito fácil de conseguir quando se está suspenso de pé a um metro e vinte centímetros do chão. Ainda bem que removi sua mordaça, ou ele teria engasgado com o próprio vômito e me privado de minha satisfação em puni-lo.
Damien estava completamente perplexo. Não fazia ideia do motivo pelo qual estava ali.
— Porque eu o escolhi — disse a ele. — Você foi apenas azarado o bastante para escolher o emprego errado. Agora, vou interrogá-lo do jeito que interroga seus suspeitos.
Enquanto investigava a cozinha de tia Doris, procurando vagamente verificar se ela possuía algo que pudesse me ser útil, encontrei seu material de confeito. Eu me lembrava daqueles utensílios. Todos os anos, seus bolos no Natal eram um milagre artístico que qualquer uma das confeitarias de Bradfield teria dificuldade em igualar. Uma vez, ela havia sido chamada por tio Henry enquanto estava fazendo um bolo enorme, e eu peguei a bisnaga de confeitar, com o intuito de ajudá-la. Acho que tinha no máximo uns seis anos de idade.
Quando ela voltou de qualquer que fosse a tarefa nojenta que estava realizando na fazenda e viu meus esforços, ficou doida. Agarrou o amolador de couro pesado que tio Henry usava para manter suas lâminas afiadas a ponto de cortar gargantas e me bateu com tanta força que rasgou minha camisa. Depois, me trancou no meu quarto sem jantar, deixando-me lá por vinte e quatro horas sem nada a não ser um balde para mijar. Eu sabia que precisava encontrar um uso apropriado para seu querido conjunto de confeitaria.
Havia um maçarico no porão, que usei para aquecer a minha cobertura e deixar minha marca em Damien, do mesmo jeito que o carrasco tinha feito em seu homônimo duzentos e quarenta anos antes. Havia algo bem bonito na forma como sua epiderme se abriu como uma flor, transformando-se em estrelas escarlates quando os bicos de confeitar em brasa entraram em contato com sua pele pálida. Foi também espantosamente eficaz. Ele me disse tudo que eu queria saber e muita bobagem com a qual não me importava. Lamentei apenas que ele não estivesse diretamente envolvido na investigação sobre meu trabalho anterior. Eu poderia ter confirmado em primeira mão o quanto a polícia estava irremediavelmente perdida.
Decidi depositar os restos mortais em Temple Fields novamente. Tinha usado o intervalo de tempo desde Gareth para encontrar outros lugares seguros para o descarte de minha obra. O pátio do Queen of Hearts era perfeito para o propósito; escondido e isolado à noite. No entanto, ganharia vida no dia seguinte, garantindo que Damien não seria deixado lá fora no frio por muito tempo.
Era o momento perfeito para um novo jogo. Na preparação para isso, logo após Adam, subi ao sótão e abri o baú que continha as partes guardadas do meu passado. Uma das coisas que preservei como suvenir foi uma jaqueta de couro que me foi dada por um engenheiro num navio-oficina soviético, como pagamento por uma noite que ele não vai esquecer tão cedo. Ela tem uma aparência e uma textura diferentes de tudo que já vi neste país. Cortei tiras do couro da manga até conseguir algo que poderia ter ficado preso num prego ou num canto afiado de uma tranca. Enfiei a tira numa gaveta, depois cortei o resto da jaqueta em retalhos, coloquei-a numa sacola plástica com cascas de ovo e cascas de legume e dirigi até encontrar uma caçamba para deixá-la na cidade. Quando precisasse usar aquela cortina de fumaça, os restos da jaqueta estariam enterrados há muito tempo em algum aterro sanitário genérico.
Não pude deixar de sentir uma emoção ao pensar em quantas horas de trabalho os homens da polícia estavam desperdiçando tentando rastrear a origem desse estranho pedacinho de couro, embora nunca fossem vinculá-lo a mim. Além de tudo, ninguém em Bradfield jamais tinha me visto usar aquela jaqueta.
Dessa vez, a repercussão superou tudo que conquistara até então. Finalmente, a polícia admitiu que uma única mente estava por trás dos quatro assassinatos e percebeu que era hora de me levar a sério.
Com Damien fora deste mundo e no meu computador, ainda havia uma pessoa que precisava se resolver comigo antes que eu pudesse retornar ao meu projeto original. Não podia me contentar com a tarefa de encontrar um homem digno de mim, que compartilhasse minha vida como um parceiro igual e respeitoso. Não até que tivesse punido o homem que tinha me tratado publicamente com tanto desprezo.
Meu alvo era o dr. Hill, o idiota que não tinha percebido que Gareth Finnegan era uma das minhas obras. Ele havia me insultado, me coberto de escárnio, recusando-se a reconhecer a extensão das minhas conquistas. Ele não fazia ideia da capacidade da mente que enfrentava. Teria de pagar por sua arrogância.
Não conseguia deixar de ver sua eliminação como um desafio. Mas quem conseguiria?
15
Não lhes é possível manter o modo autêntico de cortar gargantas sem introduzir inovações tão abomináveis...?
O som dos berros de uma multidão saudou Carol quando ela fechou a porta do apartamento. Michael, esparramado num dos sofás, sequer tirou os olhos da partida de rúgbi da televisão.
— Oi, mana — disse ele. — Jogo duro. Dez minutos, e sou todo seu.
Carol olhou para a tela, onde gigantes enlameados nas cores da Inglaterra e da Escócia estavam espalhados pelo campo num scrum desfeito.
— Altíssima tecnologia — resmungou ela. — Preciso de um banho.
Quinze minutos depois, os irmãos estavam dividindo uma garrafa comemorativa de espumante cava.
— Tenho algumas conclusões para você — disse Michael.
Carol se animou.
— Algo significativo?
Michael deu de ombros.
— Não sei o que é significativo para você. O seu assassino usou cinco objetos de formato diferente para fazer as marcas. Eu os separei em cinco padrões distintos. Você tem o que parece um coração e algumas letras rudimentares. A, D, G e P. Significam alguma coisa para você?
Carol estremeceu involuntariamente.
— Ah, sim. Muita coisa. Você está com suas conclusões aqui?
Michael assentiu.
— Estão na minha pasta.
— Vou olhá-las num instante. Enquanto isso, posso pedir uma consultoria de novo?
Michael esvaziou sua taça e a encheu novamente.
— Não sei. Pode arcar com meu preço?
— Jantar, hospedagem e café da manhã no hotel de campo de sua escolha, no meu primeiro fim de semana de folga — ofereceu Carol.
Michael fez uma careta.
— Com essa oferta, vou receber a aposentadoria antes de ganhar isso. Que tal você passar minha roupa por um mês?
— Quinze dias.
— Três semanas.
— Fechado.
Ela ofereceu sua mão e Michael a apertou.
— Então, o que você quer saber, mana?
Carol delineou sua teoria sobre a manipulação de computador dos vídeos do assassino.
— O que você acha? — perguntou ela com ansiedade.
— Dá para fazer — disse ele. — Não há dúvidas quanto a isso. A tecnologia está disponível, e não é um software difícil de usar. Eu podia fazer isso com o pé nas costas. Mas você está falando de grana alta. Digamos trezentas libras por uma placa de captura de vídeo, quatrocentas por uma placa ReelMagic, outras trezentas a quinhentas para um digitalizador de vídeo decente, mais pelo menos mil libras por um scanner de ponta. Complicado mesmo é o software, porém. Só há um pacote que consegue fazer o que você está falando com alguma qualidade de fato. Vicom 3D Commander. Nós o temos, e nos custou quase quatro mil libras, e isso foi há seis meses. Adquirimos a última atualização por mais oitocentas libras. O manual é grosso como um tijolo.
— Então não é um software que muitas pessoas teriam?
Michael bufou.
— Não mesmo. É um pacote e tanto. Apenas profissionais como nós, estúdios de produção de vídeo e adeptos muito dedicados ao hobby teriam.
— E isso está disponível com facilidade? É possível comprar no varejo? — perguntou Carol.
— Na verdade, não. Lidamos diretamente com a Vicom, porque queríamos que eles executassem uma demonstração completa para nós antes de nos comprometermos em gastar toda essa grana. Obviamente, alguns fornecedores comerciais especializados fazem a venda, mas eles não vão descarregar isso a granel. Seria por encomenda postal, de qualquer forma. A maior parte das coisas de informática é.
— As outras coisas que mencionou... são coisas que muitas pessoas teriam?
— Elas não são incomuns. Assim de cabeça, eu diria dois a três por cento de penetração no mercado de itens de vídeo, talvez quinze por cento no scanner. Mas, se está pensando em rastrear seu suspeito, eu começaria com a Vicom — aconselhou Michael.
— Qual você acha que seria a atitude deles com relação a permitir que vejamos seus registros de venda?
Michael fez uma careta.
— Sei tanto quanto você. Você não é uma concorrente, e essa é uma investigação de homicídio. Nunca se sabe, eles podem cooperar de bom grado. Afinal, se esse cara estiver usando o material deles, seria ruim para as relações públicas se não o fizessem. Posso procurar o nome do sujeito com quem lidamos. Ele era o diretor de vendas. Um escocês. Com um desses nomes que não dá para dizer qual é o primeiro nome, sabe? Grant Cameron, Campbell Eliott. Vou me lembrar...
Enquanto Michael procurava em seu caderno de endereços, Carol enchia novamente sua taça e saboreava o formigamento das bolhas no céu da boca. Ultimamente, prazer parecia um item escasso. Mas se ela pudesse gerar algumas pistas sobre sua teoria, tudo isso podia mudar.
— Consegui! — exclamou Michael. — Fraser Duncan. Ligue para ele na segunda-feira de manhã e diga meu nome. É hora de você ter uma folga, mana.
— Você não se engana — disse Carol, com emoção. — Acredite em mim, eu mereço.
Kevin Matthews se deitou esparramado na cama king size desfeita, sorrindo para a mulher montada sobre ele.
— Hum — murmurou ele. — Isso até que foi divertido.
— Melhor que a comida de casa — provocou Penny Burgess, correndo os dedos pelos cabelos castanho-avermelhados que se encaracolavam no peito de Kevin.
Kevin deu uma risadinha.
— Só um pouquinho.
Ele se esticou para pegar o resto da vodca com Coca-Cola que Penny tinha lhe servido.
— Estou surpresa por você ter conseguido fugir esta noite — disse Penny, movendo-se para a frente sensualmente, de modo que seus mamilos se esfregassem nos dele.
— Tivemos tantas horas extras ultimamente que ela desistiu de me esperar em casa para alguma coisa a não ser uma soneca.
Penny deixou a parte de cima do corpo cair pesadamente sobre Kevin, expulsando o ar do corpo dele.
— Não quis dizer Lynn — disse ela —, quis dizer o trabalho.
Kevin agarrou os pulsos dela e lutou, afastando-a de si. Quando caíram deitados lado a lado, rindo até perderem o fôlego, ele finalmente disse:
— Não tinha muito o que fazer, para lhe dizer a verdade.
Penny bufou, incrédula.
— Ah, é? Na noite passada Carol Jordan encontra o corpo número cinco, o suspeito é preso tentando deixar o país, e você vem me dizer que não tem nada acontecendo? Qual é, Kevin, é comigo que você está falando.
— Você entendeu tudo errado, querida — disse Kevin, com generosidade. — Você e todo o resto dos seus coleguinhas da mídia.
Não era com frequência que ele tinha a chance de corrigir Penny, e ele pretendia aproveitar ao máximo.
— O que quer dizer? — Penny se apoiou num dos cotovelos, cobrindo inconscientemente seu corpo com o edredom. Isso não era mais divertido; isso era trabalho.
— Em primeiro lugar: o corpo que Carol encontrou na noite passada não era uma das vítimas do serial killer. Era trabalho de um imitador. A autópsia comprovou isso sem sombra de dúvida. Era apenas mais um sórdido assassinozinho sexual. A Central deve esclarecer isso em alguns dias com um pouco de ajuda da Delegacia de Costumes — explicou Kevin, a autossatisfação óbvia em sua voz.
Penny aceitou a situação e disse com voz doce por entre os dentes cerrados:
— E?
— E o quê, querida?
— Se isso era em primeiro lugar, deve haver um segundo.
Kevin sorriu, de modo tão presunçoso que Penny tomou a decisão instantânea de que lhe daria o fora assim que tivesse arranjado uma alternativa aceitável.
— Ah, sim. Em segundo lugar. Stevie McConnell não é o assassino.
Dessa vez, Penny ficou sem palavras. A própria informação era chocante. Mas mais chocante era o fato de que, sabendo disso, Kevin não dissera nada. Ele permaneceu em silêncio e permitiu que seu jornal publicasse uma matéria que, no final das contas, faria com que ela parecesse uma idiota mal-informada.
— É mesmo? — questionou ela, com o sotaque superior que não tinha usado desde o dia que deixou feliz o internato e tomou a decisão de abraçar declaradamente o mercado de menor prestígio.
— É, sim. Sabíamos disso antes de ele dar no pé.
Kevin se deitou nos travesseiros, contente e alheio ao olhar de ódio que Penny destilava em sua direção.
— Então de que servia exatamente aquele teatro no tribunal? — indagou ela num tom que daria orgulho à sua professora de dicção.
Kevin deu um sorriso afetado.
— Bem, a maioria de nós já concluiu que McConnell não é o nosso homem. Mas Brandon tinha posto um detetive atrás dele. Então, quando o cara tentou sair do país, fomos mais ou menos obrigados a prendê-lo. A essa altura, estava começando a ficar óbvio que McConnell não é o Assassino de Bonecas. Além disso, ele não se encaixa no perfil que Tony Hill criou.
— Não acredito que estou ouvindo isso — reclamou Penny, com agressividade.
Kevin finalmente registrou que nem tudo estava bem.
— Que foi? Algum problema, querida?
— Só um probleminha, porra — disse Penny, enunciando cada sílaba claramente. — Você quer me contar que não só deteve um homem inocente como também permitiu que a imprensa mundial divulgasse a conclusão de que esse homem é muito provavelmente o Assassino de Bonecas?
Kevin se apoiou e tomou outra dose de seu drinque, esticando-se para alisar os cabelos de Penny com a outra mão. Ela se afastou dele com um movimento brusco.
— Não é um grande problema — contestou ele com condescendência. — Ninguém pode reunir um grupo para linchá-lo e ir à casa dele enquanto estiver preso. E imaginamos que dizer ao mundo nas entrelinhas que prendemos o assassino poderia levar o assassino verdadeiro a entrar em contato conosco a fim de garantir que saibamos que ele ainda está à solta.
— Você quer dizer que vocês querem levá-lo a matar de novo? — interpelou Penny, com a voz ficando mais alta.
— É claro que não — disse Kevin, indignado. — Eu disse “entrar em contato”. Como ele fez depois que matou Gareth Finnegan.
— Meu Deus — murmurou Penny, pensativa. — Kevin, como você consegue ficar sentado aí e me dizer que nada de ruim pode acontecer a Stevie McConnell enquanto ele estiver trancado numa cela?
Enquanto Penny Burgess e Kevin Matthews discutiam a moralidade da detenção de Stevie McConnell, na ala C da Prisão Barleigh de Sua Majestade, três homens estavam se revezando para mostrar a Stevie McConnell o que acontece a criminosos sexuais na prisão. Na extremidade do patamar, havia um guarda impassível, parecendo tão inconsciente dos gritos e súplicas de McConnell quanto um deficiente auditivo com o aparelho de surdez desligado. E nas charnecas no alto de Bradfield, um assassino implacável aplicava os toques finais no instrumento de tortura que ajudaria a mostrar ao mundo que o homem na prisão não era responsável por quatro punições em série perfeitamente executadas.
A sala da equipe HOLMES estava em atividade silenciosa; operadores olhavam para telas e apertavam teclas. Carol encontrou Dave Woolcott sentado em seu escritório beliscando sem entusiasmo seu lanche de peixe com batatas fritas. Ele ergueu os olhos quando ela entrou e conseguiu dar um sorriso cansado.
— Achei que estivesse tirando a noite de folga — disse ele.
— Ainda espero tirar. Meu irmão prometeu me comprar um balde de pipoca só para mim se eu chegasse ao cinema antes do começo do filme. Só queria dar uma passadinha para lhe contar algo.
Ela deixou duas sacolas plásticas na mesa de Dave. Revistas de informática em papel brilhoso saíram da sacola.
— Tenho uma teoria — disse ela. — Bem, é mais um palpite.
Pela terceira vez, Carol descreveu sua ideia sobre o assassino que importava vídeos e os transformava em suporte para suas fantasias.
Dave ouviu com atenção, meneando a cabeça enquanto assimilava as ideias de Carol.
— Gosto dessa teoria — disse ele simplesmente. — Li esse perfil algumas vezes, e realmente não consigo aceitar o que dr. Hill diz sobre manter-se estável apenas usando vídeos dos assassinatos. Não faz sentido. A sua ideia faz. Então, o que quer de mim?
— Michael acha que rastrear os compradores do Vicom 3D Commander pode nos levar a ele, caso estejamos corretos. Não tenho certeza. É possível que a empresa para quem o assassino trabalhe tenha o software, e ele faça o trabalho de manipulação de vídeo lá. Para garantir, no entanto, ele teria de fazer toda a digitalização em casa. Então pensei que valeria a pena fazer um levantamento dos fornecedores de digitalizadores e placas de captura de vídeo. Podemos encontrar fornecedores por meio dos anúncios nessas revistas, já que praticamente todos os itens de informática são enviados por encomenda postal. Devemos também contatar os grupos de usuários locais. Se você tiver algum pessoal sobrando, é isso.
Dave suspirou.
— Vá sonhando, Carol.
Ele pegou uma revista e folheou.
— Imagino que eu possa redigir a lista entre hoje à noite e amanhã, e na segunda de manhã bem cedo possamos conseguir alguns detetives para fazer uma rodada de ligações. Quando meus operadores terão tempo de inserir os dados eu não sei, mas vou providenciar para que seja feito, tudo bem?
Carol sorriu.
— Você é um amor, Dave.
— Sou um maldito mártir, Carol. Meu filho mais novo está com dois dentes saindo que nem vi ainda.
— Eu podia ficar e ajudar você a ver as revistas — disse Carol com certa relutância.
— Ah, dê o fora daqui. Vá embora e se divirta. Já passou da hora de que alguém entre nós consiga isso. O que você vai ver?
Carol fez uma careta.
— É a sessão dupla especial de sábado: Caçador de assassinos e O silêncio dos inocentes.
A risada de Dave ecoou nos ouvidos dela por todo o caminho até o carro.
O longo uivo parecia vir do fundo do estômago. Quando o seu orgasmo estremeceu dentro dele como um trem descarrilhado, Tony sentiu uma gloriosa sensação de relaxamento.
— Ai, meu Deus — suspirou.
— Ai, assim, assim — dizia Angelica, de modo ofegante. — Estou gozando de novo, de novo. Ah, Tony, Tony...
A voz dela enfraqueceu até virar um soluço contido.
Tony relaxou na cama, com o peito inflando com a respiração ofegante, o cheiro de suor e sexo pesado em volta dele. Ele se sentiu como se, de repente, tivesse se livrado de um fardo que vinha carregando havia tanto tempo que tinha deixado de perceber o peso. Seria essa a sensação de ser curado, essa impressão de luz e cor, esse sentimento de ter abandonado o passado como sacos de carvão numa carvoeira de um navio? Era assim que seus pacientes se sentiam quando eles descarregavam o peso de seu caos sobre ele?
Em seu ouvido, ele podia escutar o som entrecortado da respiração dela. Depois de alguns momentos, ela disse:
— Minha nossa. Minha nossa senhora. Essa foi a melhor de todas. Eu amo o jeito que você faz amor comigo.
— Foi bom para mim também — disse Tony, falando a sério dessa vez. Pela primeira vez desde que tinha iniciado essa combinação estranha de terapia e jogo sexual, ele não teve nenhum problema com sua ereção. Desde o início, ele esteve duro como uma rocha. Sem esmorecer, sem murchar, sem vergonha. Simplesmente o primeiro ato sexual livre de problemas que tivera em anos. Tudo bem, Angelica não estava de verdade no quarto com ele, mas era um passo gigantesco na direção certa.
— Juntos fazemos a mais doce melodia — disse Angelica. — Ninguém jamais me excitou como você.
— Você faz muito isso? — perguntou Tony de um jeito relaxado.
Angelica deu uma risadinha, um gorgolejo rouco e sexy.
— Você não é o primeiro.
— Deu para notar. Você é muito especialista para isso — elogiou, com alguma sinceridade. Ela havia sido a perfeita terapeuta para ele, isso sem dúvida era verdade.
— Sou muito criteriosa quanto aos homens que permito que compartilhem o prazer comigo — respondeu Angelica. — Não é todo mundo que gosta do que tenho a oferecer — acrescentou.
— Eles têm de ser muito estranhos para não gostar. Sei que gosto.
— Fico feliz, Anthony. Você nunca vai saber o quanto. Preciso ir agora — disse ela, mudando abruptamente para o tom sério que Tony passara a associar ao fim de suas ligações. — Esta noite foi muito especial. Nos falamos em breve.
A linha ficou muda. Tony desligou o telefone e se deitou. Esta noite, com Angelica, pela primeira vez na vida, ele havia sentido um cuidado protetor que auxiliava sem sufocar. Sua avó, ele sabia com o intelecto, o tinha amado e cuidado dele, mas sua família nunca fora dada a demonstrações de afeto, e o amor dela tinha sido direto e prático, atendendo às necessidades dela no lugar das dele. As mulheres com quem se envolveu no passado foram, agora ele percebia, substitutas emocionais para ela. Graças a Angelica, ele ousava ter esperança de que o padrão tivesse sido quebrado. Isso lhe causara dor o suficiente ao longo dos anos.
Sua vida sexual havia começado mais tarde do que a da maioria de seus colegas de mesma idade, em parte porque seu corpo relutou em amadurecer. Até seus dezessete anos, ele era de longe o menor dos garotos da turma, condenado a namorar as meninas de treze e catorze anos, ainda mais assustadas com o sexo do que ele. Depois, de repente, ele cresceu treze centímetros em cinco meses. Quando foi à universidade, tinha perdido a virgindade num ato desajeitado numa cama de solteiro, a padronagem em alto-relevo da colcha deixando-o com ardências desconfortáveis pela fricção durante dias. Sua namorada, aliviada por se livrar finalmente do empecilho da virgindade, terminou com ele dias depois.
Na universidade, ele era muito tímido e aplicado para melhorar sua experiência. Depois, quando começou a trabalhar em seu doutorado, ficou caidinho por uma jovem monitora de filosofia da faculdade. Como era inteligente e interessante, ele chamou a atenção dela. Patricia não fez segredo do fato de que era uma mulher liberada, do mesmo modo que ela não fizera segredo do fato de que terminara seu relacionamento por causa de seu desempenho decepcionante na cama.
— Encare os fatos, querido — disse-lhe ela. — Seu cérebro pode ser bom para um doutorado em filosofia, mas sua trepada não passaria nem do secundário.
Daí foi ladeira abaixo. As últimas poucas mulheres com quem Tony se envolveu tinham achado que ele era um perfeito cavalheiro, nunca as pressionando a ir para a cama. Até que elas a levavam e descobriam como era raro que ele conseguisse alguma performance. Ele havia descoberto há muito tempo como era difícil convencer uma mulher de que o fato de não conseguir uma ereção não tinha nada a ver com ela.
— Elas só ficavam aborrecidas e feridas em seus egos — disse em voz alta.
Talvez agora ele tivesse finalmente encontrado um jeito de enfrentar o passado e ir adiante. Mais algumas noites como essa com Angelica e, talvez, apenas talvez, ele estivesse pronto para tentar a coisa de verdade. Ele imaginava se os serviços dela se estendiam a isso. Talvez ele devesse começar a pensar em deixar algumas indiretas.
• • •
Brandon leu a folha de papel em sua mesa e limpou os olhos. Ele e Dave Woolcott tinham passado a noite analisando dúzias de relatórios que chegaram a partir das medidas tomadas por Dave em resposta às correlações obtidas pelo sistema HOLMES. Apesar de seus esforços determinados em encontrar algum indício mínimo que revelasse o assassino, não havia nada que nenhum deles pudesse identificar como pista.
— Talvez essa ideia de Carol seja útil — disse Dave, com um bocejo.
— Fora isso, tentamos de tudo — concluiu Brandon, com a voz tão deprimida quanto o rosto. — Mal não vai fazer seguir com ela.
— Ela é uma manipuladora inteligente, essa mulher — comentou Dave. — Um dia ainda vai chegar ao comando.
Não havia amargura em seu tom, só uma admiração desgastada. Sua boca se abriu em outro bocejo.
— Vá para casa, Dave. Quando foi a última vez que você viu a Marion acordada?
Dave lastimou-se.
— Não comece, senhor. Eu iria parar de qualquer jeito, não há muito o que fazer. Vou estar aqui amanhã para terminar a lista desses fornecedores de informática.
— Tudo bem, mas não cedo demais, ouviu? Faça um agrado à sua família. Tome o café da manhã com eles.
Antes que aceitasse seu próprio conselho, Brandon queria analisar os depoimentos de testemunhas e as impressões dos policiais mais uma vez, incapaz de acreditar que não havia nada à espreita ali que lhes daria seu primeiro golpe de sorte. Quando chegou à metade, ele estava achando quase impossível se motivar para continuar no resto da pilha. A perspectiva de se enroscar no corpo quente de Maggie era irresistível.
Brandon suspirou e se concentrou na próxima folha de papel. Sua análise foi interrompida pelo toque insistente do telefone.
— Brandon — disse com um suspiro.
— Aqui quem fala é o sargento Murray, da recepção. Desculpe interrompê-lo, senhor, mas nenhum dos inspetores está no posto policial no momento. O problema é que há uma pessoa aqui com quem acho que o senhor gostaria de falar. Ele é vizinho de Damien Connolly, senhor.
Brandon já tinha se levantado da cadeira.
— Estou indo.
O homem na recepção estava sentado no banco de madeira que ia de um lado ao outro da parede, com a cabeça baixa, o áspero borrão da barba por fazer em seu queixo. Quando Brandon saiu de trás do balcão, ele ergueu os olhos. Devia ter quase uns trinta anos, estimou Brandon. Bronzeado artificialmente, círculos escurecidos em volta dos olhos. Alguma espécie de executivo, a julgar pelo terno caro, mas sóbrio, e a gravata de seda pendendo torta sob o botão superior aberto da camisa. Ele tinha a aparência amarfanhada, de olhos vermelhos, como alguém que vinha viajando havia tanto tempo que tinha esquecido em que dia ou em que cidade estava. Ver alguém mais cansado do que ele mesmo pareceu injetar nova energia em Brandon.
— Pois não? — disse ele, com animação. — Sou John Brandon, o chefe de polícia assistente a cargo da investigação sobre a morte de Damien Connolly.
O homem fez um aceno de cabeça.
— Terry Harding. Moro a algumas casas de distância de Damien.
— O sargento informou que você pode ter alguma informação para nós.
— Isso mesmo — disse Terry Harding, sua voz rouca devido ao cansaço. — Vi um estranho saindo da garagem de Damien na noite em que ele foi morto.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 016
Eu já havia começado a trabalhar no dr. Tony Hill mesmo antes de ter despachado Damien Connolly. Parecia justiça poética para mim que, como Damien, seu nome já estivesse em minha lista como parceiro em potencial. Se eu precisava de qualquer tipo de confirmação de que estava fazendo a coisa certa em puni-lo, era isso.
Pois bem, eu já sabia onde ele morava, onde trabalhava e qual era sua aparência. Sabia a que horas ele saía de casa pela manhã, que bonde pegava para trabalhar e por quanto tempo ficava em seu pequeno escritório na universidade.
Só percebi a tranquilidade com que tudo tinha transcorrido até agora quando as coisas começaram a se encaminhar em direções que eu não previra nem gostava. Acho que cometi o erro de subestimar a estupidez das forças que se opunham a mim. Nunca pensei que houvesse muita capacidade cerebral compartilhada entre os policiais da corporação de Bradfield, mas os últimos desdobramentos chocaram até a mim mesmo. Eles prenderam a pessoa errada!
A incrível falta de inteligência e percepção deles só era comparável à da mídia, que seguia a polícia como ovelhas sem raciocínio. Não consegui acreditar quando peguei o Sentinel Times e li que um homem estava preso, ajudando as investigações da polícia sobre os meus assassinatos. A prisão ocorreu depois de uma agressão de rua envolvendo um policial. Como é que eles podiam imaginar que alguém que tomara tanto cuidado quanto eu acabaria numa briga de rua em Temple Fields? Era um insulto à minha inteligência. Eles achavam mesmo que eu estaria fora de controle fazendo arruaça por aí?
Li e reli o artigo, incapaz de crer na profundidade da tolice deles. A raiva queimava dentro de mim. Conseguia senti-la no meu estômago como indigestão e cólicas provocadas por gases que se reviravam como uma bola com saliências pontudas. Eu queria fazer algo cruel e dramático, algo que lhes provasse como estavam errados.
Malhei com meus pesos até que meus músculos tremessem com o esforço e meu equipamento ficasse encharcado de suor, mas ainda assim a raiva se recusava a diminuir. Corri pelas escadas até meu computador e trabalhei nos vídeos de Damien que eu importara para o meu sistema. Quando terminei, tínhamos realizado uma ginástica sexual que deixaria orgulhosa a equipe nacional da Rússia. Mas nada me satisfez. Nada eliminou a raiva.
Por sorte, ao contrário deles, eu não era uma pessoa estúpida. Sabia o quanto a raiva descontrolada poderia ser perigosa para mim. Precisava domá-la, usá-la com criatividade e fazê-la trabalhar para mim. Forcei-me a canalizar aquilo para fins construtivos. Planejei em detalhes como capturaria o dr. Tony Hill e o que faria com ele quando o pegasse. Ele teria coisas pendentes — literalmente.
Squassation e strappado. A Inquisição Espanhola sabia exatamente como aproveitar ao máximo o que estava disponível. Eles simplesmente utilizaram a força mais poderosa do planeta, a força da gravidade. Tudo que se precisava era um guincho, uma polia, algumas cordas e um bloco de pedra. As mãos das vítimas eram amarradas atrás das costas e corria-se uma corda delas até uma polia. Depois, uma pedra era presa aos pés.
Em seu livro The Horrid Cruelties of the Inquisition, publicado em 1770, John Marchant descreveu essa tortura eficaz do modo mais eloquente:
O corpo é puxado para cima, até que a cabeça atinja a polia. Ele é mantido pendente dessa maneira por algum tempo, de modo que, pela grandeza do peso suspenso em seus pés, todas as suas articulações e membros possam ser terrivelmente esticados e, de repente, ele é baixado com um solavanco, dando folga à corda. Contudo, é impedido de chegar ao chão; pelo horrível abalo, seus braços e pernas se separam das juntas. Com isso, ele é submetido à dor mais intensa; o choque, que recebe pela súbita interrupção da queda, e o peso em seus pés, que estica todo o seu corpo da forma mais intensa e cruel.
Os alemães acrescentaram um refinamento que me atraiu. Atrás da vítima, eles puseram um rolo com saliências pontiagudas, de modo que, quando ele descia, as pontas cortavam e despelavam suas costas, deixando seu corpo como uma massa sangrenta de ligamentos rompidos. Considerei reproduzir esse efeito, mas, mesmo depois de muita manipulação do layout, não consegui criar com satisfação um projeto no computador e ter certeza de que ele funcionaria tranquilamente, a menos que eu algemasse suas mãos na frente dele, o que tornaria a squassation e o strappado muito menos eficazes. Manter a simplicidade, esse é o meu lema.
Enquanto estava planejando e construindo, tomei medidas para fechar minha teia ainda mais apertada em volta do dr. Hill. Ele podia pensar que conseguia penetrar minha mente, mas tinha entendido as coisas errado.
Mal podia esperar para começar. Estava contando as horas.
16
— Pois bem, senhorita R., supondo que eu aparecesse por volta da meia-noite ao lado da sua cama, armado com uma faca de trinchar, o que diria?
Ao que a crédula moça respondeu:
— Ah, sr. Williams, se fosse qualquer outra pessoa, ficaria amedrontada. Porém, assim que ouvisse sua voz, ficaria tranquila.
Pobre moça, tivesse esse esboço do sr. Williams sido detalhado e concretizado, ela teria visto alguma coisa no rosto cadavérico, e ouvido algo na voz sinistra, que teria perturbado sua tranquilidade para sempre.
Quando o telefone tocou, a primeira reação de Carol foi indignação. Oito e dez numa manhã de domingo só podia significar trabalho. Ela se agitou na cama, com um longo e grave resmungo de descontentamento atormentando os ouvidos de Nelson. Seu braço apareceu por baixo das cobertas, tateando em volta da mesa de cabeceira. Ela atendeu o telefone e grunhiu:
— Jordan.
— Esta é sua ligação de alarme do início da manhã.
A voz estava alegre demais, concluiu Carol, antes de registrar a identidade de quem ligava.
— Kevin — disse ela. — É melhor que isso seja bom.
— É melhor do que bom. O que você diria de uma testemunha que viu o assassino sair de carro da casa de Damien Connolly?
— Repita? — murmurou ela. Kevin repetiu seu anúncio. Da segunda vez, sua voz fez Carol ficar sentada, na beirada da cama. — Quando? — indagou ela.
— O sujeito chegou aqui ontem de madrugada. Tinha estado fora do país a negócios. Brandon o interrogou. Ele marcou uma reunião para as nove — disse Kevin, empolgado como uma criança no Natal.
— Kevin, seu safado, você podia ter me ligado antes...
Ele deu uma risadinha.
— Achei que você precisava do sono para manter a beleza.
— Que se danem o sono e a beleza...
— Eu só cheguei há cinco minutos também. Pode trazer o doutor com você? Acabo de tentar ligar para ele, mas ninguém atende.
— Tudo bem, vou dar uma passada na casa dele e ver se consigo acordá-lo. Ele parece ter o hábito de desligar os telefones. Ilusão dele achar que pode se dar bem e ter uma noite de sono decente. Dá para notar que não é policial — acrescentou ela.
Carol recolocou o telefone no gancho abruptamente e se encaminhou para o chuveiro. O pensamento de que Tony pudesse ter desligado o telefone porque estava com a mulher da secretária eletrônica passou por sua mente. A ideia provocou uma dor em seu estômago. — Vaca idiota — murmurou para si mesma, enquanto a água caía em cascata sobre ela.
Às vinte para as nove, ela estava pressionando a campainha de Tony. Depois de alguns minutos, a porta se abriu. Com os olhos turvos, lutando com a faixa de seu roupão, Tony olhou para fora na direção dela.
— Carol?
— Desculpe por acordá-lo — disse ela formalmente. — Você não estava atendendo o telefone. O sr. Brandon me pediu para vir buscá-lo. Há uma reunião às nove. Temos uma testemunha.
Tony esfregou os olhos, parecendo confuso.
— É melhor você entrar.
Ele caminhou pelo corredor, deixando Carol fechar a porta atrás de si.
— Desculpe quanto aos telefones. Fui dormir tarde, por isso os desliguei. — Ele balançou a cabeça. — Você pode esperar um instante enquanto tomo um banho e faço a barba? Caso contrário, vou para lá sozinho. Não quero que se atrase por minha causa.
— Vou esperar — disse Carol. Ela pegou o jornal do capacho e o folheou, encostada na parede, alerta para os sinais denunciadores da presença de uma terceira pessoa. Ela se sentiu irracionalmente satisfeita quando não ouviu nenhum. Muito embora soubesse que era uma reação infantil, não significava que reações como essa fossem parar da noite para o dia. Ela apenas aprenderia como disfarçá-las até que acabassem, como tinha certeza de que aconteceria um dia, com sua existência exaurida pela falta de interesse de Tony.
Dez minutos mais tarde, ele reapareceu de jeans e camisa de malha, cabelos úmidos e bem-penteados.
— Desculpe por isso. Meu cérebro não funciona até que eu tome um banho. Pois bem, que negócio é esse de testemunha?
Carol lhe contou o pouco que sabia a caminho do carro.
— Essas são ótimas notícias — disse Tony com entusiasmo. — Primeiro grande avanço, não é?
Carol deu de ombros.
— Depende do quanto ele possa nos contar. Se o cara estiver dirigindo um Ford Escort vermelho, não nos levará muito adiante. Precisamos de algo sério para fazer a correspondência cruzada. Talvez algo como o ponto de vista do computador.
— Ah, sim, a teoria do computador. Como vai isso?
— Eu a discuti com meu irmão. Ele acha que é perfeitamente plausível — respondeu Carol com frieza, sentindo-se tratada com condescendência.
— Ótimo — disse Tony, entusiasmado. — Espero realmente que dê certo. Não estava tentando jogar um balde de água fria na coisa, sabe. Tenho de trabalhar com equilíbrio de probabilidades, e sua ideia estava muito além de meus parâmetros. Mas é o tipo de estalo investigativo que vamos precisar na força-tarefa nacional. Acho mesmo que você deve considerar seriamente se inscrever quando dermos o pontapé inicial no projeto.
— Não pensei que você ficaria confortável com a ideia de trabalhar comigo depois disso — comentou Carol, com os olhos firmes na estrada.
Tony respirou fundo.
— Nunca encontrei um policial com quem preferisse trabalhar.
— Mesmo que eu invada o seu espaço pessoal? — perguntou ela amargamente, odiando-se por futucar a mágoa como se fosse uma velha casca de ferida.
Tony suspirou.
— Achei que tivéssemos concordado que podíamos ser amigos? Sei que eu...
— Tudo bem — interrompeu ela, desejando que jamais tivesse começado a conversa. — Posso ser sua amiga. Você acha que o Bradfield Victoria tem alguma chance no torneio?
Assustado, Tony se virou no banco e fitou Carol. Ela estava com um sorriso crispado no canto da boca. De repente, os dois estavam rindo.
As últimas ameaças do governo ao serviço prisional significavam que os policiais da HM Prison Barleigh tinham começado a trabalhar numa operação padrão. Isso, por sua vez, significava que os presos ficavam nas celas por vinte e três em cada vinte e quatro horas. Stevie McConnell estava deitado de lado em sua cama beliche na cela que tinha apenas para si. Em seguida ao ataque que o tinha deixado com dois olhos roxos, algumas costelas quebradas, mais contusões do que podia contar, e o tipo de dano sexual que tornava o ato de se sentar uma opção muito dolorosa para contemplar de imediato, ele havia solicitado confinamento solitário, e ele lhe fora concedido.
Não importa o quanto ele declarasse que não era o Assassino de Bonecas. Ninguém estava nem aí, nem os presos nem os guardas. Ele tinha percebido que os carcereiros tinham por ele o mesmo desdém que seus colegas detentos quando ouviu o som de passos por toda a ala. Mas nenhum policial havia destrancado a porta de sua cela para permitir que ele esvaziasse o balde fedorento de seus dejetos que estava no corredor, com seu cheiro insistente de certa forma mais nojento do que o das dúzias de banheiros públicos onde Stevie tinha escolhido estranhos para transar.
O tanto que conseguia ver, suas perspectivas eram desoladoras. O próprio fato de que ele estava por trás das grades era suficiente para condená-lo aos olhos da maioria das pessoas. Provavelmente o mundo inteiro estava convencido de que o Assassino de Bonecas tinha feito sua última vítima agora que Stevie McConnell estava na cadeia. Depois que ele foi solto em seguida ao primeiro período de interrogatório, ficou intensamente consciente de que todos no trabalho, equipe e clientes, estavam evitando-o, recusando-se a olhá-lo nos olhos. Um drinque num bar de Temple Fields onde ele era freguês há anos tinha sido o suficiente para lhe mostrar que a solidariedade gay o havia deserdado misteriosamente também. A polícia e a imprensa claramente pensavam que ele era um psicopata. E até que eles pegassem o Assassino de Bonecas, Bradfield não seria um lugar acolhedor para Stevie McConnell. A decisão de se mudar para Roterdã, onde um ex-amante administrava uma academia, pareceu fazer sentido na ocasião. Não lhe ocorreu que eles estariam atrás dele.
A ironia de que, inicialmente, tudo isso lhe havia acontecido porque correra para defender um policial não foi algo que Stevie deixou de perceber. Ele deu uma risada amarga. Aquele grande sargento do nordeste da Inglaterra estava provavelmente contando suas bênçãos por ter sido atingido por metade de um tijolo, achando que essa era a única coisa que o tinha salvado de ser a próxima vítima do assassino. A realidade era que Stevie McConnell era a única vítima naquela noite. E isso não ia mudar. Mesmo sua família escandalizada não queria saber, de acordo com seu advogado.
Deitado ali, examinando seu futuro sem arroubos de emoção, ele chegou a uma decisão. Com uma careta de dor, Stevie rolou para fora do beliche e tirou a camisa, estremecendo com a pontada de dor em suas costelas. Com os dentes e as unhas, desfez pacientemente as costuras que uniam o brim. Na ponta afiada de uma mola da cama, ele rasgou as bordas do material de modo que pudesse fazer tiras finas, que entrelaçou para que ficassem mais fortes. Ele prendeu uma extremidade da amarra improvisada em volta do pescoço num laço apertado, depois subiu no beliche de cima. Amarrou a outra extremidade de sua curta corda na grade inferior da cama de cima.
Então, às nove e dezessete de uma manhã ensolarada de domingo, ele se jogou de cabeça da beirada da cama.
Como uma empresa em dificuldades que recebeu uma oferta inesperada para se salvar da falência, a delegacia de Scargill Street estava agitada com uma intensa atividade. No centro de tudo isso estava a sala da equipe HOLMES, onde os policiais olhavam para telas, manipulando as novas informações, avaliando as novas correspondências que o sistema apresentava.
Em sua sala, Brandon conduzia um conselho de guerra com seus quatro inspetores e Tony, todos eles segurando uma fotocópia das observações de Brandon em sua entrevista com Terry Harding. O chefe de polícia assistente tinha tido apenas cinco horas de sono, mas a perspectiva de andamento na investigação lhe dera nova energia, traída somente pelas olheiras pesadas em volta de seus olhos fundos.
— Para recapitular, então — disse Brandon. — Às sete e quinze da noite, aproximadamente, Damien Connolly foi morto, um homem dirigiu de sua garagem em algum tipo de 4x4 grande, de cor escura. Ele saiu do 4x4 para fechar a porta da garagem, e foi então que nossa testemunha o viu melhor. A descrição que temos é de um homem branco, de um metro e setenta e oito a um metro e oitenta e três, com idade entre vinte e vinte e cinco anos, possivelmente com o cabelo amarrado atrás num rabo de cavalo. Usava tênis branco, jeans e um casaco longo de algodão encerado. Durante a noite, a equipe do HOLMES vem analisando os veículos registrados em Temple Fields que estão de acordo com a descrição. A maioria desses motoristas já tinha sido interrogada, mas todos eles serão acompanhados e interrogados mais detidamente agora que temos os indícios de Terry Harding. Bob, quero que fique responsável por isso, e verifique também os álibis.
— Certo, chefe — disse Stansfield, removendo as cinzas do cigarro com um movimento determinado.
— Ah, e Bob? Você pode conseguir que alguém confirme se Harding esteve mesmo no Japão a semana inteira numa viagem de negócios? Quero ter certeza de que não deixamos nada de fora.
Stansfield assentiu com a cabeça.
— Estou mandando uma viatura para buscar Harding às onze horas — prosseguiu Brandon, conferindo a lista que preparara na cozinha às sete. — Carol, quero que você faça a entrevista. Verifique qual empresa de táxi Harding usou para pegá-lo no aeroporto, vamos ver se conseguimos restringir esse tempo um pouco mais. Tony, gostaria que você fizesse parte disso. Talvez possa nos ajudar com as estratégias para melhorar as recordações dele, ver se podemos conseguir alguma descrição segura da aparência desse sujeito.
— Farei o melhor que puder — concordou ele. — No mínimo, provavelmente poderei distinguir entre o que ele lembra e o que ele acha que lembra.
Brandon lançou-lhe um olhar estranho, mas continuou assim mesmo.
— Kevin, quero que organize uma equipe para visitar os showrooms de carros, consiga o máximo de brochuras e pôsteres que puder de veículos de tração nas quatro rodas para que possamos mostrá-los ao sr. Harding e ver se ele pode nos fornecer uma identificação positiva.
— Sim, senhor. Quer que voltemos aos vizinhos dos casos anteriores, para verificar se alguém notou o mesmo veículo lá? — perguntou Kevin com ansiedade.
Brandon refletiu por um momento.
— Vamos ver como prosseguimos hoje — disse ele após alguns instantes. — Seria preciso muito pessoal e tempo para seguir por esse caminho novamente, e podemos não precisar. Provavelmente vale a pena ter uma palavra com o resto dos vizinhos na rua de Connolly, no entanto. Agora que temos alguma coisa específica para lhes perguntar. Boa ideia, Kevin. Pois bem, Dave. O que você pode fazer por nós?
Woolcott descreveu as ações que a equipe HOLMES já estava desempenhando.
— Como é domingo, estou deixando de contatar a Swansea até que tenhamos restringido o veículo. Quanto mais informações pudermos lhes fornecer, com menos possibilidades teremos de lidar. Se esse sujeito Harding puder nos dar a marca, modelo e o ano, ou pelo menos eliminar alguns modelos, poderemos pedir à Agência de Licenciamento de Veículos uma lista de todos os veículos correspondentes no Reino Unido. Então poderemos começar a entrevistar os donos registrados, começando com Bradfield, depois nos distanciando progressivamente. É uma trabalheira dos diabos, mas chegaremos lá no final.
Brandon assentiu, mostrando que registrava a informação.
— Alguém conseguiu mais alguma coisa?
Tony levantou a mão.
— Se estiver interrogando os vizinhos mesmo, pode valer a pena estender as investigações um pouco.
Todos os olhos estavam nele, mas ele só estava ciente dos de Carol. O que tinha acontecido entre eles tinha aguçado seu desejo de ser fundamental para capturar o Faz-tudo.
— Esse sujeito é um perseguidor, não acho que ninguém questionaria isso agora. Acredito que ele vinha observando Damien Connolly por um tempo. Como estamos no meio do inverno, não é o tempo ideal para ficar por aí em lugares abertos. É provável que ele tenha feito grande parte de sua espionagem de dentro do carro. Ele provavelmente não parava no próprio beco, já que ficaria muito visível numa rua tão pequena. Imagino que estacionava na rua que percorre a parte mais baixa, em algum lugar em que tivesse a casa em sua linha de visão. Talvez alguém lá tenha notado um veículo desconhecido estacionado do lado de fora por longos períodos.
— Boa ideia — disse Brandon. — Kevin, pode cuidar disso?
— Sim, senhor. Vou colocar os rapazes nisso.
— E as moças — disse Carol, com doçura. — Talvez devêssemos pedir a eles que não se concentrem no veículo de tração nas quatro rodas. Se esse sujeito for tão cuidadoso quanto achamos que é, ele pode usar o 4x4 para as capturas e tentar algo diferente quando está fazendo as perseguições, para o caso de algum vizinho intrometido ter registrado seus horários.
— O que você acha, Tony? — perguntou Brandon.
— Não me surpreenderia — disse ele. — É importante que não esqueçamos como esse assassino é competente. Pode até mesmo estar usando carros alugados.
Dave Woolcott gemeu.
— Ah, meu Deus, não faça isso comigo.
Bob Stansfield ergueu os olhos do bloco onde estava escrevendo os nomes de sua equipe.
— Imagino que as outras linhas de investigação que o dr. Hill sugeriu vão ficar suspensas por enquanto?
Brandon crispou os lábios com gravidade. A euforia tinha morrido em algum lugar durante a reunião. O peso do trabalho à frente parecia insustentável; e a ideia de encontrar o assassino, quase tão distante quanto antes de Terry Harding entrar na delegacia.
— Certo. Sem querer desrespeitá-lo, Tony, mas suas sugestões são hipóteses, e o que temos agora é nosso primeiro conjunto de fatos concretos.
— Sem problema — disse Tony. — Indícios concretos sempre vêm primeiro.
— E a ideia de Carol sobre o computador? Ainda devemos segui-la? — perguntou Dave.
— O mesmo se aplica a ela — respondeu Brandon. — É um palpite, não é um fato. Então, sim, fica suspensa.
— Com o devido respeito, senhor — interveio Carol, determinada a não ser relegada a uma participação menor. — Mesmo que Terry Harding nos dê uma identificação positiva da marca e do modelo do veículo, podemos não avançar. Precisamos de outros fatores de eliminação antes que possamos restringir as coisas. Se eu estiver certa sobre o computador, estaríamos olhando um segmento tão pequeno da população que poderia ser significativo se fizermos a correspondência cruzada dos dados.
Brandon considerou a ideia por um momento, depois disse:
— Argumento aceito, Carol. Tudo bem, podemos ir atrás disso, Dave, mas não como uma prioridade. Somente quando tivermos pessoal liberado da investigação principal. Certo, estamos todos cientes do que temos de fazer? — Ele olhou em volta com expectativa, registrando uma série de acenos de cabeça. — Tudo bem, equipe — acrescentou Brandon, com severidade na voz. — Vamos correr atrás disso.
— E que a força esteja com você — murmurou Kevin para Carol enquanto eles saíam do escritório.
— Eu prefiro a força à imprensa marrom — disse ela secamente, dando as costas para ele. — Tony, podemos encontrar um lugar tranquilo e planejar nossa estratégia para o interrogatório?
— A única forma de conseguir extrair mais dele é por meio de hipnose — disse Tony, enquanto eles conversavam no corredor depois de uma hora com Terry Harding.
— Sabe fazer isso? — perguntou Carol.
— Conheço a técnica básica. Julgando por seus movimentos oculares e linguagem corporal, ele estava falando a verdade sobre o que viu, sem inventar nem exagerar nada, então pode transmitir mais detalhes sob hipnose, particularmente se tivermos fotos para lhe mostrar.
Dez minutos mais tarde, Carol estava de volta com uma pilha de brochuras de automóveis que a equipe de Kevin tinha coletado nas concessionárias da cidade.
— É disso que precisamos?
Tony assentiu.
— Perfeito. Tem certeza de que quer que eu tente isso?
— Deve valer a pena tentar — disse Carol.
Eles andaram de volta à sala de interrogatório, onde Terry Harding estava terminando uma caneca de café.
— Posso ir embora agora? — perguntou ele, pesaroso. — Só porque tenho um voo agendado para Bruxelas amanhã e nem desfiz minha mala.
— Não vai demorar muito mais, senhor — disse Carol, sentando-se num lado da mesa. — O dr. Hill gostaria de tentar algo com o senhor.
Tony sorriu de modo tranquilizador.
— Temos algumas fotos de veículos 4x4 do tipo que o senhor viu deixando a garagem de Damien. O que eu gostaria de fazer, se concordar, é colocá-lo num leve transe hipnótico e pedir que dê uma olhada nelas.
Harding franziu as sobrancelhas.
— Por que não posso simplesmente vê-las como estou?
— As chances de reconhecer o modelo específico são melhores — explicou Tony suavemente. — A questão é que, sr. Harding, o senhor é obviamente um homem muito ocupado. Desde que viu o incidente, já viajou para o outro lado do mundo, teve uma série de reuniões de negócios importantes e provavelmente não teve tempo suficiente de sono. Tudo isso significa que sua mente consciente deve ter arquivado os detalhes do que o senhor viu no último domingo. Usando a hipnose, posso ajudá-lo a recuperar essas informações.
Harding parecia em dúvida.
— Não sei. Sempre achei que, se me fizessem entrar nesse estado, poderiam me forçar a dizer qualquer coisa.
— Infelizmente, esse não é o caso. Se fosse, os hipnotizadores seriam todos milionários — brincou Tony. — Como disse, tudo que ela faz é trazer à luz coisas que estão ocultas porque não são importantes.
— O que preciso fazer? — disse Harding, desconfiado.
— Só ouvir a minha voz e seguir minhas instruções — disse Tony. — Você vai se sentir um pouco estranho, um pouco desorientado, mas estará no controle o tempo inteiro. Uso uma técnica chamada programação neurolinguística. É muito relaxante, prometo.
— Tenho que me deitar ou não?
— Nada disso. Vou balançar um relógio na sua frente. Está preparado para tentar?
Carol suspendeu a respiração, observando Harding enquanto uma mistura de expressões entrava em conflito no rosto dele. Finalmente, ele assentiu.
— Duvido que consiga me hipnotizar — disse ele. — Sou um homem que conhece a própria mente. Mas estou disposto a tentar.
— Tudo bem — respondeu Tony. — Quero que relaxe. Feche os olhos se for mais confortável. Agora, quero que vá fundo dentro de si mesmo...
Eufóricos com o sucesso, Tony e Carol entraram energicamente na sala da delegacia de homicídios. Bob Stansfield estava de pé ao lado da janela, olhando para a rua encharcada embaixo, com os ombros caídos, um cigarro desprezado queimando em sua mão. Ele olhou em volta e Carol gritou:
— Anime-se, pode ser que nunca aconteça.
Stansfield se virou e disse com amargura:
— Você obviamente não ficou sabendo da notícia.
— Que notícia? — perguntou Carol, andando até ele.
— Stevie McConnell se enforcou.
Carol balançou sobre seus saltos e tropeçou numa mesa. Seus ouvidos estavam tinindo, e ela achou que fosse desmaiar. Instintivamente, Tony avançou à frente e a guiou até uma cadeira.
— Respire fundo, Carol. Fundo e devagar — disse ele, suavemente inclinado sobre ela, fitando seu rosto pálido.
Ela fechou os olhos, afundou as unhas na palma das mãos e obedeceu.
— Desculpe — disse Stansfield. — Foi um baque para mim também.
Carol ergueu os olhos e desviou os cabelos da testa, que ficou pegajosa de repente.
— O que aconteceu?
— Ao que parece, ele foi vítima de agressão ontem. Um tratamento especial para casos sexuais, pelo que disseram. Então, esta manhã ele rasgou a camisa e se enforcou. A porra dos guardas nem por um momento notaram, porque estavam no meio de uma operação padrão — acrescentou de um modo brutal.
— Coitado — disse Carol.
— Vai ser um pandemônio — previu Stansfield. — Estou feliz que isso não tem porra nenhuma a ver comigo. Pelo menos não vai ser o meu na reta. Quer dizer, Brandon tem as costas quentes, então vai ser a porra de um inspetor que vai levar a culpa.
Carol o olhou como se desejasse bater nele.
— Às vezes, Bob, você realmente torra o saco — disse ela, friamente. — Onde está o Brandon?
— Na sala do HOLMES. Provavelmente se escondendo do chefe de polícia.
Eles encontraram Brandon e Dave Woolcott fechados no cubículo do inspetor, na saída da sala principal.
— Temos certeza da marca, senhor — anunciou Carol, com o vigor abalado pela notícia de Stansfield. — Sabemos que carro ele estava dirigindo.
Penny Burgess saiu da estrada principal e enveredou pela trilha do Departamento Florestal que levava ao coração da floresta. Tinha como meta um estacionamento e a área de piquenique no meio da mata. Era um dos seus lugares favoritos para caminhar entre as árvores e subir até as escarpas de arenito sem vegetação, onde o vento podia soprar para longe todas as impurezas da semana. Ela certamente precisava disso depois dos últimos dias de trabalho duro, matérias importantes e sono insuficiente.
A música na rádio terminou e o locutor disse:
— E agora, direto para a redação, para as manchetes da hora.
Em seguida veio a vinheta de notícias, depois uma mulher disse numa voz muito animada para o assunto:
— Notícias da hora da Northern Sound. Um homem que foi interrogado pela polícia de Bradfield em relação aos assassinatos em série que aterrorizaram a cidade foi encontrado morto nesta manhã em sua cela na prisão de Barleigh.
Em choque, Penny tirou o pé do acelerador e foi lançada para a frente quando o carro parou.
— Merda — exclamou ela, esticando a mão para aumentar o volume.
— Acredita-se que Steven McConnell tenha cometido suicídio se enforcando com um laço feito com suas próprias roupas. McConnell, o gerente de uma academia de fisiculturismo na cidade, foi preso na semana passada depois de uma briga de rua envolvendo um policial à paisana no bairro gay da cidade — continuou a repórter, dando ao mundo a impressão de que anunciava os resultados do Festival da Canção do Eurovision. — Ele foi liberado sob fiança, mas detido novamente depois de tentar deixar o país. Um porta-voz do Ministério do Interior disse que haverá um inquérito completo quanto às circunstâncias de sua morte. A economia nunca esteve melhor, disse o primeiro-ministro hoje...
Penny girou a chave na ignição e virou perigosamente na direção oposta no acesso estreito, antes de pisar no acelerador e voltar à estrada. Ainda bem, pensou, que ela já tinha decidido dispensar Kevin. Depois da matéria que ela estava prestes a escrever, ela não podia imaginar que ele um dia fosse querer vê-la de novo.
• • •
Tony tamborilou os dedos nas costas do assento do táxi, com uma inquietude curiosa que o dominava. Deixar a Scargill Street não fora fácil, mas ele sabia que não tinha nenhum papel a desempenhar enquanto a polícia trabalhava em seu único indício concreto. A última coisa de que eles precisavam nesse turbilhão de censura e atividade persistente era que ele ficasse ali lembrando os policiais de todas as razões pelas quais nunca se convencera de que Stevie McConnell era o homem que procuravam.
Seu consolo era que tinha certeza de que Angelica lhe telefonaria naquela noite. Enquanto o táxi zunia pelas ruas molhadas e vazias, Tony ensaiou a conversa. Ele sentia uma nova confiança, uma certeza de que esta noite não teria nenhum problema, que tinha finalmente dominado seus fantasmas, graças à sua estranha terapia erótica. Ele lhe diria que ela não fazia ideia de como seus telefonemas tinham sido importantes para ele. Que ela o tinha ajudado mais do que podia saber. Satisfeito por ter as coisas sob controle, Tony suspirou, relaxado, e tirou o Faz-tudo da cabeça.
Penny Burgess abriu uma lata de Guinness, acendeu um cigarro e ligou o computador. Depois de dar vários telefonemas para confirmar a versão dos eventos que ouvira na rádio, ela se inflamou com um entusiasmo hipócrita que apenas políticos, jornalistas e pastores fundamentalistas parecem capazes de canalizar para seu progresso profissional.
Inalou uma longa lufada de fumaça, pensou por um momento, depois começou a bater nas teclas.
O serial killer de Bradfield fez sua quinta vítima ontem (domingo) quando o fisiculturista gay Stevie McConnell se matou na cela de uma prisão.
A polícia havia insinuado que o próprio McConnell era o Assassino de Bonecas, numa tentativa cínica de compelir o verdadeiro assassino a agir.
Mas esse exercício tortuoso terminou em tragédia, quando McConnell, de trinta e dois anos, enforcou-se com uma corda improvisada feita com sua própria camisa rasgada. Ele a atou ao beliche superior em sua cela solitária, na prisão de Barleigh, e se estrangulou.
Na noite passada, um policial envolvido na investigação do Assassino de Bonecas admitiu: “Sabemos há muitos dias que Stevie McConnell não era o assassino.”
McConnell havia pedido que a equipe prisional o pusesse numa cela isolada depois de um ataque bárbaro de presidiários como ele no dia anterior.
Uma fonte interna da prisão de Barleigh disse: “Ele levou uma verdadeira surra. Os rumores quando ele chegou davam conta de que ele era o Assassino de Bonecas, só que a polícia ainda não tinha indícios suficientes para acusá-lo.
“Presidiários não gostam de assassinos sexuais, e tendem a expressar esses sentimentos. McConnell recebeu uma surra brutal. Ele foi espancado e agredido sexualmente também.”
Conforme relatos, os carcereiros fizeram vista grossa para o espancamento selvagem do prisioneiro. Assim, ontem (domingo), por causa de uma operação padrão dos policiais da prisão, McConnell foi deixado por sua própria conta na cela por tempo suficiente para acabar com a vida. Um porta-voz do Ministério do Interior disse que haverá um inquérito completo sobre o incidente.
McConnell gerenciava a academia de ginástica Bodies no centro da cidade, onde a terceira vítima do assassino, o advogado Gareth Finnegan, era associado.
Ele foi acusado de agressão leve depois de sair em defesa de um sargento da polícia à paisana que foi atacado por um terceiro homem no bairro gay de Temple Fields.
Em seguida, tentou deixar o país enquanto estava sob fiança. A polícia o deteve novamente, quando estava prestes a entrar numa embarcação para a Holanda, e persuadiu os juízes leigos a devolvê-lo à prisão.
Uma fonte da polícia revelou: “O que fizemos levou as pessoas a pensarem que McConnell era o assassino, e era isso que queríamos.
“Serial killers são muito vaidosos. Pensamos que o assassino ficaria tão escandalizado que tivéssemos indicado a pessoa errada que sairia às claras e faria contato.
“Tudo saiu terrivelmente errado.”
Um amigo de McConnell disse na noite passada: “A polícia de Bradfield é a assassina. Pelo que me consta, foram eles que mataram Stevie.
“Os policiais o interrogaram longamente sobre os assassinatos. Eles os puseram sob todo tipo de pressão.
“Muito embora tenham deixado que ele partisse depois, não é fácil se livrar de uma mancha assim.
“Ele foi tratado com frieza no trabalho e nos bares gays.
“Foi por isso que decidiu fugir. É uma tragédia. Pior do que isso, é uma tragédia sem sentido.
“Isso não fez a polícia avançar um centímetro na busca do assassino.”
Penny acendeu outro cigarro e leu sua cópia.
— Agora, tente sair dessa, Kevin — disse ela baixinho, apertando as teclas que salvariam o arquivo e o transmitiriam via modem para o computador do escritório. Então, como algo que lhe ocorreu depois, digitou:
Memorando para a redação.
De Penny Burgess, editoria de crimes.
Estou tirando folga amanhã (segunda-feira) para compensar as horas extras da semana passada e de ontem. Espero que isso não cause problemas demais!
— Um Land Rover Discovery, cinza metálico ou azul-escuro? — confirmou Dave Woolcott, fazendo uma anotação no bloco.
— Foi o que o homem disse — confirmou Carol.
— Certo. Como hoje é domingo, não consigo um relatório completo da Swansea sobre cada veículo como esse no nosso território — explicou Dave.
— O que podemos fazer, no entanto, é mandar uma equipe visitar as principais concessionárias e os vendedores de usados, perguntando por registros de qualquer um que tenha comprado um desses — sugeriu Kevin. Como todos eles, ele estava agitado, com uma empolgação apenas ligeiramente temperada pela notícia trágica de Barleigh.
— Não — recusou Brandon. — Isso seria um desperdício de tempo e pessoal. Não há nenhuma garantia de que o assassino tenha comprado seu veículo em estabelecimentos locais. Esperaremos até amanhã de manhã. Aí trabalharemos o mais rápido possível.
Todos pareciam decepcionados, embora reconhecessem a força do argumento de Brandon.
— Nesse caso, senhor — disse Carol —, eu gostaria de trabalhar com Dave compilando listas de fornecedores de hardware e software de computador, de modo que estejamos prontos para começar assim que haja pessoal livre para atacar os telefones.
Brandon assentiu.
— Bem pensado, Carol. Agora, por que o restante de nós não volta para casa e relembra a aparência do lugar onde mora?
Tony estava estirado no sofá, tentando se convencer de que estava aproveitando o luxo de assistir à TV quando a campainha tocou. A esperança de que a companhia viesse resgatá-lo do tédio inquietante levantou-o num salto e o levou direto ao corredor. Ele abriu a porta, já com um sorriso se espalhando pelo rosto.
O sorriso morreu no meio do caminho quando percebeu que estava sem sorte. Havia uma mulher à porta, mas não era uma de suas amigas ou colegas. Ela era alta, com ossos largos, feições pesadas e rudes, e maxilares quadrados e fortes. Afastando os longos cabelos escuros do rosto, disse:
— Desculpe incomodá-lo, mas meu carro quebrou e não sei onde há um telefone público. Poderia usar seu telefone para ligar para a seguradora? Eu pago a ligação, é claro...
Sua voz foi diminuindo, e ela sorriu, como quem pede desculpas.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 017
Quando avistei o sargento Merrick no Sackville Arms, pensei que ia desmaiar. Só tinha ido lá porque sabia que os detetives da Scargill Street usavam o lugar. Queria ouvir quais eram as fofocas na delegacia de homicídios. Queria ouvi-los falar sobre mim e minhas conquistas. A última coisa que esperava era ver um rosto tão familiar me olhando.
Estava numa mesa discreta, num canto, quando vi Merrick entrar. Ponderei se devia ou não ir embora, mas concluí que isso poderia me tornar visível. A última coisa que eu queria era que ele me reconhecesse e me seguisse por qualquer motivo que fosse. Além disso, por que eu devia permitir que um policial me forçasse a abandonar meu horário de almoço?
Mas não conseguiria evitar a agitação em meu estômago caso ele me visse e viesse falar comigo. Não tinha medo dele, mas não queria chamar atenção. Por sorte, ele estava com dois de seus colegas, e eles estavam muito ocupados discutindo alguma coisa — provavelmente sobre mim, se eles soubessem — para prestar muita atenção a qualquer outra pessoa. Reconheci a mulher pelos jornais. Inspetora Carol Jordan. Ela é mais bonita pessoalmente do que nas fotos, talvez porque seus cabelos têm um belo tom de louro. O outro homem eu nunca tinha visto antes, mas registrei seu rosto para referência futura. Cabelos vermelho-cenoura, pele branca, sardas, traços de menino. E, é claro, Merrick, consideravelmente mais alto que os outros, com algum tipo de curativo na cabeça. Queria saber como ele foi arrumar aquilo.
Nunca odiei Merrick do jeito que odiei alguns dos outros, muito embora ele tenha me prendido algumas vezes. Ele nunca me tratou com o mesmo desdém. Nunca me olhou com escárnio quando me prendia. Mas eu conseguia perceber que ainda assim ele me via como um objeto, uma pessoa indigna de respeito. Nunca compreendeu que, quando eu vendia meu corpo para os marinheiros, havia um propósito. No entanto, o que quer que eu tenha feito naquela época já não é importante agora. Hoje sou diferente, sou uma pessoa transformada. O que aconteceu em Seaford parece tão irrelevante e remoto quanto algo que eu tenha visto no cinema.
De forma curiosa, estar na presença justamente dos policiais que tentavam me encontrar era bastante empolgante. Senti verdadeira excitação em estar a apenas alguns metros de distância dos meus perseguidores, que não sentiam a presença da presa. Eles nem mesmo tinham sexto sentido suficiente para perceber que havia algo extraordinário acontecendo, nem mesmo Carol Jordan. Isso é que é intuição feminina. Eu encarava aquilo como uma espécie de teste, uma medida da minha habilidade de iludir meus perseguidores. A ideia de que eles podem me pegar é absurda, é impensável.
Senti-me tão forte depois desse encontro que o jornal do dia seguinte atingiu-me como uma pancada de um saco de areia. Estava andando pela sala do computador principal quando vi a primeira edição do Sentinel Times largada numa mesa de algum engenheiro júnior. A manchete QUINTO CORPO NO FUROR DO ASSASSINO DE BONECAS saltava para mim.
Queria me enfurecer e gritar, atirar coisas pela janela. Como eles ousavam? Meu trabalho é tão pessoal, como podiam confundir a obra de algum imitador descuidado com uma das minhas?
Estava tremendo com a ira contida quando voltei para meu escritório. Queria perguntar ao engenheiro se eu podia dar uma olhada no jornal, mas achei que não seria prudente. Queria sair correndo dali para a banca mais próxima e comprar um exemplar. Mas isso teria sido uma fraqueza imperdoável. O segredo do sucesso, disse com meus botões, era agir normalmente. Não fazer nada que faria meus colegas pensarem que havia algo estranho acontecendo em minha vida.
— Paciência — convenci-me — é uma virtude cardinal.
Então me sentei em minha mesa, mexendo com as complicações de um software que precisava ser reescrito. Mas meu coração não estava nisso, e eu sabia que não estava justificando meu salário naquela tarde. Às quatro horas, não podia mais suportar. Peguei o telefone e disquei o número especial que transmite a Bradfield Sound.
A reportagem era a principal notícia do boletim, como tinha de ser.
— O corpo de um homem encontrado na área de Temple Fields nas primeiras horas da manhã não é a quinta vítima do serial killer que trouxe terror à comunidade gay de Bradfield, revelou a polícia esta tarde.
Enquanto as palavras do repórter eram assimiladas, senti minha raiva se esvair, o vazio dentro de mim me preenchendo de novo.
Sem esperar mais, bati o telefone. Finalmente eles acertaram alguma coisa. Mas eu havia passado quatro horas infernais por causa do erro deles. Cada hora que eu sofrera seria mais uma hora acrescida à agonia do dr. Tony Hill, prometi.
Porque a polícia de Bradfield havia agora cometido o maior dos absurdos. O dr. Tony Hill, o idiota que não tinha reconhecido ainda que todos os crimes pertenciam a mim, foi apontado consultor oficial da polícia na investigação do serial killer. Coitados dos tolos iludidos. Se essa era a melhor esperança deles, então claramente não tinham esperança alguma.
17
Num assassinato de pura volúpia, completamente desinteressado, onde nenhuma testemunha suspeita será removida, nenhuma recompensa será ganha, nenhuma vingança será satisfeita, é claro que apressar-se seria arruiná-lo inteiramente.
A agonia era tão extrema que Tony queria acreditar que estava num pesadelo. Ele nunca tinha compreendido antes quantos tipos diferentes de dor existiam. A cabeça latejava levemente; a garganta arranhava, áspera; a dilaceração óbvia e retorcida dos ombros; e as agulhadas das cãibras em suas coxas e batatas da perna. A princípio, a dor bloqueou todos os outros sentidos. Seus olhos se fechavam com força, e tudo que conhecia era um sofrimento tão intenso que fazia o suor lhe brotar da testa.
Gradualmente, ele aprendeu a suportar os extremos da dor, percebendo que se colocasse seu peso sobre os pés, as cãibras iriam diminuir lentamente e o rasgão excruciante em seus ombros aumentaria com menor velocidade. À medida que o tormento se tornava mais tolerável, ele percebia com mais nitidez que se sentia enjoado; um mal-estar profundo depositado em seu estômago que ameaçava ser expelido a qualquer momento. Só Deus sabia por quanto tempo ele vinha aguentando aquilo.
Devagar, com medo, ele abriu os olhos e levantou a cabeça, um movimento que enviou um espasmo de agonia por seu pescoço e ombros. Tony observou em volta. Instantaneamente, arrependeu-se do que fez. Ele soube imediatamente onde estava. O recinto era iluminado com luzes brilhantes. Refletores instalados no teto e nas paredes revelavam um cômodo caiado, seu piso de pedra bruta marcado com manchas escuras que ele sabia, sem examinar, que eram os vestígios visíveis de sangue empoçado e esparramado. De frente para ele estava o olho cego de uma câmera num tripé, uma luz vermelha lateral indicando que seu escrutínio não estava deixando de ser registrado. Preso à parede distante havia uma faixa magnética com uma coleção de facas penduradas organizadamente. Num canto do quarto, ele viu os aparelhos inconfundíveis de tortura. Um potro; um aparato estranho parecido com uma cadeira que ele reconhecia, mas não conseguia lembrar o nome imediatamente. Seria algo religioso? Algo vagamente cristão? Algo traiçoeiro, que não era o que parecia? Um berço de Judas, era como se chamava. E, na parede, uma cruz de santo André imensa de madeira, uma espécie de relíquia sagrada medonhamente deturpada. Tony deixou escapar um gemido baixinho de seus lábios secos.
Agora que sabia do pior, avaliou sua própria situação. Ele estava nu, sua pele arrepiada no frio do porão. As mãos, presas atrás das costas. A julgar pelas extremidades rígidas que cortavam seus pulsos, por algemas, mantidas esticadas por sua vez por uma corda ou corrente ou algo que estava obviamente preso ao teto. Esse cabo estava apertado o bastante para forçar a parte superior do corpo dele para a frente, deixando-o dobrado na cintura. Tony conseguiu se empurrar nas pontas dos dedos dos pés e girar o corpo de lado. Com o canto dos olhos, enxergou uma corda de náilon forte passando por trás dele, por uma polia, pela extensão do teto, depois por outra polia até um guincho.
— Jesus — disse, com a voz áspera. Ele estava com medo de olhar seus pés, para que seus piores temores não fossem confirmados, mas forçou seus olhos para baixo assim mesmo. Como ele temera, cada tornozelo estava envolvido numa correia de couro. As correias, por sua vez, estavam presas a um suporte feito com cordas que segurava uma pesada placa de pedra. Um tremor involuntário de medo o percorreu, tencionando seus músculos torturados ainda mais. Ele tinha conhecimento sobre tortura; para tratar seus pacientes, estudara a história do sadismo. Nem mesmo em seus piores momentos imaginara que enfrentaria um destino tão desumano.
Sua mente já estava agitada. Ele seria içado para cima até que atingisse o teto. Seus músculos seriam torcidos e rasgados; suas juntas, esticadas até o limite. Depois o guincho seria solto, deixando-o cair alguns metros antes que o freio fosse aplicado. O peso da placa de pedra, ainda se movendo rapidamente para baixo acelerada a dez metros por segundo, concluiria o serviço, destroçando suas juntas, deixando-o pendente numa confusão de membros deslocados. Se tivesse sorte, o choque e a dor o deixariam inconsciente. Strappado, transformado numa das belas-artes da Inquisição Espanhola. Não era preciso alta tecnologia na tortura.
Numa tentativa de escapar ao pânico cego que seu conhecimento lhe trouxera, ele se forçou a recordar o que havia ocorrido. A mulher na porta, foi onde começara. Sentira uma sensação desagradável de familiaridade ao deixá-la entrar. Ele tinha certeza de que a vira em algum lugar, mas não conseguia imaginar ter visto alguém tão caracteristicamente desgracioso e não se lembrar. Ele andou na frente dela pelo corredor até seu escritório. Depois, o leve sopro de um cheiro estranhamente medicinal e químico. Em seguida, a mão tinha envolvido furtivamente seu pescoço e apertado um algodão frio e nojento em seu rosto. Um chute atrás dos joelhos para fazer dobrar suas pernas e levá-lo a cair. Ele lutara, mas, com o peso dela sobre ele, apenas um momento havia passado antes que perdesse a consciência.
Depois disso, entrou e saiu de um submundo de luz e escuridão, consciente apenas do algodão que parecia constantemente apagá-lo tão logo ele lutava para voltar à consciência. Até que, finalmente, recobrara os sentidos. Na câmara de tortura do Faz-tudo. Do nada, uma citação brotou em sua mente. “Pode estar certo, senhor, quando um homem sabe que será enforcado numa quinzena, isso concentra sua mente de modo esplêndido.” Em algum lugar, ele sabia que havia uma pista do que acontecera que poderia permitir que escapasse ao que parecia ser inevitável. Tudo que precisava fazer era encontrá-la.
Será que ele tinha errado completamente seu perfil? A mulher que o sequestrara era o Faz-tudo? Ela era a culpada? Ou era apenas o chamariz, a cúmplice voluntária que se empolgava com o vício do mestre? Novamente, ele reconstituiu o que sua memória permitia recuperar. Invocou a imagem dela novamente. Primeiro, as roupas, capa de chuva bege, corte no estilo europeu, igual à de Carol, que estava aberta, revelando uma camisa branca desabotoada o suficiente para mostrar o volume de seios fartos e um decote generoso. Jeans, tênis. Tênis. Eles eram da mesma marca e modelo que os seus. Mas nada disso era importante, Tony disse a si mesmo. Eles eram apenas símbolos exteriores do cuidado que o Faz-tudo tomou para não ser pego. A indumentária da mulher havia sido escolhida de modo que, se ela deixasse alguma fibra solta, não pareceria ter nenhum significado, sendo identificável como das roupas de Carol ou das suas. E Carol havia estado em sua casa com frequência suficiente para ter deixado algumas fibras.
O rosto dela não provocava nenhuma lembrança tampouco. Ela era alta para uma mulher, pelo menos um metro e setenta e oito, combinando com uma estrutura óssea corpulenta. Nem mesmo sua mãe poderia dizer que era atraente, com seu maxilar pesado, nariz levemente bulboso, boca grande e olhos curiosamente separados. Muito embora usasse maquiagem bem-feita, ainda que pesada, não havia muito que pudesse fazer com os materiais de constituição básica. Ele tinha certeza de que nunca estiveram juntos num cômodo, embora não fosse desconsiderar a possibilidade de ter passado por ela na rua, na estação de bonde ou no campus.
O tênis. Por alguma razão, ele ficava voltando ao tênis. Se ao menos a dor parasse por tempo suficiente para que ele se concentrasse adequadamente. Tony prendeu as pernas esticadas, tentando aliviar a dor lancinante nos ombros. A fração de um centímetro que ganhou não foi nem perto o suficiente. Novamente, a dor visceral o dominou e ele deixou cair uma lágrima.
O que havia no tênis? Tony recorreu a cada partícula de concentração que pôde e invocou a imagem da mulher novamente. Arfando lentamente, ele percebeu o que era. Os pés eram grandes demais. Mesmo para uma mulher daquela altura, os pés eram grandes demais. Assim que percebeu isso, ele se lembrou também das mãos. Primeiro, couro negro; depois, finas luvas de látex cobrindo mãos grandes, dedos grossos e fortes. A pessoa que o trouxera ali nem sempre fora mulher.
• • •
Carol apertou novamente a campainha. Onde diabos estava ele? As luzes estavam acesas e as cortinas puxadas. Talvez tivesse dado uma saidinha para pegar uma pizza, postar uma carta, comprar uma garrafa de vinho, alugar um vídeo? Com um suspiro de frustração, ela deu meia-volta, andou até o final da rua, virando no beco que se alongava entre a rua de Tony e as casas atrás. Andou até seu quintal, onde um proprietário anterior tinha demolido a parede e concretado metade da área para fornecer o local rígido onde Tony lhe dissera que sempre deixava seu carro.
O carro estava no lugar, exatamente onde devia. — Ah, maldição — reclamou Carol. Circundando o veículo, ela andou até a casa e olhou pela janela da cozinha. A luz da porta aberta que dava para o corredor lançava uma iluminação pálida sobre o cômodo. Nenhum sinal de vida. Nenhuma louça suja, nenhuma garrafa vazia.
Por via das dúvidas, Carol tentou a porta dos fundos. Nenhum sucesso. — Malditos homens — resmungou ela, enquanto andava até o carro. — Cinco minutos, amigo, depois vou embora — prometeu, lançando-se no assento do motorista. Dez minutos passaram lentamente, mas ninguém apareceu.
Carol deu partida no motor e saiu com o carro. No final da rua, olhou de relance o pub do outro lado da estrada principal. Valia a pena tentar, pensou. Foram necessários menos de três minutos para verificar os ambientes cheios e enfumaçados e descobrir que, onde quer que Tony estivesse, não era no Farewell to Arms.
Onde mais ele poderia ter ido a pé às nove horas de uma noite de domingo? — Para qualquer lugar — disse a si mesma. — Você não pode ser a única amiga dele no mundo. Ele não estava lhe esperando; você só ligou para marcar uma reunião para amanhã.
Desistindo, Carol dirigiu para casa. O apartamento estava vazio. Michael, ela recordava, tinha saído para jantar com alguma mulher que conhecera numa exposição. Ela decidiu desistir do mundo e ir para a cama. Mas, primeiro, era melhor que deixasse uma mensagem na secretária eletrônica de Tony. Se ela aparecesse duas manhãs seguidas sem avisar, ele poderia começar a ficar nervoso. A secretária eletrônica entrou depois de alguns toques, mas não havia mensagem, apenas uma série de cliques seguidos pelo tom. — Oi, Tony — disse ela. — Não sei se sua secretária está funcionando bem, então não sei se vai receber esta mensagem. São nove e vinte, e estou prestes a dormir. Vou estar no escritório logo cedo, trabalhando na pesquisa do computador. O sr. Brandon convocou uma reunião sobre o caso para amanhã, às três. Se quiser me encontrar antes, me ligue. Se não estiver na sala de reuniões da delegacia, estarei na sala da equipe HOLMES.
Sentada com Nelson no colo e uma bebida forte ao lado, Carol pensou no trabalho que tinha pela frente. A lista de empresas fornecedoras de computadores que vendiam periféricos e o hardware que o Faz-tudo precisaria para construir suas próprias imagens era tão longa que dava tristeza. Ela dissera a Dave para não começar a trabalhar naquilo até que ela tivesse oportunidade de verificar a empresa de software. A lista de clientes deles seria menor e eles teriam o Discovery 4x4 para fazer a referência cruzada da lista. Apenas se isso não resultasse em nada, ela liberaria a equipe de Dave para ir atrás das dúzias de números que compilou meticulosamente naquela noite.
— Vamos chegar lá, Nelson — disse ela ao gato. — É melhor que a viagem valha a pena.
• • •
O estalo de saltos altos na pedra se infiltrou no delírio de dor como uma plaina num queijo. Assim, todo dia um som era convertido por seu local numa ameaça. Ele não fazia ideia se era dia ou noite, ou quanto tempo havia se passado desde que fora arrancado de sua vida. Tony se forçou a ficar alerta à medida que o som se aproximava dele por trás. Ela estava descendo. Na base da escada, os estalos cessaram. Ele ouviu uma risadinha grave. Devagar, um degrau de cada vez, os passos seguiam atrás dele. Ele podia sentir o exame meticuloso a que estava sendo submetido.
Ela levou o tempo que precisou, circundando seu corpo amarrado, até que se moveu para a linha de visão dele. Tony ficou momentaneamente surpreso pela imponência do corpo dela. Do pescoço para baixo, ela poderia ser uma modelo de uma revista de soft porn. Ficou de pé com as pernas separadas, as mãos na cintura e os cotovelos virados para fora. Ela vestia um quimono de seda vermelho folgado, que se abriu para revelar um corpete de couro extraordinariamente vermelho com furos nos mamilos e uma abertura na região genital. Meias pretas cobriam perfeitamente pernas musculosas que terminavam em escarpins pretos. Mesmo debaixo da roupa, ele podia ver a silhueta nítida de braços e ombros fortes e musculosos. Da visão de onde estava pendurado, ela era tão sensual quanto emplastro de caulim.
— Já descobriu, Anthony? — disse com a voz arrastada, o entusiasmo da risada contida evidente em sua voz.
A ênfase em seu nome completo foi a última volta no cubo mágico de sua memória. Com a cabeça a mil, Tony disse:
— Imagino que comprimidos de paracetamol nem pensar, não é, Angelica?
A risada grave de novo.
— Fico contente de ver que não perdeu o senso de humor.
— Não, só a minha dignidade. Não esperava isso, Angelica. Nada em nossas conversas por telefone me levou a imaginar que era isso que tinha em mente para mim.
— Você não fazia ideia de quem eu era, fazia? — Angelica falava com um orgulho inconfundível em seu tom de voz.
— Sim e não. Não sabia que era você a pessoa que tinha matado esses homens. Mas sabia que você era a mulher para mim.
Angelica franziu a testa, como se estivesse em dúvida sobre como responder. Ela se virou e verificou a câmera.
— Você levou bastante tempo para chegar a essa conclusão. Faz ideia de quantas vezes bateu o telefone na minha cara? — Havia raiva em sua voz, não mágoa.
Tony percebeu o perigo e tentou achar palavras suaves.
— Isso é porque tenho um problema, não por sua culpa.
— Você tinha um problema comigo — disse ela, andando até os bancos de madeira que iam de um lado ao outro de uma das paredes. Ela pegou outra cassete e andou de volta até a câmera.
Tony tentou novamente.
— Muito pelo contrário — disse ele. — Sempre tive problemas em relacionamentos com mulheres. É por isso que não sabia como tratá-la no começo. Mas melhorou tanto. Você sabe que melhorou. Sabe que juntos fomos maravilhosos. Graças a você, sinto como se tivesse deixado todos os meus dilemas para trás. — Ele esperava que ela não estivesse completamente consciente da ironia não intencional em suas palavras.
Mas Angelica não era nenhuma boba.
— Acho que você pode dizer isso com segurança, Anthony. — Ela abriu um sorriso irônico.
— Sua esperteza me venceu, sabe. Tinha certeza de que o assassino era um homem. Eu bem devia saber.
Com as costas para ele, Angelica trocou as fitas na câmera. Depois se virou e disse:
— Você nunca me teria pegado. E, com você fora do caminho, ninguém mais vai me pegar.
Ignorando a ameaça, Tony continuou a conversar, esforçando-se para manter a voz carinhosa e uniforme.
— Eu devia ter percebido que você era mulher. A sutileza, a atenção aos detalhes, o cuidado a que se deu para limpar o que havia deixado. Foi estúpido da minha parte não perceber que essas eram indicações de uma mente feminina, e não da mente de um homem.
Angelica sorriu com malícia.
— Vocês psicólogos são todos iguais. — Ela proferiu a palavra como se fosse algo obsceno. — Não têm nenhuma imaginação.
— Mas não sou como eles, Angelica. Tudo bem, cometi um engano crucial, mas aposto que sei mais sobre você do que qualquer um dos outros sabia. Porque você me mostrou o interior de sua mente. E não apenas através dos assassinatos. Mostrou-me a mulher de verdade, a mulher que compreende o amor. Mas acho que não entenderam você, entenderam? Eles não acreditaram em você quando disse a eles que tinha uma alma feminina aprisionada num corpo masculino. Ah, suponho que tenham fingido acreditar, que a tenham tratado com condescendência e falado com superioridade com você. Mas, no fundo, eles consideravam você um monstro, não é? Acredite em mim, nunca achei isso.
A voz de Tony falhou quando ele chegou ao fim de seu discurso, sua boca estava seca com uma mistura de medo e clorofórmio. Pelo menos, a adrenalina que corria por suas veias parecia agir como um analgésico.
— O que sabe a meu respeito? — disse ela com rispidez, a dor em seu rosto num contraste estranho com a pose de coquete que havia adotado.
— Se formos conversar, preciso de um drinque — disse Tony, apostando que o narcisismo dela a obrigaria a compartilhar suas proezas, que ela precisava ouvir a versão dele de si mesma. Se quisesse ter alguma chance de escapar com vida, ele precisava construir um relacionamento com ela. Um drinque seria o primeiro tijolo da parede. Quanto mais ele conseguisse fazer que ela o visse como um indivíduo, não como um número, maiores seriam suas chances.
Angelica franziu a testa, desconfiada. Depois virando a cabeça para o lado, gesto que fez seus cabelos se esvoaçarem, virou-se e andou até o tanque instalado na parede. Ela abriu a torneira e olhou em volta vagamente à procura de um recipiente para bebidas de algum tipo.
— Vou buscar um copo — murmurou ela, passando por ele e estalando os degraus novamente.
Tony sentiu uma onda de alívio com essa pequena vitória. Angelica tinha ido há menos de trinta segundos, retornando com uma caneca branca grossa. A cozinha fica em cima, Tony deduziu quando ela voltou até o tanque. Angelica andava bem nos saltos, seus passos medidos e femininos. Era interessante, já que ela havia obviamente regressado aos movimentos mais masculinos sob o estresse do sequestro e do assassinato. Essa era a única forma de justificar a convicção de Terry Harding de que vira um homem ao volante saindo da casa de Damien Connolly.
Angelica encheu a caneca e se aproximou de Tony com cautela. Ela agarrou-lhe os cabelos, puxou sua cabeça para trás de modo doloroso e derramou a água gelada em sua boca. A bebida desceu por seu queixo e garganta, mas o alívio era palpável.
— Obrigado — disse ele, de modo ofegante, quando ela retirou a caneca.
— A gente sempre deve ser hospitaleira com os convidados — respondeu ela, ironicamente.
— Espero continuar sendo um convidado por algum tempo — arriscou Tony. — Sabe, admiro você. Tem estilo.
Ela franziu a testa de novo.
— Não me venha com conversa fiada, Anthony. Não vai me enrolar com bajulação idiota.
— Não é conversa fiada — protestou ele. — Passei dias e noites com olhos fixos nos detalhes do que você conseguiu. Estou tão fundo na sua mente, como poderia não admirar você? Como poderia não ficar impressionado? Os outros que trouxe aqui, eles não faziam ideia de quem você era, do que pode fazer.
— Isso é verdade, vou admitir isso. Eram como bebês, amedrontados e estúpidos bebês — disse Angelica, com desdém. — Não sabiam dar valor ao que uma mulher como eu podia fazer por eles. Eram traiçoeiros, tolos lascivos.
— É porque não conheciam você como eu.
— Você fica dizendo isso. Prove. Prove que sabe alguma coisa sobre mim.
O desafio foi lançado, pensou Tony. Esqueça cantar em troca de pão, fale em troca da vida. Esse era o campo de provas, o lugar onde ele descobriria se sua psicologia era uma ciência de verdade ou apenas conversa fiada.
— Fraser Duncan? Alô, aqui é a detetive-inspetora Carol Jordan da polícia de Bradfield — apresentou-se ela. Carol nunca se acostumava a se referir a si mesma por seu título completo. Ela sentia como se a qualquer momento alguém fosse aparecer e gritar: “Ah, você não é não! Finalmente descobrimos.” Por sorte, não parecia que isso ia acontecer hoje.
— Sim? — A voz era cautelosa, a única sílaba proferida como uma pergunta.
— Na verdade, foi meu irmão, Michael Jordan, quem sugeriu que o senhor poderia me ajudar com uma investigação que estamos fazendo.
— Ah, é? — O clima estava melhorando. — Como vai o Michael? Ele está gostando do software?
— Acho que é seu brinquedo favorito — respondeu Carol.
Fraser Duncan riu.
— Um brinquedo caro, inspetora. Pois bem, o que posso fazer por você?
— É sobre o Vicom 3D Commander que gostaria de falar. Em sigilo absoluto, o senhor entende. Estamos envolvidos numa investigação importante de homicídio, e uma das teorias que estou cogitando é que o assassino possa estar usando seu software para editar os próprios vídeos, talvez até importar outros materiais para eles. Isso seria possível, não seria?
— Mais do que apenas possível. Seria absolutamente simples.
— Então, o senhor mantém registros de todos os seus clientes? — perguntou Carol.
— Mantemos. Não vendemos todos os pacotes diretamente, é claro, mas qualquer um que compre o Commander deve registrar sua compra conosco já que isso lhes fornece acesso a uma linha de atendimento gratuita e também significa que receberão correspondências prioritárias quando desenvolvermos atualizações. — Duncan agora estava bem expansivo. — A senhora está fazendo uma solicitação de acesso ao nosso banco de dados de clientes, inspetora?
— Sim, por favor, senhor. Esta é uma investigação de assassinato e as informações podem ser cruciais para nós. Posso garantir também que isso é completamente confidencial. Eu me envolveria pessoalmente para garantir que seus dados seriam removidos de nosso sistema assim que tivermos terminado com eles — disse Carol, tentando não parecer que estava implorando.
— Não sei — disse Duncan, com hesitação. — Não tenho certeza de que gosto da ideia de você e seus colegas batendo na porta dos meus clientes.
— Não seria assim, sr. Duncan. De jeito nenhum. O que faríamos seria inserir a lista no nosso sistema de investigações do Ministério do Interior e fazer a correspondência cruzada com os dados existentes. Agiríamos apenas nas correlações que surgissem com as pessoas que já estão lá.
— É o serial killer que vocês estão perseguindo? — perguntou Duncan de repente.
Carol perguntou-se momentaneamente o que ele queria ouvir como resposta.
— Sim — disse ela, arriscando.
— Deixe-me retornar a ligação, inspetora. Só para ter certeza de que é quem está dizendo que é.
— Sem problema. — Ela lhe forneceu o número da mesa telefônica da polícia. — Peça a eles para transferir a ligação para mim, na sala do sistema HOLMES, na Scargill Street.
Os cinco minutos seguintes se passaram numa agitação de impaciência. O telefone mal tinha tocado quando Carol o pôs no ouvido.
— Inspetora Jordan.
— Você me deve uma, maninha.
— Michael!
— Acabo de contar a Fraser Duncan a pessoa honrada que você é, e que, apesar do que já ouviu sobre a polícia, ele pode confiar em você.
— Amo você, maninho. Agora, saia do telefone e deixe o homem falar comigo!
Dentro de uma hora, os dados da Vicom estavam na rede de computadores do sistema HOLMES, graças a Dave Woolcott e aos milagres da tecnologia moderna. Carol havia transferido Fraser Duncan para ele, depois que concordaram quanto às regras do uso dos dados, e Carol ouvira sem compreender o fim de uma conversa de Dave que consistia em expressões estranhas como “taxa de baud” e “arquivos ASCII”.
Ela sentou-se ao lado do chefe da equipe HOLMES, enquanto ele trabalhava num dos terminais.
— Tudo bem — disse ele. — Temos a lista da Vicom de pessoas que compraram o software deles. Aperto esta tecla, vou a este menu, nesta opção, correspondência com caracteres-curinga, e agora a gente relaxa e deixa a máquina conversar consigo mesma.
Por um minuto angustiante, nada aconteceu. Depois, a tela ficou limpa e uma mensagem piscou: “[2] correspondências encontradas. Listar correspondências?” Dave apertou a tecla ‘s’ e dois nomes e endereços foram exibidos na tela.
1. Philip Crozier, 23 Broughton Crag, Sheffield Road Bradfield BX4 6JB
2. Christopher Thorpe [critério de classificação 1]/ Angelica Thorpe [critério de classificação 2], 14 Gregory Street, Moorside, Bradfield BX6 4LR
— O que isso significa? — perguntou Carol, apontando para a segunda opção.
— Significa que o Land Rover Discovery está registrado no nome de Christopher Thorpe e o software foi comprado por Angelica — explicou Dave. — Usar a opção de caracteres-curinga fez com que a máquina classificasse por endereço e também por nome. Bem, Carol, você tem alguma coisa. Se isso significa algo ou não, teremos de ver.
Penny Burgess andava pelo calcário fissurado e áspero da Malham Pavement. O céu tinha o brilho azul do início da primavera, a grama áspera da charneca começava a parecer mais verde e marrom. De vez em quando, cotovias alçavam ao céu e despejavam suas canções em seus ouvidos. Houve duas ocasiões em que Penny se sentia realmente viva. Uma era na trilha de uma reportagem importante. A outra era lá na região alta da charneca de Yorkshire Dales e em Derbyshire Peak District. Ao ar livre, ela sentia liberdade igual à das cotovias, toda a pressão tinha ido embora. Não havia nenhuma redação exigindo a matéria pronta até uma hora atrás, nenhum contato a quem se sujeitar, nada de precisar olhar por sobre os ombros para ter certeza de que estava à frente de seus rivais. Apenas o céu, a charneca, a extraordinária paisagem de calcário e ela.
Por alguma razão, Stevie McConnell entrou em seus pensamentos. Ele nunca veria o céu novamente, nunca andaria pela charneca e observaria a mudança das estações. Graças a Deus, ela detinha o poder de garantir que alguém pagaria por essa privação desumana.
A casa de Philip Crozier era moderna, com terraço e três andares, e o piso inferior consistia principalmente numa garagem. Carol sentou-se no carro, observando-a de cima a baixo.
— Vamos entrar, senhora? — perguntou o jovem detetive ao volante.
Carol pensou por um momento. O ideal seria que Tony estivesse com ela quando entrevistasse as pessoas cujos nomes o computador tinha informado. Ela tentou ligar para a casa dele, mas ninguém atendeu. Claire disse que ele não havia chegado ainda ao escritório, o que a surpreendeu já que ele tinha um compromisso às nove e meia. Carol tinha rondado a casa, mas ela parecia exatamente igual à noite anterior. Saiu para se divertir com sua amiga, concluiu ela. Bem feito se perder o confronto com o Faz-tudo, pensou com malícia. Depois, se arrependeu imediatamente de sua infantilidade. Não podendo ter Tony, ela gostaria de poder ter Don Merrick com ela. Mas ele tinha saído em busca de outras linhas de investigação que surgiram a partir da identificação do Land Rover Discovery. A única pessoa que ela conseguiu encontrar que não estava envolvida com urgência em outra coisa foi o detetive Morris, no terceiro mês de sua transferência temporária para o Departamento de Investigações Criminais.
— Já que estamos aqui podemos ver se ele está em casa — disse Carol. — Embora provavelmente esteja no trabalho.
Eles subiram o caminho, e Carol absorveu os detalhes do gramado bem-aparado e da pintura em bom estado. A casa não se adequava realmente ao perfil de Tony. Era mais parecida com as casas das vítimas quanto ao valor e ao status, em vez da casa de alguém que aspira ao estilo de vida que elas têm. Carol apertou a campainha e deu um passo atrás. Eles estavam prestes a desistir e retornar para o carro quando Carol ouviu o som de passos pesados no andar de baixo. A porta se abriu revelando um homem negro parrudo vestindo calças de moletom e uma camiseta vermelha, de pés descalços. Ele não poderia ser mais diferente da descrição de Terry Harding. Ela perdeu as esperanças momentaneamente, depois se lembrou que Crozier podia não ser a única pessoa com acesso a seu software e seu Land Rover Discovery. Ainda valia a pena entrevistá-lo.
— Pois não? — disse ele.
— Sr. Crozier?
— Isso. Quem quer saber? — Sua voz estava relaxada, o sotaque de Bradfield era forte.
Carol exibiu seu distintivo e se apresentou.
— Gostaria de saber se poderíamos entrar e conversar, senhor.
— Sobre?
— Seu nome foi selecionado numa investigação de rotina, e eu gostaria de fazer algumas perguntas com fins de eliminação.
Crozier franziu a testa.
— Que tipo de investigação?
— Se pudéssemos entrar, senhor...
— Não, espere, sobre o que é isso? Estou tentando trabalhar.
Morris se apresentou ao lado de Carol.
— Não há necessidade de criar dificuldades, senhor, é apenas rotina.
— O sr. Crozier não está dificultando, policial — repreendeu Carol friamente. — Eu me sentiria do mesmo modo se estivesse na sua situação, senhor. Um carro que corresponde à descrição do seu se envolveu num incidente, e precisamos eliminar o senhor de nossa investigação. Estamos falando com várias outras pessoas em relação a isso. Não vai demorar.
— Tudo bem, então — suspirou Crozier. — É melhor vocês entrarem.
Eles o seguiram subindo as escadas acarpetadas com fibra até uma sala de estar com cozinha num único ambiente. Ela estava mobiliada num estilo caro, mas minimalista. Ele acenou para duas poltronas de couro e madeira e se sentou num pufe de couro no lustroso piso de madeira. Morris sacou seu caderno e abriu ostensivamente numa nova página.
— O senhor trabalha em casa, então? — perguntou Carol.
— Isso. Sou desenhista de animação autônomo.
— Desenho animado?
— Faço mais animações sobre ciência. Se quiser algo para um curso da Open University que mostre como os átomos colidem, sou a pessoa indicada. Então, de que trata a investigação?
— O senhor dirige um Land Rover Discovery?
— Isso. Está na garagem.
— Pode me dizer se o estava dirigindo na noite de segunda-feira passada? — perguntou Carol. Meu Deus, só tinha se passado uma semana?
— Posso. Não estava. Estava em Boston, Massachusetts.
Ela prosseguiu com as perguntas de rotina que estabeleciam precisamente o que Crozier vinha fazendo e com quem ela podia verificar as informações. Depois, ela se levantou. Hora da pergunta central, mas era importante manter a casualidade.
— Obrigada por sua ajuda, sr. Crozier. Só mais uma coisa: há alguém mais que tenha acesso à sua casa quando o senhor está fora? Alguém que pudesse ter pegado seu carro emprestado?
Crozier balançou a cabeça negativamente.
— Moro sozinho, não tenho nem um gato nem plantas, então ninguém precisa vir quando estou fora. Sou o único que tem as chaves.
— Tem certeza disso? Nenhuma faxineira, nem colega que vem aqui usar seu software?
— Certeza, certeza absoluta. Faço minha própria limpeza. Trabalho sozinho. Terminei com a namorada há alguns meses e troquei as fechaduras, certo? Ninguém tem as chaves, exceto eu.
Crozier estava começando a soar irritado.
Carol insistiu.
— E ninguém poderia ter pegado suas chaves emprestadas sem seu conhecimento e tê-las copiado?
— Não vejo como. Não tenho hábito de deixá-las por aí. E o carro só tem seguro quando eu sou o motorista, então nenhuma outra pessoa jamais o dirigiu — explicou Crozier, com sua irritação claramente aumentando. — Olhe só, se alguém cometeu algum crime num carro com minha placa, eles estavam usando placas frias, está bem?
— Aceito o que está dizendo, sr. Crozier. Posso garantir que se as informações que está me fornecendo se confirmarem, não vai nos ver novamente. Muito obrigada pelo seu tempo.
De volta ao carro, Carol disse:
— Encontre um telefone para mim. Quero tentar ligar para o dr. Hill de novo. Não acredito que ele está ausente do seu posto na única vez que realmente precisamos dele.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 018
É risível. Eles escolheram um homem que não consegue sequer identificar se apliquei uma punição específica ou não, e eles o empregam para ajudá-los a me pegar. Podiam ao menos ter tido a decência de contratar alguém que tivesse alguma reputação, um oponente digno das minhas habilidades, não algum idiota que nunca lidou com alguém da minha categoria.
Mas, em vez disso, eles me insultam. O dr. Tony Hill deve fazer um perfil meu, com base em sua análise dos meus assassinatos. Quando esse relato for publicado, daqui a anos, depois de minha morte na cama por causas naturais, os historiadores poderão comparar seu perfil com a realidade e rir das imprecisões grosseiras de sua pseudociência.
Ele nunca chegará perto da verdade. Para que fique registrado, eu escrevi essa verdade.
Nasci no porto de Seaford, em Yorkshire, uma das docas de pesca e comércio mais movimentadas do país. Meu pai era da marinha mercante, imediato em navios-petroleiros. Ele viajava o mundo todo, depois voltava para nossa casa. Mas minha mãe era tão ruim como esposa quanto era no papel materno. Posso ver agora que a casa estava sempre um caos, as refeições eram irregulares e pouco apetitosas. A única coisa em que era boa, a única coisa que os dois tinham em comum, era a bebida. Se houvesse campeonato em duplas nas Olimpíadas para pinguços, eles teriam conquistado a medalha de ouro.
Quando eu tinha sete anos, meu pai deixou de voltar para casa. É claro, minha mãe me culpou por não ser um filho bom o bastante. Ela disse que eu o afastara. Disse que eu era o homem da casa agora. Mas eu nunca consegui fazer jus às suas expectativas. Ela sempre queria mais de mim do que eu era capaz de oferecer, e estabelecia sua autoridade por meio da culpa e não do elogio. Passei mais tempo dentro do armário do que os casacos da maioria das pessoas.
Sem o cheque do meu pai, ela foi forçada a recorrer ao serviço de bem-estar social, que mal era suficiente para viver, quanto mais beber. Quando a sociedade de socorro mútuo tomou a casa, fomos viver com parentes em Bradfield por um tempo. Porém, ela não conseguia lidar com a desaprovação deles, por isso voltamos para Seaford e ela passou a se dedicar a outra indústria próspera da cidade: a prostituição. Acostumei-me cada vez mais à procissão de marinheiros nojentos e bêbados rondando os muitos apartamentos e conjugados sujos onde morávamos. Nosso aluguel estava sempre atrasado, e geralmente tínhamos de fugir no meio da noite antes que os oficiais de justiça engrossassem.
