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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAPITÃO RICHARD / Alexandre Dumas
O CAPITÃO RICHARD / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O imperador chegou à proa do navio e com os olhos procurou terra.
Uma espécie de névoa que lhe pareceu brilhar no horizonte foi tudo quanto pôde aperceber. Era necessário ter-se olho de marinheiro para afirmar que essa névoa era um corpo sólido.
No dia seguinte, desde o nascer do sol, toda a gente se reunira na ponte. Se bem que durante parte da noite o navio se tivesse mantido imóvel, havia-se no entanto navegado o suficiente para que nesse momento, graças à limpidez matinal, a ilha se tornasse perfeitamente visível. Cerca do meio-dia, foi lançada âncora. Não se estava a mais de duas ou três milhas de terra, e havia cento e dez dias que Napoleão deixara Paris. A travessia do exílio havia durado mais do que o segundo reino, colocado entre a ilha de Elba e a de Santa Helena.
O imperador, que havia saído dos seus aposentos mais cedo do que habitualmente, caminhou ao longo da amurada e fixou na ilha um olhar impassível. Nem um só músculo do seu rosto se contraiu. E, diga-se em abono da verdade, essa máscara de ariano estava tão bem submetida à vontade do moderno Augusto, que os únicos músculos que nela pareciam viver eram os vizinhos da boca.

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Um herói que não é o mesmo da nossa história
cerca de dezoito léguas de Munique, cidade que o Guia na Alemanha de Richard e Quentin designa como uma das mais desenvolvidas, não só da Baviera, mas também da Europa; a nove léguas de Augsburgo, famosa pela dieta através da qual Mélanchton redigiu, em 1530, a fórmula da lei luterana; a vinte e duas léguas de Ratisbonne, que nos obscuros salões dos seus paços do concelho viu manterem-se de 1662 a 1806 os estados do Império Germânico - eleva-se, semelhante a sentinela avançada e dominando o curso do Danúbio, a pequena cidade de Donauwõrth. Quatro estradas levam à antiga cidade em que Luís, o Severo, por uma injusta suspeita de infidelidade, mandou decapitar a infeliz Maria de Brabant: duas vêm de Estugarda, ou seja da França - as de Nordlingen e de Dillíngen - e duas que vêm da Áustria, as de Augsburgo e de Aichach. As duas primeiras seguem a margem esquerda do Danúbio, e as restantes, situadas à margem direita do rio, atravessam-no perto do Donauwõrth, sobre uma simples ponte de madeira.
Hoje, que um caminho de ferro passa em Donauwõrth, e que os barcos de cabotagem descem o Danúbio desde Ulm até ao Mar Negro, a cidade reassumiu alguma importância, e afecta um certo movimento; mas assim não acontecia, de forma alguma, no início deste século.
E no entanto, a velha cidade livre que em tempos normais mais parecia um templo erguido em devoção à deusa Solidão e ao deus Silêncio, fornecia, a 17 de Abril de 1809, um espectáculo de tal forma inusitado para os seus dois mil e quinhentos residentes, que à excepção das crianças de berço e dos velhos paralíticos, os quais, por fraqueza ou por insegurança, eram forçados a ficar em casa, toda a população enchia as ruas e as praças, em especial a rua na qual desembocavam as duas estradas vindas de Estugarda e a praça do Castelo.
Com efeito, desde a noite de 13 de Abril - momento em que três mala-postas, acompanhadas de furgões e de carroças, se haviam detido frente ao hotel O Camarão, tendo-se apeado da primeira viatura um oficial general que, tal como o imperador, usava um chapeuzinho e uma capa sobre o uniforme, enquanto das outras viaturas se apeava um verdadeiro Estado-Maior - havia-se espalhado o boato de que o vencedor de Marengo e Austerlitz escolhera a pequena cidade de Donauwõrth para ponto de partida das suas operações na nova campanha que se ia iniciar contra a Áustria.
Este oficial-general - a quem os mais curiosos tinham desde essa noite espiado através das janelas do hotel, e haviam reconhecido nele um homem de cinquenta e seis a cinquenta e sete anos, e que para os mais bem informados passava por ser o marechal Berthier, príncipe de Neuchâtel, que nunca precedia o Imperador, afirmava-se, mais do que dois dias - este oficial-general dizíamos, na própria noite da sua chegada, enviara correios em todas as direcções, e ordenara uma concentração de tropas em Donauwõrth, a qual, a partir da manhã seguinte, começara a operar-se. De tal forma, que no interior e fora da cidade, só se ouviam os tambores e fanfarras, e que dos quatro pontos cardiais apenas se podiam ver regimentos bávaros, wurtemburgueses e franceses.
Digamos algo sobre esses dois velhos inimigos que se chamam a França e a Áustria, e sobre as circunstâncias que, tendo provocado um rompimento na paz jurada em Presburgo, entre o imperador Napoleão e o imperador Francisco II, justificavam todo este movimento.
O imperador estava em plena guerra contra a Espanha.
Vejamos como isso aconteceu.
O tratado de Amiens, que em 1802 havia levado à paz com a Inglaterra, não durara mais do que um ano, por a Inglaterra ter obtido de D. João VI, rei de Portugal, os meios para faltar aos seus compromissos com o imperador francês. Ao receber esta notícia, Napoleão contentara-se em escrever esta única linha, e assiná-la com o seu nome:
"A casa de Bragança deixou de reinar."
D. João VI, rechaçado da Europa, foi forçado a meter-se ao mar, atravessar o Atlântico e pedir asilo nas colónias portuguesas.
Num naufrágio nas costas da Cochinchina, Camões conseguira salvar o seu poema, o qual segurava com uma mão, e nadava com a outra. João VI, na tempestade que o levou até ao Rio de Janeiro, fora forçado a abandonar a coroa. Bem certo que arranjou outra na América, uma vez que em troca da sua realeza europeia já perdida, se fez proclamar imperador do Brasil.
Os exércitos franceses, depois de abrirem passagem através da Espanha, ocuparam Portugal, onde Junot foi nomeado governador.
Era tão pequenino, Portugal, que só mereceu um governador!
Mas os projectos do imperador não terminavam aí.
O tratado de Presburgo, imposto à Áustria depois da batalha de Austerlitz, havia assegurado a Eugène Beauharnais o lugar de vice-rei da Itália; o tratado de Tilsitt, imposto à Prússia e à Rússia depois da batalha de Friedland, havia dado a Gerónimo o reino de Westefália - tratava-se de destituir José e colocar Murat.
As precauções foram tomadas.
Um artigo secreto do tratado de Tilsitt autorizava o imperador da Rússia a apoderar-se da Finlândia, e o imperador francês podia apoderar-se da Espanha.
Faltava encontrar uma ocasião.
E esta não tardou a apresentar-se.
Murat ficara em Madrid com instruções secretas. O rei Carlos IV queixava-se muito a Murat, das suas questões com o filho, que o forçara a abdicar e lhe havia sucedido com o nome de Fernando VII. Murat aconselhou então Carlos IV a apelar para o seu aliado Napo-leão; Carlos IV, que nada tinha a perder, aceitou essa arbitragem com reconhecimento, e Fernando VII, que não era o mais forte, aceitou-a com inquietação.
Murat levou-os muito dificilmente até Bayonne, onde os aguardava Napoleão. Uma vez sob a pata do leão, tudo foi arranjado. Carlos IV abdicava em favor de José, declarando Fernando VII indigno de reinar. Então, Napoleão dá a mão direita ao pai, e a esquerda ao filho, e depois envia o primeiro para o palácio de Compiègne, e o segundo para o castelo de Valençay.
Ora, se este arranjo convinha à Rússia, com a qual fora acordado e porque ela recebia a sua compensação, outro tanto não acontecia em relação à Inglaterra, que só se interessava pelo sistema continental. Também a Inglaterra tinha os olhos gulosos pousados na Espanha, e estava apta a aproveitar-se da primeira insurreição - a qual, de resto, não se fez esperar.
A 27 de Maio de 1808, dia de S. Fernando, a insurreição rebenta em dez pontos diferentes, e em especial em Cádis, onde os insurrectos se apoderam da frota francesa que ali se refugiara depois do desastre de Trafalgar.
Depois, em menos de um mês, espalha-se por toda a Espanha o seguinte catecismo:
 - Quem és tu, meu filho?
 - Espanhol, graças a Deus.
 - Que queres dizer com isso?
 - Quero dizer que sou homem de bem.
 - Quem é o inimigo da nossa felicidade?
 - O imperador dos franceses.
 - Quem é esse imperador dos franceses?
 - Um mau! A fonte de todos os males! O destruidor de todos os bens e o antro de todos os vícios!
 - Quantas naturezas tem ele?
 - Duas: a humana e a diabólica.
 - Quantos imperadores há na França?
 - Um verdadeiro, com três pessoas enganadoras.
 - E como lhes chamas?
 - Napoleão, Murat e Manuel Godoi.
 - Qual dos três é o pior?
 - São todos iguais.
 - De quem deriva Napoleão?
 - Do pecado.
 - E Murat?
 - De Napoleão.
 - E Godoi?
 - Da fornicação de ambos.
 - Qual é o espírito do primeiro?
 - O orgulho e o despotismo.
 - Do segundo?
 - Rapina e crueldade.
 - Do terceiro?
 - Avareza, traição e ignorância.
 - Que são os franceses?
 - Antigos cristãos que se tornaram hereges.
 - Que suplício merece o espanhol que falte aos seus deveres?
 - A morte e a vergonha dos traidores.
 - E como devem portar-se os espanhóis?
 - De acordo com as máximas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
 - Quem nos livrará dos nossos inimigos?
 - A confiança entre nós e as armas.
 - Será um pecado, matar um francês?
 - Não, meu padre. Pelo contrário: ganha-se o céu quando se mata um desses cães hereges.
Eram singulares princípios, estes. Mas estavam de harmonia com a selvagem ignorância do povo que os invocava.
Seguiu-se uma sublevação geral que teve por resultado a capitulação de Baylen - ou seja: a primeira vergonha imposta às armas francesas desde 1792.
A capitulação foi assinada a 22 de Julho de 1808.
A 31 do mesmo mês, desembarcava em Portugal um exército inglês.
A 21 de Agosto decorreu a batalha do Vimeiro, que nos custou doze canhões e mil e quinhentos mortos ou feridos.
Finalmente, a 30, é assinada a convenção de Sintra, estipulando a evacuação de Portugal por Junot e o seu exército.
O efeito destas notícias em Paris fora fulminante.
Para este revés, Napoleão apenas conhecia um remédio - a sua presença.
Deus está ainda com ele, e a sua sorte acompanhá-lo-á. A terra espanhola terá a sua vez de ver os milagres de Rivoli, das Pirâmides, de Marengo, de Austerlitz, de Iena e de Friedland.
Vai apertar a mão ao Imperador Alexandre, assegura-se das intenções da Prússia e da Áustria - a qual o novo rei saxão vigia de Dresde, bem como ao novo rei da Westefália, de Hesse-Cassel, regressa da Alemanha levando consigo oitenta mil soldados já veteranos, toca Paris, de passagem, para anunciar ao corpo legislativo que num futuro próximo as águias adejarão sobre as torres de Lisboa e por toda a parte na Espanha.
A 4 de Novembro, chega a Tolosa.
A 10, o marechal Soult, ajudado pelo general Monton, vence Burgos, ganha vinte canhões, mata três mil espanhóis, e faz outros tantos prisioneiros.
A 12, o marechal Victor arrasa os dois exércitos de Romana e de Blake, em Espinosa, mata oito mil homens e dez generais, faz doze mil prisioneiros e confisca cinquenta canhões.
A 23, o marechal Lannes subjuga em Tudela os exércitos de Palafox e de Castanos, leva-lhes trinta canhões e faz-lhes três mil prisioneiros, matando ou ferindo quatro mil homens.
"O caminho para Madrid está livre! Entre na cidade de Filipe V, sire. Não sois vós o herdeiro de Luís XIV, e não conheceis o caminho de todas as capitais?
Além disso, aguardá-lo-á uma deputação da cidad, e de Madride irá ao seu encontro para pedir graça e perdão que lhe queira conceder... Então, suba à plataforma do Escurial, e escute: de todos os lados, só ouvirá os ecos da vitória!
"Olhe, aí está o vento do Oriente, que nos transporta os ruídos dos combates em Cardena, em Clinas, em Llobregat, em S. Felício e em Molino del Rey; cinco novos nomes a inscrever nas nossas efemérides, e mais inimigos na Catalunha!
"Olhe, aí está o vento de Ocidente, que por seu turno vem acariciar docemente o vosso ouvido. Vem da Galícia, e anuncia-lhe que Soult bateu a retaguarda de Moore, e fez baixar as armas a toda uma divisão espanhola; depois, melhor ainda, o vosso tenente passou sobre os corpos dos espanhóis e atingiu os ingleses, empurrou-os para os navios, e estes abriram as velas e desapareceram, deixando no campo de batalha, mortos, o general comandante-chefe e dois generais.
