Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CAPITÃO DOS PIRATAS
Há um livro, e, enfim, dois túmulos. Já não passa, afinal, de uma lenda a bonita história daqueles dois jovens, que morreram, julgaremos nós, ingloriamente. Mas, agora, a história é outra: já não a de Paulo e Virgínia, sim a de Jorge e Sara. E esta não terá os mesmos cambiantes: beleza, romantismo, pureza, pudor. Não que tenha outros, em substituição. O palco esse lá está, a Ilha de França.
Mas, é facto, esta não é propriamente uma história de amor; é mais uma história de luta, de guerra. Só que, pelo meio, há um amor que desabrocha, que se fortalece, que se expande para além da luta, das lutas, a mais próxima, que quer ser obstáculo a tal amor, a mais afastada, e até mais terrível, já que, há uma vida em jogo. Conseguirá Jorge vencer a sua luta? Conseguirá salvar-se, para a sua Sara?
A ILHA DE FRANÇA
Não vos tem algumas vezes sucedido, durante uma dessas longas, tristes e frias noites de Inverno, ouvindo o vento assobiar pelos corredores e a chuva a bater nas janelas, inspirar-vos desgosto o clima sombrio da cidade de Paris, húmida e lamacenta, e pensar em algum palmar encantado, coberto de viçosa verdura, em que pudésseis, em qualquer estação do ano, à borda de uma nascente de água, junto de uma palmeira, à sombra de copadas árvores, adormecer pouco a pouco entregues a uma sensação aprasível?
Pois bem! O paraíso com que sonhais existe. Esse Éden, que desejais, aguarda-vos. O regalo, que deve provocar-vos a sonolenta sesta, cai em cascata e foge através do campo. A palmeira, que deve abrigar-vos o sono, à brisa do mar abandona suas compridas folhas, semelhantes ao penacho de um gigante. As árvores, gemendo sob o peso dos frutos, oferecem sua odorífera sombra. Segui-me.
Vinde a Brest, essa irmã guerreira da comerciante Marselha, sentinela armada, que vela sobre o Oceano, e ali, entre os cem navios que no seu porto se abrigam, escolhei um desses brigues veleiros, semelhantes aos que a seus afoitos piratas dá o rival de Walter Scott, o poético romancista do mar.
Estamos justamente em Setembro, no mês propício às longas viagens. Embarcai no navio a que vamos confiar o nosso comum destino, deixemos atrás de nós o estio, e voguemos ao encontro da Primavera. Adeus Brest, Nantes, Baiona, adeus ó França!
Vedes, à nossa direita, aquele gigante, que se eleva a três mil e seiscentos metros de altura, cuja cabeça de granito se perde nas nuvens acima das quais ela parece suspensa, e de que, através da água transparente, se enxergam as pedregosas raízes, que se vão entranhando no abismo?
É o pico de Tenerife, a Nevaria, o sítio em que se juntam as águias do Oceano, que vedes adejar em torno de seus ninhos, e que vos não parecem maiores do que pombas.
Passemos avante, não é ali o termo da vossa viagem. Ali não é mais que o jardim de Espanha, e eu prometi-vos o jardim do mundo.
Vedes, à nossa esquerda, o escalvado rochedo sobre o qual sem cessar dardejam os raios do sol dos trópicos?
E a rocha em que por espaço de seis anos esteve captivo o Prometeu moderno. O pedestal em que a Inglaterra erigiu a estátua da sua própria ignomínia. O simulacro da pira de Joana d'Arc, e do cadafalso de Maria Stuart. É o Gólgotha político. Que por dezoito anos foi o lugar do ajuntamento de todos os navios, mas também não é ali que vos conduzo. Vamos adiante. Lá nada temos já que fazer. A regicida Santa Helena está viúva das relíquias do seu mártir.
Somos chegados ao Cabo das Tormentas.
Vedes aquela montanha, que no meio das névoas se divisa?
É o mesmo gigante Adamastor, que apareceu ao autor dos Lusíadas.
Passamos ante a extremidade da terra. Aquela ponta, que para nós se adianta, é a proa do mundo. Vede como nela bate furioso, mas imponente, o Oceano. Porque aquele navio não teme as tormentas, navega para o porto da eternidade, tem por piloto o próprio Deus.
Passemos adiante, porque além de aquelas verdejantes montanhas encontraríamos áridas terras e desertos abrasados pelo sol.
Vamos avante. Eu prometi-vos frescas águas, aprazíveis sombras, frutos que sem cessar amadurecem, e flores eternas.
Salve oceano Índico, aonde nos leva o vento oeste. Salve teatro das Mil e uma Noites. Avizinha-se o termo da nossa viagem. Eis ali Bourbon, a melancólica, que um eterno vulcão consome. Contemplemos um momento suas labaredas, damos um sorriso a seus aromas, naveguemos pouco mais e vamos ancorar. A enseada é boa e o nosso brigue, fatigado da longa viagem, carece de descanço. Além de isto, somos chegados. Esta terra, é a terra afortunada que a natureza parece haver escondido nos confins do mundo, como uma zelosa mãe oculta a profanas vistas à virginal formosura de sua filha, esta terra é a terra prometida, a pérola do Oceano Índico, é a Ilha de França.
Agora, casta filha dos mares, irmã gémea de Bourbon, afortunada rival de Ceilão, deixa-me erguer um pouco teu véu para te mostrar ao estrangeiro amigo, ao viajante fraterno, que me acompanha. Deixa-me desatar teu cinto. Oh, bela cativa! Porque nós somos dois peregrinos de França, e talvez um dia a França poderá resgatar-te, rica filha da índia, a preço de algum pobre reino da Europa.
E vós, que com os olhos do pensamento nos haveis seguido, deixai-me agora pintar-vos a maravilhosa região, com suas campinas sempre férteis, com sua dupla colheita, com seu ano composto de Primaveras e estios, que se seguem e se substituem sem cessar ligando as flores aos frutos, e os frutos às flores. Deixai-me pintar a poética ilha, que no mar banha seus pés e entre as nuvens esconde a cabeça. Outra Vénus nascida, como sua irmã, da espuma das ondas, e que sobe do seu húmido berço ao seu celeste império, coroada de luminosos dias e estreladas noites, eternos adornos que ela havia da mão do Senhor, e que o Inglês não tem podido ainda furtar-lhe.
Vinde pois, e se as viagens aéreas não vos assustam mais do que as marítimas, tomai, novo Cleofas, uma ponta do meu capote, e eu vou transportar-vos comigo acima do cone do Pieter-boot, à mais alta montanha da ilha depois do pico da Ribeira Negra, de onde olharemos sucessivamente para todos os lados.
Por cima de nós, bem vedes, lá está um céu sempre puro, tudo constelado de estrelas. E uma toalha azul em que Deus levanta sob cada um de seus passos uma áurea poeira, de que é um mundo cada átomo.
Por baixo de nós, lá se vê a ilha toda estendida, como um mapa geográfico de cento e oitenta quilómetros de âmbito, com seus sessenta rios, que daqui parecem fios de prata, destinados a fixar o mar em torno da margem, e suas trinta montanhas cobertas de bosques.
No meio de todos estes rios, vede as cascatas do Retiro e da Fonte, que, do seio dos bosques em que nascem, velozes arremeçam suas cataratas, para irem, com um rumor semelhante ao barulho da tempestade, ao encontro do mar que as aguarda, e que, tranquilo ou irado, responde a seus desafios eternos, umas vezes pelo desprezo, outras pela cólera. Luta de conquistadores a qual fará no mundo mais estragos e mais confusão. Depois, perto desta ambição enganada, vede a grande Ribeira Negra* que rola tranquilamente sua água fecundante, e que impõe seu nome respeitado a quanto a rodeia, mostrando assim o triunfo da sabedoria sobre a força, e do sossego sobre a cólera.
No meio de todas estas montanhas, vede também o monte Brabante, sentinela gigante posta na ponta setentrional da ilha para defendê-la das surpresas do inimigo, e resistir aos furores do Oceano.
Vede o pico das Três Tetas, em cuja base corre o rio do Tamarino é o do Amparo, como se o ísis índio quisesse em tudo justificar seu nome.
Vede finalmente o Polegar, depois do Pieterboot, onde estamos, o mais majestoso pico da ilha, e que parece erguer ao céu um dedo, para mostrar ao senhor e ao escravo que acima de nós há um tribunal, que a ambos fará justiça.
Diante de nós, é o porto Luís, outrora o porto Napoleão, a capital da ilha, com suas numerosas casas de madeira, e seus dois regatos que a cada tempestade se convertem em torrentes. Lá está a ilha dos Tanoeiros, que defende a aproximação do porto Luís, cuja povoação, de várias cores, parece uma amostra de todos os povos da terra, desde o crioulo preguiçoso (que vai em palanquim se carece de atravessar a rua, e para quem é tal fadiga falar que habitua os escravos a obedecer ao seu aceno), até ao negro, que o açoite conduz pela manhã ao trabalho, e do trabalho guia à noite para casa. Entre estes dois extremos da escala social, vede os Lascaras verdes e encarnados, que podeis distinguir por turbantes sempre destas duas cores, e por suas feições bronzeadas, mistura do tipo malaio e do malabar. O negro Yolqff(1), da grande e bela raça da Senegâmbia, preto como azeviche, com os olhos ardentes como carbúnculos, e os dentes brancos como pérolas. O Chinês pequeno, com o peito chato, os ombros largos, a cabeça calva, o bigode pendente, falando uma língua, que não se entende, é com o qual ainda assim toda a gente trata, porque o Chinês vende todas as fazendas, sabe todos os ofícios, exerce todas as profissões. Porque o Chinês é o judeu da colónia. Vede os Malaios cor de cobre, baixos, vingativos, ardilosos, dispostos sempre a esquecer o benefício, jamais a injúria, vendendo, como os ciganos, essas coisas que devagar se pedem. Vede os Moçambiques, afáveis, bons e estúpidos, estimados só por causa da sua força. Os Malgachos, sagazes, de cor morena, com o nariz chato e os lábios grossos e que se distinguem dos negros do Senegal pelo reflexo avermelhado de sua pele. Os Namaquezes, altos e delgados, hábeis e altivos, exercitados desde a infância na caça do tigre e do elefante, e que se admiram de ser transportados a uma terra em que não há monstros a combater. Finalmente, no meio de tudo isto, vemos o oficial inglês, de guarnição na ilha ou estacionado no porto, com o seu jaleco escarlate e calças brancas. O oficial inglês, que do alto da sua grandeza contempla crioulos e mulatos, senhores, e escravos, colonos e indígenas, que só fala de Londres, só a Inglaterra celebra, só a si próprio estima. Atrás de nós está o grande porto, outrora porto imperial, primeiro estabelecimento dos Holandeses, mas abandonado depois por eles, porque a mesma brisa, que para lá impele os navios, os tolhe de sair. Por isso, depois de haver cabido em ruína, não é hoje mais do que uma vila cujas casas apenas se relevam, uma enseada onde a escuna procura abrigo contra o arpéu do corsário, montanhas cobertas de florestas a que o escravo pede refúgio contra a tirania do senhor.
Depois, voltando a cabeça, e quase debaixo de nossos pés, distinguiremos no reverso das montanhas do porto, Moka, sempre tão fresca, que parece dobrar à noite os tesouros do seu adorno para mostrá-los pela manhã. Moka, que se embeleza cada dia como os outros cantões para os dias festivos, Moka, que é o jardim desta ilha, a que chamámos o jardim do mundo. Tomemos a nossa primeira posição. Voltemo-nos para Madagáscar, e lancemos a vista para a esquerda. A nossos pés, além do Retiro, estão as planícies Williams, depois de Moka o mais delicioso bairro da ilha, e que termina, junto das palmeiras de São Pedro, a montanha o Corpo da Guarda. Depois, além do pico das Três Tetas e dos grandes bosques, lá se vê o bairro da Floresta, com os rios dos Limoeiros, do Banho das Negras e da Arcada, com o seu Porto tão bem defendido pelo declive das costas, que não é possível aportar ali como inimigo, com seus pastos rivais dos das planícies de São Pedro, com o seu solo virgem ainda como uma solidão da América. Enfim, no interior dos bosques, está o grande lago em que se encontram moreias tamanhas que devoram vivos os veados perseguidos pelos caçadores, e os negros fugidios, que têm a imprudência de ali se irem banhar.
Enfim, voltemo-nos para a nossa direita. Eis ali o bairro do Amparo, dominado pelo muro do Descobrimento, no alto do qual se erigem mastros de navios, que daqui parecem finos como ramos de salgueiro. Eis ali o cabo Infeliz, a baía dos Túmulos. Eis ali a igreja das Árvores.
Naquele bairro se erigiam as duas cabanas vizinhas de madame Latour e de Margarida. No cabo Infeliz se despedaçou o navio São Geran. Na baía dos Túmulos se encontrou o corpo de uma donzela, que na mão tinha apertado um retrato. Na igreja das Árvores, dois meses depois, a par daquela donzela, foi sepultado um mancebo quase da mesma idade.
O leitor deve facilmente adivinhar os nomes dos dois amantes, que a mesma lousa cobre e a mesma sepultura encerra. São os de Paulo e Virgínia, cuja morte o mar parece, gemendo sobre os arrecifes que rodeiam a praia, incessantemente lamentar, como a fêmea do tigre chora eternamente seus filhos por ela mesma despedaçados num transporte de raiva, ou num momento de ciúme.
E agora, percorrendo a ilha da Barra de Descorne, ao sudoeste de Mahebourgo no pequeno Malabar, seguindo as costas ou estranhando-vos no interior, descendo aos rios, ou trepando às montanhas, seja que o disco brilhante do sol abrase a planície com raios de fogo, ou que a lua com a sua melancólica luz prateie os montes, podeis, se vossos pés se cansam, se a vossa cabeça se torna pesada, se os vossos olhos se cerram, se (embriagado pelas emanações embalsamadas da roseira da China e do jasmim de Espanha) vossos sentidos molemente se dissolvem como numa embriaguez de ópio, vós podeis, ó meu companheiro! Ceder sem temor e sem resistência ao íntimo e profundo deleite do sono índio.
Deitai-vos pois sobre a erva espessa, dormi tranquilo e despertai sem medo. Porque aligeira o ruído, que aproximando-se faz estremecer as folhas, não é produzida pela boqueira da Jamaica, e os dois olhos pretos e cintilantes, que em vós se fitam, não são os do tigre de Bengala.
Dormi tranquilo e despertai sem medo. O eco da ilha nunca repetiu o silvo agudo de um réptil, nem o uivo nocturno do animal carnívoro.
Não, é uma jovem preta, que aparta dois bambus para meter a cabeça e contemplar com curiosidade o Europeu recém-chegado.
Fazei um sinal, sem sair do vosso lugar, e ela irá colher para vós a banana saborosa, a cheirosa manga ou a vagem do tamarindo. Dizei uma palavra, e ela responderá com a sua gutural e melancólica: «Vou fazer o que pedis». Muito feliz se um olhar benévolo ou uma palavra de satisfação lhe paga seus serviços. Então ela se oferecerá para guiar-vos à habitação do seu senhor.
Segui-a, não importa onde vos encaminha, e, quando avistardes uma linda casa com alameda e rodeada de flores, tereis chegado. Será este o domicílio do plantador.
Tirano ou patriarca, segundo ele é ou benévolo ou malvado. Mas seja uma ou outra causa isso pouco vos importa.
Entrai confiadamente, ide assentar-vos à mesa da família. Dizei: «Sou vossa hóspede». E então ante vós aparecerá o mais rico prato da China, com o melhor cacho de banana, e a taça prateada com o fundo de cristal, cheia da melhor cerveja da ilha, e, em quanto quiserdes, com a sua espingarda caçareis em suas florestas, pescareis no seu rio com as suas próprias redes. E cada vez que vierdes a sua casa ou lhe enviardes um amigo, será morto um gordo novilho, porque a chegada de um hóspede é aqui uma festa, como era uma felicidade a volta do filho pródigo. Por isso os Ingleses, esses eternos invejosos da França, desde largo tempo haviam fitado os olhos na sua filha querida, volteando sem cessar em torno dela, buscando umas vezes O Capitão dos Piratas seduzi-la pelo ouro, outras intimidá-la por ameaças. Porém, a todas estas propostas, a famosa crioula respondia com excessivo desdém, de modo que em breve foi visível que seus amantes, não podendo obtê-la por sedução, queriam dela apossar-se por violência, pelo que foi preciso guardá-la como uma monia espanhola.
Por espaço de algum tempo, ela foi o objecto de tentativas sem importância, por conseguinte sem resultado. Porém enfim a Inglaterra, não podendo mais esperar, sobre ela se lançou às cegas, e, sabendo a Ilha de França um dia que a sua irmã Bourbon acabava de ser tomada, convidou seus defensores a guardá-la ainda melhor que no tempo passado, e estes começaram a amolar os cutelos e a pôr em brasa as balas porque esperavam o inimigo. A 23 de Agosto de 1810, uma canhonada, que retumbou por toda a ilha, anunciou que ele era chegado.
LEÕES E LEOPARDOS
Eram cinco horas da tarde, e pelo fim de um desses lindos dias do estio, que não são conhecidos na Europa.
Muitos dos habitantes da ilha de França, dispostos em anfiteatro nas montanhas, que dominam o grande porto, contemplavam esbaforidos a encarniçada luta, que se travava a seus pés, como outrora os Romanos, do alto do circo, se inclinavam para ver uma luta de gladiadores, ou um combate de mártires.
Porém, desta vez a arena era um vasto porto, circundado de cachopos, onde os combatentes se haviam introduzido, para não recuar, quando quizessem fazê-lo, e poderem, livres do cuidado da manobra, despedaçar-se à sua vontade. Desta vez para dar fim à naumaquia terrível, não havia vestais com o dedo polegar levantado. Era, bem o compreendiam todos, uma luta de destruição, um combate mortal. Por isso os dez mil espectadores, que a ele assistiam, ! guardavam ançioso silêncio. E o mar, tantas vezes encapelado naquelas paragens, se conservava tranquilo, para que se não perdesse um só estrondo daquelas trezentas bocas de fogo. Passamos a referir o que sucedeu.
No dia 20, pela manhã, o capitão de fragata Duperré, vindo de Madagáscar na fragata Bellona, e seguido da Minerva, da corveta Victor, do brigue Ceilão e do Windham, reconheceu as montanhas do Vento, da ilha de França.
Como três precedentes combates, em que fora constantemente vencedor, haviam avariado a sua armada, tomou Duperré a resolução de entrar no grande porto para ali a reparar, o que era fácil, porque, como é notório, nesta época a ilha pertencia ainda toda à França, e a bandeira tricolor, tremulando no forte da ilha da Barra e num navio de três mastros ancorado junto do dito forte, dava ao capitão Duperré a certeza de ser recebido por amigos. Pelo que mandou dobrar a ilha da Barra, situada a duas léguas pouco mais ou menos adiante de Mahe-bourgo, e para executar esta manobra, ordenou que a corveta Victor fosse na dianteira, que a seguissem a Minerva, o brigue Ceilão e a fragata Bellona, e que Windham fosse em último lugar.
A armada assim seguiu avante, indo os navios uns após os outros, por não permitir a pouca largura da entrada que passassem dois a par.
Logo que a corveta Victor se achou ao alcance do canhão do navio de três mastros, amarrado debaixo do forte, este último indicou por sinais que os Ingleses andavam cruzando à Oeste da ilha.
O capitão Duperré respondeu que sabia perfeitamente, e que a armada, que se tinha avistado, constava de Nereida, da Syrius e da Iphigenia, ao mando do comodoro Lambert, porém que como o capitão Hamelin fazia estação a sotavento da ilha com o Emprehendedor, a Mancha e a Astréa, havia força para aceitar o combate se o inimigo o oferecesse.
Alguns segundos depois, o capitão Bouvet, que seguia a corveta Victor, desconfiou que se faziam disposições hostis no navio, que acabava de fazer sinais.
Além disto, debalde o examinava o capitão com o golpe de vista penetrante, que tão raras vezes engana o marítimo, não reconhecia o dito navio como pertencendo à marinha francesa.
Bouvet participou as suas observações ao capitão Duperré, o qual lhe respondeu, que tomasse precauções, que ele ia fazer o mesmo.
Pelo que toca à corveta Victor, impossível foi dar-lhe aviso, achava-se muito avante, de modo que seria visto do forte, e do navio suspeito, qualquer sinal que lhe fizessem.
A corveta Victor continuou pois a adiantar-se sem desconfiança, impelida por uma viração sueste e levando na tolda toda a sua marinhagem, em quanto os dois navios que a seguiam, com ansiedade observavam os movimentos do forte e do sobredito navio de três mastros. Ambos todavia conservavam ainda aparências de amizade.
A corveta Victor havia já passado além do forte, quando de repente aparece uma linha de fumo nos lados do navio ancorado e no alto do mesmo forte.
Quarenta e quatro peças de artilharia troam ao mesmo tempo, enfiando obliquamente a corveta francesa, rompendo-lhe o velame, matando-lhe alguma gente e quebrando-lhe o mastareo da mezena e logo as cores francesas desaparecem do forte e do navio de três mastros, cedendo o lugar à bandeira inglesa.
Porém em vez de retroceder, o que lhe seria ainda possível abandonando a corveta que lhe serve de espia, e que responde ao fogo do navio de três mastros pelo de seus dois cachorros, o capitão Duperré faz um sinal ao Windham, que volta ao mar, e ordena a Minerva e ao brigue Ceilão que forcem a barra.
O mesmo Duperré protege estes vasos, aquando o Windham vai prevenir o resto da armada francesa da posição em que se acham os quatro navios.
Com morrão aceso, a gente a postos, e nesse profundo silêncio que precede sempre as grandes crises, os navios continuam então a adiantar-se.
Em breve a Minerva chega a par do navio de três mastros inimigo, e ao mesmo tempo dispara vinte e duas bocas de fogo.
Uma parte dos pavezes do navio inglês voa em pedaços. Alguns gritos sufocados se ouvem. Depois este navio dispara toda a sua bateria, e a Minerva envia os mensageiros da morte, que dela acaba de receber, enquanto a artilharia do forte fazendo fogo, não lhe causa mais dano do que a morte de alguns homens e alguns cabos cortados.
Chega depois o Ceilão, lindo brigue de vinte peças, tomado, como a corveta Victor, a Minerva e a Windham, alguns dias antes aos Ingleses, e que, como a Victor e a Minerva ia combater pela França, sua nova senhora.
Este brigue se adiantou veloz e gracioso como uma ave marítima, que mal toca as ondas. E chegado que foi em frente do forte e do navio de três mastros, este, o forte e o brigue, ao mesmo tempo dispararam a artilharia, confundido o seu fumo, a tão curta distância combatiam.
Restava o capitão Duperré, que comandava a Bellona e já nesta época era um dos mais valentes e hábeis oficiais da marinha francesa, o qual se adiantou, aproximando-se da ilha da Barra mais do que nenhum dos outros navios, e rompeu o fogo à queima roupa, trocando a morte a alcance de pistola.
A barra estava forçada. Os quatro navios achavam no porto, e, juntando-se então na altura das Garças, vão ancorar entre a ilha dos Macacos e a ponta da colónia.
O capitão Duperré põe-se logo em comunicação com a cidade, e sabe que a ilha Bourbon se encontra tomada, mas que o inimigo, apesar de suas tentativas contra a ilha de França, só conseguira apossar-se da ilha da Barra.
Um correio é em continente expedido ao valoroso general Decaen, governador da ilha, para lhe noticiar que os quatro navios franceses, Victor, Minerva, Ceilão, Bellona, se achavam no Grande Porto.
A 21, pelo meio dia, o general Decaen recebe este aviso, transmite-o ao capitão Hamelin, que em continente ordena que os navios a seu mando desfraldem velas, despacha por terra reforços de gente ao capitão Duperré, e previne-o que vai fazer quanto puder para chegar em seu socorro, visto que tudo lhe dá azo a crer que forças superiores o ameaçam.
Com efeito, buscando fundear na Ribeira Negra, a 21, pelas quatro horas da manhã, o Windham foi tomado pela fragata inglesa Syrius.
O capitão Pym, que a comandava, soube então que quatro navios franceses, ao mando do capitão Duperré, haviam entrado no Grande Porto, onde o vento os detinha. Pym deu aviso disto aos capitães da Magica e da Iphigenia, e as três fragatas emproaram logo com o Grande Porto.
Estes são os movimentos, que viu o capitão Hamelin, e que, pela sua conexão com a nova, que ele sabe, lhe fazem acreditar que o capitão Duperré vai ser atacado.
Hamelin apressa os seus preparativos. Porém, por mais diligência que faça, só a 22, pela manhã se acham prontos.
As três fragatas inglesas levam-lhe três horas de dianteira, e o vento, que se fixa no sueste e a cada momento refresca, aumenta as dificuldades que para chegar ao Grande Porto ele deve experimentar.
A 21, à noite, o general Decaen, monta a cavalo, pelas cinco horas da manhã chega a Mahe-bourgo, seguido dos principais colonos e dos seus negros que mais confiança lhes inspiram. Senhores e escravos estão armados de espingarda e no caso que os Ingleses tentassem desembarcar, cada um deles tem cinquenta tiros a disparar.
Uma conferência teve imediatamente lugar entre o general Decaen e o capitão Duperré.
Pelo meio dia, a fragata inglesa Syrius, que tinha passado a sotavento da ilha e por conseguinte havia experimentado no caminho menos dificuldade que as outras duas fragatas, aparece à entrada da Barra, incorpora-se com o navio de três mastros amarrado perto do forte, e que se reconheceu ser a fragata Nereida, o capitão Villougby, e ambas, como se tivessem intento de atacar sós a divisão francesa, seguem avante. Porém passando mui perto do baixio, a fragata Syrius toca, e a sua tripulação gasta o dia a salvá-la do perigo.
Durante a noite, o reforço de marinheiros, enviado pelo capitão Hamelin, chega e é distribuído pelos quatro navios franceses, que deste modo contêm 4.400 homens, pouco mais o menos e 142 bocas de fogo. Porém como logo depois da distribuição, o capitão Duperré mandou encalhar a divisão, e cada navio só apresenta um lado, metade das peças somente tomará parte na sanguinolenta festa, que se prepara.
As duas horas da tarde, as fragatas Magica e Iphigenia apareceram à entrada da barra, incorporaram-se com a Syrius e a Nereida, e todas quatro seguiram contra a divisão francesa.
Duas encalharam, e as outras duas lançaram âncoras, apresentando um total de 1.700 homens e 200 bocas de fogo.
Solene e terrível foi o momento em que os dez mil espectadores, que guarneciam as montanhas, viram as quatro fragatas inimigas adiantar-se, sem velas e só impelidas pelo vagoroso impulso do vento no seu maçame, e vir com a confiança, que a superioridade do número lhes inspirava, colocar-se a meio alcance de canhão da divisão francesa, apresentando também os costados, encalhando do mesmo modo que haviam encalhado os navios franceses, e renunciando a fuga, como estes haviam renunciado.
Era pois um combate de extermínio que se ia travar. Leões e Leopardos estavam à vista, e iam despedaçar-se com dentes de bronze e rugidos de fogo.
Os marinheiros franceses, menos pacientes do que as guardas francesas em Fontenoy, deram o sinal da matança.
Uma longa nuvem de fumo correu aos lados dos quatro navios, em que tremulava a bandeira tricolor. Depois ecoou o estampido de setenta bocas de fogo, e uma chuva de balas caiu sobre a armada inglesa.
Esta respondeu quase em continente, e então começou, sem outra manobra mais do que desempachar as cobertas dos pedaços de madeira e dos corpos moribundos, sem mais ciência do que a de apontar bem, sem mais intervalo do que o de mudar canhões, uma total destruição, como, depois d'Aboukir e Trafalgar, não haviam ainda referido os anais da marinha.
Pôde ao princípio acreditar-se que os inimigos levavam vantagem. Porque as primeiras descargas da artilharia inglesa causaram avarias na Minerva e no brigue Ceilão de modo que, por este acidente, foi retardado o fogo destes dois navios.
Porém, ao mando do seu capitão, a Bellona fez frente a tudo, respondendo ao mesmo tempo ao fogo dos quatro navios, tendo braços, pólvora e balas para todos, vomitando incessantemente fogo, como um vulcão, e isto por espaço de duas horas, tempo que o Ceilão, e a Minerva gastaram em reparar seus estragos, o que feito, como impacientes da sua inacção, estes navios prosseguiram na peleja, forçando o inimigo, que se havia afastado para destruir a Bellona, a voltar sobre eles, e restabelecendo a unidade de combate em toda a linha.
Então parecendo ao capitão Duperré que a Nereida, já danificada pelas três bandas de artilharia, que a divisão lhe havia disparado forçando a barra, afrouxava o seu fogo, ordenou em continente que a ela se dirigisse toda a artilharia sem interrupção.
Por espaço de uma hora, sobre ela choveram balas e metralha, esperando todos que a cada instante arriasse bandeira. Mas como a não arriava, a chuva de balas continuou, até que o seu último canhão se calou, semelhante a um derradeiro suspiro, e ela ficou arrasada como um pontão, na imobilidade e no silêncio da morte.
Neste momento, estando o capitão Duperré a dar uma ordem ao seu tenente Roussin, um pedaço de metralha bate-lhe na cabeça e o estende na bateria.
Entendendo que sua ferida é grave, talvez mortal, Duperré manda chamar o capitão Bouvet, entrega-lhe o comando da Bellona, ordena-lhe que, em vez de os tomar, faça ir pelos ares os quatro navios, e, terminada esta última recomendação, estende-lhe a mão e desmaia. Ninguém nota este acontecimento. Duperré não deixou a Bellona, visto que Bouvet o substitui.
Às dez horas, é tamanha a escuridão, que, não sendo já possível apontar, é forçoso atirar ao acaso. Pelas onze horas cessa o fogo. Porém como os espectadores entendem que não é isto mais do que uma trégua, permanecem em seus lugares.
Com efeito, a uma hora, a lua aparece, e, ao seu pálido clarão, o combate de novo começa.
Durante este tempo de interrupção, a Nereida recebe alguns reforços. Cinco ou seis de suas peças são outra vez metidas em bateria. A fragata, que se julgava fora de combate dá sinal de vida atacando de novo os navios franceses.
Então o capitão Bouvet manda passar o tenente Roussin para bordo da corveta Victor, cujo capitão está ferido. Roussin recebe ordem de desencalhar a corveta e de ir, a queima roupa, destruir a Nereida com toda a sua artilharia, devendo cessar o fogo só quando a fragata estivesse completamente arruinada.
Roussin executa pontualmente a ordem. A corveta Victor desfralda as gáveas, e vai, sem disparar um tiro de espingarda, ancorar a vinte passos da popa da Nereida. Deste lugar rompe o rogo, a que a fragata só pôde responder com as guarda-lemes, enviando-a de popa a proa a cada banda.
Ao amanhecer, a fragata de novo se cala. Desta vez, está completamente arruinada, e todavia a bandeira inglesa tremula no seu mastro.
Neste momento os gritos de: Viva o imperador! Ouvem-se a bordo na Nereida. Os dezassete prisioneiros franceses, que ela fizera na ilha da Barra que se achavam encurralados no porão, arrombam a porta da sua prisão, e sobem pelas escotilhas. O estandarte da Grã-Bretanha é arriado, e em seu lugar tremula a bandeira tricolor.
O tenente Roussin dá ordem de abalroar, porém ao tempo de lançar arpões, o inimigo dirige o seu fogo sobre a Nereida, que escapa.
Inútil é sustentar a luta. A Nereida não é mais que um pontão, que será apanhado logo que forem rendidos os outros navios.
A corveta Victor deixa flutuar a fragata como o cadáver de uma baleia morta. Recebe a bordo os dezassete prisioneiros, vai outra vez ocupar o seu lugar na linha de batalha, e anuncia aos ingleses, pelo fogo de toda a sua bateria, que acaba de chegar ao seu posto.
Todos os navios franceses tinham recebido ordem de dirigir o seu fogo à Magica. O capitão Bouvet queria destruir sucessivamente as fragatas inimigas.
Pelas três horas da tarde, a Magica tinha-se tornado o alvo de todos os tiros. Às cinco horas, esta fragata já não respondia ao fogo dos navios franceses. Às seis horas, vendo os da terra que a sua tripulação faz todos os preparativos para evacuá-la por gritos e sinais advertem a divisão francesa, que acelera o fogo. As outras duas fragatas inimigas enviam lanchas à Magica, que também lança ao mar seus escaleres em que entra a gente não ferida, ou ferida levemente. Porém no intervalo, que as lanchas têm de atravessar para chegar a Syrius, duas são metidas a pique, e o mar cobre-se de homens, que nadando alcançam as duas fragatas vizinhas.
Um instante depois, começa a sair fumo pelas portinholas da Magica, e de momento a momento este fumo torna-se mais denso. Então pelas escotilhas, sobem homens feridos, que se arrastam, erguem os braços mutilados e bradam por socorro, porque ao fumo sucede a chama, que por todas as aberturas do navio lança suas línguas ardentes. O fogo, pegando nos pavezes, chega aos mastros, envolve as vergas, e no meio do incêndio soam gritos de raiva e de agonia. »
Enfim o navio abre-se de repente, como a boca de um vulcão.
Uma espantosa detonação se faz ouvir, e a Magica voa em pedaços.
Seus destroços inflamados sobem aos ares, caem, e nas ondas se extinguem.
Desta linda fragata, que ainda na véspera se julgava a rainha do Oceano, nada resta. Destroços, feridos, mortos, tudo desapareceu. Só um grande intervalo, entre a Nereida e a Iphigenia, indica o lugar que a Magica ocupara.
Depois disto, como cançados de combate, como espavoridos do espectáculo, ingleses e franceses ficaram em silêncio, e o resto da noite foi destinado ao descanso.
Porém, ao amanhecer, o combate de novo começa, a fragata Syrius é a vítima que a divisão francesa escolheu: é a Syrius, que vai ser destruída pelo fogo da corveta Victor, da Minerva e da Bellona e do brigue Ceilão. Ao fim de duas horas, a fragata inglesa já não tem mastros! mete água por vinte rombos, e se não estivesse encalhada iria a pique. Então a sua marinha a abandona. E o capitão é o último que dela sai. Porém, como sucedeu na Magica, o fogo a bordo e chega em breve ao paiol da pólvora. Pelas onze horas da manhã, ouve-se uma espantosa detonação, e a fragata Syrius desaparece aniquilada!
Então a Iphigenia, que tinha combatido ancorada, entende que já não é possível pelejar; Vê-se só contra quatro navios, porque, como deixamos dito, a Nereida está inteiramente arruinada. E desfraldando velas, como havia escapado quase sã e salva de toda esta destruição, busca voltar a pôr-se debaixo da protecção do forte.
No continente o capitão Bouvet ordena que se reparem a Minerva e a Bellona, e manda que desemcalhem.
Duperré no ensanguentado leito em que jaz, é informado do que se sucede. Não quer ele que uma só fragata escape. Não quer que um só inglês vá a Inglaterra anunciar a sua derrota. Temos a vingar Trafalgar e Aboukir. Caça! Caça sobre a Iphigenia!
E duas fragatas desencalham e soltam velas, mandando a corveta Victor a tripular a Nereida. Pelo que toca ao brigue Ceilão, está tão danificado, que não pôde sair do seu lugar sem ser primeiro calafetado.
Então grandes gritos de triunfos soam em terra. Toda a povoação, que tinha guardado silêncio, levanta a voz para excitar a Minerva e a Bellona na sua perseguição. Porém a Iphigenia, menos avariada do que as duas inimigas, passa além da ilha das Garças, chega ao forte da Barra, e vai sair ao mar alto, onde será salva. Já as balas da Minerva e da Bellona a não alcançam, quando de súbito aparecem, à entrada da Barra, três navios, em que tremula a bandeira tricolor. É o capitão Hamelin, que chega de Porto Luís com o Empreendedor, a Mancha e zAstréa. A Iphigenia e o forte da Barra acham-se entre dois fogos, e hão-de render-se à discrição, sem que um só inglês escape.
Durante este tempo, a corveta Victor, pela segunda vez, se aproxima da Nereida. E, receando alguma surpresa, com precaução lhe lança arpões. Porém o silêncio, que na fragata inglesa reina, é semelhante ao da morte. A sua coberta está juncada de cadáveres, e o tenente, que nela primeiro entra, mete o pé em sangue até ao artelho.
Um ferido então se ergue, e refere que seis vezes se deu ordem de arriar bandeira, mas que seis vezes as descargas francesas lançaram por terra os homens incumbidos de executar este mandato. Então o capitão se recolheu ao seu camarote, e ninguém o tornou a ver.
O tenente Roussin vai ao camarote, encontra o capitão Villougby a uma mesa, sobre a qual estão ainda três copos e uma botija com aguardente e água. O capitão havia perdido um braço e uma perna. Diante dele estava o seu primeiro tenente, Thomson, morto por uma bala de espingarda, que lhe varou o peito. E a seus pés jazia Williams Murrey, seu sobrinho, ferido no lado por um pedaço de metralha.
Então o capitão Villougby, com a mão que lhe resta faz um movimento para entregar a espada, mas o tenente Roussin estende o braço, e saudando o inglês moribundo diz: «Capitão, quem se serve como vós de uma espada, só a Deus a deve entregar.»
Roussin manda sem demora dar ao capitão Villougby todos os socorros, mas estes foram baldados, porque o ilustre defensor da Nereida morreu no seguinte dia.
Pelo que respeita a Sir Williams Murrey, posto que a sua ferida fosse profunda e grave, não era contudo mortal. Por isso o veremos tornar a aparecer no decurso desta história.
TRÊS MENINOS
Os ingleses, por haverem perdido quatro navios, não renunciaram a seus projectos sobre a ilha de França. Pelo contrário, tentaram ao mesmo tempo fazer uma conquista nova e vingar uma derrota por isso, apenas três meses depois dos acontecimentos que deixamos referidos, segunda luta, não menos encarniçada que a primeira, mas cujos resultados deviam ser diferentes, teve lugar em Porto Luís, isto é, num sítio diametralmente oposto àquele em que sucedera a primeira.
Não eram desta vez quatro navios e mil e oitocentos homens. Doze fragatas, oito corvetas e cinquenta navios de transporte haviam deitado vinte ou vinte e cinco mil homens na costa, e o exército invasor marchava para o Porto Luís, que então se chamava o Porto Napoleão.
Por isso, o lugar principal da ilha, no momento de ser atacado por semelhantes forças, oferecia um espectáculo que não é fácil descrever. De todos os lados a multidão, que dos diferentes bairros da ilha acudia e se juntava nas ruas manifestava grande agitação. Como ninguém* conhecia o perigo verdadeiro, cada indivíduo pensava em algum risco imaginário. E as mais exageradas e inauditas narrações eram as que maior crédito mereciam. De tempos a tempos, algum ajudante de campo do general comandante aparecia de repente, trazendo uma ordem e lançando à turba uma proclamação, destinada a excitar o rancor que os nacionais tinham aos ingleses, e a exaltar o patriotismo do povo. A leitura da proclamação, os chapéus se elevam nas pontas das baionetas. Os gritos de Viva o imperador! retumbavam e repetiam-se juramentos de vencer ou morrer. Um tremor de entusiasmo corria por entre esta multidão que passava de um descanso ruidoso a um trabalho excessivo, e de todos os lados bradava, pedindo para marchar contra o inimigo.
Porém o verdadeiro lugar de ajuntamento era na praça d'Armas, isto é no centro da cidade. Ali chegava umas vezes um caixão, conduzido a galope por dois pequenos cavalos de Timor ou de Pegú, outras vezes um canhão puxado por artilheiros nacionais, mancebos de quinze a dezoito anos, em quem fazia as vezes de barba a pólvora que lhes denegria os rostos, ali se encaminhavam guardas cívicas em uniforme de combate. Voluntários, vestidos segundo a sua fantasia, que haviam adaptado baionetas às espingardas de caça. Negros trajando restos de uniformes e armados de carabinas, espadas e lanças. Toda esta multidão, revolvendo-se, encontrando-se e vozeando, causava um sussurro, que soava por cima da cidade, como o de um cortiço gigantesco.
Contudo, em chegando à praça d'Armas, estes homens, correndo, isolados ou aos bandos, tomavam um aspecto mais regular e um passo mais sossegado, porque na praça d'Armas, estava-se a aguardar a ordem de marchar contra o inimigo, metade da guarnição da ilha, composta de tropas de linha, formando um corpo de mil e quinhentos ou mil e oitocentos homens, cujo ar ao mesmo tempo arrogante e inerte, era uma repreensão tácita ao ruído de gente, que, menos familiarizada com cenas deste género, tinha todavia valor e boa vontade para nelas tomar parte. Por isso, enquanto os negros apertavam-se desordenadamente na extremidade da praça, um regimento de voluntários nacionais, disciplinando-se por si mesmo à vista da disciplina militar, parava em frente da tropa e formava como ela, procurando imitar, mas sem o poder conseguir, a regularidade de suas linhas.
O homem, que parecia chefe desta última tropa e esforçava-se por conseguir o resultado, que já indicámos, é um indivíduo de quarenta a quarenta e cinco anos, e trazia dragonas de chefe de batalhão. A natureza havia-lhe dado uma dessas fisionomias insignificantes a que nenhuma comoção pode dar o que, em termos de arte, se chama carácter. Este homem estava riçado e barbeado como para uma parada, e de tempos a tempos soltava um alamar da sua casaca, primeiro abotoada de cima até abaixo, e que, abrindo-se pouco a pouco, deixava ver um colete de acolchado, uma camisa de bofes, e uma gravata branca com as pontas bordadas. Junto dele, um lindo menino de doze anos, que um criado preto a pouca distância aguardava vestido com colete e calças de fustão, mostrava, com esse ar, que dá o hábito de andar bem ataviado, o seu grande colarinho recortado, a sua casaca de camelão verde com botões de prata, e o seu chapéu de castor pardo ornado de uma pluma. Pendia-lhe ao lado a bainha de uma pequena espada, que ele tinha na mão direita, procurando imitar, tanto quanto lhe era possível, o ar guerreiro do oficial, a que de tempo a tempo chamava em alta voz «Meu pai», título de que o chefe de batalhão não parecia menos lisongeado que do eminente posto a que a confiança de seus concidadãos o havia elevado na milícia nacional.
A pouca distância deste grupo, ufano de sua felicidade, outro se distinguia. Este era menos brilhante, mas sem dúvida mais notável. Constava de um homem de quarenta e cinco a quarenta e oito anos, e de dois meninos, um de quatorze, outro de doze anos.
Este homem era alto, magro, ossudo, um pouco curvado, não pela idade, visto ter quarenta e oito anos ao mais, mas pela humildade de uma posição secundária. Com efeito, pela sua cor morena e cabelo um tanto crespo, ao primeiro golpe de vista se podia reconhecer um desses mulatos, a que, nas colónias, não faz perdoar a cor, a fortuna, às vezes considerável, que por sua indústria alcançam. Estava este homem vestido com uma rica simplicidade, tinha na mão uma clavina tauxiada de ouro, com sua baioneta longa e aguda, e pendente ao lado uma espada de couraceiro, a qual, por causa da sua estatura, ficava suspensa. Além disto, afora os que tinha na patrona, suas algibeiras estavam cheias de cartuchos.
O primogénito dos dois meninos, que acompanhavam este homem, era, como havemos dito, um rapaz de quatorze anos, a quem o hábito da caça, ainda mais que a sua origem africana, havia ofuscado a cor do rosto. Pela vida activa, a que estava afeito, era robusto como um mancebo de dezoito anos. Pelo que tinha obtido de seu pai participar da acção, que ia ter lugar. Este rapaz estava armado de uma espingarda de dois canos, a mesma de que fazia uso em suas excursões pela ilha, e com a qual, jovem como era, havia granjeado já uma reputação de destreza, que os mais afanados caçadores invejavam. Porém a sua verdadeira idade prevalecia sobre a que representava. Ele tinha posto no chão a sua espingarda e divertia-se com um grande cão, que parecia ter ido ali para no caso que os ingleses consigo tivessem alguns de seus cães de fila.
O irmão do jovem caçador, segundo filho do homem de alta estatura e ar humilde, e que, enfim, completava o grupo que havemos descrito, era um rapaz de doze anos pouco mais ou menos, mas cuja natureza, débil e apoucada nada tinha da alta estatura de seu pai, nem da robusta organização de seu irmão, que parecia haver absorvido ele só o vigor destinado a ambos.
Por isso, ao contrário de Tiago, assim se chamava o primogénito, Jorge parecia ter dois anos menos do que na verdade tinha. Porque, como deixamos dito, a sua pequena estatura, seu rosto pálido, magro e melancólico, que longos cabelos pretos sombreavam, não mostrava essa força física, tão trivial nas colónias. Porém no seu olhar inquieto e penetrante lia-se uma inteligência tão significativa, e no antecipado franzir das sobrancelhas, que lhe era já habitual, se reconhecia uma reflexão tão varonil, e uma vontade tenaz, que todos se admiravam de encontrar ao mesmo tempo e no mesmo indivíduo tão débil aparência e tão significativa força de vontade.
Não tendo armas, estava junto de seu pai, é com toda a força da sua pequena mão apertava o cano da linda clavina tauxiada, dirigindo alternativamente seus olhos vivos e investigadores do pai para o chefe de batalhão, e interiormente a si mesmo perguntava, por que razão seu pai, que era muito mais rico, valente, forte e mais hábil que este homem, não tinha também, como ele, algum sinal honorífico, alguma distinção particular.
Um preto, vestido com um colete e umas ceroulas de ganga azul, esperava que chegasse o momento de marcharem os homens. Porque então o menino, enquanto seu pai e irmão iam pelejar, devia ficar com ele.
Desde a manhã, soava o estampido do canhão, porque desde então, o general Vander-maesen, com a outra metade da guarnição, havia marchado ao encontro do inimigo para estorvar-lhe o passo nos desfiladeiros da montanha longa, e na passagem do rio da Ponte Vermelha e do rio das Palmeiras. Com efeito, desde a manhã, ele tinha resistido com esforço. Não querendo porém expor numa só ocasião todas as suas forças, e receando além disto que o ataque a que resistia fosse um ataque simulado, durante o qual os ingleses, por outro caminho, se adiantassem sobre Porto Luís, o general Vandermaesen só havia levado consigo oitocentos homens deixando, como fica dito para defender a cidade, o resto da guarnição e os voluntários nacionais. Depois de prodígios de valor à sua tropa, que pelejava com um corpo de seis mil ingleses teve de retroceder sucessivamente de posição em posição, fazendo alto a cada incidente do terreno que lhe dava por um instante vantagem. Mas forçada a prosseguir na retirada já da praça d'Armas, onde as reservas se achavam, era possível, posto que não se avistassem os combatentes, calcular os progressos dos ingleses, pelo estrondo crescente da artilharia, que a cada minuto se aproximava. Não tardou que também se ouvisse, entre o ribombo ] dos canhões, o ruído da espingardaria. Porém, importa dizê-lo, este barulho em vez de intimidar os defensores de Porto Luís, que condenados à inacção por ordem do general permaneciam na praça d'Armas, só estimulava o seu valor. De modo que, enquanto os soldados de linha, escravos da disciplina, se contentavam com morder os lábios e praguejar, os volun-tários nacionais brandiam as armas, dizendo em altas vozes que se a ordem de partir se demorasse, romperiam as fileiras e iriam combater em atiradores.
Neste momento ouve-se tocar a general. Ao mesmo tempo aparece um ajudante de campo a cavalo e correndo a todo o galope, e sem entrar na praça, levantando o chapéu para fazer um sinal de chamada, do alto da rua brada: «Aos entrincheiramentos, é chegado o inimigo!», e dizendo isto desaparece com a mesma rapidez com que viera.
Então os tambores da tropa da linha tocam, e os soldados, formando-se com a agilidade e exactidão do costume, partem a passo de carga.
Sem embargo da emolação entre os voluntários e a tropa de linha, os primeiros não puderam partir com um ímpeto tão rápido. Gastaram alguns instantes a formar-se, e logo que se puseram em ordem começaram a marchar uns com o pé direito, outros com o pé esquerdo, o que ocasionou um momento de confusão, de modo que foi indispensável fazer alto.
Durante este tempo, vendo um lugar vazio no meio da terceira fileira dos voluntários, o homem de alta estatura e da clavina tauxiada, abraçou o mais moço de seus filhos, e entregando-o nos braços do preto do colete azul, correu com seu filho mais velho a ocupar o lugar, que deixara vago a manobra executada pelos voluntários.
Porém ao aproximarem-se, os seus vizinhos da esquerda e da direita afastaram-se, imprimindo o mesmo movimento aos que estavam perto deles, de modo que o pai e o filho se encontraram no centro de círculos, que se iam separando deles, como se apartam do sítio em que uma pedra cai os círculos da água em que a lançam.
O homem que tinha as dragonas do chefe de batalhão, acabava com muito custo de restabelecer a regularidade da sua primeira fileira, e vendo então a desordem, que reinava na terceira, levantou-se na ponta dos pés e falando com os que executavam a singular manobra que acabamos de descrever, bradou:
— Enfileirai-vos, senhores! Enfileirai-vos.
Porém a esta reiterada recomendação, feita com um tom que não admitia réplica, um só grito respondeu:
— Não queremos mulatos connosco! Nada de mulatos!
Brado unânime, universal, estrondoso, que todo o batalhão repetiu com um eco.
O oficial compreendeu então a causa da desordem, e viu, no meio de um amplo círculo, o mulato, o que tinha firme, enquanto seu filho primogénito vermelho de cólera, havia já dado dois passos atrás para separar-se dos que o repeliam.
A esta vista, o chefe do batalhão passou através das duas primeiras fileiras, que ante ele se abriram, e foi direito ao insolente, que tivera a confiança, sendo homem de cor, de se misturar com brancos.
Chegado que foi adiante dele, examinou-o da cabeça até aos pés com um olhar chamejante de indignação, e como o mulato permanecia imóvel como um poste:
— Senhor Pedro Munier — disse-lhe. — Não ouvistes? Será preciso repetir-vos segunda vez que este não é o vosso lugar, e que não vos querem aqui?
Se abaixasse a forte e robusta mão sobre o homem que assim falava, Pedro Munier o teria magoado com a pancada, mas, em vez de fazer isto, não respondeu coisa alguma, ergueu a cabeça com ar de espanto, e, encontrando o olhar do seu interlocutor, olhou para outra parte, o que exacerbou a cólera do chefe do batalhão, aumentando a sua altivez.
— Então que fazeis aí? — diz este empurrando Munier com a palma da mão.
— Senhor de Malmedie — respondeu Pedro Munier —, eu esperava que num dia como este, se esquecesse a diferença das cores à vista do perigo geral.
— Vós esperáveis — diz o chefe do batalhão alçando os ombros e sorrindo —, e que motivo vos fez conceber essa esperança?
— O desejo de perecer se for preciso, para salvar a nossa ilha.
— A nossa ilha! — repetiu o chefe de batalhão. — A nossa ilha! Porque esta gente possui plantações como nós, imagina que a ilha é sua.
— A ilha não é mais nossa que vossa, senhores brancos, eu bem o sei — respondeu Munier com voz tímida —, mas se nos demoramos com semelhantes coisas no momento de combater em breve ela não será vossa, nem nossa.
— Basta — diz o chefe do batalhão, batendo com o pé para impor silêncio a Munier com o gesto e com a voz ao mesmo tempo. — Basta, o vosso nome está nos registos da guarda nacional?
— Não senhor. Bem o sabeis — respondeu Munier. — Visto que quando me apresentei fui por vós rejeitado.
— Pois bem! Então que quereis?
— Seguir-vos como voluntário.
— Não é possível — diz o chefe de batalhão.
— E porquê? Se vós o quisésseis consentir, senhor de Malmedie.
— É impossível — repetiu o chefe de batalhão endireitando-se. — Estes senhores, que estão debaixo das minhas ordens, não querem mulatos consigo.
— Não, não queremos mulatos! Não queremos mulatos! — exclamaram a uma voz os guardas nacionais.
— Então eu não poderei combater, senhor? — diz Pedro Munier deixando cair os braços com desalento e retendo apenas as lágrimas, que já lhe rebentavam pelos olhos.
— Organizai um corpo de gente da vossa cor e ponde-vos à sua frente, ou encorporai-vos a esse destacamento de pretos, que vai seguir-nos.
— Porém!... — resmungou Pedro Munier.
— Ordeno-vos que vos ausenteis do batalhão. Eu vo-lo ordeno — repetiu impertigando-se o senhor de Malmedie.
— Vinde, meu pai. Vinde, apartai-vos dessa gente, que vos insulta — disse uma voz fraca e trémula de cólera.
E Pedro Munier sentiu-se puxar para trás com tanta força que recuou um passo.
— Sim, Tiago, sim, eu te sigo — diz ele.
— Não é Tiago, meu pai, sou eu, é Jorge.
Munier voltou-se admirado. Era com efeito o menino, que estava nos braços do preto, que tinha vindo dar a seu pai esta lição.
Pedro Munier inclinou a cabeça sobre o peito, e exalou um profundo suspiro.
Durante este tempo, restabeleceu-se a ordem nas fileiras da guarda nacional, o senhor de Malmedie passou a ocupar o seu lugar em frente da primeira fileira, e a legião partiu a passo acelerado.
Pedro Munier ficou só no meio de seus dois filhos, um dos quais estava vermelho como fogo, e o outro pálido como a morte. Lançou um golpe de vista sobre o rubor de Tiago, e sobre a palidez de Jorge. E como se o rubor de um e a palidez do outro fossem para ele uma duplicada repreensão:
— Que quereis — diz ele —, meus filhos. Assim é.
Tiago era desleixado e filósofo. O primeiro movimento tinha-lhe por certo sido penoso. Mas a reflexão veio logo em seu socorro e o consolou.
— Essa é boa! — respondeu ele a seu pai fazendo estalar os dedos. — Que importa que esse homem nos insulte? Não somos nós mais ricos do que ele? Não o excedeis vós em fortaleza, meu pai? Pelo que me diz respeito — acrescentou ele olhando para o menino do colarinho recortado —, se encontrar o garoto do sr. Henrique a jeito, hei-de dar-lhe uma tareia de que se lembrará.
— Meu bom Tiago! — diz Pedro Munier agradecendo a seu filho primogénito ter vindo de algum modo aliviar a sua ignomínia. Depois voltou-se para o seu segundo filho, com o fim de ver se este tomava a coisa tão filosoficamente como seu irmão.
Porém Jorge permaneceu impassível. Tudo o que seu pai pôde observar na sua fisionomia foi um imperceptível sorriso, que lhe contraiu os lábios. Todavia este sorriso, imperceptível como foi, tinha tal ar de desdém e compaixão, que, assim como às vezes se responde a palavras, que não se proferiram. Pedro Munier respondeu a este sorriso.
— Mas que quererias tu que eu fizesse? Meu Deus!
E ficou esperando resposta do filho, atormentado por essa inquietação vaga, que o homem não explica a si próprio, e que, ainda assim, o agita quando aguarda de um inferior, que a seu pesar receia, a estimação de um feito rematado.
Jorge não respondeu coisa alguma. Porém voltando a cabeça para o fundo da praça:
— Meu pai — diz ele —, acolá estão os mulatos, que esperam um chefe.
— Tens razão, Jorge — exclamou Tiago com alegria, consolado já da sua humilhação pela consciência da sua força, e fazendo sem o pressentir o mesmo raciocínio que César: mais vale comandar estes que obedecer àqueles.
E Pedro Munier, cedendo ao conselho do seu filho mais moço e ao impulso dado pelo outro, caminhou para os mulatos, os quais estavam discutindo à cerca do chefe, que haviam de eleger. Mal avistaram aquele, que todo o homem de cor respeitava na ilha como pai, em torno dele se juntaram como em torno do seu chefe natural, pedindo lhe que os guiasse ao combate.
Então uma singular mudança se efectuou neste homem. O sentimento da sua inferioridade, que ele não podia vencer à vista dos brancos, desapareceu, cedendo o lugar à estima do seu próprio mérito. O seu corpo curvado se endireitou. Seus olhos, que ele conservara humildemente baixos ou errantes diante do senhor de Malmedie, lançaram chamas.
A sua voz trémula, um momento antes, tomou um acento terrível, e com um gesto cheio de energia, pondo a sua clavina em bandoleira, puxou pela espada, e, estendendo para o inimigo o seu braço nervoso, bradou: «Avante!»
Lançando depois um derradeiro golpe de vista sobre seu filho mais novo, já entregue ao preto do colete azul, e que com orgulhosa alegria, batia com as mãos, desapareceu com a sua negra escolta no ângulo da mesma rua por onde acabava de marchar a tropa de linha e a guarda nacional, gritando pela última vez ao preto de colete azul: «Telémaco, vela pelo meu filho.»
A linha de defesa dividia-se em três partes. A esquerda era o baluarte Fanfarrão, junto ao mar, armado de dezoito canhões. No centro o entrincheiramento propriamente dito, guarnecido por vinte e quatro peças de artilharia. E à direita a bateria Dumas, protegida só por seis bocas de fogo.
O inimigo vencedor, havendo primeiro marchando em três colunas sobre os três diferentes pontos, abandonou os dois primeiros, cuja força logo reconheceu, para acometer o terceiro, que, como dissemos, não só era o mais fraco, mas além disto a sua defesa, estava atribuída aos artilheiros nacionais. Ainda assim, contra toda a espectativa, à vista do corpo compacto que marchara com a regularidade da disciplina inglesa, esta belicosa mocidade, em vez de se intimidar, acudiu ao seu posto, e, manobrando com a presteza e habilidade de soldados veteranos, fez um fogo tão bem dirigido, que o inimigo entendeu que se tinha enganado sobre a força da bateria e acerca da gente que a servia. Contudo investia sempre, porque quanto mais mortífero era o fogo da dita bateria, tanto mais urgente se tornava reduzi-la ao silêncio.
Porém a referida bateria amiudou então as descargas de bala rasa e metralha com tal rapidez, que a desordem começou a manifestar-se nas fileiras inimigas.
Ao mesmo tempo, como os ingleses haviam chegado ao alcance de espingarda, a infantaria rompeu o fogo. E de modo que vendo as fileiras desbastadas, o inimigo, espantado de uma resistência tão enérgica como inopinada, recuou um pouco.
Por ordem do capitão general, a tropa de linha e o batalhão nacional, que tinha marchado para o lugar ameaçado, saiu então, e com baioneta calada acometeu os flancos do inimigo, enquanto a formidável bateria o continuava a varejar de frente. A tropa executava a sua manobra com a exactidão, que lhe era habitual. Avançou sobre os ingleses, rompeu as fileiras e aumentou a desordem. Porém, ou fosse transportado pelo valor, ou porque executasse mal o movimento ordenado, o batalhão nacional do comando de Malmedie, em vez de acometer o flanco esquerdo e praticar um ataque paralelo ao que a tropa de linha executava, caiu de frente sobre os ingleses. Forçoso foi então que a bateria calasse o fogo. E como era este fogo que mais intimidava o inimigo, este, vendo ante si um número de homens inferior ao de seus soldados, animou-se, e voltou sobre os nacionais, que, cumpre dizê-lo para glória sua, sustentaram o choque sem recuar um passo. Contudo esta resistência não podia durar. Colocados os nacionais entre um inimigo mais bem disciplinado que eles e muito superior em número, e a bateria, que obrigavam a calar-se para não os destruir, perdiam a cada instante muitos homens e começavam também a perder terreno. Em breve, por uma hábil manobra, a esquerda dos ingleses, flanqueou a direita do batalhão dos nacionais. Que, faltos de experiência para opor o quadrado ao número, desde então se reputaram perdidos. Com efeito, os ingleses continuavam o seu movimento progressivo, e semelhantes à maré enchente, iam cercar com suas ondas esta ilha de homens, quando de repente os gritos de: França! França!, retumbaram pela retaguarda do inimigo. Uma espantosa descarga sucedeu aos gritos, depois reinou um silêncio mais taciturno e terrível que nenhum ruído.
Uma extraordinária ondulação notou-se nas últimas linhas do inimigo e chegou até as primeiras fileiras. As fardas encarnadas curvavam-se ao peso de uma vigorosa carga de baioneta como espigas maduras sob a foice do segador. Era chegada a sua vez de serem envolvidos, e careciam de resistir ao mesmo tempo para a direita, esquerda e frente. Porém o reforço que acabava de chegar, não lhes dava descanso, avançava sempre, de modo que passados dez minutos havia aberto caminho até ao infeliz batalhão, que conseguiu libertar. Então, vendo logrado o fim a que se tinham proposto, os recém-chegados retrocederam sobre si mesmos, voltaram à esquerda, descrevendo um círculo, e caíram a passo de carga sobre o flanco do inimigo. O senhor de Malmedie, imitando esta manobra, deu um impulso semelhante ao seu batalhão, de modo que a bateria, vendo-se desmascarada, não perdeu tempo, e continuou com o fogo, ajudou os esforços deste tríplice ataque vomitando sobre o inimigo ondas de metralha. Desde este momento, a vitória declarou-se a favor dos franceses.
Então Malmedie, vendo-se fora de perigo, lançou um golpe de vista sobre seus libertadores, para os quais já tinha olhado hesitando em os reconhecer, tão custoso lhe era dever a salvação a tais homens.
Estes libertadores eram, com efeito, esse corpo de pretos, por ele tão desprezado, que o havia seguido na sua marcha e encorporou-se-lhe tanto a tempo no combate. À frente do referido corpo encontrava-se Pedro Munier, o qual vendo que os ingleses lhe apresentavam as costas envolvendo Malmedie, com os seus trezentos homens pela rectaguarda os acometeu e desbaratou. Pedro Munier havendo combinado esta manobra com o génio de um general, com o valor de um soldado a executou, pelejando na frente de todos, com os olhos inflamados, as ventas abertas, a cabeça descoberta, os cabelos ao vento, entusiasta, temerário, sublime! Pedro Munier, enfim, cuja voz se ouvia de tempo a tempo no meio da batalha bradando: «Avante!» Como efectivamente os que o seguiam avançavam sempre, como a desordem manifestava-se cada vez mais nas fileiras inglesas, ele gritou: «A bandeira! A bandeira, camaradas!» E arremeçou-se ao meio de um grupo de ingleses, caiu, levantou-se, meteu-se pelas fileiras, e, um momento depois, tornou a aparecer, com os vestidos rasgados, a cabeça ensanguentada, mas com a bandeira na mão.
Neste momento o general, temendo que os vencedores, fossem em perseguição dos ingleses, caíssem em alguma cilada, mandou retirar. Foi a tropa de linha a primeira a obedecer, levando consigo os seus mortos, finalmente os pretos voluntários, rodeando a sua bandeira.
Os habitantes de Porto Luís, em multidão correram a ver os vencedores, porque, na sua ignorância, julgavam que se tinha lutado com todo o exército inimigo, e esperavam que os ingleses tão vigorosamente rechaçados, não tornassem a atacar. Por isso retumbava o ar com vivas quando passava algum corpo; Todos se davam por felizes, todos eram vencedores. Quando os habitantes, que confiavam na resistência mas não no êxito, viram a vitória declarada tão completamente, homens, mulheres, velhos, crianças, juraram a uma voz trabalhar nos entrincheiramentos e morrer, sendo preciso, em sua defesa. Excelentes promessas certamente, e que todos faziam com tenção de as observar, mas que não valiam a chegada de outro regimento, se outro regimento pudesse chegar.
Porém, no meio deste triunfo geral, nenhum objecto atraía tanta atenção como a bandeira inglesa e quem a havia tomado. Soavam em torno de Pedro Munier e do seu troféu exclamações sem fim, a que os pretos respondiam com bravatas, enquanto o seu chefe, tornando a mostrar-se o mulato humilde, que já conhecemos, satisfazia com uma urbanidade tímida, às perguntas, que lhe faziam. Não longe do vencedor, encostado à sua espingarda de dois canos, que não tinha ficado muda na acção, e cuja baioneta se via tinta de sangue, Tiago endireitava com orgulho e desafogo a cabeça, enquanto Jorge, que havia escapado das mãos de Telémaco e tinha ido ter com seu pai, apertava convulsivamente a sua forte mão, e debalde buscava conter as lágrimas de júbilo, que a seu pesar derramava.
A pouca distância de Pedro Munier estava Malmedie, já não riçado e composto como no ensejo da partida, mas com a gravata rota, e os bofes da camisa lacerados e cobertos de suor e poeira. Também ele se via rodeado pela sua família, que o felicitava. Mas as congratulações, que recebia, eram as que se dirigem ao homem, que acaba de escapar de um perigo, e não esses louvores, que se prodigalizam a um vencedor. Pelo que, no meio deste concerto de maviosas inquietações, ele se mostrava assaz embaraçado, e para ostentar firmeza, perguntava em voz alta por seu filho Henrique e pelo seu preto Biju, quando ambos apareceram por entre a multidão Henrique para se lançar nos braços de seu pai, e Biju para felicitar o seu senhor.
Neste momento disseram a Pedro Munier que um preto, que lutando debaixo de suas ordens fora ferido mortalmente, tendo sido levado a uma casa do porto, e sentindo-se a ponto de expirar, pedia para vê-lo. Pedro Munier olhou em torno de si, procurando Tiago para lhe confiar a sua bandeira. Mas Tiago havia encontrado o seu cão, e, tendo posto no chão a sua espingarda, com ele se divertia a cinquenta passos de distância. Jorge viu então a perturbação de seu pai, e estendendo a mão:
— Dai-me a bandeira — diz ele —, eu a guardarei.
Pedro Munier sorriu-se, e como julgava que ninguém ousaria tocar no glorioso troféu sobre o qual só ele tinha direitos, beijou Jorge na testa, entregou-lhe a bandeira, que este mal podia suster vertical, e correu para a casa em que requeria a sua presença a agonia de um de seus destemidos voluntários.
Jorge ficou só, mas entendia que nem por isso estava desamparado. A glória paterna velava sobre ele, que com os olhos radiantes de orgulho contemplava a multidão, que o rodeava. Jorge viu então o menino do colarinho bordado, e tornou-se desdenhoso. Este menino examinava com inveja Jorge, e sem dúvida a si mesmo perguntava por que razão o seu pai não tinha também tomado uma bandeira. Esta interrogação o levou naturalmente a pensar que, não tendo uma bandeira própria, convinha alcançar a de outrem, porquanto encaminhando-se para Jorge, o qual, posto que conhecesse a sua intenção hostil, não recuou um passo:
— Dá-me essa bandeira — disse-lhe ele.
— Que é isso? — perguntou Jorge.
— Essa bandeira — replicou Henrique.
— Esta bandeira não te pertence. É do meu pai.
— Que me importa? Quero que ma entregues!
— Não ta entregarei.
O menino do colarinho bordado estendeu então a mão para agarrar a haste da bandeira. Demonstração a que Jorge só respondeu mordendo os beiços, tornando-se mais pálido que de costume, e dando um passo atrás. Este passo recuado animou Henrique, o qual como todas as crianças estragadas com mimos, acreditava que era bastante desejar para conseguir. Henrique deu dois passos para diante, e desta vez andou com tanto jeito, que agarrou a haste da bandeira, gritando colérico com toda a força da sua voz:
— Já te disse que me dês essa bandeira.
— E eu digo-te que não ta darei — repetiu Jorge empurrando-o com uma das mãos enquanto com a outra continuava a apertar contra o seu peito a bandeira conquistada.
— Vil mulato, atreves-te a tocar-me! — exclamou Henrique. — Espera.
E puxando pela sua espadinha, antes que Jorge tivesse tempo de se pôr em defesa, deu-lhe com toda a sua força um golpe na testa.
O sangue rebentou logo da ferida e correu ao longo do rosto de Jorge.
— Cobarde! — disse este com indiferença.
Exasperado por este insulto, Henrique ia repetir os golpes, quando Tiago, de um salto, chegando-se junto de seu irmão, com um vigoroso murro no meio do rosto atirou com o agressor à distância de dez passos. E apanhando a espada que este deixara cair, quebrou-a em três ou quatro pedaços, cuspiu em cima deles e arremeçou-lhos
Chegou também ao menino do colarinho bordado a vez de sentir o sangue banhar-lhe o rosto, mas este sangue procedia de um murro e não de uma cutilada.
Toda esta cena sucedeu com tanta rapidez, que nem Malmedie, que estava a vinte passos de distância recebendo as felicitações da sua família, nem Pedro Munier, que saía da casa em que o preto acabava de morrer, tiveram tempo de a prevenir. Eles só assistiram à catástrofe, e ambos acudiram ao mesmo tempo, Pedro Munier esbaforido, vexado e trémulo, Malmedie inflamado de cólera e sufocado de orgulho.
— Vedes — exclamou Malmedie com voz irada. — Vedes o que acaba de suceder?
— Sim, senhor, vejo! — respondeu Pedro Munier. — Mas acreditai que se eu estivesse presente teria atalhado este acontecimento.
— Entretanto — exclamou o senhor de Malmedie —, vosso filho levantou a mão contra o meu. O filho de um mulato teve o arrojo de pôr as mãos no filho de um branco.
— Sinto sobremaneira o que acaba de suceder, senhor de Malmedie — balbuciou o aflito pai —, e humildemente vos peço desculpa.
— Desculpa, desculpa — replicou o orgulhoso colono endireitando-se à proporção que o seu interlocutor se humilhava. — E entendeis que isso baste?
— Que mais posso eu fazer, senhor?
— O que podeis fazer, o que podeis — repetiu Malmedie embaraçado em decidir que satisfação desejava obter. — Podeis mandar fustigar o miserável, que bateu no meu Henrique.
— Mandar-me fustigar! — disse Tiago lançando mão da sua espingarda de dois canos. — Pois bem, vinde vós mesmo açoutar-me!
— Cala-te Tiago. Cala-te, meu filho — exclamou Pedro Munier.
— Perdoai-me, meu pai — disse Tiago —, mas eu tenho razão, e não posso calar-me. Henrique deu uma cutilada em meu irmão, que lhe não fazia mal. E eu dei um murro em Henrique. É pois Henrique quem fez mal e eu tenho razão.
— Uma cutilada em meu filho! No meu Jorge! Jorge, meu querido filho! — exclamou Pedro Munier correndo para ele. — É verdade que estás ferido?
— Isto é bagatela, meu pai — respondeu Jorge.
— Bagatela! — disse Pedro Munier. — Mas tu tens a cabeça aberta. Senhor — prosseguiu Munier voltando-se para o senhor de Malmedie —, Tiago dizia a verdade. Vosso filho por pouco não matou o meu.
Malmedie voltou-se para Henrique, e como não havia modo de resistir à evidência:
— Henrique — diz o chefe do batalhão —, conta-me como isto sucedeu.
— Paizinho — disse Henrique —, eu não tenho culpa, quis ficar com a bandeira para lha levar, e este indigno não ma quis dar.
— E porque motivo recusaste dar essa bandeira a meu filho, insolente — perguntou o senhor de Malmedie.
— Porque esta bandeira não é de vosso filho nem vossa, nem de pessoa alguma. Porque esta bandeira é de meu pai.
— Prossegue — disse Malmedie falando com seu filho.
— Vendo que não ma queria dar, tentei tirar-lha. Foi então que chegou o selvagem, que me deu um murro na cara.
— Mente — disse Tiago —, eu só lhe dei o murro quando vi o sangue de meu irmão. Senão visse isto não lho daria.
— Silêncio, bigorrilha! — exclamou o senhor de Malmedie. Depois, chegando-se a Jorge: — Dá-me essa bandeira — disse-lhe.
Porém Jorge, em vez de obedecer a esta ordem, deu de novo um passo atrás, apertando com toda a sua força a bandeira contra o peito.
— Dá-me essa bandeira — repetiu o senhor de Malmedie com um tom de ameaça, que se não fosse obedecido chegaria às últimas extremidades.
— Mas, senhor — disse Pedro Munier —, fui eu que tomei a bandeira aos ingleses.
— Bem o sei. Mas não se dirá que um mulato resistiu impunemente a um homem como eu. Dai-me a bandeira.
— Todavia, senhor...
— Assim o quero. Obedecei ao vosso oficial.
Pedro Munier teve a ideia de responder: «Vós não sois meu oficial, senhor, porque não me aceitastes por soldado», mas as palavras expiraram-lhe nos lábios — a sua humildade habitual superou o seu denodo. Munier suspirou. E, posto que muito lhe custasse obedecer a tão injusta ordem, tirou a bandeira das mãos de Jorge, que então cessou de resistir, e entregou-a ao chefe de batalhão, que se ausentou levando o troféu roubado.
Singular coisa era ver um homem tão rico, tão vigoroso e caracterizado, sem resistência ceder a outro homem tão vulgar e mesquinho. Porém o mais extraordinário é que ninguém disto se admirou, porque em circunstâncias, não semelhantes mas equivalentes, todos os dias sucedia o mesmo nas colónias por isso, afecto desde a infância a respeitar os brancos como homens de uma raça superior, Pedro Munier havia-se toda a sua vida humilhado a esta aristocracia de cor a que ainda agora acabava de ceder sem resistência. Encontram-se heróis que arrostam com a metralha, e curvam o joelho ante uma preocupação. O leão acomete o homem, imagem de Deus na terra, e foge espavorido, segundo dizem, quando ouve cantar o galo.
Pelo que diz respeito a Jorge, que vendo correr seu sangue não derramara uma só lágrima, começou a soluçar logo que se achou com as mãos vazias defronte de seu pai, que para ele olhava tristemente sem tratar de o consolar. Pelo que toca a Tiago, mordia os punhos de cólera, e jurava que um dia se havia de vingar de Henrique, do senhor de Malmedie e de todos os brancos.
Apenas dez minutos depois da cena que acabámos de referir, apareceu um mensageiro coberto de pó anunciando que os ingleses desciam pelas planícies de Williams e pela pequena ribeira em número de dez mil. Quase ao mesmo tempo, a atalaia situada no monte do Descobrimento deu sinal da chegada de uma nova esquadra inglesa, que ancorando na baía do grande rio, havia lançado cinco mil homens na costa. Finalmente constou que o corpo de exército rechaçado pela manhã, tendo-se reunido nas margens do rio das Palmeiras estava prestes a marchar de novo sobre Porto Luís, combinando seus movimentos com outros dois corpos de invasão, que se iam adiantando. Já não havia meio de resistir a semelhantes forças.
Pelo que, sem embargo dos que recordando o juramento feito pela manhã de vencer ou morrer, pediam combater, o general licenciou a guarda nacional e os voluntários, declarando que, encarregado de plenos poderes por Sua Majestade o imperador Napoleão, ia tratar com os ingleses da entrega da cidade.
Só insensatos se poderiam opor a semelhante resolução. Vinte e cinco mil homens radiavam apenas quatro mil. O que fez com que, obedecendo à ordem do capitão general, todos se retirassem para suas casas, de modo que a cidade ficou ocupada só pela tropa regular.
A capitulação foi assinada pela cinco horas da manhã, de 3 de Dezembro, aprovada e trocada. No mesmo dia o inimigo ocupou as linhas e no seguinte tomou posse da cidade.
Passados oito dias, a esquadra francesa prisioneira saiu do porto, levando toda a guarnição, semelhante de uma infeliz família expulsa da habitação paterna. Por isso, em quanto se pôde enxergar a ondulação da última bandeira, a multidão permaneceu no cais. Porém, logo que a última fragata desapareceu, todos se ausentaram tristes e silenciosos. Só dois homens ficaram quietos, eram estes o mulato Pedro Munier e o preto Telémaco.
— Sr. Munier — diz o preto —, subamos à montanha. De lá poderemos ver os meninos
Tiago e Jorge.
— Sim, tens razão meu Telémaco — respondeu Pedro Munier. — E se os não pudermos ver, ao menos veremos o navio, que os leva.
E Pedro Munier, andando com a rapidez de um mancebo, subiu num momento o morro do Descobrimento, de cujo cimo pôde ao menos até à noite, seguir com os olhos, não seus filhos, porque a distância, como ele tinha previsto, era muito grande para que os pudesse distinguir, mas a fragata Bellona em que eles iam.
Com efeito, Pedro Munier, ainda que a custo, tinha-se resolvido a separar-se de seus filhos e a enviá-los a França, sob a protecção do general Decaen. Tiago e Jorge iam pois a Paris, recomendados a dois ou três dos mais ricos negociantes da capital, com os quais Pedro Munier conservava desde largo tempo relações comerciais. O pretexto da partida de Tiago e de seu irmão era a sua educação. Porém a verdadeira causa da sua ausência era o ódio que o senhor de Malmedie lhes tinha votado, depois da cena da bandeira. Ódio de que Munier receava que seus filhos, mormente com o bem conhecido carácter destes, viessem algum dia a ser vítimas.
Pelo que respeita a Henrique, muito o amava a sua mãe para dele se apartar. Além disto, que necessidade tinha ele de saber, a não ser que todo o homem de cor havia nascido para o respeitar e obedecer-lhe?
Como temos dito, isto já Henrique sabia.
QUATORZE ANOS DEPOIS
O dia em que se dá sinal de se avistar navio europeu em demanda do porto, é na ilha de França dia festivo, porque muitos dos habitantes da colónia, privados desde largo tempo da presença materna, impacientes aguardam alguma nova dos povos, das famílias, ou dos homens de além-mar. Todos esperam alguma coisa e conservam desde que o avistam os olhos fitos no mensageiro marítimo, portador da carta de um amigo, do retrato de uma dama ou enfim desta dama em pessoa ou do próprio amigo.
Porque este navio, objecto de tantos desejos e origem de tantas esperanças, é a cadeia efémera, que une a Europa à África, a ponte volante, lançada de um mundo ao outro. Pelo que nenhuma nova se divulga com tanta rapidez por toda a ilha como esta, que parte do pico do Descobrimento:
— Avista-se um navio.
Dizemos do pico do Descobrimento, porque quase sempre o navio forçado a buscar o vento passa adiante do Grande Porto, costeia a terra em distância de duas ou três léguas, dobra a ponta dos Quatro Cocos, mete-se entre a ilha Chata e o ponto de mira, e, algumas horas depois de ter saído deste lugar, surge à entrada do Porto Luís, cujos habitantes, desde a véspera prevenidos pelos sinais da sua aproximação aguardam no cais o navio em multidão.
Pelo que deixamos dito do fervor com que todos na ilha de França esperam novas da Europa, ninguém por certo se há-de admirar da concorrência que, numa bela manhã do fim do mês de Fevereiro de 1824, se observava em todos os lugares de onde se podia ver entrar na enseada de Porto Luís, a Leycester, linda fragata de 36 canhões, de que se havia dado sinal na véspera às duas horas da tarde.