Passei a odiar a cópula repulsiva e barulhenta de que era testemunha frequente, e ficava fora da casa o máximo possível, muitas vezes dormindo sem conforto nas docas. Costumava implicar com garotos que eram mais novos que eu para tirar o dinheiro deles e poder comer. Mudava de escola com quase a mesma frequência que mudávamos de casa, então nunca fui muito bem, apesar de saber que podia botar no bolso a maioria das outras crianças, que eram simplesmente estúpidas.
Assim que fiz dezesseis anos, deixei Seaford. Não tive saudades; não era como se jamais tivesse conseguido fazer muitos amigos, me mudando o tempo inteiro. Vira homens o bastante para saber que não queria crescer como eles, e me sentia diferente por dentro. Achava que, se me mudasse para uma cidade grande como Bradfield, seria mais fácil descobrir o que queria. Um dos primos de minha mãe me arrumou um emprego numa empresa de eletrônicos onde ele trabalhava.
Por volta dessa época, descobri que me vestir com roupas de mulher fazia eu me sentir bem com meu próprio corpo. Arrumei meu próprio conjugado para que pudesse fazer isso quando quisesse, o que me acalmou muito. Comecei a estudar ciência da computação em aulas noturnas e, por fim, consegui algumas qualificações adequadas. Mais ou menos nesse período, minha mãe recebeu uma casa em Seaford em testamento, pela morte do irmão.
Tive a oportunidade de um emprego lá, trabalhando em sistemas de computadores para a empresa telefônica privada local. Não queria muito voltar, mas a chance era boa demais para recusar. Nunca cheguei perto de minha mãe. Acho que ela nem sabia que eu voltara.
Uma das poucas boas coisas sobre Seaford é o acesso de balsa para a Holanda. Costumava ir para lá a cada dois fins de semana, porque em Amsterdã eu podia sair com roupas de mulher e ninguém tinha nenhuma reação. Lá encontrei muitos transexuais e também travestis, e quanto mais conversava com eles, mais percebia que nos sentíamos da mesma forma. Eu era uma mulher aprisionada num corpo masculino. Isso explicava por que eu nunca tinha tido muito interesse sexual pelas garotas. E, embora eu achasse os homens atraentes, sabia que não era uma bicha. Elas me causavam repugnância, com seu fingimento de relacionamentos normais quando todo mundo sabe que somente homens e mulheres podem se ajustar adequadamente.
Procurei os médicos de um hospital em Leeds, onde eles fazem todas as operações de mudança de sexo no norte, e me recusaram. Os psicólogos deles eram tão estúpidos e tacanhos quanto o resto de sua irmandade. Mas consegui um médico particular em Londres, que me prescreveu o tratamento com hormônios de que eu precisava. É claro, eu não podia continuar trabalhando enquanto isso acontecia, mas falei com meu chefe e ele disse que me daria uma boa referência para outro emprego quando eu operasse e me tornasse mulher.
Tive que ir ao exterior para fazer a operação, e foi muito mais caro do que eu esperava. Procurei minha mãe e perguntei se ela faria a hipoteca da casa para me emprestar o dinheiro, e ela só riu de mim.
Então, fiz o que aprendera com ela. Vendi meu corpo nas docas. É impressionante quanto dinheiro os marinheiros estão dispostos a pagar por um travesti. Eles ficam loucos de prazer ao pensar em alguém que tem seios e um pau. Eu não era como as outras prostitutas tampouco; não gastava tudo com bebida, drogas ou um cafetão. Guardei tudo até que pudesse pagar a operação.
Quando cheguei a Seaford, nem mesmo minha mãe me reconheceu a princípio. Eu só tinha voltado há alguns dias quando ela tomou aquela trágica overdose acidental de pílulas e bebida. Ninguém ficou surpreso. Sim, doutor, você pode acrescentá-la à lista.
Com as minhas qualificações, experiência e referências, não tive dificuldades em conseguir um emprego como analista de sistemas sênior na companhia telefônica de Bradfield. Com o dinheiro que ganhei com a venda da casa em Seaford, comprei minha residência em Bradfield e comecei a tarefa de encontrar um homem valoroso com quem dividir minha vida.
E o dr. Hill presume que me entende, sem saber nada disso? Bem, em muito pouco tempo, vou compartilhar tudo isso com ele. É uma pena que ele não vá ter a oportunidade de fazer suas anotações.
18
A verdade é que sou muito meticuloso em tudo relacionado a assassinatos; e talvez leve longe demais minha sensibilidade.
Don Merrick entrou na sala do sistema HOLMES mastigando um hambúrguer de churrasco com queijo duplo e bacon de cinco centímetros de espessura.
— Como faz isso? — perguntou Dave Woolcott. — Como consegue que aquelas desleixadas da cantina cozinhem comida de verdade? Elas queimam até xícara de chá, aquele grupinho. Mas você sempre consegue fazer milagre delas.
Merrick deu uma piscadela.
— É meu charme natural do nordeste — disse ele. — Só escolho a mais feia e digo que ela me lembra a minha mãe quando estava no auge.
Ele se sentou e esticou as pernas longas.
— Chequei a meia dúzia de Land Rovers Discovery que recebi do seu sargento. Estavam todos limpos. Dois deles eram de mulheres; dois tinham álibis inquestionáveis para pelo menos duas das noites; um tinha esclerose múltipla, então não poderia ter feito os trabalhos; e o sexto vendeu seu carro para uma concessionária na região central do país há três semanas.
— Ótimo — disse Dave desanimado. — Dê a lista para um dos operadores para que possamos atualizar o arquivo.
— Onde está o chefe?
— Carol ou Kevin?
Merrick deu de ombros.
— Ainda penso na inspetora Jordan como minha chefe.
— Ela saiu para procurar agulha num palheiro — respondeu Dave.
— A ideia dela teve algum resultado, então? — perguntou Merrick.
— Duas correspondências cruzadas.
— Vamos dar uma olhada.
Dave vasculhou os papéis e encontrou três folhas grampeadas. A primeira listava as duas correlações. Merrick franziu a testa e virou a página. A segunda era uma impressão do resultado de uma pesquisa de ficha criminal de Philip Crozier. Nada encontrado. Com pressa, ele virou a terceira página, que listava dois Cristopher Thorpe. Um tinha um último endereço conhecido em Devon e várias condenações por arrombamento. O segundo tinha um último endereço conhecido em Seaford. Havia uma série de condenações juvenis: agressão contra um juiz de futebol, quebra de vidraças na escola, roubo em lojas. Havia meia dúzia de prisões na vida adulta, todas por oferecer serviços de prostituição. Merrick inspirou com força e virou para a primeira página.
— Puta merda — disse.
— O que foi? — perguntou Dave, subitamente alerta.
— Esse aqui, o Christopher Thorpe, o de Seaford.
— Sim? Carol achava que não era o mesmo que o nosso. Quer dizer, ele tem condenações por prostituição masculina, mas este de Bradfield parece ser casado porque a mulher no mesmo endereço tem seu sobrenome. E vamos encarar os fatos, michês das docas não dirigem por aí em máquinas caras como o Land Rover Discovery.
Merrick balançou a cabeça.
— Não, você entendeu tudo errado. Conheço esse Christopher Thorpe de Seaford. Trabalhei na Delegacia de Costumes lá antes de vir para cá, lembra? Fui o policial que o prendeu em duas dessas acusações. Christopher Thorpe estava prestes a fazer mudança de sexo nessa época. Ele tinha os peitos e tudo o mais, estava tentando ganhar dinheiro para fazer a operação. Adivinha qual era o nome de guerra dele? Dave, Christopher Thorpe não é casado com Angelica Thorpe. Ele é Angelica Thorpe.
— Puta merda — ecoou Dave.
— Dave, onde diabos está Carol?
Angelica estava parada na frente dele, de mãos na cintura, mastigando um canto da boca.
— Você não pode, né? Não pode provar porque não sabe nada sobre minha vida.
— Em certo sentido, você está absolutamente certa, Angelica. Não conheço os fatos de sua vida — disse Tony, com cuidado —, mas acho que sei um pouco sobre a trajetória dela. Sua mãe não fez um trabalho muito bom em amá-la. Talvez tivesse um problema com bebida ou drogas, ou talvez não compreendesse o que um garotinho precisava. De qualquer maneira, ela não fazia você se sentir amada quando era pequena. Estou certo?
Angelica fez uma careta.
— Continue. Cave sua própria cova.
Tony sentiu um arrepio de medo na base do crânio. E se ele tivesse errado tudo? E se essa mulher fosse a exceção para cada estatística próxima da certeza que Tony mantinha em primeiro plano na mente durante toda a investigação? E se ela fosse o único serial killer que tinha vindo de uma família feliz e amorosa? Descartando suas dúvidas como um luxo a que não podia se dar no momento, Tony continuou: — O seu pai não estava muito presente enquanto você crescia, e ele nunca lhe mostrou que estava orgulhoso do filho, muito embora você tenha feito tudo que sabia para fazê-lo sentir esse orgulho. Sua mãe esperava demais de você, vivia lhe dizendo que você era o homem da casa, e o censurava quando se comportava como a criança que era no lugar do homem que ela fingia ver em você.
O rosto de Angelica se contraiu num espasmo de reconhecimento. Tony pausou.
— Prossiga — sussurrou ela entre os dentes cerrados.
— Não é fácil falar, dobrado assim. Não pode afrouxar a corda um pouco, deixar que eu fique na vertical?
Ela balançou a cabeça, a boca com um biquinho infantil.
— Não consigo olhar direito para você assim — tentou Tony. — Você tem um corpo fabuloso, deve saber disso. Se for a última coisa que vou ver, pelo menos me deixe apreciá-lo.
Ela inclinou a cabeça para um lado, como se estivesse repetindo suas palavras para verificar a veracidade ou a traição contida nelas.
— Tudo bem — concedeu. — Não significa que algo mudou, no entanto — acrescentou ela enquanto andava até o guincho e o soltava. Ela deu cerca de trinta centímetros de folga.
Tony não conseguiu reprimir o grito da dor que se espalhou por seus ombros quando os músculos foram liberados da tensão que os esticava até seu limite.
— Vai passar — disse Angelica com rispidez enquanto retornava ao seu lugar ao lado da câmera. — Continue falando. Sempre gostei do gênero fantasia.
Ele se aliviou, pondo-se de pé, lutando contra a dor.
— Você era um garoto esperto — disse, ofegante. — Mais esperto que os demais. Nunca é fácil fazer amigos quando se é tão mais esperto que os outros garotos. E talvez você tenha mudado de residência um pouco. Bairros diferentes, talvez até escolas diferentes.
Angelica estava de volta ao controle de si mesma, seu rosto impassível enquanto ele continuava.
— Não era fácil fazer amigos. Você sabia que era diferente de todo mundo, especial, mas não podia descobrir por que a princípio. Depois, você cresceu, percebeu o que era. Não era igual aos outros meninos, porque não era de jeito nenhum um menino. Não tinha interesse sexual pelas meninas, mas não porque era gay. De jeito nenhum. Era porque você mesma era uma garota. O que descobriu foi que se vestir com roupas de mulher fazia você se sentir à vontade, como se fosse assim que as coisas deveriam ser. — Ele pausou e lhe deu um sorriso torto. — Como estou indo até agora?
— Muito impressionante, doutor — disse ela, com frieza. — Estou fascinada. Continue.
Tony flexionou os músculos do ombro, aliviado por descobrir que o dano até agora parecia ser apenas temporário. O formigamento que corria por suas costas parecia nada mais que uma pequena irritação depois do que tinha passado. Ele respirou fundo e continuou.
— Você decidiu se tornar a pessoa que era dentro de si, a mulher que de fato sabia ser. Meu Deus, Angelica, tenho tanto respeito por você, por ter passado por isso. Sei como é difícil convencer os médicos a levar a sério a ideia. Toda a terapia hormonal, a eletrólise, viver metade como homem, metade como mulher, enquanto aguardava as operações e depois toda a dor da cirurgia. — Ele balançou a cabeça, imaginando. — Sei que não teria coragem de passar por isso.
— Não foi fácil. — As palavras escaparam dos lábios de Angelica, quase contra sua vontade.
— Acredito em você — disse Tony, com empatia. — E, depois de tudo isso, encontrar-se imaginando se valera a pena no final das contas, quando percebeu que a estupidez, a insensibilidade e a falta de percepção que identificava nos homens não desapareciam simplesmente porque você era mulher. Eles ainda eram aquele mesmo bando de canalhas, incapazes de reconhecer uma mulher excepcional, quando lhes era oferecido amor e afeição de bandeja.
Ele pausou, estudando o rosto dela, decidindo se o momento era certo para jogar seu trunfo. A frieza havia deixado os olhos dela, substituída por um olhar quase de tristeza. Ele suavizou e baixou o volume da voz. Por favor, meu Deus, faça que seu treinamento seja recompensado.
— Eles rejeitaram você, não foi? Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan, Damien Connolly. Eles abriram mão de você.
Angelica balançou a cabeça com violência, como se com a atividade pudesse negar o passado.
— Eles me deixaram na mão. Deixaram a mim na mão, não abriram mão de mim. Me traíram.
— Conte-me sobre isso — arriscou Tony baixinho, rezando para que as técnicas que dominou com esforço não fossem lhe falhar agora. — Conte-me sobre isso.
— Por que deveria? — gritou ela, dando um passo à frente e o estapeando tão forte que ele sentiu o gosto do sangue quando suas bochechas se chocaram com os dentes. — Você não é melhor que eles. E aquela vadia? A vaca loura, aquela idiota de merda que você vem comendo?
Tony engoliu o sangue quente e salgado que enchia sua boca.
— Quer dizer Carol Jordan? — perguntou ele, tentando ganhar tempo. Como devia abordar isso? Devia mentir ou contar a verdade?
— Você sabe muito bem de quem estou falando. Sei que esteve com ela, não tente mentir para mim — sussurrou ela, erguendo a mão novamente. — Seu filho da mãe traiçoeiro e infiel.
A mão dela bateu nele em cheio no rosto de novo, com tanta força que ele ouviu seu pescoço estalar.
Lágrimas correram involuntariamente por seus olhos. A verdade não ia funcionar. Só lhe garantiria mais punição. Rezando para que pudesse mentir com convicção, Tony implorou:
— Angelica, foi só uma transa, só como se livrar da coceira. Você me deixou com tanto tesão com suas ligações, eu não sabia quando ia ligar novamente, ou mesmo se ia.
Ele permitiu que a raiva tomasse a sua voz.
— Eu queria você, mas você não me disse como podia tê-la, Angelica. É como você com os outros. Eu estava só ocupando o tempo, esperando por alguém à altura. Você não acha que uma policialzinha atenderia minhas fantasias, acha? Você deve saber bem, você também teve um.
Angelica recuou, seu rosto demonstrava choque. Sentindo que havia feito algum tipo de progresso, Tony a seguiu com as palavras.
— Éramos diferentes, eu e você. Eles não eram dignos de você. Mas nós somos especiais. Você deve saber disso, por causa de nossos telefonemas. Não percebeu que tínhamos algo extraordinário? Que dessa vez seria diferente? Não é isso que você quer de verdade? Não quer matar. Não de verdade. Matar só aconteceu porque eles não eram dignos, porque a decepcionaram. O que você quer mesmo é um parceiro que lhe dê valor. O que você quer é amor. Angelica, o que você quer sou eu.
Por um longo momento, ela o fitou com os olhos esbugalhados e a boca aberta. Depois foi tomada pela confusão, tão óbvia para Tony quanto uma prostituta que se oferece.
— Não use essa palavra comigo, seu desgraçado ordinário — gaguejou ela. — Não diga essa porra! — A voz dela era um grito gutural, grave. Subitamente, ela deu meia-volta e correu do cômodo, com seus saltos estalando nas escadas.
— Amo você, Angelica — gritou Tony desesperadamente depois do som dos passos, enquanto ela se retirava. — Amo você.
Carol e o detetive Morris ficaram parados na porta da pequena casa com terraço na Gregory Street. Ela não precisava ser psicóloga para ler a linguagem corporal dele. Morris estava de saco cheio de ficar dando voltas atrás do palpite idiota de Carol.
— Eles devem estar no trabalho — comentou ele, depois do quarto ataque dela à campainha.
— Parece que sim — concordou Carol.
— Devemos voltar depois?
— Vamos bater de porta em porta — sugeriu Carol. — Ver se algum dos vizinhos está por aí. Talvez eles possam nos contar quando os Thorpe voltam do trabalho.
Morris dava a impressão de que preferiria estar no controle da multidão numa manifestação estudantil.
— Sim, senhora — respondeu, com voz entediada.
— Você fica com o outro lado da rua, eu fico nesse.
Carol o observou atravessar a rua tão cansado quanto um mineiro no final do turno de trabalho. Balançando a cabeça com um suspiro, ela voltou sua atenção para o número doze. Esse era muito mais parecido com o tipo de território que Tony havia sugerido para seu assassino. Pensar em Tony acabou deixando Carol chateada de novo. Onde diabos ele estava? Ela realmente precisava da opinião dele hoje, sem mencionar um pouco de apoio para uma ideia que todos pareciam pensar que era uma completa perda de tempo. Ele não poderia ter escolhido um momento pior para entrar na lista dos desaparecidos. Era imperdoável. Pelo menos, ele poderia ter telefonado para sua secretária e não deixado que ela tivesse que responder aos seus telefonemas e criar desculpas para ele.
Não havia campainha no número doze, então Carol bateu com o nó dos dedos na porta de madeira sólida. A mulher que abriu parecia uma caricatura de uma novela. Em seus quarenta anos, sua maquiagem teria sido exagerada para jantar em Los Angeles, quanto mais para o meio da tarde numa rua secundária de Bradfield. Seus cabelos louros platinados se empilhavam no formato de uma colmeia inclinada. Ela usava um suéter preto apertado com gola arredondada, revelando um decote com a textura de papel amassado, leggings coladas no corpo de cor azul brilhante, escarpins brancos e uma corrente fina de ouro no tornozelo. Um cigarro pendia do canto da boca.
— O que foi, querida? — disse ela, com uma voz nasalada.
— Desculpe incomodá-la — começou Carol, exibindo seu distintivo. — Detetive-inspetora Carol Jordan, Polícia de Bradfield. Estou tentando entrar em contato com seus vizinhos do número catorze, os Thorpe, mas parece que não tem ninguém em casa. Queria saber se por acaso a senhora sabe a que horas eles chegam em casa do trabalho.
A mulher deu de ombros.
— Sei lá, querida. Aquela vaca entra e sai em tudo quanto é hora.
— E quanto ao sr. Thorpe? — perguntou Carol.
— Que sr. Thorpe? Não tem nenhum sr. Thorpe no vizinho, querida. — Ela deu uma risada rouca. — Obviamente você nunca pôs os olhos nela. Qualquer homem que se casasse com aquela vaca horrorosa teria de ser cego e estar na pior. Então vocês a pegaram pelo quê?
— São só investigações de rotina — disse Carol.
A mulher bufou.
— Não me venha com essa conversinha — disse ela. — Assisti a episódios de The Bill suficientes para saber que não mandam inspetores em investigações de rotina. Já era hora de vocês porem aquela vaca atrás das grades, se quer minha opinião.
— Por que isso, sra.... como se chama?
— Goodison, Bette Goodison. Como em Bette Davis. Porque ela é uma vaca horrorosa e antissocial, por isso.
Carol sorriu.
— Infelizmente, isso não é um crime, sra. Goodison.
— Não, mas assassinato é, não é? — gritou Bette Goodison com ar triunfante.
Carol engoliu em seco, esperando que o efeito da palavra não fosse tão visível quanto era palpável.
— Essa é uma acusação muito grave.
Bette Goodison deu uma última tragada em seu cigarro e, como um especialista, deu um peteleco na guimba que percorreu o espaço da calçada e foi parar na sarjeta.
— Estou feliz que pense assim. É mais do que seus colegas na delegacia de Moorside fizeram.
— Lamento que sinta que não foi bem-atendida por meus colegas. — desculpou-se Carol, com um tom preocupado. — Talvez pudesse me contar sobre o que estamos falando?
Por favor, meu Deus, faça com que essa seja uma repetição do caso do Estripador de Yorkshire, em que o melhor amigo do assassino contou à polícia que suspeitava que ele era o Estripador e a polícia não deu a menor atenção.
— Prince, é de quem estamos falando.
Por um momento de fantasia, Carol visualizou o pequenino astro do rock enterrado no quintal de uma casa com terraço de Bradfield. Restabelecendo a compostura, ela disse:
— Prince?
— Nosso pastor-alemão. Sempre reclamava dele, essa Angelica Thorpe. E ela não tinha razão para isso. Aquele cachorro estava fazendo um serviço para ela. Bastava passar qualquer pessoa pelo nosso beco, e aquele cachorro avisava. Ela teria de pagar uma fortuna para ter um alarme tão eficiente quanto aquele cachorro. De qualquer forma, há alguns meses... Agosto, foi o mês, um fim de semana antes do Feriado dos Bancos, voltamos do trabalho, Col e eu, e Prince tinha desaparecido. Pois bem, não há jeito de que ele pudesse ter saído do quintal. E ele teria atacado qualquer um que entrasse. Só há um modo de ele ter desaparecido: sendo assassinado — disse a sra. Goodison, golpeando Carol no peito com o dedo para obter ênfase. — Ela envenenou o Prince, depois se livrou do corpo para que não houvesse provas. É uma assassina!
Normalmente, Carol teria andado descalça uns dois quilômetros, se precisasse, para evitar uma conversa como essa, mas ela estava à procura do Faz-tudo, e qualquer excentricidade era algo que se devia agarrar com ansiedade.
— Como a senhora pode ter tanta certeza de que foi a sra. Thorpe? — perguntou ela.
— Questão de lógica. Ela era a única que já tinha reclamado dele. E, no dia que ele sumiu, eu e Col saímos para o trabalho, mas ela ficou em casa o dia todo. Sei disso com certeza, porque ela estava trabalhando durante a noite naquela semana. E quando batemos na porta dela para perguntar se ela sabia alguma coisa sobre o sumiço do cachorro, ela só mostrou um sorriso de orelha a orelha naquele focinho. Eu podia ter dado um jeito naquela cara dela — bradou a sra. Goodison com ênfase. — Então, o que vai fazer quanto a isso?
— Infelizmente sem indícios, não há muito que possamos fazer — disse Carol, com empatia. — A senhora tem certeza, não tem, de que a sra. Thorpe mora sozinha?
— Ninguém ia querer morar com uma vaca horrorosa daquelas. Ela nem recebe visitas. Não é de causar surpresa, veja bem, ela parece um brutamontes vestido de mulher.
— Por acaso sabe que tipo de carro ela dirige? — perguntou Carol.
— Um desses malditos 4x4 de yuppies. Pergunto a você quem precisa de um 4x4 no meio de Bradfield? Não é como se morássemos em alguma fazenda, não é?
— E sabe onde ela trabalha?
— Não sei nem quero saber. — Ela olhou para o relógio. — Agora, se não se importa, minha minissérie está começando.
Carol observou a porta se fechar atrás de Bette Goodison, com uma suspeita desagradável começando a se formar em sua mente. Antes que pudesse tentar o número dez, seu pager tocou insistentemente. “Ligue para Don na Scargill Street. Urgentíssimo”, ela leu.
— Morris — gritou Carol. — Arrume um telefone para mim.
O que quer que estivesse acontecendo na Gregory Street podia esperar. Don claramente não podia.
Exausto, Tony caíra no sono e estava tendo um pesadelo delirante. Um esguicho de água congelada, lançada no rosto, levou-o direto para o angustiante despertar, sua cabeça retornando dolorosamente.
— Ai — gemeu.
— Hora de acordar — disse Angelica rispidamente.
— Estava certo, não estava? — perguntou Tony pelos lábios inchados. — Você teve tempo para pensar e sabe que tenho razão. Quer que a matança pare. Eles precisavam morrer, mereciam morrer. Decepcionaram você, a traíram, não a mereceram. Mas tudo isso pode mudar agora. Pode ser diferente comigo, porque eu amo você.
A máscara rígida do rosto dela se enrugou diante dos olhos dele, tornando-se mais suave, mais macia. Ela sorriu para ele.
— Nunca foi questão de sexo. Sempre consegui sexo. Os homens me pagam por sexo. Me pagam muito dinheiro. Foi assim que paguei pela cirurgia. Eles sempre me quiseram. — A voz dela estava cheia de uma mistura estranha de orgulho e raiva.
— Posso entender o porquê — mentiu Tony, montando em seu rosto o que ele esperava que fosse uma expressão de ansiedade e admiração. — Mas o que você queria de verdade era o amor, não era? Queria mais que o sexo sem amor das ruas ou o sexo sem rosto ao telefone. Você merece isso. Meu Deus, como merece. É o que posso lhe dar, Angelica. O amor não é apenas atração física. O amor é questão de respeito, admiração, fascínio, e sinto tudo isso por você. Angelica, você pode ter o que quiser. Pode ter comigo.
Suas emoções conflitantes estavam estampadas em seu rosto. Ele conseguia ver que parte dela queria desesperadamente acreditar nele, queria escapar para o mundo normal dos relacionamentos. Mas essa parte tinha que lutar com um nível de autoestima muito baixo. Ela não conseguia imaginar que existisse alguém disposto a amá-la. E, por baixo disso tudo, a suspeita de que ele estava tentando ludibriá-la.
— Como poderíamos? — interpelou ela, com agressividade. — Você vem tentando me caçar. Está do lado da polícia. Do lado deles.
Tony balançou a cabeça.
— Isso foi antes de eu perceber que você era a mesma mulher por quem me apaixonei pelo telefone. Angelica, o amor é uma emoção que suplanta o dever. Sim, trabalhei para a polícia, mas não sou um deles.
— Quem com porcos se mistura, farelo come — zombou ela. — Você vem tentando me prender, Anthony. Espera que acredite no que diz? Deve pensar que sou muito burra.
— Muito pelo contrário. Se quiser falar sobre estupidez, fale da polícia. Em grande parte, eles são tão chatos e intolerantes que não conseguiram manter um psicólogo interessado por mais de cinco minutos. Não tenho nada em comum com eles — sustentou Tony, em desespero.
Ela balançou a cabeça, mais com tristeza do que com raiva.
— Você trabalha para o Ministério do Interior. Você passou sua carreira inteira pegando serial killers e tratando deles. E espera que eu acredite que, de uma hora para outra, mudaria de lado e seria fiel a mim? Qual é, Anthony? Não vou cair numa esparrela dessas.
Tony sentiu suas forças se esvaírem. Seu cérebro simplesmente não era mais rápido o suficiente para mantê-la a distância. Com tristeza, ele disse:
— Não fiz carreira capturando pessoas, mas, sim, as tratando. Tive de fazer isso, não compreende? O meu trabalho é o único lugar em que posso encontrar mentes complexas o bastante para serem interessantes. É como ir ver os animais no zoológico. Você quer observá-los em seu habitat, mas, se só puder ir vê-los no zoológico, você vai assim mesmo. Sempre precisei esperar até que eles estivessem presos para poder estudá-los. Mas você... você ainda está na natureza, ainda do jeito que quer ser, realizada em sua arte. E, comparada a eles, você é a nata. Excepcional. Quero passar o resto da vida sendo estimulado por sua mente. Não posso imaginar um dia achar você entediante.
Aterrorizante, talvez, mas nunca entediante.
O lábio inferior dela se projetou, dando uma expressão de calculada petulância ao seu rosto. Ela meneou a cabeça na direção da região genital dele, onde seu pênis pendia flácido.
— Então, se me acha atraente, por que isso está assim?
Era uma pergunta para a qual Tony não tinha absolutamente nenhuma resposta.
— O que temos de fato, Carol? — interpelou Brandon.
Carol andava de um lado para outro do escritório de Brandon, marcando seus pontos com os dedos.
— Temos um transexual. Não um transexual que passou pelo processo controlado, com aconselhamento psicológico do Serviço Nacional de Saúde, mas alguém que, de acordo com Don, teve uma mudança de sexo recusada aqui e teve de financiar uma operação fora do país vendendo o corpo. Então, desde o começo, sabemos que temos alguém que foi examinado por psiquiatras e considerado instável. Temos esse transexual dirigindo um veículo idêntico ao do dirigido por um suspeito na morte de Damien Connolly. Temos uma vizinha que está convencida de que Angelica Thorpe matou seu cachorro. O cachorro foi morto uma quinzena antes do primeiro assassinato. Angelica Thorpe comprou o software que lhe permitiria manipular vídeos em seu sistema de computador. Isso se encaixa numa teoria de comportamento do assassino desenvolvida por mim e endossada pelo nosso analista de perfil psicológico. Ela até mesmo mora no tipo de casa que Tony disse que moraria — argumentou Carol com veemência.
— Quando ela era Christopher, tinha alguns parafusos a menos — interveio Don.
— Gostaria de poder perguntar a Tony sobre isso — disse Brandon, de modo evasivo.
— Eu também — admitiu Carol, por entre os dentes. — Mas, obviamente, ele encontrou algo mais importante para fazer hoje. — Um pensamento súbito atingiu Carol como um saco de areia na nuca. Seus joelhos começaram a se dobrar e ela caiu na cadeira mais próxima. — Ai, meu Deus — disse, sem fôlego.
— O que foi? — perguntou Brandon, preocupado.
— Tony. Ele não esteve em contato com ninguém desde que saiu daqui ontem. Ele tinha duas reuniões da força-tarefa marcadas para hoje, de acordo com sua secretária, mas não apareceu no trabalho e não telefonou. Ele não estava em casa na noite passada, e não está aqui agora.
As palavras de Carol ficaram suspensas no ar como uma nuvem de fumaça tóxica. Uma onda de náusea subiu de seu estômago, quase a sufocando. De alguma maneira, ela manteve sua compostura sob o olhar concentrado de Brandon.
Com os dedos tremendo, Carol pegou a cópia de Brandon do perfil em sua mesa. Com pressa, ela virou as páginas até que encontrou o que procurava.
— “É possível que seu próximo alvo seja também um policial, talvez mesmo alguém que esteja trabalhando na investigação. Isoladamente, isso não será motivo suficiente para que o assassino o escolha, ele deve também se encaixar no critério de vítima que delineou em sua cabeça a fim de que o assassinato assuma seu significado completo para ele. Eu recomendaria enfaticamente que qualquer policial que corresponda ao perfil da vítima aplicasse vigilância extra em todos os momentos, observando qualquer veículo suspeito estacionado próximo à sua casa e verificando se está sendo seguido na ida e na volta do trabalho e dos eventos sociais.” Pense nisso, senhor. Pense no perfil da vítima. Senhor, Tony se encaixa perfeitamente.
Sem querer acreditar no que Carol estava sugerindo, Brandon disse:
— Mas não se passaram oito semanas. Não é hora!
— Mas hoje é segunda-feira. Não se esqueça, Tony também indicou que seu cronograma poderia ser acelerado se algo acontecesse para traumatizá-lo. Stevie McConnell, senhor. Pense em toda a publicidade. Outra pessoa estava recebendo o crédito por seus crimes. Veja, aqui está, senhor: “Outra situação possível é que uma pessoa inocente seja acusada dos assassinatos. Isso seria uma afronta tão grande à ideia que tem de si mesmo que ele poderia cometer seu próximo assassinato antes do cronograma.” Senhor, precisamos agir com relação a isso agora!
A mão de Brandon estava no telefone antes mesmo que ela tivesse começado sua última frase.
A porta da frente dava direto no interior da casa. Embaixo não poderia parecer mais normal. A pequena sala estava mobiliada de forma barata, mas confortável com um sofá de dois lugares combinando com uma poltrona acolchoada em Dralon cor de musgo. Havia TV, vídeo, um sistema de som de preço médio e uma mesa de café completa com um exemplar da revista Elle. Um par de pôsteres enquadrados de baleias no mar estava pendurado nas paredes. A única estante continha uma seleção de clássicos de ficção científica, alguns romances de Stephen King e três livros eróticos de Jackie Collins. Carol, Merrick e Brandon se moveram cautelosamente pela sala, passaram pelas escadas e entraram na cozinha. Era organizada ao extremo, como um showroom; as superfícies de trabalho limpas e sem excesso de itens. Num escorredor, uma caneca, um prato, um garfo e uma faca.
Com Brandon liderando o caminho, eles subiram as escadas estreitas construídas entre as duas salas embaixo. O quarto da frente era rosa e leve como um milkshake de morango. Até mesmo a mesa em formato de feijão, com sua borda de renda, era rosa.
— Cuide-se, Barbara Cartland — murmurou Merrick. Brandon abriu o armário e vasculhou a série de roupas femininas. Carol se dirigiu às gavetas de um armário alto cor-de-rosa e trabalhou por todas elas até embaixo. Eles não continham nada mais perturbador que uma seleção de peças íntimas bregas, a maioria delas em cetim vermelho.
Foi Merrick quem mencionou primeiro o quarto dos fundos. Assim que abriu a porta, ele sabia que ninguém iria gritar para os jornais sobre juízes leigos concedendo mandados com base em indícios não existentes.
— Senhor — gritou ele. — Acho que encontramos.
O quarto era organizado como um escritório. Uma escrivaninha grande continha um computador e periféricos variados que nenhum deles conseguia identificar. De um lado estava um telefone ligado a um gravador sofisticado. Uma pequena mesa de edição de vídeo estava num canto, ao lado de um armário de arquivos. Um carrinho com rodas sustentava uma televisão e um vídeo, os dois de última geração. As prateleiras tomavam duas paredes, cheias de jogos de computador, vídeos, fitas e disquetes de computador, cada caixa etiquetada organizadamente em letras maiúsculas firmes. O único objeto discrepante no quarto era uma cadeira reclinável de couro, o material suspenso como uma rede numa estrutura de aço.
— Achamos — disse Brandon. — Bom trabalho, Carol.
— Onde diabos começamos? — indagou Merrick.
— Algum de vocês sabe operar o computador? — perguntou Brandon.
— Acho que devemos deixar isso com os especialistas — respondeu Carol. — Ele pode estar programado para destruir os dados se alguém tentar fazer o login.
— Certo. Don, você pega o armário de arquivos. Eu pegarei os vídeos. Carol, você leva os cassetes.
Carol se moveu pelas prateleiras de cassetes. As primeiras duas dúzias pareciam ser fitas de música, abrangendo de Liza Minnelli a U2. Em seguida, havia uma dúzia marcada como “AS” e numerada de um a doze. Catorze marcadas “PG” em seguida, depois quinze com a inscrição “GF”, oito com “DC”, e seis com “AH”. A sequência das iniciais estava longe de ser coincidência. Carol pegou a primeira fita “AH” e, com o coração cheio de apreensão, inseriu no aparelho. Pegou os fones plugados na máquina e, relutantemente, os colocou nos ouvidos. Ela ouviu o som de um toque de telefone, depois uma voz tão familiar que ela poderia ter chorado.
— Alô — disse Tony, sua voz reduzida pela ligação telefônica. — Quem fala?
Uma risadinha, baixa e sexy.
— Você nunca vai adivinhar. Nem em um milhão de anos.
Pegamos, pensou Carol, sendo tomada por uma sensação de mau agouro. A voz na secretária eletrônica.
— Tudo bem, então me diga — disse Tony, sua voz estranha, amigável, entrando no jogo.
— Quem você gostaria que eu fosse, se eu pudesse ser qualquer pessoa no mundo?
— Isso é algum tipo de brincadeira? — indagou Tony.
— Nunca falei mais sério na vida. Estou aqui para fazer seus sonhos se tornarem realidade. Sou a mulher das suas fantasias, Anthony. Sou sua amante telefônica.
Houve o silêncio de um momento, depois o telefone foi batido do lado de Tony. Pelo tom de discagem, Carol ouviu a mulher estranha dizer:
— Hasta la vista, Anthony.
Ela apertou com força o botão de parar e tirou violentamente os fones de ouvido. Virou-se para ver Brandon paralisado pela imagem de Adam Scott esticado num potro e, aparentemente, desacordado. Parte da mente dela não podia compreender o que estava vendo. O mal, pensou ela, devia estar coberto de sangue, não exibido de forma prosaica numa tela de tevê de subúrbio.
— Senhor — forçou-se a dizer. — As fitas. Ela vinha perseguindo Tony.
Tony tentou rir. Saiu algo mais parecido com um soluço, mas ele continuou assim mesmo.
— Você espera que eu consiga uma ereção? Amarrado assim? Angelica, você usou clorofórmio em mim, me sequestrou e deixou que eu recobrasse a consciência sozinho numa câmara de tortura. Desculpe-me desapontá-la, mas não tenho experiência em bondage. Estou muito assustado para conseguir ficar de pau duro.
— Não vou deixar você ir, sabe. Não para correr direto para eles.
— Não estou pedindo para me deixar ir embora. Acredite em mim, fico feliz em ser seu prisioneiro, se esse for o único jeito de passar tempo com você. Quero conhecê-la, Angelica. Quero provar meus sentimentos para você, quero lhe mostrar como é o amor. Quero lhe mostrar de que lado estou realmente.
Tony tentou acionar o tipo de sorriso que aprendera que causava reações nas mulheres.
— Então me mostre — desafiou Angelica, deixando uma das mãos correr acariciando o próprio corpo, demorando-se nos mamilos e avançando para a área genital.
— Vou precisar de sua ajuda. Do mesmo jeito que precisei de você ao telefone. Fez que eu me sentisse tão bem, como um homem de verdade. Por favor, ajude-me agora — suplicou Tony.
Ela deu um passo em direção a ele, movendo-se sinuosamente como uma stripper.
— Você quer que eu o excite? — Ela disse com a voz arrastada numa paródia medonha de sedução.
— Não acho que consiga fazer assim — disse Tony. — Não com meus braços atados para trás desse jeito.
Angelica parou de imediato e fez uma carranca.
— Já disse, não vou soltar você.
— E eu disse que não estou pedindo isso. Tudo que peço é que ate minhas mãos para a frente. Para que eu possa tocá-la.
Novamente ele forçou o sorriso gentil.
Ela o fitou, pensativa.
— Como sei que posso confiar em você? Eu teria de soltar suas mãos para poder atá-las para a frente. Talvez você esteja tentando me ludibriar.
— Não vou. Dou minha palavra. Se isso faz você se sentir mais segura, use o clorofórmio em mim novamente. Faça enquanto eu estiver inconsciente — disse Tony, arriscando de novo. A reação dela lhe diria tudo que ele precisava saber sobre suas chances.
Angelica se moveu atrás dele. Uma voz exultante na cabeça dele gritava: “Isso!” Ele sentiu o calor da mão dela entre as dele enquanto ela agarrava as algemas e as puxava dolorosamente para cima.
— Merda — gritou Tony quando novas ondas de dor tomaram seus braços e seus ombros. Ele ouviu um clique de metal quando a manilha que ligava a corda às algemas se soltou. Angelica soltou-as e Tony caiu sobre os joelhos; as pernas se dobraram.
— Céus — praguejou ele enquanto caía para a frente, sentindo a pedra áspera arranhar sua bochecha.
Movendo-se rapidamente, Angelica abriu um lado das algemas, agarrou as costas da cadeira e o puxou para cima. Ainda segurando o braço com as algemas colocadas, ela apareceu diante dele e agarrou com brutalidade seu outro braço logo abaixo do bíceps, arrastando-o por seu corpo. Segundos mais tarde, suas mãos estavam algemadas de novo, dessa vez na frente do corpo. Ele se ajoelhou como um suplicante, seu desconforto duplicado pelas correias de couro apertadas em volta dos tornozelos.
— Viu? — perguntou, respirando com dificuldade. — Eu disse que não ia tentar nada.
Levemente ofegante, Angelica ficou parada em frente a ele, com as pernas separadas.
— Então me mostre — exigiu ela.
— Você precisa me ajudar. Não posso fazer sozinho — protestou ele, sem energia.
Ela se inclinou para baixo e agarrou os cabelos dele de novo, içando-o para cima sobre pernas cujos músculos tremiam com o esforço de ficar em pé. Eles ficaram a centímetros de distância, a seda do quimono dela se esfregando nas mãos dele. Ele podia sentir o calor da respiração dela na carne viva de sua bochecha arranhada.
— Dê um beijo em mim — disse ele baixinho. As prostitutas nunca conseguem beijar, ele pensou. Isso tornará as coisas diferentes.
Algo brilhou nos olhos de Angelica, mas ela se inclinou sobre Tony, soltando os cabelos e puxando o rosto dele para junto de si. Ele precisou de toda a sua força de vontade para não recuar quando os lábios dela encontraram os seus, a língua dela invadindo-lhe a boca, explorando seus dentes e lábios. Sua vida depende disso, ele dizia a si mesmo. Você tem um plano. Tony se forçou a retribuir o beijo, enfiando sua língua na boca de Angelica, dizendo a si mesmo que havia coisas piores no mundo, e essa mulher tinha feito algumas de suas vítimas anteriores passarem por algumas delas.
Depois do que pareceu o beijo mais longo de sua vida, Angelica se afastou, olhando criticamente para os genitais dele.
— Vou precisar de ajuda — repetiu Tony. — Não tem sido um dia fácil.
— Que tipo de ajuda? — perguntou Angelica, ofegando levemente por lábios entreabertos. Era claro que ela não estava tendo nenhuma dificuldade com a excitação sexual que estava além das possibilidades dele.
— Faça um boquete. É a única coisa que funciona quando estou tendo dificuldade. Já senti sua boca agora; sei que vai ser sensacional. Por favor, quero muito fazer amor com você.
Ele mal tinha terminado de falar, ela já estava de joelhos, com as mãos acariciando os testículos dele. Ternamente, ela levantou o pênis flácido dele e o escorregou para a boca, sem tirar os olhos de seu rosto. Tony estendeu a mão e começou a acariciar-lhe os cabelos. Depois, com o que parecia ser um vagar infinito, ele puxou a cabeça dela para a frente, forçando-a para baixo, os olhos dela longe dele.
Em seguida, reunindo o que restava de suas forças, Tony levantou as mãos e golpeou as algemas na nuca de Angelica.
A pancada a pegou completamente de surpresa e ela o atingiu entre as pernas, o arranhar de seus dentes causando uma dor lancinante em Tony. Ele deixou-se cair para trás, sentido a tensão de seus tornozelos quando eles protestaram contra um movimento que não foram criados para fazer. Quando atingiu o chão, ele se dobrou para a frente e agarrou a cabeça de Angelica batendo-a com força no chão de pedra até que o corpo dela parou de se debater.
Ele se arrastou sobre sua figura debruçada até que seus dedos dormentes conseguissem chegar às correias do tornozelo. Com uma falta de jeito enlouquecedora, Tony lutou para despregar os conjuntos de fivelas que o prendiam na placa de pedra. Depois do que pareceram horas, ele estava finalmente livre. Enquanto tentava pôr-se de pé, seus tornozelos se recusavam ao desafio, virando e o lançando ao chão de novo, causando pontadas excruciantes de dor em suas pernas. Gemendo, ele se arrastou pelo chão até a escada. Já tinha transposto apenas alguns metros quando o corpo no chão grunhiu. Angelica movimentou a cabeça, sangue e muco transformaram seu rosto numa horripilante máscara do Dia das Bruxas. Quando ela o viu, rugiu como um animal ferido e passou a se levantar rapidamente, de modo desajeitado.
• • •
A procura por uma pista para o local de matança de Angelica estava ficando cada vez mais desesperada à medida que o medo e a preocupação com Tony cresciam. Eles tinham esvaziado o conteúdo do armário de arquivos no chão. Cada pedaço de papel era analisado em busca de qualquer pista do local do porão revelado no vídeo. Notas fiscais, garantias, contas e recibos. Carol continuava vasculhando um arquivo de correspondência oficial, esperando encontrar algum detalhe de aluguel ou hipoteca, qualquer coisa relacionada a outra propriedade. Merrick estava trabalhando com perseverança pelos arquivos relacionados à mudança de sexo de Thorpe. Brandon já tivera um alarme falso, defrontando-se com uma pilha de cartas jurídicas relacionadas à propriedade em Seaford. Logo, porém, ficou claro que elas se relacionavam à venda da casa da mãe falecida de Thorpe na cidade.
Foi Merrick quem encontrou o elemento crucial. Ele tinha terminado com os arquivos da mudança de sexo e começado com um maço de cartas diversas, arquivadas em “Imposto”. Quando se deparou com a carta, precisou lê-la duas vezes para ter certeza de que a autossugestão não estava lhe fazendo imaginar coisas.
— Senhor — disse ele, com cautela. — Acho que pode ser isso que estamos procurando.
Merrick passou a carta para Brandon, que leu o papel timbrado da Pennant, Taylor, Bailey e Co., Advogados. “Caro Christopher Thorpe, recebemos uma carta de sua tia, sra. Doris Makins, enviada da Nova Zelândia, autorizando-nos a passar para o senhor as chaves da fazenda Start Hill, Upper Tontine Moor, em Bradfield, W. Yorkshire. Como seus agentes, temos o poder de permitir o acesso à referida propriedade para fins de manutenção e segurança. Por favor, agende com este escritório para recolher as chaves quando lhe for conveniente...”
— Acesso a uma propriedade rural isolada — disse Carol, olhando por sobre o ombro de Brandon. — Tony disse que o assassino poderia dispor disso. E agora ela o tem consigo.
Uma onda de raiva passou por ela, tomando o lugar da lenta queimação de medo que a vinha corroendo desde o momento que eles revelaram os segredos macabros daquele escritório superficialmente normal.
Brandon fechou os olhos por um momento, depois disse, tenso:
— Não sabemos quanto a isso, Carol.
— E mesmo que ela o tenha pegado, ele é um sujeito esperto. Se alguém pode usar sua lábia para se manter fora de encrenca é Tony Hill — interveio Don.
— É melhor prevenir do que remediar — disse Carol, com agressividade. — Onde diabos fica a fazenda Start Hill? E em quanto tempo conseguimos chegar lá?
Tony olhou em volta, desesperado. O suporte de facas à sua esquerda estava a uma altura impossível. Quando Angelica ficou de joelhos, ele engatinhou no banco de pedra e pôs-se de pé. Sua mão se fechou no cabo de uma faca enquanto ela tentava ficar de pé e se lançava na sua direção, ainda gritando como uma vaca separada de seu bezerro.
O peso e o impulso do ataque dela curvaram Tony para trás no banco. As mãos de Angelica lutaram para chegar ao seu pescoço, agarrando sua traqueia com tanta força que luzes brancas começaram a dançar em frente aos seus olhos. Justamente quando pensou que não podia mais suportar, sentiu o jato quente e pegajoso de sangue contra seu estômago, e as mãos de Angelica se tornaram flácidas como um jornal molhado.
Antes que pudesse assimilar tudo, ele ouviu os passos batendo nos degraus de pedra. Como uma visão alucinada do paraíso, Don Merrick invadiu o porão, seguido por John Brandon, com o queixo caído pela cena em frente de si.
— Puta merda — gritou Brandon.
Carol passou pelos dois homens e ficou olhando sem compreender a carnificina diante de si.
— Vocês demoraram — disse Tony ofegante. Quando desmaiou, a última coisa que ouviu foi sua própria risada histérica.
Epílogo
Carol empurrou a porta da ala lateral do hospital. Tony estava escorado numa pilha de travesseiros, o lado esquerdo de seu rosto inchado e ferido.
— Oi — disse Tony, com um meio sorriso desanimado que era o melhor que podia conseguir sem sentir muita dor. — Entre.
Carol fechou a porta atrás de si e sentou-se numa cadeira ao lado da cama.
— Trouxe algumas coisinhas para você — disse ela, deixando um saco plástico e um envelope na colcha.
Tony se esticou para pegar a sacola. Carol fez uma careta por dentro quando viu o bracelete de feridas em torno de seus pulsos inflamados. Ele tirou um exemplar da revista Esquire, uma lata de Aqua Libra, uma lata de pistache e um volume de romances de Dashiel Hammett.
— Obrigado — agradeceu ele, surpreso pelo quanto a escolha dela o tinha emocionado.
— Não tinha certeza do que você gostava — respondeu ela na defensiva.
— Então você sabe adivinhar bem. A policial perfeita para a força-tarefa.
— Embora um pouco lenta para entender — disse Carol, com amargura.
Tony balançou a cabeça numa negativa.
— John Brandon esteve aqui mais cedo. Ele me disse como você desvendou tudo. Não vejo como você poderia ter chegado lá antes.
— Eu devia ter percebido antes que você não ia dar uma de sumido num momento tão crucial. Pensando bem, eu devia ter percebido logo que vi aquele perfil que você podia ser um alvo e tomado medidas para protegê-lo.
— Bobagem, Carol. Se alguém devia ter percebido isso, era eu. Você fez um trabalho muito bom.
— Não, se eu estivesse mais atenta, teríamos chegado lá a tempo de evitar que você tivesse de... fazer o que fez.
Tony suspirou.
— Você quer dizer que teria salvado a vida de Angelica? Para quê? Anos num hospício de segurança máxima? Veja as coisas pelo lado positivo, Carol. Você salvou uma fortuna ao país. Nada de julgamentos caros, nem anos de cárcere e tratamento a serem pagos. Merda, eles provavelmente vão lhe dar uma medalha.
— Não foi isso que quis dizer, Tony. Quero dizer que você não teria de viver sabendo que matou alguém.
— Sim. Bem, não posso fingir que foi o resultado perfeito, mas vou aprender a viver com isso. — Ele forçou um sorriso. — Não interprete isso do jeito errado, mas a primeira coisa que vou fazer quando andar de novo é sair e comprar para você um novo casaco impermeável. Toda vez que olho para essa capa que você está vestindo, tenho vontade de gritar.
— Por quê? — Carol franziu a testa, confusa.
— Você não sabe? Ela estava usando uma capa idêntica quando apareceu à minha porta. Se ela tivesse deixado alguma fibra na cena do crime, a perícia teria presumido que tinha vindo de você.
— Perfeito — concluiu Carol, ironicamente. — Como vão os tornozelos, aliás?
Tony fez uma careta.
— Acho que não vou nunca mais tocar violino. Consegui chegar ao banheiro de muletas, mas tive de sentar na beira da banheira para fazer xixi. Eles estão dizendo que provavelmente vai levar algum tempo para os ligamentos rompidos se curarem. Como foi seu dia?
Carol também fez uma careta.
— Horrível. Acho que você teria ficado à vontade. Você estava certo quanto a manter a fantasia viva. Ela, ele, aquilo, tinha fitas de todas as conversas telefônicas que tivera com suas vítimas, e ela tinha roubado as fitas das mensagens direcionadas a ela dos homens que tinham secretárias eletrônicas. Os nerds levaram um tempinho para decifrar a parte dos computadores. Eles não tinham ninguém que realmente soubesse o que estava fazendo, mas meu irmão Michael veio e resolveu para nós.
Tony deu um sorriso torto.
— Não queria dizer nada antes, mas por um momento de loucura eu realmente cogitei seu irmão.
— Michael? Você está de brincadeira!
Envergonhado, Tony fez que sim.
— Foi quando você propôs a ideia da manipulação dos vídeos no computador. Michael tinha o conhecimento especializado para fazer isso, sem dúvida. Ele está na faixa etária certa, ele mora com uma mulher, mas não num relacionamento sexual, ele tem acesso a todas as informações que o assassino precisaria sobre a forma como a polícia e os peritos trabalham, seu trabalho fica na área geral onde eu esperava que o assassino trabalhasse, e ele estava em condições de saber exatamente o que a polícia estava fazendo e se envolver na investigação. Se não tivéssemos pegado Angelica quando pegamos, eu teria arranjado um convite para jantar para analisá-lo.
Carol balançou a cabeça.
— Entende o que quero dizer com ser lenta para entender as coisas? Eu tinha acesso a todas as mesmas informações que você, e Michael nunca sequer me passou pela cabeça como uma possibilidade.
— Não é tão surpreendente. Você o conhece bem o bastante para saber que ele não é um psicopata.
Carol deu de ombros.
— Conheço mesmo? Não seria a primeira vez que um membro próximo da família, até uma esposa, comete o mesmo erro.
— Geralmente, elas estão iludindo a si mesmas ou são emocionalmente instáveis e dependentes do assassino de algum modo. Nenhuma das duas coisas teria se aplicado nesse caso. — Ele deu um sorriso cansado. — De qualquer forma, diga-me o que Michael descobriu.
— O computador era uma mina de ouro. Ela mantinha seu próprio diário da perseguição e dos assassinatos. Escreveu até o que queria que fosse publicado depois de sua morte. Dá para superar isso?
— Fácil — disse Tony. — Lembre-me de lhe mostrar alguns dos trabalhos acadêmicos que tenho sobre serial killers.
Carol estremeceu.
— Obrigada, mas não precisa. Trouxe uma impressão do diário para você. Imaginei que ficaria interessado. — Ela fez um gesto para o envelope. — Esta aí. Além disso, como você suspeitou, ele tinha gravado os assassinatos em fita, e manipulou as imagens para manter viva a fantasia. Era tétrico, Tony. Ia muito além de um pesadelo.
Tony concordou.
— Não vou dizer que a gente se acostuma, porque a gente nunca se acostuma se quiser ter alguma utilidade neste trabalho. Mas você chega a um estágio onde pode deixar isso trancado bem distante, para que não fique em primeiro plano e acabe destruindo a sua cabeça sem você perceber.
— Ah, é?
— Essa é a teoria. Pergunte-me novamente em algumas semanas — disse ele, com gravidade. — Havia algo sobre como ela escolhia suas vítimas?
— Só um pouco — respondeu Carol. — Ela vinha nisso há meses, antes mesmo que tivesse escolhido a primeira vítima. Angelica trabalhava para a companhia telefônica, era gerente de sistemas de computadores. Ao que parece, costumava trabalhar para uma pequena empresa telefônica privada em Seaford, que lhe deu a experiência para conseguir o trabalho em Bradfield. Ela era o que eles chamam de superusuário do sistema, então tinha acesso a todos os dados ali. Ela usou o computador da companhia telefônica para extrair todos os números residenciais que fizeram ligações regulares para linhas de disque-sexo no ano passado — pausou Carol, deixando a pergunta óbvia no ar.
— Era pesquisa — explicou Tony, com cansaço. — Publiquei um artigo sobre a função das linhas de sexo no desenvolvimento de fantasias entre criminosos sexuais. Alguém devia ter dito a Angelica para não tirar conclusões precipitadas.
Interpretando esse comentário como uma censura velada, Carol prosseguiu:
— Ela fez a correspondência cruzada desses dados com a lista dos eleitores e chegou aos homens que moravam sozinhos. Depois, verificava cada um observando suas casas. Tinha uma ideia clara do tipo físico que buscava. Ela queria alguém com casa própria, uma renda decente e boas perspectivas de carreira. Acredita nisso?
— Completamente — disse Tony, com gravidade. — Sua lógica era que ela nunca os quis matar, só queria amá-los. Mas eles a forçaram a matar porque a traíram. Ela ficava dizendo a si mesma que o que queria de verdade era um homem que fosse amá-la e viver com ela.
Não é o que todos queremos, pensou Carol, mas não disse.
— De qualquer forma, depois que decidia sobre um candidato possível, ela preparava o caminho com as ligações telefônicas eróticas. Ela conseguia fisgá-los assim, por causa de todos vocês, homens sórdidos, que não resistem ao sexo anônimo.
— Nossa — disse Tony, com uma careta. — Em minha defesa, gostaria de dizer que uma grande parte do meu interesse foi puramente acadêmico. Estava interessado na psicologia de uma mulher que fazia o que ela fazia por telefone.
Carol sorriu com os lábios apertados.
— Pelo menos agora sei que estava falando a verdade quando disse que não conhecia a mulher que estava deixando as mensagens sensuais na sua secretária eletrônica.
Tony desviou o olhar.
— E a descoberta de que o homem por quem se sentira atraída estava tendo ereções em sexo por telefone com uma estranha deve ter sido um prazer para você.
Carol ficou silenciosa, sem saber o que dizer.
— Já ouvi as fitas — admitiu ela. — As suas eram muito diferentes das outras. Você estava claramente desconfortável boa parte do tempo. Não que seja da minha conta.
Ainda incapaz de olhá-la nos olhos, Tony falou, com a voz entrecortada e distante:
— Tenho um problema com o sexo. Para ser preciso, tenho problema em conseguir manter uma ereção. A verdade é que apenas parte de mim estava tratando as ligações com interesse profissional. A outra parte estava tentando usá-las como uma espécie de terapia. Sei que isso faz com que eu pareça um pervertido, mas parte do problema dessa profissão é que é praticamente impossível encontrar um terapeuta que possa respeitar e confiar que isso não esteja conectado, de alguma forma, com o mundo em que trabalho. E, por mais que eles aleguem verbalmente o princípio da confidencialidade de seus clientes, sempre relutei em me expor ao risco.
Percebendo a dificuldade que Tony tivera em fazer essa confissão, Carol pegou sua mão e a cobriu levemente com a dela.
— Obrigada por me contar isso. Não sairá daqui. E se isso deixar você melhor, as únicas pessoas que ouviram integralmente as fitas foram eu e John Brandon. Não precisa se preocupar com o que os outros estejam dizendo sobre você pelas suas costas na força.
— Isso é alguma coisa, acho. Então, prossiga. Conte sobre os telefonemas de Angelica para as outras vítimas.
— Era óbvio que os homens pensavam nisso como sexo sem compromisso nem segunda vez. A análise de Angelica foi completamente diferente. Ela se convenceu de que suas respostas significavam que estavam se apaixonando por ela. Infelizmente para os homens, eles decidiram de outra forma. Assim que mostravam algum interesse por outra mulher, eles assinavam seus mandados de execução. Isto é, fora Damien. Ela o matou para nos ensinar uma lição. Você seria a outra lição.
Tony estremeceu.
— Não é de admirar que ela tivesse que ir para o exterior para a operação de mudança de sexo. Os psicólogos do Serviço Nacional de Saúde que ela frequentou devem ter tido uma boa oportunidade com as atitudes e as aspirações dela.
— Ao que parece, eles decidiram que ela não era um candidato apropriado para uma mudança de sexo por causa da falta de percepção de sua sexualidade. Concluíram que era um gay que não conseguia lidar com sua orientação sexual por causa do condicionamento cultural e familiar. Recomendaram acompanhamento psicológico com um terapeuta sexual, em vez de uma mudança de sexo. Houve uma briga feia na época. Ela jogou um dos psicólogos por uma porta de vidro — revelou Carol.
— Uma pena que eles não tenham feito boletim de ocorrência — disse Tony.
— Sim. E você ficaria satisfeito em ouvir que eles certamente não vão acusar você.
— Era de supor que não! Como disse, pense no dinheiro dos contribuintes que economizei. Talvez devêssemos jantar para celebrar quando eu sair daqui — convidou ele hesitante.
— Gostaria disso. Há uma coisa boa no final de tudo isso — disse Carol.
— Que foi?
— Penny Burgess tirou o dia de folga ontem para andar nos Dales. Ao que parece, o carro dela quebrou e ela ficou presa no meio de uma floresta durante a noite. Ela perdeu a coisa toda. Há uma dúzia de créditos de matérias no Sentinel Times esta noite e nenhum é dela.
Tony relaxou e olhou para o teto. Disfarçando o problema, era isso que eles estavam fazendo. Ele suspeitou que Carol sabia disso da mesma forma que ele, e não lamentava o esforço que ela estava fazendo. Mas, por enquanto, ele já tivera o bastante. Fechou os olhos e suspirou.
— Ah, meu Deus, desculpe — disse Carol, levantando-se. — Não pensei bem. Você deve estar exausto. Olhe, estou indo embora. Vou deixar essas coisas para que leia quando se sentir pronto. Posso dar uma passada aqui amanhã, se quiser.
— Acho que gostaria disso — respondeu Tony, exausto. — O cansaço chega a mim em ondas às vezes.
Ele ouviu os passos dela pelo piso e o clique da porta se abrindo.
— Cuide-se bem — disse Carol.
A porta se fechou atrás dela, e Tony se arrastou de volta para cima até ficar reclinado nos travesseiros. Ele estendeu a mão para pegar o envelope. Embora não pudesse lidar com a conversa, a curiosidade dele não o permitiria ignorar o diário de Angelica. Ele retirou um espesso maço de folhas de papel A4.
— Vamos ver do que você é feita de verdade — disse baixinho. — Qual é a história? Como você justifica o que esconde? — Com avidez, ele começou a ler.
Avançar pelas emoções dos psicologicamente perturbados era normalmente uma experiência de exploração rotineira para Tony. Mas essa era diferente, ele percebeu apenas depois de alguns parágrafos. A princípio, ele não conseguiu identificar o que era. A escrita era de nível intelectual mais elevado, mais controlada e mais imediata do que a maioria das divagações deles, mas isso não explica por que a reação dele era tão diferente. Ele avançou mais algumas páginas, igualmente fascinado e repelido. Não era nem mais nem menos obcecado consigo mesmo do que outras coisas que lera, mas havia um prazer horripilantemente incomum. A maioria dos assassinos cujos escritos ele tinha lido exultava muito mais em seu próprio papel, refletindo menos no que tinha feito a suas vítimas e em seus efeitos nelas. Mas aqui estava alguém que se identificava com a mesma intensidade em sua relação com eles. Nem mesmo isso poderia explicar inteiramente por que ele se sentia tão perturbado pelo que estava lendo. O que quer que fosse estava tornando-o mais relutante a continuar à medida que ele lia, o oposto de sua reação normal. Ele vinha interessado, de um modo tão obsessivo, em entrar na cabeça do assassino que o apelidou de Faz-tudo, mas agora que tudo estava disposto diante dele, era como se não quisesse mais saber.
Conforme se forçava a ler, registrando mentalmente as suposições corretas que fizera no perfil, Tony percebeu enfim que o que estava sentindo era pessoal. Essas palavras o tocavam de maneiras que ele nunca vivenciara antes, porque a vida descrita nessas páginas o emocionava de um modo direto que ele nunca conhecera. Aquelas eram as pegadas de seu próprio arqui-inimigo pessoal que ele estava seguindo, e era uma jornada desconfortável.
Ele jogou os papéis para um lado, incapaz de continuar, vendo seu próprio destino espelhado nos corpos fragmentados que Angelica tinha descrito tão meticulosamente. O problema em ser psicólogo era que ele sabia exatamente o que estava acontecendo consigo mesmo. Ele sabia que ainda estava em choque, ainda negando inteiramente a realidade. Embora não conseguisse tirar os eventos do porão da cabeça, ainda havia um distanciamento entre ele e a lembrança, como se ele a estivesse observando de uma longa distância. Um dia o horror da noite anterior voltaria em estéreo, esparramado em sua visão interna em Cinemascope. Sabendo disso, esse torpor era uma bênção. Sua secretária eletrônica já estava, ele sabia, abarrotada de ofertas lucrativas para a história de como o caçador se tornou assassino. Um dia ele teria de contar essa história. Ele esperava ter força para guardá-la para um psiquiatra.
Não era nenhum conforto racionalizar que, tendo sido alvo de um serial killer, estatisticamente era improvável que ele se encontrasse nessa posição de novo. Tudo em que conseguia pensar era nas horas no porão, buscando em sua experiência e conhecimento as palavras mágicas que lhe dariam mais alguns minutos para tentar encontrar a chave da liberdade.
E depois aquele beijo. O beijo da prostituta, o beijo da assassina, o beijo da amante, o beijo da salvadora, tudo misturado numa coisa só. Um beijo de uma boca que o vinha seduzindo havia semanas. A boca cujas palavras tinham lhe dado esperança de um futuro, só para no final deixá-lo perdido nesse lugar. Ele tinha passado a carreira tentando entrar nas mentes daqueles que matam, apenas para acabar como um deles, graças a um beijo de Judas.
— Você venceu, não foi, Angelica? — disse ele baixinho. — Você me queria, e agora me tem.
10
De forma geral, cavalheiros, o mundo é muito sanguinário; e tudo que almejam num assassinato é um derramamento copioso de sangue. Quanto a isso, a exibição espalhafatosa lhes é suficiente. O conhecedor esclarecido, porém, é mais refinado em seu gosto.
Penny Burgess encheu até a borda sua taça de Chardonnay californiano da garrafa que tirou do congelador e voltou até a sala de estar a tempo de ouvir as manchetes do noticiário local da BBC. Nada novo com que se preocupar, a repórter pensou com alívio. Um assalto armado sobre o qual ela podia se atualizar logo que acordasse pela manhã. A polícia ainda estava interrogando um homem em relação aos assassinatos em série de gays, mas nenhuma acusação havia sido feita ainda. Penny bebericou seu vinho e acendeu um cigarro.
Eles teriam que se mexer logo, pensou ela. Pela manhã, precisariam fazer alguma acusação criminal ou deixá-lo ir embora. Até agora, ninguém tinha uma pista da identidade do suspeito, o que era bem impressionante. Todos os jornalistas estavam contando de maneira decisiva com seus respectivos contatos pessoais na polícia, mas dessa vez o reservatório de informações se recusara de forma resoluta a permitir qualquer vazamento. Penny concluiu que era melhor dar uma olhada nas listas de audiência dos juízes leigos pela manhã. Havia uma chance remota de que os policiais tivessem algo bem inócuo para acusar seu suspeito, de modo que pudessem continuar com ele, enquanto vasculhavam em busca das pistas de que precisavam para fazer uma acusação convincente de múltiplos assassinatos.
Quando houve um corte nas notícias para a previsão do tempo, o telefone tocou. Penny se esticou sobre a mesa auxiliar ao lado do sofá e agarrou o aparelho.
— Alô.
— Penny? É o Kevin.
Aleluia, pensou Penny, enquanto se sentava e esmagava o cigarro. Tudo que ela disse, porém, foi:
— Kevin, meu amigo. Como vão as coisas?
Ela vasculhou a bolsa em busca de um lápis e seu caderno.
— Surgiu uma coisa que pode atrair seu interesse — disse o inspetor de polícia com cautela.
— Não seria a primeira vez — respondeu Penny de modo sugestivo. Seus encontros sexuais ocasionais com o muito bem-casado Kevin Matthews lhe oferecem mais que uma posição vantajosa na Polícia Metropolitana de Bradfield. Ele se revelou um dos melhores amantes que ela tivera. Só desejava que o investigador pudesse superar com mais frequência a sua culpa católica.
— Isso é sério — protestou Kevin.
— Também estava falando sério, garanhão.
— Escuta, você quer ou não essa informação?
— Com certeza. Principalmente se for o nome do cara que vocês prenderam como o Assassino de Bonecas.
Ela ouviu a respiração abrupta.
— Você sabe que não posso lhe contar isso. Há limites.
Penny suspirou. Era a história do relacionamento deles.
— Tudo bem, então o que pode me contar?
— Popeye foi suspenso.
— Ele está fora do caso? — perguntou Penny, com a cabeça a mil. Tom Cross? Suspenso?
— Ele está fora do emprego, Pen. Ele foi dispensado enquanto aguarda ação disciplinar.
— Quem fez isso? — Céus, isso era uma história e tanto. O que Popeye Cross tinha aprontado dessa vez? Ela sentiu um pânico momentâneo. E se ele foi pego dando o nome do suspeito para um dos seus concorrentes? Ela quase não ouviu a resposta de Kevin.
— John Brandon.
— Por que diabos ele fez isso?
— Ninguém comentou isso — disse Kevin. — Mas a última coisa que, ele fez, antes de ver Brandon, foi realizar uma busca na casa de nosso suspeito.
— Uma busca legal? — sondou Penny.
— Pelo que sei, ele tinha razões suficientes de acordo com a legislação sobre indícios criminais — contou Kevin com cautela.
— Então o que está acontecendo, Kevin? Popeye plantou provas ou o quê?
— Não sei, Pen — disse Kevin, melancolicamente. — Olhe, eu preciso ir. Se eu ouvir mais alguma coisa, ligo para você, tá?
— Tudo bem. Obrigada, Kev. Você é um amor.
— Bem, falo com você em breve.
A linha ficou muda. Penny largou o telefone de volta na base e se levantou num salto. Andou apressadamente pelo quarto, tirando seu roupão no caminho. Cinco minutos depois, estava correndo os dois andares de escada do seu apartamento para a garagem no subsolo. No carro, verificou o endereço em sua agenda, depois partiu, ensaiando mentalmente o que diria quando chegasse em frente à porta.
Foi Tony quem saiu do abraço primeiro. Seu corpo se retirou num gesto que transformou dez centímetros em um metro.
Tentando manter a leveza das coisas, para encobrir o constrangimento que tinha surgido entre eles, Carol se justificou:
— Desculpe, você parecia precisar de um abraço.
— Não há nada de errado nisso — disse Tony, tenso. — Usamos isso o tempo todo na terapia de grupo.
Ficaram parados por um momento, os olhos sem se encontrar completamente. Depois, Carol se moveu para o lado de Tony, passou uma das mãos pelo braço firme dele e o guiou pelo pátio da universidade.
— Então, quando posso ver esse perfil?
A conversa voltava a um terreno seguro, mas Carol ainda estava próxima demais para ser confortável. Tony podia sentir a tensão dentro de si, como uma fria mão que comprimisse seu peito. Ele se forçou a falar num tom de voz normal e calmo.
— Quero trabalhar mais algumas horinhas agora, e amanhã de manhã cedo me envolvo nisso de novo. Devo ter um esboço pronto para você no início da tarde. Que tal três horas?
— Ótimo. Olhe, você se importa que eu fique por aqui enquanto trabalha? Pode ser bom reler algumas daquelas declarações, e não vou ter paz se voltar para Scargill Street.
Tony dava a impressão de estar em dúvida.
— Acho que sim.
— Prometo não lhe perturbar, dr. Hill — implicou Carol.
— Droga. — Tony estalou os dedos, fingindo decepção. Olhe para você, pensou sarcasticamente. Passando por um ser humano, seguro de todos os movimentos. — Na verdade, não é isso. Só hesitei porque não estou acostumado a trabalhar com outra pessoa na sala.
— Não vai nem perceber que estou aqui.
— Duvido muito — disse Tony. Ela podia interpretar isso como um elogio, mas ele sabia a verdade.
Penny apertou a campainha da casa não geminada, uma imitação do estilo Tudor, numa das ruas mais seletas da zona sul de Bradfield. Mesmo com o salário de superintendente, a casa deveria estar além das posses de Tom Cross. Entretanto, a reputação de sortudo de Popeye tinha aumentado há alguns anos quando ganhou um montante de cinco dígitos na loteria esportiva. A festa que se seguiu ficou na história da polícia. Agora, parecia que ele tinha perdido seu amuleto da sorte em algum lugar pelo caminho.
Uma luz se acendeu no corredor e alguém cambaleava para a porta, transformada numa massa amorfa pelo vitral.
— Mistura de Sexta-feira 13 e Halloween — murmurou Penny, e ouviu a maçaneta girar.
Com um estalo, a porta se abriu, apenas alguns centímetros cheios de suspeita. Penny inclinou a cabeça e sorriu para a forma atrás da porta.
— Superintendente Cross — cumprimentou ela, a nuvem branca de seu hálito encontrando a espiral de fumaça vinda da porta. — Penny Burgess, do Sentinel Times.
— Eu sei quem você é — rosnou Cross, com a pronúncia embaralhada pela bebida evidente nessas poucas palavras. — Que diabos você quer aqui a essa hora da noite?
— Fiquei sabendo que teve um probleminha no trabalho — arriscou Penny.
— Você ouviu errado então, senhora. Agora dê o fora.
— Olhe, vai estar em toda a mídia amanhã. O senhor estará cercado. O Sentinel Times sempre o apoiou, senhor Cross. Estivemos de seu lado durante toda a investigação. Não sou nenhum figurão de Londres vindo aqui chutar cachorro morto. Se o senhor foi afastado, nossos leitores têm o direito de ouvir o seu lado da história.
A porta ainda estava aberta. Se ela havia conseguido dizer isso tudo sem que ele lhe batesse a porta na cara, havia chance de que fosse conseguir extrair algo útil dele.
— O que lhe faz pensar que estou fora do caso? — perguntou Cross, em tom desafiador.
— Fiquei sabendo que foi suspenso. Não sei por qual motivo, mas é por isso que gostaria de ouvir o seu lado da história, antes de recebermos o boletim oficial.
Cross lhe dirigiu um olhar zangado, seus olhos cor de groselha pareciam se injetar ainda mais para fora.
— Não tenho nada a declarar — resmungou ele, sílaba por sílaba.
— Nem mesmo em off? O senhor está disposto a não fazer nada e deixar que eles manchem a sua reputação depois de tudo que fez pela força?
Cross abriu mais a porta e percorreu com o olhar o acesso de veículos até a rua.
— Você está sozinha? — perguntou ele.
— Nem na minha redação sabem que estou aqui. Acabo de ficar sabendo.
— É melhor você entrar por um minuto.
Penny entrou num hall que parecia um catálogo da estamparia Laura Ashley. Na extremidade oposta do corredor, uma porta estava semiaberta; as vozes da televisão, identificáveis mesmo naquela distância. Cross a guiou na direção oposta até uma sala de estar comprida. Quando ele ligou as luzes, os olhos de Penny foram bombardeados por mais objetos decorativos do que seriam encontrados num armarinho. A única coisa que as cortinas, carpetes, tapetes, papéis de parede, tecidos de lã e almofadas espalhadas tinham em comum eram os tons de verde e creme.
— Que bela sala — gaguejou Penny.
— Você acha? Na minha opinião, é uma porcaria. A patroa diz que é o melhor que o dinheiro pode comprar, que é o único argumento que já ouvi para ficar sem um tostão.
Cross resmungou, dirigindo-se ao armário de bebidas. Ele se serviu de um drinque generoso de um decantador. Em seguida, como algo que lhe tivesse ocorrido depois, disse:
— Você não vai querer, tendo que dirigir depois.
— Exatamente — disse Penny, forçando simpatia em sua voz. — Não dá para arriscar com os seus rapazes nas estradas.
— Você quer saber por que aqueles canalhas frouxos me suspenderam? — indagou ele, de modo agressivo, esticando a cabeça para a frente como um jabuti faminto.
Penny fez que sim, sem ousar pegar seu caderno.
— Porque eles preferem seguir o que a porcaria de um doutor afrescalhado diz a ouvir um policial de verdade, é por isso.
Se Penny fosse um cachorro, suas orelhas estariam de pé com atenção. Como não era, ela se contentou em erguer educadamente as sobrancelhas.
— Um doutor? — incentivou.
— Eles trouxeram esse psicólogo bundão para fazer nosso trabalho. E ele diz que o veadinho que prendemos é inocente, então que se danem os indícios. Mas eu sou policial há vinte e tantos anos, e confio nos meus instintos. Pegamos o filho da mãe, posso sentir isso. Tudo que fiz foi tentar me certificar de que ele ficaria atrás das grades até que tivéssemos resolvido todas as malditas questões pendentes.
Cross bateu o copo vazio no armário.
— E eles tiveram a porra da cara de pau de me suspender!
Fabricando provas, então. Embora Penny estivesse desesperada para saber mais sobre o misterioso doutor, ela sentiu que o melhor a fazer era deixar que Cross expressasse seus ressentimentos antes.
— De que eles o acusam? — perguntou ela.
— Não fiz nada de errado — respondeu ele, servindo-se de outro drinque no decantador.
— O problema com o maldito Brandon é que ele vem carimbando papel há tanto tempo que se esqueceu do verdadeiro sentido do trabalho. Instinto. É disso que se trata. Instinto e trabalho pesado. Não um médico de maluco com a cabeça cheia de ideias estapafúrdias como se fosse a merda de um assistente social.
— Quem é esse cara, então? — arriscou Penny.
— Dr. Tony Hill. Um merdinha do Ministério do Interior. Senta em sua torre de marfim e nos diz como pegar bandidos. Ele não entende mais do trabalho da polícia do que eu de física nuclear. Mas o bom doutor diz: “deixe o veadinho ir”, então Brandon responde: “tudo que o mestre mandar faremos todos”. E só porque não concordo, sou expulso aos pontapés.
Cross engoliu mais uísque, com o rosto corado tanto de raiva quanto pela bebida.
— Todo mundo acha que estamos lidando com o mestre do crime, não com uma bicha burrinha que teve um pouco de sorte até agora. Não precisamos desses espertalhões com uma droga de “doutor” antes do nome para capturarmos essa escória. Tudo que se consegue com isso é fazer o veadinho homicida ficar cheio de si.
— É correto dizer, então, que o senhor discorda da linha de investigação? — perguntou Penny.
Cross bufou.
— Pode-se dizer que sim. Guarde minhas palavras: se eles deixarem esse bosta voltar às ruas, vamos estar diante de mais um cadáver.
Para a surpresa de Tony, Carol provou ser fiel à sua palavra. Ela se sentou à mesa dele, tratando de dar conta da pilha de declarações enquanto ele continuava trabalhando em seu computador. Longe de distraí-lo, ele achou a presença dela curiosamente tranquilizadora. Não teve dificuldade em continuar com o perfil de onde havia parado mais cedo.
Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu. Nesse caso, há três sinais principais de escalada de violência. As feridas na garganta se tornaram cada vez mais profundas e precisas. A mutilação sexual evoluiu de alguns cortes hesitantes na região genital à amputação completa. E as marcas de mordidas que inflige, e depois corta, aumentaram em número e profundidade. Apesar disso, ele conseguiu permanecer suficientemente no controle da situação a ponto de encobrir seus rastros.
É difícil avaliar se o nível de tormento causado por ele está aumentando ou não, já que ele parece estar usando diferentes métodos de tortura em cada caso. O fato de que precisa do estímulo desses métodos diferentes é, contudo, por si só, uma forma de aumento progressivo.
A julgar pelo laudo do legista, a sequência de eventos parece ter sido:
1. Captura, usando algemas e amarras em volta dos tornozelos.
2. Tortura, incluindo atos motivados sexualmente como morder e chupar.
3. Golpe fatal na garganta.
4. Mutilação genital posterior à morte.
O que isso nos diz sobre o assassino?
1. Ele tem fantasias sofisticadas e altamente desenvolvidas, que está explorando por meio de seus métodos de tortura.
2. Ele tem um lugar de matança. As quantidades de sangue e outros fluidos corporais gerados por sua atividade não poderiam ser limpos prontamente num ambiente doméstico normal: seria arriscar muito além do que os seus demais comportamentos cautelosos indicam. Quase certamente ele dispõe de um local para apagar seus vestígios dos assassinatos. Esse local deve possuir também energia elétrica, de modo que possa acender luzes e usar uma câmera de vídeo. Devemos procurar algo como uma garagem trancada, um prédio que fornece segurança, e que provavelmente tem água corrente e eletricidade. Pode ser também uma área isolada, evitando assim a possibilidade de os gritos de suas vítimas serem ouvidos. (Ele quase com certeza remove as mordaças enquanto as tortura; quer ouvi-las gritar e implorar por misericórdia.)
3. Ele é obcecado pela tortura e obviamente tem habilidades manuais suficientes para construir seus próprios aparatos de suplício. Ele não parece ter recursos médicos ou de açougueiro, a julgar pela natureza desajeitada e hesitante dos primeiros cortes na garganta e das mutilações genitais.
Tony tirou os olhos da tela e olhou para Carol. Ela estava totalmente absorvida na leitura, com a familiar ruga entre os olhos. Será que ele estaria maluco em recusar o que ela parecia estar oferecendo? Mais do que ninguém com quem ele tivesse se envolvido, ela entenderia as pressões do seu trabalho, os altos e baixos que penetravam a mente de um psicopata. Era inteligente e sensível, e se ela se comprometesse de forma tão dedicada a um relacionamento quanto à carreira, talvez fosse forte o bastante para lidar com os problemas ao seu lado, em vez de usá-los contra ele.
Notando de repente o olhar de Tony sobre ela, Carol ergueu os olhos e lhe dirigiu um sorriso cansado. Naquele instante, ele se decidiu. De jeito nenhum. Já tinha problemas suficientes para lidar com todas as bobagens que povoavam sua cabeça sem permitir que outra pessoa o fizesse refém da sorte. Carol era simplesmente esperta demais para se permitir aproximar.
— Indo bem? — perguntou ela.
— Estou começando a ter uma noção de como é o assassino — admitiu Tony.
— Isso não pode ser muito prazeroso — disse Carol.
— Não, mas é para isso que sou pago.
Carol fez que sim.
— E aposto que é gratificante. E excitante?
Tony sorriu ironicamente.
— Pode-se dizer que sim. Às vezes me pergunto se isso não me torna tão desequilibrado quanto eles.
Carol riu.
— Não só você. Dizem que os melhores policiais na captura de ladrões são os que conseguem entrar na cabeça dos criminosos. Então, se eu quiser ser a melhor no que faço, tenho de pensar como uma criminosa. Isso não significa, porém, que eu queira fazer o que fazem.
Estranhamente confortado pelas palavras de Carol, Tony voltou para sua tela.
O tempo que o assassino passa com suas vítimas pode também fornecer indicadores. Em três dos quatro casos, o assassino parece ter feito contato no início da noite e ter descartado os corpos nas primeiras horas da manhã seguinte. Curiosamente, no terceiro caso, ele passou mais tempo com a vítima, ao que parece mantendo-a viva por quase dois dias. Esse foi o assassinato que ocorreu no Natal.
Pode ser que normalmente ele não consiga passar muito tempo com a vítima devido a outras exigências em sua vida, exigências que foram alteradas no período do Natal. Essas são mais provavelmente relacionadas ao trabalho do que domésticas, embora seja possível que ele esteja num relacionamento com alguém que tenha voltado sozinho para ver a família no Natal, dando-lhe, assim, tempo para permanecer com sua vítima. Outra possibilidade é que o tempo prolongado que passou com Gareth Finnegan tenha sido um presente de Natal bizarro para si mesmo, uma recompensa pelo bom desempenho de seu “trabalho” anterior.
O curto espaço de tempo que se passou entre os assassinatos e o descarte dos corpos sugere que ele não usa bebida nem drogas em nenhum grau significativo durante a tortura e os assassinatos. Ele não arriscaria ser parado pela política por dirigir de modo errático enquanto carregava um corpo no porta-malas, seja vivo ou morto. Além disso, embora pareça ter usado os carros das vítimas ocasionalmente, é claro que ele também possui um carro próprio. O mais provável é que esse seja um veículo razoavelmente novo e em boas condições, já que ele não pode se dar ao luxo de arriscar ser parado numa blitz pela polícia.
Tony clicou em “salvar” em seu computador e relaxou com um sorriso satisfeito. Não era o momento perfeito, mas também não haveria melhor hora para parar. No dia seguinte pela manhã, ele concluiria a detalhada lista de verificações de características que esperaria encontrar no Faz-tudo, e traçaria propostas de possíveis medidas a serem tomadas pelos policiais no caso.
— Terminou? — perguntou Carol.
Ele se virou e a viu recostando-se na cadeira, com a pilha de pastas fechadas.
— Não percebi que você tinha terminado — comentou ele.
— Faz dez minutos, eu não queria atrapalhar seus dedos, que estavam voando na digitação.
Tony odiava que outras pessoas o estudassem como ele as estudava. A ideia de ser um paciente, alvo do exame que ele mesmo fazia, era um desses pesadelos que lhe faziam acordar banhado em suor.
— Tive o suficiente por esta noite — disse ele, fazendo uma cópia do arquivo num disquete que logo colocou no bolso.
— Vou lhe dar uma carona para casa.
— Obrigado — agradeceu Tony, levantando-se. — Nunca consigo fazer o esforço de trazer o carro para a cidade. Para dizer a verdade, não gosto muito de dirigir.
— Não o culpo. O trânsito da cidade é infernal.
Quando Carol estacionou do lado de fora da casa de Tony, ela disse:
— Alguma chance de entrar para uma xícara de chá? Sem falar em fazer xixi?
Enquanto Tony preparava a chaleira, Carol escapava para o banheiro no andar de cima. Desceu as escadas com o som de sua própria voz na secretária eletrônica. Parou na base da escada, espiando enquanto ele se inclinava na mesa, de papel e caneta na mão, ouvindo suas mensagens. Ela aproveitou sua sensação de crescente familiaridade com o rosto e as linhas do corpo dele. A voz dela terminou e a máquina emitiu um bipe. “Oi, Tony, é o Pete”, anunciou a voz seguinte. “Tenho de estar em Bradfield na próxima quinta-feira. Tem jeito de eu dormir aí e tomarmos uma cerveja na quarta à noite? Parabéns por entrar na equipe de investigação do Assassino de Bonecas, aliás. Espero que pegue o filho da mãe.” Bipe. “Anthony, meu querido. Onde você pode estar? Estou deitada aqui, ansiosa por você. Temos um assunto inacabado, gostosão.”
Ao ouvir o som da voz, Tony se levantou e passou a olhar fixamente a máquina. A voz era rouca, sexy, íntima. “Não acho que pode...” Tony estendeu a mão e interrompeu a voz abruptamente.
Isso é que é não estar envolvido com ninguém, pensou Carol amargamente. Ela apareceu no vão da porta.
— Vamos deixar o chá para lá. Vejo você amanhã — disse ela, a voz fria e instável como gelo numa poça de inverno.
Tony se virou, com pânico nos olhos.
— Não é o que parece — deixou escapar sem pensar. — Nunca nem mesmo vi a mulher!
Carol saiu porta afora e percorreu o corredor. Enquanto mexia na fechadura, Tony falou friamente.
— Estou dizendo a verdade, Carol. Embora não seja da sua conta.
Ela se virou de lado. Encontrou um sorriso em algum lugar e disse:
— Você está certo. Não é mesmo da minha conta. Até amanhã, Tony.
O som da porta se fechando reverberou pela cabeça de Tony como uma britadeira.
— Ainda bem que você é psicólogo — disse para si mesmo amargamente, enquanto se deixava cair contra a parede. — Um leigo poderia ter arruinado tudo. Você realmente acredita em tornar o trabalho uma moleza, não é, Hill?
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 011
Quando Gareth me deu um meio sorriso no bonde, tive certeza de que meus sonhos estavam a ponto de se realizarem. Por causa de um incidente inesperado no trabalho, e todas as horas extras que ele fazia, não conseguia segui-lo havia mais de uma semana.
A imagem dele tinha me embalado no sono quando chegava em casa do trabalho em horários fora do normal, e sua voz vibrava ansiosa em meus ouvidos, mas precisava vê-lo em carne e osso. Programei meu despertador para ter tempo suficiente e estar do lado de fora de sua casa antes que ele saísse para o trabalho, mas meu cansaço era tamanho que não acordei quando o aparelho tocou. Na hora que comecei a acordar, percebi que minha única chance era alcançar o bonde de Gareth algumas paradas depois.
O bonde estava entrando na estação quando corri para a plataforma. Vasculhei ansiosamente o primeiro vagão, mas não consegui vê-lo. A ansiedade subia em minha garganta como bile. Depois, vi sua cabeça brilhante; ele estava sentado bem ao lado da porta do segundo vagão. Forcei a passagem pela multidão e consegui ficar bem ao seu lado, meus joelhos se esfregando nos dele. Com o contato físico, ele levantou o olhar. Os cantos de seus olhos se crisparam, e um sorriso passou por sua boca. Sorri de volta e disse:
— Desculpe.
— Sem problema — respondeu ele. — Esse bonde fica mais cheio a cada dia.
Eu queria continuar a conversa, mas dessa vez não pude pensar em nada para dizer. Ele voltou ao The Guardian e tive de me contentar em observá-lo do canto de minha visão periférica enquanto fingia olhar a paisagem do lado de fora da cidade que passava. Não era muito, eu sei, mas era um início. Ele reconheceu minha presença; sabia que eu existia. Agora, podia ser apenas uma questão de tempo.
Shakespeare acertou quando disse: “A primeira coisa a fazer: vamos matar todos os advogados.” Dessa forma, pelo menos, haveria menos mentirosos de um modo geral. Até as palavras rimavam: jurídico, inverídico. Eu não devia ter esperado nada diferente de um homem que, um dia, fala a favor do reclamante e, no outro, a favor do réu.
Estacionei bem na esquina da casa de Gareth, onde podia observá-lo vir para casa sem que me visse, graças à película nas janelas do meu 4x4. A casa dele não tinha sebe, de maneira que eu podia acompanhá-lo do lado de dentro de sua sala de visitas a partir do meu ponto de vista privilegiado.
Eu conhecia seus hábitos a essa altura. Ele chegava em casa logo depois das seis, ia para a cozinha para pegar uma lata de Grolsch, e retornava para a sala, onde bebia sua cerveja e assistia à TV. Depois de cerca de vinte minutos, pegava alguma coisa para comer na cozinha — pizza, comida congelada, batatas assadas. Cozinhar obviamente não era o seu forte. Quando estivéssemos juntos, eu teria de assumir a responsabilidade por essa parte de nossa vida.
Depois das notícias, ele saía da sala, provavelmente para trabalhar em outro cômodo. Eu imaginava livros de direito enfileirados em prateleiras de pinho. Depois, ou ele voltava para a TV mais tarde ou andava até o pub na esquina para tomar algumas cervejas Lager.
Gareth precisava de alguém com quem pudesse dividir sua vida, eu pensava enquanto aguardava que ele voltasse para casa. Eu era a pessoa certa para isso. Gareth seria meu presente de Natal.
Às cinco e quinze, um Volkswagen Golf branco entrou suavemente na vaga, logo depois da casa de Gareth, e uma mulher saiu. Ela se inclinou para dentro do carro e pegou uma pasta abarrotada de arquivos e uma bolsa a tiracolo. Achei sua fisionomia vagamente familiar enquanto andava pela calçada. Pequena, com cabelos castanho-claros puxados para trás num rabo de cavalo bem preso, óculos grandes de tartaruga, vestido preto, blusa branca com um babado de renda no pescoço.
Quando ela virou no portão de Gareth, eu mal pude acreditar. Pelos poucos segundos que levou para chegar à porta, eu tentei me convencer de que ela era sua corretora imobiliária, sua vendedora de seguros, uma colega passando para deixar alguns papéis. Qualquer coisa. Qualquer coisa.
Então, ela abriu a aba da bolsa e tirou uma chave. Minha mente gritou: “não!” enquanto ela inseria a chave na fechadura e entrava. A porta da sala de estar se abriu e ela deixou a pasta ao lado do canapé. Depois, sumiu novamente. Dez minutos mais tarde, estava de volta, enrolada no roupão felpudo branco de Gareth.
Para falar a verdade, estou com Shakespeare e não abro.
Era a época do ano para ser alegre, então me forcei a não deixar minha decepção influenciar meu estado de espírito. Em vez disso, me concentrei em pesquisar algo adequado para a época, algo bárbaro, próprio do bom e velho simbolismo cristão. Não há mesmo muito que se possa fazer com uma manjedoura e cueiros, então me permiti alguma licença artística e parti para a outra extremidade da vida.
A crucificação como forma de punição foi provavelmente emprestada pelos romanos dos cartagineses. (Interessante como se referiam a todos os demais como bárbaros...) Eles a adotaram por volta da época das Guerras Púnicas e aquela era, inicialmente, uma punição reservada apenas a escravos. O que parece apropriado o bastante, já que esse era o único papel para o qual esperava que Gareth servisse agora. Mais tarde, nos tempos do império, a punição tornou-se mais geral, aplicada a qualquer local que cometesse a temeridade de se comportar mal depois que os romanos tinham vindo gentilmente conquistar — desculpe, civilizar — seu povo.
Tradicionalmente, o criminoso era açoitado e forçado a carregar uma cruz pelas ruas até o lugar onde uma estaca alta tinha sido enterrada. Depois, era pregado na cruz e puxado para cima por um sistema de polias. Seus pés eram às vezes pregados, às vezes amarrados na estaca. Ocasionalmente, a morte por exaustão recebia uma mãozinha dos soldados, que quebravam as pernas da vítima, o que devia lhe conceder uma passagem misericordiosa para o estado inconsciente. Para os meus objetivos, porém, decidi optar pela cruz de santo André, mais decorativa. Por um lado, ela aplicaria tensões mais interessantes nos músculos de Gareth. Por outro, caso ele se mostrasse à altura da ocasião, facilitaria muito o acesso.
Curiosamente, a crucificação nunca foi usada como punição para soldados, exceto pelo crime de deserção. Talvez os romanos tivessem a concepção correta no final das contas.
11
Mas quem, nesse ínterim, era a vítima, a cuja morada ele corria? Porque certamente ele não poderia jamais ser tão indiscreto a ponto de navegar num cruzeiro itinerante em busca de alguma pessoa que encontrasse casualmente para assassinar? Ah, não: ele tinha encontrado uma vítima que o satisfazia algum tempo antes, isto é, um antigo e muito íntimo amigo.
Brandon olhava sombriamente para a folha de papel na máquina de escrever. Tom Cross podia estar bem longe da ideia de policial perfeito do chefe de polícia assistente, mas ele sempre pareceu ser bom em capturar bandidos. Comportamentos absurdos como o daquela noite serviam apenas para pôr em dúvida toda a sua carreira. Para quantas outras pessoas Cross havia armado ao longo dos anos, sem que ninguém percebesse? Se Brandon não tivesse, ele mesmo, flexibilizado as regras e levado Tony em sua busca ilícita, ninguém teria duvidado da “prova” que Tom Cross tinha apresentado. Ninguém, a não ser Stevie McConnell, teria sabido que duas das três “descobertas” do superintendente tinham sido plantadas por ele. Só de pensar nas consequências disso, Brandon já ficava com uma sensação de suor frio nas costas.
Cross tinha deixado Brandon sem nenhuma opção a não ser suspendê-lo. A audiência disciplinar que inevitavelmente se seguiria seria dolorosa para todos os envolvidos, mas essa era a menor das preocupações de Brandon. Ele estava muito mais preocupado com o efeito no moral da divisão de homicídios. A única forma de combater isso era assumir pessoalmente a responsabilidade direta pela investigação. Agora, tudo que precisava fazer era convencer o chefe de polícia de que ele estava certo. Com um suspiro, Brandon puxou a última folha de papel da máquina e inseriu outra.
Seu memorando para o chefe superior era breve e direto. Com isso só restava uma tarefa pendente antes que pudesse ir para cama. Suspirando, Brandon olhou para o relógio. Trinta minutos para a meia-noite. Ele empurrou a máquina para longe e começou a escrever numa folha de seu formulário de memorando pessoal. “Para o detetive-inspetor Kevin Matthews. De John Brandon, chefe de polícia assistente (Criminal). Assunto: Steven McConnell. Em seguida à suspensão do superintendente Cross, assumo o comando direto da divisão de homicídios. Não há fundamento para acusar McConnell de nada a não ser agressão. McConnell deve ser posto em liberdade mediante fiança, aguardando a decisão da data de julgamento pela acusação de agressão, e deve comparecer à Scargill Street em uma semana de modo que possamos fazer mais interrogatórios caso surjam indícios adicionais. Tendo em vista sua recusa em fornecer qualquer informação sobre seus contatos, ou qualquer nome de pessoas que possa ter apresentado a Gareth Finnegan e Adam Scott, devemos acompanhar qualquer contato que faça. Um mandado para grampear seu telefone deve também ser obtido, com base em sua conexão com Scott e Finnegan, e o contato que agora sabemos que tinha com Damien Connolly em sua atividade profissional. Nossas investigações dos quatro assassinatos relacionados devem continuar numa frente ampla, embora sugiro que, após sua soltura, mantenhamos McConnell sob vigilância. Haverá uma reunião de policiais graduados sobre o caso amanhã ao meio-dia.” Brandon assinou o memorando e o selou num envelope. Bela maneira de fazer amigos e influenciar as pessoas, ele pensou enquanto descia as escadas até o sargento de plantão. Brandon rezava que Tony Hill tivesse razão sobre Stevie McConnell. Se Tom Cross estivesse certo em seguir seu instinto, não seria apenas o moral do Departamento de Investigações Criminais que estaria em risco.
Carol despencou sobre a mesa de jantar, o queixo descansando em seus braços dobrados, uma das mãos fazendo cócegas na barriga de Nelson.
— O que você acha, rapaz? Ele é ou não é mais um cafajeste mentiroso?
— Purr — respondeu o gato com uma entonação ascendente, os olhos quase fechados.
— Achei que fosse dizer isso. Concordo, sei como os escolher — suspirou Carol. — Você tem razão, eu devia ter mantido distância. É o que acontece quando a gente precisa tomar a iniciativa. Você leva o fora. Eles geralmente não veem de um jeito tão estranho, no entanto. Pelo menos agora eu sei por que ele ficava se retraindo. Melhor sem ele, gato. A vida já é dura o suficiente sem eu ser a outra.
— Mrrr — concordou Nelson.
— Ele deve achar que sou uma perfeita idiota, esperando que eu acredite que alguém completamente desconhecido deixa mensagens daquele tipo em sua secretária eletrônica.
— Raurr — reclamou Nelson, rolando sobre as costas, batendo nos dedos de Carol com as patas.
— Muito bem, então você também acha isso ridículo. Mas o homem é psicólogo. Se ele fosse inventar alguma coisa para explicar o fato de que mentiu para mim, tornaria a alegação muito mais plausível do que chamadas telefônicas esquisitas. Tudo que ele tinha de dizer era que se tratava de alguém com quem ele tinha terminado, mas que se recusava a entender o recado.
Carol esfregou os olhos, espantando o sono. Bocejou e levantou-se num movimento lânguido.
A porta do quarto de empregada que Michael usava como escritório se abriu e ele ficou parado na entrada.
— Achei que tinha ouvido vozes. Você podia conversar comigo, sabe. Pelo menos, eu respondo.
Carol deu um sorriso cansado.
— Nelson também. Não é culpa dele que a gente não fale a língua dos gatos. Não queria incomodar você; percebi que estava trabalhando.
Michael andou até o armário de bebidas e serviu-se de uma pequena dose de uísque.
— Estava só testando o jogo, tentando identificar os bugs no que desenvolvemos até agora. Nada de mais. Como foi o seu dia?
— Nem me pergunte. Eles nos mudaram para a Scargill Street. O lugar é um buraco. Imagine voltar a fazer seus cálculos num ábaco, e você poderá imaginar o meu ambiente de trabalho atual. A atmosfera é uma merda, e Tony Hill é comprometido. Fora isso, tudo está maravilhoso.
Carol seguiu o exemplo de Michael e se serviu de um drinque.
— Quer conversar a respeito? — perguntou ele, sentando-se no braço de um dos sofás.
— Obrigada, mas não.
Carol engoliu seu drinque de uma vez, tremeu com o efeito da bebida e disse:
— Trouxe uma leva de fotos, aliás. Quando você pode dar uma olhada nelas?
— Arrumei algum tempo no computador que tem o software amanhã à noite. Está bom para você?
Carol pôs os braços em volta de Michael e lhe deu um abraço.
— Obrigada, maninho.
— O prazer é meu. — Ele devolveu o abraço. — Você sabe como gosto de um desafio.
— Estou indo dormir — avisou ela. — Foi um dia longo.
Assim que Carol desligou a luz, sentiu o baque familiar de Nelson pousando ao pé da cama. Era reconfortante sentir seu calor em suas pernas, embora não fosse substituto para o corpo que ela esperara mais cedo, naquela mesma noite. É claro, logo que sua cabeça bateu no travesseiro, seu sono desapareceu. A exaustão ainda estava presente, mas a cabeça raciocinava a mil. Quisera Deus que, até a tarde de amanhã, o constrangimento entre ela e Tony já tivesse evaporado. A pontada de humilhação ainda estaria lá, mas ela era adulta e profissional. Agora que sabia que ele estava fora de alcance, ela não o colocaria numa posição difícil novamente; e agora que ele sabia que ela sabia, talvez pudessem relaxar. Seja como for, o perfil devia fornecer terreno neutro mais que suficiente entre eles. Ela mal podia esperar para ver o que ele apresentaria.
No outro lado da cidade que dormia, Tony também estava deitado em sua cama, olhando para o teto, traçando mapas rodoviários imaginários nas fissuras em volta da roseta de gesso. Ele sabia que não havia sentido em desligar a luz de sua luminária ao lado da cama. O sono lhe fugiria e, na escuridão, ele começaria a sentir o lento estrangulamento da claustrofobia se aproximando. Contar carneiros nunca lhe interessou; nas lentas vigílias da noite era a hora em que Tony se tornava o próprio terapeuta.
— Por que você teve de ligar esta noite? Eu gosto de Carol Jordan. Sei que não a quero em minha vida, mas não queria magoá-la tampouco. Ouvir sua adulação na secretária eletrônica deve ter doído como um tapa na cara, depois que eu disse que não havia ninguém em minha vida — murmurou ele. — Uma pessoa de fora diria que mal nos conhecemos, que tudo que aconteceu esta noite foi um exagero. Mas as pessoas de fora não entendem a conexão, a intimidade que surge do nada quando vocês estão trabalhando em contato direto na busca de um criminoso, quando o tique-taque do relógio leva embora a vida da próxima vítima.
Ele suspirou. Pelo menos, ele não tinha deixado escapar a única coisa que poderia ter convencido Carol de que ele não estava mentindo, a verdade que ele mantinha tão cuidadosamente trancada dentro de si. Era isso que ele dizia a seus pacientes? “Desabafe. Não importa o que seja, falar será o primeiro passo para eliminar a dor.”
— Que monte de conversa fiada — disse ele amargamente. — É só mais um dos truques na cartola mágica, criados para legitimar minha curiosidade lasciva, adaptados para libertar as mentes perturbadas dos desajustados que são levados a realizar suas fantasias de uma forma à qual a sociedade não pode se adaptar. Se eu contasse a Carol a verdade, dissesse a palavra com “i”, isso não teria levado a minha dor. Teria feito apenas com que eu me sentisse um merda ainda maior. Tudo bem para velhos serem impotentes, mas homens da minha idade que não conseguem uma ereção são uma piada.
O telefone tocou, assustando-o. Ele se virou, procurando o aparelho.
— Alô — atendeu, com a voz hesitante.
— Anthony, finalmente. Ah, como senti sua falta!
Sua onda de raiva da voz lânguida e rouca morreu tão rápido quanto tinha se espalhado. Qual era o sentido de ficar irado com ela? Angelica não era o problema. O problema era ele.
— Recebi sua mensagem — disse ele, resignado. Ela não tinha causado o constrangimento com Carol; não haveria motivo para embaraço algum se ele não fosse um exemplo patético de homem. Não fazia sentido sequer pensar em relacionamentos com mulheres simpáticas e normais. Ele teria estragado tudo com Carol, do mesmo jeito que sempre tinha estragado com outras mulheres, assim que elas se aproximavam. O melhor que podia esperar era sexo por telefone. Pelo menos aquilo gerava uma espécie de igualdade; permitia que os homens fingissem não só orgasmo mas também a ereção.
Angelica deu uma risadinha.
— Achei que ficaria contente em receber meu recado quando voltasse para casa. Espero que não esteja cansado demais para um pouco de diversão.
— Nunca estou cansado demais para esse tipo de diversão — incentivou Tony, engolindo a própria repugnância que ameaçava tomá-lo. Pense nisso como terapia, disse a si mesmo. E ao relaxar, permitiu que a voz fluísse por ele, com a mão passeando do seu peito até a virilha.
Os faxineiros estavam fofocando no elevador quando Penny Burgess surgiu no terceiro andar do escritório do Bradfield Evening Sentinel Times. Ela andou até a sala da redação, acendendo as luzes ao passar, cantarolando com os lábios fechados uma melodia desafinada. Jogou a bolsa na mesa ao lado do computador e se conectou. Executou os comandos que a levaram ao banco de dados da biblioteca e pressionou a tecla de “pesquisa”. Eram oferecidas cinco opções: 1. Assunto; 2. Nome; 3. Por linha; 4. Data; e 5. Fotos. Penny clicou em 2. No prompt do “sobrenome”, ela digitou “Hill”. No prompt do “nome”, ela teclou “Tony”; e como “título”, ela inseriu “Dr.”. Depois se recostou na cadeira e esperou enquanto o computador buscava entre os gigabytes de informações armazenadas em sua imensa memória. Penny abriu o maço de cigarros e puxou o primeiro do dia. Tinha dado apenas algumas tragadas quando a tela piscou “Encontrados (6)”.