"Olhe, aí está o vento do Norte que, carregado de chamas, lhe transporta a notícia da tomada de Saragoça. Combateu-se vinte e oito dias antes de entrar na praça, sire! E vinte e oito dias se combateu ainda, depois de lá ter entrado; combateu-se de casa em casa, como em Sagunto, em Numance, em Calahorra! Os homens combateram, e as mulheres também, e os velhos e as crianças, até os padres! Os franceses são senhores de Saragoça - ou seja: daquilo que foi uma cidade e hoje não passa de um monte de ruínas!
"Olhe, eis o vento do Sul que lhe traz a notícia da tomada do Porto. A insurreição está sufocada, se não extinta, na Espanha. Portugal está invadido, se não reconquistado. Manteve a sua palavra, sire! As suas águias esvoaçam sobre as torres de Lisboa!
"Mas então, onde está, ó vencedor? E porquê, tendo vindo, se foi de uma assentada?
"Ah! Sim, a vossa velha inimiga, a Inglaterra, acaba de seduzir a Áustria. Disse-lhe que estáveis a setecentas léguas de Viena, que necessitáveis de todas as vossas tropas em torno de vós, e que o momento era propício para vos expulsar - a vós, a quem o papa Pio VII acaba de excomungar, bem como a Henrique IV da Alemanha e Filipe Augusto, da França - para vos expulsar da Itália e perseguir-vos na Alemanha. E ela acreditou nisso, a presunçosa! Reuniu quinhentos mil homens, colocou-os nas mãos dos seus arquiduques, Carlos, Luís e João, e disse-lhes:
"Ide, minhas águias negras! Concedo-vos, para a destroçarem, a águia vermelha da França!"
A 17 de Janeiro, Napoleão partiu de Valladolid, a cavalo. A 18, chegou a Burgos e a 19 estava em Bayonne. Ali chegado, subiu para uma viatura e quando toda a gente o julgava ainda na velha Castela, bate ele à porta das Tulherias, na meia-noite de 22, afirmando:
 - Abram, é o futuro vencedor de Eckmiihl e de Wagram!
De resto, o futuro vencedor de Eckmiil e de Wagram regressava a Paris de muito mau humor - e tinha razões para isso.
Aquela guerra da Espanha, que julgara útil, não lhe era favorável. Uma vez, porém, que nela se metera, tirara pelo menos a vantagem de ter atraído os ingleses ao continente.
Tal como o gigante líbio, era quando tocava a terra que Napoleão se sentia realmente forte. Se estivesse no lugar de Temístocles, teria esperado os persas em Atenas, e não teria separado Atenas do seu rio, para a transportar para o golfo de Salamina.
A sorte, essa amante que sempre lhe fora fiel, mesmo que forçada a acompanhá-lo do Niemen e Manzanarez, havia-o traído em Abukir e em Trafalgar!
E era precisamente no momento em que acabava de conseguir três vitórias sobre os ingleses, de lhes matar dois generais, de lhes ferir um terceiro, de rechaçá-los para o mar como Hector fazia com os gregos na ausência de Aquiles - que era forçado a abandonar a península, ao saber do que se passava na Áustria e na própria França.
Assim, chegado às Tulherias e regressado aos seus aposentos, e depois de apenas lançar um olhar de soslaio à cama, se bem que fossem duas horas da manhã, passou do quarto de dormir para o gabinete de trabalho.
 - Que acordem o arquichanceler - ordena ele - e que seja prevenido o ministro da Polícia e grande eleitor, pois aguardo-os, o primeiro às quatro horas, o segundo às cinco.
 - Deveremos prevenir sua majestade a imperatriz acerca do regresso de vossa majestade? - perguntou o meirinho a quem a ordem fora dada.
O imperador reflectiu durante um instante.
 - Não - disse ele. - Desejo ver primeiro o ministro da Polícia... Só quero que não me aborreçam até à chegada dele. Vou dormir.
O meirinho saiu, e Napoleão ficou só.
Então, virando os olhos para o relógio de parede:
 - Duas horas e um quarto. Às duas e meia acordarei. E, deitando-se num sofá, estendeu a mão esquerda
sobre o braço do cadeirão, meteu a mão direita entre o colete e a camisa, apoiou a cabeça no encosto de acaju, fechou os olhos, soltou um fraco suspiro e adormeceu.
Napoleão, tal como César, possuía essa preciosa faculdade de adormecer onde pudesse e quando quisesse, e durante o tempo que desejasse. Desde que ele dissesse "dormirei um quarto de hora", raro era que o ajudante de campo, o meirinho ou o secretário a quem a informação fosse dada e que à hora precisa entravam para o acordar, o não encontrassem reabrindo os olhos.
Por outro lado - privilégio concedido a certos homens de génio, como o mais importante - Napoleão acordava, sem qualquer transição entre o sono e o despertar. Os olhos, ao reabrirem-se, pareciam imediatamente iluminados. O cérebro apresentava-se tão lúcido, e as ideias eram tão precisas, um segundo após o acordar, como um segundo antes de adormecer.
Havia-se portanto fechado a porta sobre o meirinho encarregado de convocar os três homens de estado e já Napoleão dormia, e fazia-o - coisa estranha! - sem que qualquer traço do seu rosto denunciasse as paixões que agitavam a alma do imperador.
Uma só luz brilhava no gabinete. Ao ser manifestado por Napoleão o desejo de dormir por uns instantes, o meirinho havia levado os candelabros, cuja luz, por demasiado viva, poderia, mesmo através das pálpebras, afectar os olhos do imperador. Apenas deixara a lamparina com a qual havia ido receber o amo e de que se servira para acender os candelabros.
Quase todo o gabinete mergulhava assim numa dessas doces penumbras transparentes que dão aos objectos uma forma vaga, encantadora e tão vaporosa. É no meio dessa obscuridade ou dessa luz obscura, conforme se preferir, que gostam de passar os sonhos que o sono acorda, ou os fantasmas que os remorsos evocam.
Crer-se-ia que um desses sonhos ou um dos referidos fantasmas tivesse decidido aparecer nessa misteriosa claridade que reinava em torno do imperador, porque, mal fechou os olhos, a tapeçaria que caía sobre uma pequena porta escondida, levantou-se, e viu-se surgir uma forma branca que tinha, graças ao vaporoso tecido que a envolvia e à flexibilidade dos seus movimentos, todo o fantástico aspecto de um fantasma.
O fantasma deteve-se um instante, à porta, como se estivesse num tenebroso enquadramento. Depois, com passo ligeiro, tão leve que o silêncio nem sequer foi interrompido pelo ranger do soalho, aproximou-se lentamente de Napoleão.
Chegado perto dele, saiu de uma nuvem de musselinas uma mão encantadora que se pousou sobre o encosto do cadeirão, perto daquela cabeça tão parecida com a cabeça de um imperador romano. Olhou longamente, com um amor indescritível, o belo rosto, calmo como a esfíngie de Augusto, lançou um suspiro meio retido, apoiou a mão esquerda sobre o coração do imperador, para sentir-lhe as palpitações, inclinou-se, retendo a respiração, mais do que com os lábios, aflorou a fronte do adormecido com o seu hálito, e ao ver que esse contacto, por muito ligeiro que tivesse sido, ocasionava uma contracção nos músculos do rosto de Napoleão, até aí tão imóvel que ela julgara beijar uma máscara de cera, recuou vivamente.
De resto, o movimento que provocara fora tão imperceptível como passageiro. O calmo rosto, por um instante contraído pelo sopro daquele hálito amoroso, como acontece à superfície de um lago sujeita à brisa nocturna, reassumiu a plácida fisionomia enquanto, sempre com a mão sobre o coração, a sombra visitante se aproximou da escrivaninha, escreveu algumas palavras numa meia folha de papel, retornou ao adormecido, escondeu o papel na abertura produzida entre o colete a camisa por uma mão que não era menos branca nem menos delicada do que a sua, e depois, tão ligeiramente como viera, escondendo o ruído dos passos no alto pêlo das carpetas, desapareceu pela mesma porta através da qual entrara.
Passados alguns segundos sobre o desaparecimento desta visão, e quando o pêndulo ia bater as duas horas e meia, u dorminhoco abriu os olhos e retirou a mão do peito.
O relógio bateu as horas.
Napoleão sorriu tal como sorrira Augusto, ao verificar que era assim tão amo de si próprio, quer no sono quer acordado, e recolheu um papel que fizera cair ao retirar a mão do interior do colete.
Nesse papel, distinguiu ele algumas palavras escritas, e correu para junto da única luz que aclarava o apartamento. No entanto, antes mesmo de poder decifrar os termos, já ele identificara a letra.
Soltou um suspiro, e leu:
"Eis-te! Beijei-te; isso chega-me.
"Da que te ama mais do que a tudo no mundo!"
 - Josefina! - murmurou ele, olhando em torno, como se esperasse vê-la aparecer das profundezas da sala, ou de trás de qualquer móvel.
Mas estava verdadeiramente só. Nesse momento, abriu-se a porta. O meirinho entrou, trazendo dois candelabros e anunciando:
 - Sua excelência o senhor arquichanceler. Napoleão levantou-se, foi apoiar-se na lareira, e aguardou.
II.
Três homens de Estado
APÓS o meirinho apareceu a alta figura da pessoa que acabara de ser anunciada.
Regis Cambacérès tinha nessa época cinquenta e seis anos, o que significa mais quinze ou dezasseis anos do que aquele que o mandara chamar. Moralmente, era um homem meigo e bom. Sábio jurisconsulto, sucedera a seu pai no cargo de conselheiro do Tribunal de Contas; em 1792 fora eleito deputado à Convenção Nacional. A 19 de Janeiro de 1793 votara a prorrogação; em 1794 tornara-se presidente da Comissão de Saúde Pública, e no ano seguinte fora nomeado ministro da Justiça. Em 1799 Bonaparte escolhera-o para segundo cônsul, e, finalmente, em 1804, fora nomeado arquichanceler, distinguido com os títulos de príncipe do Império e de duque de Parma.
Fisicamente, era um homem de estatura meã, ameaçando passar-se para a obesidade, muito guloso, muito educado, bastante galanteador e, muito embora pertencesse à nobreza devido à magistratura, havia assimilado os modos da corte com uma prontidão e uma facilidade tais, que o grande reconstrutor do edifício social era muito apreciado.
Depois, aos olhos de Napoleão, tinha ainda um outro grande mérito: Cambacérès havia compreendido perfeitamente que o homem de génio que o havia ultrapassado na cena política, homem que, quando se passou para o lado dele, o havia ligado à sua fortuna depois de tê-lo recebido na familiaridade, como um igual - esse homem tinha direito aos seus respeitos, ao tornar-se o distinto eleito que na época a que nos reportamos mandava na Europa. Portanto, sem descer à humildade, colocava-se, em relação a Napoleão, na posição de um admirador, e não de um servo.
De resto, sempre pronto a aceder ao primeiro desejo do imperador, um quarto de hora chegara-lhe para vestir-se de forma que seria julgada irrepreensível no círculo das Tulherias, e embora tivesse sido acordado às duas da manhã, ou seja no meio de um belo sono - o que lhe era sumamente desagradável - apresentou-se com o olhar tão vivo e a boca tão sorridente como se o tivessem mandado buscar às sete horas da tarde, hora a que, depois de ter saído da mesa e de ter tomado o café, gozaria daquele bem-estar que na sequência de um bom jantar acompanha uma digestão fácil.
Mas o rosto para junto do qual ele se apressara a acorrer não tinha o ar jovial que iluminava o de Cambacérès. Ao aperceber-se dessa má disposição, o arqui-chanceler fez um movimento que até pareceu um passo à retaguarda.
Com os olhos de águia aos quais nada escapa, não somente nas grandes coisas, mas ainda - o que é bem mais extraordinário - nas pequenas, Napoleão apercebeu-se desse movimento, e compreendeu a respectiva causa, pelo que, acalmando nesse mesmo instante a expressão do rosto, disse:
 - Oh! venha, venha, senhor arquichanceler! Não é consigo que estou aborrecido!
 - E vossa majestade nunca se aborrecerá comigo, espero - respondeu Cambacérès - pois serei um homem bem infeliz no dia em que incorrer no vosso desagrado.
Nesse momento, o criado de quarto retirou-se, deixando dois candelabros e levando as lamparinas.
 - Constant - disse o imperador - feche a porta. Fique na antecâmara, e mande entrar para o salão verde as pessoas que espero.
Depois, para Cambacérès:
 - Ah! - e parecia poder finalmente respirar depois de uma longa sufocação. - Eis-me de novo na França. Eis-me nas Tulherias! Estamos sós, senhor arquichanceler; falemos com o coração nas mãos.
 - Sire - disse o arquichanceler - à parte o respeito que impõe uma barreira às minhas palavras, nunca falo de outra forma a vossa majestade.
O imperador fixou no outro um olhar profundo:
 - Fatiga-se, Cambacérès; entristece-se. Exactamente ao contrário dos outros, que apenas têm o fito de se evidenciarem, cada dia parece querer apagar-se mais. Não gosto disso; pense que, na ordem civil, o senhor é o primeiro, depois de mim.
 - Sei que vossa majestade me tratou de acordo com a sua bondade, e não apenas segundo os meus méritos.
 - Engana-se, tratei-o segundo o seu valor; por isso lhe confiei a condução das leis, não só das que já existiam, mas ainda durante a gestação da respectiva mãe Justiça, quando estão para nascer.