Ao leitor pedimos a faculdade de lhe fazer travar, ou antes renovar conhecimento com duas das personagens, que se achavam a bordo da dita fragata.
Era uma destas personagens um homem de cabelos louros, cor alva, olhos azuis, feições regulares, rosto plácido, e estatura pouco mais de mediana, o qual não representava mais de trinta e dois anos, posto que já passasse dos quarentas.
A primeira vista, não se notava nele coisa alguma transcendente, mas forçoso era confessar que tudo era conveniente.
Se havia, depois do primeiro golpe de vista, um motivo qualquer de prosseguir no exame da sua pessoa, via-se que ele tinha as mãos e os pés pequenos e muito bem feitos, o que, em todos os países, mas particularmente entre os ingleses, é sinal de casta.
Este homem tinha a voz clara e aguda, mas sem entoação, e por assim dizer sem música.
Seus olhos azuis a que, nas circunstâncias habituais da sua vida, se podia atribuir alguma falta de expressão, deixavam errar um golpe de vista, que em nada se fitava e parecia não examinar coisa alguma.
De tempos a tempos, piscava os olhos como um homem cansado do sol, acompanhando este movimento com uma pequena separação dos lábios, que deixavam então ver uns dentes pequenos, direitos, e brancos como pérolas.
Este costume parecia tirar então ao seu olhar a pouca expressão que ele tinha. Mas quem examinasse com cuidado este homem, descobria pelo contrário que era neste momento que a sua vista ia procurar o pensamento de seu interlocutor ao interior de sua alma.
As pessoas que pela primeira vez o viam, quase nunca deixavam de o reputar como um espírito estéril. Ele não ignorava que esta era, em geral, a opinião em que o tinham os homens superficiais e quase sempre, por cálculo ou indiferença, os deixava persistir nesta opinião, bem certo de os desenganar em momento oportuno. Porque debaixo de uma aparência enganosa ocultava um espírito sobremaneira profundo, do mesmo modo que muitas vezes duas polegadas de neve escondem um precipício de mil pés, por isso, consciente da sua superioridade quase universal, esperava ele com paciência que lhe oferecessem ocasião de triunfar.
Então, e logo que encontrava num pensamento oposto ao seu, e na pessoa, que o enunciava, uma controvérsia digna de si, entregava-se à conversação, que até ali deixara errar. Animava-se pouco a pouco, falava com calor, porque a sua voz estridente, seus olhos inflamados, perfeitamente ajudavam suas expressões enérgicas, insinuantes, ao mesmo tempo sedutoras e graves, deslumbrantes e positivas. Se esta ocasião não chegava, ele continuava a ser reputado pelos que o rodeavam como um homem trivial. Não porque lhe faltasse amor próprio, pelo contrário, ele levara o orgulho de certas coisas até ao excesso. Isto era porém um sistema de procedimento que este homem havia adoptado e de que nunca se afastava.
Todas as vezes que ouvia uma proposição errónea, um pensamento falso, uma vaidade mal sustentada, a extrema subtileza do seu espírito logo lhe fazia vir à boca um sarcasmo agudo, ou aos lábios um sorriso de zombaria. Porém ele no mesmo instante abafava esta espécie de ironia exterior, e quando não podia inteiramente conter esta irrupção de desdém, disfarçava com o piscar de olhos, que lhe era habitual, o movimento de mofa, que a seu pesar lhe escapava, bem persuadido de que o meio de ver, ouvir e penetrar tudo, era parecer cego e surdo.
Talvez quisesse, como Sexto Quinto, parecer também paralítico. Mas a isto renunciou, porque o levaria a uma longa e penosa dissimulação.
A outra personagem, que intentamos dar a conhecer ao leitor, era um mancebo trigueiro, de cor pálida e longos cabelos pretos. Seus olhos, que eram grandes, admiravelmente rasgados, e do mais lindo aveludado, tinham através da aparente bondade, que só deviam à eterna preocupação do seu pensamento, um carácter de firmeza, que à primeira vista admirava.
Se este mancebo se irava, o que era raro, porque a sua organização parecia obedecer não a instintos físicos, mas a uma potência moral, então seus olhos se inflamavam de uma chama interna e lançavam raios, cujo foco parecia estar no fundo de sua alma.
Posto que as feições do seu rosto fossem puras, careciam até certo ponto de regularidade. A sua testa era sulcada por uma cicatriz quase imperceptível, no seu habitual estado de sossego, mas que se manifestava por uma linha branca, quando o rubor lhe subia ao rosto.
Um bigode preto como os seus cabelos, regular como as suas sobrancelhas, fazia sombra, disfarçando-lhe a grandeza, a uma boca com grossos lábios e guarnecida de muito bons dentes.
O aspecto geral da fisionomia deste mancebo era grave. Pelas rugas da sua fronte, pelo franzir quase perpétuo de seus sobrolhos, pela severa aparência de todas as suas feições, fácil era reconhecer uma reflexão profunda, uma resolução imudável.
Por isso, ao contrário do seu companheiro, que tendo quarenta anos mostrava apenas trinta e dois este mancebo, que só contava vinte e cinco representava quase trinta.
Pelo que toca ao resto da sua pessoa, era ele de mediana estatura, mas bem feito. Todos os seus membros eram talvez um pouco fracos, mas conhecia-se que excitados por qualquer abalo, uma violenta tensão nervosa devia neles substituir a força, compreendia-se que a natureza lhe havia dado em agilidade e destreza muito mais do que lhe tinha negado de grosseiro vigor.
Consistia o seu vestuário em calças, colete e numa sobrecasaca, cujo feitio indicava que era obra de um dos mais hábeis alfaiates de Paris. E na casa desta sobrecasa trazia ele, atadas com uma elegante negligência, as fitas da Legião de Honra e de Carlos III.
Estes dois homens tinham-se encontrado a bordo da fragata Leycester, que havia recebido um em Portsmouth e o outro em Cadix.
Ao primeiro golpe de vista eles se reconheceram como tendo-se já encontrado nesses salões de Londres e de Paris onde se vê toda a gente. Saudaram-se pois como antigos conhecidos, mas sem se falarem, porque não havendo jamais sido apresentados um ao outro ambos foram retidos por essa reserva aristocrática das pessoas de bem, que hesitam, mesmo nas circunstâncias particulares da vida, em sair das regras impostas pelas conveniências gerais.
Contudo, a solidão do navio, a pequinês do sítio em que todos os dias se encontravam, a inclinação que dois homens afeitos à sociedade naturalmente experimentam um pelo outro, em breve os fez vir à fala. Trocaram primeiro algumas palavras insignificantes, depois as conversações tomaram mais alguma consistência. No fim de poucos dias, cada um destes dois homens reconheceu no seu companheiro um génio superior, e se felicitou de semelhante encontro numa viagem de mais de três meses. Enfim, travaram essa amizade de circunstância, que, sem raízes no passado, se torna uma distracção no presente, sem ser uma obrigação no porvir. Então, durante os largos serões do equador, durante essas lindas noites dos trópicos, eles tiveram tempo de se estudar mutuamente, e ambos vieram no conhecimento de que em arte, em ciência, em política, haviam, por teoria ou prática, por investigação ou experiência, aprendido tudo o que é dado ao homem de saber. Ambos tinham pois estado constantemente em presença um do outro, como dois atletas da mesma força. E, nesta longa viagem, o primeiro destes dois homens obteve uma única vantagem sobre o segundo. Numa borrasca, que sobreveio depois que a fragata Leycester dobrou o cabo de Boa Esperança, e na qual o capitão da dita fragata, ferido pela queda de um mastaréo, foi levado desfalecido ao seu camarote, o passageiro dos cabelos louros lançou mão da buzina, e subindo ao castelo de popa, na ausência do segundo comandante, no mesmo instante ordenou, com a resolução de um homem habituado a mandar e com a ciência de um marinheiro consumado, uma série de manobras, mediante as quais a fragata resistiu ao ímpeto do furacão. Passada que foi a borrasca, o seu rosto, um momento resplandecente desse orgulho sublime, que assalta toda a criatura humana lutando com o seu Criador, recuperou a sua expressão ordinária. A sua voz, cujo som se fizera ouvir por cima do ribombo do trovão, e do sibilar da tempestade, voltou ao seu tom trivial. Enfim, com um gesto tão simples quanto haviam sido exaltados e poéticos seus acenos precedentes, ele entregou ao segundo comandante a buzina, este ceptro do capitão de navio, que é nas mãos de quem o empunha sinal do absoluto mando.
Durante todo este tempo, o seu companheiro, em cujo rosto plácido teria sido impossível descobrir o menor sinal de agitação, contemplou-o com essa expressão invejosa do homem obrigado a reconhecer-se inferior àquele de que se reputava igual. Passado que foi o perigo, este homem contentou-se com perguntar ao passageiro dos cabelos louros:
— Já foi capitão de navio, milord?
— Sim — respondeu com singeleza o que recebia este título honorífico. — Tenho a graduação de commodoro, mas há seis anos que me entreguei à diplomacia. Contudo no momento de perigo lembrei-me da minha antiga profissão.
Depois disto, os dois homens não falaram mais nesta circunstância. Todavia era visível que o mais moço estava interiormente humilhado da superioridade que seu companheiro tinha, de modo tão impensado, adquirido sobre ele. Superioridade que ele teria certamente ignorado sem o acontecimento que a fez de algum modo patentear.
A pergunta que havemos referido, e a resposta que ela excitou, indicam que estes dois homens, nos três meses que acabavam de passar juntos, não se haviam interrogado acerca da sua respectiva posição social. Tinham-se reconhecido como iguais na inteligência isto lhes bastou. Sabiam que o termo da sua viagem era a Ilha de França, e nada mais exigiam.
Ambos estes homens mostravam a mesma impaciência de chegar, porque ambos haviam recomendado que os avisassem logo que se descobrisse terra. Esta recomendação foi baldada para um deles, porque o mancebo dos cabelos pretos estava na coberta, encostado à popa, quando o marinheiro de vigia fez ouvir o grito, que arrebata os próprios marítimos:
— Terra à vista!
A este grito, o seu companheiro apareceu no fim da escada, e encaminhando-se para o mancebo, com um passo, a seu pesar mais rápido que o usual, foi encostar-se junto dele.
— Ora pois, milord — disse o último —, somos chegados, ao menos pelo que afirmam. Por quanto eu confesso, para minha vergonha, que por mais que olhe para o horizonte só descubro uma espécie de vapor, que tanto pode ser um nevoeiro flutuando junto ao mar, como uma ilha com suas raízes no fundo do Oceano.
— Sim, acredito nisso — respondeu o mais velho dos dois homens —, porque só a vista de um marítimo pode distinguir com certeza, mormente a semelhante distância, a água do céu, e a terra das nuvens. Porém eu — acrescentou ele piscando os olhos —, filho do mar, descubro a ilha com todos os seus contornos, e poderia quase dizer com todas as suas particularidades.
— É uma nova superioridade, milord — disse o mancebo —, que lhe reconheço sobre mim. Porém confesso que é preciso que seja milord quem me afirme semelhante coisa, para que eu a não repute como uma impossibilidade.
— Tome este óculo — disse o marítimo —, enquanto eu, à simples vista, vou descrever-lhe a costa. Acreditar-me-á depois?
— Milord — respondeu o incrédulo —, eu reputo-o em tudo homem tão superior aos outros, que creio no que me diz, sem que haja precisão de juntar prova alguma às suas palavras. Se aceito o óculo, que me oferece, é mais para satisfazer uma necessidade do coração do que um desejo de curiosidade.
— Vamos, vamos — disse o homem dos cabelos louros. — Vejo que o ar da terra produz o seu efeito. Começa a ser lisonjeiro.
— Eu, lisonjeiro, milord — disse o mancebo sacudindo a cabeça. — Oh! Vossa Graça engana-se. Juro que a fragata Leycester faria mais de uma viagem de um pólo ao outro, e mais de uma vez executaria o périplo do mundo antes que em mim sucedesse tal mudança. Não, eu não lisonjeio, só lhe agradeço as atenções, que me dispensou durante esta viagem, e ousarei quase dizer a amizade que Vossa Graça tem manifestado a um pobre desconhecido como eu.
— Meu caro companheiro — respondeu o inglês estendendo a mão ao mancebo —, creio que para si assim como para mim não há desconhecidos neste mundo senão os entes vulgares, os tolos e os velhacos, e também acredito que para ambos nós todo o homem superior é um parente, que reconhecemos como pertencente à nossa família em toda a parte onde o encontramos. Isto posto, basta de cumprimentos, meu joven amigo, tome este óculo e olhe, porque nos adiantamos com tanta rapidez que em breve não haverá merecimento algum em efectuar a demonstração geográfica de que me incumbi.
O mancebo pegou no óculo e assestou-o.
— Vê? — perguntou o inglês.
— Muito bem — respondeu o mancebo.
— Vê à nossa extrema direita a ilha Redonda, semelhante a um cone e isolada no meio do mar?
— Optimamente.
— Vê a ilha Chata, junto da qual neste momento passa um brigue, que me parece, pela sua feição, ser de guerra? Esta tarde passaremos por onde ele passa.
O mancebo abaixou o óculo e quis ver se podia sem ele descobrir os objectos, que o seu companheiro com tanta facilidade distinguia, e que ele apenas via com auxílio do tubo que tinha na mão. Depois com um sorriso de admiração:
— É coisa prodigiosa! — disse, e tornou a empunhar o óculo.
— Vê a Cunha de Mira — prosseguiu o seu companheiro —, que quase se confunde daqui com o cabo Infeliz, de tão triste e poética memória? Vê o pico do Bambu, por detrás do qual se eleva a montanha da Louça? Vê o monte do Grande Porto? E descobre a sua esquerda o morro dos Crioulos?
— Sim, sim, tudo isso vejo e reconheço, porque todos aqueles picos, todos aqueles montes são sócios da minha infância, e eu os tenho sempre conservado na lembrança. Porém vós, prosseguiu o mancebo, metendo uns nos outros os três canudos do óculo, não é a primeira vez que vedes esta praia, e há mais memória que aspecto real na descrição, que acabais de me fazer.
— É verdade — disse o inglês sorrindo. — Vejo que não há modo de usar de charlatanismo convosco. Já vi esta praia, de que falo um tanto de memória, ainda que as lembranças que ela me deixou sejam provavelmente menos agradáveis do que as que em vós desperta. Sim, vim a estas paragens numa época em que, segundo toda a probabilidade, éramos inimigos, meu caro companheiro, porque há quatorze anos que aqui estive.
— É exactamente a época em que me ausentei da ilha de França — respondeu o mancebo dos cabelos pretos.
— Estava ainda na ilha na ocasião da batalha naval que se deu no Grande Porto, e de que não deveria falar por orgulho nacional, visto que nela fomos derrotados?
— Fale, milord, fale — interrompeu o mancebo. — Tantas vezes se têm os senhores Ingleses despicado, que é quase orgulho em vos confessar uma derrota.
— Pois bem! Vim aqui nessa época, porque então servia na marinha.
— Como aspirante?
— Era capitão-tenente, senhor.
— Mas nesse tempo, milord, éreis uma criança.
— Quantos anos presume que tenho?
— Creio que somos com pouca diferença da mesma idade. Tem apenas trinta anos.
— Conto quase quarenta — respondeu o inglês sorrindo. — Bem lhe disse há pouco que me parecia lisongeiro.
O mancebo, admirado, olhou para o seu companheiro, com mais atenção do que antes, e reconheceu, pelas pequenas rugas nos cantos dos olhos e da boca, que ele podia efectivamente ter a idade que dizia e que tão longe estava de representar. Desistindo então do seu exame para responder à pergunta que o seu companheiro lhe havia feito:
— Sim, sim, milord — disse ele. — Lembro-me dessa batalha, e também me recordo de outra, que se deu na extremidade oposta da ilha. Tem conhecimento do Porto Luís, milord?
— Não, senhor, só conheço esta parte da praia. Fui gravemente ferido no combate do Grande Porto, e levado prisioneiro à Europa. Depois deste tempo não tornei a ver os mares da índia, onde provavelmente vou fazer uma longa residência.
Como se as últimas palavras, que estes dois homens trocaram neles despertasse íntimas lembranças, separaram-se maquinalmente e foram meditar em silêncio, um à proa outro ao leme.
No dia imediato a esta conversação, depois de dobrar a ilha d'Âmbar e de passar à hora predita junto da ilha Chata, a fragata Leycester deu, como no começo deste capítulo indicamos, a sua entrada na enseada de Porto Luís, no meio da anuência, que sempre assistia à chegada de cada navio europeu.
Porém, desta vez a concorrência era maior que do costume, porque as autoridades da colónia aguardavam o futuro governador da ilha, o qual, no momento em que a fragata passou a ilha dos Tanoeiros, apareceu na coberta com uniforme de oficial general. O mancebo dos cabelos pretos só então conheceu o cargo político do seu companheiro de viagem, de que tinha sabido somente o título aristocrático.
Com efeito, o inglês dos cabelos louros era Lord Williams Murrey, membro da câmara alta que, havendo alternativamente sido marítimo e embaixador, acabava de receber de Sua Majestade Britânica a nomeação de governador da ilha de França.
Em Williams Murrey reconhecerá o leitor o jovem oficial que viu a bordo da Nereida, deitado aos pés de seu tio o capitão Willoughy, ferido no lado por um pedaço de metralha, e de que havemos anunciado não só a cura, mas também o próximo aparecimento como uma das principais personagens da nossa história.
No momento em que ia separar-se do seu companheiro, Lord Murrey voltou-se para ele
e disse:
— Daqui a três dias, senhor, dou um banquete às autoridades da ilha. Espero que me há-de fazer a honra de ser um de meus convidados.
— Com o maior prazer, milord — respondeu o mancebo. — Porém antes de aceitar,
convém que eu diga a Vossa Graça que sou...
— Há de anunciar-se ao entrar em minha casa, respondeu Lord Murrey, e então saberei quem é. Entretanto, conheço o seu mérito, e isto é quanto me basta.
Saudando de'pois o seu companheiro de viagem com a mão e com um sorriso, o novo governador desceu para o escaler com o capitão, e afastando-se da fragata pelo rápido impulso de dez vigorosos remadores, chegou em breve a terra junto à fonte do Cão-de-Chumbo.
Neste momento, a tropa formada em batalha, apresentou as armas, os tambores tocaram a marcha, a artilharia dos fortes e a fragata salvou ao mesmo tempo, e semelhante a um eco, a dos outros navios lhe respondeu. Aclamações universais de: Viva Lord Murrey! Alegremente acolheram o novo governador, que saudando com afabilidade quem lhe fazia tão honrosa recepção, se encaminhou, rodeado das principais autoridades da ilha, ao palácio.
E contudo estes homens, que festejavam a chegada do representante de Sua Majestade Britânica, eram os mesmos que outrora haviam lamentado a partida dos Franceses. Mas quatorze anos eram passados desde esta época. A geração antiga havia em parte desaparecido, e a nova só conservava lembrança das coisas passadas por ostentação, e do mesmo modo que se conservam antigos títulos de família. Quatorze anos haviam decorrido, dissemos nós e este tempo é mais do que o preciso para esquecer à morte do melhor amigo, para violar o juramento augusto, enfim, para matar, enterrar e mudar o nome a um grande homem ou a uma grande nação.
O FILHO PRÓDIGO
Todos com os olhos seguiram Lord Murrey, até ao palácio do governador, mas logo que a porta deste palácio se fechou, todos voltaram a vista para o navio.
Neste momento saiu dele o mancebo dos cabelos pretos, e a curiosidade, que acabava de abandonar o governador, recaiu sobre ele. Com efeito, todos tinham visto Lord Murrey falar-lhe com afabilidade e apertar-lhe com afecto a mão. De modo que a multidão congregada decidia, com a sua habitual sagacidade, que o estrangeiro era algum jovem fidalgo, da alta aristocracia de França ou de Inglaterra. Esta probabilidade mudou-se em certeza à vista das fitas, que trazia atadas na casa da sobrecasaca, uma das quais, importa confessá-lo, estava naquele tempo menos vulgarizada do que hoje.
Os habitantes de Porto Luís pareciam examinar o recém-chegado. Este, depois de olhar em torno de si como se esperasse encontrar algum amigo ou parente em cima do molhe, parou à beira-mar, aguardando que desembarcassem os cavalos do governador. Terminada que foi esta operação, um servo amulatado, vestido segundo o uso dos mouros d'África, com o qual o estrangeiro trocou algumas palavras num idioma desconhecido, aparelhou dois cavalos ao modo árabe, e segurando-os pelas rédeas, porque ainda tinham as pernas entorpecidas, seguiu o seu senhor, que já se havia encaminhado a pé para a calçada, olhando sempre em torno de si, como se esperasse ver de repente aparecer, no meio da multidão, algum amigo.
Entre os grupos, que aguardavam os estrangeiros, havia um em cujo centro estava um homem gordo, de cinquenta e quatro a cinquenta e nove anos, com os cabelos grisalhos, as feições vulgares, a voz estrepitosa, as barbas cortadas em ponta junto aos cantos da boca, e de um mancebo de vinte cinco a vinte e seis anos. O homem gordo estava vestido com uma sobrecasaca de merino cor de castanho, calças de ganga e colete de acolchoado branco tinha uma gravata com as pontas bordadas, e na camisa longos boles guarnecidos de renda. O mancebo era tão parecido com o seu vizinho, que se tornava evidente que estes dois indivíduos eram unidos pelos mais próximos vínculos de parentesco. Tinha na cabeça um chapéu pardo, e no pescoço um lenço de seda atado com negligência. Trazia vestido um colete branco e calças da mesma cor.
— Ali vai, na verdade, um gentil rapaz — disse o homem gordo olhando para o estrangeiro que passava a pouca distância dele. — E eu aconselharia, se este moço tem de residir na nossa ilha, às mães e aos maridos, que velassem por suas mulheres e por suas filhas.
— Ali vai um lindo cavalo — disse o mancebo, pondo com afectação, a luneta. — É árabe, se não me engano.
— Conheces aquele senhor, Henrique? — perguntou o homem gordo.
— Não, meu pai, mas se quisesse vender o seu cavalo, bem sei eu quem por ele lhe daria mil patacas.
— Seria Henrique de Malmedie, não é assim meu filho? — disse o homem gordo. — Bem farias tu, se o cavalo te agrada, em lhas oferecer. Podes fazê-lo, és rico.
Sem dúvida o estrangeiro ouviu o oferecimento de Henrique e a aprovação de seu pai, porque lançou alternativamente ao pai e ao filho um olhar arrogante, e que não era isento de ameaça. Depois, mais instruído a respeito do pai e do filho do que estes a seu respeito, continuou o seu caminho murmurando:
— São eles! Sempre eles!
— Que nos quer este peralta? — perguntou Malmedie às pessoas que o cercavam.
— Não sei, meu pai — respondeu Henrique. — Mas a primeira vez que o encontrarmos, se para nós olhar do mesmo modo, prometo que lho hei-de perguntar.
— Para quê? — disse Malmedie, com ar de comiseração pela ignorância do estrangeiro. — O pobre rapaz ignora quem somos.
— Pois eu lho ensinarei — tornou Henrique.
Durante este tempo, o estrangeiro cujo olhar desdenhoso suscitara este ameaçador colóquio, havia continuado o seu caminho, sem fazer caso da impressão causada pela sua passagem, e sem se dignar olhar para dela ver o efeito.
Chegado que foi quase ao terço do jardim da companhia, atraiu a sua atenção um grupo que se tinha juntado em cima de uma pequena ponte que comunicava do jardim com o pátio de uma casa de bonita aparência, cujo centro ocupava uma gentil menina de quinze ou dezasseis anos.
O estrangeiro, apreciador de toda a beleza, parou para a ver mais a vontade. Posto que fora da porta de sua casa, esta menina, que sem dúvida pertencia a uma das famílias mais abastadas da ilha, tinha junto a si uma aia europeia, a qual, por seus longos cabelos louros e pela cor da sua pele, mostrava ser inglesa. Enquanto um preto velho, encanecido, vestido com um colete e umas calças de fustão branco, estava prestes, com os olhos fitos nela e, por assim dizer, com o pé levantado, a executar as suas ordens.
Como todas as coisas se engrandecem pelo contraste, talvez esta formosura, que havemos mencionado como extraordinária, aumentasse com a fealdade do indivíduo que ante ela estava em pé, mudo e quedo, e com o qual ela buscava fazer negócio sobre uma dessas ventarolas de marfim transparentes e frágeis como uma renda.
Com efeito, o homem que com ela conversava era um indivíduo de corpo ossudo, cor amarela, e com os cantos dos olhos levantados. Tinha na cabeça um grande chapéu de palha, do qual pendia uma esteira que lhe caía até o meio das costas. Estava vestido com umas calças de algodão azul, que só lhe chegavam a meia perna, e com uma camisola da mesma fazenda e da mesma cor, que lhe descia até o meio das coxas. Tinha a seus pés um bambu, do comprimento de uma toeza, sustendo em cada uma de suas extremidades um cesto, cujo peso o fazia arquear quando estava posto pelo meio no ombro do mercador. Estes cestos estavam cheios de mil ninharias, que nas colónias, assim como em França, na loja ambulante do comerciante dos trópicos, assim como nos elegantes armazéns de Afonso Giroux e de Susse, fazem perder o juízo às raparigas e às vezes também a suas mães.
Ora, como havemos dito, a bela crioula, no meio de todas estas maravilhas espalhadas sobre uma esteira estendida a seus pés, olhava atenta para uma ventarola que representava casas, pagodes e palácios impossíveis, cães, leões, e aves fantásticas. Finalmente, mil retratos de homens, edifícios e animais, que nunca tiveram existência senão na imaginação dos habitantes de Cantão e de Pequim.
A gentil menina perguntava pura e simplesmente o preço dessa ventarola.
Porém o chinês, que havia desembarcado poucos dias antes, não sabia uma só palavra de francês, inglês ou italiano, ignorância que claramente patenteava o seu silêncio à pergunta que sucessivamente lhe tinha sido feita nestes três idiomas. Esta ignorância era já tão notória na colónia, que o habitante das margens do rio Amarelo só era designado em Porto Luís pelo nome de Miko-Miko, as duas únicas palavras que o chinês pronunciava, discorrendo pelas ruas da cidade, levando o seu longo bambu com os cestos, umas vezes no ombro direito, outras no esquerdo, e que provalvelmente queriam dizer: Quem compra, quem compra.
As relações que até então se haviam estabelecido entre Miko-Miko e seus fregueses eram, pois, pura e simplesmente relações de gestos e sinais.
Ora, como a bela menina nunca tivera ocasião de fazer um profundo estudo da língua do abade de l'Epée, via-se numa completa impossibilidade de compreender Miko-Miko e de se fazer por ele entender.
Foi este o momento em que o estrangeiro se chegou a ela.
— Perdão, senhora — disse ele —, mas vendo o embaraço em que se acha atrevo-me a oferecer-lhe os meus serviços. Posso em alguma coisa ser-lhe útil, e levará a bem aceitar-me por intérprete?
— Oh, senhor! — respondeu a aia, enquanto às faces da menina subia o mais engraçado rubor. — Mil vezes agradeço o seu oferecimento. A sr.a Sara e eu, há dez minutos que esgotamos toda a nossa ciência filológica sem conseguir fazer-nos entender por este homem. Falámos-lhe francês, inglês e italiano, mas a nenhuma destas línguas respondeu.
— Este senhor sabe talvez algum outro idioma que este homem fale, minha Henriqueta — respondeu a menina. — E tanto desejo possuir a ventarola, que o senhor muito me obsequiaria se conseguisse fazer-me dizer o preço dela.
— Mas bem vê que isso não é possível — replicou Henriqueta. — Este homem não fala língua alguma.
— Ao menos fala a do país em que nasceu — disse o estrangeiro.
— É verdade, mas ele nasceu na China. E quem é que fala o chinês?
O desconhecido sorriu e voltando-se para o mercador, disse-lhe algumas palavras numa língua estrangeira.
Debalde tentaríamos descrever a admiração do pobre Miko-Miko, quando ouviu soar aos seus ouvidos os acentos da língua materna. Deixou cair a ventarola que mostrava, e com a boca aberta e os olhos fitos no que acabava de lhe falar, chegou-se a ele e pegou-lhe na mão, que beijou muitas vezes. Mas como o estrangeiro repetisse a pergunta, o chinês decidiu-se enfim a responder, o que fez com uma expressão na vista e um acento de voz, que formava um singular contraste, porque, com o ar mais enternecido e sentimental, acabava de dizer o preço da ventarola.
— Pede vinte libras esterlinas — disse o estrangeiro, olhando para a menina. — Pouco mais ou menos, noventa patacas.
— Mil vezes obrigada, senhor — respondeu Sara, corando de novo. E voltando-se para a sua aia:
— É, na verdade, muito singular, minha Henriqueta — disse-lhe ela em inglês. — Falar este senhor o idioma deste homem.
— Certamente, respondeu Henriqueta.
— Todavia é coisa simples, senhoras, respondeu o estrangeiro no mesmo idioma. Minha mãe faleceu quando eu tinha três meses, e deram-me por ama uma pobre mulher da ilha Formosa, que servia em nossa casa. Foi, pois, a sua língua a primeira que balbuciei, e posto que não tenha encontrado ocasião de a falar muitas vezes, recordo-me, como acabam de ver, de algumas palavras, pelo que toda a minha vida hei-de felicitar-me, visto que pude, graças a estas poucas palavras, prestar-lhes um pequeno serviço.
Metendo então na mão do chinês um dobrão espanhol e fazendo sinal ao servo que o seguisse, o mancebo partiu a galope, saudando com galhardia Sara e Henriqueta.
O estrangeiro seguiu a rua de Moka, mas apenas andou uma milha no caminho que conduz às Palhas e chegou junto da Montanha do Descobrimento, parou de repente e fitou a vista num banco, no qual estava assentado um ancião, em completa imobilidade, com as mãos postas sobre os joelhos e os olhos fitos no mar. O estrangeiro contemplou um momento este homem com ar de dúvida. Depois, como esta dúvida se dissipasse ante uma inteira convicção.
— É ele — disse o estrangeiro. — Meu Deus, como está mudado! Então, olhando ainda um instante para o velho com ar de maior benevolência, o mancebo seguiu um caminho por onde podia chegar, sem ser visto, perto do ancião, o que executou com facilidade, detendo-se duas ou três vezes no caminho e pondo a mão no peito, como para dar a uma comoção muito violenta tempo de serenar.
Enquanto ao velho, ficou quieto ao chegar o estrangeiro, de modo que parecia não ter mesmo ouvido o ruído dos seus passos. Mas apenas o mancebo se assentou no mesmo banco em que ele estava, voltou a cabeça, e saudando-o com timidez, levantou-se e deu alguns passos para se ausentar.
— Por minha causa não se incomode, senhor — disse o mancebo.
O ancião tornou a assentar-se, não já no meio, mas na extremidade do banco. Houve então um momento de silêncio entre o velho, que continuou a olhar para o mar, e o estrangeiro, que contemplava o velho.
Enfim, depois de um instante de muda e profunda contemplação, o estrangeiro quebrou o silêncio:
— Senhor — disse ele ao vizinho —, certamente não estava aqui, quando, há hora e meia, a fragata Leycester deu fundo no porto.
— Engana-se, senhor, achava-me neste mesmo lugar, respondeu o ancião com um acento em que se confundia a humildade e a admiração.
— Então, replicou o mancebo não o move a chegada deste navio da Europa?
— Porque acredita isso? — perguntou o velho, cada vez mais admirado.
— Porque neste caso, em vez de permanecer aqui, teria, como toda a gente, descido ao porto.
— Está enganado, senhor, está enganado — respondeu com voz melancólica o ancião, sacudindo a cabeça encanecida. — Pelo contrário, a ninguém este espectáculo causa tanto alvoroço como a mim. Todas as vezes que chega navio, pouco importa de que país, venho, há quatorze anos, ver se me traz cartas de meus filhos ou meus filhos em pessoa. E, como me cansaria muito estar de pé, venho pela manhã sentar-me aqui no mesmo lugar de onde os vi partir, e por este sítio me demoro até que, vendo ausentar-se toda a gente, perco enfim a esperança.
— Mas porque não desce até ao porto? — perguntou o mancebo.
— Fiz isso nos primeiros anos — respondeu o velho. — Mas então eu sabia muito depressa o resultado, e como cada novo engano se tornava mais amargo, resolvi-me a ficar aqui e a mandar em meu lugar o meu preto Telémaco. Deste modo a esperança dura mais tempo. Se o Telémaco volta logo, creio que vem anunciar-me a chegada de meus filhos, se tarda, entendo que espera por uma carta. Enfim, ele volta as mais das vezes com as mãos vazias. Então levanto-me e ausento-me, só como vim. Entro na minha casa, que ora está deserta, passo a noite derramando lágrimas e dizendo a mim mesmo: Será para a próxima vez!
— Desconsolado pai! — disse o mancebo.
— Lastima-me? — perguntou o ancião admirado.
— Certamente, compadeço-me de si — respondeu o mancebo.
— Não sabe quem sou?
— É homem, e sofre.
— Porém, sou mulato — respondeu o velho com voz baixa e sobremaneira humilhado. Um vivo rubor subiu então às faces do mancebo.
— E eu também, senhor, também eu sou mulato — disse ele.
— O senhor! — exclamou o velho.
— Sim, eu — respondeu o estrangeiro.
— É mulato?
E o ancião olhava admirado para as fitas encarnadas e azuis colocadas na casa da subrecasaca do estrangeiro. — É mulato! Já não me admira a sua comiseração. Quando o vi chegar, por branco o tomei. Mas sabendo agora que é, como eu, homem de cor, é outra causa. É um amigo, um irmão.
— Sim, um amigo, um irmão — disse o mancebo estendendo ao velho as duas mãos. Depois pronunciou algumas palavras em voz baixa, olhando para ele com uma inexplicável expressão de ternura.
— Então posso dizer-lhe tudo — prosseguiu o velho. — Ah! Sei que me alivia falar da minha mágoa. Imagine, senhor, que eu tenho, ou antes, tinha, porque só Deus sabe se ainda vivem, imagine que tinha dois filhos, que eu amava como pai, um principalmente.
O mancebo estremeceu e aproximou-se mais do velho.
— Admira-se, continuou o ancião, que eu faça diferença entre meus filhos, preferindo um ao outro? Bem sei que isto não deve ser, confesso que é injusto, mas era o mais novo, era o mais débil, eis a minha desculpa.
O mancebo pôs a mão na testa, e aproveitando um momento em que o velho, envergonhado da confissão que acabava de fazer, voltava a cabeça, enxugou uma lágrima.
— Se os conhecesse, prosseguiu o velho, compreenderia a razão da preferência. Não é porque Jorge, era este o seu nome, não é porque Jorge fosse o mais bonito, pelo contrário, seu irmão Tiago era mais gentil do que ele. Porém Jorge possuía um espírito tão inteligente, tão enérgico e constante, que se houvesse entrado no colégio de Porto Luís, estou certo de que ele posto que só tivesse doze anos, em breve teria excedido os outros alunos.
Os olhos do ancião brilharam um momento de orgulho e entusiasmo, mas este brilho passou como a rapidez do relâmpago, e já a sua vista tinha tomado outra vez à expressão vaga, tímida e acanhada, quando ele acrescentou:
— Mas ele não podia aqui entrar no colégio porque, este foi instituído para os brancos, e nós somos mulatos.
Ouvindo estas palavras, a fisionomia do mancebo inflamou-se, e sobre o seu rosto passou como que uma chama de desprezo e de cólera selvagem.
O velho continuou, sem reparar no movimento do estrangeiro:
— Foi este o motivo por que mandei ambos a França, esperando que a educação sujeitasse o génio vagabundo do mais velho e domasse o carácter muito pertinaz do segundo, mas parece que Deus reprovava a minha resolução, porquanto numa viagem que fez a Brest, Tiago embarcou para um corsário. Depois, só três vezes recebi notícias dele, e cada vez de diferente país. Com respeito a Jorge, crescendo, deixou ampliar o gérmen da inflexibilidade que me assustava. Este tem-me escrito com mais frequência, umas vezes de Inglaterra, outras do Egipto, outras de Espanha, porque ele também tem viajado muito, e posto que as suas cartas sejam muito bem escritas, juro-lhe que não me tenho atrevido a mostrá-las a pessoa alguma.
— Então nenhum de seus filhos lhe falou nunca na época do seu regresso?
— Nunca! E quem sabe se os tornarei a ver um dia, porque ainda que seja o momento mais afortunado da minha vida aquele em que os abraçar, nunca lhes mandei dizer que voltassem.
Se eles permanecem longe desta terra, é porque se reputam mais felizes do que seriam aqui. Se não sentem desejos de tornar a ver seu velho pai, é porque têm encontrado na Europa pessoas que amam mais do que a ele. Cumpra-se, pois, o seu desejo, mormente se ele pode guiá-los à ventura. Contudo, posto que de ambos tenha igualmente saudades, é Jorge, ainda assim que me faz mais falta, é ele que mais me penalisa não me falando nunca em voltar.
— Se ele não lhe fala no seu regresso — replicou o estrangeiro com uma voz de que buscava debalde moderar à agitação —, é talvez porque quer ter o prazer de surpreendê-lo, e tenciona fazer-lhe terminar feliz um dia começado na espectativa.
— Prouvera a Deus! — disse o velho, levantando os olhos e as mãos para o céu.
— É talvez — prosseguiu o mancebo com uma voz cada vez mais comovida —, porque pretende chegar junto a si sem que o conheça, e deste modo gozar da sua presença, do seu amor e de suas bênçãos.
— Ah! Seria impossível que eu o não reconhecesse.
— E todavia — exclamou o mancebo, não podendo por mais tempo resistir ao sentimento que o agitava —, não me reconhece, meu pai!...
— O senhor!... Tu!... Tu!... — bradou o velho, olhando atento para o estrangeiro, trémulo, com a boca meio aberta, e sorrindo com ar de dúvida.
Depois, sacudindo a cabeça:
— Não, não é Jorge — disse o ancião. — Alguma semelhança há entre o senhor e ele, mas Jorge não é corpulento, nem gentil como o senhor, é uma criança, e o senhor é um homem.
— Sou eu, sou eu, meu pai, reconheça-me! — exclamou Jorge. — Lembre-se de que há quatorze anos que me não vê, e de que em breve vou completar vinte e seis anos. Se duvida, repare, veja esta cicatriz na minha testa, é o sinal do golpe que Malmedie me deu no dia em que, com tanta glória, tomou uma bandeira inglesa. Abra-me os seus braços, meu pai, e quando contra o seu coração me apertar, cessará de duvidar de que eu seja seu filho.
E a estas palavras, o estrangeiro lançou-se nos braços do velho, que, olhando umas vezes para o céu, outras" para seu filho, não podia acreditar em tamanha felicidade, e só se decidiu a abraçar o gentil mancebo, quando vinte vezes lhe repetiu que era Jorge.
Neste momento apareceu Telémaco na montanha do Descobrimento, com os braços caídos, melancólico, com a cabeça inclinada, e desesperado de voltar ainda esta vez sem a seu senhor trazer notícia de algum de seus filhos.
TRANSFIGURAÇÃO
Permita-nos agora o leitor abandonar este pai e seu filho ao júbilo de se tornarem a ver, e voltando ao passado, consinta em seguir connosco à transfiguração física e moral, que no espaço de quatorze anos se executou no herói desta história, que lhe fizemos ver criança e agora acabamos de lhe mostrar na idade viril.
Foi primeiro nosso intento oferecer pura e simplesmente ao leitor à narração, que Jorge fez a seu pai, destes quatorze anos. Mas ponderámos que sendo esta narração uma história de pensamentos íntimos e de sensações não vulgares, com razão se poderia desconfiar da veracidade de um homem do carácter de Jorge, mormente falando de si.
Assentámos pois em referir nós mesmos, e à nossa guiza, esta história, cujas particularidades conhecemos, obrigando-nos antecipadamente a não ocultar sensação alguma, boa ou má, a não encobrir nenhum pensamento honoroso ou vergonhoso.
Pedro Munier, cujo carácter intentamos descrever, adoptou, logo que entrou na vida activa, isto é, quando começou a ser homem, à vista dos brancos um sistema de procedimento de que nunca se apartou. Não sentindo em si força, nem vontade de combater como duelista uma preocupação importuna, tomou a resolução de desarmar os seus adversários por uma submissão inalterável, e por uma constante humildade.
Longe de solicitar, não obstante sua riqueza e inteligência, algum cargo administrativo ou civil, alguma distinção política, Munier buscou sempre fazer-se esquecer perdendo-se na multidão. O mesmo pensamento que da vida pública o afastava, o impelia para a vida privada. Generoso e magnífico por natureza, observava em sua casa uma simplicidade monástica. Ali reinava a abundância, não se via luxo, posto que possuísse perto de quatrocentos escravos, o que nas colónias constitue uma fortuna de mais de duzentas mil libras de renda.
Pedro Munier viajou sempre a cavalo, até que, obrigado pela idade (ou pelos pesares, que o haviam quebrantado antes da época em que o homem é velho), a mudar o seu uso modesto num costume mais aristocrático, comprou um palanquim tão simples como o do mais pobre habitante da ilha.
Sempre solícito em evitar a menor contenda, sempre urbano, condescendente e serviçal para toda a gente, mesmo para com os indivíduos que lhe eram antipáticos, teria preferido perder dez jardas de terra a suscitar ou mesmo a prosseguir uma demanda, que lhe grangeasse vinte.
Se qualquer habitante carecia de planta de café, mandioca, ou cana de açúcar, estava certo de a encontrar em casa de Pedro Munier, que ainda agradecia a preferência que lhe davam.
Este modo de proceder, que era o instinto de seu excelente coração, mas que podia parecer resultado de seu carácter acanhado, havia-lhe grangeado a amizade de seus vizinhos, mas amizade passiva que, sem lhe ter nunca feito bem, se limitava simplesmente a não lhe fazer mal.
Ainda assim, entre estes vizinhos alguns havia que não podendo perdoar a Pedro Munier a sua considerável fortuna, os seus numerosos escravos e imaculada reputação, insistiam em o insultar constantemente com a preocupação da cor. Deste número eram o senhor de Mal-medie e seu filho Henrique.
Jorge, nascido com as mesmas condições que seu pai, mas afastado dos exercícios físicos pela debilidade da sua constituição, para a reflexão havia voltado todas as suas faculdades internas, e, maduro antes da idade como em geral são as crianças achacadas, tinha observado o modo de proceder de seu pai, cujos motivos muito novo ainda havia penetrado.
O orgulho varonil, que fervia no peito desta criança inspirou-lhe ódio aos brancos que o desprezavam, e desdém aos mulatos, que se deixavam desprezar.
Por isso resolveu-se a adoptar um procedimento oposto ao que seu pai tinha seguido, e a caminhar, quando tivesse a força, com passo firme e ousado ao encontro das absurdas opressões da opinião, e, se estas lhe não fizessem lugar, a atacá-las corpo a corpo, como Hércules a Antheo, e a sufocá-las entre os braços.
O joven Aníbal, excitado por seu pai, jurou eterno ódio a uma nação. O moço Jorge, apesar de seu pai, jurou guerra de morte a uma preocupação.
Jorge ausentou-se da colónia depois do acontecimento, que deixámos referido. Chegou a França com seu irmão e entrou no colégio Napoleão. Apenas sentado nos bancos da última classe, compreendeu a diferença dos lugares, e quis chegar ao primeiro. Para ele a superioridade era uma necessidade de organização. Jorge aprendeu bem e depressa.
Esta primeira vantagem fortaleceu a sua vontade, de modo que vieram a ser maiores os seus sucessos.
Verdade é que este trabalho de espírito, este desenvolvimento da ideia, deixava o corpo no seu estado de fraqueza primitiva. O moral absorvia o físico, mas Deus tinha dado um apoio ao tenro arbusto. Jorge repousa em paz sob a protecção de Tiago, que era o mais robusto e o mais preguiçoso da sua classe, do mesmo modo que Jorge era o mais fraco.
Infelizmente durou pouco este estado de coisas. Dois anos depois chegaram, indo Tiago e Jorge passar as férias a Brest, a casa de um correspondente a que seu pai os havia recomendado. Tiago, que sempre tivera decidida propensão para a marinha, aproveitou a ocasião que se lhe oferecia, e desgostoso da sua prisão, assim chamava ao colégio, embarcou para um corsário, que na carta que a seu pai escreveu pintou como navio do Estado.
Quando regressou ao colégio, Jorge cruelmente sentiu a ausência de seu irmão. Sem protecção contra as invejas que os seus triunfos de aluno haviam suscitado, foi banido por uns, espancado por outros, e maltratado por todos os seus condiscípulos. Isto foi uma árdua prova, que Jorge com valor suportou.
Então meditou mais profundamente que nunca na sua posição, e compreendeu que a superioridade moral nada era sem a superioridade física. Que era indispensável uma para fazer respeitar a outra, e que só a união destas duas qualidades fazia um homem completo.
Desde esse momento, Jorge inteiramente mudou a sua maneira de viver. De tímido, retirado, pouco activo como era, tornou-se folgazão desassossegado e zaragateio. Ainda se aplicava ao estudo, mas só quanto bastava para conservar a proeminência intelectual, que nos primeiros anos havia granjeado.
Nos primeiros tempos, Jorge mostrou-se inábil, e zombaram dele. Recebeu mal a zombaria, e isto de propósito.
Não tinha ele naturalmente a coragem sanguínea, mas sim o ânimo colérico isto é, o seu primeiro movimento, em vez de arrojar ao perigo, era dar um passo atrás para o evitar.
Jorge carecia de reflexão para ser bravo e posto que esta valentia seja mais real, visto que é a valentia moral, dela se espantou como de uma cobardia.
Por isso a cada altercação Jorge pugnou ou antes foi espancado. Porém, depois de vencido, tornava a começar as brigas até que por seu turno veio a ser vencedor, não porque fosse mais forte, mas porque era mais resoluto. Veio a ser vencedor porque no meio do combate mais pertinaz conservava uma admirável presença de espírito, que o deixava aproveitar o menor descuido do seu adversário.
Isto fê-lo respeitar, e desde então os seus condiscípulos começaram a mostrar-se mais remissos em o insultar. Porque ainda que fraco seja um inimigo, hesita em travar com ele briga quem o reputa determinado. Além disto o prodigioso ardor com que Jorge abraçava esta vida nova, produzia seus frutos. A força desenvolvia-se pouco a pouco. Por isso, incitado por estes primeiros ensaios, enquanto duraram as férias seguintes, Jorge não abriu um livro. Começou a aprender a nadar, a esgrimir, a cavalgar, entregando-se a uma contínua fadiga, que mais de uma vez lhe causou febre, mas a que veio por fim a habituar-se. Então aos exercícios de destreza acrescentou os trabalhos de força. Consumia horas inteiras cavando como um lavrador. Gastava dias em mudar fardos como homem de carregar, chegada a noite, em vez de se deitar em mole cama, embrulhava-se no seu capote, e sobre uma pele de urso, dormia até pela manhã.
Um instante, a natureza surpreendida hesitou, não sabendo se havia de ceder ou reagir.
Jorge conhecia que expunha a sua vida, mas que lhe importava a vida, se esta não fosse para ele o domínio da força e a superioridade da destreza?
A natureza foi mais poderosa. A fraqueza física, vencida pela energia da vontade, desapareceu como um servo infiel expulso por um amo inflexível.
Enfim, três meses de semelhante regime, de tal modo, fortaleceram o achacado Jorge, que quando voltou seus companheiros mal podiam reconhecê-lo.
Então foi ele que altercou com os outros e por seu turno espancou os que tantas vezes o haviam espancado.
Então foi temido, e, por ser temido, foi respeitado.
À proporção que a força lhe enrijava o corpo, a gentileza aformoseava-lhe o rosto. Jorge teve sempre lindos olhos e muito bons dentes. Deixou crescer cabelos negros, dos quais à força de cuidados, corrigiu a nativa aspereza.
A sua palidez doentia desapareceu, e foi substituída por uma cor cheia de melancolia e distinção. Enfim, o mancebo, aplicou-se a ser formoso, do mesmo modo que a criança se aplicava a ser hábil e forte.
Quando Jorge depois de haver estudado filosofia saiu do colégio, era um agradável moço de cinco pés e quatro polegadas, mas, como dissemos, se bem que um pouco delgado, era admiravelmente bem feito. Sabia Jorge quase tudo o que convém a um mancebo bem educado, mas entendeu que não bastava ser em todas as coisas igual ao comum dos homens, e decidiu que em tudo lhes havia de ser superior.
Os estudos a que resolveu aplicar-se tornavam-se-lhe fáceis, visto achar-se livre de trabalhos escolásticos e senhor de todo o seu tempo. Para o emprego das horas do dia Jorge estabeleceu regras de que fez tenção de se não apartar. Pela manhã às seis horas, montava a cavalo. As oito, ia ao tiro de pistola. Das dez até ao meio dia, jogava as armas do meio dia até às duas horas, frequentava o curso da Sorbona. Das três até às cinco horas, desenhava ora numa, ora noutra oficina. Enfim, à noite ia ao teatro, ou às sociedades, cujas portas lhes abriam, ainda mais que a sua fortuna, suas maneiras corteses e elegantes.
Jorge por isso travou conhecimento com o que em Paris havia melhor em artistas, sábios e pessoas ilustres. Igualmente familiar às artes, à ciência e à moda, em breve foi apontado como um dos espíritos mais inteligentes, um dos mais lógicos pensadores e como um dos mais distintos mancebos da capital. Jorge havia quase conseguido o seu fim.
Contudo, restava-lhe fazer uma derradeira experiência. Certo de ser senhor dos outros, ainda ignorava se era senhor de si. Ora, Jorge não era homem que conservasse dúvida sobre coisa alguma, pelo que resolveu assegurar-se.
Muitas vezes havia ele receado tornar-se jogador. Um dia saiu de casa com as algibeiras cheias de ouro, e caminhou para o Frascali. Tinha dito a si mesmo: «Jogarei três vezes cada vez três horas, e durante as três horas arriscarei dez mil francos. Passadas que sejam estas horas ou tenha perdido ou ganho não tornarei a jogar.»
No primeiro dia, perdeu Jorge os seus dez mil francos em menos de hora e meia, mas nem por isso deixou de se demorar três horas a ver jogar os outros. E posto que na algibeira tivesse, em bilhetes do banco, os vinte mil francos que estava resolvido a arriscar nos dois ensaios que ainda havia de fazer, não aventurou um só luís, além do dinheiro que fizera tenção de jogar.
No segundo dia, Jorge ganhou ao princípio vinte e cinco mil francos. Mas como havia assentado jogar três horas, continuou no jogo, e tornou a perder quanto ganhara e mais dois mil francos do seu dinheiro. Neste momento, lembrou-se de que havia três horas que estava jogando, e cessou com a mesma pontualidade da véspera.
No terceiro dia começou Jorge perdendo. Porém quando já não tinha mais que o seu último bilhete do banco à fortuna mudou e a sorte foi-lhe favorável três quartos de hora lhe restavam para jogar. Durante este tempo Jorge jogou com uma dessas felicidades extraordinárias, cuja lembrança os jogadores perpetuam por tradições orais. Durante estes três quartos de hora, pareceu que Jorge havia feito pacto com o diabo, e que por mandado deste algum demónio invisível lhe dizia antecipadamente ao ouvido o naipe que ia sair e à carta que devia ganhar. O ouro e os bilhetes do banco iam-se acumulando, com grande assombro dos assistentes, diante de Jorge, que já não fazia escolha, mas atirava com o dinheiro para a mesa e dizia ao banqueiro: «Onde quiser». O banqueiro punha o dinheiro ao acaso e Jorge ganhava. Dois jogadores de profissão, que haviam seguido as inspirações de Jorge e ganhavam grandes somas, entendendo que era chegado o momento de adoptar um procedimento contrário, apostaram contra ele, mas a fortuna permaneceu fiel a Jorge. Os dois jogadores perderam quanto haviam ganho e mais o dinheiro que consigo tinham. Mas, como eram pessoas de boa reputação, pediram ao banqueiro cinquenta mil francos que também perderam. Pelo que respeita a Jorge, impassível, sem que em seu rosto se notasse sinal de agitação, via aumentar o monte de ouro e bilhetes, olhando de tempos a tempos para o relógio, que devia soar a hora de se ausentar. Enfim esta hora soou. Jorge no mesmo instante cessou de jogar, carregou o seu criado com o ouro e os bilhetes, que acabava de ganhar, e com a mesma serenidade, com o mesmo sossego, que mostrara perdendo ou ganhando, saiu, invejado por todas as pessoas, que haviam sido presentes à cena referida e que esperavam tornar a vê-lo no seguinte dia.
Porém, contra a espectativa de todos, Jorge não apareceu. Ainda fez mais. Guardou o ouro e os bilhetes numa gaveta da sua papeleira, na firme resolução de a abrir só oito dias depois. Chegado que foi este dia, Jorge abriu a gaveta e examinou o seu tesouro. Duzentos e trinta mil francos era a soma que havia ganho.
Jorge estava contente de si, porque conseguira vencer uma paixão. Ele tinha os sentidos ardentes de um homem dos trópicos.
Depois de uma orgia alguns de seus amigos o guiaram a casa de certa dama célebre pela sua fantasia. Passou-se ali a noite praticando sobre moral. Parecia que a dona da casa aspirava ao prémio Montyon.
Ainda assim, notava-se que os olhos da bela pregadora de quando em quando se fitavam em Jorge com uma expressão de veemente desejo, que desmentia a tibieza de suas palavras. Jorge achou esta mulher ainda mais apetitosa do que lhe tinham dito, e por espaço de três dias a sua lembrança perseguiu a virginal imaginação do mancebo. Ao quarto dia, Jorge voltou à casa em que ela habitava. Subiu a escada sobremaneira agitado e tocou a campainha com tão convulso movimento, que por pouco lhe não ficou a corda na mão. Ouvindo os passos de alguém, que se avizinhava, forcejou por se mostrar sossegado. E, com uma voz em que era impossível reconhecer a menor agitação, pediu à criada que lhe abrira a porta, que o encaminhasse para onde estava sua ama. Esta, que tinha ouvido a voz do mancebo, acudiu leda e apressada, porque a imagem de Jorge, cuja vista tamanha impressão lhe fizera, não a havia abandonado. Entendia ela que o amor, ou ao menos o desejo, à sua presença encaminhava o gentil mancebo que tão grande impressão lhe havia causado.
Enganava-se esta mulher. Era isto mais uma experiência sobre si mesmo, que Jorge se tinha resolvido a fazer. Ele ia ali para excitar a combate uma vontade tenaz e desejos veementes. Por espaço de duas horas se demorou na companhia desta mulher, dando uma aposta por pretexto à sua impassibilidade, e resistindo ao mesmo tempo à torrente de seus desejos e às carícias da devassidão. Passadas estas duas horas, triunfante na segunda experiência, como fora na primeira, Jorge ausentou-se, sobremodo satisfeito por haver vencido seus sentidos.
Não era Jorge, como deixámos dito, homem, que procurasse o perigo, mas tinha o génio que o espera quando lhe não pode fugir, e que o arrasta quando não pode evitá-lo. Jorge receava não ser animoso, e muitas vezes o fez estremecer a ideia de que, num perigo iminente se houvesse com cobardia. Sobremaneira o atormentava esta ideia, por isso se resolveu a aproveitar a primeira ocasião que se lhe oferecesse de se experimentar no perigo. Esta ocasião enfim chegou de um modo muito singular.
Achava-se Jorge um dia em casa de Lepage, com um de seus amigos, e esperando que se desocupasse o lugar, via atirar um mancebo reputado como um dos melhores atiradores de Paris. Este executava quase todos esses lances de incrível destreza, que a tradição atribui a S. Jorge, e que fazem desesperar os neófitos, isto é, acertava no branco do alvo a cada tiro, dava numa bala posta em cima de uma faca, e fazia enfim, sempre com bom êxito, outras muitas experiências semelhantes. O amor próprio do atirador, importa dizê-lo, era excitado pela presença de Jorge, que o criado, quando lhe entregou a pistola, lhe representou como dotado de uma habilidade pelo menos igual à sua, de modo que cada vez que disparava, o atirador se avantajava. Porém a cada tiro em vez de receber do seu vizinho o tributo de elogio que entendia haver merecido, ouvia, pelo contrário, Jorge responder aos aplausos da galeria: «Não há dúvida, atira bem, mas outra coisa seria se atirasse a um homem.»
Esta retirada negação da sua habilidade como duelista, começou a causar admiração ao atirador, e terminou enfim por ofendê-lo. De modo que voltando-se para Jorge, no momento em que este acabava de anunciar pela terceira vez a sua dúbia opinião, e olhando para ele com ar de mofa, mas ao mesmo tempo ameaçador.
— Parece-me, senhor — disse-lhe —, que é a segunda ou a terceira vez que manifesta uma dúvida que insulta o meu valor. Quer ter a bondade de me dar uma clara e formal explicação das palavras que proferiu?
— As minhas palavras não carecem de comentário — respondeu Jorge. — Parece-me que por si mesmas suficientemente se explicam.
— Nesse caso — replicou o atirador —, há-de repeti-las ainda uma vez, para que eu possa avaliar a força que elas têm, bem como a intenção que as ditou.
— Eu disse — respondeu Jorge com a maior tranquilidade, ao vê-lo dar no branco do alvo a cada tiro —, que não atiraria com tanta certeza se, em vez de enviar uma bala ao alvo, houvesse de dirigi-la ao peito dum homem.
— E porque não? — perguntou o atirador.
— Porque me parece que deve sempre haver, no momento em que alguém atira sobre o seu semelhante, certa perturbação que altere o tiro.
— Tem tido muitos desafios? — perguntou o atirador.
— Nenhum — respondeu Jorge.
— Em tal caso não me admiro de que presuma que em semelhante circunstância possa haver medo — replicou o atirador com um sorriso em que se percebia certo ar de ironia.
— Vejo que não entendeu bem o que eu disse — respondeu Jorge. — Parece-me que no momento de matar um homem é muito possível tremer sem ser de medo.
— Eu nunca tremo, senhor — disse o atirador.
— Pode ser — respondeu Jorge com a mesma serenidade —, mas nem por isso estou menos convencido de que a vinte e cinco passos isto é, à mesma distância em que acerta no branco do alvo, havia de errar um homem.
— Pois eu, senhor, estou bem persuadido do contrário.
— Há-de permitir que não o acredite.
— Então desmente-me?
— Não, isto é uma tese que estabeleço.
— Mas de que suponho que hesitaria em fazer a experiência, replicou chacoteando o atirador.
— E porque havia eu de hesitar? — respondeu Jorge olhando para ele.
— Sim, presumo que de melhor grado veria fazer sobre outro a experiência.
— Sobre outro ou sobre mim, isso é o mesmo.
— Mas previno-o de que seria temeridade arriscar-se a semelhante ensaio.
— Não, porque eu disse o que pensava, e por conseguinte a minha convicção é que pouco arriscaria.
— Desse modo pela segunda vez repete que à distância de vinte e cinco passos eu não acertaria num homem?
— Está enganado, não é a segunda vez que o repito, mas sim, se bem me lembro, a quinta.
— É demasiado! Quer insultar-me.
— Fica-lhe a liberdade de acreditar que seja essa a minha intenção.
— Pois bem, senhor, apraze a hora.
— Neste mesmo instante, se quer.
— O sítio?
— Estamos a quinhentos passos do bosque de Bolonha.
— As suas armas?
— As minhas armas! Não se trata dum duelo. É uma experiência que vamos fazer.
— Às suas ordens, meu senhor.
— Sou eu que estou às suas.
Cada um dos dois mancebos, acompanhado de um amigo, entrou em seu carrinho descoberto.
Chegados que foram ao sítio marcado, as duas testemunhas quiseram fazer uma composição entre eles, mas isto era coisa difícil. O adversário de Jorge exigia desculpas, e Jorge insistia em que só devia essas desculpas no caso de ser ferido ou morto, visto que só neste caso havia agravo.
As duas testemunhas gastaram um quarto de hora em negociações sem resultado.
Quiseram então situar os adversários a trinta passos de distância um do outro.
Porém Jorge observou que não haveria verdadeira experiência se não se adoptasse a distância a que de ordinário se atira ao alvo, isto é, vinte e cinco passos. Por consequência foi medido este número.
Então quiseram lançar um luís ao ar para decidir quem havia de atirar primeiro. Jorge, porém, declarou que reputava inútil este preliminar, visto que o direito de primazia pertencia naturalmente ao seu adversário. Este, da sua parte, insistiu em que a sorte decidisse duma vantagem, que entre dois homens tão destros dava toda a probabilidade ao que primeiro disparasse. Mas Jorge teimou, e o seu adversário teve que ceder.
O moço do tiro, que havia seguido os combatentes, carregou as pistolas com cargas iguais às com que tinham sido feitas as experiências precedentes, sendo as pistolas as mesmas. Jorge tinha estabelecido este ponto como uma condição sine qua non.
Os adversários colocaram-se a vinte e cinco passos e cada um recebeu da mão do seu padrinho uma pistola carregada. Feito isto, os padrinhos afastaram-se para deixarem aos combatentes a faculdade de disparar segundo a ordem convencionada.
Jorge não tomou precaução alguma das usadas em semelhante circunstância. Deixou cair o braço e apresentou em toda a largura o seu peito inteiramente a descoberto.
Não sabia o seu adversário o que queria dizer semelhante procedimento. Frequentes vezes se havia encontrado em circunstâncias análogas e nunca tinha visto tal sangue frio. Por isso, à profunda convicção de Jorge começou a produzir o seu efeito. O hábil atirador, que nunca havia errado o seu tiro, chegou a duvidar de si mesmo.
Duas vezes levantou a pistola e duas vezes a abaixou. Era isto contrário a todas as regras do duelo. Porém de cada vez Jorge contentou-se em dizer-lhe:
— Procure ocasião, senhor, procure ocasião.
À terceira vez, envergonhou-se de si mesmo, e disparou.
Houve então um momento de angústia para as testemunhas. Porém, disparado o tiro, Jorge voltou-se sucessivamente para a esquerda e para a direita, saudando os padrinhos para lhes indicar que não estava ferido.
— Já vê, senhor — disse ele ao adversário —, que não me enganava, e que quando se dispara sobre um homem, há menos certeza do que quando se atira ao alvo.
— Confesso, senhor, que eu não tinha razão — respondeu o adversário de Jorge. — Agora, atire.
— Eu — disse Jorge, pegando no chapéu que tinha posto no chão e entregando a pistola ao moço do tiro —, eu atirar para quê?
— É o direito que lhe compete — exclamou o seu adversário —, e não consentirei que a ele renuncieis. Além de que, tenho curiosidade de ver como atira.
— Dispense-me, senhor — disse Jorge com o seu imperturbável sangue frio. — É preciso que nos entendamos. Eu não disse que havia de o tocar, mas sim que não me tocaria. Assim sucedeu, e por conseguinte eu tinha razão.
E por mais razões que expôs o seu adversário, por mais instâncias que fez para induzi-lo a disparar, tudo foi baldado. Jorge meteu-se no seu carrinho e seguiu o caminho da barreira da Estrela, repetindo ao seu amigo:
— Não te dizia eu que era coisa diferente atirar a uma boneca ou disparar sobre um homem!
Jorge estava contente de si, por estar certo do seu valor.
Estas três aventuras deram brado e admiravelmente estabeleceram Jorge no mundo. Duas ou três casquilhas fizeram ponto de honra subjugar o moderno Catão, e como nenhum motivo tinha ele para resistir-lhes, em breve se tornou um mancebo da moda. Porém, ao tempo em que elas o julgavam mais cativo pelas suas boas fortunas, como o momento que ele mesmo tinha aprazado para as suas viagens era chegado, uma linda manhã, Jorge despediu-se das suas amantes, mandando a cada uma um magnífico presente, e partiu para Londres. Nesta cidade, Jorge fez-se apresentar em toda a parte e foi bem recebido. Possuiu cavalos, cães e galos. Fez brigar uns e correr os outros, aceitou todas as apostas que lhe propuseram, ganhou e perdeu somas consideráveis com um sangue frio verdadeiramente aristocrático. Passado um ano, ausentou-se de Londres com a fama dum perfeito gentleman, assim como tinha saído de Paris com a reputação de um estimável cavalheiro. Foi durante esta residência na capital da Grã-Bretanha, que ele encontrou Lord Murrey. Porém, como dissemos, sem de outro modo travar com ele conhecimento.
Era na época em que as viagens do Oriente começavam a ser moda. Jorge visitou sucessivamente a Grécia, a Turquia, a Ásia Menor, a Síria e o Egipto. Foi apresentado à Mehemet-Ali, no momento em que Ibrahim-Pachá ia fazer a sua expedição do Said.
Jorge acompanhou o filho do vice-rei, pelejou à sua vista. Dele recebeu uma espada de honra e dois cavalos árabes escolhidos entre os mais famosos de suas coudelarias.
Jorge regressou a França pela Itália. Preparava-se a expedição de Espanha, foi a Paris e pediu para servir como voluntário. Foi admitido nas fileiras do primeiro batalhão, que havia de marchar, e constantemente se achou na vanguarda.
Infelizmente, contra toda a esperança, os espanhóis não resistiram, e esta campanha, que todos entendiam que havia de ser tão encarniçada, pouco mais foi que um passeio militar. No Trocadero, todavia, as coisas mudaram de face, e viu-se que seria indispensável conquistar este derradeiro baluarte da revolução peninsular.
O regimento a que Jorge se havia encorporado não era designado para o assalto, o que o induziu a passar para os granadeiros. Praticada a brecha, e dado o sinal de acometer, Jorge arremeteu à frente da coluna de ataque, e foi o terceiro que entrou no Forte.
O seu nome foi mencionado na ordem do exército. Das mãos do duque d'Angollème recebeu a cruz da Legião dHonra, e Fernando VII conferiu-lhe a de Carlos III. Tinha sido o intuito de Jorge obter uma distinção. Em vez duma alcançou duas, o que no orgulhoso mancebo excitou o maior júbilo.
Jorge pensou então que era chegado o tempo de voltar à ilha de França. Tudo quanto ele na mente havia esperado tinha sucedido, havia alcançado mais do que tinha desejado. Nada lhe restava já a fazer longe da pátria.
O seu combate com a civilização terminara, ia começar a luta com a barbárie. Tinha uma alma cheia de orgulho, que não se teria consolado, consumindo numa felicidade europeia as forças preciosamente juntas para um combate na sua pátria. Tudo quanto desde dez anos havia feito, era para sobressair aos seus compatriotas mulatos e brancos, e poder por si só extinguir a prevenção, que nenhum homem de cor havia ousado ainda impugnar.
Pouco lhe importava a Europa e seus cento e cinquenta milhões de habitantes. Pouco lhe importava a França e seus trinta e três milhões de indivíduos. Pouco lhe importava a deputação ou ministério, república ou realeza.
O que ele antepunha ao resto do mundo, o que sobretudo o preocupava, era o seu pequeno canto de terra, perdido sobre o mapa terrestre, como um grão de areia no fundo do mar. Porque havia para ele neste pequeno canto de terra um grande esforço a executar, um grande problema a resolver. Jorge não tinha mais do que uma lembrança, a de haver sofrido. Não tinha mais que uma esperança, a de ser respeitado.
Neste tempo, a fragata Leycester arribou a Cadix. Esta fragata ia para a ilha de França onde devia fazer estação. Jorge pediu a sua admissão, a bordo deste navio, e, recomendado ao capitão das autoridades francesas e espanholas, obteve-a.
A verdadeira causa deste favor, cumpr dizê-lo, foi saber Lord Murrey que o homem, que solicitava esta passagem, era um indígena da ilha de França. Ora Lord Muriey folgava de ter quem, durante uma viagem de quatro mil léguas, pudesse dar-lhe as muitas informações políticas e morais, que é tão importante que um governador por precaução adquira antes de chegar ao seu governo.
Já vimos como Jorge e Lord Murrey se haviam pouco a pouco aproximado um do outro, e o modo por que tinham chegado a certo ponto de amizade ao tomar terra em Porto Luís.
Também vimos como Jorge, filho piedoso e dedicado a seu pai, só depois duma dessas longas experiências, que lhe eram familiares, chegou a fazer-se reconhecer por ele.
O júbilo do ancião foi tanto maior quanto ele menos esperava a volta de seu filho. O homem, que tinha voltado, diferia de tal modo do que era esperado, que, seguindo o caminho de Moka, o pai não se fartava de contemplar o filho. Parava de tempos a tempos ante ele como em observação, e cada vez que parava o velho apertava o mancebo contra o seu coração com tanto contentamento, que Jorge não obstante esse poder que sobre si mesmo afectava, sentiu que as lágrimas lhe vinham aos olhos.
Depois de caminharem três horas, chegaram à plantação. A um quarto de légua da casa, Telémaco adiantou-se. De modo que, quando chegaram, Jorge e seu pai encontraram todos os negros, que os estavam aguardando com um júbilo misturado de temor. Porquanto este mancebo, que eles só tinham visto menino, era um novo senhor que lhes chegava, e este senhor como se haveria para com eles?
A volta de Jorge era pois uma questão capital de felicidade ou de desdita futura para toda esta pobre gente.
Os agouros foram favoráveis. Jorge começou por licenciá-lo todo aquele dia e o seguinte. Ora, como o imediato era domingo, isto fez com que lhe ficassem três dias de descanso.
Impaciente Jorge de julgar por si mesmo da importância que a sua fortuna territorial podia dar-lhe na ilha, apenas jantou foi, em companhia de seu pai, visitar toda a fazenda.
Felizes especulações e um trabalho assíduo e bem determinado, a tinham tornado uma das mais belas propriedades da colónia.
No centro da fazenda estava a casa, edifício simples e espaçoso, circundado de bananeiras, mangueiras e tamarindos. Em frente da casa havia uma comprida rua de árvores, que ia desembocar na estrada, e pela parte detrás pomares embalsamados onde a romã, brandamente balanceada pelo vento, alternativamente ia tocar num ramo de purpúreas laranjas, ou num cacho de douradas bananas, subindo e descendo sempre, indecisa e semelhante a uma abelha volteando entre duas flores, a uma alma vacilando entre dois desejos. Em torno da casa, e a grande distância, prolongavam-se vastos campos de canas e de milho, que pareciam, cansados da sua carga nutritiva, implorar a mão dos segadores.
Finalmente, Jorge e seu pai chegaram ao sítio, a que nas plantações chamam — Campo dos Negros.
Havia no meio do campo um grande edifício, que no Inverno servia de celeiro, e no estio de sala de dança.
Deste lugar saíam grandes gritos de alegria, misturados com o som do tamboril e do pandeiro.
Os negros, aproveitando as férias dadas, folgavam alegremente. Porque esta gente do trabalho passa ao prazer e dançando descansa da fadiga.
Jorge e seu pai abriram a porta, e de repente apareceram no meio dos pretos. Imediatamente o baile foi interrompido, cada qual se colocou junto do seu vizinho, procurando enfileirar-se, como soldados que o coronel surpreende.
Depois de um momento de silêncio agitado, os senhores foram saudados por uma tríplice aclamação, que bem manifestava a expressão sincera e franca dos sentimentos que ditavam.
Bem alimentados, bem vestidos, raras vezes castigados, porque raras vezes faltavam ao dever, os pretos adoravam Pedro Munier, talvez o único mulato da colónia que, sendo humilde ante os brancos, não fosse cruel para com os negros.
Pelo que respeita a Jorge, cujo regresso, como deixamos dito, tão graves receios inspirara àquela pobre gente, como se adivinhasse o efeito produzido pela sua presença, ergueu a mão fazendo sinal de que pretendia falar.
Sem demora reinou o mais profundo silêncio, e os negros atentos escutaram as seguintes palavras, que da sua boca saíram, lentas e solenes como uma promessa:
«Meus amigos, sou sensível à boa recepção que me fazem, e sobremaneira folgo da satisfação que em todos os semblantes diviso. Meu pai, sei-o, faz a vossa felicidade, pelo que lhe dou os agradecimentos, porque é o meu dever, assim como o seu, fazer a ventura dos que espero hão-de obedecer-me, do mesmo modo que a ele obedecem. Sois aqui trezentos, e só tendes noventa choupanas, meu pai deseja que edifiquem mais sessenta, uma para dois. Cada choupana terá um pequeno jardim. Será permitido a cada indivíduo plantar nele tabaco e batatas, e criar um porco e galinhas. Os que quiserem reduzir tudo isto a dinheiro irão vendê-lo ao domingo a Porto Luís, e poderão à sua vontade dispor do produto da venda.
«Se acaso se cometer algum roubo, recairá severo castigo sobre aquele que houver roubado seu irmão. Se algum for injustamente punido pelo feitor, provando que não foi merecido o castigo, far-se-á inteira justiça. Não falo no caso de fuga, porque sois e haveis de ser, eu o espero, assaz felizes para que chegueis a conceber o pensamento de abandonar-nos.»
Novos brados de júbilo soaram no fim deste pequeno discurso, que há-de por certo parecer minucioso e fútil aos sessenta milhões de europeus, que têm a felicidade de viver sob o regime constitucional, mas que na ilha de França foi recebido com tanto mais entusiasmo, quanto era a primeira constituição deste género, que se outorgava na colónia.
O SERÃO
Durante o serão do seguinte dia, como era segundo como havemos dito, um sábado, uma assembleia de negros, menos galhofeira do que aquela que acabámos de deixar, estava congregada debaixo dum espaçoso telheiro, e assentada em torno dum grande fogo de ramos secos. Um, segundo suas necessidades, temperamento ou carácter, trabalhava em alguma obra manual, destinada a ser vendida no dia seguinte. Outro tratava de cozer arroz, mandioca ou bananas.
Este fumava num cachimbo, tabaco não só indígena, mas colhido no seu jardim. Aqueles, finalmente, conversavam entre si em voz baixa.
Pelo meio de todos estes grupos, as mulheres e as crianças incumbidas de manter o fogo, atravessavam incessantemente. Sem embargo porém, de toda esta actividade e movimento, posto que este serão precedesse um dia de repouso, conhecia-se que sobre aqueles infelizes pesava alguma coisa triste que os inquietava. Era a opressão do feitor, também mulato.
O telheiro estava situado na parte inferior das planícies Williams, junto à montanha das Três-Tetas, em torno da qual se prolongava a propriedade do nosso conhecido, o senhor de Malmedie.
Não era este homem um mau senhor, na acepção dada em França a esta palavra. Não, Malmedie era incapaz de ódio, incapaz de vingança. Mas persuadido no mais alto grau da sua importância civil e política, cheio de vaidade quando pensava na pureza do sangue que lhe corria nas veias, e participando com boa fé nativa, que lhe fora legada de pai a filho, da preocupação que ainda naquela época perseguia, na Ilha de França, a gente de cor.
Pelo que toca aos escravos não eram estes mais desditosos em sua casa do que nas dos outros, mais sim infelizes como em toda a parte. Porque os negros, no conceito de Malmedie, não eram homens, reputava-os de máquinas, que deviam dar certos produtos.
Ora, quando qualquer máquina rende menos do que deve, por meios mecânicos a concertam. Malmedie aplicava pois pura e simplesmente aos seus negros a mesma teoria, que aplicaria às máquinas.
Quando os escravos cessavam de trabalhar, por preguiça ou cansaço, o feitor excitava-os às chicotadas. A máquina tornava a tomar então o seu movimento, e no fim da semana o produto geral era o que devia ser.
Pelo que diz respeito a Henrique de Malmedie, era o fiel retrato de seu pai, com vinte anos menos e uma dose de orgulho mais.
Havia pois diferença entre a situação moral é material dos negros do bairro das planíces Williams e a dos do bairro de Moka. Por isso,
nos serões, os escravos de Munier, se mostravam naturalmente alegres, enquanto, pelo contrário, entre os negros do senhor Malmedie, o júbilo carecia de ser incitado por alguma cantiga.
Debaixo dos trópicos, como em nossas regiões, sob o telheiro do negro como no acampamento dos soldados, há sempre um ou dois desses indivíduos que se incumbem do trabalho, às vezes mais árduo do que se cuida, de fazer rir a sociedade, e a quem a sociedade grata paga de mil maneiras diferentes. Bem entendido, se ela se esquece de cumprir este dever, o que algumas vezes sucede, neste caso o engraçado recorda-lhe que é seu credor.
O homem, que na fazenda do senhor Malmedie exercia o cargo, que outrora exercitava Triboulet e Angeli na corte de Francisco e Luís XIII, era um homenzinho, cujo corpo grosso era sustido por pernas tão delgadas, que à primeira vista mal se podia acreditar na possibilidade de semelhante reunião.
Enquanto ao mais nas duas extremidades, o equilíbrio, interrompido pelo meio restabelecia-se. O grosso tronco do corpo sustinha uma pequena cabeça, ao passo que as delgadas pernas terminavam nuns pés enormes.
Pelo que respeita aos braços, eram estes dum comprimento desmarcado, semelhantes aos desses macacos, que andando em pé, sem se abaixarem apanham os objectos, que no caminho encontram.
Deste complexo de formas incoerentes e desproporcionados membros resultava que o novo indivíduo, que acabamos de pôr em cena, oferecia uma singular mistura de ridículo e terrível. Mistura em que, aos olhos do europeu, o disforme prevalecia a ponto de inspirar desde a primeira vista, um vivo sentimento de repulsão. Menos partidistas, porém, do belo, menos adoradores que nós da forma, os negros só o encaravam em geral pelo lado cómico, posto que de tempos a tempos debaixo da sua pele de mono, o tigre estendesse as garras e mostrasse os dentes.
O homem, cujo retrato acabamos de fazer, chamava-se António e era natural de Tingoeam, de modo que, para distingui-lo dos outros Antónios, a quem por certo a confusão ofenderia, geralmente lhe chamavam António, o Malaio.
O serão estava pois muito triste, como dissemos quando António, que se tinha introduzido sem que o vissem atrás de um dos postes que sustinham o telheiro, estendeu a cabeça, e deu um pequeno silvo semelhante ao da cabra de capuz, um dos mais terríveis répteis da península malaia.
Este som nas planícies de Tanassein, nos pântanos de Java, ou nos areais de Quíloa, teria gelado de terror a quem o ouvisse. Porém na Ilha de França, onde, fora os tubarões, que aos cardumes andam pelas costas nadando, nenhum animal nocivo se pode citar, este som só produziu o efeito de fazer abrir à negra assembleia grandes olhos e maiores bocas. Depois como atraídas pelo som, todas as cabeças se voltaram para o recém-chegado, e um só grito saiu de todas as bocas: «António o Malaio. Viva António.»