A repórter acessou os seis itens e os exibiu na tela. Eles apareceram por data, em ordem reversa. O primeiro era um recorte de dois meses atrás do Sentinel Times, escrito por um colega jornalista. Embora o tivesse lido na época, ela havia esquecido completamente dele. Enquanto relia, Penny assobiava baixinho.
DENTRO DA MENTE DE UM ASSASSINO
O homem que o Ministério do Interior escolheu para liderar a caçada de serial killers falou hoje sobre o último assassinato que aterrorizou a comunidade gay da cidade.
O psicólogo forense Tony Hill faz, há um ano, um grande estudo, com financiamento do governo, que levará à criação de uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais similar à unidade do FBI que figurou no filme O silêncio dos inocentes.
Dr. Hill, de trinta e quatro anos, foi psicólogo clínico-chefe no Blamires Hospital, o sanatório de segurança máxima que abriga os criminosos mais insanos e perigosos do Reino Unido, incluindo o assassino em massa David Harney e o serial killer Keith Pond, o Maníaco da Autoestrada.
Dando seu veredicto, dr. Hill esquivou-se: “Não fui convocado pela polícia para oferecer consultoria em nenhum desses casos, então não sei mais do que seus leitores sobre eles.”
Ou o dr. Hill vinha mentindo para o colega de Penny, ou seu envolvimento formal com o caso surgiu depois da entrevista. Se esse fosse o caso, Penny conseguia ver como explorá-lo de uma forma que interessaria seu editor. Ela conseguia visualizar a manchete agora. “POLÍCIA SEGUE A PISTA DO BEST NA CAÇADA DO ASSASSINATO.” Ela passou os olhos rapidamente pelo resto do artigo. Não lhe disse nada que ela já não soubesse, embora estivesse interessada que o dr. Hill tivesse especulado sobre as discrepâncias no terceiro assassinato poderem significar a existência de dois assassinos nas ruas. Essa era uma ideia que parecia ter desaparecido sem deixar rastros. Uma boa pergunta para Kevin da próxima vez que ela conseguisse estabelecer uma conversa por telefone com ele.
O recorte seguinte era do The Guardian, e anunciava a criação do programa do Ministério do Interior para desenvolver uma força-tarefa nacional para lidar com criminosos em série. O projeto teria sede na Bradfield University. O artigo lhe fornecia mais informações sobre o histórico do dr. Hill, e ela anotou apressadamente os detalhes de sua carreira no caderno. Não é burro, esse cara. Penny teria de ter cuidado ao lidar com ele. Ela bateu nos dentes com a caneta e se perguntava por que o Sentinel Times não tinha feito uma matéria especial sobre o estudo, com um perfil do dr. Hill. Talvez eles tivessem tentado e recebido um não. Ela teria de verificar com seus colegas da seção Especiais.
Os dois próximos recortes eram de um tabloide de circulação nacional, uma série em duas partes sobre serial killers que foi programada para coincidir com o lançamento de O silêncio dos inocentes. O dr. Hill foi citado nos dois artigos, falando em termos gerais sobre o trabalho dos criadores de perfis criminais psicológicos.
Os dois últimos textos tratavam de um de seus mais importantes pacientes, Keith Pond, o chamado Maníaco da Autoestrada. Pond tinha sequestrado cinco mulheres das áreas de serviço da rodovia, depois as estuprado de modo selvagem e as assassinado. No momento do julgamento, apenas dois dos corpos haviam sido encontrados. Mas, após a terapia prolongada com o dr. Hill, Pond revelara o paradeiro dos outros três corpos. O dr. Hill foi saudado como um operador de milagres pela família enlutada de uma das vítimas. Um dos dois artigos havia tentado um perfil do psicólogo Hill, mas eles tinham informações escassas para prosseguir. Como de hábito, o jornalista não deixou que isso fosse um empecilho para uma boa história.
Tony Hill, que nunca se casou, dedica-se ao seu trabalho. Um ex-colega disse: “Tony é um viciado em trabalho, casou-se com o emprego.
“Ele é totalmente motivado pelo desejo de compreender o que interessa aos seus pacientes. Provavelmente não há outro psicólogo no país que tenha a mesma habilidade para entrar na mente perturbada de criminosos e descobrir o que os faz agir como agem.
“Às vezes, eu achava que ele se identifica mais com os assassinos em massa do que com as vítimas.”
O recluso dr. Hill mora sozinho e tem fama de não socializar com os colegas. Fora estudar as mentes dos serial killers, ao que parece, o único passatempo a que se permite é caminhar nas montanhas. Nos fins de semana de folga, ele regularmente vai até o Parque Nacional Lake District ou o Yorkshire Dales e caminha pelas colinas.
— Parece bem divertido — disse Penny em voz alta, escrevendo apressadamente em seu bloco. Ela retornou ao menu principal, onde havia selecionado a quinta opção. Novamente, digitou o nome de Tony para uma pesquisa de imagem. Os bancos de dados revelaram que havia uma foto no arquivo. Penny a acessou e olhou fixamente o rosto que aparecia na tela. — Achei! — exclamou ela. Ela só o tinha visto uma vez antes, mas agora sabia quem era o novo escudeiro de Carol Jordan.
Penny se reclinou no assento, saboreando seu terceiro cigarro, e percebeu que a redação estava começando a encher. Uma rápida ligação, depois ela podia se reservar um tempo para ter o prazer de um prato de fritura na cantina. Estendendo a mão e pegando o telefone, discou o número residencial de Kevin Matthews. Ele atendeu no segundo toque.
— Detetive Matthews — murmurou sonolentamente.
— Oi, Kev, é Penny — disse ela, saboreando o silêncio espantado que saudou seu anúncio. — Desculpe incomodá-lo em casa, mas pensei que você preferiria responder às minhas perguntas aí em vez de no escritório.
— Q-Quê? — gaguejou ele. Depois, abafando o fone. — Sim, é trabalho. Volte a dormir, amor.
— Há quanto tempo o dr. Tony Hill está na equipe?
— Como você ficou sabendo disso? Merda, isso era para ser altamente sigiloso — explodiu ele, com o nervosismo se transformando em raiva.
— Tsc, tsc, Kev. Ela nunca vai voltar a dormir se você gritar assim. Não importa como sei, só fique agradecido de poder negar com a mão no coração que veio de você. Há quanto tempo, Kev?
Ele limpou a garganta.
— Só alguns dias.
— Foi ideia de Brandon?
— Tudo bem. Olhe só, realmente não posso falar disso. Deve ser mantido em segredo.
— Ele está fazendo um perfil, não é?
— O que você acha?
— Trabalhando com Carol Jordan? É a queridinha de Brandon, não é?
— Ela é a intermediária. Olhe, eu preciso ir. Falo com você sobre isso depois, está bem?
Kevin tentou parecer ameaçador, mas não conseguiu.
Penny sorriu e expirou devagar toda a fumaça que tinha na boca.
— Obrigada, Kev. Devo a você um favor muito especial.
Ela colocou o fone de volta no gancho, limpou a tela e abriu um arquivo de artigo.
“Exclusivo. De Penny Burgess”, digitou ela, deixando para lá o café da manhã. Ela tinha coisa muito mais importante para fazer.
Tony estava de volta em frente à sua tela às oito e meia. Em vez da culpa que esperava sentir por seu encontro erótico, ele se sentiu revigorado. Permitir-se ter satisfação com Angelica tinha, de alguma forma, o liberado e relaxado. Por mais surpreendente que achasse que isso era naquelas circunstâncias, ele realmente se excitara enquanto as palavras dela o guiavam num encontro sexual imaginativo e escabroso. Ele não tinha, na verdade, conseguido sustentar sua ereção a ponto de chegar ao orgasmo, mas como não havia ninguém presente para compartilhar seu fracasso, não parecia importar. Talvez mais algumas ligações de Angelica fossem tudo o que ele precisava para contemplar a realidade com algo mais brando do que o pânico irremediável.
Mas não no trabalho. O que ele precisava agora era completa paz. Ele já tinha instruído sua secretária para não transferir nenhuma ligação, e desligou a campainha de sua linha direta. Nada nem ninguém ia interromper o fluxo de seus pensamentos. Sua sensação de satisfação continuava enquanto lia o trabalho que fizera no dia anterior. Ele estava pronto agora para pôr sua carreira em risco e declarar por escrito suas conclusões sobre o Faz-tudo. Tony se serviu de uma xícara de café da garrafa térmica e respirou fundo.
Estamos lidando com um serial killer que certamente matará novamente, a menos que seja pego. O próximo homicídio acontecerá na oitava segunda-feira após a morte de Damien Connolly, a não ser que algum gatilho acelere isso. O que talvez pudesse levá-lo ao descontrole e provocar uma escalada extrema seria algum evento catastrófico que causasse a perda do que estiver usando para manter a fantasia viva. Como, por exemplo, se ele estiver usando vídeos, o dano a suas fitas poderia ocasionar a perda do controle. Outra situação possível é que uma pessoa inocente seja acusada dos assassinatos. Isso seria uma afronta tão grande à ideia que tem de si mesmo que ele poderia cometer seu próximo assassinato antes do cronograma.
Acredito que é provável que ele já tenha selecionado sua próxima vítima e esteja se familiarizando com os movimentos e o estilo de vida dela. Provavelmente, o escolhido é um homem desconhecido da comunidade gay. Ele será, para todos os efeitos, um homem hétero vivendo um estilo de vida heterossexual.
O fato de que sua última vítima era um policial é perturbador. É muito provável que essa tenha sido uma decisão deliberada, e não um acidente ou coincidência. O assassino está mandando uma mensagem para a investigação. Ele está exigindo que o notemos, que o levemos a sério. Ele está também nos dizendo que ele é o melhor; ele pode nos pegar, mas nós não podemos pegá-lo. Há uma teoria de que um comportamento desses é uma espécie de convite à captura, mas não acredito que seja isso que esteja acontecendo nesse caso.
É possível que seu próximo alvo seja também um policial, talvez mesmo alguém que esteja trabalhando na investigação. Isoladamente, isso não será motivo suficiente para que o assassino o escolha, ele deve também se encaixar no critério de vítima que delineou em sua cabeça a fim de que o assassinato assuma seu significado completo para ele. Eu recomendaria enfaticamente que qualquer policial que se enquadre no perfil da vítima aplicasse vigilância extra em todos os momentos, observando qualquer veículo suspeito estacionado próximo à sua casa e verificando se está sendo seguido na ida e na volta do trabalho e dos eventos sociais.
A perseguição e a preparação servem dois objetivos principais para o assassino: reduzem os possíveis fatores de surpresa quando ele vier a realizar o assassinato, e abastecem sua fantasia, que é um aspecto crucial na vida dele.
Nosso assassino é provavelmente um homem branco, com idade entre vinte e cinco e trinta e cinco anos. É esperado que ele tenha pelo menos um metro e setenta e oito de altura, seja bem musculoso, com considerável força na parte superior do corpo. Apesar disso, provavelmente tem uma imagem ruim do próprio corpo. Ele pode fazer exercícios numa academia, mas, se puder pagar, ele preferirá usar seu próprio equipamento na privacidade de seu lar. Ele é destro.
Ele não parece um marginal. Sua aparência é absolutamente comum. Tem um comportamento que não levanta suspeitas. É o tipo de sujeito que não chamaria atenção, e certamente não se suspeitaria que fosse um assassino de várias vítimas. Ele pode ter tatuagens e/ ou cicatrizes autoinfligidas, mas essas provavelmente são bem discretas.
O assassino também é bastante familiarizado com Bradfield, e seu conhecimento de Temple Fields é claramente atual. Isso implica alguém que vive e, provavelmente, trabalha na cidade. Não acho que seja um visitante casual, nem um ex-morador que simplesmente volta aqui para matar. Não há padrão geográfico óbvio nas casas ou lugares de trabalho de suas vítimas, exceto que todas vivem em razoável proximidade de uma linha de bonde. A casa da primeira vítima é, muito provavelmente, mais próxima em termos geográficos do lugar em que o assassino mora ou trabalha. Analisando o histórico geral e o estilo das vítimas, e observando o princípio de que ele está mantendo esse tipo de ambiente que conhece e compreende, eu suspeitaria que o assassino mora numa propriedade própria em vez de alugada, uma casa e não um apartamento, uma área do subúrbio de propriedades similares às das vítimas. É provável que as casas das vítimas valham mais do que a do assassino; esses são homens que, de certa forma, são uma aspiração para ele.
É presumível que tenha inteligência acima da média, embora não esperaria que tivesse um diploma universitário. Seu histórico escolar é provavelmente irregular, com pouca frequência e notas muito variadas. Ele nunca cumpriu seu potencial ou as expectativas que outras pessoas têm dele. A maioria dos serial killers tem um histórico profissional ruim, pulando de emprego em emprego, sendo despedido com mais frequência do que pedindo demissão. Mas esse homem exibe um nível de controle extraordinário na realização de seus assassinatos, de modo que esperaria que ele fosse capaz de manter uma ocupação fixa, possivelmente até uma função com algum grau de responsabilidade e planejamento. Contudo, não acho que esse trabalho envolva muito contato com outros seres humanos, já que seus relacionamentos com outras pessoas são caracterizados por sua natureza deficiente. Suas vítimas são todos funcionários administrativos, com a exceção pouco importante de Damien Connolly, que indica em minha opinião que ele provavelmente opera em um ambiente de trabalho similar. Eu não ficaria surpreso se o encontrasse numa função relacionada à tecnologia, possivelmente informática. Essa é uma área de emprego onde as pessoas podem manter bons empregos sem ter habilidades interpessoais significativas. Os empregados que não se adaptam são aceitos no mundo estranho dos engenheiros de software; na verdade, eles costumam ser muito valorizados uma vez que é difícil substituí-los. Duvido que nosso assassino seja uma pessoa de vanguarda criativa no mundo do software, mas não me surpreenderia que ele fosse gerente de sistemas ou desenvolvedor de programas. Ele provavelmente não se dá bem com seus chefes, sendo inclinado a ser insubordinado e argumentador.
Está na classe média em relação ao seu trabalho, suas aspirações, suas roupas e sua casa, embora possa pertencer à classe trabalhadora de origem. Ele é bom com as mãos, mas estou inclinado a pensar que não está numa ocupação manual, nem que seja por causa do alto grau de planejamento envolvido nesses assassinatos.
Socialmente, ele se sente isolado. Pode não ser necessariamente um ermitão, mas não se conecta às pessoas. Ele se sente alguém de fora. É provável que tenha desenvolvido habilidades sociais superficiais, mas, de alguma forma, seu comportamento sempre é inadequado. Ele é o que ri alto demais, o que pensa que está fazendo piadas quando está na verdade sendo profundamente ofensivo, o que às vezes parece ter viajado num devaneio particular. É aquele que não tem, na verdade, nenhum amigo; que se integra ao grupo, mas nunca desenvolve certo grau de intimidade. Ele tem pouca percepção de suas deficiências sociais. Prefere ficar sozinho com suas fantasias, porque, quando os outros estão envolvidos socialmente, não pode controlar completamente o que ocorre em torno de si.
É perfeitamente possível que não viva sozinho. Se ele morar com alguém, deve ser com uma mulher e não com um homem. Como os homens o atraem sexualmente, e ele não pode aceitar isso, não estará sob nenhuma condição vivendo com um homem, nem mesmo em uma relação platônica. Seus relacionamentos com as mulheres podem muito bem ser sexuais, mas ele não será um amante entusiasmado ou bem-sucedido. Seu desempenho será apenas adequado, e ele pode vivenciar problemas em conseguir e/ou manter uma ereção. Contudo, não fica impotente durante a execução de seu crime, e quase com certeza consegue realizar um ato sexual completo de algum tipo com suas vítimas.
Tony interrompeu o trabalho e olhou pela janela. Às vezes parece o ovo e a galinha. Ele tinha empatia por seus pacientes porque também conhecia as frustrações e a raiva da impotência, ou seus problemas sexuais aumentaram justamente para que pudesse desempenhar melhor seu trabalho?
— Isso importa? — disse ele com impaciência. Correu uma das mãos pelo cabelo e concentrou-se novamente na tela.
Se ele estiver morando com uma companheira, ela quase com certeza não terá nenhuma suspeita de que seu namorado é o assassino. É, portanto, bem provável que seu primeiro instinto seja o de lhe fornecer um álibi, já que, em seu coração, ela sabe que não poderia ser ele de modo algum. Qualquer suspeito cujo álibi tenha sido fornecido unicamente por namoradas ou esposas não deve, portanto, ser eliminado com base apenas nisso.
Ele transita em carro próprio, que está em boas condições (ver anteriormente). E nas noites de segunda-feira, fica livre para circular sem impedimento ou obrigação de estar em algum lugar.
Sua personalidade é altamente estruturada, um maníaco por controle. Do tipo que tem um chilique porque sua namorada esqueceu de comprar seu cereal favorito. Ele acredita que tem boas razões para fazer o que faz; acha que, com seus crimes, na verdade, tudo que está realizando são as ações que todas as outras pessoas querem, mas para as quais lhes falta coragem. Ele é muito melindroso e sente que o mundo conspira contra ele; como é possível, uma vez que é tão brilhante e talentoso, que não esteja administrando a empresa, em vez de fazer esse trabalho reles? Como é possível, já que é tão charmoso, que não esteja saindo com algum supermodelo? A resposta é: o mundo está decidido a trapacear contra ele. Ele possui a visão egocêntrica da criança mimada e não tem percepção do impacto de seu comportamento nos outros. Tudo que vê é a forma como os eventos o afetam.
Ele vive em constante fantasia e devaneio. Suas fantasias são construídas de modo elaborado e parecem mais significativas para ele do que a realidade. Seu mundo de fantasia é onde ele se refugia para tomar decisões e também sempre que encara qualquer tipo de contratempo ou obstáculo em sua vida cotidiana. Suas fantasias provavelmente envolvem violência e sexo, podendo também ser fetichistas. Essas fantasias não permanecem estáticas; elas perdem seu poder e precisam continuar sendo desenvolvidas.
Ele tem certeza de que pode realizar suas fantasias sem que ninguém seja capaz de impedi-lo. Tem suprema confiança de que é mais esperto do que a polícia; não está planejando para o dia em que for pego. Ele acha que é esperto demais para isso. Ele foi muito cuidadoso em apagar os vestígios forenses, que é o motivo pelo qual, como já descrevi à inspetora Jordan, estou convencido de que o fragmento de pele de veado russo deixado na cena do quarto assassinato é uma cortina de fumaça do tipo mais flagrante. Ele está quase certamente mantendo um olhar atento à investigação, e sem dúvida vai morrer de rir enquanto tentamos descobrir a origem do couro. Mesmo que a polícia o rastreie, suspeito que quando encontrarmos o assassino não haverá nada entre suas posses que vá ligá-lo remotamente ao couro.
Se ele tiver algum tipo de ficha criminal, é provável que seja juvenil. Os possíveis crimes são: vandalismo, pequenos incêndios, roubo, crueldade com crianças mais jovens ou animais, agressão contra professores. Contudo, em algum momento determinado, nosso assassino aprendeu um enorme autocontrole, e supostamente não tem registro criminal como adulto.
Ele se mantém atualizado da investigação o máximo possível e prospera com a publicidade, contanto que ela pareça lhe conceder o glamour e o respeito a que almeja. É interessante que a sepultura de Adam Scott tenha sido profanada logo após o segundo assassinato. Isso pode ter sido uma tentativa de alavancar o perfil de seus crimes. Ele é possivelmente alguém que tem contatos com policiais e, caso tenha, se esforça para usar isso como forma de obter informações sobre o andamento da investigação. Qualquer policial que sentir que está sendo estimulado a fornecer informações dessa maneira deve ser encorajado a relatar isso aos oficiais superiores na divisão de homicídios.
Tony salvou seu arquivo e leu o texto inteiro novamente. Alguns dos psicólogos com que tinha trabalhado incorporavam grandes blocos de histórico sobre os prováveis antecedentes da infância do assassino, bem como uma lista de verificação de comportamentos que o assassino poderia ter exibido enquanto estava crescendo. Tony não. Não havia tempo suficiente para esse tipo de informação, uma vez que um suspeito estava pronto para o interrogatório. Tony nunca se esquecia de que os policiais com quem ele lidava estavam nas ruas na linha de frente. Homens como Tom Cross, que não dava a mínima ao tipo de infância terrível que o suspeito tivesse suportado.
Pensar no superintendente aguçou o olhar crítico de Tony. Convencê-lo do valor do perfil seria um pesadelo.
A primeira edição do Bradfield Evening Sentinel Times chegou às ruas pouco antes do meio-dia. Os que procuravam ansiosamente apartamentos, empregos e promoções pegaram os primeiros exemplares com os vendedores de rua sem sequer olhar o que estava na capa. Iam direto à seção de classificados, esperando que atendessem suas necessidades e mantendo a primeira e a última páginas visíveis para o proveito dos passantes. Qualquer um, curioso o bastante para olhar as manchetes garrafais, teria lido “CHEFE DA CAÇADA AO ASSASSINO DISPENSADO. Exclusivo, de nossa correspondente criminal, Penny Burgess.” Mais abaixo na página, a coluna inferior da direita era tomada por uma fotografia de Tony com os dizeres “POLICIAIS DE HOMICÍDIOS SEGUEM A PISTA DO BEST. Exclusivo, de Penny Burgess.” Se eles tivessem ficado intrigados o bastante para comprar seu próprio exemplar, teriam lido um subtítulo que dizia: “Psicólogo famoso integra a caçada ao Assassino de Bonecas, veja a matéria na p. 3.”
Num escritório bem acima da confusão das ruas de Bradfield, alguém olhava fixamente o jornal, com a excitação revolvendo dentro de si. As coisas estavam indo muito bem. Era como se a polícia estivesse concretizando suas próprias fantasias, provando que desejos realmente podem se tornar realidade.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 012
O mundo todo estava nas ruas da cidade, comprando presentes de Natal que ainda estariam pagando durante a Páscoa. Idiotas. Eu estava na minha masmorra, garantindo que teria um Natal inesquecível. Muito embora fosse ser o último de Gareth neste mundo, eu tinha certeza de que todos os detalhes estariam tão claramente gravados em sua memória quanto em minha fita de vídeo.
Planejei nosso encontro com todo o cuidado e precisão que pude. A chegada da piranha significava que eu não poderia arriscar capturá-lo em casa como havia feito com Adam e Paul. Teria de criar planos alternativos.
Enviei-lhe um convite. Imaginei que a véspera de Natal já estaria comprometida, fosse com a família ou com a piranha, então escolhi 23 de dezembro. Eu o elaborei de uma forma que sabia que ele não poderia resistir e que nunca ousaria mostrar à vaca. A última frase dizia “Entrada apenas com convite”. Era um toque de inteligência. Significava que ele teria de trazer consigo a única prova de contato entre nós.
As indicações no verso levavam, se ele tivesse se importado em verificar previamente, a uma casa de verão isolada no alto das charnecas entre Bradfield e Yorkshire Dales; o lado oposto da cidade até Start Hill Farm e minha masmorra. Eu esperava que a casa de campo estivesse alugada para o Natal, mas não tinha nenhuma intenção de permitir que Gareth chegasse tão longe.
Era um tipo de noite clichê de Natal: uma lua crescente branquíssima, estrelas piscando como pedaços de diamante num relógio de luxo, grama e sebes pesadas de geada. Estacionei na beira da estrada de faixa única da charneca que levava até a casa de campo de férias e a algumas fazendas. A distância, conseguia ver a estrada de pista dupla que ficava no caminho até Bradfield, como uma trilha de luzes encantadas estendida sobre a cordilheira de Pennines.
Acendi minha luz de emergência, saí do 4x4 e abri o capô. Pus o que precisava ao alcance da mão, depois me reclinei na lateral dianteira e aguardei. Estava muito frio, mas não me importei. Tinha calculado bem. Estava esperando há apenas cinco minutos quando ouvi o som de um motor lutando para subir a inclinação íngreme. As luzes oscilavam contornando a curva abaixo de mim. Saí do carro, acenando furiosamente, com uma aparência congelada e preocupada.
O velho Escort de Gareth parou abruptamente na frente do 4x4. Dei alguns passos hesitantes na direção dele, enquanto ele abria a porta e saía.
— Algum problema? — perguntou. — Infelizmente não sei quase nada sobre carros, mas se eu puder lhe dar uma carona...
Sorri.
— Agradeço por parar — disse eu. Não havia sinal em seu rosto de que me reconhecera quando me aproximei. Odiei-o por isso. Voltei até o 4x4, gesticulando sob o capô. — Não é nada sério. Só que preciso de três mãos. Se você puder segurar essa parte no lugar enquanto eu uso a chave inglesa nesta porca...
Apontei para o motor. Gareth se inclinou sob o capô. Peguei a chave inglesa e acertei-lhe em cheio com ela.
Dentro de cinco minutos, ele estava no porta-malas de seu próprio carro, mais amarrado que um peru de Natal. Eu estava com suas chaves do carro, a carteira e o convite que lhe enviara. Dirigi de volta pela cidade até a fazenda, onde despejei o corpo inconsciente sem nenhuma cerimônia pelas escadas do porão. Não tinha tempo para fazer mais nada, não se eu quisesse voltar ao 4x4.
Conduzi o carro de Gareth até o centro de Bradfield, deixando-o em Temple Fields num beco perto de Crompton Gardens. Ninguém me viu; estavam todos muito ocupados festejando. Foi apenas uma caminhada de dez minutos pela cidade até a estação ferroviária.
Uma viagem de trem de vinte minutos e mais quinze caminhando rapidamente me trouxeram de volta ao 4x4. Com cautela, me aproximei. Não havia sinal de vida, nenhuma indicação de que alguém estivesse se intrometendo. Dirigi de volta para Start Hill Farm assobiando uma canção de Natal.
Quando acendi as luzes do porão, os olhos castanho-escuros de Gareth se iluminaram com um ódio furioso contra mim. Gostei disso. Depois do terror patético de Adam e Paul, era revigorante ver um homem que tinha alguma coragem. O som abafado que saía de trás da fita em sua boca era mais um grunhido furioso que um apelo.
Inclinei-me sobre ele e alisei para trás seus cabelos que caíam na testa. A princípio, ele fez movimentos bruscos afastando-se de mim, depois se tornou calmo e quieto, seus olhos mostrando reflexão.
— Assim é melhor. Não é preciso lutar, não é preciso resistir.
Ele assentiu com a cabeça, depois grunhiu, fazendo um sinal com os olhos para sua mordaça. Ajoelhei-me diante dele e peguei uma ponta do esparadrapo. Depois que a segurei com firmeza, retirei-a num único movimento rápido. É mais gentil do que fazer isso gradualmente.
Gareth ajeitou o maxilar, lambendo os lábios secos. Ele me fuzilou com os olhos.
— Uma porra de uma festa — rosnou ele, com a voz um pouco trêmula.
— É exatamente o que você merece.
— Como diabos você chegou a essa conclusão? — interpelou ele.
— Você foi feito para mim. Mas se envolveu com aquela vagabunda. E tentou fazer disso um segredo.
Surgiu uma luz em seus olhos.
— Você é... — começou ele.
— Isso mesmo — interrompi. — Então agora você sabe por que está aqui.
Minha voz era tão fria quanto o piso de pedra. Levantei-me de repente e andei até o banco onde havia disposto o meu equipamento.
Gareth estava falando novamente, mas ignorei o som de sua voz. Sei como os advogados podem ser persuasivos e, por mais que ele me bajulasse, não permitiria que causasse nenhum desvio no meu caminho. Abri a sacola Ziplock e tirei o algodão com clorofórmio. Voltei-me para Gareth e ajoelhei-me diante dele. Com uma das mãos, agarrei seus cabelos e, com a outra, apliquei o algodão em sua boca e nariz. Ele lutou de modo tão convulsivo que acabei com um tufo de cabelo em minha mão antes que ele perdesse a consciência. Ainda bem que estava usando minhas luvas de látex, caso contrário seus cabelos teriam me cortado. A última coisa de que precisava era meu sangue se misturando ao dele.
Quando ele apagou, cortei fora suas roupas. Tirei a correia do berço de Judas e a fechei em seu peito, sob as axilas. Eu havia prendido uma roldana rudimentar e um guincho a uma das vigas no teto, e amarrei o gancho na correia. Ergui o corpo de Gareth com o guincho até que ele balançou como visco ao vento. Quando já estava lá em cima no ar, foi questão de segundos até abrir as algemas e prendê-lo à minha árvore de Natal.
Parafusei duas tábuas na parede no formato da cruz de santo André e cobri-as com ramos espinhosos de abeto norueguês. Para cada braço da cruz eu prendi correias de couro que amarrei em volta dos pulsos e tornozelos dele. Abri os punhos fechados de Gareth e prendi com fita suas mãos espalmadas na cruz. Por fim, removi o gancho e deixei que as correias no pulso recebessem a pressão. O corpo dele desabou de modo alarmante, e por um momento eu me preocupei que não tivesse instalado correias fortes o bastante. Houve um breve ranger do couro na madeira, depois o silêncio. Ele pendia como um apóstolo martirizado na parede da masmorra.
Peguei minha marreta e os ponteiros afiados que tinha escolhido para o trabalho. Ficaríamos juntos agora até a noite de Natal. Eu pretendia saborear cada minuto de nossas quarenta e oito horas.
12
Pouquíssimos homens cometem assassinato por princípios filantrópicos ou patrióticos... Quanto à maioria dos assassinos, eles são donos de personalidades muito falhas.
Os quatro detetives-inspetores estavam sentados com o rosto sem expressão, no que antes era o escritório de Tom Cross, quando John Brandon lhes deu a versão oficial da suspensão do superintendente. Às vezes, Brandon desejava ser ainda um dos oficiais, capaz de explicar seus motivos sem parecer sabotar o próprio cargo ao agir dessa forma.
— O que temos de fazer é deixar isso para trás e avançar com a investigação — disse ele bruscamente. — Pois bem, qual é a situação de McConnell?
Kevin se inclinou para a frente em seu assento.
— Fiz como instruiu, senhor. Ele deixou nossa prisão um pouco antes da meia-noite, e tenho uma equipe o monitorando desde então. Andou direitinho na linha até agora. Foi direto para casa, pareceu ir para a cama, a julgar pelas luzes. Estava de pé às oito horas da manhã, e foi trabalhar. Tenho um dos rapazes na academia, fazendo-se passar por associado, e outro fora na rua.
— Continue assim, Kevin. Mais alguma coisa? Dave, algo interessante no sistema?
— Estamos acompanhando muitas placas de carro e indivíduos envolvidos em qualquer crime gay, tanto no ataque a homossexuais quanto em atentados ao pudor. Estamos também prestes a cruzar os dados dessas listas com os que Don Merrick vem obtendo com as agências de viagem a respeito de pessoas que reservaram férias na Rússia. Depois que tivermos o perfil, talvez tenhamos alguns suspeitos, mas é uma pedreira no momento, senhor.
Carol interveio:
— Algumas das associações de levantamento de peso disseram que nos forneceriam listas de seus membros que estiveram na Rússia ou competiram contra equipes russas.
— Eba, mais porcarias de listas — comentou Dave, fazendo uma careta.
— Tenho um contato na indústria de couro — disse Stansfield. — O maior importador no Reino Unido. Perguntei-lhe sobre a tira de couro, e ele disse que, como era pele de veado, provavelmente não é de uma jaqueta comum ou de um jardineiro. Mais provável que fosse alguém com um pouco de influência pessoal, mas nenhum poder de verdade. Sabe como é. Alguém como um detetive-inspetor.
Sorriu.
— Ou um funcionário da prefeitura de baixo escalão. Um subchefe da estação ferroviária. O imediato de um navio. Esse tipo de coisa.
Dave sorriu.
— Vou dizer à equipe HOLMES para vigiar ex-funcionários da KGB.
Brandon começou a dizer algo, mas foi cortado pelo toque do telefone.
— Brandon falando... — Seu rosto perdeu toda a expressão, tornando-se rígido como a madeira dos caixões que ele parecia estar carregando. — Sim, senhor. Vou para aí imediatamente.
Ele pôs o telefone no gancho suavemente e se levantou.
— O chefe de polícia está interessado em saber como essa edição noturna do jornal saiu desse jeito — disse ele, atravessando a sala e parando ao lado da porta com uma das mãos na maçaneta.
— Tenho certeza de que quem lavou nossa roupa suja na pia da senhora Burgess vai esperar que eu consiga convencer o chefe de polícia a não fazer dele um exemplo.
Ele dirigiu a Carol um sorriso frio.
— Ou dela, na verdade.
Tony trancou a porta de seu escritório atrás de si e ofereceu à secretária do projeto um aceno alegre e um sorriso.
— Estou saindo para almoçar, Claire. Provavelmente vou ao Café Genet em Temple Fields. A inspetora Jordan deve chegar às três, mas vou estar de volta antes disso. Tudo bem?
— Tem certeza de que não quer retornar algumas dessas ligações dos jornalistas? — interpelou Claire.
Tony se virou, continuando a andar para trás pelo escritório.
— Que jornalistas? — perguntou ele.
— Primeiro, aquela Penny Burgess do Sentinel Times. Ela vem tentando de meia em meia hora desde que cheguei. Depois, na última hora, as ligações têm vindo de todos os jornais nacionais, e da Rádio Bradfield.
Tony franziu a testa, intrigado.
— Por quê? Eles disseram o que queriam?
Claire ergueu o exemplar do Sentinel Times que tinha saído rápido para comprar na banca do campus.
— Não sou psicóloga, Tony, mas acho que pode ter algo a ver com isso.
Tony ficou paralisado. Mesmo do outro lado do escritório ele conseguia ler as manchetes e identificar sua própria fotografia em exibição com destaque na primeira página do jornal. Como uma partícula de ferro atraída por um ímã, Tony se aproximou do jornal até que conseguiu ler o nome de Penny Burgess nos dois artigos.
— Posso ver? — perguntou ele com a voz rouca, estendendo a mão para pegar o jornal.
Claire o entregou e observou a reação dele. Ela gostava de seu chefe, mas era humana o bastante para apreciar o desconforto dele em ser exposto na edição noturna do jornal. Tony virou às pressas a primeira página, procurando o artigo completo sobre si mesmo. Com uma sensação de crescente horror, ele leu:
Dr. Hill tem boas qualificações para entrar na mente distorcida do Assassino de Bonecas. Além de seus dois títulos universitários e uma grande experiência em lidar diretamente com os pervertidos criminosos que aterrorizam a sociedade, tem a reputação de ser muito determinado.
Um colega disse: “Ele se casou com o emprego. Ele vive para o trabalho. Se alguém pode pegar o Assassino de Bonecas, é Tony Hill.
“É apenas uma questão de tempo agora, estou convencido. Tony é incansável. Ele não vai desistir até que esse filho da mãe esteja bem trancafiado.
“Vamos encarar a verdade, Tony tem um cérebro privilegiado. Esses serial killers podem ter QIs altos, mas eles nunca são muito espertos quando se trata de ficar fora da prisão.”
— Santo Deus — resmungou Tony. Fora o fato de que nenhum colega que se prezasse jamais faria declarações como essa, o artigo era equivalente a uma incitação ao Faz-tudo. Parecia um desafio. Ele tinha certeza de que o assassino encontraria um jeito de responder a isso. Tony jogou o jornal na mesa, olhando-o furiosamente.
— Ultrapassa um pouco os limites — disse sua secretária com empatia.
— É uma baita irresponsabilidade, sem falar nos limites — respondeu Tony, aborrecido. — Ah, que se dane isso. Vou almoçar. Se o chefe de polícia ligar, diga que não volto mais hoje.
Ele andou de novo até a porta.
— E quanto à inspetora Jordan? E se ela ligar?
— Pode dizer a ela que saí do país. — Com a porta aberta, ele parou. — Não, é só brincadeira. Diga a ela que estarei aqui para nossa reunião.
Enquanto esperava pelo elevador, Tony se deu conta de que nada em sua experiência tinha lhe preparado para o desafio do confronto direto com um assassino. Era algo com que ele teria de lidar usando seus instintos.
• • •
Kevin Matthews bebeu todo o quartilho de cerveja e acenou para a garçonete do bar.
— Mesmo que seja uma cortina de fumaça, ainda assim ele precisa ter tido acesso a essa porcaria de pedaço de couro desconhecido, não é? — perguntou teimosamente a Carol e Merrick. — Mais uma?
Merrick fez que sim.
— Vou tomar um café desta vez, Kevin — disse Carol. — E nos passe um cardápio, por favor. Tenho a sensação de que vou ficar aqui para uma longa sessão com o doutor, e ele tem um hábito desagradável de esquecer a comida.
Kevin pediu as bebidas, depois se virou para Carol. Com a persistência que tinha lhe garantido a promoção, ele disse:
— Mas estou certo, não estou? Para plantar o couro assim, não só ele teve acesso ao tecido como também sabe o quanto é incomum.
— Concordo — disse Carol.
— Então não é perda de tempo tentar levantar a origem, é?
— Nunca disse que era — alegou Carol, com paciência. — Pois bem, você vai me informar sobre o que aconteceu com Tom Cross ou vou ter que imitar nosso assassino e trazer os aparelhos de tortura?
Enquanto Kevin explicava o que tinha acontecido, a atenção de Merrick se desviou. Ele já tinha ouvido a história mais vezes do que precisava. Reclinou no bar e observou a clientela. O Sackville Arms não era o pub mais próximo da delegacia na Scargill Street, mas ele vendia chope Tetleys, de Yorkshire, e Boddingtons, de Manchester, que inevitavelmente chegavam à polícia local. O pub ficava nos limites de Temple Fields, o que lhe dava um atrativo extra para os policiais locais quando a delegacia da Scargill Street ainda estava aberta. Como consequência, prostitutas e pequenos criminosos que queriam repassar recados para seus contatos pessoais da força podiam conseguir isso sem dificuldade. Contudo, nos poucos meses que o posto policial de Scargill Street ficou em desuso, o pub tinha mudado sutilmente. Os fregueses tinham se acostumado a ter o lugar para si mesmos, e havia uma distância claramente perceptível entre os policiais e o resto dos clientes. Os oficiais que vinham usando o pub numa tentativa de recrutar novas fontes da parte vulnerável da comunidade foram recebidos com frieza. Mesmo com um serial killer à solta, ninguém queria voltar ao hábito de informar agora que tinham se livrado dele.
Com os olhos de policial, Merrick percorreu a sala, classificando os bebedores. Prostituta, traficante, michê, cafetão, homem rico, homem pobre, mendigo, fracote. A voz de Carol o perturbou, fazendo-o interromper seu exame.
— O que acha, Don? — Foi o que conseguiu ouvir.
— Desculpe, estava viajando. O que acho do quê?
— Que já é hora de gerarmos alguns de nossos próprios cacoetes entre as “primas”, em vez de contarmos com as garotas da Delegacia de Costumes. Elas estiveram tantas vezes em volta das casas, que eu sairia para verificar se me dissessem que estava chovendo.
— Deixe as prostitutas para lá — disse Merrick. — Precisamos saber um bocado mais sobre como a comunidade gay funciona. Não quero dizer os caras que saíram do armário e frequentam o Hell Hole. Quero dizer os enrustidos. Os que não dão pinta. São esses que podem ter encontrado esse pervertido antes. Quero dizer, de tudo que já li sobre serial killers, às vezes eles não chegam a matar na primeira vez, apenas fazem uma tentativa. Como o Estripador de Yorkshire. Então talvez haja algum cara amedrontado no armário e que tenha sofrido com algum gesto de violência. Esse pode ser o caminho para uma descoberta.
— E Deus sabe que precisamos de uma — disse Kevin. — Mas se não sabemos como as relações são estabelecidas, como nos conectamos?
Carol, pensativa, disse:
— Quando em dúvida, pergunte a um policial.
— Fazer o quê? — perguntou Kevin.
— Há policiais gays na ativa. Mais do que a maioria, eles devem saber como manter a discrição. Eles poderiam nos contar.
— Isso não responde à pergunta — protestou Kevin, com insistência. — Se eles estão tão ocupados mantendo-se discretos, como saberemos quem são eles?
— A Polícia Metropolitana tem uma associação de policiais gays e lésbicas. Por que não entramos em contato, em sigilo, e pedimos a ajuda deles? Alguém deve ter alguns contatos em Bradfield.
Merrick olhou Carol com admiração, Kevin fez o mesmo com frustração, e os dois se perguntaram em silêncio como que a inspetora Jordan sempre tinha uma resposta.
Tom Cross olhou a primeira página do Sentinel Times com um sorriso de satisfação movendo seu cigarro para cima e para baixo. A senhora Burgess pode ter achado que estava no controle de seu encontrozinho na noite anterior, mas Tom Cross sabia que era diferente. Ele armou a teia e ela caiu como uma mosca, fazendo exatamente o que ele esperava dela. Não, verdade seja dita. O que ela tinha feito era melhor do que ele tinha esperado. Aquela frase sobre a polícia indo aos trancos e barrancos atrás do Sentinel Times quando se tratava de procurar o maldito dr. Hill era muito boa.
Haveria muitos homens furiosos na polícia de Bradfield hoje. Esse foi o elemento de vingança do jogo de Tom Cross com Penny Burgess. Mas outra pessoa ficaria zangada também. Quando lesse a edição desta noite, o assassino ficaria mais do que simplesmente irritado.
Tom Cross apagou o cigarro e bebeu ruidosamente de sua caneca de chá. Dobrou seu jornal, colocou-o na mesa em frente e olhou para fora da janela. Acendeu outro cigarro. Ele começaria a instigar o Assassino de Bonecas. Provocado, ele passaria a ficar descuidado, a cometer enganos. E quando Stevie McConnell fizesse isso, Tom Cross estaria pronto à sua espera. Ele ia mostrar àqueles canalhas miseráveis como é que se pegava um assassino.
Tony estava de volta ao escritório às dez para as três. Mesmo assim, não chegou cedo o bastante para superar Carol.
— A inspetora Jordan chegou — avisou Claire assim que ele abriu a porta da antessala. Ela gesticulou com a cabeça para o escritório dele.
— Ela está lá esperando. Disse a ela que você voltaria.
O sorriso em resposta de Tony foi tenso. Enquanto agarrava a maçaneta da porta, ele fechou os olhos bem apertados e respirou fundo. Expondo o que esperava ser um sorriso de boas-vindas no rosto, Tony abriu a porta e entrou em seu escritório. Ao ouvir o som da porta, Carol se virou da janela em que estivera olhando para fora e lhe deu um olhar frio e considerado. Tony fechou a porta atrás de si, reclinando-se.
— Você parece que acabou de pisar numa poça mais funda que seu sapato — comentou Carol.
— É uma melhora, então — respondeu Tony, com mais do que um toque de ironia. — Geralmente me sinto como se tivesse pisado numa poça mais funda que a minha cabeça.
Carol deu um passo em direção a ele. Ela ensaiara o que diria.
— Não há necessidade de se sentir assim comigo. Na noite passada... Bem, você não foi muito franco e interpretei erradamente os sinais. Então podemos esquecer tudo isso e nos concentrar no que é realmente importante entre nós?
— E o que seria? — Tony soou impessoal como um terapeuta, sua pergunta mais um convite à conversa do que um desafio.
— Trabalharmos juntos para pegar esse assassino.
Tony se afastou da porta e foi até a segurança de seu assento, com cuidado para manter a mesa entre eles o tempo inteiro.
— Tudo bem para mim.
Ele deu um sorriso torto.
— Acredite em mim, sou muito melhor em relacionamentos profissionais do que do outro tipo. Pense que foi salva pelo gongo.
Carol circundou o lado oposto da mesa e puxou uma cadeira. Cruzou as pernas vestidas em calças compridas e juntou as mãos sobre o colo.
— Então vamos dar uma olhada nesse perfil.
— Não precisamos nos comportar como se fôssemos estranhos — disse Tony baixinho. — Respeito você e admiro o modo como é tão aberta ao aprendizado de novos aspectos do trabalho. Olhe, antes... antes do que aconteceu na noite passada, parecíamos nos encaminhar para uma amizade que ia além do trabalho. Era uma coisa tão ruim assim? Não podemos nos contentar com isso?
Carol deu de ombros.
— Não é fácil fazer amizades depois de expor suas fraquezas.
— Não acho que demonstrar que alguém atrai você é necessariamente uma fraqueza.
— Estou me sentindo boba — disse Carol, sem ter certeza por que estava se abrindo desse jeito. — Eu não tinha direito de esperar nada de você. Agora, estou com raiva de mim.
— E de mim também, imagino — concluiu Tony. Isso estava se mostrando menos traumático do que ele tinha imaginado. Suas técnicas de aconselhamento não tinham enferrujado pela falta de uso, pensou ele com alívio.
— Em grande parte comigo mesma. Mas posso lidar com isso. O importante para mim é que façamos o trabalho.
— Para mim também. É bem raro encontrar um policial que parece compreender o que estou tentando fazer.
Ele pegou os papéis na mesa.
— Carol... Não é nada com você, sabe. Sou eu. Tenho meus próprios problemas com os quais preciso lidar.
Carol o fitou longamente. Ele sentiu um rápido tremor de pânico quando percebeu que não conseguia ler seus olhos. Ele não fazia ideia do que ela estava sentindo.
— Entendo o que diz — respondeu ela, com a voz fria. — Falando em problemas, nós não temos trabalho a fazer?
• • •
Carol sentou-se sozinha no escritório de Tony com o perfil do serial killer. Ele tinha deixado que ela o lesse enquanto trabalhava na sala ao lado com sua secretária, atualizando-se com relação à correspondência empilhada desde que Brandon o tinha sequestrado há apenas alguns dias. Ela não conseguia se lembrar de já ter estado tão fascinada com um relatório em sua carreira. Se esse era o futuro da polícia, ela queria muito fazer parte dele. Finalmente, chegou ao fim do texto principal e passou para uma folha separada.
Pontos a considerar:
1. Alguma das vítimas já tinha mencionado a um amigo/parente que tinha sido alvo de uma abordagem homossexual indesejada? Caso sim, quando, onde e por quem?
2. O assassino é um perseguidor. Seu primeiro encontro com suas vítimas provavelmente ocorre muito tempo antes de ele matar — semanas, e não dias. Onde ele os está encontrando? Pode ser algo tão banal como onde lavam roupa, onde colocam sola nos sapatos, onde compram sanduíches, onde instalam pneus ou escapamento em seus carros. Considerando que todos moravam próximos à rede de bonde, acho que devemos verificar se as vítimas usavam os bondes regularmente para ir e vir do trabalho ou para sair à noite. Sugiro que verificações completas de antecedentes sejam realizadas, abrangendo contas bancárias, extratos de cartão de crédito, e indícios casuais de colegas, namoradas e familiares. Isso pode ajudar a revelar suspeitos.
3. Há alguma indicação de que as vítimas estavam reservando a noite em questão para algum objetivo específico? Gareth Finnegan mentiu a respeito para a namorada — algum dos outros também?
4. Onde ele está executando seus assassinatos? É improvável que seja em sua casa, já que teria calculado a possibilidade de ser preso, e teria se esforçado para evitar deixar vestígios forenses lá. Ela também precisa ser grande o suficiente para que construa e use os mecanismos de tortura que estamos presumindo nesses casos. Pode ser uma garagem trancada e isolada, ou uma unidade em uma propriedade industrial que fica deserta à noite. Não nos esqueçamos de que ele quase certamente mora em Bradfield. É possível que exista uma propriedade rural isolada à qual ele tenha acesso sem ser perturbado.
5. Ele deve ter aprendido sobre instrumentos de tortura em algum lugar de modo que pudesse construir os próprios. Pode valer a pena verificar com livrarias e bibliotecas se algum de seus clientes fez perguntas ou encomendou livros sobre o assunto.
Carol voltou algumas páginas, relendo parágrafos que tinham chamado sua atenção na primeira leitura. Ela achava difícil crer na velocidade com que Tony tinha assimilado as pilhas de arquivos que ela lhe entregara. Não apenas isso, mas ele extraiu deles os elementos centrais que criaram, pela primeira vez na mente de Carol, uma imagem, ainda que vaga, do homem que ela estava caçando.
Mas o perfil também levantava dúvidas, e uma dessas não havia ocorrido a Tony. Ela se perguntava se ele não se referira a elas por tê-las descartado de imediato. Qualquer que fosse a razão, ela precisava saber. E precisava encontrar uma maneira de perguntar que não parecesse um ataque.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 013
Eu detestava deixar Gareth em suspenso, mas tinha que sair para realizar uma pequena tarefa. No carro dele, encontrei alguns dos cartões de Natal que sua empresa enviava para os clientes preferenciais, já assinados por todos os sócios. Dentro de um deles, como uma caneta-tinteiro, um molde de estêncil e o sangue de Gareth, escrevi em maiúsculas: UM FELIZ NATAL PARA TODOS OS SEUS LEITORES; SEU PRESENTE DE NATAL EXCLUSIVO ESTÁ ESPERANDO NOS ARBUSTOS DO CARLTON PARK ATRÁS DO CORETO. CUMPRIMENTOS DE FIM DE ANO DO PAPAI NOEL. Não era fácil escrever com sangue, ele ficava coagulando na ponta, e eu precisava limpar muitas vezes. Por sorte, sangue não faltava.
Enderecei um envelope com plástico bolha ao editor do Bradfield Evening Sentinel Times e pus o cartão dentro dele, junto com um vídeo que tinha feito algumas semanas antes, quando comecei a planejar o que fazer com Gareth. Já tinha decidido alterar meu modus operandi ligeiramente. Temple Fields era certamente perigosa agora. Mesmo que as bichas estivessem muito bêbadas e drogadas para serem vigilantes, a polícia estaria atenta para algo além de banheiros públicos utilizados ocasionalmente para sexo. Mas a trilha natural nos arbustos de Carlton Park é quase tão difamada quanto uma área de encontros casuais.
Cedo em uma manhã chuvosa de domingo, quando não havia ninguém, dirigi até Carlton Park com minha filmadora. Comecei pelo coreto de ferro forjado. Andei em volta dele, filmando-o de todos os ângulos. Não demoraria muito até que alguém no escritório do BEST reconhecesse o ponto de referência. Afinal, Carlton Park é o maior parque dentro dos limites da cidade, e há um concerto de uma orquestra de instrumentos de metal lá todos os domingos, de abril a setembro. Eu mantinha deliberadamente a câmera ao nível do peito, em vez de no ombro. Lera sobre ocasiões em que estimativas de altura corretas tinham sido feitas simplesmente do ângulo que as fotografias tinham sido tiradas. Se algum cientista forense ia retirar alguma conclusão desse vídeo, queria ter certeza de que seria errada.
Deixando para trás o coreto, desci a trilha natural até os arbustos. Movi a câmera pela vizinhança onde achava que deixaria o corpo, depois parei de filmar. Não passei por ninguém no meu caminho de volta ao 4x4. Foi provavelmente por sorte, já que estava sorrindo de orelha a orelha com o pensamento do editor de notícias intrigado com minha mensagem de Natal.
O vídeo também serviria a duas outras funções. Primeiro, minimizaria o tempo de identificação do corpo de Gareth, o que significava que a mídia teria bastante para repercutir num período que sempre era estagnado em notícias. E, em segundo lugar, despistaria a polícia numa procura inútil sobre quem poderia ter tido acesso aos cartões de Natal.
Poderiam até concluir que alguém ligado ao trabalho tinha decidido silenciá-lo e fazer com que parecesse um assassinato por imitação, jogando o corpo numa área de público gay. Justamente o tipo de coisa que um cliente enlouquecido e desiludido faria. Se eu tivesse muita sorte, eles poderiam até fazer a piranha passar por algum problema também.
Dirigi até o centro da cidade para postar o pacote na agência principal dos correios. Havia bastante presenteadores em pânico para que eu parecesse incomum. Parei numa loja de bebidas no caminho de volta para comprar uma garrafa de champanhe. Normalmente não bebo quando estou trabalhando, mas essa era uma ocasião especial.
Quando voltei, Gareth estava semiconsciente, resmungando de modo incompreensível.
— Papai Noel chegou — anunciei alegremente enquanto descia as escadas.
Retirei a rolha do champanhe e servi duas taças. Peguei uma delas para Gareth e, na ponta dos pés, gentilmente ergui sua cabeça pendente. Segurei a taça em seus lábios e virei.
— Você vai gostar disso — disse eu. — É Dom Perignon de boa safra.
Seus olhos se esbugalharam. Por um momento, ele pareceu perplexo; depois, se lembrou e me fitou com um olhar de puro ódio. Mas ele estava sedento e não pôde resistir ao champanhe. E engoliu-o com avidez, sem saborear nada. Em seguida, cuspiu no meu rosto, com um olhar de estranha satisfação.
— Você usufruir disso é um desperdício — esbravejei. — Como todas as coisas boas da vida. — Recuei e lancei a taça contra seu rosto. Ela se despedaçou no nariz dele, cortando sua bochecha em tiras. Estava feliz porque tia Doris não ia voltar. Ela recebera aquele conjunto de seis taças de cristal frágeis como um presente de bodas de prata, e nunca as tinha usado, aterrorizada que alguém pudesse quebrá-las. Tinha razão em se preocupar.
Gareth sacudiu a cabeça.
— Você é o mal — balbuciou. — Puro mal.
— Não, não sou — respondi baixinho. — Sou a justiça. Lembra da justiça? É o que você devia representar.
— Isso é doentio, sua aberração — respondeu ele.
Não conseguia acreditar que ele ainda tinha energia para bravatas. Era hora de mostrar a ele quem é que mandava. Eu já tinha fixado suas mãos na cruz com alguns ponteiros. O sangue tinha coagulado em volta deles, preto e duro. Agora era a vez dos pés.
Quando me viu pegar as ferramentas na bancada, ele finalmente se rendeu.
— Não há necessidade disso — disse ele desesperadamente. — Por favor. Você ainda pode me deixar ir. Eles nunca encontrariam você. Não faço ideia de onde estamos. Não sei quem você é, onde mora, no que trabalha. Você podia se mudar de Bradfield, e eles nunca lhe encontrariam.
Aproximei-me. As lágrimas se empoçavam em seus olhos e transbordavam, correndo pelo sangue em sua bochecha. Elas deviam ter doído, mas ele não se encolheu.
— Por favor — suspirou ele. — Não é tarde demais. Mesmo que você tenha matado aqueles outros homens. Foi você quem os matou?
Ele era esperto, eu tinha de admitir. Tão esperto que se prejudicava. Ele acabara de conseguir um pouco mais de sofrimento. Virei-me e deixei a marreta e o ponteiro na bancada. Deixe que pense que estou em dúvida. Deixe que passe a noite convencido de que eu teria misericórdia. Isso tornaria o dia de Natal ainda mais prazeroso.
Fechei a porta do porão atrás de mim e subi até a cama, junto com meus vídeos e uma boa garrafa de champanhe ainda cheia. Estava tendo o melhor Natal que já tivera. Lembrei-me de todos aqueles anos de esperança angustiada, rezando que aquele fosse o ano em que minha mãe compraria presentes como os que as outras crianças ganhavam. Mas tudo que ela fez foi me decepcionar. Agora eu tinha entendido que só eu poderia me dar aquilo que ansiava; sabia que, pela primeira vez na vida, eu poderia esperar pelo tipo de Natal que as outras pessoas tinham, cheio de surpresas, satisfação e sexo.
13
Interpretando seus atos à luz desses vestígios silenciosos que deixou para trás, a polícia percebeu que ultimamente ele devia ter ficado ocioso. E o motivo que o guiava é notável; porque registra imediatamente — que sua busca pelo assassinato não ocorria simplesmente como um meio de atingir um fim, mas como um fim para si mesmo.
O Wunch of Bankers era um dos poucos estabelecimentos do centro da cidade onde Kevin Matthews se sentia seguro de encontrar Penny Burgess. Um pub divertido com um rap alto e estridente e uma decoração modelada de acordo com novelas de TV — como o Rover’s Return Snug, a Woolpack Eaterie, o Queen Vic Lounge e o Cheers Beer Bar — era o último lugar em que ele provavelmente encontraria outro policial, ou Penny, outro jornalista.
Kevin fez uma careta quando suas papilas gustativas se contraíram com o café forte e amargo que se escondia sob uma espiral de espuma e que mais parecia resíduo industrial do que um cappuccino. Onde diabos estava ela? Ele olhou seu relógio pela vigésima vez. Penny havia prometido que estaria lá o mais tardar às quatro horas, e agora já tinham se passado dez minutos. Empurrou a xícara pela metade para longe e pegou, na banqueta ao seu lado, a capa impermeável da última moda. Ele estava prestes a se levantar quando a porta giratória do pub emitiu um silvo e Penny apareceu. Ela acenou e se encaminhou direto para a mesa dele.
— Você disse quatro horas — saudou-a Kevin.
— Meu Deus, Kevin, você está ficando mesmo turrão com a velhice — reclamou Penny, dando-lhe um beijinho na bochecha enquanto sentava no assento ao lado dele. — Faça um favor, me dê uma daquelas águas minerais com um toque de frutas silvestres — disse ela, com a voz zombando das pretensões de seu drinque escolhido.
Quando Kevin retornou com um copo já suado por fora, Penny imediatamente pôs uma das mãos de um modo possessivo na parte interna da coxa dele.
— Hum, obrigado — agradeceu, bebericando seu drinque. — Então o que há de novo? Por que o encontro urgente?
— O jornal de hoje — explicou ele, com a voz inexpressiva. — Jogou mesmo merda no ventilador.
— Ah, bom. Talvez assim a gente consiga alguma providência concreta. Como encontrar um suspeito contra o qual tenham algum indício.
— Você não está entendendo. Eles estão procurando o informante. O chefe de polícia chamou Brandon para ser repreendido esta manhã, e a conclusão foi que o Ministério do Interior abriu um inquérito para investigar o vazamento. Penny, você precisa tirar o meu da reta — disse Kevin desesperadamente.
Penny acendeu um cigarro sem pressa.
— Você está me ouvindo?
— É claro que estou, querido — disse Penny, automaticamente com voz suave, sua mente já planejando o artigo do dia seguinte. — Só não entendo por que você está ficando tão agitado. Você sabe que um bom jornalista nunca revela suas fontes. Qual é o problema? Você acha que não sou boa o bastante como jornalista?
Penny se esforçava para ouvir a resposta de Kevin em vez da voz em sua cabeça que recitava manchetes.
— Não é que não confie em você — falou impacientemente. — Estou preocupado com o pessoal do trabalho. Todo mundo vai estar desesperado para que as suspeitas não recaiam sobre si, então qualquer um que saiba sobre nós vai ficar bem ansioso para contar para o Ministério do Interior. E, quando souberem que nós, bem, você sabe. Vai ser o fim. Vou estar acabado.
— Mas ninguém sabe sobre nós. Garanto que, por mim, ninguém sabe — respondeu Penny calmamente.
— Achei que ninguém soubesse também, mas Carol Jordan disse uma coisa que me fez achar que ela sabe.
— E você acha que Carol vai dedurar você para o Ministério do Interior? — interrogou Penny, não conseguindo esconder a incredulidade que sentia. Ela não tivera muitas interações com a policial mais glamorosa do Departamento de Investigações Criminais, mas o que sabia da inspetora não a inclinava a imaginá-la no papel de alcaguete.
— Você não a conhece. Ela é absolutamente implacável. Ela quer ir até o fim, essa moça, e ela me entregaria assim que pensasse que isso a faria subir mais um degrau na carreira.
Penny balançou a cabeça, exasperada.
— Você está exagerando. Mesmo que Carol Jordan tenha misteriosamente descoberto que estamos saindo, tenho certeza de que está ocupada demais se cobrindo de glória por sua ligação com o dr. Hill para se preocupar em entregar você. Além disso, se a gente pensar racionalmente, ela não tem nada a ganhar ficando com a reputação de dedo-duro entre os colegas.
Kevin meneou a cabeça, em dúvida.
— Eu não sei, Penny, você não faz ideia de como é neste trabalho. Estamos todos trabalhando dezoito horas por dia, e não estamos chegando a lugar algum.
Penny alisou a parte interna da coxa dele.
— Querido, você está sob muita pressão. Veja bem, vou lhe propor uma coisa. Se tudo isso vier à tona e alguém dedurar você, o Ministério do Interior certamente vai vir até nós cobrando explicações. Eles vão procurar que corroboremos. Se isso acontecer, vou fazer parecer que Carol Jordan é minha fonte, tudo bem? Isso deve embaralhar as coisas.
O sorriso de Kevin valia a conversa fiada, concluiu ela. Isso e uma ou duas outras coisas nele. Tranquilizado, ele se levantou de um salto.
— Obrigado, Pen. Ouça, preciso ir a um lugar. Ligo para você em breve para que a gente possa se encontrar, tudo bem?
Ele se inclinou e lhe presenteou com um beijo intenso.
— Mantenha-me informado, gostosão — falou Penny baixinho a Kevin, que já se retirava de costas para ela. Antes mesmo que ele chegasse à porta, o artigo dela já começava a se formar. Ah, sim, ela conseguia vê-lo agora.
A polícia de Bradfield está dedicando novos contingentes à caçada do serial killer que fez quatro vítimas e pôs os homens em risco como nunca antes.
No entanto, os policiais extras não irão integrar a busca pelo monstruoso Assassino de Bonecas. Seu trabalho será policiar a própria polícia.
O comando da força está tão alarmado pela precisão das matérias do Sentinel Times sobre os assassinatos que montou uma caçada em grande escala ao informante para descobrir a fonte de nossas matérias. Em vez de pegar o assassino, o objetivo é rastrear os colegas policiais que concordam com a visão de que o público aterrorizado tem direito de saber o que está acontecendo.
Carol abriu a porta que dava para a antessala e disse:
— Terminei. Podemos conversar?
Tony ergueu os olhos de sua posição na tela do computador de modo distraído, levantou um dedo e disse:
— Sim, claro, um minuto apenas. — E terminou o que estava fazendo.
Carol se retirou e respirou fundo. Por mais profissional que tentasse ser, ela não conseguia evitar a onda de atração que sentia por aquele homem. Ignorá-la era uma tarefa mais na teoria do que na prática. Momentos depois, Tony se juntou a ela. Ele se sentou na borda da mesa, com os cabelos em pé como o Pestinha do desenho Pestinha & Feroz, porque ficava passando os dedos por eles enquanto se concentrava.
— Então, qual é o veredicto?
— Estou impressionada — disse ela. — Realmente reúne todos os dados. Há uma ou duas questões, no entanto.
— Só uma ou duas? — perguntou Tony, com a voz próxima a uma risada.
— Você fala muito sobre como ele deve ser forte para superar suas vítimas e movê-las por aí. Além disso, especula sobre como chega até elas numa posição vulnerável a princípio. Estava me perguntando se talvez pudessem ser dois.
— Continue — incentivou Tony, nenhum sinal de frieza em sua voz.
— Não quis dizer dois homens. Digo um homem e outra pessoa que pareça vulnerável. Talvez um adolescente ou, mais provavelmente, uma mulher. Não sei, talvez mesmo uma pessoa numa cadeira de rodas. Enfim, um parceiro no crime.
Carol mexia nos papéis, pondo-os de volta em ordem. Tony não disse nada. Depois de alguns momentos observando seu rosto sem expressão, ela acrescentou:
— Sei que você provavelmente já pensou nisso, só estava imaginando se era uma possibilidade que deveríamos ainda ter em mente.
— Desculpe, não quis parecer que estava ignorando você — respondeu Tony, às pressas. — Estava analisando a ideia, pesando-a com o que sabemos e o perfil. Uma das primeiras coisas que considerei foi se era ou não alguém sozinho. Tendo em conta as vastas probabilidades, concluí que era. Casos como o dos Assassinos da Charneca, onde há duas pessoas agindo em conjunto para realizar atrocidades são incrivelmente raros, para início de conversa. Além disso, eu esperaria encontrar mais variações na metodologia e na patologia se houvesse duas pessoas envolvidas; é difícil acreditar que suas fantasias coincidiriam tão exatamente. Mas é interessante que você tenha levantado isso. Está certa quanto a um aspecto. Se ele estiver trabalhando com uma mulher, isso explica como se aproxima de suas vítimas sem que elas ofereçam resistência.
Tony se sentou olhando fixamente para a frente, as sobrancelhas abaixadas enquanto pensava.
Carol ficou imóvel em seu assento. Por fim, Tony se virou para olhá-la e disse:
— Vou continuar com a teoria do criminoso que trabalha sozinho. Sua ideia é interessante, mas não consigo ver indícios que me convençam de que eu deva alterar a situação mais provável.
— Certo, entendido — disse Carol calmamente. — Prosseguindo desse ponto, você já considerou a possibilidade de um travesti? Como você disse, uma mulher podia chegar perto sem que eles oferecessem resistência. E se a mulher fosse um homem travestido? Isso não teria o mesmo efeito?
Tony pareceu assustado por um momento.
— Talvez você devesse pensar em se candidatar à força-tarefa quando ela estiver montada — tergiversou ele.
Carol sorriu.
— Me bajular não vai levar você a lugar algum.
— Falo sério. Acho que você tem o que é preciso para esse tipo de trabalho. Viu, não sou infalível. Eu não tinha considerado realmente um travesti. Pois bem, por que ignorei essa possibilidade? — refletiu ele, pensando em voz alta. — Deve haver alguma razão inconsciente para eu rejeitar a ideia antes mesmo que ela chegue à parte consciente da mente... — Carol abriu a boca para falar, mas ele disse: — Não, espere, por favor, deixe-me descobrir isso.
As mãos dele correram por seus cabelos de novo, ajeitando os fios escuros espetados.
Ela se rendeu, dizendo a si mesma que ele era tão arrogante quanto o resto, incapaz de aceitar que podia ter apenas deixado escapar algo. Pare de se enganar que ele é diferente, disse enfática para si mesma.
— Certo — disse Tony, sua voz cheia de satisfação. — Estamos lidando com um sadista sexual, concorda?
— Sim.
— Sadomasoquismo é a ilusão de poder dos fetiches sexuais. Mas travestismo é o completo oposto disso. Travestis querem assumir o papel supostamente mais fraco que as mulheres têm na sociedade. A base do travestismo é a crença de que as mulheres têm um poder sutil, o poder de seu gênero. Ele não poderia ser mais distante da transação bruta de dor e poder que os sadomasoquistas almejam. Isso não faz parte de modo algum das fantasias dos travestis. Para convencer as vítimas de que elas estavam lidando com uma mulher e não com um homem vestido de mulher, o assassino teria que ser um transformista talentoso. No entanto, ele também teria de ser um sádico sexual, o que seria algo único na minha experiência de psicologia clínica. Os dois simplesmente não ocorrem juntos — explicou Tony com um ar definitivo. — O mesmo se aplica a um transexual. Provavelmente ainda mais, na verdade, por causa da orientação psicológica pela qual eles têm de passar antes de serem aceitos para tratamento.
— Então, você está desconsiderando — concluiu Carol, sentindo-se arrasada de um modo irracional.
— Nunca desconsidero nada. Isso é pedir para fazer papel de bobo neste jogo. O que acho é que é tão improvável que não estaria disposto a incluir num perfil, porque a mera inclusão poderia levar as pessoas a seguirem a direção errada. Mas, com certeza, mantenha isso em mente. Você está pensando do modo certo. — Ele sorriu inesperadamente, eliminando a pontada de condescendência de suas palavras. — Como eu disse no início, Carol, juntos podemos decifrar isso.
— E você está absolutamente convencido de que não é uma mulher? — perguntou ela.
— O lado psicológico está todo errado. Levando em conta o ponto mais óbvio, o assassino é um obsessivo, e isso tende a ser um traço masculino. Quantas mulheres você conhece que andam em plataformas de estações na chuva em anoraques escrevendo números de trem?
— Mas e quanto àquela síndrome, como se chama, em que as pessoas ficam obcecadas por outras a ponto de transformar suas vidas numa agonia? Achava que eram principalmente mulheres que sofriam disso.
— Síndrome de Clérambault — disse Tony. — E, sim, são principalmente as mulheres que sofrem dela. Mas elas apenas se concentram numa pessoa, e a única pessoa que é capaz de morrer como resultado é o doente, que às vezes comete suicídio. A questão é que as obsessões e compulsões das mulheres são diferentes das dos homens. As obsessões dos homens dizem respeito ao controle; eles colecionam selos e os catalogam, eles colecionam calcinhas de todas as mulheres com quem dormiram. Eles precisam de troféus. As obsessões das mulheres dizem respeito à submissão; nos transtornos alimentares, é a obsessão que as domina e controla, e não o contrário. Uma mulher que sofra da Síndrome de Clérambault e tenha se casado com o objeto de seu desejo seria provavelmente o ideal machista da esposa perfeita. Esse padrão não se encaixa no nosso assassino.
— Entendo o que quer dizer. — Carol estava relutante em desistir da única ideia nova com que tinha contribuído para o processo de criação de perfil.
— Acrescente a isso a pura força física envolvida aqui — continuou Tony, notando sua relutância. — Você está em forma. É provavelmente bem forte para sua altura. Sou só alguns centímetros mais alto. Mas por qual distância acha que conseguiria me carregar? Quanto tempo você levaria para pegar meu corpo do porta-malas do carro e jogá-lo por sobre um muro? Você conseguiria me colocar sobre seu ombro e me carregar pela Carlton Park até a moita? Agora se lembre que todas as vítimas eram mais altas e mais pesadas que eu.
Carol deu um sorriso triste.
— Tudo bem, você venceu. Estou convencida. Houve outra coisa que me ocorreu.
— Diga.
— Lendo o seu perfil, minha impressão é de que a razão que você propõe para a manutenção dos intervalos entre os homicídios simplesmente não é forte o bastante — começou ela, hesitante.
— Você notou isso também — disse ele ironicamente. — Também não me convenceu. Mas não consegui pensar em nenhuma outra coisa que explicasse. Nunca encontrei nada parecido, nem na literatura. Todos os criminosos em série que conheço passam por um aumento progressivo.
— Tenho uma teoria que pode dar conta do problema — disse Carol.
Tony se inclinou para a frente, com uma expressão de profundo interesse.
— Diga, Carol — disse ele.
Sentindo-se como um dourado num aquário, Carol respirou fundo. Ela queria a atenção dele, mas não estava bem certa de que gostava agora que a tinha.
— Lembro do que você me disse há alguns dias sobre os intervalos. — Ela fechou os olhos e recitou: — “Com a maioria dos serial killers, o intervalo entre os assassinatos tende a diminuir bem drasticamente. É a fantasia deles que dispara os assassinatos para começar, e a realidade nunca se compara exatamente com a fantasia, não importa o quanto eles refinem seus procedimentos de assassinato. Mas quanto mais ao extremo eles chegam, mais embotadas ficam suas sensibilidades e mais estímulos eles precisam para conseguir a exaltação sexual que o assassinato fornece. Por isso, os assassinatos precisam se tornar mais frequentes. Shakespeare já dizia: ‘Como se o aumento do apetite tivesse sido causado por aquilo que o alimentara.’” Estou certa?
— Impressionante — suspirou Tony. — Você consegue fazer isso com itens visuais também ou só os auditivos?
Exasperada, Carol ergueu os olhos.
— Auditivos apenas, lamento. De qualquer forma, quando li a parte no perfil onde você sugere que ele pode trabalhar com computadores, tive um estalo. A pergunta que você não colocou, mas que está obviamente perturbando você, é: por que ele não está ficando dessensibilizado para os vídeos mais rapidamente à medida que o tempo passa?
Tony fez que sim. O ponto que ela levantava era poderoso e precisamente o que o perturbava. Ele pesquisou para encontrar uma resposta que satisfizesse a ambos. Buscando a solução enquanto prosseguia, ele disse:
— Suponha, para considerar todas as hipóteses, que o primeiro vídeo tenha o potencial para mantê-lo estável por doze semanas. Mas ele já tem organizado o processo de capturar sua segunda vítima, e o momento oportuno surge antes que ele esteja realmente compelido a matar de novo. Ele simplesmente não resiste à oportunidade quando ela se apresenta de modo tão perfeito. Depois disso, ele percebe que deixou oito semanas entre os assassinatos e decide que oito semanas será o seu padrão. Até o momento, os vídeos o permitiram manter isso. Talvez isso vá mudar agora.
Carol balançou a cabeça.
— É plausível, mas não estou convencida.
Tony sorriu.
— Graças a Deus. Também não estou. Tem de haver uma explicação melhor, mas não sei qual é.
— O quanto sabe sobre computadores? — perguntou ela.
— Sei onde fica o botão de ligar e desligar e como usar o software que preciso para trabalhar. Fora isso, sou um idiota.
— Bem, então somos dois. Meu irmão, porém, é um jovem gênio dos computadores. Ele é sócio numa empresa de software de jogos. A coisa com que ele trabalha é de última geração. Agora mesmo, ele e o sócio estão desenvolvendo um sistema de baixo custo que permitirá que os usuários ponham imagens de si mesmos nos jogos que estão usando. Em outras palavras, em vez de ser um Arnold Schwarzenegger metendo porrada nos vilões na tela em O exterminador do futuro 2, poderia ser Tony Hill. Ou Carol Jordan. A questão é: já existem hardwares e softwares que permitem a digitalização de fitas de vídeo e a importação de imagens para o computador. Acho que chamam isso de imagens digitalizadas. De qualquer forma, depois que tiver isso no computador, você poderá manipulá-lo exatamente como deseja. Pode incorporar instantâneos ou trechos de outros vídeos. Pode sobrepor as coisas. Quando eles compraram o hardware original há seis meses, Michael me mostrou uma sequência que tinha feito de si mesmo. Ele gravou em fita parte da conferência do Partido Conservador e também importou um guia de sexo em vídeo. Depois, selecionou todos esses rostos de ministros do governo enquanto faziam seus discursos e os sobrepôs no vídeo de sexo. — Com a lembrança, Carol bufou numa risada. — Era um pouco tremido, mas, acredite em mim, você nunca deve ter visto John Major e Margaret Thatcher se dando tão bem! Redefiniu todo o sentido da palavra “burocratês”!
Tony fitou Carol num silêncio aturdido.
— Você está de brincadeira comigo — disse ele.
— É a explicação perfeita de por que os vídeos conseguem mantê-lo sob controle.
— Isso não significaria que ele teria de ser um verdadeiro nerd, como o seu irmão?
— Acho que não — respondeu Carol. — Pelo que entendi, as técnicas reais envolvidas são muito simples. Mas o software e os periféricos necessários para fazer isso são incrivelmente caros. Podíamos estar falando em duas ou três mil libras só por um dos produtos. Então, ou ele trabalha para uma empresa onde tem esse tipo de equipamento disponível para uso e possui privacidade para realizar esses trabalhos, ou então ele é um viciado em computadores com muito dinheiro disponível.
— Ou um ladrão — acrescentou Tony, meio de brincadeira.
— Ou um ladrão — concordou Carol.
— Não sei — disse Tony em dúvida. — Responde ao problema, mas é totalmente bizarro.
— E o Faz-tudo não é? — contestou Carol de modo agressivo.
— Ah, ele é bizarro, é verdade, mas não tenho certeza de que é tão equilibrado assim.
— Ele constrói máquinas de tortura. Isso seria muito mais fácil com um programa de computador de design, Tony. Algo o está mantendo estável em seu ciclo de oito semanas. Por que não isso?
— É uma possibilidade, Carol, não mais que isso nesse estágio. Olhe, por que você não faz algumas investigações preliminares para ver o quanto isso seria plausível na prática?
— Você não quer incluir isso no perfil? — perguntou Carol, amargamente decepcionada.
— Não quero prejudicar as coisas que sinto que são muito prováveis incluindo algo que é realmente apenas uma proposta experimental por enquanto. Você mesma admitiu que essa ideia foi fruto de uma das poucas partes do perfil que não passam de especulação. Não me entenda mal, não estou querendo arranjar defeitos. Acho que sua teoria é brilhante. Mas teremos de trabalhar muito duro para que ela supere a resistência de certos grupos ao perfil como um todo. Mesmo pessoas que estão apoiando abertamente o desenvolvimento desse perfil não concordarão necessariamente com partes dele. Então não vamos lhes dar nenhum alvo fácil. Vamos fundamentar o perfil, apresentá-lo embalado para presente, de modo que os críticos não possam arruinar tudo de cara. Certo?
— Certo — concordou ela, sabendo em seu coração que ele tinha razão. Carol pegou uma folha de papel e uma caneta. — Verificar fabricantes de software e consultorias na área de Bradfield — murmurou para si mesma enquanto escrevia. — Checar com Michael os fabricantes do hardware/software necessário, depois apurar os registros de venda. Verificar roubos recentes.
— Grupos de usuários — acrescentou Tony.
— Sim, obrigada — disse Carol, adicionando o item à sua lista. — E fóruns de discussão. Ah, eu vou ser muito popular com a equipe do HOLMES.
Ela se levantou.
— Vai ser um longo trabalho. É melhor eu pôr a mão na massa. Vou levar isso para Scargill Street agora e entregá-lo ao sr. Brandon. Vamos precisar que você venha e explique tudo.
— Sem problema — disse Tony.
— Estou feliz que algo não seja.
Tony olhou para fora da janela do bonde, observando as luzes da cidade passarem numa névoa chuvosa. Havia certa aparência de casulo no interior branco brilhante do bonde. Sem pichação, aquecido, limpo; parecia um lugar seguro para estar. Quando o condutor se aproximou do semáforo, ele emitiu o toque soprado. Soava como um ruído da infância, o tipo de apito que um trem de desenho animado produziria, concluiu.
Ele se virou da janela e estudou secretamente a meia dúzia de outros passageiros no bonde. Qualquer coisa que tirasse sua mente do estranho vazio que sentia agora que tinha entregado seu perfil. Não significava que esse era o fim do envolvimento com o caso. Brandon contara a Carol que ele teria uma reunião diária com ela.
Tony se arrependia de não ter sido mais encorajador quanto à teoria sobre os computadores, mas anos de treinamento e prática haviam deixado arraigado o hábito da cautela. A ideia em si era brilhante. Depois que ela tivesse feito alguma pesquisa sobre o lado prático do que estava sugerindo, ele ficaria muito satisfeito em endossá-la com seus colegas. Mas, para garantir a credibilidade do perfil, ele precisava manter à distância ideias que um policial mediano descartaria como ficção científica.
Ele se perguntava como a polícia estava se saindo naquela noite. Carol tinha ligado para ele para dizer que as equipes estavam nas ruas em Temple Fields, procurando entre os frequentadores habituais da área, tentando ver se as sugestões de perfil geravam alguma identificação de suspeito. Com sorte, talvez obtivessem alguns nomes com os quais fariam referência cruzada nos dados disponíveis no HOLMES, seja por antecedentes criminais ou placas de automóveis cujos proprietários registrados foram inseridos no sistema.
— Próxima parada estação Bank Vale, estação Bank Vale próxima parada — anunciava a voz eletrônica nos alto-falantes. Com um sobressalto, Tony percebeu que tinha deixado o centro da cidade muito para trás e estava chegando ao outro lado do Carlton Park, menos de um quilômetro e meio de sua casa. A estação Bank Vale chegou e foi embora, e Tony se virou em seu banco, pronto para se dirigir à saída quando a próxima parada fosse anunciada.
Ele caminhou rapidamente pelas ruas organizadas do subúrbio, passou pelos campos esportivos da escola, circundando o pequeno bosque denso que era tudo que restava da fazenda que tinha dado nome à região de Woodside. Tony olhou para as árvores enquanto passava apressadamente por elas, pensando ironicamente que o caminho que cortava em diagonal pelo bosque quase com certeza estaria completamente deserto. Primeiro foram as mulheres que voltavam para casa sozinhas que o abandonaram. Depois, foram as crianças, que os pais preocupados mantinham distantes do lugar. Agora, em Bradfield, eram os homens que estavam aprendendo as lições amargas da vida em risco.
Tony entrou em sua rua, desfrutando a quietude do beco sem-saída. Ele atravessaria aquela noite de alguma forma. Talvez fosse ao supermercado comprar os ingredientes para um biryani de frango. Talvez alugasse um filme ou atualizasse sua leitura.
Enquanto virava a chave na fechadura, o telefone começou a tocar. Deixando cair sua pasta, Tony correu para o telefone, chutando a porta atrás de si. Ele pegou o aparelho, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, a voz dela pingou em seu ouvido como azeite de oliva quente que alivia uma dor de ouvido.
— Anthony, querido, você parece ofegante por mim.
Ele conseguiu evitar pensar nisso por todo o caminho para casa, mas sabia que vinha esperando por aquilo.
Brandon tinha desligado a luminária ao lado da cama a menos de um minuto quando o telefone tocou.
— Você bem devia saber — murmurou Maggie, enquanto ele se arrastava do calor solícito dela e se esticava para pegar o aparelho.
— Brandon — rosnou ele, identificando-se.
— Senhor, aqui é o inspetor Matthews — disse a voz cansada. — Acabamos de pegar Stevie McConnell. Os rapazes o prenderam no porto de balsas em Seaford. Ele estava prestes a embarcar para Roterdã.
Brandon levantou o corpo e se sentou sobre o edredom embaralhado, ignorando os protestos de Maggie.
— O que eles fizeram?
— Bem, senhor, eles não acharam que havia muito que pudessem fazer, uma vez que ele está solto sob fiança e não há condições que possa violar.
— Ele está detido? — Brandon estava fora da cama e abria a gaveta de roupa íntima.
— Sim, senhor. Eles estão com ele na sala da alfândega.
— Sob que alegação?
— Agredir um policial.
A voz de Kevin de alguma forma convocava a imagem de um sorriso tão incorpóreo quanto o do gato de Alice no país das maravilhas.
— Eles me ligaram para perguntar o que deviam fazer em seguida, e, uma vez que o senhor tomou um grande interesse pessoal no caso, achei que devia perguntar ao senhor primeiro.
Não force a barra, pensou Brandon furioso. Tudo que disse, porém, foi:
— Eu teria achado que era bem óbvio. Prenda-o por atrapalhar uma investigação criminal e traga-o de volta para Bradfield.
Ele lutou para entrar numa cueca samba-canção e se inclinou para pegar as calças nas costas de uma cadeira.
— Pedimos então aos juízes leigos para recusarem a liberdade em fiança dessa vez? — A voz de Kevin era tão doce que estava prestes a lhe custar os dentes, e não por nenhuma cárie.
— Isso é o que normalmente faríamos se tivéssemos fundamentos para isso, inspetor. Obrigado por me manter informado.
— Mais uma coisa, senhor — disse Kevin, de modo servil.
— O quê? — rosnou Brandon.
— Os oficiais também precisaram fazer outra prisão.
— Outra prisão? Quem diabos mais eles tiveram de prender?
— O superintendente Cross, senhor. Ao que parece, ele estava tentando impedir à força que McConnell embarcasse.
Brandon fechou os olhos e contou até dez.
— McConnell foi ferido?
— Aparentemente não, senhor. Ele só ficou um pouco agitado. O superintendente ficou com um olho roxo, no entanto.
— Ótimo. Diga para deixarem Cross ir para casa. E peça a ele que me ligue amanhã, tudo bem, inspetor?
Brandon recolocou o telefone no gancho e se inclinou para beijar a esposa, que recuperara o edredom e estava bem enrolada como um arganaz hibernando.
— Hum — murmurou Maggie. — Tem certeza de que precisa ir?
— Não é minha definição de diversão, acredite em mim, mas quero estar presente quando eles trouxerem esse preso. Ele é o tipo de cara que pode cair da escada.
— Um problema com o equilíbrio dele?
Brandon sacudiu a cabeça com gravidade.
— Não o dele. Outras pessoas às vezes ficam um pouco desequilibradas, amor. Já tivemos um rebelde à espreita esta noite. Não vou arriscar mais. Vejo você quando puder.
Quinze minutos mais tarde, Brandon entrava na sala da delegacia de homicídios. Kevin Matthews estava debruçado sobre uma escrivaninha do outro lado da sala, segurando a cabeça nas mãos. Ao se aproximar, Brandon ouviu o ronco baixo da respiração de Kevin. Ele se perguntou quando alguém da delegacia teria tido sua última noite inteira de sono. Os erros graves eram resultado do cansaço e da tensão dos policiais. Brandon queria evitar desesperadamente que seu nome ficasse na berlinda dali a dez anos como o daquele homem que arquitetou um formidável erro judicial, e ele faria qualquer coisa para evitar isso. Havia apenas um problema nisso, reconheceu ironicamente para si mesmo enquanto se sentava de frente para Kevin. A fim de ter as rédeas da investigação, ele precisava trabalhar pelo mesmo número ridículo de horas que levava aos próprios erros de julgamento que queria evitar. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ele havia lido um livro com um dilema assim, fazia alguns anos, quando Maggie decidiu fazer aulas noturnas e fazer os exames de nível médio que não tinha concluído. Ela dissera que Ardil 22 era um livro maravilhoso, engraçado, brutal, de profunda sátira. Ele o achara quase excessivamente penoso. O livro lhe lembrava demais o trabalho. Especialmente em noites como a de hoje em que homens antes equilibrados se tornavam bandoleiros.
O telefone tocou. Kevin se mexeu, mas não acordou. Com uma expressão compreensiva, Brandon se esticou e apanhou o aparelho.
— Departamento de Investigações Criminais. Brandon falando.
Houve um confuso silêncio momentâneo. Em seguida, uma voz tensa disse:
— Senhor? Sargento Merrick na linha. Senhor, encontramos mais um corpo.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 014
Levar Gareth para o Carlton Park foi mais difícil do que eu previra. Eu havia feito o reconhecimento do lugar com cuidado e pensara que poderia dirigir até a estrada de acesso usada pelos jardineiros. O que eu não tinha levado em conta era a longa folga do Natal. A estrada estava bloqueada por duas colunas de metal encaixadas no asfalto e presas no lugar com cadeados pesados. Provavelmente eu conseguiria passar pela beirada da pista já que o 4x4 não teria problema em aplainar os pequenos arbustos que ladeavam a estrada. Mas eu deixaria inevitavelmente rastros de pneu e provavelmente minúsculos vestígios de tinta. Não tinha intenção de permitir que Gareth me privasse de minha liberdade, então essa não era uma opção para mim.
Estacionei o 4x4 atrás do galpão de depósito onde os funcionários do parque deixavam seus equipamentos. Pelo menos lá eu estava fora da vista tanto da estrada quanto do parque. Não haveria muitas pessoas por ali às duas horas na madrugada do dia seguinte ao Natal, mas o sucesso depende de esforço.
Saí do 4x4 e sondei em volta. O galpão estava fora de questão; ele tinha um alarme contra invasores. Mas os deuses estavam sorrindo para mim. Em volta da lateral do galpão, havia um pequeno carrinho de madeira do tipo que os carregadores de bagagem costumavam usar para percorrer as plataformas das estações na época em que os ferroviários não pensavam que mover bagagem fosse algo abaixo deles. Os jardineiros provavelmente o usavam para transportar plantas pelo parque. Empurrei-o de volta até o 4x4 e joguei o corpo nu de Gareth nele. Enfiei alguns sacos plásticos pretos de lixo em volta do cadáver, aplicando nos eixos um rápido borrifo de óleo lubrificante para consertar um rangido desagradável, e depois me encaminhei furtivamente para a moita.
Novamente, tive sorte. Não vi ninguém. Guiava o carrinho em volta até os fundos do coreto, próximo aos arbustos que encobriam a inclinação acentuada que havia atrás. No fim do caminho, empurrei-o na borda da grama e para dentro dos arbustos. Depois, com a preocupação de não deixar pegadas no chão mole, trepei no carrinho e rolei o corpo de Gareth para fora, entrando nos arbustos. Recuei e puxei o carrinho atrás de mim. Os arbustos pareciam um pouco maltratados, mas não havia sinal de Gareth. Com sorte, ele permaneceria sem ser descoberto até que o carteiro entregasse minha mensagem de Natal para o jornal.
Dez minutos mais tarde, o carrinho estava de volta no lugar e eu estava investigando furtivamente a saída do parque em uma alameda tranquila em frente ao adro. Muito embora as chances de que me identificassem fossem pequenas, aguardei até que a estrada principal estivesse visível antes de acender meus faróis. Ao contrário de Temple Fields, essa era exatamente o tipo de área onde algum insone intrometido notaria um veículo estranho na madrugada.
Dirigi para casa e dormi durante doze horas, acordando em tempo para algumas horinhas interessantes no meu computador antes de sair para trabalhar. Por sorte, foi uma noite agitada, por isso tive muitos problemas para tirar minha mente da ansiedade com o Sentinel Times do dia seguinte.
Eles me fizeram sentir orgulho, apesar do curto tempo que tiveram para lidar com minha mensagem. Obviamente, entraram em contato com a polícia de imediato e conseguiram convencê-la a levá-los a sério. Deram-me a primeira página completa com uma fotografia da minha mensagem, embora sem nada que identificasse a origem do cartão.
ASSASSINO ALERTA BEST!
A vítima nua e mutilada de um assassino doentio foi encontrada num parque da cidade após uma mensagem bizarra enviada ao Sentinel Times.
O assassino, que assina como “Papai Noel”, revela num terrível cartão de Natal que havia descartado o cadáver no Carlton Park.
O comunicado mórbido parecia ter sido escrito com sangue e estava rabiscado no cartão de Natal empresarial de uma das principais firmas de advocacia da cidade.
Veio acompanhado por um vídeo caseiro do local do corpo, que a equipe do BEST imediatamente reconheceu pelo característico coreto em Park Hill.
Alertado pelos nossos repórteres, um policial enviou um pelotão de policiais uniformizados e à paisana para a área mencionada do parque.
Depois de uma rápida busca entre os arbustos nas proximidades da trilha e do coreto, conforme indicado no vídeo, um policial uniformizado encontrou o cadáver de um homem.
De acordo com as fontes da polícia, o corpo estava nu. A garganta do homem tinha sido cortada e seu corpo estava mutilado.
Acredita-se que ele pode ter sido torturado antes de morrer.
Embora essa área de Carlton Park seja conhecida como um local de encontros casuais de homossexuais ávidos por sexo, a polícia não está no momento conectando esse crime ao assassinato de dois jovens, ocorrido anteriormente neste ano, cujos corpos foram descartados no “bairro gay” de Temple Fields.
O corpo ainda não foi identificado, e a polícia não divulgou uma descrição da vítima, que se acredita estava no final de seus vinte anos ou no início dos trinta.
O pacote, que foi postado na véspera do Natal em Bradfield, chegou aos escritórios do Sentinel Times no correio desta manhã, endereçado ao editor de notícias, Matt Smethwick.
O sr. Smethwick disse: “Meu primeiro pensamento foi que alguém estava fazendo uma brincadeira de mau gosto, principalmente porque conheço um dos advogados na referida firma.
“Depois percebi que meu amigo estava fora do país, de férias, esquiando, então não poderia ter sido ele quem postou o pacote.
“Telefonei para a polícia imediatamente e, por sorte, eles levaram a sério.”
Era de se supor. Nunca na vida falei tão sério. Apesar do que a polícia estava dizendo, o pensamento de que Gareth era o terceiro de uma série devia passar por suas mentes numa curta viagem. Certamente isso não escapou à atenção dos jornalistas, que usaram a mais recente descoberta como uma desculpa para repetir as matérias sobre os assassinatos de Adam e Paul. Quando a edição final da cidade chegou às ruas, eles tinham até encontrado um acadêmico de aluguel para tagarelar.
DENTRO DA MENTE DE UM ASSASSINO
O homem que o Ministério do Interior escolheu para liderar a caçada a serial killers falou hoje sobre o último assassinato que aterrorizou a comunidade gay da cidade.
Há um ano, o psicólogo forense Tony Hill realiza um amplo estudo, com financiamento do governo, que levará à criação de uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais similar à unidade do FBI que figurou no filme
O silêncio dos inocentes.
Dr. Hill, de trinta e quatro anos, foi psicólogo clínico-chefe no Blamires Hospital, o sanatório de segurança máxima que abriga os criminosos insanos mais perigosos do Reino Unido, incluindo o assassino em massa David Harney e o serial killer Keith Pond, o Maníaco da Autoestrada.
Dando seu veredicto, o dr. Hill afirmou: “Não fui convocado pela polícia para oferecer consultoria em nenhum desses casos, então não sei mais que seus leitores sobre eles.
“Reluto em fazer julgamentos apressados, mas, se fosse obrigado, eu diria que é certamente possível, e talvez provável, que os assassinatos de Adam Scott e Paul Gibbs tenham sido cometidos pela mesma pessoa.
“Superficialmente, o assassinato mais recente foi parecido, mas há certas diferenças cruciais. Para começar, o corpo foi descoberto num tipo de local bem diferente. Muito embora Carlton Park também seja conhecido como uma área de público gay, sua atmosfera é bastante diversa do ambiente da Temple Fields urbana.
“Além disso, o envio da mensagem para o Sentinel Times é uma variação importante. Nada similar aconteceu nos casos anteriores, e o assassino não faz referência às outras mortes.
“Isso me inclina a pensar que podemos estar lidando com pelo menos dois indivíduos diferentes neste caso.”
E assim por diante, tudo na mesma toada. Tudo dizendo em néon: “Não temos a menor ideia de por onde começar a procurar.” Não achei que me preocupar com Tony Hill fosse me tirar o sono à noite. Decidi que era hora de ensinar às autoridades algumas lições que elas não iam esquecer tão cedo.
14
Um homem não está obrigado a pôr olhos, ouvidos e entendimento no bolso de suas calças quando se depara com um homicídio. Se ele não estiver em coma absoluto, presumo que deve perceber que um assassinato é melhor ou pior que outro, com relação ao bom gosto. Os assassinatos têm suas pequenas diferenças e matizes de mérito, da mesma forma que estátuas, pinturas, oratórios, camafeus, entalhes e quejandos.
Tony estava esparramado em sua banheira, com uma taça de conhaque à mão. Lânguido, relaxado, extremamente cansado, ele não conseguia se lembrar da última vez que se sentira confortável e otimista assim. Suas experiências ao telefone com Angelica, aliadas à sua convicção de que fizera um bom trabalho no perfil, haviam lhe conferido esperança nova. Talvez ele não precisasse ser incapaz. Talvez pudesse se juntar ao resto do mundo, aqueles que lidavam com os problemas, que assimilavam o passado e moldavam seu mundo de acordo com o que queriam ver.
— Posso mudar minha vida — declarou.
O telefone sem fio tocou. Num movimento lento e fluido, Tony se esticou para pegá-lo. Ele não guardava nenhum terror para ele agora. Estranhamente, ele não temia mais as ligações de Angelica, mas as recebia com alegria.
—Alô — atendeu com animação.
— Tony, é John Brandon. Estou mandando uma viatura buscá-lo. Temos mais um.
Tony se sentou, a água formando pequenas ondas para cima e para baixo como um experimento num laboratório marinho.
— Você tem certeza?
— Carol Jordan e Don Merrick chegaram à cena do crime cinco minutos depois da chamada.
Tony apertou os olhos com força.
— Ah, meu Deus — murmurou. — Onde está o corpo?
— Nos banheiros públicos da Clifton Street. Temple Fields.
Tony se levantou e saiu da banheira.
— Vejo você lá — disse ele, desanimado.
— Tudo bem, Tony. O carro deve chegar em cinco minutos aproximadamente.
— Estarei pronto.
Tony cortou a ligação e saiu do banheiro, enxugando-se com uma toalha enquanto andava. Sua cabeça estava agitada. Ele pôs jeans, camiseta, camisa, suéter e uma jaqueta de couro, adicionando um par extra de meias quando se lembrou do frio da noite. A campainha tocou no momento em que ele estava amarrando os cadarços das botas.
No carro da patrulha, a atmosfera de tensão impedia qualquer possibilidade de pensamento construtivo enquanto eles voavam pelas ruas noturnas, a luz azul piscando em rápida sucessão contra o laranja espectral dos postes de iluminação. Sua companhia, uma dupla de policiais de trânsito machões, mantinha uma pose taciturna de absoluto controle que não se prestava à conversa. Cantando pneus, eles entraram a toda a velocidade na Clifton Street, o motorista forçando os freios ABS ao ver as fitas da polícia que impediam o acesso à parte central da rua.
Ergueram a fita para Tony, que se encaminhou para o meio da rua onde um grupo de viaturas e uma ambulância estavam estacionados em ângulos aparentemente aleatórios. Quando se aproximou, ele conseguiu ver que a placa que indicava os banheiros públicos estava acesa, contrastando com a escuridão ameaçadora do prédio. Ao lado da ambulância, identificou a figura destacada de Don Merrick, inconfundível com sua cabeça enfaixada. Ignorado pelos policiais que circulavam, Tony forçou o caminho até Merrick, que estava profundamente envolvido numa conversa ao celular. Ele deu um aceno rápido para sinalizar que o tinha visto.
— Tudo bem, obrigado, desculpe incomodar. — encerrou, desligando o telefone.
— Sargento — disse Tony. — Estou procurando o sr. Brandon. Ou a inspetora Jordan.
Merrick acenou positivamente com a cabeça.
— Os dois estão lá dentro. Vai querer dar uma olhada também, imagino.
— Quem encontrou o corpo?
— Uma das prostitutas. Ela alega que todos os banheiros femininos estavam cheios e, por isso, ela entrou no compartimento para deficientes. Quanto a mim, aposto que ela estava com um cliente. Ele deu no pé ao primeiro sinal de encrenca.
Com o canto dos olhos, Tony viu Carol surgir do banheiro. Ela veio direto até eles.
— Obrigada por vir — disse ela enquanto Merrick se distanciava e continuava fazendo suas ligações.
— Se eu dissesse que não perderia por nada, alguém quase com certeza entenderia do modo errado — respondeu Tony com ironia. — O que faz você pensar que seja o Faz-tudo?
— A vítima está nua, e sua garganta foi cortada. Ele obviamente foi trazido aqui numa cadeira de rodas, mas foi lançado ao chão. E, sobre ele, havia a primeira página do Sentinel Times da noite passada — respondeu Carol, com a voz tensa e os olhos abatidos. — Nós o provocamos, não foi?
— Nós, não. O jornal pode ter provocado; nós, não — disse Tony gravemente. — Não esperava que ele reagisse rápido assim, no entanto.
Merrick se aproximou novamente e disse com animação:
— Parece que rastreamos a cadeira de rodas. Uma se escafedeu da recepção de uma maternidade mais cedo à noite. Com um pouco de sorte, alguém pode ter visto.
— Bom trabalho, Don — disse Carol. — Vamos dar uma olhada, então? — perguntou ela a Tony. Ele assentiu e a seguiu, enquanto a detetive forçava com os ombros a passagem até a entrada do banheiro pelos policiais que circulavam. Tony andou devagar até os lavatórios, fazendo um inventário mental enquanto olhava em volta, consciente do piso emborrachado preto com círculos salientes, do padrão aparentemente aleatório dos azulejos cinza e pretos na parede, do grafite ousado, do ar úmido do esgoto não tratado, do cheiro de desinfetante mal disfarçando o mijo. No lado de dentro, os banheiros se dividiam em dois: homens na esquerda, mulheres na direita. O banheiro para deficientes ficava à direita, logo ao lado da entrada do feminino. Brandon e Kevin Matthews estavam parados ao lado da porta, olhando para dentro pelo amplo vão. Tony andou até eles e se juntou ao mau humor e à silenciosa comunhão dos dois. Um fotógrafo estava na porta, com um dos lados do corpo para fora, registrando uma cena que mexeria profundamente com um júri, desde que os homens de Brandon conseguissem levar o Faz-tudo até eles. A cada poucos segundos, a luz branquíssima do flash gravava a cena nas retinas dos homens que observavam.
Tony fitou o corpo estendido no chão. Encontrava-se, como Carol tinha dito, nu, mas não estava limpo. Havia manchas de algum tipo de substância escura e oleosa nos joelhos, cotovelos e em um dos tornozelos. E também manchas de sangue no corpo. O corte na garganta era extenso, mas não profundo o suficiente para ter causado a morte, suspeitava Tony. O tanto que ele conseguia ver, os órgãos sexuais não tinham sido lesionados, mas o reto e o ânus do homem e a carne macia em volta tinham sido removidos barbaramente com cortes profundos feitos por uma lâmina afiada. Uma onda cálida de alívio o percorreu, forçando-o a reconhecer o que ele vinha se recusando a pensar. Como Carol, ele também tinha medo que, de alguma forma, suas atividades tivessem provocado o Faz-tudo a interromper seu ciclo e atacar novamente. Desde o telefonema de Brandon, esse horror pousava em seu ombro como uma ave de rapina malévola.
Tony se voltou para Brandon e disse sem emoção:
— Não foi ele. Trata-se de um imitador.
• • •
Das sombras na extremidade da Clifton Street, com o colarinho do casaco virado para cima, Tom Cross se juntou às pessoas morbidamente interessadas, que pareciam surgir de debaixo da própria calçada, e observavam a dança ritual de uma investigação de cena de crime. Seus lábios se contorceram num sorriso apertado, e ele se aprofundou nas sombras. Tirou sua agenda do bolso interno e arrancou uma página para fazer anotações. Sob a luz tênue do poste de iluminação, ele escreveu: “Caro Kevin, aposto um tostão contra um relógio de ouro que o Assassino de Bonecas não cometeu esse crime. Abraços, Tom.”
Seaford tinha sido motivo de embaraço e dor, mas Tom Cross não era um homem que permitia que a humilhação ficasse no caminho de seu objetivo. Ele dobrou a anotação em quatro e escreveu: “Detetive-inspetor Kevin Matthews. Pessoal”. Depois, forçou o caminho pela multidão até que identificou o olhar de um dos policiais atrás da fita.
— Você sabe quem eu sou, não sabe, rapaz? — interpelou Cross.
O policial fez que sim com hesitação, lançando um rápido olhar para cada um dos lados, verificando quem observava seu encontro com o atual leproso da força.
Cross apresentou o bilhete.
— Certifique-se de que o inspetor Matthews receba isso, por favor.
— Sim, senhor — respondeu o policial com esperteza, envolvendo o bilhete em seu punho enluvado e encontrando um momento para se perguntar quem teria a coragem de dar a Popeye Cross um olho roxo como aquele.
— Vou me lembrar de você quando estiver de volta à rotina — disse Cross por sobre o ombro enquanto forçava o caminho pelos espectadores.
Cross cortou o caminho por um beco até o Volvo, estacionado em frente à saída de incêndio de uma boate. O dia tinha sido longe de satisfatório, e a manhã não guardava promessas de melhora. Mas a real convicção na veracidade de sua mensagem a Kevin Matthews fez Tom Cross sentir que houvera algum sentido em suas atividades.
— A autópsia vai me respaldar — disse Tony, com teimosia. — Quem quer que tenha matado esse cara, não foi nosso serial killer.
Bob Stansfield fechou a cara.
— Não vejo como pode ter tanta certeza, só por causa de algumas manchas de óleo.
— Não é só porque o corpo não estava limpo.
Tony marcava os pontos com seus dedos.
— Ele está na faixa etária errada. Ele tem vinte anos, talvez nem isso. Longe de estar no armário, ele era bem conhecido no meio gay. Você o teria identificado às três da manhã.
Kevin Matthews fez que sim.
— Bem conhecido na Delegacia de Costumes. Chaz Collins. Um ex-garoto de programa que trabalhava num bar e gostava de sexo selvagem.