"Pois bem, o Código de Instrução Criminal não avança. Disse-lhe que queria vê-lo terminado durante o ano de 1808.
Ora, eis-nos chegados a 22 de Janeiro de 1809, e se bem que o corpo legislativo se tenha mantido reunido na minha ausência, esse código não está terminado, e talvez que não esteja ainda nos próximos três meses.
 - Será que vossa majestade me permite que lhe diga, a esse respeito, toda a verdade? - aventurou o arquichanceler.
 - Raios, sim! - respondeu o imperador.
 - Pois bem, sire, não direi que vejo com temor - jamais temerei enquanto vossa majestade mantiver o ceptro e a espada - mas vejo com pena que um espírito de inquietação e de indisciplina começa a surgir por todo o lado.
 - Não necessita dizer-mo, senhor. Estou a ver! E é mais para combater esse espírito do que para lutar contra os austríacos, que regressei.
 - Assim, por exemplo, sire - recomeçou Cambacérès - o corpo legislativo, por exemplo...
 - O corpo legislativo! - repetiu Napoleão acentuando ambas as palavras, e encolhendo os ombros.
 - O corpo legislativo - prosseguiu o outro, pois era homem que necessitava acabar os seus pensamentos - onde os raros oponentes nunca chegam a reunir mais do que doze ou quinze votos contra os projectos que lhe submetemos - o corpo legislativo faz-nos frente, e por duas vezes pôs vinte e quatro bolas negras, e uma vez cem!
 - Muito bem, destruirei o corpo legislativo!
 - Não, sire; escolherá um momento em que esteja mais disposto à crítica. Deixe-se ficar em Paris... Oh! meu Deus, quando vossa majestade está em Paris tudo anda bem.
 - Eu sei. Mas, infelizmente, não posso ficar.
 - Tanto pior!
 - Sim, tanto pior! Lembrar-me-ei sempre dessa expressão, e se eu não me lembrar, recorda-ma um certo Malet.
 - Vossa majestade dizia que não pode ficar em Paris?
 - Julga que foi para ficar em Paris que fiz a viagem desde Valladolid em quatro dias? Não. Dentro de três dias tenho de estar em Viena.
 - Oh! sire - disse Cambacérès, com um suspiro. - Ainda a guerra!
 - Você também, Cambacérès?... Mas sou eu quem a faz, à guerra?
 - Sire, a Espanha... - arriscou timidamente o arquichanceler.
 - Sim, essa talvez. Mas porque me meti nela? Porque estava seguro da paz no Norte. Tendo a Rússia por aliada a Westefália e a Holanda por irmãs, a Baviera por amiga, a Prússia reduzida a um exército de 40 000 homens, e a Áustria reduzida à águia a quem cortei uma das suas duas cabeças, poderia eu desconfiar que:
"Na Itália: poderia eu desconfiar que o austríaco encontraria processo de armar cento e cinquenta mil homens contra mim? Mas são então as águas do Letes(1) e não as do Danúbio que correm em Viena? Foi então tudo esquecido, até mesmo as lições da experiência? Há necessidade de sofrer outras? Pois havê-las-á, e desta feita terríveis, asseguro! Não desejo a guerra, não lhe encontro interesse, e a Europa inteira é testemunha de que todos os meus esforços e toda a minha atenção estavam concentrados no campo de batalha
 que a Inglaterra escolheu - ou seja: a Espanha.
(1) Da mitologia. Rio cujas águas produzem o esquecimento.
"O austríaco, que já salvou os ingleses uma vez, em 1805, quando eu ia atravessar o estreito de Calais, salva-os agora uma vez mais, detendo-me no momento em que eu estava quase a lançá-los ao mar, desde o primeiro ao último! Bem sei que, escorraçados de um lado, apareceriam no outro. Mas a Inglaterra não é uma nação guerreira como a França. É uma nação comerciante, é uma Cartago, mas uma Cartago sem Aníbal. Eu teria acabado por fatigar-lhe os soldados ou por forçá-la a desguarnecer a índia, e se o imperador Alexandre mantiver a sua palavra, é esse o meu objectivo... Oh! o austríaco, o austríaco! Pagará caro, essa diversão! Ou se renderá imediatamente, ou terá de manter uma guerra de destruição. Mas se renda, de modo a não me deixar a mais pequena dúvida sobre as suas intenções futuras, eu próprio meterei a espada na bainha - pois que só desejo desembainhá-la na Espanha e contra os ingleses. Caso contrário, porém, lanço quatrocentos mil homens sobre Viena, e futuramente a Inglaterra deixará de ter aliados no continente.
 - Quatrocentos mil homens, sire! - repetiu Cambacérès.
 - Pergunta-me onde estão eles, não é verdade?
 - Sim, sire, pois que apenas vejo cem mil disponíveis.
 - Ah! começam a contar os meus soldados, e o senhor é logo o primeiro, senhor arquichanceler!
 - Sire...
 - Diz-se "não há mais de duzentos mil homens", diz-se "podemos escapar ao amo; o amo enfraquece, agora só tem dois exércitos!" Mas enganam-se...
Napoleão bateu na testa.
 - A minha força está aqui!
Depois, estendendo ambos os braços, acrescenta:
 - E estes são os meus exércitos. Quer saber como poderei eu reunir quatrocentos mil homens? Vou dizer-lhe...
 - Sire...
 - Vou dizer-lho... não para si, Cambacérès, pois que talvez tenha ainda fé na minha sorte. Mas vou dizer-lho para que possa repeti-lo aos outros. O meu exército do Reno conta vinte e um regimentos de infantaria cada um dos quais tem quatro batalhões (deveriam ter cinco; mas, perante a realidade, nada de ilusões). Posso portanto contar com oitenta e quatro batalhões - ou seja: setenta mil homens de infantaria.
"Por outro lado, tenho as minhas quatro divisões Carra Saint-Cyr, Legrand, Boudet, Molitor; não possuem mais de três batalhões, portanto trinta mil homens. E aí temos cem mil, sem contar os cinco mil homens da divisão Dupas. Tenho catorze regimentos de couraceiros, que pelo menos me fornecem 12 000 cavaleiros, e, somando tudo quanto ainda está disponível nos depósitos, elevá-los-ei a 14 000. Tenho dezassete regimentos de infantaria ligeira, contemos pois com dezassete mil homens; por outro lado, os meus depósitos regurgitam de dragões formados; fazendo-os vir de Languedoc, da Guyana, do Poitou e de Anjou, facilmente teria cinco ou dez mil. Assim, já temos cem mil homens de infantaria e trinta ou trinta e cinco mil homens de cavalaria.
 - Sire, tudo isso faz cento e trinta e cinco mil homens, e vossa majestade falou em quatrocentos mil!
 - Espere... Vinte mil de artilharia, vinte mil da guarda, cem mil alemães!
 - Isso, sire, perfaz um total de duzentos e sessenta e sete mil homens...
 - Bom!... Vou buscar cinquenta mil ao meu exército da Itália; marcham por Tarvis, e reúnem-se-me na Baviera. Junte-lhes dez mil italianos, dez mil franceses tirados da Dalmácia, e eis-nos com mais setenta mil homens.
 - O que nos dará trezentos e trinta e sete mil.
 - Pois bem, vai ver que de repente passamos a ter gente a mais.
 - Espero o complemento, sire.
 - Esquece os meus requerimentos, senhor; esquece que o vosso senado acaba de autorizar, em Setembro último, dois recrutamentos.
 - Um, o de 1809, está já em armas; o de 1810, segundo os termos da lei, só deverá servir no interior, durante o primeiro ano.
 - Sim, senhor. Mas crê que para cento e quinze departamentos, oitenta mil homens é recrutamento suficiente? Não, elevo o recrutamento para cem mil, e faço um rateio de vinte mil sobre as classes de 1809, 1808, 1807 e 1806. Assim, obterei mais oitenta mil homens, senhor. e oitenta mil homens feitos, de vinte, vinte e um, vinte e dois e vinte e três anos, enquanto os de 1810 não passam dos dezoito anos. Assim, poderei, sem inconveniente, deixar esses de reserva.
 - Sire, os cento e quinze Departamentos não fornecem todos os anos mais do que trinta e sete mil homens que tenham atingido a idade do serviço militar. Ir buscar cem mil sobre trinta e sete mil é o mesmo que retirar mais de um quarto, e não há população que não pereça se todos os anos lhe sangrarem um quarto dos varões que chegaram à idade viril.
 - E quem lhe disse que o faremos todos os anos? Tomo-os por quatro anos, e liberto definitivamente as classes anteriores... Uma vez não é um costume, e é a primeira e a última. Entregarei esses oitenta mil homens por formar, à minha guarda. Ela não se atrapalhará.
Será trabalho para três meses. Antes do fim de Abril, marcharei sobre o Danúbio com quatrocentos mil homens. Nessa altura, tal como o faz agora, o austríaco contará as minhas legiões, e, asseguro-lhe, se me forçar a combater, a Europa ficará apavorada com os golpes que lhe aplicarei! Cambacérès soltou um suspiro.
 - Vossa majestade não tem outras ordens para dar-me?
 - Que o corpo legislativo seja reunido amanhã.
 - Está em sessão desde a sua partida, sire...
 - É verdade... Amanhã irei lá, e conhecerá a minha vontade.
Cambacérès fez um movimento para retirar-se, mas regressou:
 - Vossa majestade disse-me para lhe recordar um tal general Malet.
 - Ah! tem razão, mas será com o senhor Fouché que falarei disso. Ordene, quando sair, que me enviem o senhor Fouché, que deve estar no salão verde.
Cambacérès inclinou-se para sair. E quando já estava à porta:
 - Adeus, meu caro arquichanceler! - gritou-lhe Napoleão, com a sua mais acariciadora voz, acompanhando o adeus com um gesto amigo. E com isto conseguiu que o arquichanceler se retirasse mais tranquilo por si mesmo, mas não menos inquieto quanto ao futuro da França.
Mas ele saíra, Napoleão começou a caminhar a largas passadas.
Depois de nove anos de verdadeiro reino - pois o consulado havia sido um reino - havia visto, através da admiração que inspirava, as desconfianças, mesmo as críticas, mas nunca a dúvida.
Duvidava-se! E de quê? Da sua sorte! Chegava-se mesmo a ameaçar! E onde havia ele recolhido as suas primeiras ameaças? No próprio exército, na sua guarda, entre os veteranos!
Com a fatal capitulação, Baylon havia desferido um terrível golpe na sua fama.
Varaus, pelo menos, havia-se feito matar com as três legiões que lhe enviara Augusto. Varus não se rendera. Antes mesmo de ter deixado Valladolid, Napoleão estava ao corrente de tudo o que acabara de dizer-lhe Cambacérès, bem como de ainda muitas outras coisas. Na véspera da sua partida, passara os granadeiros em revista; haviam-lhe dito que esses pretorianos murmuravam acerca do que lhes era deixado na Espanha, queria ver de perto os rostos queimados pelo sol da Itália e do Egipto, a fim de verificar se eles teriam a audácia de se manifestarem descontentes. Apeou-se do cavalo, e passou a pé entre as fileiras. Sombrios e mudos, os granadeiros apresentaram-lhe armas. Nem um único grito de "Viva o imperador!" se fez ouvir. E um só homem murmurou: "Sire, para a França." E foi tudo quanto Napoleão ouviu. Com um movimento irresistível, arrancou-lhe a espingarda das mãos, e, empurrando-o para fora das fileiras, gritou-lhe:
 - Miserável! Merecias que te mandasse fuzilar, e pouco falta para que o faça!
E depois, dirigindo-se a todos:
 - Ah! bem sei, querem regressar a Paris, para voltarem aos vossos hábitos e às vossas amantes. Pois muito bem, vou manter-vos no Exército até aos oitenta anos!
E atirou a espingarda para os braços do granadeiro, que se magoou e a deixou cair.
Nesse momento de desespero, anteviu o general Legendre, um dos signatários da capitulação de Baylon.
Caminhou direito a ele, com um olhar ameaçador.
O general deteve-se, como se os seus pés tivessem criado raízes no chão.
 - A sua mão, general - disse o imperador. O general estendeu a mão, hesitante.
 - Esta mão - prosseguiu o imperador, olhando-a - como é possível que não tenha caído, ao assinar a capitulação de Baylon?
E repudiou-a como teria feito com a mão de um traidor.
O general, que ao assinar mais não fizera do que obedecer a ordens superiores, ficou estupefacto.
Então, Napoleão montou de novo a cavalo, com o rosto congestionado, e reentrou em Valladolid, de onde, como já se disse, partiu na manhã seguinte rumo à França.
Ora bem! Estava ainda na mesma disposição de espírito quando o meirinho, reabrindo a porta, anunciou:
 - Sua excelência o ministro da Polícia.
E o pálido rosto de Fouché, mais branco ainda devido ao medo, apareceu, hesitante, na umbreira da porta.
 - Sim, senhor, compreendo que hesite em apresentar-se diante de mim - disse-lhe Napoleão.
Fouché era uma dessas pessoas que recuam perante o perigo desconhecido, mas que o enfrentam, ou o aguardam, a partir do momento em que lhe conheçam a forma.
 - Eu, sire? - disse ele, levantando a cabeça de cabelos amarelecidos, tez lívida, olhos de um azul faiança e boca largamente fendida. - Eu, o antigo metralhador de Lyon, porque deveria eu hesitar em apresentar-me diante de vossa majestade?