Só dois ou três negros se sobressaltaram e iam levantar-se. Porque tinham na sua mocidade ouvido aquele silvo, de que ainda não se haviam esquecido.
Um deles levantou-se de todo. Era este um formoso moço preto, que, a não ser a sua cor, seria havido por um filho da mais bela raça caucasiana. Porém, apenas conheceu a causa do barulho que da sua meditação o distraíra, tornou a deitar-se murmurando com um desprezo igual ao júbilo dos outros escravos:
«António, o Malaio.»
António, dando três pulos com as suas compridas pernas, achou-se no meio do círculo, e saltando depois por cima do fogo, caiu do outro lado, assentado ao modo dos alfaiates.
«Uma cantiga! António, uma cantiga!», bradaram todos.
Ao contrário dos curiosos, certos de seus resultados, António não se fez rogar.
Tirou da algibeira o seu berimbau, levou à boca o instrumento, dele tirou alguns sons preparatórios a modo de prelúdio e acompanhando as palavras com gestos extravagantes e análogos ao assunto, cantou algumas coplas.
Indispensável seria que o leitor tivesse vivido entre esta raça de homens simples e primitivos, para os quais tudo é causa de sensação, para ter ideia, não obstante a pobreza das rimas e a simplicidade das lembranças, do efeito produzido pela cantiga de António.
No fim da primeira e segunda copla houve risadas e aplausos. No fim da terceira houve gritos e vivas.
Só o moço negro, que já havia manifestado o seu desprezo a António, encolheu os ombros com mostras de desprazer.
Pelo que diz respeito a António, em vez de gozar do seu triunfo, e de se desvanecer ao som dos aplausos, encostou os cotovelos aos joelhos e pondo as mãos na cabeça pareceu entregar-se à profunda meditação.
Ora como António era o galhofeiro obrigado, o seu silêncio entristeceu a assembleia. Por isso lhe pediram que contasse alguma história, ou cantasse outra cantiga.
Porém António fez ouvidos de mercador, e as mais instantes rogativas não obtiveram outra resposta além deste silêncio incompreensível e obstinado.
Enfim, um dos que se achavam mais perto dele, batendo-lhe no ombro:
— Que tens, Malaio — perguntou-lhe —, estás morto?
— Não — respondeu António. — Estou vivo.
— Então que fazes?
— Estou a pensar.
— E em que pensas tu?
— Penso — disse António —, que o tempo do serão é um bom tempo. Quando o sol desaparece chega a hora do serão, cada um trabalha com prazer, porque trabalha para si, posto que haja preguiçosos que perdem o tempo a fumar, como tu Toukal. Ou gulosos, que se divertem a cozer bananas, como tu Cambeba. Porém, como acabo de dizer, há outros que trabalham. Tu, Castor, por exemplo, fazes as tuas cadeiras. Tu, Boaventura, fazes colheres de pau. E tu, Nazim, estás calaceiro.
— Nazim está como quer — respondeu o moço negro Zamzibar. — Nazim é o veado d'Anjuan, assim como Laiza o leão. E o que fazem os leões e os veados não compete às serpentes.
António mordeu os beiços, e depois dum momento de silêncio, durante o qual pareceu que a voz forte do jovem escravo continuava a vibrar, prosseguiu:
— Eu estava a pensar e dizia-vos que é bom tempo o do serão, mas para que o trabalho não seja uma fadiga, para ti, Castor, e para ti, Boaventura. Para que o fumo do tabaco te pareça melhor, Toukal. Para que não adormeças enquanto as tuas bananas se cozem, Cambeba, é indispensável que haja quem vos conte histórias, ou cante alguma cantiga.
— É verdade — disse Castor. — E António sabe muito bonitas histórias, e canta lindíssimas cantigas.
— Mas quando António não canta as suas cantigas, nem conta histórias — disse o Malaio. — Que sucede? Toda a gente adormece, porque estão todos cansados do trabalho da semana. Então não há serão. Tu, Castor, cessas de fazer cadeiras de bambu. Tu Boaventura, não fazes as tuas colheres de pau. Tu, Toukal, deixas apagar o cachimbo. E tu, Cambeba, deixas queimar as tuas bananas, não é assim?
— É verdade — responderam em coro não só os interpelados, mas todos os escravos, à excepção de Nazim, que continuou guardando um silêncio desdenhoso.
— Nesse caso devem ser gratos a quem lhes conta bonitas histórias, para os conservar acordados, e canta alegres cantigas, para os excitar ao riso.
— Muito obrigado, António. Muito obrigado — bradaram todos a uma voz.
— A não ser António, quem é capaz de lhes contar histórias?
— Laiza, Laiza também as sabe muito bonitas.
— Sim, mas são histórias, que os fazem tremer.
— É verdade — responderam os negros.
— E a não ser António, quem pode cantar para ouvirem?
— Nazim, ele também sabe lindíssimas cantigas.
— É certo, mas cantigas, que vos fazem chorar.
— Assim é — disseram os negros.
— É pois só o António, que sabe cantigas e histórias para fazer rir.
— Também é verdade — replicaram os negros.
— Tu, Malaio.
— Quem, há três dias, lhes contou uma história?
— Foste tu.
— E quem lhes cantou já hoje uma cantiga, e vai em breve contar-lhes uma história?
— Tu, Malaio, tu.
— Então, se eu sou a causa de que se divirtam trabalhando, de que encontrem mais prazer em fumar, e de que não adormeçam enquanto estão cozendo bananas, justo é, já que nada posso fazer visto que me sacrifico, que se me dê, pelo meu trabalho, alguma coisa.
A justeza desta observação a todos comoveu. Ainda assim, a veracidade de historiador impele-nos a confessar que só algumas vozes, partindo dos corações mais cândidos da sociedade, responderam afirmativamente.
— Assim — continuou António —, é justo que Toukal me dê um pouco de tabaco para fumar, não tenho razão, Cambeba?
— Sim, justo é — exclamou Cambeba, satisfeito por não recair sobre ele a contribuição. E Toukal foi obrigado a repartir com António o seu tabaco.
— Outro dia — prosseguiu António —, perdi a minha colher de pau. Não tenho dinheiro para comprar outra, porque, em vez de trabalhar, lhes conto histórias e canto. Muito justo é pois que Boaventura me dê uma colher de pau com que eu coma a sopa. Não te parece isto razoável, Toukal?
— Certamente — respondeu Toukal, contente por não recair sobre ele só o imposto de António.
E António extendeu a mão a Boaventura, que lhe deu a colher, que naquele momento tinha acabado.
— Agora, prosseguiu António, tenho tabaco para o meu cachimbo, e possuo uma colher para comer a sopa. Mas careço de dinheiro para comprar com que fazer o caldo. Justo é pois que Castor me dê o bonito tamborete, em que está trabalhando, para que eu vá vendê-lo, e com o seu produto compre um pedaço de carne. Toukal, Boaventura, Cambeba, não acham isto justo?
— Muito justo! — exclamaram estes. — É justíssimo.
E António tirou logo das mãos de Castor o tamborete, que este tinha acabado.
— Já cantei — continuou António —, uma cantiga, que me fatigou, e vou contar-lhes uma história que há-de ainda fatigar-me. De razão é pois que eu ganhe forças comendo alguma coisa: Toukal, Boaventura, Castor, não é assim?
— Assim é — responderam a uma voz os três contribuintes. Cambeba teve uma ideia terrível.
— Porém — disse António mostrando uma queixada semelhante à de um lobo —, eu nada tenho para meter entre os meus dentinhos.
Cambeba sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos, e maquinalmente extendeu a mão para o fogo.
— Acho pois de justiça — prosseguiu António —, que Cambeba me dê uma bananinha. Vós todos, que dizeis?
— Sim, sim, é muito justo — bradaram ao mesmo tempo Toukal, Boaventura e Castor. — Sim, é muito justo, banana, Cambeba banana.
E todas as vozes repetiram em coro: «Banana Cambeba.»
O infeliz olhou para a assembleia com ar espantado, e correu para o fogo com intento de salvar a banana. Porém António o deteve no caminho, e segurando-o com uma das mãos, com uma força de que o não julgavam capaz, agarrou com a outra a corda, que servia para içar para o celeiro os sacos de milho, lançou o gancho, que a ela estava atado à cintura de Cambeba, fazendo sinal ao mesmo tempo para que Toukal puxasse pela outra ponta da corda.
Toukal compreendeu com uma rapidez que fazia a maior honra à sua inteligência, e Cambeba, no momento em que menos o esperava, achou-se levantado do chão, e com grande júbilo de toda a companhia começou a subir para o céu.
À distância de dez pés pouco mais ou menos do solo, a ascensão parou, ficando Cambeba suspenso e extendendo ainda as mãos para a banana, que já por nenhum meio podia disputar ao seu inimigo.
— Bravo, António. Muito bem! — clamaram todos os assistentes, rindo às gargalhadas, Enquanto António, já senhor do objecto da contenda, afastava com delicadeza a cinza e dela tirava a banana fumegante.
— A minha banana, a minha banana — exclamou Cambeba com o acento da mais profunda desesperação.
— Aqui está — disse António estendendo o braço na direcção de Cambeba.
— Estou muito longe para lhe pegar.
— Não a queres?
— Não lhe chego.
— Nesse caso — prosseguiu António —, vou comê-la, para que não apodreça.
E dito isto, começou a limpar a banana, com uma gravidade cómica, que os risos se tornaram convulsivos.
— António — gritou Cambeba —, António, peço-te que me restituas a banana, que era para a minha pobre mulher, que está doente e não pode comer outra coisa. Eu furtei-a, tamanha era a precisão que dela tinha.
— O que se furta nunca aproveita — respondeu filosoficamente António, continuando a limpar a banana.
— Ah, pobre Narina! Faltar-lhe que comer e terá fome, muita fome, muita fome.
— Tenham dó desse infeliz — disse o jovem negro d'Anjuan, que, no meio do prazer de todos, tinha ficado grave e melancólico.
— Não serei tão tolo — disse António.
— Não é a ti que me dirijo — prosseguiu Nazim.
— Então a quem?
— Aos homens.
— Pois bem, eu falo contigo — replicou António. — E digo-te: cala-te, Nazim.
— Soltem Cambeba — prosseguiu o joven negro com um tom de suprema dignidade que teria feito honra a um monarca.
Toukal, que estava segurando a corda, voltou-se para António, incerto se devia obedecer. Porém, sem responder à sua muda interrogação:
— Já te disse. Cala-te, Nazim, e tu não te calastes — repetiu o Malaio.
— Quando um cão ladra ao pé de mim, não lhe respondo e prossigo o meu caminho. Tu és um cão, António.
— Tem cuidado em ti, Nazim — disse o António sacudindo a cabeça. — Quando o teu irmão Leiza não está presente, não és tu capaz de grandes coisas. Por isso não repetirás o que acabas de dizer.
— És um cão, António — repetiu Nazim levantando-se.
Todos os negros, que estavam entre Nazim e António, se afastaram, de modo que o formoso negro dAnjuan e o disforme Malaio acharam-se em frente um do outro, mas a dez passos de distância.
— Dizes isso de muito longe Nazim — redarguiu António apertando os dentes de cólera.
— E de perto o repito — exclamou Nazim. E dando um pulo achou-se a dois passos distante d'António. Então, com voz desdenhosa e olhar arrogante: — És um cão — disse ele pela terceira vez.
Um branco não hesitaria em lançar-se sobre o seu inimigo e afogá-lo, se lhe fosse possível. António, pelo contrário, deu um passo atrás, curvou as suas compridas pernas, ergueu-se como um réptil prestes a arremessar-se sobre a sua presa, e por um movimento imperceptível, da algibeira da jaqueta tirou a sua faca e abriu-a.
Nazim viu este movimento e adivinhou a intenção de António. Porém sem se dignar de fazer um só gesto de defesa, em pé, mudo e imóvel, aguardou, semelhante a uma estátua.
O Malaio contemplou um instante o seu inimigo. Depois, endireitando-se com a destreza e agilidade da serpente:
— Desgraçado de ti — exclamou ele. — Laiza não está aqui.
— Aqui está Laiza — disse então uma voz grave.
Quem proferiu estas palavras pronunciou-as com o seu tom de voz habitual. Não lhe juntou um gesto. Não as acompanhou de algum sinal e todavia ao som desta voz António sobressaltou-se, e a sua faca, que estava só duas polegadas distante do peito de Nazim, caiu-lhe da mão.
— Laiza! — exclamaram todos os negros voltando-se para o recém-chegado, e tomando no mesmo instante a postura da obediência.
Aquele a quem bastou uma palavra para produzir uma impressão tão forte sobre todos, e mesmo sobre António era um homem na força da idade, de estatura ordinária, mas cujos membros anunciavam uma força prodigiosa. Estava em pé, imóvel, com os braços cruzados, e de seus olhos cerrados como os do leão quando medita, saía um olhar brilhante, sereno e imperioso.
Quem visse todos estes homens esperar assim, no mais respeitoso silêncio, uma palavra ou sinal deste outro homem, diria que era uma horda africana aguardando a paz ou a guerra de um aceno de cabeça. E contudo o que havia chegado não era mais que um escravo no meio de escravos.
Depois de alguns minutos de completa imobilidade, Laiza ergueu lentamente a mão e estendeu-a para Cambeba, que durante todo este tempo permanecera suspenso na corda, observando, mudo como os outros, a cena que acabava de suceder.
No mesmo instante, Toukal deixou correr a corda, e Cambeba, com grande contentamento, viu-se no chão.
O seu primeiro cuidado foi procurar a sua banana. Porém na confusão, que naturalmente fora consequência da cena referida, a banana tinha desaparecido.
Durante esta busca, Laiza tinha saído. Pouco tempo depois, porém, tornou a entrar, trazendo aos ombros um porco montez que lançou ao pé do fogo.
— Tomem, filhos — disse ele —, lembrei-me de vós. Tomem e repartam.
Esta acção e as palavras que a acompanharam tocaram muito duas cordas sensíveis no coração dos negros, a gulodice e o entusiasmo, para deixarem de produzir o seu efeito. Todos rodearam o animal e cada um se extasiou a seu modo.
— Oh! Que boa ceia nós vamos ter esta noite — disse um malabar.
— É preto, como um moçambique — disse um malgaço.
— E gordo como um malgaço — disse um moçambique.
Porém, como é fácil de presumir, a admiração era sentimento muito ideal para que não desse sem demora lugar a alguma coisa de mais positivo. Num abrir e fechar de olhos, o animal foi despedaçado, uma parte reservada para o dia seguinte é a outra cortada em talhadas muito delgadas, que estenderam em cima de carvões, e em pedaços um pouco mais grossos, que foram assados.
Todos voltaram então a ocupar o seu primeiro lugar, mas com rostos mais alegres, porque estavam esperando uma boa ceia. Só Cambeba ficara em pé, triste e separado de todos, metido a um canto.
— Que fazes aí, Cambeba? — perguntou Laiza.
— Nada, pai Laiza — respondeu Cambeba tristemente.
Pai, como todos sabem, é título de honra entre os negros, e todos os da roça, desde o mais moço até ao mais velho, davam a Laiza este título.
— Porventura sofres ainda por teres estado atado pela cintura? — perguntou Laiza.
— Não, pai. Eu não sou tão delicado.
— Então tens algum pesar?
Cambeba desta vez só respondeu acenando com a cabeça em sinal afirmativo.
— E porque razão estás triste? — perguntou Laiza.
— Porque António me tirou uma banana, que eu tinha sido obrigado a furtar para minha mulher, que está doente, e agora não tenho que lhe dar.
— Pois dá-lhe um pedaço do porco montez.
— Ela não pode comer carne, pai Laiza.
— Olá! —* diz Laiza em voz alta. — Quem há aí que me dê uma banana!
Uma dúzia de bananas saiu como por milagre do meio da cinza. Laiza pegou na melhor e deu-a a Cambeba, que se foi esgueirando com ela, sem mesmo gastar tempo em agradecer. Depois voltando-se para Boaventura a quem a fruta pertencia:
— Tu nada perderás, Boaventura — disse-lhe ele —, porque em lugar de banana hás-de ter a porção de carne que havia de pertencer a António.
— E eu — perguntou impudentemente António —, que hei-de ter?
— Tu — disse Laiza —, terás a banana, que furtaste a Cambeba.
— Mas ela perdeu-se — respondeu o Malaio.
— Isso não me compete — disse Rouktar.
— Bravo! — bradaram os negros. — O que se rouba nunca aproveitar.
O Malaio levantou-se, lançou um olhar sinistro aos homens, que um momento antes haviam aplaudido as suas perseguições, e que acabavam de aplaudir o seu castigo, e saiu do telheiro.
— Irmão — disse Nazim a Laiza —, acautela-te. Eu conheço-o, é capaz de te pregar alguma má peça.
— Vela antes por ti, Nazim, porque quanto a mim não se atreveria a ofender-me.
— Pois bem, velarei por ti, e tu velarás por mim — disse Nazim. — Mas não é disso que agora se trata. Bem sabes que temos de falar noutra coisa.
— Sim, mas não aqui.
— Então saiamos.
— Logo, quando todos estiverem entretidos a comer, ninguém reparará em nós.
— Tens razão.
E os dois negros começaram a conversar em voz alta acerca de coisas indiferentes. Porém assim que todos principiaram a comer, aproveitando a preocupação que preside sempre à primeira parte duma refeição, quando há bom apetite, saíram ambos, sem que ninguém notasse.
PREPARATIVO DO CALHAMBOLA
Eram quase dez horas. A noite, sem luar, estava linda e estrelada, como de ordinário sucede nos trópicos pelo fim do estio. Viam-se no céu algumas dessas constelações, que desde a infância nos são familiares, sob o nome de Ursa, Pequena Boldrié de Orion e Sete-Estrelos, mas em posição tão diferente daquela em que estamos costumados a vê-las, que com dificuldade um europeu as reconheceria. No meio destas constelações brilhava a cruz do sul, invisível no nosso hemisfério boreal.
O silêncio da noite só era alterado pelo ruído que alguns insectos faziam roendo a cortiça das árvores, pelo cinto dessas toutinegras e rouxinóis de Madagáscar, e pelo som, quase imperceptível da erva seca que se ia dobrando debaixo dos pés dos dois irmãos.
Os dois negros caminhavam silenciosos, olhando de quando em quando em torno de si com ar inquieto, parando para escutar, é prosseguindo depois o seu caminho.
Enfim, chegados que foram a um lugar mais espesso, entranharam-se numa espécie de pequeno bosque de bambus e quando se viram no centro dele, pararam, aplicando ainda o ouvido e olhando de novo em volta de si.
Sem dúvida o resultado desta última investigação inspirou-lhes ainda mais segurança do que as outras, porque se sentaram junto duma bananeira silvestre, que estendia suas largas folhas como uma ventarola magnífica pelo meio da comprida folhagem das canas que a rodeavam.
— Nazim, perseveras na mesma resolução? — perguntou Laiza.
— Mais que nunca, meu irmão. Eu morreria aqui, tenho tomado sobre mim trabalhar até ao presente, eu, Laiza, filho do chefe, teu irmão. Mas estou cansado desta vida miserável. É de absoluta necessidade que volte a Anjuan ou que cesse de viver.
Laiza exalou um suspiro.
— É longe daqui a Anjuan — disse ele.
— Que importa, respondeu Nazim.
— Estamos no tempo das ventanias.
— Chegaremos por isso mais depressa.
— Mas se a barca sossobrar?
— Nadaremos enquanto tivermos forças, e quando já o não pudermos fazer, olharemos pela última vez para o céu, onde o grande espírito nos aguarda, e abraçados iremos para o fundo.
— Então queres ausentar-te da Ilha de França?
— Sim, quero.
— Com risco da vida?
— Sim.
— Há muita dificuldade para chegares a Anjuan.
— Há muita probabilidade de lá chegar.
— Pois bem, disse Laiza, faça-se a tua vontade, meu irmão. Todavia, pondera ainda.
— Há dois anos que considero. Quando o chefe dos Mongalos me apanhou num combate, como te sucedeu quatro anos antes, e me vendeu a um capitão que comerciava em pretos, do mesmo modo que tu havias sido vendido, tomei logo o meu partido. Eu estava encadeado, busquei afogar-me com as cadeias. Meteram-me no porão. Quis quebrar a cabeça contra as cavernas do navio, estenderam palha para o evitar. Resolvi então deixar-me morrer de fome. Abriram-me a boca, e não podendo obrigar-me a comer, compeliram a beber. Era de absoluta necessidade venderem-me depressa. Desembarcaram-me aqui, deram-me por metade do preço, e ainda era muito caro, porque eu estava na resolução de me precipitar do primeiro muro a que trepasse. De repente ouvi a tua voz, meu irmão, senti palpitar contra o meu o teu coração, e julguei-me tão feliz, que entendia que me seria possível viver. Esta persuasão durou um ano. Mas enfim, perdoa-me, meu irmão, já a tua amizade me não bastava. Veio à minha lembrança a nossa ilha, meu pai e Zirna. Árduos me pareceram vossos trabalhos, reputei-os depois humilhantes, e finalmente impossíveis. Disse-te então que tinha intento de fugir, voltar a ver Zirna, meu pai e a nossa ilha. E tu, bom como sempre, disseste-me: «Descansa, Nazim, que és fraco, e eu, que sou forte, trabalharei.» Então tens saído todas as noites há quatro dias e trabalhado enquanto eu descansava. Não é verdade, Laiza?
— Sim. Mas, contudo, escuta, Nazim. Mais valeria esperar ainda — disse Laiza levantando a cabeça. — Hoje escravos, daqui a um mês, daqui a três ou daqui a um ano, talvez senhores!
— Conheço os teus projectos — disse Nazim. — Sei qual é a tua esperança.
— Então concebes o que seria, prosseguiu Laiza, ver esses brancos, tão orgulhosos e cruéis, humilhados e suplicantes por seu turno? Imaginas o que seria obrigá-los a trabalhar doze horas por dia? Compreendes o que seria azorragá-los, fazê-los andar debaixo dum pau? Os brancos são doze mil, nós, oitenta mil. E o dia em que nos contarmos, será o dia da sua perda.
— Dir-te-ei, Laiza, o mesmo que me disseste. Há muita dificuldade para que consigas bom êxito.
— Porém eu te responderei o que tu me respondestes Nazim. Há muita probabilidade de eu sair bem.
Assim demora-te...
— Não posso, Laiza, não é possível... Eu vi a alma de minha mãe. Ela disse-me que voltasse à pátria.
— Tu viste-la? — perguntou Laiza.
— Há quinze dias que todas as noites vem um pássaro empoleirar-se por cima da minha cabeça. E o mesmo que cantava em Anjuan sobre a sua sepultura. Ele, com suas pequenas asas, atravessou o mar e veio até aqui. Eu reconheci o seu canto. Escuta, ali o tens.
Com efeito, naquele mesmo instante, um rouxinol de Madagáscar, empoleirado no mais alto ramo do maciço de árvores, junto do qual estavam Laiza e Nazim, começou a sua melodiosa cantiga.
Os dois irmãos escutaram com à cabeça melancolicamente inclinada, até ao momento em que o músico nocturno se interrompeu, e voando na direcção da pátria dos dois escravos, fez ouvir as mesmas modulações a cinquenta passos de distância. Depois disto, continuando a voar na mesma direcção, por última vez repetiu a sua cantiga, de que, por causa da distância, mal se podiam ouvir as notas mais altas.
O rouxinol foi voando, e tanto se afastou, que os dois desterrados debalde escutavam, porque nada ouviam já.
— Ele voltou para Anjuan — disse Nazim. — E tornará aqui a chamar-me, e a mostrar -me o caminho até que eu ali o siga.
— Parte, Nazim, parte — disse Laiza.
— Assim? — perguntou Nazim.
— Tudo está pronto. Num dos lugares mais desertos da Ribeira Negra, defronte do morro, escolhi uma das maiores árvores, que pude encontrar. No seu tronco cavei uma canoa e ramos fiz dois remos. Serrei a árvore por cima e por baixo da canoa, mas deixei-a ficar em pé, temendo que conhecessem que a sua copa faltava no meio das outras. Agora basta e purrá-la para que ela caia, não temos mais do que arrastar a canoa até ao rio e deixá-la com a corrente. E já que tu queres partir, Nazim, esta noite partirás.
— E tu, meu irmão, não me acompanhas? — perguntou Nazim.
— Não — respondeu Laiza. — Eu fico. Nazim deu um profundo suspiro.
— E o que te estorva — perguntou Nazim depois de um momento de silêncio —, de voltar comigo à pátria de nossos pais?
— O que me estorva, já to disse. Há mais de um ano que temos resolvido revoltar-nos, os nossos amigos elegeram-me para chefe da revolta, e eu não posso atraiçoá-los ausentando-me.
— Não é isso que te retém — disse Nazim sacudindo a cabeça. — Mas sim outra coisa.
— E que outra coisa imaginas tu, que possa reter-me?
— A rosa da Ribeira Negra — respondeu Nazim olhando fito para Laiza, que estremece depois de um momento de silêncio:
— É verdade — disse ele. — Amo-a.
— Pobre irmão! — prosseguiu Nazim. — E qual é o teu projecto?
— Nenhum tenho concebido.
— Qual é a tua esperança?
— Vê-la amanhã, assim como a vi ontem e hoje.
— E sabe ela que existes?
— Duvido.
— Já alguma vez te falou?
— Nunca.
— Então, a pátria?
— Esqueci-me dela.
— Nessali?
— Já me não lembra.
— Nosso pai?
Laiza encostou a cabeça às mãos. E passado um instante:
— Escuta — disse ele —, tudo o que poderias dizer-me para me fazer partir seria tão inútil como o que eu te disse para induzir-te a ficar. Ela é tudo para mim, família e pátria. Careço de vê-la para viver, assim como para respirar preciso do ar que ela respira. Siga pois cada um de nós o seu destino. Nazim, volta a Anjuan. Eu ficarei aqui.
— Mas que hei-de dizer a meu pai quando me perguntar por que razão Laiza não me acompanha?
— Diz-lhe que morreu — respondeu Laiza com a voz sufocada.
— Não me acreditará — disse Nazim.
— E porquê?
— Há-de dizer-me: se meu filho tivesse morrido, eu veria a sua alma. A alma de Laiza não visitou seu pai, logo ele não morreu.
— Então diz-lhe que amo uma rapariga branca — disse Laiza. — E ele me amaldiçoará. Porém ausentar-me desta ilha enquanto ela aqui viver, isso nunca.
— O grande espírito há-de inspirar-me, meu irmão — respondeu Nazim levantando-se. — Encaminha-me para onde está a canoa.
— Espera — disse Laiza. E adiantou para junto do tronco ôco de uma árvore, de onde tirou um caco de vidro e uma cabaça cheia de azeite de coco.
— Que é isso? — perguntou Nazim.
— Ouve, meu irmão — disse Laiza. — E possível que com o auxílio dos remos e com bom vento chegues em oito dias a Madagáscar, ou mesmo à Grande Terra. Mas também não é impossível que amanhã ou depois de amanhã um vento contrário te arremesse à costa. Então saberão da tua partida, por toda a ilha serão mandados os teus sinais, serás obrigado a andar fugido de bosque em bosque, de rochedo em rochedo.
— Meu irmão, chamam-me o veado d'Anjuan, assim como a ti o leão — disse Nazim.
— É verdade. Mas como o veado, podes cair no laço. É preciso que então escapes das mãos de quem intentar apanhar-te. Aqui está vidro para te cortar os cabelos, e azeite de coco para te untar o corpo. Vem, meu irmão, deixa que te prepare como convém ao calhambola.
Nazim e Laiza foram para um lugar descoberto, e à claridade das estrelas, Laiza começou, com o caco de vidro, a cortar a seu irmão os cabelos, tão pronta e completamente como poderia fazê-lo, com a melhor navalha, o mais hábil barbeiro. Terminada esta operação, Nazim despiu a sua camisola, e Laiza derramou-lhe sobre os ombros uma porção de azeite de coco, que ele foi estendendo com a mão por todas as partes do corpo. Ungido assim dos pés até à cabeça, o formoso negro de Anjuan parecia um antigo atleta aparelhando-se para o combate. Mas tornava-se indispensável uma experiência para de todo tranquilizar Laiza, que, como Alcidamas, detinha um cavalo pelos pés, e o cavalo debalde buscava escapar-lhe das mãos. Laiza, como Milão de Crotona, pegava num touro pelas hastes é deitava-o aos ombros, ou estendia-o aos pés. Se Nazim lhe escapasse, ninguém seria capaz de o segurar. Laiza travou Nazim pelo braço, com toda a força de seus músculos de ferro, e o braço de Nazim escorregou por entre os dedos de Laiza, como a enguia escorrega da mão do pescador. Laiza cingiu Nazim com os braços, comprimindo-o contra o seu peito, como Hércules comprimira Antheo. Mas Nazim apoiou as mãos aos ombros de Laiza, e escorregou por entre os seus braços, do mesmo modo que uma serpente escorrega das garras dum leão. Só então Laiza se tranquilizou. Nazim não podia já ser surpreendido, e, na carreira, cansaria o animal, cujo nome havia tomado.
Então Laiza deu a Nazim a cabaça contendo azeite de coco, recomendou-lhe que a conservasse mais cuidadosamente do que as raízes de mandioca, que haviam de satisfazer-lhe a fome, e do que a água, que havia de saciar-lhe a sede. Nazim enfiou a cabaça numa correia, que atou à cintura.
Os dois irmãos olharam então para o céu, e vendo, pela posição das estrelas, que devia ser pelo menos meia noite, tomaram o caminho do morro da Ribeira Negra, e em breve desapareceram nos bosques, que cobrem a base do monte das Três-Tetas. Porém atrás deles, e a vinte passos do sítio em que tivera lugar entre os dois irmãos toda a conversação, que acabámos de referir, um homem, que pela sua imobilidade até então tinha parecido um dos troncos lo meio dos quais estava deitado, vagarosamente se ergueu, entrou como uma sombra no •flato, apareceu um instante na orla da floresta, e seguindo os dois irmãos com um gesto de ameaça, foi correndo, logo que eles desapareceram, na direcção de Porto Luís.
Este homem era o malaio António, que tinha prometido vingar-se de Laiza e Nazim e que ia cumprir a sua palavra.
E agora, por mais veloz que ele caminhe com as suas longas pernas, importa, se o leitor o permite, que o precedamos na capital da Ilha de França.
A BAÍA DA RIBEIRA NEGRA
Depois de haver pago a Miko-Miko a ventarola chinesa de que Jorge lhe dissera o preço, a jovem que vimos um instante à porta entrou em sua casa, enquanto o seu negro ajudava o mercador a entrouxar a fazenda, seguida sempre da sua aia, e contente com a compra do dia, cujo destino era ser em breve esquecida.
Com esse modo de andar flexível e vagaroso, que tanta graça dá às crioulas, foi deitar-se sobre um largo canapé, destinado a servir de cama e de assento.
Este móvel estava posto no fundo de um lindo camarim, todo guarnecido de louça da China e de vasos do Japão. A tapeçaria que lhe cobria as paredes era feita dessa bela chita, que os habitantes da Ilha de França tiram da costa de Coromandel, e a que chamam patna.
Enfim, segundo o uso dos países quentes, as cadeiras e poltronas eram de cana, e duas janelas fronteiras, uma das quais dava sobre um pátio plantado de árvores e outra sobre uma vasta estância deixavam, através das esteiras de bambu, que lhes serviam de gelosias, passar a viração do mar e o aroma das flores.
Logo que a jovem se estendeu em cima do canapé, um pequeno periquito verde com a cabeça cinzenta e do tamanho dum pardal, voou do poleiro, indo pousar-lhe no ombro, começou a espicaçar a extremidade da ventarola, que por um movimento mecânico, a sua dona se divertia em abrir e fechar.
Dizemos por um movimento maquinal, porque se tornava visível que não era já na ventarola, apesar do desejo que manifestara de a possuir, que a jovem naquele momento pensava. Efectivamente, com os olhos fitos num sítio do camarim onde não havia coisa alguma notável capaz de chamar à atenção, tinha claramente cessado de ver os objectos presentes para seguir alguma visão do pensamento.
Sem dúvida esta visão tinha para ela todas as aparências da realidade, porque de quando em quando no rosto se lhe via um ligeiro sorriso e seus lábios se agitavam, respondendo por uma linguagem muda à alguma muda recordação.
Esta preocupação era muito alheia aos costumes da jovem para que nela não reparasse à sua aia. Por isso depois de haver por alguns instantes observado em silêncio os movimentos de sua fisionomia:
— Que tem minha querida Sara? — perguntou Henriqueta.
— Eu nada — respondeu Sara, estremecendo, como quem desperta em sobressalto. Estou, como vê, a brincar com este periquito e com a minha ventarola.
— Sim, bem vejo. Mas é certo que no momento em que se distrai dessa meditação não estava a pensar no periquito, nem na ventarola.
— Minha Henriqueta, juro...
— Não tem por costume mentir, Sara, e mormente a mim — interrompeu a aia. — Porque motivo começa hoje?
Um vivo rubor subiu às faces de Sara, que depois dum movimento de hesitação, disse:
— Tem razão, querida Henriqueta, eu estava a pensar noutra coisa?
— Então em quê?
— Perguntava a mim mesma quem seria o mancebo que tão oportunamente passou para nos tirar do aperto em que nos víamos. Nunca até hoje o vi. Certamente veio no navio que trouxe o governador. Faço porventura mal em pensar nesse mancebo?
— Não, minha filha, não acho mal em pensar nele. Mas era faltar à verdade dizer-me que estava a pensar noutra coisa.
— Fiz mal — disse Sara. — Perdoe-me.
E dizendo isto, chegou-se à sua aia, que para ela se inclinou, e deu-lhe um beijo na testa.
Ambas guardaram silêncio por um momento, porém como Henriqueta, severa inglesa, não queria deixar a imaginação da sua discípula ocupar-se por muito tempo com a lembrança do mancebo, e como Sara experimentava certa dificuldade em se calar, ambas abriram a boca ao mesmo tempo para começar a conversar sobre outro assunto. Porém as suas primeiras palavras de algum modo se encontraram, e cada uma se calou para deixar falar a outra. Deste conflito de palavras apressadas resultou outro momento de silêncio, que Sara finalmente interrompeu:
— Que quer dizer, minha Henriqueta? — perguntou ela.
— E Sara, que dizia?
— Que desejava saber se o novo governador é jovem.
— E nesse caso ficaria contente, não é verdade?
— Certamente, porque sendo assim dará jantares e bailes que hão-de alegrar o nosso infeliz Porto Luís, que ora está tão triste. Oh, sobretudo os bailes! Se ele os desse!
— Gosta muito de dançar, minha filha?
— Se gosto! — exclamou Sara! Henriqueta sorriu-se.
— Pois também faço mal em gostar da dança? — perguntou Sara.
— É mau fazer todas as coisas como as faz, com excesso.
— Que quer, minha querida Henriqueta — disse Sara com um ar meigo e cheio de graça, que ela sabia mostrar na ocasião oportuna —, se este é o meu génio. Eu amo ou aborreço, e não sei dissimular o ódio nem o amor. Não me tem mesmo muitas vezes dito que é grande defeito a dissimulação?
— Certamente. Mas entre dissimular cada qual as suas sensações e entregar-se sem cessar a seus desejos, direi quase ao seu instinto — respondeu a grave inglesa. — Há grande diferença.
— Sim, muitas vezes me tem dito isso minha Henriqueta. Não ignoro que as mulheres da Europa têm achado um admirável meio entre a franqueza e a dissimulação. É o silêncio da voz e a imobilidade da fisionomia. Mas quanto a mim não sou mulher civilizada, e sim uma rusticazinha, criada no meio dos grandes bosques e junto dos grandes rios. Se me agrada o que vejo, desejo-o, e se o desejo, quero possuí-lo. Tenho sido mal acostumada, e por si, "rinha Henriqueta, como pelos mais, isto tem-me tornado senhora da minha vontade. Quando Peço alguma coisa quase sempre a obtenho, e se por acaso ma negam tomo-a por minhas mãos, deixam-mo fazer.
— E como há-de ajeitar-se, quando, com esse belo carácter, vier a ser esposa do senhor Henrique?
Henrique é novo, e já entre nós combinámos — disse Sara com a maior inocência —, em que lhe deixarei fazer o que quiser, com tanto que eu faça o que for da minha vontade. Não é assim, Henrique? — prosseguiu Sara olhando para a porta, que naquele momento se abriu para dar passagem a Malmedie e a seu filho.
— Que diz, minha querida Sara? — perguntou o mancebo chegando-se a ela e beijando-lhe a mão.
— Não é verdade que depois do nosso casamento nunca me há-de contrariar, e que há-de dar-me tudo o que me causar prazer?
— Que tal! — diz Malmedie. — Aqui está uma mulherzinha, que propõe de antemão as condições.
— Não é certo — continuou Sara —, que gostando eu dos bailes, sempre a eles me acompanhará, demorando-se enquanto eu quiser, ao contrário desses fastidiosos maridos que se ausentam depois da sétima ou da oitava contradança? Não poderei eu pescar, andar à caça, ou nada fazer enquanto for isso a minha vontade? Não é certo que se eu apetecer um bom chapéu de França, um lindo chalé da índia, um formoso cavalo inglês ou árabe, sem demora mo comprará?
— Certamente — disse Henrique sorrindo-se. — Porém, a propósito de cavalos árabes, hoje vimos dois muito formosos, e estimo que não os visse, porque, como provavelmente não são para vender, se por acaso desejasse possuí-los impossível me seria oferecer-lhos.
— Também eu vi esses cavalos — disse Sara. — Não pertencem a um mancebo de 25 ou 26 anos, a um estrangeiro, moreno, com belos cabelos e bonitos olhos?
— Apre! Sara — disse Henrique —, parece que reparou mais no cavaleiro que no cavalo!
— Porque o cavaleiro falou-me, e só a certa distância vi os cavalos, que nem mesmo relincharam.
— Pois esse jovem fátuo falou-lhe, Sara? E a que respeito? — replicou Henrique.
— Sim, a que respeito lhe falou? — perguntou o sr. de Malmedie.
— Em primeiro lugar — respondeu Sara —, direi que não tive o menor vislumbre da sua fatuidade, e Henriqueta, que comigo estava, também não a notou. Querem saber a que respeito me falou? Nada há mais simples. Eu voltava da igreja, quando encontrei aguardando-me à entrada da porta, um chinês com dois cestos cheios de agulheiros, ventarolas, carteiras e muitas outras coisas. Perguntei-lhe o preço desta ventarola... Veja Henrique, veja como é bonita.
— Muito bem. E depois? — perguntou o sr. de Malmedie. — Tudo isso não nos explica como o tal mancebo falou.
— Eu perguntava ao chinês — respondeu Sara — o preço da ventarola, mas havia um inconveniente que obstava à que ele me respondesse. O homem só falava o seu idioma, pelo que estávamos em grande embaraço. Henriqueta e eu, perguntávamos a quem nos rodeava para ver os lindos objectos que o mercador mostrava, se entre os assistentes havia algum que pudesse servir-nos de intérprete, quando o tal mancebo se adiantou, e, pondo-se à nossa disposição, falou com o mercador na sua língua, e voltando-se depois para nós, disse-nos: «Oitenta patacas.» Acha caro, meu tio?
— Que tal! — disse Malmedie. — Era o preço por que se pagava um negro antes dos ingleses vedarem o comércio da escravatura.
— Porém, diga-me. Esse senhor fala o chinês? — perguntou Henrique, admirado.
— Sim, fala — respondeu Sara.
— Ó meu pai — bradou Henrique, às gargalhadas —, ele fala chinês.
— E que acha nisso que dê azo a tanto riso? — perguntou Sara.
— Nada, nada — respondeu Henrique, continuando a rir. — É grande talento o gentil estrangeiro, é homem muito feliz. Pode conversar com as caixas de chá e com os biombos.
— O facto é que o chinês é idioma que poucas pessoas falam — respondeu o sr. de Malmedie.
— Aí temos algum mandarim — disse Henrique, continuando a divertir-se à custa do estrangeiro, cujo olhar altivo lhe não havia esquecido.
— Em todo o caso depois, respondeu Sara, é um mandarim erudito, porque de falar ao mercador no idioma chinês, falou comigo em francês e com Henriqueta em inglês.
— O tal sujeito pelo que vejo fala todas as línguas — disse Malmedie. — Folgaria de ter um homem assim no meu escritório.
— Infelizmente, meu tio — disse Sara —, o mancebo de que falais, parece-me ter estado num serviço, que lhe terá tornado desagradável qualquer outro.
— Então em que serviço?
— No do rei de França. Não viu que traz a fita da Legião de Honra, e outra além desta?
— Presentemente dão-se todas as fitas, sem que careça de ter sido militar o indivíduo que as recebe.
— Mas em geral é indispensável que aquele a quem se conferem seja homem distinto — replicou Sara, agastada sem saber porquê, e defendendo o estrangeiro por esse instinto tão natural aos corações ingénuos, de defender os que são injustamente atacados.
— Talvez, disse Henrique, que fosse condecorado porque sabe falar o chinês.
— Havemos de saber tudo isso — disse o senhor de Malmedie com um tom de voz, que dava a conhecer que de nenhum modo notava o arrufo entre Sara e Henrique, porque ele veio no navio do governador. — E como ninguém vem à ilha de França para logo se ausentar, teremos por certo a vantagem de cá o ter algum tempo.
Neste momento entrou um criado, trazendo uma carta com o sinete do governador. Era um convite que Lord Murrey fazia a Malmedie, a Henrique e a Sara, para um jantar, que na Segunda-feira seguinte havia de dar, e para o baile que devia seguir o jantar.
Era homem muito brioso o que principiava por um convite. Por isso Sara deu um grito de alegria pela ideia de passar toda uma noite a dançar. Isto cabia tanto melhor quanto o último navio chegado de França lhe havia trazido esquisitas guarnições de flores artificiais, que lhe não fizeram metade do prazer, que deveriam causar-lhe, visto que ela ignorava, recebendo-as, quando chegaria a ocasião de as mostrar.
Pelo que toca a Henrique, esta nova, sem embargo da dignidade com que a recebeu, não lhe foi indiferente. Tinha-se ele com alguma razão, em conta dum dos moços mais gentis da colónia, e posto que contratado a casar com sua prima, não fazia escrúpulo, no entanto, de ir namorando outras mulheres, e que lhe era fácil, porquanto Sara, por apatia ou hábito, nunca lhe havia manifestado a tal respeito o menor ciúme.
Pelo que diz respeito ao pai de Henrique, vangloriou-se muito ao receber a carta de convite, que leu três vezes e que lhe suscitou ainda mais alta ideia da sua importância, visto que apenas duas ou três horas depois da chegada do governador, já por este se achava convidado a jantar, honra, que segundo toda a probabilidade, só fazia às pessoas mais consideradas da ilha.
Enquanto ao mais, isto mudou alguma coisa as disposições tomadas pela família de Malmedie.
Henrique tinha ajustado uma caçada aos veados para o Domingo e para a Segunda-feira seguinte, na floresta, que era ainda naquela época, abundante em veação. E como em parte era ias propriedades de seu pai que havia de ter lugar a caçada, Henrique tinha convidado uma dúzia de amigos para que no Domingo pela manhã, se achassem numa linda casa de campo, que possuía junto à Ribeira Negra, um dos mais pitorescos bairros da ilha.
Ora impossível era que a caçada fosse nos dias indicados, visto que um deles era o designado pelo governador para o seu banquete e baile. Urgente se tornava pois antecipá-la, vinte e quatro horas, não só por causa de Malmedie e seu filho, mas também por amor de muitos de seus convidados, que naturalmente deviam ter a honra de jantar em casa de Lord Murrey.
Henrique voltou pois a sua casa para escrever uma dúzia de cartas, que o negro Biju foi incumbido de levar aos seus respectivos destinos, que anunciavam aos caçadores a modificação feita ao primeiro projecto.
O senhor de Malmedie, da sua parte, despediu-se de Sara sob pretexto de um negócio. Mas na realidade para ir declarar a seus vizinhos que em três dias poderia com franqueza dizer-lhes a sua opinião acerca do novo governador, porque na Segunda-feira seguinte havia de jantar com ele.
Pelo que respeita a Sara, declarou que numa circunstância tão inopinada e solene tinha muitos preparativos a fazer para partir no Sábado pela manhã, e que iria ter com seu tio e com Henriqueta no Sábado pela tarde, ou no Domingo de manhã.
O resto do dia, e todo o dia seguinte, passou como Sara havia previsto, nas disposições convenientes à importante função, e graças aos cuidados de Henriqueta, no Domingo pela manhã Sara pôde partir, como prometera a seu tio.
O mais importante estava feito, já tinha provado o vestido e a costureira, mulher experimentada, dizia que no dia seguinte pela manhã estaria acabado. Se tivesse algum defeito ficava uma parte do dia para as emendas.
Sara partia pois contente. Depois da dança, do que ela mais gostava no mundo era do campo. Com efeito, o campo oferecia-lhe essa liberdade de inacção, ou esse capricho de movimento, que aquele coração de extremos desejos nunca encontrava inteiramente na cidade. Por isso, no campo Sara cessara de reconhecer toda a autoridade, mesmo a de Henriqueta, que era quem a exercia mais sobre ela.
Se o seu espírito propendia para a inacção, Sara escolhia um lindo sítio, deitava-se debaixo das árvores, e ali vivia como as flores recebendo o orvalho, o ar e o sol, por todos os poros, ouvindo cantar os pássaros divertindo-se a ver os macacos saltar de ramo em ramo, ou suspendendo-se pela cauda. Seguindo com os olhos os movimentos engraçados e rápidos desses bonitos lagartos verdes salpicados de encarnado, tão vulgares na ilha de França, que a cada passo fugiam aos três e aos quatro.
Ali, Sara se demorava horas, pondo-se por assim dizer em comunicação com a natureza, cujos aspectos estudava, e comparava as harmonias.
Quando, pelo contrário, o seu espírito estava propenso ao movimento, Sara não era uma rapariga, mas sim uma gazela, um pássaro, uma borboleta. Salvava as torrentes. Debruçava-se sobre os precipícios, para colher ramos em que as gotas de orvalho pareciam globozinhos de azougue. Passava por debaixo de uma cascata, cuja humidade a cobria com um véu de garça, e então, ao contrário das outras crioulas, cujo rosto baço tão dificilmente toma cor, suas faces coravam-se de um encarnado tão vivo que os negros, afeitos a dar no seu idioma poético às coisas um nome significativo, chamavam a Sara — a rosa da Ribeira Negra.
Era pois Sara feliz, visto que ia gozar as duas coisas que mais gostava, isto é, o campo e a dança.
O BANHO
A ilha não era ainda nesta época, como no presente, atravessada por caminhos, que permitem ir de carruagem aos diversos bairros da colónia, e os únicos meios de condução eram cavalo ou palanquim.
Todas as vezes que Sara ia ao campo, com Henrique e o sr. Malmedie, o cavalo obtinha sem discussão a preferência, porque a picaria era um dos exercícios mais familiares à jovem. Porém quando viajava com Henriqueta, era necessário renunciar a este género de transporte, a que a grave inglesa antepunha o palanquim.
Era pois num palanquim, levado por quatro negros, seguido duma muda de outros quatro, que Sara e sua aia viajavam, muito perto uma da outra para poderem conversar, enquanto os seus portadores, certos de uma boa gorgeta, cantando denunciavam aos passageiros a generosidade da sua jovem senhora.
Henriqueta e Sara formavam o contraste físico e moral mais pronunciado, que é possível imaginar.
O leitor já conhece Sara, com os seus cabelos e olhos pretos, a cor do rosto variável como o seu espírito, os dentes brancos como pérolas, as mãos e pés pequenos, o corpo flexível e ondiante como o de uma sylphide. Permita-nos que agora lhe digamos algumas palavras a respeito de Henriqueta.
Henriqueta Smith havia nascido na metrópole. Era filha de um professor, que, destinando-a ao professorado, lhe mandara, desde a infância ensinar o francês e o italiano, idiomas que lhe vieram a ser tão familiares como a sua língua materna.
É o professorado, como todos sabem, modo de vida em que geralmente se adquire pouca fortuna.
Jackes Smith faleceu pobre, deixando sua filha Henriqueta com muito talento, mas sem nenhum dote, o que fez com que chegasse a idade de vinte e cinco anos sem encontrar marido.
Nesta época, uma de suas amigas, excelente música, assim como Henriqueta era perfeita filóloga, propôs-lhe unirem seus talentos, e instituírem um colégio por conta de ambas. E esta proposta foi aceite.
Porém ainda que cada uma das sócias desse à educação das meninas, que lhes confiavam, todo o cuidado e desvelo de que era capaz, o estabelecimento não prosperou, e forçoso foi que acabassem a associação.
Por este tempo, o pai duma das discípulas de miss Henriqueta Smith, abastado negociante de Londres, recebeu do senhor de Malmedie, seu correspondente, uma carta em que lhe pedia para sua sobrinha uma mestra oferecendo a esta vantagens suficientes para compensar os sacrifícios, que ela fazia expatriando-se.
Esta carta foi comunicada a miss Henriqueta, que se achava sem recurso algum, e pouco amor tinha a um país onde não via outro futuro senão perecer de fome.
Henriqueta reputou o oferecimento, que lhe faziam, como um benefício do céu, e embarcou-se no primeiro navio que deu à vela para a ilha de França, recomendada a Malmedie como pessoa distinta e digna da maior estima.
Malmedie recebeu-a e incumbiu-a da educação de sua sobrinha, que tinha então nove anos.
A primeira pergunta de miss Henriqueta a Malmedie foi que educação desejava ele que sua sobrinha recebesse.
Malmedie respondeu que isso não lhe competia, que tinha mandado vir uma preceptora para se livrar desse cuidado, e que a ela, que lhe fora recomendada como pessoa instruída, pertencia ensinar a Sara o que sabia. Acrescentou também, à maneira de post-scriptum, que estando a menina destinada, sem alguma restrição, a ser esposa de seu primo Henrique, era importante que não se afeiçoasse a nenhum outro.
Esta decisão do senhor de Malmedie, acerca da futura união de seu filho com sua sobrinha, tinha por incentivo não só a amizade, que ele professava a ambos, mas também haver Sara, órfã na idade de três anos, herdado quase um milhão, soma que devia duplicar-se durante a tutela de Malmedie.
Sara teve ao princípio muito medo da preceptora, que para ele tinham mandado vir do Ultramar, e, à primeira vista, o aspecto de miss Henriqueta não a tranquilizou muito.
Com efeito, Henriqueta era então uma corpulenta mulher de trinta a trinta e dois anos, a quem o exercício do colégio havia dado esse modo severo e afectado, qualidade inveterada nas preceptoras. O seu olhar grave, a placidez do seu rosto, seus lábios delgados, tinham alguma coisa de automático, que admirava, e seus cabelos, de um louro tirante a ruivo, com muita dificuldade animavam o todo glacial.
Vestida, apertada, penteada desde a manhã, Sara nunca a tinha visto em desalinho, e por muito tempo acreditou que à noite, miss Henriqueta, em vez de se meter na cama, como a maior parte dos mortais ia pendurar-se num guarda-roupa, como as suas bonecas, e dali saía no seguinte dia como para lá tinha entrado na véspera.
Disto resultou que nos primeiros tempos, Sara obedeceu pontualmente à sua mestra, e aprendeu alguma coisa de inglês e italiano.
Pelo que diz respeito a música, Sara era organizada como um rouxinol, e tocava quase naturalmente piano e guitarra, ainda que o seu instrumento favorito, o que a todos os outros preferia, fosse à harpa, de que tirava sons que enlevavam as mais célebres tocadoras da ilha.
Todavia, estes progressos faziam-se sem que Sara perdesse coisa alguma da sua individualidade, e sem que a sua natureza primitiva de algum modo se modificasse.
Da sua parte miss Henriqueta permanecia tal qual Deus e a educação a haviam feito. De sorte que estas duas pessoas tão diferentes viveram juntas, sem que nada cedessem uma à outra.
Ainda assim, como ambas eram dotadas de excelentes qualidades, Henriqueta veio enfim a ter uma profunda afeição à sua discípula e Sara concebeu íntima amizade à sua mestra.
O sinal desta mútua afeição foi dar a perceptora o nome de minha filha a Sara, e esta, achando o nome de miss muito indiferente para o sentimento que lhe inspirava a sua mestra, inventar para ela a denominação de minha amiga Henriqueta.
Porém era sobretudo a respeito dos exercícios do corpo que Henriqueta havia conservado a sua antipática reserva. Efectivamente, a sua educação toda escolástica só havia desenvolvido nela as faculdades morais, deixando às físicas toda a sua inaptidão natural. Por isso, apesar das reiteradas instâncias de Sara, nunca Henriqueta quis montar a cavalo, nem mesmo o pacífico portador da hortaliça, que pertencia ao jardineiro.
Os caminhos estreitos causavam-lhe tais vertigens, que muitas vezes preferia fazer um rodeio de duas léguas a passar junto dum precipício. Enfim, era sempre com grande constrangimento que ela entrava num barco, e logo que este se punha em movimento, a pobre preceptora pretendia ser acometida do enjoo, que a não deixara um momento, durante a viagem de Portsmouth a Porto Luís, isto é, por espaço de mais de quatro meses.
Disto resultava que a vida de Henriqueta passava, a respeito de Sara, em contínuos sustos e que quando ela a viu, afoita como uma amazona, montar nos cavalos de seu primo, veloz como a corça, saltar de rochedo em rochedo, engraçada como uma deidade aquática, andar à superfície da água ou submergir-se por alguns momentos, o seu coração, quase materno, se comprimia de terror, e ela assemelhava-se às galinhas, que chocam cisnes, e que, vendo a sua progénie adoptiva arremeçar-se à água, ficam na margen do rio cacarejando tristemente, para chamar os temerários, que a semelhante perigo se expõem.
Por isso Henriqueta, posto que ia levada num palanquim muito cómodo e seguro, nem por isso estava menos prevenida dos desassossegos que Sara não deixaria, segundo o costume, de lhe fazer experimentar, ao passo que Sara se exaltava com a ideia dos dias felizes que ia passar.
Importa dizer também que a manhã estava linda. Era um desses formosos dias do começo do Outono, porque o mês de Maio, Primavera no nosso país, é o Outono da ilha de França.
À proporção que se adiantavam, a paisagem tornava-se mais agreste, atravessaram, por cima de pontes, cuja fragilidade fazia tremer Henriqueta, as duas nascentes do rio do Amparo, e as cascatas do Tamarino.
Chegada junto da montanha das Três Tetas, Sara perguntou por seu tio e por seu primo, e soube que eles estavam a caçar com seus amigos entre a grande bacia e a planície de S. Pedro.
Enfim, Henriqueta e Sara tornearam o morro da grande Ribeira Negra, e acharam-se defronte da roça do senhor de Malmedie.
Sara começou por visitar os comensais da casa, que havia quinze dias que não tinha visto. Depois foi ver o seu viveiro, vastíssima grade de fio de ferro, que abrangia toda uma moita e continha diversas qualidades de pássaros.
Do viveiro, Sara passou a ver as suas flores, quase todas oriundas da metrópole, que consistiam em angélicas, cravos da China, anémonas, ranúnculos e rosas da índia, e no meio de todas elas se elevava, como a rainha dos trópicos, a linda perpétua do Cabo.
Todas estas flores eram cercadas por sebes de frangipaneiros e de rosas da China, que, como as nossas de todo o ano, florescem nas quatro estações.
Isto era o reino de Sara. O resto da ilha era sua conquista.
Enquanto Sara se demorava nos jardins da fazenda, tudo ia bem para Henriqueta, que achava caminhos areados, frescas sombras e ar embalsamado. Este momento de tranquilidade era porém muito breve.
O tempo de dizer uma palavra de amizade à velha mulata, que estivera ao serviço de Sara, o de dar um beijo na sua rola estimada, o de colher duas ou três flores e pô-las na cabeça, acabava. Findo o passeio, então começavam as aflições da pobre mestra.
No princípio Henriqueta quis resistir ao génio independente de Sara, e moldá-la a prazeres menos vagabundos, mas vendo que isto era coisa impossível, porque Sara lhe fugia, e sem ela ia fazer as suas excursões, de modo que a inquietação da mestra, por causa da sua discípula era ainda maior do que os seus receios, resolveu-se enfim a acompanhar Sara.
É verdade que se contentava quase sempre com assentar-se num lugar elevado, de onde Podia com a vista seguir Sara nas subidas ou descidas, mas ao menos parecia-lhe que a reprimia com o gesto, e que a protegia com a vista.
Desta vez, como sempre, vendo Henriqueta que Sara estava disposta a partir, resignou-se como costumava. Pegou num livro para ler enquanto ela andasse devagar, e preparou-se para acompanhá-la.
Porém Sara havia projectado outra coisa além do passeio, era um banho, que tinha intento de tomar, na linda baía da Ribeira Negra, tão sossegada, tão pacífica, naquela água tão cristalina, que a vinte pés de profundidade se podem ver as madrepérolas que nascem na areia, e toda a família de crustáceos, que andam por entre os seus ramos.
Sara segundo o seu costume, nada havia dito à Henriqueta. Só a velha mulata estava prevenida e devia aguardá-la com o seu vestido de banho no sítio assinalado.
Henriqueta e a sua discípula foram descendo, seguindo as margens da Ribeira Negra, que ia sempre alargando, e no fim da qual se via resplandecer a baía como um vasto espelho.
Nas duas margens da ribeira, altas árvores, como longas colunas, se elevavam, formando com as folhas uma abóbada tão densa, que mal deixava ver o céu, ao passo que as raízes semelhantes a numerosas serpentes, não podendo penetrar nos rochedos que de contínuo rolam do alto do morro, os rodeavam.
A proporção que o rio alargava, as árvores de ambas as margens se inclinavam, aproveitando o intervalo deixado pela água, e formavam uma abóbada semelhante a uma vastíssima barraca. Tudo isto era sombrio, solitário, sossegado, mudo, cheio de melancolia, poesia e mistério.
O único ruído que se ouvia, era o canto rouco do periquito de cabeça cinzenta. Os únicos entes vivos, que ao longe se avistavam, eram alguns desses macacos arruivados, que são o flagelo das plantações, mas que são tão vulgares na ilha que baldadas têm sido todas as tentativas feitas para destruí-los.
Somente de tempos a tempos, amedrontada pela presença de Sara e da sua mestra, uma gaivota verde, com o peito e o ventre branco, dando um pio agudo e lastimoso, se arremeçava das mangueiras, que no rio molhavam seus ramos, atravessava a corrente, veloz como uma seta, luzente como a esmeralda, e ia esconder-se nas mangueiras da outra margem.
Ora estas vegetações dos trópicos, estes ermos, estas harmonias selvagens, que tão bem quadravam entre si, rochedos, árvores e ribeira, era a natureza, que Sara amava, a paisagem, que a sua imaginação primitiva compreendia, o horizonte que não podia reproduzir a pena ou o pincel, mas que em sua alma imaginava.
Henriqueta também não era insensível a este belo espectáculo. Porém seus contínuos receios tolhiam que dele gozasse completamente.
Chegada ao cume de um outeiro, de onde se avistava grande extensão de terra, sentou-se, e depois de convidar, posto que sem esperança de bom êxito, Sara a sentar-se junto dela, viu que esta se afastava, saltando. Então tirou da algibeira o duodécimo tomo de Clarice Harlowe, seu romance estimado, e pela vigésima vez o começou a ler.
Sara continuou a andar ao longo da baía, e em breve desapareceu por detrás dum conjunto de árvores, onde a mulata a estava aguardando com o seu vestido do banho.
Sara adiantou-se até à beira do rio, saltou de rochedo em rochedo, semelhante a uma ave, que se mira na água. Depois, tendo-se assegurado com o tímido pudor de uma ninfa de que tudo em torno dela estava deserto, começou a deixar cair, uns depois dos outros, todos os seus vestidos, para se cobrir com uma túnica de lã branca, à qual, apertada à roda do pescoço e na cintura, lhe descia abaixo do joelho, deixando-lhe os braços e as pernas nuas, e por conseguinte livre de movimentos. Assim, em pé, e vestida com este trajo, Sara parecia a Diana caçadora prestes a entrar no banho.
Para a extremidade de um rochedo sobranceiro à baía, num sítio em que ela é muito funda, Sara encaminhou-se. Afoita e confiando na sua força e habilidade, certa da sua superioridade sobre um elemento em que de algum modo, como Vénus, havia nascido, arremessou-se à água, mergulhou e apareceu não longe do lugar em que se precipitara.
De repente Henriqueta ouviu que a chamavam. Levantou a cabeça, olhou em torno de si, até que ouviu chamar segunda vez. Então dirigiu à vista para a linda banhista, e no meio da baía viu Sara boiando à flor de água.
A primeira resolução da pobre mestra foi chamá-la. Como porém não ignorava que isto seria trabalho baldado, contentou-se com fazer à sua discípula um gesto de desaprovação, e, erguendo-se, aproximou-se da beira do rio, tanto quanto lho permitia o escarpado do rochedo em que estava sentada.
Neste instante a intenção de Henriqueta foi momentaneamente distraída pelos sinais, que lhe fazia Sara, a qual, nadando sempre com uma só mão, estendia a outra para o bosque, indicando que alguma coisa de novo sucedia sob aquelas sombrias abóbadas de verdura.
Henriqueta escutou, e ouviu os latidos remotos de uma matilha de cães. Passado um instante, pareceu-lhe que estes latidos se avizinhavam, e foi confirmada nesta opinião por novos sinais de Sara. Efectivamente, a cada momento o ruído si tornava mais distinto, e em breve se ouviu o ruído de uma rápida carreira pelo meio do bosque. Finalmente, a duzentos passos acima do lugar em que Henriqueta estava assentada, apareceu de repente um formoso veado, que, saindo do bosque, saltou por cima da Ribeira e desapareceu da outra banda.
Um instante depois chegaram os cães, passaram a Ribeira no mesmo sítio em que o veado a saltara, e seguindo-lhe o rasto entranharam-se na floresta.
Sara havia tomado parte neste espectáculo com o júbilo de uma verdadeira caçadora, por isso quando o veado e os cães desapareceram deu um grito de prazer. Mas a este grito respondeu um de terror tão profundo, que Henriqueta, se voltou espavorida.
A velha mulata, semelhante à estátua do pavor, em pé na praia, estendia os braços para um desmarcado tubarão, que, ajudado pelo fluxo, havia entrado na barra, e que, apenas sessenta passos distante de Sara, nadava à flor de água para ela.
Henriqueta não teve força para gritar, e caiu de joelhos.
Ouvindo o grito da mulata, Sara voltou a cabeça, e viu o perigo de que estava ameaçada.
Então, com admirável presença de espírito, encaminhou-se para a parte mais vizinha da margem. Porém esta parte estava afastada pelo menos quarenta passos, e não obstante a força e habilidade com que nadava, era provável que o monstro a alcançasse antes que chegasse a terra.
Neste momento um segundo grito soou, e um negro segurando com os dentes um comprido punhal, saltou do meio das mangueiras, que guarneciam a praia, e de um só arremeço venceu um terço da largura da baía e começando a nadar com força mais que humana, adiantou para tolher o passo ao tubarão, que durante este tempo, e como se estivesse seguro da sua presa, sem apressar os movimentos da cauda, com espantosa rapidez nadava para Sara, que, voltando à cabeça a cada braçada, podia ver avizinhar-se quase com igual velocidade o seu inimigo e o seu defensor.
Houve um momento de terrível espectação para a velha mulata e para Henriqueta, as quais, de um lugar elevado, podiam ver adiantar-se o monstro e o seu adversário. Ambas assombradas, com os braços estendidos, à boca aberta, sem meio algum de socorrer Sara, davam gritos de temor ou esperança, conforme a alternativa. Porém em breve prevaleceu o temor. Não obstante os esforços do nadador, o tubarão adiantou-se-lhe.
O negro estava ainda vinte passos distante do monstro, e este já se achava muito perto de Sara, que pálida como a morte, já sentia o barulho da água a muita curta distância.
Então lançou um derradeiro golpe de vista para a praia, que já não tinha tempo de alcançar. E entendendo que era inútil disputar por mais tempo uma vida condenada, levantou os olhos para o céu, juntou as mãos fora de água, e implorou o auxílio de Deus, que só podia socorrê-la.
A este tempo o tubarão voltou-se para arrebatar a sua presa, e em vez do espinhaço esverdinhado, à superfície da água apareceu o seu ventre prateado.
Henriqueta pôs as mãos nos olhos para não ver o que ia acontecer. Neste momento, ao seu lado direito soou a duplicada detonação de uma espingarda de dois canos. Duas balas, que partiram com a rapidez do relâmpago, duas vezes tocaram na água, e uma voz sossegada e sonora fez, com o acento de satisfação de caçador contente de si, ouvir estas palavras:
— Está ferido!
Henriqueta voltou-se, e, contemplando toda esta cena espantosa, viu um mancebo que, tendo numa das mãos a sua espingarda fumegante, e agarrando-se com a outra a um ramo de caneleira, via inclinado na extremidade de um rochedo as convulsões do tubarão.
Com efeito, havendo recebido duas feridas, o animal voltou em continente sobre si mesmo como para buscar o inimigo invisível, que acabava de o ferir. Então, avistando o negro, que não estava a mais de três ou quatro braças de distância, abandonou Sara para sobre ele se arremessar. Porém ao aproximar-se, o negro mergulhou e desapareceu debaixo de água.
O tubarão mergulhou também. Em breve o mar se agitou pelos movimentos da cauda do monstro, tingiu-se de sangue a superfície da água, e tornou-se evidente que uma luta se havia travado sob as ondas.
Durante este tempo, Henriqueta desceu, ou antes deixou-se escorregar do seu rochedo é chegou à praia, para estender a mão a Sara, que, sem forças e não podendo ainda acreditar que na verdade houvesse escapado a semelhante perigo, mal chegou a terra caiu de joelhos.
Pelo que toca a Henriqueta, apenas viu Sara em segurança, desfalecendo-lhe também as
forças caiu desmaiada.
Logo que ambas tornaram a si, a primeira coisa que viram, foi Laiza em pé, coberto de sangue, com os braços e pernas laceradas, enquanto o cadáver do tubarão andava boiando à flor de água.
Depois disto Henriqueta e Sara ao mesmo tempo, e por um movimento espontâneo, olharam para o rochedo, sobre o qual aparecera o anjo libertador.
Solitário se achava o rochedo. O anjo protector havia-se ausentado, mas não tão veloz, que ambas não tivessem tempo de reconhecê-lo pelo jovem estrangeiro de Porto Luís.
Sara então voltou-se para o negro, que tamanha prova de dedicação acabava de lhe dar. Porém, passado um instante de muda contemplação, este entranhou-se no bosque, e Sara debalde procurou em torno de si. Do mesmo modo que o estrangeiro, o negro havia desaparecido.
O PREÇO DOS NEGROS
No mesmo instante chegaram dois homens, que, de um sítio superior da ribeira, tinham visto parte da cena, que acabámos de referir. Estes dois homens eram Malmedie e seu filho Henrique.
Sara reparou então em que se achava quase nua, e, corando à ideia que fora vista assim, chamou a velha mulata, vestiu um penteador, e encostando-se ao braço de Henriqueta, que ainda palpitava de terror, para seu tio e seu primo se encaminhou.
Eles haviam chegado seguindo o rasto do veado até à beira frente. Este trazia a sua prima o pé do veado, que ele mesmo cortara, para lhe oferecer como um troféu.
Sara agradeceu-lhe esta atenção, e Henrique deu a sua prima os parabéns, porque as lindas cores haviam tão completamente voltado, que qualquer diria. Vendo-a, que não tinha absolutamente sucedido coisa extraordinária, os outros caçadores encorporaram-se a Henrique e fizeram coro.
O jantar foi dos mais divertidos. Henriqueta pediu para ser dispensada de assistir a ele. A pobre mulher tivera tamanho medo, que foi acometida de febre.
Pelo que diz respeito a Sara, estava verdadeiramente, ao menos no exterior, em perfeita tranquilidade, e fez as honras da mesa com a graça que lhe era habitual.
À sobremesa, fizeram-se muitas saúdes, entre as quais, justo é dizê-lo, algumas aludindo ao acontecimento da manhã. Porém, nestas saúdes, não se falou do negro desconhecido, nem do caçador estrangeiro. O milagre foi atribuído à Providência, que queria conservar a Malmedie uma sobrinha e a Henrique uma prima com tanta ternura querida.
Mas se no intervalo das saúdes não se falou de Laiza nem de Jorge, cujos nomes ninguém sabia, todos, em compensação, largamente falaram de suas proezas pessoais. E Sara, com uma ironia encantadora, a cada um distribuiu a parte dos elogios, que lhe era devida por sua destreza e por seu valor.
Terminado o jantar, quando todos se levantavam, entrou o feitor. Vinha este anunciar ao sr. de Malmedie, que um escravo, que fugira, fora apanhado e acabava de chegar à roça.
Como isto era das coisas que quotidianamente sucediam, contentou-se Malmedie com responder:
— Está bom, dá-se-lhe o castigo ordinário.
— Que é isso, meu tio? — perguntou Sara.
— Nada, menina — respondeu Malmedie. E a conversação interrompida prosseguiu.
Dez minutos depois, anunciaram que os cavalos se achavam prontos.
Como o jantar e o baile de Lord Murrey eram no dia seguinte, todos desejavam ter o dia todo para se prepararem para aquela solenidade. Tinha-se, pois, ajustado regressar a Porto Luís logo depois de jantar.
Sara foi ao quarto de Henriqueta. A pobre mestra, sem estar gravemente doente, achava-se ainda de tal modo agitada, que Sara exigiu que ela ficasse na Ribeira Negra. Nesta residência prolongada, alguma coisa lucrava Sara. Em vez de voltar em palanquim, ia a cavalo.
Ao sair a cavalgada, Sara viu três ou quatro negros ocupados em despedaçar o tubarão. A mulata havia-lhes indicado onde o encontrariam, e eles tinham ido pescá-lo para fazerem azeite.
Avizinhando-se do pico das Três Tetas, os caçadores viram de longe todos os negros, que estavam juntos
Chegados que foram ao lugar do ajuntamento, tiveram conhecimento de que este era causado pela espera duma execução, porque é costume, em semelhantes ocasiões, reunir todos os negros da roça e obrigá-los a assistir ao castigo do companheiro que comete o crime.
O delinquente era um moço de dezassete anos, que aguardava, manietado, junto da escada em que havia de ser estendido a hora determinada para o seu castigo. Esta hora, pela veemente rogativa de outro negro, fora deferida até ao momento de passar a cavalgada. O preto, que havia solicitado esta graça, disse que tinha de fazer uma revelação ao sr. de Malmedie.
Com efeito, no momento em que este chegava defronte do paciente, um negro, que junto deste se achava sentado, ocupado em curar uma ferida que tinha recebido na cabeça, levantou-se e foi-se encaminhando para a estrada, mas o feitor tolheu-lhe o passo.
— Que é isso? — perguntou Malmedie.
— É o preto Nazim — respondeu o feitor —, que vai receber os cento e cinquenta açoites a que foi condenado.
— E porque motivo o condenaram a receber esses açoites? — perguntou Sara.
— Porque fugiu — respondeu o feitor.
— Bem sei — disse Henrique. — É aquele preto cuja fuga vieram denunciar-nos.
— É esse mesmo.
— E de que modo o haveis apanhado?
— Esperei um momento em que ele já se achava muito longe da praia para poder alcançá-la, fosse a remos ou a nado. Então meti-me numa boa lancha com oito remadores para ir em sua perseguição, dobrando o cabo de sudoeste. Avistámo-lo a pouco mais ou menos duas léguas ao mar. Como ele só tinha dois braços e nós dezasseis, como a sua canoa era má e nós íamos numa excelente piroga, em breve o alcançámos. Então lançou-se a nado buscando chegar à ilha e mergulhando como um golfinho. Mas finalmente cansou-se. Eu peguei num remo, e quando o vi chegar à superfície da água dei-lhe na cabeça uma pancada tão violenta, que entendi que o fazia mergulhar para sempre. Ainda assim, passado um instante, apareceu à flor da água, mas estava desfalecido. Então foi metido na piroga e bem atado de pés e mãos. Só junto do morro de Brabante é que ele recobrou os sentidos.
— Mas — disse Sara com vivacidade —, esse infeliz acha-se talvez gravemente ferido.
— Não, senhora, não — respondeu o feitor. — Não é mais do que uma arranhadura.
— Pois bem! Então porque se tem demorado tanto em aplicar-lhe o castigo que ele tão bem mereceu — disse Malmedie. — Segundo a ordem que dei já o devia ter recebido.
— Já teria sido castigado, senhor — respondeu o feitor. — Se seu irmão, que é um dos bons trabalhadores, não tivesse afirmado que tinha coisa de importância a dizer-lhes, antes de se executar a ordem. Como haviam de passar por este sítio, e a demora não seria dum quarto de hora, resolvi suspender a execução.
— Fez bem, feitor — disse Sara. — E onde está ele?
— Quem?
— O irmão deste infeliz?
— Sim, onde está? — perguntou o sr. de Malmedie.
— Aqui estou — disse Laiza adiantando-se.
Sara deu um grito de sobressalto, porque no irmão do condenado reconheceu o preto que, pela manhã, se havia tão generosamente arriscado para salvar-lhe a vida
Contudo, coisa admirável! O negro não olhava para Sara, parecia não a conhecer, e, em vez de implorar a sua protecção, continuava a adiantar-se para Malmedie.
Não podia haver engano. As feridas que os dentes do tubarão lhe haviam feito no braço e na perna ainda vertiam sangue.
— Que queres! — perguntou Malmedie.
— Pedir-vos uma graça — respondeu Laiza em voz baixa, para que seu irmão que estava distante vinte passos e guardado por soldados, o não ouvisse.
— O que é?
— Nazim é fraco, está ferido na cabeça e perdeu muito sangue! Pode falecer-lhe a força para sofrer o castigo, que mereceu, e acabar debaixo do azorrague! E vós, senhor, perdereis um negro, que vale bem duzentas patacas...
— Pois bem! Que queres tu dizer?
— Quero propôr-vos uma troca.
— Qual é?
— Mandai-me dar os cento e cinquenta açoites, que ele mereceu. Sou forte, poderei suportá-los. Este castigo não me tolherá de ir amanhã ao trabalho, ao passo que Nazim, eu vo-lo repito, é fraco e morreria.
— Isso não é possível — respondeu Malmedie, enquanto Sara admirada contemplava Laiza.
— E porquê?
— Porque seria uma injustiça.
— Enganais-vos, porque eu é que sou o verdadeiro culpado.
— Tu!
— Sim, eu — disse Laiza. — Eu é que incitei Nazim a fugir. A canoa de que ele se serviu foi feita por mim. Eu é que lhe rapei a cabeça com um vidro, e que lhe dei azeite de coco para untar o corpo. Bem vês pois que não, assim sendo eu é que devo ser punido.
— Enganas-te — respondeu Henrique. — Ambos merecem castigo. Ele por causa da fuga, tu porque o ajudaste a fugir.
— Nesse caso, mandem-me dar os trezentos açoites, que deviam ser distribuídos por ambos.
— Feitor — diz o senhor de Malmedie —, determino que mande dar a cada um desses velhacos cento e cinquenta açoites, e acabamos com isto.
— Um instante, meu tio — disse Sara. — Eu reclamo o perdão destes dois homens.
— E porquê? — pergunta Malmedie admirado.
— Porque este homem é o mesmo que hoje de manhã com tanta intrepidez se arremessou à água para salvar-me.
— Conheceu-me! — exclamou Laiza.
— Porque em vez de castigo, merece uma recompensa — exclamou Sara.
— Se julgais que sou digno de recompensa — disse Laiza —, concedei-me o perdão de Nazim.
— Apre! Apre! — disse Malmedie. — Como te adiantas. Tu é que salvaste minha sobrinha?
— Não fui eu — respondeu o negro. — A não ser o jovem caçador, ela estava perdida.
— Mas ele fez o que pôde para me salvar, meu tio. Lutou com o tubarão — exclamou Sara. — Repare, Veja! Veja aquelas feridas, que ainda vertem sangue.
— Lutei com o tubarão, mas defendendo o meu corpo — prosseguiu Laiza. O tubarão voltou-se para mim, e indispensável foi matá-lo para me salvar.
— Então, meu tio, negar-me-eis o perdão destes homens? — perguntou Sara.
— Sim, por certo — respondeu Malmedie —, porque se uma vez houvesse exemplo de perdão concedido em semelhante ocasião, todos os presos fugiriam, esperando sempre que alguma linda boca como a tua por eles intercedesse.
— Mas, meu tio...
— Pergunta a todos estes senhores se o que pedes é possível — disse Malmedie voltando-se para os jovens que acompanhavam seu filho.
— O facto é, responderam estes, que um perdão semelhante seria um desastroso exemplo.
— Tu ouves, Sara?!
— Mas um homem, que por mim arriscou a vida — disse Sara. — Não deve ser castigado no mesmo dia em que a expôs. Porque, se lhe deve uma punição, eu, devo-lhe uma recompensa.
— Pois bem! Pague cada um a sua dívida. Depois de eu mandar castigar, recompensa-o tu!
— Porém, meu tio, que vos importa, finalmente, o crime, que estes infelizes cometeram. Que dano vos causou, visto que não puderam executar o seu projecto?
— Que dano me causou! Faz-lhes perder uma parte do valor. O preto, que tenta fugir, perde cem por cento do seu preço. Aqui estão dois brejeiros, que ontem valiam, este quinhentas, e aquele trezentas patacas; isto é, oitocentos pesos duros. Ora peça eu hoje seiscentos que ninguém de certo mos dá.
— O caso é que eu agora não os dava — disse um dos caçadores, que acompanhava Henrique.
— Pois eu, senhor, serei mais generoso — disse uma voz, cujo som fez estremecer Sara. — Dou por esses dois pretos mil patacas.
Sara olhou, e reconheceu o estrangeiro de Porto Luís, o anjo libertador do rochedo. Estava em pé, vestido com um elegante trajo de caça e, encostado à sua espingarda de dois canos, tinha ouvido tudo.
— Ah, é o senhor! — disse Malmedie, enquanto um sentimento, que Henrique não podia compreender, lhe fazia subir o rubor ao rosto. — Receba os meus agradecimentos, porque minha sobrinha me disse que lhe devia a vida, e se eu soubesse em que lugar o podia encontrar, teria ido ter consigo não para lhe manifestar toda a minha gratidão, isso era impossível, mas para exprimir-lhe o meu reconhecimento.