— Exato — disse Tony. — Além disso, não há uma marca em seu pênis ou testículos, ao passo que nosso assassino foi progressivamente mais violento com esses órgãos. Tudo que foi informado à imprensa até agora é que as vítimas foram mutiladas sexualmente. Não indicamos como ou onde. Esse assassino interpretou isso como uma justificativa para se livrar de toda a região anal. Suspeito que fez isso porque estuprou a vítima antes de matá-la e queria garantir que a perícia não encontraria resquícios do seu sêmen.
Tony pausou para organizar seus pensamentos e para servir-se de outra xícara de café do bule que a cantina enviara com o carrinho de café da manhã pedido por John Brandon para sua reunião matinal.
— A cadeira de rodas — disse Carol. — Ele assumiu um grande risco roubando-a da maternidade. Não acho que se ajuste ao comportamento cauteloso que o serial killer vinha demonstrando até agora.
— E ele não foi torturado — acrescentou Kevin, com a boca cheia de rolinho de linguiça e ovo. — Ou pelo menos não de um modo óbvio.
Ele tinha um bilhete em seu bolso que determinaria sua visão tanto quanto qualquer coisa dita dentro dessa sala. Popeye podia estar fora do emprego, mas Kevin apoiaria o instinto dele contra o de qualquer outra pessoa.
Mas Bob Stansfield não estava disposto a desistir.
— Tudo bem, e se ele estiver fazendo de modo diferente para nos fazer pensar que é um imitador? E se ele estiver deliberadamente tentando nos confundir? Afinal, não dá para ignorar o jornal posto ali. E o perfil do dr. Hill nos alertou que o estresse da cobertura do jornal poderia atrapalhar seu padrão.
Tony continuou montando cuidadosamente um rolo de bacon e ovos. Ele esguichou um círculo de molho marrom em volta da gema, fechou a tampa, pressionou para que a gema se rompesse, depois disse:
— Não há nada errado nisso como teoria. É perfeitamente plausível que ele tente matar apenas para exibir suas habilidades. Não seria planejado com tanta antecedência como os outros, por isso sua escolha de vítima poderia ser muito diferente. Mas o padrão básico seria o mesmo.
— Mas é o mesmo — insistiu Stansfield. — Cortaram a garganta do rapaz do mesmo jeito que a dos outros. E esse filho da mãe bagunçou ele de verdade. Como você pode dizer que ele não foi torturado olhando o estado da bunda dele?
— Se eu tivesse que dar um palpite, apostaria cem contra um que Chaz Collins não morreu por causa do corte na garganta. Aposto que ele foi estrangulado com as mãos e sua garganta foi cortada depois para fazer com que parecesse uma das vítimas do serial killer. Acho que o que aconteceu aqui foi que o sexo selvagem saiu um pouco do controle. Chaz estava lutando enquanto era sodomizado, e seu parceiro o agarrou em volta da garganta para fazê-lo se acalmar. No frenesi do orgasmo, ele deve ter apertado forte demais e encontrado um cadáver em suas mãos. Sua única chance de se safar disso era fazer parecer obra do serial killer e, por via das dúvidas, caso não entendamos a mensagem, ainda deixou o jornal da noite anterior sobre o cadáver.
— É certamente plausível — disse Brandon, limpando meticulosamente seus dedos engordurados num lenço de papel de um pacote que tirou do bolso.
— Acho que Tony tem razão — disse Carol decididamente. — Minha primeira reação foi que essa era a quinta vítima, mas quanto mais penso a respeito, mais acho que estava errada. Você sabe o que encerra o assunto para mim?
Quatro pares de olhos a fitaram, confusos. Ela se sentiu sob mais pressão do que no banco de testemunhas.
— Ontem à noite não era segunda-feira.
Tony sorriu. Stansfield virou os olhos para cima. Kevin assentiu com relutância, e Brandon disse:
— Você acha que o dia da semana é importante a esse ponto para ele?
Carol fez que sim.
— Há obviamente algum motivo muito forte para ele escolher as segundas, seja porque é prático ou por alguma superstição. E seja o que for, significa muito para ele. Não acho que fosse violar isso só para mandar a gente se ferrar.
— Concordo com Carol — interveio Kevin. — Não só por causa do dia da semana. As outras coisas também.
Stansfield dava a impressão de estar surpreso.
— Bem, eu obviamente fui derrotado nessa votação — observou ele com bom humor. — Vai ser um caso diferente. Quem vai cuidar dele, então?
Brandon suspirou.
— Vou ter uma palavra com o superintendente-chefe Sharpies na central, jogar a responsabilidade para ele. Se não for um de nós, vai ser culpa do inspetor-chefe.
— Ele está doente e não veio trabalhar — lembrou Kevin de modo distraído.
— Sim, está. Bem, será passado para qualquer inspetor que tiver a má sorte de passar aqui pela manhã. No entanto, sei que os eventos da noite passada nos privaram da chance de dar ao perfil do dr. Hill a atenção que merecia, mas acho que devíamos... — Brandon foi interrompido por uma batida na porta.
— Entre — disse ele, tentando evitar que sua irritação transparecesse em sua voz.
O sargento uniformizado de plantão chegou com alguns envelopes.
— Estes acabaram de chegar, senhor. Um da perícia, outro do laboratório de patologia — informou, depositando-os na mesa em frente a Brandon.
Ele já tinha ido embora quando Brandon tirou um maço de folhas de cada.
Os outros esconderam sua impaciência enquanto Brandon passava os olhos nas descobertas preliminares do patologista.
— “Caro John” — leu em voz alta —, “sei que deve estar ansioso por algo sobre isso, já que, aparentemente, seu serial killer finalmente deixou alguns indícios forenses. A má notícia é que não acho que seja obra do mesmo criminoso. A vítima já estava morta por asfixia antes que a garganta fosse cortada. É provável que tenha sido estrangulado com as mãos. Além disso, não acho que ele foi cortado com a mesma lâmina que as outras quatro vítimas anteriores. Aparentemente, essa era uma lâmina mais grossa e mais comprida, mais parecida com uma faca de fatiar. Ao passo que, como você sabe, acredito que as anteriores foram feitas com algo mais parecido com uma faca para desossar. A hora da morte eu diria que foi entre oito e dez da noite passada. Vou lhe enviar um relatório completo assim que...” blá-blá-blá. Bem, parece que você tinha razão, Tony.
— Ainda bem que concordei em não discutir com você a tempo, senão eu ia ficar parecendo um bocó — disse Bob Stansfield, estendendo a mão para o psicólogo.
— Boa, doutor — disse Carol, sorrindo veladamente. Graças a Deus o resto da equipe finalmente estava começando a aceitar que Tony tinha algo que valia a pena para dizer. Era impressionante como a atmosfera se tornou diferente após a saída de Cross.
Kevin se mexeu desconfortavelmente na cadeira e disse:
— O que a perícia tem a dizer? Algo sobre nossos casos, ou são apenas coisas preliminares sobre Chaz Collins?
Brandon folheou os outros papéis.
— Preliminares... Preliminares... — Ele inspirou com força. — Céus — disse ele, com repugnância e perplexidade em sua voz.
— O que foi, senhor? — perguntou Carol.
Brandon esfregou uma das mãos em seu rosto comprido e olhou novamente para o papel, como se para verificar se não tinha se enganado.
— Eles vêm analisando as queimaduras no corpo de Damien Connolly. Tentando descobrir o que as causou.
Tony ficou imóvel, a última mordida de seu sanduíche a meio caminho da boca.
— Então qual é o veredicto? — interpelou Bob Stansfield, abruptamente.
— Isso é uma loucura completa — avisou Brandon. — A única explicação de que os peritos conseguiram se aproximar é a decoração para um bolo pronto.
— É claro — disse Tony de modo vago, um sorriso distante fazendo brilhar seus olhos. — Todos os formatos de estrelas diferentes. É óbvio, depois que alguém enxerga isso.
Ele ficou subitamente consciente de que os outros quatro estavam olhando para ele. Apenas Carol parecia preocupada. Nos outros rostos, ele viu expressões que tinha visto antes. Cautela, repugnância, nojo, incompreensão.
— Verdadeiro maluco — disse Stansfield amargamente. Ninguém tinha certeza se ele queria dizer o assassino ou Tony.
No dia em que Penny Burgess assumiu a editoria de crimes do Bradfield Evening Sentinel Times, ela resolveu que teria melhores contatos do que qualquer um dos seus antecessores homens tinha conseguido. Ela percebeu que os rituais masculinos da loja maçônica e da reunião social entre homens permaneceriam mundos fechados para ela, mas decidiu que nada importante aconteceria neles sem o seu conhecimento.
Não foi surpreendente, portanto, que seu telefone residencial tivesse tocado duas vezes entre seis e sete da manhã. As duas ligações eram de policiais, dando conta de que o homem que tinha sido interrogado anteriormente em relação aos Assassinatos de Bonecas tinha sido preso tentando deixar o país. O milagre foi contado sem dizer o nome do santo, mas o suspeito anônimo estaria de pé perante os juízes leigos naquela manhã para ser recolhido à prisão sob a acusação de tentar cometer obstrução de justiça. Em seguida à descoberta de um quinto corpo que havia deixado Penny de pé até mais de duas da manhã, a conexão era óbvia.
Penny sorriu com seus botões enquanto tomava sua segunda xícara de chá Earl Grey forte. Seria outra primeira página para ela naquela noite, desde que o editor e o advogado não perdessem a coragem. Ela deixou sua xícara e tigela de cereal na pia e pegou o casaco. De qualquer forma, seria um dia interessante.
• • •
Carol tinha sido escolhida para ir ao tribunal e garantir que tudo saísse de acordo com o planejado perante os juízes leigos.
Stansfield e Kevin tinham um acúmulo de investigações de rotina para dar conta, e Tony tinha ido a Leeds para cumprir um compromisso antigo com um psicólogo acadêmico canadense que estava participando de um congresso na cidade. Eles precisavam, justificou Tony, discutir algum aspecto esquisito do seu estudo da força-tarefa.
— Mapeamento conceitual — contou a ela enquanto roubavam alguns minutos juntos depois da reunião do grupo.
Teria dado na mesma se ele tivesse dito “mecânica quântica”, pensou ela ironicamente enquanto subia correndo as escadas do prédio do tribunal, com a gola virada para cima contra um vento leste que prometia chuva e neve antes do jantar. Ela teria de aprender muito se quisesse convencer alguém a considerá-la seriamente para essa força-tarefa, até aí estava claro.
Todos os pensamentos sobre a operação desapareceram assim que ela passou pela verificação de segurança e virou no corredor longo que abriga metade dos doze tribunais de juízes auxiliares. Em vez do agrupamento descontente e rebelde de transgressores menores e suas famílias deprimidas, ela deu de cara com uma aglomeração de jornalistas que circulava pelo local. Carol nunca vira tal quantidade de representantes da mídia num tribunal no sábado de manhã, normalmente o dia mais tranquilo da semana. No centro da multidão, podia ver Don Merrick que, de costas para a porta da sala de audiências do tribunal, parecia atormentado.
Carol imediatamente deu meia-volta. Mas era tarde demais. Ela não só tinha sido vista como também reconhecida por um dos muitos jornalistas que não eram gente de fora enviada pelas redes de mídia nacionais para farejar uma boa história. Quando ela virou no corredor, eles correram atrás dela. Todos exceto Penny Burgess, que se reclinou na parede e deu um sorriso cansado para Don Merrick.
— Você não foi a única que recebeu o telefonema cedo de manhã, afinal — disse ele, cinicamente.
— Infelizmente não, sargento. Pelo menos os rapazes parecem mais interessados na sua chefe do que em você.
— Ela tem melhor aparência.
— Ah, eu não diria isso.
— Foi o que ouvi dizer — disse Merrick, com ironia.
As sobrancelhas de Penny se ergueram.
— Você tem de me deixar pagar um drinque para você um dia desses, Don. Então vai descobrir por si mesmo se o boato é verdade.
Merrick balançou a cabeça.
— Acho que não, querida. A patroa não ia gostar disso.
Penny sorriu.
— Isso sem falar na chefe. Bem, Don, agora que o bando já foi embora a toda atrás da inspetora Jordan, você vai me deixar exercitar meu direito democrático de relatar os trabalhos dos juízes?
Don Merrick liberou o acesso à porta e acenou para que ela entrasse.
— Fique à vontade. Apenas lembre-se, sra. Burgess, os fatos, e nada mais que os fatos. Não queremos que pessoas inocentes sejam postas em risco, não é?
— Você quer dizer como o Assassino de Bonecas vem fazendo? — perguntou Penny com doçura, enquanto passava por ele e entrava na sala de audiências do tribunal.
• • •
Brandon fitava Tom Cross com descrença. Seu rosto estava contraído numa expressão de profunda vaidade, a órbita multicolorida de seu olho era a única ruptura numa imagem de presunçosa autossatisfação.
— Cá entre nós, John, você precisa admitir que eu acertei na mosca quanto a McConnell. Aquele presunto da noite passada não foi coisa do Assassino de Bonecas mesmo, não é? Bem, não poderia ter sido, poderia, porque nosso querido estava engaiolado lá embaixo.
Ignorando a ausência de cinzeiros no escritório do chefe de polícia assistente, Cross acendeu um cigarro e soprou, contente, uma baforada de fumaça no ar.
Brandon se esforçou, mas não conseguia encontrar as palavras. Dessa vez, foi incapaz de falar.
O outro olhou em volta vagamente em busca de algum lugar onde depositar suas cinzas, e se contentou com o chão, esfregando-as no tapete com a ponta do sapato.
— Então, quando quer que eu comece de volta no trabalho? — perguntou ele.
Brandon se recostou na cadeira e olhou para o teto.
— Se dependesse de mim, você nunca iria voltar a trabalhar nesta cidade — respondeu ele, com prazer.
Cross se engasgou com a boca cheia de fumaça. Brandon abaixou os olhos novamente e saboreou o momento.
— Que diabos, você se acha engraçado, John! — explodiu Cross.
— Nunca falei mais sério na vida — retrucou Brandon com frieza. — Chamei-o aqui esta manhã para alertá-lo. O que você fez a Steven McConnell ontem à tarde foi agressão. O arquivo continua aberto, superintendente. Se você chegar perto dessa investigação novamente, não hesitarei em acusá-lo. Na verdade, vou gostar disso. Não vou permitir que nenhum policial, no trabalho ou suspenso, lance esta força em descrédito.
Quando as palavras de Brandon penetraram fundo na mente de Cross, ele empalideceu, depois ficou roxo de raiva e humilhação. Brandon se levantou.
— Agora saia da minha sala e da minha delegacia.
Cross levantou-se como um homem abalado.
— Vai se arrepender disso, Brandon — gaguejou furiosamente.
— Não me provoque, Tom. Para o seu próprio bem, não me provoque.
Pensando rapidamente, Carol liderou os jornalistas em volta até o pequeno lounge do lado de fora do restaurante dos advogados.
— Tudo bem, tudo bem — acalmou ela, tentando abafar a gritaria deles com movimentos de mão exagerados. — Vejam só, se me derem apenas dois minutos, voltarei logo e responderei às suas perguntas, está bem?
Eles pareciam em dúvida, um ou dois nos fundos mostraram uma tendência para se deslocar de volta para as salas de tribunais.
— Por favor, pessoal — disse ela, massageando gentilmente o maxilar. — Estou com muita dor. Estou com uma dor de dente furiosa. Se eu não ligar para o meu dentista antes das dez, não tenho nenhuma chance de que ele me encaixe hoje. Por favor? Preciso de um tempinho. Depois, eu sou toda de vocês, prometo! — Carol forçou um sorriso de dor e escapou para o restaurante. Havia um telefone na parede oposta. Ela o pegou fazendo uma grande encenação ao procurar em seu diário e olhar uma página, enquanto discava o número conhecido do tribunal.
— Primeira vara, por favor.
Ela aguardou a conexão, depois disse ao atendente:
— Aqui é a inspetora Jordan. Posso falar com o Serviço da Procuradoria da Coroa? — Instantes depois, ela estava falando com o advogado da Procuradoria. — Eddie? Carol Jordan. Tenho cerca de trinta jornalistas aqui esperando que Steven McConnell apareça. Eles estão doidos para chegar às conclusões erradas, e acho que você pode preferir pressioná-lo agora enquanto estou com eles presos numa coletiva de imprensa improvisada. Pode arranjar isso com o escrivão?
Ela aguardou enquanto o advogado sussurrava com o escrivão.
— Dá para fazer, Carol — respondeu ele. — Obrigado.
Mantendo a farsa, Carol pôs o telefone no gancho e escreveu algo em seu diário. Depois, ela respirou fundo e se encaminhou até o bando.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 015
Damien Connolly, o policial por excelência. Eu não poderia ter encontrado uma pessoa melhor para ensinar uma lição à polícia, mesmo que tivesse procurado um ano inteiro. Mas ele já estava lá, na minha lista, figurando no meu top 10 pessoal. Era mais difícil persegui-lo do que os demais, porque seu padrão de turno muitas vezes estava em conflito com minhas horas de trabalho. Contudo, como minha avó sempre dizia, nada que vale a pena vem fácil.
Eu o enganei como de costume.
— Desculpe incomodar, mas meu carro quebrou e não sei onde fica o próximo telefone público. Posso usar seu telefone para ligar para a seguradora?
É quase risível a facilidade para passar pela porta da casa deles. Três homens mortos, e ainda assim eles não conseguem tomar a mais elementar das precauções. Eu quase tive pena de Damien, já que, entre todos, ele tinha sido o único que não tinha me traído. Mas precisava usá-lo como exemplo, para mostrar à polícia como ela era de uma inutilidade patética. Era irritante me surpreender concordando com a assim chamada “comunidade gay”, mas eles estavam cem por cento certos quando disseram que, enquanto supostos gays estivessem sendo mortos, a polícia não faria nada. Matar um dos seus seria a única coisa que me faria ganhar seu interesse. Finalmente, eles seriam forçados a me dar o reconhecimento e o respeito que eu merecia.
Para marcar isso, eu tinha projetado algo um tanto especial para Damien. Um método incomum de punição, usado ocasionalmente para agir como um exemplo terrível pour discourager les autres. Parece ter sido mais comumente usado nos casos de alta traição, onde homens tramavam para matar o rei. Apropriado, pensei. Afinal, o que era Damien se não uma parte integrante do grupo que, se pudesse, causaria a minha queda?
O primeiro registro desse tratamento na Inglaterra foi em 1238, quando algum nobre menos importante arrombou o aposento real em Woodstock com a intenção de matar Henrique III, que estava lá numa viagem de caça. Para demonstrar a qualquer outro possível traidor que o rei levava a sério atentados contra sua vida, o homem foi sentenciado a ter cada um dos membros destroçados por cavalos e depois ser decapitado.
Outro com pretensões a assassino real encontrou o mesmo destino na metade do século XVIII. O nome do aspirante simplesmente tinha de ser um mau presságio: François Damiens apunhalou o rei Luís XV em Versailles. Sua sentença dizia que “seu peito, braços, coxas e canelas deviam ser queimados com tenazes; a mão direita, empunhando a faca com que cometeu o referido ataque, devia ser queimada com enxofre; que óleo fervente, chumbo derretido, resina e cera misturados com enxofre fossem despejados em suas feridas; e depois seu corpo devia ser puxado e desmembrado por quatro cavalos”.
De acordo com os relatos da execução, os cabelos castanho-escuros de Damiens ficaram brancos durante a tortura. Casanova, aquele outro grande amante, relatou em suas memórias: “assisti a essa cena terrível durante quatro horas, mas fui várias vezes obrigado a virar o rosto e fechar os olhos enquanto ouvia seus gritos penetrantes, metade do corpo lhe tendo sido rasgada.”
Obviamente, eu não podia levar um tropel de cavalos para o porão. Portanto, tinha de criar meu próprio esquema. Construí um sistema de cordas e polias, presas ao piso e ao teto, ligadas com um desses guinchos elétricos usados em iates. Cada corda terminava numa manilha de ferro que seria presa em volta do pulso ou tornozelo. Ao ajustar o comprimento e a tensão nas cordas, eu havia suspendido Damien no ar, seus membros esticados num imenso X humano, seus genitais patéticos pendentes no meio como carne num açougue.
O clorofórmio teve um efeito pior nele do que em qualquer dos outros. Assim que chegou, ele vomitou violentamente, uma coisa não muito fácil de conseguir quando se está suspenso de pé a um metro e vinte centímetros do chão. Ainda bem que removi sua mordaça, ou ele teria engasgado com o próprio vômito e me privado de minha satisfação em puni-lo.
Damien estava completamente perplexo. Não fazia ideia do motivo pelo qual estava ali.
— Porque eu o escolhi — disse a ele. — Você foi apenas azarado o bastante para escolher o emprego errado. Agora, vou interrogá-lo do jeito que interroga seus suspeitos.
Enquanto investigava a cozinha de tia Doris, procurando vagamente verificar se ela possuía algo que pudesse me ser útil, encontrei seu material de confeito. Eu me lembrava daqueles utensílios. Todos os anos, seus bolos no Natal eram um milagre artístico que qualquer uma das confeitarias de Bradfield teria dificuldade em igualar. Uma vez, ela havia sido chamada por tio Henry enquanto estava fazendo um bolo enorme, e eu peguei a bisnaga de confeitar, com o intuito de ajudá-la. Acho que tinha no máximo uns seis anos de idade.
Quando ela voltou de qualquer que fosse a tarefa nojenta que estava realizando na fazenda e viu meus esforços, ficou doida. Agarrou o amolador de couro pesado que tio Henry usava para manter suas lâminas afiadas a ponto de cortar gargantas e me bateu com tanta força que rasgou minha camisa. Depois, me trancou no meu quarto sem jantar, deixando-me lá por vinte e quatro horas sem nada a não ser um balde para mijar. Eu sabia que precisava encontrar um uso apropriado para seu querido conjunto de confeitaria.
Havia um maçarico no porão, que usei para aquecer a minha cobertura e deixar minha marca em Damien, do mesmo jeito que o carrasco tinha feito em seu homônimo duzentos e quarenta anos antes. Havia algo bem bonito na forma como sua epiderme se abriu como uma flor, transformando-se em estrelas escarlates quando os bicos de confeitar em brasa entraram em contato com sua pele pálida. Foi também espantosamente eficaz. Ele me disse tudo que eu queria saber e muita bobagem com a qual não me importava. Lamentei apenas que ele não estivesse diretamente envolvido na investigação sobre meu trabalho anterior. Eu poderia ter confirmado em primeira mão o quanto a polícia estava irremediavelmente perdida.
Decidi depositar os restos mortais em Temple Fields novamente. Tinha usado o intervalo de tempo desde Gareth para encontrar outros lugares seguros para o descarte de minha obra. O pátio do Queen of Hearts era perfeito para o propósito; escondido e isolado à noite. No entanto, ganharia vida no dia seguinte, garantindo que Damien não seria deixado lá fora no frio por muito tempo.
Era o momento perfeito para um novo jogo. Na preparação para isso, logo após Adam, subi ao sótão e abri o baú que continha as partes guardadas do meu passado. Uma das coisas que preservei como suvenir foi uma jaqueta de couro que me foi dada por um engenheiro num navio-oficina soviético, como pagamento por uma noite que ele não vai esquecer tão cedo. Ela tem uma aparência e uma textura diferentes de tudo que já vi neste país. Cortei tiras do couro da manga até conseguir algo que poderia ter ficado preso num prego ou num canto afiado de uma tranca. Enfiei a tira numa gaveta, depois cortei o resto da jaqueta em retalhos, coloquei-a numa sacola plástica com cascas de ovo e cascas de legume e dirigi até encontrar uma caçamba para deixá-la na cidade. Quando precisasse usar aquela cortina de fumaça, os restos da jaqueta estariam enterrados há muito tempo em algum aterro sanitário genérico.
Não pude deixar de sentir uma emoção ao pensar em quantas horas de trabalho os homens da polícia estavam desperdiçando tentando rastrear a origem desse estranho pedacinho de couro, embora nunca fossem vinculá-lo a mim. Além de tudo, ninguém em Bradfield jamais tinha me visto usar aquela jaqueta.
Dessa vez, a repercussão superou tudo que conquistara até então. Finalmente, a polícia admitiu que uma única mente estava por trás dos quatro assassinatos e percebeu que era hora de me levar a sério.
Com Damien fora deste mundo e no meu computador, ainda havia uma pessoa que precisava se resolver comigo antes que eu pudesse retornar ao meu projeto original. Não podia me contentar com a tarefa de encontrar um homem digno de mim, que compartilhasse minha vida como um parceiro igual e respeitoso. Não até que tivesse punido o homem que tinha me tratado publicamente com tanto desprezo.
Meu alvo era o dr. Hill, o idiota que não tinha percebido que Gareth Finnegan era uma das minhas obras. Ele havia me insultado, me coberto de escárnio, recusando-se a reconhecer a extensão das minhas conquistas. Ele não fazia ideia da capacidade da mente que enfrentava. Teria de pagar por sua arrogância.
Não conseguia deixar de ver sua eliminação como um desafio. Mas quem conseguiria?
15
Não lhes é possível manter o modo autêntico de cortar gargantas sem introduzir inovações tão abomináveis...?
O som dos berros de uma multidão saudou Carol quando ela fechou a porta do apartamento. Michael, esparramado num dos sofás, sequer tirou os olhos da partida de rúgbi da televisão.
— Oi, mana — disse ele. — Jogo duro. Dez minutos, e sou todo seu.
Carol olhou para a tela, onde gigantes enlameados nas cores da Inglaterra e da Escócia estavam espalhados pelo campo num scrum desfeito.
— Altíssima tecnologia — resmungou ela. — Preciso de um banho.
Quinze minutos depois, os irmãos estavam dividindo uma garrafa comemorativa de espumante cava.
— Tenho algumas conclusões para você — disse Michael.
Carol se animou.
— Algo significativo?
Michael deu de ombros.
— Não sei o que é significativo para você. O seu assassino usou cinco objetos de formato diferente para fazer as marcas. Eu os separei em cinco padrões distintos. Você tem o que parece um coração e algumas letras rudimentares. A, D, G e P. Significam alguma coisa para você?
Carol estremeceu involuntariamente.
— Ah, sim. Muita coisa. Você está com suas conclusões aqui?
Michael assentiu.
— Estão na minha pasta.
— Vou olhá-las num instante. Enquanto isso, posso pedir uma consultoria de novo?
Michael esvaziou sua taça e a encheu novamente.
— Não sei. Pode arcar com meu preço?
— Jantar, hospedagem e café da manhã no hotel de campo de sua escolha, no meu primeiro fim de semana de folga — ofereceu Carol.
Michael fez uma careta.
— Com essa oferta, vou receber a aposentadoria antes de ganhar isso. Que tal você passar minha roupa por um mês?
— Quinze dias.
— Três semanas.
— Fechado.
Ela ofereceu sua mão e Michael a apertou.
— Então, o que você quer saber, mana?
Carol delineou sua teoria sobre a manipulação de computador dos vídeos do assassino.
— O que você acha? — perguntou ela com ansiedade.
— Dá para fazer — disse ele. — Não há dúvidas quanto a isso. A tecnologia está disponível, e não é um software difícil de usar. Eu podia fazer isso com o pé nas costas. Mas você está falando de grana alta. Digamos trezentas libras por uma placa de captura de vídeo, quatrocentas por uma placa ReelMagic, outras trezentas a quinhentas para um digitalizador de vídeo decente, mais pelo menos mil libras por um scanner de ponta. Complicado mesmo é o software, porém. Só há um pacote que consegue fazer o que você está falando com alguma qualidade de fato. Vicom 3D Commander. Nós o temos, e nos custou quase quatro mil libras, e isso foi há seis meses. Adquirimos a última atualização por mais oitocentas libras. O manual é grosso como um tijolo.
— Então não é um software que muitas pessoas teriam?
Michael bufou.
— Não mesmo. É um pacote e tanto. Apenas profissionais como nós, estúdios de produção de vídeo e adeptos muito dedicados ao hobby teriam.
— E isso está disponível com facilidade? É possível comprar no varejo? — perguntou Carol.
— Na verdade, não. Lidamos diretamente com a Vicom, porque queríamos que eles executassem uma demonstração completa para nós antes de nos comprometermos em gastar toda essa grana. Obviamente, alguns fornecedores comerciais especializados fazem a venda, mas eles não vão descarregar isso a granel. Seria por encomenda postal, de qualquer forma. A maior parte das coisas de informática é.
— As outras coisas que mencionou... são coisas que muitas pessoas teriam?
— Elas não são incomuns. Assim de cabeça, eu diria dois a três por cento de penetração no mercado de itens de vídeo, talvez quinze por cento no scanner. Mas, se está pensando em rastrear seu suspeito, eu começaria com a Vicom — aconselhou Michael.
— Qual você acha que seria a atitude deles com relação a permitir que vejamos seus registros de venda?
Michael fez uma careta.
— Sei tanto quanto você. Você não é uma concorrente, e essa é uma investigação de homicídio. Nunca se sabe, eles podem cooperar de bom grado. Afinal, se esse cara estiver usando o material deles, seria ruim para as relações públicas se não o fizessem. Posso procurar o nome do sujeito com quem lidamos. Ele era o diretor de vendas. Um escocês. Com um desses nomes que não dá para dizer qual é o primeiro nome, sabe? Grant Cameron, Campbell Eliott. Vou me lembrar...
Enquanto Michael procurava em seu caderno de endereços, Carol enchia novamente sua taça e saboreava o formigamento das bolhas no céu da boca. Ultimamente, prazer parecia um item escasso. Mas se ela pudesse gerar algumas pistas sobre sua teoria, tudo isso podia mudar.
— Consegui! — exclamou Michael. — Fraser Duncan. Ligue para ele na segunda-feira de manhã e diga meu nome. É hora de você ter uma folga, mana.
— Você não se engana — disse Carol, com emoção. — Acredite em mim, eu mereço.
Kevin Matthews se deitou esparramado na cama king size desfeita, sorrindo para a mulher montada sobre ele.
— Hum — murmurou ele. — Isso até que foi divertido.
— Melhor que a comida de casa — provocou Penny Burgess, correndo os dedos pelos cabelos castanho-avermelhados que se encaracolavam no peito de Kevin.
Kevin deu uma risadinha.
— Só um pouquinho.
Ele se esticou para pegar o resto da vodca com Coca-Cola que Penny tinha lhe servido.
— Estou surpresa por você ter conseguido fugir esta noite — disse Penny, movendo-se para a frente sensualmente, de modo que seus mamilos se esfregassem nos dele.
— Tivemos tantas horas extras ultimamente que ela desistiu de me esperar em casa para alguma coisa a não ser uma soneca.
Penny deixou a parte de cima do corpo cair pesadamente sobre Kevin, expulsando o ar do corpo dele.
— Não quis dizer Lynn — disse ela —, quis dizer o trabalho.
Kevin agarrou os pulsos dela e lutou, afastando-a de si. Quando caíram deitados lado a lado, rindo até perderem o fôlego, ele finalmente disse:
— Não tinha muito o que fazer, para lhe dizer a verdade.
Penny bufou, incrédula.
— Ah, é? Na noite passada Carol Jordan encontra o corpo número cinco, o suspeito é preso tentando deixar o país, e você vem me dizer que não tem nada acontecendo? Qual é, Kevin, é comigo que você está falando.
— Você entendeu tudo errado, querida — disse Kevin, com generosidade. — Você e todo o resto dos seus coleguinhas da mídia.
Não era com frequência que ele tinha a chance de corrigir Penny, e ele pretendia aproveitar ao máximo.
— O que quer dizer? — Penny se apoiou num dos cotovelos, cobrindo inconscientemente seu corpo com o edredom. Isso não era mais divertido; isso era trabalho.
— Em primeiro lugar: o corpo que Carol encontrou na noite passada não era uma das vítimas do serial killer. Era trabalho de um imitador. A autópsia comprovou isso sem sombra de dúvida. Era apenas mais um sórdido assassinozinho sexual. A Central deve esclarecer isso em alguns dias com um pouco de ajuda da Delegacia de Costumes — explicou Kevin, a autossatisfação óbvia em sua voz.
Penny aceitou a situação e disse com voz doce por entre os dentes cerrados:
— E?
— E o quê, querida?
— Se isso era em primeiro lugar, deve haver um segundo.
Kevin sorriu, de modo tão presunçoso que Penny tomou a decisão instantânea de que lhe daria o fora assim que tivesse arranjado uma alternativa aceitável.
— Ah, sim. Em segundo lugar. Stevie McConnell não é o assassino.
Dessa vez, Penny ficou sem palavras. A própria informação era chocante. Mas mais chocante era o fato de que, sabendo disso, Kevin não dissera nada. Ele permaneceu em silêncio e permitiu que seu jornal publicasse uma matéria que, no final das contas, faria com que ela parecesse uma idiota mal-informada.
— É mesmo? — questionou ela, com o sotaque superior que não tinha usado desde o dia que deixou feliz o internato e tomou a decisão de abraçar declaradamente o mercado de menor prestígio.
— É, sim. Sabíamos disso antes de ele dar no pé.
Kevin se deitou nos travesseiros, contente e alheio ao olhar de ódio que Penny destilava em sua direção.
— Então de que servia exatamente aquele teatro no tribunal? — indagou ela num tom que daria orgulho à sua professora de dicção.
Kevin deu um sorriso afetado.
— Bem, a maioria de nós já concluiu que McConnell não é o nosso homem. Mas Brandon tinha posto um detetive atrás dele. Então, quando o cara tentou sair do país, fomos mais ou menos obrigados a prendê-lo. A essa altura, estava começando a ficar óbvio que McConnell não é o Assassino de Bonecas. Além disso, ele não se encaixa no perfil que Tony Hill criou.
— Não acredito que estou ouvindo isso — reclamou Penny, com agressividade.
Kevin finalmente registrou que nem tudo estava bem.
— Que foi? Algum problema, querida?
— Só um probleminha, porra — disse Penny, enunciando cada sílaba claramente. — Você quer me contar que não só deteve um homem inocente como também permitiu que a imprensa mundial divulgasse a conclusão de que esse homem é muito provavelmente o Assassino de Bonecas?
Kevin se apoiou e tomou outra dose de seu drinque, esticando-se para alisar os cabelos de Penny com a outra mão. Ela se afastou dele com um movimento brusco.
— Não é um grande problema — contestou ele com condescendência. — Ninguém pode reunir um grupo para linchá-lo e ir à casa dele enquanto estiver preso. E imaginamos que dizer ao mundo nas entrelinhas que prendemos o assassino poderia levar o assassino verdadeiro a entrar em contato conosco a fim de garantir que saibamos que ele ainda está à solta.
— Você quer dizer que vocês querem levá-lo a matar de novo? — interpelou Penny, com a voz ficando mais alta.
— É claro que não — disse Kevin, indignado. — Eu disse “entrar em contato”. Como ele fez depois que matou Gareth Finnegan.
— Meu Deus — murmurou Penny, pensativa. — Kevin, como você consegue ficar sentado aí e me dizer que nada de ruim pode acontecer a Stevie McConnell enquanto ele estiver trancado numa cela?
Enquanto Penny Burgess e Kevin Matthews discutiam a moralidade da detenção de Stevie McConnell, na ala C da Prisão Barleigh de Sua Majestade, três homens estavam se revezando para mostrar a Stevie McConnell o que acontece a criminosos sexuais na prisão. Na extremidade do patamar, havia um guarda impassível, parecendo tão inconsciente dos gritos e súplicas de McConnell quanto um deficiente auditivo com o aparelho de surdez desligado. E nas charnecas no alto de Bradfield, um assassino implacável aplicava os toques finais no instrumento de tortura que ajudaria a mostrar ao mundo que o homem na prisão não era responsável por quatro punições em série perfeitamente executadas.
A sala da equipe HOLMES estava em atividade silenciosa; operadores olhavam para telas e apertavam teclas. Carol encontrou Dave Woolcott sentado em seu escritório beliscando sem entusiasmo seu lanche de peixe com batatas fritas. Ele ergueu os olhos quando ela entrou e conseguiu dar um sorriso cansado.
— Achei que estivesse tirando a noite de folga — disse ele.
— Ainda espero tirar. Meu irmão prometeu me comprar um balde de pipoca só para mim se eu chegasse ao cinema antes do começo do filme. Só queria dar uma passadinha para lhe contar algo.
Ela deixou duas sacolas plásticas na mesa de Dave. Revistas de informática em papel brilhoso saíram da sacola.
— Tenho uma teoria — disse ela. — Bem, é mais um palpite.
Pela terceira vez, Carol descreveu sua ideia sobre o assassino que importava vídeos e os transformava em suporte para suas fantasias.
Dave ouviu com atenção, meneando a cabeça enquanto assimilava as ideias de Carol.
— Gosto dessa teoria — disse ele simplesmente. — Li esse perfil algumas vezes, e realmente não consigo aceitar o que dr. Hill diz sobre manter-se estável apenas usando vídeos dos assassinatos. Não faz sentido. A sua ideia faz. Então, o que quer de mim?
— Michael acha que rastrear os compradores do Vicom 3D Commander pode nos levar a ele, caso estejamos corretos. Não tenho certeza. É possível que a empresa para quem o assassino trabalhe tenha o software, e ele faça o trabalho de manipulação de vídeo lá. Para garantir, no entanto, ele teria de fazer toda a digitalização em casa. Então pensei que valeria a pena fazer um levantamento dos fornecedores de digitalizadores e placas de captura de vídeo. Podemos encontrar fornecedores por meio dos anúncios nessas revistas, já que praticamente todos os itens de informática são enviados por encomenda postal. Devemos também contatar os grupos de usuários locais. Se você tiver algum pessoal sobrando, é isso.
Dave suspirou.
— Vá sonhando, Carol.
Ele pegou uma revista e folheou.
— Imagino que eu possa redigir a lista entre hoje à noite e amanhã, e na segunda de manhã bem cedo possamos conseguir alguns detetives para fazer uma rodada de ligações. Quando meus operadores terão tempo de inserir os dados eu não sei, mas vou providenciar para que seja feito, tudo bem?
Carol sorriu.
— Você é um amor, Dave.
— Sou um maldito mártir, Carol. Meu filho mais novo está com dois dentes saindo que nem vi ainda.
— Eu podia ficar e ajudar você a ver as revistas — disse Carol com certa relutância.
— Ah, dê o fora daqui. Vá embora e se divirta. Já passou da hora de que alguém entre nós consiga isso. O que você vai ver?
Carol fez uma careta.
— É a sessão dupla especial de sábado: Caçador de assassinos e O silêncio dos inocentes.
A risada de Dave ecoou nos ouvidos dela por todo o caminho até o carro.
O longo uivo parecia vir do fundo do estômago. Quando o seu orgasmo estremeceu dentro dele como um trem descarrilhado, Tony sentiu uma gloriosa sensação de relaxamento.
— Ai, meu Deus — suspirou.
— Ai, assim, assim — dizia Angelica, de modo ofegante. — Estou gozando de novo, de novo. Ah, Tony, Tony...
A voz dela enfraqueceu até virar um soluço contido.
Tony relaxou na cama, com o peito inflando com a respiração ofegante, o cheiro de suor e sexo pesado em volta dele. Ele se sentiu como se, de repente, tivesse se livrado de um fardo que vinha carregando havia tanto tempo que tinha deixado de perceber o peso. Seria essa a sensação de ser curado, essa impressão de luz e cor, esse sentimento de ter abandonado o passado como sacos de carvão numa carvoeira de um navio? Era assim que seus pacientes se sentiam quando eles descarregavam o peso de seu caos sobre ele?
Em seu ouvido, ele podia escutar o som entrecortado da respiração dela. Depois de alguns momentos, ela disse:
— Minha nossa. Minha nossa senhora. Essa foi a melhor de todas. Eu amo o jeito que você faz amor comigo.
— Foi bom para mim também — disse Tony, falando a sério dessa vez. Pela primeira vez desde que tinha iniciado essa combinação estranha de terapia e jogo sexual, ele não teve nenhum problema com sua ereção. Desde o início, ele esteve duro como uma rocha. Sem esmorecer, sem murchar, sem vergonha. Simplesmente o primeiro ato sexual livre de problemas que tivera em anos. Tudo bem, Angelica não estava de verdade no quarto com ele, mas era um passo gigantesco na direção certa.
— Juntos fazemos a mais doce melodia — disse Angelica. — Ninguém jamais me excitou como você.
— Você faz muito isso? — perguntou Tony de um jeito relaxado.
Angelica deu uma risadinha, um gorgolejo rouco e sexy.
— Você não é o primeiro.
— Deu para notar. Você é muito especialista para isso — elogiou, com alguma sinceridade. Ela havia sido a perfeita terapeuta para ele, isso sem dúvida era verdade.
— Sou muito criteriosa quanto aos homens que permito que compartilhem o prazer comigo — respondeu Angelica. — Não é todo mundo que gosta do que tenho a oferecer — acrescentou.
— Eles têm de ser muito estranhos para não gostar. Sei que gosto.
— Fico feliz, Anthony. Você nunca vai saber o quanto. Preciso ir agora — disse ela, mudando abruptamente para o tom sério que Tony passara a associar ao fim de suas ligações. — Esta noite foi muito especial. Nos falamos em breve.
A linha ficou muda. Tony desligou o telefone e se deitou. Esta noite, com Angelica, pela primeira vez na vida, ele havia sentido um cuidado protetor que auxiliava sem sufocar. Sua avó, ele sabia com o intelecto, o tinha amado e cuidado dele, mas sua família nunca fora dada a demonstrações de afeto, e o amor dela tinha sido direto e prático, atendendo às necessidades dela no lugar das dele. As mulheres com quem se envolveu no passado foram, agora ele percebia, substitutas emocionais para ela. Graças a Angelica, ele ousava ter esperança de que o padrão tivesse sido quebrado. Isso lhe causara dor o suficiente ao longo dos anos.
Sua vida sexual havia começado mais tarde do que a da maioria de seus colegas de mesma idade, em parte porque seu corpo relutou em amadurecer. Até seus dezessete anos, ele era de longe o menor dos garotos da turma, condenado a namorar as meninas de treze e catorze anos, ainda mais assustadas com o sexo do que ele. Depois, de repente, ele cresceu treze centímetros em cinco meses. Quando foi à universidade, tinha perdido a virgindade num ato desajeitado numa cama de solteiro, a padronagem em alto-relevo da colcha deixando-o com ardências desconfortáveis pela fricção durante dias. Sua namorada, aliviada por se livrar finalmente do empecilho da virgindade, terminou com ele dias depois.
Na universidade, ele era muito tímido e aplicado para melhorar sua experiência. Depois, quando começou a trabalhar em seu doutorado, ficou caidinho por uma jovem monitora de filosofia da faculdade. Como era inteligente e interessante, ele chamou a atenção dela. Patricia não fez segredo do fato de que era uma mulher liberada, do mesmo modo que ela não fizera segredo do fato de que terminara seu relacionamento por causa de seu desempenho decepcionante na cama.
— Encare os fatos, querido — disse-lhe ela. — Seu cérebro pode ser bom para um doutorado em filosofia, mas sua trepada não passaria nem do secundário.
Daí foi ladeira abaixo. As últimas poucas mulheres com quem Tony se envolveu tinham achado que ele era um perfeito cavalheiro, nunca as pressionando a ir para a cama. Até que elas a levavam e descobriam como era raro que ele conseguisse alguma performance. Ele havia descoberto há muito tempo como era difícil convencer uma mulher de que o fato de não conseguir uma ereção não tinha nada a ver com ela.
— Elas só ficavam aborrecidas e feridas em seus egos — disse em voz alta.
Talvez agora ele tivesse finalmente encontrado um jeito de enfrentar o passado e ir adiante. Mais algumas noites como essa com Angelica e, talvez, apenas talvez, ele estivesse pronto para tentar a coisa de verdade. Ele imaginava se os serviços dela se estendiam a isso. Talvez ele devesse começar a pensar em deixar algumas indiretas.
• • •
Brandon leu a folha de papel em sua mesa e limpou os olhos. Ele e Dave Woolcott tinham passado a noite analisando dúzias de relatórios que chegaram a partir das medidas tomadas por Dave em resposta às correlações obtidas pelo sistema HOLMES. Apesar de seus esforços determinados em encontrar algum indício mínimo que revelasse o assassino, não havia nada que nenhum deles pudesse identificar como pista.
— Talvez essa ideia de Carol seja útil — disse Dave, com um bocejo.
— Fora isso, tentamos de tudo — concluiu Brandon, com a voz tão deprimida quanto o rosto. — Mal não vai fazer seguir com ela.
— Ela é uma manipuladora inteligente, essa mulher — comentou Dave. — Um dia ainda vai chegar ao comando.
Não havia amargura em seu tom, só uma admiração desgastada. Sua boca se abriu em outro bocejo.
— Vá para casa, Dave. Quando foi a última vez que você viu a Marion acordada?
Dave lastimou-se.
— Não comece, senhor. Eu iria parar de qualquer jeito, não há muito o que fazer. Vou estar aqui amanhã para terminar a lista desses fornecedores de informática.
— Tudo bem, mas não cedo demais, ouviu? Faça um agrado à sua família. Tome o café da manhã com eles.
Antes que aceitasse seu próprio conselho, Brandon queria analisar os depoimentos de testemunhas e as impressões dos policiais mais uma vez, incapaz de acreditar que não havia nada à espreita ali que lhes daria seu primeiro golpe de sorte. Quando chegou à metade, ele estava achando quase impossível se motivar para continuar no resto da pilha. A perspectiva de se enroscar no corpo quente de Maggie era irresistível.
Brandon suspirou e se concentrou na próxima folha de papel. Sua análise foi interrompida pelo toque insistente do telefone.
— Brandon — disse com um suspiro.
— Aqui quem fala é o sargento Murray, da recepção. Desculpe interrompê-lo, senhor, mas nenhum dos inspetores está no posto policial no momento. O problema é que há uma pessoa aqui com quem acho que o senhor gostaria de falar. Ele é vizinho de Damien Connolly, senhor.
Brandon já tinha se levantado da cadeira.
— Estou indo.
O homem na recepção estava sentado no banco de madeira que ia de um lado ao outro da parede, com a cabeça baixa, o áspero borrão da barba por fazer em seu queixo. Quando Brandon saiu de trás do balcão, ele ergueu os olhos. Devia ter quase uns trinta anos, estimou Brandon. Bronzeado artificialmente, círculos escurecidos em volta dos olhos. Alguma espécie de executivo, a julgar pelo terno caro, mas sóbrio, e a gravata de seda pendendo torta sob o botão superior aberto da camisa. Ele tinha a aparência amarfanhada, de olhos vermelhos, como alguém que vinha viajando havia tanto tempo que tinha esquecido em que dia ou em que cidade estava. Ver alguém mais cansado do que ele mesmo pareceu injetar nova energia em Brandon.
— Pois não? — disse ele, com animação. — Sou John Brandon, o chefe de polícia assistente a cargo da investigação sobre a morte de Damien Connolly.
O homem fez um aceno de cabeça.
— Terry Harding. Moro a algumas casas de distância de Damien.
— O sargento informou que você pode ter alguma informação para nós.
— Isso mesmo — disse Terry Harding, sua voz rouca devido ao cansaço. — Vi um estranho saindo da garagem de Damien na noite em que ele foi morto.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 016
Eu já havia começado a trabalhar no dr. Tony Hill mesmo antes de ter despachado Damien Connolly. Parecia justiça poética para mim que, como Damien, seu nome já estivesse em minha lista como parceiro em potencial. Se eu precisava de qualquer tipo de confirmação de que estava fazendo a coisa certa em puni-lo, era isso.
Pois bem, eu já sabia onde ele morava, onde trabalhava e qual era sua aparência. Sabia a que horas ele saía de casa pela manhã, que bonde pegava para trabalhar e por quanto tempo ficava em seu pequeno escritório na universidade.
Só percebi a tranquilidade com que tudo tinha transcorrido até agora quando as coisas começaram a se encaminhar em direções que eu não previra nem gostava. Acho que cometi o erro de subestimar a estupidez das forças que se opunham a mim. Nunca pensei que houvesse muita capacidade cerebral compartilhada entre os policiais da corporação de Bradfield, mas os últimos desdobramentos chocaram até a mim mesmo. Eles prenderam a pessoa errada!
A incrível falta de inteligência e percepção deles só era comparável à da mídia, que seguia a polícia como ovelhas sem raciocínio. Não consegui acreditar quando peguei o Sentinel Times e li que um homem estava preso, ajudando as investigações da polícia sobre os meus assassinatos. A prisão ocorreu depois de uma agressão de rua envolvendo um policial. Como é que eles podiam imaginar que alguém que tomara tanto cuidado quanto eu acabaria numa briga de rua em Temple Fields? Era um insulto à minha inteligência. Eles achavam mesmo que eu estaria fora de controle fazendo arruaça por aí?
Li e reli o artigo, incapaz de crer na profundidade da tolice deles. A raiva queimava dentro de mim. Conseguia senti-la no meu estômago como indigestão e cólicas provocadas por gases que se reviravam como uma bola com saliências pontudas. Eu queria fazer algo cruel e dramático, algo que lhes provasse como estavam errados.
Malhei com meus pesos até que meus músculos tremessem com o esforço e meu equipamento ficasse encharcado de suor, mas ainda assim a raiva se recusava a diminuir. Corri pelas escadas até meu computador e trabalhei nos vídeos de Damien que eu importara para o meu sistema. Quando terminei, tínhamos realizado uma ginástica sexual que deixaria orgulhosa a equipe nacional da Rússia. Mas nada me satisfez. Nada eliminou a raiva.
Por sorte, ao contrário deles, eu não era uma pessoa estúpida. Sabia o quanto a raiva descontrolada poderia ser perigosa para mim. Precisava domá-la, usá-la com criatividade e fazê-la trabalhar para mim. Forcei-me a canalizar aquilo para fins construtivos. Planejei em detalhes como capturaria o dr. Tony Hill e o que faria com ele quando o pegasse. Ele teria coisas pendentes — literalmente.
Squassation e strappado. A Inquisição Espanhola sabia exatamente como aproveitar ao máximo o que estava disponível. Eles simplesmente utilizaram a força mais poderosa do planeta, a força da gravidade. Tudo que se precisava era um guincho, uma polia, algumas cordas e um bloco de pedra. As mãos das vítimas eram amarradas atrás das costas e corria-se uma corda delas até uma polia. Depois, uma pedra era presa aos pés.
Em seu livro The Horrid Cruelties of the Inquisition, publicado em 1770, John Marchant descreveu essa tortura eficaz do modo mais eloquente:
O corpo é puxado para cima, até que a cabeça atinja a polia. Ele é mantido pendente dessa maneira por algum tempo, de modo que, pela grandeza do peso suspenso em seus pés, todas as suas articulações e membros possam ser terrivelmente esticados e, de repente, ele é baixado com um solavanco, dando folga à corda. Contudo, é impedido de chegar ao chão; pelo horrível abalo, seus braços e pernas se separam das juntas. Com isso, ele é submetido à dor mais intensa; o choque, que recebe pela súbita interrupção da queda, e o peso em seus pés, que estica todo o seu corpo da forma mais intensa e cruel.
Os alemães acrescentaram um refinamento que me atraiu. Atrás da vítima, eles puseram um rolo com saliências pontiagudas, de modo que, quando ele descia, as pontas cortavam e despelavam suas costas, deixando seu corpo como uma massa sangrenta de ligamentos rompidos. Considerei reproduzir esse efeito, mas, mesmo depois de muita manipulação do layout, não consegui criar com satisfação um projeto no computador e ter certeza de que ele funcionaria tranquilamente, a menos que eu algemasse suas mãos na frente dele, o que tornaria a squassation e o strappado muito menos eficazes. Manter a simplicidade, esse é o meu lema.
Enquanto estava planejando e construindo, tomei medidas para fechar minha teia ainda mais apertada em volta do dr. Hill. Ele podia pensar que conseguia penetrar minha mente, mas tinha entendido as coisas errado.
Mal podia esperar para começar. Estava contando as horas.
16
— Pois bem, senhorita R., supondo que eu aparecesse por volta da meia-noite ao lado da sua cama, armado com uma faca de trinchar, o que diria?
Ao que a crédula moça respondeu:
— Ah, sr. Williams, se fosse qualquer outra pessoa, ficaria amedrontada. Porém, assim que ouvisse sua voz, ficaria tranquila.
Pobre moça, tivesse esse esboço do sr. Williams sido detalhado e concretizado, ela teria visto alguma coisa no rosto cadavérico, e ouvido algo na voz sinistra, que teria perturbado sua tranquilidade para sempre.
Quando o telefone tocou, a primeira reação de Carol foi indignação. Oito e dez numa manhã de domingo só podia significar trabalho. Ela se agitou na cama, com um longo e grave resmungo de descontentamento atormentando os ouvidos de Nelson. Seu braço apareceu por baixo das cobertas, tateando em volta da mesa de cabeceira. Ela atendeu o telefone e grunhiu:
— Jordan.
— Esta é sua ligação de alarme do início da manhã.
A voz estava alegre demais, concluiu Carol, antes de registrar a identidade de quem ligava.
— Kevin — disse ela. — É melhor que isso seja bom.
— É melhor do que bom. O que você diria de uma testemunha que viu o assassino sair de carro da casa de Damien Connolly?
— Repita? — murmurou ela. Kevin repetiu seu anúncio. Da segunda vez, sua voz fez Carol ficar sentada, na beirada da cama. — Quando? — indagou ela.
— O sujeito chegou aqui ontem de madrugada. Tinha estado fora do país a negócios. Brandon o interrogou. Ele marcou uma reunião para as nove — disse Kevin, empolgado como uma criança no Natal.
— Kevin, seu safado, você podia ter me ligado antes...
Ele deu uma risadinha.
— Achei que você precisava do sono para manter a beleza.
— Que se danem o sono e a beleza...
— Eu só cheguei há cinco minutos também. Pode trazer o doutor com você? Acabo de tentar ligar para ele, mas ninguém atende.
— Tudo bem, vou dar uma passada na casa dele e ver se consigo acordá-lo. Ele parece ter o hábito de desligar os telefones. Ilusão dele achar que pode se dar bem e ter uma noite de sono decente. Dá para notar que não é policial — acrescentou ela.
Carol recolocou o telefone no gancho abruptamente e se encaminhou para o chuveiro. O pensamento de que Tony pudesse ter desligado o telefone porque estava com a mulher da secretária eletrônica passou por sua mente. A ideia provocou uma dor em seu estômago. — Vaca idiota — murmurou para si mesma, enquanto a água caía em cascata sobre ela.
Às vinte para as nove, ela estava pressionando a campainha de Tony. Depois de alguns minutos, a porta se abriu. Com os olhos turvos, lutando com a faixa de seu roupão, Tony olhou para fora na direção dela.
— Carol?
— Desculpe por acordá-lo — disse ela formalmente. — Você não estava atendendo o telefone. O sr. Brandon me pediu para vir buscá-lo. Há uma reunião às nove. Temos uma testemunha.
Tony esfregou os olhos, parecendo confuso.
— É melhor você entrar.
Ele caminhou pelo corredor, deixando Carol fechar a porta atrás de si.
— Desculpe quanto aos telefones. Fui dormir tarde, por isso os desliguei. — Ele balançou a cabeça. — Você pode esperar um instante enquanto tomo um banho e faço a barba? Caso contrário, vou para lá sozinho. Não quero que se atrase por minha causa.
— Vou esperar — disse Carol. Ela pegou o jornal do capacho e o folheou, encostada na parede, alerta para os sinais denunciadores da presença de uma terceira pessoa. Ela se sentiu irracionalmente satisfeita quando não ouviu nenhum. Muito embora soubesse que era uma reação infantil, não significava que reações como essa fossem parar da noite para o dia. Ela apenas aprenderia como disfarçá-las até que acabassem, como tinha certeza de que aconteceria um dia, com sua existência exaurida pela falta de interesse de Tony.
Dez minutos mais tarde, ele reapareceu de jeans e camisa de malha, cabelos úmidos e bem-penteados.
— Desculpe por isso. Meu cérebro não funciona até que eu tome um banho. Pois bem, que negócio é esse de testemunha?
Carol lhe contou o pouco que sabia a caminho do carro.
— Essas são ótimas notícias — disse Tony com entusiasmo. — Primeiro grande avanço, não é?
Carol deu de ombros.
— Depende do quanto ele possa nos contar. Se o cara estiver dirigindo um Ford Escort vermelho, não nos levará muito adiante. Precisamos de algo sério para fazer a correspondência cruzada. Talvez algo como o ponto de vista do computador.
— Ah, sim, a teoria do computador. Como vai isso?
— Eu a discuti com meu irmão. Ele acha que é perfeitamente plausível — respondeu Carol com frieza, sentindo-se tratada com condescendência.
— Ótimo — disse Tony, entusiasmado. — Espero realmente que dê certo. Não estava tentando jogar um balde de água fria na coisa, sabe. Tenho de trabalhar com equilíbrio de probabilidades, e sua ideia estava muito além de meus parâmetros. Mas é o tipo de estalo investigativo que vamos precisar na força-tarefa nacional. Acho mesmo que você deve considerar seriamente se inscrever quando dermos o pontapé inicial no projeto.
— Não pensei que você ficaria confortável com a ideia de trabalhar comigo depois disso — comentou Carol, com os olhos firmes na estrada.
Tony respirou fundo.
— Nunca encontrei um policial com quem preferisse trabalhar.
— Mesmo que eu invada o seu espaço pessoal? — perguntou ela amargamente, odiando-se por futucar a mágoa como se fosse uma velha casca de ferida.
Tony suspirou.
— Achei que tivéssemos concordado que podíamos ser amigos? Sei que eu...
— Tudo bem — interrompeu ela, desejando que jamais tivesse começado a conversa. — Posso ser sua amiga. Você acha que o Bradfield Victoria tem alguma chance no torneio?
Assustado, Tony se virou no banco e fitou Carol. Ela estava com um sorriso crispado no canto da boca. De repente, os dois estavam rindo.
As últimas ameaças do governo ao serviço prisional significavam que os policiais da HM Prison Barleigh tinham começado a trabalhar numa operação padrão. Isso, por sua vez, significava que os presos ficavam nas celas por vinte e três em cada vinte e quatro horas. Stevie McConnell estava deitado de lado em sua cama beliche na cela que tinha apenas para si. Em seguida ao ataque que o tinha deixado com dois olhos roxos, algumas costelas quebradas, mais contusões do que podia contar, e o tipo de dano sexual que tornava o ato de se sentar uma opção muito dolorosa para contemplar de imediato, ele havia solicitado confinamento solitário, e ele lhe fora concedido.
Não importa o quanto ele declarasse que não era o Assassino de Bonecas. Ninguém estava nem aí, nem os presos nem os guardas. Ele tinha percebido que os carcereiros tinham por ele o mesmo desdém que seus colegas detentos quando ouviu o som de passos por toda a ala. Mas nenhum policial havia destrancado a porta de sua cela para permitir que ele esvaziasse o balde fedorento de seus dejetos que estava no corredor, com seu cheiro insistente de certa forma mais nojento do que o das dúzias de banheiros públicos onde Stevie tinha escolhido estranhos para transar.
O tanto que conseguia ver, suas perspectivas eram desoladoras. O próprio fato de que ele estava por trás das grades era suficiente para condená-lo aos olhos da maioria das pessoas. Provavelmente o mundo inteiro estava convencido de que o Assassino de Bonecas tinha feito sua última vítima agora que Stevie McConnell estava na cadeia. Depois que ele foi solto em seguida ao primeiro período de interrogatório, ficou intensamente consciente de que todos no trabalho, equipe e clientes, estavam evitando-o, recusando-se a olhá-lo nos olhos. Um drinque num bar de Temple Fields onde ele era freguês há anos tinha sido o suficiente para lhe mostrar que a solidariedade gay o havia deserdado misteriosamente também. A polícia e a imprensa claramente pensavam que ele era um psicopata. E até que eles pegassem o Assassino de Bonecas, Bradfield não seria um lugar acolhedor para Stevie McConnell. A decisão de se mudar para Roterdã, onde um ex-amante administrava uma academia, pareceu fazer sentido na ocasião. Não lhe ocorreu que eles estariam atrás dele.
A ironia de que, inicialmente, tudo isso lhe havia acontecido porque correra para defender um policial não foi algo que Stevie deixou de perceber. Ele deu uma risada amarga. Aquele grande sargento do nordeste da Inglaterra estava provavelmente contando suas bênçãos por ter sido atingido por metade de um tijolo, achando que essa era a única coisa que o tinha salvado de ser a próxima vítima do assassino. A realidade era que Stevie McConnell era a única vítima naquela noite. E isso não ia mudar. Mesmo sua família escandalizada não queria saber, de acordo com seu advogado.
Deitado ali, examinando seu futuro sem arroubos de emoção, ele chegou a uma decisão. Com uma careta de dor, Stevie rolou para fora do beliche e tirou a camisa, estremecendo com a pontada de dor em suas costelas. Com os dentes e as unhas, desfez pacientemente as costuras que uniam o brim. Na ponta afiada de uma mola da cama, ele rasgou as bordas do material de modo que pudesse fazer tiras finas, que entrelaçou para que ficassem mais fortes. Ele prendeu uma extremidade da amarra improvisada em volta do pescoço num laço apertado, depois subiu no beliche de cima. Amarrou a outra extremidade de sua curta corda na grade inferior da cama de cima.
Então, às nove e dezessete de uma manhã ensolarada de domingo, ele se jogou de cabeça da beirada da cama.
Como uma empresa em dificuldades que recebeu uma oferta inesperada para se salvar da falência, a delegacia de Scargill Street estava agitada com uma intensa atividade. No centro de tudo isso estava a sala da equipe HOLMES, onde os policiais olhavam para telas, manipulando as novas informações, avaliando as novas correspondências que o sistema apresentava.
Em sua sala, Brandon conduzia um conselho de guerra com seus quatro inspetores e Tony, todos eles segurando uma fotocópia das observações de Brandon em sua entrevista com Terry Harding. O chefe de polícia assistente tinha tido apenas cinco horas de sono, mas a perspectiva de andamento na investigação lhe dera nova energia, traída somente pelas olheiras pesadas em volta de seus olhos fundos.
— Para recapitular, então — disse Brandon. — Às sete e quinze da noite, aproximadamente, Damien Connolly foi morto, um homem dirigiu de sua garagem em algum tipo de 4x4 grande, de cor escura. Ele saiu do 4x4 para fechar a porta da garagem, e foi então que nossa testemunha o viu melhor. A descrição que temos é de um homem branco, de um metro e setenta e oito a um metro e oitenta e três, com idade entre vinte e vinte e cinco anos, possivelmente com o cabelo amarrado atrás num rabo de cavalo. Usava tênis branco, jeans e um casaco longo de algodão encerado. Durante a noite, a equipe do HOLMES vem analisando os veículos registrados em Temple Fields que estão de acordo com a descrição. A maioria desses motoristas já tinha sido interrogada, mas todos eles serão acompanhados e interrogados mais detidamente agora que temos os indícios de Terry Harding. Bob, quero que fique responsável por isso, e verifique também os álibis.
— Certo, chefe — disse Stansfield, removendo as cinzas do cigarro com um movimento determinado.
— Ah, e Bob? Você pode conseguir que alguém confirme se Harding esteve mesmo no Japão a semana inteira numa viagem de negócios? Quero ter certeza de que não deixamos nada de fora.
Stansfield assentiu com a cabeça.
— Estou mandando uma viatura para buscar Harding às onze horas — prosseguiu Brandon, conferindo a lista que preparara na cozinha às sete. — Carol, quero que você faça a entrevista. Verifique qual empresa de táxi Harding usou para pegá-lo no aeroporto, vamos ver se conseguimos restringir esse tempo um pouco mais. Tony, gostaria que você fizesse parte disso. Talvez possa nos ajudar com as estratégias para melhorar as recordações dele, ver se podemos conseguir alguma descrição segura da aparência desse sujeito.
— Farei o melhor que puder — concordou ele. — No mínimo, provavelmente poderei distinguir entre o que ele lembra e o que ele acha que lembra.
Brandon lançou-lhe um olhar estranho, mas continuou assim mesmo.
— Kevin, quero que organize uma equipe para visitar os showrooms de carros, consiga o máximo de brochuras e pôsteres que puder de veículos de tração nas quatro rodas para que possamos mostrá-los ao sr. Harding e ver se ele pode nos fornecer uma identificação positiva.
— Sim, senhor. Quer que voltemos aos vizinhos dos casos anteriores, para verificar se alguém notou o mesmo veículo lá? — perguntou Kevin com ansiedade.
Brandon refletiu por um momento.
— Vamos ver como prosseguimos hoje — disse ele após alguns instantes. — Seria preciso muito pessoal e tempo para seguir por esse caminho novamente, e podemos não precisar. Provavelmente vale a pena ter uma palavra com o resto dos vizinhos na rua de Connolly, no entanto. Agora que temos alguma coisa específica para lhes perguntar. Boa ideia, Kevin. Pois bem, Dave. O que você pode fazer por nós?
Woolcott descreveu as ações que a equipe HOLMES já estava desempenhando.
— Como é domingo, estou deixando de contatar a Swansea até que tenhamos restringido o veículo. Quanto mais informações pudermos lhes fornecer, com menos possibilidades teremos de lidar. Se esse sujeito Harding puder nos dar a marca, modelo e o ano, ou pelo menos eliminar alguns modelos, poderemos pedir à Agência de Licenciamento de Veículos uma lista de todos os veículos correspondentes no Reino Unido. Então poderemos começar a entrevistar os donos registrados, começando com Bradfield, depois nos distanciando progressivamente. É uma trabalheira dos diabos, mas chegaremos lá no final.
Brandon assentiu, mostrando que registrava a informação.
— Alguém conseguiu mais alguma coisa?
Tony levantou a mão.
— Se estiver interrogando os vizinhos mesmo, pode valer a pena estender as investigações um pouco.
Todos os olhos estavam nele, mas ele só estava ciente dos de Carol. O que tinha acontecido entre eles tinha aguçado seu desejo de ser fundamental para capturar o Faz-tudo.
— Esse sujeito é um perseguidor, não acho que ninguém questionaria isso agora. Acredito que ele vinha observando Damien Connolly por um tempo. Como estamos no meio do inverno, não é o tempo ideal para ficar por aí em lugares abertos. É provável que ele tenha feito grande parte de sua espionagem de dentro do carro. Ele provavelmente não parava no próprio beco, já que ficaria muito visível numa rua tão pequena. Imagino que estacionava na rua que percorre a parte mais baixa, em algum lugar em que tivesse a casa em sua linha de visão. Talvez alguém lá tenha notado um veículo desconhecido estacionado do lado de fora por longos períodos.
— Boa ideia — disse Brandon. — Kevin, pode cuidar disso?
— Sim, senhor. Vou colocar os rapazes nisso.
— E as moças — disse Carol, com doçura. — Talvez devêssemos pedir a eles que não se concentrem no veículo de tração nas quatro rodas. Se esse sujeito for tão cuidadoso quanto achamos que é, ele pode usar o 4x4 para as capturas e tentar algo diferente quando está fazendo as perseguições, para o caso de algum vizinho intrometido ter registrado seus horários.
— O que você acha, Tony? — perguntou Brandon.
— Não me surpreenderia — disse ele. — É importante que não esqueçamos como esse assassino é competente. Pode até mesmo estar usando carros alugados.
Dave Woolcott gemeu.
— Ah, meu Deus, não faça isso comigo.
Bob Stansfield ergueu os olhos do bloco onde estava escrevendo os nomes de sua equipe.
— Imagino que as outras linhas de investigação que o dr. Hill sugeriu vão ficar suspensas por enquanto?
Brandon crispou os lábios com gravidade. A euforia tinha morrido em algum lugar durante a reunião. O peso do trabalho à frente parecia insustentável; e a ideia de encontrar o assassino, quase tão distante quanto antes de Terry Harding entrar na delegacia.
— Certo. Sem querer desrespeitá-lo, Tony, mas suas sugestões são hipóteses, e o que temos agora é nosso primeiro conjunto de fatos concretos.
— Sem problema — disse Tony. — Indícios concretos sempre vêm primeiro.
— E a ideia de Carol sobre o computador? Ainda devemos segui-la? — perguntou Dave.
— O mesmo se aplica a ela — respondeu Brandon. — É um palpite, não é um fato. Então, sim, fica suspensa.
— Com o devido respeito, senhor — interveio Carol, determinada a não ser relegada a uma participação menor. — Mesmo que Terry Harding nos dê uma identificação positiva da marca e do modelo do veículo, podemos não avançar. Precisamos de outros fatores de eliminação antes que possamos restringir as coisas. Se eu estiver certa sobre o computador, estaríamos olhando um segmento tão pequeno da população que poderia ser significativo se fizermos a correspondência cruzada dos dados.
Brandon considerou a ideia por um momento, depois disse:
— Argumento aceito, Carol. Tudo bem, podemos ir atrás disso, Dave, mas não como uma prioridade. Somente quando tivermos pessoal liberado da investigação principal. Certo, estamos todos cientes do que temos de fazer? — Ele olhou em volta com expectativa, registrando uma série de acenos de cabeça. — Tudo bem, equipe — acrescentou Brandon, com severidade na voz. — Vamos correr atrás disso.
— E que a força esteja com você — murmurou Kevin para Carol enquanto eles saíam do escritório.
— Eu prefiro a força à imprensa marrom — disse ela secamente, dando as costas para ele. — Tony, podemos encontrar um lugar tranquilo e planejar nossa estratégia para o interrogatório?
— A única forma de conseguir extrair mais dele é por meio de hipnose — disse Tony, enquanto eles conversavam no corredor depois de uma hora com Terry Harding.
— Sabe fazer isso? — perguntou Carol.
— Conheço a técnica básica. Julgando por seus movimentos oculares e linguagem corporal, ele estava falando a verdade sobre o que viu, sem inventar nem exagerar nada, então pode transmitir mais detalhes sob hipnose, particularmente se tivermos fotos para lhe mostrar.
Dez minutos mais tarde, Carol estava de volta com uma pilha de brochuras de automóveis que a equipe de Kevin tinha coletado nas concessionárias da cidade.
— É disso que precisamos?
Tony assentiu.
— Perfeito. Tem certeza de que quer que eu tente isso?
— Deve valer a pena tentar — disse Carol.
Eles andaram de volta à sala de interrogatório, onde Terry Harding estava terminando uma caneca de café.
— Posso ir embora agora? — perguntou ele, pesaroso. — Só porque tenho um voo agendado para Bruxelas amanhã e nem desfiz minha mala.
— Não vai demorar muito mais, senhor — disse Carol, sentando-se num lado da mesa. — O dr. Hill gostaria de tentar algo com o senhor.
Tony sorriu de modo tranquilizador.
— Temos algumas fotos de veículos 4x4 do tipo que o senhor viu deixando a garagem de Damien. O que eu gostaria de fazer, se concordar, é colocá-lo num leve transe hipnótico e pedir que dê uma olhada nelas.
Harding franziu as sobrancelhas.
— Por que não posso simplesmente vê-las como estou?
— As chances de reconhecer o modelo específico são melhores — explicou Tony suavemente. — A questão é que, sr. Harding, o senhor é obviamente um homem muito ocupado. Desde que viu o incidente, já viajou para o outro lado do mundo, teve uma série de reuniões de negócios importantes e provavelmente não teve tempo suficiente de sono. Tudo isso significa que sua mente consciente deve ter arquivado os detalhes do que o senhor viu no último domingo. Usando a hipnose, posso ajudá-lo a recuperar essas informações.
Harding parecia em dúvida.
— Não sei. Sempre achei que, se me fizessem entrar nesse estado, poderiam me forçar a dizer qualquer coisa.
— Infelizmente, esse não é o caso. Se fosse, os hipnotizadores seriam todos milionários — brincou Tony. — Como disse, tudo que ela faz é trazer à luz coisas que estão ocultas porque não são importantes.
— O que preciso fazer? — disse Harding, desconfiado.
— Só ouvir a minha voz e seguir minhas instruções — disse Tony. — Você vai se sentir um pouco estranho, um pouco desorientado, mas estará no controle o tempo inteiro. Uso uma técnica chamada programação neurolinguística. É muito relaxante, prometo.
— Tenho que me deitar ou não?
— Nada disso. Vou balançar um relógio na sua frente. Está preparado para tentar?
Carol suspendeu a respiração, observando Harding enquanto uma mistura de expressões entrava em conflito no rosto dele. Finalmente, ele assentiu.
— Duvido que consiga me hipnotizar — disse ele. — Sou um homem que conhece a própria mente. Mas estou disposto a tentar.
— Tudo bem — respondeu Tony. — Quero que relaxe. Feche os olhos se for mais confortável. Agora, quero que vá fundo dentro de si mesmo...
Eufóricos com o sucesso, Tony e Carol entraram energicamente na sala da delegacia de homicídios. Bob Stansfield estava de pé ao lado da janela, olhando para a rua encharcada embaixo, com os ombros caídos, um cigarro desprezado queimando em sua mão. Ele olhou em volta e Carol gritou:
— Anime-se, pode ser que nunca aconteça.
Stansfield se virou e disse com amargura:
— Você obviamente não ficou sabendo da notícia.
— Que notícia? — perguntou Carol, andando até ele.
— Stevie McConnell se enforcou.
Carol balançou sobre seus saltos e tropeçou numa mesa. Seus ouvidos estavam tinindo, e ela achou que fosse desmaiar. Instintivamente, Tony avançou à frente e a guiou até uma cadeira.
— Respire fundo, Carol. Fundo e devagar — disse ele, suavemente inclinado sobre ela, fitando seu rosto pálido.
Ela fechou os olhos, afundou as unhas na palma das mãos e obedeceu.
— Desculpe — disse Stansfield. — Foi um baque para mim também.
Carol ergueu os olhos e desviou os cabelos da testa, que ficou pegajosa de repente.
— O que aconteceu?
— Ao que parece, ele foi vítima de agressão ontem. Um tratamento especial para casos sexuais, pelo que disseram. Então, esta manhã ele rasgou a camisa e se enforcou. A porra dos guardas nem por um momento notaram, porque estavam no meio de uma operação padrão — acrescentou de um modo brutal.
— Coitado — disse Carol.
— Vai ser um pandemônio — previu Stansfield. — Estou feliz que isso não tem porra nenhuma a ver comigo. Pelo menos não vai ser o meu na reta. Quer dizer, Brandon tem as costas quentes, então vai ser a porra de um inspetor que vai levar a culpa.
Carol o olhou como se desejasse bater nele.
— Às vezes, Bob, você realmente torra o saco — disse ela, friamente. — Onde está o Brandon?
— Na sala do HOLMES. Provavelmente se escondendo do chefe de polícia.
Eles encontraram Brandon e Dave Woolcott fechados no cubículo do inspetor, na saída da sala principal.
— Temos certeza da marca, senhor — anunciou Carol, com o vigor abalado pela notícia de Stansfield. — Sabemos que carro ele estava dirigindo.
Penny Burgess saiu da estrada principal e enveredou pela trilha do Departamento Florestal que levava ao coração da floresta. Tinha como meta um estacionamento e a área de piquenique no meio da mata. Era um dos seus lugares favoritos para caminhar entre as árvores e subir até as escarpas de arenito sem vegetação, onde o vento podia soprar para longe todas as impurezas da semana. Ela certamente precisava disso depois dos últimos dias de trabalho duro, matérias importantes e sono insuficiente.
A música na rádio terminou e o locutor disse:
— E agora, direto para a redação, para as manchetes da hora.
Em seguida veio a vinheta de notícias, depois uma mulher disse numa voz muito animada para o assunto:
— Notícias da hora da Northern Sound. Um homem que foi interrogado pela polícia de Bradfield em relação aos assassinatos em série que aterrorizaram a cidade foi encontrado morto nesta manhã em sua cela na prisão de Barleigh.
Em choque, Penny tirou o pé do acelerador e foi lançada para a frente quando o carro parou.
— Merda — exclamou ela, esticando a mão para aumentar o volume.
— Acredita-se que Steven McConnell tenha cometido suicídio se enforcando com um laço feito com suas próprias roupas. McConnell, o gerente de uma academia de fisiculturismo na cidade, foi preso na semana passada depois de uma briga de rua envolvendo um policial à paisana no bairro gay da cidade — continuou a repórter, dando ao mundo a impressão de que anunciava os resultados do Festival da Canção do Eurovision. — Ele foi liberado sob fiança, mas detido novamente depois de tentar deixar o país. Um porta-voz do Ministério do Interior disse que haverá um inquérito completo quanto às circunstâncias de sua morte. A economia nunca esteve melhor, disse o primeiro-ministro hoje...
Penny girou a chave na ignição e virou perigosamente na direção oposta no acesso estreito, antes de pisar no acelerador e voltar à estrada. Ainda bem, pensou, que ela já tinha decidido dispensar Kevin. Depois da matéria que ela estava prestes a escrever, ela não podia imaginar que ele um dia fosse querer vê-la de novo.
• • •
Tony tamborilou os dedos nas costas do assento do táxi, com uma inquietude curiosa que o dominava. Deixar a Scargill Street não fora fácil, mas ele sabia que não tinha nenhum papel a desempenhar enquanto a polícia trabalhava em seu único indício concreto. A última coisa de que eles precisavam nesse turbilhão de censura e atividade persistente era que ele ficasse ali lembrando os policiais de todas as razões pelas quais nunca se convencera de que Stevie McConnell era o homem que procuravam.
Seu consolo era que tinha certeza de que Angelica lhe telefonaria naquela noite. Enquanto o táxi zunia pelas ruas molhadas e vazias, Tony ensaiou a conversa. Ele sentia uma nova confiança, uma certeza de que esta noite não teria nenhum problema, que tinha finalmente dominado seus fantasmas, graças à sua estranha terapia erótica. Ele lhe diria que ela não fazia ideia de como seus telefonemas tinham sido importantes para ele. Que ela o tinha ajudado mais do que podia saber. Satisfeito por ter as coisas sob controle, Tony suspirou, relaxado, e tirou o Faz-tudo da cabeça.
Penny Burgess abriu uma lata de Guinness, acendeu um cigarro e ligou o computador. Depois de dar vários telefonemas para confirmar a versão dos eventos que ouvira na rádio, ela se inflamou com um entusiasmo hipócrita que apenas políticos, jornalistas e pastores fundamentalistas parecem capazes de canalizar para seu progresso profissional.
Inalou uma longa lufada de fumaça, pensou por um momento, depois começou a bater nas teclas.
O serial killer de Bradfield fez sua quinta vítima ontem (domingo) quando o fisiculturista gay Stevie McConnell se matou na cela de uma prisão.
A polícia havia insinuado que o próprio McConnell era o Assassino de Bonecas, numa tentativa cínica de compelir o verdadeiro assassino a agir.
Mas esse exercício tortuoso terminou em tragédia, quando McConnell, de trinta e dois anos, enforcou-se com uma corda improvisada feita com sua própria camisa rasgada. Ele a atou ao beliche superior em sua cela solitária, na prisão de Barleigh, e se estrangulou.
Na noite passada, um policial envolvido na investigação do Assassino de Bonecas admitiu: “Sabemos há muitos dias que Stevie McConnell não era o assassino.”
McConnell havia pedido que a equipe prisional o pusesse numa cela isolada depois de um ataque bárbaro de presidiários como ele no dia anterior.
Uma fonte interna da prisão de Barleigh disse: “Ele levou uma verdadeira surra. Os rumores quando ele chegou davam conta de que ele era o Assassino de Bonecas, só que a polícia ainda não tinha indícios suficientes para acusá-lo.
“Presidiários não gostam de assassinos sexuais, e tendem a expressar esses sentimentos. McConnell recebeu uma surra brutal. Ele foi espancado e agredido sexualmente também.”
Conforme relatos, os carcereiros fizeram vista grossa para o espancamento selvagem do prisioneiro. Assim, ontem (domingo), por causa de uma operação padrão dos policiais da prisão, McConnell foi deixado por sua própria conta na cela por tempo suficiente para acabar com a vida. Um porta-voz do Ministério do Interior disse que haverá um inquérito completo sobre o incidente.
McConnell gerenciava a academia de ginástica Bodies no centro da cidade, onde a terceira vítima do assassino, o advogado Gareth Finnegan, era associado.
Ele foi acusado de agressão leve depois de sair em defesa de um sargento da polícia à paisana que foi atacado por um terceiro homem no bairro gay de Temple Fields.
Em seguida, tentou deixar o país enquanto estava sob fiança. A polícia o deteve novamente, quando estava prestes a entrar numa embarcação para a Holanda, e persuadiu os juízes leigos a devolvê-lo à prisão.
Uma fonte da polícia revelou: “O que fizemos levou as pessoas a pensarem que McConnell era o assassino, e era isso que queríamos.
“Serial killers são muito vaidosos. Pensamos que o assassino ficaria tão escandalizado que tivéssemos indicado a pessoa errada que sairia às claras e faria contato.
“Tudo saiu terrivelmente errado.”
Um amigo de McConnell disse na noite passada: “A polícia de Bradfield é a assassina. Pelo que me consta, foram eles que mataram Stevie.
“Os policiais o interrogaram longamente sobre os assassinatos. Eles os puseram sob todo tipo de pressão.
“Muito embora tenham deixado que ele partisse depois, não é fácil se livrar de uma mancha assim.
“Ele foi tratado com frieza no trabalho e nos bares gays.
“Foi por isso que decidiu fugir. É uma tragédia. Pior do que isso, é uma tragédia sem sentido.
“Isso não fez a polícia avançar um centímetro na busca do assassino.”
Penny acendeu outro cigarro e leu sua cópia.
— Agora, tente sair dessa, Kevin — disse ela baixinho, apertando as teclas que salvariam o arquivo e o transmitiriam via modem para o computador do escritório. Então, como algo que lhe ocorreu depois, digitou:
Memorando para a redação.
De Penny Burgess, editoria de crimes.
Estou tirando folga amanhã (segunda-feira) para compensar as horas extras da semana passada e de ontem. Espero que isso não cause problemas demais!
— Um Land Rover Discovery, cinza metálico ou azul-escuro? — confirmou Dave Woolcott, fazendo uma anotação no bloco.
— Foi o que o homem disse — confirmou Carol.
— Certo. Como hoje é domingo, não consigo um relatório completo da Swansea sobre cada veículo como esse no nosso território — explicou Dave.
— O que podemos fazer, no entanto, é mandar uma equipe visitar as principais concessionárias e os vendedores de usados, perguntando por registros de qualquer um que tenha comprado um desses — sugeriu Kevin. Como todos eles, ele estava agitado, com uma empolgação apenas ligeiramente temperada pela notícia trágica de Barleigh.
— Não — recusou Brandon. — Isso seria um desperdício de tempo e pessoal. Não há nenhuma garantia de que o assassino tenha comprado seu veículo em estabelecimentos locais. Esperaremos até amanhã de manhã. Aí trabalharemos o mais rápido possível.
Todos pareciam decepcionados, embora reconhecessem a força do argumento de Brandon.
— Nesse caso, senhor — disse Carol —, eu gostaria de trabalhar com Dave compilando listas de fornecedores de hardware e software de computador, de modo que estejamos prontos para começar assim que haja pessoal livre para atacar os telefones.
Brandon assentiu.
— Bem pensado, Carol. Agora, por que o restante de nós não volta para casa e relembra a aparência do lugar onde mora?
Tony estava estirado no sofá, tentando se convencer de que estava aproveitando o luxo de assistir à TV quando a campainha tocou. A esperança de que a companhia viesse resgatá-lo do tédio inquietante levantou-o num salto e o levou direto ao corredor. Ele abriu a porta, já com um sorriso se espalhando pelo rosto.
O sorriso morreu no meio do caminho quando percebeu que estava sem sorte. Havia uma mulher à porta, mas não era uma de suas amigas ou colegas. Ela era alta, com ossos largos, feições pesadas e rudes, e maxilares quadrados e fortes. Afastando os longos cabelos escuros do rosto, disse:
— Desculpe incomodá-lo, mas meu carro quebrou e não sei onde há um telefone público. Poderia usar seu telefone para ligar para a seguradora? Eu pago a ligação, é claro...
Sua voz foi diminuindo, e ela sorriu, como quem pede desculpas.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 017
Quando avistei o sargento Merrick no Sackville Arms, pensei que ia desmaiar. Só tinha ido lá porque sabia que os detetives da Scargill Street usavam o lugar. Queria ouvir quais eram as fofocas na delegacia de homicídios. Queria ouvi-los falar sobre mim e minhas conquistas. A última coisa que esperava era ver um rosto tão familiar me olhando.
Estava numa mesa discreta, num canto, quando vi Merrick entrar. Ponderei se devia ou não ir embora, mas concluí que isso poderia me tornar visível. A última coisa que eu queria era que ele me reconhecesse e me seguisse por qualquer motivo que fosse. Além disso, por que eu devia permitir que um policial me forçasse a abandonar meu horário de almoço?
Mas não conseguiria evitar a agitação em meu estômago caso ele me visse e viesse falar comigo. Não tinha medo dele, mas não queria chamar atenção. Por sorte, ele estava com dois de seus colegas, e eles estavam muito ocupados discutindo alguma coisa — provavelmente sobre mim, se eles soubessem — para prestar muita atenção a qualquer outra pessoa. Reconheci a mulher pelos jornais. Inspetora Carol Jordan. Ela é mais bonita pessoalmente do que nas fotos, talvez porque seus cabelos têm um belo tom de louro. O outro homem eu nunca tinha visto antes, mas registrei seu rosto para referência futura. Cabelos vermelho-cenoura, pele branca, sardas, traços de menino. E, é claro, Merrick, consideravelmente mais alto que os outros, com algum tipo de curativo na cabeça. Queria saber como ele foi arrumar aquilo.
Nunca odiei Merrick do jeito que odiei alguns dos outros, muito embora ele tenha me prendido algumas vezes. Ele nunca me tratou com o mesmo desdém. Nunca me olhou com escárnio quando me prendia. Mas eu conseguia perceber que ainda assim ele me via como um objeto, uma pessoa indigna de respeito. Nunca compreendeu que, quando eu vendia meu corpo para os marinheiros, havia um propósito. No entanto, o que quer que eu tenha feito naquela época já não é importante agora. Hoje sou diferente, sou uma pessoa transformada. O que aconteceu em Seaford parece tão irrelevante e remoto quanto algo que eu tenha visto no cinema.
De forma curiosa, estar na presença justamente dos policiais que tentavam me encontrar era bastante empolgante. Senti verdadeira excitação em estar a apenas alguns metros de distância dos meus perseguidores, que não sentiam a presença da presa. Eles nem mesmo tinham sexto sentido suficiente para perceber que havia algo extraordinário acontecendo, nem mesmo Carol Jordan. Isso é que é intuição feminina. Eu encarava aquilo como uma espécie de teste, uma medida da minha habilidade de iludir meus perseguidores. A ideia de que eles podem me pegar é absurda, é impensável.
Senti-me tão forte depois desse encontro que o jornal do dia seguinte atingiu-me como uma pancada de um saco de areia. Estava andando pela sala do computador principal quando vi a primeira edição do Sentinel Times largada numa mesa de algum engenheiro júnior. A manchete QUINTO CORPO NO FUROR DO ASSASSINO DE BONECAS saltava para mim.
Queria me enfurecer e gritar, atirar coisas pela janela. Como eles ousavam? Meu trabalho é tão pessoal, como podiam confundir a obra de algum imitador descuidado com uma das minhas?
Estava tremendo com a ira contida quando voltei para meu escritório. Queria perguntar ao engenheiro se eu podia dar uma olhada no jornal, mas achei que não seria prudente. Queria sair correndo dali para a banca mais próxima e comprar um exemplar. Mas isso teria sido uma fraqueza imperdoável. O segredo do sucesso, disse com meus botões, era agir normalmente. Não fazer nada que faria meus colegas pensarem que havia algo estranho acontecendo em minha vida.
— Paciência — convenci-me — é uma virtude cardinal.
Então me sentei em minha mesa, mexendo com as complicações de um software que precisava ser reescrito. Mas meu coração não estava nisso, e eu sabia que não estava justificando meu salário naquela tarde. Às quatro horas, não podia mais suportar. Peguei o telefone e disquei o número especial que transmite a Bradfield Sound.
A reportagem era a principal notícia do boletim, como tinha de ser.
— O corpo de um homem encontrado na área de Temple Fields nas primeiras horas da manhã não é a quinta vítima do serial killer que trouxe terror à comunidade gay de Bradfield, revelou a polícia esta tarde.
Enquanto as palavras do repórter eram assimiladas, senti minha raiva se esvair, o vazio dentro de mim me preenchendo de novo.
Sem esperar mais, bati o telefone. Finalmente eles acertaram alguma coisa. Mas eu havia passado quatro horas infernais por causa do erro deles. Cada hora que eu sofrera seria mais uma hora acrescida à agonia do dr. Tony Hill, prometi.
Porque a polícia de Bradfield havia agora cometido o maior dos absurdos. O dr. Tony Hill, o idiota que não tinha reconhecido ainda que todos os crimes pertenciam a mim, foi apontado consultor oficial da polícia na investigação do serial killer. Coitados dos tolos iludidos. Se essa era a melhor esperança deles, então claramente não tinham esperança alguma.
17
Num assassinato de pura volúpia, completamente desinteressado, onde nenhuma testemunha suspeita será removida, nenhuma recompensa será ganha, nenhuma vingança será satisfeita, é claro que apressar-se seria arruiná-lo inteiramente.
A agonia era tão extrema que Tony queria acreditar que estava num pesadelo. Ele nunca tinha compreendido antes quantos tipos diferentes de dor existiam. A cabeça latejava levemente; a garganta arranhava, áspera; a dilaceração óbvia e retorcida dos ombros; e as agulhadas das cãibras em suas coxas e batatas da perna. A princípio, a dor bloqueou todos os outros sentidos. Seus olhos se fechavam com força, e tudo que conhecia era um sofrimento tão intenso que fazia o suor lhe brotar da testa.
Gradualmente, ele aprendeu a suportar os extremos da dor, percebendo que se colocasse seu peso sobre os pés, as cãibras iriam diminuir lentamente e o rasgão excruciante em seus ombros aumentaria com menor velocidade. À medida que o tormento se tornava mais tolerável, ele percebia com mais nitidez que se sentia enjoado; um mal-estar profundo depositado em seu estômago que ameaçava ser expelido a qualquer momento. Só Deus sabia por quanto tempo ele vinha aguentando aquilo.
Devagar, com medo, ele abriu os olhos e levantou a cabeça, um movimento que enviou um espasmo de agonia por seu pescoço e ombros. Tony observou em volta. Instantaneamente, arrependeu-se do que fez. Ele soube imediatamente onde estava. O recinto era iluminado com luzes brilhantes. Refletores instalados no teto e nas paredes revelavam um cômodo caiado, seu piso de pedra bruta marcado com manchas escuras que ele sabia, sem examinar, que eram os vestígios visíveis de sangue empoçado e esparramado. De frente para ele estava o olho cego de uma câmera num tripé, uma luz vermelha lateral indicando que seu escrutínio não estava deixando de ser registrado. Preso à parede distante havia uma faixa magnética com uma coleção de facas penduradas organizadamente. Num canto do quarto, ele viu os aparelhos inconfundíveis de tortura. Um potro; um aparato estranho parecido com uma cadeira que ele reconhecia, mas não conseguia lembrar o nome imediatamente. Seria algo religioso? Algo vagamente cristão? Algo traiçoeiro, que não era o que parecia? Um berço de Judas, era como se chamava. E, na parede, uma cruz de santo André imensa de madeira, uma espécie de relíquia sagrada medonhamente deturpada. Tony deixou escapar um gemido baixinho de seus lábios secos.
Agora que sabia do pior, avaliou sua própria situação. Ele estava nu, sua pele arrepiada no frio do porão. As mãos, presas atrás das costas. A julgar pelas extremidades rígidas que cortavam seus pulsos, por algemas, mantidas esticadas por sua vez por uma corda ou corrente ou algo que estava obviamente preso ao teto. Esse cabo estava apertado o bastante para forçar a parte superior do corpo dele para a frente, deixando-o dobrado na cintura. Tony conseguiu se empurrar nas pontas dos dedos dos pés e girar o corpo de lado. Com o canto dos olhos, enxergou uma corda de náilon forte passando por trás dele, por uma polia, pela extensão do teto, depois por outra polia até um guincho.
— Jesus — disse, com a voz áspera. Ele estava com medo de olhar seus pés, para que seus piores temores não fossem confirmados, mas forçou seus olhos para baixo assim mesmo. Como ele temera, cada tornozelo estava envolvido numa correia de couro. As correias, por sua vez, estavam presas a um suporte feito com cordas que segurava uma pesada placa de pedra. Um tremor involuntário de medo o percorreu, tencionando seus músculos torturados ainda mais. Ele tinha conhecimento sobre tortura; para tratar seus pacientes, estudara a história do sadismo. Nem mesmo em seus piores momentos imaginara que enfrentaria um destino tão desumano.
Sua mente já estava agitada. Ele seria içado para cima até que atingisse o teto. Seus músculos seriam torcidos e rasgados; suas juntas, esticadas até o limite. Depois o guincho seria solto, deixando-o cair alguns metros antes que o freio fosse aplicado. O peso da placa de pedra, ainda se movendo rapidamente para baixo acelerada a dez metros por segundo, concluiria o serviço, destroçando suas juntas, deixando-o pendente numa confusão de membros deslocados. Se tivesse sorte, o choque e a dor o deixariam inconsciente. Strappado, transformado numa das belas-artes da Inquisição Espanhola. Não era preciso alta tecnologia na tortura.
Numa tentativa de escapar ao pânico cego que seu conhecimento lhe trouxera, ele se forçou a recordar o que havia ocorrido. A mulher na porta, foi onde começara. Sentira uma sensação desagradável de familiaridade ao deixá-la entrar. Ele tinha certeza de que a vira em algum lugar, mas não conseguia imaginar ter visto alguém tão caracteristicamente desgracioso e não se lembrar. Ele andou na frente dela pelo corredor até seu escritório. Depois, o leve sopro de um cheiro estranhamente medicinal e químico. Em seguida, a mão tinha envolvido furtivamente seu pescoço e apertado um algodão frio e nojento em seu rosto. Um chute atrás dos joelhos para fazer dobrar suas pernas e levá-lo a cair. Ele lutara, mas, com o peso dela sobre ele, apenas um momento havia passado antes que perdesse a consciência.
Depois disso, entrou e saiu de um submundo de luz e escuridão, consciente apenas do algodão que parecia constantemente apagá-lo tão logo ele lutava para voltar à consciência. Até que, finalmente, recobrara os sentidos. Na câmara de tortura do Faz-tudo. Do nada, uma citação brotou em sua mente. “Pode estar certo, senhor, quando um homem sabe que será enforcado numa quinzena, isso concentra sua mente de modo esplêndido.” Em algum lugar, ele sabia que havia uma pista do que acontecera que poderia permitir que escapasse ao que parecia ser inevitável. Tudo que precisava fazer era encontrá-la.
Será que ele tinha errado completamente seu perfil? A mulher que o sequestrara era o Faz-tudo? Ela era a culpada? Ou era apenas o chamariz, a cúmplice voluntária que se empolgava com o vício do mestre? Novamente, ele reconstituiu o que sua memória permitia recuperar. Invocou a imagem dela novamente. Primeiro, as roupas, capa de chuva bege, corte no estilo europeu, igual à de Carol, que estava aberta, revelando uma camisa branca desabotoada o suficiente para mostrar o volume de seios fartos e um decote generoso. Jeans, tênis. Tênis. Eles eram da mesma marca e modelo que os seus. Mas nada disso era importante, Tony disse a si mesmo. Eles eram apenas símbolos exteriores do cuidado que o Faz-tudo tomou para não ser pego. A indumentária da mulher havia sido escolhida de modo que, se ela deixasse alguma fibra solta, não pareceria ter nenhum significado, sendo identificável como das roupas de Carol ou das suas. E Carol havia estado em sua casa com frequência suficiente para ter deixado algumas fibras.
O rosto dela não provocava nenhuma lembrança tampouco. Ela era alta para uma mulher, pelo menos um metro e setenta e oito, combinando com uma estrutura óssea corpulenta. Nem mesmo sua mãe poderia dizer que era atraente, com seu maxilar pesado, nariz levemente bulboso, boca grande e olhos curiosamente separados. Muito embora usasse maquiagem bem-feita, ainda que pesada, não havia muito que pudesse fazer com os materiais de constituição básica. Ele tinha certeza de que nunca estiveram juntos num cômodo, embora não fosse desconsiderar a possibilidade de ter passado por ela na rua, na estação de bonde ou no campus.
O tênis. Por alguma razão, ele ficava voltando ao tênis. Se ao menos a dor parasse por tempo suficiente para que ele se concentrasse adequadamente. Tony prendeu as pernas esticadas, tentando aliviar a dor lancinante nos ombros. A fração de um centímetro que ganhou não foi nem perto o suficiente. Novamente, a dor visceral o dominou e ele deixou cair uma lágrima.
O que havia no tênis? Tony recorreu a cada partícula de concentração que pôde e invocou a imagem da mulher novamente. Arfando lentamente, ele percebeu o que era. Os pés eram grandes demais. Mesmo para uma mulher daquela altura, os pés eram grandes demais. Assim que percebeu isso, ele se lembrou também das mãos. Primeiro, couro negro; depois, finas luvas de látex cobrindo mãos grandes, dedos grossos e fortes. A pessoa que o trouxera ali nem sempre fora mulher.
• • •
Carol apertou novamente a campainha. Onde diabos estava ele? As luzes estavam acesas e as cortinas puxadas. Talvez tivesse dado uma saidinha para pegar uma pizza, postar uma carta, comprar uma garrafa de vinho, alugar um vídeo? Com um suspiro de frustração, ela deu meia-volta, andou até o final da rua, virando no beco que se alongava entre a rua de Tony e as casas atrás. Andou até seu quintal, onde um proprietário anterior tinha demolido a parede e concretado metade da área para fornecer o local rígido onde Tony lhe dissera que sempre deixava seu carro.
O carro estava no lugar, exatamente onde devia. — Ah, maldição — reclamou Carol. Circundando o veículo, ela andou até a casa e olhou pela janela da cozinha. A luz da porta aberta que dava para o corredor lançava uma iluminação pálida sobre o cômodo. Nenhum sinal de vida. Nenhuma louça suja, nenhuma garrafa vazia.
Por via das dúvidas, Carol tentou a porta dos fundos. Nenhum sucesso. — Malditos homens — resmungou ela, enquanto andava até o carro. — Cinco minutos, amigo, depois vou embora — prometeu, lançando-se no assento do motorista. Dez minutos passaram lentamente, mas ninguém apareceu.
Carol deu partida no motor e saiu com o carro. No final da rua, olhou de relance o pub do outro lado da estrada principal. Valia a pena tentar, pensou. Foram necessários menos de três minutos para verificar os ambientes cheios e enfumaçados e descobrir que, onde quer que Tony estivesse, não era no Farewell to Arms.
Onde mais ele poderia ter ido a pé às nove horas de uma noite de domingo? — Para qualquer lugar — disse a si mesma. — Você não pode ser a única amiga dele no mundo. Ele não estava lhe esperando; você só ligou para marcar uma reunião para amanhã.
Desistindo, Carol dirigiu para casa. O apartamento estava vazio. Michael, ela recordava, tinha saído para jantar com alguma mulher que conhecera numa exposição. Ela decidiu desistir do mundo e ir para a cama. Mas, primeiro, era melhor que deixasse uma mensagem na secretária eletrônica de Tony. Se ela aparecesse duas manhãs seguidas sem avisar, ele poderia começar a ficar nervoso. A secretária eletrônica entrou depois de alguns toques, mas não havia mensagem, apenas uma série de cliques seguidos pelo tom. — Oi, Tony — disse ela. — Não sei se sua secretária está funcionando bem, então não sei se vai receber esta mensagem. São nove e vinte, e estou prestes a dormir. Vou estar no escritório logo cedo, trabalhando na pesquisa do computador. O sr. Brandon convocou uma reunião sobre o caso para amanhã, às três. Se quiser me encontrar antes, me ligue. Se não estiver na sala de reuniões da delegacia, estarei na sala da equipe HOLMES.
Sentada com Nelson no colo e uma bebida forte ao lado, Carol pensou no trabalho que tinha pela frente. A lista de empresas fornecedoras de computadores que vendiam periféricos e o hardware que o Faz-tudo precisaria para construir suas próprias imagens era tão longa que dava tristeza. Ela dissera a Dave para não começar a trabalhar naquilo até que ela tivesse oportunidade de verificar a empresa de software. A lista de clientes deles seria menor e eles teriam o Discovery 4x4 para fazer a referência cruzada da lista. Apenas se isso não resultasse em nada, ela liberaria a equipe de Dave para ir atrás das dúzias de números que compilou meticulosamente naquela noite.
— Vamos chegar lá, Nelson — disse ela ao gato. — É melhor que a viagem valha a pena.
• • •
O estalo de saltos altos na pedra se infiltrou no delírio de dor como uma plaina num queijo. Assim, todo dia um som era convertido por seu local numa ameaça. Ele não fazia ideia se era dia ou noite, ou quanto tempo havia se passado desde que fora arrancado de sua vida. Tony se forçou a ficar alerta à medida que o som se aproximava dele por trás. Ela estava descendo. Na base da escada, os estalos cessaram. Ele ouviu uma risadinha grave. Devagar, um degrau de cada vez, os passos seguiam atrás dele. Ele podia sentir o exame meticuloso a que estava sendo submetido.
Ela levou o tempo que precisou, circundando seu corpo amarrado, até que se moveu para a linha de visão dele. Tony ficou momentaneamente surpreso pela imponência do corpo dela. Do pescoço para baixo, ela poderia ser uma modelo de uma revista de soft porn. Ficou de pé com as pernas separadas, as mãos na cintura e os cotovelos virados para fora. Ela vestia um quimono de seda vermelho folgado, que se abriu para revelar um corpete de couro extraordinariamente vermelho com furos nos mamilos e uma abertura na região genital. Meias pretas cobriam perfeitamente pernas musculosas que terminavam em escarpins pretos. Mesmo debaixo da roupa, ele podia ver a silhueta nítida de braços e ombros fortes e musculosos. Da visão de onde estava pendurado, ela era tão sensual quanto emplastro de caulim.
— Já descobriu, Anthony? — disse com a voz arrastada, o entusiasmo da risada contida evidente em sua voz.
A ênfase em seu nome completo foi a última volta no cubo mágico de sua memória. Com a cabeça a mil, Tony disse:
— Imagino que comprimidos de paracetamol nem pensar, não é, Angelica?
A risada grave de novo.
— Fico contente de ver que não perdeu o senso de humor.
— Não, só a minha dignidade. Não esperava isso, Angelica. Nada em nossas conversas por telefone me levou a imaginar que era isso que tinha em mente para mim.
— Você não fazia ideia de quem eu era, fazia? — Angelica falava com um orgulho inconfundível em seu tom de voz.
— Sim e não. Não sabia que era você a pessoa que tinha matado esses homens. Mas sabia que você era a mulher para mim.
Angelica franziu a testa, como se estivesse em dúvida sobre como responder. Ela se virou e verificou a câmera.
— Você levou bastante tempo para chegar a essa conclusão. Faz ideia de quantas vezes bateu o telefone na minha cara? — Havia raiva em sua voz, não mágoa.
Tony percebeu o perigo e tentou achar palavras suaves.
— Isso é porque tenho um problema, não por sua culpa.
— Você tinha um problema comigo — disse ela, andando até os bancos de madeira que iam de um lado ao outro de uma das paredes. Ela pegou outra cassete e andou de volta até a câmera.
Tony tentou novamente.