 - Porque eu não sou um Luís XVI; não eu!
 - Vossa majestade quer aludir - e não é a primeira vez - ao meu voto de 19 de Janeiro...
 - E então? E se fizer alusão?
 - Responderei então que, deputado à Convenção Nacional, havia prestado juramento à nação, e não ao rei. E o meu juramento feito à nação, mantive-o.
 - E a quem fez juramento no 13 Termidor, ano VII? Foi a mim?
 - Não, sire.
 - E então porque me serviu tão bem no 18 Brumoso?
 - Vossa majestade recorda a frase de Luís XIV: "O estado sou eu!"?
 - Sim, senhor.
 - Ora bem, sire, no 18 Brumoso, a nação éreis vós. Eis porque vos servi.
 - O que me não impediu de retirar-lhe a pasta da Polícia, em 1802.
 - Vossa majestade esperava ganhar um ministro da Polícia senão mais fiel, pelo menos mais hábil do que eu... E devolveu-me essa pasta em 1804!
Napoleão deu alguns passos ao comprido e à largura, diante da lareira, com a cabeça inclinada sobre o tronco, esfregando nas mãos o papel em que Josefina havia escrito algumas palavras.
Depois, repentinamente, deteve-se e levantou a cabeça.
 - Quem o autorizou - prosseguiu, fixando os olhos de falcão sobre o ministro, como diz Dante - a falar em divórcio à impertraiz?
Se Fouché não estivesse demasiado longe da claridade, poder-se-ia ter-lhe notado uma palidez mais profunda ainda do que a anterior instalar-se-lhe no rosto.
 - Sire - respondeu - creio saber que vossa majestade deseja ardentemente o divórcio.
 - Confiei-lhe eu esse desejo?
 - Disse creio saber; e pensei ser agradável a vossa majestade, preparando a imperatriz para esse sacrifício.
 - Sim, e brutalmente, segundo os seus hábitos.
 - Sire, a maneira de ser de cada um não se pode alterar. Comecei por ser prefeito nos Oratórios, e por mandar em crianças rebeldes. Sempre me ficou algo das minhas impaciências de jovem. Sou uma árvore de fruto: não me peçam flores.
 - Senhor Fouché, o seu amigo (e Napoleão deu ênfase a estas duas palavras) senhor Talleyrand só faz uma recomendação aos seus servidores: "Nada de zelo!"
"Tomar-lhe-ei esse axioma para aplicá-lo a si. Mostrou demasiado zelo, desta vez. Não autorizo que tomem iniciativas em meu nome, nos assuntos do Estado, e tão-pouco nos familiares.
Fouché manteve-se em silêncio.
 - E a propósito do senhor Talleyrand - prosseguiu o imperador - como é que, tendo-os deixado em mortal inimizade, vos reencontro amigos íntimos? Durante dez anos de ódio e de recíprocas desconsiderações, ouvi-o, a si, chamar-lhe diplomata frívolo, e a ele, tratá-lo de intriguista grosseiro. A si, ouvi-o criticar uma diplomacia que, segundo a sua opinião, se fazia por si só, ajudada pelas vitórias. A ele, ouvi-o apontar a inoportunidade de uma polícia a quem a submissão geral facilitava a tarefa, e se tornava mesmo inútil.
"Vejamos, a situação será assim tão grave que, sacrificando-se à nação, como costuma dizer, terão esquecido todos os vossos ressentimentos? Aproximados por necessidades oficiais, reconciliaram-se publicamente, e em público se visitaram. Pensaram, muito baixinho, que era bem provável que na Espanha eu conhecesse o punhal de qualquer fanático, ou que, na Áustria, uma bala de canhão levasse ao mesmo resultado. Não é verdade que falaram disto?
- Sire, os punhais espanhóis são conhecidos dos grandes reis - respondeu Fouché. - Testemunha-o Henrique IV; e quanto às balas de canhão austriacas, conheceram-nas grandes capitães. Testemunham-no Turenne e o marechal Berwick.
 - Responde com uma lisonja a um facto, senhor. Não morri, e não desejo que partilhem a minha sucessão enquanto estiver vivo.
 - Sire, esse pensamento esteve longe de todas as mentes, e sobretudo da minha.
 - Tão-pouco longe do vosso pensamento, pelo contrário, que o meu sucessor já estava escolhido, e designado por si! Porque não o sagra antecipadamente? O momento é propício: o papa acaba de excomungar-me! Ah! Essa! Mas julga então, senhor, que a coroa da frança cabe em todas as cabeças? Pode fazer-se de um grão-duque saxão um rei saxão, senhor; mas não se faz do grão-duque Berry rei da França ou imperador dos franceses. Para ser um deles, terá de ser do sangue de São Luís; mas ser o outro, há que ter o meu sangue. Decerto, é verdade que tem um processo, senhor, de apressar o momento em que eu não serei estorvo.
 - Sire - exclamou Fouché - espero que vossa majestade mo indique.
 - Eh! Raios, basta que deixe os conspiradores impunes.
 - Conspiram contra vossa majestade, e ficaram impunes? Sire, dê-me os nomes.
 - Oh! Não é muito difícil, e eu próprio lhe vou dar três nomes.
 - Vossa magestade quer referir-se à pretensa conspiração descoberta pelo vosso prefeito de Polícia, o senhor Dubois?
 - Sim, o meu Prefeito de Polícia, o senhor Dubois, que não é tão devotado como o senhor à nação, senhor Fouché, mas que me é devotado, a mim!
Fouché ergueu ligeiramente os ombros. Mas por muito imperceptível que fosse este movimento, não escapou a Napoleão.
 - Encolha os ombros, já que não ousa levantar a voz! - prosseguiu Napoleão, de sobrolho franzido. - Não gosto de espíritos fortes, nesta coisa de "complots".
 - Vossa majestade conhece os homens em questão?
 - Conheço dois em cada três, senhor. Conheço o general Malet, um incorrigível conspirador...
 - Vossa majestade crê que o general Malet conspire?
 - Tenho a certeza.
 - E vossa majestade teme uma conspiração chefiada por um louco?
 - Engana-se duplamente. Primeiro, nada temo. Segundo, o general Malet não é um louco.
 - Pelo menos, é um monómano.
 - Sim, mas naquilo em que a monomania é terrível, convirá, porquanto consiste em aproveitar, um dia ou outro, a minha ausência, em esperar que eu esteja a trezentas, a quatrocentas, a seiscentas léguas, talvez, para espalhar repentinamente o boato da minha morte, e, com essa notícia, operar uma sublevação.
 - Vossa majestade acredita ser possível uma tal coisa?
 - Enquanto não tiver um herdeiro, sim.
 - Por isso mesmo me aventurei a falar de divórcio a sua majestade a imperatriz.
 - Não falemos mais nisso... Menospreza Malet. Voltou a pô-lo em liberdade. Saiba então uma coisa, senhor, uma coisa que o meu ministro da Polícia deveria ter-me ensinado, e que eu vou ensinar ao meu ministro da Polícia: que Malet não passa de um dos fios de uma conspiração invisível que se trama no próprio seio do exército.
 - Ah! sim, os filadélfios... Vossa majestade acredita na magia do coronel Oudet.
 - Creio em Arena, senhor; creio em Cadoucal; creio em Moreau. O general Malet será um desses sonhadores, um desses loucos, um desses iluminados, se assim quiser. Mas um desses loucos perigosos para os quais são necessárias a choça e o colete de forças. O senhor,! o senhor foi quem pôs esse louco em liberdade! Quanto ao segundo dos conspiradores, o senhor Servan, será) este um louco, um regicida?
 - Como eu, sire.
 - Sim, mas um regicida de escola da Gironda, um antigo amante de Madame Roland. Um homem que, quando ministro de Luís XVI, traiu este rei, e que, para vingar-se da sua desgraça, fez o 10 de Agosto.
 - Com o povo.
 - Eh! senhor, o povo só faz aquilo que lhe mandam fazer! Veja os seus dois subúrbios, o de Saint-Marceau e o de San-Antoine, tão agitados com os senhores Alexandre e Santerre. Bulem hoje, que tenho o pulso e a mão estendidos sobre eles?... Não conheço o terceiro fanático, um tal senhor Florent Guyot. Mas conheço Malet e Servan. Desconfie desses dois! Além disso, um deles é general, e o outro coronel. E é um mau exemplo que dois oficiais conspirem, sob um governo militar.
 - Sire, mantê-los-emos vigiados.
- E agora, senhor, resta-me fazer-lhe a crítica mais grave que contra si tenho.
Fouché inclinou-se, como homem que aguarda. - Que fez à opinião pública, senhor?
Um outro ministro teria pedido a repetição da pergunta. Mas Fouché compreendeu perfeitamente. Só que, para ganhar tempo de responder, compôs o ar de ter compreendido mal.
 - A opinião pública? - repetiu. - Pergunto-me o que quererá dizer vossa majestade.
 - Quero dizer - recomeçou Napoleão, cuja cólera transpirava nas palavras - que deixou os espíritos perderem-se nos acontecimentos do dia, que permitiu que a minha última campanha, marcada por êxitos a cada passo, fosse interpretada como uma campanha fecunda em reveses. São os propósitos de Paris que sublevam o estrangeiro! Sabe por onde começam? Por Petersburgo! Tenho inimigos, graças a Deus. Ora bem! O senhor permite-lhes a palavra; deixa que eles digam que a minha autoridade está enfraquecida, que a nação está desgostosa, da minha política, e que os meus meios de acção estão diminuídos. Resulta daí que o austríaco, crédulo em todas estas patacoadas, julga ter chegado o momento favorável, e quer atacar-me... Mas, sejam inimigos internos, sejam inimigos externos, exterminá-los-ei a todos! A propósito, recebeu a minha carta de 31 de Dezembro?
 - Qual, sire?
 - A de Bénévent.
 - A que se referia aos filhos dos emigrados?
 - Parece-me que se esqueceu um pouco desse assunto.
 - Vossa majestade deseja que lha repita, palavra por palavra?
 - Não me desagrada absolutamente nada assegurar-me da sua memória. Vejamos.
 - Em primeiro lugar - disse Fouché, retirando do bolso um sobrescrito - aqui está a carta.
E do sobrescrito retirou a carta.
 - Ah! ah! - exclamou Napoleão. - Tinha-a consigo?
 - A correspondência autografada por vossa majestade nunca me abandona, sire. Quando eu era prefeito entre os Oratórios, lia todas as manhãs o meu breviário. Desde que sou ministro da Polícia, leio todas as manhãs as cartas de vossa majestade. E agora - prosseguiu Fouché, sem abrir a carta - vou dizer o conteúdo deste despacho...
 - Oh! senhor, não é o texto que lhe peço, antes a substância.
 - Muito bem. Vossa majestade dizia-me que famílias de emigrados haviam subtraído os filhos à conscrição, mantendo-os numa culposa clandestinidade. Acrescentava que vossa majestade desejava que eu mandasse compilar uma lista de dez dessas famílias por cada departamento, e de cinquenta em relação a Paris, a fim de serem enviados à escola militar de Saint-Cyr todos os jovens dessas famílias que estivessem em idade superior aos dezoito anos. Vossa majestade acrescentava ainda que, em caso de queixas, eu deveria responder pura e simplesmente que essa era a vontade do imperador...
 - Está bem! Não quero que devido a essa feia divisão de famílias que não estão integradas no sistema, uma fracção da França, por ínfima que seja, possa subtrair-se aos esforços que faz a actual geração para glória da geração futura... Agora, vá! É tudo quanto tinha para dizer-lhe.
Fouché inclinou-se. Mas, como não se retirasse com a presteza de um homem satisfeito, Napoleão perguntou-lhe:
 - Bom? Que há?
 - Sire - respondeu o ministro - vossa majestade disse-me muitas coisas em prova de que a minha polícia está a ser mal conduzida.
 - E então?
 - Não direi mais do que uma pequena frase para provar o contrário. Em Bayonne, vossa majestade deteve-se duas horas.
 - Sim.
 - Vossa majestade pediu um relatório.
 - Um relatório?
 - Sim, sobre as causas que julgava poder ter contra mim. Relatório que tenderia à minha demissão e à minha substituição pelo senhor Savary.
 - E esse relatório está assinado?
 - Está assinado, sire. E da mesma forma que tenho comigo as cartas de vossa majestade, tem vossa majestade esse relatório... aí, sire, no bolso esquerdo do vosso casaco.
E com o dedo Fouché apontou o local do uniforme em que deveria estar o bolso.
 - Está a ver, sire, que a minha polícia é tão bem feita, pelo menos em determinados assuntos, como as dos senhores Lenoir e Sartines.
E, sem aguardar a resposta do imperador, Fouché, que estava perto da porta, saiu recuando.
Napoleão nada acrescentou. Mas levou a mão ao bolso, retirou de lá uma folha grande de papel dobrada em quatro, abriu-a, passou sobre ela os olhos, depois dirigiu-os para a porta, e, com um imperceptível sorriso, afirmou:
"Ah! Tem razão, é ainda o mais hábil."
E mais baixinho:
"Porque não hás-de ser também o mais honesto?"
Então, desfazendo o papel em bocados, lançou estes para a lareira.