O estrangeiro inclinou-se sem responder com ar de desdenhosa modéstia, que não escapou a Sara por isso ela se apressou em acrescentar:
— Meu tio tem razão, senhor, serviços semelhantes não se pagam. Mas esteja certo de que, enquanto eu viver, me lembrarei que lhe devo a vida.
— Duas cargas de pólvora e duas balas de chumbo não valem, senhora, semelhantes agradecimentos. Feliz me reputarei se a gratidão do senhor de Malmedie o induzir a ceder-me pelo preço, que lhe ofereci, os dois pretos de que tenho necessidade.
— Henrique — perguntou Malmedie em voz baixa —, não nos disseram anteontem que estava à vista da ilha um navio negreiro?
— Sim, meu pai — respondeu Henrique.
— Bem — prosseguiu Malmedie falando consigo mesmo —, bem acharemos meio de os substituir.
— Espero a sua resposta — disse o estrangeiro.
— Concerteza, senhor, com o maior prazer! Os pretos são seus, pode recebê-los. Porém no seu lugar, por isso que não trabalham há três ou quatro dias, eu lhes mandaria aplicar hoje mesmo o castigo que mereceram.
— Isso é um assunto meu — disse o desconhecido sorrindo-se. — As mil patacas esta noite serão entregues.
— Engana-se, senhor — disse Henrique. — A intenção de meu pai não é vender, mas sim dar-lhe estes dois homens. A existência de dois miseráveis negros não se pode comparar com uma vida tão preciosa como a de minha prima. Deixe que ele ofereça ao menos o que possuímos e mostra desejar.
— Porém, senhor — disse o estrangeiro levantando a cabeça com altivez, enquanto Malmedie fazia a seu filho um trejeito dos mais significativos —, não foi esse o nosso ajuste.
— Pois bem! Nesse caso — disse Sara —, permita-me que lhe mude alguma coisa, e por amor daquela cuja vida salvou, aceite os dois pretos que nós lhe oferecemos.
— Agradeço-lhe, senhora — disse o estrangeiro. — Seria ridículo insistir mais. Aceito pois, e agora sou eu que me reputo obrigado.
E o estrangeiro em sinal de que não queria por mais tempo demorar na estrada a companhia, deu, inclinando-se, um passo atrás.
Os homens trocaram uma saudação, mas Sara e Jorge um olhar.
A cavalgada passou avante. Jorge com a vista a segui-la já algum tempo com esse franzir de sobrancelhas, que lhe é habitual, quando algum amargo pensamento o preocupava, depois, voltando-se para os negros e aproximando-se de Nazim:
— Mande desprender este homem — disse ele ao feitor. — Porque me pertence, assim como seu irmão.
O feitor, que tinha ouvido a conversação do estrangeiro com Malmedie obedeceu sem dificuldade.
Nazim foi solto e entregue com Laiza ao seu novo senhor.
— Agora, meus amigos — disse o estrangeiro voltando-se para os outros pretos e tirando da algibeira uma bolsa cheia de ouro. — Como recebi uma dádiva do vosso senhor, justo é também que vos dê um presente. Tomai esta bolsa, e repartam entre si o que ela contém.
E dizendo isto entregou a bolsa ao preto, que mais perto de si estava. Voltando-se depois para os dois escravos, que atrás dele em pé se achavam aguardando suas ordens.
— Pelo que vos toca — disse-lhes. — Façam o que quiserem, vão para onde lhe aprouver, são livres.
Laiza e Nazim deram logo mostras duma alegria duvidosa, porque não podiam acreditar em tamanha generosidade da parte dum homem a que nenhum serviço haviam feito. Jorge porém repetiu as mesmas palavras, e então Laiza e Nazim caíram de joelhos, beijando com um transporte de reconhecimento, que não é possível descrever, a mão, que os acabava de libertar.
Pelo que diz respeito a Jorge, como se ia fazendo tarde, pôs na cabeça o seu grande chapéu de palha, que até ali tinha conservado na mão, e deitando ao ombro a espingarda, seguiu o caminho de Moka.
O BAILE
No dia seguinte, como dissemos, é que no palácio do governador devia ter lugar esse jantar e o baile, cujo anúncio havia três dias que trazia revolto Porto Luís.
Quem não tem habitado nas colónias, e mormente na ilha de França, nenhuma ideia faz do luxo, que reina sob o vigésimo grau de latitude meridional.
Com efeito, além de todas as maravilhas parisienses, que atravessam os mares e vão embelezar as ricas e gentis crioulas de Maurícia, têm elas a faculdade de escolher em primeira mão os diamantes de Visapur, as pérolas de Ophir, os xailes de Sião, e as cassas de Calcutá.
Ora, nenhum navio, saído do mundo das Mile uma Noites, se demora na ilha de França, sem lá deixar parte dos tesouros, que para a Europa transporta. Por isso, mesmo para o homem atreito à elegância puríssima, ou à profusão inglesa, é coisa extraordinária o brilhantismo que apresenta uma assembleia naquela ilha.
A sala do palácio, que Lord Murrey mandara inteiramemte renovar, apresentava, pelas quatro horas da tarde. O aspecto duma sala da rua do Mont-Blanc ou de Regent-Street. Toda a aristocracia colonial ali se achava. Os homens vestidos com a simplicidade adoptada pelas modas modernas, as mulheres cobertas de diamantes e pérolas, enfeitadas de antemão para o baile, tendo para distingui-las das europeias só essa delicadeza própria das mulheres crioulas.
A cada nome, que se anunciava. Um geral sorriso acolhia a pessoa, que chegava, porque, no Porto Luís, toda a gente se conhece, e a única curiosidade, que excita uma senhora, quando em qualquer sala entra, é saber-se que vestidos trás, de que fazenda é feito, quais são as suas guarnições e de onde veio.
As senhoras inglesas excitavam principalmente a curiosidade das crioulas, porque, na eterna luta da moda de que é teatro Porto Luís, a grande questão das indígenas é exceder em luxo as estrangeiras.
Os sussurros que se ouviram, quando alguma senhora entrava, era em geral maior e mais prolongado, quando o criado proferia algum nome britânico, cuja áspera consonância discordava tanto com os nomes do país, como contrastavam com as morenas virgens dos trópicos as louras e pálidas filhas do Norte.
Quando alguma pessoa entrava, Lord Murrey, com essa aristocrática civilidade, que caracteriza os ingleses da alta classe, ia ao seu encontro. Se era senhora oferecia-lhe o braço para conduzi-la ao seu lugar, não esquecendo de fazer-lhe os mais urbanos cumprimentos, se era homem, estendia-lhe a mão, dirigindo-lhe ao mesmo tempo palavras obsequiosas. De modo que todos reconheciam o novo governador por um homem estimável. Anunciaram a chegada do senhor de Malmedie, seu filho, e sua sobrinha.
Este anúncio era esperado com impaciência e curiosidade, não só por ser Malmedie efectivamente um dos mais opulentos e consideráveis habitantes da ilha de França, mas também porque Sara era uma das mais ricas e formosas senhoras da ilha.
Por isso todos com a vista acompanharam os movimentos que Lord Murrey fez para ir ao seu encontro, porquanto era ela cujo modo de vestir mais preocupava as belas convidadas.
Contra o uso das crioulas, e contra a geral expectação, o trajo de Sara era dos mais simples: consistia num vestido de cassa da índia, sem nenhum bordado, nenhuma pérola, nenhum diamante. Guarnecido de rosas, uma coroa das mesmas flores lhe cingia a cabeça, e delas tinha na cintura um ramalhete. Não trazia pulseiras, nenhum colar brilhava em seu pescoço.
Somente seus cabelos, finos como seda e pretos como ébano, lhe caíam em longos anéis sobre os ombros, e trazia na mão a ventarola, maravilha da indústria chinesa, que havia comprado a Miko-Miko.
Como acima dissemos, todos na ilha de França se conheciam. De modo que chegado Malmedie, seu filho, e sua sobrinha, já ninguém faltava, visto que todas as pessoas que por sua hierarquia e fortuna costumavam concorrer, se achavam reunidas. Por esta razão, todos deixaram naturalmente de olhar para a porta por onde já ninguém havia de entrar, e no fim de dez minutos de espera, começava cada um a perguntar a si mesmo quem Lord Murrey podia aguardar, quando a porta se abriu, e o criado em voz alta anunciou:
— O senhor Jorge Munier.
O raio, caído no meio daquela assembleia, não teria por certo produzido mais efeito do que este simples anúncio. Todos olharam para a porta ouvindo o nome de Jorge Munier, para ver quem ia entrar. Porquanto, ainda que o apelido de Munier fosse muito conhecido na ilha, Jorge esteve tão largo tempo ausente, que se haviam quase esquecido de que ele existia.
Jorge entrou.
Estava o jovem mulato vestido com simplicidade, mas ao mesmo tempo com muito gosto.
A sua casaca preta muito bem feita, em cuja casa se viam as duas cruzes com que ele fora condecorado, fazia sobressair toda a elegância da sua estatura.
As calças quase justas, deixavam ver formas elegantes e esbeltas, particulares aos homens de cor. Contra o uso destes, não trazia outras jóias além dum cordão de ouro, cuja extremidade ia esconder-se na algibeira do seu colete de acolchoado branco.
Uma gravata preta, sobre que dobrava um colarinho arredondado, adornava-lhe o belo rosto, de que o bigode e seus negros cabelos faziam sobressair a palidez.
Lord Murrey foi ao encontro de Jorge mais longe do que tinha ido ao das outras pessoas, e pegando-lhe pela mão, apresentou-o às senhoras e aos cinco ou seis oficiais ingleses, que na sala se achavam, como um companheiro de viagem, de cuja sociedade só tivera de se aplaudir durante a navegação. Voltando-se depois para o resto dos convidados:
— Senhores — disse ele —, não lhes apresento o senhor Jorge Munier. É vosso compatriota, e a volta dum homem tão distinto como ele deve ser quase uma festa nacional.
Jorge inclinou-se em sinal de agradecimento. Porém qualquer que fosse a atenção devida ao governador, posto que estivesse em sua casa, apenas uma ou duas pessoas tiveram força de proferir algumas palavras em resposta a apresentação, que Lord Murrey acabava de fazer.
Lord Murrey não deu, ou pareceu não dar a isto atenção, e, como o criado anunciou que o jantar estava na mesa, ofereceu o braço a Sara, e todos os convivas se encaminharam para a casa de jantar.
Com o bem conhecido carácter de Jorge, facilmente se conhecerá que não se fizera esperar sem intenção. A ponto de entrar em luta com a preocupação que estava resolvido a combater, quis ver de cara o inimigo, e foi servido à medida do seu desejo. O anúncio do seu nome e a sua entrada produziu todo o efeito que ele podia esperar.
Porém, a pessoa mais agitada de toda a assembleia era indubitavelmente Sara. Sabendo que o jovem caçador da Ribeira Negra chegara a Porto Luís com Lord Murrey, esperou antecipadamente vê-lo, e talvez fosse por causa deste recém-chegado da Europa, que se vestiu com essa simplicidade elegante, tão apreciada entre nós, e que um luxo exagerado substitui muitas vezes nas colónias.
Assim, logo que entrou, procurou por toda a parte com a vista o jovem desconhecido. Um relance de olhos lhe bastou para se assegurar que ele não se achava ali. Então pensou que viria, e que, como haviam de anunciá-lo, saberia desse modo, sem fazer perguntas, o seu nome e a sua posição.
As conjecturas de Sara efectuaram-se. Apenas tomou lugar entre as senhoras, e Malmedie e seu filho se misturaram com os homens, anunciariam Jorge Munier.
A este nome tão conhecido na ilha, mas que ninguém estava costumado a ouvir pronunciar em semelhante circunstância, Sara estremeceu e voltou-se cheia de ansiedade. Com efeito viu aparecer o jovem estrangeiro de Porto Luís, com o modo de andar firme, rosto pálido, olhar imperioso, lábios desdenhosamente levantados e, importa dizê-lo, nesta terceira aparição pareceu-lhe ainda mais gentil e poético que nas duas primeiras.
Então, Sara seguiu com os olhos e com o coração a apresentação que Lord Murrey fez de Jorge à sociedade. Sentiu-se aflita quando a repulsão inspirada pelo nascimento do jovem mulato se manifestou pelo silêncio, e foi quase derramando lágrimas que os seus olhos responderam ao rápido e penetrante olhar que sobre ela Jorge lançou.
Lord Murrey ofereceu-lhe depois o braço, e ela nada mais viu, porque o olhar de Jorge a fizera corar e tornar-se pálida quase ao mesmo tempo. E convencida de que todos a fitavam, apressou-se em ocultar-se por momentos à geral curiosidade.
Sara, porém, estava enganada. Ninguém nela havia pensado, porque, toda a sociedade, à excepção de Malmedie e seu filho, ignorava os dois acontecimentos que a haviam posto em contacto com aquele jovem, e ninguém podia imaginar que houvesse coisa alguma de comum entre Sara de Malmedie e Jorge Munier.
Depois que todos se sentaram à mesa, Sara aventurou-se a olhar em torno de si. Ela estava à direita do governador, que à sua esquerda tinha a mulher do comandante militar da ilha. Em frente estava este comandante sentado entre duas senhoras das famílias mais consideradas da terra.
À direita e à esquerda dessas duas senhoras achavam-se Malmedie e seu filho. Pelo que respeita a Jorge, fosse acaso ou prevenção, estava no meio de duas Inglesas.
Sara respirou. Não ignorava porém que a preocupação que perseguia Jorge não tinha influência no ânimo das estrangeiras, e que era preciso que um habitante da metrópole residisse largo tempo nas colónias para dela chegar a participar. Por isso viu Jorge fazendo do modo mais desembaraçado o seu papel de convidado delicado, entre o sorriso cruzado das duas compatriotas de Lord Murrey, maravilhadas de terem encontrado um vizinho que falava o seu idioma, como se tivesse nascido em Inglaterra.
Dirigindo o olhar para o centro da mesa, Sara notou que os olhos de Henrique estavam fitos nela. Perfeitamente compreendeu o que se passava no ânimo deste jovem, e, por um movimento independente da sua vontade, abaixou os olhos, corando.
Lord Murrey começou a conversar com os seus convidados, falando a cada um da especialidade que lhe podia subministrar respostas mais fáceis, trazendo à memória dos oficiais ingleses alguma gloriosa batalha, à dos negociantes alguma especulação vantajosa, mas no meio de tudo isto dizendo de quando em quando a Jorge algumas palavras, que provavam que em todo o assunto lhe podia falar, e que era uma generalidade intelectual e não a uma especialidade comercial ou guerreira que ele se dirigia.
Deste modo passou o jantar.
Posto que muito modesto, Jorge, com a sua rápida inteligência havia respondido ao governador de maneira que provou aos oficiais que como eles tinha feito a guerra, e aos negociantes, que não era estranho às grandes operações comerciais, que de todo o mundo fazem uma só família, unida pelo vínculo dos interesses.
No meio desta conversação, tinham sido proferidos os nomes de todos os homens, que, em França, Inglaterra e Espanha, ocupavam uma elevada posição, seja em política, na aristocracia, ou nas artes, sendo cada nome acompanhado duma dessas observações, que indicam que quem fala o faz com perfeito conhecimento do carácter, génio ou posição dos homens que nomeia.
Ainda que estas diversas conversações houvessem, se é lícito expressar-nos assim, passado por cima da cabeça do comum dos convidados, entre eles estavam alguns homens assaz distintos para compreenderem a superioridade com que Jorge em tudo havia falado. Por isso, se bem que o sentimento de repulsão, que ao jovem mulato se tinha manifestado, fosse quase o mesmo, a admiração havia aumentado, e com ela, no coração de alguns entrou a inveja.
Henrique principalmente, preocupado com a ideia de que Sara havia reparado em Jorge mais do que convinha à sua posição de prometida em casamento, e à sua dignidade de mulher branca, sentia nascer-lhe no fundo da alma um sentimento de desprazer, de que não era senhor. Ao nome de Munier, as recordações da infância renovaram se, lembrou-se do dia em que, querendo tirar a bandeira das mãos de Jorge, seu irmão Tiago lhe dera no meio do rosto um murro violento.
Todas estas antigas culpas dos dois irmãos vinham ao pensamento de Henrique, e a ideia de que Sara na véspera fora salva por Jorge, em vez de abafar a voz acusadora do passado, aumentava ainda a sua aversão ao jovem mulato.
Pelo que toca a Malmedie pai, esteve, enquanto durou o jantar, entretido com o seu vizinho, numa profunda dissertação sobre um novo modo de refinar o açúcar, que devia dar ao produto das suas terras mais um terço do valor.
Disto resulta que passada a primeira admiração de achar em Jorge o salvador de sua sobrinha, e de o encontrar em casa de Lord Murrey, Malmedie não lhe deu mais atenção.
Mas não sucedia o mesmo a Henrique, que não havia perdido uma palavra das interpretações de Lord Murrey e das respostas de Jorge, em cada uma das quais reconheceu muito juízo e uma concepção superior. Estudou o olhar firme, intérprete da vontade absoluta de Jorge, e compreendeu que já não era, como no dia da partida, uma criança oprimida, que à sua vista se apresentava, mas sim um antagonista poderoso, que zombava dos seus golpes.
Se Jorge, quando voltou à ilha de França, houvesse humildemente tornado à condição que aos olhos dos brancos a natureza, lhe assinara, e deste modo se tivesse perdido na obscuridade do seu nascimento, Henrique nele não teria reparado ou neste caso não conservaria rancor pelas afrontas que catorze anos antes lhe fizera. Mas o orgulhoso mancebo havia aparecido fazendo um importante serviço à sua família. Vinha, como seu igual em hierarquia e superior na inteligência, sentar-se à mesa com ele. Era isto mais do que podia suportar Henrique, que interiormente lhe declarou guerra.
Por isso, quando todos se levantaram da mesa e foram para o jardim, Henrique se chegou a Sara, que se havia, com algumas senhoras, assentado debaixo duma parreira paralela a outra sob a qual os homens tomavam café. Sara estremeceu, persuadida de que no que seu primo tinha a dizer-lhe indubitavelmente falaria de Jorge.
— Então! Minha bela prima — disse Henrique encostando-se ao espaldar da cadeira de bambu em que ela estava sentada —, o que é que achou do jantar?
— Não é, presumo eu, debaixo do ponto de vista material que me faz essa pergunta — respondeu Sara a sorrir.
— Não, minha querida prima, ainda que talvez, para alguns dos nossos convidados, que não se alimentam como Sara, de orvalho, ar e perfumes, não fosse uma pergunta intempestiva, a que lhe faço, é debaixo do ponto de vista social.
— Pois bem eu achei o jantar cheio de bom gosto, Lord Murrey pareceu-me fazer admiravelmente as honras da mesa, e que se mostrou tão amável quanto era possível para com todos.
— Sim, certamente! Mas sobremaneira me admiro de que um homem tão distinto como ele praticasse para connosco a inconveniência que cometeu.
— Que inconveniência? — perguntou Sara, que bem entendia onde seu primo queria chegar, e que, fazendo-lhe esta pergunta, nele fitou os olhos.
— Pôr Jorge Munier connosco à mesa — respondeu Henrique algo um tanto confuso não só do olhar fito de sua prima, mas também da voz que à consciência lhe falava.
— Há uma coisa, que não me admira menos, Henrique. É que não deixasse a qualquer outro o cuidado de fazer mormente a mim, essa observação.
— E porque motivo, minha prima há-de ela ser vedada só a mim?
— Porque, se não fosse esse Munier, cuja presença reputa tão pouco conveniente aqui, vós e vosso pai, supondo que se veste luto por uma sobrinha, e que merece ser chorada uma prima, estariam derramando lágrimas cobertos de luto.
— Conheço — respondeu Henrique corando —, toda a gratidão, que devemos a Jorge, por haver salvado uma vida, tão preciosa como a vossa. E bem viu homem, quando, ele quis comprar os dois pretos, que meu pai mandara castigar, que eu logo lhos dei.
— E mediante a dádiva destes dois pretos desobrigado se julga para com ele. Agradeço-lhe meu primo, avaliar em duas mil patacas a vida, de Sara de Malmedie.
— De que modo singular, minha querida prima — disse Henrique —, interpreta hoje as coisas! Tive porventura a ideia, de assinar preço, a uma existência pela qual daria a própria? Não. A minha intenção foi só fazer-lhe observar a falsa posição em que Lord Murrey poria uma senhora, que, por exemplo, Jorge Munier convidasse para dançar.
— Segundo a sua opinião, Henrique, essa senhora devia recusar.
— Certamente.
— Sem ponderar que recusando comete para com um homem, que nada lhe fez ou que talvez lhe prestasse algum pequeno serviço, uma dessas ofensas de que ele deve necessariamente pedir satisfação ao pai, irmão, ou marido.
— Eu presumo que, dado esse caso, Jorge se lembraria de quem é, e faria a justiça de acreditar que um branco não desce até a lutar com um mulato.
— Desculpe, meu primo, atrever-me a enunciar opinião em semelhante assunto — replicou Sara. — Mas, ou pelo pouco que vi, compreendi mal Jorge, ou penso que tratando-se de vingar a sua honra, um homem, que, como ele, no peito traz pendentes duas cruzes, não se deteria pelo sentimento de humildade que lhe atribue.
— Em todo o caso espero, minha prima — disse Henrique, com o rubor da cólera no rosto —, que o receio de me expor, e a meu pai, à ira de Jorge não lhe fará cometer a imprudência de dançar com ele, se tiver a ousadia de a convidar?
— Não dançarei com pessoa alguma — respondeu Sara com indiferença, levantando-se e indo dar o braço à senhora inglesa, que à mesa estivera ao lado de Jorge e era uma das suas amigas.
Henrique ficou um instante atarantado com esta resolução, que não esperava. Depois foi misturar-se com as jovens crioulas em quem achou, por suas ideias aristocráticas, certamente mais simpatia do que encontrara em sua prima.
Durante este tempo, Jorge conversava com alguns negociantes ingleses, que não participavam da preocupação de seus compatriotas.
Deste modo passou uma hora, tempo em que se fizeram todos os preparativos do baile. Então foram abertas as portas, que deram entrada para os quartos de que se haviam tirado os móveis, e que estavam alumiados por numerosas luzes. No mesmo instante a orquestra deu o sinal de contradança.
Sara fizera sobre si mesma um esforço violento condenando-se a ver dançar as suas companheiras, porque, como já dissemos, gostava da dança. Porém todo o ódio do sacrifício, que fazia, recaiu sobre quem lho havia inspirado, enquanto que, pelo contrário, um sentimento mais terno e profundo que nenhum dos que nunca havia experimentado, começava a nascer em sua alma a favor do homem por quem fazia aquele sacrifício, porque é uma das sublimes qualidades das mulheres, que a sociedade reputa fracas, mostrar muito interesse por quem se oprime, e grande admiração por quem não se deixa oprimir.
Por isso, quando Henrique, esperando que sua prima não resistisse ao atractivo da dança, a convidou, apesar da resposta que ela lhe dera, para dançar com ele a primeira contradança, segundo o costume, Sara se contentou com responder-lhe: — Já sabe que não danço esta noite, meu primo.
Henrique mordeu os beiços até verterem sangue, e, por um movimento instintivo, com a vista procurou Jorge, que dançava com a inglesa a que dera o braço quando foram para a mesa.
Por um sentimento, que nada tinha todavia de simpático, os olhares de Sara haviam tomado a mesma direcção que os de Henrique. O seu coração comprimiu-se.
Jorge estava a dançar com outra, e não pensava talvez em Sara, que acabava contudo de lhe fazer um destes sacrifícios de que ainda na véspera se julgaria incapaz por quem quer que fosse.
O tempo que durou esta contradança, foi para Sara muito doloroso.
Terminada que foi a contradança, não pôde Sara, com pesar seu, abster-se de seguir Jorge com o olhar.
Foi conduzir ao seu lugar a senhora inglesa.e pareceu depois procurar alguém com a vista. Era efectivamente Lord Murrey que buscava.
Mal o viu foi ter com ele, disse-lhe algumas palavras e ambos se encaminharam para onde estava Sara, que sentiu reconcentrar-se-lhe no coração todo o sangue.
— Senhora — disse Lord Murrey —, apresento-lhe um meu companheiro de viagem que, talvez reverencioso em demasia para com os nossos costumes da Europa, não se atreve a convidá-la para dançar antes de ter a honra de travar conhecimento consigo. Permita-me, pois, que lhe apresente o Sr. Jorge Munier, um dos homens mais distintos que conheço.
— Esse receio do sr. Jorge, milord, é exagerado — respondeu Sara —, porque já nos conhecemos. No dia da sua chegada prestou-me um serviço, ontem ainda fez mais, salvou-me a vida.
— Pois o jovem caçador, que teve a fortuna de se achar a ponto de atirar ao tubarão enquanto estava a tomar banho, é o sr. Jorge?
— Ele mesmo, milord— respondeu Sara corando, por lhe vir então ao pensamento que Jorge a vira com o seu trajo de banho. — E ontem estava ainda tão perturbada, que mal tive força de manifestar ao sr. Jorge os meus agradecimentos, porém, hoje, renovo-os tanto mais vivos quanto é à sua destreza e sangue do que devo o prazer de assistir hoje à sua festa, milord.
— E nós lhe juntamos os nossos — disse Henrique, que se tinha aproximado do pequeno grupo de que sua prima era o centro —, porque ontem também estávamos tão preocupados com aquele acidente, que apenas tivemos a honra de dizer ao sr. Jorge algumas palavras.
Jorge, que nada havia dito ainda, mas cujo olhar penetrante tinha lido no íntimo do coração de Sara, inclinou-se em sinal de agradecimento, mas sem responder a Henrique.
— Então espero que a petição que o sr. Jorge queria apresentar-lhe não careça agora da minha intervenção — disse Lord Murrey. — E eu deixo que o meu protegido se explique.
— Creio — disse Jorge inclinando-se segunda vez — que Miss Malmedie me concederá a honra de dançar comigo uma contradança.
— Espero, senhor, que disso me dispense — disse Sara. — Há pouco recusei o mesmo pedido a meu primo, porque não fazia tenção de dançar esta noite.
Jorge sorriu com o ar dum homem que decifra tudo, e lançou sobre Henrique um olhar tão desdenhoso, que Lord Murrey compreendeu que entre estes dois homens existia um ódio inveterado. Porém conservou esta observação no íntimo do seu coração, e como se nada houvesse notado.
— Será porventura um resto do seu terror de ontem — disse ele a Sara —, que reage sobre os seus prazeres de hoje?
— Sim milord, sinto-me bastante incomodada para pedir a meu primo que queira dizer a meu tio que desejo retirar-me e que espero que ele me acompanhe a casa.
Henrique e Lord Murrey fizeram ao mesmo tempo um movimento para obedecer ao desejo de Sara.
— Tem um generoso coração, minha senhora — disse Jorge a meia-voz, agradeço-lhe. Sara estremeceu e quis responder, mas já Lord Murrey se havia aproximado, de modo que!
não fez mais do que trocar um olhar com Jorge quase a seu pezar.
— Está com efeito decidida a abandonar-nos, minha senhora? — disse o governador.
— Sim milord— respondeu Sara. — Quizera poder demorar-me, mas sinto-me realmente incomodada.
— Nesse caso, haveria em mim egoísmo detê-la. E como provavelmente a carruagem do senhor de Malmedie não estará à porta, vou dar ordem para aparelharem a minha.
E dizendo isto, Lord Murrey afastou-se.
— Sara — disse Jorge —, quando parti da Europa para voltar a esta terra, era o meu único desejo encontrar aqui um coração como o seu mas, não o esperava.
— Senhor — respondeu Sara —, a seu pesar dominada pelo som da voz de Jorge, não sei o que quer dizer.
— Quero dizer que no dia da minha chegada tive um sonho, e que se este sonho se realizar, serei o mais ditoso dos homens.
E sem esperar a resposta de Sara, Jorge inclinou-se respeitosamente, e vendo que Malmedie, e seu filho se avizinhavam, com eles a deixou.
Cinco minutos depois, milord Murrey voltou, anunciou a Sara que estava pronta a carruagem e ofereceu-lhe o braço para atravessar a sala. Chegando à porta, Sara lançou um último olhar de saudade para o baile, onde esperara gozar tanto prazer. E desapareceu.
Este olhar, porém, havia encontrado o de Jorge, que parecia dever seguir Sara por toda a parte.
Voltando de acompanhar mademoisele Malmedie à carruagem, o governador encontrou Jorge, na antecâmara dispondo-se a ausentar-se.
— Também o senhor — disse Lord Murrey.
— Sim, milord. Não ignora que actualmente estou a morar em Moka, e que tenho, por conseguinte, quase oito léguas a caminhar.
— Não teve nada de particular com Henrique de Malmedie? — perguntou o governador com ar de interesse.
— Não, milord. Ainda não — respondeu Jorge sorrindo. — Mas segundo toda a probabilidade, não tardará.
— Ou eu estou muito enganado, meu amigo — disse o governador —, ou são antigas as causas da sua inimizade com esta família.
— Sim milord. São desavenças de crianças, que se têm convertido em ódio de homens. Picadas de alfinetes, que se hão-de tornar em estocadas.
— E não há meio de compor isso? — perguntou o governador.
— Julguei, milord, que catorze anos de domínio inglês haviam acabado a preocupação que eu voltava a combater. Enganei-me, ao atleta só resta untar-se com óleo e descer ao circo.
— Não encontrará aí mais moinhos que gigantes, meu caro D. Quixote?
— Constituo-o juiz — disse Jorge sorrindo. — Ontem, salvei a vida de Sara de Malmedie!... Sabe o modo por que seu primo hoje me agradeceu?
— Não.
— Proibindo-a de dançar comigo.
— Isso é impossível!
— É como tenho a bondade lhe dizer, milord.
— E porque razão se houve ele assim?
— Porque eu sou mulato,
— E que tem tenção de fazer?
— Eu?
— Desculpe a minha indiscrição, mas sabe o interesse que tomo pela sua pessoa. E além
disto somos amigos.
— O que tenho tenção de fazer? — disse Jorge sorrindo-se.
— Sim, deve ter concebido algum projecto.
— Esta noite mesmo formei um.
— Qual é? Comunique-mo e dir-lhe-ei se o aprovo.
— É que no prazo de três meses serei esposo de Sara de Malmedie.
E antes que Lord Murrey tivesse tempo de aprovar ou desaprovar, Jorge saudou-o e saiu. A porta, um criado estava-o aguardando com os seus dois cavalos árabes.
Jorge cavalgou num deles, e a galope seguiu o caminho de Moka.
Entrando em casa, perguntou por seu pai mas disseram-lhe que tinha saído às sete horas da noite, e que não havia ainda voltado.
O NAVIO NEGREIRO
No dia seguinte pela manhã, foi Pedro Munier, quem primeiro entrou no aposento de seu filho.
Jorge, depois da sua chegada, havia muitas vezes corrido a magnífica fazenda que seu pai possuía. E com as suas ideias de indústria europeia, tinha manifestado vários projectos de melhoramento, que na sua capacidade prática o pai havia no mesmo instante compreendido. Porém estes projectos requeriam aumento de braços, e a abolição do comércio público de escravatura tinha de tal modo feito subir o preço dos escravos, que não havia meio, sem grandes sacrifícios, de obter na ilha os cinquenta ou sessenta negros de que o pai e o filho careciam.
Pedro Munier tinha na véspera, quando estava ausente, recebido com júbilo a nova de que se avistava um navio negreiro, e segundo o costume então adoptado entre os colonos e comerciantes de pretos, tinha ido durante a noite à costa, para responder aos sinais do navio com outros sinais, que indicassem que havia quem quisesse tratar.
Os sinais tinham sido feitos de ambas as partes, e Pedro Munier vinha anunciar a Jorge esta boa nova.
Ajustou-se pois que, à noite, o pai e o filho se encontrassem pelas nove horas na Ponta-das-Cavas, por baixo do Pequeno Malabar.
Feito este ajuste, Pedro Munier saiu para ir inspeccionar, como costumava, os trabalhos da fazenda, e também conforme o seu costume, Jorge pegou na sua espingarda e encaminhou-se para os bosques para se entregar às suas ideias.
O que Jorge na véspera dissera a Lord Murrey não era basófia, mas sim uma resolução tomada o estudo de toda a vida do jovem mulato tinha sido dar à sua vontade a força e a persistência do génio.
Chegado em tudo a uma superioridade, que, favorecida pela sua fortuna, lhe teria assegurado em França ou Inglaterra, em Paris ou em Londres, uma existência distinta, Jorge quis regressar à ilha de França, porque lá existia a preocupação, que o seu valor se julgava destinado a combater, e que o seu orgulho entendia poder vencer.
Ele voltava, pois, tendo por si a vantagem do incógnito, podendo estudar o seu inimigo sem que este soubesse a guerra que no fundo da sua alma lhe havia declarado, prestes a atacá-lo quando ele menos o esperasse, e a travar essa luta em que devia sucumbir um homem ou uma ideia!
Encontrando os mesmos homens, que deixara, Jorge compreendeu uma verdade de que mais duma vez duvidara na Europa. É que todas as coisas na ilha de França eram as mesmas, posto que catorze anos houvessem passado que a ilha, em vez de ser francesa, fosse inglesa, e em vez de se chamar ilha de França, se chamasse Maurícia.
Então preparou-se para o duelo moral, que fora buscar, como qualquer se prepara para um duelo físico, ou com a espada na mão esperou a ocasião, que se oferecesse, de dar ao seu adversário o primeiro golpe.
Porém, como César Bórgia que no seu génio havia, no ensejo da morte de seu pai, previsto tudo para a conquista da Itália, excepto que nessa época estaria moribundo, Jorge achou-se empenhado dum modo que não pudera conjecturar, e ferido ao mesmo tempo que queria ferir.
No dia da sua chegada a Porto Luís, o acaso fizera-o encontrar uma gentil menina cuja lembrança, a seu pesar, havia conservado.
Depois disto a Providência encaminhara-o a salvar a vida daquela em quem vagamente pensava desde que a vira.
Finalmente, a fatalidade havia-os reunido na véspera, e um olhar, no mesmo momento em que conhecia que amava, lhe dissera que era amado.
Desde então a luta para ele tomava novo interesse, interesse a que a sua felicidade se achava duplicadamente ligada, visto que no porvir ela tinha lugar não só em proveito do seu orgulho, mas também do seu amor.
Mas ferido, como dissemos, no momento do combate, Jorge perdia a vantagem do sangue frio, verdade é que de outra parte ganhava a veemência da paixão.
Porém, se numa existência enervada, se num coração abatido como o de Jorge, a vista de Sara produzira a impressão que dissemos, o aspecto do mancebo e as circunstâncias em que este sucessivamente lhe apareceu, haviam causado uma impressão diferente na existência juvenil e na alma virgem daquela donzela.
Educada, desde o dia em que perdera seus pais, em casa de Malmedie, destinada, desde essa época, a duplicar por seu dote a fortuna do herdeiro da casa, Sara tinha-se habituado a reputar Henrique como seu futuro marido, e havia-se tanto mais facilmente sujeitado a esta perspectiva, quanto Henrique era um gentil mancebo, nomeado entre os mais ricos e elegantes colonos não só de Porto Luís, mas de toda a ilha.
Pelo que toca aos outros mancebos amigos de Henrique, desde muito largo tempo os conhecia ela para conceber a ideia de distinguir algum. Eram eles, para Sara, amigos da sua juventude que deviam, durante o resto da sua vida, acompanhá-la tranquilamente com a mesma amizade.
Sara estava pois nesta perfeita quietação de alma, quando, pela primeira vez viu Jorge. Na vida duma senhora nova um gentil mancebo desconhecido é em toda a parte um acontecimento, e com muita mais razão o é, como bem se compreende, na ilha de França.
A figura do jovem estrangeiro, o som da sua voz, as palavras por ele proferidas ficaram, sem que Sara soubesse porquê, na sua memória, assim como fica uma ária que só uma vez foi ouvida, e todavia se repete no pensamento. Sara teria, por certo, no fim de alguns dias, esquecido este acontecimento, se tornasse a ver o mancebo em circunstâncias ordinárias. Talvez mesmo um exame mais detido como o que consigo traz um segundo encontro, em vez de ligar este mancebo intimamente à sua vida o houvesse dela inteiramente desunido. Mas não sucedeu assim. Deus havia decidido que Jorge e Sara se tornassem a ver num momento supremo. A cena da Ribeira Negra havia tido lugar. À curiosidade, que acompanhara a primeira aparição tinha acrescido a poesia e a gratidão, que rodeava a segunda. Num instante, Jorge havia-se transformado aos olhos de Sara.
O estrangeiro desconhecido tinha-se tornado um anjo libertador. Jorge evitara todas as dores causadas pela morte de que Sara tinha sido ameaçada, havia-lhe dado, no momento em que ela ia perder tudo, os prazeres, felicidade e porvir, que na idade de dezasseis anos a vida promete. Enfim, quando tendo-o visto apenas, tendo-lhe apenas falado, ia encontrar-se com ele e manifestar toda a gratidão que sua alma continha, vedavam-lhe conceder a este homem o que a qualquer outro não negaria. E mais ainda, queriam que lhe fizesse um insulto, que a ninguém faria. Então o reconhecimento, reprimido no seu coração, converteu-se em amor. Um simples olhar disse tudo a Jorge, uma palavra de Jorge tudo disse a Sara que nada pôde negar, e Jorge tinha o direito de acreditar tudo. Depois da impressão veio a reflexão. Não pôde Sara abster-se de comparar o procedimento de Henrique, seu futuro esposo, com o deste estrangeiro, que nem mesmo era para ela simples conhecido. No primeiro dia, as zombarias de Henrique acerca do desconhecido tinham-na desgostado. A indiferença daquele moço, correndo após o veado quando a sua prometida esposa mal escapara dum perigo mortal, tinha magoado o seu coração. Enfim, esse tom imperioso, com que no baile Henrique lhe falara, tinha ofendido o seu orgulho. De modo que durante aquela noite, que devia ser alegre, e que Henrique tornara triste, Sara pela primeira vez se interrogou, e pela primeira vez conheceu que não amava seu primo.
Então sucedeu o que em tal caso sucede. Sara depois de haver olhado para si, examinou o que a rodeava. Na balança do interesse pesou o procedimento de seu tio para com ele. Lembrou-se de que possuía milhão e meio, isto é de que tinha quase o dobro de riqueza de seu primo, a si perguntou se porventura teria seu tio por ela pobre e órfã os mesmos cuidados, as mesmas atenções, as mesmas ternuras que tivera pela opulenta herdeira, e na adopção do senhor de Malmedie não viu mais do que o cálculo dum pai, que a seu filho prepara um casamento conveniente. Tudo isto era sem dúvida um pouco severo, mas assim são feitos os corações feridos, o reconhecimento evapora-se pela ferida, e a dor que fica torna-se um rigoroso juiz.
Tudo isto Jorge havia conjecturado, e sobre este ponto contara para advogar a sua causa e deteriorar a do seu rival.
Por isso, depois de meditar bem, resolveu não empreender coisa alguma naquele dia, se bem que no seu coração sentisse veemente desejo de tornar a ver Sara.
Eis porque ele saiu de espingarda ao ombro, esperando encontrar na caça uma distracção, que lhe ajudasse a passar o dia.
Porém Jorge enganou-se. Já ao seu coração falava mais do que outro qualquer sentimento o amor a Sara. De modo que pelas quatro horas, não podendo por mais tempo resistir ao desejo, não diremos de a ver, porque não tinha a faculdade de ir a sua casa, era só por acaso, que podia encontrá-la, mas à necessidade de falar com ela, mandou selar o seu cavalo Yambo, e soltando as rédeas ao veloz filho da Arábia, em menos de uma hora achou-se na capital da ilha.
Com uma só esperança ia Jorge a Porto Luís; porém esta esperança estava, como dissemos, sujeita ao acaso, que foi desta vez inflexível.
Debalde passou Jorge por todas as ruas vizinhas à casa de Malmedie. Debalde atravessou duas vezes o jardim da companhia, passeio dos habitantes em Porto Luís. Debalde três vezes andou de roda do Campo-de-Marte, onde tudo se preparava para as próximas corridas, em nenhuma parte se viu, nem de longe, senhora alguma, cujo ar o pudesse iludir.
Pelas sete horas, Jorge perdeu toda a esperança, e desconsolado como se houvesse sofrido uma desgraça, tomou o caminho da Ribeira-Grande, mas ia a passo demorando o cavalo, porque se afastava de Sara, que não havia adivinhado que dez vezes Jorge passara apenas cem passos distante dela.
Atravessava ele o campo dos pretos libertos, situado fora da cidade, quando um homem de repente saiu duma barraca e correu a segurar o estribo de seu cavalo, abraçando Jorge pelos joelhos e beijando-lhe a mão. Era o mercador chinês, o homem da ventarola, era o MikoMiko.
No mesmo instante Jorge vagamente compreendeu o partido, que podia tirar deste homem, cujo negócio lhe dava a faculdade de entrar em todas as casas, e que nenhum receio inspirava, pela sua ignorância do idioma.
Jorge apeou-se e entrou na loja de Miko-Miko, que logo lhe mostrou quanto nela havia.
Não era fingido o sentimento que ele votara a Jorge, e que do íntimo do seu coração a cada palavra escapava.
Miko-Miko, à excepção de dois ou três compatriotas mercadores como ele, e por conseguinte, senão seus inimigos rivais pelo mesmo, ainda não havia encontrado em Porto Luís com quem falasse a sua língua.
Por isso perguntou a Jorge de que modo podia pagar-lhe a felicidade de que lhe era devedor.
Muito simples era o que Jorge tinha a pedir-lhe. Consistia numa planta do interior da casa de Malmedie, para saber por que modo poderia chegar até junto de Sara.
Às primeiras palavras de Jorge, Miko-Miko compreendeu tudo. Já dissemos que os chineses eram os judeus da ilha de França.
Para facilitar as negociações de Miko-Miko com Sara e talvez também com outra intenção, Jorge escreveu num dos seus bilhetes de visita os preços dos diversos objectos, que a podiam tentar, e recomendou a Miko-Miko que não deixasse ver aquele bilhete senão a Sara.
Depois disto, ele deu ao mercador uma onça de oiro, prescrevendo-lhe que no dia seguinte pelas três horas da tarde estivesse em Moka.
Miko-Miko prometeu encontrar-se ali, e obrigou-se a levar de imaginação uma planta da casa, tão exacta como a que poderia fazer um engenheiro.
Jorge, visto que eram oito horas e que às nove devia encontrar-se com seu pai na Ponte das Cavas, tornou a cavalgar e seguiu o caminho da Ribeira Pequena, com o coração mais aliviado, tão pouco se precisa em amor para mudar a cor do horizonte.
Era noite fechada quando Jorge chegou ao ponto dado. Seu pai, segundo o costume que havia adoptado»com os brancos, de ser sempre o primeiro, lá se achava havia já dez minutos.
Às nove horas e meia nasceu a lua. Era este o momento, que Jorge e seu pai esperavam.
Em continente os seus olhos dirigiram-se para o espaço entre a ilha Bourbon e a da Arêa, e ali viram três vezes cintilar um relâmpago. Era, como de costume, um espelho reflectindo os raios da lua.
A este sinal bem conhecido dos colonos, Telémaco, que havia acompanhado seus senhores, acendeu na praia um fogo, que cinco minutos depois apagou, e todos ficaram aguardando.
Meia hora não era passada, quando no mar viram começar a aparecer uma linha negra, semelhante a algum peixe, que à flor da água nadasse. Esta linha foi aumentando e tomou a aparência duma canoa.
Muito pouco tempo depois descobriram uma grande lancha e começaram a ver, pelo tremor dos raios da lua no mar, a acção dos remos na água, posto que não ouvissem ruído, que eles faziam.
Enfim a lancha entrou na enseada da Ribeira Pequena, e foi tomar terra no portinho adiante do Fortim.
Jorge e o pai pela praia foram-se adiantando, e o homem que de longe tinham visto assentado à popa havia já desembarcado.
Depois dele saltou em terra uma dúzia de marinheiros armados de mosquetes e machados.
O homem, que primeiro desembarcara, fez-lhes um sinal, e eles foram desembarcando os negros.
Trinta vinham deitados na lancha. Outra lancha devia ainda chegar com um número igual.
Então os dois mulatos e o homem, que saltara primeiro em terra, aproximando-se trocaram algumas palavras, das quais resultou ficarem Jorge e seu pai convencidos de que tinham diante de si o próprio capitão do navio negreiro.
Era este um homem de trinta a trinta e dois anos pouco mais ou menos de alta estatura e com todos os sinais de força física levada a esse grau que naturalmente inspira respeito. Tinha o cabelo preto e crepo e a barba passada por baixo do queixo, e com ela pegava o bigode. A sua cara e mãos, crestadas pelo sol dos trópicos, haviam chegado à cor dos índios de Timor ou do Peru.
Trajava jaleco e calças duma fazenda azul particular aos caçadores da ilha de França e como estes trazia também um grande chapéu de palha e uma espingarda ao ombro. Da cintura pendia-lhe, de mais que aos ditos caçadores, um chifarote curvo, ao modo das espadas árabes, porém mais largo e com um punho como o das claymores escocesas.
Se o capitão do navio negreiro tinha sido objecto dum atento exame da parte dos dois habitantes de Moka, também estes dele haviam sofrido uma investigação não menos completa.
Os olhos do comerciante de pretos dirigiam-se de um ao outro com igual curiosidade, e pareciam, a proporção que mais os examinava, que menos podiam afastar-se deles.
Certamente Jorge e seu pai, ou não reparava nesta persistência ou entenderam que não devia ela inquietá-los, porque começaram o contrato para que ali tinham ido, examinando cada um dos negros chegados na primeira lancha, os quais eram quase todos da costa ocidental de África, isto é da Senegâmbia e do Guidria, circunstância, que sempre lhes dá maior valor, porque não tendo, como os Cafres e Moçambiques, esperança de regressar à sua pátria, quase nunca tentam fugir.
Ora, como apesar desta causa de aumento de valor, o capitão foi muito razoável nos preços, estavam vendidos os pretos vindos na primeira, quando a segunda lancha chegou.
Sucedeu a respeito desta o mesmo que com a primeira. O capitão estava admiravelmente sortido, mostrava ser profundo conhecedor naquele comércio.
Era isto uma verdadeira boa fortuna para a ilha de França, aonde ele ia exercer pela primeira vez o seu negócio, havendo até então mais particularmente carregado para as Antilhas.
Desembarcados que foram todos os negros e concluído o contrato, Telémaco, que era congolês, a eles se chegou e fez-lhes um discurso na sua língua materna. Este discurso tinha por objecto gabar-lhes a bondade da sua vida futura, comparada com a que levavam os seus compatriotas em casa dos outros plantadores da ilha, e dizer-lhes que eles haviam tido feliz sorte em pertencerem aos senhores Pedro e Jorge Munier, isto é, aos melhores senhores da ilha.
Os negros chegaram-se então aos dois mulatos e caindo de joelhos prometeram, pela voz de Telémaco, tornarem-se dignos da felicidade, que a Providência lhes reservara.
Ao nome de Pedro e Jorge Munier, o capitão, que havia escutado o discurso de Telémaco com uma atenção, que provava ter ele estudado os diversos dialectos de África, estremeceu e olhou com mais atenção que antes para os dois homens com quem acabava de tratar um negócio de quase 150.000 francos.
Porém Jorge e seu pai não repararam mais que antes na persistência do capitão em não os perder de vista um instante.
Enfim Jorge perguntou-lhe de que modo queria que lhe pagasse, se havia de ser em ouro, ou em letras de câmbio. Seu pai tinha consigo ouro e letras para satisfazer a todas as exigências.
O capitão preferiu o ouro, que logo lhe foi entregue e metido na segunda lancha, tornando depois disto os marinheiros a embarcar.
Porém, com grande admiração de Jorge e de seu pai, o capitão não embarcou, e por sua ordem, as lanchas afastaram-se deixando-o na praia.
Quando elas iam já longe, o capitão voltou-se para os dois mulatos admirados, chegou-se a eles e estendendo-lhes a mão:
— Deus vos salve, pai. Deus te guarde, irmão — disse-lhes ele; mas vendo que hesitavam então, acrescentou. — Não reconheceis o vosso Tiago?
Jorge e seu pai deram um grito de sobressalto e abriram-lhe os braços.
Tiago lançou-se nos do pai, e depois nos de seu irmão. Também Telémaco teve a sua vez, posto que só tremendo se atreveu a tocar nas mãos dum negociante de negros.
Com efeito, por uma singular coincidência, o acaso reunia na mesma família o homem que toda a sua vida curvara sob a preocupação da cor. O que fazia a sua fortuna desfrutuando-a, e o que estava prestes a expor a vida para combatê-la.
FILOSOFIA DOS NEGREIROS
Efectivamente este homem era Tiago, que havia catorze anos que da companhia de seu pai se ausentara, e que tinha passado doze sem ver seu irmão.
Tiago, como dissemos, embarcara num desses corsários que, providos de cartas-de-marca da França, naquela época de repente saíam dos portos desta nação, como as águias de seus ninhos, e corriam sobre os ingleses.
Era esta uma austera escola, que bem valia a da marinha imperial, que, bloqueada então nos portos, estava ancorada tantas vezes quantas esta outra marinha, activa, veloz e independente, andava sulcando os mares.
Todos os dias, com efeito, havia algum combate, não porque os corsários, por atrevidos que fossem, acometessem os navios de guerra. Porém, cobiçosos das mercadorias da índia e da China, atacavam todos os navios que voltavam de Calcutá, Buenos Aires, ou de Vera Cruz.
Ora, ou estes navios eram comboiados por alguma fragata inglesa, ou haviam tomado o partido de se armarem por sua própria defesa.
Neste caso, o combate não passava duma escaramuça de duas horas, e tudo acabava. Porém no primeiro, outra coisa sucedia. Depois de se trocarem muitas balas, de morrer muita gente, de despedaçados os aparelhos, dava-se enfim a abordagem. E havendo-se os combatentes destruído de longe, de perto se exterminavam.
Neste tempo o navio mercante seguia avante, e se não encontrava, como o burro da fábula, outro corsário, que o tomasse, surgia em algum porto de Inglaterra, com grande satisfação da companhia das índias, que votava rendas aos seus defensores.
De trinta ou trinta e um dias, de que os meses constam, vinte ou vinte e cinco eram naquela época, destinados a combater, e para descansar dos combates, lá vinham os dias de temporal.
Em semelhante escola, repetimos, depressa se aprendia.
Ora, como não havia recrutamento, e esta guerra de curiosos consumia com o andar do tempo muita gente, nunca as tripulações se achavam no estado completo.
Verdade é que como todos os marinheiros eram voluntários, a qualidade substituía com vantagem a quantidade. Por isso, em dia de batalha, ou de temporal, ninguém tinha atribuições determinadas, todos serviam para tudo.
A obediência passiva ao capitão, e, na sua ausência, ao segundo comandante, era dever a que ninguém podia faltar. Houve contudo, como em toda a parte há, a bordo do brigue Calypso (assim se chamava o navio escolhido por Tiago para fazer o seu estudo náutico) dois recalcitrantes, um normando e outro gascão, o primeiro contra a autoridade do capitão, o segundo contra a do tenente.
Porém o capitão com um machado fendeu a cabeça ao que lhe faltou ao respeito, e o tenente descarregou uma pistola sobre o peito do que lhe desobedeceu, caindo logo ambos mortos.
Como nada estorva a manobra como um cadáver, os dois, que jaziam estendidos, foram lançados ao mar e nunca mais em tais homens se falou.
Estes dois acontecimentos exerceram nos ânimos uma influência salutar. Depois deles ninguém mais se lembrou de faltar ao respeito ao capitão Bertrand, nem ao tenente Rébard, os quais desde então gozaram duma autoridade perfeitamente absoluta a bordo do Calypso.
Tiago havia sempre tido uma decidida vocação para o mar. Ainda criança estava sem cessar a bordo dos navios ancorados em Porto Luís, subindo ao cesto da gávea, balanceando-se nas vergas, e deixando-se escorregar ao longo dos cabos. Como era principalmente a bordo dos navios em relação de comércio com seu pai, que Tiago se dava a seus exercícios ginásticos, os capitães tinham para com ele grande condescendência, satisfazendo a sua curiosidade infantil, explicando-lhe tudo e deixando-o subir do porão aos mastros de joanete e descer destes ao porão.
Disto resultava que aos dez anos era Tiago um bom grumete, visto que, em falta de navio, como para ele tudo representava uma embarcação, trepava às árvores que supunha mastros, subia pelos cipós, que reputava cordas. E aos doze anos, como sabia o nome de todas as partes de uma embarcação, e todas as manobras, que a bordo se executam, teria podido entrar como aspirante de primeira classe em qualquer navio.
Porém seu pai havia decidido outra coisa. Em vez de o enviar à escola de Angoulême, onde a sua vocação o chamava, mandou-o para o colégio Napoleão, e confirmou-se então o provérbio: «O homem põe e, Deus dispõe.» Tiago, depois de passar dois anos a desenhar brigues nos cadernos de composição, e a lançar fragatas no grande tanque do Luxemburgo, aproveitou a primeira ocasião de passar da teoria à prática, e visitando numa viagem a Brest o brigue Calypso, declarou a seu irmão, que o havia acompanhado, que podia voltar para terra, porquanto ele estava resolvido a seguir a vida marítima.
Jorge, conformando-se com o que Tiago decidira, voltou só para o colégio Napoleão.
Pelo que diz respeito a Tiago, cujo aspecto franco e procedimento animoso seduziu logo o capitão Bertrand, foi em continente elevado ao grau de marinheiro, o que deu azo a que os teus camaradas falassem muito.
Deixou-os Tiago falar. Tinha ele no espírito noções exactíssimas do justo e do injusto. Aqueles que assim falavam ignoravam a sua capacidade, por isso não era de estranhar que achassem mau serem preteridos por um novato. Porém quando sobreveio o primeiro temporal ele foi ferrar um joanete, embaraçado por um nó mal feito, e que estava a ponto de quebrar o mastro,e na primeira abordagem entrou no navio inimigo antes do capitão, o que foi causa de lhe dar este um murro tão forte que por espaço de três dias o fez andar derreado, porque era lei a bordo do brigue Calypso, que devia o capitão ser sempre o primeiro a entrar no navio inimigo.
Todavia, como era isto uma dessas faltas de disciplina que facilmente um valente perdoa a outro, o capitão admitiu as desculpas de Tiago, e respondeu-lhe que se porvir, depois dele e do tenente, lhe concedia a faculdade de tomar em semelhante circunstância a ordem que lhe conviesse.
Na segunda abordagem, foi Tiago o terceiro a entrar na embarcação do inimigo.
Desde então cessaram os marinheiros de falar contra Tiago, e os mesmos veteranos foram os primeiros a estender-lhe a mão.
Assim foram as coisas até ao ano de 1815. Dizemos até 1815, porque o capitão Bertrand, que tinha o espírito muito céptico, nunca havia tomado um ponto sério a queda de Napoleão. Talvez isso proviesse de que, faltando-lhe em que se ocupar, tinha feito duas viagens à ilha de Elba, alcançando numa delas a honra de ser recebido pelo ex-senhor do mundo.
O que o imperador e o pirata nesta conferência disseram ninguém jamais o soube. Somente se notou que o capitão Bertrand voltou a bordo, dando mostras da maior satisfação. Fez-se à vela para Brest, onde, sem nada dizer a pessoa alguma, começou a aparelhar o brigue Calypso, a abastecê-lo de pólvora e bala e a recrutar a gente de que que carecia para que a sua tripulação se achasse no estado completo, o que dava azo a acreditar que ele se estava dispondo para algum acontecimento extraordinário.
Com efeito, seis semanas depois da última viagem do capitão Bertrand a Porto Ferrajo, desembarcava Napoleão no goKoJuan. Vinte e quatro horas depois deste desembarque entrava em Paris, e setenta e duas horas depois da sua entrada em Paris, o capitão Bertrand saiu de Brest com todas as velas desfraldadas e a bandeira tricolor no topo.
Oito dias não eram passados, quando o capitão Bertrand entrou trazendo a reboque um magnífico navio inglês carregado das mais finas drogas da índia.
Foi tamanha a admiração dos que neste navio se achavam ao ver a bandeira tricolor que julgavam haver para sempre desaparecido da superfície do globo que não curaram de fazer a menor resistência.
Esta presa estimulou a cobiça do capitão Bertrand. Por isso logo que a vendeu por preço conveniente, e que repartiu o produto com a tripulação, que havia quase um ano descansava e que sobremaneira se desgostava do descanso, tornou a sair ao mar em busca de segundo navio.
Porém como é sabido, nem sempre se encontra o que se busca. O brigue Calypso encontrou-se com uma fragata. Era a Leycester, isto é, a mesma, que a Porto Luís levara Jorge e o governador.
A fragata Leycester tinha mais que o brigue Calypso dez peças e sessenta homens de tripulação.
Não levava a menor carga de canela, açúcar e café, mas tinha um paiol bem guarnecido, e grande quantidade de bala, palanqueta e metralha.
Apenas a fragata viu a quem pertencia o brigue, logo lhe enviou uma amostra da sua fazenda. Era uma bala de trinta e seis, que se lhe entranhou no costado.
Bem quisera o brigue fugir sem ser visto. Nada tinha a ganhar com a fragata, ainda quando a vencesse, do que nenhuma probabilidade havia.
Infelizmente não era mais verosímil escapar-lhe, o seu capitão era esse mesmo Williams Murrey, que naquela época ainda não tinha deixado o serviço da marinha, e que com as agradáveis aparências realçadas depois por seus trabalhos diplomáticos, era um dos mais intrépidos oficiais de marinha que existiam desde o estreito de Magalhães até à baía de Bafin.
O capitão Bertrand mandou assestar à popa as suas duas peças de maior calibre, e fugiu a todo o pano.
O brigue Calypso era um verdadeiro navio de presa, feito para andar a corso, com o casco estreito e alongado, mas a pobre andorinha do mar estava à vista da águia do Oceano, de modo que, apesar da sua velocidade, visível foi em breve que a fragata o alcançaria.
Esta superioridade de andar tornou-se logo tanto mais sensível, quanto de cinco em cinco minutos a fragata Leycester enviava meirinhos de ferro a notificar a Calypso para que parasse. Ao que este brigue, fugindo sempre, respondia, com as suas duas peças de popa, por mensageiros da mesma natureza.
Durante este tempo, Tiago examinava com a atenção a mastreação do brigue, e fazia ao tenente Rébard judiciosas observações acerca dos melhoramentos, que convinha fazer nos navios destinados, como o Calypso, a perseguir ou a serem perseguidos.
Havia sobretudo uma mudança radical a fazer nos mastros do joanete, e Tiago com os olhos fitos na parte mais fraca do navio, acabava a sua demonstração, quando, não recebendo do tenente resposta alguma de aprovação, abaixou os olhos, e reconheceu a causa do silêncio do tenente Rébard, acabava de ser cortado em dois por uma bala de canhão.
A situação ia-se tornando grave. Era evidente que antes de meia hora o brigue seria alcançado pela fragata, e que se tornaria indispensável pelejar com uma tripulação muito mais forte.
Tiago comunicava esta reflexão pouco animadora ao chefe duma das duas peças de popa, quando este, abaixando-se para apontar, pareceu entropeçar e caiu com a cara sobre a culatra da peça.
Vendo Tiago que ele tardava em se erguer, agarrou-o pela gola do jaleco e levantou-o em linha vertical, mas então viu que o pobre homem acabava de tragar uma bala.
O infeliz chefe de peça tinha morrido, como se costuma dizer, duma indigestão de ferro fundido.
Tiago, que naquele momento não tinha coisa melhor a fazer, chegou-se à peça, fez a pontaria, e bradou: Fogo!
No mesmo instante o canhão trovejou, e como Tiago tinha curiosidade de ver o resultado da sua habilidade, saltou aos pavezes para observar o efeito do projéctil que acabava de enviar ao inimigo.
Muito pronto foi o efeito desta bala.
O mastro de mezena, cortado um pouco acima do cesto da gávea, dobrou como uma árvore, que o vento faz curvar, e caiu com espantoso ruído, enchendo a coberta de velas e aparelhos, e quebrando parte da borda de estibordo.
Vozes de júbilo soaram no brigue Calypso. A fragata parou, molhando no mar a sua asa quebrada, enquanto o brigue, apenas com alguns cabos cortados, seguia avante, livre da perseguição do inimigo.
O primeiro cuidado do capitão, vendo-se fora de perigo, foi promover Tiago, ao posto de tenente, em lugar do falecido Rébard.
Largo tempo havia que, em caso de vaga, este posto lhe era conferido no ânimo dos seus camaradas. O anúncio da sua promoção foi pois acolhido por gerais aclamações.
Celebrou-se missa pelas almas dos falecidos. Os cadáveres foram lançados ao mar e só ficou o do tenente, para se lhe fazerem as honras devidas à sua graduação.
Consistiam estas honras em ser cosido numa maca com uma bala de trinta e seis em cada pé.
O cerimonial seguiu-se exactamente, e o pobre Rébard foi reunir-se aos seus companheiros, havendo conservado sobre eles só a pequeníssima vantagem de ir ao fundo, em vez de boiar à superfície do mar.
O capitão Bertrand aproveitou a escuridão da noite para mudar de rumo, isto é, graças a uma súbita mudança de vento, para voltar atrás. De modo que entrava em Brest, enquanto a Leycester ia em sua perseguição para o lado de Cabo Verde.
Reparadas que foram suas avarias, o capitão Bertrand tornou a sair a corso, e auxiliado por Tiago, fez maravilhas.
Infelizmente deu-se a batalha de Waterloo, a que se seguiu a segunda abdicação e a paz.
Desta vez, já de nada se podia duvidar.
O capitão viu passar para bordo da fragata Belerophonte o prisioneiro da Europa. E como conhecia a ilha de Santa Helena por haver lá arribado duas vezes, logo entendeu que não era possível escapar dali como da ilha de Elba.
O porvir do capitão Bertrand achava-se muito comprometido neste grande cataclismo que tantas coisas destruiu.
Indispensável lhe foi, pois, dar-se a uma indústria nova. Tinha uma linda embarcação, e cem homens de tripulação dispostos a seguir a sua boa ou má fortuna. Naturalmente pensou em fazer o comércio de escravatura.
Com efeito, era esta uma boa profissão antes de a estragarem, com declamações filosóficas em que ninguém então pensava, e os primeiros, que a ela se dessem podiam fazer fortuna. A guerra, às vezes extinta na Europa, é eterna em África. Ali há sempre alguma tribo sequiosa, e como os habitantes deste país uma vez notaram que o mais seguro meio de obter aguardente era fazer muitos prisioneiros, quem naquela época seguisse as costas da Senegâmbia, Congo, Moçambique ou Zanzibar com uma garrafa de aguardente em cada mão, podia ter a certeza de voltar ao seu navio com um preto debaixo de cada braço.
Quando faltavam prisioneiros, as mães vendiam os próprios filhos. Verdade é que este rancho de crianças não tinha grande valor, mas então supria-o a quantidade.
O capitão Bertrand exerceu este comércio com honra e proveito por espaço de cinco anos, isto é, desde 1805 até 1810, e fazia tenção de o exercer ainda muitos anos, quando um acontecimento inopinado deu fim à sua existência. Um dia em que ele ia à margem do rio dos Peixes, situado na costa ocidental de África, com um chefe hotentote que lhe devia entregar por duas pipas de aguardente certo número de pretos, que acabava de ajustar e cuja venda havia de antemão tratado na Martinica e Guadalupe, pôs por acaso o pé na cauda duma boqueira, que se estava aquecendo ao sol.
Estes répteis são, como é notório, tão sensíveis na cauda, que a natureza lhes pôs neste lugar muitos cascavéis, para que o caminhante, advertido pelo ruído, não os pise.
A boqueira endireitou-se com a rapidez do relâmpago e mordeu na mão do capitão Bertrand, que, posto que muito insensível à dor, deu um grito.
O chefe hotentote voltou-se, e vendo por que ele gritava, disse com gravidade:
— Homem mordido, homem morto.
— Bem o sei — respondeu o capitão. — É por essa razão que eu grito.
Depois disto, seja para sua satisfação pessoal, ou por filantropia e para que a serpente, que o mordera, não mordesse mais ninguém, agarrou a boqueira e torceu-lhe o pescoço.
Porém apenas feita esta execução, as forças faleceram ao valente capitão, que junto da serpente caiu.
Tudo isto sucedeu com tanta rapidez, que quando Tiago, que estava a vinte e cinco passos pouco mais ou menos atrás do capitão, chegou ao pé dele já o achou verde como um lagarto.
O capitão Bertrand quis falar, mas mal pôde balbuciar algumas palavras e expirou.
Passados dez minutos, o seu corpo estava mosqueado de nódoas negras e amarelas, como um cogumelo venenoso.
Não era possível levar o corpo do capitão para bordo tão rápida era a decomposição causada pela admirável subtileza do veneno.
Tiago e os doze marinheiros, que o acompanhavam, fizeram uma cova, nela deitaram o capitão, e o cobriram com todas as pedras que em torno de si acharam para o perservar dos dentes dos animais carnívoros.
Pelo que diz respeito à serpente, um dos marinheiros dela se apossou, lembrando-se de que seu tio, que era farmacêutico em Drest, muito lhe recomendara que se alguma vez encontrasse um destes répteis lho levasse morto ou vivo, para o meter numa redoma à porta da sua botica.
Há um adágio que diz: os negócios primeiro que tudo.
Em virtude deste adágio, Tiago e o chefe hotentote decidiram que esta catástrofe não estorvasse a conclusão da venda ajustada.
Tiago foi pois buscar os cinquenta pretos vendidos, e o chefe hotentote foi ao brigue receber as duas pipas de aguardente prometidas.
Concluída esta troca, os dois negociantes separaram-se satisfeitos um do outro, resolutos a continuar no futuro as suas relações comerciais.
Naquela mesma tarde, Tiago juntou na coberta do navio todos os marinheiros, desde o contramestre até ao último grumete. E depois dum conciso mas eloquente discurso sobre as inumeráveis virtudes do capitão Bertrand, propôs à tripulação duas coisas.
A primeira, vender o carregamento, que estava completo e o navio que facilmente acharia comprador, e depois de repartirem a importância de tudo, segundo os direitos estabelecidos, separarem-se em boa amizade e ir cada um em busca de fortuna.
A segunda, nomear substituto ao capitão Bertrand e continuar o negócio debaixo da firma Calypso e companhia, declarando antecipadamente que tenente como era, de bom grado se sujeitava a uma reeleição, e que seria o primeiro a reconhecer o novo capitão que saísse do escrutínio.
A estas palavras sucedeu o que se devia esperar. Tiago foi eleito capitão por aclamação.
Este escolheu logo para seu imediato o contramestre, valente bretão, natural de Lorient, a quem, por alusão à notável dureza do seu crânio, geralmente chamavam o Cabeça de Ferro.
Na mesma tarde, o brigue Calypso, mais esquecido que a ninfa cujo nome tinha, fez-se à vela para as Antilhas, consolado já, ao menos na aparência, não da partida de Ulisses, mas da morte do capitão Bertrand.
Com efeito, se o Calypso havia perdido um dono, tinha encontrado outro por certo igual aquele.
O falecido era um desses marítimos que fazem tudo segundo a prática e não por inspiração.
Outra coisa sucedia, porém, a respeito de Tiago que era universal no que pertencia à arte náutica. Sabia numa batalha, ou num temporal, mandar a manobra como qualquer almirante, e na ocasião dava um nó à maruja, tão bem como o último grumete.
Com Tiago nunca havia descanso, e por conseguinte nunca chegava o aborrecimento. Os melhoramentos na arrumação da carga, ou no aparelho do brigue, eram quotidianos.
Pondo de parte a lembrança de seu pai e de seu irmão, que às vezes lhe vinham ao pensamento, Tiago era o homem mais feliz da terra e do mar.
Não era ele desses cobiçosos comerciantes de negros, que perdem metade de seus lucros querendo ganhar demasiado, e para quem o mal, que fazem, enfim se torna em prazer. Não, Tiago era um bom negociante consciencioso no seu comércio. Tinha nos seus cafres, hotentotes, senegambios ou moçambiques quase tanto cuidado, como se fossem sacas de açúcar, caixas de arroz ou fardos de algodão. Ordenava que lhes dessem bem de comer, dormiam sobre palha, e mandava-os duas vezes por dia subir à tolda a tomar ar.
Só os recalcitrantes eram encadeados. E, geralmente, ele buscava, tanto quanto era possível, vender os maridos com as mulheres e os filhos com suas mães, o que era uma delicadeza extraordinária e que tinha muito poucos imitadores.
Por isso, os negros de Tiago chegavam em geral ao seu destino alegres e com saúde, o que fazia com que os vendesse quase sempre por maior preço.
Nunca Tiago se demorava em terra tempo bastante para contrair uma séria afeição.
Como ele nadava em ouro e prata, as gentes crioulas da Jamaica, da Guadalupe ou de Cuba, mais duma vez trabalharam para cativá-lo. Havia mesmo pais que, ignorando ser ele mulato, e reputando-o um honesto negreiro europeu, de tempos a tempos lhe faziam propostas de casamento.
Porém Tiago tinha suas ideias acerca do amor. Conhecia a fundo a sua mitologia e história santa. Não ignorava o apólogo de Hércules e Onfalo, e sabia a anedota de Sansão e Dalila.
Por isso havia decidido que jamais casaria. Pelo que toca a amantes, graças a Deus, não lhe faltavam. Tinha-as de todas as cores, no Congo, nas Floridas, em Bengala ou Madagáscar. Em cada viagem tomava uma nova, que dava, em chegando, a algum amigo, em cuja casa estava certo de que ela havia de ser bem tratada, porque tinha adoptado o sistema de não conservar jamais a mesma amante, temendo, qualquer que fosse a sua cor, que ela tomasse alguma influência no seu espírito. Porquanto, cumpre dizê-lo, amava a liberdade sobretudo. Tiago gostava também de outros muitos prazeres. Era sensual como um crioulo. Todas as grandes coisas da natureza nele faziam uma impressão agradável. Porém, em vez de lhe tocar o espírito, operavam sobre os sentidos. Gostava da imensidade, não porque a imensidade faz pensar em Deus, mas porque quanto mais espaço há melhor se respira. Gostava das estrelas, não porque pensasse que eram outros tantos mundos rolando no espaço, mas porque achava aprazível ter por cima da cabeça um docel azul recamado de diamantes. Gostava das altas florestas, não porque no interior delas há muitas vozes misteriosas e poéticas, mas porque a sua abóbada espessa faz uma sombra que os raios do sol não podem penetrar. Pelo que toca à sua opinião a respeito da profissão que exercia, estava Tiago persuadido de que era uma indústria perfeitamente legal.
Toda a sua vida tinha visto vender e comprar negros, entendia, na sua consciência, que os negros vieram ao mundo para serem vendidos e comprados.
Enquanto à validade do direito, que os homens se arrogaram, de mercadejar com o seu semelhante, era coisa em que não pensava. Comprava e pagava, portanto o objecto pertencia-lhe, e desde o momento em que havia comprado e pago, julgava-se com direito de tornar a vender. Por isso, nunca Tiago imitou o exemplo de seus colegas que tinha visto andar a apanhar negros por sua própria conta. Reputaria como grande injustiça apoderar-se pessoalmente, por força ou ardil, de uma criatura livre para torná-la escrava. Porém, logo que esta criatura livre chegava a ser escrava por uma circunstância independente da vontade dele, nenhuma dificuldade via em comprá-la ao seu proprietário.
Todos entendem que a vida que Tiago seguia era agradável, tanto mais que nela havia de tempos a tempos seus dias de combate, como em vida do capitão Bertrand. O comércio dos negros tinha sido abolido por uma assembleia de governadores, que provavelmente entenderam que ele prejudicava o comércio dos brancos. De modo que às vezes sucedia que alguns navios, ingerindo-se no que lhes não competia, queriam absolutamente saber o que o brigue Calypso ia fazer às costas do Senegal ou aos mares da índia. Então, se o capitão Tiago estava nos seus dias de bom génio, começava a divertir o navio curioso, mostrando-lhe bandeiras de todas as cores. Depois disto, quando estava cansado de brincar, içava a sua bandeira, fugia a todo o pano, e então a festa começava.
Além dos vinte canhões, que lhe guarneciam as portinholas, o brigue Calypso tinha à popa, somente para estas ocasiões, duas peças de quarenta e oito, cujo alcance excedia o da artilharia dos navios ordinários. Ora, como o brigue era muito veleiro, soltava só as velas necessárias para conservar o navio que lhe dava caça ao alcance das duas peças de popa.
Disto resultava que enquanto as balas inimigas o não alcançavam, as do brigue enfiavam o navio, que o perseguia. Durava isto o tempo que Tiago queria fazer o que chamava a sua partida de bola, e quando entendia que o navio indiscreto estava suficientemente castigado da sua indiscrição, soltava, além das velas já desfraldadas, alguns sobre joanetes e cutelos de sua invenção, enviava-lhe um par de balas em sinal de adeus, e o brigue sulcando a água como uma ave marítima, que apressurada volta ao ninho, deixava o navio inimigo a tapar os rombos e reparar o maçame, e desaparecia no horizonte.
Estas rapaziadas tornavam a entrada do brigue nos portos um pouco mais difícil, mas o Calypso mudava de aparência e de nome, segundo a ocasião. Chamava-se umas vezes a Bella Genny ou a Jovem Olympia, e apresentava-se com um ar de inocência, que infundia prazer. Então vinha, segundo dizia, de carregar de chá em Cantão, de café em Moka, ou de especiarias em Ceilão. Dava amostras da sua carga, recebia encomendas e passageiros.
Outras vezes tomava o nome de Esphinge ou de Leonidas. A sua tripulação vestia o uniforme francês, e entrava no porto com a bandeira branca desenrolada, salvando cortezmente ao forte, que urbano respondia à salva.
Então o capitão era, segundo lhe parecia, ou um experimentado marítimo praguejando, jurando e blasfemando, falando só em bombordo e estibordo, e não compreendendo para que podia servir a terra, a não ser para lá ir de vez em quando renovar a água e secar peixe. Ou era algum feliz oficial, recentemente saído da escola, a quem o governo para recompensar os serviços de seus antepassados, havia cometido o mando, que dez antigos oficiais solicitavam.
Neste caso, o capitão Tiago tomava o nome de Mr. de Kergouran, ou o de Mr. de Champ-Fleury. Tinha então a vista baixa, olhava piscando os olhos, e falava pronunciando mal o R.
Tudo isto teria sido em breve reconhecido por uma farsa em qualquer porto de França ou de Inglaterra, mas tinha muito bom êxito em Cuba, na Martinica, na Guadalupe ou em Java.
Pelo que diz respeito ao emprego do dinheiro proveniente do seu comércio, era para Tiago, que não sabia todas as especulações monetárias, a coisa mais simples. Em troca do seu ouro, ou das suas letras de câmbio recebia em Visapure Guzavate os mais belos diamantes, que lá podia encontrar, de modo que chegou a entender de pedras preciosas quase tanto como de pretos. Metia ele os diamantes, que de novo comprava, junto dos antigos num cinto, que habitualmente trazia. Quando carecia de dinheiro, procurava no cinto, de que, segundo a ocasião, tirava um brilhante como uma ervilha, ou um diamante do tamanho duma avelã, entrava em casa dum judeu, dizia-lhe que pesasse aquela pedra, e cedia-lha pelo preço da tarifa.
Graças a este sistema de economia, Tiago trazia sempre consigo o valor de dois ou três milhões, que facilmente podia esconder na ocasião. Porquanto ele não ignorava que uma profissão como a sua tinha acasos opostos, que nem tudo nela eram rosas, e que depois de anos venturosos, podia chegar um dia de desgraça.
Porém, enquanto este dia não chegava, Tiago ia levando uma vida muito aprazível, que não trocaria por um trono, visto que já naquela época o cargo de rei começava a ser pouco agradável. O nosso aventureiro seria perfeitamente feliz, se a lembrança de seu pai e de Jorge não viesse às vezes entristecê-lo. Por isso um dia não pôde mais resistir-lhe, e, como depois de haver carregado na Senegâmbia e Congo tinha ido completar a sua carregação às costas de Moçambique e Zanzibar, resolveu chegar até à ilha de França, e informar-se se seu pai dali não se havia ausentado, e se seu irmão já tinha voltado.
Em consequência disto, ao avizinhar-se da costa fez os sinais usados pelos negociantes de negros, aos quais responderam por outros correspondentes.
Fez o acaso com que estes sinais fossem trocados entre o pai e o filho. De modo que à noite, Tiago não só se achou na praia natal, mas também entre os braços daqueles que ali ia procurar.
A CAIXA DE PANDORA
Grande felicidade foi para este pai, e para estes irmãos, que tanto tempo havia que não se viam, encontrarem-se assim reunidos no momento em que menos o esperavam.
No primeiro instante Jorge sentiu, graças à educação europeia, um movimento de desprazer, encontrando seu irmão a negociar em carne humana. Porém em breve se dissipou este primeiro movimento.
Pelo que toca a Pedro Munier, que nunca havia saído da ilha, e por conseguinte devia encarar tudo sob o ponto de vista das colónias, não deu a isso atenção. Estava ele inteiramente enlevado da felicidade não esperada de tornar a ver seus filhos.
Tiago, como era natural, foi pernoitar a Moka. Este, Jorge e seu pai, só muito pela noite adiante se separaram.
Durante esta conversação, cada um patenteou quanto rinha no coração.
Pedro Munier manifestou o seu júbilo, nenhuma outra coisa tinha em si além do amor paterno.
Tiago contou a sua vida aventurosa, seus singulares prazeres, sua felicidade excêntrica.
Chegou depois a vez de Jorge. Este referiu o seu amor.
Ouvindo esta narração Pedro Munier estremeceu.
Jorge, mulato, filho de mulato, amava uma branca, e declarava, confessando o seu amor, que esta branca havia de pertencer-lhe.
Semelhante orgulho era uma audácia sem exemplo nas colónias, e, na opinião de Pedro Munier, devia atrair sobre aquele em cujo coração se havia ateado, todos os desgostos da terra, toda a cólera celeste.
Enquanto a Tiago, perfeitamente compreendia que Jorge amasse uma branca, se bem que por mil razões que optimamente expunha, ele desse preferência às mulheres pretas.
Porém Tiago era sobremaneira filósofo para não entender e respeitar os gostos de outrém.
Além de que, ele achava que Jorge, gentil, rico, e superior aos outros como era, podia aspirar à mão de qualquer mulher branca, ainda que esta mulher fosse Alina, rainha de Golconda!