— Muito pelo contrário — disse ele. — Sempre tive problemas em relacionamentos com mulheres. É por isso que não sabia como tratá-la no começo. Mas melhorou tanto. Você sabe que melhorou. Sabe que juntos fomos maravilhosos. Graças a você, sinto como se tivesse deixado todos os meus dilemas para trás. — Ele esperava que ela não estivesse completamente consciente da ironia não intencional em suas palavras.
Mas Angelica não era nenhuma boba.
— Acho que você pode dizer isso com segurança, Anthony. — Ela abriu um sorriso irônico.
— Sua esperteza me venceu, sabe. Tinha certeza de que o assassino era um homem. Eu bem devia saber.
Com as costas para ele, Angelica trocou as fitas na câmera. Depois se virou e disse:
— Você nunca me teria pegado. E, com você fora do caminho, ninguém mais vai me pegar.
Ignorando a ameaça, Tony continuou a conversar, esforçando-se para manter a voz carinhosa e uniforme.
— Eu devia ter percebido que você era mulher. A sutileza, a atenção aos detalhes, o cuidado a que se deu para limpar o que havia deixado. Foi estúpido da minha parte não perceber que essas eram indicações de uma mente feminina, e não da mente de um homem.
Angelica sorriu com malícia.
— Vocês psicólogos são todos iguais. — Ela proferiu a palavra como se fosse algo obsceno. — Não têm nenhuma imaginação.
— Mas não sou como eles, Angelica. Tudo bem, cometi um engano crucial, mas aposto que sei mais sobre você do que qualquer um dos outros sabia. Porque você me mostrou o interior de sua mente. E não apenas através dos assassinatos. Mostrou-me a mulher de verdade, a mulher que compreende o amor. Mas acho que não entenderam você, entenderam? Eles não acreditaram em você quando disse a eles que tinha uma alma feminina aprisionada num corpo masculino. Ah, suponho que tenham fingido acreditar, que a tenham tratado com condescendência e falado com superioridade com você. Mas, no fundo, eles consideravam você um monstro, não é? Acredite em mim, nunca achei isso.
A voz de Tony falhou quando ele chegou ao fim de seu discurso, sua boca estava seca com uma mistura de medo e clorofórmio. Pelo menos, a adrenalina que corria por suas veias parecia agir como um analgésico.
— O que sabe a meu respeito? — disse ela com rispidez, a dor em seu rosto num contraste estranho com a pose de coquete que havia adotado.
— Se formos conversar, preciso de um drinque — disse Tony, apostando que o narcisismo dela a obrigaria a compartilhar suas proezas, que ela precisava ouvir a versão dele de si mesma. Se quisesse ter alguma chance de escapar com vida, ele precisava construir um relacionamento com ela. Um drinque seria o primeiro tijolo da parede. Quanto mais ele conseguisse fazer que ela o visse como um indivíduo, não como um número, maiores seriam suas chances.
Angelica franziu a testa, desconfiada. Depois virando a cabeça para o lado, gesto que fez seus cabelos se esvoaçarem, virou-se e andou até o tanque instalado na parede. Ela abriu a torneira e olhou em volta vagamente à procura de um recipiente para bebidas de algum tipo.
— Vou buscar um copo — murmurou ela, passando por ele e estalando os degraus novamente.
Tony sentiu uma onda de alívio com essa pequena vitória. Angelica tinha ido há menos de trinta segundos, retornando com uma caneca branca grossa. A cozinha fica em cima, Tony deduziu quando ela voltou até o tanque. Angelica andava bem nos saltos, seus passos medidos e femininos. Era interessante, já que ela havia obviamente regressado aos movimentos mais masculinos sob o estresse do sequestro e do assassinato. Essa era a única forma de justificar a convicção de Terry Harding de que vira um homem ao volante saindo da casa de Damien Connolly.
Angelica encheu a caneca e se aproximou de Tony com cautela. Ela agarrou-lhe os cabelos, puxou sua cabeça para trás de modo doloroso e derramou a água gelada em sua boca. A bebida desceu por seu queixo e garganta, mas o alívio era palpável.
— Obrigado — disse ele, de modo ofegante, quando ela retirou a caneca.
— A gente sempre deve ser hospitaleira com os convidados — respondeu ela, ironicamente.
— Espero continuar sendo um convidado por algum tempo — arriscou Tony. — Sabe, admiro você. Tem estilo.
Ela franziu a testa de novo.
— Não me venha com conversa fiada, Anthony. Não vai me enrolar com bajulação idiota.
— Não é conversa fiada — protestou ele. — Passei dias e noites com olhos fixos nos detalhes do que você conseguiu. Estou tão fundo na sua mente, como poderia não admirar você? Como poderia não ficar impressionado? Os outros que trouxe aqui, eles não faziam ideia de quem você era, do que pode fazer.
— Isso é verdade, vou admitir isso. Eram como bebês, amedrontados e estúpidos bebês — disse Angelica, com desdém. — Não sabiam dar valor ao que uma mulher como eu podia fazer por eles. Eram traiçoeiros, tolos lascivos.
— É porque não conheciam você como eu.
— Você fica dizendo isso. Prove. Prove que sabe alguma coisa sobre mim.
O desafio foi lançado, pensou Tony. Esqueça cantar em troca de pão, fale em troca da vida. Esse era o campo de provas, o lugar onde ele descobriria se sua psicologia era uma ciência de verdade ou apenas conversa fiada.
— Fraser Duncan? Alô, aqui é a detetive-inspetora Carol Jordan da polícia de Bradfield — apresentou-se ela. Carol nunca se acostumava a se referir a si mesma por seu título completo. Ela sentia como se a qualquer momento alguém fosse aparecer e gritar: “Ah, você não é não! Finalmente descobrimos.” Por sorte, não parecia que isso ia acontecer hoje.
— Sim? — A voz era cautelosa, a única sílaba proferida como uma pergunta.
— Na verdade, foi meu irmão, Michael Jordan, quem sugeriu que o senhor poderia me ajudar com uma investigação que estamos fazendo.
— Ah, é? — O clima estava melhorando. — Como vai o Michael? Ele está gostando do software?
— Acho que é seu brinquedo favorito — respondeu Carol.
Fraser Duncan riu.
— Um brinquedo caro, inspetora. Pois bem, o que posso fazer por você?
— É sobre o Vicom 3D Commander que gostaria de falar. Em sigilo absoluto, o senhor entende. Estamos envolvidos numa investigação importante de homicídio, e uma das teorias que estou cogitando é que o assassino possa estar usando seu software para editar os próprios vídeos, talvez até importar outros materiais para eles. Isso seria possível, não seria?
— Mais do que apenas possível. Seria absolutamente simples.
— Então, o senhor mantém registros de todos os seus clientes? — perguntou Carol.
— Mantemos. Não vendemos todos os pacotes diretamente, é claro, mas qualquer um que compre o Commander deve registrar sua compra conosco já que isso lhes fornece acesso a uma linha de atendimento gratuita e também significa que receberão correspondências prioritárias quando desenvolvermos atualizações. — Duncan agora estava bem expansivo. — A senhora está fazendo uma solicitação de acesso ao nosso banco de dados de clientes, inspetora?
— Sim, por favor, senhor. Esta é uma investigação de assassinato e as informações podem ser cruciais para nós. Posso garantir também que isso é completamente confidencial. Eu me envolveria pessoalmente para garantir que seus dados seriam removidos de nosso sistema assim que tivermos terminado com eles — disse Carol, tentando não parecer que estava implorando.
— Não sei — disse Duncan, com hesitação. — Não tenho certeza de que gosto da ideia de você e seus colegas batendo na porta dos meus clientes.
— Não seria assim, sr. Duncan. De jeito nenhum. O que faríamos seria inserir a lista no nosso sistema de investigações do Ministério do Interior e fazer a correspondência cruzada com os dados existentes. Agiríamos apenas nas correlações que surgissem com as pessoas que já estão lá.
— É o serial killer que vocês estão perseguindo? — perguntou Duncan de repente.
Carol perguntou-se momentaneamente o que ele queria ouvir como resposta.
— Sim — disse ela, arriscando.
— Deixe-me retornar a ligação, inspetora. Só para ter certeza de que é quem está dizendo que é.
— Sem problema. — Ela lhe forneceu o número da mesa telefônica da polícia. — Peça a eles para transferir a ligação para mim, na sala do sistema HOLMES, na Scargill Street.
Os cinco minutos seguintes se passaram numa agitação de impaciência. O telefone mal tinha tocado quando Carol o pôs no ouvido.
— Inspetora Jordan.
— Você me deve uma, maninha.
— Michael!
— Acabo de contar a Fraser Duncan a pessoa honrada que você é, e que, apesar do que já ouviu sobre a polícia, ele pode confiar em você.
— Amo você, maninho. Agora, saia do telefone e deixe o homem falar comigo!
Dentro de uma hora, os dados da Vicom estavam na rede de computadores do sistema HOLMES, graças a Dave Woolcott e aos milagres da tecnologia moderna. Carol havia transferido Fraser Duncan para ele, depois que concordaram quanto às regras do uso dos dados, e Carol ouvira sem compreender o fim de uma conversa de Dave que consistia em expressões estranhas como “taxa de baud” e “arquivos ASCII”.
Ela sentou-se ao lado do chefe da equipe HOLMES, enquanto ele trabalhava num dos terminais.
— Tudo bem — disse ele. — Temos a lista da Vicom de pessoas que compraram o software deles. Aperto esta tecla, vou a este menu, nesta opção, correspondência com caracteres-curinga, e agora a gente relaxa e deixa a máquina conversar consigo mesma.
Por um minuto angustiante, nada aconteceu. Depois, a tela ficou limpa e uma mensagem piscou: “[2] correspondências encontradas. Listar correspondências?” Dave apertou a tecla ‘s’ e dois nomes e endereços foram exibidos na tela.
1. Philip Crozier, 23 Broughton Crag, Sheffield Road Bradfield BX4 6JB
2. Christopher Thorpe [critério de classificação 1]/ Angelica Thorpe [critério de classificação 2], 14 Gregory Street, Moorside, Bradfield BX6 4LR
— O que isso significa? — perguntou Carol, apontando para a segunda opção.
— Significa que o Land Rover Discovery está registrado no nome de Christopher Thorpe e o software foi comprado por Angelica — explicou Dave. — Usar a opção de caracteres-curinga fez com que a máquina classificasse por endereço e também por nome. Bem, Carol, você tem alguma coisa. Se isso significa algo ou não, teremos de ver.
Penny Burgess andava pelo calcário fissurado e áspero da Malham Pavement. O céu tinha o brilho azul do início da primavera, a grama áspera da charneca começava a parecer mais verde e marrom. De vez em quando, cotovias alçavam ao céu e despejavam suas canções em seus ouvidos. Houve duas ocasiões em que Penny se sentia realmente viva. Uma era na trilha de uma reportagem importante. A outra era lá na região alta da charneca de Yorkshire Dales e em Derbyshire Peak District. Ao ar livre, ela sentia liberdade igual à das cotovias, toda a pressão tinha ido embora. Não havia nenhuma redação exigindo a matéria pronta até uma hora atrás, nenhum contato a quem se sujeitar, nada de precisar olhar por sobre os ombros para ter certeza de que estava à frente de seus rivais. Apenas o céu, a charneca, a extraordinária paisagem de calcário e ela.
Por alguma razão, Stevie McConnell entrou em seus pensamentos. Ele nunca veria o céu novamente, nunca andaria pela charneca e observaria a mudança das estações. Graças a Deus, ela detinha o poder de garantir que alguém pagaria por essa privação desumana.
A casa de Philip Crozier era moderna, com terraço e três andares, e o piso inferior consistia principalmente numa garagem. Carol sentou-se no carro, observando-a de cima a baixo.
— Vamos entrar, senhora? — perguntou o jovem detetive ao volante.
Carol pensou por um momento. O ideal seria que Tony estivesse com ela quando entrevistasse as pessoas cujos nomes o computador tinha informado. Ela tentou ligar para a casa dele, mas ninguém atendeu. Claire disse que ele não havia chegado ainda ao escritório, o que a surpreendeu já que ele tinha um compromisso às nove e meia. Carol tinha rondado a casa, mas ela parecia exatamente igual à noite anterior. Saiu para se divertir com sua amiga, concluiu ela. Bem feito se perder o confronto com o Faz-tudo, pensou com malícia. Depois, se arrependeu imediatamente de sua infantilidade. Não podendo ter Tony, ela gostaria de poder ter Don Merrick com ela. Mas ele tinha saído em busca de outras linhas de investigação que surgiram a partir da identificação do Land Rover Discovery. A única pessoa que ela conseguiu encontrar que não estava envolvida com urgência em outra coisa foi o detetive Morris, no terceiro mês de sua transferência temporária para o Departamento de Investigações Criminais.
— Já que estamos aqui podemos ver se ele está em casa — disse Carol. — Embora provavelmente esteja no trabalho.
Eles subiram o caminho, e Carol absorveu os detalhes do gramado bem-aparado e da pintura em bom estado. A casa não se adequava realmente ao perfil de Tony. Era mais parecida com as casas das vítimas quanto ao valor e ao status, em vez da casa de alguém que aspira ao estilo de vida que elas têm. Carol apertou a campainha e deu um passo atrás. Eles estavam prestes a desistir e retornar para o carro quando Carol ouviu o som de passos pesados no andar de baixo. A porta se abriu revelando um homem negro parrudo vestindo calças de moletom e uma camiseta vermelha, de pés descalços. Ele não poderia ser mais diferente da descrição de Terry Harding. Ela perdeu as esperanças momentaneamente, depois se lembrou que Crozier podia não ser a única pessoa com acesso a seu software e seu Land Rover Discovery. Ainda valia a pena entrevistá-lo.
— Pois não? — disse ele.
— Sr. Crozier?
— Isso. Quem quer saber? — Sua voz estava relaxada, o sotaque de Bradfield era forte.
Carol exibiu seu distintivo e se apresentou.
— Gostaria de saber se poderíamos entrar e conversar, senhor.
— Sobre?
— Seu nome foi selecionado numa investigação de rotina, e eu gostaria de fazer algumas perguntas com fins de eliminação.
Crozier franziu a testa.
— Que tipo de investigação?
— Se pudéssemos entrar, senhor...
— Não, espere, sobre o que é isso? Estou tentando trabalhar.
Morris se apresentou ao lado de Carol.
— Não há necessidade de criar dificuldades, senhor, é apenas rotina.
— O sr. Crozier não está dificultando, policial — repreendeu Carol friamente. — Eu me sentiria do mesmo modo se estivesse na sua situação, senhor. Um carro que corresponde à descrição do seu se envolveu num incidente, e precisamos eliminar o senhor de nossa investigação. Estamos falando com várias outras pessoas em relação a isso. Não vai demorar.
— Tudo bem, então — suspirou Crozier. — É melhor vocês entrarem.
Eles o seguiram subindo as escadas acarpetadas com fibra até uma sala de estar com cozinha num único ambiente. Ela estava mobiliada num estilo caro, mas minimalista. Ele acenou para duas poltronas de couro e madeira e se sentou num pufe de couro no lustroso piso de madeira. Morris sacou seu caderno e abriu ostensivamente numa nova página.
— O senhor trabalha em casa, então? — perguntou Carol.
— Isso. Sou desenhista de animação autônomo.
— Desenho animado?
— Faço mais animações sobre ciência. Se quiser algo para um curso da Open University que mostre como os átomos colidem, sou a pessoa indicada. Então, de que trata a investigação?
— O senhor dirige um Land Rover Discovery?
— Isso. Está na garagem.
— Pode me dizer se o estava dirigindo na noite de segunda-feira passada? — perguntou Carol. Meu Deus, só tinha se passado uma semana?
— Posso. Não estava. Estava em Boston, Massachusetts.
Ela prosseguiu com as perguntas de rotina que estabeleciam precisamente o que Crozier vinha fazendo e com quem ela podia verificar as informações. Depois, ela se levantou. Hora da pergunta central, mas era importante manter a casualidade.
— Obrigada por sua ajuda, sr. Crozier. Só mais uma coisa: há alguém mais que tenha acesso à sua casa quando o senhor está fora? Alguém que pudesse ter pegado seu carro emprestado?
Crozier balançou a cabeça negativamente.
— Moro sozinho, não tenho nem um gato nem plantas, então ninguém precisa vir quando estou fora. Sou o único que tem as chaves.
— Tem certeza disso? Nenhuma faxineira, nem colega que vem aqui usar seu software?
— Certeza, certeza absoluta. Faço minha própria limpeza. Trabalho sozinho. Terminei com a namorada há alguns meses e troquei as fechaduras, certo? Ninguém tem as chaves, exceto eu.
Crozier estava começando a soar irritado.
Carol insistiu.
— E ninguém poderia ter pegado suas chaves emprestadas sem seu conhecimento e tê-las copiado?
— Não vejo como. Não tenho hábito de deixá-las por aí. E o carro só tem seguro quando eu sou o motorista, então nenhuma outra pessoa jamais o dirigiu — explicou Crozier, com sua irritação claramente aumentando. — Olhe só, se alguém cometeu algum crime num carro com minha placa, eles estavam usando placas frias, está bem?
— Aceito o que está dizendo, sr. Crozier. Posso garantir que se as informações que está me fornecendo se confirmarem, não vai nos ver novamente. Muito obrigada pelo seu tempo.
De volta ao carro, Carol disse:
— Encontre um telefone para mim. Quero tentar ligar para o dr. Hill de novo. Não acredito que ele está ausente do seu posto na única vez que realmente precisamos dele.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 018
É risível. Eles escolheram um homem que não consegue sequer identificar se apliquei uma punição específica ou não, e eles o empregam para ajudá-los a me pegar. Podiam ao menos ter tido a decência de contratar alguém que tivesse alguma reputação, um oponente digno das minhas habilidades, não algum idiota que nunca lidou com alguém da minha categoria.
Mas, em vez disso, eles me insultam. O dr. Tony Hill deve fazer um perfil meu, com base em sua análise dos meus assassinatos. Quando esse relato for publicado, daqui a anos, depois de minha morte na cama por causas naturais, os historiadores poderão comparar seu perfil com a realidade e rir das imprecisões grosseiras de sua pseudociência.
Ele nunca chegará perto da verdade. Para que fique registrado, eu escrevi essa verdade.
Nasci no porto de Seaford, em Yorkshire, uma das docas de pesca e comércio mais movimentadas do país. Meu pai era da marinha mercante, imediato em navios-petroleiros. Ele viajava o mundo todo, depois voltava para nossa casa. Mas minha mãe era tão ruim como esposa quanto era no papel materno. Posso ver agora que a casa estava sempre um caos, as refeições eram irregulares e pouco apetitosas. A única coisa em que era boa, a única coisa que os dois tinham em comum, era a bebida. Se houvesse campeonato em duplas nas Olimpíadas para pinguços, eles teriam conquistado a medalha de ouro.
Quando eu tinha sete anos, meu pai deixou de voltar para casa. É claro, minha mãe me culpou por não ser um filho bom o bastante. Ela disse que eu o afastara. Disse que eu era o homem da casa agora. Mas eu nunca consegui fazer jus às suas expectativas. Ela sempre queria mais de mim do que eu era capaz de oferecer, e estabelecia sua autoridade por meio da culpa e não do elogio. Passei mais tempo dentro do armário do que os casacos da maioria das pessoas.
Sem o cheque do meu pai, ela foi forçada a recorrer ao serviço de bem-estar social, que mal era suficiente para viver, quanto mais beber. Quando a sociedade de socorro mútuo tomou a casa, fomos viver com parentes em Bradfield por um tempo. Porém, ela não conseguia lidar com a desaprovação deles, por isso voltamos para Seaford e ela passou a se dedicar a outra indústria próspera da cidade: a prostituição. Acostumei-me cada vez mais à procissão de marinheiros nojentos e bêbados rondando os muitos apartamentos e conjugados sujos onde morávamos. Nosso aluguel estava sempre atrasado, e geralmente tínhamos de fugir no meio da noite antes que os oficiais de justiça engrossassem.
Passei a odiar a cópula repulsiva e barulhenta de que era testemunha frequente, e ficava fora da casa o máximo possível, muitas vezes dormindo sem conforto nas docas. Costumava implicar com garotos que eram mais novos que eu para tirar o dinheiro deles e poder comer. Mudava de escola com quase a mesma frequência que mudávamos de casa, então nunca fui muito bem, apesar de saber que podia botar no bolso a maioria das outras crianças, que eram simplesmente estúpidas.
Assim que fiz dezesseis anos, deixei Seaford. Não tive saudades; não era como se jamais tivesse conseguido fazer muitos amigos, me mudando o tempo inteiro. Vira homens o bastante para saber que não queria crescer como eles, e me sentia diferente por dentro. Achava que, se me mudasse para uma cidade grande como Bradfield, seria mais fácil descobrir o que queria. Um dos primos de minha mãe me arrumou um emprego numa empresa de eletrônicos onde ele trabalhava.
Por volta dessa época, descobri que me vestir com roupas de mulher fazia eu me sentir bem com meu próprio corpo. Arrumei meu próprio conjugado para que pudesse fazer isso quando quisesse, o que me acalmou muito. Comecei a estudar ciência da computação em aulas noturnas e, por fim, consegui algumas qualificações adequadas. Mais ou menos nesse período, minha mãe recebeu uma casa em Seaford em testamento, pela morte do irmão.
Tive a oportunidade de um emprego lá, trabalhando em sistemas de computadores para a empresa telefônica privada local. Não queria muito voltar, mas a chance era boa demais para recusar. Nunca cheguei perto de minha mãe. Acho que ela nem sabia que eu voltara.
Uma das poucas boas coisas sobre Seaford é o acesso de balsa para a Holanda. Costumava ir para lá a cada dois fins de semana, porque em Amsterdã eu podia sair com roupas de mulher e ninguém tinha nenhuma reação. Lá encontrei muitos transexuais e também travestis, e quanto mais conversava com eles, mais percebia que nos sentíamos da mesma forma. Eu era uma mulher aprisionada num corpo masculino. Isso explicava por que eu nunca tinha tido muito interesse sexual pelas garotas. E, embora eu achasse os homens atraentes, sabia que não era uma bicha. Elas me causavam repugnância, com seu fingimento de relacionamentos normais quando todo mundo sabe que somente homens e mulheres podem se ajustar adequadamente.
Procurei os médicos de um hospital em Leeds, onde eles fazem todas as operações de mudança de sexo no norte, e me recusaram. Os psicólogos deles eram tão estúpidos e tacanhos quanto o resto de sua irmandade. Mas consegui um médico particular em Londres, que me prescreveu o tratamento com hormônios de que eu precisava. É claro, eu não podia continuar trabalhando enquanto isso acontecia, mas falei com meu chefe e ele disse que me daria uma boa referência para outro emprego quando eu operasse e me tornasse mulher.
Tive que ir ao exterior para fazer a operação, e foi muito mais caro do que eu esperava. Procurei minha mãe e perguntei se ela faria a hipoteca da casa para me emprestar o dinheiro, e ela só riu de mim.
Então, fiz o que aprendera com ela. Vendi meu corpo nas docas. É impressionante quanto dinheiro os marinheiros estão dispostos a pagar por um travesti. Eles ficam loucos de prazer ao pensar em alguém que tem seios e um pau. Eu não era como as outras prostitutas tampouco; não gastava tudo com bebida, drogas ou um cafetão. Guardei tudo até que pudesse pagar a operação.
Quando cheguei a Seaford, nem mesmo minha mãe me reconheceu a princípio. Eu só tinha voltado há alguns dias quando ela tomou aquela trágica overdose acidental de pílulas e bebida. Ninguém ficou surpreso. Sim, doutor, você pode acrescentá-la à lista.
Com as minhas qualificações, experiência e referências, não tive dificuldades em conseguir um emprego como analista de sistemas sênior na companhia telefônica de Bradfield. Com o dinheiro que ganhei com a venda da casa em Seaford, comprei minha residência em Bradfield e comecei a tarefa de encontrar um homem valoroso com quem dividir minha vida.
E o dr. Hill presume que me entende, sem saber nada disso? Bem, em muito pouco tempo, vou compartilhar tudo isso com ele. É uma pena que ele não vá ter a oportunidade de fazer suas anotações.
18
A verdade é que sou muito meticuloso em tudo relacionado a assassinatos; e talvez leve longe demais minha sensibilidade.
Don Merrick entrou na sala do sistema HOLMES mastigando um hambúrguer de churrasco com queijo duplo e bacon de cinco centímetros de espessura.
— Como faz isso? — perguntou Dave Woolcott. — Como consegue que aquelas desleixadas da cantina cozinhem comida de verdade? Elas queimam até xícara de chá, aquele grupinho. Mas você sempre consegue fazer milagre delas.
Merrick deu uma piscadela.
— É meu charme natural do nordeste — disse ele. — Só escolho a mais feia e digo que ela me lembra a minha mãe quando estava no auge.
Ele se sentou e esticou as pernas longas.
— Chequei a meia dúzia de Land Rovers Discovery que recebi do seu sargento. Estavam todos limpos. Dois deles eram de mulheres; dois tinham álibis inquestionáveis para pelo menos duas das noites; um tinha esclerose múltipla, então não poderia ter feito os trabalhos; e o sexto vendeu seu carro para uma concessionária na região central do país há três semanas.
— Ótimo — disse Dave desanimado. — Dê a lista para um dos operadores para que possamos atualizar o arquivo.
— Onde está o chefe?
— Carol ou Kevin?
Merrick deu de ombros.
— Ainda penso na inspetora Jordan como minha chefe.
— Ela saiu para procurar agulha num palheiro — respondeu Dave.
— A ideia dela teve algum resultado, então? — perguntou Merrick.
— Duas correspondências cruzadas.
— Vamos dar uma olhada.
Dave vasculhou os papéis e encontrou três folhas grampeadas. A primeira listava as duas correlações. Merrick franziu a testa e virou a página. A segunda era uma impressão do resultado de uma pesquisa de ficha criminal de Philip Crozier. Nada encontrado. Com pressa, ele virou a terceira página, que listava dois Cristopher Thorpe. Um tinha um último endereço conhecido em Devon e várias condenações por arrombamento. O segundo tinha um último endereço conhecido em Seaford. Havia uma série de condenações juvenis: agressão contra um juiz de futebol, quebra de vidraças na escola, roubo em lojas. Havia meia dúzia de prisões na vida adulta, todas por oferecer serviços de prostituição. Merrick inspirou com força e virou para a primeira página.
— Puta merda — disse.
— O que foi? — perguntou Dave, subitamente alerta.
— Esse aqui, o Christopher Thorpe, o de Seaford.
— Sim? Carol achava que não era o mesmo que o nosso. Quer dizer, ele tem condenações por prostituição masculina, mas este de Bradfield parece ser casado porque a mulher no mesmo endereço tem seu sobrenome. E vamos encarar os fatos, michês das docas não dirigem por aí em máquinas caras como o Land Rover Discovery.
Merrick balançou a cabeça.
— Não, você entendeu tudo errado. Conheço esse Christopher Thorpe de Seaford. Trabalhei na Delegacia de Costumes lá antes de vir para cá, lembra? Fui o policial que o prendeu em duas dessas acusações. Christopher Thorpe estava prestes a fazer mudança de sexo nessa época. Ele tinha os peitos e tudo o mais, estava tentando ganhar dinheiro para fazer a operação. Adivinha qual era o nome de guerra dele? Dave, Christopher Thorpe não é casado com Angelica Thorpe. Ele é Angelica Thorpe.
— Puta merda — ecoou Dave.
— Dave, onde diabos está Carol?
Angelica estava parada na frente dele, de mãos na cintura, mastigando um canto da boca.
— Você não pode, né? Não pode provar porque não sabe nada sobre minha vida.
— Em certo sentido, você está absolutamente certa, Angelica. Não conheço os fatos de sua vida — disse Tony, com cuidado —, mas acho que sei um pouco sobre a trajetória dela. Sua mãe não fez um trabalho muito bom em amá-la. Talvez tivesse um problema com bebida ou drogas, ou talvez não compreendesse o que um garotinho precisava. De qualquer maneira, ela não fazia você se sentir amada quando era pequena. Estou certo?
Angelica fez uma careta.
— Continue. Cave sua própria cova.
Tony sentiu um arrepio de medo na base do crânio. E se ele tivesse errado tudo? E se essa mulher fosse a exceção para cada estatística próxima da certeza que Tony mantinha em primeiro plano na mente durante toda a investigação? E se ela fosse o único serial killer que tinha vindo de uma família feliz e amorosa? Descartando suas dúvidas como um luxo a que não podia se dar no momento, Tony continuou: — O seu pai não estava muito presente enquanto você crescia, e ele nunca lhe mostrou que estava orgulhoso do filho, muito embora você tenha feito tudo que sabia para fazê-lo sentir esse orgulho. Sua mãe esperava demais de você, vivia lhe dizendo que você era o homem da casa, e o censurava quando se comportava como a criança que era no lugar do homem que ela fingia ver em você.
O rosto de Angelica se contraiu num espasmo de reconhecimento. Tony pausou.
— Prossiga — sussurrou ela entre os dentes cerrados.
— Não é fácil falar, dobrado assim. Não pode afrouxar a corda um pouco, deixar que eu fique na vertical?
Ela balançou a cabeça, a boca com um biquinho infantil.
— Não consigo olhar direito para você assim — tentou Tony. — Você tem um corpo fabuloso, deve saber disso. Se for a última coisa que vou ver, pelo menos me deixe apreciá-lo.
Ela inclinou a cabeça para um lado, como se estivesse repetindo suas palavras para verificar a veracidade ou a traição contida nelas.
— Tudo bem — concedeu. — Não significa que algo mudou, no entanto — acrescentou ela enquanto andava até o guincho e o soltava. Ela deu cerca de trinta centímetros de folga.
Tony não conseguiu reprimir o grito da dor que se espalhou por seus ombros quando os músculos foram liberados da tensão que os esticava até seu limite.
— Vai passar — disse Angelica com rispidez enquanto retornava ao seu lugar ao lado da câmera. — Continue falando. Sempre gostei do gênero fantasia.
Ele se aliviou, pondo-se de pé, lutando contra a dor.
— Você era um garoto esperto — disse, ofegante. — Mais esperto que os demais. Nunca é fácil fazer amigos quando se é tão mais esperto que os outros garotos. E talvez você tenha mudado de residência um pouco. Bairros diferentes, talvez até escolas diferentes.
Angelica estava de volta ao controle de si mesma, seu rosto impassível enquanto ele continuava.
— Não era fácil fazer amigos. Você sabia que era diferente de todo mundo, especial, mas não podia descobrir por que a princípio. Depois, você cresceu, percebeu o que era. Não era igual aos outros meninos, porque não era de jeito nenhum um menino. Não tinha interesse sexual pelas meninas, mas não porque era gay. De jeito nenhum. Era porque você mesma era uma garota. O que descobriu foi que se vestir com roupas de mulher fazia você se sentir à vontade, como se fosse assim que as coisas deveriam ser. — Ele pausou e lhe deu um sorriso torto. — Como estou indo até agora?
— Muito impressionante, doutor — disse ela, com frieza. — Estou fascinada. Continue.
Tony flexionou os músculos do ombro, aliviado por descobrir que o dano até agora parecia ser apenas temporário. O formigamento que corria por suas costas parecia nada mais que uma pequena irritação depois do que tinha passado. Ele respirou fundo e continuou.
— Você decidiu se tornar a pessoa que era dentro de si, a mulher que de fato sabia ser. Meu Deus, Angelica, tenho tanto respeito por você, por ter passado por isso. Sei como é difícil convencer os médicos a levar a sério a ideia. Toda a terapia hormonal, a eletrólise, viver metade como homem, metade como mulher, enquanto aguardava as operações e depois toda a dor da cirurgia. — Ele balançou a cabeça, imaginando. — Sei que não teria coragem de passar por isso.
— Não foi fácil. — As palavras escaparam dos lábios de Angelica, quase contra sua vontade.
— Acredito em você — disse Tony, com empatia. — E, depois de tudo isso, encontrar-se imaginando se valera a pena no final das contas, quando percebeu que a estupidez, a insensibilidade e a falta de percepção que identificava nos homens não desapareciam simplesmente porque você era mulher. Eles ainda eram aquele mesmo bando de canalhas, incapazes de reconhecer uma mulher excepcional, quando lhes era oferecido amor e afeição de bandeja.
Ele pausou, estudando o rosto dela, decidindo se o momento era certo para jogar seu trunfo. A frieza havia deixado os olhos dela, substituída por um olhar quase de tristeza. Ele suavizou e baixou o volume da voz. Por favor, meu Deus, faça que seu treinamento seja recompensado.
— Eles rejeitaram você, não foi? Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan, Damien Connolly. Eles abriram mão de você.
Angelica balançou a cabeça com violência, como se com a atividade pudesse negar o passado.
— Eles me deixaram na mão. Deixaram a mim na mão, não abriram mão de mim. Me traíram.
— Conte-me sobre isso — arriscou Tony baixinho, rezando para que as técnicas que dominou com esforço não fossem lhe falhar agora. — Conte-me sobre isso.
— Por que deveria? — gritou ela, dando um passo à frente e o estapeando tão forte que ele sentiu o gosto do sangue quando suas bochechas se chocaram com os dentes. — Você não é melhor que eles. E aquela vadia? A vaca loura, aquela idiota de merda que você vem comendo?
Tony engoliu o sangue quente e salgado que enchia sua boca.
— Quer dizer Carol Jordan? — perguntou ele, tentando ganhar tempo. Como devia abordar isso? Devia mentir ou contar a verdade?
— Você sabe muito bem de quem estou falando. Sei que esteve com ela, não tente mentir para mim — sussurrou ela, erguendo a mão novamente. — Seu filho da mãe traiçoeiro e infiel.
A mão dela bateu nele em cheio no rosto de novo, com tanta força que ele ouviu seu pescoço estalar.
Lágrimas correram involuntariamente por seus olhos. A verdade não ia funcionar. Só lhe garantiria mais punição. Rezando para que pudesse mentir com convicção, Tony implorou:
— Angelica, foi só uma transa, só como se livrar da coceira. Você me deixou com tanto tesão com suas ligações, eu não sabia quando ia ligar novamente, ou mesmo se ia.
Ele permitiu que a raiva tomasse a sua voz.
— Eu queria você, mas você não me disse como podia tê-la, Angelica. É como você com os outros. Eu estava só ocupando o tempo, esperando por alguém à altura. Você não acha que uma policialzinha atenderia minhas fantasias, acha? Você deve saber bem, você também teve um.
Angelica recuou, seu rosto demonstrava choque. Sentindo que havia feito algum tipo de progresso, Tony a seguiu com as palavras.
— Éramos diferentes, eu e você. Eles não eram dignos de você. Mas nós somos especiais. Você deve saber disso, por causa de nossos telefonemas. Não percebeu que tínhamos algo extraordinário? Que dessa vez seria diferente? Não é isso que você quer de verdade? Não quer matar. Não de verdade. Matar só aconteceu porque eles não eram dignos, porque a decepcionaram. O que você quer mesmo é um parceiro que lhe dê valor. O que você quer é amor. Angelica, o que você quer sou eu.
Por um longo momento, ela o fitou com os olhos esbugalhados e a boca aberta. Depois foi tomada pela confusão, tão óbvia para Tony quanto uma prostituta que se oferece.
— Não use essa palavra comigo, seu desgraçado ordinário — gaguejou ela. — Não diga essa porra! — A voz dela era um grito gutural, grave. Subitamente, ela deu meia-volta e correu do cômodo, com seus saltos estalando nas escadas.
— Amo você, Angelica — gritou Tony desesperadamente depois do som dos passos, enquanto ela se retirava. — Amo você.
Carol e o detetive Morris ficaram parados na porta da pequena casa com terraço na Gregory Street. Ela não precisava ser psicóloga para ler a linguagem corporal dele. Morris estava de saco cheio de ficar dando voltas atrás do palpite idiota de Carol.
— Eles devem estar no trabalho — comentou ele, depois do quarto ataque dela à campainha.
— Parece que sim — concordou Carol.
— Devemos voltar depois?
— Vamos bater de porta em porta — sugeriu Carol. — Ver se algum dos vizinhos está por aí. Talvez eles possam nos contar quando os Thorpe voltam do trabalho.
Morris dava a impressão de que preferiria estar no controle da multidão numa manifestação estudantil.
— Sim, senhora — respondeu, com voz entediada.
— Você fica com o outro lado da rua, eu fico nesse.
Carol o observou atravessar a rua tão cansado quanto um mineiro no final do turno de trabalho. Balançando a cabeça com um suspiro, ela voltou sua atenção para o número doze. Esse era muito mais parecido com o tipo de território que Tony havia sugerido para seu assassino. Pensar em Tony acabou deixando Carol chateada de novo. Onde diabos ele estava? Ela realmente precisava da opinião dele hoje, sem mencionar um pouco de apoio para uma ideia que todos pareciam pensar que era uma completa perda de tempo. Ele não poderia ter escolhido um momento pior para entrar na lista dos desaparecidos. Era imperdoável. Pelo menos, ele poderia ter telefonado para sua secretária e não deixado que ela tivesse que responder aos seus telefonemas e criar desculpas para ele.
Não havia campainha no número doze, então Carol bateu com o nó dos dedos na porta de madeira sólida. A mulher que abriu parecia uma caricatura de uma novela. Em seus quarenta anos, sua maquiagem teria sido exagerada para jantar em Los Angeles, quanto mais para o meio da tarde numa rua secundária de Bradfield. Seus cabelos louros platinados se empilhavam no formato de uma colmeia inclinada. Ela usava um suéter preto apertado com gola arredondada, revelando um decote com a textura de papel amassado, leggings coladas no corpo de cor azul brilhante, escarpins brancos e uma corrente fina de ouro no tornozelo. Um cigarro pendia do canto da boca.
— O que foi, querida? — disse ela, com uma voz nasalada.
— Desculpe incomodá-la — começou Carol, exibindo seu distintivo. — Detetive-inspetora Carol Jordan, Polícia de Bradfield. Estou tentando entrar em contato com seus vizinhos do número catorze, os Thorpe, mas parece que não tem ninguém em casa. Queria saber se por acaso a senhora sabe a que horas eles chegam em casa do trabalho.
A mulher deu de ombros.
— Sei lá, querida. Aquela vaca entra e sai em tudo quanto é hora.
— E quanto ao sr. Thorpe? — perguntou Carol.
— Que sr. Thorpe? Não tem nenhum sr. Thorpe no vizinho, querida. — Ela deu uma risada rouca. — Obviamente você nunca pôs os olhos nela. Qualquer homem que se casasse com aquela vaca horrorosa teria de ser cego e estar na pior. Então vocês a pegaram pelo quê?
— São só investigações de rotina — disse Carol.
A mulher bufou.
— Não me venha com essa conversinha — disse ela. — Assisti a episódios de The Bill suficientes para saber que não mandam inspetores em investigações de rotina. Já era hora de vocês porem aquela vaca atrás das grades, se quer minha opinião.
— Por que isso, sra.... como se chama?
— Goodison, Bette Goodison. Como em Bette Davis. Porque ela é uma vaca horrorosa e antissocial, por isso.
Carol sorriu.
— Infelizmente, isso não é um crime, sra. Goodison.
— Não, mas assassinato é, não é? — gritou Bette Goodison com ar triunfante.
Carol engoliu em seco, esperando que o efeito da palavra não fosse tão visível quanto era palpável.
— Essa é uma acusação muito grave.
Bette Goodison deu uma última tragada em seu cigarro e, como um especialista, deu um peteleco na guimba que percorreu o espaço da calçada e foi parar na sarjeta.
— Estou feliz que pense assim. É mais do que seus colegas na delegacia de Moorside fizeram.
— Lamento que sinta que não foi bem-atendida por meus colegas. — desculpou-se Carol, com um tom preocupado. — Talvez pudesse me contar sobre o que estamos falando?
Por favor, meu Deus, faça com que essa seja uma repetição do caso do Estripador de Yorkshire, em que o melhor amigo do assassino contou à polícia que suspeitava que ele era o Estripador e a polícia não deu a menor atenção.
— Prince, é de quem estamos falando.
Por um momento de fantasia, Carol visualizou o pequenino astro do rock enterrado no quintal de uma casa com terraço de Bradfield. Restabelecendo a compostura, ela disse:
— Prince?
— Nosso pastor-alemão. Sempre reclamava dele, essa Angelica Thorpe. E ela não tinha razão para isso. Aquele cachorro estava fazendo um serviço para ela. Bastava passar qualquer pessoa pelo nosso beco, e aquele cachorro avisava. Ela teria de pagar uma fortuna para ter um alarme tão eficiente quanto aquele cachorro. De qualquer forma, há alguns meses... Agosto, foi o mês, um fim de semana antes do Feriado dos Bancos, voltamos do trabalho, Col e eu, e Prince tinha desaparecido. Pois bem, não há jeito de que ele pudesse ter saído do quintal. E ele teria atacado qualquer um que entrasse. Só há um modo de ele ter desaparecido: sendo assassinado — disse a sra. Goodison, golpeando Carol no peito com o dedo para obter ênfase. — Ela envenenou o Prince, depois se livrou do corpo para que não houvesse provas. É uma assassina!
Normalmente, Carol teria andado descalça uns dois quilômetros, se precisasse, para evitar uma conversa como essa, mas ela estava à procura do Faz-tudo, e qualquer excentricidade era algo que se devia agarrar com ansiedade.
— Como a senhora pode ter tanta certeza de que foi a sra. Thorpe? — perguntou ela.
— Questão de lógica. Ela era a única que já tinha reclamado dele. E, no dia que ele sumiu, eu e Col saímos para o trabalho, mas ela ficou em casa o dia todo. Sei disso com certeza, porque ela estava trabalhando durante a noite naquela semana. E quando batemos na porta dela para perguntar se ela sabia alguma coisa sobre o sumiço do cachorro, ela só mostrou um sorriso de orelha a orelha naquele focinho. Eu podia ter dado um jeito naquela cara dela — bradou a sra. Goodison com ênfase. — Então, o que vai fazer quanto a isso?
— Infelizmente sem indícios, não há muito que possamos fazer — disse Carol, com empatia. — A senhora tem certeza, não tem, de que a sra. Thorpe mora sozinha?
— Ninguém ia querer morar com uma vaca horrorosa daquelas. Ela nem recebe visitas. Não é de causar surpresa, veja bem, ela parece um brutamontes vestido de mulher.
— Por acaso sabe que tipo de carro ela dirige? — perguntou Carol.
— Um desses malditos 4x4 de yuppies. Pergunto a você quem precisa de um 4x4 no meio de Bradfield? Não é como se morássemos em alguma fazenda, não é?
— E sabe onde ela trabalha?
— Não sei nem quero saber. — Ela olhou para o relógio. — Agora, se não se importa, minha minissérie está começando.
Carol observou a porta se fechar atrás de Bette Goodison, com uma suspeita desagradável começando a se formar em sua mente. Antes que pudesse tentar o número dez, seu pager tocou insistentemente. “Ligue para Don na Scargill Street. Urgentíssimo”, ela leu.
— Morris — gritou Carol. — Arrume um telefone para mim.
O que quer que estivesse acontecendo na Gregory Street podia esperar. Don claramente não podia.
Exausto, Tony caíra no sono e estava tendo um pesadelo delirante. Um esguicho de água congelada, lançada no rosto, levou-o direto para o angustiante despertar, sua cabeça retornando dolorosamente.
— Ai — gemeu.
— Hora de acordar — disse Angelica rispidamente.
— Estava certo, não estava? — perguntou Tony pelos lábios inchados. — Você teve tempo para pensar e sabe que tenho razão. Quer que a matança pare. Eles precisavam morrer, mereciam morrer. Decepcionaram você, a traíram, não a mereceram. Mas tudo isso pode mudar agora. Pode ser diferente comigo, porque eu amo você.
A máscara rígida do rosto dela se enrugou diante dos olhos dele, tornando-se mais suave, mais macia. Ela sorriu para ele.
— Nunca foi questão de sexo. Sempre consegui sexo. Os homens me pagam por sexo. Me pagam muito dinheiro. Foi assim que paguei pela cirurgia. Eles sempre me quiseram. — A voz dela estava cheia de uma mistura estranha de orgulho e raiva.
— Posso entender o porquê — mentiu Tony, montando em seu rosto o que ele esperava que fosse uma expressão de ansiedade e admiração. — Mas o que você queria de verdade era o amor, não era? Queria mais que o sexo sem amor das ruas ou o sexo sem rosto ao telefone. Você merece isso. Meu Deus, como merece. É o que posso lhe dar, Angelica. O amor não é apenas atração física. O amor é questão de respeito, admiração, fascínio, e sinto tudo isso por você. Angelica, você pode ter o que quiser. Pode ter comigo.
Suas emoções conflitantes estavam estampadas em seu rosto. Ele conseguia ver que parte dela queria desesperadamente acreditar nele, queria escapar para o mundo normal dos relacionamentos. Mas essa parte tinha que lutar com um nível de autoestima muito baixo. Ela não conseguia imaginar que existisse alguém disposto a amá-la. E, por baixo disso tudo, a suspeita de que ele estava tentando ludibriá-la.
— Como poderíamos? — interpelou ela, com agressividade. — Você vem tentando me caçar. Está do lado da polícia. Do lado deles.
Tony balançou a cabeça.
— Isso foi antes de eu perceber que você era a mesma mulher por quem me apaixonei pelo telefone. Angelica, o amor é uma emoção que suplanta o dever. Sim, trabalhei para a polícia, mas não sou um deles.
— Quem com porcos se mistura, farelo come — zombou ela. — Você vem tentando me prender, Anthony. Espera que acredite no que diz? Deve pensar que sou muito burra.
— Muito pelo contrário. Se quiser falar sobre estupidez, fale da polícia. Em grande parte, eles são tão chatos e intolerantes que não conseguiram manter um psicólogo interessado por mais de cinco minutos. Não tenho nada em comum com eles — sustentou Tony, em desespero.
Ela balançou a cabeça, mais com tristeza do que com raiva.
— Você trabalha para o Ministério do Interior. Você passou sua carreira inteira pegando serial killers e tratando deles. E espera que eu acredite que, de uma hora para outra, mudaria de lado e seria fiel a mim? Qual é, Anthony? Não vou cair numa esparrela dessas.
Tony sentiu suas forças se esvaírem. Seu cérebro simplesmente não era mais rápido o suficiente para mantê-la a distância. Com tristeza, ele disse:
— Não fiz carreira capturando pessoas, mas, sim, as tratando. Tive de fazer isso, não compreende? O meu trabalho é o único lugar em que posso encontrar mentes complexas o bastante para serem interessantes. É como ir ver os animais no zoológico. Você quer observá-los em seu habitat, mas, se só puder ir vê-los no zoológico, você vai assim mesmo. Sempre precisei esperar até que eles estivessem presos para poder estudá-los. Mas você... você ainda está na natureza, ainda do jeito que quer ser, realizada em sua arte. E, comparada a eles, você é a nata. Excepcional. Quero passar o resto da vida sendo estimulado por sua mente. Não posso imaginar um dia achar você entediante.
Aterrorizante, talvez, mas nunca entediante.
O lábio inferior dela se projetou, dando uma expressão de calculada petulância ao seu rosto. Ela meneou a cabeça na direção da região genital dele, onde seu pênis pendia flácido.
— Então, se me acha atraente, por que isso está assim?
Era uma pergunta para a qual Tony não tinha absolutamente nenhuma resposta.
— O que temos de fato, Carol? — interpelou Brandon.
Carol andava de um lado para outro do escritório de Brandon, marcando seus pontos com os dedos.
— Temos um transexual. Não um transexual que passou pelo processo controlado, com aconselhamento psicológico do Serviço Nacional de Saúde, mas alguém que, de acordo com Don, teve uma mudança de sexo recusada aqui e teve de financiar uma operação fora do país vendendo o corpo. Então, desde o começo, sabemos que temos alguém que foi examinado por psiquiatras e considerado instável. Temos esse transexual dirigindo um veículo idêntico ao do dirigido por um suspeito na morte de Damien Connolly. Temos uma vizinha que está convencida de que Angelica Thorpe matou seu cachorro. O cachorro foi morto uma quinzena antes do primeiro assassinato. Angelica Thorpe comprou o software que lhe permitiria manipular vídeos em seu sistema de computador. Isso se encaixa numa teoria de comportamento do assassino desenvolvida por mim e endossada pelo nosso analista de perfil psicológico. Ela até mesmo mora no tipo de casa que Tony disse que moraria — argumentou Carol com veemência.
— Quando ela era Christopher, tinha alguns parafusos a menos — interveio Don.
— Gostaria de poder perguntar a Tony sobre isso — disse Brandon, de modo evasivo.
— Eu também — admitiu Carol, por entre os dentes. — Mas, obviamente, ele encontrou algo mais importante para fazer hoje. — Um pensamento súbito atingiu Carol como um saco de areia na nuca. Seus joelhos começaram a se dobrar e ela caiu na cadeira mais próxima. — Ai, meu Deus — disse, sem fôlego.
— O que foi? — perguntou Brandon, preocupado.
— Tony. Ele não esteve em contato com ninguém desde que saiu daqui ontem. Ele tinha duas reuniões da força-tarefa marcadas para hoje, de acordo com sua secretária, mas não apareceu no trabalho e não telefonou. Ele não estava em casa na noite passada, e não está aqui agora.
As palavras de Carol ficaram suspensas no ar como uma nuvem de fumaça tóxica. Uma onda de náusea subiu de seu estômago, quase a sufocando. De alguma maneira, ela manteve sua compostura sob o olhar concentrado de Brandon.
Com os dedos tremendo, Carol pegou a cópia de Brandon do perfil em sua mesa. Com pressa, ela virou as páginas até que encontrou o que procurava.
— “É possível que seu próximo alvo seja também um policial, talvez mesmo alguém que esteja trabalhando na investigação. Isoladamente, isso não será motivo suficiente para que o assassino o escolha, ele deve também se encaixar no critério de vítima que delineou em sua cabeça a fim de que o assassinato assuma seu significado completo para ele. Eu recomendaria enfaticamente que qualquer policial que corresponda ao perfil da vítima aplicasse vigilância extra em todos os momentos, observando qualquer veículo suspeito estacionado próximo à sua casa e verificando se está sendo seguido na ida e na volta do trabalho e dos eventos sociais.” Pense nisso, senhor. Pense no perfil da vítima. Senhor, Tony se encaixa perfeitamente.
Sem querer acreditar no que Carol estava sugerindo, Brandon disse:
— Mas não se passaram oito semanas. Não é hora!
— Mas hoje é segunda-feira. Não se esqueça, Tony também indicou que seu cronograma poderia ser acelerado se algo acontecesse para traumatizá-lo. Stevie McConnell, senhor. Pense em toda a publicidade. Outra pessoa estava recebendo o crédito por seus crimes. Veja, aqui está, senhor: “Outra situação possível é que uma pessoa inocente seja acusada dos assassinatos. Isso seria uma afronta tão grande à ideia que tem de si mesmo que ele poderia cometer seu próximo assassinato antes do cronograma.” Senhor, precisamos agir com relação a isso agora!
A mão de Brandon estava no telefone antes mesmo que ela tivesse começado sua última frase.
A porta da frente dava direto no interior da casa. Embaixo não poderia parecer mais normal. A pequena sala estava mobiliada de forma barata, mas confortável com um sofá de dois lugares combinando com uma poltrona acolchoada em Dralon cor de musgo. Havia TV, vídeo, um sistema de som de preço médio e uma mesa de café completa com um exemplar da revista Elle. Um par de pôsteres enquadrados de baleias no mar estava pendurado nas paredes. A única estante continha uma seleção de clássicos de ficção científica, alguns romances de Stephen King e três livros eróticos de Jackie Collins. Carol, Merrick e Brandon se moveram cautelosamente pela sala, passaram pelas escadas e entraram na cozinha. Era organizada ao extremo, como um showroom; as superfícies de trabalho limpas e sem excesso de itens. Num escorredor, uma caneca, um prato, um garfo e uma faca.
Com Brandon liderando o caminho, eles subiram as escadas estreitas construídas entre as duas salas embaixo. O quarto da frente era rosa e leve como um milkshake de morango. Até mesmo a mesa em formato de feijão, com sua borda de renda, era rosa.
— Cuide-se, Barbara Cartland — murmurou Merrick. Brandon abriu o armário e vasculhou a série de roupas femininas. Carol se dirigiu às gavetas de um armário alto cor-de-rosa e trabalhou por todas elas até embaixo. Eles não continham nada mais perturbador que uma seleção de peças íntimas bregas, a maioria delas em cetim vermelho.
Foi Merrick quem mencionou primeiro o quarto dos fundos. Assim que abriu a porta, ele sabia que ninguém iria gritar para os jornais sobre juízes leigos concedendo mandados com base em indícios não existentes.
— Senhor — gritou ele. — Acho que encontramos.
O quarto era organizado como um escritório. Uma escrivaninha grande continha um computador e periféricos variados que nenhum deles conseguia identificar. De um lado estava um telefone ligado a um gravador sofisticado. Uma pequena mesa de edição de vídeo estava num canto, ao lado de um armário de arquivos. Um carrinho com rodas sustentava uma televisão e um vídeo, os dois de última geração. As prateleiras tomavam duas paredes, cheias de jogos de computador, vídeos, fitas e disquetes de computador, cada caixa etiquetada organizadamente em letras maiúsculas firmes. O único objeto discrepante no quarto era uma cadeira reclinável de couro, o material suspenso como uma rede numa estrutura de aço.
— Achamos — disse Brandon. — Bom trabalho, Carol.
— Onde diabos começamos? — indagou Merrick.
— Algum de vocês sabe operar o computador? — perguntou Brandon.
— Acho que devemos deixar isso com os especialistas — respondeu Carol. — Ele pode estar programado para destruir os dados se alguém tentar fazer o login.
— Certo. Don, você pega o armário de arquivos. Eu pegarei os vídeos. Carol, você leva os cassetes.
Carol se moveu pelas prateleiras de cassetes. As primeiras duas dúzias pareciam ser fitas de música, abrangendo de Liza Minnelli a U2. Em seguida, havia uma dúzia marcada como “AS” e numerada de um a doze. Catorze marcadas “PG” em seguida, depois quinze com a inscrição “GF”, oito com “DC”, e seis com “AH”. A sequência das iniciais estava longe de ser coincidência. Carol pegou a primeira fita “AH” e, com o coração cheio de apreensão, inseriu no aparelho. Pegou os fones plugados na máquina e, relutantemente, os colocou nos ouvidos. Ela ouviu o som de um toque de telefone, depois uma voz tão familiar que ela poderia ter chorado.
— Alô — disse Tony, sua voz reduzida pela ligação telefônica. — Quem fala?
Uma risadinha, baixa e sexy.
— Você nunca vai adivinhar. Nem em um milhão de anos.
Pegamos, pensou Carol, sendo tomada por uma sensação de mau agouro. A voz na secretária eletrônica.
— Tudo bem, então me diga — disse Tony, sua voz estranha, amigável, entrando no jogo.
— Quem você gostaria que eu fosse, se eu pudesse ser qualquer pessoa no mundo?
— Isso é algum tipo de brincadeira? — indagou Tony.
— Nunca falei mais sério na vida. Estou aqui para fazer seus sonhos se tornarem realidade. Sou a mulher das suas fantasias, Anthony. Sou sua amante telefônica.
Houve o silêncio de um momento, depois o telefone foi batido do lado de Tony. Pelo tom de discagem, Carol ouviu a mulher estranha dizer:
— Hasta la vista, Anthony.
Ela apertou com força o botão de parar e tirou violentamente os fones de ouvido. Virou-se para ver Brandon paralisado pela imagem de Adam Scott esticado num potro e, aparentemente, desacordado. Parte da mente dela não podia compreender o que estava vendo. O mal, pensou ela, devia estar coberto de sangue, não exibido de forma prosaica numa tela de tevê de subúrbio.
— Senhor — forçou-se a dizer. — As fitas. Ela vinha perseguindo Tony.
Tony tentou rir. Saiu algo mais parecido com um soluço, mas ele continuou assim mesmo.
— Você espera que eu consiga uma ereção? Amarrado assim? Angelica, você usou clorofórmio em mim, me sequestrou e deixou que eu recobrasse a consciência sozinho numa câmara de tortura. Desculpe-me desapontá-la, mas não tenho experiência em bondage. Estou muito assustado para conseguir ficar de pau duro.
— Não vou deixar você ir, sabe. Não para correr direto para eles.
— Não estou pedindo para me deixar ir embora. Acredite em mim, fico feliz em ser seu prisioneiro, se esse for o único jeito de passar tempo com você. Quero conhecê-la, Angelica. Quero provar meus sentimentos para você, quero lhe mostrar como é o amor. Quero lhe mostrar de que lado estou realmente.
Tony tentou acionar o tipo de sorriso que aprendera que causava reações nas mulheres.
— Então me mostre — desafiou Angelica, deixando uma das mãos correr acariciando o próprio corpo, demorando-se nos mamilos e avançando para a área genital.
— Vou precisar de sua ajuda. Do mesmo jeito que precisei de você ao telefone. Fez que eu me sentisse tão bem, como um homem de verdade. Por favor, ajude-me agora — suplicou Tony.
Ela deu um passo em direção a ele, movendo-se sinuosamente como uma stripper.
— Você quer que eu o excite? — Ela disse com a voz arrastada numa paródia medonha de sedução.
— Não acho que consiga fazer assim — disse Tony. — Não com meus braços atados para trás desse jeito.
Angelica parou de imediato e fez uma carranca.
— Já disse, não vou soltar você.
— E eu disse que não estou pedindo isso. Tudo que peço é que ate minhas mãos para a frente. Para que eu possa tocá-la.
Novamente ele forçou o sorriso gentil.
Ela o fitou, pensativa.
— Como sei que posso confiar em você? Eu teria de soltar suas mãos para poder atá-las para a frente. Talvez você esteja tentando me ludibriar.
— Não vou. Dou minha palavra. Se isso faz você se sentir mais segura, use o clorofórmio em mim novamente. Faça enquanto eu estiver inconsciente — disse Tony, arriscando de novo. A reação dela lhe diria tudo que ele precisava saber sobre suas chances.
Angelica se moveu atrás dele. Uma voz exultante na cabeça dele gritava: “Isso!” Ele sentiu o calor da mão dela entre as dele enquanto ela agarrava as algemas e as puxava dolorosamente para cima.
— Merda — gritou Tony quando novas ondas de dor tomaram seus braços e seus ombros. Ele ouviu um clique de metal quando a manilha que ligava a corda às algemas se soltou. Angelica soltou-as e Tony caiu sobre os joelhos; as pernas se dobraram.
— Céus — praguejou ele enquanto caía para a frente, sentindo a pedra áspera arranhar sua bochecha.
Movendo-se rapidamente, Angelica abriu um lado das algemas, agarrou as costas da cadeira e o puxou para cima. Ainda segurando o braço com as algemas colocadas, ela apareceu diante dele e agarrou com brutalidade seu outro braço logo abaixo do bíceps, arrastando-o por seu corpo. Segundos mais tarde, suas mãos estavam algemadas de novo, dessa vez na frente do corpo. Ele se ajoelhou como um suplicante, seu desconforto duplicado pelas correias de couro apertadas em volta dos tornozelos.
— Viu? — perguntou, respirando com dificuldade. — Eu disse que não ia tentar nada.
Levemente ofegante, Angelica ficou parada em frente a ele, com as pernas separadas.
— Então me mostre — exigiu ela.
— Você precisa me ajudar. Não posso fazer sozinho — protestou ele, sem energia.
Ela se inclinou para baixo e agarrou os cabelos dele de novo, içando-o para cima sobre pernas cujos músculos tremiam com o esforço de ficar em pé. Eles ficaram a centímetros de distância, a seda do quimono dela se esfregando nas mãos dele. Ele podia sentir o calor da respiração dela na carne viva de sua bochecha arranhada.
— Dê um beijo em mim — disse ele baixinho. As prostitutas nunca conseguem beijar, ele pensou. Isso tornará as coisas diferentes.
Algo brilhou nos olhos de Angelica, mas ela se inclinou sobre Tony, soltando os cabelos e puxando o rosto dele para junto de si. Ele precisou de toda a sua força de vontade para não recuar quando os lábios dela encontraram os seus, a língua dela invadindo-lhe a boca, explorando seus dentes e lábios. Sua vida depende disso, ele dizia a si mesmo. Você tem um plano. Tony se forçou a retribuir o beijo, enfiando sua língua na boca de Angelica, dizendo a si mesmo que havia coisas piores no mundo, e essa mulher tinha feito algumas de suas vítimas anteriores passarem por algumas delas.
Depois do que pareceu o beijo mais longo de sua vida, Angelica se afastou, olhando criticamente para os genitais dele.
— Vou precisar de ajuda — repetiu Tony. — Não tem sido um dia fácil.
— Que tipo de ajuda? — perguntou Angelica, ofegando levemente por lábios entreabertos. Era claro que ela não estava tendo nenhuma dificuldade com a excitação sexual que estava além das possibilidades dele.
— Faça um boquete. É a única coisa que funciona quando estou tendo dificuldade. Já senti sua boca agora; sei que vai ser sensacional. Por favor, quero muito fazer amor com você.
Ele mal tinha terminado de falar, ela já estava de joelhos, com as mãos acariciando os testículos dele. Ternamente, ela levantou o pênis flácido dele e o escorregou para a boca, sem tirar os olhos de seu rosto. Tony estendeu a mão e começou a acariciar-lhe os cabelos. Depois, com o que parecia ser um vagar infinito, ele puxou a cabeça dela para a frente, forçando-a para baixo, os olhos dela longe dele.
Em seguida, reunindo o que restava de suas forças, Tony levantou as mãos e golpeou as algemas na nuca de Angelica.
A pancada a pegou completamente de surpresa e ela o atingiu entre as pernas, o arranhar de seus dentes causando uma dor lancinante em Tony. Ele deixou-se cair para trás, sentido a tensão de seus tornozelos quando eles protestaram contra um movimento que não foram criados para fazer. Quando atingiu o chão, ele se dobrou para a frente e agarrou a cabeça de Angelica batendo-a com força no chão de pedra até que o corpo dela parou de se debater.
Ele se arrastou sobre sua figura debruçada até que seus dedos dormentes conseguissem chegar às correias do tornozelo. Com uma falta de jeito enlouquecedora, Tony lutou para despregar os conjuntos de fivelas que o prendiam na placa de pedra. Depois do que pareceram horas, ele estava finalmente livre. Enquanto tentava pôr-se de pé, seus tornozelos se recusavam ao desafio, virando e o lançando ao chão de novo, causando pontadas excruciantes de dor em suas pernas. Gemendo, ele se arrastou pelo chão até a escada. Já tinha transposto apenas alguns metros quando o corpo no chão grunhiu. Angelica movimentou a cabeça, sangue e muco transformaram seu rosto numa horripilante máscara do Dia das Bruxas. Quando ela o viu, rugiu como um animal ferido e passou a se levantar rapidamente, de modo desajeitado.
• • •
A procura por uma pista para o local de matança de Angelica estava ficando cada vez mais desesperada à medida que o medo e a preocupação com Tony cresciam. Eles tinham esvaziado o conteúdo do armário de arquivos no chão. Cada pedaço de papel era analisado em busca de qualquer pista do local do porão revelado no vídeo. Notas fiscais, garantias, contas e recibos. Carol continuava vasculhando um arquivo de correspondência oficial, esperando encontrar algum detalhe de aluguel ou hipoteca, qualquer coisa relacionada a outra propriedade. Merrick estava trabalhando com perseverança pelos arquivos relacionados à mudança de sexo de Thorpe. Brandon já tivera um alarme falso, defrontando-se com uma pilha de cartas jurídicas relacionadas à propriedade em Seaford. Logo, porém, ficou claro que elas se relacionavam à venda da casa da mãe falecida de Thorpe na cidade.
Foi Merrick quem encontrou o elemento crucial. Ele tinha terminado com os arquivos da mudança de sexo e começado com um maço de cartas diversas, arquivadas em “Imposto”. Quando se deparou com a carta, precisou lê-la duas vezes para ter certeza de que a autossugestão não estava lhe fazendo imaginar coisas.
— Senhor — disse ele, com cautela. — Acho que pode ser isso que estamos procurando.
Merrick passou a carta para Brandon, que leu o papel timbrado da Pennant, Taylor, Bailey e Co., Advogados. “Caro Christopher Thorpe, recebemos uma carta de sua tia, sra. Doris Makins, enviada da Nova Zelândia, autorizando-nos a passar para o senhor as chaves da fazenda Start Hill, Upper Tontine Moor, em Bradfield, W. Yorkshire. Como seus agentes, temos o poder de permitir o acesso à referida propriedade para fins de manutenção e segurança. Por favor, agende com este escritório para recolher as chaves quando lhe for conveniente...”
— Acesso a uma propriedade rural isolada — disse Carol, olhando por sobre o ombro de Brandon. — Tony disse que o assassino poderia dispor disso. E agora ela o tem consigo.
Uma onda de raiva passou por ela, tomando o lugar da lenta queimação de medo que a vinha corroendo desde o momento que eles revelaram os segredos macabros daquele escritório superficialmente normal.
Brandon fechou os olhos por um momento, depois disse, tenso:
— Não sabemos quanto a isso, Carol.
— E mesmo que ela o tenha pegado, ele é um sujeito esperto. Se alguém pode usar sua lábia para se manter fora de encrenca é Tony Hill — interveio Don.
— É melhor prevenir do que remediar — disse Carol, com agressividade. — Onde diabos fica a fazenda Start Hill? E em quanto tempo conseguimos chegar lá?
Tony olhou em volta, desesperado. O suporte de facas à sua esquerda estava a uma altura impossível. Quando Angelica ficou de joelhos, ele engatinhou no banco de pedra e pôs-se de pé. Sua mão se fechou no cabo de uma faca enquanto ela tentava ficar de pé e se lançava na sua direção, ainda gritando como uma vaca separada de seu bezerro.
O peso e o impulso do ataque dela curvaram Tony para trás no banco. As mãos de Angelica lutaram para chegar ao seu pescoço, agarrando sua traqueia com tanta força que luzes brancas começaram a dançar em frente aos seus olhos. Justamente quando pensou que não podia mais suportar, sentiu o jato quente e pegajoso de sangue contra seu estômago, e as mãos de Angelica se tornaram flácidas como um jornal molhado.
Antes que pudesse assimilar tudo, ele ouviu os passos batendo nos degraus de pedra. Como uma visão alucinada do paraíso, Don Merrick invadiu o porão, seguido por John Brandon, com o queixo caído pela cena em frente de si.
— Puta merda — gritou Brandon.
Carol passou pelos dois homens e ficou olhando sem compreender a carnificina diante de si.
— Vocês demoraram — disse Tony ofegante. Quando desmaiou, a última coisa que ouviu foi sua própria risada histérica.
Epílogo
Carol empurrou a porta da ala lateral do hospital. Tony estava escorado numa pilha de travesseiros, o lado esquerdo de seu rosto inchado e ferido.
— Oi — disse Tony, com um meio sorriso desanimado que era o melhor que podia conseguir sem sentir muita dor. — Entre.
Carol fechou a porta atrás de si e sentou-se numa cadeira ao lado da cama.
— Trouxe algumas coisinhas para você — disse ela, deixando um saco plástico e um envelope na colcha.
Tony se esticou para pegar a sacola. Carol fez uma careta por dentro quando viu o bracelete de feridas em torno de seus pulsos inflamados. Ele tirou um exemplar da revista Esquire, uma lata de Aqua Libra, uma lata de pistache e um volume de romances de Dashiel Hammett.
— Obrigado — agradeceu ele, surpreso pelo quanto a escolha dela o tinha emocionado.
— Não tinha certeza do que você gostava — respondeu ela na defensiva.
— Então você sabe adivinhar bem. A policial perfeita para a força-tarefa.
— Embora um pouco lenta para entender — disse Carol, com amargura.
Tony balançou a cabeça numa negativa.
— John Brandon esteve aqui mais cedo. Ele me disse como você desvendou tudo. Não vejo como você poderia ter chegado lá antes.
— Eu devia ter percebido antes que você não ia dar uma de sumido num momento tão crucial. Pensando bem, eu devia ter percebido logo que vi aquele perfil que você podia ser um alvo e tomado medidas para protegê-lo.
— Bobagem, Carol. Se alguém devia ter percebido isso, era eu. Você fez um trabalho muito bom.
— Não, se eu estivesse mais atenta, teríamos chegado lá a tempo de evitar que você tivesse de... fazer o que fez.
Tony suspirou.
— Você quer dizer que teria salvado a vida de Angelica? Para quê? Anos num hospício de segurança máxima? Veja as coisas pelo lado positivo, Carol. Você salvou uma fortuna ao país. Nada de julgamentos caros, nem anos de cárcere e tratamento a serem pagos. Merda, eles provavelmente vão lhe dar uma medalha.
— Não foi isso que quis dizer, Tony. Quero dizer que você não teria de viver sabendo que matou alguém.
— Sim. Bem, não posso fingir que foi o resultado perfeito, mas vou aprender a viver com isso. — Ele forçou um sorriso. — Não interprete isso do jeito errado, mas a primeira coisa que vou fazer quando andar de novo é sair e comprar para você um novo casaco impermeável. Toda vez que olho para essa capa que você está vestindo, tenho vontade de gritar.
— Por quê? — Carol franziu a testa, confusa.
— Você não sabe? Ela estava usando uma capa idêntica quando apareceu à minha porta. Se ela tivesse deixado alguma fibra na cena do crime, a perícia teria presumido que tinha vindo de você.
— Perfeito — concluiu Carol, ironicamente. — Como vão os tornozelos, aliás?
Tony fez uma careta.
— Acho que não vou nunca mais tocar violino. Consegui chegar ao banheiro de muletas, mas tive de sentar na beira da banheira para fazer xixi. Eles estão dizendo que provavelmente vai levar algum tempo para os ligamentos rompidos se curarem. Como foi seu dia?
Carol também fez uma careta.
— Horrível. Acho que você teria ficado à vontade. Você estava certo quanto a manter a fantasia viva. Ela, ele, aquilo, tinha fitas de todas as conversas telefônicas que tivera com suas vítimas, e ela tinha roubado as fitas das mensagens direcionadas a ela dos homens que tinham secretárias eletrônicas. Os nerds levaram um tempinho para decifrar a parte dos computadores. Eles não tinham ninguém que realmente soubesse o que estava fazendo, mas meu irmão Michael veio e resolveu para nós.
Tony deu um sorriso torto.
— Não queria dizer nada antes, mas por um momento de loucura eu realmente cogitei seu irmão.
— Michael? Você está de brincadeira!
Envergonhado, Tony fez que sim.
— Foi quando você propôs a ideia da manipulação dos vídeos no computador. Michael tinha o conhecimento especializado para fazer isso, sem dúvida. Ele está na faixa etária certa, ele mora com uma mulher, mas não num relacionamento sexual, ele tem acesso a todas as informações que o assassino precisaria sobre a forma como a polícia e os peritos trabalham, seu trabalho fica na área geral onde eu esperava que o assassino trabalhasse, e ele estava em condições de saber exatamente o que a polícia estava fazendo e se envolver na investigação. Se não tivéssemos pegado Angelica quando pegamos, eu teria arranjado um convite para jantar para analisá-lo.
Carol balançou a cabeça.
— Entende o que quero dizer com ser lenta para entender as coisas? Eu tinha acesso a todas as mesmas informações que você, e Michael nunca sequer me passou pela cabeça como uma possibilidade.
— Não é tão surpreendente. Você o conhece bem o bastante para saber que ele não é um psicopata.
Carol deu de ombros.
— Conheço mesmo? Não seria a primeira vez que um membro próximo da família, até uma esposa, comete o mesmo erro.
— Geralmente, elas estão iludindo a si mesmas ou são emocionalmente instáveis e dependentes do assassino de algum modo. Nenhuma das duas coisas teria se aplicado nesse caso. — Ele deu um sorriso cansado. — De qualquer forma, diga-me o que Michael descobriu.
— O computador era uma mina de ouro. Ela mantinha seu próprio diário da perseguição e dos assassinatos. Escreveu até o que queria que fosse publicado depois de sua morte. Dá para superar isso?
— Fácil — disse Tony. — Lembre-me de lhe mostrar alguns dos trabalhos acadêmicos que tenho sobre serial killers.
Carol estremeceu.
— Obrigada, mas não precisa. Trouxe uma impressão do diário para você. Imaginei que ficaria interessado. — Ela fez um gesto para o envelope. — Esta aí. Além disso, como você suspeitou, ele tinha gravado os assassinatos em fita, e manipulou as imagens para manter viva a fantasia. Era tétrico, Tony. Ia muito além de um pesadelo.
Tony concordou.
— Não vou dizer que a gente se acostuma, porque a gente nunca se acostuma se quiser ter alguma utilidade neste trabalho. Mas você chega a um estágio onde pode deixar isso trancado bem distante, para que não fique em primeiro plano e acabe destruindo a sua cabeça sem você perceber.
— Ah, é?
— Essa é a teoria. Pergunte-me novamente em algumas semanas — disse ele, com gravidade. — Havia algo sobre como ela escolhia suas vítimas?
— Só um pouco — respondeu Carol. — Ela vinha nisso há meses, antes mesmo que tivesse escolhido a primeira vítima. Angelica trabalhava para a companhia telefônica, era gerente de sistemas de computadores. Ao que parece, costumava trabalhar para uma pequena empresa telefônica privada em Seaford, que lhe deu a experiência para conseguir o trabalho em Bradfield. Ela era o que eles chamam de superusuário do sistema, então tinha acesso a todos os dados ali. Ela usou o computador da companhia telefônica para extrair todos os números residenciais que fizeram ligações regulares para linhas de disque-sexo no ano passado — pausou Carol, deixando a pergunta óbvia no ar.
— Era pesquisa — explicou Tony, com cansaço. — Publiquei um artigo sobre a função das linhas de sexo no desenvolvimento de fantasias entre criminosos sexuais. Alguém devia ter dito a Angelica para não tirar conclusões precipitadas.
Interpretando esse comentário como uma censura velada, Carol prosseguiu:
— Ela fez a correspondência cruzada desses dados com a lista dos eleitores e chegou aos homens que moravam sozinhos. Depois, verificava cada um observando suas casas. Tinha uma ideia clara do tipo físico que buscava. Ela queria alguém com casa própria, uma renda decente e boas perspectivas de carreira. Acredita nisso?
— Completamente — disse Tony, com gravidade. — Sua lógica era que ela nunca os quis matar, só queria amá-los. Mas eles a forçaram a matar porque a traíram. Ela ficava dizendo a si mesma que o que queria de verdade era um homem que fosse amá-la e viver com ela.
Não é o que todos queremos, pensou Carol, mas não disse.
— De qualquer forma, depois que decidia sobre um candidato possível, ela preparava o caminho com as ligações telefônicas eróticas. Ela conseguia fisgá-los assim, por causa de todos vocês, homens sórdidos, que não resistem ao sexo anônimo.
— Nossa — disse Tony, com uma careta. — Em minha defesa, gostaria de dizer que uma grande parte do meu interesse foi puramente acadêmico. Estava interessado na psicologia de uma mulher que fazia o que ela fazia por telefone.
Carol sorriu com os lábios apertados.
— Pelo menos agora sei que estava falando a verdade quando disse que não conhecia a mulher que estava deixando as mensagens sensuais na sua secretária eletrônica.
Tony desviou o olhar.
— E a descoberta de que o homem por quem se sentira atraída estava tendo ereções em sexo por telefone com uma estranha deve ter sido um prazer para você.
Carol ficou silenciosa, sem saber o que dizer.
— Já ouvi as fitas — admitiu ela. — As suas eram muito diferentes das outras. Você estava claramente desconfortável boa parte do tempo. Não que seja da minha conta.
Ainda incapaz de olhá-la nos olhos, Tony falou, com a voz entrecortada e distante:
— Tenho um problema com o sexo. Para ser preciso, tenho problema em conseguir manter uma ereção. A verdade é que apenas parte de mim estava tratando as ligações com interesse profissional. A outra parte estava tentando usá-las como uma espécie de terapia. Sei que isso faz com que eu pareça um pervertido, mas parte do problema dessa profissão é que é praticamente impossível encontrar um terapeuta que possa respeitar e confiar que isso não esteja conectado, de alguma forma, com o mundo em que trabalho. E, por mais que eles aleguem verbalmente o princípio da confidencialidade de seus clientes, sempre relutei em me expor ao risco.
Percebendo a dificuldade que Tony tivera em fazer essa confissão, Carol pegou sua mão e a cobriu levemente com a dela.
— Obrigada por me contar isso. Não sairá daqui. E se isso deixar você melhor, as únicas pessoas que ouviram integralmente as fitas foram eu e John Brandon. Não precisa se preocupar com o que os outros estejam dizendo sobre você pelas suas costas na força.
— Isso é alguma coisa, acho. Então, prossiga. Conte sobre os telefonemas de Angelica para as outras vítimas.
— Era óbvio que os homens pensavam nisso como sexo sem compromisso nem segunda vez. A análise de Angelica foi completamente diferente. Ela se convenceu de que suas respostas significavam que estavam se apaixonando por ela. Infelizmente para os homens, eles decidiram de outra forma. Assim que mostravam algum interesse por outra mulher, eles assinavam seus mandados de execução. Isto é, fora Damien. Ela o matou para nos ensinar uma lição. Você seria a outra lição.
Tony estremeceu.
— Não é de admirar que ela tivesse que ir para o exterior para a operação de mudança de sexo. Os psicólogos do Serviço Nacional de Saúde que ela frequentou devem ter tido uma boa oportunidade com as atitudes e as aspirações dela.
— Ao que parece, eles decidiram que ela não era um candidato apropriado para uma mudança de sexo por causa da falta de percepção de sua sexualidade. Concluíram que era um gay que não conseguia lidar com sua orientação sexual por causa do condicionamento cultural e familiar. Recomendaram acompanhamento psicológico com um terapeuta sexual, em vez de uma mudança de sexo. Houve uma briga feia na época. Ela jogou um dos psicólogos por uma porta de vidro — revelou Carol.
— Uma pena que eles não tenham feito boletim de ocorrência — disse Tony.
— Sim. E você ficaria satisfeito em ouvir que eles certamente não vão acusar você.
— Era de supor que não! Como disse, pense no dinheiro dos contribuintes que economizei. Talvez devêssemos jantar para celebrar quando eu sair daqui — convidou ele hesitante.
— Gostaria disso. Há uma coisa boa no final de tudo isso — disse Carol.
— Que foi?
— Penny Burgess tirou o dia de folga ontem para andar nos Dales. Ao que parece, o carro dela quebrou e ela ficou presa no meio de uma floresta durante a noite. Ela perdeu a coisa toda. Há uma dúzia de créditos de matérias no Sentinel Times esta noite e nenhum é dela.
Tony relaxou e olhou para o teto. Disfarçando o problema, era isso que eles estavam fazendo. Ele suspeitou que Carol sabia disso da mesma forma que ele, e não lamentava o esforço que ela estava fazendo. Mas, por enquanto, ele já tivera o bastante. Fechou os olhos e suspirou.
— Ah, meu Deus, desculpe — disse Carol, levantando-se. — Não pensei bem. Você deve estar exausto. Olhe, estou indo embora. Vou deixar essas coisas para que leia quando se sentir pronto. Posso dar uma passada aqui amanhã, se quiser.
— Acho que gostaria disso — respondeu Tony, exausto. — O cansaço chega a mim em ondas às vezes.
Ele ouviu os passos dela pelo piso e o clique da porta se abrindo.
— Cuide-se bem — disse Carol.
A porta se fechou atrás dela, e Tony se arrastou de volta para cima até ficar reclinado nos travesseiros. Ele estendeu a mão para pegar o envelope. Embora não pudesse lidar com a conversa, a curiosidade dele não o permitiria ignorar o diário de Angelica. Ele retirou um espesso maço de folhas de papel A4.
— Vamos ver do que você é feita de verdade — disse baixinho. — Qual é a história? Como você justifica o que esconde? — Com avidez, ele começou a ler.
Avançar pelas emoções dos psicologicamente perturbados era normalmente uma experiência de exploração rotineira para Tony. Mas essa era diferente, ele percebeu apenas depois de alguns parágrafos. A princípio, ele não conseguiu identificar o que era. A escrita era de nível intelectual mais elevado, mais controlada e mais imediata do que a maioria das divagações deles, mas isso não explica por que a reação dele era tão diferente. Ele avançou mais algumas páginas, igualmente fascinado e repelido. Não era nem mais nem menos obcecado consigo mesmo do que outras coisas que lera, mas havia um prazer horripilantemente incomum. A maioria dos assassinos cujos escritos ele tinha lido exultava muito mais em seu próprio papel, refletindo menos no que tinha feito a suas vítimas e em seus efeitos nelas. Mas aqui estava alguém que se identificava com a mesma intensidade em sua relação com eles. Nem mesmo isso poderia explicar inteiramente por que ele se sentia tão perturbado pelo que estava lendo. O que quer que fosse estava tornando-o mais relutante a continuar à medida que ele lia, o oposto de sua reação normal. Ele vinha interessado, de um modo tão obsessivo, em entrar na cabeça do assassino que o apelidou de Faz-tudo, mas agora que tudo estava disposto diante dele, era como se não quisesse mais saber.
Conforme se forçava a ler, registrando mentalmente as suposições corretas que fizera no perfil, Tony percebeu enfim que o que estava sentindo era pessoal. Essas palavras o tocavam de maneiras que ele nunca vivenciara antes, porque a vida descrita nessas páginas o emocionava de um modo direto que ele nunca conhecera. Aquelas eram as pegadas de seu próprio arqui-inimigo pessoal que ele estava seguindo, e era uma jornada desconfortável.
Ele jogou os papéis para um lado, incapaz de continuar, vendo seu próprio destino espelhado nos corpos fragmentados que Angelica tinha descrito tão meticulosamente. O problema em ser psicólogo era que ele sabia exatamente o que estava acontecendo consigo mesmo. Ele sabia que ainda estava em choque, ainda negando inteiramente a realidade. Embora não conseguisse tirar os eventos do porão da cabeça, ainda havia um distanciamento entre ele e a lembrança, como se ele a estivesse observando de uma longa distância. Um dia o horror da noite anterior voltaria em estéreo, esparramado em sua visão interna em Cinemascope. Sabendo disso, esse torpor era uma bênção. Sua secretária eletrônica já estava, ele sabia, abarrotada de ofertas lucrativas para a história de como o caçador se tornou assassino. Um dia ele teria de contar essa história. Ele esperava ter força para guardá-la para um psiquiatra.
Não era nenhum conforto racionalizar que, tendo sido alvo de um serial killer, estatisticamente era improvável que ele se encontrasse nessa posição de novo. Tudo em que conseguia pensar era nas horas no porão, buscando em sua experiência e conhecimento as palavras mágicas que lhe dariam mais alguns minutos para tentar encontrar a chave da liberdade.
E depois aquele beijo. O beijo da prostituta, o beijo da assassina, o beijo da amante, o beijo da salvadora, tudo misturado numa coisa só. Um beijo de uma boca que o vinha seduzindo havia semanas. A boca cujas palavras tinham lhe dado esperança de um futuro, só para no final deixá-lo perdido nesse lugar. Ele tinha passado a carreira tentando entrar nas mentes daqueles que matam, apenas para acabar como um deles, graças a um beijo de Judas.
— Você venceu, não foi, Angelica? — disse ele baixinho. — Você me queria, e agora me tem.
10
De forma geral, cavalheiros, o mundo é muito sanguinário; e tudo que almejam num assassinato é um derramamento copioso de sangue. Quanto a isso, a exibição espalhafatosa lhes é suficiente. O conhecedor esclarecido, porém, é mais refinado em seu gosto.
Penny Burgess encheu até a borda sua taça de Chardonnay californiano da garrafa que tirou do congelador e voltou até a sala de estar a tempo de ouvir as manchetes do noticiário local da BBC. Nada novo com que se preocupar, a repórter pensou com alívio. Um assalto armado sobre o qual ela podia se atualizar logo que acordasse pela manhã. A polícia ainda estava interrogando um homem em relação aos assassinatos em série de gays, mas nenhuma acusação havia sido feita ainda. Penny bebericou seu vinho e acendeu um cigarro.
Eles teriam que se mexer logo, pensou ela. Pela manhã, precisariam fazer alguma acusação criminal ou deixá-lo ir embora. Até agora, ninguém tinha uma pista da identidade do suspeito, o que era bem impressionante. Todos os jornalistas estavam contando de maneira decisiva com seus respectivos contatos pessoais na polícia, mas dessa vez o reservatório de informações se recusara de forma resoluta a permitir qualquer vazamento. Penny concluiu que era melhor dar uma olhada nas listas de audiência dos juízes leigos pela manhã. Havia uma chance remota de que os policiais tivessem algo bem inócuo para acusar seu suspeito, de modo que pudessem continuar com ele, enquanto vasculhavam em busca das pistas de que precisavam para fazer uma acusação convincente de múltiplos assassinatos.
Quando houve um corte nas notícias para a previsão do tempo, o telefone tocou. Penny se esticou sobre a mesa auxiliar ao lado do sofá e agarrou o aparelho.
— Alô.
— Penny? É o Kevin.
Aleluia, pensou Penny, enquanto se sentava e esmagava o cigarro. Tudo que ela disse, porém, foi:
— Kevin, meu amigo. Como vão as coisas?
Ela vasculhou a bolsa em busca de um lápis e seu caderno.
— Surgiu uma coisa que pode atrair seu interesse — disse o inspetor de polícia com cautela.
— Não seria a primeira vez — respondeu Penny de modo sugestivo. Seus encontros sexuais ocasionais com o muito bem-casado Kevin Matthews lhe oferecem mais que uma posição vantajosa na Polícia Metropolitana de Bradfield. Ele se revelou um dos melhores amantes que ela tivera. Só desejava que o investigador pudesse superar com mais frequência a sua culpa católica.
— Isso é sério — protestou Kevin.
— Também estava falando sério, garanhão.
— Escuta, você quer ou não essa informação?
— Com certeza. Principalmente se for o nome do cara que vocês prenderam como o Assassino de Bonecas.
Ela ouviu a respiração abrupta.
— Você sabe que não posso lhe contar isso. Há limites.
Penny suspirou. Era a história do relacionamento deles.
— Tudo bem, então o que pode me contar?
— Popeye foi suspenso.
— Ele está fora do caso? — perguntou Penny, com a cabeça a mil. Tom Cross? Suspenso?
— Ele está fora do emprego, Pen. Ele foi dispensado enquanto aguarda ação disciplinar.
— Quem fez isso? — Céus, isso era uma história e tanto. O que Popeye Cross tinha aprontado dessa vez? Ela sentiu um pânico momentâneo. E se ele foi pego dando o nome do suspeito para um dos seus concorrentes? Ela quase não ouviu a resposta de Kevin.
— John Brandon.
— Por que diabos ele fez isso?
— Ninguém comentou isso — disse Kevin. — Mas a última coisa que, ele fez, antes de ver Brandon, foi realizar uma busca na casa de nosso suspeito.
— Uma busca legal? — sondou Penny.
— Pelo que sei, ele tinha razões suficientes de acordo com a legislação sobre indícios criminais — contou Kevin com cautela.
— Então o que está acontecendo, Kevin? Popeye plantou provas ou o quê?
— Não sei, Pen — disse Kevin, melancolicamente. — Olhe, eu preciso ir. Se eu ouvir mais alguma coisa, ligo para você, tá?
— Tudo bem. Obrigada, Kev. Você é um amor.
— Bem, falo com você em breve.
A linha ficou muda. Penny largou o telefone de volta na base e se levantou num salto. Andou apressadamente pelo quarto, tirando seu roupão no caminho. Cinco minutos depois, estava correndo os dois andares de escada do seu apartamento para a garagem no subsolo. No carro, verificou o endereço em sua agenda, depois partiu, ensaiando mentalmente o que diria quando chegasse em frente à porta.
Foi Tony quem saiu do abraço primeiro. Seu corpo se retirou num gesto que transformou dez centímetros em um metro.
Tentando manter a leveza das coisas, para encobrir o constrangimento que tinha surgido entre eles, Carol se justificou:
— Desculpe, você parecia precisar de um abraço.
— Não há nada de errado nisso — disse Tony, tenso. — Usamos isso o tempo todo na terapia de grupo.
Ficaram parados por um momento, os olhos sem se encontrar completamente. Depois, Carol se moveu para o lado de Tony, passou uma das mãos pelo braço firme dele e o guiou pelo pátio da universidade.
— Então, quando posso ver esse perfil?
A conversa voltava a um terreno seguro, mas Carol ainda estava próxima demais para ser confortável. Tony podia sentir a tensão dentro de si, como uma fria mão que comprimisse seu peito. Ele se forçou a falar num tom de voz normal e calmo.
— Quero trabalhar mais algumas horinhas agora, e amanhã de manhã cedo me envolvo nisso de novo. Devo ter um esboço pronto para você no início da tarde. Que tal três horas?
— Ótimo. Olhe, você se importa que eu fique por aqui enquanto trabalha? Pode ser bom reler algumas daquelas declarações, e não vou ter paz se voltar para Scargill Street.
Tony dava a impressão de estar em dúvida.
— Acho que sim.
— Prometo não lhe perturbar, dr. Hill — implicou Carol.
— Droga. — Tony estalou os dedos, fingindo decepção. Olhe para você, pensou sarcasticamente. Passando por um ser humano, seguro de todos os movimentos. — Na verdade, não é isso. Só hesitei porque não estou acostumado a trabalhar com outra pessoa na sala.
— Não vai nem perceber que estou aqui.
— Duvido muito — disse Tony. Ela podia interpretar isso como um elogio, mas ele sabia a verdade.
Penny apertou a campainha da casa não geminada, uma imitação do estilo Tudor, numa das ruas mais seletas da zona sul de Bradfield. Mesmo com o salário de superintendente, a casa deveria estar além das posses de Tom Cross. Entretanto, a reputação de sortudo de Popeye tinha aumentado há alguns anos quando ganhou um montante de cinco dígitos na loteria esportiva. A festa que se seguiu ficou na história da polícia. Agora, parecia que ele tinha perdido seu amuleto da sorte em algum lugar pelo caminho.
Uma luz se acendeu no corredor e alguém cambaleava para a porta, transformada numa massa amorfa pelo vitral.
— Mistura de Sexta-feira 13 e Halloween — murmurou Penny, e ouviu a maçaneta girar.
Com um estalo, a porta se abriu, apenas alguns centímetros cheios de suspeita. Penny inclinou a cabeça e sorriu para a forma atrás da porta.
— Superintendente Cross — cumprimentou ela, a nuvem branca de seu hálito encontrando a espiral de fumaça vinda da porta. — Penny Burgess, do Sentinel Times.
— Eu sei quem você é — rosnou Cross, com a pronúncia embaralhada pela bebida evidente nessas poucas palavras. — Que diabos você quer aqui a essa hora da noite?
— Fiquei sabendo que teve um probleminha no trabalho — arriscou Penny.
— Você ouviu errado então, senhora. Agora dê o fora.
— Olhe, vai estar em toda a mídia amanhã. O senhor estará cercado. O Sentinel Times sempre o apoiou, senhor Cross. Estivemos de seu lado durante toda a investigação. Não sou nenhum figurão de Londres vindo aqui chutar cachorro morto. Se o senhor foi afastado, nossos leitores têm o direito de ouvir o seu lado da história.
A porta ainda estava aberta. Se ela havia conseguido dizer isso tudo sem que ele lhe batesse a porta na cara, havia chance de que fosse conseguir extrair algo útil dele.
— O que lhe faz pensar que estou fora do caso? — perguntou Cross, em tom desafiador.
— Fiquei sabendo que foi suspenso. Não sei por qual motivo, mas é por isso que gostaria de ouvir o seu lado da história, antes de recebermos o boletim oficial.
Cross lhe dirigiu um olhar zangado, seus olhos cor de groselha pareciam se injetar ainda mais para fora.
— Não tenho nada a declarar — resmungou ele, sílaba por sílaba.
— Nem mesmo em off? O senhor está disposto a não fazer nada e deixar que eles manchem a sua reputação depois de tudo que fez pela força?
Cross abriu mais a porta e percorreu com o olhar o acesso de veículos até a rua.
— Você está sozinha? — perguntou ele.
— Nem na minha redação sabem que estou aqui. Acabo de ficar sabendo.
— É melhor você entrar por um minuto.
Penny entrou num hall que parecia um catálogo da estamparia Laura Ashley. Na extremidade oposta do corredor, uma porta estava semiaberta; as vozes da televisão, identificáveis mesmo naquela distância. Cross a guiou na direção oposta até uma sala de estar comprida. Quando ele ligou as luzes, os olhos de Penny foram bombardeados por mais objetos decorativos do que seriam encontrados num armarinho. A única coisa que as cortinas, carpetes, tapetes, papéis de parede, tecidos de lã e almofadas espalhadas tinham em comum eram os tons de verde e creme.
— Que bela sala — gaguejou Penny.
— Você acha? Na minha opinião, é uma porcaria. A patroa diz que é o melhor que o dinheiro pode comprar, que é o único argumento que já ouvi para ficar sem um tostão.
Cross resmungou, dirigindo-se ao armário de bebidas. Ele se serviu de um drinque generoso de um decantador. Em seguida, como algo que lhe tivesse ocorrido depois, disse:
— Você não vai querer, tendo que dirigir depois.
— Exatamente — disse Penny, forçando simpatia em sua voz. — Não dá para arriscar com os seus rapazes nas estradas.
— Você quer saber por que aqueles canalhas frouxos me suspenderam? — indagou ele, de modo agressivo, esticando a cabeça para a frente como um jabuti faminto.
Penny fez que sim, sem ousar pegar seu caderno.
— Porque eles preferem seguir o que a porcaria de um doutor afrescalhado diz a ouvir um policial de verdade, é por isso.
Se Penny fosse um cachorro, suas orelhas estariam de pé com atenção. Como não era, ela se contentou em erguer educadamente as sobrancelhas.
— Um doutor? — incentivou.
— Eles trouxeram esse psicólogo bundão para fazer nosso trabalho. E ele diz que o veadinho que prendemos é inocente, então que se danem os indícios. Mas eu sou policial há vinte e tantos anos, e confio nos meus instintos. Pegamos o filho da mãe, posso sentir isso. Tudo que fiz foi tentar me certificar de que ele ficaria atrás das grades até que tivéssemos resolvido todas as malditas questões pendentes.
Cross bateu o copo vazio no armário.
— E eles tiveram a porra da cara de pau de me suspender!
Fabricando provas, então. Embora Penny estivesse desesperada para saber mais sobre o misterioso doutor, ela sentiu que o melhor a fazer era deixar que Cross expressasse seus ressentimentos antes.
— De que eles o acusam? — perguntou ela.
— Não fiz nada de errado — respondeu ele, servindo-se de outro drinque no decantador.
— O problema com o maldito Brandon é que ele vem carimbando papel há tanto tempo que se esqueceu do verdadeiro sentido do trabalho. Instinto. É disso que se trata. Instinto e trabalho pesado. Não um médico de maluco com a cabeça cheia de ideias estapafúrdias como se fosse a merda de um assistente social.
— Quem é esse cara, então? — arriscou Penny.
— Dr. Tony Hill. Um merdinha do Ministério do Interior. Senta em sua torre de marfim e nos diz como pegar bandidos. Ele não entende mais do trabalho da polícia do que eu de física nuclear. Mas o bom doutor diz: “deixe o veadinho ir”, então Brandon responde: “tudo que o mestre mandar faremos todos”. E só porque não concordo, sou expulso aos pontapés.
Cross engoliu mais uísque, com o rosto corado tanto de raiva quanto pela bebida.
— Todo mundo acha que estamos lidando com o mestre do crime, não com uma bicha burrinha que teve um pouco de sorte até agora. Não precisamos desses espertalhões com uma droga de “doutor” antes do nome para capturarmos essa escória. Tudo que se consegue com isso é fazer o veadinho homicida ficar cheio de si.
— É correto dizer, então, que o senhor discorda da linha de investigação? — perguntou Penny.
Cross bufou.
— Pode-se dizer que sim. Guarde minhas palavras: se eles deixarem esse bosta voltar às ruas, vamos estar diante de mais um cadáver.
Para a surpresa de Tony, Carol provou ser fiel à sua palavra. Ela se sentou à mesa dele, tratando de dar conta da pilha de declarações enquanto ele continuava trabalhando em seu computador. Longe de distraí-lo, ele achou a presença dela curiosamente tranquilizadora. Não teve dificuldade em continuar com o perfil de onde havia parado mais cedo.
Como uma montanha-russa, cada estágio precisa ser maior para compensar a inevitável queda que o precedeu. Nesse caso, há três sinais principais de escalada de violência. As feridas na garganta se tornaram cada vez mais profundas e precisas. A mutilação sexual evoluiu de alguns cortes hesitantes na região genital à amputação completa. E as marcas de mordidas que inflige, e depois corta, aumentaram em número e profundidade. Apesar disso, ele conseguiu permanecer suficientemente no controle da situação a ponto de encobrir seus rastros.
É difícil avaliar se o nível de tormento causado por ele está aumentando ou não, já que ele parece estar usando diferentes métodos de tortura em cada caso. O fato de que precisa do estímulo desses métodos diferentes é, contudo, por si só, uma forma de aumento progressivo.
A julgar pelo laudo do legista, a sequência de eventos parece ter sido:
1. Captura, usando algemas e amarras em volta dos tornozelos.
2. Tortura, incluindo atos motivados sexualmente como morder e chupar.
3. Golpe fatal na garganta.
4. Mutilação genital posterior à morte.
O que isso nos diz sobre o assassino?
1. Ele tem fantasias sofisticadas e altamente desenvolvidas, que está explorando por meio de seus métodos de tortura.
2. Ele tem um lugar de matança. As quantidades de sangue e outros fluidos corporais gerados por sua atividade não poderiam ser limpos prontamente num ambiente doméstico normal: seria arriscar muito além do que os seus demais comportamentos cautelosos indicam. Quase certamente ele dispõe de um local para apagar seus vestígios dos assassinatos. Esse local deve possuir também energia elétrica, de modo que possa acender luzes e usar uma câmera de vídeo. Devemos procurar algo como uma garagem trancada, um prédio que fornece segurança, e que provavelmente tem água corrente e eletricidade. Pode ser também uma área isolada, evitando assim a possibilidade de os gritos de suas vítimas serem ouvidos. (Ele quase com certeza remove as mordaças enquanto as tortura; quer ouvi-las gritar e implorar por misericórdia.)
3. Ele é obcecado pela tortura e obviamente tem habilidades manuais suficientes para construir seus próprios aparatos de suplício. Ele não parece ter recursos médicos ou de açougueiro, a julgar pela natureza desajeitada e hesitante dos primeiros cortes na garganta e das mutilações genitais.
Tony tirou os olhos da tela e olhou para Carol. Ela estava totalmente absorvida na leitura, com a familiar ruga entre os olhos. Será que ele estaria maluco em recusar o que ela parecia estar oferecendo? Mais do que ninguém com quem ele tivesse se envolvido, ela entenderia as pressões do seu trabalho, os altos e baixos que penetravam a mente de um psicopata. Era inteligente e sensível, e se ela se comprometesse de forma tão dedicada a um relacionamento quanto à carreira, talvez fosse forte o bastante para lidar com os problemas ao seu lado, em vez de usá-los contra ele.
Notando de repente o olhar de Tony sobre ela, Carol ergueu os olhos e lhe dirigiu um sorriso cansado. Naquele instante, ele se decidiu. De jeito nenhum. Já tinha problemas suficientes para lidar com todas as bobagens que povoavam sua cabeça sem permitir que outra pessoa o fizesse refém da sorte. Carol era simplesmente esperta demais para se permitir aproximar.
— Indo bem? — perguntou ela.
— Estou começando a ter uma noção de como é o assassino — admitiu Tony.
— Isso não pode ser muito prazeroso — disse Carol.
— Não, mas é para isso que sou pago.
Carol fez que sim.
— E aposto que é gratificante. E excitante?
Tony sorriu ironicamente.
— Pode-se dizer que sim. Às vezes me pergunto se isso não me torna tão desequilibrado quanto eles.
Carol riu.
— Não só você. Dizem que os melhores policiais na captura de ladrões são os que conseguem entrar na cabeça dos criminosos. Então, se eu quiser ser a melhor no que faço, tenho de pensar como uma criminosa. Isso não significa, porém, que eu queira fazer o que fazem.
Estranhamente confortado pelas palavras de Carol, Tony voltou para sua tela.
O tempo que o assassino passa com suas vítimas pode também fornecer indicadores. Em três dos quatro casos, o assassino parece ter feito contato no início da noite e ter descartado os corpos nas primeiras horas da manhã seguinte. Curiosamente, no terceiro caso, ele passou mais tempo com a vítima, ao que parece mantendo-a viva por quase dois dias. Esse foi o assassinato que ocorreu no Natal.
Pode ser que normalmente ele não consiga passar muito tempo com a vítima devido a outras exigências em sua vida, exigências que foram alteradas no período do Natal. Essas são mais provavelmente relacionadas ao trabalho do que domésticas, embora seja possível que ele esteja num relacionamento com alguém que tenha voltado sozinho para ver a família no Natal, dando-lhe, assim, tempo para permanecer com sua vítima. Outra possibilidade é que o tempo prolongado que passou com Gareth Finnegan tenha sido um presente de Natal bizarro para si mesmo, uma recompensa pelo bom desempenho de seu “trabalho” anterior.
O curto espaço de tempo que se passou entre os assassinatos e o descarte dos corpos sugere que ele não usa bebida nem drogas em nenhum grau significativo durante a tortura e os assassinatos. Ele não arriscaria ser parado pela política por dirigir de modo errático enquanto carregava um corpo no porta-malas, seja vivo ou morto. Além disso, embora pareça ter usado os carros das vítimas ocasionalmente, é claro que ele também possui um carro próprio. O mais provável é que esse seja um veículo razoavelmente novo e em boas condições, já que ele não pode se dar ao luxo de arriscar ser parado numa blitz pela polícia.
Tony clicou em “salvar” em seu computador e relaxou com um sorriso satisfeito. Não era o momento perfeito, mas também não haveria melhor hora para parar. No dia seguinte pela manhã, ele concluiria a detalhada lista de verificações de características que esperaria encontrar no Faz-tudo, e traçaria propostas de possíveis medidas a serem tomadas pelos policiais no caso.
— Terminou? — perguntou Carol.
Ele se virou e a viu recostando-se na cadeira, com a pilha de pastas fechadas.
— Não percebi que você tinha terminado — comentou ele.
— Faz dez minutos, eu não queria atrapalhar seus dedos, que estavam voando na digitação.
Tony odiava que outras pessoas o estudassem como ele as estudava. A ideia de ser um paciente, alvo do exame que ele mesmo fazia, era um desses pesadelos que lhe faziam acordar banhado em suor.
— Tive o suficiente por esta noite — disse ele, fazendo uma cópia do arquivo num disquete que logo colocou no bolso.
— Vou lhe dar uma carona para casa.
— Obrigado — agradeceu Tony, levantando-se. — Nunca consigo fazer o esforço de trazer o carro para a cidade. Para dizer a verdade, não gosto muito de dirigir.
— Não o culpo. O trânsito da cidade é infernal.
Quando Carol estacionou do lado de fora da casa de Tony, ela disse:
— Alguma chance de entrar para uma xícara de chá? Sem falar em fazer xixi?