Nesse instante, o meirinho anunciou:
 - Sua excelência o camareiro-mor.
E o sorridente rosto do príncipe de Bénévent apareceu atrás do meirinho. Os poetas nada inventam.
Quando, em seguida aos exércitos prussianos terem combatido em Valmy, esse príncipe da dúvida e rei do sofisma chamado Goethe escreveu Fausto, não pensara ele, de certeza, que Deus havia já criado o seu herói humano, tão bem quanto ele criara a sua personagem diabólica, e que ambos iriam incessantemente aparecer em cena, um com a sua tez de sonhador, o outro com o seu pé bipartido.
Apenas que o Fausto de Deus se chamou Napoleão; e o Mefistófeles de Deus chama-se Talleyrand.
Da mesma forma que Fausto tudo sondou na ciência, Napoleão tudo dominou na política. E da mesma forma que Mefistófeles perdeu Fausto ao dizer-lhe Ainda! Ainda!, também Talleyrand perdeu Napoleão ao dizer-lhe Sempre! Sempre!
Igualmente, tal como Fausto nesses momentos de desgosto tenta livrar-se de Mefistófeles, Napoleão, nas suas horas de dúvida, tenta livrar-se de Talleyrand. No entanto, como se estivessem ligados um ao outro por qualquer pacto infernal, só foram separados quando a alma do sonhador, do poeta, do conquistador, caiu no abismo.
Talvez que de entre as três pessoas que o imperador mandara chamar aquela cujo coração batesse mais forte fosse o senhor Talleyrand. Mas de certeza que era também aquele que se apresentava mais sorridente.
Napoleão encarou-o com uma espécie de estremecimento nervoso para depois, estendendo a mão a fim de que ele não penetrasse mais no gabinete, lhe dizer:
 - Príncipe de Bénévent, apenas tenho duas palavras a dizer-lhe. Aquilo que mais detesto no mundo, não são as pessoas que me desiludem. São aquelas que, para me desiludirem, se desiludem a si próprias. Espalha por todo o lado que foi estranho à morte do duque de Enghien. Por todo o lado afirma que é estranho à guerra na Espanha. Estranho à morte do duque de Enghien? O senhor aconselhou-ma, e por escrito! Estranho à guerra da Espanha? Tenho cartas nas quais o senhor me acusa de recomeçar a política de Luís XIV!
"Senhor Talleyrand, para mim, a falta de memória é uma grande pecha. Trar-me-á amanhã a sua chave de camareiro, que é não só destinada, como ainda dada antecipadamente, ao senhor Montesquieu.
Depois, sem acrescentar uma só palavra, sem se despedir do príncipe, sem dar-lhe a mínima atenção, Napoleão saiu pela porta que conduzia aos aposentos de Josefina.
O senhor Talleyrand cambaleou como no dia em que, nos degraus da igreja de Saint-Denis, Maubreuil o desequilibrara com uma bofetada. Mas desta vez o choque apenas abalara a sua sorte, e o camareiro-mor contava com Satã para lhe fazer ganhar mais do que aquilo que acabara de perder, tal como aspirara Mefistófeles.
Recorda-se agora que nessa mesma noite Napoleão havia dito a Cambacérès que antes do fim de Abril estaria nas margens do Danúbio com quatrocentos mil homens. Eis porque, a 17 de Abril, na parte da manhã, toda a população de Donauwõrth enchia as ruas e as praças da cidade.
Esperava Napoleão.
III.
Os Gémeos
CERCA das nove horas da manhã, produziu-se um grande movimento entre a multidão, e tal como rastilho de pólvora a arder, os gritos correram da extremidade da Rua Dilligen até ao centro da cidade, anunciando que algo de novo acontecia.
O que acontecia, era a chegada de um correio vestido de verde, com galões de ouro, e que precedia a viatura do imperador, a qual rolava a meia légua de distância.
Franqueou rapidamente a Rua Dillingen, fazendo sinais com o pingalim, a fim de que se afastassem à sua passagem. Depois meteu pelas tortuosas ruas que levavam até ao cimo da cidade, reapareceu na praça do Castelo, e meteu pela maciça porta da antiga abadia de Santa Cruz que fora transformada em palácio real.
Ali haviam sido preparados os alojamentos para o imperador, que era esperado pelo major-general Berthier.
Aliás, a chegada do correio nada de novo trouxera ao príncipe de Neuchâtel: utilizando um excelente binóculo de campanha, e colocado no terraço da abadia, dez minutos antes da chegada do correio havia reconhecido as viaturas imperiais avançando a toda a brida pela estrada. A 9 de Abril, o arquiduque Carlos havia mandado para Munique a seguinte carta, dirigida ao general em chefe do exército francês (a carta não tinha qualquer outra designação. Seria o imperador Napoleão que o arquiduque Carlos designava com aquele título, pelo que para ele, tal como para o abade Loriquet, o marquês Bonaparte não seria ainda mais do que o general em chefe de sua majestade Luís XVIII? Se assim era, o arquiduque procurava assim o confronto!). Mas, fosse quem fosse o general em chefe, o marechal, o príncipe, o rei ou o imperador que era designado sob aquele título, eis o texto da carta:
"Seguindo a declaração de sua majestade o imperador da Áustria, previno o senhor general em chefe do exército francês de que tenho ordens de marchar com tropas colocadas sob o meu comando e tratar como inimigos todos aqueles que me opuserem resistência."
Esta carta estava datada de 9. A 12, à noite, o imperador Napoleão, nessa data nas Tulherias, havia sido informado por um despacho desse início de hostilidades.
Partira a 13, pela manhã, e a 16 chegara a Dillingen, onde se encontrara com o rei da Baviera, que havia abandonado a respectiva capital e retirara cerca de vinte léguas.
Fatigado por setenta e duas horas de viagem, Napoleão detivera-se em Dillingen para ali passar a noite, e prometera ao rei fugitivo que dentro de quinze dias estaria na sua capital.
Na manhã seguinte, às sete horas, partira novamente, e sem dúvida para conseguir recuperar o tempo perdido na noite de descanso, chegava a toda a brida.
Passou como um raio por entre as ruas, meteu pela rampa da montanha sem abrandar o passo dos cavalos, e finalmente apeou-se no pátio do castelo, no fim das escadarias, onde era aguardado pelo major-general.
Com Napoleão, os cumprimentos eram rápidos. Deixou tombar um "Bom dia, Berthier!" que o príncipe de Neuchâtel recebeu grunhindo e roendo as unhas, como era seu hábito, fez um sinal com a mão ao restante Estado-Maior e, guiado por uma dezena de criados colocados em escalões, correu para os alojamentos que lhe haviam sido preparados.
Um grande mapa da Baviera, no qual cada árvore, cada rio, cada vale, cada aldeia e até cada casa estavam indicados, aguardava-o, completamente aberto, sobre uma imensa mesa.
Napoleão correu para essa mesa, enquanto um ajudante de campo abria e pousava sobre uma mesinha de pé de galo a pasta de viagem, e o criado de quarto retirava da embalagem de couro o leito do imperador, que colocou a um canto do mesmo salão.
 - Bem - diz ele a Berthier, pousando um dedo sobre Donauwõrth, ou seja, na localidade que habitava. - Está em comunicação com Davoust?
 - Sim, sire - respondeu Merthier.
 - Com Massena?
 - Sim, sire.
 - Com Oudinot?
 - Sim, sire.
 - Nesse caso, tudo corre bem. Onde estão eles?
 - O marechal Davoust está em Ratisbonne; o marechal Massena e o general Oudinot estão em Augsburgo; oficiais enviados por cada um deles aguardavam vossa majestade, para o informarem.
 - Enviou espiões?
 - Dois deles já regressaram. Aguardo o terceiro, mais hábil.
 - Que fez mais? .
 - Tanto quanto me foi possível, conformei-me ao plano de vossa majestade, que é o de marchar a direito de Ratisbonne a Viena, pela grande via do Danúbio,; confiando à corrente os doentes, os feridos, tudo, enfim, que possa ser peso para o exército.
 - Bom! Barcos não nos faltarão. Mandei comprar todos os que fossem encontrados nos rios e nas correntes da Baviera, e devem descer o Danúbio à medida que franqueiem os afluentes. Em seguida, arranjei mil e duzentos dos melhores marinheiros de Bolonha, para o caso de termos que travar qualquer combate nas ilhas. Mandou comprar pás e picaretas?
 - Cinquenta mil. São suficientes?
 - Não são demasiadas. Em suma, que ordenou depois da noite de 13, que passei aqui?
 - Primeiro, ordenei que todas as tropas se concentrassem em Ratisbonne...
 - Não recebeu a minha carta com ordens contrárias para que tudo se reunisse em Augsburgo?
 - Claro. E em consequência, dei a contra-ordem a Oudinot e ao seu corpo de exército, que estava já a caminho. Mas julguei dever deixar Davoust em Ratisbonne.
 - Nesse caso, o exército está dividido em dois corpos, um em Ratisbonne e outro em Augsburgo?
 - Com os bávaros entre eles.
 - Houve alguns incidentes num sítio ou no outro?
 - Sim, sire, em Lanshut.
 - Entre?...
 - Entre os austríacos e os bávaros.
 - Que divisão?
 - A divisão Duroc.
 - Os bávaros portaram-se bem?
 - Perfeitamente, sire. No entanto, foram forçados a retirar diante das forças montadas.
 - Onde estão, neste momento?
 - Ali, sire, na floresta de Dúrnbach, protegidos pelo Abens.
 - E quantos são?
 - Vinte e sete mil, aproximadamente.
 - E o arquiduque, onde está?
 - Entre Isar e Ratisbonne, sire. Mas a região está de tal forma defendida, que é impossível conseguir-se informações positivas.
 - Mande entrar o oficial que vem da parte do marechal Davoust.
Berthier transmitiu a ordem a um ajudante de campo que abriu uma porta e introduziu um jovem oficial dos caçadores a cavalo, que parecia ter entre vinte e cinco e vinte e seis anos.
O imperador lançou ao recém-vindo uma olhadela rápida, e fez um trejeito de satisfação. Era impossível pretender-se mais belo e mais elegante cavaleiro.
 - Vem de Ratisbonne, tenente? - perguntou o imperador.
 - Sim, sire - respondeu o oficial.
 - A que horas saiu de lá?
 - Era uma hora da manhã, sire.
 - É enviado de Davoust?
 - Sim, sire.
 - Em que situação estava ele, quando de lá saiu?
 - Sire, tinha quatro divisões de infantaria, uma divisão de couraceiros e uma divisão de cavalaria ligeira.
 - No total?...
 - Cinquenta mil homens, mais ou menos, sire. Mas os generais Nansouty e Espagne, com a cavalaria pesada e uma parte da cavalaria ligeira, e o general Demont, com os quatro batalhões e a artilharia, passaram para a margem esquerda do Danúbio.
 - E a concentração em torno de Ratisbonne fez-se sem dificuldades?
 - Sire, as divisões Gudin, Morand e Saint-Hilaire chegaram sem dar um único tiro. Mas a divisão Friant, que as cobria, esteve em constante contacto com o inimigo, e se bem que tenha destruído à passagem todas as pontes do Wils, é provável que hoje o marechal Davoust esteja ou venha a ser atacado em Ratisbonne.
 - Quantas horas levou, diz o senhor, para vir de Ratisbonne aqui?
 - Sete horas, sire.
 - Distância?...
 - Vinte e sete léguas.
 - Estará demasiado fatigado para partir dentro de duas horas?
 - Vossa majestade sabe bem que nunca nos fatigamos ao vosso serviço. Que me dêem outro cavalo, e partirei quando vossa majestade o entender.
 - O seu nome?
 - Tenente Richard.
 - Vá repousar duas horas, tenente. Mas esteja preparado no termo delas.
O tenente Richard saudou e saiu. Nesse momento, um ajudante de campo falou baixinho a Berthier.
 - Mande entrar o enviado do marechal Massena - ordenou o imperador.
 - Sire - respondeu Berthier - creio que não será necessário. Interroguei-o, e sei de tudo o que é útil saber-se. Massena está em Augsburgo com Oudinot, Molitor, Boudet, os bávaros e os wurtemburgueses - ou seja: com noventa mil homens, sensivelmente. Mas creio ter algo de melhor para oferecer a vossa majestade.
 - O quê?
 - O espião regressou.
 - Ah!
 - Passou através das linhas austríacas.
 - Mande-o entrar.
 - Vossa majestade sabe que na maior parte dos casos estes homens se recusam a falar diante de muita gente.
 - Deixem-me só com ele.
 - Vossa majestade não receia?...
 - Que quer que eu receie?
 - Fala-se de iluminados, de fanáticos.
 - Mande-o entrar primeiro, e eu verei bem nos olhos dele se poderá deixar-me só com o recém-vindo.
Berthier foi abrir uma pequena porta que dava para um gabinete, e fez sair de lá um homem com uma trintena de anos, coberto com roupas de lenhador da Floresta Negra.
O homem deu alguns passos na sala, e depois deteve-se diante de Napoleão, fazendo-lhe a saudação militar.
 - Que Deus guarde vossa majestade de toda a má sorte! - disse ele.
O imperador olhou-o.
 - Oh! oh! Estamos em terra conhecida, meu bravo!