Em todo o caso, Tiago oferecia a Jorge um expediente, que simplificava muito as coisas. Consistia este, dado o caso que houvesse recusa da parte de Malmedie, em apoderar-se por força de Sara e depositá-la em qualquer lugar do mundo, onde fosse ter com ela.
Jorge agradeceu a Tiago o seu obsequioso oferecimento, mas, como tinha concebido outro desígnio, recusou.
No dia seguinte os habitantes de Moka reuniram-se ao amanhecer, tantas coisas haviam eles esquecido dizer na véspera.
Pelas onze horas, Tiago mostrou desejos de tornar a ver os sítios onde passara a infância, e propôs um passeio a seu pai e a seu irmão.
Pedro Munier aceitou, mas Jorge estava esperando novas da cidade, por isso foi obrigado a deixá-los partir, e ficou em casa aguardando Miko-Miko, que devia ali ir ter com ele.
Era passada meia hora, quando Jorge viu aparecer o seu mensageiro. Trazia este a sua comprida vara de bambu com os dois cestos, como se andasse vendendo pela cidade, porque se lembrou de que podia encontrar no caminho algum curioso de coisas da China.
Jorge, não obstante o poder que com tanto trabalho havia conseguido sobre si, foi abrir-lhe a porta, com o coração palpitante porque este homem tinha visto Sara e ia falar-lhe dela.
Tudo havia sucedido do modo mais simples. Miko-Miko, usando do seu privilégio de entrar em toda a parte, entrou em casa de Malmedie, e Biju que já tinha visto a sua senhora comprar ao chinês uma ventarola, logo o encaminhou para onde estava Sara.
Esta, à vista do comerciante, exultou, porque, por um encadeamento natural de ideias e circunstâncias, Miko-Miko lhe trazia Jorge à memória. Ela recebeu-o pois com bom modo, tendo só o desprazer de ser obrigada a explicar-se com ele por sinais.
Então Miko-Miko tirou da algibeira o bilhete, em que Jorge havia com a sua própria mão escrito o preço dos diversos objectos, e entregou-o a Sara do lado em que se lia o nome.
Sara corou a seu pesar, e voltou com vivacidade o bilhete.
Era evidente que Jorge, não podendo vê-la, buscava este meio de se lhe fazer lembrado.
Sara comprou sem ajustar todos os objectos, cujo preço Jorge escrevera. E como Miko-Miko lhe não pedisse o bilhete, ela não pensou em lho restituir.
Saindo de casa de Sara, o chinês foi detido por Henrique, que o mandou ir à sua habitação para examinar o que ele levava.
Não comprou Henrique coisa alguma, mas fez entender a Miko-Miko que, estando para se casar em breve sua prima, havia de carecer dos mais bonitos objectos, que ele lhe pudesse alcançar.
Estas duas visitas a Sara e a seu primo, permitiram a Miko-Miko observar circunstanciadamente a casa,
Ora, como este chinês era dotado de muito boa memória, perfeitamente conservou na lembrança a distribuição arquitectural da morada de Malmedie.
Tinha esta casa três entradas. Uma dando, como já dissemos, por uma ponte que atravessava o riacho, para o jardim da companhia. Outra do lado oposto, que dava, por meio duma pequena rua plantada de árvores e fazendo volta, para a rua do Governo. E finalmente a terceira, que dava para a rua da Comédia e que era uma entrada lateral.
Penetrando na casa pela porta principal, isto é, pela ponte, entrava-se num vasto pátio quadrado, plantado de mangueiras e lilazes da China, por entre os quais se via em frente a habitação principal, onde se entrava por uma porta quase paralela à da rua. Nesta posição, ficavam no primeiro plano à direita as choupanas dos negros, e à esquerda as estrebarias.
No segundo plano à direita, um pavilhão coberto por uma frondosa árvore, e defronte deste pavilhão uma segunda habitação destinada também aos escravos. Finalmente, no terceiro plano, via-se à esquerda a entrada lateral que dava para a rua da Comédia, e à direita uma passagem, que conduzia a uma escada e se dirigia à pequena rua plantada de árvores, que desembocava defronte do teatro.
Deste modo ver-se-á que o pavilhão ficava separado do corpo principal do edifício pela passagem.
Ora, como este pavilhão era o lugar em que Sara passava a maior parte do tempo, o leitor há-de permitir-nos que acrescentemos algumas palavras ao que já deixámos dito.
Tinha o dito pavilhão quatro frentes, posto que só de três lados fosse visível. Efectivamente, um de seus lados era contíguo às choupanas dos negros. Os outros três davam, um para o pátio de entrada, onde estavam plantadas as mangueiras, os lilazes da China e a árvore que cobria o referido pavilhão, outro para a passagem, que conduzia à escada. E finalmente o terceiro para uma grande estância de lenha, quase deserta, que dava dum lado sobre o mesmo riacho que corria por diante duma das fachadas exteriores da casa de Malmedie, e do outro para a rua plantada de árvores e elevada obra de doze pés acima da estância.
Achavam-se encostadas a esta rua duas ou três casas, cujos telhados, pouco inclinados, ofereciam um declive fácil a quem desejasse, por qualquer motivo, penetrar clandestinamente da sobredita rua de árvores na estância.
Tinha o pavilhão, de que acabámos de falar, três janelas e uma porta, que dava, como já dissemos, para o pátio.
Uma das janelas estava perto desta porta, outra dava para a estância.
Durante a narração de Miko-Miko, Jorge três vezes se sorriu. Mas com expressões muito diferentes. A primeira, quando o seu embaixador lhe disse que Sara guardara o bilhete. A segunda quando ele falou no próximo casamento de Henrique com sua prima. A terceira quando o chinês o informou de que era possível penetrar no pavilhão pela janela da estância.
Jorge pôs diante de Miko-Miko um lápis e papel. E enquanto o chinês traçava a planta da casa, ele pegou numa pena e pôs-se a escrever uma carta.
A carta e a planta da casa foram acabadas ao mesmo tempo.
Então Jorge levantou-se e foi ao seu quarto buscar um primoroso cofrezinho, meteu dentro dele a carta, que acabava de escrever, fechou-o, e entregou a chave e o cofre a Miko-Miko, a quem deu instruções. Depois disto, Miko-Miko recebeu mais uma onça de ouro em recompensa do novo serviço que ia fazer. E tornando a pôr o seu bambu em equilíbrio sobre o ombro, tomou o caminho da cidade no mesmo passo em que viera, o que anunciava que ele se acharia, no espaço de quatro horas, junto de Sara.
Logo que Miko-Miko desapareceu no fim duma rua de árvores, que ia dar à plantação, Tiago e seu pai entraram por uma porta de trás.
Jorge, que estava a ponto de ir ter com eles, admirou-se de os ver tornar tão depressa. Porém Tiago tinha observado no céu sinais que anunciavam uma próxima tempestade. Posto que tivesse inteira confiança no seu tenente Cabeça de Ferro, não queria cometer a outrém o cuidado de salvar o brigue Calypso em tão grave circunstância.
Vinha ele pois despedir-se de seu irmão, porque do cume do monte Polegar, aonde subira para ver se o brigue permanecia no seu lugar, descobriu este fazendo bordos a duas léguas da costa, e então fez o sinal convencionado entre ele o seu tenente no caso que uma circunstância qualquer o compelisse a voltar para bordo.
Este sinal tinha sido visto, e Tiago não duvidava de que em duas horas a lancha se acharia prestes a recebê-lo.
O pobre Pedro Munier fez quanto pôde para consigo conservar seu filho. Porém Tiago respondeu-lhe com a sua mais branda voz: «Isso não é possível, meu pai.» E Munier compreendeu pela entoação terna, mas firme desta voz, que a resolução de seu filho estava tomada. Por isso não insistiu.
Enquanto a Jorge, conhecia tão bem o motivo por que Tiago ia a bordo, que não buscou dissuadi-lo deste projecto. Declarou somente a seu irmão que ele e seu pai o acompanhariam até além da cordilheira de Pieterboot, de onde podiam vê-lo embarcar e segui-lo com a vista até ao navio.
Partiu pois Tiago em companhia de Jorge e seu pai, e todos três por veredas conhecidas só de caçadores, chegaram à nascente do rio das Cabaças. Onde Tiago se despediu destes amigos do seu coração, que tão pouco tempo vira, mas que solenemente prometia em breve tornar
a ver.
Chegado que foi Tiago a bordo, o brigue, que até então havia feito bordos, emproou com
a ilha da Arêa, e o mais que pôde navegar para o norte.
Durante este tempo, o céu e o mar tinham-se tornado cada vez mais ameaçadores.
O mar bramindo, crescia visivelmente, posto que não fosse hora de maré. O céu como querendo competir com o Oceano, cobria-se de nuvens, que rapidamente corriam, e se abriam de repente para dar passagem a rajadas de vento, que variava de WSW, para SW, e SSW.
Todavia estes sintomas, para quem não fosse martírio, só anunciavam um temporal ordinário.
Já algumas vezes no ano tinha havido iguais ameaças, sem serem seguidas de catástrofe.
Porém ao voltar a casa, Jorge e seu pai foram obrigados a reconhecer a sagacidade de Tiago. O azougue do barómetro havia logo descido espantosamente.
Imediatamente Pedro Munier ordenou ao feitor que mandasse cortar por toda a parte as hastes de mandioca, para salvar ao menos as raízes, que, quando se não toma esta precaução, quase sempre são arrancadas da terra e levadas pelo vento.
Da sua parte Jorge mandou que ali tivesse um cavalo selado às oito horas. Ouvindo dar esta ordem, Pedro Munier estremeceu.
— Para que mandas selar o teu cavalo? — perguntou ele com assombro.
— Devo achar-me na cidade pelas dez horas, meu pai — respondeu Jorge.
— Mas isso, meu filho, é impossível! — exclamou o velho.
— É de absoluta necessidade — disse Jorge.
E no acento nesta voz, assim como na de Tiago, o pobre pai reconheceu uma tal resolução, que abaixou a cabeça suspirando, mas sem insistir mais. Durante este tempo, Miko-Miko cumpria a sua missão.
Apenas chegou a Porto Luís, encaminhou-se a casa de Malmedie, cuja entrada duplicadamente lhe abria a encomenda de Henrique.
Miko-Miko apresentou-se ali desta vez com mais confiança, porque passando pelo porto vira Malmedie e seu filho a observar os navios ancorados, e cujos capitães, receosos do vento que esperavam, mandavam dobrar as amarras.
Entrou pois o chinês em casa de Malmedie, sem receio de que pessoa alguma o estorvasse no que lá ia fazer, e Biju, que pela manhã o tinha visto em conferência com Henrique e com a que já reputava como sua senhora, sem demora o guiou à presença de Sara, que se achava no pavilhão, segundo o seu costume.
Como Jorge havia conjecturado, entre os novos objectos que Miko-Miko oferecia à curiosidade da jovem crioula, foi o lindo cofrezinho que atraiu logo a sua vista.
Sara pegou-lhe, voltou-o de todos os lados, e depois de o admirar por fora, quis vê-lo por dentro, e pediu a chave para o abrir. Então o chinês fingiu que procurava esta chave, mas debalde, enfim ele fez sinal de que lhe havia certamente esquecido em casa, onde ia buscá-la, e saiu logo deixando o cofrezinho, e prometendo voltar com a chave.
Passados dez minutos, e enquanto Sara com todo o ardor da sua curiosidade infantil, examinava o pequeno cofre, entrou Biju, e deu-lhe a chave que Miko-Miko remetera por um preto.
Pouco importava a Sara por que modo a chave lhe vinha à mão, com tanto que a obtivesse. Recebeu-a pois de Biju, que se retirou para ir fechar todos os guardaventos das janelas, ameaçados pela tempestade.
Sara, ficando só, abriu logo o cofrezinho, o qual, como já sabemos, só continha um papel dobrado em quatro, mas não selado.
Jorge anteviu tudo, tudo havia meditado.
Era indispensável que Sara estivesse só no momento em que deparassem com a sua carta. Convinha que a carta fosse aberta, para que ela não pudesse recambiá-la, dizendo que não a tinha lido.
Por isso Sara, vendo-se só, hesitou um momento. Mas conjecturando de onde vinha a carta, instigada pela curiosidade, pelo amor, por esses sentimentos enfim que fervem no coração das raparigas, não pôde resistir ao desejo de ver o que Jorge lhe escrevia. E toda perturbada pegou na carta, desdobrou-a, e leu as seguintes palavras:
«Sara,
«Não careço dizer que a amo, porque o sabe o sonho de toda a minha existência tem sido uma companheira como a senhora.
«Ora, há no mundo destas posições excepcionais, e na vida desses momentos supremos em que todas as conveniências da sociedade desaparecem ante a terrível necessidade.
«Sara, ama-me?
«Pondere o que será a sua vida com Henrique de Malmedie, considere no que ela há-de ser comigo.
Com ele, a consideração de todos.
Comigo, a vergonha duma preocupação.
Mas eu amo-a, ainda o repito, mais do que nenhum homem a amou, nem há-de amar.
Não ignoro que Henrique de Malmedie apressa o momento em que deve ser seu marido. Não há pois tempo a perder. Sara, a senhora é livre, ponha a mão sobre o seu coração e pronuncie-se entre mim e Henrique.
A sua resposta será para mim tão sagrada como se fosse uma ordem de minha mãe. Esta noite. Pelas dez horas, achar-me-ei no pavilhão para recebê-la.
Jorge.»
Sara olhou em torno de si inquieta. Parecia-lhe que em se voltando ia ver Jorge.
Neste momento abriu-se a porta, e em vez de Jorge apareceu Henrique. Sara escondeu no seio a carta, que tinha na mão.
Henrique, como já dissemos, tinha em geral más inspirações a respeito da sua prima. Desta vez não foi ele mais feliz que de costume. O momento era mal escolhido para se apresentar a Sara, prevenida como estava por outro.
— Desculpe-me, querida Sara — disse Henrique. — Se venho ter consigo sem me mandar anunciar. Porém entre pessoas que de aqui a quinze dias hão-de ser marido e mulher, parece-me que são permitidas semelhantes liberdades. Além de que, eu venho dizer-lhe que se tem algumas flores, que estime, faz bem em mandá-las recolher.
— E porquê? — perguntou Sara.
— Não vê que se prepara uma tempestade, e que tanto as flores como as pessoas, mais conveniente será que esta noite estejam recolhidas?
— Meu Deus! — exclamou Sara pensando em Jorge. — Haverá pois algum perigo?
— Para nós, que possuímos uma casa sólida, não, — disse Henrique. — Mas para os miseráveis, que habitam em choupanas, ou que tiverem que fazer pelos caminhos, sim. E confesso que eu não quisera estar em lugar deles.
— Acredita nisso, Henrique?
— Se o acredito! Escute, não ouve?
— O quê?
Os filaos(1) do jardim da Companhia.
— Sim, sim. Estão agitados, é sinal de tempestade, não é verdade?
— E veja como o céu se está a nublar. Assim, repito-lhe, Sara, se tem alguma flor a recolher, não há tempo a perder, eu vou fechar os meus cães.
E Henrique saiu para pôr a sua matilha ao abrigo da tempestade.
Com efeito, a noite ia-se avizinhando com extraordinária rapidez, porque grossas nuvens negras se encapelavam no céu. De tempo a tempo rajadas de vento abalavam a casa, depois tudo ficava em sossego, mas era esse sossego pesado, que parece a agonia da natureza esbaforida.
Sara olhou para o pátio e viu as mangueiras, que estremeciam como se tivessem sentimento e previssem a luta, que se ia travar entre o vento, a terra e o céu, enquanto os lilazes da China para o chão inclinavam tristemente as suas flores.
A esta vista, Sara sentiu-se acometida dum terror profundo, e ajuntou as mãos, murmurando:
— Ó meu Deus! Protegei-o.
Neste momento, ouvindo Sara a voz de seu tio, que a chamava, abriu a porta.
— Sara — disse Malmedie —, Sara, vem cá, minha filha. Não estás em segurança no
pavilhão.
— Aqui estou, meu tio — disse Sara fechando a porta e tirando a chave, para que ninguém ali entrasse na sua ausência.
Porém em vez de se juntar com Henrique e com seu tio, retirou-se para o seu quarto, onde Malmedie foi, um instante depois, ver o que ela estava fazendo, e encontrou-a de joelhos diante do Santo Cristo, que estava ao pé da sua cama.
— Que fazes aí? — disse ele. — Em vez de vir tomar chá connosco.
— Meu tio — respondeu Sara —, estou orando pelos viajantes.
— Essa é boa! — disse Malmedie. — Estou certo de que não haverá em toda a ilha um homem assaz desassisado para se pôr a caminho com este tempo.
— Deus o ouça — disse Sara, e continuou a orar.
Com efeito, já não havia dúvida, e o acontecimento, que Tiago, com o seu golpe de vista de marítimo, tinha vaticinado, ia efectuar-se uma de essas terríveis tempestades, que são o terror das colónias, ameaçava a ilha de França. A noite, como dissemos, havia chegado com uma velocidade espantosa. Porém os relâmpagos sucediam-se com tal rapidez e tamanho clarão, que a obscuridade era quase substituída por uma claridade azulada e lívida, que dava a todos os objectos a pálida cor desses mundos que Biron faz visitar ao seu herói guiado por Satanás.
Cada um dos breves intervalos em que os relâmpagos, quase incessantes, deixavam as trevas senhoras da terra, era preenchido por violentos ribombos de trovões que começavam por detrás das montanhas, pareciam rolar pelos seus declives, elevavam-se por cima da cidade, e iam perder-se ao longe no horizonte.
Depois disto, fortes rabanadas de vento seguiam o raio e passavam curvando, como se fossem varinhas de salgueiro, as árvores mais robustas, que devagar se erguiam, para se tornarem logo a curvar com alguma nova rajada, sempre mais forte que a precedente.
Era no centro da ilha, principalmente no bairro de Moka e nas planícies Williams, que a tempestade, livre e como alegre da sua liberdade, tinha mais que contemplar.
Por isso Pedro Munier estava dobradamente assustado, por ver que Tiago tinha partido, e que Jorge se achava prestes a partir. Porém fraco sempre ante qualquer força moral,
*1. Árvores das colónias, que fazem as vezes dos nossos ciprestes sobre os túmulos.
o pobre pai havia cedido. E tremendo sempre ao ruído do vento, tornando-se pálido ao estampido dos trovões, sobressaltando-se a cada relâmpago, não buscava reter Jorge ao pé de si.
Pelo que diz respeito a este mancebo, parecia crescer a cada minuto, que o avizinhava do perigo. Ao contrário de seu pai, a cada ruído ameaçador erguia ele a cabeça, sorria a cada relâmpago. Ele, que até então havia experimentado de todas as lutas humanas, mostrava tardar-lhe o ensejo de lutar com Deus.
Por isso, chegada que foi a hora da partida, com essa inflexibilidade de resolução, que era o carácter distintivo, não diremos da educação, que recebera, mas da que havia adoptado. Jorge chegou-se a seu pai, estendeu-lhe a mão, e, sem dar mostras de compreender o tremor da do ancião, saiu com passo tão seguro e semblante tão sereno, como se saísse nas circunstâncias ordinárias da vida. À porta encontrou ali, que, com a passividade da obediência oriental, tinha pela rédea o cavalo selado.
O filho do deserto rinchando impinava-se, mas à voz bem conhecida do seu cavaleiro pareceu sossegar, e voltou para ele seus olhos furibundos, suas fumegantes ventas, Jorge com a mão afagou-o, dizendo-lhe algumas palavras árabes. Depois disto, com a ligeireza dum picador consumado, cavalgou sem meter o pé no estribo, e partiu com a rapidez do raio, sem reparar em seu pai, que, para separar-se o mais tarde possível do seu querido filho, havia aberto a porta, e com os olhos seguiu até ao momento de o perder de vista.
Era coisa admirável ver este homem, correndo com tanta rapidez como o furacão por meio do qual passava, atravessando o espaço, semelhante a Fausto, indo ao Broken no seu corsel infernal. Tudo em torno dele era confusão e desordem.
Só se ouvia o ranger das árvores sacudidas pelo vento.
As canas de açúcar, as estacas de mandioca, arrancadas de suas hastes, atravessavam o ar, como penas levadas pelo vento.
Os pássaros, surpreendidos no meio do seu sono e arrebatados por um voo, que já não podiam dirigir, passavam em torno de Jorge dando agudos gritos, enquanto de tempos a tempos algum veado espavorido atravessava a estrada com a rapidez duma seta.
Então Jorge julgava-se ditoso, porque sentia o coração cheio de orgulho. Só ele estava sossegado no meio da desordem universal, e quando junto a si tudo se curvava ou se fazia em pedaços, só ele proseguia o seu caminho, sem que nada o pudesse fazer desviar, sem que nada pudesse distraí-lo do seu projecto.
Deste modo caminhou por espaço duma hora pouco mais ou menos, passando por cima de troncos de árvores quebradas, atravessando regatos convertidos em torrentes, e transpondo pedras caídas do alto das montanhas.
Enfim avistou o mar agitado, cujas ondas, esverdinhadas, espumosas e bramindo, com espantoso ruído iam quebrar-se nas praias.
Jorge tinha chegado junto ao monte dos Sinais, cuja base contornou. Levado sempre pela rápida carreira do seu cavalo, atravessou a ponte, costeou por detrás as muralhas do bairro, e desceu pela rua da Rampa para o jardim da companhia. Dali, subindo pela cidade deserta por meio de minas de chaminés derribadas, de muros desabando e de telhas caídas, seguiu a rua da Comédia, voltou à direita, entrou na do Governo, introduziu-se no beco situado defronte do teatro, apeou-se, abriu a barreira, que separava o beco da pequena rua plantada de árvores, que estava sobranceira à casa de Malmedie, tornou a fechar a barreira, deitou a rédea no pescoço do cavalo, que, não tendo saída, não podia fugir. Feito isto, deixando-se escorregar pelos telhados arrimados à dita rua de árvores, e saltando ao chão, achou-se na estância para onde davam janelas do pavilhão, cuja descrição já fizemos.
Durante este tempo, Sara estava no seu quarto, ouvindo rugir o vento, benzendo-se a cada relâmpago, rezando sem cessar, invocando a tempestade, porque entendia que ela estorvaria que Jorge saísse.
Depois, estremecendo consigo, dizia que quando um homem como Jorge projectava fazer qualquer coisa, ainda que o mundo todo houvesse de desabar sobre ele, decerto a faria.
Então, ela pedia a Deus que abrandasse o vento e acabasse os relâmpagos. Via Jorge esmagado por alguma árvore, ou rochedo, rolando ao fundo de alguma torrente, e então com assombro compreendia o rápido poder que sobre ela havia tomado o seu salvador. Conhecia que toda a resistência a esta atração era inútil, que toda a luta, enfim era baldada contra o amor já tão veemente que o seu coração só podia agitar-se e gemer, dando-se por vencida sem mesmo haver buscado lutar.
À proporção que iam correndo as horas, aumentava a agitação de Sara, que com os olhos fitos no relógio, seguia o movimento do ponteiro. E uma voz do coração lhe dizia, que a cada minuto, que ele mostrava, Jorge se aproximava dela.
O relógio soou sucessivamente nove horas, nove e meia, de menos um quarto. E a tempestade, longe de abrandar, ia-se tornando mais terrível.
A casa tremia até os alicerces, e parecia que o vento a arrancava do seu lugar.
De tempos a tempos, no meio do ruído dos filaos, ao som dos gritos dos negros, cujas cabanas, menos sólidas que as habitações dos brancos, eram pelo vento derribadas, ouvia-se, respondendo ao trovão, o lúgubre sinal de algum navio a pedir socorro, bem certo de que nenhum ente humano lho podia levar.
No meio de todos estes ruídos diversos, ecos da devastação, pareceu a Sara que ouvia relinchar um cavalo.
De repente levanta-se. Havia tomado a sua resolução. O homem, que através de semelhantes perigos, quando os mais animosos tremiam em suas casas, a buscava, atravessando florestas desarraigadas, rápidas torrentes, medonhos precipícios, e tudo isto para dizer-lhe: «Eu amo-a, Sara! E a senhora ama-me?». Este homem era na verdade digno dela. E se Jorge fazia isto, ele, que a livrara da morte e que por ela agora expunha a própria vida, então ela pertencia a Jorge, como este lhe pertencia. Já não era isto uma resolução, que de livre arbítrio ela tomava, era sim uma divina mão que a sujeitava a um destino determinado, sem que ela pudesse opor-se-lhe.
Sara não decidia já a sua sorte, obedecia passivamente a uma fatalidade.
Então, com a resolução filha das circunstâncias supremas, Sara saiu do seu quarto e encaminhou-se ao ângulo do pátio quadrado, de onde, topando destroços a cada passo, se dirigiu, encostando-se ao muro para não ser derribada pelo vento, à porta do pavilhão. No momento em que punha a mão na chave, um relâmpago lhe deixou ver as mangueiras torcidas, os lilazes destruídos, as flores desfolhadas. Só então pôde Sara fazer ideia da convulsão em que se achava a natureza.
Pensou que ia talvez aguardar debalde, e que Jorge não viria. Não porque o medo o tolhesse, mas por ter morrido. Tudo com esta ideia desapareceu, e Sara entrou com ímpeto no pavilhão.
— Muito obrigado, Sara — disse uma voz, que a fez extremecer até ao íntimo do coração. — Muito lhe agradeço! Não me enganei, ama-me. O céu a abençoe.
Neste mesmo tempo sentiu Sara que lhe pegavam na mão, um coração contra o seu palpitava, um hálito, que com o seu hálito se confundia. Uma sensação desconhecida, rápida, abrasadora, lhe percorreu por todo o corpo. Desfalecida, dobrando-se sobre si mesma como a flor sobre a haste, encostou-se ao ombro de Jorge, tendo consumido na luta, que havia duas horas sustentava, toda a força de sua alma, e restando-lhe só a de murmurar:
— Jorge, Jorge, tenha dó de mim.
Jorge compreendeu este apelo da fraqueza à força, do pudor da donzela à lealdade do
amante. Talvez ali chegasse com outro intuito, porém conheceu que desde aquela hora Sara lhe pertencia. Que tudo o que da virgem obtivesse seria outro tanto roubado à esposa. E posto que tremendo ele mesmo de amor, desejo e ventura, contentou-se com guiá-la para junto da janela, afim de a ver ao clarão dos relâmpagos, e inclinando a cabeça sobre a da jovem crioula:
— És minha, Sara, não é assim? — disse ele. — Minha para sempre!
— Sim, sim, para sempre! — respondeu Sara.
— Nada, além da morte, poderá separar-nos!
— Só a morte e nada mais!
— Assim o juras, Sara?
— Por minha mãe o juro, Jorge.
— Pois bem! — disse o mancebo, estremecendo ao mesmo tempo de felicidade e orgulho. — Desde este momento és minha mulher. E desgraçado de quem se atrever a disputar-te.
Dizendo estas palavras, Jorge chegou seus lábios aos de Sara. E temendo certamente não poder ser senhor de si à vista de tanto amor, mocidade e formosura, arremessou-se para o gabinete vizinho, do qual a janela, como a do pavilhão, dava para a estância, e desapareceu.
Neste momento retumbou um trovão tão violento, que Sara caiu de joelhos.
Quase no mesmo instante a porta abriu-se, entrando Malmedie seguido de Henrique.
PEDIDO DE CASAMENTO
Durante a noite cessou a tormenta. Porém só no dia seguinte pela manhã foi possível avaliar os estragos causados por ela.
Muitos navios fundeados no porto haviam experimentado consideráveis avarias, alguns foram arremessados uns contra os outros e mutuamente se danificaram, ficando desmastreados e rasos como pontões. Dois ou três foram encalhar na ilha dos Tanoeiros. Enfim um sossobrou no porto e perdeu-se, sem que fosse possível socorrê-lo.
Em terra não era menor a devastação. Poucas casas de Porto Luís haviam ficado ao abrigo deste terrível cataclismo. As que eram cobertas de ripas, ardósia, telha, cobre ou folha de Flandres, tiveram a parte superior destruída, e só resistiram completamente as que terminavam em eirados à indiana. Por isso se viam pela manhã as ruas juncadas de destroços, e alguns edifícios só se conservavam sobre os seus alicerces com auxílio de muitas escoras. Todas as tribunas preparadas para as carreiras tinham sido derribadas. Dois canhões de grosso calibre, postos em bateria na vizinhança da Grande Ribeira, foram voltados pelo vento, e no dia seguinte encontrados em sentido oposto ao que na véspera os haviam deixado.
O interior da ilha apresentava um aspecto não menos deplorável. Tudo o que restava da colheita, e felizmente ela estava quase feita, foi arrancado da terra. Em muitos sítios, consideráveis porções de floresta ofereciam o aspecto dos trigos prostrados pela saraiva. Quase nenhuma árvore isolada resistiu ao furacão, e os mesmos tamarindos, tão flexíveis, se quebraram, coisa até então havida por impossível.
A casa de Malmedie, uma das mais elegantes de Porto Luís, padeceu muito. Houve mesmo um momento em que os abalos foram tão violentos, que ele e seu filho resolveram ir buscar refúgio no pavilhão o qual, tendo um só andar, e abrigado pelo eirado, estava menos exposto ao vento. Henrique correra pois ao quarto da sua prima, mas não a encontrando ali, entendeu que Sara, assim como ele e seu pai, assustada pela tempestade, tivera a ideia de se refugiar no pavilhão, onde efectivamente a foram encontrar.
A presença de Sara naquele lugar era naturalmente motivada, e o seu terror não carecia de desculpa.
Disto resultou que nem o pai, nem o filho suspeitaram um só momento a causa, que fizera ausentar Sara do seu quarto, e atribuíram-na a um sentimento de receio, de que eles mesmos não foram isentos.
Chegado que foi o dia a tempestade abonançou. Porém, posto que ninguém houvesse dormido durante a noite, não havia quem se atrevesse a entregar-se ao descanso, e cada um tratou de verificar a porção de perdas pessoais que tinha a suportar.
O novo governador andou desde pela manhã discorrendo por todas as ruas da cidade. E pôs a guarnição às ordens dos habitantes. Do que resultou que naquela mesma tarde uma parte dos vestígios da catástrofe havia já desaparecido. E também, cumpre dizê-lo, todos com grande diligência trabalhavam para restituir a Porto Luís o aspecto, que na véspera oferecia.
Avizinhava-se o tempo da festa do Yamsé, uma das maiores solenidades da ilha de França. Ora como esta festa, cujo nome é provavelmente ignorado na Europa, tem grande conexão, com os acontecimentos desta história, pedimos aos nossos leitores para dizermos acerca dela algumas palavras preparatórias, que reputamos indispensáveis.
Notório é que a grande família maometana se acha dividida em duas seitas, não só diferentes, mas também inimigas, a sunita e a xiita. Uma, de que dependem as povoações árabes e turcas, reconhece Abou-Beker, Omar e Osman por legítimos sucessores de Maomé. A outra, seguida pelos persas e muçulmanos índios, reputa os três califas como usurpadores, e sustenta que só Ali, genro e ministro do profeta, tinha direito à sua herança política e religiosa.
Durante as longas guerras que entre si fizeram os pretendentes, Hosein, filho de Ali, foi apanhado perto da cidade de Kerbela, por um bando de soldados que Omar enviara em sua perseguição. E o jovem príncipe com sessenta parentes seus, que o acompanhavam, foram mortos depois de uma heróica defesa.
É o aniversário deste acontecimento nefasto, que todos os anos celebram por uma festa solene os índios maometanos. Esta festa é chamada Yamsé, por corrupção dos brados — Ya Hosein, ó Hosein!—, que os persas repetem em coro. Assim como o nome, têm eles alterado a festa introduzindo nela usos do seu país natal e cerimónias da sua antiga religião.
Era na segunda feira seguinte, dia de lua cheia, que os Lascaros, que na ilha de França representam os xiitas índios, segundo o seu costume deviam celebrar o Yamsé, e oferecer à colónia o espectáculo desta singular cerimónia, esperada com mais curiosidade ainda naquele ano do que nos precedentes.
Com efeito, uma circunstância extraordinária devia tornar a festa mais magnífica do que nunca fora. Os Lascaros estavam divididos em dois bandos, os de mar e os de terra, sendo os primeiros conhecidos por trazerem opas verdes, e os outros brancas. Comumente cada bando celebra da sua parte a festa com o maior luxo e esplendor possível, buscando eclipsar assim o seu rival. Disto resulta uma emulação, que dá azo a disputas, que degeneram em rixas. Os Lascaros de mar mais pobres, porém mais valentes que os de terra, chegam a vingar-se às pauladas, e às vezes a cutiladas, da superioridade financeira de seus adversários, e então a polícia vê-se obrigada a intervir para obstar a uma luta mortal.
Porém este ano, graças à activa intervenção dum medianeiro desconhecido, animado certamente dum zelo religioso, os dois partidos haviam renunciado às suas rivalidades, e tinham-se encorporado num só. Pelo que se espalhou geralmente a notícia de que a solenidade seria mais pacífica e esplêndida do que anos precedentes.
Bem se compreende com quanta impaciência esta festa, sempre curiosa mesmo para quem está costumado a vê-la desde a infância, se espera, numa localidade em que há tão poucas distracções como na ilha de França.
Três meses antes, é ela objecto de todas as conversações. Toda a gente fala do gouhn, que deve ser o principal ornamento da festa. Ora, depois de havermos dito em que esta festa consiste, digamos também o que é o gouhn.
O gouhn é uma espécie de pagode de bambu, ordinariamente com três andares sobrepostos uns aos outros, e coberto de papéis de todas as cores. Cada um destes andares é construído numa casa à parte, quadrada como ele, e que se abre por uma de suas faces para lhe dar saída. Transportam depois os três andares a uma quarta casa, que pela sua altura permite estabelecê-los uns em cima dos outros. Ali, são reunidos por ligaduras, e é aperfeiçoada toda a obra.
Para chegarem a um resultado digno do objecto a que se propõem, os Lascaros andam às vezes quatro meses antes por toda a colónia, em busca dos mais hábeis operários. índios, chinas, pretos livres e escravos, todos são empregados. Porém o jornal destes últimos é pago ao seu senhor, em vez de o ser a eles próprios.
No meio das perdas individuais, que cada um tinha a deplorar, com geral contentamento se soube que a casa em que o gouhn se achava, já em completo estado de perfeição, abrigada pela montanha do Polegar, escapara a todo o acidente. Nada faltaria pois este ano à festa a que o governador, em sinal de boa vinda, juntara corridas, cujos prémios, na sua generosa aristocracia, ele se dispunha a conceder, com a condição porém de que haviam de correr os próprios donos dos cavalos, como é uso dos gentlemen readers em Inglaterra.
Tudo, como se vê, concorria para que o prazer que o povo esperava, fizesse esquecer o desgosto que ele acabava de experimentar. Por isso, dois dias depois da tempestade, os preparativos da festa começavam já a suceder às preocupações da catástrofe.
Somente Sara, contra o seu costume, absorta em pensamentos ignorados por quem a rodeava, mostrava não tomar interesse algum numa solenidade que a havia contudo, nos anos precedentes, sobremaneira preocupado. Com efeito, toda a aristocracia da ilha de França costumava assistir às carreiras, bem como ao yamsé, em tribunas construídas de propósito ou em carruagens descobertas. Em qualquer dos casos, tinham as belas crioulas de Porto Luís uma ocasião de ostentar a sua elegância. Com razão se admiravam todos de que Sara, em quem a notícia de qualquer baile ou espectáculo produzia de ordinário tão profunda impressão, se mostrasse esta vez estranha ao que ia suceder.
A mesma Henriqueta, que tinha educado Sara e no íntimo de sua alma lia como através do cristal mais puro, não compreendia a causa desta indiferença, e se havia tornado pensativa.
Apressemo-nos em dizer que Henriqueta, cuja entrada, em Porto Luís não tivemos ocasião de assinalar, no meio dos graves acontecimentos que acabamos de referir, tivera tamanho medo durante a noite da tempestade, que partiu, posto que padecendo ainda da sua comoção precedente, da Ribeira Negra imediatamente depois que o vento cessou, e chegou pelo dia a Porto Luís. Achava-se pois desde a antevéspera reunida à sua discípula, cuja preocupação extraordinária começa, como deixamos dito acima, a inquietá-la seriamente.
Esta preocupação provinha da grande mudança na vida de Sara, desde o momento em que, pela primeira vez, vira Jorge. A imagem, as maneiras, e até o som da voz do gentil mancebo ficaram no seu espírito. Então, e com um suspiro involuntário, ela mais de uma vez pensou no seu futuro casamento com Henrique, casamento que por espaço de dez anos havia dado o seu consentimento tácito, por isso que jamais deixou suspeitar que podiam aparecer circunstâncias que tornassem para ela este casamento uma obrigação impossível de cumprir. Porém, no dia do jantar em casa do governador, já Sara conheceu que receber seu primo por marido, era condenar-se a uma desgraça eterna. Enfim, havia chegado um momento em que não só este receio se tornara convicção, mas em que ela prometera solenemente a Jorge que jamais pertenceria a outro.
Ora, todos hão-de concordar, era esta uma situação que devia dar muito que pensar a uma menina de dezasseis anos, e fazer-lhe encarar debaixo dum ponto de vista menos importante que de antes todas estas festas e prazeres, que até aquele momento lhe haviam parecido os mais interessantes acontecimentos da sua vida.
Também Malmedie e seu filho, havia cinco ou seis dias, não estavam isentos de alguma preocupação. Não querer Sara dançar com outro, quando não dançara com Jorge, a sua ausência do baile no momento de começar, ela,, que era habitualmente a última a sair. O seu silêncio obstinado cada vez que seu primo ou seu tio falavam no casamento, tudo isto lhes não parecia natural.
Por isso ambos decidiram que se fizessem os preparativos das núpcias sem falar neles a Sara, e que só quando tudo estivesse pronto ela fosse avisada.
Isto era tanto mais simples, quanto nunca se havia determinado a época desta união, e Sara havendo completado dezasseis anos, achava-se perfeitamente em idade de preencher os desígnios, que sempre Malmedie a seu respeito tivera.
Todas estas preocupações particulares produziam uma preocupação geral, que tornava, havia três ou quatro dias, muito insípidas e incómodas as reuniões entre as diferentes pessoas que habitavam em casa de Malmedie.
Estas reuniões tinham habitualmente lugar quatro vezes por dia, pela manhã, à hora do almoço. Às duas horas, isto é, ao jantar. Às cinco, ao chá, e às nove, para cear.
Sara, havia três dias tinha pedido e alcançado almoçar no seu aposento, o que a livrava dum momento de incómodo, mas ainda restavam três reuniões, que só sob pretexto de indisposição ela podia evitar. Porém semelhante pretexto não podia ter resultado durável. Sara havia-se pois decidido a aparecer às horas do costume.
Três dias depois do acontecimento, achava-se ela, pelas cinco horas, na grande sala de família, trabalhando ao pé da janela num bordado, o que lhe dava ocasião de não erguer os olhos, enquanto Henriqueta fazia o chá com toda a atenção que as senhoras inglesas costumam dar a esta importante ocupação, e Malmedie e seu filho, em pé diante da chaminé, estavam conversando em voz baixa, quando de repente a porta se abre, e Biju anuncia Lord Murrey e Jorge Munier.
Neste momento, cada um dos assistentes, como é fácil compreender, sentiu uma impressão diferente. Malmedie e seu filho, julgando que haviam entendido mal, fizeram repetir os nomes que Biju pronunciara. Sara, corando, baixou os olhos sobre a sua obra, e Henriqueta, que acabava de abrir a torneira da uma, ficou de tal modo perturbada, que ocupada em olhar sucessivamente para Malmedie, seu filho, Sara e Biju, deixou transbordar a água a ferver, que começou a correr do bule para a mesa, e desta para o chão.
Biju repetiu os dois nomes acompanhando as suas palavras do mais agradável sorriso que lhe foi possível.
Malmedie e seu filho olharam um para o outro com uma admiração crescente. Porém, vendo que era preciso decidir:
— Manda entrar — disse Malmedie.
Lord Murrey e Jorge apresentaram-se.
Ambos estavam vestidos de preto e de casaca, o que indicava uma visita de cerimónia.
Malmedie deu alguns passos indo ao encontro dos recém-chegados, enquanto Sara se levantava corando e, depois de uma reverência tímida, se tornava a assentar ou antes a cair na sua cadeira, e Henriqueta, reparando no despropósito, que a admiração lhe fizera cometer, apressada fechava a torneira da uma.
Biju, a um gesto de seu senhor, chegou duas cadeiras de braços. Porém Jorge inclinou-se fazendo sinal de que era inútil, e de que se conservaria em pé.
— Senhor — disse o governador dirigindo-se a Malmedie —, aqui está o senhor Jorge Munier, que me pediu que o acompanhasse a sua casa, e com a minha presença apoiasse uma petição que tem a fazer-lhe. Como o meu sincero desejo é que lhe seja concedido o que pede, entendi que não devia recusar-me a este passo, que também me dá a honra de o ver.
— Nós somos muito obrigados ao senhor Jorge Munier — respondeu Malmedie. — E folgaríamos de ter ocasião de lhe sermos prestáveis em alguma coisa.
— Se quer, senhor — respondeu Jorge —, aludir à felicidade que tive de salvar sua sobrinha do perigo em que se viu, permita-me que lhe afirme que todo o reconhecimento é de mim para Deus, que me conduziu ali para fazer o que outro qualquer em meu lugar faria.
Além de que — acrescentou Jorge sorrindo —, vai saber, senhor, que o meu modo de proceder naquela ocasião não era isento de egoísmo.
— Perdoe-me, senhor, mas não o compreendo — disse Henrique.
— Sossegue — prosseguiu Jorge —, não há-de ser longa a sua dúvida, é o que eu passo a explicar claramente.
— Estamos prontos a escutá-lo, senhor.
— Devo ausentar-me, meu tio? — perguntou Sara.
— Se eu me atrevesse a esperar — disse Jorge voltando-se um pouco e inclinando-se — que um desejo enunciado por mim teria em si alguma influência, suplicar-lhe-ia, pelo contrário, que ficasse.
Sara tornou a sentar-se, e por um momento reinou o silêncio, até que Malmedie fez sinal de que estava esperando.
— Senhor — disse Jorge com uma voz perfeitamente sossegada —, conhece-me. Sabe a que família pertenço. E não ignora a minha fortuna. Possuo ao presente dois milhões. Desculpe-me se entro nestas particularidades. Porém reputo-as indispensáveis.
— Contudo, senhor — prosseguiu Henrique —, confesso que debalde busco entender em que elas nos podem interessar.
— Também não é exactamente com o senhor que eu falo — respondeu Jorge conservando o mesmo sossego no ar e na voz, enquanto Henrique mostrava uma impaciência visível. — Mas sim com seu pai.
— Permita-me que lhe diga, senhor, que também não compreendo que necessidade meu pai tem de semelhantes informações.
— Agora o compreenderá — respondeu Jorge com gravidade. Depois, fitando a vista em Malmedie:
— Eu venho — continuou ele — pedir-lhe a mão de sua sobrinha.
— E para quem? — perguntou Malmedie.
— Para mim — respondeu Jorge.
— Para o senhor! — exclamou Henrique, fazendo um movimento, que logo reprimiu um olhar terrível do jovem mulato.
Sara fez-se pálida.
— Para o senhor? — perguntou Malmedie.
— Sim, senhor, para mim — respondeu Jorge inclinando-se.
— Porém bem sabe — exclamou Malmedie —, que minha sobrinha está destinada para meu filho.
— E por quem — perguntou por seu turno o jovem mulato.
— Por quem, por quem, essa é boa! Por mim — respondeu Malmedie.
— Cumpre-me observar — disse Jorge —, que a senhora Sara não é sua filha. Mas sim sobrinha, o que faz com que lhe não deva mais do que uma obediência relativa.
— Porém, senhor, toda esta discussão parece-me mais que singular.
— Perdoe-me — disse Jorge. — Acho-a pelo contrário perfeitamente natural. Amo sua sobrinha. Creio que sou chamado a torná-la ditosa. Obedeço pois ao mesmo tempo a um desejo do meu coração, e a um dever da minha consciência.
— Porém minha prima não o ama, senhor — exclamou Henrique com a sua impetuosidade natural.
— Engana-se — respondeu Jorge. — E eu estou autorizado por ela a dizer-lhe que me ama.
— Ela, ela? — exclamou Malmedie. — Isso é impossível!
— Está enganado, meu tio — disse Sara, erguendo-se. — Este senhor diz a verdade!
— Como! É possível! Minha prima, pois atreve-se? — exclamou Henrique arremeçando-se para Sara com um gesto que parecia ameaça.
Jorge fez um movimento, mas o governador teve mão nele.
— Atrevo-me a repetir — disse Sara respondendo com um olhar de desprezo ao gesto de seu primo. — O que já declarei ao senhor Jorge. A vida que ele me salvou, pertence-lhe, e eu nunca hei-de ser de outro.
E dizendo estas palavras, com um gesto cheio de graça e dignidade, um gesto de rainha, ela estendeu a mão a Jorge, que inclinando-se a beijou.
— Isto é demais! — exclamou Henrique levantando uma chibata, que tinha na mão. Porém, assim como fizera a Jorge, Lord Wiliams Murrey teve mão em Henrique.
Pelo que toca a Jorge, contentou-se com lançar um sorriso desdenhoso sobre o filho de Malmedie, e conduzindo Sara até à porta, pela segunda vez se inclinou. Sara fez sinal a Henriqueta para que a acompanhasse e saiu com ela.
— Viu o que se passou, senhor — disse Jorge ao tio de Sara. — Já não pode duvidar dos sentimentos de sua sobrinha a meu respeito. Rogo-lhe pois que me dê uma resposta positiva à petição que tive a honra de lhe fazer.
— Uma resposta — exclamou Malmedie —, uma resposta! Tem a audácia de esperar que lhe dê outra além da que merece?
— Eu não lhe dito a resposta, que há-de dar-me. Só lhe peço uma qualquer que seja.
— Creio que não espera outra além duma recusa — exclamou Henrique.
— É seu pai, e não o senhor, que interrogo — respondeu Jorge. — Deixe-o responder-me e depois falaremos dos nossos negócios.
— Pois senhor — disse Malmedie —, saiba que recuso positivamente.
— Muito bem, essa resposta esperava eu — disse Jorge. — Porém este meu modo de proceder para com o senhor era indispensável.
E Jorge cortejou Malmedie com tanta urbanidade e bom modo como se nada houvesse ocorrido entre eles. Depois voltou-se para Henrique:
— Agora, senhor, falo com o senhor. Pela segunda vez, lembre-se bem, levantou com catorze anos de intervalo a mão para mim. A primeira vez com uma espada — e apartando o cabelo com a mão, mostrou a cicatriz, que tinha na testa. — A segunda com isso — e com o dedo mostrou a chibata, que Henrique tinha na mão.
— Então que pretende? — pergunta Henrique.
— Satisfação destes dois insultos — respondeu Jorge. — É animoso, não o ignoro, e espero que há-de responder como homem ao desafio que faço à sua coragem.
— Folgo de que conheça o meu valor. Ainda que me seja assaz indiferente a sua opinião a tal respeito — disse Henrique chacoteando. — Facilita-me a resposta, que tenho a dar-lhe.
— E qual é essa resposta? — perguntou Jorge.
— É que acho a sua segunda petição pelo menos tão exagerada como a primeira. Eu não me bato com um mulato.
Jorge tornou-se excessivamente pálido, e ainda assim um sorriso de indizível expressão se lhe notou nos lábios.
— Essa é a sua última resolução? — perguntou Jorge.
— Sim, senhor — respondeu Henrique.
— Muito bem — prosseguiu Jorge. — Agora sei o que me cumpre fazer. E cortejando Malmedie e seu filho, ausentou-se com o governador.
— Bem lhe havia eu prognosticado, senhor — disse Lord Murrey quando chegaram à porta.
— E não me vaticinou coisa que eu não soubesse já, milord— respondeu Jorge. Porém voltei aqui para cumprir um destino. É indispensável que eu vá até ao fim.
Tenho uma preocupação a combater, importa que ela me perca ou eu a extinga. Entretanto, milord, receba os meus agradecimentos.
Jorge inclinou-se, e apertando a mão ao governador, atravessou o jardim da companhia. Lord Murrey seguiu-o com a vista enquanto pôde, e quando ele desapareceu à esquina da rua da Rampa, disse:
— Eis ali um homem, que vai direito à sua perda. É pena, havia alguma coisa de grande naquele coração.
AS CORRIDAS
Era no sábado seguinte que haviam de começar as festas do yamsé, e a cidade, para este dia, tinha posto tal diligência em reparar os estragos causados pela tempestade, que ninguém diria que seis dias antes estivera a ponto de ser destruída.
Logo pela manhã os Lascaros de mar e os de terra, reunidos num só bando, saíram do acampamento malabar, situado fora da cidade entre os riachos das Donzelas e Fanfarrão, e precedidos duma música bárbara que consistia em tambores, flautas e berimbaus, se encaminharam a Porto Luís, para ali fazerem o que chamam o peditório. Os dois chefes iam a par, vestidos segundo o partido que representavam, um com opa verde, o outro branca, e levando cada um na mão uma espada nua.
Após estes caminhavam dois mulahs, conduzindo cada um deles um prato cheio de açúcar e coberto de folhas de rosa da China. Seguia-se a estes em muito boa ordem a falange indígena.
Pelas primeiras casas da cidade com ou o peditório. Porque, certamente por espírito de igualdade, os pedintes não desprezam as mais pequenas casas cuja oferta, assim como a das mais ricas habitações, é destinada a ajudar em parte os grandes gastos, que esta pobre gente faz para tornar a cerimónia o mais solene possível.
Enquanto ao mais, importa dizê-lo, o modo de pedir recente-se do orgulho oriental, e longe de ser baixo e servil, apresenta alguma coisa de nobre e patético.
Depois que os chefes, a que todas as portas se abrem, saúdam os donos das casas abaixando ante eles a ponta das espadas, o mulah adianta-se e oferece aos assistentes açúcar e folhas de rosa.
Durante este tempo, outros índios, designados pelos chefes, em pratos recebem o que lhes querem dar. Depois todos se retiram dizendo: Saiam.
Deste modo mostram não receber uma esmola, mas convidar as pessoas estranhas ao seu culto a uma comunhão simbólica, tomando parte com eles nas despesas do seu culto e dons da sua religião.
Nos tempos ordinários a petição se faz não só, como já dissemos, em todas as casas da cidade, mas também em todas as embarcações, que se acham no porto e entram nas atribuições dos Lascaros de mar.
Desta vez, porém, sobre o último ponto principalmente, a petição foi muito restrita, porque a maior parte dos navios havia sofrido tanto da tempestade, que os seus capitães estavam mais no caso de receber que de dar socorros.
Todavia, no mesmo momento em que os pedintes se achavam no porto, um navio, de que haviam feito sinal pela manhã, surgiu entre o reduto Labourdanaie e forte Branco, entrando com bandeira holandesa, e salvando ao forte que lhe correspondeu tiro por tiro.
Certamente este navio estava ainda a grande distância da ilha, quando teve lugar o furacão, porque nenhum desconcerto trazia na máquina, e navegava graciosamente inclinado, como se a mão de alguma deusa do mar à superfície de água o impelisse.
De longe, e com o auxílio de óculos, podia-se ver na tolda, com grande uniforme do rei Guilherme, toda a sua tripulação, que parecia, em traje de gala, vir de propósito para assistir à cerimónia.
Por isso fácil é adivinhar que graças ao seu aspecto alegre, este navio se tornou logo ponto de mira dos dois chefes.
Disto resultou que apenas lançou âncora, o chefe dos Lascaros de mar se meteu num barco, e, acompanhado pelos portadores de pratos e por uma dúzia dos seus, vogou para o navio, que, visto de perto, em nada desmentia a boa opinião que a uma certa distância havia inspirado.
Com efeito, se alguma vez o asseio holandês, tão celebrado nas quatro partes do mundo, havia merecido completo elogio, era à vista deste lindo navio, que parecia o seu templo florescente. A sua coberta lavada e esfregada, podia competir em asseio com o soalho da mais sumptuosa sala.
Os seus ornamentos de cobre brilhavam como ouro, e as escadas feitas de preciosa madeira da índia, mais pareciam um ornato que objecto de usual utilidade. Pelo que diz respeito às armas, qualquer diria serem armas de luxo, destinadas antes a um museu de artilharia do que ao arsenal dum navio.
O capitão Van den Brock, assim se chamava o capitão dessa linda embarcação, deu mostras de saber, vendo avizinhar-se os Lascaros, de que se tratava, porque foi receber o chefe ao cimo da escada. E havendo com ele trocado algumas palavras no seu idioma, o que provava não ser a primeira vez, que navegava, nos mares da índia, pôs no prato que lhe apresentaram não uma peça de ouro ou um cartucho de dinheiro, mas um bonito diamante que podia valer cem luzes, desculpando-se de não ter naquele momento outra moeda, e pedindo ao chefe dos Lascaros de mar que se contentasse com a sua oferta. Esta excedia tanto as previsões do sectário Ali, e ajustava-se tão pouco com a parcimónia ordinária dos compatriotas de João de With, que o chefe dos Lascaros esteve um momento sem poder acreditar em semelhante prodigalidade. E só depois que o capitão Van den Brock lhe afirmou três ou quatro vezes, que o diamante era destinado ao Bando xiita, pelo qual dizia que experimentava a mais viva simpatia, é que o chefe lhe agradeceu apresentando-lhe ele mesmo o prato com as folhas de rosa polvilhadas de açúcar. O capitão tirou dele uma pitada, que levou à boca e fingiu comer, com grande satisfação dos índios, que só depois de repetidas saudações saíram do navio hospitaleiro, e continuaram o seu peditório, sem que a narração por eles feita do bem presente que lhes caíra do céu pudesse grangear-lhes segundo.
Assim se passou o dia, preparando-se todos para a função do seguinte de que o da véspera, por assim dizer, não é mais do que prólogo.
No seguinte dia haviam de ter lugar as corridas. Ora as ordinárias são já uma grande solenidade na ilha de França. Porém estas, no meio de outras festas e mormente dadas pelo governador, deviam, como bem se compreende, desbancar todas as que se tinham visto.
Desta vez, como sempre, era o Campo de Marte o lugar designado para a função, por isso todo o terreno não reservado se achava desde pela manhã apinhado de espectadores. Por enquanto, ainda que a grande corrida, a dos gentlemen líder, houvesse de ser o principal atractivo do dia, não era ele todavia o único. Esta grande corrida devia ser precedida de outras jucosas que, para o povo principalmente tinham um mérito tanto maior quanto nestas era ele o autor. Estes divertimentos preparatórios consistiam numa corrida do porco e em outra do saco. Cada uma delas, assim como a grande corrida, tinha seu prémio dado pelo governador. O vencedor na dos sacos devia receber um par de pistolas de Moore, e quem vencesse na do porco teria por prémio o mesmo porco.
Pelo que diz respeito ao prémio da grande corrida era este uma taça de prata dourada do mais bonito feitio, e muito menos preciosa pela matéria do que pelo trabalho.
Já dissemos que desde a madrugada todo o terreno deixado ao público se achava coberto de espectadores, mas só pelas dez horas da manhã começou a chegar a sociedade elegante.
Assim como em Londres, em Paris, em toda a parte onde há corridas, havia tribunas reservadas para os concorrentes. Seja porém capricho, ou para não se confundirem umas com as outras, as mais formosas senhoras de Porto Luís tinham decidido assistir às corridas nos seus carros. E fora as que eram convidadas a tomar lugar ao lado do governador, todas se situaram defronte da meta ou nos pontos mais vizinhos dela. Pelo que toca aos mancebos, estavam pela maior parte a cavalo, e dispunham-se a seguir os corredores no círculo interior, enquanto os curiosos, os membros do Jokey-Club da ilha de França, estavam a fazer apostas com prodigalidade crioula.
Pelas dez horas e meia, toda a gente de Porto Luís se achava no Campo de Marte. Entre as mais lindas senhoras, e nos carros mais elegantes, notava-se Mademoisele Couder, e Mademoisele Cypris de Gersigny, então uma das mais belas raparigas, e, ainda, hoje uma das mais formosas damas da ilha de França, e cujo magnífico cabelo preto se tornou proverbial nas salas parisienses.
Finalmente, as seis meninas Druhn, tão louras e brancas, tão vigorosas e engraçadas, que à carruagem, em que elas saíam comumente todas juntas, davam o nome de açafates de rosas.
Também a tribuna do governador poderia merecer naquele dia o nome que de ordinário davam à carruagem das meninas Druhn.
Quem não tem viajado nas colónias, e principalmente quem não visitou a ilha de França, mal pode fazer ideia do atractivo e graça destas fisionomias crioulas, com olhos de veludo e cabelos de azeviche, no meio das quais se mostravam como flores do Norte algumas pálidas filhas da Inglaterra. Por isso, aos olhos de todos os mancebos, os ramalhetes, que na mão tinham estas formosas espectadoras, seriam, segundo toda a probabilidade, prémios mais preciosos que todas as taças de Odiot, e todas as pistolas de Moore, que na sua faustuosa generosidade podia oferecer-lhes o governador.
Na primeira fileira da tribuna do governador estava Sara, sentada entre Malmedie e Hen-riqueta. Pelo que respeita a Henrique, estava a fazer todas as apostas que lhe propunham, e, importa dizê-lo, não apostavam muito, porque, além de ser excelente picador e muito afamado nas corridas, possuía então um cavalo reputado como o mais vigoroso que havia aparecido na ilha de França.
Pelas onze horas, a música da guarnição, situada entre as duas tribunas, deu o sinal da primeira corrida. Era esta, como deixamos dito acima, a do porco.
O leitor tem notícia deste extravagante divertimento usado em muitas aldeias de França. Ensebam o rabo dum porco, e os pretendentes tentam, uns depois dos outros, reter o animal, que não lhes é permitido agarrar senão pelo rabo, o que o faz parar é o vencedor. Pertencendo esta corrida ao público, e cabendo a todos o direito de nela tomar parte, ninguém se havia inscrito.
Dois pretos conduziram o animal, era um porco corpulento, untado de antemão e pronto a entrar em combate.
A sua vista um grito geral se ouviu. E negros, índios, malaios e indígenas, violando a barreira respeitada até então, se arremeçam para o animal, que, espantado com esta revolução, começou a fugir.
Haviam-se porém tomado precauções, para que ele não pudesse escapar a seus perseguidores. O pobre animal tinha as mãos atadas aos pés, quase da mesma forma como se atam os pés dos cavalos, que se querem fazer andar a passo travado. Disto resultou que não podendo o porco correr muito, em breve foi alcançado, e começaram os diversos episódios.
A fortuna em semelhante divertimento, como bem se pode pensar, não é para quem começa. O rabo untado de pouco tempo não se pode segurar, e o porco sem custo escapa a seus antagonistas. À proporção, porém, que as pressões sucessivas tiram as primeiras camadas da untura, o animal começa a conhecer que as pretensões dos que esperam segurá-lo não são tão ridículas como primeiro lhe pareceram. Então os seus grunhidos começam misturados com gritos agudos. De tempos a tempos, quando é muito activo o ataque, volta-se contra os seus mais encarniçados inimigos, que, segundo o grau de valor que da natureza receberam, prosseguem no seu projecto ou a ele renunciam. Finalmente chega o momento em que o rabo, reduzido à sua própria substância, já pouco escorrega, e vem por fim a atraiçoar o dono, que barafusta e grunhe, inutilmente, e por aclamação geral se vê adjudicado ao seu vencedor.
A corrida seguiu a sua progressão ordinária. O desafortunado porco com a maior facilidade se livrou dos seus primeiros perseguidores, e posto que constrangido pelas ataduras, começou a distanciar-se. Porém uma dúzia dos melhores e mais vigorosos corredores foram em seu alcance, sucedendo atrás do pobre animal com tal rapidez, que lhe não davam um momento de descanso, e deviam indicar-lhe que o instante da sua derrota se avizinhava. Enfim, cinco ou seis de seus antagonistas esbaforidos o abandonaram. Mas à proporção que o número dos pretendentes diminuía, aumentavam as esperanças dos que não desanimavam. Estes redobraram de vigor e destreza, excitados pelos brados dos espectadores.
Em o número dos pretendentes, e entre os que pareciam resolvidos a levar a aventura até ao fim, achavam-se dois dos nossos conhecidos: António, o Malaio, e Miko-Miko, o chinês. Ambos seguiam o porco desde o ponto de partida, e não o haviam deixado um minuto. Já mais de cem vezes o rabo lhes tinha escorregado da mão, mas de cada vez haviam conhecido o progresso que faziam. E estas tentativas infrutíferas, longe de os desanimar, de nova coragem os inflamavam. Enfim, depois de cansarem todos os seus competidores, vieram a achar-se sós. Foi então que a luta se tornou verdadeiramente interessante, e que as apostas se estabeleceram realmente.
A corrida durou ainda pouco mais ou menos dez minutos. De modo que depois de haver feito quase todo o giro do Campo de Marte, o porco grunhia voltando-se, sem que esta defesa parecesse intimidar os seus dois inimigos, que se revezaram com uma regularidade digna dos pastores de Virgílio. Finalmente, António um instante teve mão no fugitivo, e todos julgaram António vencedor. Porém o animal, reunindo toda a sua força, deu um puxão tão vigoroso, que, pela centésima vez, o rabo escorregou das mãos do Malaio, Miko-Miko, que estava à espreita, agarrou-o logo, e toda a vantagem, que António parecera ter, se voltou em seu favor. Viram-no então, digno das esperanças que nele havia posto uma parte dos espectadores, segurar-se fortemente com ambas as mãos, deixar-se arrastar, reagindo com todas as suas forças, seguido pelo Malaio, que sacudia a cabeça em sinal de que reputava a partida perdida, mas que em todo o caso estava pronto a suceder-lhe, indo à ilharga do porco, deixando pender os longos braços, esfregando, quase sem carecer de se abaixar, as mãos pela areia, para lhes dar mais tenacidade. Infelizmente uma tão honrosa perseverança pareceu bem depressa inútil. Miko-Miko estava a ponto de alcançar o prémio. Depois de haver arrastado o Chinês uma distância de dez passos, o porco parecia dar-se por vencido, e acabava de parar, puxando para diante, mas retido por uma força igual, que puxava para trás.
Ora como duas forças iguais se neutralizam, o porco e o Chinês estiveram um instante imóveis, fazendo cada um da sua parte visíveis e violentos esforços, o porco para seguir avante, o Chinês para ficar firme, tudo com grandes aplausos da multidão. Assim durou isto alguns segundos, e tudo dava azo a pensar que duraria mais tempo, quando de repente os dois antagonistas com violência se separaram. O animal foi tomando a dianteira, e Miko-Miko para trás, executando ambos o mesmo movimento, com a diferença porém de que um rolava sobre o ventre e o outro de costas. No mesmo instante António ligeiro se arremessou, aos brados de incitação de todos os que tinham interesse em que ele ganhasse, certo esta vez de alcançar a vitória. Porém o seu júbilo durou pouco e o seu desengano foi cruel. No momento de agarrar o animal pelo membro designado no programa ele procurou debalde, porque o rabo tinha ficado nas mãos de Miko-Miko, que se levantava triunfante, mostrando o seu troféu, e apelando para a imparcialidade do público.
Este caso era novo. Dele apelaram para a consciência dos juízes, que deliberaram um instante e declararam por maioria de três votos contra dois, que visto que Miko-Miko teria incontestavelmente segurado o animal se este não houvesse preferido separar-se do seu rabo, Miko-Miko devia ser considerado como vencedor.
Em consequência desta declaração, o nome de Miko-Miko foi proclamado, sendo este autorizado a apossar-se do prémio, que lhe competia ao que o chinês respondeu pegando no porco pelos pés, e fazendo-o ir adiante de si, assim como se empurra um carrinho de mão.
Pelo que respeita a António, resmungando retirou-se para o meio da multidão, que lhe fez, com esse instinto de justiça, que a caracteriza, o honroso acolhimento, que ela sempre faz aos grandes infortúnios.
Houve então entre os espectadores,como sucede sempre no fim de um espectáculo qualquer, que conservou atentos os assistentes, um grande rumor e um grande movimento, que em breve sossegou ao aviso de que a corrida dos sacos ia começar, e cada qual tomou o seu lugar, sobremaneira satisfeito do primeiro espectáculo, para se arriscar a perder alguma coisa no segundo.
A distância, que os competidores tinham de correr, era pouco mais ou menos de cento e cinquenta passos.
Ao sinal dado, os corredores, em número de cinquenta, sairiam aos saltinhos duma casa construída para lhes servir de retiro, e foram formar-se numa só linha.
Não cause admiração o considerável número de concorrentes, que se apresentaram para esta corrida. O prémio era um magnífico guarda-chuva, e um guarda-chuva nas colónias, e mormente na ilha de França, sempre foi objecto da ambição dos pretos. De onde provém esta ideia levada entre eles ao estado de monomania, não sei, e pessoas mais sábias do que eu têm feito a este respeito profundas indagações.
Isto é um facto, que pura e simplesmente consignamos, sem estabelecer a sua origem. O governador foi, pois, muito bem aconselhado quando escolheu este traste para prémio da corrida do saco.
Muitos dos nossos leitores terão visto ao menos uma vez em sua vida uma corrida semelhante. Cada um dos pretendentes ao prémio é metido num saco, que lhe atam ao pescoço e lhe envolve braços e pernas. Ali, já não se trata de correr, mas de saltar. Ora este género de corrida, comumente muito jucosa, mais o era ainda nesta circunstância, em razão das singulares cabeças, que saíam dos sacos e apresentavam um variado sortimento de cores diferentes. Esta corrida, assim como a do porco, pertencia aos negros e aos índios.
Na primeira ordem daqueles a quem numerosas vitórias neste género haviam granjeado tanta, citavam-se Telémaco e Biju, que havendo herdado os ódios das famílias a que pertençiam e raras vezes se encontravam sem trocar algumas injúrias, que não poucas vezes, digamo-lo para glória do seu valor, degeneravam em vigorosos esticões. Porém desta vez, como não tinham as mãos livres e os pés estavam presos, contentavam-se com arregalar os olhos, separados como se achavam por três ou quatro de seus companheiros.
No momento de partir, um novo pretendente saiu aos saltinhos da cabana e se encorporou aos mais. Este era o vencido na corrida precedente, António o Malaio.
Dado o sinal, partiram todos como um bando de cangurus, saltando do modo mais extravagante, topando-se, caindo, rolando, erguendo-se, encontrando-se de novo e tornando a cair.
Nos primeiros sessenta passos, impossível foi prever quem seria o vencedor. Uma dúzia de corredores se seguiam de tão perto, e as quedas eram tão inesperadas e de tal modo mudavam a face das coisas, que, como se estivessem no caminho do paraíso, num instante os primeiros se achavam os últimos, e estes os primeiros.
Todavia, convém dizê-lo, entre os mais experimentados e quase constantemente na frente dos outros, notava-se Telémaco, Biju e António. A cem passos do ponto de partida, achavam-se sós, e toda a questão ia evidentemente debater-se entre eles.
António com a sua subtileza habitual, prontamente reconheceu, pelas vistas furiosas, que lançavam um ao outro, o ódio entre Biju e Telémaco, e neste ódio rival confiou tanto pelo menos como na sua ligeireza pessoal. Por isso, como o acaso fez com que se achasse entre os dois, e que por conseguinte os separasse, o astuto malaio aproveitou uma das numerosas quedas, que deu, para passar a um dos lados e deixar os dois antagonistas ao pé um do outro.
Apenas Biju e Telémaco viram desaparecer o obstáculo, que os separava, logo se aproximaram, mostrando olhos cada vez mais terríveis, rangendo os dentes como macacos disputando entre si uma noz, e começando a misturar palavras ofensivas com esta pantomima ameaçadora. Felizmente, contidos como estavam cada um no seu saco, não lhes era possível passar de palavras a obras. Porém fácil era ver, pela agitação dos sacos, que às suas mãos experimentavam excessivos desejos de vingar as injúrias, que as bocas proferiam. Por isso, levados pelo seu ódio mútuo, aproximaram-se a ponto de se tocarem, de modo que a cada pulo se acotovelavam injuriando-se e prometendo que mal se vissem fora dos sacos, haveria entre eles um desafio mais encarniçado que todos os precedentes. Durante este tempo António ganhava terreno.
À vista do Malaio, que já lhes levava cinco ou seis passos de dianteira, houve entre os dois pretos uma trégua momentânea. Ambos tentaram, dando pulos muito maiores do que os que haviam dado até então, recuperar a vantagem perdida, e ambos com efeito visivelmente a recuperavam, principalmente Telémaco. António caiu, e apesar de se levantar muito depressa, Telémaco tomou-lhe a dianteira.
O negócio era tanto mais grave quanto não distavam do termo da corrida mais de dez passos, por isso Biju deu um verdadeiro rugido, e por um desesperado esforço aproximou-se do seu rival. Porém Telémaco não era homem, que deixasse ganhar a dianteira, pelo que continuou a saltar com elasticidade, que já todos entendiam ser a ele que o prémio competia' Porém o homem põe e Deus dispõe.
Telémaco tropeçou, cambaleou um instante ao som dos gritos da multidão, e caiu. Porém, caindo fiel ao seu ódio, procurou tolher o passo a Biju, o qual, na força da corrida, não se pôde arredar, tropeçou em Telémaco, e caiu também.
Então a mesma ideia ocorreu a ambos ao mesmo tempo. Esta ideia era que mais valia que obtivesse o prémio um terceiro, do que deixar triunfar um rival.
Por isso, com grande admiração dos espectadores, os dois competidores, em vez de se erguerem e continuarem a sua corrida, apenas se levantaram, arrojaram-se um contra o outro-esmurrando-se tanto quanto o permitia a prisão em que se achavam, empregando a cabeça, à maneira de bretões, e deixando António continuar tranquilo a sua corrida, sem oposição nem rival, enquanto eles na falta de pés e mãos, cuja disposição lhes era vedada, se mordiam um ao outro.
Durante este tempo, António triunfante chegava ao termo da corrida e obtinha o prémio, que imediatamente lhe foi entregue ao som dos aplausos de todos os assistentes mais ou menos pretos, que invejavam a ventura daquele, que era assaz feliz para possuir semelhante tesouro.
Então separaram Biju e Telémaco, que não haviam cessado de dar dentadas um no outro, Biju ficou sem uma porção de nariz, e Telémaco sem uma parte duma orelha.
Era chegada a ocasião da verdadeira corrida. Por isso houve um descanso de meia hora. Distribuíram-se programas e enquanto isto durou fizeram-se as apostas.
Entre os apostadores mais obstinados figurava o capitão Van der Brock. Desembarcando do seu navio, foi direito a casa de Vigier o primeiro ourives da cidade, afamado pela sua notória probidade, e trocou por notas do banco e ouro obra de cem mil francos de diamantes, o que o punha nas circunstâncias de fazer as maiores apostas, e, o que era mais admirável, ele apostava tudo por um cavalo, cujo nome não era conhecido na ilha, e que se chamava Antrim.
Quatro cavalos se achavam inscritos: Restauração — do coronel Dreaper. Virgínia — de M. Rondeau de Courcy. Gester — de Henrique de Malmedie.
E Antrim — de ** (o nome estava substituído por duas estrelas.) A maior aposta era por Gester e Restauração, que nas corridas do ano precedente haviam obtido as honras do dia.
Desta vez ainda mais confiavam neles, montados como estavam por seus donos, ambos excelentes cavaleiros. Pelo que toca a Virgínia, era a primeira vez que corria.
Todavia, e não obstante o caritativo parecer que lhe haviam dado de que obrava como verdadeiro louco, o capitão Van den Brock continuava a apostar por Antrim, o que não deixava de excitar a curiosidade acerca de este cavalo e de seu dono, desconhecidos.
Como os cavalos estavam montados por seus próprios donos, os cavaleiros não deviam ser pesados. Ninguém se admirou de não ver na barraca Antrim, nem o indivíduo, que por um sinal hieroglífico substituía o seu nome, e todos entendiam que no momento da partida ele apareceria de repente, para tomar lugar junto dos dois rivais.
Com efeito, na ocasião em que os cavalos e cavaleiros sairam do recinto, viu-se vir à pressa do lado do Campo Malabar aquele que era, depois da distribuição dos programas, o objecto da curiosidade geral. O seu aspecto, porém, em vez de pôr fim às incertezas, não fez mais que aumentá-las. Vinha vestido com um trajo egípcio, cujos bordados se descobriam debaixo duma capa, que lhe ocultava a metade do rosto. Cavalgava ao modo árabe, isto é com os estribos curtos, o seu cavalo estava arreiado à turca.
Enquanto ao mais, ele mostrou logo à primeira vista que era um cavaleiro consumado. Da sua parte Antrim dava mostras de justificar a confiança que nele tivera antecipadamente o capitão Van den Brock, tanto parecia dextro e identificado com seu dono.
Ninguém conheceu o cavalo, nem o cavaleiro. Porém como todos se haviam inscrito em casa do governador e para ele não havia desconhecido, foi respeitado o incógnito do recém-chegado. Uma única pessoa suspeitou talvez quem era este cavaleiro, e para diante se inclinou corando, com intento de se assegurar da verdade. Esta pessoa, era Sara.
Os corredores puseram-se em linha. Eram só quatro, como deixamos dito, porque a fama de Gester e Restauração havia afastado os outros concorrentes. Todos então pensavam que entre estes dois cavalos ia ser debatida a questão.
Como não havia mais que uma corrida, os juízes decidiram, para que o prazer dos espectadores durasse mais tempo, que se dessem duas voltas em vez de uma. Cada cavalo tinha pois de correr o espaço de três milhas pouco mais ou menos, isto é uma légua, o que dava mais probabilidade aos cavalos mencionados.
Ao sinal dado, partiram todos, porém, como é sabido, em semelhante circunstância os começos nada deixam conjecturar. A metade da primeira volta, Virgínia, que pela primeira vez corria, ganhou uma distância de perto de trinta passos, e achava-se quase a par com Antrim, enquanto Restauração e Gester ficavam para trás, visivelmente reprimidos por seus cavaleiros. Aos dois terços do círculo pouco mais ou menos, Antrim adiantou-se um pouco, enquanto Gester e Restauração se aproximaram coisa de dez passos. Iam pois tornar a passar, e todos se inclinavam para diante, dando palmas e excitando os corredores, quando, fosse acaso, ou de propósito, Sara deixou cair o seu ramalhete. O desconhecido viu-o, e sem afrouxar a carreira, com uma destreza maravilhosa, deixando-se pender ao lado do seu cavalo, ao modo dos cavaleiros árabes, que apanham o djérid, apanhou o ramalhete caído, saudou a sua formosa dona e continuou o seu caminho, havendo perdido apenas dez passos, que não mostrou ter pressa de recuperar.
No meio da segunda volta, Virgínia achava-se alcançada pelo cavalo Restauração, que Gester de perto seguia, enquanto Antrim ficava sempre sete ou oito passos para trás. Porém como o seu cavaleiro o não excitava com o chicote, nem com a espora, compreendia-se que este atraso nada significava, e que ele recuperaria a distância perdida quando o julgasse conveniente.
Restauração encontrou um seixo e caiu com o seu cavaleiro, que não tendo perdido os estribos, quis com um movimento de mão fazê-lo pôr em pé. O nobre animal fez um esforço, ergue-se e tornou logo a cair, porque havia quebrado uma perna.
Os outros três concorrentes prosseguiram a sua carreira. Gester então ia na dianteira, Virgínia seguia-o a pouca distância, e Antrim ia a par de Virgínia, que começava a perder, enquanto Gester conservava a sua vantagem, e Antrim, sem esforço algum, começava a ganhar. De modo que se achava já muito perto do seu rival, e Henrique, vendo que era alcançado, começava a azorragar Gester. Os vinte e cinco mil espectadores desta bela corrida aplaudiam agitando os lenços e animando os concorrentes.
O desconhecido, inclinando-se sobre o pescoço de Antrim, proferiu algumas palavras em árabe, e como se o inteligente animal pudesse compreender o que seu dono lhe dizia, aumentou a velocidade. Já não estavam a mais de vinte passos do termo da corrida, achavam-se defronte da primeira tribuna, Gester ia sempre adiante de Antrim, quando o desconhecido, vendo que não havia tempo a perder, deu de esporas ao seu cavalo, e, firmando-se nos estribos e deitando para trás o capuz de sua capa, exclamou:
«Sr. Henrique de Malmedie, por dois insultos que me tem feito, não lhe farei mais do que um, mas espero que ele há-de valer mais do que os seus.»
E levantando o braço a estas palavras, Jorge, porque o desconhecido era ele, deu uma forte chicotada no rosto de Henrique, depois cravando as esporas na barriga de Antrim, chegou primeiro ao fim da carreira. Porém em vez de parar ali, para reclamar o prémio, continuou a correr e desapareceu no meio da admiração geral, por entre os bosques vizinhos.
Jorge tinha razão. Em troca de dois insultos que lhe fizera Malmedie, com catorze anos de intervalo, ele acabava de fazer um só, mas público, terrível, e que decidia de todo o seu provir, por ser não só uma provocação a um rival, mas também uma declaração de guerra a todos os brancos.
Jorge achava-se pois pelo irresistível andamento das coisas em presença da preocupação que de tão longe tinha ido procurar, e com ela ia lutar corpo a corpo, como dois inimigos mortais.
LAIZA
Jorge, retirado no quarto, que para si mandara mobilar na roça de seu pai em Moka, pensava na posição em que acabava de se colocar, quando lhe anunciaram que um preto perguntava por ele. Entendendo naturalmente que era algum recado de Henrique de Mamedie, ordenou que mandassem entrar o mensageiro.
Ao ver o preto, que o procurava, Jorge conheceu que se havia enganado. Conservava uma vaga lembrança de o ter encontrado em alguma parte, mas não podia dizer onde.
— Não me conhece? — disse o preto.
— Não — respondeu Jorge. — E todavia já nos vimos, não é verdade?
— Duas vezes — prosseguiu o preto.
— E onde?
— A primeira, na Ribeira Negra, quando salvou a menina, a segunda...
— É exacto — interrompeu Jorge, — lembro-me. E a segunda?
— A segunda — prosseguiu o preto —, quando nos deu a liberdade. Eu chamo-me Laiza, Nazim era o nome de meu irmão.
— E que é feito de teu irmão?
— Nazim, escravo, tinha querido fugir para voltar a Anjuan. Nazim, livre pela sua benevolência, partiu e a esta hora deve estar em companhia de nosso pai, por ele lhe rendo graças!