Enquanto Tony preparava a chaleira, Carol escapava para o banheiro no andar de cima. Desceu as escadas com o som de sua própria voz na secretária eletrônica. Parou na base da escada, espiando enquanto ele se inclinava na mesa, de papel e caneta na mão, ouvindo suas mensagens. Ela aproveitou sua sensação de crescente familiaridade com o rosto e as linhas do corpo dele. A voz dela terminou e a máquina emitiu um bipe. “Oi, Tony, é o Pete”, anunciou a voz seguinte. “Tenho de estar em Bradfield na próxima quinta-feira. Tem jeito de eu dormir aí e tomarmos uma cerveja na quarta à noite? Parabéns por entrar na equipe de investigação do Assassino de Bonecas, aliás. Espero que pegue o filho da mãe.” Bipe. “Anthony, meu querido. Onde você pode estar? Estou deitada aqui, ansiosa por você. Temos um assunto inacabado, gostosão.”
Ao ouvir o som da voz, Tony se levantou e passou a olhar fixamente a máquina. A voz era rouca, sexy, íntima. “Não acho que pode...” Tony estendeu a mão e interrompeu a voz abruptamente.
Isso é que é não estar envolvido com ninguém, pensou Carol amargamente. Ela apareceu no vão da porta.
— Vamos deixar o chá para lá. Vejo você amanhã — disse ela, a voz fria e instável como gelo numa poça de inverno.
Tony se virou, com pânico nos olhos.
— Não é o que parece — deixou escapar sem pensar. — Nunca nem mesmo vi a mulher!
Carol saiu porta afora e percorreu o corredor. Enquanto mexia na fechadura, Tony falou friamente.
— Estou dizendo a verdade, Carol. Embora não seja da sua conta.
Ela se virou de lado. Encontrou um sorriso em algum lugar e disse:
— Você está certo. Não é mesmo da minha conta. Até amanhã, Tony.
O som da porta se fechando reverberou pela cabeça de Tony como uma britadeira.
— Ainda bem que você é psicólogo — disse para si mesmo amargamente, enquanto se deixava cair contra a parede. — Um leigo poderia ter arruinado tudo. Você realmente acredita em tornar o trabalho uma moleza, não é, Hill?
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 011
Quando Gareth me deu um meio sorriso no bonde, tive certeza de que meus sonhos estavam a ponto de se realizarem. Por causa de um incidente inesperado no trabalho, e todas as horas extras que ele fazia, não conseguia segui-lo havia mais de uma semana.
A imagem dele tinha me embalado no sono quando chegava em casa do trabalho em horários fora do normal, e sua voz vibrava ansiosa em meus ouvidos, mas precisava vê-lo em carne e osso. Programei meu despertador para ter tempo suficiente e estar do lado de fora de sua casa antes que ele saísse para o trabalho, mas meu cansaço era tamanho que não acordei quando o aparelho tocou. Na hora que comecei a acordar, percebi que minha única chance era alcançar o bonde de Gareth algumas paradas depois.
O bonde estava entrando na estação quando corri para a plataforma. Vasculhei ansiosamente o primeiro vagão, mas não consegui vê-lo. A ansiedade subia em minha garganta como bile. Depois, vi sua cabeça brilhante; ele estava sentado bem ao lado da porta do segundo vagão. Forcei a passagem pela multidão e consegui ficar bem ao seu lado, meus joelhos se esfregando nos dele. Com o contato físico, ele levantou o olhar. Os cantos de seus olhos se crisparam, e um sorriso passou por sua boca. Sorri de volta e disse:
— Desculpe.
— Sem problema — respondeu ele. — Esse bonde fica mais cheio a cada dia.
Eu queria continuar a conversa, mas dessa vez não pude pensar em nada para dizer. Ele voltou ao The Guardian e tive de me contentar em observá-lo do canto de minha visão periférica enquanto fingia olhar a paisagem do lado de fora da cidade que passava. Não era muito, eu sei, mas era um início. Ele reconheceu minha presença; sabia que eu existia. Agora, podia ser apenas uma questão de tempo.
Shakespeare acertou quando disse: “A primeira coisa a fazer: vamos matar todos os advogados.” Dessa forma, pelo menos, haveria menos mentirosos de um modo geral. Até as palavras rimavam: jurídico, inverídico. Eu não devia ter esperado nada diferente de um homem que, um dia, fala a favor do reclamante e, no outro, a favor do réu.
Estacionei bem na esquina da casa de Gareth, onde podia observá-lo vir para casa sem que me visse, graças à película nas janelas do meu 4x4. A casa dele não tinha sebe, de maneira que eu podia acompanhá-lo do lado de dentro de sua sala de visitas a partir do meu ponto de vista privilegiado.
Eu conhecia seus hábitos a essa altura. Ele chegava em casa logo depois das seis, ia para a cozinha para pegar uma lata de Grolsch, e retornava para a sala, onde bebia sua cerveja e assistia à TV. Depois de cerca de vinte minutos, pegava alguma coisa para comer na cozinha — pizza, comida congelada, batatas assadas. Cozinhar obviamente não era o seu forte. Quando estivéssemos juntos, eu teria de assumir a responsabilidade por essa parte de nossa vida.
Depois das notícias, ele saía da sala, provavelmente para trabalhar em outro cômodo. Eu imaginava livros de direito enfileirados em prateleiras de pinho. Depois, ou ele voltava para a TV mais tarde ou andava até o pub na esquina para tomar algumas cervejas Lager.
Gareth precisava de alguém com quem pudesse dividir sua vida, eu pensava enquanto aguardava que ele voltasse para casa. Eu era a pessoa certa para isso. Gareth seria meu presente de Natal.
Às cinco e quinze, um Volkswagen Golf branco entrou suavemente na vaga, logo depois da casa de Gareth, e uma mulher saiu. Ela se inclinou para dentro do carro e pegou uma pasta abarrotada de arquivos e uma bolsa a tiracolo. Achei sua fisionomia vagamente familiar enquanto andava pela calçada. Pequena, com cabelos castanho-claros puxados para trás num rabo de cavalo bem preso, óculos grandes de tartaruga, vestido preto, blusa branca com um babado de renda no pescoço.
Quando ela virou no portão de Gareth, eu mal pude acreditar. Pelos poucos segundos que levou para chegar à porta, eu tentei me convencer de que ela era sua corretora imobiliária, sua vendedora de seguros, uma colega passando para deixar alguns papéis. Qualquer coisa. Qualquer coisa.
Então, ela abriu a aba da bolsa e tirou uma chave. Minha mente gritou: “não!” enquanto ela inseria a chave na fechadura e entrava. A porta da sala de estar se abriu e ela deixou a pasta ao lado do canapé. Depois, sumiu novamente. Dez minutos mais tarde, estava de volta, enrolada no roupão felpudo branco de Gareth.
Para falar a verdade, estou com Shakespeare e não abro.
Era a época do ano para ser alegre, então me forcei a não deixar minha decepção influenciar meu estado de espírito. Em vez disso, me concentrei em pesquisar algo adequado para a época, algo bárbaro, próprio do bom e velho simbolismo cristão. Não há mesmo muito que se possa fazer com uma manjedoura e cueiros, então me permiti alguma licença artística e parti para a outra extremidade da vida.
A crucificação como forma de punição foi provavelmente emprestada pelos romanos dos cartagineses. (Interessante como se referiam a todos os demais como bárbaros...) Eles a adotaram por volta da época das Guerras Púnicas e aquela era, inicialmente, uma punição reservada apenas a escravos. O que parece apropriado o bastante, já que esse era o único papel para o qual esperava que Gareth servisse agora. Mais tarde, nos tempos do império, a punição tornou-se mais geral, aplicada a qualquer local que cometesse a temeridade de se comportar mal depois que os romanos tinham vindo gentilmente conquistar — desculpe, civilizar — seu povo.
Tradicionalmente, o criminoso era açoitado e forçado a carregar uma cruz pelas ruas até o lugar onde uma estaca alta tinha sido enterrada. Depois, era pregado na cruz e puxado para cima por um sistema de polias. Seus pés eram às vezes pregados, às vezes amarrados na estaca. Ocasionalmente, a morte por exaustão recebia uma mãozinha dos soldados, que quebravam as pernas da vítima, o que devia lhe conceder uma passagem misericordiosa para o estado inconsciente. Para os meus objetivos, porém, decidi optar pela cruz de santo André, mais decorativa. Por um lado, ela aplicaria tensões mais interessantes nos músculos de Gareth. Por outro, caso ele se mostrasse à altura da ocasião, facilitaria muito o acesso.
Curiosamente, a crucificação nunca foi usada como punição para soldados, exceto pelo crime de deserção. Talvez os romanos tivessem a concepção correta no final das contas.
11
Mas quem, nesse ínterim, era a vítima, a cuja morada ele corria? Porque certamente ele não poderia jamais ser tão indiscreto a ponto de navegar num cruzeiro itinerante em busca de alguma pessoa que encontrasse casualmente para assassinar? Ah, não: ele tinha encontrado uma vítima que o satisfazia algum tempo antes, isto é, um antigo e muito íntimo amigo.
Brandon olhava sombriamente para a folha de papel na máquina de escrever. Tom Cross podia estar bem longe da ideia de policial perfeito do chefe de polícia assistente, mas ele sempre pareceu ser bom em capturar bandidos. Comportamentos absurdos como o daquela noite serviam apenas para pôr em dúvida toda a sua carreira. Para quantas outras pessoas Cross havia armado ao longo dos anos, sem que ninguém percebesse? Se Brandon não tivesse, ele mesmo, flexibilizado as regras e levado Tony em sua busca ilícita, ninguém teria duvidado da “prova” que Tom Cross tinha apresentado. Ninguém, a não ser Stevie McConnell, teria sabido que duas das três “descobertas” do superintendente tinham sido plantadas por ele. Só de pensar nas consequências disso, Brandon já ficava com uma sensação de suor frio nas costas.
Cross tinha deixado Brandon sem nenhuma opção a não ser suspendê-lo. A audiência disciplinar que inevitavelmente se seguiria seria dolorosa para todos os envolvidos, mas essa era a menor das preocupações de Brandon. Ele estava muito mais preocupado com o efeito no moral da divisão de homicídios. A única forma de combater isso era assumir pessoalmente a responsabilidade direta pela investigação. Agora, tudo que precisava fazer era convencer o chefe de polícia de que ele estava certo. Com um suspiro, Brandon puxou a última folha de papel da máquina e inseriu outra.
Seu memorando para o chefe superior era breve e direto. Com isso só restava uma tarefa pendente antes que pudesse ir para cama. Suspirando, Brandon olhou para o relógio. Trinta minutos para a meia-noite. Ele empurrou a máquina para longe e começou a escrever numa folha de seu formulário de memorando pessoal. “Para o detetive-inspetor Kevin Matthews. De John Brandon, chefe de polícia assistente (Criminal). Assunto: Steven McConnell. Em seguida à suspensão do superintendente Cross, assumo o comando direto da divisão de homicídios. Não há fundamento para acusar McConnell de nada a não ser agressão. McConnell deve ser posto em liberdade mediante fiança, aguardando a decisão da data de julgamento pela acusação de agressão, e deve comparecer à Scargill Street em uma semana de modo que possamos fazer mais interrogatórios caso surjam indícios adicionais. Tendo em vista sua recusa em fornecer qualquer informação sobre seus contatos, ou qualquer nome de pessoas que possa ter apresentado a Gareth Finnegan e Adam Scott, devemos acompanhar qualquer contato que faça. Um mandado para grampear seu telefone deve também ser obtido, com base em sua conexão com Scott e Finnegan, e o contato que agora sabemos que tinha com Damien Connolly em sua atividade profissional. Nossas investigações dos quatro assassinatos relacionados devem continuar numa frente ampla, embora sugiro que, após sua soltura, mantenhamos McConnell sob vigilância. Haverá uma reunião de policiais graduados sobre o caso amanhã ao meio-dia.” Brandon assinou o memorando e o selou num envelope. Bela maneira de fazer amigos e influenciar as pessoas, ele pensou enquanto descia as escadas até o sargento de plantão. Brandon rezava que Tony Hill tivesse razão sobre Stevie McConnell. Se Tom Cross estivesse certo em seguir seu instinto, não seria apenas o moral do Departamento de Investigações Criminais que estaria em risco.
Carol despencou sobre a mesa de jantar, o queixo descansando em seus braços dobrados, uma das mãos fazendo cócegas na barriga de Nelson.
— O que você acha, rapaz? Ele é ou não é mais um cafajeste mentiroso?
— Purr — respondeu o gato com uma entonação ascendente, os olhos quase fechados.
— Achei que fosse dizer isso. Concordo, sei como os escolher — suspirou Carol. — Você tem razão, eu devia ter mantido distância. É o que acontece quando a gente precisa tomar a iniciativa. Você leva o fora. Eles geralmente não veem de um jeito tão estranho, no entanto. Pelo menos agora eu sei por que ele ficava se retraindo. Melhor sem ele, gato. A vida já é dura o suficiente sem eu ser a outra.
— Mrrr — concordou Nelson.
— Ele deve achar que sou uma perfeita idiota, esperando que eu acredite que alguém completamente desconhecido deixa mensagens daquele tipo em sua secretária eletrônica.
— Raurr — reclamou Nelson, rolando sobre as costas, batendo nos dedos de Carol com as patas.
— Muito bem, então você também acha isso ridículo. Mas o homem é psicólogo. Se ele fosse inventar alguma coisa para explicar o fato de que mentiu para mim, tornaria a alegação muito mais plausível do que chamadas telefônicas esquisitas. Tudo que ele tinha de dizer era que se tratava de alguém com quem ele tinha terminado, mas que se recusava a entender o recado.
Carol esfregou os olhos, espantando o sono. Bocejou e levantou-se num movimento lânguido.
A porta do quarto de empregada que Michael usava como escritório se abriu e ele ficou parado na entrada.
— Achei que tinha ouvido vozes. Você podia conversar comigo, sabe. Pelo menos, eu respondo.
Carol deu um sorriso cansado.
— Nelson também. Não é culpa dele que a gente não fale a língua dos gatos. Não queria incomodar você; percebi que estava trabalhando.
Michael andou até o armário de bebidas e serviu-se de uma pequena dose de uísque.
— Estava só testando o jogo, tentando identificar os bugs no que desenvolvemos até agora. Nada de mais. Como foi o seu dia?
— Nem me pergunte. Eles nos mudaram para a Scargill Street. O lugar é um buraco. Imagine voltar a fazer seus cálculos num ábaco, e você poderá imaginar o meu ambiente de trabalho atual. A atmosfera é uma merda, e Tony Hill é comprometido. Fora isso, tudo está maravilhoso.
Carol seguiu o exemplo de Michael e se serviu de um drinque.
— Quer conversar a respeito? — perguntou ele, sentando-se no braço de um dos sofás.
— Obrigada, mas não.
Carol engoliu seu drinque de uma vez, tremeu com o efeito da bebida e disse:
— Trouxe uma leva de fotos, aliás. Quando você pode dar uma olhada nelas?
— Arrumei algum tempo no computador que tem o software amanhã à noite. Está bom para você?
Carol pôs os braços em volta de Michael e lhe deu um abraço.
— Obrigada, maninho.
— O prazer é meu. — Ele devolveu o abraço. — Você sabe como gosto de um desafio.
— Estou indo dormir — avisou ela. — Foi um dia longo.
Assim que Carol desligou a luz, sentiu o baque familiar de Nelson pousando ao pé da cama. Era reconfortante sentir seu calor em suas pernas, embora não fosse substituto para o corpo que ela esperara mais cedo, naquela mesma noite. É claro, logo que sua cabeça bateu no travesseiro, seu sono desapareceu. A exaustão ainda estava presente, mas a cabeça raciocinava a mil. Quisera Deus que, até a tarde de amanhã, o constrangimento entre ela e Tony já tivesse evaporado. A pontada de humilhação ainda estaria lá, mas ela era adulta e profissional. Agora que sabia que ele estava fora de alcance, ela não o colocaria numa posição difícil novamente; e agora que ele sabia que ela sabia, talvez pudessem relaxar. Seja como for, o perfil devia fornecer terreno neutro mais que suficiente entre eles. Ela mal podia esperar para ver o que ele apresentaria.
No outro lado da cidade que dormia, Tony também estava deitado em sua cama, olhando para o teto, traçando mapas rodoviários imaginários nas fissuras em volta da roseta de gesso. Ele sabia que não havia sentido em desligar a luz de sua luminária ao lado da cama. O sono lhe fugiria e, na escuridão, ele começaria a sentir o lento estrangulamento da claustrofobia se aproximando. Contar carneiros nunca lhe interessou; nas lentas vigílias da noite era a hora em que Tony se tornava o próprio terapeuta.
— Por que você teve de ligar esta noite? Eu gosto de Carol Jordan. Sei que não a quero em minha vida, mas não queria magoá-la tampouco. Ouvir sua adulação na secretária eletrônica deve ter doído como um tapa na cara, depois que eu disse que não havia ninguém em minha vida — murmurou ele. — Uma pessoa de fora diria que mal nos conhecemos, que tudo que aconteceu esta noite foi um exagero. Mas as pessoas de fora não entendem a conexão, a intimidade que surge do nada quando vocês estão trabalhando em contato direto na busca de um criminoso, quando o tique-taque do relógio leva embora a vida da próxima vítima.
Ele suspirou. Pelo menos, ele não tinha deixado escapar a única coisa que poderia ter convencido Carol de que ele não estava mentindo, a verdade que ele mantinha tão cuidadosamente trancada dentro de si. Era isso que ele dizia a seus pacientes? “Desabafe. Não importa o que seja, falar será o primeiro passo para eliminar a dor.”
— Que monte de conversa fiada — disse ele amargamente. — É só mais um dos truques na cartola mágica, criados para legitimar minha curiosidade lasciva, adaptados para libertar as mentes perturbadas dos desajustados que são levados a realizar suas fantasias de uma forma à qual a sociedade não pode se adaptar. Se eu contasse a Carol a verdade, dissesse a palavra com “i”, isso não teria levado a minha dor. Teria feito apenas com que eu me sentisse um merda ainda maior. Tudo bem para velhos serem impotentes, mas homens da minha idade que não conseguem uma ereção são uma piada.
O telefone tocou, assustando-o. Ele se virou, procurando o aparelho.
— Alô — atendeu, com a voz hesitante.
— Anthony, finalmente. Ah, como senti sua falta!
Sua onda de raiva da voz lânguida e rouca morreu tão rápido quanto tinha se espalhado. Qual era o sentido de ficar irado com ela? Angelica não era o problema. O problema era ele.
— Recebi sua mensagem — disse ele, resignado. Ela não tinha causado o constrangimento com Carol; não haveria motivo para embaraço algum se ele não fosse um exemplo patético de homem. Não fazia sentido sequer pensar em relacionamentos com mulheres simpáticas e normais. Ele teria estragado tudo com Carol, do mesmo jeito que sempre tinha estragado com outras mulheres, assim que elas se aproximavam. O melhor que podia esperar era sexo por telefone. Pelo menos aquilo gerava uma espécie de igualdade; permitia que os homens fingissem não só orgasmo mas também a ereção.
Angelica deu uma risadinha.
— Achei que ficaria contente em receber meu recado quando voltasse para casa. Espero que não esteja cansado demais para um pouco de diversão.
— Nunca estou cansado demais para esse tipo de diversão — incentivou Tony, engolindo a própria repugnância que ameaçava tomá-lo. Pense nisso como terapia, disse a si mesmo. E ao relaxar, permitiu que a voz fluísse por ele, com a mão passeando do seu peito até a virilha.
Os faxineiros estavam fofocando no elevador quando Penny Burgess surgiu no terceiro andar do escritório do Bradfield Evening Sentinel Times. Ela andou até a sala da redação, acendendo as luzes ao passar, cantarolando com os lábios fechados uma melodia desafinada. Jogou a bolsa na mesa ao lado do computador e se conectou. Executou os comandos que a levaram ao banco de dados da biblioteca e pressionou a tecla de “pesquisa”. Eram oferecidas cinco opções: 1. Assunto; 2. Nome; 3. Por linha; 4. Data; e 5. Fotos. Penny clicou em 2. No prompt do “sobrenome”, ela digitou “Hill”. No prompt do “nome”, ela teclou “Tony”; e como “título”, ela inseriu “Dr.”. Depois se recostou na cadeira e esperou enquanto o computador buscava entre os gigabytes de informações armazenadas em sua imensa memória. Penny abriu o maço de cigarros e puxou o primeiro do dia. Tinha dado apenas algumas tragadas quando a tela piscou “Encontrados (6)”.
A repórter acessou os seis itens e os exibiu na tela. Eles apareceram por data, em ordem reversa. O primeiro era um recorte de dois meses atrás do Sentinel Times, escrito por um colega jornalista. Embora o tivesse lido na época, ela havia esquecido completamente dele. Enquanto relia, Penny assobiava baixinho.
DENTRO DA MENTE DE UM ASSASSINO
O homem que o Ministério do Interior escolheu para liderar a caçada de serial killers falou hoje sobre o último assassinato que aterrorizou a comunidade gay da cidade.
O psicólogo forense Tony Hill faz, há um ano, um grande estudo, com financiamento do governo, que levará à criação de uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais similar à unidade do FBI que figurou no filme O silêncio dos inocentes.
Dr. Hill, de trinta e quatro anos, foi psicólogo clínico-chefe no Blamires Hospital, o sanatório de segurança máxima que abriga os criminosos mais insanos e perigosos do Reino Unido, incluindo o assassino em massa David Harney e o serial killer Keith Pond, o Maníaco da Autoestrada.
Dando seu veredicto, dr. Hill esquivou-se: “Não fui convocado pela polícia para oferecer consultoria em nenhum desses casos, então não sei mais do que seus leitores sobre eles.”
Ou o dr. Hill vinha mentindo para o colega de Penny, ou seu envolvimento formal com o caso surgiu depois da entrevista. Se esse fosse o caso, Penny conseguia ver como explorá-lo de uma forma que interessaria seu editor. Ela conseguia visualizar a manchete agora. “POLÍCIA SEGUE A PISTA DO BEST NA CAÇADA DO ASSASSINATO.” Ela passou os olhos rapidamente pelo resto do artigo. Não lhe disse nada que ela já não soubesse, embora estivesse interessada que o dr. Hill tivesse especulado sobre as discrepâncias no terceiro assassinato poderem significar a existência de dois assassinos nas ruas. Essa era uma ideia que parecia ter desaparecido sem deixar rastros. Uma boa pergunta para Kevin da próxima vez que ela conseguisse estabelecer uma conversa por telefone com ele.
O recorte seguinte era do The Guardian, e anunciava a criação do programa do Ministério do Interior para desenvolver uma força-tarefa nacional para lidar com criminosos em série. O projeto teria sede na Bradfield University. O artigo lhe fornecia mais informações sobre o histórico do dr. Hill, e ela anotou apressadamente os detalhes de sua carreira no caderno. Não é burro, esse cara. Penny teria de ter cuidado ao lidar com ele. Ela bateu nos dentes com a caneta e se perguntava por que o Sentinel Times não tinha feito uma matéria especial sobre o estudo, com um perfil do dr. Hill. Talvez eles tivessem tentado e recebido um não. Ela teria de verificar com seus colegas da seção Especiais.
Os dois próximos recortes eram de um tabloide de circulação nacional, uma série em duas partes sobre serial killers que foi programada para coincidir com o lançamento de O silêncio dos inocentes. O dr. Hill foi citado nos dois artigos, falando em termos gerais sobre o trabalho dos criadores de perfis criminais psicológicos.
Os dois últimos textos tratavam de um de seus mais importantes pacientes, Keith Pond, o chamado Maníaco da Autoestrada. Pond tinha sequestrado cinco mulheres das áreas de serviço da rodovia, depois as estuprado de modo selvagem e as assassinado. No momento do julgamento, apenas dois dos corpos haviam sido encontrados. Mas, após a terapia prolongada com o dr. Hill, Pond revelara o paradeiro dos outros três corpos. O dr. Hill foi saudado como um operador de milagres pela família enlutada de uma das vítimas. Um dos dois artigos havia tentado um perfil do psicólogo Hill, mas eles tinham informações escassas para prosseguir. Como de hábito, o jornalista não deixou que isso fosse um empecilho para uma boa história.
Tony Hill, que nunca se casou, dedica-se ao seu trabalho. Um ex-colega disse: “Tony é um viciado em trabalho, casou-se com o emprego.
“Ele é totalmente motivado pelo desejo de compreender o que interessa aos seus pacientes. Provavelmente não há outro psicólogo no país que tenha a mesma habilidade para entrar na mente perturbada de criminosos e descobrir o que os faz agir como agem.
“Às vezes, eu achava que ele se identifica mais com os assassinos em massa do que com as vítimas.”
O recluso dr. Hill mora sozinho e tem fama de não socializar com os colegas. Fora estudar as mentes dos serial killers, ao que parece, o único passatempo a que se permite é caminhar nas montanhas. Nos fins de semana de folga, ele regularmente vai até o Parque Nacional Lake District ou o Yorkshire Dales e caminha pelas colinas.
— Parece bem divertido — disse Penny em voz alta, escrevendo apressadamente em seu bloco. Ela retornou ao menu principal, onde havia selecionado a quinta opção. Novamente, digitou o nome de Tony para uma pesquisa de imagem. Os bancos de dados revelaram que havia uma foto no arquivo. Penny a acessou e olhou fixamente o rosto que aparecia na tela. — Achei! — exclamou ela. Ela só o tinha visto uma vez antes, mas agora sabia quem era o novo escudeiro de Carol Jordan.
Penny se reclinou no assento, saboreando seu terceiro cigarro, e percebeu que a redação estava começando a encher. Uma rápida ligação, depois ela podia se reservar um tempo para ter o prazer de um prato de fritura na cantina. Estendendo a mão e pegando o telefone, discou o número residencial de Kevin Matthews. Ele atendeu no segundo toque.
— Detetive Matthews — murmurou sonolentamente.
— Oi, Kev, é Penny — disse ela, saboreando o silêncio espantado que saudou seu anúncio. — Desculpe incomodá-lo em casa, mas pensei que você preferiria responder às minhas perguntas aí em vez de no escritório.
— Q-Quê? — gaguejou ele. Depois, abafando o fone. — Sim, é trabalho. Volte a dormir, amor.
— Há quanto tempo o dr. Tony Hill está na equipe?
— Como você ficou sabendo disso? Merda, isso era para ser altamente sigiloso — explodiu ele, com o nervosismo se transformando em raiva.
— Tsc, tsc, Kev. Ela nunca vai voltar a dormir se você gritar assim. Não importa como sei, só fique agradecido de poder negar com a mão no coração que veio de você. Há quanto tempo, Kev?
Ele limpou a garganta.
— Só alguns dias.
— Foi ideia de Brandon?
— Tudo bem. Olhe só, realmente não posso falar disso. Deve ser mantido em segredo.
— Ele está fazendo um perfil, não é?
— O que você acha?
— Trabalhando com Carol Jordan? É a queridinha de Brandon, não é?
— Ela é a intermediária. Olhe, eu preciso ir. Falo com você sobre isso depois, está bem?
Kevin tentou parecer ameaçador, mas não conseguiu.
Penny sorriu e expirou devagar toda a fumaça que tinha na boca.
— Obrigada, Kev. Devo a você um favor muito especial.
Ela colocou o fone de volta no gancho, limpou a tela e abriu um arquivo de artigo.
“Exclusivo. De Penny Burgess”, digitou ela, deixando para lá o café da manhã. Ela tinha coisa muito mais importante para fazer.
Tony estava de volta em frente à sua tela às oito e meia. Em vez da culpa que esperava sentir por seu encontro erótico, ele se sentiu revigorado. Permitir-se ter satisfação com Angelica tinha, de alguma forma, o liberado e relaxado. Por mais surpreendente que achasse que isso era naquelas circunstâncias, ele realmente se excitara enquanto as palavras dela o guiavam num encontro sexual imaginativo e escabroso. Ele não tinha, na verdade, conseguido sustentar sua ereção a ponto de chegar ao orgasmo, mas como não havia ninguém presente para compartilhar seu fracasso, não parecia importar. Talvez mais algumas ligações de Angelica fossem tudo o que ele precisava para contemplar a realidade com algo mais brando do que o pânico irremediável.
Mas não no trabalho. O que ele precisava agora era completa paz. Ele já tinha instruído sua secretária para não transferir nenhuma ligação, e desligou a campainha de sua linha direta. Nada nem ninguém ia interromper o fluxo de seus pensamentos. Sua sensação de satisfação continuava enquanto lia o trabalho que fizera no dia anterior. Ele estava pronto agora para pôr sua carreira em risco e declarar por escrito suas conclusões sobre o Faz-tudo. Tony se serviu de uma xícara de café da garrafa térmica e respirou fundo.
Estamos lidando com um serial killer que certamente matará novamente, a menos que seja pego. O próximo homicídio acontecerá na oitava segunda-feira após a morte de Damien Connolly, a não ser que algum gatilho acelere isso. O que talvez pudesse levá-lo ao descontrole e provocar uma escalada extrema seria algum evento catastrófico que causasse a perda do que estiver usando para manter a fantasia viva. Como, por exemplo, se ele estiver usando vídeos, o dano a suas fitas poderia ocasionar a perda do controle. Outra situação possível é que uma pessoa inocente seja acusada dos assassinatos. Isso seria uma afronta tão grande à ideia que tem de si mesmo que ele poderia cometer seu próximo assassinato antes do cronograma.
Acredito que é provável que ele já tenha selecionado sua próxima vítima e esteja se familiarizando com os movimentos e o estilo de vida dela. Provavelmente, o escolhido é um homem desconhecido da comunidade gay. Ele será, para todos os efeitos, um homem hétero vivendo um estilo de vida heterossexual.
O fato de que sua última vítima era um policial é perturbador. É muito provável que essa tenha sido uma decisão deliberada, e não um acidente ou coincidência. O assassino está mandando uma mensagem para a investigação. Ele está exigindo que o notemos, que o levemos a sério. Ele está também nos dizendo que ele é o melhor; ele pode nos pegar, mas nós não podemos pegá-lo. Há uma teoria de que um comportamento desses é uma espécie de convite à captura, mas não acredito que seja isso que esteja acontecendo nesse caso.
É possível que seu próximo alvo seja também um policial, talvez mesmo alguém que esteja trabalhando na investigação. Isoladamente, isso não será motivo suficiente para que o assassino o escolha, ele deve também se encaixar no critério de vítima que delineou em sua cabeça a fim de que o assassinato assuma seu significado completo para ele. Eu recomendaria enfaticamente que qualquer policial que se enquadre no perfil da vítima aplicasse vigilância extra em todos os momentos, observando qualquer veículo suspeito estacionado próximo à sua casa e verificando se está sendo seguido na ida e na volta do trabalho e dos eventos sociais.
A perseguição e a preparação servem dois objetivos principais para o assassino: reduzem os possíveis fatores de surpresa quando ele vier a realizar o assassinato, e abastecem sua fantasia, que é um aspecto crucial na vida dele.
Nosso assassino é provavelmente um homem branco, com idade entre vinte e cinco e trinta e cinco anos. É esperado que ele tenha pelo menos um metro e setenta e oito de altura, seja bem musculoso, com considerável força na parte superior do corpo. Apesar disso, provavelmente tem uma imagem ruim do próprio corpo. Ele pode fazer exercícios numa academia, mas, se puder pagar, ele preferirá usar seu próprio equipamento na privacidade de seu lar. Ele é destro.
Ele não parece um marginal. Sua aparência é absolutamente comum. Tem um comportamento que não levanta suspeitas. É o tipo de sujeito que não chamaria atenção, e certamente não se suspeitaria que fosse um assassino de várias vítimas. Ele pode ter tatuagens e/ ou cicatrizes autoinfligidas, mas essas provavelmente são bem discretas.
O assassino também é bastante familiarizado com Bradfield, e seu conhecimento de Temple Fields é claramente atual. Isso implica alguém que vive e, provavelmente, trabalha na cidade. Não acho que seja um visitante casual, nem um ex-morador que simplesmente volta aqui para matar. Não há padrão geográfico óbvio nas casas ou lugares de trabalho de suas vítimas, exceto que todas vivem em razoável proximidade de uma linha de bonde. A casa da primeira vítima é, muito provavelmente, mais próxima em termos geográficos do lugar em que o assassino mora ou trabalha. Analisando o histórico geral e o estilo das vítimas, e observando o princípio de que ele está mantendo esse tipo de ambiente que conhece e compreende, eu suspeitaria que o assassino mora numa propriedade própria em vez de alugada, uma casa e não um apartamento, uma área do subúrbio de propriedades similares às das vítimas. É provável que as casas das vítimas valham mais do que a do assassino; esses são homens que, de certa forma, são uma aspiração para ele.
É presumível que tenha inteligência acima da média, embora não esperaria que tivesse um diploma universitário. Seu histórico escolar é provavelmente irregular, com pouca frequência e notas muito variadas. Ele nunca cumpriu seu potencial ou as expectativas que outras pessoas têm dele. A maioria dos serial killers tem um histórico profissional ruim, pulando de emprego em emprego, sendo despedido com mais frequência do que pedindo demissão. Mas esse homem exibe um nível de controle extraordinário na realização de seus assassinatos, de modo que esperaria que ele fosse capaz de manter uma ocupação fixa, possivelmente até uma função com algum grau de responsabilidade e planejamento. Contudo, não acho que esse trabalho envolva muito contato com outros seres humanos, já que seus relacionamentos com outras pessoas são caracterizados por sua natureza deficiente. Suas vítimas são todos funcionários administrativos, com a exceção pouco importante de Damien Connolly, que indica em minha opinião que ele provavelmente opera em um ambiente de trabalho similar. Eu não ficaria surpreso se o encontrasse numa função relacionada à tecnologia, possivelmente informática. Essa é uma área de emprego onde as pessoas podem manter bons empregos sem ter habilidades interpessoais significativas. Os empregados que não se adaptam são aceitos no mundo estranho dos engenheiros de software; na verdade, eles costumam ser muito valorizados uma vez que é difícil substituí-los. Duvido que nosso assassino seja uma pessoa de vanguarda criativa no mundo do software, mas não me surpreenderia que ele fosse gerente de sistemas ou desenvolvedor de programas. Ele provavelmente não se dá bem com seus chefes, sendo inclinado a ser insubordinado e argumentador.
Está na classe média em relação ao seu trabalho, suas aspirações, suas roupas e sua casa, embora possa pertencer à classe trabalhadora de origem. Ele é bom com as mãos, mas estou inclinado a pensar que não está numa ocupação manual, nem que seja por causa do alto grau de planejamento envolvido nesses assassinatos.
Socialmente, ele se sente isolado. Pode não ser necessariamente um ermitão, mas não se conecta às pessoas. Ele se sente alguém de fora. É provável que tenha desenvolvido habilidades sociais superficiais, mas, de alguma forma, seu comportamento sempre é inadequado. Ele é o que ri alto demais, o que pensa que está fazendo piadas quando está na verdade sendo profundamente ofensivo, o que às vezes parece ter viajado num devaneio particular. É aquele que não tem, na verdade, nenhum amigo; que se integra ao grupo, mas nunca desenvolve certo grau de intimidade. Ele tem pouca percepção de suas deficiências sociais. Prefere ficar sozinho com suas fantasias, porque, quando os outros estão envolvidos socialmente, não pode controlar completamente o que ocorre em torno de si.
É perfeitamente possível que não viva sozinho. Se ele morar com alguém, deve ser com uma mulher e não com um homem. Como os homens o atraem sexualmente, e ele não pode aceitar isso, não estará sob nenhuma condição vivendo com um homem, nem mesmo em uma relação platônica. Seus relacionamentos com as mulheres podem muito bem ser sexuais, mas ele não será um amante entusiasmado ou bem-sucedido. Seu desempenho será apenas adequado, e ele pode vivenciar problemas em conseguir e/ou manter uma ereção. Contudo, não fica impotente durante a execução de seu crime, e quase com certeza consegue realizar um ato sexual completo de algum tipo com suas vítimas.
Tony interrompeu o trabalho e olhou pela janela. Às vezes parece o ovo e a galinha. Ele tinha empatia por seus pacientes porque também conhecia as frustrações e a raiva da impotência, ou seus problemas sexuais aumentaram justamente para que pudesse desempenhar melhor seu trabalho?
— Isso importa? — disse ele com impaciência. Correu uma das mãos pelo cabelo e concentrou-se novamente na tela.
Se ele estiver morando com uma companheira, ela quase com certeza não terá nenhuma suspeita de que seu namorado é o assassino. É, portanto, bem provável que seu primeiro instinto seja o de lhe fornecer um álibi, já que, em seu coração, ela sabe que não poderia ser ele de modo algum. Qualquer suspeito cujo álibi tenha sido fornecido unicamente por namoradas ou esposas não deve, portanto, ser eliminado com base apenas nisso.
Ele transita em carro próprio, que está em boas condições (ver anteriormente). E nas noites de segunda-feira, fica livre para circular sem impedimento ou obrigação de estar em algum lugar.
Sua personalidade é altamente estruturada, um maníaco por controle. Do tipo que tem um chilique porque sua namorada esqueceu de comprar seu cereal favorito. Ele acredita que tem boas razões para fazer o que faz; acha que, com seus crimes, na verdade, tudo que está realizando são as ações que todas as outras pessoas querem, mas para as quais lhes falta coragem. Ele é muito melindroso e sente que o mundo conspira contra ele; como é possível, uma vez que é tão brilhante e talentoso, que não esteja administrando a empresa, em vez de fazer esse trabalho reles? Como é possível, já que é tão charmoso, que não esteja saindo com algum supermodelo? A resposta é: o mundo está decidido a trapacear contra ele. Ele possui a visão egocêntrica da criança mimada e não tem percepção do impacto de seu comportamento nos outros. Tudo que vê é a forma como os eventos o afetam.
Ele vive em constante fantasia e devaneio. Suas fantasias são construídas de modo elaborado e parecem mais significativas para ele do que a realidade. Seu mundo de fantasia é onde ele se refugia para tomar decisões e também sempre que encara qualquer tipo de contratempo ou obstáculo em sua vida cotidiana. Suas fantasias provavelmente envolvem violência e sexo, podendo também ser fetichistas. Essas fantasias não permanecem estáticas; elas perdem seu poder e precisam continuar sendo desenvolvidas.
Ele tem certeza de que pode realizar suas fantasias sem que ninguém seja capaz de impedi-lo. Tem suprema confiança de que é mais esperto do que a polícia; não está planejando para o dia em que for pego. Ele acha que é esperto demais para isso. Ele foi muito cuidadoso em apagar os vestígios forenses, que é o motivo pelo qual, como já descrevi à inspetora Jordan, estou convencido de que o fragmento de pele de veado russo deixado na cena do quarto assassinato é uma cortina de fumaça do tipo mais flagrante. Ele está quase certamente mantendo um olhar atento à investigação, e sem dúvida vai morrer de rir enquanto tentamos descobrir a origem do couro. Mesmo que a polícia o rastreie, suspeito que quando encontrarmos o assassino não haverá nada entre suas posses que vá ligá-lo remotamente ao couro.
Se ele tiver algum tipo de ficha criminal, é provável que seja juvenil. Os possíveis crimes são: vandalismo, pequenos incêndios, roubo, crueldade com crianças mais jovens ou animais, agressão contra professores. Contudo, em algum momento determinado, nosso assassino aprendeu um enorme autocontrole, e supostamente não tem registro criminal como adulto.
Ele se mantém atualizado da investigação o máximo possível e prospera com a publicidade, contanto que ela pareça lhe conceder o glamour e o respeito a que almeja. É interessante que a sepultura de Adam Scott tenha sido profanada logo após o segundo assassinato. Isso pode ter sido uma tentativa de alavancar o perfil de seus crimes. Ele é possivelmente alguém que tem contatos com policiais e, caso tenha, se esforça para usar isso como forma de obter informações sobre o andamento da investigação. Qualquer policial que sentir que está sendo estimulado a fornecer informações dessa maneira deve ser encorajado a relatar isso aos oficiais superiores na divisão de homicídios.
Tony salvou seu arquivo e leu o texto inteiro novamente. Alguns dos psicólogos com que tinha trabalhado incorporavam grandes blocos de histórico sobre os prováveis antecedentes da infância do assassino, bem como uma lista de verificação de comportamentos que o assassino poderia ter exibido enquanto estava crescendo. Tony não. Não havia tempo suficiente para esse tipo de informação, uma vez que um suspeito estava pronto para o interrogatório. Tony nunca se esquecia de que os policiais com quem ele lidava estavam nas ruas na linha de frente. Homens como Tom Cross, que não dava a mínima ao tipo de infância terrível que o suspeito tivesse suportado.
Pensar no superintendente aguçou o olhar crítico de Tony. Convencê-lo do valor do perfil seria um pesadelo.
A primeira edição do Bradfield Evening Sentinel Times chegou às ruas pouco antes do meio-dia. Os que procuravam ansiosamente apartamentos, empregos e promoções pegaram os primeiros exemplares com os vendedores de rua sem sequer olhar o que estava na capa. Iam direto à seção de classificados, esperando que atendessem suas necessidades e mantendo a primeira e a última páginas visíveis para o proveito dos passantes. Qualquer um, curioso o bastante para olhar as manchetes garrafais, teria lido “CHEFE DA CAÇADA AO ASSASSINO DISPENSADO. Exclusivo, de nossa correspondente criminal, Penny Burgess.” Mais abaixo na página, a coluna inferior da direita era tomada por uma fotografia de Tony com os dizeres “POLICIAIS DE HOMICÍDIOS SEGUEM A PISTA DO BEST. Exclusivo, de Penny Burgess.” Se eles tivessem ficado intrigados o bastante para comprar seu próprio exemplar, teriam lido um subtítulo que dizia: “Psicólogo famoso integra a caçada ao Assassino de Bonecas, veja a matéria na p. 3.”
Num escritório bem acima da confusão das ruas de Bradfield, alguém olhava fixamente o jornal, com a excitação revolvendo dentro de si. As coisas estavam indo muito bem. Era como se a polícia estivesse concretizando suas próprias fantasias, provando que desejos realmente podem se tornar realidade.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 012
O mundo todo estava nas ruas da cidade, comprando presentes de Natal que ainda estariam pagando durante a Páscoa. Idiotas. Eu estava na minha masmorra, garantindo que teria um Natal inesquecível. Muito embora fosse ser o último de Gareth neste mundo, eu tinha certeza de que todos os detalhes estariam tão claramente gravados em sua memória quanto em minha fita de vídeo.
Planejei nosso encontro com todo o cuidado e precisão que pude. A chegada da piranha significava que eu não poderia arriscar capturá-lo em casa como havia feito com Adam e Paul. Teria de criar planos alternativos.
Enviei-lhe um convite. Imaginei que a véspera de Natal já estaria comprometida, fosse com a família ou com a piranha, então escolhi 23 de dezembro. Eu o elaborei de uma forma que sabia que ele não poderia resistir e que nunca ousaria mostrar à vaca. A última frase dizia “Entrada apenas com convite”. Era um toque de inteligência. Significava que ele teria de trazer consigo a única prova de contato entre nós.
As indicações no verso levavam, se ele tivesse se importado em verificar previamente, a uma casa de verão isolada no alto das charnecas entre Bradfield e Yorkshire Dales; o lado oposto da cidade até Start Hill Farm e minha masmorra. Eu esperava que a casa de campo estivesse alugada para o Natal, mas não tinha nenhuma intenção de permitir que Gareth chegasse tão longe.
Era um tipo de noite clichê de Natal: uma lua crescente branquíssima, estrelas piscando como pedaços de diamante num relógio de luxo, grama e sebes pesadas de geada. Estacionei na beira da estrada de faixa única da charneca que levava até a casa de campo de férias e a algumas fazendas. A distância, conseguia ver a estrada de pista dupla que ficava no caminho até Bradfield, como uma trilha de luzes encantadas estendida sobre a cordilheira de Pennines.
Acendi minha luz de emergência, saí do 4x4 e abri o capô. Pus o que precisava ao alcance da mão, depois me reclinei na lateral dianteira e aguardei. Estava muito frio, mas não me importei. Tinha calculado bem. Estava esperando há apenas cinco minutos quando ouvi o som de um motor lutando para subir a inclinação íngreme. As luzes oscilavam contornando a curva abaixo de mim. Saí do carro, acenando furiosamente, com uma aparência congelada e preocupada.
O velho Escort de Gareth parou abruptamente na frente do 4x4. Dei alguns passos hesitantes na direção dele, enquanto ele abria a porta e saía.
— Algum problema? — perguntou. — Infelizmente não sei quase nada sobre carros, mas se eu puder lhe dar uma carona...
Sorri.
— Agradeço por parar — disse eu. Não havia sinal em seu rosto de que me reconhecera quando me aproximei. Odiei-o por isso. Voltei até o 4x4, gesticulando sob o capô. — Não é nada sério. Só que preciso de três mãos. Se você puder segurar essa parte no lugar enquanto eu uso a chave inglesa nesta porca...
Apontei para o motor. Gareth se inclinou sob o capô. Peguei a chave inglesa e acertei-lhe em cheio com ela.
Dentro de cinco minutos, ele estava no porta-malas de seu próprio carro, mais amarrado que um peru de Natal. Eu estava com suas chaves do carro, a carteira e o convite que lhe enviara. Dirigi de volta pela cidade até a fazenda, onde despejei o corpo inconsciente sem nenhuma cerimônia pelas escadas do porão. Não tinha tempo para fazer mais nada, não se eu quisesse voltar ao 4x4.
Conduzi o carro de Gareth até o centro de Bradfield, deixando-o em Temple Fields num beco perto de Crompton Gardens. Ninguém me viu; estavam todos muito ocupados festejando. Foi apenas uma caminhada de dez minutos pela cidade até a estação ferroviária.
Uma viagem de trem de vinte minutos e mais quinze caminhando rapidamente me trouxeram de volta ao 4x4. Com cautela, me aproximei. Não havia sinal de vida, nenhuma indicação de que alguém estivesse se intrometendo. Dirigi de volta para Start Hill Farm assobiando uma canção de Natal.
Quando acendi as luzes do porão, os olhos castanho-escuros de Gareth se iluminaram com um ódio furioso contra mim. Gostei disso. Depois do terror patético de Adam e Paul, era revigorante ver um homem que tinha alguma coragem. O som abafado que saía de trás da fita em sua boca era mais um grunhido furioso que um apelo.
Inclinei-me sobre ele e alisei para trás seus cabelos que caíam na testa. A princípio, ele fez movimentos bruscos afastando-se de mim, depois se tornou calmo e quieto, seus olhos mostrando reflexão.
— Assim é melhor. Não é preciso lutar, não é preciso resistir.
Ele assentiu com a cabeça, depois grunhiu, fazendo um sinal com os olhos para sua mordaça. Ajoelhei-me diante dele e peguei uma ponta do esparadrapo. Depois que a segurei com firmeza, retirei-a num único movimento rápido. É mais gentil do que fazer isso gradualmente.
Gareth ajeitou o maxilar, lambendo os lábios secos. Ele me fuzilou com os olhos.
— Uma porra de uma festa — rosnou ele, com a voz um pouco trêmula.
— É exatamente o que você merece.
— Como diabos você chegou a essa conclusão? — interpelou ele.
— Você foi feito para mim. Mas se envolveu com aquela vagabunda. E tentou fazer disso um segredo.
Surgiu uma luz em seus olhos.
— Você é... — começou ele.
— Isso mesmo — interrompi. — Então agora você sabe por que está aqui.
Minha voz era tão fria quanto o piso de pedra. Levantei-me de repente e andei até o banco onde havia disposto o meu equipamento.
Gareth estava falando novamente, mas ignorei o som de sua voz. Sei como os advogados podem ser persuasivos e, por mais que ele me bajulasse, não permitiria que causasse nenhum desvio no meu caminho. Abri a sacola Ziplock e tirei o algodão com clorofórmio. Voltei-me para Gareth e ajoelhei-me diante dele. Com uma das mãos, agarrei seus cabelos e, com a outra, apliquei o algodão em sua boca e nariz. Ele lutou de modo tão convulsivo que acabei com um tufo de cabelo em minha mão antes que ele perdesse a consciência. Ainda bem que estava usando minhas luvas de látex, caso contrário seus cabelos teriam me cortado. A última coisa de que precisava era meu sangue se misturando ao dele.
Quando ele apagou, cortei fora suas roupas. Tirei a correia do berço de Judas e a fechei em seu peito, sob as axilas. Eu havia prendido uma roldana rudimentar e um guincho a uma das vigas no teto, e amarrei o gancho na correia. Ergui o corpo de Gareth com o guincho até que ele balançou como visco ao vento. Quando já estava lá em cima no ar, foi questão de segundos até abrir as algemas e prendê-lo à minha árvore de Natal.
Parafusei duas tábuas na parede no formato da cruz de santo André e cobri-as com ramos espinhosos de abeto norueguês. Para cada braço da cruz eu prendi correias de couro que amarrei em volta dos pulsos e tornozelos dele. Abri os punhos fechados de Gareth e prendi com fita suas mãos espalmadas na cruz. Por fim, removi o gancho e deixei que as correias no pulso recebessem a pressão. O corpo dele desabou de modo alarmante, e por um momento eu me preocupei que não tivesse instalado correias fortes o bastante. Houve um breve ranger do couro na madeira, depois o silêncio. Ele pendia como um apóstolo martirizado na parede da masmorra.
Peguei minha marreta e os ponteiros afiados que tinha escolhido para o trabalho. Ficaríamos juntos agora até a noite de Natal. Eu pretendia saborear cada minuto de nossas quarenta e oito horas.
12
Pouquíssimos homens cometem assassinato por princípios filantrópicos ou patrióticos... Quanto à maioria dos assassinos, eles são donos de personalidades muito falhas.
Os quatro detetives-inspetores estavam sentados com o rosto sem expressão, no que antes era o escritório de Tom Cross, quando John Brandon lhes deu a versão oficial da suspensão do superintendente. Às vezes, Brandon desejava ser ainda um dos oficiais, capaz de explicar seus motivos sem parecer sabotar o próprio cargo ao agir dessa forma.
— O que temos de fazer é deixar isso para trás e avançar com a investigação — disse ele bruscamente. — Pois bem, qual é a situação de McConnell?
Kevin se inclinou para a frente em seu assento.
— Fiz como instruiu, senhor. Ele deixou nossa prisão um pouco antes da meia-noite, e tenho uma equipe o monitorando desde então. Andou direitinho na linha até agora. Foi direto para casa, pareceu ir para a cama, a julgar pelas luzes. Estava de pé às oito horas da manhã, e foi trabalhar. Tenho um dos rapazes na academia, fazendo-se passar por associado, e outro fora na rua.
— Continue assim, Kevin. Mais alguma coisa? Dave, algo interessante no sistema?
— Estamos acompanhando muitas placas de carro e indivíduos envolvidos em qualquer crime gay, tanto no ataque a homossexuais quanto em atentados ao pudor. Estamos também prestes a cruzar os dados dessas listas com os que Don Merrick vem obtendo com as agências de viagem a respeito de pessoas que reservaram férias na Rússia. Depois que tivermos o perfil, talvez tenhamos alguns suspeitos, mas é uma pedreira no momento, senhor.
Carol interveio:
— Algumas das associações de levantamento de peso disseram que nos forneceriam listas de seus membros que estiveram na Rússia ou competiram contra equipes russas.
— Eba, mais porcarias de listas — comentou Dave, fazendo uma careta.
— Tenho um contato na indústria de couro — disse Stansfield. — O maior importador no Reino Unido. Perguntei-lhe sobre a tira de couro, e ele disse que, como era pele de veado, provavelmente não é de uma jaqueta comum ou de um jardineiro. Mais provável que fosse alguém com um pouco de influência pessoal, mas nenhum poder de verdade. Sabe como é. Alguém como um detetive-inspetor.
Sorriu.
— Ou um funcionário da prefeitura de baixo escalão. Um subchefe da estação ferroviária. O imediato de um navio. Esse tipo de coisa.
Dave sorriu.
— Vou dizer à equipe HOLMES para vigiar ex-funcionários da KGB.
Brandon começou a dizer algo, mas foi cortado pelo toque do telefone.
— Brandon falando... — Seu rosto perdeu toda a expressão, tornando-se rígido como a madeira dos caixões que ele parecia estar carregando. — Sim, senhor. Vou para aí imediatamente.
Ele pôs o telefone no gancho suavemente e se levantou.
— O chefe de polícia está interessado em saber como essa edição noturna do jornal saiu desse jeito — disse ele, atravessando a sala e parando ao lado da porta com uma das mãos na maçaneta.
— Tenho certeza de que quem lavou nossa roupa suja na pia da senhora Burgess vai esperar que eu consiga convencer o chefe de polícia a não fazer dele um exemplo.
Ele dirigiu a Carol um sorriso frio.
— Ou dela, na verdade.
Tony trancou a porta de seu escritório atrás de si e ofereceu à secretária do projeto um aceno alegre e um sorriso.
— Estou saindo para almoçar, Claire. Provavelmente vou ao Café Genet em Temple Fields. A inspetora Jordan deve chegar às três, mas vou estar de volta antes disso. Tudo bem?
— Tem certeza de que não quer retornar algumas dessas ligações dos jornalistas? — interpelou Claire.
Tony se virou, continuando a andar para trás pelo escritório.
— Que jornalistas? — perguntou ele.
— Primeiro, aquela Penny Burgess do Sentinel Times. Ela vem tentando de meia em meia hora desde que cheguei. Depois, na última hora, as ligações têm vindo de todos os jornais nacionais, e da Rádio Bradfield.
Tony franziu a testa, intrigado.
— Por quê? Eles disseram o que queriam?
Claire ergueu o exemplar do Sentinel Times que tinha saído rápido para comprar na banca do campus.
— Não sou psicóloga, Tony, mas acho que pode ter algo a ver com isso.
Tony ficou paralisado. Mesmo do outro lado do escritório ele conseguia ler as manchetes e identificar sua própria fotografia em exibição com destaque na primeira página do jornal. Como uma partícula de ferro atraída por um ímã, Tony se aproximou do jornal até que conseguiu ler o nome de Penny Burgess nos dois artigos.
— Posso ver? — perguntou ele com a voz rouca, estendendo a mão para pegar o jornal.
Claire o entregou e observou a reação dele. Ela gostava de seu chefe, mas era humana o bastante para apreciar o desconforto dele em ser exposto na edição noturna do jornal. Tony virou às pressas a primeira página, procurando o artigo completo sobre si mesmo. Com uma sensação de crescente horror, ele leu:
Dr. Hill tem boas qualificações para entrar na mente distorcida do Assassino de Bonecas. Além de seus dois títulos universitários e uma grande experiência em lidar diretamente com os pervertidos criminosos que aterrorizam a sociedade, tem a reputação de ser muito determinado.
Um colega disse: “Ele se casou com o emprego. Ele vive para o trabalho. Se alguém pode pegar o Assassino de Bonecas, é Tony Hill.
“É apenas uma questão de tempo agora, estou convencido. Tony é incansável. Ele não vai desistir até que esse filho da mãe esteja bem trancafiado.
“Vamos encarar a verdade, Tony tem um cérebro privilegiado. Esses serial killers podem ter QIs altos, mas eles nunca são muito espertos quando se trata de ficar fora da prisão.”
— Santo Deus — resmungou Tony. Fora o fato de que nenhum colega que se prezasse jamais faria declarações como essa, o artigo era equivalente a uma incitação ao Faz-tudo. Parecia um desafio. Ele tinha certeza de que o assassino encontraria um jeito de responder a isso. Tony jogou o jornal na mesa, olhando-o furiosamente.
— Ultrapassa um pouco os limites — disse sua secretária com empatia.
— É uma baita irresponsabilidade, sem falar nos limites — respondeu Tony, aborrecido. — Ah, que se dane isso. Vou almoçar. Se o chefe de polícia ligar, diga que não volto mais hoje.
Ele andou de novo até a porta.
— E quanto à inspetora Jordan? E se ela ligar?
— Pode dizer a ela que saí do país. — Com a porta aberta, ele parou. — Não, é só brincadeira. Diga a ela que estarei aqui para nossa reunião.
Enquanto esperava pelo elevador, Tony se deu conta de que nada em sua experiência tinha lhe preparado para o desafio do confronto direto com um assassino. Era algo com que ele teria de lidar usando seus instintos.
• • •
Kevin Matthews bebeu todo o quartilho de cerveja e acenou para a garçonete do bar.
— Mesmo que seja uma cortina de fumaça, ainda assim ele precisa ter tido acesso a essa porcaria de pedaço de couro desconhecido, não é? — perguntou teimosamente a Carol e Merrick. — Mais uma?
Merrick fez que sim.
— Vou tomar um café desta vez, Kevin — disse Carol. — E nos passe um cardápio, por favor. Tenho a sensação de que vou ficar aqui para uma longa sessão com o doutor, e ele tem um hábito desagradável de esquecer a comida.
Kevin pediu as bebidas, depois se virou para Carol. Com a persistência que tinha lhe garantido a promoção, ele disse:
— Mas estou certo, não estou? Para plantar o couro assim, não só ele teve acesso ao tecido como também sabe o quanto é incomum.
— Concordo — disse Carol.
— Então não é perda de tempo tentar levantar a origem, é?
— Nunca disse que era — alegou Carol, com paciência. — Pois bem, você vai me informar sobre o que aconteceu com Tom Cross ou vou ter que imitar nosso assassino e trazer os aparelhos de tortura?
Enquanto Kevin explicava o que tinha acontecido, a atenção de Merrick se desviou. Ele já tinha ouvido a história mais vezes do que precisava. Reclinou no bar e observou a clientela. O Sackville Arms não era o pub mais próximo da delegacia na Scargill Street, mas ele vendia chope Tetleys, de Yorkshire, e Boddingtons, de Manchester, que inevitavelmente chegavam à polícia local. O pub ficava nos limites de Temple Fields, o que lhe dava um atrativo extra para os policiais locais quando a delegacia da Scargill Street ainda estava aberta. Como consequência, prostitutas e pequenos criminosos que queriam repassar recados para seus contatos pessoais da força podiam conseguir isso sem dificuldade. Contudo, nos poucos meses que o posto policial de Scargill Street ficou em desuso, o pub tinha mudado sutilmente. Os fregueses tinham se acostumado a ter o lugar para si mesmos, e havia uma distância claramente perceptível entre os policiais e o resto dos clientes. Os oficiais que vinham usando o pub numa tentativa de recrutar novas fontes da parte vulnerável da comunidade foram recebidos com frieza. Mesmo com um serial killer à solta, ninguém queria voltar ao hábito de informar agora que tinham se livrado dele.
Com os olhos de policial, Merrick percorreu a sala, classificando os bebedores. Prostituta, traficante, michê, cafetão, homem rico, homem pobre, mendigo, fracote. A voz de Carol o perturbou, fazendo-o interromper seu exame.
— O que acha, Don? — Foi o que conseguiu ouvir.
— Desculpe, estava viajando. O que acho do quê?
— Que já é hora de gerarmos alguns de nossos próprios cacoetes entre as “primas”, em vez de contarmos com as garotas da Delegacia de Costumes. Elas estiveram tantas vezes em volta das casas, que eu sairia para verificar se me dissessem que estava chovendo.
— Deixe as prostitutas para lá — disse Merrick. — Precisamos saber um bocado mais sobre como a comunidade gay funciona. Não quero dizer os caras que saíram do armário e frequentam o Hell Hole. Quero dizer os enrustidos. Os que não dão pinta. São esses que podem ter encontrado esse pervertido antes. Quero dizer, de tudo que já li sobre serial killers, às vezes eles não chegam a matar na primeira vez, apenas fazem uma tentativa. Como o Estripador de Yorkshire. Então talvez haja algum cara amedrontado no armário e que tenha sofrido com algum gesto de violência. Esse pode ser o caminho para uma descoberta.
— E Deus sabe que precisamos de uma — disse Kevin. — Mas se não sabemos como as relações são estabelecidas, como nos conectamos?
Carol, pensativa, disse:
— Quando em dúvida, pergunte a um policial.
— Fazer o quê? — perguntou Kevin.
— Há policiais gays na ativa. Mais do que a maioria, eles devem saber como manter a discrição. Eles poderiam nos contar.
— Isso não responde à pergunta — protestou Kevin, com insistência. — Se eles estão tão ocupados mantendo-se discretos, como saberemos quem são eles?
— A Polícia Metropolitana tem uma associação de policiais gays e lésbicas. Por que não entramos em contato, em sigilo, e pedimos a ajuda deles? Alguém deve ter alguns contatos em Bradfield.
Merrick olhou Carol com admiração, Kevin fez o mesmo com frustração, e os dois se perguntaram em silêncio como que a inspetora Jordan sempre tinha uma resposta.
Tom Cross olhou a primeira página do Sentinel Times com um sorriso de satisfação movendo seu cigarro para cima e para baixo. A senhora Burgess pode ter achado que estava no controle de seu encontrozinho na noite anterior, mas Tom Cross sabia que era diferente. Ele armou a teia e ela caiu como uma mosca, fazendo exatamente o que ele esperava dela. Não, verdade seja dita. O que ela tinha feito era melhor do que ele tinha esperado. Aquela frase sobre a polícia indo aos trancos e barrancos atrás do Sentinel Times quando se tratava de procurar o maldito dr. Hill era muito boa.
Haveria muitos homens furiosos na polícia de Bradfield hoje. Esse foi o elemento de vingança do jogo de Tom Cross com Penny Burgess. Mas outra pessoa ficaria zangada também. Quando lesse a edição desta noite, o assassino ficaria mais do que simplesmente irritado.
Tom Cross apagou o cigarro e bebeu ruidosamente de sua caneca de chá. Dobrou seu jornal, colocou-o na mesa em frente e olhou para fora da janela. Acendeu outro cigarro. Ele começaria a instigar o Assassino de Bonecas. Provocado, ele passaria a ficar descuidado, a cometer enganos. E quando Stevie McConnell fizesse isso, Tom Cross estaria pronto à sua espera. Ele ia mostrar àqueles canalhas miseráveis como é que se pegava um assassino.
Tony estava de volta ao escritório às dez para as três. Mesmo assim, não chegou cedo o bastante para superar Carol.
— A inspetora Jordan chegou — avisou Claire assim que ele abriu a porta da antessala. Ela gesticulou com a cabeça para o escritório dele.
— Ela está lá esperando. Disse a ela que você voltaria.
O sorriso em resposta de Tony foi tenso. Enquanto agarrava a maçaneta da porta, ele fechou os olhos bem apertados e respirou fundo. Expondo o que esperava ser um sorriso de boas-vindas no rosto, Tony abriu a porta e entrou em seu escritório. Ao ouvir o som da porta, Carol se virou da janela em que estivera olhando para fora e lhe deu um olhar frio e considerado. Tony fechou a porta atrás de si, reclinando-se.
— Você parece que acabou de pisar numa poça mais funda que seu sapato — comentou Carol.
— É uma melhora, então — respondeu Tony, com mais do que um toque de ironia. — Geralmente me sinto como se tivesse pisado numa poça mais funda que a minha cabeça.
Carol deu um passo em direção a ele. Ela ensaiara o que diria.
— Não há necessidade de se sentir assim comigo. Na noite passada... Bem, você não foi muito franco e interpretei erradamente os sinais. Então podemos esquecer tudo isso e nos concentrar no que é realmente importante entre nós?
— E o que seria? — Tony soou impessoal como um terapeuta, sua pergunta mais um convite à conversa do que um desafio.
— Trabalharmos juntos para pegar esse assassino.
Tony se afastou da porta e foi até a segurança de seu assento, com cuidado para manter a mesa entre eles o tempo inteiro.
— Tudo bem para mim.
Ele deu um sorriso torto.
— Acredite em mim, sou muito melhor em relacionamentos profissionais do que do outro tipo. Pense que foi salva pelo gongo.
Carol circundou o lado oposto da mesa e puxou uma cadeira. Cruzou as pernas vestidas em calças compridas e juntou as mãos sobre o colo.
— Então vamos dar uma olhada nesse perfil.
— Não precisamos nos comportar como se fôssemos estranhos — disse Tony baixinho. — Respeito você e admiro o modo como é tão aberta ao aprendizado de novos aspectos do trabalho. Olhe, antes... antes do que aconteceu na noite passada, parecíamos nos encaminhar para uma amizade que ia além do trabalho. Era uma coisa tão ruim assim? Não podemos nos contentar com isso?
Carol deu de ombros.
— Não é fácil fazer amizades depois de expor suas fraquezas.
— Não acho que demonstrar que alguém atrai você é necessariamente uma fraqueza.
— Estou me sentindo boba — disse Carol, sem ter certeza por que estava se abrindo desse jeito. — Eu não tinha direito de esperar nada de você. Agora, estou com raiva de mim.
— E de mim também, imagino — concluiu Tony. Isso estava se mostrando menos traumático do que ele tinha imaginado. Suas técnicas de aconselhamento não tinham enferrujado pela falta de uso, pensou ele com alívio.
— Em grande parte comigo mesma. Mas posso lidar com isso. O importante para mim é que façamos o trabalho.
— Para mim também. É bem raro encontrar um policial que parece compreender o que estou tentando fazer.
Ele pegou os papéis na mesa.
— Carol... Não é nada com você, sabe. Sou eu. Tenho meus próprios problemas com os quais preciso lidar.
Carol o fitou longamente. Ele sentiu um rápido tremor de pânico quando percebeu que não conseguia ler seus olhos. Ele não fazia ideia do que ela estava sentindo.
— Entendo o que diz — respondeu ela, com a voz fria. — Falando em problemas, nós não temos trabalho a fazer?
• • •
Carol sentou-se sozinha no escritório de Tony com o perfil do serial killer. Ele tinha deixado que ela o lesse enquanto trabalhava na sala ao lado com sua secretária, atualizando-se com relação à correspondência empilhada desde que Brandon o tinha sequestrado há apenas alguns dias. Ela não conseguia se lembrar de já ter estado tão fascinada com um relatório em sua carreira. Se esse era o futuro da polícia, ela queria muito fazer parte dele. Finalmente, chegou ao fim do texto principal e passou para uma folha separada.
Pontos a considerar:
1. Alguma das vítimas já tinha mencionado a um amigo/parente que tinha sido alvo de uma abordagem homossexual indesejada? Caso sim, quando, onde e por quem?
2. O assassino é um perseguidor. Seu primeiro encontro com suas vítimas provavelmente ocorre muito tempo antes de ele matar — semanas, e não dias. Onde ele os está encontrando? Pode ser algo tão banal como onde lavam roupa, onde colocam sola nos sapatos, onde compram sanduíches, onde instalam pneus ou escapamento em seus carros. Considerando que todos moravam próximos à rede de bonde, acho que devemos verificar se as vítimas usavam os bondes regularmente para ir e vir do trabalho ou para sair à noite. Sugiro que verificações completas de antecedentes sejam realizadas, abrangendo contas bancárias, extratos de cartão de crédito, e indícios casuais de colegas, namoradas e familiares. Isso pode ajudar a revelar suspeitos.
3. Há alguma indicação de que as vítimas estavam reservando a noite em questão para algum objetivo específico? Gareth Finnegan mentiu a respeito para a namorada — algum dos outros também?
4. Onde ele está executando seus assassinatos? É improvável que seja em sua casa, já que teria calculado a possibilidade de ser preso, e teria se esforçado para evitar deixar vestígios forenses lá. Ela também precisa ser grande o suficiente para que construa e use os mecanismos de tortura que estamos presumindo nesses casos. Pode ser uma garagem trancada e isolada, ou uma unidade em uma propriedade industrial que fica deserta à noite. Não nos esqueçamos de que ele quase certamente mora em Bradfield. É possível que exista uma propriedade rural isolada à qual ele tenha acesso sem ser perturbado.
5. Ele deve ter aprendido sobre instrumentos de tortura em algum lugar de modo que pudesse construir os próprios. Pode valer a pena verificar com livrarias e bibliotecas se algum de seus clientes fez perguntas ou encomendou livros sobre o assunto.
Carol voltou algumas páginas, relendo parágrafos que tinham chamado sua atenção na primeira leitura. Ela achava difícil crer na velocidade com que Tony tinha assimilado as pilhas de arquivos que ela lhe entregara. Não apenas isso, mas ele extraiu deles os elementos centrais que criaram, pela primeira vez na mente de Carol, uma imagem, ainda que vaga, do homem que ela estava caçando.
Mas o perfil também levantava dúvidas, e uma dessas não havia ocorrido a Tony. Ela se perguntava se ele não se referira a elas por tê-las descartado de imediato. Qualquer que fosse a razão, ela precisava saber. E precisava encontrar uma maneira de perguntar que não parecesse um ataque.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 013
Eu detestava deixar Gareth em suspenso, mas tinha que sair para realizar uma pequena tarefa. No carro dele, encontrei alguns dos cartões de Natal que sua empresa enviava para os clientes preferenciais, já assinados por todos os sócios. Dentro de um deles, como uma caneta-tinteiro, um molde de estêncil e o sangue de Gareth, escrevi em maiúsculas: UM FELIZ NATAL PARA TODOS OS SEUS LEITORES; SEU PRESENTE DE NATAL EXCLUSIVO ESTÁ ESPERANDO NOS ARBUSTOS DO CARLTON PARK ATRÁS DO CORETO. CUMPRIMENTOS DE FIM DE ANO DO PAPAI NOEL. Não era fácil escrever com sangue, ele ficava coagulando na ponta, e eu precisava limpar muitas vezes. Por sorte, sangue não faltava.
Enderecei um envelope com plástico bolha ao editor do Bradfield Evening Sentinel Times e pus o cartão dentro dele, junto com um vídeo que tinha feito algumas semanas antes, quando comecei a planejar o que fazer com Gareth. Já tinha decidido alterar meu modus operandi ligeiramente. Temple Fields era certamente perigosa agora. Mesmo que as bichas estivessem muito bêbadas e drogadas para serem vigilantes, a polícia estaria atenta para algo além de banheiros públicos utilizados ocasionalmente para sexo. Mas a trilha natural nos arbustos de Carlton Park é quase tão difamada quanto uma área de encontros casuais.
Cedo em uma manhã chuvosa de domingo, quando não havia ninguém, dirigi até Carlton Park com minha filmadora. Comecei pelo coreto de ferro forjado. Andei em volta dele, filmando-o de todos os ângulos. Não demoraria muito até que alguém no escritório do BEST reconhecesse o ponto de referência. Afinal, Carlton Park é o maior parque dentro dos limites da cidade, e há um concerto de uma orquestra de instrumentos de metal lá todos os domingos, de abril a setembro. Eu mantinha deliberadamente a câmera ao nível do peito, em vez de no ombro. Lera sobre ocasiões em que estimativas de altura corretas tinham sido feitas simplesmente do ângulo que as fotografias tinham sido tiradas. Se algum cientista forense ia retirar alguma conclusão desse vídeo, queria ter certeza de que seria errada.
Deixando para trás o coreto, desci a trilha natural até os arbustos. Movi a câmera pela vizinhança onde achava que deixaria o corpo, depois parei de filmar. Não passei por ninguém no meu caminho de volta ao 4x4. Foi provavelmente por sorte, já que estava sorrindo de orelha a orelha com o pensamento do editor de notícias intrigado com minha mensagem de Natal.
O vídeo também serviria a duas outras funções. Primeiro, minimizaria o tempo de identificação do corpo de Gareth, o que significava que a mídia teria bastante para repercutir num período que sempre era estagnado em notícias. E, em segundo lugar, despistaria a polícia numa procura inútil sobre quem poderia ter tido acesso aos cartões de Natal.
Poderiam até concluir que alguém ligado ao trabalho tinha decidido silenciá-lo e fazer com que parecesse um assassinato por imitação, jogando o corpo numa área de público gay. Justamente o tipo de coisa que um cliente enlouquecido e desiludido faria. Se eu tivesse muita sorte, eles poderiam até fazer a piranha passar por algum problema também.
Dirigi até o centro da cidade para postar o pacote na agência principal dos correios. Havia bastante presenteadores em pânico para que eu parecesse incomum. Parei numa loja de bebidas no caminho de volta para comprar uma garrafa de champanhe. Normalmente não bebo quando estou trabalhando, mas essa era uma ocasião especial.
Quando voltei, Gareth estava semiconsciente, resmungando de modo incompreensível.
— Papai Noel chegou — anunciei alegremente enquanto descia as escadas.
Retirei a rolha do champanhe e servi duas taças. Peguei uma delas para Gareth e, na ponta dos pés, gentilmente ergui sua cabeça pendente. Segurei a taça em seus lábios e virei.
— Você vai gostar disso — disse eu. — É Dom Perignon de boa safra.
Seus olhos se esbugalharam. Por um momento, ele pareceu perplexo; depois, se lembrou e me fitou com um olhar de puro ódio. Mas ele estava sedento e não pôde resistir ao champanhe. E engoliu-o com avidez, sem saborear nada. Em seguida, cuspiu no meu rosto, com um olhar de estranha satisfação.
— Você usufruir disso é um desperdício — esbravejei. — Como todas as coisas boas da vida. — Recuei e lancei a taça contra seu rosto. Ela se despedaçou no nariz dele, cortando sua bochecha em tiras. Estava feliz porque tia Doris não ia voltar. Ela recebera aquele conjunto de seis taças de cristal frágeis como um presente de bodas de prata, e nunca as tinha usado, aterrorizada que alguém pudesse quebrá-las. Tinha razão em se preocupar.
Gareth sacudiu a cabeça.
— Você é o mal — balbuciou. — Puro mal.
— Não, não sou — respondi baixinho. — Sou a justiça. Lembra da justiça? É o que você devia representar.
— Isso é doentio, sua aberração — respondeu ele.
Não conseguia acreditar que ele ainda tinha energia para bravatas. Era hora de mostrar a ele quem é que mandava. Eu já tinha fixado suas mãos na cruz com alguns ponteiros. O sangue tinha coagulado em volta deles, preto e duro. Agora era a vez dos pés.
Quando me viu pegar as ferramentas na bancada, ele finalmente se rendeu.
— Não há necessidade disso — disse ele desesperadamente. — Por favor. Você ainda pode me deixar ir. Eles nunca encontrariam você. Não faço ideia de onde estamos. Não sei quem você é, onde mora, no que trabalha. Você podia se mudar de Bradfield, e eles nunca lhe encontrariam.
Aproximei-me. As lágrimas se empoçavam em seus olhos e transbordavam, correndo pelo sangue em sua bochecha. Elas deviam ter doído, mas ele não se encolheu.
— Por favor — suspirou ele. — Não é tarde demais. Mesmo que você tenha matado aqueles outros homens. Foi você quem os matou?
Ele era esperto, eu tinha de admitir. Tão esperto que se prejudicava. Ele acabara de conseguir um pouco mais de sofrimento. Virei-me e deixei a marreta e o ponteiro na bancada. Deixe que pense que estou em dúvida. Deixe que passe a noite convencido de que eu teria misericórdia. Isso tornaria o dia de Natal ainda mais prazeroso.
Fechei a porta do porão atrás de mim e subi até a cama, junto com meus vídeos e uma boa garrafa de champanhe ainda cheia. Estava tendo o melhor Natal que já tivera. Lembrei-me de todos aqueles anos de esperança angustiada, rezando que aquele fosse o ano em que minha mãe compraria presentes como os que as outras crianças ganhavam. Mas tudo que ela fez foi me decepcionar. Agora eu tinha entendido que só eu poderia me dar aquilo que ansiava; sabia que, pela primeira vez na vida, eu poderia esperar pelo tipo de Natal que as outras pessoas tinham, cheio de surpresas, satisfação e sexo.
13
Interpretando seus atos à luz desses vestígios silenciosos que deixou para trás, a polícia percebeu que ultimamente ele devia ter ficado ocioso. E o motivo que o guiava é notável; porque registra imediatamente — que sua busca pelo assassinato não ocorria simplesmente como um meio de atingir um fim, mas como um fim para si mesmo.
O Wunch of Bankers era um dos poucos estabelecimentos do centro da cidade onde Kevin Matthews se sentia seguro de encontrar Penny Burgess. Um pub divertido com um rap alto e estridente e uma decoração modelada de acordo com novelas de TV — como o Rover’s Return Snug, a Woolpack Eaterie, o Queen Vic Lounge e o Cheers Beer Bar — era o último lugar em que ele provavelmente encontraria outro policial, ou Penny, outro jornalista.
Kevin fez uma careta quando suas papilas gustativas se contraíram com o café forte e amargo que se escondia sob uma espiral de espuma e que mais parecia resíduo industrial do que um cappuccino. Onde diabos estava ela? Ele olhou seu relógio pela vigésima vez. Penny havia prometido que estaria lá o mais tardar às quatro horas, e agora já tinham se passado dez minutos. Empurrou a xícara pela metade para longe e pegou, na banqueta ao seu lado, a capa impermeável da última moda. Ele estava prestes a se levantar quando a porta giratória do pub emitiu um silvo e Penny apareceu. Ela acenou e se encaminhou direto para a mesa dele.
— Você disse quatro horas — saudou-a Kevin.
— Meu Deus, Kevin, você está ficando mesmo turrão com a velhice — reclamou Penny, dando-lhe um beijinho na bochecha enquanto sentava no assento ao lado dele. — Faça um favor, me dê uma daquelas águas minerais com um toque de frutas silvestres — disse ela, com a voz zombando das pretensões de seu drinque escolhido.
Quando Kevin retornou com um copo já suado por fora, Penny imediatamente pôs uma das mãos de um modo possessivo na parte interna da coxa dele.
— Hum, obrigado — agradeceu, bebericando seu drinque. — Então o que há de novo? Por que o encontro urgente?
— O jornal de hoje — explicou ele, com a voz inexpressiva. — Jogou mesmo merda no ventilador.
— Ah, bom. Talvez assim a gente consiga alguma providência concreta. Como encontrar um suspeito contra o qual tenham algum indício.
— Você não está entendendo. Eles estão procurando o informante. O chefe de polícia chamou Brandon para ser repreendido esta manhã, e a conclusão foi que o Ministério do Interior abriu um inquérito para investigar o vazamento. Penny, você precisa tirar o meu da reta — disse Kevin desesperadamente.
Penny acendeu um cigarro sem pressa.
— Você está me ouvindo?
— É claro que estou, querido — disse Penny, automaticamente com voz suave, sua mente já planejando o artigo do dia seguinte. — Só não entendo por que você está ficando tão agitado. Você sabe que um bom jornalista nunca revela suas fontes. Qual é o problema? Você acha que não sou boa o bastante como jornalista?
Penny se esforçava para ouvir a resposta de Kevin em vez da voz em sua cabeça que recitava manchetes.
— Não é que não confie em você — falou impacientemente. — Estou preocupado com o pessoal do trabalho. Todo mundo vai estar desesperado para que as suspeitas não recaiam sobre si, então qualquer um que saiba sobre nós vai ficar bem ansioso para contar para o Ministério do Interior. E, quando souberem que nós, bem, você sabe. Vai ser o fim. Vou estar acabado.
— Mas ninguém sabe sobre nós. Garanto que, por mim, ninguém sabe — respondeu Penny calmamente.
— Achei que ninguém soubesse também, mas Carol Jordan disse uma coisa que me fez achar que ela sabe.
— E você acha que Carol vai dedurar você para o Ministério do Interior? — interrogou Penny, não conseguindo esconder a incredulidade que sentia. Ela não tivera muitas interações com a policial mais glamorosa do Departamento de Investigações Criminais, mas o que sabia da inspetora não a inclinava a imaginá-la no papel de alcaguete.
— Você não a conhece. Ela é absolutamente implacável. Ela quer ir até o fim, essa moça, e ela me entregaria assim que pensasse que isso a faria subir mais um degrau na carreira.
Penny balançou a cabeça, exasperada.
— Você está exagerando. Mesmo que Carol Jordan tenha misteriosamente descoberto que estamos saindo, tenho certeza de que está ocupada demais se cobrindo de glória por sua ligação com o dr. Hill para se preocupar em entregar você. Além disso, se a gente pensar racionalmente, ela não tem nada a ganhar ficando com a reputação de dedo-duro entre os colegas.
Kevin meneou a cabeça, em dúvida.
— Eu não sei, Penny, você não faz ideia de como é neste trabalho. Estamos todos trabalhando dezoito horas por dia, e não estamos chegando a lugar algum.
Penny alisou a parte interna da coxa dele.
— Querido, você está sob muita pressão. Veja bem, vou lhe propor uma coisa. Se tudo isso vier à tona e alguém dedurar você, o Ministério do Interior certamente vai vir até nós cobrando explicações. Eles vão procurar que corroboremos. Se isso acontecer, vou fazer parecer que Carol Jordan é minha fonte, tudo bem? Isso deve embaralhar as coisas.
O sorriso de Kevin valia a conversa fiada, concluiu ela. Isso e uma ou duas outras coisas nele. Tranquilizado, ele se levantou de um salto.
— Obrigado, Pen. Ouça, preciso ir a um lugar. Ligo para você em breve para que a gente possa se encontrar, tudo bem?
Ele se inclinou e lhe presenteou com um beijo intenso.
— Mantenha-me informado, gostosão — falou Penny baixinho a Kevin, que já se retirava de costas para ela. Antes mesmo que ele chegasse à porta, o artigo dela já começava a se formar. Ah, sim, ela conseguia vê-lo agora.
A polícia de Bradfield está dedicando novos contingentes à caçada do serial killer que fez quatro vítimas e pôs os homens em risco como nunca antes.
No entanto, os policiais extras não irão integrar a busca pelo monstruoso Assassino de Bonecas. Seu trabalho será policiar a própria polícia.
O comando da força está tão alarmado pela precisão das matérias do Sentinel Times sobre os assassinatos que montou uma caçada em grande escala ao informante para descobrir a fonte de nossas matérias. Em vez de pegar o assassino, o objetivo é rastrear os colegas policiais que concordam com a visão de que o público aterrorizado tem direito de saber o que está acontecendo.
Carol abriu a porta que dava para a antessala e disse:
— Terminei. Podemos conversar?
Tony ergueu os olhos de sua posição na tela do computador de modo distraído, levantou um dedo e disse:
— Sim, claro, um minuto apenas. — E terminou o que estava fazendo.
Carol se retirou e respirou fundo. Por mais profissional que tentasse ser, ela não conseguia evitar a onda de atração que sentia por aquele homem. Ignorá-la era uma tarefa mais na teoria do que na prática. Momentos depois, Tony se juntou a ela. Ele se sentou na borda da mesa, com os cabelos em pé como o Pestinha do desenho Pestinha & Feroz, porque ficava passando os dedos por eles enquanto se concentrava.
— Então, qual é o veredicto?
— Estou impressionada — disse ela. — Realmente reúne todos os dados. Há uma ou duas questões, no entanto.
— Só uma ou duas? — perguntou Tony, com a voz próxima a uma risada.
— Você fala muito sobre como ele deve ser forte para superar suas vítimas e movê-las por aí. Além disso, especula sobre como chega até elas numa posição vulnerável a princípio. Estava me perguntando se talvez pudessem ser dois.
— Continue — incentivou Tony, nenhum sinal de frieza em sua voz.
— Não quis dizer dois homens. Digo um homem e outra pessoa que pareça vulnerável. Talvez um adolescente ou, mais provavelmente, uma mulher. Não sei, talvez mesmo uma pessoa numa cadeira de rodas. Enfim, um parceiro no crime.
Carol mexia nos papéis, pondo-os de volta em ordem. Tony não disse nada. Depois de alguns momentos observando seu rosto sem expressão, ela acrescentou:
— Sei que você provavelmente já pensou nisso, só estava imaginando se era uma possibilidade que deveríamos ainda ter em mente.
— Desculpe, não quis parecer que estava ignorando você — respondeu Tony, às pressas. — Estava analisando a ideia, pesando-a com o que sabemos e o perfil. Uma das primeiras coisas que considerei foi se era ou não alguém sozinho. Tendo em conta as vastas probabilidades, concluí que era. Casos como o dos Assassinos da Charneca, onde há duas pessoas agindo em conjunto para realizar atrocidades são incrivelmente raros, para início de conversa. Além disso, eu esperaria encontrar mais variações na metodologia e na patologia se houvesse duas pessoas envolvidas; é difícil acreditar que suas fantasias coincidiriam tão exatamente. Mas é interessante que você tenha levantado isso. Está certa quanto a um aspecto. Se ele estiver trabalhando com uma mulher, isso explica como se aproxima de suas vítimas sem que elas ofereçam resistência.
Tony se sentou olhando fixamente para a frente, as sobrancelhas abaixadas enquanto pensava.
Carol ficou imóvel em seu assento. Por fim, Tony se virou para olhá-la e disse:
— Vou continuar com a teoria do criminoso que trabalha sozinho. Sua ideia é interessante, mas não consigo ver indícios que me convençam de que eu deva alterar a situação mais provável.
— Certo, entendido — disse Carol calmamente. — Prosseguindo desse ponto, você já considerou a possibilidade de um travesti? Como você disse, uma mulher podia chegar perto sem que eles oferecessem resistência. E se a mulher fosse um homem travestido? Isso não teria o mesmo efeito?
Tony pareceu assustado por um momento.
— Talvez você devesse pensar em se candidatar à força-tarefa quando ela estiver montada — tergiversou ele.
Carol sorriu.
— Me bajular não vai levar você a lugar algum.
— Falo sério. Acho que você tem o que é preciso para esse tipo de trabalho. Viu, não sou infalível. Eu não tinha considerado realmente um travesti. Pois bem, por que ignorei essa possibilidade? — refletiu ele, pensando em voz alta. — Deve haver alguma razão inconsciente para eu rejeitar a ideia antes mesmo que ela chegue à parte consciente da mente... — Carol abriu a boca para falar, mas ele disse: — Não, espere, por favor, deixe-me descobrir isso.
As mãos dele correram por seus cabelos de novo, ajeitando os fios escuros espetados.
Ela se rendeu, dizendo a si mesma que ele era tão arrogante quanto o resto, incapaz de aceitar que podia ter apenas deixado escapar algo. Pare de se enganar que ele é diferente, disse enfática para si mesma.
— Certo — disse Tony, sua voz cheia de satisfação. — Estamos lidando com um sadista sexual, concorda?
— Sim.
— Sadomasoquismo é a ilusão de poder dos fetiches sexuais. Mas travestismo é o completo oposto disso. Travestis querem assumir o papel supostamente mais fraco que as mulheres têm na sociedade. A base do travestismo é a crença de que as mulheres têm um poder sutil, o poder de seu gênero. Ele não poderia ser mais distante da transação bruta de dor e poder que os sadomasoquistas almejam. Isso não faz parte de modo algum das fantasias dos travestis. Para convencer as vítimas de que elas estavam lidando com uma mulher e não com um homem vestido de mulher, o assassino teria que ser um transformista talentoso. No entanto, ele também teria de ser um sádico sexual, o que seria algo único na minha experiência de psicologia clínica. Os dois simplesmente não ocorrem juntos — explicou Tony com um ar definitivo. — O mesmo se aplica a um transexual. Provavelmente ainda mais, na verdade, por causa da orientação psicológica pela qual eles têm de passar antes de serem aceitos para tratamento.
— Então, você está desconsiderando — concluiu Carol, sentindo-se arrasada de um modo irracional.
— Nunca desconsidero nada. Isso é pedir para fazer papel de bobo neste jogo. O que acho é que é tão improvável que não estaria disposto a incluir num perfil, porque a mera inclusão poderia levar as pessoas a seguirem a direção errada. Mas, com certeza, mantenha isso em mente. Você está pensando do modo certo. — Ele sorriu inesperadamente, eliminando a pontada de condescendência de suas palavras. — Como eu disse no início, Carol, juntos podemos decifrar isso.
— E você está absolutamente convencido de que não é uma mulher? — perguntou ela.
— O lado psicológico está todo errado. Levando em conta o ponto mais óbvio, o assassino é um obsessivo, e isso tende a ser um traço masculino. Quantas mulheres você conhece que andam em plataformas de estações na chuva em anoraques escrevendo números de trem?
— Mas e quanto àquela síndrome, como se chama, em que as pessoas ficam obcecadas por outras a ponto de transformar suas vidas numa agonia? Achava que eram principalmente mulheres que sofriam disso.
— Síndrome de Clérambault — disse Tony. — E, sim, são principalmente as mulheres que sofrem dela. Mas elas apenas se concentram numa pessoa, e a única pessoa que é capaz de morrer como resultado é o doente, que às vezes comete suicídio. A questão é que as obsessões e compulsões das mulheres são diferentes das dos homens. As obsessões dos homens dizem respeito ao controle; eles colecionam selos e os catalogam, eles colecionam calcinhas de todas as mulheres com quem dormiram. Eles precisam de troféus. As obsessões das mulheres dizem respeito à submissão; nos transtornos alimentares, é a obsessão que as domina e controla, e não o contrário. Uma mulher que sofra da Síndrome de Clérambault e tenha se casado com o objeto de seu desejo seria provavelmente o ideal machista da esposa perfeita. Esse padrão não se encaixa no nosso assassino.
— Entendo o que quer dizer. — Carol estava relutante em desistir da única ideia nova com que tinha contribuído para o processo de criação de perfil.
— Acrescente a isso a pura força física envolvida aqui — continuou Tony, notando sua relutância. — Você está em forma. É provavelmente bem forte para sua altura. Sou só alguns centímetros mais alto. Mas por qual distância acha que conseguiria me carregar? Quanto tempo você levaria para pegar meu corpo do porta-malas do carro e jogá-lo por sobre um muro? Você conseguiria me colocar sobre seu ombro e me carregar pela Carlton Park até a moita? Agora se lembre que todas as vítimas eram mais altas e mais pesadas que eu.
Carol deu um sorriso triste.
— Tudo bem, você venceu. Estou convencida. Houve outra coisa que me ocorreu.
— Diga.
— Lendo o seu perfil, minha impressão é de que a razão que você propõe para a manutenção dos intervalos entre os homicídios simplesmente não é forte o bastante — começou ela, hesitante.
— Você notou isso também — disse ele ironicamente. — Também não me convenceu. Mas não consegui pensar em nenhuma outra coisa que explicasse. Nunca encontrei nada parecido, nem na literatura. Todos os criminosos em série que conheço passam por um aumento progressivo.
— Tenho uma teoria que pode dar conta do problema — disse Carol.
Tony se inclinou para a frente, com uma expressão de profundo interesse.
— Diga, Carol — disse ele.
Sentindo-se como um dourado num aquário, Carol respirou fundo. Ela queria a atenção dele, mas não estava bem certa de que gostava agora que a tinha.
— Lembro do que você me disse há alguns dias sobre os intervalos. — Ela fechou os olhos e recitou: — “Com a maioria dos serial killers, o intervalo entre os assassinatos tende a diminuir bem drasticamente. É a fantasia deles que dispara os assassinatos para começar, e a realidade nunca se compara exatamente com a fantasia, não importa o quanto eles refinem seus procedimentos de assassinato. Mas quanto mais ao extremo eles chegam, mais embotadas ficam suas sensibilidades e mais estímulos eles precisam para conseguir a exaltação sexual que o assassinato fornece. Por isso, os assassinatos precisam se tornar mais frequentes. Shakespeare já dizia: ‘Como se o aumento do apetite tivesse sido causado por aquilo que o alimentara.’” Estou certa?
— Impressionante — suspirou Tony. — Você consegue fazer isso com itens visuais também ou só os auditivos?
Exasperada, Carol ergueu os olhos.
— Auditivos apenas, lamento. De qualquer forma, quando li a parte no perfil onde você sugere que ele pode trabalhar com computadores, tive um estalo. A pergunta que você não colocou, mas que está obviamente perturbando você, é: por que ele não está ficando dessensibilizado para os vídeos mais rapidamente à medida que o tempo passa?
Tony fez que sim. O ponto que ela levantava era poderoso e precisamente o que o perturbava. Ele pesquisou para encontrar uma resposta que satisfizesse a ambos. Buscando a solução enquanto prosseguia, ele disse:
— Suponha, para considerar todas as hipóteses, que o primeiro vídeo tenha o potencial para mantê-lo estável por doze semanas. Mas ele já tem organizado o processo de capturar sua segunda vítima, e o momento oportuno surge antes que ele esteja realmente compelido a matar de novo. Ele simplesmente não resiste à oportunidade quando ela se apresenta de modo tão perfeito. Depois disso, ele percebe que deixou oito semanas entre os assassinatos e decide que oito semanas será o seu padrão. Até o momento, os vídeos o permitiram manter isso. Talvez isso vá mudar agora.
Carol balançou a cabeça.
— É plausível, mas não estou convencida.
Tony sorriu.
— Graças a Deus. Também não estou. Tem de haver uma explicação melhor, mas não sei qual é.
— O quanto sabe sobre computadores? — perguntou ela.
— Sei onde fica o botão de ligar e desligar e como usar o software que preciso para trabalhar. Fora isso, sou um idiota.
— Bem, então somos dois. Meu irmão, porém, é um jovem gênio dos computadores. Ele é sócio numa empresa de software de jogos. A coisa com que ele trabalha é de última geração. Agora mesmo, ele e o sócio estão desenvolvendo um sistema de baixo custo que permitirá que os usuários ponham imagens de si mesmos nos jogos que estão usando. Em outras palavras, em vez de ser um Arnold Schwarzenegger metendo porrada nos vilões na tela em O exterminador do futuro 2, poderia ser Tony Hill. Ou Carol Jordan. A questão é: já existem hardwares e softwares que permitem a digitalização de fitas de vídeo e a importação de imagens para o computador. Acho que chamam isso de imagens digitalizadas. De qualquer forma, depois que tiver isso no computador, você poderá manipulá-lo exatamente como deseja. Pode incorporar instantâneos ou trechos de outros vídeos. Pode sobrepor as coisas. Quando eles compraram o hardware original há seis meses, Michael me mostrou uma sequência que tinha feito de si mesmo. Ele gravou em fita parte da conferência do Partido Conservador e também importou um guia de sexo em vídeo. Depois, selecionou todos esses rostos de ministros do governo enquanto faziam seus discursos e os sobrepôs no vídeo de sexo. — Com a lembrança, Carol bufou numa risada. — Era um pouco tremido, mas, acredite em mim, você nunca deve ter visto John Major e Margaret Thatcher se dando tão bem! Redefiniu todo o sentido da palavra “burocratês”!
Tony fitou Carol num silêncio aturdido.
— Você está de brincadeira comigo — disse ele.
— É a explicação perfeita de por que os vídeos conseguem mantê-lo sob controle.
— Isso não significaria que ele teria de ser um verdadeiro nerd, como o seu irmão?
— Acho que não — respondeu Carol. — Pelo que entendi, as técnicas reais envolvidas são muito simples. Mas o software e os periféricos necessários para fazer isso são incrivelmente caros. Podíamos estar falando em duas ou três mil libras só por um dos produtos. Então, ou ele trabalha para uma empresa onde tem esse tipo de equipamento disponível para uso e possui privacidade para realizar esses trabalhos, ou então ele é um viciado em computadores com muito dinheiro disponível.
— Ou um ladrão — acrescentou Tony, meio de brincadeira.
— Ou um ladrão — concordou Carol.
— Não sei — disse Tony em dúvida. — Responde ao problema, mas é totalmente bizarro.
— E o Faz-tudo não é? — contestou Carol de modo agressivo.
— Ah, ele é bizarro, é verdade, mas não tenho certeza de que é tão equilibrado assim.
— Ele constrói máquinas de tortura. Isso seria muito mais fácil com um programa de computador de design, Tony. Algo o está mantendo estável em seu ciclo de oito semanas. Por que não isso?
— É uma possibilidade, Carol, não mais que isso nesse estágio. Olhe, por que você não faz algumas investigações preliminares para ver o quanto isso seria plausível na prática?
— Você não quer incluir isso no perfil? — perguntou Carol, amargamente decepcionada.
— Não quero prejudicar as coisas que sinto que são muito prováveis incluindo algo que é realmente apenas uma proposta experimental por enquanto. Você mesma admitiu que essa ideia foi fruto de uma das poucas partes do perfil que não passam de especulação. Não me entenda mal, não estou querendo arranjar defeitos. Acho que sua teoria é brilhante. Mas teremos de trabalhar muito duro para que ela supere a resistência de certos grupos ao perfil como um todo. Mesmo pessoas que estão apoiando abertamente o desenvolvimento desse perfil não concordarão necessariamente com partes dele. Então não vamos lhes dar nenhum alvo fácil. Vamos fundamentar o perfil, apresentá-lo embalado para presente, de modo que os críticos não possam arruinar tudo de cara. Certo?
— Certo — concordou ela, sabendo em seu coração que ele tinha razão. Carol pegou uma folha de papel e uma caneta. — Verificar fabricantes de software e consultorias na área de Bradfield — murmurou para si mesma enquanto escrevia. — Checar com Michael os fabricantes do hardware/software necessário, depois apurar os registros de venda. Verificar roubos recentes.
— Grupos de usuários — acrescentou Tony.
— Sim, obrigada — disse Carol, adicionando o item à sua lista. — E fóruns de discussão. Ah, eu vou ser muito popular com a equipe do HOLMES.
Ela se levantou.
— Vai ser um longo trabalho. É melhor eu pôr a mão na massa. Vou levar isso para Scargill Street agora e entregá-lo ao sr. Brandon. Vamos precisar que você venha e explique tudo.
— Sem problema — disse Tony.
— Estou feliz que algo não seja.
Tony olhou para fora da janela do bonde, observando as luzes da cidade passarem numa névoa chuvosa. Havia certa aparência de casulo no interior branco brilhante do bonde. Sem pichação, aquecido, limpo; parecia um lugar seguro para estar. Quando o condutor se aproximou do semáforo, ele emitiu o toque soprado. Soava como um ruído da infância, o tipo de apito que um trem de desenho animado produziria, concluiu.
Ele se virou da janela e estudou secretamente a meia dúzia de outros passageiros no bonde. Qualquer coisa que tirasse sua mente do estranho vazio que sentia agora que tinha entregado seu perfil. Não significava que esse era o fim do envolvimento com o caso. Brandon contara a Carol que ele teria uma reunião diária com ela.
Tony se arrependia de não ter sido mais encorajador quanto à teoria sobre os computadores, mas anos de treinamento e prática haviam deixado arraigado o hábito da cautela. A ideia em si era brilhante. Depois que ela tivesse feito alguma pesquisa sobre o lado prático do que estava sugerindo, ele ficaria muito satisfeito em endossá-la com seus colegas. Mas, para garantir a credibilidade do perfil, ele precisava manter à distância ideias que um policial mediano descartaria como ficção científica.
Ele se perguntava como a polícia estava se saindo naquela noite. Carol tinha ligado para ele para dizer que as equipes estavam nas ruas em Temple Fields, procurando entre os frequentadores habituais da área, tentando ver se as sugestões de perfil geravam alguma identificação de suspeito. Com sorte, talvez obtivessem alguns nomes com os quais fariam referência cruzada nos dados disponíveis no HOLMES, seja por antecedentes criminais ou placas de automóveis cujos proprietários registrados foram inseridos no sistema.
— Próxima parada estação Bank Vale, estação Bank Vale próxima parada — anunciava a voz eletrônica nos alto-falantes. Com um sobressalto, Tony percebeu que tinha deixado o centro da cidade muito para trás e estava chegando ao outro lado do Carlton Park, menos de um quilômetro e meio de sua casa. A estação Bank Vale chegou e foi embora, e Tony se virou em seu banco, pronto para se dirigir à saída quando a próxima parada fosse anunciada.
Ele caminhou rapidamente pelas ruas organizadas do subúrbio, passou pelos campos esportivos da escola, circundando o pequeno bosque denso que era tudo que restava da fazenda que tinha dado nome à região de Woodside. Tony olhou para as árvores enquanto passava apressadamente por elas, pensando ironicamente que o caminho que cortava em diagonal pelo bosque quase com certeza estaria completamente deserto. Primeiro foram as mulheres que voltavam para casa sozinhas que o abandonaram. Depois, foram as crianças, que os pais preocupados mantinham distantes do lugar. Agora, em Bradfield, eram os homens que estavam aprendendo as lições amargas da vida em risco.
Tony entrou em sua rua, desfrutando a quietude do beco sem-saída. Ele atravessaria aquela noite de alguma forma. Talvez fosse ao supermercado comprar os ingredientes para um biryani de frango. Talvez alugasse um filme ou atualizasse sua leitura.
Enquanto virava a chave na fechadura, o telefone começou a tocar. Deixando cair sua pasta, Tony correu para o telefone, chutando a porta atrás de si. Ele pegou o aparelho, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, a voz dela pingou em seu ouvido como azeite de oliva quente que alivia uma dor de ouvido.
— Anthony, querido, você parece ofegante por mim.
Ele conseguiu evitar pensar nisso por todo o caminho para casa, mas sabia que vinha esperando por aquilo.
Brandon tinha desligado a luminária ao lado da cama a menos de um minuto quando o telefone tocou.
— Você bem devia saber — murmurou Maggie, enquanto ele se arrastava do calor solícito dela e se esticava para pegar o aparelho.
— Brandon — rosnou ele, identificando-se.
— Senhor, aqui é o inspetor Matthews — disse a voz cansada. — Acabamos de pegar Stevie McConnell. Os rapazes o prenderam no porto de balsas em Seaford. Ele estava prestes a embarcar para Roterdã.
Brandon levantou o corpo e se sentou sobre o edredom embaralhado, ignorando os protestos de Maggie.
— O que eles fizeram?
— Bem, senhor, eles não acharam que havia muito que pudessem fazer, uma vez que ele está solto sob fiança e não há condições que possa violar.
— Ele está detido? — Brandon estava fora da cama e abria a gaveta de roupa íntima.
— Sim, senhor. Eles estão com ele na sala da alfândega.
— Sob que alegação?
— Agredir um policial.
A voz de Kevin de alguma forma convocava a imagem de um sorriso tão incorpóreo quanto o do gato de Alice no país das maravilhas.
— Eles me ligaram para perguntar o que deviam fazer em seguida, e, uma vez que o senhor tomou um grande interesse pessoal no caso, achei que devia perguntar ao senhor primeiro.
Não force a barra, pensou Brandon furioso. Tudo que disse, porém, foi:
— Eu teria achado que era bem óbvio. Prenda-o por atrapalhar uma investigação criminal e traga-o de volta para Bradfield.
Ele lutou para entrar numa cueca samba-canção e se inclinou para pegar as calças nas costas de uma cadeira.
— Pedimos então aos juízes leigos para recusarem a liberdade em fiança dessa vez? — A voz de Kevin era tão doce que estava prestes a lhe custar os dentes, e não por nenhuma cárie.
— Isso é o que normalmente faríamos se tivéssemos fundamentos para isso, inspetor. Obrigado por me manter informado.
— Mais uma coisa, senhor — disse Kevin, de modo servil.
— O quê? — rosnou Brandon.
— Os oficiais também precisaram fazer outra prisão.
— Outra prisão? Quem diabos mais eles tiveram de prender?
— O superintendente Cross, senhor. Ao que parece, ele estava tentando impedir à força que McConnell embarcasse.
Brandon fechou os olhos e contou até dez.
— McConnell foi ferido?
— Aparentemente não, senhor. Ele só ficou um pouco agitado. O superintendente ficou com um olho roxo, no entanto.
— Ótimo. Diga para deixarem Cross ir para casa. E peça a ele que me ligue amanhã, tudo bem, inspetor?
Brandon recolocou o telefone no gancho e se inclinou para beijar a esposa, que recuperara o edredom e estava bem enrolada como um arganaz hibernando.
— Hum — murmurou Maggie. — Tem certeza de que precisa ir?
— Não é minha definição de diversão, acredite em mim, mas quero estar presente quando eles trouxerem esse preso. Ele é o tipo de cara que pode cair da escada.