 - Sire, fui eu quem, na véspera de Austerlitz, lhe deu, no acampamento, as informações acerca das posições do exército russo e austríaco.
 - Informações perfeitamente exactas, mestre Schlick.
 - Ah! raios e coriscos! - exclamou o falso lenhador, usando a expressão mais em uso entre os alemães - o imperador reconhece-me! Nesse caso, tudo vai bem!
 - Sim - diz o imperador - tudo vai bem. E com um sinal ao chefe do estado-maior:
 - Creio que sem inconveniente poderá deixar-me só com este homem.
Era provavelmente essa a opinião do príncipe de Neuchâtel, pois retirou-se com os seus ajudantes de campo sem a menor observação.
 - Agora - disse o imperador - despachemo-nos um pouco. Podes dar-me novidades acerca do arquiduque?
 - Dele, e dos seus exércitos, sire?
 - De ambos, se possível.
 - Sim, posso falar-vos de ambos. Um dos meus primos serve nos exércitos dele, e um dos meus cunhados é seu criado de quarto.
 - Onde está ele, onde está o grosso do exército?
 - Sem contar com os cinquenta mil homens do general Bellegarde, que marcham da Boémia sobre o Danúbio, e que devem entrar em combate com o marechal Davoust, em Ratisbonne, o arquiduque tem à mão cento e cinquenta mil homens, mais ou menos. A 10 de Abril último, o príncipe, com cerca de sessenta mil homens, atravessou o Inn.
 - Poderás indicar num mapa todos os movimentos de que me falas?
 - Porque não? Andei na escola, graças a Deus!
O imperador apontou com o dedo ao espião o mapa aberto sobre a mesa.
 - Então, procura o Inn nesse mapa.
O espião apenas necessitou de lançar um golpe de vista, e colocou o dedo entre Passau e Tittmaning.
 - Olhe, sire - diz ele - foi aqui, em Braunau, que o arquiduque atravessou o rio. Ao mesmo tempo, o general Hohenzollern, com trinta mil homens, atravessou o mesmo rio em Mulheim. Finalmente, um outro corpo com quarenta mil homens comandado... não sei dizer-vos por quem - só se pode estar num sítio, e preferi ficar perto do arquiduque, a quem não perdi de vista - atravessou o rio em Scharding.
 - Perto do Danúbio, portanto?
 - Exactamente, sire.
 - Mas como é que, tendo passado o Inn a 10, os austríacos não avançaram mais?
 - Ah! porque ficaram atolados durante quatro dias entre o Inn e o Isar. Só ontem passaram o Isar, diante de Landshut, e ali as coisas aqueceram.
 - Com os bávaros?
 - Com os bávaros. Só que como estes, com os seus vinte e sete ou vinte e oito mil homens não os podiam deter, retiraram-se para a floresta de Durnach.
 - Assim sendo, não estamos a mais de uma dúzia de léguas do inimigo?
 - Nem tanto, porque, desde esta manhã, o inimigo terá progredido. Certo que se não anda depressa quando se é obrigado a atravessar uma mão cheia de pequenos rios - tais como o Abbens, à esquerda, e o grande e pequeno Laber, à direita - bosques, desfiladeiros, pântanos, e isto apenas com dois itinerários à escolha - o de Landshut a Neustadt, e o de Landshut a Kelheim.
 - Restava-lhe ainda o de Eckmuhl, que leva mais directamente a Ratisbonne.
 - Sire, vi as tropas austríacas meterem-se pelos outros dois, e, sabendo que vossa majestade deveria ter chegado hoje a Donauwõrth e decerto desejaria ter novidades, parti, e eis-me aqui.
 - Está bem, não me informas de nada de especial. Mas, enfim, disseste-me aquilo que sabias.
 - Que vossa majestade me faça outras perguntas.
 - Acerca de quê?
 - Sobre o ânimo austríaco, por exemplo; sobre as sociedades secretas e sobre a Santa Vehme.
 - Como assim! Também te ocupas de coisas dessas?
 - Ocupo-me de tudo o que diga respeito à minha condição, sire.
 - Ora bem, vejamos então, melhor não posso perguntar do que aquilo que pensa de nós a Alemanha.
 - Está simplesmente exasperada contra os franceses, os quais, não contentes em batê-la e em humilhá-la, a ocupam e a devoram.
 - Portanto, os teus alemães não conhecem o provérbio do marechal Saxe: "é preciso que a guerra alimente a guerra".
 - Decerto, não o conhecem. Mas eles prefeririam ser alimentados a alimentar os outros. Chegou-se a um ponto, sire, em que se fala em afastar os príncipes que não sabem afastar-se de vós.
 - Ah! ah! E por que meio?
 - Por dois meios. O primeiro, através de uma insurreição geral.
Napoleão fez com os lábios um trejeito desdenhoso.
 - Isso poderia acontecer, se eu fosse batido pelo arquiduque. Mas...
 - Mas?... - repetiu o espião.
 - Mas eu vou derrotá-lo, e por consequência, a insurreição não terá lugar. Passemos então ao segundo meio.
 - O segundo, é um golpe de punhal, sire.
 - Bah! Não se assassina um homem como eu.
 - Mas também César foi assassinado.
 - Ah! as circunstâncias eram bem diferentes. Além disso, foi uma grande felicidade para César, ter sido morto. Tinha qualquer coisa como cinquenta e três anos, quer dizer, a idade em que o génio do homem começa a declinar. Fora sempre feliz.
"A Sorte gosta dos jovens!" - como dizia Luís XIV à senhora Villeroy. Provavelmente iria virar-lhe as costas.
"Um ou dois desaires, e César deixaria de ser um Alexandre. Seria um Pyrrhus ou um Aníbal. Teve a felicidade de encontrar uma vintena de patetas que não compreenderam que César não era romano, antes o espírito de Roma. Mataram o imperador; mas do próprio sangue do imperador nasceu o império! Fique tranquilo, não tenho a idade de César. A França não é em 1809 como era Roma no ano 44 antes de Cristo. A mim não me matarão, mestre Schlick.
E Napoleão pôs-se a rir desta tirada histórica que fizera para um camponês bávaro - mas a verdade é que se dirigia menos a esse camponês do que a si próprio.
 - Tudo isso é possível - insistiu Schlick. - Mas nem por isso deixo de aconselhar vossa majestade a ter em conta as mãos daqueles que se aproximarem demasiado, e sobretudo quando essas mãos pertencerem a membros da União da Virtude.
 - Julgava todas essas associações extintas.
 - Sire, os príncipes alemães, e a rainha Luísa, sobretudo, repuseram-nas em vigor. De forma que a esta hora, há talvez na Alemanha dois mil jovens que fizeram votos de assassiná-lo.
 - E essa seita tem os seus locais de reunião?
 - Sem dúvida, têm não só os seus pontos de reunião, mas ainda as suas fórmulas, as suas iniciações, uma divisa e sinais de reconhecimento.
 - Como sabes tu isso?
 - Sou um deles.
Se bem que involuntariamente, Napoleão deu um passo à retaguarda.
 - Oh! nada tema, sire. Sou um deles, mas tanto como o escudo pertence à armadura: só para aparar os golpes.
 - E onde se reúnem eles?
 - Em todo o lado onde haja subterrâneos ou ruínas. Os alemães gostam muito do pitoresco, como vossa majestade sabe, e em tudo introduzem a poesia. Olhe, por exemplo, sire, se vossa majestade for a Abensberg, e visitar o velho castelo - o castelo em ruínas que coroa a montanha que domina Abens - ... pois bem, foi numa das salas desse castelo que eu fui admitido, há oito dias...
 - Está bem - cortou Napoleão. - Sem dar a essa informação mais valor do que ela merece, não deixarei no entanto de tê-la em conta. Vai! Eu velarei para que sejas bem tratado...
Schlick saudou e saiu pela mesma porta por onde entrara.
Napoleão ficou pensativo.
"Um golpe de punhal! - murmurou ele. - Tem razão, cedo é dado, cedo é recebido! Henrique IV, também ele, preparava uma expedição contra a Áustria quando foi morto com um golpe de punhal. Tal como César, havia terminado a sua obra. Mas eu ainda não acabei a minha, e além disso os grandes infortúnios só acontecem ao fim de cinco anos. Aníbal, César, Henrique IV... É certo que há Alexandre, morto aos trinta e três anos. Mas morrer como Alexandre não é uma infelicidade..."
Nesse momento, entrou um ajudante de campo.
 - Que há? - pergunta Napoleão.
 - Sire, é um oficial que chega do exército da Itália - informa o ajudante de campo - e vem da parte do vice-rei. Vossa Majestade quer recebê-lo?
 - Sim, sem dúvida, e neste mesmo instante - respondeu Napoleão. - Que entre!
 - Entre, senhor - disse o ajudante de campo.
O oficial apareceu só na soleira da porta, segurando na mão o chapéu de três bicos.
Tratava-se de um jovem de vinte e cinco a vinte e seis anos, usando uniforme dos oficiais do estado maior do vice-rei - ou seja: uniforme azul com platinas de prata e dólman bordado a prata.
Quanto ao aspecto físico, forçosamente que tinha qualquer coisa bem particular, porque, ao vê-lo, Napoleão, que ia falar, deteve-se repentinamente. Depois, mirando o jovem dos pés à cabeça, perguntou-lhe:
 - A que propósito vem essa mascarada, senhor?
O jovem olhou em torno, para saber a quem se destinava o reparo. Mas, ao ver que estava sozinho com o imperador:
 - Sire, desculpe-me, mas não compreendo.
 - A que propósito esse uniforme azul, em vez do uniforme verde que trazia há momentos?
 - Sire, há dois anos que tenho a honra de fazer parte do estado-maior de sua alteza o vice-rei, e nunca usei outro uniforme que não este sob o qual tenho a honra de me apresentar diante de si.
 - Quando chegou?
 - Acabei de descer do cavalo, sire.
 - De onde vem?
 - De Pordenone.
 - Como se chama?
 - Tenente Richard.
Napoleão olhou para o jovem com maior atenção ainda.
 - Tem alguma carta de Eugénio que o acredite junto de mim?
 - Sim, sire.
o jovem oficial tirou do bolso uma carta com as
insígnias do vice-rei da Itália.
 - E se essa carta lhe fosse tirada - perguntou Napoleão - ou se a tivesse perdido?
 - Sua alteza far-me-ia pagar com a vida.
 - Ah! essa é boa, senhor! Quererá dizer-me como é possível que há uma hora tenha chegado de Ratisbonne em uniforme de caçador da guarda, e que chegue agora, há dez minutos, de Pordenone, vestido de oficial do estado-maior de Eugénio? Como é possível, enfim, que tenha sido encarregado de simultaneamente me dar notícias de Davoust e do vice-rei da Itália?
 - Perdão, sire, mas vossa majestade não disse que chegou há uma hora, vindo da parte do marechal Davoust, um oficial dos caçadores da guarda?
 - Há uma hora, sim.
 - De vinte e cinco ou vinte e seis anos?
 - Com a sua idade.
 - Que é parecido comigo?
 - Assim me parece!
 - E que se chama?... Que vossa majestade me desculpe o interrogatório, mas estou tão contente!
 - Que se chama tenente Richard.
 - É meu irmão, sire! Meu irmão gémeo! Há cinco anos que nos não vimos.
 - Ah! compreendo... Pois bem, vá vê-lo.
 - Oh! sire, que eu possa abraçá-lo, ao caro Paulo, e volto a partir no mesmo instante.
 - Está em condições de voltar a partir?
 - Sire, espero ter a honra de ser encarregado das vossas ordens...
 - Pois bem, vá abraçar seu irmão, e fique pronto para partir.
O jovem, no cúmulo da alegria, saudou e saiu.
Uma vez só, Napoleão abriu a carta.
Às primeiras linhas, a sua fronte cobriu-se de uma sombra.
"Oh, Eugénio, Eugênio! - murmura ele - a minha ternura por ti cegou-me. Bom coronel, menos bom general, mau general em chefe!... O exército em retirada na Sicília, toda uma retaguarda enganada pela falta do general Sahuc! Mais um que está farto da guerra. Felizmente, que não terei necessidade do exército italiano." ... Berthier! Berthier! O chefe do estado-maior acorreu. - O meu plano está feito - diz Napoleão. - Que dez correios estejam prontos a levar as minhas ordens; e que cada ordem seja tripla e levada ao seu destino por três caminhos diferentes.
IV.
As ruínas de Abensberg
ENQUANTO Napoleão entrega a dez mensageiros diferentes as ordens cujo resultado veremos em seguida; enquanto os dois irmãos Paul e Luís Richard - que não se viam desde há cinco anos, e cuja impressionante semelhança havia provocado o singular diálogo que se produziu diante dos nossos olhos - se lançavam nos braços um do outro, com a ternura de dois irmãos a quem uma bala ou um projéctil podem separar a cada instante e para sempre, falemos do que se passava na cidade de Abensberg, situada a sete léguas de Ratisbonne.