— E posto que és livre, tu ficaste — disse Jorge. — Isso é singular.
— Já vai saber porquê — disse o preto sorrindo.
— Vamos — respondeu Jorge, que a seu pezar começava a tomar interesse nesta conversação.
— Eu sou filho de chefe — prosseguiu o preto. — Tenho sangue árabe de zanzibar, não nasci para ser escravo.
Jorge riu-se do orgulho do preto, sem pensar que este orgulho era semelhante ao seu. O preto continuou sem ver, ou sem reparar neste sorriso.
— O chefe de Querimbo fez-me prisioneiro numa guerra e vendeu-me a um negreiro, que me vendeu ao senhor de Malmedie. Ofereci, se quisessem mandar um escravo a Anjuan, resgatar-me por vinte libras de ouro em pó. Não acreditaram na palavra dum negro, desprezaram-me. Por algum tempo insisti, depois... Houve na minha vida uma mudança, e não pensei mais em partir.
— O senhor de Malmedie tratou-te como merecias? — perguntou Jorge. —- Não, não é isso — respondeu o preto. — Três anos depois, meu irmão Nazim foi também prisioneiro e vendido como eu, e por felicidade ao mesmo senhor. Porém, não tendo as mesmas razões, que eu tenho, para aqui ficar, quis fugir. O resto sabe-o quem o salvou. Eu amava meu irmão como filho, e a vós, continuou o preto cruzando as mãos sobre o peito e inclinando-se, amo-vos agora como pai. Ora saiba o que sucede. Escute, isto interessa-o assim como a nós. Somos aqui oitenta mil homens de cor e vinte mil brancos.
— Já os contei — disse Jorge sorrindo-se.
— Isso presumia eu — respondeu Laiza.
— Destes oitenta mil homens, vinte mil pelo menos podem pegar em armas. Enquanto os brancos, compreendendo os oitocentos soldados ingleses da guarnição, podem apenas reunir quatro mil homens.
— Também sei isso — disse Jorge.
— Então, adivinha — perguntou Laiza.
— Espero que te expliques.
— Estamos decididos a livrar-nos dos brancos. Assaz havemos sofrido para termos, graças
a Deus, o direito de nos vingar.
— Então que esperas — perguntou Jorge.
— Estamos prontos — respondeu Laiza. — Só nos falta um chefe, ou antes, propõem-nos dois. Porém nenhum destes dois homens convém a semelhante empresa.
— E quem são eles?
— Um é António, o Malaio.
Jorge deixou ver nos lábios um sorriso de desprezo.
— E o outro? — perguntou ele.
— O outro sou eu — respondeu Laiza.
Jorge olhou para este homem, que aos brancos dava tão singular exemplo de modéstia, reconhecendo não ser digno do cargo a que era chamado.
— O outro és tu?... — prosseguiu Jorge.
— Sim — respondeu o preto. — Porém não são necessários dois chefes para esta empresa, basta um.
— Ah, ah! — disse Jorge, que julgou compreender que Laiza ambicionava o supremo mando.
— Basta um só supremo, absoluto, e cuja superioridade não possa ser discutida.
— Mas onde se há-de encontrar esse homem! — perguntou Jorge.
— Já se encontrou — respondeu Laiza olhando atento para o jovem mulato. — Só resta saber se aceita.
— Arrisca a cabeça — disse Jorge.
— E nós, não arriscamos nada? — perguntou Laiza.
— Mas que garantias lhe dão?
— A mesma, que ele nos oferecer, um passado de perseguição e cativeiro, um porvir de vingança e liberdade.
— E que plano têm concebido?
— Amanhã, depois da festa do yamsé, quando os brancos, cansados dos prazeres do dia, se houverem retirado, os Lascaros ficarão sós à borda do rio Palmeiras. Então de todos os lados chegarão africanos, malaios, malabares, índios, todos os que entram na conspiração. Eniim ali elegerão um chefe, e este os dirigirá. Proferi uma palavra, e sereis vós este chefe.
— E quem te incumbiu de me fazer essa proposição? — perguntou Jorge. Laiza sorriu-se com desdém.
— Ninguém — disse ele.
— Então a ideia é tua?
— Só minha.
— E quem te a inspirou?
— Vós mesmo.
— Como é possível! Eu mesmo?
— Não podeis conseguir o que desejais senão por meio de nós.
— E quem te disse que eu desejava alguma coisa?
— Tendes desejo de esposar a rosa da Ribeira Negra, e aborreceis Henrique de Malmedie. Quereis possuí-la e vingar-vos dele. Só nós podemos oferecer-vos para isso os meios. Porque não hão-de consentir em vo-la dar para mulher, nem permitirão que ele seja vosso adversário.
— Quem te disse que eu amava Sara?
— Eu mesmo o vi.
— Enganas-te!
Laiza mexeu tristemente a cabeça.
— Os olhos da cara enganam-se às vezes — disse ele. — Os do coração, nunca.
— Serás tu meu rival? — perguntou Jorge com um sorriso desdenhoso.
— Só é rival o que tem a esperança de ser amado — respondeu o preto suspirando. — E a rosa da Ribeira Negra nunca há-de amar o leão de Anjuan.
— Então não és cioso.
— Salvaste-lhe a vida, e esta vos pertence, é muito justo. Eu, nem mesmo tive a ventura de morrer por ela, e todavia — acrescentou o preto olhando atento para Jorge —, acreditai que fiz o que era preciso para isso!
— Sim, sim — disse Jorge. — És valente. Porém os outros, posso eu contar com eles?
— Não posso responder senão por mim — disse Laiza. — E respondo. Portanto, tudo o que é possível fazer com um homem animoso, fiel e dedicado, comigo o fareis
— Serás o primeiro a obedecer-me?
— Em tudo.
— Mesmo no que disser respeito... —Jorge interrompeu-se olhando para Laiza.
— Mesmo no que diz respeito à rosa da Ribeira Negra — disse o preto, continuando o pensamento do mancebo.
— Mas de onde procede essa dedicação, que tens por mim?
— O veado de Anjuan ia morrer aos golpes de seus algozes, e salvaste-lhe a vida. O leão de Anjuan achava-se encadeado, e foi-lhe restituída a liberdade. O leão não só é o mais forte, mas também o mais generoso dos animais. E por ser forte e generoso — continuou o preto cruzando os braços e erguendo com orgulho a cabeça —, é que deram a Laiza o nome de leão de Anjuan.
— Está bem — disse Jorge estendendo a mão ao preto. — Peço um dia para me decidir.
— E que motivo vos induzirá a aceitar ou recusar?
— Insultei hoje grave, pública, excessivamente Henrique de Malmedie.
— Bem sei, achava-me presente, disse o preto.
— Se ele se bate comigo, nada tenho a dizer.
— E se recusa bater-se? — perguntou Laiza sorrindo-se.
— Então sou dos teus, porque como todos sabem que Henrique é animoso e já teve dois duelos, num dos quais matou o seu adversário, acrescentará terceiro insulto aos dois, que já me fez, e em tal caso a medida está cheia.
— Então, sois vós o nosso chefe — disse Laiza. — O branco não se baterá com o mulato. Jorge franziu as sobrancelhas, porque já havia tido esta ideia. Mas também como ficaria o branco com o ferrete de opróbrio que o mulato lhe imprimira no rosto?
Neste momento Telémaco entrou com as mãos na orelha de que Biju arrancara uma Parte.
— Meu senhor — disse ele —, o capitão holandês quer falar-vos.
— O capitão Van den Brock? — perguntou Jorge.
— Sim, senhor.
— Aguarda-me aqui — disse Jorge voltando-se para Laiza. — Eu já venho, a minha resposta será provavelmente muito pronta.
Jorge deixou Laiza, e entrou com os braços abertos no quarto em que se achava o capitão.
— Então, irmão, disse este, conheceste-me?
— Sim, Tiago, e reputo-me feliz por te abraçar, sobretudo na presente ocasião.
— Pois não faltou muito para que deixasse de ter esse prazer nesta viagem.
— Porque motivo?..
— Eu deveria ter partido.
— Porquê?
— O governador parece-me velha raposa de mar.
— Diz lobo, tigre de mar, Tiago. O governador é o famoso comodoro Williams Murrey, o antigo capitão da Leycester.
— Da Leycester! Eu devia ter presumido isso. Então tínhamos uma conta antiga a ajustar, agora compreendo tudo.
— Pois que sucedeu?
— Que o governador, depois das corridas, veio com afabilidade ter comigo e disse-me: «Capitão Van den Brock, tem uma bonita escuna.» Até aqui, nada havia a dizer, mas ele acrescentou: «Poderia eu amanhã ter a honra de a visitar?»
— Ele desconfia de alguma coisa.
— De certo, e eu, que como um papalvo de nada desconfiava, convidei-o a ir almoçar
a bordo, o que ele aceitou.
— E nesse caso, que fazes?
— Voltando a dispor tudo para o sobredito almoço, notei que da montanha do Descobrimento estavam fazendo sinais para o mar.
Então comecei a compreender que os tais sinais bem poderiam ser feitos em minha honra. Subi pois à montanha, e com o meu óculo examinei o horizonte. Em cinco minutos, conheci o que era. A coisa de vinte milhas achava-se um navio, que respondia aos sinais.
— Era a Leycester.
— Exactamente. Querem bloquear-me, mas tu sabes que Tiago não nasceu ontem, o vento é sueste, de modo que o navio não pode chegar a Porto Luís senão fazendo bordos. Ora, para chegar à ilha dos Tanoeiros, carece ele de doze horas pelo menos. Eu, durante este tempo, escapo-me, e venho buscar-te para ires comigo.
— Eu! E que motivo tenho para me ausentar?
— Ah! Tens razão, eu ainda te não disse nada. Ora diz-me, que diabo de ideia tiveste de dar uma chicotada na cara desse gentil moço? Isso não é cortesia.
— Pois não sabes quem é?
— Sei, visto que apostei mil luízes com ele. A propósito, Antrim é um arrogante animal' hás-de fazer-lhe mil cumprimentos da minha parte.
— Pois bem! Não te lembras de que este mesmo Henrique de Malmedie, há catorze anos*
no dia do combate...
— O que fez?
Jorge levantou o cabelo e mostrou a seu irmão a cicatriz, que tinha na testa.
— Ah, sim, é verdade! — exclamou Tiago. — Com mil raios! Conservas rancor. Já me tinha esquecido de toda essa história. Porém, tanto quanto posso lembrar-me, essa pequena gentileza da sua parte granjeou-lhe da minha um murro, que bem valia a sua cutilada.
— É verdade, e eu havia esquecido esse primeiro insulto, ou antes estava disposto a perdoar-lho, quando ele me fez segundo.
— Qual foi?
— Negou-me a mão de sua prima.
— Oh, tu és adorável, palavra de honra! Eis aí um pai e um filho, que criam uma herdeira como uma codorniz em cevadouro, para a depenarem à sua vontade por um bom casamento, e quando a codorniz está gorda, chega um caçador furtivo que a quer levar para si. Ora vamos, ele não podia deixar de ta recusar, sem pensar, caro irmão, que somos mulatos, e não outra coisa.
— Por isso não é a recusa, que reputei como injúria. Porém, na discussão, ele levantou uma chibata para mim.
— Ah, nesse caso, fez mal! Então tu desancaste-o?
— Não — disse Jorge rindo-se dos meios de conciliação, que se apresentavam sempre em tal circunstância ao espírito de seu irmão. — Não, pedi-lhe uma satisfação.
— E ele recusou, é justo, nós somos mulatos. Às vezes espancamos os brancos, isso é verdade, mas os brancos não se batem connosco, fora!...
— E então eu prometi-lhe que havia de obrigá-lo a bater-se.
— E por isso é que lhe deste no meio da carreira como populo, como dizíamos no colégio Napoleão, uma chicotada na cara. Não acho mal imaginado, e o meio esteve a ponto de ter êxito.
— Esteve a ponto! Que queres dizer?
— Que efectivamente a primeira ideia de Henrique de Malmedie foi bater-se. Mas ninguém lhe quis servir de padrinho, e os seus amigos declaram impossível semelhante duelo.
— Então ficará com a chicotada, que lhe dei. Pode fazê-lo.
— Sim, mas a ti reservam-te outra coisa.
— Então que me reservam? — perguntou Jorge franzindo as sobrancelhas.
— Como apesar de tudo o que podiam dizer-lhe, o cabeçudo queria absolutamente bater-se, foi mister, para induzi-lo a renunciar ao duelo, que lhe prometessem uma coisa.
— Pois que lhe prometeram?
— Que uma destas noites, enquanto estivesses na cidade, oito ou dez homens se emboscariam no caminho de Moka, para te surpreenderem no momento em que menos o esperasses, que te deitariam sobre uma escada e te haviam de dar vinte e cinco açoites.
— Miseráveis! Mas esse é o suplício dos pretos?
— Pois que somos nós os mulatos? Pretos-brancos, nada mais.
— Eles prometeram-lhe isso? — repetiu Jorge.
— Positivamente. Eu achava-me presente. Reputavam-me um honrado holandês, homem de sangue puro, não desconfiavam de mim.
— Bem está — disse Jorge —, tomei a minha resolução.
— Partes comigo?
— Não, eu fico.
— Escuta — disse Tiago pondo a mão no ombro de Jorge. — Acredita-me, irmão. Segue o conselho dum velho filósofo. Não fiques, acompanha-me.
— É impossível, isso pareceria fuga. Além de que, amo Sara.
— Que quer dizer: amo Sara?
— Quer dizer que é mister que eu possua esta mulher, ou que deixe de existir.
— Ouve, Jorge. Eu não entendo todas essas subtilezas, é verdade que nunca fui amante senão das minhas passageiras, que valem mais do que outras. Acredita-me, quando as tiveres experimentado, hás-de trocar quatro mulheres brancas por uma ilha Amores, por exemplo. Seis tenho eu neste momento, e delas te deixo a escolha.
— Muito obrigado, Tiago. Porém repito, não posso ausentar-me da ilha de França.
— E eu, repito-te que fazes mal. A ocasião é boa, não encontrarás outra. Eu parto esta noite, pela uma hora, sem tambor nem trombeta. Vem comigo, amanhã estaremos a vinte cinco léguas daqui, zombaremos de todos os brancos, de Maurícia, e se acaso apanharmos alguns, poderemos mandar administrar-lhes por quatro dos meus marinheiros a gratificação que eles te reservavam.
— Obrigado, meu irmão — repetiu Jorge. — Isso não é possível.
— Então, está bom. Tu és homem. E quando um homem diz não é possível é porque efectivamente não pode ser. Partirei pois sem ti.
— Sim, parte. Mas não te afastes muito, e verás alguma coisa que não esperas.
— Então que hei-de ver? Um eclipse da lua...
— Hás-de ver rebentar da barra de Denorne ao morro Brabante, e de Porto Luís a Manebourgo um vulcão semelhante ao da ilha Bourbon.
— Ah, isso é outra coisa! Tens ideias pirotécnicas, segundo me parece. Ora vamos, explica-me isso.
— É que daqui a oito dias, estes brancos, que me ameaçam e desprezam, que me querem açoitar como um calhambola, estarão a meus pés.
— Uma revoltazinha! Entendo — disse Tiago. — Isso seria possível se na ilha houvesse dois mil homens como os meus cento e cinquenta Lascaros, dou-lhes este nome por costume, porque, graças a Deus, nenhum pertence a essa miserável raça. São todos bons bretões, valentes americanos, verdadeiros holandeses, puros espanhóis, o que há de melhor nas quatro nações. Porém tu, que meios possuís para sustentar a tua revolta?
— Dez mil escravos, que estão cansados de obedecer, e querem por seu turno governar.
— Pretos?... — disse Tiago estendendo desdenhosamente o lábio inferior. — Escuta, Jorge. Eu conheço-os bem, porque os vendo. Suportam bem o calor, sustentam-se com uma banana, resistem ao trabalho, têm qualidades finalmente, não quero rebaixar a minha fazenda, mas para*soldados não prestam. Ainda hoje, nas corridas, me perguntou o governador a minha opinião acerca dos pretos. «Capitão Van den Brock — dizia-me ele —, o sr. que tem viajado muito e me parece excelente observador, se fosse governador de alguma ilha, e nela houvesse uma revolta de pretos, que faria?»
— E qual foi a tua resposta?
— Eu respondi: Milord, se eu fosse governador mandaria, nas ruas por onde eles houvessem de passar tirar o fundo a umas cem barricas de aguardente, e iria deitar-me com a chave na porta.
Jorge mordeu os lábios até fazer sangue.
— Assim, pela terceira vez te repito, irmão: vem comigo. É o que tens de melhor a fazer.
— E eu, pela terceira vez te respondo: É impossível.
— Então está dito tudo. Abraça-me Jorge.
— Adeus, Tiago.
— Adeus, irmão. Porém, acredita-me, não te fies nos pretos.
— Enfim, vais partir?
— Pois então. Eu não sou presunçoso e sei fugir na ocasião para o mar alto; se a Leycester quiser, que venha oferecer-me combate, e verá se o não aceito. Porém no porto, debaixo do fogo do forte Branco e do reduto Labourdonaye, obrigado! Assim, pela última vez, recusas?
— Sim, recuso.
— Então adeus.
— Adeus.
Os dois mancebos abraçaram-se. Tiago entrou em casa de seu pai, que, ignorando o que tinha sucedido, dormia tranquilo.
Pelo que toca a Jorge, voltou ao quarto onde Laiza o estava a aguardar.
— Que me dizeis? — perguntou o preto.
— Podes ir anunciar aos revoltosos — respondeu Jorge —, que têm um chefe.
O preto cruzou as mãos sobre o peito, e sem nada mais perguntar, Inclinou-se profundamente e saiu.
O YAMSÉ
As carreiras, como já disse, não eram mais do que um episódio das festas do segundo dia. Por isso logo que terminaram, pelas 3 horas da tarde, toda a povoação de cores variadas, que cobria a pequena montanha, se encaminhou para a campina verde. Enquanto os casquilhos e as peraltas, que a elas haviam assistido em carruagem ou a cavalo, voltavam a suas casas para jantar e sair logo depois a ver os exercícios dos Láscaros.
Consistem estes exercícios numa ginástica simbólica, que consta de carreiras, danças e lutas, acompanhadas de cantigas desafinadas e música bárbara, a que se misturam os brados dos pretos industriais que fazem comércio por sua própria conta, ou por conta de seus senhores, e andam a apregoar: bananas, canas bom Kalou!
Estes exercícios duram até às seis horas da tarde pouco mais ou menos, e a estas horas começa a pequena procissão, assim chamada para a distinguir da grande, que se faz no dia seguinte.
Então, entre duas alas de espectadores, os Láscaros caminham, uns meio escondidos debaixo das espécies de pequenos pagodes pontiagudos, feitos como o grande gouhn, e a que eles dão o nome de aidorés. Outros armados de paus e espadas sem ponta. Outros finalmente, meio nus, com os vestidos rasgados. A um certo sinal todos se arremeçam. Os que conduzem os aidorés, principiam a andar à roda dançando. Os que levam as espadas e os paus começam a combater volteando uns em torno dos outros, dando e evitando o os golpes com maravilhosa destreza. Finalmente os últimos batem nos peitos e rolam-se pela terra com mostras de desesperação, gritando todos ao mesmo tempo, ou alternativamente: «Yamsé! Yamli! Ó Hosein! Ó Ali!»
Enquanto eles se entregam a esta ginástica religiosa, alguns outros andam oferecendo a quem chega arroz cozido com plantas aromáticas.
Este passeio dura até à meia noite, hora a que eles voltam ao acampamento malabar, na mesma ordem em que de lá partiram para não tornarem a sair senão no seguinte dia à mesma hora.
Porém a cena mudada engrandeceu-se no dia seguinte. Depois de fazerem pela cidade o mesmo passeio que na véspera, os Láscaros, chegada a noite, tornaram a entrar no acampamento, mas para irem buscar o gouhn, resultado da reunião dos dois bandos, que era maior e mais esplêndido que nos anos precedentes.
Coberto dos papéis mais ricos, mais vistosos e diferentes, iluminado dentro por grandes fogos, fora por lanternas de papel de todas as cores, penduradas em todos os ângulos e tor-tuosidades, faziam reflectir em seus vastos lados uma luz variada.
O gouhn caminhou conduzido por grande número de homens, situados uns no interior, outros no exterior, e cantando todos uma espécie de salmodia monótona e lúgubre. Adiante dele iam alguns exploradores, a balançar na extremidade duma vara de dez pés, com lanternas, archotes rodas de fogo e outras peças de artifício.
Então a dança dos aidorés e os combates corpo a corpo começaram com vigor. Os devotos dos vestidos rasgados entraram a bater no peito dando brados de dor, a que toda a multidão dos Láscaros respondia pelos gritos alternados de: «Yamsé! Yamli! Ó Hosein! Ó Ali!», gritos ainda mais prolongados e lastimosos que os brados da véspera.
Sucedia isto assim porque o gouhn, que eles acompanhavam, era desta vez destinado a representar ao mesmo tempo a cidade de Kerbelo, perto da qual pereceu Hosein, e o túmulo em que foram recolhidos seus restos. Além de um homem nu, pintado como um tigre, figurava o leão milagroso que por alguns dias velou junto aos despojos de Santo Iman.
De tempos a tempos ele arremessava-se aos espectadores, dando rugidos como se os quisesse devorar. Porém um homem, que representava o seu guarda e caminhava atrás dele, o segurava por meio duma corda, enquanto um molah, que ia adiante, o acalmava por palavras misteriosas e gestos magnéticos.
Por espaço de muitas horas o gouhn andou em procissão pela cidade e em torno dela. Depois os que o conduziam tomaram o caminho do rio das Palmeiras, seguidos de toda a povoação de Porto Luís.
A festa avizinhava-se do seu fim, iam enterrar o gouhn, e todos queriam, depois de o haver acompanhado no seu túmulo, acompanhá-lo também na sua ruína.
Chegados que foram ao rio das Palmeiras, os que levavam a grande máquina pararam à beira dele, e, à meia noite em ponto, quatro homens se chegaram com archotes e puseram fogo aos quatro cantos. No mesmo instante os portadores deixaram cair o gouhn na água.
Porém como o rio das Palmeiras não é mais do que uma torrente, e o gouhn mal entrava na água, com rapidez chegou a chama a todas as partes superiores, subindo para o céu e torneando como uma imensa espiral.
Então houve um momento singularmente fantástico, foi o durante o qual, ao clarão desta luz efémera, mas viva, se viram os trinta mil espectadores de todas as raças dando gritos em todas as línguas, e agitando lenços e chapéus.
Apinhados uns mesmo na margem do rio, outros sobre os penedos circunvizinhos, estes entranhando-se em massa mais sombria, à proporção que elas se afastam sob a espessura da floresta. Aqueles fechando o grande círculo, metidos nos seus palanquins, carruagens, ou montados a cavalo.
Por um momento as águas reflectiram os fogos, que iam apagar, e toda esta multidão ondeou como um mar. Por um momento, as árvores alongaram-se na sombra como gigantes, que se erguem. E finalmente só se descobriu o céu através dum vapor avermelhado, que fazia assemelhar cada nuvem a uma vaga de sangue.
A luz em breve diminuiu, todas estas cabeças se confundiram umas com as outras, as árvores pareceram afastar-se por si mesmas e voltar à sombra.
O céu escureceu, tomando pouco a pouco a sua cor natural. As nuvens sucederam-se cada vez mais sombrias.
De tempos a tempos alguma parte intacta até então se inflamava, lançando sobre a paisagem e os espectadores uma luz trémula, que logo se apagava, reinando uma escuridão maior do que antes.
Pouco a pouco toda a máquina caiu em carvões ardentes, fazendo estremecer a rua do rio. Enfim, os últimos clarões extinguiram-se, e como o céu se achava, como dissemos, carregado de nuvens, todos se viram numa escuridão tanto maior quanto maior fora a luz, que a precedera.
Sucedeu então o que sucede sempre no fim das festas públicas, e mormente depois das iluminações ou fogos de artifício. Um grande rumor ouviu-se, e cada um falando, rindo, troçando, encaminhou-se logo para a cidade, partindo as carruagens a galope, os palanquins ao trote dos pretos portadores, enquanto a gente a pé, reunida em grupos, após eles caminhava com passo rápido.
Fosse maior curiosidade ou fatalidade natural à espécie, os pretos e mulatos ficaram para o fim. Mas enfim também se ausentaram, tomando uns o acampamento malabar, outros subindo o rio, estes entranhando-se na floresta, aqueles seguindo à borda de água.
Ao cabo de alguns instantes o lugar ficou inteiramente deserto, e por espaço dum quarto de hora não se ouviu outro ruído mais do que a do murmúrio da água por entre os rochedos, nem se viu outra coisa, durante as abertas das nuvens, senão grandíssimos morcegos, que se abaixavam para o rio, como para apagar com a ponta de suas asas os poucos carvões, que ainda fumegavam à sua superfície, tornando depois a subir para se irem perder na floresta.
Contudo em breve se ouviu um pequeno ruído, e dois homens de rojo se encaminharam para o rio, um ao encontro do outro, vindo um deles do lado da bateria Dumas, e o outro do da montanha Longa. Quando se viram separados só pela torrente, ambos se levantaram, trocaram alguns sinais, e enquanto um bateu três pancadas com as mãos, e o outro assobiou três vezes.
Então do meio dos bosques, dos ângulos das fortificações, das penhas que cercam a torrente, das mangueiras que sobre a praia do mar se inclinam, saiu grande número de pretos e índios, cuja presença impossível seria suspeitar cinco minutos antes. Toda esta gente achava-se dividida em dois bandos muito distintos, um composto só de índios, o outro todo de pretos.
Os índios formaram-se em torno dum dos dois chefes, que primeiro chegou. Este era um homem de cor azeitonada, que falava o idioma malaio.
Os pretos rodearam o outro chefe, que era da sua cor, e falava a língua de Moçambique.
Um dos dois chefes passeava pelo meio da multidão, falando muito, ralhando, declamando, gesticulando, tipo do ambicioso de baixa condição, do intrigante vulgar. Este era António, o Malaio.
O outro, tranquilo, imóvel, quase mudo, avarento de palavras, sombrio em gestos, parecia atrair as vistas sem as procurar, verdadeira imagem da força que contém, e do génio que impera. Era Laiza, o leão de Anjuan.
Estes dois homens eram os chefes da revolta. Os dez mil mestiços, que os rodeavam, eram os conspiradores.
António falou primeiro.
— Havia — disse ele —, uma ilha governada por macacos e habitada por elefantes, leões, tigres, panteras e serpentes.
O número dos governados era dez vezes maior que o dos governantes. Porém estes tiveram o talento de desunir os governados, de modo que os elefantes viviam em ódio com os leões, tigres, panteras e serpentes.
Disto resultava que quando os elefantes levantavam a tromba, os macacos mandavam ir contra eles as serpentes, panteras, tigres e leões, e por mais fortes que fossem os elefantes, eram sempre por fim vencidos.
Se eram os leões que rugiam, mandavam os macacos contra eles os elefantes, as serpentes, panteras e tigres, de modo que por intrépidos que fossem os leões, acabavam sempre por ser encadeados.
Se os tigres mostravam os dentes, contra eles mandavam os elefantes, leões, serpentes e panteras, de maneira que por fortes que fossem os tigres, sempre por fim eram engaiolados.
Se as panteras saltavam, mandavam os macacos contra elas os elefantes, leões, tigres e serpentes, de modo que por ágeis que as panteras fossem, vinham sempre a ser domadas.
Finalmente, se eram as serpentes, que assobiavam, os macacos contra elas enviavam os elefantes, leões, tigres e panteras, e as serpentes, apesar da sua astúcia, sempre enfim eram subjugadas.
Resultava disto que os governantes, a quem esta manhã aproveitara cem vezes, riam consigo mesmo todas as vezes que ouviam falar em alguma revolta, e pondo logo em prática a sua táctica costumada, reprimiam os revoltosos.
Isto durou assim largo tempo, larguíssimo tempo.
Porém um dia sucedeu que uma serpente, mais sagaz do que as outras, reflectiu. Era uma serpente, que sabia suas quatro regras de aritmética e calculou que os macacos estavam, relativamente aos outros animais, como um para oito. Então ela juntou os elefantes, leões, tigres, panteras e serpentes sob pretexto duma festa, e perguntou-lhes: «Quanto sois vós aqui?»
Os animais, depois de se contarem, responderam: «Somos oitenta mil.»
— Pois bem — disse a serpente —, contai agora os vossos senhores, e dizei-me quantos são. Os animais contaram os macacos, e responderam: «Oito mil.»
— Então sois muito néscios — disse a serpente —, por não exterminar os macacos, visto serdes oito contra um.
Os animais então reuniram-se exterminaram os macacos e ficaram senhores da ilha. Os mais excelentes frutos, os melhores campos, as mais belas florestas, as mais bonitas casas foram para eles, sem falar nos macacos, que fizeram seus escravos, nem nas bugias, que fizeram suas amantes.
— Haveis entendido? — disse António.
Grandes brados soaram, repetidos vivas e bravos se ouviram. António tinha produzido com a sua fábula não menos efeito que o cônsul Menenio, dois mil e duzentos anos antes, produzira com a sua.
Tranquilo esperou Laiza que este momento de entusiasmo passasse. Depois, estendendo o braço para impor silêncio, proferiu estas simples palavras:
— Havia uma ilha em que os escravos quiseram ser livres. Levantaram-se todos e obtiveram a liberdade.
Chamava-se esta ilha outrora São Domingo, hoje tem o nome de Haiti.
— Façamos como eles, e como eles seremos livres.
Grandes gritos de novo soaram, bravos e vivas pela segunda se ouviram. Posto que este discurso era muito simples para excitar a multidão, assim como tinha feito o de António, este notou-o, e concebeu esperança. Fez sinal de ir falar e reinou o silêncio.
— Sim — disse António. — Sim, Laiza diz a verdade. Tenho ouvido referir que há além da África, muito longe do lado em que o sol se põe, uma grande ilha em que todos os pretos são reis. Porém na minha ilha, assim como na de Laiza, na ilha dos animais, assim como nados homens, houve um chefe eleito, mas um só.
— É exacto — disse Laiza. — E António tem razão, todo o poder repartido se enfraquece. Sou pois da sua opinião, é preciso um chefe, mas um só.
— E quem será ele? — perguntou António.
— Aos que aqui estão juntos compete decidir — respondeu Laiza.
— O homem digno de ser nosso chefe — disse António —, é o que puder opor astúcia a astúcia, força à força, valor ao valor.
— É verdade — disse Laiza.
— O homem digno de ser nosso chefe — prosseguiu António —, é o que tem vivido com brancos e pretos, o que pertence pelo sangue a uns e outros. É o homem que fizer
O sacrifício da liberdade, o que possui uma casa e um campo, e se arrisca a perder o campo e a casa.
Eis aqui o homem, que é digno de ser nosso chefe.
— É verdade — disse Laiza.
— Eu conheço só um homem, que reúne todas estas condições — disse António.
— Também eu — disse Laiza.
— Queres dizer que és tu? — perguntou António.
— Não — respondeu Laiza.
— Então concordas em que sou eu
— Também não és tu.
— Então quem é? — exclamou António.
— Sim, quem é, onde está? Que venha, que apareça — bradaram ao mesmo tempo pretos e índios.
Laiza bateu três vezes com as mãos. No mesmo instante ouviu-se o galope dum cavalo, e à primeira luz do dia nascente, viram sair da floresta um cavaleiro, que, correndo à rédea solta, penetrou até meio do grupo, onde, por um simples movimento da mão, fez parar o seu cavalo.
Laiza estendeu o braço para o cavaleiro com um gesto de suprema dignidade.
— Ali tendes o vosso chefe — disse ele.
— Jorge Munier! — exclamaram dez mil vozes.
— Sim, Jorge Munier — disse Laiza. — Pedistes um chefe, que à astúcia, força e valor, possa opor valor, força e astúcia. Ei-lo aqui! Pedistes, um chefe, que tenha vivido com brancos e pretos, que pelo sangue pertencesse a uns e outros. Aqui o tendes! Pedistes um chefe, que fosse livre, e fizesse o sacrifício do seu património. Que possuísse uma casa e um campo, e se arriscasse a perder o campo e a casa, pois bem! Esse chefe, aqui está! Onde haveis de procurar outro? Onde encontrareis um semelhante?
António ficou perplexo. Todos olharam para Jorge, e um grande rumor se ouviu na multidão.
Jorge conhecia os homens com quem tratava, e entendeu que devia antes de tudo falar aos olhos. Estava pois vestido com um magnífico trajo bordado de ouro, e debaixo dele trazia o caftan(1) de honra, que recebera de lbrahim Pachá, sobre o qual brilhavam as Cruzes da Legião de Honra e de Carlos III. Antrim, coberto com um rico xarel, que tremia debaixo do seu dono, impaciente e orgulhoso ao mesmo tempo.
— Mas quem responde por ele? — exclamou António.
— Eu — disse Laiza.
— Tem ele vivido connosco, sabe quais são nossas necessidades!
— Não, ele não tem vivido connosco, mas sim com os brancos cujas ciências estudou. Sabe quais são os nossos desejos e necessidades porque não temos senão uma necessidade e um desejo: a liberdade.
— Então que comece por dá-la aos seus trezentos escravos.
— Isso está já feito desde esta manhã — disse Jorge.
— É verdade, é verdade — bradaram muitas vozes no meio da multidão. — Somos livres, o senhor Jorge deu-nos a liberdade.
— Mas ele acha-se ligado com os brancos — disse António.
— Na presença de vós todos — respondeu Jorge —, interrompi ontem as minhas relações com eles.
— Porém ama uma rapariga branca — disse António.
*1. Vestido de distinção turco.
— É isso mais um triunfo para nós, homens de cor — respondeu Jorge —, porque a rapariga branca ama-me.
— Mas se lhe a oferecerem para mulher — prosseguiu António —, atraiçoar-nos-á pactuando com os brancos.
— Se ma vierem oferecer para mulher, recusá-la-ei — respondeu Jorge —, porque quero possuí-la só por sua vontade, e de ninguém careço para ma dar.
António queria fazer uma nova objecção, mas os gritos de: «Viva Jorge! Viva o nosso chefe!», soaram de todos os lados, de modo que não lhe foi possível pronunciar uma só palavra. Jorge fez sinal de querer falar, e todos ficaram silenciosos.
— Meus amigos — disse ele — é dia, e por conseguinte hora de nos separar. Quinta-feira é dia de festa. Quinta-feira todos sois livres. Nesse dia, pelas oito horas da noite, vinde a este mesmo sítio, aqui me achareis, para me pôr à vossa frente e marchar sobre a cidade.
— Sim, sim — bradaram todos.
— Escutai ainda uma palavra. Se entre nós houver um traidor, decidamos que, provada a traição, qualquer de nós possa dar-lhe a morte no mesmo instante. Sujeitais-vos a esta sentença! Pelo que me diz respeito, sou o primeiro, que a ela me submeto.
— Sim, sim — clamaram todos. — Se algum for traidor, que morra!
— Está bem. Quantos sois vós?
— Dez mil — disse Laiza.
— Os meus trezentos servos estão incumbidos de entregar a cada um de vós quatro patacas, porque é indispensável que na quinta-feira à noite cada um se apresente com uma arma qualquer. Até quinta-feira.
E Jorge, saudando com a mão, partiu como viera, enquanto cada um dos trezentos pretos abria um saco cheio de ouro, e dava a cada homem as quatro patacas prometidas.
Esta magnificência real custava, verdade é, duzentos mil francos a Jorge. Porém que era esta soma para um homem que possuía milhões, e que sacrificaria toda a sua fortuna para complemento do projecto por ele concebido desde tanto tempo?
Finalmente este projecto ia efectuar-se. A luva estava lançada.
O SÍTIO ASSINALADO
Jorge entrou em sua casa muito mais tranquilo do que se poderia acreditar, era um desses homens que a inacção fatiga e a luta engrandece. Com preparar suas armas contentou-se ele, para o caso de ataque inopinado, reservando-se uma retirada para os grandes bosques, por onde na juventude andara, e cujo murmúrio e imensidade dele haviam feito a criança pensativa que nós já vimos.
Porém sobre quem realmente recaía o peso de todos estes acontecimentos imprevistos, era o pobre pai. O desejo da sua vida havia catorze anos fora tornar a ver seus filhos.
Este desejo tinha sido satisfeito, tornou a vê-los ambos. Porém a sua presença só mudou a languidez habitual da sua vida numa inquietação sem cessar renascente. Um, capitão negreiro, em perpétua luta com os elementos e as leis. O outro, conspirador idealista lutando com as preocupações e os homens. Ambos em guerra com o que no mundo há-de mais poderoso podendo ambos ser dum momento para outro destruídos pela tempestade. Enquanto ele, acostumado à obediência passiva, via caminhar ambos para o abismo, sem ter a força de os reter e não encontrando para se consolar mais do que estas palavras que de contínuo repetia:
«Ao menos estou certo duma coisa, é de morrer com eles.»
Curto era o tempo, que devia decidir do destino de Jorge. Só dois dias o separavam da catástrofe, que dele havia de fazer outro Toussaint Louverture, ou um novo Petion.
O seu único pesar durante estes dias era não poder falar a Sara. Imprudente seria ir ele à cidade em busca do seu mensageiro ordinário, Miko-Miko.
Porém, da outra parte, Jorge estava sossegado pela convicção de que Sara confiava nele. Entes há que só carecem dum olhar e duma palavra, para que compreendam quanto valem, e que, desde este momento, descansam um no outro com a segurança da convicção.
Jorge sorria-se à ideia da grande vingança que ia tirar da sociedade, e da grande reparação que lhe ia fazer a sorte.
Ele diria tornando a ver Sara: «Oito dias há, que não a vejo. Porém estes dias me bastaram, como a um vulcão, para mudar a face duma ilha. Deus quis aniquilar tudo por um furacão, e não pôde.
Eu, quis fazer desaparecer numa tempestade homens, leis, preocupações, e mais poderoso
Deus, saí-me bem.» Há nos perigos políticos e sociais do género daquele a que Jorge se expunha, um transporte eternizará as conspirações e os conspiradores. O móvel mais eficaz das acções humanas é sem dúvida a satisfação do orgulho.
Ora que há de mais lisonjeiro, para nós filhos do pecado, do que a ideia de renovar a luta de Satanás com Deus, dos Titãs com Júpiter.
Nesta luta, sabido é, Satanás foi fulminado e Encelade sepultado. Porém Encelade sepultado mexe uma montanha todas as vezes que se volta. Satanás fulminado vem a ser o rei dos infernos.
Porém isto eram coisas que o pobre Pedro Munier não compreendia.
Por isso, enquanto o pobre Jorge, depois de deixar a sua janela um pouco aberta, pendurar as suas pistolas à cabeceira e pôr a espada debaixo do travesseiro, adormeceu tão tranquilo como se não dormisse sobre um barril de pólvora.
Pedro Munier, armando cinco ou seis pretos em quem tinha confiança, pô-los em atalaia ao redor da roça, e postou-se ele mesmo de sentinela no caminho de Moka.
Deste modo uma retirada momentânea era pelo menos assegurada ao seu Jorge, e ele não corria o risco de ser surpreendido.
A noite passou sem nenhum rebate. Enquanto ao mais, é qualidade, particular das conspirações, que se tramam entre os pretos, que o segredo seja sempre escrupulosamente guardado. Esta pobre gente ainda não está assaz civilizada para calcular o que pode produzir uma traição.
O seguinte dia passou como a noite precedente, e a noite imediata do mesmo modo que o dia. Não sucedeu coisa alguma, que pudesse induzir Jorge a acreditar que havia sido atraiçoado. Poucas horas o separavam então da execução do seu desígnio.
Pelas nove horas da manhã chegou Laiza, que Jorge mandou entrar para o seu quarto. Nenhuma mudança havia nas disposições gerais. O entusiasmo produzido pela generosidade de Jorge ia aumentado. Às nove horas os dez mil conspiradores deviam achar-se reunidos e armados nas margens do rio das palmeiras, e às dez a conspiração havia de manifestar-se.
Enquanto Jorge interrogava Laiza sobre as disposições de cada um, e com ele praticava acerca desta perigosa empresa, avistou ao longe o seu mensageiro Miko-Miko, que, trazendo sempre ao ombro o bambu com os cestos, com o seu passo costumado caminhava para a roça. Era impossível que a aparição sucedesse mais a propósito, porque desde o dia das carreiras, Jorge nem sequer tinha avistado Sara.
Por mais senhor de si que Jorge fosse, não pôde abster-se de abrir a janela e fazer a Miko-Miko sinal para acelerar o passo, o que o honrado chinês fez sem demora. Laiza queria retirar-se. Porém Jorge mandou-o ficar, porque ainda tinha que lhe dizer.
Com efeito, como Jorge havia conjecturado, Miko-Miko não viera a Moka de seu mote próprio. Assim que entrou, puxou por um bilhete dobrado do modo mais aristocrático, isto é, comprido e estreito, no qual em letra de mulher se lia por único sobrescrito o seu apelido.
À vista deste bilhete, o coração de Jorge bateu com violência. Tirou da mão do mensageiro, e para ocultar a sua agitação, pobre filósofo, que não ousava ser homem, foi-o ler para o canto da janela.
A carta era efectivamente de Sara, e eis o que dizia:
«Querido Jorge.
«Achai-vos hoje pelas duas horas da tarde em casa de Lord Williams Murrey, onde haveis de saber coisas, que não me atrevo a dizer-vos, tão ditosa elas me tornam. E em saindo de Ia, vinde ter comigo. No nosso pavilhão vos aguardo.
«A vossa Sara.»
Duas vezes leu Jorge esta carta. Não compreendia como Lord Murrey podia dizer-lhe coisas, que tornassem Sara ditosa, nem sabia como ao sair de casa do governador, pelas três horas da tarde, em alto dia, à vista de todos, lhe seria possível apresentar-se em casa de Malmedie.
Só Miko-Miko podia explicar-lhe tudo isto, e por esta razão Jorge chamou o chinês e entrou a interrogá-lo. Porém o digno negociante não sabia senão que Sara o mandara chamar por Biju, que ele não conheceu logo, porque na sua luta com Telémaco o pobre diabo perdera parte do nariz, já muito esborrachado. Ele seguiu Biju, e foi introduzido à presença de Sara, no pavilhão onde já duas vezes havia entrado, e ali escrevera ela a carta, que acabava de entregar a Jorge. Depois Sara deu-lhe uma peça de ouro, e nada mais sabia o chinês.
Jorge porém continuou a interrogar Miko-Miko, perguntando-lhe se ela havia escrito a carta de ante dele, se estava só quando escrevia, e se o seu semblante parecia triste ou alegre.
Sara tinha escrito em presença do chinês. Ninguém se achava junto dela. O seu rosto anunciava a mais completa serenidade e a ventura mais perfeita.
Enquanto Jorge procedia ao interrogatório, ouviu-se o galope dum cavalo. Era um correio com a libré do governador.
Um instante depois este correio entrou no quarto de Jorge, e entregou-lhe uma carta de Lord Williams concebida nestes termos.
«Meu estimado companheiro de viagem.
Muito me tenho ocupado de vós desde que não vos vejo, e creio não ter disposto mal os vossos negócios. Tende a bondade de vir hoje a minha casa pelas duas horas. Espero que hei-de ter boas novas a dar-vos.
Vosso afeiçoado Lord W. Murrey.»
Estas duas cartas perfeitamente coincidiam uma com a outra.
Por isso, qualquer que fosse o perigo que houvesse para Jorge em se apresentar na cidade na situação em que se achava, ainda que a prudência lhe sugerisse que ir a Porto Luís, e mormente a casa do governador, era uma temeridade, este mancebo só escutou o seu orgulho, que dizia que não aceitar este duplo convite era quase uma fraqueza, principalmente sendo-lhe feito pelas duas únicas pessoas, que correspondiam, uma a seu amor, outra à sua amizade.
Voltando-se pois para o correio, Jorge lhe ordenou que apresentasse os seus respeitos a Lord Murrey, dizendo-lhe que se acharia em sua casa à hora aprazada.
Com esta resposta partiu o correio, e chegando-se para uma mesa, Jorge escreveu a Sara a seguinte carta:
«Querida Sara.
Em primeiro lugar, abençoada seja a vossa carta. É a primeira que de vós recebo, e, posto que muito pequena, ela me diz tudo o que eu desejava saber. É que não vos haveis esquecido de mim, que ainda me amais, e que sois minha assim como eu sou vosso.
Irei a casa de Lord Murrey, à hora que me indicais. Encontrar-vos-ei ali? Não mo dizeis. As únicas boas novas, que tenho a esperar, só da vossa boca podem sair, visto que a única felicidade a que no mundo aspiro é a de ser vosso marido. Até agora, tenho feito quanto cabe em mim para o conseguir, tudo o que ainda fizer será com o mesmo intuito. Permanecei pois forte e fiel, Sara, assim como eu serei fiel e forte, porque por mais perto que a felicidade nos apareça, muito receio que tenhamos ainda, antes de a alcançar, que passar por terríveis experiências.
Não importa, Sara. A minha convicção é que no mundo nada resiste a uma vontade veemente e imutável, e a um amor profundo e dedicado. Tende, Sara, este amor, que eu terei essa vontade.
O vosso Jorge.»
Escrita que foi esta carta, Jorge entregou-a a Miko-Miko, que tornou a pegar no seu bambu com os cestos, e, no seu passo do costume, partiu para Porto Luís, não sem receber a nova retribuição que seus fieis serviços tão bem mereciam.
Jorge ficou só com Laiza, que tinha ouvido quase tudo, e tudo havia compreendido.
— Então ides à cidade? — perguntou ele a Jorge.
— Vou — respondeu este.
— Isso é imprudente — prosseguiu o preto.
— Bem o sei. Porém devo lá ir. E eu seria a meus próprios olhos um cobarde se não
fosse.
— Pois ide. Porém se às dez horas não houverdes chegado ao rio das Palmeiras...
— É porque estou preso ou morto. Então marchai sobre a cidade e restituí-me a liberdade, ou vingai-me.
— Está bem — disse Laiza. — Contai connosco.
E estes dois homens que tão bem se haviam compreendido, a quem uma só palavra, um gesto, um aperto de mão bastava para estarem seguros um do outro, sem mais promessa ou recomendação se separaram.
Eram dez horas da manhã. Vieram dizer a Jorge que seu pai lhe mandava perguntar se almoçava com ele. Jorge respondeu passando pela casa de jantar. Ele estava tão sossegado como se nada houvesse sucedido.
Pedro Munier lançou sobre seu filho um olhar, em que se notava toda a solicitude paternal. Porém vendo que o seu rosto não estava alterado, e reconhecendo em seus lábios o mesmo sorriso com que todos os dias o saudava, ficou tranquilo.
— Louvado seja Deus, meu querido filho — disse Pedro Munier. — Ao ver estes mensageiros seguir-se com tanta rapidez, receei que te trouxessem notícias más. Porém o teu ar sossegado anuncia-me que me enganei.
— Tem razão, meu pai — respondeu Jorge. — Está tudo bem. Sempre é para esta noite, à mesma hora, a revolta. E estes mensageiros trouxeram-me duas cartas, uma do governador, que me convida para sua casa hoje às duas horas, a outra de Sara, que confessa que me ama.
Pedro Munier ficou atarantado. Era a primeira vez que Jorge lhe falava da revolta dos pretos, da amizade do governador e do amor de Sara. Indirectamente havia ele sabido todas estas coisas, e estremeceu até ao fundo do coração vendo o seu filho querido lançar-se em semelhante caminho.
Balbuciando fez Pedro Munier algumas observações a que Jorge respondeu.
— Meu pai, lhe disse este sorrindo-se, lembre-se do dia em que, depois de haver feito prodígios de valor, de salvar os voluntários e conquistar uma bandeira, esta lhe foi arrancada pelo senhor de Malmedie. Naquele dia foi diante do inimigo, grande, nobre, sublime, o que sempre há-de ser à vista do perigo. Então, jurei que um dia homens e coisas seriam postos no seu lugar, este dia é chegado, não hei-de faltar ao meu juramento. Deus decidirá entre os escravos e senhores, entre os fracos e os fortes, os mártires e os algozes.
Como Pedro Munier, sem força nem poder, sem objecção contra semelhante vontade, se curvava sobre si mesmo como se lhe pesasse em cima o mundo, Jorge ordenou a Ali que selasse os cavalos, e depois de acabar tranquilamente de almoçar, olhando de vez em quando com ar triste para seu pai, ergueu-se para sair.
Pedro Munier estremeceu, e pôs-se em pé com os braços estendidos para seu filho. Jorge caminhou para ele, tomou-lhe a cabeça entre as mãos, expressão de amor filial que jamais mostrara, chegou a si esta cabeça venerável cujas cãs beijou cinco ou seis vezes.
— Meu filho, meu filho! — exclamou Pedro Munier.
— Meu pai — disse Jorge —, há-de ter uma velhice respeitada, ou eu terei uma sepultura ensanguentada. Adeus!
Jorge arremeçou-se para fora do quarto e o ancião caiu sobre a cadeira dando um profundo gemido.
A RECUSA
A pouco mais ou menos duas léguas da habitação paterna, Jorge encontrou Miko-Miko, que voltava a Porto Luís. Parou então o seu cavalo, chamou o chinês, disse-lhe ao ouvido algumas palavras, a que Miko-Miko respondeu com sinal de inteligência, e prosseguiu o seu caminho.
Chegando junto à montanha do Descobrimento, Jorge começou a encontrar gente da cidade. Com a vista interrogou ele o rosto destes passeantes, mas não notou nas diversas fisionomias que o acaso lhe trazia ao caminho, sintoma algum, que lhe desse azo a pensar que o projecto de revolta, que por ele devia ser posto em execução naquela mesma noite, tinha sido descoberto. Jorge foi continuando o seu caminho, atravessou o acampamento dos negros e entrou na cidade onde reinava o sossego. Todos pareciam ocupados de seus negócios pessoais, nenhuma preocupação geral pairava sobre a povoação. As embarcações balanceavam-se mansamente abrigadas no porto. Um navio americano, que chegava de Calcutá, lançava âncora.
A presença de Jorge pareceu porém causar certa sensação. Mas era evidente que esta sensação provinha do que sucedera nas carreiras, e do inaudito insulto feito por um mulato a um branco. Muitos grupos cessaram mesmo, ao ver o mancebo, de falar nos negócios que estavam a tratar, para seguir Jorge com a vista, e trocar em voz baixa algumas palavras de admiração pela audácia, que ele tinha de aparecer na cidade. Porém Jorge respondeu a estas vistas com um olhar tão altivo, a estas conversas com um sorriso tão desdenhoso, que todos deixaram de olhar para ele e ficaram em silêncio não podendo suportar o raio de severa superioridade que saía de seus olhos.
Além disto, trazia fora dos coldres a coronha dum par de pistolas de dois canos.
Os soldados e oficiais que Jorge no caminho encontrou, é que principalmente foram o objecto da sua atenção. Porém uns e outros tinham essa fisionomia tranquilamente aborrecida da gente transportada dum mundo a outro, e condenada a um degredo de quatro mil léguas. Por certo, se eles soubessem que Jorge lhes procurava que fazer para a noite, mostrariam um ar, quando não alegre, ao menos mais azafamado.
Assim todas as aparências tranquilizaram Jorge. Este chegou à porta do Governo, entregou a rédea do seu cavalo nas mãos de Ali, e recomendou-lhe que não se ausentasse.
Atravessou depois o pátio, subiu a escada e entrou na sala de espera.
Os criados haviam de antemão recebido ordem de introduzir Jorge Munier logo que se apresentasse. Em consequência do que um deles o foi encaminhando, abriu a porta da sala e o anunciou.
Achavam-se nesta sala Lord Murrey, Sara e Malmedie.
Com grande assombro de Sara, cujos olhos se dirigiram imediatamente para Jorge, o semblante deste mancebo exprimiu à sua vista um sentimento mais penoso que alegre. Enrugou-se-lhe ligeiramente a testa, as sobrancelhas aproximaram-se e um sorriso quase amargo se lhe divisou na boca.
Sara, que com vivacidade se havia levantado, sentiu curvarem-se-lhe os joelhos, e devagar caiu sobre a sua poltrona.
Malmedie ficara em pé e imóvel como estava, contentando-se com abaixar um pouco a cabeça. Lord Williams Murrey deu dois passos para Jorge e estendeu-lhe a mão.
— Meu jovem amigo — disse-lhe o governador —, reputo-me feliz por lhe anunciar uma nova, que há-de preencher, segundo espero, todos os seus desejos. O senhor de Malmedie, querendo extinguir todas as distinções de cor e todas as rivalidades de castas, que há duzentos anos fazem a desgraça, não só da ilha de França, mas das colónias em geral, consente em conceder-lhe a mão de sua sobrinha, a senhora Sara de Malmedie.
Sara fez-se vermelha e levantou imperceptivelmente os olhos para Jorge. Este porém contentou-se com inclinar-se sem responder.
Malmedie e Lord Murrey olharam para ele admirados.
— Senhor — disse sorrindo Lord Murrey a Malmedie —, bem vejo que o nosso incrédulo amigo não se fia só na minha palavra. Diga-lhe pois que lhe concede o que lhe pediu, e que deseja que toda a lembrança de animosidade antiga e recente seja esquecida pelas duas famílias.
— É verdade, senhor — disse Malmedie fazendo visivelmente um grande esforço. — E o senhor governador acaba de lhe participar os meus sentimentos. Se conservar algum rancor de certo acontecimento sucedido em Porto Luís, esqueça-o, assim como meu filho esquecerá, em seu nome lho prometo, a injúria muito mais grave que ainda há pouco lhe fez. Pelo que toca à sua união com minha sobrinha, já o senhor governador lho disse: consinto nela, a não ser que hoje o sr. recuse.
— Oh, Jorge! — exclamou Sara cedendo a um primeiro movimento.
— Não se apresse Sara, em julgar-me pela minha resposta, disse Jorge, porque ela me é, acredite-o, imposta por imperiosas necessidade. Sara, em presença de Deus e dos homens, desde que a encontrei no pavilhão, desde a noite do baile, e do dia em que pela primeira vez a vi, é minha mulher, nenhuma outra há-de ter um nome que não desprezou, sem embargo do seu abatimento.
Acabando de dizer isto, Jorge voltou-se para o governador:
— Muito obrigado, milord— continuou ele —, muito obrigado. No que hoje sucede reconheço o apoio da vossa generosa filantropia e benévola amizade. Porém desde o dia em que o senhor de Malmedie me negou sua sobrinha, em que Henrique pela segunda vez me insultou, e em que julguei dever tomar vingança desta recusa e deste insulto por uma injúria pública e infamante, tornei-me inimigo dos brancos. Já não há reconciliação possível entre nós. O senhor de Malmedie pode, por uma combinação, um cálculo, ou uma intenção que não compreendo, andar meio caminho. Porém eu não andarei o resto. Se acaso Sara me ama, ela é livre, senhora da sua mão e da sua fortuna. A ela toca engrandecer-se ainda a meus próprios olhos descendo até mim, e eu não devo abater-me aos seus tentando subir até ela.
— Jorge! — exclamou Sara. — Bem sabe...
— Sei, sim — disse Jorge. — Sei que é uma nobre menina, um coração dedicado uma alma pura. Sei que virá a mim, Sara, sem embargo de todos os obstáculos, estorvos e preocupações. Sei que não tenho mais que esperá-la, e que um dia a verei aparecer. E sei isto justamente porque sendo o sacrifício da sua parte, já decidiu, no seu generoso pensamento, que O Capitão dos Piratas
mo faria. Porém, pelo que lhe toca, senhor Malmedie, pelo que respeita a seu filho que consente em não se bater comigo com a condição de me mandar açoutar por seus amigos. Oh! Entre nós há uma guerra eterna, um ódio mortal, que da minha parte só no sangue e no desprezo se extinguira. Que o seu filho escolha!
— Senhor governador — respondeu então Malmedie com mais dignidade do que se podia esperar da sua parte —, acaba de ver que fiz o que me era possível, sacrifiquei o meu orgulho, esqueci a antiga e a nova injúria. Mas não posso decentemente fazer mais, e cumpre que aceite a declaração de guerra que me faz este senhor. Aguardaremos porém o ataque apercebidos para a defesa. Agora — prosseguiu Malmedie voltando-se para Sara —, é livre, como disse este senhor, pode dispor do seu coração, da sua mão e fortuna. Faça o que lhe aprouver. Fique com ele, ou siga-me.
— Meu tio — disse Sara —, o meu dever é acompanhá-lo. Adeus, Jorge. Não compreendo o seu modo de proceder hoje. Porém sem dúvida fez o que devia.
E fazendo ao governador uma reverência com sossego e dignidade, Sara saiu com Malmedie.
Lord Williams Murrey acompanhou-os até à porta, saiu com eles e voltou um instante depois.
O seu olhar indagador encontrou o de Jorge e houve um momento de silêncio entre estes dois homens, que, graças à sua natureza elevada, tão bem se entendiam um ao outro.
— Então recusou — disse o governador.
— Entendi que devia haver-me assim, milord.
— Desculpe-me, se dou mostras de o interrogar. Posso porém saber que sentimento ditou a sua recusa?
— O da minha própria dignidade.
— Esse sentimento é o único? — perguntou o governador.
— Se há outro, milord, permita-me que o conserve em segredo.
— Escute» Jorge — disse o governador —, escute, desde o momento em que o encontrei a bordo da fragata Leycester, e em que pude avaliar as sublimes qualidades que o distinguem, tem sido o meu desejo fazer de si um vínculo que unisse estas duas castas opostas uma à outra. Comecei por penetrar os seus sentimentos, depois Jorge fez-me confidente do seu amor, e eu consenti em ser seu medianeiro e seu padrinho. Por isto Jorge — prosseguiu Lord Murrey respondendo à inclinação de cabeça de Jorge —, por isto, meu amigo, nenhum agradecimento me deve. O sr. mesmo iria ao encontro dos meus desejos. Auxiliaria o meu plano de conciliação. Facilitaria os meus projectos políticos. Acompanhei-o a casa de Malmedie e apoiei a sua petição com toda a autoridade da minha pessoa, com toda a importância do meu nome.
— Bem o sei, milord, e agradeço-lhe. Presenceou, porém, o que sucedeu: nem a importância do seu nome, por honroso que seja, nem a autoridade da sua presença, por mais lisonjeira que devesse ser, puderam evitar-me uma recusa.
— Sofri por ela tanto como o sr. Jorge. Admirei o seu sossego, e na sua paz de espírito compreendi que meditava numa terrível desforra. No dia das carreiras tomou essa desforra, à vista de todos, e desde esse dia entendi que segundo todas as probabilidades, me seria preciso renunciar aos meus projectos de reconciliação.
— Havia-o prevenido separando-me de si, milord.
— É verdade, mas escute-me. Não me reputei vencido, apesentei-me ontem em casa de Malmedie, e à força de súplicas e instâncias, e quase abusando da influência que a minha posição me dá, obtive do pai o esquecimento da sua antiga aversão a seu pai, do filho que esqueceria o ódio que lhe tinha, e de ambos que consentiriam no casamento de Sara de Malmedie.
— Sara é livre, milord— interrompeu Jorge com vivacidade —, e para ser minha mulher. Graças a Deus, não carece do consentimento de pessoa alguma.
— Sim, convenho nisso — prosseguiu o governador. — Porém que diferença aos olhos de todos, levar furtivamente uma rapariga de casa do seu tutor, ou recebê-la em público da mão da sua família! Consulte o seu orgulho, senhor Munier, e veja se eu não lhe havia procurado uma grande satisfação, um triunfo que ele próprio não esperava.
— É verdade — respondeu Jorge. — Infelizmente vêm muito tarde esse consentimento.
— Muito tarde, e porquê? — prosseguiu o governador.
— Dispense-me de lhe responder sobre esse ponto, milord. Aí está o meu segredo.
— O seu segredo, pobre rapaz. Pois bem! Quer que lhe diga esse segredo, que não me quer descobrir?
Jorge olhou para o governador com um sorriso de incredulidade.
— O seu segredo! — continuou o governador, está bem seguro e guardado confiado a dez mil pessoas.
Jorge tornou a olhar para o governador, mas desta vez sem se sorrir.
— Escute-me — continuou Lord Murrey —, queria perder-se, eu quis salvá-lo. Fui ter com o tio de Sara, chamei-o de parte e disse-lhe: Tem avaliado mal Jorge Munier, com insolência o repeliu, compelindo-o assim a declarar-se abertamente contra nós, e fez mal, porque Jorge Munier é homem distinto, de elevado coração e grande alma. Alguma coisa havia a fazer da quela organização, e a prova é que Jorge tem a esta hora a nossa vida nas suas mãos, ele é o chefe de uma vasta conspiração, e amanhã, às dez horas da noite, era ontem, que eu assim lhe falava, ha de marchar sobre Porto Luís à frente de dez mil pretos. Como não temos mais de mil e oitocentos homens de tropa, a não ser que o acaso me envie uma dessas ideias preservadoras, como às vezes sucede aos homens de génio, estamos todos perdidos. Depois de amanhã, finalmente, Jorge Munier, que agora despreza como descendente de uma raça de cativos, será talvez nosso senhor, e talvez o não queira para escravo. Pois bem! O senhor pode obstar a tudo isto, lhe disse eu, pode salvar a colónia. Conceda a Jorge a mão de sua sobrinha que lhe negou, e se ele aceita, se quiser aceitar, porque os papéis estando mudados, também as pretensões podem ser mudadas, terá não só a sua vida, liberdade e a fortuna, mas também a liberdade, a vida e a fortuna de todos. Eis o que eu lhe disse, e então, por minhas súplicas, instâncias e ordens, ele consentiu. Mas sucedeu o que eu previa, estava muito empenhado, não lhe foi possível recuar.
Jorge seguira o discurso do governador com uma admiração progressiva, mas ainda assim com perfeito sossego.
— Assim, disse ele quando o governador acabou, sabe tudo, milord?
— Parece-me que sim, e julgo não haver esquecido coisa alguma.
— Não — prosseguiu Jorge sorrindo —, não. Os seus espias estão bem informados, e eu dou-lhe os parabéns pelo modo como se faz a polícia.
— Pois muito bem! Agora — disse o governador — que sabe o motivo que me fez assim proceder, ainda é tempo. Aceite a mão de Sara, reconcilie-se com a sua família, renuncie aos seus projectos insensatos, e eu nada sei, ignoro tudo, tudo esqueço.
— É impossível — disse Jorge.
— Mas pondere com que espécie de gente está metido!
— Esquece-se, milord, de que os homens em quem com tanto desprezo fala, são meus irmãos, de que pelos brancos desprezados como seus inferiores, eles me reconheceram por seu chefe. Não se lembra de que, no momento em que estes homens me abandonaram a sua vida, eu lhes votei a minha.
— Desse modo recusa?
— Sim, recuso.
— A despeito das minhas solicitações.
— Desculpe-me, milord, mas não me é possível escutá-las.
— Apesar do seu amor a Sara, e do amor que ela lhe tem?
— Apesar de tudo, milord.
— Medite ainda.
— É inútil, as minhas reflexões estão feitas.
— Bem, agora, senhor — disse Lord Murrey —, uma derradeira pergunta.
— Fale.
— Se eu estivesse no seu lugar e o senhor no meu, que faria?
— O que me pergunta, milord?
— Sim, e se eu fosse Jorge Munier, chefe de uma revolta, e o sr. Lord Williams Murrey, governador da ilha de França. Se me tivesse em seu poder, assim como eu o tenho no meu, diga, pela segunda vez lho pergunto, que faria?
— Deixaria sair daqui, milord, quem aqui veio debaixo da sua palavra, julgando ser chamado a um lugar e não atraído a uma embuscada. Depois à noite, se tivesse fé na justiça da minha causa, apelaria dela para Deus, para que Deus decidisse entre nós.
— Pois faria mal, Jorge, porque desde o momento em que eu desembainhasse a espada, já não poderia salvar-me. Desde o momento em que eu excitasse à revolta, indispensável seria extingui-la no meu sangue. Não, Jorge, não quero que um homem como o senhor morra num cadafalso, como um rebelde vulgar cujas intenções serão caluniadas e o nome infamado. E para o salvar de semelhante desgraça, para o arrancar ao seu destino, é meu prisioneiro.
Prendo-o.
— Milord!— exclamou Jorge olhando em torno de si para ver se encontrava alguma arma, de que pudesse lançar mão para se defender.
— Soldados — disse o governador levantando a voz —, entrem e apoderem-se deste homem.
Alguns soldados entraram ao mando de um cabo de esquadra e rodearam Jorge.
— Levem este sr. à Polícia — disse o governador. — Metam-no no quarto que esta manhã mandei preparar, e vigiando-o rigorosamente, tenham cuidado em que nem os srs., nem alguma pessoa falte às atenções que lhe são devidas.
A estas palavras o governador saudou Jorge e saiu.
A REVOLTA
Tudo o que acabava de suceder tinha-se passado com tanta rapidez e de um modo tão inesperado, que Jorge não teve tempo de se preparar para o que lhe acontecia.
Porém graças ao seu admirável poder sobre si mesmo, ocultou debaixo de um apático e contínuo sorriso de desprezo as diferentes comoções de que se achava possuído.
O preso e seus guardas saíram por uma porta traseira, junto da qual estava aguardando a carruagem do governador. Porém seja acaso ou prevenção, Miko-Miko passava por diante da porta no mesmo momento em que Jorge subia para a carruagem.
Segundo as ordens do governador, Jorge foi conduzido à Polícia, grande edifício cujo destino o nome indica, e que se acha situado na rua do Governo, um pouco mais abaixo do teatro, e ali o meteram no quarto indicado pelo governador.
Este quarto tinha sido visivelmente preparado de antemão, como Lord Williams havia dito, e era evidente que houvera a intenção de torná-lo o mais cómodo possível.
A mobília era boa e o leito quase elegante. Não parecia uma prisão senão pelas grades das janelas.
Depois de fechada a porta, Jorge vendo-se só foi direito à janela, que estava na altura de vinte pés pouco mais ou menos e que dava para a hospedaria Coignet
Como uma das janelas se achava exactamente defronte do quarto de Jorge, este podia ver o interior daquela casa, e isto com facilidade, porque a janela estava aberta.
Jorge da sua janela voltou à porta, escutou, e ouviu que estavam pondo uma sentinela no corredor.
Então tornou a ir para a janela que abriu.
Nenhuma sentinela tinha sido posta na rua. Aos varões de ferro confiavam a guarda do preso.
Com efeito estes varões eram de grossura capaz de sossegar a mais inquieta vigilância.
Não havia pois esperança alguma de fugir sem socorro estranho.
Porém Jorge aguardava por certo este socorro, porque deixando a janela aberta, ficou com os olhos sempre fitos na hospedaria Coignet que se acha, como já dissemos, situada defronte da Polícia.
Com efeito, a sua esperança não foi iludida. Ao cabo de uma hora viu Miko-Miko, com o seu bambu ao ombro, atravessar o quarto defronte do seu, encaminhado por um criado da hospedaria.
O preso e o chinês só trocaram um olhar, porém este olhar por mais rápido que fosse, levou a serenidade ao semblante de Jorge.
Desde este momento, Jorge pareceu quase tão tranquilo como se estivessse no seu quarto em Moka.
Ainda assim, de tempos a tempos, um observador atento teria notado que ele franzia as sobrancelhas e passava a mão pela testa.
Debaixo desta aparência sossegada uma aluvião de ideias agitava o seu espírito. Contudo as horas correram sem que nada indicasse ao preso que se fazia algum preparativo na cidade. Não se ouvia o rufo do tambor, nem o ruído das armas. Duas ou três vezes Jorge correu à janela, enganado por um som análogo a um rufo. Porém viu que o que lhe parecera um rufo de tambor era o ruído de carros carregados de tonéis.
A noite ia chegando, e, à proporção que ela chegava, Jorge, mais agitado e inquieto, andava com um movimento apressado da porta para a janela.
A porta continuava a ser guardada pela sentinela. A janela só tinha por guarda os varões. De vez em quando Jorge levava a mão ao peito, e uma ligeira contração do rosto indicava que ele sofria um desses apertos instantâneos de coração, de que o homem mais animoso não pôde tornar-se senhor nas circunstâncias supremas da vida. Então estava certamente pensando no seu pai que ignorava o perigo que ele corria, e em Sara que sem o saber a este perigo o atraíra. Pelo que diz respeito ao governador, não podia Jorge a si próprio dissimular que havia, nesta ocasião, desenvolvido para com ele não só todas as atenções aristocratas próprias de seus costumes, mas também que não chegara a mandá-lo prender, senão depois de lhe haver oferecido todos os meios de salvação que estavam em seu poder.
O que não obstava a que Jorge estivesse preso debaixo da prevenção de alta traição. Entretanto, as trevas começaram a tornar-se espessas. Jorge tirou o seu relógio, eram oito horas e meia da noite. Dali à hora e meia a revolta devia manifestar-se.
De repente Jorge levantou a cabeça e de novo ficou a vista na hospedaria Coignet. No quarto situado defronte do seu, viu mover-se um vulto, que lhe fez um sinal. Jorge saiu de frente da janela, e um embrulho, atravessando a rua e passando através dos varões foi cair no meio do quarto.
Jorge deu um pulo e apanhou o embrulho, que constava de uma corda e de uma lima. Este era o socorro exterior que ele esperava. Entre as mãos tinha Jorge a liberdade, e queria achar-se livre para a ocasião do perigo.
Entre os colchões escondeu ele a corda, e, como já reinava completa escuridão, entrou
a limar um dos varões.
Eram estes muito separados para que, cortado que fosse um, Jorge pudesse passar pelo intervalo que ficava.
A lima era surda, nenhum barulho fazia, e como pelas sete horas lhe haviam levado a ceia, Jorge tinha quase a certeza de não ser interrompido.
Contudo o trabalho ia devagar: soou nove e meia e dez. Enquanto o preso cortava o varão de ferro, parecia-lhe, na extremidade da rua do Governo, do lado da rua da Comédia, ver grandes clarões. Nenhuma patrulha andava pela cidade, nenhum soldado demorado se recolhia ao quartel. Não compreendia Jorge esta apatia do governador. Muito bem o conhecia para pensar que ele havia deixado de tomar todas as precauções e todavia, como já dissemos, a cidade parecia sem defesa alguma e como abandonada a si mesma.
Porém pelas dez horas, pareceu-lhe ouvir aumentar um rumor para o lado do acampamento malabar. Era desta parte que os revoltosos, juntos na margem do rio das Palmeiras, deviam chegar. Jorge fez mais esforços. O varão já estava completamente cortado por baixo e ele acabava de principiar a cortá-lo por cima.
O rumor foi aumentando, não podia já haver engano. Era o ruído, que fazem confundindo-se as vozes de muitos milhares de homens. Laiza havia cumprido a sua palavra. Um sorriso de júbilo passou pelos lábios de Jorge, um raio de orgulho lhe iluminou o semblante. Iam pois combater. Talvez não houvesse vitória, mas ao menos ia haver luta.
E Jorge ia nela tomar parte, porque o varão estava quase cortado.
Escutou então, com o ouvido aplicado e o coração palpitante. O barulho avizinhava-se cada vez mais, e o clarão, que ele já tinha observado, ia aumentando. Estava o fogo em Porto Luís? Era impossível, porque nenhum grito de aflição se ouvia.
Além disto, posto que sempre se ouvisse este rumor, que parecia, coisa singular, antes um ruído festival que um estrépito ameaçador, nenhum ruído de armas se sentia, e a rua em que se achava situada a Polícia, estava solitária.
Jorge aguardou ainda um quarto de hora, esperando sempre que alguns tiros de espingarda viessem pôr termo à sua incerteza, anunciando-lhe que já pelejavam. Porém continuava a ouvir o mesmo rumor singular, sem que a ele se misturasse o ruído tão desejado.
O preso entendeu então que para ele o mais importante era fugir logo. Com um último esforço, o varão cedeu. Jorge atou fortemente a corda, deitou adiante de si o varão, para dele fazer uma arma, passou pela abertura, deixou-se escorregar ao longo da corda, chegou ao chão sem acidente, apanhou o varão, e meteu-se por uma das ruas transversais.
À proporção que Jorge se adiantava para a rua de Paris, que atravessa todo o bairro setentrional da cidade, via aumentar o clarão, e ouvia maior ruído. Finalmente chegou à esquina de uma rua muito iluminada, e tudo lhe foi explicado.
Todas as ruas, que davam para o acampamento malabar, isto é, para o ponto por onde os revoltosos haviam de penetrar na cidade, estavam iluminadas como num dia de função, e, de distância em distância, defronte das casas principais, tinham posto pipas de aguardente destapadas, como para uma distribuição gratuita.
Os pretos arrojaram-se como uma torrente sobre Porto Luís, dando brados de raiva e vingança.
Porém, ao chegar, encontraram as ruas iluminadas, e viram estas pipas tentadoras. As ordens de Laiza suspenderam-os um instante, e também a ideia de que estava envenenada a aguardente. Porém em breve a natureza prevaleceu à disciplina e mesmo ao temor. Alguns homens se desmandaram e entraram a beber. Às vozes de júbilo destes, os outros pretos não puderam conservar-se no seu lugar. Toda esta multidão, que bastava para aniquilar Porto Luís, se espalhou num instante, apinhou-se em roda das pipas com brados de furor, bebendo muita aguardente, eterno veneno das raças pretas, a cuja vista não sabe resistir um negro, em troco do qual vende filhos, pai, mãe, e acaba muitas vezes vendendo-se a si próprio.
Esta era a causa desses gritos de singular expressão, que Jorge não pudera compreender.
O governador havia posto em prática o conselho, que o próprio Tiago lhe dera, e como se vê, deu-se bem com ele.
A revolta chegada à cidade afrouxou antes de penetrar no seu interior, e foi acabar a cem passos da residência do governador.
A vista do extraordinário espectáculo, que se oferecia a seus olhos, Jorge não conservou mais dúvida alguma sobre o êxito da sua empresa. Lembrou-se do vaticínio de Tiago, e estremeceu de cólera e de vergonha ao mesmo tempo.
Estes homens com quem ele contava mudar a face das coisas, dominar a ilha e vingar dois séculos de cativeiro por uma hora de vitória e um porvir de liberdade, estavam a rir, cantar, dançar, desarmados, ébrios e irresolutos. Trezentos soldados com azorragues podiam agora reconduzi-los ao trabalho, e eles eram dez mil.
Deste modo, todo esse longo trabalho de Jorge sobre si mesmo estava perdido. Todo o profundo estudo do seu próprio coração, força e valor era inútil. Toda a superioridade de carácter dada por Deus, de educação adquirida sobre os homens, tudo isto se aniquilava à vista dos instintos de uma raça que antepunha a aguardente à liberdade.
Jorge sentiu logo a nulidade das suas ambições. O seu orgulho um momento havia-o transportado ao cume de uma montanha, e lhe tinha feito ver a seus pés todos os reinos da terra. /Tudo havia desaparecido, não era mais que uma visão. E Jorge achava-se justamente no mesmo lugar em que o seu orgulho o havia enganado.
Entre as mãos apertava ele o seu varão de ferro. Sentia-se possuído de um desejo feroz de se arremeçar ao meio daqueles miseráveis, e de quebrar aqueles cascos embrutecidos, que não haviam tido a força de resistir à grosseira tentação de que ele era vítima.
Grupos de curiosos, que por certo não compreendiam o motivo desta função improvisada que o governador dava aos escravos, observaram tudo de boca aberta. Cada um perguntava ao seu vizinho o que queria dizer aquilo, sem que o vizinho, tão ignorante como o seu interlocutor, lhe pudesse responder nem dar-lhe a menor explicação.
Jorge correu de grupo em grupo, olhando até à extremidade destas longas ruas, iluminadas e cheias de pretos embriagados, e dando vozes insensatas. No meio de toda esta multidão de entes imundos procurava ele um homem, um só homem, com quem ainda contava no meio da degradação geral. Este homem, era Laiza!
De repente Jorge ouviu um grande rumor, que vinha do lado da Polícia. Depois travou-se um combate assaz vivo, de uma parte, com a regularidade da tropa de linha, da outra, com a confusão que acompanha o fogo das tropas irregulares.
Finalmente, havia um sítio em que se pelejava.
Jorge arremeçou-se para esta parte, e em cinco minutos achou-se na rua do Governo.
Não se havia enganado, a gente que combatia era capitaneada por Laiza que, sabendo que Jorge estava preso, tinha à frente de quatrocentos homens escolhidos feito a volta da cidade e marchado sobre a Polícia para o libertar.
Este movimento havia sem dúvida sido previsto, porque logo que a pequena força apareceu numa extremidade da rua, um batalhão inglês pôs-se em movimento e marchou contra ela.
Laiza tinha presumido que o não deixariam soltar Jorge sem combate, mas contava com a diversão, que devia fazer o resto da sua força chegando pelas ruas adjacentes ao acampamento malabar. Porém esta diversão, como vimos, não teve efeito pelas causas que deixámos referidas.
Jorge arrojou-se de um pulo ao meio dos combatentes, chamando a grandes vozes: Laiza! Laiza! Havia deparado com um preto digno de ser homem. Tinha encontrado uma natureza igual à sua.
Os dois chefes uniram-se no meio do fogo. E ali sem buscarem abrigo contra as descargas da espingardaria do inimigo, desprezando as balas que em torno deles silvavam, trocaram algumas dessas palavras breves e apressadas que as situações supremas requerem.
Num instante, Laiza soube tudo. Abanou a cabeça, e contentou-se com dizer: «Está tudo perdido!»
Jorge quis dar-lhe algumas esperanças. Quis tentar alguns esforços sobre os bebedores. Porém Laiza, deixando escapar um sorriso de profundo desprezo, disse:
— Estão a beber. Se não se lhes faltar a aguardente, nada temos a esperar.
Ora as pipas tinham sido destapadas em muito grande quantidade para que a aguardente viesse a faltar-lhes.
Todo o combate se tornava inútil no lugar em que se travara, visto que Jorge, que Laiza ia libertar, se achava livre. O que havia pois a fazer era lamentar a perda de uma dúzia de homens, já postos fora de combate, e dar o sinal da retirada.
Porém esta havia-se tornado impossível pela rua do Governo. Enquanto a tropa de Laiza fazia frente ao batalhão inglês que se havia oposto à sua empresa, outro destacamento, emboscado na casa da pólvora, de lá saía, ao som das caixas, e fechava o caminho por onde Lâ com a sua gente havia chegado.