— Um problema com o equilíbrio dele?
Brandon sacudiu a cabeça com gravidade.
— Não o dele. Outras pessoas às vezes ficam um pouco desequilibradas, amor. Já tivemos um rebelde à espreita esta noite. Não vou arriscar mais. Vejo você quando puder.
Quinze minutos mais tarde, Brandon entrava na sala da delegacia de homicídios. Kevin Matthews estava debruçado sobre uma escrivaninha do outro lado da sala, segurando a cabeça nas mãos. Ao se aproximar, Brandon ouviu o ronco baixo da respiração de Kevin. Ele se perguntou quando alguém da delegacia teria tido sua última noite inteira de sono. Os erros graves eram resultado do cansaço e da tensão dos policiais. Brandon queria evitar desesperadamente que seu nome ficasse na berlinda dali a dez anos como o daquele homem que arquitetou um formidável erro judicial, e ele faria qualquer coisa para evitar isso. Havia apenas um problema nisso, reconheceu ironicamente para si mesmo enquanto se sentava de frente para Kevin. A fim de ter as rédeas da investigação, ele precisava trabalhar pelo mesmo número ridículo de horas que levava aos próprios erros de julgamento que queria evitar. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ele havia lido um livro com um dilema assim, fazia alguns anos, quando Maggie decidiu fazer aulas noturnas e fazer os exames de nível médio que não tinha concluído. Ela dissera que Ardil 22 era um livro maravilhoso, engraçado, brutal, de profunda sátira. Ele o achara quase excessivamente penoso. O livro lhe lembrava demais o trabalho. Especialmente em noites como a de hoje em que homens antes equilibrados se tornavam bandoleiros.
O telefone tocou. Kevin se mexeu, mas não acordou. Com uma expressão compreensiva, Brandon se esticou e apanhou o aparelho.
— Departamento de Investigações Criminais. Brandon falando.
Houve um confuso silêncio momentâneo. Em seguida, uma voz tensa disse:
— Senhor? Sargento Merrick na linha. Senhor, encontramos mais um corpo.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 014
Levar Gareth para o Carlton Park foi mais difícil do que eu previra. Eu havia feito o reconhecimento do lugar com cuidado e pensara que poderia dirigir até a estrada de acesso usada pelos jardineiros. O que eu não tinha levado em conta era a longa folga do Natal. A estrada estava bloqueada por duas colunas de metal encaixadas no asfalto e presas no lugar com cadeados pesados. Provavelmente eu conseguiria passar pela beirada da pista já que o 4x4 não teria problema em aplainar os pequenos arbustos que ladeavam a estrada. Mas eu deixaria inevitavelmente rastros de pneu e provavelmente minúsculos vestígios de tinta. Não tinha intenção de permitir que Gareth me privasse de minha liberdade, então essa não era uma opção para mim.
Estacionei o 4x4 atrás do galpão de depósito onde os funcionários do parque deixavam seus equipamentos. Pelo menos lá eu estava fora da vista tanto da estrada quanto do parque. Não haveria muitas pessoas por ali às duas horas na madrugada do dia seguinte ao Natal, mas o sucesso depende de esforço.
Saí do 4x4 e sondei em volta. O galpão estava fora de questão; ele tinha um alarme contra invasores. Mas os deuses estavam sorrindo para mim. Em volta da lateral do galpão, havia um pequeno carrinho de madeira do tipo que os carregadores de bagagem costumavam usar para percorrer as plataformas das estações na época em que os ferroviários não pensavam que mover bagagem fosse algo abaixo deles. Os jardineiros provavelmente o usavam para transportar plantas pelo parque. Empurrei-o de volta até o 4x4 e joguei o corpo nu de Gareth nele. Enfiei alguns sacos plásticos pretos de lixo em volta do cadáver, aplicando nos eixos um rápido borrifo de óleo lubrificante para consertar um rangido desagradável, e depois me encaminhei furtivamente para a moita.
Novamente, tive sorte. Não vi ninguém. Guiava o carrinho em volta até os fundos do coreto, próximo aos arbustos que encobriam a inclinação acentuada que havia atrás. No fim do caminho, empurrei-o na borda da grama e para dentro dos arbustos. Depois, com a preocupação de não deixar pegadas no chão mole, trepei no carrinho e rolei o corpo de Gareth para fora, entrando nos arbustos. Recuei e puxei o carrinho atrás de mim. Os arbustos pareciam um pouco maltratados, mas não havia sinal de Gareth. Com sorte, ele permaneceria sem ser descoberto até que o carteiro entregasse minha mensagem de Natal para o jornal.
Dez minutos mais tarde, o carrinho estava de volta no lugar e eu estava investigando furtivamente a saída do parque em uma alameda tranquila em frente ao adro. Muito embora as chances de que me identificassem fossem pequenas, aguardei até que a estrada principal estivesse visível antes de acender meus faróis. Ao contrário de Temple Fields, essa era exatamente o tipo de área onde algum insone intrometido notaria um veículo estranho na madrugada.
Dirigi para casa e dormi durante doze horas, acordando em tempo para algumas horinhas interessantes no meu computador antes de sair para trabalhar. Por sorte, foi uma noite agitada, por isso tive muitos problemas para tirar minha mente da ansiedade com o Sentinel Times do dia seguinte.
Eles me fizeram sentir orgulho, apesar do curto tempo que tiveram para lidar com minha mensagem. Obviamente, entraram em contato com a polícia de imediato e conseguiram convencê-la a levá-los a sério. Deram-me a primeira página completa com uma fotografia da minha mensagem, embora sem nada que identificasse a origem do cartão.
ASSASSINO ALERTA BEST!
A vítima nua e mutilada de um assassino doentio foi encontrada num parque da cidade após uma mensagem bizarra enviada ao Sentinel Times.
O assassino, que assina como “Papai Noel”, revela num terrível cartão de Natal que havia descartado o cadáver no Carlton Park.
O comunicado mórbido parecia ter sido escrito com sangue e estava rabiscado no cartão de Natal empresarial de uma das principais firmas de advocacia da cidade.
Veio acompanhado por um vídeo caseiro do local do corpo, que a equipe do BEST imediatamente reconheceu pelo característico coreto em Park Hill.
Alertado pelos nossos repórteres, um policial enviou um pelotão de policiais uniformizados e à paisana para a área mencionada do parque.
Depois de uma rápida busca entre os arbustos nas proximidades da trilha e do coreto, conforme indicado no vídeo, um policial uniformizado encontrou o cadáver de um homem.
De acordo com as fontes da polícia, o corpo estava nu. A garganta do homem tinha sido cortada e seu corpo estava mutilado.
Acredita-se que ele pode ter sido torturado antes de morrer.
Embora essa área de Carlton Park seja conhecida como um local de encontros casuais de homossexuais ávidos por sexo, a polícia não está no momento conectando esse crime ao assassinato de dois jovens, ocorrido anteriormente neste ano, cujos corpos foram descartados no “bairro gay” de Temple Fields.
O corpo ainda não foi identificado, e a polícia não divulgou uma descrição da vítima, que se acredita estava no final de seus vinte anos ou no início dos trinta.
O pacote, que foi postado na véspera do Natal em Bradfield, chegou aos escritórios do Sentinel Times no correio desta manhã, endereçado ao editor de notícias, Matt Smethwick.
O sr. Smethwick disse: “Meu primeiro pensamento foi que alguém estava fazendo uma brincadeira de mau gosto, principalmente porque conheço um dos advogados na referida firma.
“Depois percebi que meu amigo estava fora do país, de férias, esquiando, então não poderia ter sido ele quem postou o pacote.
“Telefonei para a polícia imediatamente e, por sorte, eles levaram a sério.”
Era de se supor. Nunca na vida falei tão sério. Apesar do que a polícia estava dizendo, o pensamento de que Gareth era o terceiro de uma série devia passar por suas mentes numa curta viagem. Certamente isso não escapou à atenção dos jornalistas, que usaram a mais recente descoberta como uma desculpa para repetir as matérias sobre os assassinatos de Adam e Paul. Quando a edição final da cidade chegou às ruas, eles tinham até encontrado um acadêmico de aluguel para tagarelar.
DENTRO DA MENTE DE UM ASSASSINO
O homem que o Ministério do Interior escolheu para liderar a caçada a serial killers falou hoje sobre o último assassinato que aterrorizou a comunidade gay da cidade.
Há um ano, o psicólogo forense Tony Hill realiza um amplo estudo, com financiamento do governo, que levará à criação de uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais similar à unidade do FBI que figurou no filme
O silêncio dos inocentes.
Dr. Hill, de trinta e quatro anos, foi psicólogo clínico-chefe no Blamires Hospital, o sanatório de segurança máxima que abriga os criminosos insanos mais perigosos do Reino Unido, incluindo o assassino em massa David Harney e o serial killer Keith Pond, o Maníaco da Autoestrada.
Dando seu veredicto, o dr. Hill afirmou: “Não fui convocado pela polícia para oferecer consultoria em nenhum desses casos, então não sei mais que seus leitores sobre eles.
“Reluto em fazer julgamentos apressados, mas, se fosse obrigado, eu diria que é certamente possível, e talvez provável, que os assassinatos de Adam Scott e Paul Gibbs tenham sido cometidos pela mesma pessoa.
“Superficialmente, o assassinato mais recente foi parecido, mas há certas diferenças cruciais. Para começar, o corpo foi descoberto num tipo de local bem diferente. Muito embora Carlton Park também seja conhecido como uma área de público gay, sua atmosfera é bastante diversa do ambiente da Temple Fields urbana.
“Além disso, o envio da mensagem para o Sentinel Times é uma variação importante. Nada similar aconteceu nos casos anteriores, e o assassino não faz referência às outras mortes.
“Isso me inclina a pensar que podemos estar lidando com pelo menos dois indivíduos diferentes neste caso.”
E assim por diante, tudo na mesma toada. Tudo dizendo em néon: “Não temos a menor ideia de por onde começar a procurar.” Não achei que me preocupar com Tony Hill fosse me tirar o sono à noite. Decidi que era hora de ensinar às autoridades algumas lições que elas não iam esquecer tão cedo.
14
Um homem não está obrigado a pôr olhos, ouvidos e entendimento no bolso de suas calças quando se depara com um homicídio. Se ele não estiver em coma absoluto, presumo que deve perceber que um assassinato é melhor ou pior que outro, com relação ao bom gosto. Os assassinatos têm suas pequenas diferenças e matizes de mérito, da mesma forma que estátuas, pinturas, oratórios, camafeus, entalhes e quejandos.
Tony estava esparramado em sua banheira, com uma taça de conhaque à mão. Lânguido, relaxado, extremamente cansado, ele não conseguia se lembrar da última vez que se sentira confortável e otimista assim. Suas experiências ao telefone com Angelica, aliadas à sua convicção de que fizera um bom trabalho no perfil, haviam lhe conferido esperança nova. Talvez ele não precisasse ser incapaz. Talvez pudesse se juntar ao resto do mundo, aqueles que lidavam com os problemas, que assimilavam o passado e moldavam seu mundo de acordo com o que queriam ver.
— Posso mudar minha vida — declarou.
O telefone sem fio tocou. Num movimento lento e fluido, Tony se esticou para pegá-lo. Ele não guardava nenhum terror para ele agora. Estranhamente, ele não temia mais as ligações de Angelica, mas as recebia com alegria.
—Alô — atendeu com animação.
— Tony, é John Brandon. Estou mandando uma viatura buscá-lo. Temos mais um.
Tony se sentou, a água formando pequenas ondas para cima e para baixo como um experimento num laboratório marinho.
— Você tem certeza?
— Carol Jordan e Don Merrick chegaram à cena do crime cinco minutos depois da chamada.
Tony apertou os olhos com força.
— Ah, meu Deus — murmurou. — Onde está o corpo?
— Nos banheiros públicos da Clifton Street. Temple Fields.
Tony se levantou e saiu da banheira.
— Vejo você lá — disse ele, desanimado.
— Tudo bem, Tony. O carro deve chegar em cinco minutos aproximadamente.
— Estarei pronto.
Tony cortou a ligação e saiu do banheiro, enxugando-se com uma toalha enquanto andava. Sua cabeça estava agitada. Ele pôs jeans, camiseta, camisa, suéter e uma jaqueta de couro, adicionando um par extra de meias quando se lembrou do frio da noite. A campainha tocou no momento em que ele estava amarrando os cadarços das botas.
No carro da patrulha, a atmosfera de tensão impedia qualquer possibilidade de pensamento construtivo enquanto eles voavam pelas ruas noturnas, a luz azul piscando em rápida sucessão contra o laranja espectral dos postes de iluminação. Sua companhia, uma dupla de policiais de trânsito machões, mantinha uma pose taciturna de absoluto controle que não se prestava à conversa. Cantando pneus, eles entraram a toda a velocidade na Clifton Street, o motorista forçando os freios ABS ao ver as fitas da polícia que impediam o acesso à parte central da rua.
Ergueram a fita para Tony, que se encaminhou para o meio da rua onde um grupo de viaturas e uma ambulância estavam estacionados em ângulos aparentemente aleatórios. Quando se aproximou, ele conseguiu ver que a placa que indicava os banheiros públicos estava acesa, contrastando com a escuridão ameaçadora do prédio. Ao lado da ambulância, identificou a figura destacada de Don Merrick, inconfundível com sua cabeça enfaixada. Ignorado pelos policiais que circulavam, Tony forçou o caminho até Merrick, que estava profundamente envolvido numa conversa ao celular. Ele deu um aceno rápido para sinalizar que o tinha visto.
— Tudo bem, obrigado, desculpe incomodar. — encerrou, desligando o telefone.
— Sargento — disse Tony. — Estou procurando o sr. Brandon. Ou a inspetora Jordan.
Merrick acenou positivamente com a cabeça.
— Os dois estão lá dentro. Vai querer dar uma olhada também, imagino.
— Quem encontrou o corpo?
— Uma das prostitutas. Ela alega que todos os banheiros femininos estavam cheios e, por isso, ela entrou no compartimento para deficientes. Quanto a mim, aposto que ela estava com um cliente. Ele deu no pé ao primeiro sinal de encrenca.
Com o canto dos olhos, Tony viu Carol surgir do banheiro. Ela veio direto até eles.
— Obrigada por vir — disse ela enquanto Merrick se distanciava e continuava fazendo suas ligações.
— Se eu dissesse que não perderia por nada, alguém quase com certeza entenderia do modo errado — respondeu Tony com ironia. — O que faz você pensar que seja o Faz-tudo?
— A vítima está nua, e sua garganta foi cortada. Ele obviamente foi trazido aqui numa cadeira de rodas, mas foi lançado ao chão. E, sobre ele, havia a primeira página do Sentinel Times da noite passada — respondeu Carol, com a voz tensa e os olhos abatidos. — Nós o provocamos, não foi?
— Nós, não. O jornal pode ter provocado; nós, não — disse Tony gravemente. — Não esperava que ele reagisse rápido assim, no entanto.
Merrick se aproximou novamente e disse com animação:
— Parece que rastreamos a cadeira de rodas. Uma se escafedeu da recepção de uma maternidade mais cedo à noite. Com um pouco de sorte, alguém pode ter visto.
— Bom trabalho, Don — disse Carol. — Vamos dar uma olhada, então? — perguntou ela a Tony. Ele assentiu e a seguiu, enquanto a detetive forçava com os ombros a passagem até a entrada do banheiro pelos policiais que circulavam. Tony andou devagar até os lavatórios, fazendo um inventário mental enquanto olhava em volta, consciente do piso emborrachado preto com círculos salientes, do padrão aparentemente aleatório dos azulejos cinza e pretos na parede, do grafite ousado, do ar úmido do esgoto não tratado, do cheiro de desinfetante mal disfarçando o mijo. No lado de dentro, os banheiros se dividiam em dois: homens na esquerda, mulheres na direita. O banheiro para deficientes ficava à direita, logo ao lado da entrada do feminino. Brandon e Kevin Matthews estavam parados ao lado da porta, olhando para dentro pelo amplo vão. Tony andou até eles e se juntou ao mau humor e à silenciosa comunhão dos dois. Um fotógrafo estava na porta, com um dos lados do corpo para fora, registrando uma cena que mexeria profundamente com um júri, desde que os homens de Brandon conseguissem levar o Faz-tudo até eles. A cada poucos segundos, a luz branquíssima do flash gravava a cena nas retinas dos homens que observavam.
Tony fitou o corpo estendido no chão. Encontrava-se, como Carol tinha dito, nu, mas não estava limpo. Havia manchas de algum tipo de substância escura e oleosa nos joelhos, cotovelos e em um dos tornozelos. E também manchas de sangue no corpo. O corte na garganta era extenso, mas não profundo o suficiente para ter causado a morte, suspeitava Tony. O tanto que ele conseguia ver, os órgãos sexuais não tinham sido lesionados, mas o reto e o ânus do homem e a carne macia em volta tinham sido removidos barbaramente com cortes profundos feitos por uma lâmina afiada. Uma onda cálida de alívio o percorreu, forçando-o a reconhecer o que ele vinha se recusando a pensar. Como Carol, ele também tinha medo que, de alguma forma, suas atividades tivessem provocado o Faz-tudo a interromper seu ciclo e atacar novamente. Desde o telefonema de Brandon, esse horror pousava em seu ombro como uma ave de rapina malévola.
Tony se voltou para Brandon e disse sem emoção:
— Não foi ele. Trata-se de um imitador.
• • •
Das sombras na extremidade da Clifton Street, com o colarinho do casaco virado para cima, Tom Cross se juntou às pessoas morbidamente interessadas, que pareciam surgir de debaixo da própria calçada, e observavam a dança ritual de uma investigação de cena de crime. Seus lábios se contorceram num sorriso apertado, e ele se aprofundou nas sombras. Tirou sua agenda do bolso interno e arrancou uma página para fazer anotações. Sob a luz tênue do poste de iluminação, ele escreveu: “Caro Kevin, aposto um tostão contra um relógio de ouro que o Assassino de Bonecas não cometeu esse crime. Abraços, Tom.”
Seaford tinha sido motivo de embaraço e dor, mas Tom Cross não era um homem que permitia que a humilhação ficasse no caminho de seu objetivo. Ele dobrou a anotação em quatro e escreveu: “Detetive-inspetor Kevin Matthews. Pessoal”. Depois, forçou o caminho pela multidão até que identificou o olhar de um dos policiais atrás da fita.
— Você sabe quem eu sou, não sabe, rapaz? — interpelou Cross.
O policial fez que sim com hesitação, lançando um rápido olhar para cada um dos lados, verificando quem observava seu encontro com o atual leproso da força.
Cross apresentou o bilhete.
— Certifique-se de que o inspetor Matthews receba isso, por favor.
— Sim, senhor — respondeu o policial com esperteza, envolvendo o bilhete em seu punho enluvado e encontrando um momento para se perguntar quem teria a coragem de dar a Popeye Cross um olho roxo como aquele.
— Vou me lembrar de você quando estiver de volta à rotina — disse Cross por sobre o ombro enquanto forçava o caminho pelos espectadores.
Cross cortou o caminho por um beco até o Volvo, estacionado em frente à saída de incêndio de uma boate. O dia tinha sido longe de satisfatório, e a manhã não guardava promessas de melhora. Mas a real convicção na veracidade de sua mensagem a Kevin Matthews fez Tom Cross sentir que houvera algum sentido em suas atividades.
— A autópsia vai me respaldar — disse Tony, com teimosia. — Quem quer que tenha matado esse cara, não foi nosso serial killer.
Bob Stansfield fechou a cara.
— Não vejo como pode ter tanta certeza, só por causa de algumas manchas de óleo.
— Não é só porque o corpo não estava limpo.
Tony marcava os pontos com seus dedos.
— Ele está na faixa etária errada. Ele tem vinte anos, talvez nem isso. Longe de estar no armário, ele era bem conhecido no meio gay. Você o teria identificado às três da manhã.
Kevin Matthews fez que sim.
— Bem conhecido na Delegacia de Costumes. Chaz Collins. Um ex-garoto de programa que trabalhava num bar e gostava de sexo selvagem.
— Exato — disse Tony. — Além disso, não há uma marca em seu pênis ou testículos, ao passo que nosso assassino foi progressivamente mais violento com esses órgãos. Tudo que foi informado à imprensa até agora é que as vítimas foram mutiladas sexualmente. Não indicamos como ou onde. Esse assassino interpretou isso como uma justificativa para se livrar de toda a região anal. Suspeito que fez isso porque estuprou a vítima antes de matá-la e queria garantir que a perícia não encontraria resquícios do seu sêmen.
Tony pausou para organizar seus pensamentos e para servir-se de outra xícara de café do bule que a cantina enviara com o carrinho de café da manhã pedido por John Brandon para sua reunião matinal.
— A cadeira de rodas — disse Carol. — Ele assumiu um grande risco roubando-a da maternidade. Não acho que se ajuste ao comportamento cauteloso que o serial killer vinha demonstrando até agora.
— E ele não foi torturado — acrescentou Kevin, com a boca cheia de rolinho de linguiça e ovo. — Ou pelo menos não de um modo óbvio.
Ele tinha um bilhete em seu bolso que determinaria sua visão tanto quanto qualquer coisa dita dentro dessa sala. Popeye podia estar fora do emprego, mas Kevin apoiaria o instinto dele contra o de qualquer outra pessoa.
Mas Bob Stansfield não estava disposto a desistir.
— Tudo bem, e se ele estiver fazendo de modo diferente para nos fazer pensar que é um imitador? E se ele estiver deliberadamente tentando nos confundir? Afinal, não dá para ignorar o jornal posto ali. E o perfil do dr. Hill nos alertou que o estresse da cobertura do jornal poderia atrapalhar seu padrão.
Tony continuou montando cuidadosamente um rolo de bacon e ovos. Ele esguichou um círculo de molho marrom em volta da gema, fechou a tampa, pressionou para que a gema se rompesse, depois disse:
— Não há nada errado nisso como teoria. É perfeitamente plausível que ele tente matar apenas para exibir suas habilidades. Não seria planejado com tanta antecedência como os outros, por isso sua escolha de vítima poderia ser muito diferente. Mas o padrão básico seria o mesmo.
— Mas é o mesmo — insistiu Stansfield. — Cortaram a garganta do rapaz do mesmo jeito que a dos outros. E esse filho da mãe bagunçou ele de verdade. Como você pode dizer que ele não foi torturado olhando o estado da bunda dele?
— Se eu tivesse que dar um palpite, apostaria cem contra um que Chaz Collins não morreu por causa do corte na garganta. Aposto que ele foi estrangulado com as mãos e sua garganta foi cortada depois para fazer com que parecesse uma das vítimas do serial killer. Acho que o que aconteceu aqui foi que o sexo selvagem saiu um pouco do controle. Chaz estava lutando enquanto era sodomizado, e seu parceiro o agarrou em volta da garganta para fazê-lo se acalmar. No frenesi do orgasmo, ele deve ter apertado forte demais e encontrado um cadáver em suas mãos. Sua única chance de se safar disso era fazer parecer obra do serial killer e, por via das dúvidas, caso não entendamos a mensagem, ainda deixou o jornal da noite anterior sobre o cadáver.
— É certamente plausível — disse Brandon, limpando meticulosamente seus dedos engordurados num lenço de papel de um pacote que tirou do bolso.
— Acho que Tony tem razão — disse Carol decididamente. — Minha primeira reação foi que essa era a quinta vítima, mas quanto mais penso a respeito, mais acho que estava errada. Você sabe o que encerra o assunto para mim?
Quatro pares de olhos a fitaram, confusos. Ela se sentiu sob mais pressão do que no banco de testemunhas.
— Ontem à noite não era segunda-feira.
Tony sorriu. Stansfield virou os olhos para cima. Kevin assentiu com relutância, e Brandon disse:
— Você acha que o dia da semana é importante a esse ponto para ele?
Carol fez que sim.
— Há obviamente algum motivo muito forte para ele escolher as segundas, seja porque é prático ou por alguma superstição. E seja o que for, significa muito para ele. Não acho que fosse violar isso só para mandar a gente se ferrar.
— Concordo com Carol — interveio Kevin. — Não só por causa do dia da semana. As outras coisas também.
Stansfield dava a impressão de estar surpreso.
— Bem, eu obviamente fui derrotado nessa votação — observou ele com bom humor. — Vai ser um caso diferente. Quem vai cuidar dele, então?
Brandon suspirou.
— Vou ter uma palavra com o superintendente-chefe Sharpies na central, jogar a responsabilidade para ele. Se não for um de nós, vai ser culpa do inspetor-chefe.
— Ele está doente e não veio trabalhar — lembrou Kevin de modo distraído.
— Sim, está. Bem, será passado para qualquer inspetor que tiver a má sorte de passar aqui pela manhã. No entanto, sei que os eventos da noite passada nos privaram da chance de dar ao perfil do dr. Hill a atenção que merecia, mas acho que devíamos... — Brandon foi interrompido por uma batida na porta.
— Entre — disse ele, tentando evitar que sua irritação transparecesse em sua voz.
O sargento uniformizado de plantão chegou com alguns envelopes.
— Estes acabaram de chegar, senhor. Um da perícia, outro do laboratório de patologia — informou, depositando-os na mesa em frente a Brandon.
Ele já tinha ido embora quando Brandon tirou um maço de folhas de cada.
Os outros esconderam sua impaciência enquanto Brandon passava os olhos nas descobertas preliminares do patologista.
— “Caro John” — leu em voz alta —, “sei que deve estar ansioso por algo sobre isso, já que, aparentemente, seu serial killer finalmente deixou alguns indícios forenses. A má notícia é que não acho que seja obra do mesmo criminoso. A vítima já estava morta por asfixia antes que a garganta fosse cortada. É provável que tenha sido estrangulado com as mãos. Além disso, não acho que ele foi cortado com a mesma lâmina que as outras quatro vítimas anteriores. Aparentemente, essa era uma lâmina mais grossa e mais comprida, mais parecida com uma faca de fatiar. Ao passo que, como você sabe, acredito que as anteriores foram feitas com algo mais parecido com uma faca para desossar. A hora da morte eu diria que foi entre oito e dez da noite passada. Vou lhe enviar um relatório completo assim que...” blá-blá-blá. Bem, parece que você tinha razão, Tony.
— Ainda bem que concordei em não discutir com você a tempo, senão eu ia ficar parecendo um bocó — disse Bob Stansfield, estendendo a mão para o psicólogo.
— Boa, doutor — disse Carol, sorrindo veladamente. Graças a Deus o resto da equipe finalmente estava começando a aceitar que Tony tinha algo que valia a pena para dizer. Era impressionante como a atmosfera se tornou diferente após a saída de Cross.
Kevin se mexeu desconfortavelmente na cadeira e disse:
— O que a perícia tem a dizer? Algo sobre nossos casos, ou são apenas coisas preliminares sobre Chaz Collins?
Brandon folheou os outros papéis.
— Preliminares... Preliminares... — Ele inspirou com força. — Céus — disse ele, com repugnância e perplexidade em sua voz.
— O que foi, senhor? — perguntou Carol.
Brandon esfregou uma das mãos em seu rosto comprido e olhou novamente para o papel, como se para verificar se não tinha se enganado.
— Eles vêm analisando as queimaduras no corpo de Damien Connolly. Tentando descobrir o que as causou.
Tony ficou imóvel, a última mordida de seu sanduíche a meio caminho da boca.
— Então qual é o veredicto? — interpelou Bob Stansfield, abruptamente.
— Isso é uma loucura completa — avisou Brandon. — A única explicação de que os peritos conseguiram se aproximar é a decoração para um bolo pronto.
— É claro — disse Tony de modo vago, um sorriso distante fazendo brilhar seus olhos. — Todos os formatos de estrelas diferentes. É óbvio, depois que alguém enxerga isso.
Ele ficou subitamente consciente de que os outros quatro estavam olhando para ele. Apenas Carol parecia preocupada. Nos outros rostos, ele viu expressões que tinha visto antes. Cautela, repugnância, nojo, incompreensão.
— Verdadeiro maluco — disse Stansfield amargamente. Ninguém tinha certeza se ele queria dizer o assassino ou Tony.
No dia em que Penny Burgess assumiu a editoria de crimes do Bradfield Evening Sentinel Times, ela resolveu que teria melhores contatos do que qualquer um dos seus antecessores homens tinha conseguido. Ela percebeu que os rituais masculinos da loja maçônica e da reunião social entre homens permaneceriam mundos fechados para ela, mas decidiu que nada importante aconteceria neles sem o seu conhecimento.
Não foi surpreendente, portanto, que seu telefone residencial tivesse tocado duas vezes entre seis e sete da manhã. As duas ligações eram de policiais, dando conta de que o homem que tinha sido interrogado anteriormente em relação aos Assassinatos de Bonecas tinha sido preso tentando deixar o país. O milagre foi contado sem dizer o nome do santo, mas o suspeito anônimo estaria de pé perante os juízes leigos naquela manhã para ser recolhido à prisão sob a acusação de tentar cometer obstrução de justiça. Em seguida à descoberta de um quinto corpo que havia deixado Penny de pé até mais de duas da manhã, a conexão era óbvia.
Penny sorriu com seus botões enquanto tomava sua segunda xícara de chá Earl Grey forte. Seria outra primeira página para ela naquela noite, desde que o editor e o advogado não perdessem a coragem. Ela deixou sua xícara e tigela de cereal na pia e pegou o casaco. De qualquer forma, seria um dia interessante.
• • •
Carol tinha sido escolhida para ir ao tribunal e garantir que tudo saísse de acordo com o planejado perante os juízes leigos.
Stansfield e Kevin tinham um acúmulo de investigações de rotina para dar conta, e Tony tinha ido a Leeds para cumprir um compromisso antigo com um psicólogo acadêmico canadense que estava participando de um congresso na cidade. Eles precisavam, justificou Tony, discutir algum aspecto esquisito do seu estudo da força-tarefa.
— Mapeamento conceitual — contou a ela enquanto roubavam alguns minutos juntos depois da reunião do grupo.
Teria dado na mesma se ele tivesse dito “mecânica quântica”, pensou ela ironicamente enquanto subia correndo as escadas do prédio do tribunal, com a gola virada para cima contra um vento leste que prometia chuva e neve antes do jantar. Ela teria de aprender muito se quisesse convencer alguém a considerá-la seriamente para essa força-tarefa, até aí estava claro.
Todos os pensamentos sobre a operação desapareceram assim que ela passou pela verificação de segurança e virou no corredor longo que abriga metade dos doze tribunais de juízes auxiliares. Em vez do agrupamento descontente e rebelde de transgressores menores e suas famílias deprimidas, ela deu de cara com uma aglomeração de jornalistas que circulava pelo local. Carol nunca vira tal quantidade de representantes da mídia num tribunal no sábado de manhã, normalmente o dia mais tranquilo da semana. No centro da multidão, podia ver Don Merrick que, de costas para a porta da sala de audiências do tribunal, parecia atormentado.
Carol imediatamente deu meia-volta. Mas era tarde demais. Ela não só tinha sido vista como também reconhecida por um dos muitos jornalistas que não eram gente de fora enviada pelas redes de mídia nacionais para farejar uma boa história. Quando ela virou no corredor, eles correram atrás dela. Todos exceto Penny Burgess, que se reclinou na parede e deu um sorriso cansado para Don Merrick.
— Você não foi a única que recebeu o telefonema cedo de manhã, afinal — disse ele, cinicamente.
— Infelizmente não, sargento. Pelo menos os rapazes parecem mais interessados na sua chefe do que em você.
— Ela tem melhor aparência.
— Ah, eu não diria isso.
— Foi o que ouvi dizer — disse Merrick, com ironia.
As sobrancelhas de Penny se ergueram.
— Você tem de me deixar pagar um drinque para você um dia desses, Don. Então vai descobrir por si mesmo se o boato é verdade.
Merrick balançou a cabeça.
— Acho que não, querida. A patroa não ia gostar disso.
Penny sorriu.
— Isso sem falar na chefe. Bem, Don, agora que o bando já foi embora a toda atrás da inspetora Jordan, você vai me deixar exercitar meu direito democrático de relatar os trabalhos dos juízes?
Don Merrick liberou o acesso à porta e acenou para que ela entrasse.
— Fique à vontade. Apenas lembre-se, sra. Burgess, os fatos, e nada mais que os fatos. Não queremos que pessoas inocentes sejam postas em risco, não é?
— Você quer dizer como o Assassino de Bonecas vem fazendo? — perguntou Penny com doçura, enquanto passava por ele e entrava na sala de audiências do tribunal.
• • •
Brandon fitava Tom Cross com descrença. Seu rosto estava contraído numa expressão de profunda vaidade, a órbita multicolorida de seu olho era a única ruptura numa imagem de presunçosa autossatisfação.
— Cá entre nós, John, você precisa admitir que eu acertei na mosca quanto a McConnell. Aquele presunto da noite passada não foi coisa do Assassino de Bonecas mesmo, não é? Bem, não poderia ter sido, poderia, porque nosso querido estava engaiolado lá embaixo.
Ignorando a ausência de cinzeiros no escritório do chefe de polícia assistente, Cross acendeu um cigarro e soprou, contente, uma baforada de fumaça no ar.
Brandon se esforçou, mas não conseguia encontrar as palavras. Dessa vez, foi incapaz de falar.
O outro olhou em volta vagamente em busca de algum lugar onde depositar suas cinzas, e se contentou com o chão, esfregando-as no tapete com a ponta do sapato.
— Então, quando quer que eu comece de volta no trabalho? — perguntou ele.
Brandon se recostou na cadeira e olhou para o teto.
— Se dependesse de mim, você nunca iria voltar a trabalhar nesta cidade — respondeu ele, com prazer.
Cross se engasgou com a boca cheia de fumaça. Brandon abaixou os olhos novamente e saboreou o momento.
— Que diabos, você se acha engraçado, John! — explodiu Cross.
— Nunca falei mais sério na vida — retrucou Brandon com frieza. — Chamei-o aqui esta manhã para alertá-lo. O que você fez a Steven McConnell ontem à tarde foi agressão. O arquivo continua aberto, superintendente. Se você chegar perto dessa investigação novamente, não hesitarei em acusá-lo. Na verdade, vou gostar disso. Não vou permitir que nenhum policial, no trabalho ou suspenso, lance esta força em descrédito.
Quando as palavras de Brandon penetraram fundo na mente de Cross, ele empalideceu, depois ficou roxo de raiva e humilhação. Brandon se levantou.
— Agora saia da minha sala e da minha delegacia.
Cross levantou-se como um homem abalado.
— Vai se arrepender disso, Brandon — gaguejou furiosamente.
— Não me provoque, Tom. Para o seu próprio bem, não me provoque.
Pensando rapidamente, Carol liderou os jornalistas em volta até o pequeno lounge do lado de fora do restaurante dos advogados.
— Tudo bem, tudo bem — acalmou ela, tentando abafar a gritaria deles com movimentos de mão exagerados. — Vejam só, se me derem apenas dois minutos, voltarei logo e responderei às suas perguntas, está bem?
Eles pareciam em dúvida, um ou dois nos fundos mostraram uma tendência para se deslocar de volta para as salas de tribunais.
— Por favor, pessoal — disse ela, massageando gentilmente o maxilar. — Estou com muita dor. Estou com uma dor de dente furiosa. Se eu não ligar para o meu dentista antes das dez, não tenho nenhuma chance de que ele me encaixe hoje. Por favor? Preciso de um tempinho. Depois, eu sou toda de vocês, prometo! — Carol forçou um sorriso de dor e escapou para o restaurante. Havia um telefone na parede oposta. Ela o pegou fazendo uma grande encenação ao procurar em seu diário e olhar uma página, enquanto discava o número conhecido do tribunal.
— Primeira vara, por favor.
Ela aguardou a conexão, depois disse ao atendente:
— Aqui é a inspetora Jordan. Posso falar com o Serviço da Procuradoria da Coroa? — Instantes depois, ela estava falando com o advogado da Procuradoria. — Eddie? Carol Jordan. Tenho cerca de trinta jornalistas aqui esperando que Steven McConnell apareça. Eles estão doidos para chegar às conclusões erradas, e acho que você pode preferir pressioná-lo agora enquanto estou com eles presos numa coletiva de imprensa improvisada. Pode arranjar isso com o escrivão?
Ela aguardou enquanto o advogado sussurrava com o escrivão.
— Dá para fazer, Carol — respondeu ele. — Obrigado.
Mantendo a farsa, Carol pôs o telefone no gancho e escreveu algo em seu diário. Depois, ela respirou fundo e se encaminhou até o bando.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 015
Damien Connolly, o policial por excelência. Eu não poderia ter encontrado uma pessoa melhor para ensinar uma lição à polícia, mesmo que tivesse procurado um ano inteiro. Mas ele já estava lá, na minha lista, figurando no meu top 10 pessoal. Era mais difícil persegui-lo do que os demais, porque seu padrão de turno muitas vezes estava em conflito com minhas horas de trabalho. Contudo, como minha avó sempre dizia, nada que vale a pena vem fácil.
Eu o enganei como de costume.
— Desculpe incomodar, mas meu carro quebrou e não sei onde fica o próximo telefone público. Posso usar seu telefone para ligar para a seguradora?
É quase risível a facilidade para passar pela porta da casa deles. Três homens mortos, e ainda assim eles não conseguem tomar a mais elementar das precauções. Eu quase tive pena de Damien, já que, entre todos, ele tinha sido o único que não tinha me traído. Mas precisava usá-lo como exemplo, para mostrar à polícia como ela era de uma inutilidade patética. Era irritante me surpreender concordando com a assim chamada “comunidade gay”, mas eles estavam cem por cento certos quando disseram que, enquanto supostos gays estivessem sendo mortos, a polícia não faria nada. Matar um dos seus seria a única coisa que me faria ganhar seu interesse. Finalmente, eles seriam forçados a me dar o reconhecimento e o respeito que eu merecia.
Para marcar isso, eu tinha projetado algo um tanto especial para Damien. Um método incomum de punição, usado ocasionalmente para agir como um exemplo terrível pour discourager les autres. Parece ter sido mais comumente usado nos casos de alta traição, onde homens tramavam para matar o rei. Apropriado, pensei. Afinal, o que era Damien se não uma parte integrante do grupo que, se pudesse, causaria a minha queda?
O primeiro registro desse tratamento na Inglaterra foi em 1238, quando algum nobre menos importante arrombou o aposento real em Woodstock com a intenção de matar Henrique III, que estava lá numa viagem de caça. Para demonstrar a qualquer outro possível traidor que o rei levava a sério atentados contra sua vida, o homem foi sentenciado a ter cada um dos membros destroçados por cavalos e depois ser decapitado.
Outro com pretensões a assassino real encontrou o mesmo destino na metade do século XVIII. O nome do aspirante simplesmente tinha de ser um mau presságio: François Damiens apunhalou o rei Luís XV em Versailles. Sua sentença dizia que “seu peito, braços, coxas e canelas deviam ser queimados com tenazes; a mão direita, empunhando a faca com que cometeu o referido ataque, devia ser queimada com enxofre; que óleo fervente, chumbo derretido, resina e cera misturados com enxofre fossem despejados em suas feridas; e depois seu corpo devia ser puxado e desmembrado por quatro cavalos”.
De acordo com os relatos da execução, os cabelos castanho-escuros de Damiens ficaram brancos durante a tortura. Casanova, aquele outro grande amante, relatou em suas memórias: “assisti a essa cena terrível durante quatro horas, mas fui várias vezes obrigado a virar o rosto e fechar os olhos enquanto ouvia seus gritos penetrantes, metade do corpo lhe tendo sido rasgada.”
Obviamente, eu não podia levar um tropel de cavalos para o porão. Portanto, tinha de criar meu próprio esquema. Construí um sistema de cordas e polias, presas ao piso e ao teto, ligadas com um desses guinchos elétricos usados em iates. Cada corda terminava numa manilha de ferro que seria presa em volta do pulso ou tornozelo. Ao ajustar o comprimento e a tensão nas cordas, eu havia suspendido Damien no ar, seus membros esticados num imenso X humano, seus genitais patéticos pendentes no meio como carne num açougue.
O clorofórmio teve um efeito pior nele do que em qualquer dos outros. Assim que chegou, ele vomitou violentamente, uma coisa não muito fácil de conseguir quando se está suspenso de pé a um metro e vinte centímetros do chão. Ainda bem que removi sua mordaça, ou ele teria engasgado com o próprio vômito e me privado de minha satisfação em puni-lo.
Damien estava completamente perplexo. Não fazia ideia do motivo pelo qual estava ali.
— Porque eu o escolhi — disse a ele. — Você foi apenas azarado o bastante para escolher o emprego errado. Agora, vou interrogá-lo do jeito que interroga seus suspeitos.
Enquanto investigava a cozinha de tia Doris, procurando vagamente verificar se ela possuía algo que pudesse me ser útil, encontrei seu material de confeito. Eu me lembrava daqueles utensílios. Todos os anos, seus bolos no Natal eram um milagre artístico que qualquer uma das confeitarias de Bradfield teria dificuldade em igualar. Uma vez, ela havia sido chamada por tio Henry enquanto estava fazendo um bolo enorme, e eu peguei a bisnaga de confeitar, com o intuito de ajudá-la. Acho que tinha no máximo uns seis anos de idade.
Quando ela voltou de qualquer que fosse a tarefa nojenta que estava realizando na fazenda e viu meus esforços, ficou doida. Agarrou o amolador de couro pesado que tio Henry usava para manter suas lâminas afiadas a ponto de cortar gargantas e me bateu com tanta força que rasgou minha camisa. Depois, me trancou no meu quarto sem jantar, deixando-me lá por vinte e quatro horas sem nada a não ser um balde para mijar. Eu sabia que precisava encontrar um uso apropriado para seu querido conjunto de confeitaria.
Havia um maçarico no porão, que usei para aquecer a minha cobertura e deixar minha marca em Damien, do mesmo jeito que o carrasco tinha feito em seu homônimo duzentos e quarenta anos antes. Havia algo bem bonito na forma como sua epiderme se abriu como uma flor, transformando-se em estrelas escarlates quando os bicos de confeitar em brasa entraram em contato com sua pele pálida. Foi também espantosamente eficaz. Ele me disse tudo que eu queria saber e muita bobagem com a qual não me importava. Lamentei apenas que ele não estivesse diretamente envolvido na investigação sobre meu trabalho anterior. Eu poderia ter confirmado em primeira mão o quanto a polícia estava irremediavelmente perdida.
Decidi depositar os restos mortais em Temple Fields novamente. Tinha usado o intervalo de tempo desde Gareth para encontrar outros lugares seguros para o descarte de minha obra. O pátio do Queen of Hearts era perfeito para o propósito; escondido e isolado à noite. No entanto, ganharia vida no dia seguinte, garantindo que Damien não seria deixado lá fora no frio por muito tempo.
Era o momento perfeito para um novo jogo. Na preparação para isso, logo após Adam, subi ao sótão e abri o baú que continha as partes guardadas do meu passado. Uma das coisas que preservei como suvenir foi uma jaqueta de couro que me foi dada por um engenheiro num navio-oficina soviético, como pagamento por uma noite que ele não vai esquecer tão cedo. Ela tem uma aparência e uma textura diferentes de tudo que já vi neste país. Cortei tiras do couro da manga até conseguir algo que poderia ter ficado preso num prego ou num canto afiado de uma tranca. Enfiei a tira numa gaveta, depois cortei o resto da jaqueta em retalhos, coloquei-a numa sacola plástica com cascas de ovo e cascas de legume e dirigi até encontrar uma caçamba para deixá-la na cidade. Quando precisasse usar aquela cortina de fumaça, os restos da jaqueta estariam enterrados há muito tempo em algum aterro sanitário genérico.
Não pude deixar de sentir uma emoção ao pensar em quantas horas de trabalho os homens da polícia estavam desperdiçando tentando rastrear a origem desse estranho pedacinho de couro, embora nunca fossem vinculá-lo a mim. Além de tudo, ninguém em Bradfield jamais tinha me visto usar aquela jaqueta.
Dessa vez, a repercussão superou tudo que conquistara até então. Finalmente, a polícia admitiu que uma única mente estava por trás dos quatro assassinatos e percebeu que era hora de me levar a sério.
Com Damien fora deste mundo e no meu computador, ainda havia uma pessoa que precisava se resolver comigo antes que eu pudesse retornar ao meu projeto original. Não podia me contentar com a tarefa de encontrar um homem digno de mim, que compartilhasse minha vida como um parceiro igual e respeitoso. Não até que tivesse punido o homem que tinha me tratado publicamente com tanto desprezo.
Meu alvo era o dr. Hill, o idiota que não tinha percebido que Gareth Finnegan era uma das minhas obras. Ele havia me insultado, me coberto de escárnio, recusando-se a reconhecer a extensão das minhas conquistas. Ele não fazia ideia da capacidade da mente que enfrentava. Teria de pagar por sua arrogância.
Não conseguia deixar de ver sua eliminação como um desafio. Mas quem conseguiria?
15
Não lhes é possível manter o modo autêntico de cortar gargantas sem introduzir inovações tão abomináveis...?
O som dos berros de uma multidão saudou Carol quando ela fechou a porta do apartamento. Michael, esparramado num dos sofás, sequer tirou os olhos da partida de rúgbi da televisão.
— Oi, mana — disse ele. — Jogo duro. Dez minutos, e sou todo seu.
Carol olhou para a tela, onde gigantes enlameados nas cores da Inglaterra e da Escócia estavam espalhados pelo campo num scrum desfeito.
— Altíssima tecnologia — resmungou ela. — Preciso de um banho.
Quinze minutos depois, os irmãos estavam dividindo uma garrafa comemorativa de espumante cava.
— Tenho algumas conclusões para você — disse Michael.
Carol se animou.
— Algo significativo?
Michael deu de ombros.
— Não sei o que é significativo para você. O seu assassino usou cinco objetos de formato diferente para fazer as marcas. Eu os separei em cinco padrões distintos. Você tem o que parece um coração e algumas letras rudimentares. A, D, G e P. Significam alguma coisa para você?
Carol estremeceu involuntariamente.
— Ah, sim. Muita coisa. Você está com suas conclusões aqui?
Michael assentiu.
— Estão na minha pasta.
— Vou olhá-las num instante. Enquanto isso, posso pedir uma consultoria de novo?
Michael esvaziou sua taça e a encheu novamente.
— Não sei. Pode arcar com meu preço?
— Jantar, hospedagem e café da manhã no hotel de campo de sua escolha, no meu primeiro fim de semana de folga — ofereceu Carol.
Michael fez uma careta.
— Com essa oferta, vou receber a aposentadoria antes de ganhar isso. Que tal você passar minha roupa por um mês?
— Quinze dias.
— Três semanas.
— Fechado.
Ela ofereceu sua mão e Michael a apertou.
— Então, o que você quer saber, mana?
Carol delineou sua teoria sobre a manipulação de computador dos vídeos do assassino.
— O que você acha? — perguntou ela com ansiedade.
— Dá para fazer — disse ele. — Não há dúvidas quanto a isso. A tecnologia está disponível, e não é um software difícil de usar. Eu podia fazer isso com o pé nas costas. Mas você está falando de grana alta. Digamos trezentas libras por uma placa de captura de vídeo, quatrocentas por uma placa ReelMagic, outras trezentas a quinhentas para um digitalizador de vídeo decente, mais pelo menos mil libras por um scanner de ponta. Complicado mesmo é o software, porém. Só há um pacote que consegue fazer o que você está falando com alguma qualidade de fato. Vicom 3D Commander. Nós o temos, e nos custou quase quatro mil libras, e isso foi há seis meses. Adquirimos a última atualização por mais oitocentas libras. O manual é grosso como um tijolo.
— Então não é um software que muitas pessoas teriam?
Michael bufou.
— Não mesmo. É um pacote e tanto. Apenas profissionais como nós, estúdios de produção de vídeo e adeptos muito dedicados ao hobby teriam.
— E isso está disponível com facilidade? É possível comprar no varejo? — perguntou Carol.
— Na verdade, não. Lidamos diretamente com a Vicom, porque queríamos que eles executassem uma demonstração completa para nós antes de nos comprometermos em gastar toda essa grana. Obviamente, alguns fornecedores comerciais especializados fazem a venda, mas eles não vão descarregar isso a granel. Seria por encomenda postal, de qualquer forma. A maior parte das coisas de informática é.
— As outras coisas que mencionou... são coisas que muitas pessoas teriam?
— Elas não são incomuns. Assim de cabeça, eu diria dois a três por cento de penetração no mercado de itens de vídeo, talvez quinze por cento no scanner. Mas, se está pensando em rastrear seu suspeito, eu começaria com a Vicom — aconselhou Michael.
— Qual você acha que seria a atitude deles com relação a permitir que vejamos seus registros de venda?
Michael fez uma careta.
— Sei tanto quanto você. Você não é uma concorrente, e essa é uma investigação de homicídio. Nunca se sabe, eles podem cooperar de bom grado. Afinal, se esse cara estiver usando o material deles, seria ruim para as relações públicas se não o fizessem. Posso procurar o nome do sujeito com quem lidamos. Ele era o diretor de vendas. Um escocês. Com um desses nomes que não dá para dizer qual é o primeiro nome, sabe? Grant Cameron, Campbell Eliott. Vou me lembrar...
Enquanto Michael procurava em seu caderno de endereços, Carol enchia novamente sua taça e saboreava o formigamento das bolhas no céu da boca. Ultimamente, prazer parecia um item escasso. Mas se ela pudesse gerar algumas pistas sobre sua teoria, tudo isso podia mudar.
— Consegui! — exclamou Michael. — Fraser Duncan. Ligue para ele na segunda-feira de manhã e diga meu nome. É hora de você ter uma folga, mana.
— Você não se engana — disse Carol, com emoção. — Acredite em mim, eu mereço.
Kevin Matthews se deitou esparramado na cama king size desfeita, sorrindo para a mulher montada sobre ele.
— Hum — murmurou ele. — Isso até que foi divertido.
— Melhor que a comida de casa — provocou Penny Burgess, correndo os dedos pelos cabelos castanho-avermelhados que se encaracolavam no peito de Kevin.
Kevin deu uma risadinha.
— Só um pouquinho.
Ele se esticou para pegar o resto da vodca com Coca-Cola que Penny tinha lhe servido.
— Estou surpresa por você ter conseguido fugir esta noite — disse Penny, movendo-se para a frente sensualmente, de modo que seus mamilos se esfregassem nos dele.
— Tivemos tantas horas extras ultimamente que ela desistiu de me esperar em casa para alguma coisa a não ser uma soneca.
Penny deixou a parte de cima do corpo cair pesadamente sobre Kevin, expulsando o ar do corpo dele.
— Não quis dizer Lynn — disse ela —, quis dizer o trabalho.
Kevin agarrou os pulsos dela e lutou, afastando-a de si. Quando caíram deitados lado a lado, rindo até perderem o fôlego, ele finalmente disse:
— Não tinha muito o que fazer, para lhe dizer a verdade.
Penny bufou, incrédula.
— Ah, é? Na noite passada Carol Jordan encontra o corpo número cinco, o suspeito é preso tentando deixar o país, e você vem me dizer que não tem nada acontecendo? Qual é, Kevin, é comigo que você está falando.
— Você entendeu tudo errado, querida — disse Kevin, com generosidade. — Você e todo o resto dos seus coleguinhas da mídia.
Não era com frequência que ele tinha a chance de corrigir Penny, e ele pretendia aproveitar ao máximo.
— O que quer dizer? — Penny se apoiou num dos cotovelos, cobrindo inconscientemente seu corpo com o edredom. Isso não era mais divertido; isso era trabalho.
— Em primeiro lugar: o corpo que Carol encontrou na noite passada não era uma das vítimas do serial killer. Era trabalho de um imitador. A autópsia comprovou isso sem sombra de dúvida. Era apenas mais um sórdido assassinozinho sexual. A Central deve esclarecer isso em alguns dias com um pouco de ajuda da Delegacia de Costumes — explicou Kevin, a autossatisfação óbvia em sua voz.
Penny aceitou a situação e disse com voz doce por entre os dentes cerrados:
— E?
— E o quê, querida?
— Se isso era em primeiro lugar, deve haver um segundo.
Kevin sorriu, de modo tão presunçoso que Penny tomou a decisão instantânea de que lhe daria o fora assim que tivesse arranjado uma alternativa aceitável.
— Ah, sim. Em segundo lugar. Stevie McConnell não é o assassino.
Dessa vez, Penny ficou sem palavras. A própria informação era chocante. Mas mais chocante era o fato de que, sabendo disso, Kevin não dissera nada. Ele permaneceu em silêncio e permitiu que seu jornal publicasse uma matéria que, no final das contas, faria com que ela parecesse uma idiota mal-informada.
— É mesmo? — questionou ela, com o sotaque superior que não tinha usado desde o dia que deixou feliz o internato e tomou a decisão de abraçar declaradamente o mercado de menor prestígio.
— É, sim. Sabíamos disso antes de ele dar no pé.
Kevin se deitou nos travesseiros, contente e alheio ao olhar de ódio que Penny destilava em sua direção.
— Então de que servia exatamente aquele teatro no tribunal? — indagou ela num tom que daria orgulho à sua professora de dicção.
Kevin deu um sorriso afetado.
— Bem, a maioria de nós já concluiu que McConnell não é o nosso homem. Mas Brandon tinha posto um detetive atrás dele. Então, quando o cara tentou sair do país, fomos mais ou menos obrigados a prendê-lo. A essa altura, estava começando a ficar óbvio que McConnell não é o Assassino de Bonecas. Além disso, ele não se encaixa no perfil que Tony Hill criou.
— Não acredito que estou ouvindo isso — reclamou Penny, com agressividade.
Kevin finalmente registrou que nem tudo estava bem.
— Que foi? Algum problema, querida?
— Só um probleminha, porra — disse Penny, enunciando cada sílaba claramente. — Você quer me contar que não só deteve um homem inocente como também permitiu que a imprensa mundial divulgasse a conclusão de que esse homem é muito provavelmente o Assassino de Bonecas?
Kevin se apoiou e tomou outra dose de seu drinque, esticando-se para alisar os cabelos de Penny com a outra mão. Ela se afastou dele com um movimento brusco.
— Não é um grande problema — contestou ele com condescendência. — Ninguém pode reunir um grupo para linchá-lo e ir à casa dele enquanto estiver preso. E imaginamos que dizer ao mundo nas entrelinhas que prendemos o assassino poderia levar o assassino verdadeiro a entrar em contato conosco a fim de garantir que saibamos que ele ainda está à solta.
— Você quer dizer que vocês querem levá-lo a matar de novo? — interpelou Penny, com a voz ficando mais alta.
— É claro que não — disse Kevin, indignado. — Eu disse “entrar em contato”. Como ele fez depois que matou Gareth Finnegan.
— Meu Deus — murmurou Penny, pensativa. — Kevin, como você consegue ficar sentado aí e me dizer que nada de ruim pode acontecer a Stevie McConnell enquanto ele estiver trancado numa cela?
Enquanto Penny Burgess e Kevin Matthews discutiam a moralidade da detenção de Stevie McConnell, na ala C da Prisão Barleigh de Sua Majestade, três homens estavam se revezando para mostrar a Stevie McConnell o que acontece a criminosos sexuais na prisão. Na extremidade do patamar, havia um guarda impassível, parecendo tão inconsciente dos gritos e súplicas de McConnell quanto um deficiente auditivo com o aparelho de surdez desligado. E nas charnecas no alto de Bradfield, um assassino implacável aplicava os toques finais no instrumento de tortura que ajudaria a mostrar ao mundo que o homem na prisão não era responsável por quatro punições em série perfeitamente executadas.
A sala da equipe HOLMES estava em atividade silenciosa; operadores olhavam para telas e apertavam teclas. Carol encontrou Dave Woolcott sentado em seu escritório beliscando sem entusiasmo seu lanche de peixe com batatas fritas. Ele ergueu os olhos quando ela entrou e conseguiu dar um sorriso cansado.
— Achei que estivesse tirando a noite de folga — disse ele.
— Ainda espero tirar. Meu irmão prometeu me comprar um balde de pipoca só para mim se eu chegasse ao cinema antes do começo do filme. Só queria dar uma passadinha para lhe contar algo.
Ela deixou duas sacolas plásticas na mesa de Dave. Revistas de informática em papel brilhoso saíram da sacola.
— Tenho uma teoria — disse ela. — Bem, é mais um palpite.
Pela terceira vez, Carol descreveu sua ideia sobre o assassino que importava vídeos e os transformava em suporte para suas fantasias.
Dave ouviu com atenção, meneando a cabeça enquanto assimilava as ideias de Carol.
— Gosto dessa teoria — disse ele simplesmente. — Li esse perfil algumas vezes, e realmente não consigo aceitar o que dr. Hill diz sobre manter-se estável apenas usando vídeos dos assassinatos. Não faz sentido. A sua ideia faz. Então, o que quer de mim?
— Michael acha que rastrear os compradores do Vicom 3D Commander pode nos levar a ele, caso estejamos corretos. Não tenho certeza. É possível que a empresa para quem o assassino trabalhe tenha o software, e ele faça o trabalho de manipulação de vídeo lá. Para garantir, no entanto, ele teria de fazer toda a digitalização em casa. Então pensei que valeria a pena fazer um levantamento dos fornecedores de digitalizadores e placas de captura de vídeo. Podemos encontrar fornecedores por meio dos anúncios nessas revistas, já que praticamente todos os itens de informática são enviados por encomenda postal. Devemos também contatar os grupos de usuários locais. Se você tiver algum pessoal sobrando, é isso.
Dave suspirou.
— Vá sonhando, Carol.
Ele pegou uma revista e folheou.
— Imagino que eu possa redigir a lista entre hoje à noite e amanhã, e na segunda de manhã bem cedo possamos conseguir alguns detetives para fazer uma rodada de ligações. Quando meus operadores terão tempo de inserir os dados eu não sei, mas vou providenciar para que seja feito, tudo bem?
Carol sorriu.
— Você é um amor, Dave.
— Sou um maldito mártir, Carol. Meu filho mais novo está com dois dentes saindo que nem vi ainda.
— Eu podia ficar e ajudar você a ver as revistas — disse Carol com certa relutância.
— Ah, dê o fora daqui. Vá embora e se divirta. Já passou da hora de que alguém entre nós consiga isso. O que você vai ver?
Carol fez uma careta.
— É a sessão dupla especial de sábado: Caçador de assassinos e O silêncio dos inocentes.
A risada de Dave ecoou nos ouvidos dela por todo o caminho até o carro.
O longo uivo parecia vir do fundo do estômago. Quando o seu orgasmo estremeceu dentro dele como um trem descarrilhado, Tony sentiu uma gloriosa sensação de relaxamento.
— Ai, meu Deus — suspirou.
— Ai, assim, assim — dizia Angelica, de modo ofegante. — Estou gozando de novo, de novo. Ah, Tony, Tony...
A voz dela enfraqueceu até virar um soluço contido.
Tony relaxou na cama, com o peito inflando com a respiração ofegante, o cheiro de suor e sexo pesado em volta dele. Ele se sentiu como se, de repente, tivesse se livrado de um fardo que vinha carregando havia tanto tempo que tinha deixado de perceber o peso. Seria essa a sensação de ser curado, essa impressão de luz e cor, esse sentimento de ter abandonado o passado como sacos de carvão numa carvoeira de um navio? Era assim que seus pacientes se sentiam quando eles descarregavam o peso de seu caos sobre ele?
Em seu ouvido, ele podia escutar o som entrecortado da respiração dela. Depois de alguns momentos, ela disse:
— Minha nossa. Minha nossa senhora. Essa foi a melhor de todas. Eu amo o jeito que você faz amor comigo.
— Foi bom para mim também — disse Tony, falando a sério dessa vez. Pela primeira vez desde que tinha iniciado essa combinação estranha de terapia e jogo sexual, ele não teve nenhum problema com sua ereção. Desde o início, ele esteve duro como uma rocha. Sem esmorecer, sem murchar, sem vergonha. Simplesmente o primeiro ato sexual livre de problemas que tivera em anos. Tudo bem, Angelica não estava de verdade no quarto com ele, mas era um passo gigantesco na direção certa.
— Juntos fazemos a mais doce melodia — disse Angelica. — Ninguém jamais me excitou como você.
— Você faz muito isso? — perguntou Tony de um jeito relaxado.
Angelica deu uma risadinha, um gorgolejo rouco e sexy.
— Você não é o primeiro.
— Deu para notar. Você é muito especialista para isso — elogiou, com alguma sinceridade. Ela havia sido a perfeita terapeuta para ele, isso sem dúvida era verdade.
— Sou muito criteriosa quanto aos homens que permito que compartilhem o prazer comigo — respondeu Angelica. — Não é todo mundo que gosta do que tenho a oferecer — acrescentou.
— Eles têm de ser muito estranhos para não gostar. Sei que gosto.
— Fico feliz, Anthony. Você nunca vai saber o quanto. Preciso ir agora — disse ela, mudando abruptamente para o tom sério que Tony passara a associar ao fim de suas ligações. — Esta noite foi muito especial. Nos falamos em breve.
A linha ficou muda. Tony desligou o telefone e se deitou. Esta noite, com Angelica, pela primeira vez na vida, ele havia sentido um cuidado protetor que auxiliava sem sufocar. Sua avó, ele sabia com o intelecto, o tinha amado e cuidado dele, mas sua família nunca fora dada a demonstrações de afeto, e o amor dela tinha sido direto e prático, atendendo às necessidades dela no lugar das dele. As mulheres com quem se envolveu no passado foram, agora ele percebia, substitutas emocionais para ela. Graças a Angelica, ele ousava ter esperança de que o padrão tivesse sido quebrado. Isso lhe causara dor o suficiente ao longo dos anos.
Sua vida sexual havia começado mais tarde do que a da maioria de seus colegas de mesma idade, em parte porque seu corpo relutou em amadurecer. Até seus dezessete anos, ele era de longe o menor dos garotos da turma, condenado a namorar as meninas de treze e catorze anos, ainda mais assustadas com o sexo do que ele. Depois, de repente, ele cresceu treze centímetros em cinco meses. Quando foi à universidade, tinha perdido a virgindade num ato desajeitado numa cama de solteiro, a padronagem em alto-relevo da colcha deixando-o com ardências desconfortáveis pela fricção durante dias. Sua namorada, aliviada por se livrar finalmente do empecilho da virgindade, terminou com ele dias depois.
Na universidade, ele era muito tímido e aplicado para melhorar sua experiência. Depois, quando começou a trabalhar em seu doutorado, ficou caidinho por uma jovem monitora de filosofia da faculdade. Como era inteligente e interessante, ele chamou a atenção dela. Patricia não fez segredo do fato de que era uma mulher liberada, do mesmo modo que ela não fizera segredo do fato de que terminara seu relacionamento por causa de seu desempenho decepcionante na cama.
— Encare os fatos, querido — disse-lhe ela. — Seu cérebro pode ser bom para um doutorado em filosofia, mas sua trepada não passaria nem do secundário.
Daí foi ladeira abaixo. As últimas poucas mulheres com quem Tony se envolveu tinham achado que ele era um perfeito cavalheiro, nunca as pressionando a ir para a cama. Até que elas a levavam e descobriam como era raro que ele conseguisse alguma performance. Ele havia descoberto há muito tempo como era difícil convencer uma mulher de que o fato de não conseguir uma ereção não tinha nada a ver com ela.
— Elas só ficavam aborrecidas e feridas em seus egos — disse em voz alta.
Talvez agora ele tivesse finalmente encontrado um jeito de enfrentar o passado e ir adiante. Mais algumas noites como essa com Angelica e, talvez, apenas talvez, ele estivesse pronto para tentar a coisa de verdade. Ele imaginava se os serviços dela se estendiam a isso. Talvez ele devesse começar a pensar em deixar algumas indiretas.
• • •
Brandon leu a folha de papel em sua mesa e limpou os olhos. Ele e Dave Woolcott tinham passado a noite analisando dúzias de relatórios que chegaram a partir das medidas tomadas por Dave em resposta às correlações obtidas pelo sistema HOLMES. Apesar de seus esforços determinados em encontrar algum indício mínimo que revelasse o assassino, não havia nada que nenhum deles pudesse identificar como pista.
— Talvez essa ideia de Carol seja útil — disse Dave, com um bocejo.
— Fora isso, tentamos de tudo — concluiu Brandon, com a voz tão deprimida quanto o rosto. — Mal não vai fazer seguir com ela.
— Ela é uma manipuladora inteligente, essa mulher — comentou Dave. — Um dia ainda vai chegar ao comando.
Não havia amargura em seu tom, só uma admiração desgastada. Sua boca se abriu em outro bocejo.
— Vá para casa, Dave. Quando foi a última vez que você viu a Marion acordada?
Dave lastimou-se.
— Não comece, senhor. Eu iria parar de qualquer jeito, não há muito o que fazer. Vou estar aqui amanhã para terminar a lista desses fornecedores de informática.
— Tudo bem, mas não cedo demais, ouviu? Faça um agrado à sua família. Tome o café da manhã com eles.
Antes que aceitasse seu próprio conselho, Brandon queria analisar os depoimentos de testemunhas e as impressões dos policiais mais uma vez, incapaz de acreditar que não havia nada à espreita ali que lhes daria seu primeiro golpe de sorte. Quando chegou à metade, ele estava achando quase impossível se motivar para continuar no resto da pilha. A perspectiva de se enroscar no corpo quente de Maggie era irresistível.
Brandon suspirou e se concentrou na próxima folha de papel. Sua análise foi interrompida pelo toque insistente do telefone.
— Brandon — disse com um suspiro.
— Aqui quem fala é o sargento Murray, da recepção. Desculpe interrompê-lo, senhor, mas nenhum dos inspetores está no posto policial no momento. O problema é que há uma pessoa aqui com quem acho que o senhor gostaria de falar. Ele é vizinho de Damien Connolly, senhor.
Brandon já tinha se levantado da cadeira.
— Estou indo.
O homem na recepção estava sentado no banco de madeira que ia de um lado ao outro da parede, com a cabeça baixa, o áspero borrão da barba por fazer em seu queixo. Quando Brandon saiu de trás do balcão, ele ergueu os olhos. Devia ter quase uns trinta anos, estimou Brandon. Bronzeado artificialmente, círculos escurecidos em volta dos olhos. Alguma espécie de executivo, a julgar pelo terno caro, mas sóbrio, e a gravata de seda pendendo torta sob o botão superior aberto da camisa. Ele tinha a aparência amarfanhada, de olhos vermelhos, como alguém que vinha viajando havia tanto tempo que tinha esquecido em que dia ou em que cidade estava. Ver alguém mais cansado do que ele mesmo pareceu injetar nova energia em Brandon.
— Pois não? — disse ele, com animação. — Sou John Brandon, o chefe de polícia assistente a cargo da investigação sobre a morte de Damien Connolly.
O homem fez um aceno de cabeça.
— Terry Harding. Moro a algumas casas de distância de Damien.
— O sargento informou que você pode ter alguma informação para nós.
— Isso mesmo — disse Terry Harding, sua voz rouca devido ao cansaço. — Vi um estranho saindo da garagem de Damien na noite em que ele foi morto.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 016
Eu já havia começado a trabalhar no dr. Tony Hill mesmo antes de ter despachado Damien Connolly. Parecia justiça poética para mim que, como Damien, seu nome já estivesse em minha lista como parceiro em potencial. Se eu precisava de qualquer tipo de confirmação de que estava fazendo a coisa certa em puni-lo, era isso.
Pois bem, eu já sabia onde ele morava, onde trabalhava e qual era sua aparência. Sabia a que horas ele saía de casa pela manhã, que bonde pegava para trabalhar e por quanto tempo ficava em seu pequeno escritório na universidade.
Só percebi a tranquilidade com que tudo tinha transcorrido até agora quando as coisas começaram a se encaminhar em direções que eu não previra nem gostava. Acho que cometi o erro de subestimar a estupidez das forças que se opunham a mim. Nunca pensei que houvesse muita capacidade cerebral compartilhada entre os policiais da corporação de Bradfield, mas os últimos desdobramentos chocaram até a mim mesmo. Eles prenderam a pessoa errada!
A incrível falta de inteligência e percepção deles só era comparável à da mídia, que seguia a polícia como ovelhas sem raciocínio. Não consegui acreditar quando peguei o Sentinel Times e li que um homem estava preso, ajudando as investigações da polícia sobre os meus assassinatos. A prisão ocorreu depois de uma agressão de rua envolvendo um policial. Como é que eles podiam imaginar que alguém que tomara tanto cuidado quanto eu acabaria numa briga de rua em Temple Fields? Era um insulto à minha inteligência. Eles achavam mesmo que eu estaria fora de controle fazendo arruaça por aí?
Li e reli o artigo, incapaz de crer na profundidade da tolice deles. A raiva queimava dentro de mim. Conseguia senti-la no meu estômago como indigestão e cólicas provocadas por gases que se reviravam como uma bola com saliências pontudas. Eu queria fazer algo cruel e dramático, algo que lhes provasse como estavam errados.
Malhei com meus pesos até que meus músculos tremessem com o esforço e meu equipamento ficasse encharcado de suor, mas ainda assim a raiva se recusava a diminuir. Corri pelas escadas até meu computador e trabalhei nos vídeos de Damien que eu importara para o meu sistema. Quando terminei, tínhamos realizado uma ginástica sexual que deixaria orgulhosa a equipe nacional da Rússia. Mas nada me satisfez. Nada eliminou a raiva.
Por sorte, ao contrário deles, eu não era uma pessoa estúpida. Sabia o quanto a raiva descontrolada poderia ser perigosa para mim. Precisava domá-la, usá-la com criatividade e fazê-la trabalhar para mim. Forcei-me a canalizar aquilo para fins construtivos. Planejei em detalhes como capturaria o dr. Tony Hill e o que faria com ele quando o pegasse. Ele teria coisas pendentes — literalmente.
Squassation e strappado. A Inquisição Espanhola sabia exatamente como aproveitar ao máximo o que estava disponível. Eles simplesmente utilizaram a força mais poderosa do planeta, a força da gravidade. Tudo que se precisava era um guincho, uma polia, algumas cordas e um bloco de pedra. As mãos das vítimas eram amarradas atrás das costas e corria-se uma corda delas até uma polia. Depois, uma pedra era presa aos pés.
Em seu livro The Horrid Cruelties of the Inquisition, publicado em 1770, John Marchant descreveu essa tortura eficaz do modo mais eloquente:
O corpo é puxado para cima, até que a cabeça atinja a polia. Ele é mantido pendente dessa maneira por algum tempo, de modo que, pela grandeza do peso suspenso em seus pés, todas as suas articulações e membros possam ser terrivelmente esticados e, de repente, ele é baixado com um solavanco, dando folga à corda. Contudo, é impedido de chegar ao chão; pelo horrível abalo, seus braços e pernas se separam das juntas. Com isso, ele é submetido à dor mais intensa; o choque, que recebe pela súbita interrupção da queda, e o peso em seus pés, que estica todo o seu corpo da forma mais intensa e cruel.
Os alemães acrescentaram um refinamento que me atraiu. Atrás da vítima, eles puseram um rolo com saliências pontiagudas, de modo que, quando ele descia, as pontas cortavam e despelavam suas costas, deixando seu corpo como uma massa sangrenta de ligamentos rompidos. Considerei reproduzir esse efeito, mas, mesmo depois de muita manipulação do layout, não consegui criar com satisfação um projeto no computador e ter certeza de que ele funcionaria tranquilamente, a menos que eu algemasse suas mãos na frente dele, o que tornaria a squassation e o strappado muito menos eficazes. Manter a simplicidade, esse é o meu lema.
Enquanto estava planejando e construindo, tomei medidas para fechar minha teia ainda mais apertada em volta do dr. Hill. Ele podia pensar que conseguia penetrar minha mente, mas tinha entendido as coisas errado.
Mal podia esperar para começar. Estava contando as horas.
16
— Pois bem, senhorita R., supondo que eu aparecesse por volta da meia-noite ao lado da sua cama, armado com uma faca de trinchar, o que diria?
Ao que a crédula moça respondeu:
— Ah, sr. Williams, se fosse qualquer outra pessoa, ficaria amedrontada. Porém, assim que ouvisse sua voz, ficaria tranquila.
Pobre moça, tivesse esse esboço do sr. Williams sido detalhado e concretizado, ela teria visto alguma coisa no rosto cadavérico, e ouvido algo na voz sinistra, que teria perturbado sua tranquilidade para sempre.
Quando o telefone tocou, a primeira reação de Carol foi indignação. Oito e dez numa manhã de domingo só podia significar trabalho. Ela se agitou na cama, com um longo e grave resmungo de descontentamento atormentando os ouvidos de Nelson. Seu braço apareceu por baixo das cobertas, tateando em volta da mesa de cabeceira. Ela atendeu o telefone e grunhiu:
— Jordan.
— Esta é sua ligação de alarme do início da manhã.
A voz estava alegre demais, concluiu Carol, antes de registrar a identidade de quem ligava.
— Kevin — disse ela. — É melhor que isso seja bom.
— É melhor do que bom. O que você diria de uma testemunha que viu o assassino sair de carro da casa de Damien Connolly?
— Repita? — murmurou ela. Kevin repetiu seu anúncio. Da segunda vez, sua voz fez Carol ficar sentada, na beirada da cama. — Quando? — indagou ela.
— O sujeito chegou aqui ontem de madrugada. Tinha estado fora do país a negócios. Brandon o interrogou. Ele marcou uma reunião para as nove — disse Kevin, empolgado como uma criança no Natal.
— Kevin, seu safado, você podia ter me ligado antes...
Ele deu uma risadinha.
— Achei que você precisava do sono para manter a beleza.
— Que se danem o sono e a beleza...
— Eu só cheguei há cinco minutos também. Pode trazer o doutor com você? Acabo de tentar ligar para ele, mas ninguém atende.
— Tudo bem, vou dar uma passada na casa dele e ver se consigo acordá-lo. Ele parece ter o hábito de desligar os telefones. Ilusão dele achar que pode se dar bem e ter uma noite de sono decente. Dá para notar que não é policial — acrescentou ela.
Carol recolocou o telefone no gancho abruptamente e se encaminhou para o chuveiro. O pensamento de que Tony pudesse ter desligado o telefone porque estava com a mulher da secretária eletrônica passou por sua mente. A ideia provocou uma dor em seu estômago. — Vaca idiota — murmurou para si mesma, enquanto a água caía em cascata sobre ela.
Às vinte para as nove, ela estava pressionando a campainha de Tony. Depois de alguns minutos, a porta se abriu. Com os olhos turvos, lutando com a faixa de seu roupão, Tony olhou para fora na direção dela.
— Carol?
— Desculpe por acordá-lo — disse ela formalmente. — Você não estava atendendo o telefone. O sr. Brandon me pediu para vir buscá-lo. Há uma reunião às nove. Temos uma testemunha.
Tony esfregou os olhos, parecendo confuso.
— É melhor você entrar.
Ele caminhou pelo corredor, deixando Carol fechar a porta atrás de si.
— Desculpe quanto aos telefones. Fui dormir tarde, por isso os desliguei. — Ele balançou a cabeça. — Você pode esperar um instante enquanto tomo um banho e faço a barba? Caso contrário, vou para lá sozinho. Não quero que se atrase por minha causa.
— Vou esperar — disse Carol. Ela pegou o jornal do capacho e o folheou, encostada na parede, alerta para os sinais denunciadores da presença de uma terceira pessoa. Ela se sentiu irracionalmente satisfeita quando não ouviu nenhum. Muito embora soubesse que era uma reação infantil, não significava que reações como essa fossem parar da noite para o dia. Ela apenas aprenderia como disfarçá-las até que acabassem, como tinha certeza de que aconteceria um dia, com sua existência exaurida pela falta de interesse de Tony.
Dez minutos mais tarde, ele reapareceu de jeans e camisa de malha, cabelos úmidos e bem-penteados.
— Desculpe por isso. Meu cérebro não funciona até que eu tome um banho. Pois bem, que negócio é esse de testemunha?
Carol lhe contou o pouco que sabia a caminho do carro.
— Essas são ótimas notícias — disse Tony com entusiasmo. — Primeiro grande avanço, não é?
Carol deu de ombros.
— Depende do quanto ele possa nos contar. Se o cara estiver dirigindo um Ford Escort vermelho, não nos levará muito adiante. Precisamos de algo sério para fazer a correspondência cruzada. Talvez algo como o ponto de vista do computador.
— Ah, sim, a teoria do computador. Como vai isso?
— Eu a discuti com meu irmão. Ele acha que é perfeitamente plausível — respondeu Carol com frieza, sentindo-se tratada com condescendência.
— Ótimo — disse Tony, entusiasmado. — Espero realmente que dê certo. Não estava tentando jogar um balde de água fria na coisa, sabe. Tenho de trabalhar com equilíbrio de probabilidades, e sua ideia estava muito além de meus parâmetros. Mas é o tipo de estalo investigativo que vamos precisar na força-tarefa nacional. Acho mesmo que você deve considerar seriamente se inscrever quando dermos o pontapé inicial no projeto.
— Não pensei que você ficaria confortável com a ideia de trabalhar comigo depois disso — comentou Carol, com os olhos firmes na estrada.
Tony respirou fundo.
— Nunca encontrei um policial com quem preferisse trabalhar.
— Mesmo que eu invada o seu espaço pessoal? — perguntou ela amargamente, odiando-se por futucar a mágoa como se fosse uma velha casca de ferida.
Tony suspirou.
— Achei que tivéssemos concordado que podíamos ser amigos? Sei que eu...
— Tudo bem — interrompeu ela, desejando que jamais tivesse começado a conversa. — Posso ser sua amiga. Você acha que o Bradfield Victoria tem alguma chance no torneio?
Assustado, Tony se virou no banco e fitou Carol. Ela estava com um sorriso crispado no canto da boca. De repente, os dois estavam rindo.
As últimas ameaças do governo ao serviço prisional significavam que os policiais da HM Prison Barleigh tinham começado a trabalhar numa operação padrão. Isso, por sua vez, significava que os presos ficavam nas celas por vinte e três em cada vinte e quatro horas. Stevie McConnell estava deitado de lado em sua cama beliche na cela que tinha apenas para si. Em seguida ao ataque que o tinha deixado com dois olhos roxos, algumas costelas quebradas, mais contusões do que podia contar, e o tipo de dano sexual que tornava o ato de se sentar uma opção muito dolorosa para contemplar de imediato, ele havia solicitado confinamento solitário, e ele lhe fora concedido.
Não importa o quanto ele declarasse que não era o Assassino de Bonecas. Ninguém estava nem aí, nem os presos nem os guardas. Ele tinha percebido que os carcereiros tinham por ele o mesmo desdém que seus colegas detentos quando ouviu o som de passos por toda a ala. Mas nenhum policial havia destrancado a porta de sua cela para permitir que ele esvaziasse o balde fedorento de seus dejetos que estava no corredor, com seu cheiro insistente de certa forma mais nojento do que o das dúzias de banheiros públicos onde Stevie tinha escolhido estranhos para transar.
O tanto que conseguia ver, suas perspectivas eram desoladoras. O próprio fato de que ele estava por trás das grades era suficiente para condená-lo aos olhos da maioria das pessoas. Provavelmente o mundo inteiro estava convencido de que o Assassino de Bonecas tinha feito sua última vítima agora que Stevie McConnell estava na cadeia. Depois que ele foi solto em seguida ao primeiro período de interrogatório, ficou intensamente consciente de que todos no trabalho, equipe e clientes, estavam evitando-o, recusando-se a olhá-lo nos olhos. Um drinque num bar de Temple Fields onde ele era freguês há anos tinha sido o suficiente para lhe mostrar que a solidariedade gay o havia deserdado misteriosamente também. A polícia e a imprensa claramente pensavam que ele era um psicopata. E até que eles pegassem o Assassino de Bonecas, Bradfield não seria um lugar acolhedor para Stevie McConnell. A decisão de se mudar para Roterdã, onde um ex-amante administrava uma academia, pareceu fazer sentido na ocasião. Não lhe ocorreu que eles estariam atrás dele.
A ironia de que, inicialmente, tudo isso lhe havia acontecido porque correra para defender um policial não foi algo que Stevie deixou de perceber. Ele deu uma risada amarga. Aquele grande sargento do nordeste da Inglaterra estava provavelmente contando suas bênçãos por ter sido atingido por metade de um tijolo, achando que essa era a única coisa que o tinha salvado de ser a próxima vítima do assassino. A realidade era que Stevie McConnell era a única vítima naquela noite. E isso não ia mudar. Mesmo sua família escandalizada não queria saber, de acordo com seu advogado.
Deitado ali, examinando seu futuro sem arroubos de emoção, ele chegou a uma decisão. Com uma careta de dor, Stevie rolou para fora do beliche e tirou a camisa, estremecendo com a pontada de dor em suas costelas. Com os dentes e as unhas, desfez pacientemente as costuras que uniam o brim. Na ponta afiada de uma mola da cama, ele rasgou as bordas do material de modo que pudesse fazer tiras finas, que entrelaçou para que ficassem mais fortes. Ele prendeu uma extremidade da amarra improvisada em volta do pescoço num laço apertado, depois subiu no beliche de cima. Amarrou a outra extremidade de sua curta corda na grade inferior da cama de cima.
Então, às nove e dezessete de uma manhã ensolarada de domingo, ele se jogou de cabeça da beirada da cama.
Como uma empresa em dificuldades que recebeu uma oferta inesperada para se salvar da falência, a delegacia de Scargill Street estava agitada com uma intensa atividade. No centro de tudo isso estava a sala da equipe HOLMES, onde os policiais olhavam para telas, manipulando as novas informações, avaliando as novas correspondências que o sistema apresentava.
Em sua sala, Brandon conduzia um conselho de guerra com seus quatro inspetores e Tony, todos eles segurando uma fotocópia das observações de Brandon em sua entrevista com Terry Harding. O chefe de polícia assistente tinha tido apenas cinco horas de sono, mas a perspectiva de andamento na investigação lhe dera nova energia, traída somente pelas olheiras pesadas em volta de seus olhos fundos.
— Para recapitular, então — disse Brandon. — Às sete e quinze da noite, aproximadamente, Damien Connolly foi morto, um homem dirigiu de sua garagem em algum tipo de 4x4 grande, de cor escura. Ele saiu do 4x4 para fechar a porta da garagem, e foi então que nossa testemunha o viu melhor. A descrição que temos é de um homem branco, de um metro e setenta e oito a um metro e oitenta e três, com idade entre vinte e vinte e cinco anos, possivelmente com o cabelo amarrado atrás num rabo de cavalo. Usava tênis branco, jeans e um casaco longo de algodão encerado. Durante a noite, a equipe do HOLMES vem analisando os veículos registrados em Temple Fields que estão de acordo com a descrição. A maioria desses motoristas já tinha sido interrogada, mas todos eles serão acompanhados e interrogados mais detidamente agora que temos os indícios de Terry Harding. Bob, quero que fique responsável por isso, e verifique também os álibis.
— Certo, chefe — disse Stansfield, removendo as cinzas do cigarro com um movimento determinado.
— Ah, e Bob? Você pode conseguir que alguém confirme se Harding esteve mesmo no Japão a semana inteira numa viagem de negócios? Quero ter certeza de que não deixamos nada de fora.
Stansfield assentiu com a cabeça.
— Estou mandando uma viatura para buscar Harding às onze horas — prosseguiu Brandon, conferindo a lista que preparara na cozinha às sete. — Carol, quero que você faça a entrevista. Verifique qual empresa de táxi Harding usou para pegá-lo no aeroporto, vamos ver se conseguimos restringir esse tempo um pouco mais. Tony, gostaria que você fizesse parte disso. Talvez possa nos ajudar com as estratégias para melhorar as recordações dele, ver se podemos conseguir alguma descrição segura da aparência desse sujeito.
— Farei o melhor que puder — concordou ele. — No mínimo, provavelmente poderei distinguir entre o que ele lembra e o que ele acha que lembra.
Brandon lançou-lhe um olhar estranho, mas continuou assim mesmo.
— Kevin, quero que organize uma equipe para visitar os showrooms de carros, consiga o máximo de brochuras e pôsteres que puder de veículos de tração nas quatro rodas para que possamos mostrá-los ao sr. Harding e ver se ele pode nos fornecer uma identificação positiva.
— Sim, senhor. Quer que voltemos aos vizinhos dos casos anteriores, para verificar se alguém notou o mesmo veículo lá? — perguntou Kevin com ansiedade.
Brandon refletiu por um momento.
— Vamos ver como prosseguimos hoje — disse ele após alguns instantes. — Seria preciso muito pessoal e tempo para seguir por esse caminho novamente, e podemos não precisar. Provavelmente vale a pena ter uma palavra com o resto dos vizinhos na rua de Connolly, no entanto. Agora que temos alguma coisa específica para lhes perguntar. Boa ideia, Kevin. Pois bem, Dave. O que você pode fazer por nós?
Woolcott descreveu as ações que a equipe HOLMES já estava desempenhando.
— Como é domingo, estou deixando de contatar a Swansea até que tenhamos restringido o veículo. Quanto mais informações pudermos lhes fornecer, com menos possibilidades teremos de lidar. Se esse sujeito Harding puder nos dar a marca, modelo e o ano, ou pelo menos eliminar alguns modelos, poderemos pedir à Agência de Licenciamento de Veículos uma lista de todos os veículos correspondentes no Reino Unido. Então poderemos começar a entrevistar os donos registrados, começando com Bradfield, depois nos distanciando progressivamente. É uma trabalheira dos diabos, mas chegaremos lá no final.
Brandon assentiu, mostrando que registrava a informação.
— Alguém conseguiu mais alguma coisa?
Tony levantou a mão.
— Se estiver interrogando os vizinhos mesmo, pode valer a pena estender as investigações um pouco.
Todos os olhos estavam nele, mas ele só estava ciente dos de Carol. O que tinha acontecido entre eles tinha aguçado seu desejo de ser fundamental para capturar o Faz-tudo.
— Esse sujeito é um perseguidor, não acho que ninguém questionaria isso agora. Acredito que ele vinha observando Damien Connolly por um tempo. Como estamos no meio do inverno, não é o tempo ideal para ficar por aí em lugares abertos. É provável que ele tenha feito grande parte de sua espionagem de dentro do carro. Ele provavelmente não parava no próprio beco, já que ficaria muito visível numa rua tão pequena. Imagino que estacionava na rua que percorre a parte mais baixa, em algum lugar em que tivesse a casa em sua linha de visão. Talvez alguém lá tenha notado um veículo desconhecido estacionado do lado de fora por longos períodos.
— Boa ideia — disse Brandon. — Kevin, pode cuidar disso?
— Sim, senhor. Vou colocar os rapazes nisso.
— E as moças — disse Carol, com doçura. — Talvez devêssemos pedir a eles que não se concentrem no veículo de tração nas quatro rodas. Se esse sujeito for tão cuidadoso quanto achamos que é, ele pode usar o 4x4 para as capturas e tentar algo diferente quando está fazendo as perseguições, para o caso de algum vizinho intrometido ter registrado seus horários.
— O que você acha, Tony? — perguntou Brandon.
— Não me surpreenderia — disse ele. — É importante que não esqueçamos como esse assassino é competente. Pode até mesmo estar usando carros alugados.
Dave Woolcott gemeu.
— Ah, meu Deus, não faça isso comigo.
Bob Stansfield ergueu os olhos do bloco onde estava escrevendo os nomes de sua equipe.
— Imagino que as outras linhas de investigação que o dr. Hill sugeriu vão ficar suspensas por enquanto?
Brandon crispou os lábios com gravidade. A euforia tinha morrido em algum lugar durante a reunião. O peso do trabalho à frente parecia insustentável; e a ideia de encontrar o assassino, quase tão distante quanto antes de Terry Harding entrar na delegacia.
— Certo. Sem querer desrespeitá-lo, Tony, mas suas sugestões são hipóteses, e o que temos agora é nosso primeiro conjunto de fatos concretos.
— Sem problema — disse Tony. — Indícios concretos sempre vêm primeiro.
— E a ideia de Carol sobre o computador? Ainda devemos segui-la? — perguntou Dave.
— O mesmo se aplica a ela — respondeu Brandon. — É um palpite, não é um fato. Então, sim, fica suspensa.
— Com o devido respeito, senhor — interveio Carol, determinada a não ser relegada a uma participação menor. — Mesmo que Terry Harding nos dê uma identificação positiva da marca e do modelo do veículo, podemos não avançar. Precisamos de outros fatores de eliminação antes que possamos restringir as coisas. Se eu estiver certa sobre o computador, estaríamos olhando um segmento tão pequeno da população que poderia ser significativo se fizermos a correspondência cruzada dos dados.
Brandon considerou a ideia por um momento, depois disse:
— Argumento aceito, Carol. Tudo bem, podemos ir atrás disso, Dave, mas não como uma prioridade. Somente quando tivermos pessoal liberado da investigação principal. Certo, estamos todos cientes do que temos de fazer? — Ele olhou em volta com expectativa, registrando uma série de acenos de cabeça. — Tudo bem, equipe — acrescentou Brandon, com severidade na voz. — Vamos correr atrás disso.
— E que a força esteja com você — murmurou Kevin para Carol enquanto eles saíam do escritório.
— Eu prefiro a força à imprensa marrom — disse ela secamente, dando as costas para ele. — Tony, podemos encontrar um lugar tranquilo e planejar nossa estratégia para o interrogatório?
— A única forma de conseguir extrair mais dele é por meio de hipnose — disse Tony, enquanto eles conversavam no corredor depois de uma hora com Terry Harding.
— Sabe fazer isso? — perguntou Carol.
— Conheço a técnica básica. Julgando por seus movimentos oculares e linguagem corporal, ele estava falando a verdade sobre o que viu, sem inventar nem exagerar nada, então pode transmitir mais detalhes sob hipnose, particularmente se tivermos fotos para lhe mostrar.
Dez minutos mais tarde, Carol estava de volta com uma pilha de brochuras de automóveis que a equipe de Kevin tinha coletado nas concessionárias da cidade.
— É disso que precisamos?
Tony assentiu.
— Perfeito. Tem certeza de que quer que eu tente isso?
— Deve valer a pena tentar — disse Carol.
Eles andaram de volta à sala de interrogatório, onde Terry Harding estava terminando uma caneca de café.
— Posso ir embora agora? — perguntou ele, pesaroso. — Só porque tenho um voo agendado para Bruxelas amanhã e nem desfiz minha mala.
— Não vai demorar muito mais, senhor — disse Carol, sentando-se num lado da mesa. — O dr. Hill gostaria de tentar algo com o senhor.
Tony sorriu de modo tranquilizador.
— Temos algumas fotos de veículos 4x4 do tipo que o senhor viu deixando a garagem de Damien. O que eu gostaria de fazer, se concordar, é colocá-lo num leve transe hipnótico e pedir que dê uma olhada nelas.
Harding franziu as sobrancelhas.
— Por que não posso simplesmente vê-las como estou?
— As chances de reconhecer o modelo específico são melhores — explicou Tony suavemente. — A questão é que, sr. Harding, o senhor é obviamente um homem muito ocupado. Desde que viu o incidente, já viajou para o outro lado do mundo, teve uma série de reuniões de negócios importantes e provavelmente não teve tempo suficiente de sono. Tudo isso significa que sua mente consciente deve ter arquivado os detalhes do que o senhor viu no último domingo. Usando a hipnose, posso ajudá-lo a recuperar essas informações.
Harding parecia em dúvida.
— Não sei. Sempre achei que, se me fizessem entrar nesse estado, poderiam me forçar a dizer qualquer coisa.
— Infelizmente, esse não é o caso. Se fosse, os hipnotizadores seriam todos milionários — brincou Tony. — Como disse, tudo que ela faz é trazer à luz coisas que estão ocultas porque não são importantes.
— O que preciso fazer? — disse Harding, desconfiado.
— Só ouvir a minha voz e seguir minhas instruções — disse Tony. — Você vai se sentir um pouco estranho, um pouco desorientado, mas estará no controle o tempo inteiro. Uso uma técnica chamada programação neurolinguística. É muito relaxante, prometo.
— Tenho que me deitar ou não?
— Nada disso. Vou balançar um relógio na sua frente. Está preparado para tentar?
Carol suspendeu a respiração, observando Harding enquanto uma mistura de expressões entrava em conflito no rosto dele. Finalmente, ele assentiu.
— Duvido que consiga me hipnotizar — disse ele. — Sou um homem que conhece a própria mente. Mas estou disposto a tentar.
— Tudo bem — respondeu Tony. — Quero que relaxe. Feche os olhos se for mais confortável. Agora, quero que vá fundo dentro de si mesmo...
Eufóricos com o sucesso, Tony e Carol entraram energicamente na sala da delegacia de homicídios. Bob Stansfield estava de pé ao lado da janela, olhando para a rua encharcada embaixo, com os ombros caídos, um cigarro desprezado queimando em sua mão. Ele olhou em volta e Carol gritou:
— Anime-se, pode ser que nunca aconteça.
Stansfield se virou e disse com amargura:
— Você obviamente não ficou sabendo da notícia.
— Que notícia? — perguntou Carol, andando até ele.
— Stevie McConnell se enforcou.
Carol balançou sobre seus saltos e tropeçou numa mesa. Seus ouvidos estavam tinindo, e ela achou que fosse desmaiar. Instintivamente, Tony avançou à frente e a guiou até uma cadeira.
— Respire fundo, Carol. Fundo e devagar — disse ele, suavemente inclinado sobre ela, fitando seu rosto pálido.
Ela fechou os olhos, afundou as unhas na palma das mãos e obedeceu.
— Desculpe — disse Stansfield. — Foi um baque para mim também.
Carol ergueu os olhos e desviou os cabelos da testa, que ficou pegajosa de repente.
— O que aconteceu?
— Ao que parece, ele foi vítima de agressão ontem. Um tratamento especial para casos sexuais, pelo que disseram. Então, esta manhã ele rasgou a camisa e se enforcou. A porra dos guardas nem por um momento notaram, porque estavam no meio de uma operação padrão — acrescentou de um modo brutal.
— Coitado — disse Carol.
— Vai ser um pandemônio — previu Stansfield. — Estou feliz que isso não tem porra nenhuma a ver comigo. Pelo menos não vai ser o meu na reta. Quer dizer, Brandon tem as costas quentes, então vai ser a porra de um inspetor que vai levar a culpa.
Carol o olhou como se desejasse bater nele.
— Às vezes, Bob, você realmente torra o saco — disse ela, friamente. — Onde está o Brandon?
— Na sala do HOLMES. Provavelmente se escondendo do chefe de polícia.
Eles encontraram Brandon e Dave Woolcott fechados no cubículo do inspetor, na saída da sala principal.
— Temos certeza da marca, senhor — anunciou Carol, com o vigor abalado pela notícia de Stansfield. — Sabemos que carro ele estava dirigindo.
Penny Burgess saiu da estrada principal e enveredou pela trilha do Departamento Florestal que levava ao coração da floresta. Tinha como meta um estacionamento e a área de piquenique no meio da mata. Era um dos seus lugares favoritos para caminhar entre as árvores e subir até as escarpas de arenito sem vegetação, onde o vento podia soprar para longe todas as impurezas da semana. Ela certamente precisava disso depois dos últimos dias de trabalho duro, matérias importantes e sono insuficiente.
A música na rádio terminou e o locutor disse:
— E agora, direto para a redação, para as manchetes da hora.
Em seguida veio a vinheta de notícias, depois uma mulher disse numa voz muito animada para o assunto:
— Notícias da hora da Northern Sound. Um homem que foi interrogado pela polícia de Bradfield em relação aos assassinatos em série que aterrorizaram a cidade foi encontrado morto nesta manhã em sua cela na prisão de Barleigh.
Em choque, Penny tirou o pé do acelerador e foi lançada para a frente quando o carro parou.
— Merda — exclamou ela, esticando a mão para aumentar o volume.
— Acredita-se que Steven McConnell tenha cometido suicídio se enforcando com um laço feito com suas próprias roupas. McConnell, o gerente de uma academia de fisiculturismo na cidade, foi preso na semana passada depois de uma briga de rua envolvendo um policial à paisana no bairro gay da cidade — continuou a repórter, dando ao mundo a impressão de que anunciava os resultados do Festival da Canção do Eurovision. — Ele foi liberado sob fiança, mas detido novamente depois de tentar deixar o país. Um porta-voz do Ministério do Interior disse que haverá um inquérito completo quanto às circunstâncias de sua morte. A economia nunca esteve melhor, disse o primeiro-ministro hoje...
Penny girou a chave na ignição e virou perigosamente na direção oposta no acesso estreito, antes de pisar no acelerador e voltar à estrada. Ainda bem, pensou, que ela já tinha decidido dispensar Kevin. Depois da matéria que ela estava prestes a escrever, ela não podia imaginar que ele um dia fosse querer vê-la de novo.
• • •
Tony tamborilou os dedos nas costas do assento do táxi, com uma inquietude curiosa que o dominava. Deixar a Scargill Street não fora fácil, mas ele sabia que não tinha nenhum papel a desempenhar enquanto a polícia trabalhava em seu único indício concreto. A última coisa de que eles precisavam nesse turbilhão de censura e atividade persistente era que ele ficasse ali lembrando os policiais de todas as razões pelas quais nunca se convencera de que Stevie McConnell era o homem que procuravam.
Seu consolo era que tinha certeza de que Angelica lhe telefonaria naquela noite. Enquanto o táxi zunia pelas ruas molhadas e vazias, Tony ensaiou a conversa. Ele sentia uma nova confiança, uma certeza de que esta noite não teria nenhum problema, que tinha finalmente dominado seus fantasmas, graças à sua estranha terapia erótica. Ele lhe diria que ela não fazia ideia de como seus telefonemas tinham sido importantes para ele. Que ela o tinha ajudado mais do que podia saber. Satisfeito por ter as coisas sob controle, Tony suspirou, relaxado, e tirou o Faz-tudo da cabeça.
Penny Burgess abriu uma lata de Guinness, acendeu um cigarro e ligou o computador. Depois de dar vários telefonemas para confirmar a versão dos eventos que ouvira na rádio, ela se inflamou com um entusiasmo hipócrita que apenas políticos, jornalistas e pastores fundamentalistas parecem capazes de canalizar para seu progresso profissional.
Inalou uma longa lufada de fumaça, pensou por um momento, depois começou a bater nas teclas.
O serial killer de Bradfield fez sua quinta vítima ontem (domingo) quando o fisiculturista gay Stevie McConnell se matou na cela de uma prisão.
A polícia havia insinuado que o próprio McConnell era o Assassino de Bonecas, numa tentativa cínica de compelir o verdadeiro assassino a agir.
Mas esse exercício tortuoso terminou em tragédia, quando McConnell, de trinta e dois anos, enforcou-se com uma corda improvisada feita com sua própria camisa rasgada. Ele a atou ao beliche superior em sua cela solitária, na prisão de Barleigh, e se estrangulou.
Na noite passada, um policial envolvido na investigação do Assassino de Bonecas admitiu: “Sabemos há muitos dias que Stevie McConnell não era o assassino.”
McConnell havia pedido que a equipe prisional o pusesse numa cela isolada depois de um ataque bárbaro de presidiários como ele no dia anterior.
Uma fonte interna da prisão de Barleigh disse: “Ele levou uma verdadeira surra. Os rumores quando ele chegou davam conta de que ele era o Assassino de Bonecas, só que a polícia ainda não tinha indícios suficientes para acusá-lo.
“Presidiários não gostam de assassinos sexuais, e tendem a expressar esses sentimentos. McConnell recebeu uma surra brutal. Ele foi espancado e agredido sexualmente também.”
Conforme relatos, os carcereiros fizeram vista grossa para o espancamento selvagem do prisioneiro. Assim, ontem (domingo), por causa de uma operação padrão dos policiais da prisão, McConnell foi deixado por sua própria conta na cela por tempo suficiente para acabar com a vida. Um porta-voz do Ministério do Interior disse que haverá um inquérito completo sobre o incidente.
McConnell gerenciava a academia de ginástica Bodies no centro da cidade, onde a terceira vítima do assassino, o advogado Gareth Finnegan, era associado.
Ele foi acusado de agressão leve depois de sair em defesa de um sargento da polícia à paisana que foi atacado por um terceiro homem no bairro gay de Temple Fields.
Em seguida, tentou deixar o país enquanto estava sob fiança. A polícia o deteve novamente, quando estava prestes a entrar numa embarcação para a Holanda, e persuadiu os juízes leigos a devolvê-lo à prisão.
Uma fonte da polícia revelou: “O que fizemos levou as pessoas a pensarem que McConnell era o assassino, e era isso que queríamos.
“Serial killers são muito vaidosos. Pensamos que o assassino ficaria tão escandalizado que tivéssemos indicado a pessoa errada que sairia às claras e faria contato.
“Tudo saiu terrivelmente errado.”
Um amigo de McConnell disse na noite passada: “A polícia de Bradfield é a assassina. Pelo que me consta, foram eles que mataram Stevie.
“Os policiais o interrogaram longamente sobre os assassinatos. Eles os puseram sob todo tipo de pressão.
“Muito embora tenham deixado que ele partisse depois, não é fácil se livrar de uma mancha assim.
“Ele foi tratado com frieza no trabalho e nos bares gays.
“Foi por isso que decidiu fugir. É uma tragédia. Pior do que isso, é uma tragédia sem sentido.
“Isso não fez a polícia avançar um centímetro na busca do assassino.”
Penny acendeu outro cigarro e leu sua cópia.
— Agora, tente sair dessa, Kevin — disse ela baixinho, apertando as teclas que salvariam o arquivo e o transmitiriam via modem para o computador do escritório. Então, como algo que lhe ocorreu depois, digitou:
Memorando para a redação.
De Penny Burgess, editoria de crimes.
Estou tirando folga amanhã (segunda-feira) para compensar as horas extras da semana passada e de ontem. Espero que isso não cause problemas demais!
— Um Land Rover Discovery, cinza metálico ou azul-escuro? — confirmou Dave Woolcott, fazendo uma anotação no bloco.
— Foi o que o homem disse — confirmou Carol.
— Certo. Como hoje é domingo, não consigo um relatório completo da Swansea sobre cada veículo como esse no nosso território — explicou Dave.
— O que podemos fazer, no entanto, é mandar uma equipe visitar as principais concessionárias e os vendedores de usados, perguntando por registros de qualquer um que tenha comprado um desses — sugeriu Kevin. Como todos eles, ele estava agitado, com uma empolgação apenas ligeiramente temperada pela notícia trágica de Barleigh.
— Não — recusou Brandon. — Isso seria um desperdício de tempo e pessoal. Não há nenhuma garantia de que o assassino tenha comprado seu veículo em estabelecimentos locais. Esperaremos até amanhã de manhã. Aí trabalharemos o mais rápido possível.
Todos pareciam decepcionados, embora reconhecessem a força do argumento de Brandon.
— Nesse caso, senhor — disse Carol —, eu gostaria de trabalhar com Dave compilando listas de fornecedores de hardware e software de computador, de modo que estejamos prontos para começar assim que haja pessoal livre para atacar os telefones.
Brandon assentiu.
— Bem pensado, Carol. Agora, por que o restante de nós não volta para casa e relembra a aparência do lugar onde mora?
Tony estava estirado no sofá, tentando se convencer de que estava aproveitando o luxo de assistir à TV quando a campainha tocou. A esperança de que a companhia viesse resgatá-lo do tédio inquietante levantou-o num salto e o levou direto ao corredor. Ele abriu a porta, já com um sorriso se espalhando pelo rosto.