Quatro jovens de dezasseis a dezoito anos, um pertencente à universidade de Heidelberg, outro à universidade de Tubingen, o terceiro à universidade de Leipzig e o último à Universidade de Gõttingen, passeavam, de braço dado, cantando a marcha do major Schill, que em Berlim havia desfraldado o estandarte da revolta contra Napoleão. Ao som desse canto, um outro jovem de vinte a vinte e um anos - sentado perto de uma jovem de dezasseis anos que bordava um tamborete enquanto a irmã, criança de seis anos, brincava a um canto com uma boneca - estremeceu, levantou-se e foi à janela.
No momento em que os quatro cantores passaram, aperceberam-se da cabeça do outro que há um segundo havia empalidecido ligeiramente, colada ao vidro, e fizeram-lhe um sinal imperceptível, ao qual respondeu também imperceptivelmente.
A rapariga havia-o seguido com os olhos, inquieta desde que ele se levantara, e por muito disfarçado que tivesse sido o sinal feito, ela notara-o.
 - Que tem, Frederico? - perguntou-lhe ela.
 - Nada, minha querida Margarida - respondeu o jovem, voltando a sentar-se junto dela.
A rapariga que acabamos de designar sob o nome de Margarida era a todos os títulos digna de usar tal nome,, se lhe dermos por padroeira a poética criação de Goethe, que nessa altura fazia furor na Alemanha.
Era loura como uma verdadeira filha de Arminius, com belos olhos azuis, da cor do céu. Os longos cabelos, mal ela os destrançava, caíam até ao chão, e quando se inclinava sobre o Abens, para se mirar, tal uma ondina o faz nas transparentes águas de uma corrente, a água,! que com um murmúrio de espanto se ia lançar no Danúbio, julgava ter reflectido a imagem de qualquer mulher transformada em flor, ou de qualquer flor transformada em mulher.
A irmã não passava ainda de uma dessas encantadoras crianças rosadas e brancas que brincam na areia dourada que o destino semeia às mãos cheias pelo caminho delicioso através do qual se entra na vida.
Quanto ao estudante, que ao ouvir cantar a marcha do major Schill havia corrido a colar o rosto à janela e que, a pedido de Margarida, havia voltado a sentar-se junto dela, era, conforme já dissemos, um jovem de vinte anos, estatura meã, um pouco emagrecido pelas noites em branco ou por um desses terríveis pensamentos que transpiraram sobre a fronte dos Cássius e dos Jacques Clément. Longos cabelos louros, naturalmente encaracolados, caíam-lhe sobre os ombros. A boca era pequena mas firme de contornos, e ao abrir-se deixava ver dentes brancos como pérolas. Uma indefinível expressão de melancolia espalhara-se-lhe pelo rosto.
 - Nada - havia ele dito, ao voltar a sentar-se junto de Margarida. Mas essa resposta não havia sossegado a jovem. E se bem que não houvesse replicado, se bem que aparentemente tivesse até passado a dar redobrada atenção ao bordado, Frederico, que a cobriu com um ardente olhar, havia podido ver duas lágrimas silenciosas formarem-se nas longas pestanas das suas pálpebras, tremerem um instante na respectiva extremidade, tal como duas pérolas, e caírem sobre o tapete.
A pequenita, que havia deixado o canto em que brincava a fim de pedir a Margarida um conselho sobre a vestimenta da boneca, também viu cair essas lágrimas, porque, com a indiscreta e ingénua curiosidade das crianças, perguntou:
 - Porque choras tu, irmã Margarida? Será que Frederico ainda te dá desgostos?
Estas palavras feriram o estudante no mais profundo do coração.
Deixou-se escorregar para os pés da jovem.
 - Oh! Margarida! Querida Margarida - disse ele. - Perdoa-me.
 - O quê? - perguntou ela, levantando para o namorado os belos olhos, ainda húmidos desse rio dos olhos a que chamamos lágrimas.
 - Perdoa-me a minha tristeza, a minha preocupação, a minha própria loucura!
A jovem sacudiu a cabeça, mas nada respondeu.
 - Escuta - prosseguiu Frederico. - Há talvez ainda um processo de podermos ser felizes.
 - Oh! e qual? Diga! - respondeu a jovem. - E se estiver em meu poder ajudá-lo nessa obra dos anjos a que chamam felicidade, mesmo que para isso deva sacrificar a minha vida, será feliz, Staps!
 - Pois bem! Obtenhamos de seu pai autorização para nos casarmos sem tardar e, uma vez casados, fujamos! Deixemos a Alemanha, fujamos para qualquer canto do mundo onde o nome desse homem não seja conhecido.
 - Pede-me duas coisas impossíveis, meu pobre Frederico - respondeu a jovem. - Abandonar meu pai! Bem sabe - e sabe-o desde que pela primeira vez me disse que me amava, e que eu lhe respondi, na simplicidade do meu coração, que também o amava - sabe bem que uma condição sem alternativa foi por mim imposta para que a nossa união se realize.
 - Sim - disse Fritz, levantando-se e segurando a cabeça entre ambas as mãos - sim, a de não deixar seu pai, é verdade.
E depois de ter dado alguns passos no interior do quarto, deixou-se cair num cadeirão, perto da janela.
A rapariga, por seu turno, levantou-se e ajoelhou-se perto dele.
 - Vejamos - disse ela. - Seja razoável, Fritz! O senhor, que conhece a nossa posição, que conhece a escassa fortuna de meu pai... Minha mãe, ao morrer, deixou-o com uma criança quase de berço e eu substituí minha mãe nas ocupações caseiras e nas relativas a Lieschen...
 - Eu sei, Margarida, que é um anjo, e nada de novo me conta, ao falar-me disso.
 - Quase teria podido acreditar que tivesse esquecido, Frederico, você, que me propõe casar para fugir e abandonar meu pai.
 - E se seu pai consente?...
 - Oh, coração egoísta! Sem dúvida que consentirá, porque pesará numa mão a minha felicidade e na outra a sua solidão, e preferirá viver só mas ver a filha feliz.
 - Não viverá só, Margarida, porque terá junto dele a pequena Lieschen.
 - E que ajuda espera que lhe proporcione uma criança de oito anos, para além de lhe fazer a vida impossível? A cura de meu pai- proporciona-lhe uma despesa de quatrocentos talers. Pois bem; graças às minhas economias, essa soma chega para as necessidades dos três. Mas logo que outra mulher estiver no meu lugar, quatrocentos talers serão suficientes para duas pessoas?
 - Meus pais têm alguma fortuna, Margarida. Farão um sacrifício, e a seu pai nada faltará.
 - Apenas a filha, ingrato! A filha, que lhe terá levado! Oh, Staps! Quando numa bela noite de Verão entrou nesta casa, quando saudou os seus habitantes, os móveis e até as próprias paredes com estas palavras: "Deus e a felicidade estejam com os corações puros e as fortunas gastas!" - queria dizer: - Senhor Stiller, recebe em sua casa um homem que se fará amar por sua filha Margarida e que mal seja amado por ela, em recompensa pelo seu paternal acolhimento, pela vossa cordial hospitalidade, fará tudo quanto puder para lhe roubar a filha, sob o pretexto de que só pode viver feliz num país em que o nome de Napoleão não seja conhecido?
 - Oh! Margarida! Margarida! Agora não posso ser feliz senão nessa condição, juro-lho!... E apesar de tudo  - murmurou num tom quase impercetível - quanto não seria eu feliz faltando aos juramentos mais sagrados! Fosse porque Margarida tivesse podido ouvir esta segunda parte da frase, solta pelo jovem por entre dentes, fosse porque, apesar de a ter compreendido, a não tivesse decifrado, apenas respondeu à frase inicial.
 - Não pode ser feliz, afirma, senão num país onde o nome do terrível imperador não tenha ainda chegado? Onde existe tal país? Em que parte do mundo fica situado? Decerto, meu pobre e querido insensato, tem processo de chegar a uma das estrelas que pairam sobre nós. E apesar disso, quem lhe diz que os habitantes desse planeta não se debrucem para ver o que acontece no nosso mundo?
 - Tem razão - respondeu Frederico, tentando sorrir. - Eu é que sou o louco.
 - Não, Fritz - volveu Margarida, com profunda tristeza. - Não é louco. Vou dizer-lhe aquilo que é.
 - Margarida!...
 - É um conspirador, Fritz.
 - Não se chama conspirador àquele que quer libertar o seu país - revoltou-se o jovem.
E dos seus olhos saiu um duplo clarão.
 - Chama-se conspirador, meu amigo, seja a quem for que participe numa sociedade secreta, numa filiação misteriosa. Vejamos, olhe-me de frente, e ouse dizer-me que não pertence à Burschenschaft(l).
 - Para que negaria? Não estão connosco todos os que na Alemanha têm um coração leal?
 - Ouse dizer, Fritz, que essa canção do major Schill
(1) Reunião de todas as universidades numa confraria comum, geral.
que acaba de ouvir e que o fez estremecer, levantar e ir à janela, não era um sinal.
 - Margarida - respondeu Frederico - veja como a amo, e como esse amor que lhe tenho me predispõe a fazer coisas vergonhosas. Sim, pertenço à União da Virtude. Sim, sou um "wissende"(1). Sim, esse cântico era um sinal. Sim, e o que não disse, o Anticristo está a oito léguas de nós.
"Ora bem! Se me diz: "Frederico, partamos, e sejamos felizes! Vivamos um para o outro e um pelo outro!" esquecerei os meus amigos, os meus juramentos. Esquecerei a Alemanha, e partirei consigo, Margarida, mesmo que o meu nome fique inscrito com um punhal no infame poste! Ouse agora dizer que não a amo.
 - Muito bem. E por sua vez, Frederico, vai também ver se o amo ou não. Porque não agarra numa espingarda? Porque não se alista entre os defensores da Alemanha? PorcW^Ift. há-de combater em nome do seu país? Arriscará muito. Mas todo o verdadeiro homem está nossas lendas, passa por entre o fogo, no meio nadas; e o fogo apaga-se, as balas nadas afastam-se!
 - Sim, e o ferro é mais seguro, não é verdade?
 - Margarida...
 - Fritz, eis o meu pai. Por piedade, esconde-lhe o que me não pudeste esconder. Maldizer-te-ia e expulsar-te-ia.
 (1) Que sabe, que está no segredo. Termo que remonta aos tempos do antigo tribunal da Santa Wehme.
 - É então assim tão mau alemão e tão bom francês? perguntou Fritz com um sorriso amargo.
 - Nem alemão nem francês, Staps. É cristão! Deplora todas as guerras a que os soberanos chamam de gloriosos recontros, chamando-as de cruéis carnificinas, e pelo bom coração que tem sonha o impossível, de ver os homens amarem-se em vez de se odiarem!
E enquanto a pequena Lieschen abandonava a boneca e os brinquedos para correr ao encontro do pastor Stiller, Margarida embrenhou-se no bordado, sobre o qual rolaram duas novas lágrimas que nem sequer tentou esconder como fizera com as primeiras.
O pastor regressava profundamente triste, quase abatido. Beijou as duas filhas e estendeu a mão a Frederico.
 - E então - perguntou Staps - há notícias?
 - Olhe, escute - volveu o pastor.
Todos escutaram, e ouviram-se as trompetas austríacas que tocavam a Marcha de Lutzow.
 - Ah! - exclamou alegremente Frederico - ei-los,, finalmente, os vingadores!
E correu para o exterior da casa, para ser um dos primeiros a saudar os soldados que o arquiduque Carlos intitulava de salvadores da Alemanha.
Tratava-se do corpo de exército do general austríaco Thierry, que ia estacionar em Arnhofen.
Nesse mesmo instante, os batedores foram enviados para a estrada de Ratisbonne.
O resultado das informações assim obtidas foi que Napoleão chegara nessa mesma manhã a Donauwõrth.
Seria difícil descrever qual a sensação que essa notícia operou junto dos soldados austríacos. Mas de certeza que teve o condão de exaltar o ódio dos estudantes das diferentes universidades, os quais, sem se saber bem porquê, desde há algum tempo pareciam ter encontro marcado na pequena cidade de Abensberg.
Pela segunda vez, quatro estudantes de braço dado percorreram as ruas da cidade cantando a canção do major Schill, como se temessem que não tivesse sido escutada da primeira vez.
Excepção feita à chegada de Napoleão a Donauwõrth, todas as outras informações eram vagas. Os oficiais austríacos, e até o general comandante-chefe, não tinham qualquer pormenor definitivo acerca das posições tomadas pelo exército francês. Sabiam apenas que o grosso das tropas estava em Ratisbonne e em Augsburgo.
Mandou-se fazer alto. Temia-se aventurar qualquer passo mais além sem se saber de informações concretas, numa região arborizada e recortada por uma multidão de pequenos rios.
Caiu a noite. As sentinelas foram colocadas com todas as precauções de santo e senha e de disposição que se tomam frente ao inimigo. Havia sentinelas por toda a parte, mesmo até na ponte levadiça do velho castelo em ruínas de Abensberg.
As sentinelas eram rendidas de hora a hora. Aquela que à meia-noite fazia o seu turno no velho castelo, acabara de soar a última badalada, viu aproximar-se dois homens envoltos em mantos. E gritou:
 - Quem vem lá?
 - Amigos! - respondeu em alemão um dos homens. Depois, aproximando-se da sentinela e abrindo o
manto para provar que não era portador de qualquer arma, nem defensiva nem ofensiva, deu-lhe o santo e a senha com tal exactidão, que a sentinela não opôs qualquer dificuldade em deixar passá-lo, a ele e ao companheiro.