Indispensável se tornou então empreender à retirada pelas ruas que rodeiam o palácio das justiças, e chegar por ali aos arredores da pequena montanha e ao acampamento malabar.
Apenas Jorge, Laiza e a sua gente andaram duzentos passos, acharam-se nas ruas iluminadas e guarnecidas de pipas de aguardente.
A cena era ainda mais imunda do que da primeira vez. A embriaguez havia feito progressos.
E na extremidade de cada rua viam-se brilhar nas trevas as baionetas de uma companhia inglesa.
Jorge e Laiza olharam um para o outro com esse sorriso, que significa: Já não se trata aqui de vencer, mas sim de morrer, e de morrer bem.
Contudo ambos quiseram tentar um derradeiro esforço e arremeçaram-se à rua principal, buscando reunir os revoltosos da sua pequena força.
Porém apenas alguns estavam em estado de escutar os gritos e as exortações dos seus chefes. Os outros inteiramente os desconheciam, cantavam com voz animada, e dançavam cambaleando, enquanto o maior número, no último grau de embriaguez, rolava pela rua, perdendo de minuto a minuto o pouco sentimento que lhe restava.
Laiza havia pegado num azorrague, e com vigor açoutava os miseráveis. Jorge, encostado ao varão de ferro, a única arma de que lançou mão, contemplava-os imóvel e desdenhoso, semelhante à estátua do Desprezo.
Ao cabo de alguns minutos, ambos ficaram convencidos de que nada havia já a esperar, e de que cada instante que perdessem, poderia ser outros tantos anos tirados à sua existência. Além de isto alguns homens da sua tropa, arrastados pelo exemplo, fascinados pela vista da bebida embriagante, atordoados pelo cheiro alcoólico que lhes subia à cabeça, começavam a abandoná-los.
Não havia pois tempo a perder para deixar a cidade, e já era evidente que muito se havia perdido.
Jorge e Laiza juntaram a pouca gente que lhes ficara fiel, trezentos homens pouco mais ou menos, e pondo-se à sua frente, marcharam resolutos para à extremidade da rua, que, como dissemos, se achava fechada por um muro de soldados.
Chegados à distância de quarenta passos dos ingleses, viram estes apontar as espingardas, e logo uma chuva de balas penetrou em suas fileiras. Dez ou doze homens cairam ainda, mas os outros ficaram em pé, e excitados ao mesmo tempo pelas vozes poderosas dos dois chefes, o grito: Avante!, retumbou.
Quando chegavam a vinte passos, o fogo da segunda fileira seguiu o da primeira, e fez nos revoltosos um estrago maior ainda.
Mas quase em continente as duas forças se baralharam, e então travou-se a luta corpo a corpo.
Espantoso foi o conflito. Todos sabem que tropas são as inglesas, e como perecem no posto que ocupam.
Porém de outra parte pelejavam com homens desesperados, os quais não ignoravam que, se fossem prisioneiros, uma ignominiosa morte os aguardava, e, por conseguinte, queriam acabar livres.
Jorge e Laiza obravam prodígios de audácia e valor. Laiza com a sua espingarda, que pelo cano havia empunhado, e de que se servia como de uma acha de armas.
Jorge, com o varão, que da janela arrancara, e de que fazia uso como de uma moca. A sua gente ajudava-os às mil maravilhas, arremeçando-se sobre os ingleses às baionetadas, enquanto os feridos se arrastavam por entre os combatentes, e iam de rojo cortar com facas as curvas das pernas de seus inimigos.
Assim durou a luta por espaço de dez minutos, furiosa, encarniçada, mortal, sem que ninguém pudesse dizer de que parte ficaria a vantagem, porém, enfim a desesperação prevaleceu à disciplina, as fileiras inglesas abriram-se como um dique que se rompe, e deixaram passar a torrente, que logo se espalhou para fora da cidade.
Jorge e Laiza, que estavam à frente do ataque, ficavam atrás para proteger a retirada.
Enfim chegaram junto da pequena montanha. Era este um sítio muito escarpado e coberto para que os ingleses se atrevessem a expor-se ali. Por isso fizeram alto, e os revoltosos tomaram fôlego.
Vinte pretos formaram-se em torno dos dois chefes, em quanto os outros se dispersaram para todos os lados. Já não se tratava de combater, mas sim de buscar segurança nos grandes bosques.
Jorge indicou o bairro de Moka, onde era a habitação de seu pai, como o sítio assinalado a todos os que quisessem reunir-se a ele, anunciando que no dia seguinte de madrugada dali partiria para o bairro do Grande Porto, onde se encontram, como já dissemos, as mais espessas florestas.
Jorge dava aos miseráveis restos desta tropa, com que um instante antes esperara conquistar a ilha, estas últimas instruções, e a lua passando pelo intervalo de duas nuvens, espalhava um momento a sua luz sobre o grupo que ele comandava, quando de repente uma moita, situada a quarenta passos dos fugitivos, inflamou-se, a detonação de uma arma de fogo ouviu-se e Jorge caiu aos pés de Laiza, ferido no lado por uma bala.
Ao mesmo tempo um homem, cuja rápida carreira possível foi seguir um instante na sombra, arremeçou-se da moita fumegante ainda para um barranco que havia atrás dele, e seguiu em todo o seu comprimento, oculto a todos os olhos, tornando depois a aparecer na sua extremidade, chegou por um círculo às fileiras dos soldados ingleses, parados à beira do riacho das Donzelas.
Porém por mais rápida que fosse a carreira do assassino, Laiza pôde reconhecê-lo. E antes que de todo perdesse o conhecimento, o ferido lhe ouviu proferir estas palavras acompanhadas de um gesto de ameaça, tranquila, mais implacável: «António, 'o Malaio!»
UM CORAÇÃO DE PAI
Enquanto os diferentes acontecimentos, que acabamos de referir, se efectuavam em Porto Luís, Pedro Munier aguardava ansioso em Moka o resultado terrível que lhe deixara suspeitar seu filho. Habituado à perpétua superioridade dos brancos, veio enfim a considerar esta superioridade não só como um direito adquirido, mas natural. Qualquer que fosse a confiança que seu filho lhe inspirasse, não podia ele acreditar que estes obstáculos, que reputava insuperáveis, viessem a aplanar-se diante dele.
Desde o momento em que, como vimos, Jorge dele se despediu, Pedro Munier caiu numa apatia profunda. O mesmo excesso das comoções que em seu coração se suscitavam, e a diversidade dos pensamentos que no seu espírito se combatiam, o tinham lançado numa insensibilidade aparente, que se assemelhava ao idiotismo.
Duas ou três vezes lhe ocorreu a ideia de ir a Porto Luís, e ver com seus próprios olhos o que lá ia suceder, porém é indispensável para caminhar ao encontro de uma certeza à força de vontade que o pobre pai não tinha. Se unicamente se tratasse de ir arrostar um perigo, Pedro Munier a ele teria corrido.
O dia se passou, pois, em aflições tanto mais profundas quanto eram interiores, e quanto aquele que as sentia, a ninguém se atrevia a dizer nem mesmo a Telémaco, as causas do abatimento sobre que o interrogavam. De tempos a tempos levantava-se da sua poltrona, ia com a cabeça curvada para a janela aberta, como se pudesse ver. Escutava, como se lhe fosse possível ouvir. Mas não vendo, nem ouvindo coisa alguma, dava um suspiro e voltava, com os lábios mudos e os olhos amortecidos, a sentar-se outra vez.
A hora do jantar chegou. Telémaco, incumbido dos cuidados ordinários da casa, mandou pôr a mesa e trazer a comida. Porém todas estas diferentes operações se fizeram, sem que levantasse os olhos aquele por cuja causa se faziam. Quando tudo se achou pronto, Telémaco deixou passar um quarto de hora, e vendo que seu senhor se conservava na mesma apatia, tocou-lhe levemente no ombro. Pedro Munier estremeceu, e com vivacidade levantou-se: — Então! Sabe-se alguma coisa? — disse-lhe.
Telémaco mostrou-lhe o jantar na mesa. Porém Pedro Munier sorriu tristemente, abanou a cabeça, e tornou a cair na sua meditação.
O preto entendeu que sucedia alguma coisa extraordinária, e, sem se atrever a pedir explicação, volveu os seus grandes olhos em torno de si, como para procurar algum sinal que lhe Pudesse indicar o acontecimento ignorado. Porém tudo se achava no seu lugar costumado, tudo sossegado segundo o ordinário. Era porém visível que a esperança de algum grande infortúnio viera pela manhã assentar-se no lar doméstico.
Deste modo se passou o dia. Telémaco, esperando sempre que a fome reassumisse os seus direitos, deixou o jantar na mesa. Mas Pedro Munier estava muito profundamente absorto para se ocupar de outra coisa além do seu próprio pensamento. Houve porém um momento em que Telémaco, vendo grandes pingas de suor na testa do seu senhor, julgou que ele tinha calor, e ofereceu-lhe um copo com vinho e água. Mas Pedro Munier com a mão afastou devagar o copo dizendo:
— Ainda não soubeste nada?
Telémaco abanou a cabeça, olhou para o tecto e para o chão, como para alternativamente lhes perguntar se sabiam mais do que ele, mas vendo que nada lhe diziam, saiu para ir perguntar aos outros pretos se tinham alguma informação à cerca do objecto desconhecido da secreta inquietação do seu senhor.
Porém com grande espanto seu viu que não havia um só preto em casa, e correu logo ao celeiro, onde eles tinham por costume juntar-se para fazer o serão. O celeiro achava-se deserto. Telémaco voltou então pelas cabanas, onde só encontrou as mulheres e as crianças.
Interrogou-as e soube que acabado o trabalho, os pretos, em vez de descansar como costumavam, se haviam armado e partido em grupos separados, mas caminhando todos na direcção do rio das Palmeiras.
Então Telémaco voltou a casa.
Ao ruído que fez abrindo a porta, o ancião voltou a cabeça.
— Sabes alguma coisa? — perguntou-lhe.
Então Telémaco referiu-lhe a ausência dos pretos, e como todos se haviam encaminhado armados para o mesmo sítio.
— Sim, sim! — disse-lhe Pedro Munier. — Ai de mim, é verdade!
Assim já não havia dúvida, e esta informação concorria para fazer acreditar ao mísero pai que era chegado o momento, em que tudo se decidia para ele na cidade. Porque depois da volta de Jorge, o ancião, tornando a ver seu filho tão gentil e honrado, tão confiado em si mesmo, tão rico do passado e tão certo do futuro, havia de tal modo identificado a sua vida com a vida de Seu filho, que chegara a convencer-se de que ambos tinham a mesma existência, e não compreendia que lhe fosse já mais possível suportar a perda deste filho ou mesmo a sua ausência.
Oh! Como ele se arrependia de ter pela manhã deixado partir Jorge sem o interrogar, sem haver penetrado no fundo do seu pensamento, sem conhecer a que perigos ele ia expor-se.
Como se acusava de lhe não ter pedido para o acompanhar.
Porém a ideia de que seu filho ia empreender guerra aberta com os brancos, o havia de tal modo aniquilado, que, no primeiro momento, sentiu todas as suas forças morais desampará-lo.
Era a natureza desta alma ingénua, já o dissemos, não ter poder senão em presença dos perigos físicos.
Contudo a noite era chegada, e as horas iam passando sem trazer alguma nova consoladora ou terrível.
Soaram as dez horas, as onze e a meia noite.
Posto que a escuridão, que reinava no exterior, e que ainda aumentavam as luzes acesas no quarto, nada deixasse distinguir a dez passos de distância, Pedro Munier continuava a andar, com intervalos quase regulares, da sua poltrona para a janela, e da janela para a poltrona.
Telémaco verdadeiramente inquieto, tinha-se deixado ficar no mesmo quarto. Porém por dedicado que fosse o fiel criado, não lhe foi possível resistir ao sono, e adormeceu em cima de uma cadeira, encostado à parede onde o seu perfil se desenhava.
As duas horas da manhã um cão de guarda, que ordinariamente soltavam durante a noite em torno da habitação, mas que naquela noite a preocupação geral conservara preso, fez ouvir um uivo baixo e lastimoso.
Pedro Munier estremeceu e levantou-se. Porém ao lúgubre som, que a superstição dos pretos reputa como o anúncio certo de uma desgraça próxima, as forças lhe faleceram, e para não cair foi obrigado a encostar-se à mesa.
Ao cabo de cinco minutos o cão fez ouvir segundo uivo mais forte, mais triste e prolongado que o primeiro. Depois, a igual distância do segundo, um terceiro mais fúnebre e doloroso que os dois primeiros.
Pedro Munier, pálido, sem voz, com o suor na testa, ficou com os olhos fitos na porta sem dar para ela um passo, mas como um homem que aguarda à desgraça e sabe que por ali vai entrar.
Passado um instante ouviram o ruído dos passos de muita gente. Estes passos foram-se avizinhando da habitação, mas vagarosos e compassados. Pareceu ao pobre pai que era o caminhar de homens que acompanhavam um enterro.
Bem depressa o primeiro quarto se encheu de gente. Porém esta multidão, qualquer que fosse, era muda.
Contudo, no meio do silêncio, o ancião julgou ouvir um gemido, e pareceu-lhe conhecer neste gemido a voz de seu filho.
—Jorge! — exclamou ele. —Jorge, em nome do céu, és tu? Responde, fala, vem a mim!
— Aqui estou, meu pai! — disse uma voz fraca, mas ainda assim sossegada. — Aqui estou!
No mesmo instante a porta se abriu e Jorge apareceu, mas encostando-se à mesma porta, e tão desmaiado, que Pedro Munier julgou um instante que era a sombra de seu filho, que evocara e lhe aparecia, de modo que em vez de se encaminhar para Jorge, o velho deu um passo para trás.
— Em nome do céu — bradou ele —, que tens e que ti aconteceu?
— Uma ferida grave, mas tranquilize-se, meu pai, que não é mortal, porque, como vedes, ando, e estou em pé. Mas não posso conservar-me assim por muito tempo — depois acrescentou em voz baixa. — Chega-te a mim, Laiza, que me falecem as forças.
E deixou-se cair nos braços do preto. Pedro Munier arremeçou-se para seu filho, mas Jorge estava desmaiado.
Com efeito, com essa força de vontade que se tornara o sinal distintivo do carácter de Jorge, tinha querido, fraco e quase moribundo como estava, mostrar-se em pé a seu pai, e, desta vez não era por um desses sentimentos de orgulho que nele se notavam tantas vezes, mas porque conhecendo o excessivo amor que lhe tinha o ancião, receava que vendo-o deitado lhe fosse fatal a impressão que lhe causaria esta vista. Apesar das representações de Laiza, saíra da maca em que os pretos o haviam transportado revezando-se através dos desfiladeiros da montanha do Polegar. E com um valor sobre-humano, com essa vontade forte que em si mesmo dominava a fraqueza física, levantou-se, segurou-se à parede, e como tinha decidido que assim devia ser, em pé se mostrou a seu pai.
E, com efeito, como ele havia pensado, o golpe deste modo foi menos violento para o velho. Esta vontade eficaz havia contudo cedido à dor, e enfraquecido pelo esforço que fizera Jorge tornou a cair, como dissemos, desmaiado nos braços de Laiza.
Terrível coisa foi presencear, mesmo para homens, a aflição deste infeliz pai. Aflição sem queixume, sem suspiros, muda, profunda e taciturna. Jorge foi posto em cima de um canapé. Seu pai ajoelhou diante dele, passou-lhe o braço por baixo da cabeça, e aguardou com os olhos fitos nos seus olhos cerrados, com a respiração suspensa, tendo a mão pendente do ferido na outra sua mão. Não perguntando coisa alguma, não lhe importando nenhuma particularidade, não se informando de nenhum resultado. Tudo estava dito para ele, seu filho achava-se ali ferido, ensanguentado, desmaiado. Que tinha ele, necessidade de saber e que lhe importavam as causas à vista deste formidável resultado?
Laiza conservava-se em pé junto de um bufete, arrimado à sua espingarda, e olhando de vez em quando para o lado da janela, para ver se chegava o dia.
Os outros pretos, que se haviam respeitosamente ausentado depois que puseram Jorge sobre o canapé, estavam no quarto vizinho e deitavam as cabeças à porta. Outros achavam-se formados em grupos da parte de diante da janela. Muitos estavam feridos mais ou menos perigosamente. Porém nenhum dava mostras de se lembrar da sua ferida.
A cada momento o seu número aumentava, porque todos os fugitivos, depois de se haverem primeiro espalhado para evitarem a perseguição dos ingleses, iam, por diferentes caminhos, chegando a casa, assim como carneiros dispersos chegam uns depois dos outros ao redil. Pelas quatro horas da manhã achavam-se perto de duzentos pretos em torno da habitação.
Entretanto Jorge tinha voltado a si e, com algumas palavras, tentara tranquilizar seu pai, mas isto com voz tão fraca que, apesar do prazer que o ancião sentia em o ouvir falar, lhe fez sinal para que se calasse. Depois informou-se de que género era a ferida e quem era o médico que lhe tinha feito o curativo. Então, sorrindo-se e com um ligeiro aceno de cabeça, Jorge indicou-lhe Laiza.
É sabido que nas colónias certos pretos passam por serem hábeis cirurgiões e que, às vezes até, os colonos brancos os mandam chamar de preferência a gente da arte. É muito simples: estes homens primitivos, assim como os nossos pastores cujas práticas valem muitas vezes as dos mais hábeis doutores, achando-se constantemente em presença da natureza, surpreendem, como os animais, alguns desses segredos que ficam ocultos às vistas dos outros homens.
Ora Laiza era tido em toda a ilha como um hábil cirurgião. Os pretos atribuíam a sua ciência à força de certas palavras secretas ou de certos encantos mágicos. Os brancos ao seu conhecimento de certas ervas e plantas de que só ele sabia os nomes e propriedades. Pedro Munier ficou pois mais tranquilo quando soube que fora Laiza que fizera o curativo a ferida de seu filho.
O momento porém em que ia aparecer o dia avizinhava-se, e a proporção que o tempo corria, Laiza parecia cada vez mais inquieto. Finalmente não pôde, resistir mais tempo, e, sob pretexto de tomar o pulso ao ferido, chegou-se a ele e falou-lhe em voz baixa.
— Que deseja, que quer? — perguntou Pedro Munier.
o meu Jorge! E tudo isto porque é mais gentil, mais intrépido, mais instruído do que eles. Ah, pois que venham!...
E o ancião, com uma energia, de que cinco minutos antes qualquer o julgaria incapaz, arremeçou-se para a sua carabina, pendurada na parede, e lançando mão da arma ociosa havia dezasseis anos:
— Sim, sim! Podem vir! — exclamou ele. — E nós veremos. Tudo haveis roubado, senhores-brancos, a este pobre mulato. Roubastes-lhe a consideração, e ele nada disse. Se lhe houseis tirado a vida, também nada diria. Porém quereis arrebatar-lhe seu filho, para o encarcerar, atormentá-lo, cortar-lhe a cabeça! Oh, vinde, senhores brancos, vinde, e veremos! Há cinquenta anos de ódio entre nós, vinde, é tempo de ajustarmos as nossas contas!
— Bem, meu pai! Bem! — exclamou Jorge erguendo-se encostado ao cotovelo e contemplando o ancião com olhos inflamados. — Muito bem! Reconheço-o.
— Sim! Vamos para os grandes bosques — disse Pedro Munier —, e veremos se se atrevem a ir lá procurar-nos. Vamos, meu filho. Mais valem os grandes bosques do que as cidades. Ali está o homem debaixo da vista de Deus. Que ele nos veja e nos julgue. E vós, filhos meus — prosseguiu o mulato falando aos pretos —, sempre me haveis achado bom senhor?
— Sim, sempre! — exclamaram a uma voz os pretos todos.
— Não me tendes dito cem vezes que me éreis dedicados como filhos e não como escravos?
— É verdade, é verdade.
— Pois bem! É chegada a ocasião de me provar a vossa dedicação.
— Ordenai, senhor, mandai — bradaram todos os pretos.
— Entrai, entrai todos. — O quarto encheu-se de gente. — Vede — continuou o ancião —, eis ali meu filho, que vos quis salvar, tornar-vos livres, fazer-vos homens. Ali tendes a sua recompensa. E ainda não é tudo, eles querem vir arrebatar-mo, ferido, ensanguentado, na agonia. Estais resolvidos a defendê-lo, salvá-lo, a morrer por ele e com ele?
— Sim, estamos! — clamaram todos.
— Então vamos para os grandes bosques — disse Pedro Munier.
— Vamos! Vamos! — bradaram todos os pretos.
Então chegaram a maca de folhagem para junto do canapé em que Jorge estava deitado, nela o puseram e quatro pretos lhe pegaram.
Jorge saiu de casa acompanhado por Laiza, todos os pretos o seguiram, e Pedro Munier saiu em último lugar, deixando a casa aberta e abandonada de toda a criatura humana.
A comitiva, que constava de quase duzentos pretos, seguiu por algum tempo o caminho de Porto Luís ao grande Porto, e depois de andar meia hora pouco mais ou menos, tomou a direita, indo na direção do rio dos Crioulos.
Antes de se meter atrás da montanha, Pedro Munier, que continuara a caminhar na reta-guarda, parou um instante, subiu a um outeiro, e lançou um derradeiro golpe de vista para a linda habitação que abandonava. Com este golpe de vista abrangeu os férteis campos de canas, mandioca e milho, os magníficos arvoredos, o esplêndido horizonte de montanhas, que fechava a sua vasta propriedade como uma grandíssima muralha. Pensou que tinham Sido necessárias três gerações de homens, laboriosos e estimados como ele, para deste bairro fazer o paraíso da ilha. Deu um suspiro, enxugou uma lágrima. Depois, desviando a vista e abanando a cabeça, voltou, com o riso nos lábios, para junto da maca em que o aguardava o filho por quem abandonava tudo isto.
OS GRANDES BOSQUES
No momento em que o bando fugitivo chegava à nascente do rio dos Crioulos, era dia, us raios do sol oriental douravam já o cume de granito das montanhas. Com ele despertava toda a povoação das florestas.
A cada passo os macacos se arremeçavam de ramo em ramo, chegavam às extremidades mais flexíveis dos filaos e tamarindos, e suspendendo-se e balanceando-se pela cauda, iam, atravessando grande distância, agarrar-se com maravilhosa habilidade a alguma outra árvore, que lhes oferecia mais espesso asilo.
O galo bravo levantava-se com grande ruído, agitando o ar com o seu pesado vôo, enquanto os papagaios cinzentos pareciam zombar dele, e o cardeal, semelhante a uma chama volátil, passava, rápido como um relâmpago e brilhante como um rubi. Finalmente, segundo o costume, a natui dade, uma perpétt quanto os papagaios cinzentos pareciam zon volátil, passava, rápido como um relâmpago e brilhante como um rubi. Finalmente, segundo o costume, a natureza sempre nova, sossegada e fecunda, parecia, pela sua serena tranquilidade, uma perpétua ironia da agitação e aflições do homem.
Depois de três ou quatro horas de caminho, o bando fugitivo parou numa planura junto duma montanha sem nome, cuja base vai terminar à beira do rio.
Depois de três ou quatro horas de caminho, o bando fugitivo parou numa planura junto duma montanha sem nome, cuja base vai terminar à beira do rio.
A fome começava a fazer-se sentir. Felizmente todos no caminho haviam caçado. Uns, às pauladas, tinham morto tanreeks, de que em geral os pretos são muito gulosos. Outros mataram galos bravos ou macacos. Finalmente Laiza havia ferido um veado, que quatro homens perseguiram e trouxeram ao cabo duma hora. Deste modo havia provisões para toda a gente.
Laiza aproveitou esta demora para curar o ferido. Algumas vezes se havia apartado da maca, para ir colher alguma erva ou planta, cuja propriedade ele só conhecia.
Chegado ao lugar do descanso, juntou à sua colheita, pôs a primeira colecção, que acabava de reunir, na cavidade de um penhasco, e, com uma pedra arredondada, moeu os simples, que apanhara, como o teria feito num gral.
Terminada esta operação, deles espremeu o suco em que molhou um pano, e, tirando o penso posto na véspera, pôs os chumaços novamente embebidos sobre a ferida, em que por felicidade a bala não ficara, porque entrando por baixo da última costela esquerda, foi sair um pouco acima do quadril.
Pedro Munier viu esta operação com grande ansiedade. A ferida era grave, mas não mortal-Visível era, pela observação da carne, que se nenhum órgão importante se achasse lesado no interior, a cura seria talvez mais rápida do que se fosse cometida a algum médico das cidades.
Nem por isso o mísero pai deixou de passar por todas as angústias, que semelhante vista nele devia despertar, enquanto Jorge, pelo contrário, apesar das dores que este curativo lhe devia fazer experimentar, não deixou de franzir as sobrancelhas, e reprimiu até o menor tremor da mão, que seu pai tinha entre as suas.
Concluído o curativo e acabada a comida, puseram-se a caminho. Avizinhavam-se dos grandes bosques, mas ainda lá não eram chegados. Os fugitivos, demorados pela condução do ferido, condução que os acidentes do terreno tornavam muito difícil, caminhavam devagar, e, desde a partida de casa haviam deixado um vestígio fácil de seguir. Pela beira do rio dos Crioulos foram caminhando ainda uma hora pouco mais ou menos, tomaram depois à esquerda, e começaram a achar-se na raia das florestas, porque até então só haviam atravessado espécies de matas de corte. À proporção que se adiantavam, as mimosas reproduziam-se em tufos numerosos, grandíssimos fetos nos intervalos das árvores, subindo tão alto como elas, e cipós de prodigiosa grossura caindo de cima dos tokamkas como serpentes, que pela cauda ali se houvessem agarrado, começavam a anunciar aos fugitivos que entravam na região dos grandes bosques.
Em breve a floresta torna-se cada vez mais espessa. Os troncos das árvores aproximam-se, os fetos enlaçam-se uns com os outros, os cipós formam como varões, através dos quais a passagem cada vez é mais difícil, mormente para os homens que levavam a maca. A todo o momento, Jorge testemunha das dificuldades, que na marcha se ofereciam, fazia um movimento para descer, porém todas as vezes Laiza lho proibia com tal acento de energia, e seu pai juntava as mãos com tal gesto de súplica, que para não ofender a dedicação do preto, nem a ternura de seu pai, o ferido ficava no seu lugar, e deixava fazer novas tentativas, que a cada momento se tornavam mais custosas, e às vezes eram por muito tempo inúteis.
Porém as dificuldades, que os fugitivos experimentavam em penetrar no interior destas florestas virgens, eram para eles quase uma garantia de segurança, visto que elas deviam, para quem os perseguisse, ser ainda maiores. Porquanto os que fugiam eram pretos habituados a semelhantes correrias, ao passo que os seus perseguidores eram soldados ingleses, costumados a manobrar no campo de Marte e no de Lort.
Enfim, chegaram a um sítio de tal modo espesso, matagoso e compacto, que inútil se tornou qualquer tentativa de passagem. Longo tempo os fugitivos andaram observando esta espécie de muralha, através da qual só o machado poderia abrir caminho. Porém aberta para uns esta passagem, igualmente o era para os outros, e, oferecendo um caminho a fuga, também oferecia um meio à perseguição.
Procurando sempre, deram com uma espécie de telheiro construído por caçadores, debaixo do qual viram restos de um fogo lançando ainda fumo. Evidentemente alguns negros fugitivos andavam por aqueles sítios, e, julgando pelos vestígios que eles haviam deixado, não deviam estar muito longe.
Laiza seguiu-os pelo rasto. Notória é a habilidade dos selvagens para, através das grandes solidões, seguirem os vestígios de um amigo ou inimigo.
Laiza, curvado para o chão, examinou cada erva dobrada pelo calcanhar, cada seixo sabido do seu alvéolo pela pancada de um pé, cada ramo desviado da sua inclinação pela passagem de alguém. Chegou enfim a um sítio em que todo o vestígio faltava.
De um lado havia um regato, que da montanha descia, e ia lançar-se no rio dos Creoulos. O outro um ajuntamento de rochedos, penhas e tojos semelhante a um muro, no alto do qual a floresta parecia ainda mais espessa do que noutra qualquer parte, e atrás de Laiza ficava o caminho que ele acabava de seguir.
Laiza atravessou o regato, e debalde procurou do outro lado o vestígio, que até à sua guarda o guiara.
Os negros, porque eram muitos, não haviam pois ido mais longe.
Laiza tentou subir a muralha, o que pode conseguir. Porém quando chegou acima, conheceu a impossibilidade de fazer caminhar gente, entre a qual se achavam muitos feridos, por semelhante caminho.
Desceu pois dali, e, convencido de que aqueles, que procurava, não podiam estar longe, e deu diferentes gritos, pelos quais os negros fugidos entre si se reconhecem, e aguardou.
Passado um instante, pareceu-lhe, no mais espesso do tojo, que cobria as pedras da muralha, que acabamos de descrever, observar uma pequena agitação.
Qualquer outro, que não fosse um homem habituado aos mistérios da solidão, teria por certo reputado este vacilar de alguns ramos por um capricho do vento. Mas neste caso o movimento seria da extremidade para a base, e não da base para a extremidade como acabava de suceder.
Laiza não se enganou, e a sua vista fitou-se naquele sítio. Em breve a sua dúvida mudou-se em certeza, distinguindo através dos ramos dois olhos inquietos, que, depois de examinarem todo o horizonte que podiam alcançar, fitaram-se nele. Então Laiza repetiu o sinal, que já tinha feito ouvir uma vez. De repente um homem passou como uma serpente por entre as pedras desunidas, e Laiza viu diante de si um negro fugido.
Os dois pretos poucas palavras trocaram. Depois, Laiza voltou atrás e reuniu-se à sua gente, que por ele guiada seguiu o mesmo caminho que acabava de percorrer, e não tardou em chegar ao sítio onde encontrara o preto fugido.
Uma abertura produzida pela deslocação de algumas pedras deixava uma passagem nas muralhas. Esta passagem dava entrada para uma gruta muito espaçosa.
Os fugitivos passaram dois a dois através deste desfiladeiro fácil de defender. Atrás do último, o preto tornou a pôr as pedras na mesma ordem em que antes se achavam, de modo que não fosse possível descobrir algum sinal de passagem. Feito isto, agarrando-se aos tojos e às escabrosidades das pedras, subiu à muralha e desapareceu na floresta.
Duzentos homens acabavam de se meter nas entranhas da terra, sem que a vista mais exercitada pudesse conhecer por que lugar haviam passado.
Seja por um desses acasos naturais que às vezes se encontram, sem que a mão do homem em nada contribua para os efeitos que produzem, seja pelo contrário, por um longo e previdente trabalho dos pretos fugidos, o cume da montanha, em cujos lados a pequena tropa acabava de desaparecer, era defendida de uma parte por um rochedo perpendicular semelhante a uma muralha, e da outra por esse grandíssimo obstáculo composto de troncos de árvores, cipós e fetos, que haviam suspendido a marcha dos nossos fugitivos. A única entrada verdadeiramente praticável era a que havemos descrito, e como deixámos dito, esta entrada desaparecia inteiramente atrás das pedras.
Do cuidado com que a referida entrada se achava oculta a todas as vistas resultava que os colonos armados por sua própria conta, ou as tropas inglesas, que por ordem do governo andavam em procura dos fugitivos, haviam passado cem vezes, sem a ver, por diante desta abertura, só conhecida pelos escravos.
Porém do outro lado da muralha, da sebe, ou da caverna, o aspecto do solo mudava inteiramente. Sempre se encontravam grandes bosques, altas florestas, asilos seguros, mas no meio dos quais era ao menos possível abrir um caminho.
Enquanto ao mais, nenhuma das coisas de primeira necessidade à vida faltava nestas vastas solidões. Uma cascata, que nascia no cume do monte, caía majestosamente de sessenta pés de altura, e depois de se quebrar sobre os rochedos que na sua perpétua queda ia gastando, corria algum tempo em mansos regatos, e introduzindo-se de repente nas entranhas da terra, tornava a aparecer além do recinto. Os macacos, javalis, veados, gamos e os tanreeks abundavam. Finalmente, nos sítios em que, através do grande zimbório de folhagem, alguns raios de sol penetravam, estes ralos de sol iam alumiar muitas árvores carregadas de frutos.
Se os fugitivos conseguissem ocultar o seu retiro, podiam esperar viver ali sem nada lhes faltar, até ao momento em que Jorge se curasse, e o seu restabelecimento trouxesse uma resolução.
Contudo, qualquer que fosse esta resolução, os infelizes escravos de que Jorge fizera seus companheiros, tinham decidido seguir a sua fortuna até ao fim.
Porém Jorge ferido como estava, conservou a sua presença de espírito ordinária, e não examinou o retiro onde buscava um asilo, sem calcular todo o partido, que seria possível tirar de semelhante posição, para a defender.
Quando se achou do outro lado da caverna mandou parar a maca, e chamando Laiza com a mão, indicou-lhe como depois de se defender a abertura exterior do desfiladeiro, era também possível por meio de um entrincheiramento defender a abertura interior, e minar a caverna com a pólvora trazida de Moka.
O plano desta obra foi feito e empreendido logo, porque Jorge entendia, segundo toda a probabilidade, que não o haviam de tratar como um fugitivo ordinário, e tinha bastante orgulho para acreditar que os brancos não se reputariam vencedores enquanto o não tivessem manietado em seu poder.
Todos cuidaram logo em executar a obra de defesa, a que Jorge presidiu passiva e seu pai activamente.
Durante este tempo, Laiza andava em roda da montanha, que era por toda a parte defendida, como já dissemos, por estacadas naturais, ou rochedos escarpados. Só num sítio estes rochedos eram acessíveis, com escadas de quinze pés, mas o caminho, que conduzia ao pé desta muralha natural corria à beira de um precipício. Fácil seria defender este caminho, mas a gente era muito pouca e tinha de ser espalhada por muitos pontos, para que fosse possível fazer disposições militares no exterior do que se podia chamar a fortaleza.
Laiza reconheceu então que era este sítio, e a entrada da caverna, que convinha guardar com mais cuidado.
Avizinhava-se a noite. Laiza deixou dez homens neste posto importante, e voltou a dar conta a Jorge da sua correria em torno da montanha.
Encontrou-o numa espécie de cabana, que à pressa lhe haviam construído com ramos de árvores. O entrincheiramento já se achava quase pronto, e não obstante a escuridão, que rapidamente ia aumentando, nele continuavam a trabalhar com actividade.
Vinte cinco homens foram repartidos em sentinelas à roda do recinto. Estas sentinelas deviam ser rendidas de duas em duas horas. Pedro Munier ficava no seu posto da caverna, e Laiza, depois de pôr novo penso na ferida de Jorge, tornou para o seu.
Depois disto ficaram a aguardar os novos acontecimentos, que sem dúvida a noite ia trazer.
JUIZ E ALGOZ
Numa guerra de surpresa como a que ia haver entre os revoltosos e os que não deixariam de persegui-los, a noite devia sobretudo ser o auxílio do ataque e o terror da defesa. E a que começava era linda e serena. Contudo a lua, já no seu último quarto, só pelas onze horas devia aparecer.
Para homens menos preocupados do perigo que corriam, e mormente menos afeitos a semelhantes aspectos, teria sido um magestoso espectáculo este afrouxamento gradual da luz no meio das vastas solidões e agreste paisagem, cuja descrição fizemos. Em primeiro lugar a escuridão começou a subir dos sítios inferiores, elevando-se, como a maré, ao longo dos troncos de árvores, pelos lados dos rochedos e declives da montanha, trazendo consigo o silêncio, e expulsando pouco a pouco os últimos clarões do dia, que no cume do monte se refugiaram, demorando-se ali um instante como as chamas de um vulcão, e extinguindo-se depois abismados neste mar de trevas.
Porém, para olhos habituados à noite, esta escuridão não era completa. Para ouvidos acostumados à solidão, não era absoluto este silêncio. Nunca a vida se extingue toda na natureza. Aos sons dos dias, que adormecem, sucedem os da noite, que desperta. No meio do grande murmúrio, que fazem as folhas e os regatos, ouvem-se outros rumores, causados pela voz ou passos dos animais das trevas. Vozes melancólicas, passos furtivos e inopinados, que aos mais fortes corações, inspiram essa comoção misteriosa, que o raciocínio não pode combater, porque a vista não pode tranquilizar.
Nenhum destes rumores confusos escapava ao exercitado ouvido de Laiza, caçador selvagem, e, por conseguinte, homem da solidão e viajante da noite. A noite e a solidão poucos mistérios e segredos tinham para seus olhos e ouvidos. Ele conhecia o mascar do tanreek roendo as raízes das árvores, os passos do veado caminhando para o nascente costumada, ou o bater das asas do morcego nos claros do bosque, e duas horas passaram sem que nenhum destes ruídos pudesse tirá-lo da sua imobilidade.
Em quanto ao mais, coisa singular! Era na parte da montanha, em que então se achava com quase duzentos homens, que reinava maior silêncio e parecia mais completa a solidão.
Os doze pretos de Laiza estavam deitados com o rosto em terra, de modo que ele mesmo mal os distinguia na escuridão, tornada ainda mais espessa pela sombra das árvores. E posto que dormissem, qualquer diria que durante o sono a prudência lhes reprimia a respiração que apenas se podia ouvir.
Pelo que diz respeito a Laiza, em pé, encostado a um grande tamarinho, cujos ramos flexíveis se prolongavam, não só sobre o caminho, que costeava os rochedos, mas também sob o precipício, que estava além do caminho, ele podia desafiar a vista mais exercitada a distinguir o seu corpo do tronco da grande árvore com que, graças à noite e à cor da sua pele, se achava inteiramente confundido.
Uma hora havia que Laiza se conservava neste silêncio e imobilidade, quando atrás de si ouviu o ruído dos passos de alguns homens caminhando por um terreno coberto de seixos e ramos secos. Estes passos, posto que moderados, não pareciam dissimular-se inteiramente. Então Laiza voltou-se, com bastante indiferença, entendendo que devia ser uma patrulha que se encaminhasse para ele. Com efeito, seus olhos acostumados às trevas, não tardaram em distinguir cinco ou seis homens, que se avizinhavam, e a cuja frente, pela alta estatura e pelo trajo, reconheceu Pedro Munier.
Laiza afastou-se da árvore a que estava encostado e caminhou para ele.
— Então — disse Laiza —, já voltaram os homens que mandastes à descoberta?
— Sim, e os ingleses perseguem-nos.
— Onde estão eles?
— Estavam acampados, há uma hora, entre o monte do meio e a nascente do rio dos Crioulos.
— Seguem-nos os vestígios?
— Seguem, e provavelmente amanhã teremos novas suas.
— Há-de ser mais cedo — respondeu Laiza.
— Porque motivo?
— Sim, se pusemos os nossos exploradores em campo, eles da sua parte têm feito tanto como nós. Há homens que andam nos arredores.
— De que modo o sabe? Ouviu vozes, reconheceu passos?
— Não, mas ouvi passar um veado, e pela rapidez da sua carreira reconheci que se levantara com medo.
— Assim julga que alguém nos espia?
— Estou certo disso. Silêncio! Escute!...
— Efectivamente, ouço barulho.
— É o vôo de um galo bravo, que se levanta a duzentos passos daqui.
— De que lado?
— Acolá — disse Laiza estendendo a mão na direção de um pequeno bosque, cujas extremidades se elevavam do fundo de um barranco.
— Repare — continuou o preto —, ei-lo que se deixa cair a trinta passos de nós, do outro lado do caminho, que passa ao pé do rochedo.
— E julga que um homem é que o fez levantar?
— Um ou muitos homens — respondeu Laiza. — Não posso determinar o número.
— Não é isso que eu queria dizer. Acredita que foi espantado por uma criatura humana?
— Os animais reconhecem por instinto o ruído, que fazem os outros animais, e dele não se assustam — respondeu Laiza.
— Desse modo?...
— Avizinham-se... Escute, não ouve? — acrescentou o preto abaixando a voz.
— O quê? — perguntou Pedro Munier usando da mesma precaução.
— O ruído de um ramo seco, que debaixo dos pés de algum deles acabou de se quebrar. Silêncio, porque muito perto se acham agora para ouvir a nossa voz. Oculte-se atrás do tronco deste tamarindo, que eu volto para o meu posto.
E Laiza ocupou outra vez o lugar que deixara, enquanto Pedro Munier se escondia atrás da árvore, e os pretos, que o acompanhavam, perdidos na sombra do arvoredo, se conservavam em pé, silenciosos e imóveis como estátuas.
Reinou por um momento um silêncio, durante o qual nenhum movimento perturbou o sossego da noite. Porém, poucos segundos tinham passado quando se ouviu o ruído de um seixo, que rolava pelo rápido declive do precipício.
Laiza sentiu na sua face a respiração de Pedro Munier, que, sem dúvida, ia falar, mas o preto com força lhe travou do braço. O ancião entendeu então que importava guardar silêncio, e não falou.
No mesmo instante o galo bravo segunda vez voou cacarejando, e passando por cima do tamarindo, fugiu para as regiões elevadas da montanha.
O espião achava-se apenas vinte passos distante daqueles cujos vestígios de certo buscava. Laiza e Pedro Munier não respiravam. Os outros pretos pareciam de mármore.
Neste momento um clarão prateado veio alumiar o cume das montanhas, que através dos claros da floresta avistavam. Em breve a lua apareceu detrás do monte dos Crioulos e começou, chanfrada pelo seu minguante a adiantar-se no céu. Porém esta luz descia, ao contrário das trevas, que haviam subido, e só aclarava os sítios descobertos deixando, sem falar em algumas porções do solo que ela através das aberturas da folhagem alumiava, o resto da floresta em completa escuridão.
Neste momento, ouviu-se um pequeno movimento nos ramos de uma moita, que estava': à beira do caminho e se elevava no alto do declive, cuja rápida inclinação conduzia, como deixámos dito, a um precipício, depois estes ramos pouco se desuniram e deixaram passar a cabeça de um homem.
Sem embargo da escuridão, menor porém neste sítio, que a folhagem de nenhuma árvore cobria, Pedro Munier e Laiza notaram ao mesmo tempo o movimento dado à moita, porque as suas mãos, que se procuravam, se encontraram e ao mesmo tempo se apertaram.
O espião demorou-se um instante imóvel, e estendendo de novo a cabeça, examinou todo o espaço descoberto. Fez um movimento para diante, e, animado pelo silêncio, que lhe fazia acreditar na solidão, ergueu-se nos joelhos e aplicou o ouvido. Porém não vendo nem ouvindo coisa alguma, levantou-se enfim inteiramente.
Laiza apertou então com força a mão de Pedro Munier, para lhe recomendar a maior prudência porque ele já nenhuma dúvida tinha de que este homem andava à procura dos seus vestígios. Chegado que foi à beira do caminho, o espião de novo curvou-se, examinando a terra para ver se descobria nela pegadas. Com a palma da mão tocou na relva para examinar se estava pisada. Tocou com a ponta do dedo nos seixos, para se assegurar se haviam sido mexidos nos seus alvéolos. Finalmente, como se o ar pudesse também conservar sinais de quem ele procurava, levantou a cabeça, pondo a vista no tamarindo, à cuja sombra Laiza se achava escondido.
Neste momento um raio da lua, passando por entre o cimo de duas árvores, alumiou
o rosto do espião.
Então, com um movimento tão repentino como o relâmpago, Laiza largou a mão de Pedro Munier, e arremeçando-se de um pulo de modo que pudesse agarrar pela sua extremidade um dos ramos mais flexíveis da árvore, que o abrigava, deixou-se cair com a rapidez da águia até ao pé do rochedo, pegou no espião pela cintura, e dando outra vez com o pé impulso ao ramo, que se endireitou, com ele subiu como a águia com a sua presa, e foi cair junto da árvore, no meio de seus companheiros, tendo sempre seguro o prisioneiro, que com a sua faca na mão debalde buscava ferir o seu vencedor, como a serpente em vão procura morder o rei dos ares, que, do fundo de um pântano, a arrebata e leva ao seu ninho próximo ao céu.
Então, e sem embargo da escuridão, todos à primeira vista reconheceram o prisioneiro, era António, o Malaio.
Tudo o que acabámos de referir sucedeu de um modo tão rápido e inopinado, que António não deu um grito.
Enfim, Laiza tinha em seu poder o seu inimigo mortal, e de um só golpe ia castigar o traidor e o assassino.
Debaixo do joelho o comprimia, e contemplava-o com essa terrível ironia do vencedor, na qual o vencido pode compreender que já nada tem a esperar, quando de repente ouviu-se ao longe ladrar um cão.
Sem aliviar a mão com que segurava o prisioneiro pela garganta, Laiza ergueu a cabeça, aplicou o ouvido para o latido, e a este ruído sentiu estremecer António.
— Cada coisa tem o seu tempo — disse Laiza como falando consigo mesmo. Depois, dirigindo-se aos pretos que o rodeavam: — Atai este homem a uma árvore — disse ele. — É indispensável que eu fale ao senhor Munier.
Os pretos agarraram António pelos pés e pelas mãos, e com cipós o amarraram ao tronco de uma árvore.
Laiza assegurou-se de que ele estava bem seguro, e conduzindo o velho a poucos passos, estendeu à mão para o lado onde, pela primeira vez, o latido do cão se fizera ouvir.
— Ouviu?
— O quê? — perguntou Pedro Munier.
— Ladrar um cão.
— Eu não.
— Escute! Ele avizinha-se.
— É verdade, agora ouvi-o.
— Perseguem-nos como a veados.
— O quê! Pois julga que é a nós que perseguem?
— E a quem quer que seja?
— Algum cão fugido, que andou a cançar por sua própria conta.
— Isso é possível! — disse Laiza. — Escutemos.
Houve então um instante de silêncio, durante o qual de novo se ouviu ladrar na floresta, mais perto que as outras duas vezes.
— É a nós que perseguem — disse Laiza.
— E como o reconhece?
— Isto não é o ladrar de um cão que anda a caçar — disse Laiza. — Mas sim o uivar do que procura o seu dono. Os demónios encontraram talvez em alguma cabana o cão de algum preto e tomaram-o por guia. Se o preto se acha connosco, estamos perdidos.
— É a voz de Fiel — disse Pedro Munier, estremecendo.
— É verdade, é verdade, agora a reconheço — disse Laiza. — Eu já a ouvi. É a de um cão, que uivou, quando ontem à noite conduzíamos seu filho ferido a Moka.
— Com efeito, não me lembrei trazê-lo comigo quando partimos. Porém, se fosse Fiel, parece-me que viria mais depressa. Escute como a voz se aproxima devagar.
— É porque o trazem preso, e vem talvez atrás dele um regimento. Não se deve querer mal ao pobre animal — acrescentou com um triste sorriso o negro de Anjuan. — Não pode andar mais depressa. Porém, sossegue, há-de chegar.
— Pois bem! Que convém fazer? — perguntou Pedro Munier.
— Se tivesse algum navio, que o aguardasse no Grande Porto, como nos achamos só a oito ou dez léguas de distância, eu diria que tínhamos ainda tempo de lá chegar. Porém não tem deste modo nenhuma probabilidade de fuga, não é assim?
— Nenhuma.
— Então é preciso que nos defendamos, e se for possível, acrescentou o preto com voz triste, que acabemos pelejando.
— Vamos — disse Pedro Munier, que recobrou toda a sua coragem no momento em que só se tratava de combater. — Vamos. Porque o cão há de conduzi-los à abertura da caverna, e quando eles lá chegarem ainda não estarão dentro.
— Bem — disse Laiza —, então ide para os entrincheiramentos.
— Mas porque não vens tu comigo?
— Porque é preciso que me demore ainda aqui alguns minutos
— Porém irás depois reunir-te a nós?
— Ao primeiro tiro de espingarda, que se disparar, volte-se, que ao seu lado me verá.
Pedro Munier estendeu a mão a Laiza, porque o perigo comum fazia cessar toda a distância entre eles, deitou a espingarda ao ombro, e, acompanhado pela sua escolta, a largos passos se encaminhou para a entrada da caverna.
Com a vista o seguiu Laiza até que ele de todo se perdeu nas trevas, depois, voltando-se para António, que os pretos haviam, por seu comando, amarrado a uma árvore:
— Agora, Malaio — disse ele —, somos nós!
— Então que pertende Laiza — disse António com voz trémula —, do seu amigo, do seu irmão.
— Que se lembre do que se disse, na noite do yamsé, à beira do rio das Palmeiras.
— Muitas coisas se disseram, e o meu irmão Laiza mostrou-se tão eloquente, que todos foram da sua opinião.
— E entre todas essas coisas, lembra-se António da sentença proferida de antemão contra os traidores?
António estremeceu, e não obstante ser cor de cobre a sua pele, tê-lo-iam visto pálido se
fosse dia.
— Parece que o meu irmão perdeu a memória — prosseguiu Laiza com um acento de ironia terrível. Pois bem, eu vou restituir-lha: o que se disse foi...
— São estas as próprias palavras do juramento, e o meu irmão lembra-se delas?
— Lembro-me — disse António com uma voz inteligível.
— Então'responde às perguntas, que te vou fazer — disse Laiza.
— Eu não conheço em ti o direito de me interrogar, tu não és meu juiz — exclamou António.
— Então não te interrogarei — prosseguiu Laiza. E voltando-se para os pretos, que estavam deitados no chão em torno dele: — Levantem-se, disse-lhes, e respondam.
Os pretos obedeceram, e viram-se surgir dez ou doze figuras negras, que em silêncio se formaram em semi-círculo diante da árvore a que António se achava amarrado.
— Estes são escravos — exclamou António —, e eu não devo ser julgado por cativos, não sou preto, mas sim livre. A um tribunal, e não a vós, compete julgar-me, se cometi algum crime.
— Basta — disse Laiza —, nós vamos julgar-te imediatamente, e depois apelarás da sentença para quem quiseres.
António calou-se. E durante o momento de silêncio, que seguiu a ordem expressa que Laiza acabava de lhe dar, ouviram-se os latidos do cão, que se iam aproximando.
— Visto que o réu não quer responder — disse Laiza aos pretos, que rodeavam António — cumpre-lhes responder por ele.
— Quem é que denunciou a conspiração ao governador, por ser nomeado outro, e não ele, o chefe dela?
— António o Malaio — responderam os pretos todos a uma voz.
— Isso não é verdade! — exclamou António. — Não é verdade. Juro e protesto!
— Silêncio — disse Laiza com o mesmo tom imperioso. — Quem é — prosseguiu ele, - que, depois de haver denunciado a conspiração ao governador, disparou contra o nosso chefe o tiro de espingarda que o feriu?
— António o Malaio — responderam todos os pretos.
— Quem me viu? — exclamou o Malaio. — Quem se atreve a dizer que era eu. Quem pode de noite diferenciar um homem de outro homem?
— Silêncio — disse Laiza, e continuando com o mesmo acento sossegado o seu interrogatório. — Finalmente — disse ele —, depois de haver denunciado a conspiração ao governador, e tentado assassinar o nosso chefe, quem é que veio ainda de noite, andar de rojo como uma serpente em torno do nosso retiro, para descobrir alguma abertura por onde os soldados ingleses pudessem entrar?
— António o Malaio — bradaram ainda uma vez os pretos todos com o mesmo acento de convicção, que os não havia abandonado um instante.
— Eu vinha unir-me a meus irmãos — exclamou o prisioneiro. — Vinha para participar da sua sorte, qualquer que fosse. Eu o juro e protesto.
— Dão crédito ao que ele diz? — perguntou Laiza.
— Não, não, não! — repetiram todos.
— Meus bons, meus estimados amigos — disse António. — Escutem-me, suplico-lho!
— Silêncio! — disse Laiza. Depois continuou com o mesmo acento solene, que sempre conservara e indicava a grandeza da missão de que se havia encarregado: — António não é só uma, mas sim três vezes traidor. Três vezes, mereceria ele a morte, se possível fosse morrer três vezes, António, prepara-te pois a comparecer na presença do Grande Espírito, porque tu vais morrer!
— É um assassínio? — exclamou António. — E não têm o direito de assassinar um homem livre. Além de que os ingleses não podem estar longe, eu gritarei. Acudam-me!... Acudam-me!... Eles querem-me matar! Querem...
Laiza lançou à mão ao pescoço do Malaio e abafou-lhe os gritos. Voltando-se depois para os pretos:
— Preparem uma corda.
Ouvindo esta ordem, que lhe pressagiava a sorte que o aguardava, António fez um esforço tão violento, que quebrou uma parte das ligaduras que o prendiam, mas não lhe foi possível soltar-se da mais terrível de todas, à mão de Laiza. Porém, ao cabo de alguns segundos, este compreendeu pelas convulsões, que sentia em todo o corpo de António, que se continuasse a apertá-lo assim, inútil se tornaria a corda. Largou pois o pescoço do prisioneiro, que deixou cair a cabeça sobre o peito, como um homem com estertor.
— Já disse que te deixaria tempo para aparecer diante do Grande Espírito — disse Laiza. — Tens dez minutos, prepara-te.
António, quis pronunciar algumas palavras, mas faleceu-lhe a voz. Ouviram-se então os latidos do cão, que a cada instante se aproximava.
— Onde está à corda? — perguntou Laiza.
— Aqui está — respondeu um preto apresentando-lha.
— Bem — disse ele.
E como o ofício de juiz estava acabado, começou o de algoz.
Laiza pegou num dos mais fortes ramos do tamarindo, chegou-o a si, a ele atou fortemente uma das extremidades da corda, fez na outra uma laçada em que meteu o pescoço de António, ordenou à dois homens que sustivessem o ramo. E assegurando-se de que o condenado, apesar de haver quebrado dois ou três dos cipós, que o prendiam, estava ainda seguro, segunda vez o convidou a dispôr-se para a morte.
Desta vez a palavra não faltou ao condenado. Porém em lugar de usar dela para implorar à misericórdia de Deus, serviu-lhe para apelar ainda para a compaixão dos homens.
— Pois bem, é verdade meus irmãos, meus amigos, é verdade — disse ele mudando de táctica, e procurando obter por confissões a vida que haviam recusado às suas negativas —, é verdade, sou muito culpado, e têm o direito de me tratar como o fazem. Porém hão-de perdoar ao seu antigo companheiro, não é assim? Aquele, que tanto vos fazia rir durante os serões. Ao mísero António, que vos contava tão bonitas histórias, e cantava tão alegres cantigas? Que será de vós para o futuro sem ele? Quem os há-de distrair? Quem os fará esquecer a fadiga do dia? Perdão! Meus amigos, perdão para o pobre António! A vida! A vida de joelhos lha peço, meus amigos!
— Pensa no Grande Espírito — disse Laiza —, porque não tens mais de cinco minutos
para viver, António.
— Em vez desses cinco minutos, Laiza, meu bom Laiza — prosseguiu António com voz suplicante —, concede-me cinco anos. E durante este tempo serei teu escravo, eu te servirei, sem cessar estarei às tuas ordens, sempre pronto me acharás a obedecer-te. E quando eu cometer o menor erro, castiga-me então, que sem me queixar suportarei o azorrague, as varas e a corda, e direi que és um bom senhor, porque me destes a vida. Oh! Laiza a vida, a vida.
— Escuta, António — disse Laiza —, ouves o latir daquele cão?
— Ouço, e tu julgas que fui eu que dei o conselho de o soltar? Pois enganas-te, não fui, juro-to.
— António — disse Laiza —, mesmo a um branco não teria ocorrido a ideia de se servir de um cão para perseguir o seu pobre dono. Esta ideia, António, foi tua.
O Malaio deu um profundo suspiro, e passado um instante, como se esperasse aplacar o seu inimigo pela humildade:
— Pois bem! Sim, fui eu, o Grande Espírito tinha-me desamparado, o orgulho da vingança privou-me do juízo. É preciso ter compaixão de um louco, Laiza, em nome de teu irmão Nazim, perdoa-me!
— E quem é que denunciou Nazim, quando este quis fugir? Fizeste mal em proferir esse nome. António, os cinco minutos estão o acabados. Prepara-te Malaio, que vais morrer.
— Oh! Não, não, morrer não — disse António. — Perdão Laiza, meus amigos, perdão! Porém sem ouvir as queixas, rogativas e súplicas do condenado, Laiza puxou pela sua faca, e de um golpe cortou todas as ligaduras, que prendiam António. No mesmo instante, e por ordem sua, os dois homens largaram o ramo, que se extendeu, arrebatando consigo o corpo do desafortunado António.
Um grito terrível, em que pareciam ter-se reunido todas as forças de desespero, soou, e foi perder-se, lúgubre, solitário, aflito no meio das florestas. Tudo estava acabado, e o corpo de António não era mais que um cadáver, balanceando-se na ponta de uma corda por cima do precipício.
Laiza demorou-se um instante imóvel contemplando o movimento de vibração da corda, que pouco a pouco sossegou. E quando chegou a traçar uma linha perpendicular. De novo aplicou o ouvido aos latidos do cão, que já não se achava a mais de quinhentos passos da caverna.
Então Laiza pegou na sua espingarda, que havia posto no chão, e voltando-se para os outros pretos:
— Vamos, meus amigos — disse ele —, estamos vingados. Agora podemos morrer. E precedendo-os com passo rápido, com eles se encaminhou aos entrincheiramentos.
A CAÇA AOS NEGROS
Laiza não se havia enganado. O cão, seguindo os vestígios de seu dono havia encaminhado os ingleses à abertura da caverna. Chegado que foi ali, arremeçou-se ao meio da moita e entrou a raspar e a morder as pedras. Então os ingleses compreenderam que se achavam no termo da sua correria.
Mandaram logo adiantar alguns soldados com pás, os quais começaram a trabalhar. E passado um instante, estava feita uma abertura assaz larga, para que um homem por ela pudesse entrar.
Um soldado chegou-se, para observar pela abertura, e no mesmo instante caiu com o peito atravessado por uma bala. Sucedeu-lhe outro, que, como ele também caiu. A mesma sorte teve o terceiro soldado que ousou apresentar-se.
Visível era que os revoltosos, dando eles mesmo o sinal do ataque, estavam decididos a uma defesa desesperada.
Os agressores começaram a tomar as suas precauções. Abrigando-se o mais que puderam, alargaram a brecha de modo que fosse possível passarem muitos de frente. Tocaram os tambores, e os granadeiros apresentaram-se de baioneta calada.
Porém, a vantagem dos sitiados era tamanha, que num instante a brecha se entulhou de mortos, e os agressores foram obrigados a afastar os cadáveres, para fazerem lugar a novo ataque.
Os ingleses penetraram, porém, desta vez até ao meio da caverna, mas só foi para deixarem ainda maior número de mortos que da primeira vez. Colocados por detrás do entrincheiramento, que Jorge mandara construir, os pretos, dirigidos por Laiza e Pedro Munier, faziam fogo com acerto.
Durante este tempo, Jorge, retido por suas feridas, amaldiçoava a inactividade a que se via reduzido. O cheiro da pólvora, o ruído da mosqueteria, tudo lhe dava esse desejo ardente do combate, que faz com que o homem exponha a vida a um capricho do acaso. Porém, neste caso não era uma causa estranha, que se defendia, o capricho de um rei, que se tratava de sustentar, nem a honra de uma nação, que importava vingar: não. Era a própria causa, que estes homens defendiam, e Jorge, o homem de génio ousado, de espírito empreendedor, nada podia, com a acção, nem com o conselho. Por isso mordia o colchão em que se achava deitado, e chorava de raiva.
No segundo ataque, quando os ingleses penetraram até ao meio da caverna, deram, do 'ugar a que haviam chegado, algumas descargas sobre o entrincheiramento. Como a cabana, em que Jorge se achava deitado, estava na direcção deles, duas ou três balas silvando atravessaram a folhagem.
Este barulho, que teria assustado qualquer outro, consolou e ensoberbeceu Jorge, porque também ele corria perigo, e se lhe não era possível matar, podia ao menos morrer.
Os ingleses haviam momentaneamente cessado o ataque, mas era claro que se preparavam para acometer de novo, e pelas enxadadas de pás que não tinham desistido do seu projecto. Com efeito, passado um instante, desabou parte das paredes exteriores da caverna, ficando muito maior a abertura. Então o tambor soou de novo, e pela terceira vez se viu ao clarão da lua brilharem as baionetas à entrada da caverna.
Pedro Munier e Laiza olharam um para o outro. Era evidente que a luta ia tornar-se terrível.
— Qual é o último recurso? — perguntou Laiza.
— A caverna está minada — disse o velho.
— Nesse caso, ainda temos alguma possibilidade de salvação, mas no momento decisivo faça o que eu lhe disser, ou então estamos todos perdidos, porque não há retirada possível com um ferido.
— Pois bem! Deixarei que ao pé dele me matem! — disse Pedro Munier.
— Melhor será que ambos vos salveis.
— Juntos?
— Ou separados, isso pouco importa.
— Previno-te, Laiza, de que nunca abandonarei o meu filho.
— Há-de abandoná-lo, se for este o seu único meio de salvação.
— Que pretendes dizer?
— Mais tarde me explicarei. Depois voltando-se para os pretos:
— Vamos, filhos — disse ele —, é chegado o momento supremo. Fogo sobre os casacas encarnadas, que não se perca um tiro, porque daqui a uma hora serão raras as munições.
No mesmo instante rompeu o fogo. Os pretos, em geral, são excelentes atiradores. Por isso executaram pontualmente a recomendação de Laiza, e começaram a cair soldados nas fileiras dos ingleses. "Porém, a cada descarga, elas uniam-se com admirável disciplina, e a coluna demorada pela dificuldade de passagem, continuava a adiantar-se pelo subterrâneo, sem disparar um só tiro de espingarda. Os ingleses pareciam desta vez decididos a tomar à baioneta os entricheiramentos.
A situação, grave para todos, muito mais o era para Jorge, em razão da impotência a que se achava condenado.
Ele encostou-se primeiro ao cotovelo, pôs-se depois de joelhos, e conseguiu enfim levantar-se. Porém, a sua fraqueza era tamanha, que a terra parecia faltar-lhe, e era obrigado a segurar-se aos ramos que o cercavam.
Louvando o valor de alguns homens dedicados, que na sua fortuna o acompanhavam até ao fim, ele não podia abster-se de admirar a coragem dos ingleses, que continuavam a marchar como para uma parada, posto que a cada passo fossem obrigados a unir as fileiras.
Enfim Jorge compreendeu que o inimigo não recuaria desta vez, e que em cinco minutos ia chegar aos entrincheiramentos, sem embargo do fogo que deles faziam.
Então, a ideia de que era por ele, obrigado a ficar espectador do combate, que todos estes homens se expunham à morte, veio-lhe ao espírito como um remorso. Tentou dar um passo para se meter entre os combatentes. E entregando-se, visto que, segundo toda a probabilidade, era só a ele que buscavam, fazer cessar a matança. Porém, conheceu que lhe seria impossível andar um terço da distância que o separava dos ingleses. Quis bradar aos atacados que suspendessem o fogo, e aos agressores para que não se adiantassem mais, que ele se entregava. Porém, a sua voz enfraquecida, no barulho da espingardaria perdeu-se.
Além disto viu, neste momento, seu pai pôr-se em pé, excedendo muito a altura dos entrincheiramentos, e, com um ramo de pinheiro aceso na mão, dar alguns passos ao encontro dos ingleses. Depois, no meio do fogo e do fumo, chegar ao chão o facho singular. No mesmo instante um rastilho de chama correu pela terra e desapareceu entranhando-se no solo. Em fim, pouco depois, a terra agitou-se, ouviu-se uma terrível explosão, e debaixo dos pés dos ingleses abriu-se um buraco chamejante. A abóbada da caverna aluiu-se, abateram os rochedos, que sobre ela pesavam, e, aos gritos do resto do regimento ainda do outro lado da abertura, a passagem subterrânea desapareceu num imenso chão.
— E agora — disse Laiza —, não há um instante a perder!
— Ordena. Que se há-de fazer?
— Fuja para o Grande Porto, procure asilo num navio francês, que eu me encarrego de Jorge.
— Já te disse, não quero abandonar meu filho.
— E eu já lhe disse que há de abandoná-lo. Porque ficando o perde.
— Então como?
— Com o cão, que lá está em poder do inimigo, por toda a parte ele o segue, ao lugar mais sombrio das florestas, ao mais profundo das cavernas, e Jorge, ferido em breve será alcançado. Fuja pois. Os ingleses julgarão que seu filho o acompanha, e então será a si que eles perseguirão. Eu, neste tempo, aproveito as sombras da noite. Com quatro homens dedicados levo Jorge para outro lado, e chegaremos aos bosques, que rodeiam o monte do Bambu. Se tiver algum meio de nos salvar, fará uma fogueira na ilha dos Pássaros. Então desceremos numa jangada o grande rio, a cuja foz virá numa lancha receber-nos.
Pedro Munier escutara todo este arrazoado com os olhos imóveis, a respiração suspensa, apertando entre as suas as mãos de Laiza, e lançando-lhe, ao ouvir as suas últimas palavras, os braços ao pescoço.
— Laiza! Laiza! — exclamou ele. — Sim, sim, eu compreendo-te, esse é o único meio. Vinha sobre mim toda a matilha inglesa, e tu salva o meu Jorge.
— Hei-de salvá-lo ou morrer com ele — disse Laiza. — Eis aqui tudo o que posso prometer-lhe.
— E sei que cumprirás o que prometes. Espera só que eu vá ainda uma vez abraçar meu filho, e logo parto.
— Não, não — disse Laiza. — Se o vir não quererá depois separar-se dele. Se Jorge sabe que vos expondes para lhe salvar a vida não o há-de querer consentir. Parta, parta. E vós todos acompanhai-o. Fiquem só quatro homens comigo, os mais fortes e vigorosos, os mais dedicados.
Doze homens se apresentaram, Laiza dentre eles escolheu quatro. Então vendo que Pedro Munier hesitava em partir:
— Os ingleses! Os ingleses! Disse-lhe num instante estarão aqui.
— Assim, à foz do grande rio! — exclamou Pedro Munier.
— Sim, se não formos mortos ou apanhados.
— Adeus, Jorge, adeus — bradou Pedro Munier. E seguido dos pretos, arremeçou-se para o lado da montanha dos Crioulos.
— Meu pai — exclamou Jorge —, aonde vai? Que faz? Porque não vem morrer com seu filho? Meu pai, espere-me, aqui estou!
Mas Pedro Munier já ia longe, e estas últimas palavras foram proferidas com voz tão débil que o velho não pôde ouvi-las.
Laiza correu ao ferido, que encontrou de joelhos.
— Meu pai! — suspirou Jorge, e caiu desmaiado.
Laiza não perdeu tempo, este desmaio era quase uma felicidade. Sem dúvida Jorge, no gozo da sua razão, não havia de querer disputar por mais tempo a sua vida aos que o perseguiam. Teria reputado como vergonha esta fuga isolada. Porém a sua fraqueza o deixava à discrição de Laiza, que o deitou, sempre desmaiado, na maca em que pegaram os pretos que consigo mandara ficar, e ele, andando adiante para lhes mostrar o caminho, foi-se dirigindo para o bairro das três ilhotas, de onde fazia conta, seguindo o fluxo do grande rio, de alcançar o morro do Bambu.
Não haviam andado ainda um quarto de légua, quando ouviram os latidos do cão.
Laiza fez um gesto e os portadores pararam. Jorge ainda se achava desmaiado, ou ao menos tão fraco, que não dava mostras de reparar no que sucedia.
O que Laiza tinha conjecturado acontecia. Os ingleses haviam escalado o recinto, e faziam conta de servir-se do cão, para alcançar segunda vez os fugitivos.
Houve então um momento de aflição, durante o qual Laiza ouviu os latidos do cão. Os quais por alguns minutos não se aproximaram. O cão havia chegado ao sítio em que fora o combate, e andava dos entrincheiramentos para a cabana, em que Jorge ferido algum tempo se demorara, e onde seu pai tinha ido visitá-lo. Enfim, os latidos foram-se afastando para o sul, era esta a direcção que Pedro Munier havia seguido. A astúcia de Laiza tinha bom êxito, os inimigos enganavam-se no rasto, seguindo o pai abandonavam o filho.
A situação de que acabavam de sair era tanto mais grave quanto os primeiros raios de dia, durante esta demora de um instante, começavam a aparecer dissipando a misteriosa escuridão da floresta. Certamente, se Jorge se achasse com saúde, ágil e forte como era, a confusão seria menor porque, astúcia, valor, habilidade, tudo se acharia em proporção igual entre os perseguidos e os perseguidores. Porém a ferida de Jorge dava vantagem aos inimigos, e Laiza não dissimulava que a situação era das mais críticas.
Um receio principalmente o preocupava: é que não houvessem os ingleses, como era provável, tomado por auxiliares escravos adextrados na caça dos pretos fugidos, prometendo-lhes a liberdade, se Jorge viesse a cair em suas mãos.
Então Laiza perdia uma parte de suas vantagens de homem da natureza. À vista desses outros homens filhos, como ele, da natureza, e para quem a solidão não tinha, assim como para ele, segredos, nem a noite mistérios.
Por isso entendeu que não havia um instante a perder, e certo da direcção que haviam tomado os que o perseguiam, tornou a pôr-se a caminho, indo sempre para leste.
A floresta oferecia um aspecto singular, e os animais pareciam participar da preocupação do homem pelas descargas que se deram durante a noite. Haviam despertado os pássaros sobre os ramos, os javalis em seus asilos, os gamos nas suas valsas, todos fugiam espantados, e qualquer diria que os entes animados tinham sido acometidos de uma espécie de vertigem.
Duas horas foram assim caminhando, até que enfim preciso foi parar. Os pretos tinham lutado toda a noite, e não haviam comido desde a véspera às quatro horas.
Laiza parou sobre as ruínas de uma choça, que sem dúvida alguma tinha naquela mesma noite servido de asilo a pretos fugidos, porque revolvendo um monte de cinza, que parecia resultado de uma longa assistência, ainda encontrou fogo.
Três dos pretos foram à caça de taurecks. O quarto ocupou-se em atear o lume, Laiza procurou ervas para renovar a cura do ferido.
Posto que Jorge fosse vigoroso de corpo e de espírito forte, a alma havia contudo sido vencida pela matéria. Ele tinha febre, estava em delírio, ignorava o que em torno de si sucedia, e não podia por meio do conselho, nem da execução, ajudar os que tentavam salvá-lo.
Porém o curativo da sua ferida pareceu ocasionar-lhe algum descanço.
Pelo que diz respeito a Laiza, não mostrava sentir nenhuma das necessidades físicas da natureza.
Sessenta horas havia que estava sem dormir, e não parecia ter falta de repouso. Tinha passado vinte horas sem comer, e não dava mostras de ter fome.
Os pretos voltaram uns depois dos outros, trazendo seis ou oito taurecks, que trataram de assar diante do grande fogo que seus companheiros haviam acendido. O fumo, que o fogo ocasionava algum tanto inquietava Laiza. Porém ele pensava que, não havendo deixado atrás de si vestígio algum, devia estar a duas ou três léguas pelo menos do sítio em que fora o combate, e que supondo mesmo que este fumo fosse descoberto sê-lo-ia por algum posto muito afastado para que tivesse tempo de fugir antes de ser alcançado pelo inimigo.
Pronta que foi a comida, os pretos chamaram Laiza, que até então estivera assentado ao pé de Jorge.
Laiza levantou-se, e dirigindo a vista para o grupo a que se ia juntar, viu que um dos pretos havia recebido na coxa uma ferida, que ainda vertia sangue.
Então toda a segurança desapareceu. Podiam tê-los seguido pelo rasto, assim como se segue um gamo ferido, não porque temessem a importância da captura, que o inimigo podia fazer seguindo-os, mas porque um prisioneiro, qualquer que fosse, era de muita grande utilidade, por causa das informações que podia dar, para que os ingleses deixassem de fazer quanto lhes fosse possível para o obter.
No momento em que esta reflexão acabava de lhe vir ao pensamento, e em que ele abria a boca para ordenar aos seus quatro pretos agachados ao redor do fogo que se pusessem a caminho, um pequeno bosque, mais espesso que o resto da floresta, e para o qual já se haviam mais de uma vez dirigido seus olhos inquietos, se inflamou, repetidas descargas se ouviram, e cinco o seis balas silvando passaram junto dele. Um dos pretos caiu com o rosto no fogo. Os outros três ergueram-se, mas depois de darem cinco ou seis passos um deles caiu também, seguindo-se logo outro a este. Só o quarto conseguiu fugir, e no bosque desapareceu.
Ao aspecto do fumo, ao ruído dos tiros, ao silvo das balas, Laiza deu um pulo do sítio em que se achava até junto da maca de Jorge, e tomando nos braços o ferido, como se fosse uma criança, se arremeçou à floresta, sem que a sua carreira fosse um instante retardada pela carga que levava.
Porém logo oito ou dez soldados ingleses, guiados por cinco ou seis pretos, saíram do pequeno bosque e entraram a perseguir os fugitivos, entre os quais haviam conhecido Jorge, que sabiam que si achava ferido.
Como Laiza previra, o sangue havia encaminhado os inimigos, que chegaram seguindo o seu rasto, a meio alcance de espingarda da choupana, e ali fizeram bem as suas pontarias porque, como dissemos, de quatro pretos três caíram, quando não mortos, ao menos fora do estado de combater.
Então começou uma carreira desesperada, porque qualquer que fosse a força e agilidade de Laiza, era evidente que não conseguindo fazer com que o perdessem de vista os que o perseguiam, estes viriam enfim a alcançá-lo. Infelizmente ele tinha duas resoluções a tomar quase igualmente fatais. Entranhando-se nas grandes espessuras, os bosques podiam tornar-se de tal modo cerrados que lhe fosse quase impossível ir mais longe. Lançando-se nos claros expunha-se ao fogo de seus inimigos. Ainda assim Laiza adoptou esta última resolução.
Nos primeiros minutos, e pela sua muita velocidade, Laiza achou-se quase fora do alcance, e se contra si tivesse só os ingleses, é certo que lhes teria escapado. Porém posto que fosse talvez com repugnância que os pretos o perseguiam, como eram impelidos pelas baionetas dos soldados, era indispensável que andassem.
Eles perseguiram pois Laiza e os seus, se não por entusiasmo, ao menos por temor. De tempos a tempos, e quando através das árvores descobriam Laiza, alguns tiros de espingarda lhe atiravam, e as balas roçavam pelas árvores em torno dele, ou sulcavam a terra sob seus passos.
Porém, como por encanto, nenhuma destas balas lhe tocou, e a sua carreira parecia, si é possível dizê-lo, em razão do perigo a que ele acabava de escapar.
Finalmente, os fugitivos chegaram à beira de um claro. Um rápido declive, e quase descoberto, em cujo cume havia um grupo de árvores, se apresentava a subir. Porém chegado ao cimo do referido declive, Laiza ao menos podia desaparecer por detrás de algum rochedo, deixar-se escorregar em algum barranco, e subtraír-se assim à vista dos que o perseguiam. Mas também em todo o intervalo, que separava umas árvores das outras, Laiza ficava descoberto e exposto ao fogo.
Não era porém possível hesitar. Ir para a direita ou para a esquerda, era perder terreno, o acaso havia até ali servido os fugitivos, a mesma felicidade podia ainda acompanhá-los.
Laiza arremeçou-se ao claro. Os que o perseguiam, vendo que lhes era possível atirar a descoberto, aumentaram a velocidade e chegaram até à raia. Laiza achava-se distante deles cento e cinquenta passos pouco mais ou menos.
Então, como se recebessem ordem, pararam todos, apontaram e fizeram fogo.
Laiza não pareceu estar ferido, e continuou a sua carreira.
Os soldados tinham ainda tempo de carregar outra vez as armas antes que ele desaparecesse, e à pressa foram carregando.
Durante este tempo, Laiza adiantava-se muito. Era evidente que se escapasse à segunda descarga, assim como escapara à primeira, e chegasse aos bosques são e salvo, todas as probabilidades eram por ele.
Vinte e cinco passos apenas o separavam da raia do bosque, quando de repente desapareceu numa dobra do terreno. Porém infelizmente a sinuosidade não se prolongava para a direita, nem para a esquerda, seguiu-a ainda assim tanto quanto pôde, para desencaminhar seus inimigos. Porém chegado à extremidade do pequeno barranco, cuja profundidade o protegera, foi forçoso trepar de novo o declive, e tornar por conseguinte a aparecer.
Neste momento, dez ou doze tiros de espingarda dispararam-se ao mesmo tempo, e aos caçadores de homens pareceu que Laiza cambaleava.
Com efeito, depois de dar alguns passos, Laiza parou, cambaleou de novo, caiu de joelhos, pôs Jorge no chão, sempre desmaiado. Levantando-se depois para os ingleses, estendeu para ele as mãos ambas com um gesto de última ameaça e suprema maldição, e tirando do cinto a sua faca, no peito até ao cabo a embebeu.
Os soldados correram logo dando grandes brados de júbilo.
Ainda alguns segundos Laiza se conservou em pé, até que de repente caiu como uma árvore que se desenraíza. Tinha-lhe a folha da faca varado o coração.
Chegando junto aos dois fugitivos, os soldados encontraram Laiza morto e Jorge expirando. Por um derradeiro esforço, para não cair vivo em poder dos inimigos Jorge arrancara as ataduras da sua ferida e dela corria muito sangue.
Pelo que toca a Laiza, além da facada com que trespassara o próprio coração, havia recebido uma bala na coxa, e outra que lhe passara o peito de lado a lado.
O ENSAIO
Tudo o que sucedeu nos dois ou três dias imediatos à catástrofe, que acabámos de referir, só uma vaga lembrança deixou no ânimo de Jorge. O seu espírito perturbado pelo delírio, não tinha mais que indefinidas precepções, que lhe não permitiam calcular o tempo, nem combinar os acontecimentos.
Um dia pela manhã, porém despertou como de um sono agitado por terríveis sonhos, e, ao abrir os olhos, conheceu que se achava numa prisão.
O cirurgião do regimento de guarnição em Porto Luís estava junto dele.
Contudo Jorge conseguiu lembrar-se dos acontecimentos passados, assim como por entre a névoa se divisam lagos, montanhas, florestas. Tudo lhe estava presente até ao momento em que fora ferido.
A sua entrada em Moka, a partida dali com seu pai, também não lhe haviam de todo passado da memória. Porém, desde a chegada aos grandes bosques, tudo era vago, indistinto, semelhante a um sonho.
Somente a realidade incontestável, positiva e fatal, era que se achava nas mãos dos seus inimigos.
Jorge era muito altivo para fazer qualquer pergunta, e muito orgulhoso para pedir qualquer serviço. Por isso nada pôde saber do que se passara. Contudo tinha no fundo do coração terríveis preocupações.
Seu pai estava salvo?