O sorriso morreu no meio do caminho quando percebeu que estava sem sorte. Havia uma mulher à porta, mas não era uma de suas amigas ou colegas. Ela era alta, com ossos largos, feições pesadas e rudes, e maxilares quadrados e fortes. Afastando os longos cabelos escuros do rosto, disse:
— Desculpe incomodá-lo, mas meu carro quebrou e não sei onde há um telefone público. Poderia usar seu telefone para ligar para a seguradora? Eu pago a ligação, é claro...
Sua voz foi diminuindo, e ela sorriu, como quem pede desculpas.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 017
Quando avistei o sargento Merrick no Sackville Arms, pensei que ia desmaiar. Só tinha ido lá porque sabia que os detetives da Scargill Street usavam o lugar. Queria ouvir quais eram as fofocas na delegacia de homicídios. Queria ouvi-los falar sobre mim e minhas conquistas. A última coisa que esperava era ver um rosto tão familiar me olhando.
Estava numa mesa discreta, num canto, quando vi Merrick entrar. Ponderei se devia ou não ir embora, mas concluí que isso poderia me tornar visível. A última coisa que eu queria era que ele me reconhecesse e me seguisse por qualquer motivo que fosse. Além disso, por que eu devia permitir que um policial me forçasse a abandonar meu horário de almoço?
Mas não conseguiria evitar a agitação em meu estômago caso ele me visse e viesse falar comigo. Não tinha medo dele, mas não queria chamar atenção. Por sorte, ele estava com dois de seus colegas, e eles estavam muito ocupados discutindo alguma coisa — provavelmente sobre mim, se eles soubessem — para prestar muita atenção a qualquer outra pessoa. Reconheci a mulher pelos jornais. Inspetora Carol Jordan. Ela é mais bonita pessoalmente do que nas fotos, talvez porque seus cabelos têm um belo tom de louro. O outro homem eu nunca tinha visto antes, mas registrei seu rosto para referência futura. Cabelos vermelho-cenoura, pele branca, sardas, traços de menino. E, é claro, Merrick, consideravelmente mais alto que os outros, com algum tipo de curativo na cabeça. Queria saber como ele foi arrumar aquilo.
Nunca odiei Merrick do jeito que odiei alguns dos outros, muito embora ele tenha me prendido algumas vezes. Ele nunca me tratou com o mesmo desdém. Nunca me olhou com escárnio quando me prendia. Mas eu conseguia perceber que ainda assim ele me via como um objeto, uma pessoa indigna de respeito. Nunca compreendeu que, quando eu vendia meu corpo para os marinheiros, havia um propósito. No entanto, o que quer que eu tenha feito naquela época já não é importante agora. Hoje sou diferente, sou uma pessoa transformada. O que aconteceu em Seaford parece tão irrelevante e remoto quanto algo que eu tenha visto no cinema.
De forma curiosa, estar na presença justamente dos policiais que tentavam me encontrar era bastante empolgante. Senti verdadeira excitação em estar a apenas alguns metros de distância dos meus perseguidores, que não sentiam a presença da presa. Eles nem mesmo tinham sexto sentido suficiente para perceber que havia algo extraordinário acontecendo, nem mesmo Carol Jordan. Isso é que é intuição feminina. Eu encarava aquilo como uma espécie de teste, uma medida da minha habilidade de iludir meus perseguidores. A ideia de que eles podem me pegar é absurda, é impensável.
Senti-me tão forte depois desse encontro que o jornal do dia seguinte atingiu-me como uma pancada de um saco de areia. Estava andando pela sala do computador principal quando vi a primeira edição do Sentinel Times largada numa mesa de algum engenheiro júnior. A manchete QUINTO CORPO NO FUROR DO ASSASSINO DE BONECAS saltava para mim.
Queria me enfurecer e gritar, atirar coisas pela janela. Como eles ousavam? Meu trabalho é tão pessoal, como podiam confundir a obra de algum imitador descuidado com uma das minhas?
Estava tremendo com a ira contida quando voltei para meu escritório. Queria perguntar ao engenheiro se eu podia dar uma olhada no jornal, mas achei que não seria prudente. Queria sair correndo dali para a banca mais próxima e comprar um exemplar. Mas isso teria sido uma fraqueza imperdoável. O segredo do sucesso, disse com meus botões, era agir normalmente. Não fazer nada que faria meus colegas pensarem que havia algo estranho acontecendo em minha vida.
— Paciência — convenci-me — é uma virtude cardinal.
Então me sentei em minha mesa, mexendo com as complicações de um software que precisava ser reescrito. Mas meu coração não estava nisso, e eu sabia que não estava justificando meu salário naquela tarde. Às quatro horas, não podia mais suportar. Peguei o telefone e disquei o número especial que transmite a Bradfield Sound.
A reportagem era a principal notícia do boletim, como tinha de ser.
— O corpo de um homem encontrado na área de Temple Fields nas primeiras horas da manhã não é a quinta vítima do serial killer que trouxe terror à comunidade gay de Bradfield, revelou a polícia esta tarde.
Enquanto as palavras do repórter eram assimiladas, senti minha raiva se esvair, o vazio dentro de mim me preenchendo de novo.
Sem esperar mais, bati o telefone. Finalmente eles acertaram alguma coisa. Mas eu havia passado quatro horas infernais por causa do erro deles. Cada hora que eu sofrera seria mais uma hora acrescida à agonia do dr. Tony Hill, prometi.
Porque a polícia de Bradfield havia agora cometido o maior dos absurdos. O dr. Tony Hill, o idiota que não tinha reconhecido ainda que todos os crimes pertenciam a mim, foi apontado consultor oficial da polícia na investigação do serial killer. Coitados dos tolos iludidos. Se essa era a melhor esperança deles, então claramente não tinham esperança alguma.
17
Num assassinato de pura volúpia, completamente desinteressado, onde nenhuma testemunha suspeita será removida, nenhuma recompensa será ganha, nenhuma vingança será satisfeita, é claro que apressar-se seria arruiná-lo inteiramente.
A agonia era tão extrema que Tony queria acreditar que estava num pesadelo. Ele nunca tinha compreendido antes quantos tipos diferentes de dor existiam. A cabeça latejava levemente; a garganta arranhava, áspera; a dilaceração óbvia e retorcida dos ombros; e as agulhadas das cãibras em suas coxas e batatas da perna. A princípio, a dor bloqueou todos os outros sentidos. Seus olhos se fechavam com força, e tudo que conhecia era um sofrimento tão intenso que fazia o suor lhe brotar da testa.
Gradualmente, ele aprendeu a suportar os extremos da dor, percebendo que se colocasse seu peso sobre os pés, as cãibras iriam diminuir lentamente e o rasgão excruciante em seus ombros aumentaria com menor velocidade. À medida que o tormento se tornava mais tolerável, ele percebia com mais nitidez que se sentia enjoado; um mal-estar profundo depositado em seu estômago que ameaçava ser expelido a qualquer momento. Só Deus sabia por quanto tempo ele vinha aguentando aquilo.
Devagar, com medo, ele abriu os olhos e levantou a cabeça, um movimento que enviou um espasmo de agonia por seu pescoço e ombros. Tony observou em volta. Instantaneamente, arrependeu-se do que fez. Ele soube imediatamente onde estava. O recinto era iluminado com luzes brilhantes. Refletores instalados no teto e nas paredes revelavam um cômodo caiado, seu piso de pedra bruta marcado com manchas escuras que ele sabia, sem examinar, que eram os vestígios visíveis de sangue empoçado e esparramado. De frente para ele estava o olho cego de uma câmera num tripé, uma luz vermelha lateral indicando que seu escrutínio não estava deixando de ser registrado. Preso à parede distante havia uma faixa magnética com uma coleção de facas penduradas organizadamente. Num canto do quarto, ele viu os aparelhos inconfundíveis de tortura. Um potro; um aparato estranho parecido com uma cadeira que ele reconhecia, mas não conseguia lembrar o nome imediatamente. Seria algo religioso? Algo vagamente cristão? Algo traiçoeiro, que não era o que parecia? Um berço de Judas, era como se chamava. E, na parede, uma cruz de santo André imensa de madeira, uma espécie de relíquia sagrada medonhamente deturpada. Tony deixou escapar um gemido baixinho de seus lábios secos.
Agora que sabia do pior, avaliou sua própria situação. Ele estava nu, sua pele arrepiada no frio do porão. As mãos, presas atrás das costas. A julgar pelas extremidades rígidas que cortavam seus pulsos, por algemas, mantidas esticadas por sua vez por uma corda ou corrente ou algo que estava obviamente preso ao teto. Esse cabo estava apertado o bastante para forçar a parte superior do corpo dele para a frente, deixando-o dobrado na cintura. Tony conseguiu se empurrar nas pontas dos dedos dos pés e girar o corpo de lado. Com o canto dos olhos, enxergou uma corda de náilon forte passando por trás dele, por uma polia, pela extensão do teto, depois por outra polia até um guincho.
— Jesus — disse, com a voz áspera. Ele estava com medo de olhar seus pés, para que seus piores temores não fossem confirmados, mas forçou seus olhos para baixo assim mesmo. Como ele temera, cada tornozelo estava envolvido numa correia de couro. As correias, por sua vez, estavam presas a um suporte feito com cordas que segurava uma pesada placa de pedra. Um tremor involuntário de medo o percorreu, tencionando seus músculos torturados ainda mais. Ele tinha conhecimento sobre tortura; para tratar seus pacientes, estudara a história do sadismo. Nem mesmo em seus piores momentos imaginara que enfrentaria um destino tão desumano.
Sua mente já estava agitada. Ele seria içado para cima até que atingisse o teto. Seus músculos seriam torcidos e rasgados; suas juntas, esticadas até o limite. Depois o guincho seria solto, deixando-o cair alguns metros antes que o freio fosse aplicado. O peso da placa de pedra, ainda se movendo rapidamente para baixo acelerada a dez metros por segundo, concluiria o serviço, destroçando suas juntas, deixando-o pendente numa confusão de membros deslocados. Se tivesse sorte, o choque e a dor o deixariam inconsciente. Strappado, transformado numa das belas-artes da Inquisição Espanhola. Não era preciso alta tecnologia na tortura.
Numa tentativa de escapar ao pânico cego que seu conhecimento lhe trouxera, ele se forçou a recordar o que havia ocorrido. A mulher na porta, foi onde começara. Sentira uma sensação desagradável de familiaridade ao deixá-la entrar. Ele tinha certeza de que a vira em algum lugar, mas não conseguia imaginar ter visto alguém tão caracteristicamente desgracioso e não se lembrar. Ele andou na frente dela pelo corredor até seu escritório. Depois, o leve sopro de um cheiro estranhamente medicinal e químico. Em seguida, a mão tinha envolvido furtivamente seu pescoço e apertado um algodão frio e nojento em seu rosto. Um chute atrás dos joelhos para fazer dobrar suas pernas e levá-lo a cair. Ele lutara, mas, com o peso dela sobre ele, apenas um momento havia passado antes que perdesse a consciência.
Depois disso, entrou e saiu de um submundo de luz e escuridão, consciente apenas do algodão que parecia constantemente apagá-lo tão logo ele lutava para voltar à consciência. Até que, finalmente, recobrara os sentidos. Na câmara de tortura do Faz-tudo. Do nada, uma citação brotou em sua mente. “Pode estar certo, senhor, quando um homem sabe que será enforcado numa quinzena, isso concentra sua mente de modo esplêndido.” Em algum lugar, ele sabia que havia uma pista do que acontecera que poderia permitir que escapasse ao que parecia ser inevitável. Tudo que precisava fazer era encontrá-la.
Será que ele tinha errado completamente seu perfil? A mulher que o sequestrara era o Faz-tudo? Ela era a culpada? Ou era apenas o chamariz, a cúmplice voluntária que se empolgava com o vício do mestre? Novamente, ele reconstituiu o que sua memória permitia recuperar. Invocou a imagem dela novamente. Primeiro, as roupas, capa de chuva bege, corte no estilo europeu, igual à de Carol, que estava aberta, revelando uma camisa branca desabotoada o suficiente para mostrar o volume de seios fartos e um decote generoso. Jeans, tênis. Tênis. Eles eram da mesma marca e modelo que os seus. Mas nada disso era importante, Tony disse a si mesmo. Eles eram apenas símbolos exteriores do cuidado que o Faz-tudo tomou para não ser pego. A indumentária da mulher havia sido escolhida de modo que, se ela deixasse alguma fibra solta, não pareceria ter nenhum significado, sendo identificável como das roupas de Carol ou das suas. E Carol havia estado em sua casa com frequência suficiente para ter deixado algumas fibras.
O rosto dela não provocava nenhuma lembrança tampouco. Ela era alta para uma mulher, pelo menos um metro e setenta e oito, combinando com uma estrutura óssea corpulenta. Nem mesmo sua mãe poderia dizer que era atraente, com seu maxilar pesado, nariz levemente bulboso, boca grande e olhos curiosamente separados. Muito embora usasse maquiagem bem-feita, ainda que pesada, não havia muito que pudesse fazer com os materiais de constituição básica. Ele tinha certeza de que nunca estiveram juntos num cômodo, embora não fosse desconsiderar a possibilidade de ter passado por ela na rua, na estação de bonde ou no campus.
O tênis. Por alguma razão, ele ficava voltando ao tênis. Se ao menos a dor parasse por tempo suficiente para que ele se concentrasse adequadamente. Tony prendeu as pernas esticadas, tentando aliviar a dor lancinante nos ombros. A fração de um centímetro que ganhou não foi nem perto o suficiente. Novamente, a dor visceral o dominou e ele deixou cair uma lágrima.
O que havia no tênis? Tony recorreu a cada partícula de concentração que pôde e invocou a imagem da mulher novamente. Arfando lentamente, ele percebeu o que era. Os pés eram grandes demais. Mesmo para uma mulher daquela altura, os pés eram grandes demais. Assim que percebeu isso, ele se lembrou também das mãos. Primeiro, couro negro; depois, finas luvas de látex cobrindo mãos grandes, dedos grossos e fortes. A pessoa que o trouxera ali nem sempre fora mulher.
• • •
Carol apertou novamente a campainha. Onde diabos estava ele? As luzes estavam acesas e as cortinas puxadas. Talvez tivesse dado uma saidinha para pegar uma pizza, postar uma carta, comprar uma garrafa de vinho, alugar um vídeo? Com um suspiro de frustração, ela deu meia-volta, andou até o final da rua, virando no beco que se alongava entre a rua de Tony e as casas atrás. Andou até seu quintal, onde um proprietário anterior tinha demolido a parede e concretado metade da área para fornecer o local rígido onde Tony lhe dissera que sempre deixava seu carro.
O carro estava no lugar, exatamente onde devia. — Ah, maldição — reclamou Carol. Circundando o veículo, ela andou até a casa e olhou pela janela da cozinha. A luz da porta aberta que dava para o corredor lançava uma iluminação pálida sobre o cômodo. Nenhum sinal de vida. Nenhuma louça suja, nenhuma garrafa vazia.
Por via das dúvidas, Carol tentou a porta dos fundos. Nenhum sucesso. — Malditos homens — resmungou ela, enquanto andava até o carro. — Cinco minutos, amigo, depois vou embora — prometeu, lançando-se no assento do motorista. Dez minutos passaram lentamente, mas ninguém apareceu.
Carol deu partida no motor e saiu com o carro. No final da rua, olhou de relance o pub do outro lado da estrada principal. Valia a pena tentar, pensou. Foram necessários menos de três minutos para verificar os ambientes cheios e enfumaçados e descobrir que, onde quer que Tony estivesse, não era no Farewell to Arms.
Onde mais ele poderia ter ido a pé às nove horas de uma noite de domingo? — Para qualquer lugar — disse a si mesma. — Você não pode ser a única amiga dele no mundo. Ele não estava lhe esperando; você só ligou para marcar uma reunião para amanhã.
Desistindo, Carol dirigiu para casa. O apartamento estava vazio. Michael, ela recordava, tinha saído para jantar com alguma mulher que conhecera numa exposição. Ela decidiu desistir do mundo e ir para a cama. Mas, primeiro, era melhor que deixasse uma mensagem na secretária eletrônica de Tony. Se ela aparecesse duas manhãs seguidas sem avisar, ele poderia começar a ficar nervoso. A secretária eletrônica entrou depois de alguns toques, mas não havia mensagem, apenas uma série de cliques seguidos pelo tom. — Oi, Tony — disse ela. — Não sei se sua secretária está funcionando bem, então não sei se vai receber esta mensagem. São nove e vinte, e estou prestes a dormir. Vou estar no escritório logo cedo, trabalhando na pesquisa do computador. O sr. Brandon convocou uma reunião sobre o caso para amanhã, às três. Se quiser me encontrar antes, me ligue. Se não estiver na sala de reuniões da delegacia, estarei na sala da equipe HOLMES.
Sentada com Nelson no colo e uma bebida forte ao lado, Carol pensou no trabalho que tinha pela frente. A lista de empresas fornecedoras de computadores que vendiam periféricos e o hardware que o Faz-tudo precisaria para construir suas próprias imagens era tão longa que dava tristeza. Ela dissera a Dave para não começar a trabalhar naquilo até que ela tivesse oportunidade de verificar a empresa de software. A lista de clientes deles seria menor e eles teriam o Discovery 4x4 para fazer a referência cruzada da lista. Apenas se isso não resultasse em nada, ela liberaria a equipe de Dave para ir atrás das dúzias de números que compilou meticulosamente naquela noite.
— Vamos chegar lá, Nelson — disse ela ao gato. — É melhor que a viagem valha a pena.
• • •
O estalo de saltos altos na pedra se infiltrou no delírio de dor como uma plaina num queijo. Assim, todo dia um som era convertido por seu local numa ameaça. Ele não fazia ideia se era dia ou noite, ou quanto tempo havia se passado desde que fora arrancado de sua vida. Tony se forçou a ficar alerta à medida que o som se aproximava dele por trás. Ela estava descendo. Na base da escada, os estalos cessaram. Ele ouviu uma risadinha grave. Devagar, um degrau de cada vez, os passos seguiam atrás dele. Ele podia sentir o exame meticuloso a que estava sendo submetido.
Ela levou o tempo que precisou, circundando seu corpo amarrado, até que se moveu para a linha de visão dele. Tony ficou momentaneamente surpreso pela imponência do corpo dela. Do pescoço para baixo, ela poderia ser uma modelo de uma revista de soft porn. Ficou de pé com as pernas separadas, as mãos na cintura e os cotovelos virados para fora. Ela vestia um quimono de seda vermelho folgado, que se abriu para revelar um corpete de couro extraordinariamente vermelho com furos nos mamilos e uma abertura na região genital. Meias pretas cobriam perfeitamente pernas musculosas que terminavam em escarpins pretos. Mesmo debaixo da roupa, ele podia ver a silhueta nítida de braços e ombros fortes e musculosos. Da visão de onde estava pendurado, ela era tão sensual quanto emplastro de caulim.
— Já descobriu, Anthony? — disse com a voz arrastada, o entusiasmo da risada contida evidente em sua voz.
A ênfase em seu nome completo foi a última volta no cubo mágico de sua memória. Com a cabeça a mil, Tony disse:
— Imagino que comprimidos de paracetamol nem pensar, não é, Angelica?
A risada grave de novo.
— Fico contente de ver que não perdeu o senso de humor.
— Não, só a minha dignidade. Não esperava isso, Angelica. Nada em nossas conversas por telefone me levou a imaginar que era isso que tinha em mente para mim.
— Você não fazia ideia de quem eu era, fazia? — Angelica falava com um orgulho inconfundível em seu tom de voz.
— Sim e não. Não sabia que era você a pessoa que tinha matado esses homens. Mas sabia que você era a mulher para mim.
Angelica franziu a testa, como se estivesse em dúvida sobre como responder. Ela se virou e verificou a câmera.
— Você levou bastante tempo para chegar a essa conclusão. Faz ideia de quantas vezes bateu o telefone na minha cara? — Havia raiva em sua voz, não mágoa.
Tony percebeu o perigo e tentou achar palavras suaves.
— Isso é porque tenho um problema, não por sua culpa.
— Você tinha um problema comigo — disse ela, andando até os bancos de madeira que iam de um lado ao outro de uma das paredes. Ela pegou outra cassete e andou de volta até a câmera.
Tony tentou novamente.
— Muito pelo contrário — disse ele. — Sempre tive problemas em relacionamentos com mulheres. É por isso que não sabia como tratá-la no começo. Mas melhorou tanto. Você sabe que melhorou. Sabe que juntos fomos maravilhosos. Graças a você, sinto como se tivesse deixado todos os meus dilemas para trás. — Ele esperava que ela não estivesse completamente consciente da ironia não intencional em suas palavras.
Mas Angelica não era nenhuma boba.
— Acho que você pode dizer isso com segurança, Anthony. — Ela abriu um sorriso irônico.
— Sua esperteza me venceu, sabe. Tinha certeza de que o assassino era um homem. Eu bem devia saber.
Com as costas para ele, Angelica trocou as fitas na câmera. Depois se virou e disse:
— Você nunca me teria pegado. E, com você fora do caminho, ninguém mais vai me pegar.
Ignorando a ameaça, Tony continuou a conversar, esforçando-se para manter a voz carinhosa e uniforme.
— Eu devia ter percebido que você era mulher. A sutileza, a atenção aos detalhes, o cuidado a que se deu para limpar o que havia deixado. Foi estúpido da minha parte não perceber que essas eram indicações de uma mente feminina, e não da mente de um homem.
Angelica sorriu com malícia.
— Vocês psicólogos são todos iguais. — Ela proferiu a palavra como se fosse algo obsceno. — Não têm nenhuma imaginação.
— Mas não sou como eles, Angelica. Tudo bem, cometi um engano crucial, mas aposto que sei mais sobre você do que qualquer um dos outros sabia. Porque você me mostrou o interior de sua mente. E não apenas através dos assassinatos. Mostrou-me a mulher de verdade, a mulher que compreende o amor. Mas acho que não entenderam você, entenderam? Eles não acreditaram em você quando disse a eles que tinha uma alma feminina aprisionada num corpo masculino. Ah, suponho que tenham fingido acreditar, que a tenham tratado com condescendência e falado com superioridade com você. Mas, no fundo, eles consideravam você um monstro, não é? Acredite em mim, nunca achei isso.
A voz de Tony falhou quando ele chegou ao fim de seu discurso, sua boca estava seca com uma mistura de medo e clorofórmio. Pelo menos, a adrenalina que corria por suas veias parecia agir como um analgésico.
— O que sabe a meu respeito? — disse ela com rispidez, a dor em seu rosto num contraste estranho com a pose de coquete que havia adotado.
— Se formos conversar, preciso de um drinque — disse Tony, apostando que o narcisismo dela a obrigaria a compartilhar suas proezas, que ela precisava ouvir a versão dele de si mesma. Se quisesse ter alguma chance de escapar com vida, ele precisava construir um relacionamento com ela. Um drinque seria o primeiro tijolo da parede. Quanto mais ele conseguisse fazer que ela o visse como um indivíduo, não como um número, maiores seriam suas chances.
Angelica franziu a testa, desconfiada. Depois virando a cabeça para o lado, gesto que fez seus cabelos se esvoaçarem, virou-se e andou até o tanque instalado na parede. Ela abriu a torneira e olhou em volta vagamente à procura de um recipiente para bebidas de algum tipo.
— Vou buscar um copo — murmurou ela, passando por ele e estalando os degraus novamente.
Tony sentiu uma onda de alívio com essa pequena vitória. Angelica tinha ido há menos de trinta segundos, retornando com uma caneca branca grossa. A cozinha fica em cima, Tony deduziu quando ela voltou até o tanque. Angelica andava bem nos saltos, seus passos medidos e femininos. Era interessante, já que ela havia obviamente regressado aos movimentos mais masculinos sob o estresse do sequestro e do assassinato. Essa era a única forma de justificar a convicção de Terry Harding de que vira um homem ao volante saindo da casa de Damien Connolly.
Angelica encheu a caneca e se aproximou de Tony com cautela. Ela agarrou-lhe os cabelos, puxou sua cabeça para trás de modo doloroso e derramou a água gelada em sua boca. A bebida desceu por seu queixo e garganta, mas o alívio era palpável.
— Obrigado — disse ele, de modo ofegante, quando ela retirou a caneca.
— A gente sempre deve ser hospitaleira com os convidados — respondeu ela, ironicamente.
— Espero continuar sendo um convidado por algum tempo — arriscou Tony. — Sabe, admiro você. Tem estilo.
Ela franziu a testa de novo.
— Não me venha com conversa fiada, Anthony. Não vai me enrolar com bajulação idiota.
— Não é conversa fiada — protestou ele. — Passei dias e noites com olhos fixos nos detalhes do que você conseguiu. Estou tão fundo na sua mente, como poderia não admirar você? Como poderia não ficar impressionado? Os outros que trouxe aqui, eles não faziam ideia de quem você era, do que pode fazer.
— Isso é verdade, vou admitir isso. Eram como bebês, amedrontados e estúpidos bebês — disse Angelica, com desdém. — Não sabiam dar valor ao que uma mulher como eu podia fazer por eles. Eram traiçoeiros, tolos lascivos.
— É porque não conheciam você como eu.
— Você fica dizendo isso. Prove. Prove que sabe alguma coisa sobre mim.
O desafio foi lançado, pensou Tony. Esqueça cantar em troca de pão, fale em troca da vida. Esse era o campo de provas, o lugar onde ele descobriria se sua psicologia era uma ciência de verdade ou apenas conversa fiada.
— Fraser Duncan? Alô, aqui é a detetive-inspetora Carol Jordan da polícia de Bradfield — apresentou-se ela. Carol nunca se acostumava a se referir a si mesma por seu título completo. Ela sentia como se a qualquer momento alguém fosse aparecer e gritar: “Ah, você não é não! Finalmente descobrimos.” Por sorte, não parecia que isso ia acontecer hoje.
— Sim? — A voz era cautelosa, a única sílaba proferida como uma pergunta.
— Na verdade, foi meu irmão, Michael Jordan, quem sugeriu que o senhor poderia me ajudar com uma investigação que estamos fazendo.
— Ah, é? — O clima estava melhorando. — Como vai o Michael? Ele está gostando do software?
— Acho que é seu brinquedo favorito — respondeu Carol.
Fraser Duncan riu.
— Um brinquedo caro, inspetora. Pois bem, o que posso fazer por você?
— É sobre o Vicom 3D Commander que gostaria de falar. Em sigilo absoluto, o senhor entende. Estamos envolvidos numa investigação importante de homicídio, e uma das teorias que estou cogitando é que o assassino possa estar usando seu software para editar os próprios vídeos, talvez até importar outros materiais para eles. Isso seria possível, não seria?
— Mais do que apenas possível. Seria absolutamente simples.
— Então, o senhor mantém registros de todos os seus clientes? — perguntou Carol.
— Mantemos. Não vendemos todos os pacotes diretamente, é claro, mas qualquer um que compre o Commander deve registrar sua compra conosco já que isso lhes fornece acesso a uma linha de atendimento gratuita e também significa que receberão correspondências prioritárias quando desenvolvermos atualizações. — Duncan agora estava bem expansivo. — A senhora está fazendo uma solicitação de acesso ao nosso banco de dados de clientes, inspetora?
— Sim, por favor, senhor. Esta é uma investigação de assassinato e as informações podem ser cruciais para nós. Posso garantir também que isso é completamente confidencial. Eu me envolveria pessoalmente para garantir que seus dados seriam removidos de nosso sistema assim que tivermos terminado com eles — disse Carol, tentando não parecer que estava implorando.
— Não sei — disse Duncan, com hesitação. — Não tenho certeza de que gosto da ideia de você e seus colegas batendo na porta dos meus clientes.
— Não seria assim, sr. Duncan. De jeito nenhum. O que faríamos seria inserir a lista no nosso sistema de investigações do Ministério do Interior e fazer a correspondência cruzada com os dados existentes. Agiríamos apenas nas correlações que surgissem com as pessoas que já estão lá.
— É o serial killer que vocês estão perseguindo? — perguntou Duncan de repente.
Carol perguntou-se momentaneamente o que ele queria ouvir como resposta.
— Sim — disse ela, arriscando.
— Deixe-me retornar a ligação, inspetora. Só para ter certeza de que é quem está dizendo que é.
— Sem problema. — Ela lhe forneceu o número da mesa telefônica da polícia. — Peça a eles para transferir a ligação para mim, na sala do sistema HOLMES, na Scargill Street.
Os cinco minutos seguintes se passaram numa agitação de impaciência. O telefone mal tinha tocado quando Carol o pôs no ouvido.
— Inspetora Jordan.
— Você me deve uma, maninha.
— Michael!
— Acabo de contar a Fraser Duncan a pessoa honrada que você é, e que, apesar do que já ouviu sobre a polícia, ele pode confiar em você.
— Amo você, maninho. Agora, saia do telefone e deixe o homem falar comigo!
Dentro de uma hora, os dados da Vicom estavam na rede de computadores do sistema HOLMES, graças a Dave Woolcott e aos milagres da tecnologia moderna. Carol havia transferido Fraser Duncan para ele, depois que concordaram quanto às regras do uso dos dados, e Carol ouvira sem compreender o fim de uma conversa de Dave que consistia em expressões estranhas como “taxa de baud” e “arquivos ASCII”.
Ela sentou-se ao lado do chefe da equipe HOLMES, enquanto ele trabalhava num dos terminais.
— Tudo bem — disse ele. — Temos a lista da Vicom de pessoas que compraram o software deles. Aperto esta tecla, vou a este menu, nesta opção, correspondência com caracteres-curinga, e agora a gente relaxa e deixa a máquina conversar consigo mesma.
Por um minuto angustiante, nada aconteceu. Depois, a tela ficou limpa e uma mensagem piscou: “[2] correspondências encontradas. Listar correspondências?” Dave apertou a tecla ‘s’ e dois nomes e endereços foram exibidos na tela.
1. Philip Crozier, 23 Broughton Crag, Sheffield Road Bradfield BX4 6JB
2. Christopher Thorpe [critério de classificação 1]/ Angelica Thorpe [critério de classificação 2], 14 Gregory Street, Moorside, Bradfield BX6 4LR
— O que isso significa? — perguntou Carol, apontando para a segunda opção.
— Significa que o Land Rover Discovery está registrado no nome de Christopher Thorpe e o software foi comprado por Angelica — explicou Dave. — Usar a opção de caracteres-curinga fez com que a máquina classificasse por endereço e também por nome. Bem, Carol, você tem alguma coisa. Se isso significa algo ou não, teremos de ver.
Penny Burgess andava pelo calcário fissurado e áspero da Malham Pavement. O céu tinha o brilho azul do início da primavera, a grama áspera da charneca começava a parecer mais verde e marrom. De vez em quando, cotovias alçavam ao céu e despejavam suas canções em seus ouvidos. Houve duas ocasiões em que Penny se sentia realmente viva. Uma era na trilha de uma reportagem importante. A outra era lá na região alta da charneca de Yorkshire Dales e em Derbyshire Peak District. Ao ar livre, ela sentia liberdade igual à das cotovias, toda a pressão tinha ido embora. Não havia nenhuma redação exigindo a matéria pronta até uma hora atrás, nenhum contato a quem se sujeitar, nada de precisar olhar por sobre os ombros para ter certeza de que estava à frente de seus rivais. Apenas o céu, a charneca, a extraordinária paisagem de calcário e ela.
Por alguma razão, Stevie McConnell entrou em seus pensamentos. Ele nunca veria o céu novamente, nunca andaria pela charneca e observaria a mudança das estações. Graças a Deus, ela detinha o poder de garantir que alguém pagaria por essa privação desumana.
A casa de Philip Crozier era moderna, com terraço e três andares, e o piso inferior consistia principalmente numa garagem. Carol sentou-se no carro, observando-a de cima a baixo.
— Vamos entrar, senhora? — perguntou o jovem detetive ao volante.
Carol pensou por um momento. O ideal seria que Tony estivesse com ela quando entrevistasse as pessoas cujos nomes o computador tinha informado. Ela tentou ligar para a casa dele, mas ninguém atendeu. Claire disse que ele não havia chegado ainda ao escritório, o que a surpreendeu já que ele tinha um compromisso às nove e meia. Carol tinha rondado a casa, mas ela parecia exatamente igual à noite anterior. Saiu para se divertir com sua amiga, concluiu ela. Bem feito se perder o confronto com o Faz-tudo, pensou com malícia. Depois, se arrependeu imediatamente de sua infantilidade. Não podendo ter Tony, ela gostaria de poder ter Don Merrick com ela. Mas ele tinha saído em busca de outras linhas de investigação que surgiram a partir da identificação do Land Rover Discovery. A única pessoa que ela conseguiu encontrar que não estava envolvida com urgência em outra coisa foi o detetive Morris, no terceiro mês de sua transferência temporária para o Departamento de Investigações Criminais.
— Já que estamos aqui podemos ver se ele está em casa — disse Carol. — Embora provavelmente esteja no trabalho.
Eles subiram o caminho, e Carol absorveu os detalhes do gramado bem-aparado e da pintura em bom estado. A casa não se adequava realmente ao perfil de Tony. Era mais parecida com as casas das vítimas quanto ao valor e ao status, em vez da casa de alguém que aspira ao estilo de vida que elas têm. Carol apertou a campainha e deu um passo atrás. Eles estavam prestes a desistir e retornar para o carro quando Carol ouviu o som de passos pesados no andar de baixo. A porta se abriu revelando um homem negro parrudo vestindo calças de moletom e uma camiseta vermelha, de pés descalços. Ele não poderia ser mais diferente da descrição de Terry Harding. Ela perdeu as esperanças momentaneamente, depois se lembrou que Crozier podia não ser a única pessoa com acesso a seu software e seu Land Rover Discovery. Ainda valia a pena entrevistá-lo.
— Pois não? — disse ele.
— Sr. Crozier?
— Isso. Quem quer saber? — Sua voz estava relaxada, o sotaque de Bradfield era forte.
Carol exibiu seu distintivo e se apresentou.
— Gostaria de saber se poderíamos entrar e conversar, senhor.
— Sobre?
— Seu nome foi selecionado numa investigação de rotina, e eu gostaria de fazer algumas perguntas com fins de eliminação.
Crozier franziu a testa.
— Que tipo de investigação?
— Se pudéssemos entrar, senhor...
— Não, espere, sobre o que é isso? Estou tentando trabalhar.
Morris se apresentou ao lado de Carol.
— Não há necessidade de criar dificuldades, senhor, é apenas rotina.
— O sr. Crozier não está dificultando, policial — repreendeu Carol friamente. — Eu me sentiria do mesmo modo se estivesse na sua situação, senhor. Um carro que corresponde à descrição do seu se envolveu num incidente, e precisamos eliminar o senhor de nossa investigação. Estamos falando com várias outras pessoas em relação a isso. Não vai demorar.
— Tudo bem, então — suspirou Crozier. — É melhor vocês entrarem.
Eles o seguiram subindo as escadas acarpetadas com fibra até uma sala de estar com cozinha num único ambiente. Ela estava mobiliada num estilo caro, mas minimalista. Ele acenou para duas poltronas de couro e madeira e se sentou num pufe de couro no lustroso piso de madeira. Morris sacou seu caderno e abriu ostensivamente numa nova página.
— O senhor trabalha em casa, então? — perguntou Carol.
— Isso. Sou desenhista de animação autônomo.
— Desenho animado?
— Faço mais animações sobre ciência. Se quiser algo para um curso da Open University que mostre como os átomos colidem, sou a pessoa indicada. Então, de que trata a investigação?
— O senhor dirige um Land Rover Discovery?
— Isso. Está na garagem.
— Pode me dizer se o estava dirigindo na noite de segunda-feira passada? — perguntou Carol. Meu Deus, só tinha se passado uma semana?
— Posso. Não estava. Estava em Boston, Massachusetts.
Ela prosseguiu com as perguntas de rotina que estabeleciam precisamente o que Crozier vinha fazendo e com quem ela podia verificar as informações. Depois, ela se levantou. Hora da pergunta central, mas era importante manter a casualidade.
— Obrigada por sua ajuda, sr. Crozier. Só mais uma coisa: há alguém mais que tenha acesso à sua casa quando o senhor está fora? Alguém que pudesse ter pegado seu carro emprestado?
Crozier balançou a cabeça negativamente.
— Moro sozinho, não tenho nem um gato nem plantas, então ninguém precisa vir quando estou fora. Sou o único que tem as chaves.
— Tem certeza disso? Nenhuma faxineira, nem colega que vem aqui usar seu software?
— Certeza, certeza absoluta. Faço minha própria limpeza. Trabalho sozinho. Terminei com a namorada há alguns meses e troquei as fechaduras, certo? Ninguém tem as chaves, exceto eu.
Crozier estava começando a soar irritado.
Carol insistiu.
— E ninguém poderia ter pegado suas chaves emprestadas sem seu conhecimento e tê-las copiado?
— Não vejo como. Não tenho hábito de deixá-las por aí. E o carro só tem seguro quando eu sou o motorista, então nenhuma outra pessoa jamais o dirigiu — explicou Crozier, com sua irritação claramente aumentando. — Olhe só, se alguém cometeu algum crime num carro com minha placa, eles estavam usando placas frias, está bem?
— Aceito o que está dizendo, sr. Crozier. Posso garantir que se as informações que está me fornecendo se confirmarem, não vai nos ver novamente. Muito obrigada pelo seu tempo.
De volta ao carro, Carol disse:
— Encontre um telefone para mim. Quero tentar ligar para o dr. Hill de novo. Não acredito que ele está ausente do seu posto na única vez que realmente precisamos dele.
DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 018
É risível. Eles escolheram um homem que não consegue sequer identificar se apliquei uma punição específica ou não, e eles o empregam para ajudá-los a me pegar. Podiam ao menos ter tido a decência de contratar alguém que tivesse alguma reputação, um oponente digno das minhas habilidades, não algum idiota que nunca lidou com alguém da minha categoria.
Mas, em vez disso, eles me insultam. O dr. Tony Hill deve fazer um perfil meu, com base em sua análise dos meus assassinatos. Quando esse relato for publicado, daqui a anos, depois de minha morte na cama por causas naturais, os historiadores poderão comparar seu perfil com a realidade e rir das imprecisões grosseiras de sua pseudociência.
Ele nunca chegará perto da verdade. Para que fique registrado, eu escrevi essa verdade.
Nasci no porto de Seaford, em Yorkshire, uma das docas de pesca e comércio mais movimentadas do país. Meu pai era da marinha mercante, imediato em navios-petroleiros. Ele viajava o mundo todo, depois voltava para nossa casa. Mas minha mãe era tão ruim como esposa quanto era no papel materno. Posso ver agora que a casa estava sempre um caos, as refeições eram irregulares e pouco apetitosas. A única coisa em que era boa, a única coisa que os dois tinham em comum, era a bebida. Se houvesse campeonato em duplas nas Olimpíadas para pinguços, eles teriam conquistado a medalha de ouro.
Quando eu tinha sete anos, meu pai deixou de voltar para casa. É claro, minha mãe me culpou por não ser um filho bom o bastante. Ela disse que eu o afastara. Disse que eu era o homem da casa agora. Mas eu nunca consegui fazer jus às suas expectativas. Ela sempre queria mais de mim do que eu era capaz de oferecer, e estabelecia sua autoridade por meio da culpa e não do elogio. Passei mais tempo dentro do armário do que os casacos da maioria das pessoas.
Sem o cheque do meu pai, ela foi forçada a recorrer ao serviço de bem-estar social, que mal era suficiente para viver, quanto mais beber. Quando a sociedade de socorro mútuo tomou a casa, fomos viver com parentes em Bradfield por um tempo. Porém, ela não conseguia lidar com a desaprovação deles, por isso voltamos para Seaford e ela passou a se dedicar a outra indústria próspera da cidade: a prostituição. Acostumei-me cada vez mais à procissão de marinheiros nojentos e bêbados rondando os muitos apartamentos e conjugados sujos onde morávamos. Nosso aluguel estava sempre atrasado, e geralmente tínhamos de fugir no meio da noite antes que os oficiais de justiça engrossassem.
Passei a odiar a cópula repulsiva e barulhenta de que era testemunha frequente, e ficava fora da casa o máximo possível, muitas vezes dormindo sem conforto nas docas. Costumava implicar com garotos que eram mais novos que eu para tirar o dinheiro deles e poder comer. Mudava de escola com quase a mesma frequência que mudávamos de casa, então nunca fui muito bem, apesar de saber que podia botar no bolso a maioria das outras crianças, que eram simplesmente estúpidas.
Assim que fiz dezesseis anos, deixei Seaford. Não tive saudades; não era como se jamais tivesse conseguido fazer muitos amigos, me mudando o tempo inteiro. Vira homens o bastante para saber que não queria crescer como eles, e me sentia diferente por dentro. Achava que, se me mudasse para uma cidade grande como Bradfield, seria mais fácil descobrir o que queria. Um dos primos de minha mãe me arrumou um emprego numa empresa de eletrônicos onde ele trabalhava.
Por volta dessa época, descobri que me vestir com roupas de mulher fazia eu me sentir bem com meu próprio corpo. Arrumei meu próprio conjugado para que pudesse fazer isso quando quisesse, o que me acalmou muito. Comecei a estudar ciência da computação em aulas noturnas e, por fim, consegui algumas qualificações adequadas. Mais ou menos nesse período, minha mãe recebeu uma casa em Seaford em testamento, pela morte do irmão.
Tive a oportunidade de um emprego lá, trabalhando em sistemas de computadores para a empresa telefônica privada local. Não queria muito voltar, mas a chance era boa demais para recusar. Nunca cheguei perto de minha mãe. Acho que ela nem sabia que eu voltara.
Uma das poucas boas coisas sobre Seaford é o acesso de balsa para a Holanda. Costumava ir para lá a cada dois fins de semana, porque em Amsterdã eu podia sair com roupas de mulher e ninguém tinha nenhuma reação. Lá encontrei muitos transexuais e também travestis, e quanto mais conversava com eles, mais percebia que nos sentíamos da mesma forma. Eu era uma mulher aprisionada num corpo masculino. Isso explicava por que eu nunca tinha tido muito interesse sexual pelas garotas. E, embora eu achasse os homens atraentes, sabia que não era uma bicha. Elas me causavam repugnância, com seu fingimento de relacionamentos normais quando todo mundo sabe que somente homens e mulheres podem se ajustar adequadamente.
Procurei os médicos de um hospital em Leeds, onde eles fazem todas as operações de mudança de sexo no norte, e me recusaram. Os psicólogos deles eram tão estúpidos e tacanhos quanto o resto de sua irmandade. Mas consegui um médico particular em Londres, que me prescreveu o tratamento com hormônios de que eu precisava. É claro, eu não podia continuar trabalhando enquanto isso acontecia, mas falei com meu chefe e ele disse que me daria uma boa referência para outro emprego quando eu operasse e me tornasse mulher.
Tive que ir ao exterior para fazer a operação, e foi muito mais caro do que eu esperava. Procurei minha mãe e perguntei se ela faria a hipoteca da casa para me emprestar o dinheiro, e ela só riu de mim.
Então, fiz o que aprendera com ela. Vendi meu corpo nas docas. É impressionante quanto dinheiro os marinheiros estão dispostos a pagar por um travesti. Eles ficam loucos de prazer ao pensar em alguém que tem seios e um pau. Eu não era como as outras prostitutas tampouco; não gastava tudo com bebida, drogas ou um cafetão. Guardei tudo até que pudesse pagar a operação.
Quando cheguei a Seaford, nem mesmo minha mãe me reconheceu a princípio. Eu só tinha voltado há alguns dias quando ela tomou aquela trágica overdose acidental de pílulas e bebida. Ninguém ficou surpreso. Sim, doutor, você pode acrescentá-la à lista.
Com as minhas qualificações, experiência e referências, não tive dificuldades em conseguir um emprego como analista de sistemas sênior na companhia telefônica de Bradfield. Com o dinheiro que ganhei com a venda da casa em Seaford, comprei minha residência em Bradfield e comecei a tarefa de encontrar um homem valoroso com quem dividir minha vida.
E o dr. Hill presume que me entende, sem saber nada disso? Bem, em muito pouco tempo, vou compartilhar tudo isso com ele. É uma pena que ele não vá ter a oportunidade de fazer suas anotações.
18
A verdade é que sou muito meticuloso em tudo relacionado a assassinatos; e talvez leve longe demais minha sensibilidade.
Don Merrick entrou na sala do sistema HOLMES mastigando um hambúrguer de churrasco com queijo duplo e bacon de cinco centímetros de espessura.
— Como faz isso? — perguntou Dave Woolcott. — Como consegue que aquelas desleixadas da cantina cozinhem comida de verdade? Elas queimam até xícara de chá, aquele grupinho. Mas você sempre consegue fazer milagre delas.
Merrick deu uma piscadela.
— É meu charme natural do nordeste — disse ele. — Só escolho a mais feia e digo que ela me lembra a minha mãe quando estava no auge.
Ele se sentou e esticou as pernas longas.
— Chequei a meia dúzia de Land Rovers Discovery que recebi do seu sargento. Estavam todos limpos. Dois deles eram de mulheres; dois tinham álibis inquestionáveis para pelo menos duas das noites; um tinha esclerose múltipla, então não poderia ter feito os trabalhos; e o sexto vendeu seu carro para uma concessionária na região central do país há três semanas.
— Ótimo — disse Dave desanimado. — Dê a lista para um dos operadores para que possamos atualizar o arquivo.
— Onde está o chefe?
— Carol ou Kevin?
Merrick deu de ombros.
— Ainda penso na inspetora Jordan como minha chefe.
— Ela saiu para procurar agulha num palheiro — respondeu Dave.
— A ideia dela teve algum resultado, então? — perguntou Merrick.
— Duas correspondências cruzadas.
— Vamos dar uma olhada.
Dave vasculhou os papéis e encontrou três folhas grampeadas. A primeira listava as duas correlações. Merrick franziu a testa e virou a página. A segunda era uma impressão do resultado de uma pesquisa de ficha criminal de Philip Crozier. Nada encontrado. Com pressa, ele virou a terceira página, que listava dois Cristopher Thorpe. Um tinha um último endereço conhecido em Devon e várias condenações por arrombamento. O segundo tinha um último endereço conhecido em Seaford. Havia uma série de condenações juvenis: agressão contra um juiz de futebol, quebra de vidraças na escola, roubo em lojas. Havia meia dúzia de prisões na vida adulta, todas por oferecer serviços de prostituição. Merrick inspirou com força e virou para a primeira página.
— Puta merda — disse.
— O que foi? — perguntou Dave, subitamente alerta.
— Esse aqui, o Christopher Thorpe, o de Seaford.
— Sim? Carol achava que não era o mesmo que o nosso. Quer dizer, ele tem condenações por prostituição masculina, mas este de Bradfield parece ser casado porque a mulher no mesmo endereço tem seu sobrenome. E vamos encarar os fatos, michês das docas não dirigem por aí em máquinas caras como o Land Rover Discovery.
Merrick balançou a cabeça.
— Não, você entendeu tudo errado. Conheço esse Christopher Thorpe de Seaford. Trabalhei na Delegacia de Costumes lá antes de vir para cá, lembra? Fui o policial que o prendeu em duas dessas acusações. Christopher Thorpe estava prestes a fazer mudança de sexo nessa época. Ele tinha os peitos e tudo o mais, estava tentando ganhar dinheiro para fazer a operação. Adivinha qual era o nome de guerra dele? Dave, Christopher Thorpe não é casado com Angelica Thorpe. Ele é Angelica Thorpe.
— Puta merda — ecoou Dave.
— Dave, onde diabos está Carol?
Angelica estava parada na frente dele, de mãos na cintura, mastigando um canto da boca.
— Você não pode, né? Não pode provar porque não sabe nada sobre minha vida.
— Em certo sentido, você está absolutamente certa, Angelica. Não conheço os fatos de sua vida — disse Tony, com cuidado —, mas acho que sei um pouco sobre a trajetória dela. Sua mãe não fez um trabalho muito bom em amá-la. Talvez tivesse um problema com bebida ou drogas, ou talvez não compreendesse o que um garotinho precisava. De qualquer maneira, ela não fazia você se sentir amada quando era pequena. Estou certo?
Angelica fez uma careta.
— Continue. Cave sua própria cova.
Tony sentiu um arrepio de medo na base do crânio. E se ele tivesse errado tudo? E se essa mulher fosse a exceção para cada estatística próxima da certeza que Tony mantinha em primeiro plano na mente durante toda a investigação? E se ela fosse o único serial killer que tinha vindo de uma família feliz e amorosa? Descartando suas dúvidas como um luxo a que não podia se dar no momento, Tony continuou: — O seu pai não estava muito presente enquanto você crescia, e ele nunca lhe mostrou que estava orgulhoso do filho, muito embora você tenha feito tudo que sabia para fazê-lo sentir esse orgulho. Sua mãe esperava demais de você, vivia lhe dizendo que você era o homem da casa, e o censurava quando se comportava como a criança que era no lugar do homem que ela fingia ver em você.
O rosto de Angelica se contraiu num espasmo de reconhecimento. Tony pausou.
— Prossiga — sussurrou ela entre os dentes cerrados.
— Não é fácil falar, dobrado assim. Não pode afrouxar a corda um pouco, deixar que eu fique na vertical?
Ela balançou a cabeça, a boca com um biquinho infantil.
— Não consigo olhar direito para você assim — tentou Tony. — Você tem um corpo fabuloso, deve saber disso. Se for a última coisa que vou ver, pelo menos me deixe apreciá-lo.
Ela inclinou a cabeça para um lado, como se estivesse repetindo suas palavras para verificar a veracidade ou a traição contida nelas.
— Tudo bem — concedeu. — Não significa que algo mudou, no entanto — acrescentou ela enquanto andava até o guincho e o soltava. Ela deu cerca de trinta centímetros de folga.
Tony não conseguiu reprimir o grito da dor que se espalhou por seus ombros quando os músculos foram liberados da tensão que os esticava até seu limite.
— Vai passar — disse Angelica com rispidez enquanto retornava ao seu lugar ao lado da câmera. — Continue falando. Sempre gostei do gênero fantasia.
Ele se aliviou, pondo-se de pé, lutando contra a dor.
— Você era um garoto esperto — disse, ofegante. — Mais esperto que os demais. Nunca é fácil fazer amigos quando se é tão mais esperto que os outros garotos. E talvez você tenha mudado de residência um pouco. Bairros diferentes, talvez até escolas diferentes.
Angelica estava de volta ao controle de si mesma, seu rosto impassível enquanto ele continuava.
— Não era fácil fazer amigos. Você sabia que era diferente de todo mundo, especial, mas não podia descobrir por que a princípio. Depois, você cresceu, percebeu o que era. Não era igual aos outros meninos, porque não era de jeito nenhum um menino. Não tinha interesse sexual pelas meninas, mas não porque era gay. De jeito nenhum. Era porque você mesma era uma garota. O que descobriu foi que se vestir com roupas de mulher fazia você se sentir à vontade, como se fosse assim que as coisas deveriam ser. — Ele pausou e lhe deu um sorriso torto. — Como estou indo até agora?
— Muito impressionante, doutor — disse ela, com frieza. — Estou fascinada. Continue.
Tony flexionou os músculos do ombro, aliviado por descobrir que o dano até agora parecia ser apenas temporário. O formigamento que corria por suas costas parecia nada mais que uma pequena irritação depois do que tinha passado. Ele respirou fundo e continuou.
— Você decidiu se tornar a pessoa que era dentro de si, a mulher que de fato sabia ser. Meu Deus, Angelica, tenho tanto respeito por você, por ter passado por isso. Sei como é difícil convencer os médicos a levar a sério a ideia. Toda a terapia hormonal, a eletrólise, viver metade como homem, metade como mulher, enquanto aguardava as operações e depois toda a dor da cirurgia. — Ele balançou a cabeça, imaginando. — Sei que não teria coragem de passar por isso.
— Não foi fácil. — As palavras escaparam dos lábios de Angelica, quase contra sua vontade.
— Acredito em você — disse Tony, com empatia. — E, depois de tudo isso, encontrar-se imaginando se valera a pena no final das contas, quando percebeu que a estupidez, a insensibilidade e a falta de percepção que identificava nos homens não desapareciam simplesmente porque você era mulher. Eles ainda eram aquele mesmo bando de canalhas, incapazes de reconhecer uma mulher excepcional, quando lhes era oferecido amor e afeição de bandeja.
Ele pausou, estudando o rosto dela, decidindo se o momento era certo para jogar seu trunfo. A frieza havia deixado os olhos dela, substituída por um olhar quase de tristeza. Ele suavizou e baixou o volume da voz. Por favor, meu Deus, faça que seu treinamento seja recompensado.
— Eles rejeitaram você, não foi? Adam Scott, Paul Gibbs, Gareth Finnegan, Damien Connolly. Eles abriram mão de você.
Angelica balançou a cabeça com violência, como se com a atividade pudesse negar o passado.
— Eles me deixaram na mão. Deixaram a mim na mão, não abriram mão de mim. Me traíram.
— Conte-me sobre isso — arriscou Tony baixinho, rezando para que as técnicas que dominou com esforço não fossem lhe falhar agora. — Conte-me sobre isso.
— Por que deveria? — gritou ela, dando um passo à frente e o estapeando tão forte que ele sentiu o gosto do sangue quando suas bochechas se chocaram com os dentes. — Você não é melhor que eles. E aquela vadia? A vaca loura, aquela idiota de merda que você vem comendo?
Tony engoliu o sangue quente e salgado que enchia sua boca.
— Quer dizer Carol Jordan? — perguntou ele, tentando ganhar tempo. Como devia abordar isso? Devia mentir ou contar a verdade?
— Você sabe muito bem de quem estou falando. Sei que esteve com ela, não tente mentir para mim — sussurrou ela, erguendo a mão novamente. — Seu filho da mãe traiçoeiro e infiel.
A mão dela bateu nele em cheio no rosto de novo, com tanta força que ele ouviu seu pescoço estalar.
Lágrimas correram involuntariamente por seus olhos. A verdade não ia funcionar. Só lhe garantiria mais punição. Rezando para que pudesse mentir com convicção, Tony implorou:
— Angelica, foi só uma transa, só como se livrar da coceira. Você me deixou com tanto tesão com suas ligações, eu não sabia quando ia ligar novamente, ou mesmo se ia.
Ele permitiu que a raiva tomasse a sua voz.
— Eu queria você, mas você não me disse como podia tê-la, Angelica. É como você com os outros. Eu estava só ocupando o tempo, esperando por alguém à altura. Você não acha que uma policialzinha atenderia minhas fantasias, acha? Você deve saber bem, você também teve um.
Angelica recuou, seu rosto demonstrava choque. Sentindo que havia feito algum tipo de progresso, Tony a seguiu com as palavras.
— Éramos diferentes, eu e você. Eles não eram dignos de você. Mas nós somos especiais. Você deve saber disso, por causa de nossos telefonemas. Não percebeu que tínhamos algo extraordinário? Que dessa vez seria diferente? Não é isso que você quer de verdade? Não quer matar. Não de verdade. Matar só aconteceu porque eles não eram dignos, porque a decepcionaram. O que você quer mesmo é um parceiro que lhe dê valor. O que você quer é amor. Angelica, o que você quer sou eu.
Por um longo momento, ela o fitou com os olhos esbugalhados e a boca aberta. Depois foi tomada pela confusão, tão óbvia para Tony quanto uma prostituta que se oferece.
— Não use essa palavra comigo, seu desgraçado ordinário — gaguejou ela. — Não diga essa porra! — A voz dela era um grito gutural, grave. Subitamente, ela deu meia-volta e correu do cômodo, com seus saltos estalando nas escadas.
— Amo você, Angelica — gritou Tony desesperadamente depois do som dos passos, enquanto ela se retirava. — Amo você.
Carol e o detetive Morris ficaram parados na porta da pequena casa com terraço na Gregory Street. Ela não precisava ser psicóloga para ler a linguagem corporal dele. Morris estava de saco cheio de ficar dando voltas atrás do palpite idiota de Carol.
— Eles devem estar no trabalho — comentou ele, depois do quarto ataque dela à campainha.
— Parece que sim — concordou Carol.
— Devemos voltar depois?
— Vamos bater de porta em porta — sugeriu Carol. — Ver se algum dos vizinhos está por aí. Talvez eles possam nos contar quando os Thorpe voltam do trabalho.
Morris dava a impressão de que preferiria estar no controle da multidão numa manifestação estudantil.
— Sim, senhora — respondeu, com voz entediada.
— Você fica com o outro lado da rua, eu fico nesse.
Carol o observou atravessar a rua tão cansado quanto um mineiro no final do turno de trabalho. Balançando a cabeça com um suspiro, ela voltou sua atenção para o número doze. Esse era muito mais parecido com o tipo de território que Tony havia sugerido para seu assassino. Pensar em Tony acabou deixando Carol chateada de novo. Onde diabos ele estava? Ela realmente precisava da opinião dele hoje, sem mencionar um pouco de apoio para uma ideia que todos pareciam pensar que era uma completa perda de tempo. Ele não poderia ter escolhido um momento pior para entrar na lista dos desaparecidos. Era imperdoável. Pelo menos, ele poderia ter telefonado para sua secretária e não deixado que ela tivesse que responder aos seus telefonemas e criar desculpas para ele.
Não havia campainha no número doze, então Carol bateu com o nó dos dedos na porta de madeira sólida. A mulher que abriu parecia uma caricatura de uma novela. Em seus quarenta anos, sua maquiagem teria sido exagerada para jantar em Los Angeles, quanto mais para o meio da tarde numa rua secundária de Bradfield. Seus cabelos louros platinados se empilhavam no formato de uma colmeia inclinada. Ela usava um suéter preto apertado com gola arredondada, revelando um decote com a textura de papel amassado, leggings coladas no corpo de cor azul brilhante, escarpins brancos e uma corrente fina de ouro no tornozelo. Um cigarro pendia do canto da boca.
— O que foi, querida? — disse ela, com uma voz nasalada.
— Desculpe incomodá-la — começou Carol, exibindo seu distintivo. — Detetive-inspetora Carol Jordan, Polícia de Bradfield. Estou tentando entrar em contato com seus vizinhos do número catorze, os Thorpe, mas parece que não tem ninguém em casa. Queria saber se por acaso a senhora sabe a que horas eles chegam em casa do trabalho.
A mulher deu de ombros.
— Sei lá, querida. Aquela vaca entra e sai em tudo quanto é hora.
— E quanto ao sr. Thorpe? — perguntou Carol.
— Que sr. Thorpe? Não tem nenhum sr. Thorpe no vizinho, querida. — Ela deu uma risada rouca. — Obviamente você nunca pôs os olhos nela. Qualquer homem que se casasse com aquela vaca horrorosa teria de ser cego e estar na pior. Então vocês a pegaram pelo quê?
— São só investigações de rotina — disse Carol.
A mulher bufou.
— Não me venha com essa conversinha — disse ela. — Assisti a episódios de The Bill suficientes para saber que não mandam inspetores em investigações de rotina. Já era hora de vocês porem aquela vaca atrás das grades, se quer minha opinião.
— Por que isso, sra.... como se chama?
— Goodison, Bette Goodison. Como em Bette Davis. Porque ela é uma vaca horrorosa e antissocial, por isso.
Carol sorriu.
— Infelizmente, isso não é um crime, sra. Goodison.
— Não, mas assassinato é, não é? — gritou Bette Goodison com ar triunfante.
Carol engoliu em seco, esperando que o efeito da palavra não fosse tão visível quanto era palpável.
— Essa é uma acusação muito grave.
Bette Goodison deu uma última tragada em seu cigarro e, como um especialista, deu um peteleco na guimba que percorreu o espaço da calçada e foi parar na sarjeta.
— Estou feliz que pense assim. É mais do que seus colegas na delegacia de Moorside fizeram.
— Lamento que sinta que não foi bem-atendida por meus colegas. — desculpou-se Carol, com um tom preocupado. — Talvez pudesse me contar sobre o que estamos falando?
Por favor, meu Deus, faça com que essa seja uma repetição do caso do Estripador de Yorkshire, em que o melhor amigo do assassino contou à polícia que suspeitava que ele era o Estripador e a polícia não deu a menor atenção.
— Prince, é de quem estamos falando.
Por um momento de fantasia, Carol visualizou o pequenino astro do rock enterrado no quintal de uma casa com terraço de Bradfield. Restabelecendo a compostura, ela disse:
— Prince?
— Nosso pastor-alemão. Sempre reclamava dele, essa Angelica Thorpe. E ela não tinha razão para isso. Aquele cachorro estava fazendo um serviço para ela. Bastava passar qualquer pessoa pelo nosso beco, e aquele cachorro avisava. Ela teria de pagar uma fortuna para ter um alarme tão eficiente quanto aquele cachorro. De qualquer forma, há alguns meses... Agosto, foi o mês, um fim de semana antes do Feriado dos Bancos, voltamos do trabalho, Col e eu, e Prince tinha desaparecido. Pois bem, não há jeito de que ele pudesse ter saído do quintal. E ele teria atacado qualquer um que entrasse. Só há um modo de ele ter desaparecido: sendo assassinado — disse a sra. Goodison, golpeando Carol no peito com o dedo para obter ênfase. — Ela envenenou o Prince, depois se livrou do corpo para que não houvesse provas. É uma assassina!
Normalmente, Carol teria andado descalça uns dois quilômetros, se precisasse, para evitar uma conversa como essa, mas ela estava à procura do Faz-tudo, e qualquer excentricidade era algo que se devia agarrar com ansiedade.
— Como a senhora pode ter tanta certeza de que foi a sra. Thorpe? — perguntou ela.
— Questão de lógica. Ela era a única que já tinha reclamado dele. E, no dia que ele sumiu, eu e Col saímos para o trabalho, mas ela ficou em casa o dia todo. Sei disso com certeza, porque ela estava trabalhando durante a noite naquela semana. E quando batemos na porta dela para perguntar se ela sabia alguma coisa sobre o sumiço do cachorro, ela só mostrou um sorriso de orelha a orelha naquele focinho. Eu podia ter dado um jeito naquela cara dela — bradou a sra. Goodison com ênfase. — Então, o que vai fazer quanto a isso?
— Infelizmente sem indícios, não há muito que possamos fazer — disse Carol, com empatia. — A senhora tem certeza, não tem, de que a sra. Thorpe mora sozinha?
— Ninguém ia querer morar com uma vaca horrorosa daquelas. Ela nem recebe visitas. Não é de causar surpresa, veja bem, ela parece um brutamontes vestido de mulher.
— Por acaso sabe que tipo de carro ela dirige? — perguntou Carol.
— Um desses malditos 4x4 de yuppies. Pergunto a você quem precisa de um 4x4 no meio de Bradfield? Não é como se morássemos em alguma fazenda, não é?
— E sabe onde ela trabalha?
— Não sei nem quero saber. — Ela olhou para o relógio. — Agora, se não se importa, minha minissérie está começando.
Carol observou a porta se fechar atrás de Bette Goodison, com uma suspeita desagradável começando a se formar em sua mente. Antes que pudesse tentar o número dez, seu pager tocou insistentemente. “Ligue para Don na Scargill Street. Urgentíssimo”, ela leu.
— Morris — gritou Carol. — Arrume um telefone para mim.
O que quer que estivesse acontecendo na Gregory Street podia esperar. Don claramente não podia.
Exausto, Tony caíra no sono e estava tendo um pesadelo delirante. Um esguicho de água congelada, lançada no rosto, levou-o direto para o angustiante despertar, sua cabeça retornando dolorosamente.
— Ai — gemeu.
— Hora de acordar — disse Angelica rispidamente.
— Estava certo, não estava? — perguntou Tony pelos lábios inchados. — Você teve tempo para pensar e sabe que tenho razão. Quer que a matança pare. Eles precisavam morrer, mereciam morrer. Decepcionaram você, a traíram, não a mereceram. Mas tudo isso pode mudar agora. Pode ser diferente comigo, porque eu amo você.
A máscara rígida do rosto dela se enrugou diante dos olhos dele, tornando-se mais suave, mais macia. Ela sorriu para ele.
— Nunca foi questão de sexo. Sempre consegui sexo. Os homens me pagam por sexo. Me pagam muito dinheiro. Foi assim que paguei pela cirurgia. Eles sempre me quiseram. — A voz dela estava cheia de uma mistura estranha de orgulho e raiva.
— Posso entender o porquê — mentiu Tony, montando em seu rosto o que ele esperava que fosse uma expressão de ansiedade e admiração. — Mas o que você queria de verdade era o amor, não era? Queria mais que o sexo sem amor das ruas ou o sexo sem rosto ao telefone. Você merece isso. Meu Deus, como merece. É o que posso lhe dar, Angelica. O amor não é apenas atração física. O amor é questão de respeito, admiração, fascínio, e sinto tudo isso por você. Angelica, você pode ter o que quiser. Pode ter comigo.
Suas emoções conflitantes estavam estampadas em seu rosto. Ele conseguia ver que parte dela queria desesperadamente acreditar nele, queria escapar para o mundo normal dos relacionamentos. Mas essa parte tinha que lutar com um nível de autoestima muito baixo. Ela não conseguia imaginar que existisse alguém disposto a amá-la. E, por baixo disso tudo, a suspeita de que ele estava tentando ludibriá-la.
— Como poderíamos? — interpelou ela, com agressividade. — Você vem tentando me caçar. Está do lado da polícia. Do lado deles.
Tony balançou a cabeça.
— Isso foi antes de eu perceber que você era a mesma mulher por quem me apaixonei pelo telefone. Angelica, o amor é uma emoção que suplanta o dever. Sim, trabalhei para a polícia, mas não sou um deles.
— Quem com porcos se mistura, farelo come — zombou ela. — Você vem tentando me prender, Anthony. Espera que acredite no que diz? Deve pensar que sou muito burra.
— Muito pelo contrário. Se quiser falar sobre estupidez, fale da polícia. Em grande parte, eles são tão chatos e intolerantes que não conseguiram manter um psicólogo interessado por mais de cinco minutos. Não tenho nada em comum com eles — sustentou Tony, em desespero.
Ela balançou a cabeça, mais com tristeza do que com raiva.
— Você trabalha para o Ministério do Interior. Você passou sua carreira inteira pegando serial killers e tratando deles. E espera que eu acredite que, de uma hora para outra, mudaria de lado e seria fiel a mim? Qual é, Anthony? Não vou cair numa esparrela dessas.
Tony sentiu suas forças se esvaírem. Seu cérebro simplesmente não era mais rápido o suficiente para mantê-la a distância. Com tristeza, ele disse:
— Não fiz carreira capturando pessoas, mas, sim, as tratando. Tive de fazer isso, não compreende? O meu trabalho é o único lugar em que posso encontrar mentes complexas o bastante para serem interessantes. É como ir ver os animais no zoológico. Você quer observá-los em seu habitat, mas, se só puder ir vê-los no zoológico, você vai assim mesmo. Sempre precisei esperar até que eles estivessem presos para poder estudá-los. Mas você... você ainda está na natureza, ainda do jeito que quer ser, realizada em sua arte. E, comparada a eles, você é a nata. Excepcional. Quero passar o resto da vida sendo estimulado por sua mente. Não posso imaginar um dia achar você entediante.
Aterrorizante, talvez, mas nunca entediante.
O lábio inferior dela se projetou, dando uma expressão de calculada petulância ao seu rosto. Ela meneou a cabeça na direção da região genital dele, onde seu pênis pendia flácido.
— Então, se me acha atraente, por que isso está assim?
Era uma pergunta para a qual Tony não tinha absolutamente nenhuma resposta.
— O que temos de fato, Carol? — interpelou Brandon.
Carol andava de um lado para outro do escritório de Brandon, marcando seus pontos com os dedos.
— Temos um transexual. Não um transexual que passou pelo processo controlado, com aconselhamento psicológico do Serviço Nacional de Saúde, mas alguém que, de acordo com Don, teve uma mudança de sexo recusada aqui e teve de financiar uma operação fora do país vendendo o corpo. Então, desde o começo, sabemos que temos alguém que foi examinado por psiquiatras e considerado instável. Temos esse transexual dirigindo um veículo idêntico ao do dirigido por um suspeito na morte de Damien Connolly. Temos uma vizinha que está convencida de que Angelica Thorpe matou seu cachorro. O cachorro foi morto uma quinzena antes do primeiro assassinato. Angelica Thorpe comprou o software que lhe permitiria manipular vídeos em seu sistema de computador. Isso se encaixa numa teoria de comportamento do assassino desenvolvida por mim e endossada pelo nosso analista de perfil psicológico. Ela até mesmo mora no tipo de casa que Tony disse que moraria — argumentou Carol com veemência.
— Quando ela era Christopher, tinha alguns parafusos a menos — interveio Don.
— Gostaria de poder perguntar a Tony sobre isso — disse Brandon, de modo evasivo.
— Eu também — admitiu Carol, por entre os dentes. — Mas, obviamente, ele encontrou algo mais importante para fazer hoje. — Um pensamento súbito atingiu Carol como um saco de areia na nuca. Seus joelhos começaram a se dobrar e ela caiu na cadeira mais próxima. — Ai, meu Deus — disse, sem fôlego.
— O que foi? — perguntou Brandon, preocupado.
— Tony. Ele não esteve em contato com ninguém desde que saiu daqui ontem. Ele tinha duas reuniões da força-tarefa marcadas para hoje, de acordo com sua secretária, mas não apareceu no trabalho e não telefonou. Ele não estava em casa na noite passada, e não está aqui agora.
As palavras de Carol ficaram suspensas no ar como uma nuvem de fumaça tóxica. Uma onda de náusea subiu de seu estômago, quase a sufocando. De alguma maneira, ela manteve sua compostura sob o olhar concentrado de Brandon.
Com os dedos tremendo, Carol pegou a cópia de Brandon do perfil em sua mesa. Com pressa, ela virou as páginas até que encontrou o que procurava.
— “É possível que seu próximo alvo seja também um policial, talvez mesmo alguém que esteja trabalhando na investigação. Isoladamente, isso não será motivo suficiente para que o assassino o escolha, ele deve também se encaixar no critério de vítima que delineou em sua cabeça a fim de que o assassinato assuma seu significado completo para ele. Eu recomendaria enfaticamente que qualquer policial que corresponda ao perfil da vítima aplicasse vigilância extra em todos os momentos, observando qualquer veículo suspeito estacionado próximo à sua casa e verificando se está sendo seguido na ida e na volta do trabalho e dos eventos sociais.” Pense nisso, senhor. Pense no perfil da vítima. Senhor, Tony se encaixa perfeitamente.
Sem querer acreditar no que Carol estava sugerindo, Brandon disse:
— Mas não se passaram oito semanas. Não é hora!
— Mas hoje é segunda-feira. Não se esqueça, Tony também indicou que seu cronograma poderia ser acelerado se algo acontecesse para traumatizá-lo. Stevie McConnell, senhor. Pense em toda a publicidade. Outra pessoa estava recebendo o crédito por seus crimes. Veja, aqui está, senhor: “Outra situação possível é que uma pessoa inocente seja acusada dos assassinatos. Isso seria uma afronta tão grande à ideia que tem de si mesmo que ele poderia cometer seu próximo assassinato antes do cronograma.” Senhor, precisamos agir com relação a isso agora!
A mão de Brandon estava no telefone antes mesmo que ela tivesse começado sua última frase.
A porta da frente dava direto no interior da casa. Embaixo não poderia parecer mais normal. A pequena sala estava mobiliada de forma barata, mas confortável com um sofá de dois lugares combinando com uma poltrona acolchoada em Dralon cor de musgo. Havia TV, vídeo, um sistema de som de preço médio e uma mesa de café completa com um exemplar da revista Elle. Um par de pôsteres enquadrados de baleias no mar estava pendurado nas paredes. A única estante continha uma seleção de clássicos de ficção científica, alguns romances de Stephen King e três livros eróticos de Jackie Collins. Carol, Merrick e Brandon se moveram cautelosamente pela sala, passaram pelas escadas e entraram na cozinha. Era organizada ao extremo, como um showroom; as superfícies de trabalho limpas e sem excesso de itens. Num escorredor, uma caneca, um prato, um garfo e uma faca.
Com Brandon liderando o caminho, eles subiram as escadas estreitas construídas entre as duas salas embaixo. O quarto da frente era rosa e leve como um milkshake de morango. Até mesmo a mesa em formato de feijão, com sua borda de renda, era rosa.
— Cuide-se, Barbara Cartland — murmurou Merrick. Brandon abriu o armário e vasculhou a série de roupas femininas. Carol se dirigiu às gavetas de um armário alto cor-de-rosa e trabalhou por todas elas até embaixo. Eles não continham nada mais perturbador que uma seleção de peças íntimas bregas, a maioria delas em cetim vermelho.
Foi Merrick quem mencionou primeiro o quarto dos fundos. Assim que abriu a porta, ele sabia que ninguém iria gritar para os jornais sobre juízes leigos concedendo mandados com base em indícios não existentes.
— Senhor — gritou ele. — Acho que encontramos.
O quarto era organizado como um escritório. Uma escrivaninha grande continha um computador e periféricos variados que nenhum deles conseguia identificar. De um lado estava um telefone ligado a um gravador sofisticado. Uma pequena mesa de edição de vídeo estava num canto, ao lado de um armário de arquivos. Um carrinho com rodas sustentava uma televisão e um vídeo, os dois de última geração. As prateleiras tomavam duas paredes, cheias de jogos de computador, vídeos, fitas e disquetes de computador, cada caixa etiquetada organizadamente em letras maiúsculas firmes. O único objeto discrepante no quarto era uma cadeira reclinável de couro, o material suspenso como uma rede numa estrutura de aço.
— Achamos — disse Brandon. — Bom trabalho, Carol.
— Onde diabos começamos? — indagou Merrick.
— Algum de vocês sabe operar o computador? — perguntou Brandon.
— Acho que devemos deixar isso com os especialistas — respondeu Carol. — Ele pode estar programado para destruir os dados se alguém tentar fazer o login.
— Certo. Don, você pega o armário de arquivos. Eu pegarei os vídeos. Carol, você leva os cassetes.
Carol se moveu pelas prateleiras de cassetes. As primeiras duas dúzias pareciam ser fitas de música, abrangendo de Liza Minnelli a U2. Em seguida, havia uma dúzia marcada como “AS” e numerada de um a doze. Catorze marcadas “PG” em seguida, depois quinze com a inscrição “GF”, oito com “DC”, e seis com “AH”. A sequência das iniciais estava longe de ser coincidência. Carol pegou a primeira fita “AH” e, com o coração cheio de apreensão, inseriu no aparelho. Pegou os fones plugados na máquina e, relutantemente, os colocou nos ouvidos. Ela ouviu o som de um toque de telefone, depois uma voz tão familiar que ela poderia ter chorado.
— Alô — disse Tony, sua voz reduzida pela ligação telefônica. — Quem fala?
Uma risadinha, baixa e sexy.
— Você nunca vai adivinhar. Nem em um milhão de anos.
Pegamos, pensou Carol, sendo tomada por uma sensação de mau agouro. A voz na secretária eletrônica.
— Tudo bem, então me diga — disse Tony, sua voz estranha, amigável, entrando no jogo.
— Quem você gostaria que eu fosse, se eu pudesse ser qualquer pessoa no mundo?
— Isso é algum tipo de brincadeira? — indagou Tony.
— Nunca falei mais sério na vida. Estou aqui para fazer seus sonhos se tornarem realidade. Sou a mulher das suas fantasias, Anthony. Sou sua amante telefônica.
Houve o silêncio de um momento, depois o telefone foi batido do lado de Tony. Pelo tom de discagem, Carol ouviu a mulher estranha dizer:
— Hasta la vista, Anthony.
Ela apertou com força o botão de parar e tirou violentamente os fones de ouvido. Virou-se para ver Brandon paralisado pela imagem de Adam Scott esticado num potro e, aparentemente, desacordado. Parte da mente dela não podia compreender o que estava vendo. O mal, pensou ela, devia estar coberto de sangue, não exibido de forma prosaica numa tela de tevê de subúrbio.
— Senhor — forçou-se a dizer. — As fitas. Ela vinha perseguindo Tony.
Tony tentou rir. Saiu algo mais parecido com um soluço, mas ele continuou assim mesmo.
— Você espera que eu consiga uma ereção? Amarrado assim? Angelica, você usou clorofórmio em mim, me sequestrou e deixou que eu recobrasse a consciência sozinho numa câmara de tortura. Desculpe-me desapontá-la, mas não tenho experiência em bondage. Estou muito assustado para conseguir ficar de pau duro.
— Não vou deixar você ir, sabe. Não para correr direto para eles.
— Não estou pedindo para me deixar ir embora. Acredite em mim, fico feliz em ser seu prisioneiro, se esse for o único jeito de passar tempo com você. Quero conhecê-la, Angelica. Quero provar meus sentimentos para você, quero lhe mostrar como é o amor. Quero lhe mostrar de que lado estou realmente.
Tony tentou acionar o tipo de sorriso que aprendera que causava reações nas mulheres.
— Então me mostre — desafiou Angelica, deixando uma das mãos correr acariciando o próprio corpo, demorando-se nos mamilos e avançando para a área genital.
— Vou precisar de sua ajuda. Do mesmo jeito que precisei de você ao telefone. Fez que eu me sentisse tão bem, como um homem de verdade. Por favor, ajude-me agora — suplicou Tony.
Ela deu um passo em direção a ele, movendo-se sinuosamente como uma stripper.
— Você quer que eu o excite? — Ela disse com a voz arrastada numa paródia medonha de sedução.
— Não acho que consiga fazer assim — disse Tony. — Não com meus braços atados para trás desse jeito.
Angelica parou de imediato e fez uma carranca.
— Já disse, não vou soltar você.
— E eu disse que não estou pedindo isso. Tudo que peço é que ate minhas mãos para a frente. Para que eu possa tocá-la.
Novamente ele forçou o sorriso gentil.
Ela o fitou, pensativa.
— Como sei que posso confiar em você? Eu teria de soltar suas mãos para poder atá-las para a frente. Talvez você esteja tentando me ludibriar.
— Não vou. Dou minha palavra. Se isso faz você se sentir mais segura, use o clorofórmio em mim novamente. Faça enquanto eu estiver inconsciente — disse Tony, arriscando de novo. A reação dela lhe diria tudo que ele precisava saber sobre suas chances.
Angelica se moveu atrás dele. Uma voz exultante na cabeça dele gritava: “Isso!” Ele sentiu o calor da mão dela entre as dele enquanto ela agarrava as algemas e as puxava dolorosamente para cima.
— Merda — gritou Tony quando novas ondas de dor tomaram seus braços e seus ombros. Ele ouviu um clique de metal quando a manilha que ligava a corda às algemas se soltou. Angelica soltou-as e Tony caiu sobre os joelhos; as pernas se dobraram.
— Céus — praguejou ele enquanto caía para a frente, sentindo a pedra áspera arranhar sua bochecha.
Movendo-se rapidamente, Angelica abriu um lado das algemas, agarrou as costas da cadeira e o puxou para cima. Ainda segurando o braço com as algemas colocadas, ela apareceu diante dele e agarrou com brutalidade seu outro braço logo abaixo do bíceps, arrastando-o por seu corpo. Segundos mais tarde, suas mãos estavam algemadas de novo, dessa vez na frente do corpo. Ele se ajoelhou como um suplicante, seu desconforto duplicado pelas correias de couro apertadas em volta dos tornozelos.
— Viu? — perguntou, respirando com dificuldade. — Eu disse que não ia tentar nada.
Levemente ofegante, Angelica ficou parada em frente a ele, com as pernas separadas.
— Então me mostre — exigiu ela.
— Você precisa me ajudar. Não posso fazer sozinho — protestou ele, sem energia.
Ela se inclinou para baixo e agarrou os cabelos dele de novo, içando-o para cima sobre pernas cujos músculos tremiam com o esforço de ficar em pé. Eles ficaram a centímetros de distância, a seda do quimono dela se esfregando nas mãos dele. Ele podia sentir o calor da respiração dela na carne viva de sua bochecha arranhada.
— Dê um beijo em mim — disse ele baixinho. As prostitutas nunca conseguem beijar, ele pensou. Isso tornará as coisas diferentes.
Algo brilhou nos olhos de Angelica, mas ela se inclinou sobre Tony, soltando os cabelos e puxando o rosto dele para junto de si. Ele precisou de toda a sua força de vontade para não recuar quando os lábios dela encontraram os seus, a língua dela invadindo-lhe a boca, explorando seus dentes e lábios. Sua vida depende disso, ele dizia a si mesmo. Você tem um plano. Tony se forçou a retribuir o beijo, enfiando sua língua na boca de Angelica, dizendo a si mesmo que havia coisas piores no mundo, e essa mulher tinha feito algumas de suas vítimas anteriores passarem por algumas delas.
Depois do que pareceu o beijo mais longo de sua vida, Angelica se afastou, olhando criticamente para os genitais dele.
— Vou precisar de ajuda — repetiu Tony. — Não tem sido um dia fácil.
— Que tipo de ajuda? — perguntou Angelica, ofegando levemente por lábios entreabertos. Era claro que ela não estava tendo nenhuma dificuldade com a excitação sexual que estava além das possibilidades dele.
— Faça um boquete. É a única coisa que funciona quando estou tendo dificuldade. Já senti sua boca agora; sei que vai ser sensacional. Por favor, quero muito fazer amor com você.
Ele mal tinha terminado de falar, ela já estava de joelhos, com as mãos acariciando os testículos dele. Ternamente, ela levantou o pênis flácido dele e o escorregou para a boca, sem tirar os olhos de seu rosto. Tony estendeu a mão e começou a acariciar-lhe os cabelos. Depois, com o que parecia ser um vagar infinito, ele puxou a cabeça dela para a frente, forçando-a para baixo, os olhos dela longe dele.
Em seguida, reunindo o que restava de suas forças, Tony levantou as mãos e golpeou as algemas na nuca de Angelica.
A pancada a pegou completamente de surpresa e ela o atingiu entre as pernas, o arranhar de seus dentes causando uma dor lancinante em Tony. Ele deixou-se cair para trás, sentido a tensão de seus tornozelos quando eles protestaram contra um movimento que não foram criados para fazer. Quando atingiu o chão, ele se dobrou para a frente e agarrou a cabeça de Angelica batendo-a com força no chão de pedra até que o corpo dela parou de se debater.
Ele se arrastou sobre sua figura debruçada até que seus dedos dormentes conseguissem chegar às correias do tornozelo. Com uma falta de jeito enlouquecedora, Tony lutou para despregar os conjuntos de fivelas que o prendiam na placa de pedra. Depois do que pareceram horas, ele estava finalmente livre. Enquanto tentava pôr-se de pé, seus tornozelos se recusavam ao desafio, virando e o lançando ao chão de novo, causando pontadas excruciantes de dor em suas pernas. Gemendo, ele se arrastou pelo chão até a escada. Já tinha transposto apenas alguns metros quando o corpo no chão grunhiu. Angelica movimentou a cabeça, sangue e muco transformaram seu rosto numa horripilante máscara do Dia das Bruxas. Quando ela o viu, rugiu como um animal ferido e passou a se levantar rapidamente, de modo desajeitado.
• • •
A procura por uma pista para o local de matança de Angelica estava ficando cada vez mais desesperada à medida que o medo e a preocupação com Tony cresciam. Eles tinham esvaziado o conteúdo do armário de arquivos no chão. Cada pedaço de papel era analisado em busca de qualquer pista do local do porão revelado no vídeo. Notas fiscais, garantias, contas e recibos. Carol continuava vasculhando um arquivo de correspondência oficial, esperando encontrar algum detalhe de aluguel ou hipoteca, qualquer coisa relacionada a outra propriedade. Merrick estava trabalhando com perseverança pelos arquivos relacionados à mudança de sexo de Thorpe. Brandon já tivera um alarme falso, defrontando-se com uma pilha de cartas jurídicas relacionadas à propriedade em Seaford. Logo, porém, ficou claro que elas se relacionavam à venda da casa da mãe falecida de Thorpe na cidade.
Foi Merrick quem encontrou o elemento crucial. Ele tinha terminado com os arquivos da mudança de sexo e começado com um maço de cartas diversas, arquivadas em “Imposto”. Quando se deparou com a carta, precisou lê-la duas vezes para ter certeza de que a autossugestão não estava lhe fazendo imaginar coisas.
— Senhor — disse ele, com cautela. — Acho que pode ser isso que estamos procurando.
Merrick passou a carta para Brandon, que leu o papel timbrado da Pennant, Taylor, Bailey e Co., Advogados. “Caro Christopher Thorpe, recebemos uma carta de sua tia, sra. Doris Makins, enviada da Nova Zelândia, autorizando-nos a passar para o senhor as chaves da fazenda Start Hill, Upper Tontine Moor, em Bradfield, W. Yorkshire. Como seus agentes, temos o poder de permitir o acesso à referida propriedade para fins de manutenção e segurança. Por favor, agende com este escritório para recolher as chaves quando lhe for conveniente...”
— Acesso a uma propriedade rural isolada — disse Carol, olhando por sobre o ombro de Brandon. — Tony disse que o assassino poderia dispor disso. E agora ela o tem consigo.
Uma onda de raiva passou por ela, tomando o lugar da lenta queimação de medo que a vinha corroendo desde o momento que eles revelaram os segredos macabros daquele escritório superficialmente normal.
Brandon fechou os olhos por um momento, depois disse, tenso:
— Não sabemos quanto a isso, Carol.
— E mesmo que ela o tenha pegado, ele é um sujeito esperto. Se alguém pode usar sua lábia para se manter fora de encrenca é Tony Hill — interveio Don.
— É melhor prevenir do que remediar — disse Carol, com agressividade. — Onde diabos fica a fazenda Start Hill? E em quanto tempo conseguimos chegar lá?
Tony olhou em volta, desesperado. O suporte de facas à sua esquerda estava a uma altura impossível. Quando Angelica ficou de joelhos, ele engatinhou no banco de pedra e pôs-se de pé. Sua mão se fechou no cabo de uma faca enquanto ela tentava ficar de pé e se lançava na sua direção, ainda gritando como uma vaca separada de seu bezerro.
O peso e o impulso do ataque dela curvaram Tony para trás no banco. As mãos de Angelica lutaram para chegar ao seu pescoço, agarrando sua traqueia com tanta força que luzes brancas começaram a dançar em frente aos seus olhos. Justamente quando pensou que não podia mais suportar, sentiu o jato quente e pegajoso de sangue contra seu estômago, e as mãos de Angelica se tornaram flácidas como um jornal molhado.
Antes que pudesse assimilar tudo, ele ouviu os passos batendo nos degraus de pedra. Como uma visão alucinada do paraíso, Don Merrick invadiu o porão, seguido por John Brandon, com o queixo caído pela cena em frente de si.
— Puta merda — gritou Brandon.
Carol passou pelos dois homens e ficou olhando sem compreender a carnificina diante de si.
— Vocês demoraram — disse Tony ofegante. Quando desmaiou, a última coisa que ouviu foi sua própria risada histérica.
Epílogo
Carol empurrou a porta da ala lateral do hospital. Tony estava escorado numa pilha de travesseiros, o lado esquerdo de seu rosto inchado e ferido.
— Oi — disse Tony, com um meio sorriso desanimado que era o melhor que podia conseguir sem sentir muita dor. — Entre.
Carol fechou a porta atrás de si e sentou-se numa cadeira ao lado da cama.
— Trouxe algumas coisinhas para você — disse ela, deixando um saco plástico e um envelope na colcha.
Tony se esticou para pegar a sacola. Carol fez uma careta por dentro quando viu o bracelete de feridas em torno de seus pulsos inflamados. Ele tirou um exemplar da revista Esquire, uma lata de Aqua Libra, uma lata de pistache e um volume de romances de Dashiel Hammett.
— Obrigado — agradeceu ele, surpreso pelo quanto a escolha dela o tinha emocionado.
— Não tinha certeza do que você gostava — respondeu ela na defensiva.
— Então você sabe adivinhar bem. A policial perfeita para a força-tarefa.
— Embora um pouco lenta para entender — disse Carol, com amargura.
Tony balançou a cabeça numa negativa.
— John Brandon esteve aqui mais cedo. Ele me disse como você desvendou tudo. Não vejo como você poderia ter chegado lá antes.
— Eu devia ter percebido antes que você não ia dar uma de sumido num momento tão crucial. Pensando bem, eu devia ter percebido logo que vi aquele perfil que você podia ser um alvo e tomado medidas para protegê-lo.
— Bobagem, Carol. Se alguém devia ter percebido isso, era eu. Você fez um trabalho muito bom.
— Não, se eu estivesse mais atenta, teríamos chegado lá a tempo de evitar que você tivesse de... fazer o que fez.
Tony suspirou.
— Você quer dizer que teria salvado a vida de Angelica? Para quê? Anos num hospício de segurança máxima? Veja as coisas pelo lado positivo, Carol. Você salvou uma fortuna ao país. Nada de julgamentos caros, nem anos de cárcere e tratamento a serem pagos. Merda, eles provavelmente vão lhe dar uma medalha.
— Não foi isso que quis dizer, Tony. Quero dizer que você não teria de viver sabendo que matou alguém.
— Sim. Bem, não posso fingir que foi o resultado perfeito, mas vou aprender a viver com isso. — Ele forçou um sorriso. — Não interprete isso do jeito errado, mas a primeira coisa que vou fazer quando andar de novo é sair e comprar para você um novo casaco impermeável. Toda vez que olho para essa capa que você está vestindo, tenho vontade de gritar.
— Por quê? — Carol franziu a testa, confusa.
— Você não sabe? Ela estava usando uma capa idêntica quando apareceu à minha porta. Se ela tivesse deixado alguma fibra na cena do crime, a perícia teria presumido que tinha vindo de você.
— Perfeito — concluiu Carol, ironicamente. — Como vão os tornozelos, aliás?
Tony fez uma careta.
— Acho que não vou nunca mais tocar violino. Consegui chegar ao banheiro de muletas, mas tive de sentar na beira da banheira para fazer xixi. Eles estão dizendo que provavelmente vai levar algum tempo para os ligamentos rompidos se curarem. Como foi seu dia?
Carol também fez uma careta.
— Horrível. Acho que você teria ficado à vontade. Você estava certo quanto a manter a fantasia viva. Ela, ele, aquilo, tinha fitas de todas as conversas telefônicas que tivera com suas vítimas, e ela tinha roubado as fitas das mensagens direcionadas a ela dos homens que tinham secretárias eletrônicas. Os nerds levaram um tempinho para decifrar a parte dos computadores. Eles não tinham ninguém que realmente soubesse o que estava fazendo, mas meu irmão Michael veio e resolveu para nós.
Tony deu um sorriso torto.
— Não queria dizer nada antes, mas por um momento de loucura eu realmente cogitei seu irmão.
— Michael? Você está de brincadeira!
Envergonhado, Tony fez que sim.
— Foi quando você propôs a ideia da manipulação dos vídeos no computador. Michael tinha o conhecimento especializado para fazer isso, sem dúvida. Ele está na faixa etária certa, ele mora com uma mulher, mas não num relacionamento sexual, ele tem acesso a todas as informações que o assassino precisaria sobre a forma como a polícia e os peritos trabalham, seu trabalho fica na área geral onde eu esperava que o assassino trabalhasse, e ele estava em condições de saber exatamente o que a polícia estava fazendo e se envolver na investigação. Se não tivéssemos pegado Angelica quando pegamos, eu teria arranjado um convite para jantar para analisá-lo.
Carol balançou a cabeça.
— Entende o que quero dizer com ser lenta para entender as coisas? Eu tinha acesso a todas as mesmas informações que você, e Michael nunca sequer me passou pela cabeça como uma possibilidade.
— Não é tão surpreendente. Você o conhece bem o bastante para saber que ele não é um psicopata.
Carol deu de ombros.
— Conheço mesmo? Não seria a primeira vez que um membro próximo da família, até uma esposa, comete o mesmo erro.
— Geralmente, elas estão iludindo a si mesmas ou são emocionalmente instáveis e dependentes do assassino de algum modo. Nenhuma das duas coisas teria se aplicado nesse caso. — Ele deu um sorriso cansado. — De qualquer forma, diga-me o que Michael descobriu.
— O computador era uma mina de ouro. Ela mantinha seu próprio diário da perseguição e dos assassinatos. Escreveu até o que queria que fosse publicado depois de sua morte. Dá para superar isso?
— Fácil — disse Tony. — Lembre-me de lhe mostrar alguns dos trabalhos acadêmicos que tenho sobre serial killers.
Carol estremeceu.
— Obrigada, mas não precisa. Trouxe uma impressão do diário para você. Imaginei que ficaria interessado. — Ela fez um gesto para o envelope. — Esta aí. Além disso, como você suspeitou, ele tinha gravado os assassinatos em fita, e manipulou as imagens para manter viva a fantasia. Era tétrico, Tony. Ia muito além de um pesadelo.
Tony concordou.
— Não vou dizer que a gente se acostuma, porque a gente nunca se acostuma se quiser ter alguma utilidade neste trabalho. Mas você chega a um estágio onde pode deixar isso trancado bem distante, para que não fique em primeiro plano e acabe destruindo a sua cabeça sem você perceber.
— Ah, é?
— Essa é a teoria. Pergunte-me novamente em algumas semanas — disse ele, com gravidade. — Havia algo sobre como ela escolhia suas vítimas?
— Só um pouco — respondeu Carol. — Ela vinha nisso há meses, antes mesmo que tivesse escolhido a primeira vítima. Angelica trabalhava para a companhia telefônica, era gerente de sistemas de computadores. Ao que parece, costumava trabalhar para uma pequena empresa telefônica privada em Seaford, que lhe deu a experiência para conseguir o trabalho em Bradfield. Ela era o que eles chamam de superusuário do sistema, então tinha acesso a todos os dados ali. Ela usou o computador da companhia telefônica para extrair todos os números residenciais que fizeram ligações regulares para linhas de disque-sexo no ano passado — pausou Carol, deixando a pergunta óbvia no ar.
— Era pesquisa — explicou Tony, com cansaço. — Publiquei um artigo sobre a função das linhas de sexo no desenvolvimento de fantasias entre criminosos sexuais. Alguém devia ter dito a Angelica para não tirar conclusões precipitadas.
Interpretando esse comentário como uma censura velada, Carol prosseguiu:
— Ela fez a correspondência cruzada desses dados com a lista dos eleitores e chegou aos homens que moravam sozinhos. Depois, verificava cada um observando suas casas. Tinha uma ideia clara do tipo físico que buscava. Ela queria alguém com casa própria, uma renda decente e boas perspectivas de carreira. Acredita nisso?
— Completamente — disse Tony, com gravidade. — Sua lógica era que ela nunca os quis matar, só queria amá-los. Mas eles a forçaram a matar porque a traíram. Ela ficava dizendo a si mesma que o que queria de verdade era um homem que fosse amá-la e viver com ela.
Não é o que todos queremos, pensou Carol, mas não disse.
— De qualquer forma, depois que decidia sobre um candidato possível, ela preparava o caminho com as ligações telefônicas eróticas. Ela conseguia fisgá-los assim, por causa de todos vocês, homens sórdidos, que não resistem ao sexo anônimo.
— Nossa — disse Tony, com uma careta. — Em minha defesa, gostaria de dizer que uma grande parte do meu interesse foi puramente acadêmico. Estava interessado na psicologia de uma mulher que fazia o que ela fazia por telefone.
Carol sorriu com os lábios apertados.
— Pelo menos agora sei que estava falando a verdade quando disse que não conhecia a mulher que estava deixando as mensagens sensuais na sua secretária eletrônica.
Tony desviou o olhar.
— E a descoberta de que o homem por quem se sentira atraída estava tendo ereções em sexo por telefone com uma estranha deve ter sido um prazer para você.
Carol ficou silenciosa, sem saber o que dizer.
— Já ouvi as fitas — admitiu ela. — As suas eram muito diferentes das outras. Você estava claramente desconfortável boa parte do tempo. Não que seja da minha conta.
Ainda incapaz de olhá-la nos olhos, Tony falou, com a voz entrecortada e distante:
— Tenho um problema com o sexo. Para ser preciso, tenho problema em conseguir manter uma ereção. A verdade é que apenas parte de mim estava tratando as ligações com interesse profissional. A outra parte estava tentando usá-las como uma espécie de terapia. Sei que isso faz com que eu pareça um pervertido, mas parte do problema dessa profissão é que é praticamente impossível encontrar um terapeuta que possa respeitar e confiar que isso não esteja conectado, de alguma forma, com o mundo em que trabalho. E, por mais que eles aleguem verbalmente o princípio da confidencialidade de seus clientes, sempre relutei em me expor ao risco.
Percebendo a dificuldade que Tony tivera em fazer essa confissão, Carol pegou sua mão e a cobriu levemente com a dela.
— Obrigada por me contar isso. Não sairá daqui. E se isso deixar você melhor, as únicas pessoas que ouviram integralmente as fitas foram eu e John Brandon. Não precisa se preocupar com o que os outros estejam dizendo sobre você pelas suas costas na força.
— Isso é alguma coisa, acho. Então, prossiga. Conte sobre os telefonemas de Angelica para as outras vítimas.
— Era óbvio que os homens pensavam nisso como sexo sem compromisso nem segunda vez. A análise de Angelica foi completamente diferente. Ela se convenceu de que suas respostas significavam que estavam se apaixonando por ela. Infelizmente para os homens, eles decidiram de outra forma. Assim que mostravam algum interesse por outra mulher, eles assinavam seus mandados de execução. Isto é, fora Damien. Ela o matou para nos ensinar uma lição. Você seria a outra lição.
Tony estremeceu.
— Não é de admirar que ela tivesse que ir para o exterior para a operação de mudança de sexo. Os psicólogos do Serviço Nacional de Saúde que ela frequentou devem ter tido uma boa oportunidade com as atitudes e as aspirações dela.
— Ao que parece, eles decidiram que ela não era um candidato apropriado para uma mudança de sexo por causa da falta de percepção de sua sexualidade. Concluíram que era um gay que não conseguia lidar com sua orientação sexual por causa do condicionamento cultural e familiar. Recomendaram acompanhamento psicológico com um terapeuta sexual, em vez de uma mudança de sexo. Houve uma briga feia na época. Ela jogou um dos psicólogos por uma porta de vidro — revelou Carol.
— Uma pena que eles não tenham feito boletim de ocorrência — disse Tony.
— Sim. E você ficaria satisfeito em ouvir que eles certamente não vão acusar você.
— Era de supor que não! Como disse, pense no dinheiro dos contribuintes que economizei. Talvez devêssemos jantar para celebrar quando eu sair daqui — convidou ele hesitante.
— Gostaria disso. Há uma coisa boa no final de tudo isso — disse Carol.
— Que foi?
— Penny Burgess tirou o dia de folga ontem para andar nos Dales. Ao que parece, o carro dela quebrou e ela ficou presa no meio de uma floresta durante a noite. Ela perdeu a coisa toda. Há uma dúzia de créditos de matérias no Sentinel Times esta noite e nenhum é dela.
Tony relaxou e olhou para o teto. Disfarçando o problema, era isso que eles estavam fazendo. Ele suspeitou que Carol sabia disso da mesma forma que ele, e não lamentava o esforço que ela estava fazendo. Mas, por enquanto, ele já tivera o bastante. Fechou os olhos e suspirou.
— Ah, meu Deus, desculpe — disse Carol, levantando-se. — Não pensei bem. Você deve estar exausto. Olhe, estou indo embora. Vou deixar essas coisas para que leia quando se sentir pronto. Posso dar uma passada aqui amanhã, se quiser.
— Acho que gostaria disso — respondeu Tony, exausto. — O cansaço chega a mim em ondas às vezes.
Ele ouviu os passos dela pelo piso e o clique da porta se abrindo.
— Cuide-se bem — disse Carol.
A porta se fechou atrás dela, e Tony se arrastou de volta para cima até ficar reclinado nos travesseiros. Ele estendeu a mão para pegar o envelope. Embora não pudesse lidar com a conversa, a curiosidade dele não o permitiria ignorar o diário de Angelica. Ele retirou um espesso maço de folhas de papel A4.
— Vamos ver do que você é feita de verdade — disse baixinho. — Qual é a história? Como você justifica o que esconde? — Com avidez, ele começou a ler.
Avançar pelas emoções dos psicologicamente perturbados era normalmente uma experiência de exploração rotineira para Tony. Mas essa era diferente, ele percebeu apenas depois de alguns parágrafos. A princípio, ele não conseguiu identificar o que era. A escrita era de nível intelectual mais elevado, mais controlada e mais imediata do que a maioria das divagações deles, mas isso não explica por que a reação dele era tão diferente. Ele avançou mais algumas páginas, igualmente fascinado e repelido. Não era nem mais nem menos obcecado consigo mesmo do que outras coisas que lera, mas havia um prazer horripilantemente incomum. A maioria dos assassinos cujos escritos ele tinha lido exultava muito mais em seu próprio papel, refletindo menos no que tinha feito a suas vítimas e em seus efeitos nelas. Mas aqui estava alguém que se identificava com a mesma intensidade em sua relação com eles. Nem mesmo isso poderia explicar inteiramente por que ele se sentia tão perturbado pelo que estava lendo. O que quer que fosse estava tornando-o mais relutante a continuar à medida que ele lia, o oposto de sua reação normal. Ele vinha interessado, de um modo tão obsessivo, em entrar na cabeça do assassino que o apelidou de Faz-tudo, mas agora que tudo estava disposto diante dele, era como se não quisesse mais saber.
Conforme se forçava a ler, registrando mentalmente as suposições corretas que fizera no perfil, Tony percebeu enfim que o que estava sentindo era pessoal. Essas palavras o tocavam de maneiras que ele nunca vivenciara antes, porque a vida descrita nessas páginas o emocionava de um modo direto que ele nunca conhecera. Aquelas eram as pegadas de seu próprio arqui-inimigo pessoal que ele estava seguindo, e era uma jornada desconfortável.
Ele jogou os papéis para um lado, incapaz de continuar, vendo seu próprio destino espelhado nos corpos fragmentados que Angelica tinha descrito tão meticulosamente. O problema em ser psicólogo era que ele sabia exatamente o que estava acontecendo consigo mesmo. Ele sabia que ainda estava em choque, ainda negando inteiramente a realidade. Embora não conseguisse tirar os eventos do porão da cabeça, ainda havia um distanciamento entre ele e a lembrança, como se ele a estivesse observando de uma longa distância. Um dia o horror da noite anterior voltaria em estéreo, esparramado em sua visão interna em Cinemascope. Sabendo disso, esse torpor era uma bênção. Sua secretária eletrônica já estava, ele sabia, abarrotada de ofertas lucrativas para a história de como o caçador se tornou assassino. Um dia ele teria de contar essa história. Ele esperava ter força para guardá-la para um psiquiatra.
Não era nenhum conforto racionalizar que, tendo sido alvo de um serial killer, estatisticamente era improvável que ele se encontrasse nessa posição de novo. Tudo em que conseguia pensar era nas horas no porão, buscando em sua experiência e conhecimento as palavras mágicas que lhe dariam mais alguns minutos para tentar encontrar a chave da liberdade.
E depois aquele beijo. O beijo da prostituta, o beijo da assassina, o beijo da amante, o beijo da salvadora, tudo misturado numa coisa só. Um beijo de uma boca que o vinha seduzindo havia semanas. A boca cujas palavras tinham lhe dado esperança de um futuro, só para no final deixá-lo perdido nesse lugar. Ele tinha passado a carreira tentando entrar nas mentes daqueles que matam, apenas para acabar como um deles, graças a um beijo de Judas.
— Você venceu, não foi, Angelica? — disse ele baixinho. — Você me queria, e agora me tem.
Val McDermid
O melhor da literatura para todos os gostos e idades