Sara continuava a amá-lo?
Estes dois pensamentos ocupavam inteiramente a sua imaginação. Quando um o deixava, era para ceder o lugar ao outro. Porém desta tempestade da alma nada aparecia no exterior.
O rosto de Jorge estava pálido e sossegado como o de uma estátua de mármore, e isto não só à vista de quem visitava a sua prisão, mas também quando se achava só.
Quando o médico entendeu que o ferido estava em estado de sofrer um interrogatório, avisou a autoridade, e no dia seguinte o juiz, acompanhado de um escrivão, apresentou-se a Jorge, que não podia ainda levantar-se da cama, mas nem por isso deixou de fazer as honras do seu quarto aos magistrados com uma paciência cheia de dignidade. E encostando-se ao cotovelo, declarou que estava pronto a responder a todas as perguntas que lhe fizessem.
De sobejo conhece o leitor o carácter de Jorge para pensar que um só momento lhe ocorresse a ideia de negar alguma das acções que lhe imputavam.
Não só respondeu com a maior veracidade a todas as perguntas que lhe fizeram, mas além disto obrigou-se, não naquele dia, porque ainda se sentia muito fraco, mas no dia seguinte, a ditar ele mesmo ao escrivão a história circunstanciada de toda a conspiração.
Este oferecimento era muito importante, para que a justiça o recusasse.
Jorge tinha dois fins fazendo esta proposta. Acelerar o andamento do processo, e tomar sobre si toda a responsabilidade.
No dia seguinte os dois magistrados apresentaram-se outra vez, e Jorge fez a narração a que se obrigara, porém, como passava as proposições que lhe tinha feito Laiza o juiz, interrompeu-o observando que ele omitia uma circunstância em seu favor, a qual em razão da morte de Laiza, já não prejudicava pessoa alguma.
Foi deste modo que Jorge teve notícia daquela morte e das circunstâncias que a acompanharam. Porque, como já dissemos, ignorava toda esta parte da sua vida.
Ele não pronunciou uma só vez o nome de seu pai, e com mais razão, também não proferiu o de Sara.
A declaração de Jorge tornava inteiramente inútil qualquer outro interrogatório. Cessou então de receber visitas, excepto a do doutor, que entrando um dia pela manhã encontrou Jorge levantado.
— Eu tinha-lhe proibido, senhor, que se levantasse. Está ainda muito fraco.
— Isso quer dizer, doutor — respondeu Jorge —, que me faz a injúria de confundir-me com os acusados ordinários, que demoram quanto podem o dia da sentença. Porém eu, com franqueza lhe confesso, tenho pressa de acabar com isto, e, em consequência, entendo que vale a pena estar bem curado para morrer. Pelo que me toca, parece-me que, contanto que tenha bastante força para subir ao cadafalso, é quanto os homens podem exigir de mim, é tudo o que eu posso pedir a Deus.
— Mas quem lhe disse que há-de ser condenado à morte? — perguntou o doutor.
— A minha consciência. Joguei uma partida, cuja entrada era a minha cabeça. Perdi, estou pronto a pagar.
— Não importa — disse o doutor —, a minha opinião é que ainda carece de alguns dias de tratamento, antes de se expor às fadigas dos debates e às comoções de um julgamento.
Porém no mesmo dia Jorge escreveu ao juiz, dizendo-lhe que se achava inteiramente curado, e por conseguinte à disposição da justiça.
Dois dias depois, os debates começaram.
Ao chegar perante os juízes, Jorge olhou inquieto em torno de si, e com júbilo reconheceu que era ele o único réu.
Com afoiteza olhou depois por toda a sala. Toda a gente da cidade assistia à audiência, exceptuando Malmedie, Henrique e Sara.
Alguns assistentes mostravam compadecer-se do réu. A maior parte, porém, dos semblantes não tinha outra expressão mais que a do ódio satisfeito.
Pelo que respeita a Jorge, estava sossegado e altivo como sempre.
O seu modo de trajar era o do costume: sobrecasaca preta e gravata da mesma cor, umas calças e colete brancos.
Nomearam-lhe advogado, porque ele recusara escolher um. A sua intenção era que ninguém defendesse a sua causa.
O que Jorge disse não foi defesa, mas sim a história de toda a sua vida. Não dissimulou que tinha voltado à ilha de França com intento de combater, por todos os meios possíveis, a preocupação que pesava sobre os homens de cor. Porém não disse uma única palavra a respeito das causas que haviam apressado a execução do seu projecto.
Um juiz fez-lhe algumas perguntas à cerca de Malmedie. Porém Jorge pediu licença para não responder.
Por mais facilidade que Jorge desse ao tribunal, os debates nem por isso duraram menos de três dias. Mesmo quando nada têm a dizer é sempre indispensável que os advogados falem.
O delegado falou quatro horas acusando Jorge, que com o maior sossego ouviu esta longa acusação, inclinando de vez em quando a cabeça em forma de aprovação.
Terminado que foi o discurso do ministério público, o presidente perguntou a Jorge se tinha alguma coisa a dizer.
— Não — respondeu Jorge —, senão que o senhor delegado foi eloquentíssimo.
O presidente anunciou que estavam terminados os debates, e Jorge foi conduzido à prisão, porque a sentença devia ser proferida na ausência do réu e intimada depois.
Jorge entrou na prisão e pediu papel é tinta para escrever o seu testamento.
Como nas sentenças inglesas não há confiscação, ele podia dispor da sua fortuna.
Deixou ao médico, que o tratara, três mil libras esterlinas.
Ao director da prisão mil libras esterlinas.
A cada um dos guardas mil patacas.
À Sara deixava um pequeno anel de ouro, que fora de sua mãe.
Quando se dispunha a assinar o testamento, entrou o escrivão, e Jorge levantou-se com a pena na mão. O escrivão leu a sentença.
Como Jorge sempre presumira, era condenado à pena de morte.
Acabada à leitura, Jorge tornou a sentar-se e assinou seu nome, sem que fosse possível conhecer a menor diferença entre a letra do texto do testamento e da assinatura.
Depois disto chegou-se a um espelho, para ver se estava mais pálido que antes. Não achou alteração. Ficou satisfeito de si próprio e sorriu dizendo:
— Sempre cuidei que causava maior comoção ouvir uma sentença de morte. O doutor foi visitá-lo, e perguntou-lhe por costume como se achava.
— Muito bem, doutor — respondeu Jorge. — Fez uma cura maravilhosa. Pena é que lhe não dêem tempo para acabá-la.
Então perguntou se a maneira de fazer a execução se achava mudada depois que os ingleses ocupavam a ilha. Disseram-lhe que ainda se fazia do mesmo modo, é esta certeza causou grande prazer a Jorge. Não era a vil forca de Londres, nem a guilhotina de Paris. Não, a execução em Porto Luís era feita de um modo pitoresco e poético, que não humilhava Jorge. Um preto servindo de verdugo degolava com um machado. Deste modo tinham morrido Carlos I, Maria Stuart, Cinq-Mars e de Thou.
Depois Jorge passou com o doutor a uma discussão fisiológica sobre a probabilidade de um sofrimento físico posterior à degolação. O doutor sustentou que a morte devia ser instantânea, mas Jorge era de parecer contrário, e citou dois exemplos em apoio da sua opinião.
Uma vez no Egipto viu degolar um escravo. O padecente estava de joelhos, o algoz cortou-lhe de um só golpe a cabeça, que foi rolando uma distância de oito ou dez passos. No mesmo instante o corpo ergueu-se agitando os braços e tornou a cair, não inteiramente morto, mas ainda agonizante.
Noutra ocasião, em que no mesmo país assistia a uma execução semelhante, apanhou, com o seu contínuo desejo de investigação, a cabeça no momento em que acabava de ser separada do corpo, e levantando-a pelos cabelos até à altura da sua boca perguntou-lhe em árabe: Ainda sofres? A esta pergunta os olhos do padecente abriram-se os lábios mexeram-se querendo articular uma resposta. Jorge estava, pois, convencido de que o padecente sobrevivia ao menos alguns instantes à execução.
O doutor veio enfim a declarar-se pela opinião de Jorge, porque era também a sua.
Porém julgou dever dar ao condenado a única consolação possível pela promessa de uma fácil morte.
O dia passou para Jorge do mesmo modo que os precedentes, mas ele escreveu a seu pai e a seu irmão. Pegou na pena para escrever também a Sara. Porém qualquer que fosse o motivo, que o dissuadisse, suspendeu-se, repeliu o papel e deixou cair a cabeça entre as mãos. Largo tempo esteve assim, e quem o visse erguer à cabeça, o que fez com o movimento arrogante e desdenhoso, que lhe era habitual, teria notado que seus olhos estavam algum tanto vermelhos, e que uma lágrima mal enxuta pendia ainda nas longas pestanas negras.
Porque desde o dia em que recusara, em casa do governador, esposar a formosa crioula, não só a não tornou a ver, mas nem mesmo ouvia falar dela.
Ainda assim, não podia acreditar que Sara o houvesse esquecido!
Chegou enfim a noite, Jorge deitou-se a sua hora do costume, e adormeceu como nas outras noites. Pela manhã, quando levantou-se, mandou chamar o director da prisão.
— Senhor, tenho um favor a pedir-lhe.
— Qual é? — perguntou o director.
— Queria conversar um instante com o algoz.
— Careço para isso de autorização do governador.
— Mande-lha pedir da minha parte — disse Jorge sorrindo-se. — Lord Murrey é cavalheiro, e não há de recusar este favor a um antigo amigo.
O director saiu prometendo a Jorge fazer o que lhe pedia.
Depois do director sair, entrou um sacerdote.
Jorge tinha as ideias religiosas que em nossos dias têm quase todos os homens da nossa idade. Isto é, que descuidando-se das práticas exteriores da religião, venerava no fundo do coração as coisas santas: assim uma igreja sombria um cemitério isolado, um caixão que passasse, eram para a sua alma impressões mais graves do que um desses acontecimentos que muitas vezes alteram o espírito do vulgo.
O sacerdote era um desses velhos venerandos, que não se ocupam de convencer, mas que falam com convicção. Era um desses homens, que, educado no meio das grandes cenas da natureza, procuram e encontram o Senhor em suas obras. Era finalmente um desses corações serenos, que atraem a si os que padecem para os proteger e consolar, participando de suas aflições.
Às primeiras palavras que Jorge e o ancião trocaram ambos estenderam a mão.
Era uma conversação íntima e não una confissão, que o sacerdote ia reclamar. Arrogante em presença da força, Jorge era humilde ante a fraqueza. Ele acusou-se do seu orgulho. E, como Satanás, este pecado o perdera.
Mas também, naquela mesma hora, era este orgulho que o tornava grande.
Vinte vezes o nome de Sara lhe veio aos lábios. Mas ele repeliu sempre este nome até o fundo do seu coração, sombrio abismo em que tantas comoções se sepultavam, e de que o seu rosto, como uma camada de gelo, encobria a profundidade.
Enquanto o sacerdote e o condenado estavam a conversar, abriu-se a porta e o director entrou.
— O homem a quem deseja falar — disse ele —, está a aguardar que possa recebê-lo. Jorge fez-se um pouco pálido, e por todo o seu corpo correu um ligeiro tremor. Contudo foi quase impossível conhecer o que ele acabava de exprimentar.
— Mande-o entrar — disse Jorge,
O padre quis ausentar-se, mas Jorge não consentiu.
— Deixe-se estar — disse-lhe ele —, pode ouvir o que tenho a dizer a este homem. Um preto de alta estatura e proporções hercúleas entrou. Estava nú, só trazia uma tanga de estofo encarnado.
Os seus grandes olhos sem expressão denotavam completa falta de inteligência. Voltou-se para o director que o introduzira, e olhando alternativamente para o padre e para Jorge:
— A qual dos dois me hei-de dirigir? — perguntou ele.
— Ao mancebo — respondeu o director, e saiu.
— É o executador? disse Jorge com indiferença.
— Sou — respondeu o preto.
— Então venha cá, meu amigo, responda-me. O preto deu dois passos para diante.
— Já sabe que tem de me executar amanhã? — perguntou Jorge.
— Sei, respondeu o preto, pelas sete horas da manhã.
— Ah, é às sete horas da manhã! Agradeço-lhe a notícia.
Eu tinha pedido informações a esse respeito, e não mas quiseram dar. Porém não é disso que se trata. O sacerdote sentia-se desfalecer.
— Eu nunca assisti a nenhuma execução — disse Jorge. — Ora, como desejo que as coisas se passem de modo conveniente, mandei-o chamar para fazermos o que em termos de teatro se chama um ensaio.
O preto não entendia. Jorge foi obrigado a explicar-lhe mais claramente o que desejava.
Então o preto agarrou o cepo com força, conduziu Jorge à distância do cepo onde devia ajoelhar, indicou-lhe como havia de pôr a cabeça, e prometeu cortá-la de um só golpe.
O padre quis levantar-se para sair, faltava-lhe a força para suportar esta singular experiência em que os dois actores principais conservavam igual impassibilidade, um pela brutalidade do espírito, o outro pela força do coração. Porém faltaram-lhe as forças, e caiu sobre a cadeira.
Recebidas estas informações, Jorge tirou do seu dedo um diamante.
— Meu amigo — disse ele ao preto —, como não tenho aqui dinheiro, e não quero que perca inteiramente o seu tempo, tome este anel.
— Não me é permitido receber coisa alguma dos condenados — disse o preto. — Mas posso herdar deles. Conserve-o no dedo, e amanhã, depois da sua morte, eu o tirarei.
— Muito bem! — disse Jorge, que tornou a meter o anel no dedo, e o preto saiu. Jorge voltou-se então para o sacerdote, que estava pálido como a morte.
— Meu filho — disse-lhe o ancião —, reputo-me feliz por haver encontrado uma alma como a sua: esta é a primeira vez que acompanho um condenado ao cadafalso. Receava que me faltassem as forças. O senhor anima-me, não é assim?
— Tranquilize-se, meu padre — respondeu Jorge.
O sacerdote era de uma pequena igreja situada no caminho, e na qual os condenados paravam ordinariamente para ouvir a última missa. Chamava-se a igreja do Salvador.
O padre saiu, prometendo voltar à tarde, e Jorge ficou só.
O que se passou então na alma e no rosto deste mancebo, ninguém soube. A natureza, essa desapiedada credora, reassumiu os seus direitos? Foi ele tão fraco, quão forte acabava de ser? Corrido que foi o pano entre o público e o actor, toda a sua impassibilidade aparente desapareceu para dar lugar a uma angústia real? Provável é que não sucedesse assim, porque quando o guarda tornou a abrir a porta e entrou com o jantar, encontrou Jorge rolando nas mãos um cigarro com tanto sossego como o poderia fazer qualquer fidalgo à Puerta del Sol, ou um peralta no passeio de Gand.
Jorge jantou como costumava. Mandou porém chamar o carcereiro para lhe recomendar que lhe mandasse preparar um banho para o dia seguinte às seis horas, e que o acordasse às cinco e meia.
Muitas vezes lendo, na história ou num jornal, que haviam acordado tal ou tal condenado no dia da sua execução, Jorge perguntava a si próprio se o condenado realmente dormia. Era chegado o momento de certificar-se disto. E sobre este ponto, ia saber o que convinha acreditar.
Pelas nove horas o sacerdote entrou. Jorge estava deitado e a ler. O padre perguntou em que livro procurava uma preparação para a morte, se era a Bíblia. Jorge mostrou-lhe o livro, em que estava a ler. Era Paulo e Virgínia.
Coisa singular que fosse, neste momento terrível, justamente esta pacífica e poética história que o condenado escolhesse.
Com Jorge demorou-se o padre até às onze horas, e durante todo este tempo foi quase sempre Jorge quem falou, explicando ao sacerdote como compreendia Deus, e desenvolvendo as suas teorias à cerca da imortalidade da alma. No estado ordinário da vida, Jorge era eloquente. Nesta ocasião suprema, foi sublime.
Era o condenado que ensinava. E o sacerdote que estava ouvindo.
Às onze horas, Jorge lembrou ao padre que era chegada a hora de se ausentar, observando que, para ter no dia seguinte pela manhã todas as suas forças, ele carecia de algum descanso.
No momento que o ancião saiu, um violento combate pareceu travar-se no coração de Jorge, que o chamou. Mas quando o viu entrar, fez sobre si mesmo um esforço.
— Nada — disse ele —, nada, meu padre.
Jorge mentia. Era o nome de Sara, que da sua boca queria escapar. Mas ainda desta vez o padre saiu sem o ouvir.
No dia seguinte, quando pelas cinco horas e meia o guarda entrou no quarto de Jorge, encontrou-o a dormir profundamente.
— Era verdade — disse Jorge acordando —, um condenado pode dormir a última noite. Mas até que hora velará ele para chegar a este resultado? Ninguém o sabe.
Trouxeram o banho, e neste momento o doutor entrou.
— Veja doutor — disse Jorge —, que me regulo pela antiguidade. Os Atenienses tomavam um banho no momento de marchar para o combate.
— Como se acha? — perguntou-lhe este, dirigindo-lhe uma dessas perguntas triviais, que faz quem não sabe o que há-de dizer.
— Muito bem — respondeu Jorge sorrindo —, e começo a acreditar que não morrerei da minha ferida.
Então pegou no seu testamento fechado e entregou-lho.
— Doutor — acrescentou ele —, nomeio-o meu testamenteiro. Neste papel encontrará três linhas que lhe dizem respeito. Quis deixar-lhe uma lembrança minha.
O doutor enxugou uma lágrima, e balbuciou algumas palavras de agradecimento. Jorge meteu-se no banho.
— Doutor — disse ele passado um instante —, quantas vezes por minuto bate o pulso de um homem no estado normal?
— De sessenta e quatro a setenta e seis vezes, respondeu o doutor.
— Tome o meu — disse Jorge. — Tenho curiosidade de saber o efeito que no meu sangue produz a aproximação da morte.
O doutor tirou o seu relógio, pegou no pulso de Jorge, e cantou as pulsações.
— Sessenta e oito — disse ele no fim de um minuto.
— Vamos — disse Jorge —, estou muito satisfeito. E o doutor?
— Isto é assombroso! — respondeu o médico. — O senhor é de ferro? Jorge sorriu-se orgulhosamente.
— Ah! Senhores brancos — disse ele —, têm pressa de me ver morrer. Careciam talvez de uma lição de coragem. Eu lha darei.
Então o carcereiro entrou e anunciou ao condenado que eram seis horas.
— Meu querido doutor — disse Jorge —, permita-me que saia do banho, mas não se afaste, porque folgarei de lhe apertar a mão antes de deixar a prisão.
O doutor retirou-se.
Jorge, ficando só, saiu do banho, calçou as botas, vestiu umas calças brancas e uma camisa de cambraia, de que ele mesmo dobrou o colarinho. Chegou-se depois a um pequeno espelho, compôs o cabelo, o bigode e a barba, com tanto cuidado como se o fizesse para ir a um baile, e foi bater à porta para indicar que estava pronto.
O padre entrou e olhou para Jorge, que nunca estivera tão gentil. Os seus olhos lançavam chamas, o seu rosto parecia radiante.
— Ó meu filho! Meu filho! — disse o sacerdote. — Guarde-se do orgulho. Ele perdeu o seu corpo, não queira que perca também a sua alma.
— Rogue por mim, meu padre — disse Jorge —, e estou certo de que Deus nada recusará às súplicas de tão santo varão.
Jorge avistou então o verdugo, que estava à porta.
— Ah! É o senhor, meu amigo — disse ele, aproxime-se.
O preto estava embrulhado numa grande capa, e debaixo dela ocultava o machado.
— O seu machado corta bem? — perguntou Jorge.
— Sim — respondeu o algoz —, fique descansado.
— Bom! — disse o condenado.
Então viu que o preto procurava na sua mão o diamante, que na véspera lhe prometera, e cujo engaste se achava por acaso voltado para dentro.
— Esteja tranquilo — disse Jorge virando o engaste para fora. — Há-de possuir o anel. Depois chegou-se a uma papeleira, abriu-a e dela tirou duas cartas. Eram as que havia
escrito, uma a seu pai, outra a seu irmão, e entregou-as ao padre, a quem ainda uma vez pareceu ter alguma coisa a dizer, porque lhe pôs a mão no ombo, olhou atento para ele, e mexeu os lábios como para falar. Porém ainda desta vez a sua vontade pôde mais que a sua comoção, e o nome, que do seu peito queria escapar, expirou-lhe na boca, tão fraco que ninguém o ouviu. Neste momento deram seis horas.
— Vamos — disse Jorge, e saiu da prisão acompanhado pelo sacerdote e o algoz.
No fim da escada encontrou o doutor, que ali o estava aguardando para lhe dizer o derradeiro adeus.
Jorge estendeu-lhe a mão, e inclinando-se para o seu ouvido:
— Recomendo-lhe o meu corpo — disse-lhe. E em seguida dirigiu-se para o pátio.
A IGREJA DO SALVADOR
À porta da rua, como se deve pensar, estava grande número de curiosos. Os espectáculos são raros em Porto Luís, e toda a gente queria ver, se não morrer, ao menos passar o condenado.
O director da prisão havia perguntado a Jorge de que modo desejava ser levado ao cadafalso, e ele lhe respondeu que queria ir a pé.
Obteve este favor, que era o último obséquio do governador. Oito artilheiros a cavalo o esperavam a porta.
Em todas as ruas, por onde havia de passar, soldados ingleses faziam alas, guardando o preso e contendo os curiosos.
Quando ele apareceu ouviu-se grande rumor. Todavia, contra o que Jorge esperava, não era acento de ódio que acolhia a sua presença. Havia de tudo, mas principalmente interesse e compaixão. Porque sempre há uma poderosa fascinação no homem belo e arrogante em presença da morte.
Jorge caminhou com passo firme, a cabeça erguida e o rosto plácido. Ainda assim, nesta hora alguma coisa terrível se passava no seu coração. Ia a pensar em Sara. Em Sara, que não procurara vê-lo, que não lhe havia escrito uma palavra, nem dado uma lembrança. Em Sara, a quem ele tinha dado crédito, e a quem devia o seu último engano.
Verdade é que se ela o amasse custar-lhe-ia perder a vida. O esquecimento de Sara eram as fezes do seu cálice.
Em tudo havia ele sido mal sucedido, a sua superioridade a nenhum fim o conduzira. O resultado desta longa luta, era o cadafalso, para onde ia caminhando abandonado de todos.
Quando dele viessem a falar, diriam: Era um insensato.
De vez em quando, caminhando sempre e olhando, um sorriso lhe passava pelos lábios, respondendo aos seus pensamentos. Este sorriso semelhante a todos no exterior, era muito amargo no íntimo.
E todavia, ele esperava vê-la em todas as esquinas das ruas, em todas as janelas a procurava. Sara, que havia deixado cair o seu ramalhete diante dele, quando, levado por Antrim, vencedor, corria ao triunfo, não deixaria cair no seu caminho uma lágrima, quando, vencido, caminhava para o cadafalso.
Porém em nenhuma parte a descobria.
Assim foi seguindo a rua de Paris em toda a sua extensão, tomou depois à direita, e adiantou-se para a igreja do Salvador, que estava armada de preto como para um enterro.
Era com efeito alguma coisa semelhante. O que é um condenado caminhando para o cadafalso, senão um cadáver vivo?
Chegando que foi diante da porta, Jorge estremeceu. Junto do velho sacerdote, que no pórtico o estava esperando, achava-se uma mulher vestida de preto e coberta com um véu da mesma cor.
Esta mulher, em trajo de viúva, que estava ali fazendo, que esperava?
A seu pesar Jorge apressou o passo. Seus olhos estavam fitos naquela mulher e não podiam separar-se dela. À proporção que se aproximava, o seu coração batia com mais força, e o seu pulso, tão regular em presença da morte, tornava se febril à vista desta mulher.
No momento em que pôs o pé no primeiro degrau da igreja, ela deu um passo para ele. Jorge subiu de um pulo os quatro degraus, levantou o véu, deu um grande grito e caiu de joelhos.
Era Sara.
Sara estendeu a mão com um movimento vagaroso e solene um grande silêncio reinou em toda a multidão.
— Escute — disse ela —, na igreja em que ele entra, sobre a sepultura em que está a ponto de entrar, em presença de Deus e dos homens, a todos tomo por testemunhas de que eu, Sara de Malmedie, venho perguntar ao senhor Jorge Munier se me quer receber por mulher.
— Sara — exclamou Jorge soluçando —, tu és a mais digna, a mais generosa de todas as mulheres.
Depois levantando-se e cingindo-a com o braço como se receasse perdê-la:
— Vem, minha viúva — disse ele. E para a igreja a levou.
Num instante, num segundo tudo para ele estava mudado. Com uma palavra Sara acabava de o pôr acima de todos esses homens, que rindo o viam passar.
Já não era um pobre insensato, impotente para conseguir um impossível e morrendo antes de o haver alcançado.
Era um vencedor ferido no momento da vitória. Um Epaminondas arrancando do peito o dardo mortal," mas vendo ao seu último olhar fugir o inimigo.
Assim, só pelo poder da sua vontade, pela influência do seu valor pessoal, ele, mulato, tinha-se feito amar por uma formosa branca, e sem que desse um passo para ela, sem que buscasse influir na sua determinação por uma palavra, carta, ou sinal.
Esta mulher foi esperá-lo no caminho do cadafalso, e em presença de todos, o que talvez nunca se tinha visto na colónia, por esposo escolheu.
Agora Jorge podia morrer, esrava recompensado do seu longo combate. Corpo a corpo lutara com a preocupação, e, ferindo-o mortalmente ela na luta acabou.
Todos estes pensamentos radiavam no rosto de Jorge enquanto ele guiava Sara.
Já não era o condenado prestes a subir ao cadafalso, mas sim o mártir arremeçando-se para o céu.
Vinte soldados estavam em alas na igreja, e quatro guardavam o coro. Pelo meio deles passou Jorge sem os ver, e foi ajoelhar com Sara diante do altar.
O sacerdote começou a missa nupcial. Porém Jorge não ouvia as suas palavras. Estava pegando na mão de Sara, e, de vez em quando, voltava-se para a multidão e sobre ela lançava um olhar de completo desprezo.
Depois contemplava Sara, pálida e desfalecida. Sara, cuja mão na sua sentia tremer, e a envolvia toda com um olhar cheio de gratidão e amor, reprimindo sempre um suspiro, porque ele, que ia morrer, pensava no que seria uma vida passada com semelhante mulher.
Havia de ser o céu! Mas o céu não é para os vivos.
A missa ia-se contudo adiantando, quando Jorge, voltando-se, avistou Miko-Miko, que fazia quanto lhe era possível, não por palavras, mas por gestos, para comover os soldados, que estavam guardando a entrada do coro e chegar ao pé de Jorge.
Este falou em inglês ao oficial, e pediu-lhe para o bom chinês a faculdade de chegar junto dele.
Nenhum inconveniente havia em conceder ao condenado o que pedia, por isso, a um sinal que fez o oficial, os soldados afastaram-se, e Miko-Miko correu ao coro.
Já vimos que gratidão o pobre mercador votara a Jorge desde o primeiro dia em que o viu. Esta gratidão havia-o procurado preso na Polícia. Ele ia pela derradeira vez manifestar-se junto ao cadafalso.
Miko-Miko deitou-se aos pés de Jorge, que lhe estendeu a mão, em que o chinês pegou e chegou-a aos lábios. Porém ao mesmo tempo Jorge sentiu que Miko-Miko lhe entregava um pequeno bilhete, e estremeceu.
No mesmo instante, como se o chinês satisfeito de obter este último favor nada mais tivesse a pedir, ausentou-se sem haver proferido uma única palavra.
Na mão conservava Jorge o bilhete, franzindo as sobrancelhas. Que queria dizer este bilhete? Grande importância tinha ele certamente. Porém Jorge não se atrevia a examiná-lo.
De tempos a tempos, vendo Sara tão formosa e delicada, tão despegada de todo o amor terrestre, uma aflição insólita e nunca sentida até então comprimia o coração de Jorge como uma garra de ferro, porque a seu pesar, pensando na ventura que perdia, ele estimava já a vida, e sentindo sempre a sua alma disposta a subir ao céu, tinha o coração preso na terra.
Então dele se apossavam terrores de morrer em desesperação.
Depois o bilhete, que lhe queimava a mão, e ele não se atrevia a ler com receio de ser visto pelos soldados ingleses, que o guardavam, parecia-lhe que devia conter uma esperança, se bem que na sua situação qualquer esperança fosse insensata.
Todavia ele estava impaciente de ler o bilhete, ainda assim, graças a essa força que sobre si conservava sempre, a sua impaciência não se manifestava por algum sinal exterior. Porém com a mão amarrotava o bilhete com tanta força, que metia as unhas na carne.
Sara estava a orar.
O sacerdote ia levantar a Deus. Ergueu a hóstia consagrada. O menino do coro tocou a campainha e toda a gente se pôs de joelhos.
Jorge aproveitou este momento, e ajoelhando também, abriu a mão.
O bilhete continha só estas palavras:
«Nós aqui estamos. Dispõe-te.»
A primeira frase era escrita pela mão de Tiago, a segunda pela de Pedro Munier.
No mesmo instante e quando Jorge admirado, só no meio da multidão, levantava a cabeça e olhava em torno de si, a porta da sacristia abriu-se toda, oito marinheiros se arremeçaram, agarraram os quatro soldados que estavam guardando o coro, e puseram dois punhais sobre o peito de cada um. Tiago e Pedro Munier correram. Tiago levando Sara nos braços, e Pedro Munier puxando seu filho pela mão.
Os dois esposos acharam-se na sacristia, onde os oito marinheiros também entraram fazendo muralha dos quatro soldados ingleses, que apresentaram aos tiros de seus camaradas. Tiago e seu pai fecharam a porta.
Havia outra porta, que dava saída para o campo. Junto dela estavam esperando dois cavalos selados. Eram Antrim e Yambo.
— A cavalo! — bradou Tiago. — Ambos a cavalo, e à rédea solta até à baía do Túmulo!
— E tu, meu irmão! — bradou Jorge.
— Que venham bucar-me ao meio dos meus intrépidos marinheiros — disse Tiago pondo Sara na sela enquanto Pedro Munier obrigava seu filho a montar a cavalo. Depois levantando a voz: — A mim! Meus Láscaros — bradou ele —, a mim!
Imediatamente saíram correndo, dos bosques da montanha Longa, cento e vinte homens armados até aos dentes.
— Parta — disse Tiago a Sara —, parta, salve-o...
— Porém o senhor! — disse Sara.
— Vamos segui-los, vá descansada.
— Jorge — disse Sara —, em nome do céu vem! — e meteu o seu cavalo a galope.
— Meu pai! — exclamou Jorge. — Meu pai!
— Pela minha vida, eu respondo por tudo — disse Tiago batendo em Antrim com a espada.
E o cavalo partiu como o vento, levando o seu cavaleiro, que em menos de dez segundos desapareceu com Sara por detrás do acampamento malabar, enquanto Pedro Munier, Tiago e seus marinheiros o seguiam com tal rapidez, que antes que os ingleses tornassem a si do espanto, já os fugitivos se achavam do outro lado do rio das Donzelas, isto é, fora do alcance das espingardas.
A LEYCESTER
Pelas cinco horas da tarde do mesmo dia em que haviam tido lugar os acontecimentos, que acabamos de referir, a corveta Calypso, navegando com todo o pano, seguia a derrota de nordeste aproveitando o vento, que, segundo o costume daquelas paragens, soprava de leste.
Além de seus dignos marinheiros, e do mestre Cabeça de Ferro, a tripulação da corveta achava-se aumentada com três pessoas mais: Pedro Munier, Jorge e Sara.
Pedro Munier andava a passear com Tiago do mastro da mezena para o grande, e deste para o da mezena.
Jorge e Sara estavam à popa, sentados ao lado um do outro.
Sara tinha a sua mão entre as de Jorge, que a contemplava, e ela olhava para o céu.
Indispensável seria a qualquer ter-se visto na horrível situação a que acabavam de escapar os dois amantes, para poder analisar as sensações de felicidade e júbilo indizível, que eles experimentavam achando-se livres sobre aquele vasto oceano, que, para longe da sua pátria os levava, mas de uma pátria, que, como madrasta, deles só se ocupara para de vez em quando os perseguir.
Ainda assim um suspiro doloroso saía da boca de um e fazia estremecer o outro. O coração largo tempo atormentado não ousa de repente confiar na sua felicidade.
Contudo eles estavam livres, não viam mais que céu e mar, e com toda a velocidade do seu navio fugiam dessa ilha de França, que estivera a ponto de lhes ser tão fatal.
Pedro Munier e Tiago conversavam. Porém Jorge e Sara nada diziam. Só às vezes um deixava escapar o nome do outro.
De quando em quando Pedro Munier parava e contemplava-os com uma expressão de indizível transporte. O pobre velho havia sofrido tanto, que não sabia como tinha força para suportar a sua felicidade.
Tiago, menos sentimental, olhava para o mesmo lado. Porém era evidente que o não fazia atraído pelo quadro que acabamos de descrever.
A sua vista passava por cima da cabeça de Jorge e de Sara, e ia observar o espaço na direção de Porto Luís.
Tiago não só não participava da alegria geral, mas havia mesmo alguns momentos em que se tornava inquieto, e em que passava a mão pela testa, como para dela afastar uma suspeita.
Pelo que toca a Cabeça de Ferro, conversava tranquilo sentado junto do marinheiro do leme. O bom bretão teria aberto a cabeça do primeiro, que um segundo hesitasse em executar uma ordem sua. Porém pondo de parte esta exigência muito natural, ele não era altivo, dava a mão a todos, e falava com o primeiro que a ele se chegava.
O resto da tripulação havia reassumido essa expressão indiferente, que, depois do combate ou da tormenta, se torna o aspecto habitual da fisionomia dos marinheiros. A gente de serviço estava na coberta, o resto na bateria.
Pedro Munier, absorto como estava na felicidade de Jorge e Sara, nem por isso deixou de reparar na inquietação de Tiago. Mais de uma vez seguiu as suas vistas, e como nada absolutamente via na direcção em que estas se fitavam, a não ser algumas nuvens acumuladas ao poente, entendeu que eram estas nuvens que o inquietavam.
— Estaremos ameaçados de alguma tempestade? — perguntou ele a seu filho no momento em que este lançava para o horizonte uma destas vistas de que já falamos.
— Se fosse isso — disse Tiago —, a Calypso recearia tanto como este goelano que vai passando. Porém estamos ameaçados de alguma coisa melhor.
— Então de que é? — perguntou Pedro Munier inquieto.
Julguei que desde o momento em que pusemos os pés no teu navio estávamos salvos.
— Por certo! — respondeu Tiago. — O caso é que temos mais probabilidade agora do que há doze horas, quando estávamos escondidos no bosque da pequena montanha, e quando Jorge dizia o seu Confiteor na igreja do Salvador.
— Porém sem querer inquietá-lo, meu pai, não posso dizer ainda que a nossa cabeça esteja bem segura.
Depois, sem se dirigir especialmente a ninguém, acrescentou: «Um homem para o joanete!»
Três marinheiros correram logo, um deles chegou em poucos segundos ao lugar designado, os outros dois tornaram a descer.
— Pois que receias, Tiago — prosseguiu Pedro Munier. — Pensas que eles tentam perseguir-nos?
— Justamente, meu pai — continuou Tiago. — Eles têem em Porto Luís uma certa fragata chamada a Leycester, minha antiga conhecida, e temo que ela não nos deixe partir assim sem nos oferecer uma partidinha, que seremos compelidos a aceitar.
— Mas parece-me, prosseguiu Pedro Munier, que lhe levamos pelo menos vinte e cinco a trinta milhas de dianteira, e que continuando a andar deste modo, bem depressa nos perderá de vista.
— Deitem a barquinha! — disse Tiago.
Três marinheiros se ocuparam logo nesta operação, que Tiago seguiu com visível interesse, e terminada que foi perguntou:
— Quantos nós?
— Dez, capitão — respondeu um dos marinheiros.
— Sim, certamente, é muito bonito para uma corveta, e não há talvez em toda a marinha inglesa senão uma fragata que possa andar um quarto de nó mais por hora. Infelizmente é essa fragata que nos perseguiria, no caso que ao governador ocorresse a ideia de nos mandar perseguir.
— Se isso depende do governador, por certo não havemos de ser perseguidos — continuou Pedro Munier. — Bem sabes que ele era amigo de teu irmão.
— Perfeitamente. O que não o tolheu de o fazer condenar à morte.
— Pois ele podia haver-se de outro modo sem faltar ao seu dever?
— Desta vez, meu pai, trata mais que do dever. É o seu amor próprio em cena. Sim, sem dúvida, se o governador tivesse o direito de perdoar, teria concedido o perdão a Jorge, porque perdoar era dar prova de superioridade. Porém Jorge escapou das suas mãos, no momento em que por certo ele julgava tê-lo seguro. A superioridade nesta circunstância estava da parte de Jorge. O governador há-de querer desforrar-se.
— Um navio! — bradou o marinheiro de vigia.
— Ah! — disse Tiago fazendo um sinal de cabeça a seu pai. — E onde? — continuou ele.
— A sotavento — respondeu o marinheiro.
— Em que altura? — perguntou Tiago.
— Na altura da ilha dos Tanoeiros, pouco mais ou menos.
— De onde vem?
— Sai de Porto Luís.
— Ei-los connosco — disse Jorge olhando para seu pai. — Bem lhe dizia eu que não estávamos livres de suas garras.
— Que diz? — perguntou Sara.
— Nada — respondeu Jorge. — Parece que somos perseguidos.
— Oh, meu Deus! — exclamou Sara. — Termo-eis restituído tão milagrosamente, para dele me separar outra vez. É impossível!
Durante este tempo, Tiago havia pegado no seu óculo e subido à gávea grande.
Com a maior atenção esteve algum tempo olhando para o ponto indicado pela vigia, depois, empurrando com a palma da mão todos os canudos do óculo, desceu assobiando e voltou para o seu lugar junto de seu pai.
— Então? — perguntou o velho.
— Não me enganei — disse Tiago. — Os nossos bons amigos os ingleses dão-nos caça. Felizmente — acrescentou ele olhando para o relógio —, que daqui a duas horas será noite fechada, e a lua só aparece à meia hora depois da meia noite.
— Então julgas que conseguiremos escapar-lhes?
— Faremos para isso o que pudermos, meu pai, esteja tranquilo. Eu não sou temerário, não gosto de negócios em que só há tiros a ganhar. E neste, o diabo me leve se me engano nas minhas prevenções.
— Como é possível, Tiago! — exclamou Jorge. — Tu havias de fugir do inimigo? Tu, o intrépido! O invicto!
— Meu irmão, eu fugirei sempre do diabo, quando tiver as algibeiras despejadas e duas polegadas de chavelhos, mais do que eu. Quando as tiver cheias, isso é diferente, então arriscarei alguma coisa.
— Mas sabes que hão-de dizer que tiveste medo?
— E eu responderei que é verdade. De mais, para que serve vir às mãos com aqueles amigos? Se nos apanham, o nosso processo está feito, esforçam-nos nas vergas desde o primeiro até ao último. Se, pelo contrário, nós os aprisionamos, seremos obrigados a metê-los a pique.
— Porque motivo os havemos de meter a pique?
— Então que queres que façamos deles? Se fossem pretos podíamos vendê-los. Mas brancos, de que nos servem?
— Oh, Tiago! Meu bom irmão! Tu não farás semelhante coisa, não é assim?
— Sara, minha irmã — disse Tiago —, havemos de fazer o que pudermos. Além disto chegado o momento, se chegar, nós os colocaremos num sítio excelente, de onde nada verão do que se passar. Por isso, será como nada sucedesse.
Depois voltando-se para o lado do navio:
— É verdade, ei-lo que aponta. Descobre-se-lhe o topo dos mastros. Não vê, acolá, meu pai?
— Eu não vejo mais que um ponto branco, que se balanceia, sobre uma onda e me parece uma gaivota.
— Pois bem! É isso justamente, a sua gaivota é uma bela fragata de trinta e seis peças.
— Quem sabe se será algum navio mercante?
— Não o creio.
— E não podes aumentar a velocidade da corveta?
— Ela tem neste momento todo o pano que é possível, meu pai. Quando tivermos vento em popa, aumentaremos mais algumas velas, e ganharemos dois nós. Porém a fragata então faz outro tanto, e ficaremos como agora. A Leycester deve ganhar uma milha sobre nós, conheço-a há muito tempo.
— Então alcança-nos amanhã por todo o dia?
— É verdade, se não lhe escaparmos esta noite.
— E acreditas que lhe escaparemos?
— Isso é conforme o capitão que a comandar.
— Mas enfim, se nos alcança?
— Então será uma questão de abordagem. Porque um combate de artilharia, não é possível. Em primeiro lugar a fragata Leycester, se é ela como creio, apostaria cem pretos contra dez, tem obra de uma dúzia de canhões mais do que nós. Além disto, tem a ilha Bourbon, a de França, Rodrigo, para se reparar. E nós temos o mar, o espaço, a imensidade. Toda a terra é nossa inimiga.
— E em caso de abordagem?
— Temos canhões morteiros, o que não é talvez muito escrupulosamente permitido num navio de guerra, mas que é um dos privilégios, que nós os piratas concedemos a nós mesmos por nossa autoridade privada. Depois, como a fragata se acha em pé de paz, não tem provavelmente mais de duzentos e setenta homens de tripulação, e nós temos duzentos e sessenta, o que, como vedes, mormente com gente como a minha, põe ao menos as coisas em estado de igualdade. Tranquilize-se, meu pai, e como o sino está a tocar, que isto não o prive de cear.
Efectivamente, eram sete horas da tarde, e o sinal da comida acabava de se ouvir com a pontualidade do costume.
Jorge então deu o braço a Sara, Pedro Munier seguiu-os, e todos três desceram para o camarote de Tiago, transformado por causa da presença de Sara em casa de jantar.
Tiago demorou-se ainda um instante para dar algumas ordens ao mestre Cabeça de Ferro, seu imediato.
Curioso era, mesmo para quem não fosse marítimo, ver o interior da corveta Calypso. Assim como um amante por todos os meios possíveis embeleza a sua amada, Tiago aformoseara a sua corveta com todos os enfeites com que se pôde adornar uma ninfa do mar. As escadas de acajú luziam como espelhos, as guarnições de cobre, limpas três vezes ao dia, brilhavam como ouro, enfim todos os instrumentos de matança, machados, espadas, mosquetes, dispostos em desenhos fantásticos em torno das portinholas, pareciam ornamentos colocados por um hábil armador na oficina de algum pintor de fama.
Porém sobretudo era notável por seu luxo o camarote do capitão. Tiago, como deixámos dito, era um moço muito sensual, e como as pessoas, que nas circunstâncias extremas sabem muito bem abster-se de tudo, ele gostava, nas ocasiões ordinárias, de gozar de tudo voluptuosamente. Ora o camarote de Tiago, destinado a servir ao mesmo tempo de sala, alcova e camarim, era um modelo neste género.
De cada lado, isto é a bombordo e a estibordo, estavam dois divãs, debaixo dos quais se ocultavam com seus reparos duas peças de artilharia, que só de fora se podiam descobrir. Um destes divãs servia de cama, o outro de canapé. No espaço entre as janelas havia um belo espelho de Veneza com a sua moldura representando Amores enrolados com flores e frutos. Finalmente, do tecto pendia uma lâmpada de prata, roubada sem dúvida de algum altar, mas cujo trabalho precioso denotava a mais bela época da Renascença.
As paredes e os divãs estavam cobertos de um magnífico estofo da índia, de fundo encarnado. E sobre o qual serpeavam lindas flores de ouro sem avesso, que pareciam bordadas pela agulha das fadas.
Esta câmara tinha sido por Tiago cedida a Jorge e Sara. Porém, como a missa interrompida na igreja do Salvador a não sossegava inteiramente à cerca da legalidade do seu casamento, Jorge fez-lhe prontamente saber que, admitidos de dia no santuário, encontraria outro quarto para a noite.
Era além disto nesta câmara, como já dissemos, que deviam ter lugar as refeições.
Foi uma sensação de extraordinária felicidade para estas quatro pessoas acharem-se assim reunidas à roda da mesma mesa, depois de terem estado a ponto de serem para sempre separadas. Por isso esqueciam um instante o resto do mundo, para só de si se ocuparem, o passado e o futuro, para pensarem só no presente.
Uma hora passou como um segundo, no fim dela subiram todos para a tolda, dirigindo logo suas primeiras vistas para a popa à procura da fragata.
Por um momento reinou o silêncio.
— Parece-me — disse Pedro Munier —, que a fragata desapareceu.
— Como o sol se acha no horizonte, As suas velas estão na sombra — disse Tiago —, mas olhe nesta direcção, meu pai.
— É verdade, é verdade — disse Pedro Munier. — Lá a vejo.
— E está mais perto — disse Jorge.
— Sim, uma ou duas milhas. Olha agora, Jorge, e descobrirás até as suas velas baixas. Não se acha mais de doze milhas distante de nós.
A corveta achava-se neste momento na altura do Cabo, isto é começava a passar avante da ilha. O sol caía sobre o horizonte, e a noite ia chegando com a rapidez particular às latitudes dos trópicos.
Tiago fez um sinal a Cabeça de Ferro, que si chegou, com o chapéu na mão.
— Então! Cabeça de Ferro — disse-lhe Tiago —, que devemos pensar daquele navio?
— Salvo o respeito, melhor do que eu o sabe, meu capitão.
— Não importa, desejo ouvir a tua opinião. É navio mercante, ou de guerra?
— Está a gozar, capitão — respondeu Cabeça de Ferro, rindo. — Bem sabe que não havia em toda a marinha mercante, mesmo na companhia das índias, um navio que nos possa seguir, e este leva-nos vantagem.
— E quanto tem ele ganho sobre nós desde o momento em que o avistámos. Isto é, no espaço de três horas?
— O capitão muito bem o sabe.
— Quero ouvir o teu parecer, Cabeça de Ferro, duas opiniões valem mais que uma.
— Três milhas pouco mais ou menos.
— Muito bem, e segundo a tua suposição, que navio é aquele?
— Já o conheceu, capitão?
— Talvez, mas receio enganar-me.
— Isso é impossível — disse o Cabeça de Ferro rindo-se outra vez.
— Não importa, diz sempre.
— É a fragata Leycester.
— E o que julgas que ela busca?
— A corveta Calypso. Bem sabe capitão, que contra ela tem uma antiga queixa por uma coisa assim como o seu mastro grande, que a corveta teve a insolência de lhe cortar em dois.
— Às mil maravilhas, senhor Cabeça de Ferro, eu sabia tudo o que acabas de me dizer, mas não me desgosta ver que és da minha opinião. Daqui a cinco minutos há-de render-se o quarto, manda descansar a gente que não estiver de serviço, porque carecerá de todas as suas forças daqui a coisa de vinte horas.
— Pois o capitão não tem intenção de aproveitar a noite para mudar de rumo? — perguntou Cabeça de Ferro.
— Silêncio, senhor, mais tarde falaremos disso — disse Tiago. — Vai para a tua ocupação e faz executar as ordens, que eu dei.
Passados cinco minutos, rendeu-se o quarto, e toda a gente, que não se achava de serviço, desapareceu da bateria. Ao cabo de dez minutos, todos dormiam, ou davam mostras de dormir.
E todavia, entre estes homens nenhum se achava que não soubesse que a Calypso era perseguida. Porém eles conheciam o seu chefe e confiavam nele.
Entretanto a corveta continuava a navegar na mesma direcção. Porém começava a encontrar a mareta do largo, o que tornava mais incómodo o seu andar. Sara, Jorge e Pedro Munier desceram para o camarote, e só Tiago ficou sobre a coberta.
Era noite fechada, e tinham já perdido inteiramente de vista a fragata. No fim de meia hora, Tiago chamou o seu imediato, que logo se apresentou.
— Senhor Cabeça de Ferro — disse Tiago —, onde supões que nos achamos agora?
— Ao norte da cunha de Mira — respondeu o imediato.
— Perfeitamente. Achas-te com força de fazer passar a corveta por entre a cunha de Mira e a ilha Chata, sem tocar a direita nem à esquerda?
— Atrevo-me a passar por ali com os olhos vendados, capitão.
— Óptimo. Nesse caso, previne a gente para que esteja pronta a manobrar visto que não há tempo a perder.
Cada homem correu ao seu lugar, onde ficou esperando em silêncio, até que a voz de Tiago se ouviu.
— Vira de bordo! — bradou ele.
E o apito do chefe de manobra soou logo. A corveta hesitou um instante, como um cavalo a galope, que fazem parar de repente. Depois voltou vagarosamente, inclinando-se por influência de um vento fresco, e impelida por grandes ondas.
— Mete de ré — continuou Tiago.
As manobras executaram-se com rapidez. A corveta completou o seu movimento, as suas velas de popa começaram a tomar vento, as de proa foram rapidamente mudadas, e o navio arremeçou-se para o novo ponto do horizonte, que lhe era indicado,
— Agora, senhor Cabeça de Ferro — disse Tiago —, depois de seguir todos os movimentos da corveta com a mesma satisfação com que um cavaleiro segue os do seu cavalo, vai dobrar a ilha, aproveita as variações do vento para se aproximar da sua origem, e costear toda a ilha de rochedos, que se prolonga desde o canal dos Chifres até ao portinho de Flac.
— Está bem, capitão — respondeu o imediato.
— Então, boa noite — prosseguiu Tiago. — Chama-me quando nascer a lua.
E Tiago foi-se deitar com essa afortunada indiferença, que é um dos privilégios das existências constantemente colocadas entre a vida e a morte.
Dez minutos depois, estava a dormir tão bem como o último de seus marinheiros.
O COMBATE
O Cabeça de Ferro cumpriu a sua palavra. Com facilidade passou o canal, que o mar forma entre a cunha Mira e a ilha Chata, e depois de dobrar a ilha de Ambre, chegou-se o mais perto possível da costa.
A meia hora depois da meia noite, vendo apontar a lua ao sul da ilha Rodrigo, foi, segundo as instruções recebidas, despertar o capitão.
Tiago subindo à coberta, lançou para todos os pontos do horizonte esse olhar investigador, que pertence essencialmente ao homem de mar. O vento havia refrescado e variava de este para nordeste. A terra achava-se a nove milhas pouco mais ou menos a estibordo, e distinguia-se como um nevoeiro. Nenhum navio se avistava à popa, a bombordo, nem à proa.
A corveta achava-se na altura do Porto Bourbon.
Tiago jogara o melhor jogo que lhe fora possível. Se a fragata, que o tinha perdido de vista durante a noite, houvesse continuado a sua rota para leste, seria ao amanhecer muito tarde para ele voltar atrás, e ele estava salvo. Se ao contrário, por uma inspiração fatal, o capitão do navio inimigo tivesse conjecturado a sua manobra e o seguisse, ele tinha ainda a probabilidade de se ocultar à sua vista, seguindo o lançamento das costas e aproveitando as tortuosidades da ilha para lhe escapar.
Enquanto Tiago, com o auxílio de um oculto da noite, tentava perscrutar o horizonte, sentiu baterem-lhe no ombro, e voltou a cabeça. Era Jorge.
— Ah, és tu, meu irmão? — disse ele estendendo-lhe a mão.
— Então — perguntou Jorge — que há de novo?
— Nada por agora. Mas ainda que a Leycester viesse atrás de nós não a poderíamos ver à distância que ainda nos separa. Ao amanhecer havemos de conhecer o que desejamos saber.
— Então o que há?
— Nada, uma mudançazinha de vento.
— Em nosso favor?
— Sim, se a fragata continuou a sua rota. No caso contrário, esta variação é tão boa para ela como para nós. Em todo o caso é preciso aproveitá-la.
Voltando-se depois para o contramestre, que havia substituído o seu imediato: — Manda içar os cutelos! — bradou ele.
— Fora os cutelos! — repetiu o contra-mestre.
No mesmo instante viram-se subir da coberta às gávias, e desta aos mastaréus, como cinco nuvens vacilantes, que se foram fixar à bombordo das velas. Quase ao mesmo tempo se conheceu que a corveta obedecia a um impulso mais rápido. Jorge observou isto a seu irmão.
— Sim — disse Tiago. — Ela é como Antrim, e não é necessário açoutá-la para andar. Basta que se lhe solte pano em quantidade conveniente, para que se adiante muito.
— E ainda assim, quantas milhas andamos por hora? — perguntou Jorge.
— Deitem a barquinha! — bradou Tiago. Esta manobra foi no mesmo instante executada.
— Quantos nós?
— Onze, capitão.
— São mais duas milhas do que há pouco.
Não se pode exigir mais da madeira, pano e ferro. E se viesse em nosso alcance outro qualquer navio que não fosse o demónio da Leycester, eu quisera conduzi-lo até ao cabo da Boa Esperança. E em lá chegando, nós lhe diríamos boas noites.
Nada respondeu Jorge, e os dois irmãos continuaram a passear em silêncio pela tolda. Porém, cada vez que Tiago voltava da proa à popa os seus olhos pareciam querer obrigar a escuridão a abrir-se. Uma vez enfim parou, e, em lugar de continuar o seu passeio, encostou-se à popa.
Com efeito, as trevas começavam à dissipar-se, posto que a primeira luz do dia tardasse ainda a aparecer, e neste crepúsculo nascente, que se aclarava semelhante a um nevoeiro que se dissipa para dar lugar a uma alva azulada, Tiago julgava distinguir, a dez milhas pouco mais ou menos, a fragata seguindo o mesmo rumo da corveta.
Neste momento, e quando ele estendia a mão para indicar a Jorge aquele ponto quase imperceptível, o marinheiro de vigia bradou:
— Um navio à popa!
— É verdade — disse Tiago, como falando consigo mesmo —, é verdade, já o vi. Seguiram-nos o sulco, com a diferença porém de que em vez de passar entre a ilha Chata e a Cunha de Mira, passaram entre a ilha Chata e a Redonda. É o que lhe fez perder duas horas. É necessário que naquele navio venha um marítimo que saiba do seu ofício.
— Mas eu não vejo nada — disse Jorge.
— Olha, ali, ali! Repara — prosseguiu Tiago —, avistam-se até às velas baixas e quando o navio sobre a onda se eleva vê-se-lhe a proa como um peixe que deita a cabeça fora de água para respirar.
— Tens razão — disse Jorge. — Lá o vejo.
— O que vês, Jorge — perguntou uma voz meiga. Jorge voltou-se e viu Sara.
— O que vejo, Sara? Um lindo espectáculo. O do sol, que nasce. Porém, como não há prazer perfeitamente puro no mundo, este espectáculo é um pouco alterado pelo aspecto daquele navio, que, como vês, apesar dos cálculos e esperanças de meu irmão, não perdeu o nosso rumo.
— Jorge — disse Sara —, Deus, que tão milagrosamente nos reuniu até ao presente, não há de afastar de nós a sua vista no momento em que mais carecemos da sua protecção. Que esta vista não nos prive de adorá-lo em suas obras. Vê, vê, Jorge, como é belo este espectáculo!
Com efeito, no momento em que o dia ia começar a aparecer, qualquer diria que a noite ciosa tentara condensar as suas trevas.
Uma luz azulada e transparente, como já dissemos, havia raiado, depois, esta luz afrouxou sucessivamente, passando do branco prateado ao cor de rosa. Enfim, uma nuvem de púrpura, semelhante ao vapor inflamado de um vulcão, subiu ao horizonte.
Era o rei do mundo, que vinha tomar posse do seu império, o sol, que como senhor se arremeçava ao firmamento.
Era a primeira vez que Sara via um espectáculo semelhante, por isso estava em êxtase, apertando com um amor cheio de fé e religião a mão de Jorge. Porém este, que tivera tempo de se acostumar a tais espectáculos durante as suas longas viagens por mar foi o primeiro que olhou para o objecto da preocupação geral.
O navio inimigo ia-se aproximando sempre, mas tornava-se menos visível, engolfado como estava nas ondas da luz oriental.
E era, pelo contrário a corveta, que se lhe devia naquela hora ter tornado perfeitamente distinta.
— Vamos, vamos — murmurou Tiago. — Também nos viu, porque lá iça os cutelos. Jorge, continuou Tiago inclinando-se para o ouvido de seu irmão. — Tu conheces as mulheres, e sabes que elas têm alguma dificuldade em tomar o seu partido. Não farias mal, segundo me parece, em dizer algumas palavras a Sara acerca do que vai suceder.
— Que está a dizer o teu irmão? — perguntou Sara.
— Duvida do teu ânimo — respondeu Jorge —, e eu respondo-lhe por ti.
— Tens razão.
E quando o momento for chegado digam-me o que é preciso que eu faça, e obedecerei.
— O demónio anda como se tivesse asas — continou Tiago.
— Minha cara irmã, ouviu por acaso nomear o comandante deste navio?
— Muitas vezes o vi em casa de meu tio, e perfeitamente me lembro do seu nome, é Jorge Paterson. Porém não pode ser ele quem dirige a Leycester, porque ainda antes de ontem me recordo de ter ouvido dizer que se achava doente, e, segundo afirmavam, mortalmente.
— Pois bem! Eu digo que grande injustiça farão ao seu imediato, se no mesmo dia do falecimento do seu superior o não nomearem capitão em lugar dele. É um gosto ter de pelejar com um homem hábil como aquele. Veja como o seu navio se adianta. Se assim continua, antes de cinco ou seis horas será indispensável vir às mãos.
— Pois viremos às mãos — disse Pedro Munier, que neste momento chegava à tolda, e cujos olhos, ao avizinhar-se o perigo, mostravam esse brilho que patenteava o ardor de que sua alma se inflamava nas grandes ocasiões.
— Ah, meu pai! — disse Tiago. — Muito folgo, de o ver nessas boas disposições. Porque daqui a poucas horas, como estava dizendo, havemos de carecer de todos os braços que houver a bordo.
Sara fez-se algum tanto pálida, Jorge sentiu-a apertar-lhe a mão, e voltando-se para ela com ar de riso disse-lhe:
— Então, Sara, depois de teres tido tanta confiança em Deus, duvidarás d'Ele agora?
— Não, Jorge, não — prosseguiu Sara. E quando no porão eu ouvir o estrondo dos canhões, o silvar das balas, os clamores dos feridos juro-te que ainda lá hei-de estar cheia de fé e esperança, certa de ver o meu Jorge são e salvo, porque alguma coisa me diz que havemos esgotado o mais amargo do nosso infortúnio, e que assim como as trevas deixaram lugar a este sol brilhante, à nossa noite vai suceder um formoso dia.
— Eis ao que eu chamo falar — exclamou Tiago. — Pela minha honra, não sei porque não viro de bordo, e não empro com aquele orgulhoso navio. Isto evitar-lhe-ia metade do trabalho, e a nós metade do enfado. Que te parece, Jorge queres fazer a experiência?
— De bom grado — disse Jorge. — Mas não tens receio de que, a esta distância, se está algum navio inglês em Porto Bourbon, dali saia devido ao barulho da artilharia, e venha em socorro do seu companheiro?
— Falas com muito acerto, meu irmão — disse Tiago. — Continuaremos a nossa rota. Ah, és tu, Cabeça de Ferro! — prosseguiu Tiago falando com o seu imediato, que aparecia neste momento na coberta. Chegas muito a propósito. Achamo-nos, com o vês, na altura do Morro Brabante, conserva a proa a sudoeste do mundo. Nós vamos almoçar, é boa precaução a tomar em todo o tempo, mas mormente quando se ignora se será possível jantar.
Tiago oferecia o braço a Sara, e, dando o exemplo, desceu primeiro, seguido de Jorge e Pedro Munier.
Sem dúvida com intuito de distrair, ao menos momentaneamente, os seus hóspedes do perigo que os ameaçava, Tiago fez durar o almoço o maior espaço de tempo que lhe foi possível.
Pouco mais ou menos duas horas haviam passado, quando eles tornaram a subir para a tolda.
O primeiro olhar de Tiago foi para a Leycester, que se tinha visivelmente aproximado, e já se lhe descobria até a bateria. Contudo Tiago parecia esperar encontrá-la menos afastada, porque olhando para os aparelhos da sua corveta, para se assegurar de que nada se havia mudado nas velas:
— Cabeça de Ferro — disse ele —, parece-me que agora andamos um pouco mais depressa que há duas horas.
— É verdade, capitão — respondeu o imediato.
— Então, que fizeste ao navio?
— Bagatelas. Mudei o lastro do seu lugar, e ordenei à gente que fosse para a proa.
— És um hábil prático. E que ganhaste com isso?
— Uma milha, capitão. Andamos doze nós por hora, acabo de deitar a barquinha. Mas isto de pouco nos servirá, a fragata terá sem dúvida feito o mesmo, porque há um quarto de hora também aumentou de velocidade. Repare, capitão, está quase toda descoberta. Oh, somos perseguidos por algum experimentado marítimo, que nos há de dar que fazer! Isto traz-me à memória o modo por que esta mesma Leycester nos deu caça, quando era o capitão Williams Murrey que a comandava.
— Ah, tudo está agora explicado! — exclamou Tiago. — Aposto mil luíses contra cem, Jorge, que é o desesperado governador que vem a bordo daquele navio. Ele há-de querer tirar a sua desforra.»
— Julgas isso, meu irmão? — exclamou Jorge erguendo-se do banco em que estava sentado, e travando com vivacidade o braço de Tiago. —Julgas isso? Confesso que daria por feliz se fosse o governador, porque pela minha parte, tenho com ele uma desforra a tirar.
— Pois é ele mesmo, ele em pessoa. Agora posso afirmá-lo. Só um semelhante sabujo podia descobrir-nos como ele tem feito. Apre! Que honra para um pobre negreiro como eu ter de combater com um comodoro da marinha real. Obrigado, Jorge, é a ti, que devo esta boa fortuna.
E Tiago rindo-se estendeu a mão para seu irmão.
Porém a probabilidade de ter de pelejar com o próprio Lord Williams Murrey não era para Tiago, na crítica situação em que se ia ver em breve, senão um motivo mais para tomar todas as precauções necessárias. Tiago correu a vista pelo navio. Estava empavezado. Examinou a tripulação. Esta já se achava instintivamente separada em grupos, cada um dos quais estava perto da bateria que havia de servir. Todos estes sinais indicavam que ele nada tinha a ensinar à sua gente, e que cada indivíduo sabia tão bem como ele o que se ia passar.
Neste momento, o vento fez chegar à corveta o som do tambor que estavam a tocar a bordo da fragata inimiga.
— Ah! — disse Tiago. — Não nos hão-de acusar de estar em atraso. Vamos, rapazes, sigamos o exemplo, que nos dão. Os senhores da marinha real são bons mestres, só podemos ganhar em seguir o seu exemplo. — Depois, levantando a voz: — Preparar para combate! — bradou ele.
Logo na bateria se ouviu o rufo de dois tambores e o som de um pífaro. Os três músicos apareceram em breve na coberta saindo por uma escotilha. Andaram em roda do navio e entraram pela escotilha oposta.
O efeito de esta aparição e o do som dos instrumentos foi magnífico.
Num instante todos se achavam nos seus postos armados com as armas que lhes pertenciam, e os gageiros subiram para as gáveas com os seus bacamartes. Os mosqueteiros formaram-se nos castelos de popa e proa, os canhões foram desamarrados e metidos em bateria, as granadas dispostas em todos os lugares de onde se podia fazê-las chover sobre o navio inimigo. Enfim o chefe de manobra mandou alar todas as escotas, e içar as escadinhas de abordagem.
A actividade no interior do navio não era menor que na coberta. Os paiões foram abertos e acesas as lanternas, os repartimentos derribados, a câmara do capitão desanrajada e nela assestaram-se dois canhões.
Um grande silêncio reinou depois, e vendo Tiago que tudo se achava pronto, começou a sua inspecção. Toda a gente se achava nos seus postos, e cada coisa no seu lugar.
Todavia, como Tiago entendia que o combate havia de ser um dos mais sérios, a inspeção durou meia hora, e neste tempo examinou ele todos os objectos e falou com toda a gente. Quando voltou para a coberta, a fragata tinha-se visivelmente adiantado, e os dois navios já não se achavam a mais de milha e meia de distância.
Meia hora passou ainda, durante a qual não si proferiam dez palavras a bordo da corveta. Todas as faculdades da tripulação pareciam haver-se reconcentrado em seus olhos.
Cada fisionomia exprimia um sentimento em harmonia com o seu carácter. Tiago a indiferênça, Jorge o orgulho, Pedro Munier a inquietação paternal, Sara a dedicação.
De repente viu-se fumo na fragata, e a bandeira da Grã-Bretanha subiu majestosamente aos ares.
O combate era inevitável, a corveta já não podia voltar ao vento, Tiago mandou recolher os cutelos, para não conservar velas inúteis a manobras, e voltando-se depois para Sara:
— Vamos, minha irmã — disse-lhe —, vê que todos se acham nos seus postos, creio que é tempo de ir para o seu.
— Meu Deus! — exclamou Sara. — Então é inevitável o combate?
— Daqui a um quarto de hora — disse Tiago. — A conversação vai começar, e como segundo parece é provável não deixará de ser com calor, importa que se retire quem nela não se deve meter.
— Sara — disse Jorge —, não te esqueças do que me prometeste.
— Estou pronta a obedecer — disse ela. — Vês Jorge, que sou razoável. Porém tu...
— Espero, Sara, que não me pedirás que seja espectador do que se vai passar, quando é por mim só que tantos valentes expõem a sua existência.
— Oh, não! — disse Sara. — Só te peço que penses em mim, e que te lembres de que se morreres, eu não te hei-de sobreviver.
Depois ela ofereceu a mão a Tiago, olhou para Pedro Munier, é, conduzida por Jorge, desceu pela escada da popa.
Passado um quarto de hora Jorge tornou a subir. Trazia na mão uma espada de abordagem, e um par de pistolas na cintura.
Pedro Munier estava armado com uma clavina tauxiada, antiga amiga que tão fiéis serviços lhe havia feito sempre.
Tiago estava no seu banco de quarto, tinha na mão a busina, sinal de comando, e a seus pés uma espada de abordagem e um capacete de ferro.
Os dois navios seguiam o mesmo rumo, a fragata sempre em seguimento da corveta, e já a tão pouca distância, que os marinheiros dispostos nas gáveas podiam ver o que se fazia na coberta do navio contrário.
— Cabeça de Ferro — disse Tiago —, tu tens bons olhos e inteligência, faz-me o favor de subir à gávea de mezena e diz-me o que se passa a bordo da fragata.
O imediato correu logo como um simples gageiro, e num momento chegou ao posto designado.
— Então? — disse Tiago.
— Todos estão a postos, capitão. Os artilheiros nas baterias, os soldados de marinha nos castelos, e o comandante no banco de quarto.
— Há tropas a bordo além dos marinheiros e soldados de marinha?
— Não o creio, capitão, salvo se estão na bateria, porque vejo por toda a parte o mesmo uniforme.
— Bem, nesse caso a partida é quase igual, haverá diferença de quinze ou vinte homens. É tudo o que eu queria saber. Agora desce, Cabeça de Ferro.
— Espere um instante, um instante, lá vejo o inglês embocar o porta-voz. Se estivéssemos silenciosos, ouviríamos o que ele vai dizer.
Esta última opinião era um pouco incerta. Porque não obstante o silêncio que reinava a bordo, nenhum ruído do navio inimigo chegou até à corveta. Porém a ordem, que o capitão acabava de dar, nem por isso foi menos prontamente explicada a toda a tripulação, porque logo dois relâmpagos saíram da proa da fragata, ouviu-se uma detonação, duas balas fizeram ricochete no sulco da Calypso.
— Bom — disse Tiago —, tem só peças de dezoito como as nossas, as probabilidades tornam-se cada vez mais iguais. — Levantando depois a cabeça: — Desce, disse ele ao seu imediato, és inútil agora aí, careço de ti cá em baixo.
O Cabeça de Ferro obedeceu, e num instante achou-se ao lado de Tiago. Durante este tempo, a fragata continuava adiantando-se, mas sem atirar mais, porque a experiência lhe mostrava que ainda estava fora de alcance.
— Cabeça de Ferro — disse Tiago —, desce à bateria. Enquanto fomos em retirada, faz uso de balas, mas logo que chegarmos à abordagem, emprega granadas, só granadas. Entendes?
— Muito bem, capitão — respondeu o imediato, e desceu pela escada de popa.
Os dois navios continuaram a navegar ainda por espaço de meia hora, pouco mais ou menos, sem que nenhum novo sinal de hostilidade se manifestasse a bordo da fragata.
A corveta, como já vimos, julgando que era inútil perder pólvora e balas, tinha ficado insensível às duas provocações da sua inimiga. Porém era evidente, pela animação que se começava a notar no rosto dos marinheiros, e pela atenção com que o capitão media a distância que separava ainda os dois navios, que a conversação, como dizia Tiago, não se demoraria muito tempo no monólogo, e que o diálogo ia começar.
Com efeito, passados outros dez minutos de espera, que a cada um pareceram um século, a proa da fragata de novo se inflamou, ouviu-se uma dupla detonação, desta vez seguida do silvo das balas, que passaram as velas, esburacando a vela de mezena e cortando dois ou três cabos.
Tiago seguiu com um olhar rápido o efeito das duas mensageiras de destruição. E vendo que estas não tinham feito mais que pequenas avarias: «Vamos, rapazes, disse ele, parece que é decididamente a nós, que procuram. Cortesia por cortesia. Fogo.»
No mesmo instante uma dupla detonação fez tremer toda a corveta, e Tiago inclinou-se para fora, para ver o resultado da sua resposta. Uma das balas despedaçou uma porção da borda, e a outra entranhou-se na proa da fragata.
— Então! — bradou Tiago. — Que estás a fazer? Fogo por banda, irra. Aponta aos mastros, quebra-lhe as pernas e fura-lhe as asas. Ora vamos.
Duas balas passaram neste momento através das velas e aparelhos da corveta. E enquanto uma quebrava a verga de mezena, a outra cortava o mastaréu de joanete.
— Fogo! Com todos os demónios, fogo! — bradou Tiago. — E tomem o exemplo do inimigo. Vinte e cinco luíses pelo primeiro mastro, que cair a bordo da fragata!
A detonação seguiu quase imediatamente o comando, e foi possível ver, nas velas do navio inimigo, a passagem das balas.
Por espaço de um quarto de hora pouco mais ou menos, o fogo continuou assim de ambas as partes. O vento, serenado pelas detonações, tinha quase cessado, e os dois navios andavam pouco mais de quatro ou cinco nós. Todo o intervalo estava cheio pelo fumo, de modo que era quase ao acaso que a artilharia jogava. Entretanto a fragata ia-se adiantando sempre, e via-se a extremidade de seus mastros por cima do vapor que a rodeava, ao passo que a corveta, que corria com vento em popa, de onde fazia fogo, estava inteiramente fora de fumo. Era este o momento que Tiago esperava.
Tinha, como havia dito, feito tudo o que era possível para evitar a abordagem. Porém vencido na sua carreira, ia como o javali ferido, voltar-se enfim sobre o caçador. Neste momento, a fragata achava-se a estibordo da corveta, e começava a bombardeá-la com as primeiras peças da sua bateria, enquanto a corveta principiava a responder-lhe com as últimas. Tiago viu a vantagem da sua posição, e resolveu aproveitar-se dela, para o que fez todas as disposições convenientes.
Apenas as suas ordens sucessivas foram executadas, a corveta, obedecendo à acção simultânea do leme é de suas velas de popa, fugiu rapidamente para estibordo, conservando bastante espaço para interceptar o caminho à fragata, e parou naquele lugar. No mesmo momento a fragata, privada da faculdade de manobrar pelas avarias de suas velas de popa, adiantou-se fendendo ao mesmo tempo o fumo e o mar, e contra sua vontade com um choque terrível, embaraçou o seu gurupés nos grandes ovens da corveta.
Neste momento ouviu-se por última vez a voz de Tiago:
— Fogo! — bradou ele. — Enfiem-os de uma extremidade à outra. Arrazem os como um pontão.
Catorze peças de artilharia, sete carregadas de metralha e oito com granadas, obedeceram a este mando, varrendo a coberta, onde deixaram estendidos trinta ou quarenta homens, quebrando-lhe pela parte inferior o mastro de ré, enquanto num instante, das três gáveas, uma chuva de granadas, caindo na fragata, afugentou a todos da proa e o inimigo só pôde responder à nuvem de fogo e ao chuveiro de balas da sua gávea de mezena impedida pela vela.
Neste momento, pelas vergas da corveta, pelo gurupés da fragata, pelos ovens, aparelhos e cabos, os piratas arremeçam-se e precipitam-se. Debalde os soldados de marinha sobre eles dirigem um fogo terrível de mosquetaria, aos que caem sucedem outros. Os feridos arrastam-se, lançando diante de si as granadas e agitando as armas. Jorge e Tiago já se julgavam vencedores, quando ao grito: «Toda a gente à coberta!» Os marinheiros ingleses, ocupados na bateria, saem pelas escotilhas e sobem pelas portinholas. Este reforço anima os soldados de marinha, que começavam a recuar. O comandante do navio põe-se à sua frente. Tiago não se enganou. É o antigo capitão da Leycester que quis desforrar-se. Jorge e Lord Williams Murrey encontram-se em presença um do outro, mas no meio do sangue e da matança, com a espada na mão, como inimigos mortais.
Ambos se reconhecem e procuram encontrar-se. Porém o conflito é tal, que são arrebatados como por um redomoinho. Os dois irmãos andam baralhados com os ingleses, dois marinheiros inimigos levantam machados sobre a cabeça de Jorge, ambos caem feridos por balas invisíveis. Dois soldados de marinha acometiam Jorge com as suas baionetas, ambos são derribados a seus pés. É Pedro Munier que está a velar pelo seu filho, e a fiel carabina que faz a sua obra.
De repente um brado terrível, que se ouve por cima do ruído das granadas e dos tiros de mosqueteria, dos clamores dos feridos, dos gemidos dos moribundos, soa na bateria, gelando toda a gente de terror:
«Fogo!»
No mesmo instante um fumo espesso sai pela escotilha da popa e pelas portinholas. Uma granada rebentou na câmara do capitão e pôs fogo à fragata.
A este grito terrível, não esperado, mágico, todos ficam suspensos. Depois a voz de Tiago, forte e imperiosa faz-se ouvir:
— Todos para bordo da Calypso.
Imediatamente com a mesma actividade com que desceram para a coberta da fragata, os piratas, abandonando-a, içam-se uns sobre os outros, agarrando-se a todos os cabos, saltando de um bordo a outro, enquanto Tiago e Jorge, com alguns dos mais destemidos protegem a retirada.
Então é o governador que se arremeça perseguindo os piratas, espingardeando-os à queima-roupa, e esperando entrar ao mesmo tempo que eles na Calypso. Porém os primeiros que chegam sobem às gáveas da corveta, e as granadas e balas de novo chovem. Alguns cabos são lançados aos que ficam na fragata. Tiago volta ao seu navio, Jorge fica para último. O governador encaminha-se para ele e Jorge espera-o. De repente uma vigorosa mão agarra-o e arrebata-o. É Pedro Munier que vela por seu filho, e que, pela terceira vez naquele dia, o salva de uma morte quase certa.
Todas as manobras que Tiago então ordenou com essa voz poderosa, que prescreve a obediência passiva, foram executadas com tão maravilhosa rapidez, que apesar da impetuosidade com que os ingleses se arrojavam a perseguir os piratas, não puderam chegar a tempo para aferrar um navio ao outro. A corveta, como se fosse dotada de sentimento, pareceu compreender o perigo que corria, desembaraçou-se por um vigoroso esforço, enquanto a fragata, privada do seu mastro de ré, continuava a adiantar-se devagar sob a influência das velas do mastro grande e do da proa.
Então da coberta da Calypso viram uma coisa espantosa.
O calor do combate tolhera que a tempo descobrissem que tinha pegado fogo na fragata. De modo que no momento em que se ouviram os gritos: Fogo, fogo! Já o incêndio havia feito progressos tais, que não havia esperanças de apagá-lo.
Foi neste momento que se pôde admirar a disciplina inglesa. No meio do fumo, que a cada momento se tornava mais espesso, o governador subiu ao banco de bombordo, e embocando a buzina, que conservara pendurada no pulso esquerdo:
— Sossego meus filhos! — bradou ele. — E eu respondo por tudo. Os escaleres ao mar! Em cinco minutos o escaler da popa, os dois dos lados, e uma das lanchas flutuaram em
roda da fragata.
— O escaler da popa e a lancha para os soldados de marinha! — bradou o governador. — Os dois escaleres dos lados para os marinheiros.
Como a Calypso se ia sempre afastando, não foi possível ouvir a bordo dela as outras ordens. Porém viram os escaleres encher-se de gente, enquanto os desgraçados feridos, arrastando-se pela coberta, debalde pediam aos seus companheiros que os recebessem.
— Duas lanchas ao mar! — bradou também Tiago, vendo que os quatro escaleres não bastavam para conter toda a tripulação.
E as duas lanchas da Calypso foram em seguida lançadas ao mar.
No mesmo instante, toda a gente que não tinha achado lugar nos escaleres da fragata, lançou-se ao mar e nadou para as lanchas da corveta. O governador havia ficado a bordo.
Quiseram fazê-lo descer para um dos escaleres, mas como não lhe tinha sido possível salvar os seus feridos, com eles queria morrer.
O mar oferecia então um espectáculo medonho.
Os quatro escaleres afastavam-se rapidamente do navio incendiado, enquanto os marinheiros em atraso nadavam para as duas lanchas da corveta.
Imóvel no meio de um redemoinho de fumo, com o seu comandante em pé sobre o banco de quarto, os feridos arrastando-se pela coberta, a fragata ia ardendo.
Era um espectáculo tão terrível, que Jorge sentiu Sara pôr a sua mão trémula no seu ombro, e não se voltou para ela.
Chegados a certa distância, as lanchas cessaram de remar.
Eis o que se passou:
O fumo tornou-se cada vez mais espesso, depois saiu pelas escotilhas uma serpente de fogo, que foi subindo ao longo do mastro da proa, consumindo as velas e aparelhos. Inflamaram-se as portinholas. Os canhões carregados dispararam-se. Enfim uma terrível detonação se ouviu. O navio abriu-se como a boca de um vulcão, e uma nuvem de chamas e fumo subiu para o céu.
Finalmente, através desta nuvem, viram-se a boiar alguns restos de mastros, vergas e aparelhos.
Era tudo o que restava da fragata Leycester.
— Se eu não pudesse viver contigo, Sara — disse Jorge voltando-se para ela —, era daquele modo que quereria morrer!
Alexandre Dumas
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