Os dois homens passaram pela ponte levadiça e embrenharam-se nas ruínas do castelo.
Cinco minutos depois, surdiu um outro.
O mesmo grito de "Quem vem lá!" fez-se ouvir; foram tomadas as mesmas precauções, e o mesmo santo e senha foi dado.
Catorze pessoas, igualmente envoltas em mantos castanhos, passaram assim, entre a meia-noite e a meia-noite e um quarto, apresentando-se sozinhas ou em grupos de dois ou mesmo de três - nunca mais do que isso.
Mal passava a sentinela, cada um dos misteriosos recém-vindos retirava uma máscara negra de sob o manto e colocava-a no rosto.
Soou a meia-noite e um quarto no momento em que se apresentaram os dois últimos, que completavam assim um número de dezasseis.
A estes, segui-los-emos.
Tal como os outros, franquearam a ponte levadiça. Também como os outros, embrenharam-se nas ruínas. Mas, ao chegarem perto de um gigantesco pilar no qual parecia basear-se todo um arco, o que caminhava à frente deteve-se.
 - Tenente - disse ele baixinho e em francês - recorde-se de que não é uma brincadeira de rapazelhos, o que fazemos. Um ou o outro reconhecidos, e seremos homens mortos!
 - Eu sei - respondeu o tenente. - Mas julga que poderei ser reconhecido pelo meu sotaque?
 - Vamos! Fala alemão como um alemão, e se for reconhecido, não será por causa da palavra.
 - Então, como queres que me reconheçam? Não será pelo rosto, uma vez que a máscara o cobre.
 - Chegará o momento em que será necessário retirar a máscara?
 - É esta a primeira vez que venho a Abensberg, e só ontem cheguei a Ratisbonne.
 - Reflicta bem!
 - Já reflecti.
 - Uma vez mais: não é brincadeira de crianças, o jogo que se pratica lá dentro, se bem que sejam crianças quem o pratiquem. Há perigo de vida. Uma suspeita que seja, e será apunhalado.
 - Falas da vida como se fosse uma coisa importante para um homem que diariamente joga a sua no campo de batalha.
 - Num campo de batalha, sim, perfeitamente. À luz do dia, para ganhar um segundo galão ou uma cruz. Mas aqui, se a infelicidade o tolher, se for morto, a coisa acontecerá obscuramente. Nas trevas, no fundo de uma cave! Ninguém gosta de ser atacado pelas costas ou estrangulado entre duas portas, como um czar russo ou um vizir otomano.
 - Mestre Schlick - disse com voz firme aquele a quem se tentava inspirar estes receios - recebi uma ordem, e cumpri-la-ei.
 - Seja - consentiu o espião. - Tive o dever de adverti-lo. Está pois livre de actuar conforme quiser.
 - Estou advertido.
 - Em caso de perigo, não conte com a minha ajuda seja para o que for. Não poderei perder-me juntamente consigo, mais a mais sem o poder salvar. Gosto muito dos napoleões de sua majestade o imperador dos franceses. Mas gosto mais ainda da minha cabeça.
 - Nada tenho a reclamar-te, para além daquilo a que te comprometeste: introduzir-me entre os irmãos da União da Virtude, e apresentar-me a eles como um adepto.
 - Note que ao mais pequeno perigo, renegá-lo-ei, e talvez mais do que uma vez, como São Pedro.
 - Permito-to.
 - Insiste?
 - Insisto.
A esta resposta, mestre Schlick empurrou uma alavanca escondida nas esculturas do pilar, o qual rodou sobre si mesmo e descobriu uma abertura estreita, todavia suficientemente larga para dar passagem a um homem.
Uma escadaria cujo primeiro degrau surgia à flor da terra parecia conduzir a uma sala subterrânea. Estava iluminada por uma lâmpada suspensa no interior do próprio pilar, o qual poderia ter uns doze pés de circunferência exterior.
Através da máscara negra, o guia lançou um último olhar ao companheiro, como a dizer-lhe: "Ainda está a tempo!"
E com efeito estavam fora das vistas da sentinela. Não se ouvia o mais pequeno ruído nas velhas ruínas, e um céu negro, sem estrelas e sem lua, parecia abater-se sobre os desmandos que a mão do tempo havia praticado nas gigantescas muralhas.
 - Vamos - disse aquele dos dois companheiros que ainda não conhecemos.
Como se esperasse apenas por esta última ordem, o guia enveredou pela escada em espiral.
O desconhecido seguiu-o.
Atrás deles, fechou-se a porta.
Chegados ao fim da escada, aquele que servia de guia encontrou uma porta de bronze, à qual bateu com três pancadas a intervalos iguais. Cada um desses batimentos ressoou sobre a porta como se tivesse tocado a um pêndulo.
 - Atenção! - disse Schlick. - A porta vai abrir-se, e o zelador aguarda-nos do outro lado.
A porta abriu-se, com efeito, e um homem mascarado surgiu na abertura. Era o vigia.
 - Que horas são? - perguntou ele aos dois companheiros.
 - É a hora a que o dia se levanta - respondeu Schlick.
 - Que fazes assim tão cedo?
 - Levanto-me com o dia.
 - Para quê?
 - Para bater.
 - De onde vens?
 - Do Ocidente.
 - Quem te envia?
 - O vingador.
 - Fornece a prova da tua missão.
 - Ei-la.
E mostrou ao vigia uma pequena plaqueta de madeira em forma octogonal, semelhante àquelas que pendem das chaves nos albergues alemães.
Nessa plaqueta estava escrita a palavra BADEN.
O vigia verificou a identidade. Depois, deixou cair o símbolo do reconhecimento do recém-chegado numa urna em que havia deposto as plaquetas dos irmãos que haviam precedido Schlick.
 - E este? - perguntou o vigia, indicando o segundo companheiro com o dedo em riste. - Que é?
 - Um cego - respondeu o próprio mencionado, em perfeito alemão.
 - Que vens procurar?
 - A luz.
 - Tens padrinho?
 - Tenho por padrinhos aquele que me precedeu.
 - Ele responde por ti?
 - Pergunta-lho a ele mesmo.
 - Responde por aquele que nos apresentas, irmão?
 - Respondo.
 - Está bem - disse o vigia. - Que entre para a câmara das meditações. Quando a hora de ser recebido chegar, mandá-lo-emos chamar.
E, abrindo uma porta rasgada na muralha, introduziu o companheiro de mestre Schlick numa espécie de choça iluminada por uma lâmpada, sem ter por mobiliário mais do que uma cadeira e uma mesa de pedra, semelhantes àqueles em que, segundo a lenda de Reno, se senta e dorme um sono encantado, até que a Alemanha acorde para proclamar a sua unidade, o imperador Frederico Barba Russa.
Quanto a Schlick, deixando o jovem camarada entregue às meditações, avançou na direcção de uma grade que dava entrada para a sala principal.
Manobrada pelo vigia, a grelha levantou-se diante dele.
V.
A União da Virtude
ESSA grelha, conforme dissemos, dava para uma sala subterrânea - a sala que se chamava sala do conselho. Estava totalmente engalanada a negro e era aclarada por uma lâmpada que descia do tecto, suspensa por uma corrente em ferro. Sob a lâmpada via-se um monte de armas, constituído por espingardas, espadas e pistolas colocadas sem qualquer ordem, mas em todo o caso colocadas de tal forma que em qualquer caso de alerta cada um pudesse no mesmo instante, com um só salto, escolher a arma que mais lhe conviesse. A luz da lâmpada reflectia-se nos canos das espingardas e das pistolas, sobre as lâminas dos sabres e das espadas, e lançava clarões ameaçadores. No lado contrário ao montão de armas, face à grelha de entrada, elevava-se uma mesa de mármore negro, destinada ao presidente do sombrio conciliábulo, que estava assente sobre um estrado de três degraus. Atrás da mesa, surgia o encosto da cadeira presidencial, encimada por uma águia de bronze que não era a águia de duas cabeças da velha casa de Habsburgo, nem a de uma só cabeça da nova casa da Prússia, e tão-pouco a bizantina águia de Carlos Magno. Esta cadeira era simultaneamente um trono e um "fauteuil".
Dezasseis barris cheios de pólvora e colocados em círculo a cada um dos lados da pirâmide de armas serviam de assento aos filiados. Estes barris revelavam que em caso de surpresa, era dever dos membros da associação fazê-los estoirar, e fazer estoirar os dos companheiros, de preferência a renderem-se.
Uma única porta abria para a sala.
Talvez que sob as ornamentações negras de que falámos houvesse outras portas. Mas se existissem, estavam escondidas dos olhares, e só eram conhecidas pelos "iluminados".
Ao mesmo tempo que a grelha se fechava à passagem de Schlick, a meia hora depois das vinte e quatro soou num relógio invisível.
Um mascarado destacou-se de um dos grupos que os filiados formavam, e, subindo ao estrado, gritou:
 - Irmãos, escutem-me!
Fez-se silêncio, e todos se viraram para aquele que pedia a palavra.
 - Irmãos - repetiu ele - a noite avança, e o tempo passa.
Depois, dirigindo-se ao vigia:
 - Vigia, quantos iluminados?
 - Dezasseis, comigo incluído - respondeu o vigia.
 - Nesse caso, o décimo sétimo é traidor, foi feito prisioneiro ou morreu - acrescentou o indivíduo que fizera a pergunta. - Quem ousaria faltar à reunião quando essa reunião tem por finalidade a liberdade da Alemanha?
 - Irmão - volveu o vigia - o décimo-sétimo não é traidor, nem prisioneiro nem está morto. Está de guarda à porta, sob um uniforme de soldado austríaco.
 - Nesse caso, pode abrir-se a sessão?
As cabeças inclinaram-se em sinal de concordância.
 - Irmãos - continuou o mesmo orador - não esqueçamos que da mesma forma que num congresso o ministro representa um rei, também aqui cada um de nós representa um povo. Vigia, faz a chamada.
O vigia pronunciou, uns em seguida aos outros, os seguintes nomes:
 - Baden, Nassau, Hesse, Wurtemberg, Westefália, Áustria, Itália, Hungria, Boémia, Espanha, Tirol, Saxónia, Luxemburgo, Hanover, Holstein, Mecklemburgo, Baviera.
Ao pronunciar-se cada um destes nomes, houve a resposta "Presente!", excepção feita ao de Hanover.
Era o representante de Hanover quem fazia de sentinela no exterior.
 - Retire um desses nomes da urna - continuou o homem que já havia falado - e o irmão assim designado será o nosso presidente.
O vigia mergulhou a mão na urna, e retirou do interior uma plaqueta em madeira.
 - Hesse - disse ele.
 - Sou eu - respondeu um dos filiados.
E enquanto o irmão que até essa altura falara descia os três degraus do estrado, o presidente que acabara de ser designado pela sorte subia-os, e sentava-se diante da mesa de mármore.
 - Irmãos - disse ele - sentai-vos.
Os quinze filiados sentaram-se. Um dos assentos manteve-se vazio. Era o do representante de Hanover.
 - Irmãos - disse o presidente - trata-se de receber um novo filiado, e de tirar à sorte qual de nós será o vingador. Procedamos primeiro à recepção. Quem é o padrinho do novo irmão?
 - Eu - disse Schlick, levantando-se.
 - Tu quem?
 - Baden.
 - Está bem. Que os dois irmãos mais novos se levantem e vão buscar o recipiendário.
Cada um dos filiados disse em voz alta a sua idade. Depois, os dois irmãos mais novos - que eram os representantes da Baviera e do Tirol, um deles com vinte um e outro com vinte anos - levantaram-se e fora buscar o neófito, que um instante mais tarde surgia na grade onde o padrinho o aguardava.
Tinha os olhos vendados.
Os que o traziam fizeram com que desse quatro o cinco passos na sala, e depois afastaram-se e regressaram aos seus assentos.
Só o padrinho do recipiendário se mantivera perto deste.
Um profundo silêncio se estabeleceu. Todos os olhos estavam fixos no neófito. Depois, por entre este silêncio ouviu-se a voz do presidente, que perguntou em tom imperioso.
 - Irmão, que horas são?
 - A hora em que o mestre vela, e em que o escravo dorme - respondeu o recipiendário.
 - Diz quantas!
 - Deixei de ouvi-las desde que soam para o amo.
 - Quando as ouves?
 - Quando tiverem acordado o escravo.
 - Onde está o amo?
 - À mesa.
 - E o escravo?
 - No chão.
 - Que bebe o mestre?
 - Sangue.
 - E o escravo?
 - Lágrimas.
 - Que quer fazer de ambos?
 - Quero sentar o escravo na mesa e deitar o amo no chão.
 - É amo ou escravo?
 - Nem um nem outro.
 - Então que é?
 - Nada sou ainda. Mas aspiro a ser qualquer coisa.
 - O quê?
 - Iluminado.
 - Conhece as funções?
 - Aprendo-as.
 - Quem lhas ensina?
 - Deus.
 - Tem armas?
 - Tenho aquela corda e este punhal.
 - Que corda é aquela?
 - O símbolo da nossa força e da nossa união.
 - Que é você, de acordo com aquele símbolo?
 - Sou um dos filhos desse cânhamo, a quem a união
aproximou e a força torceu.
 - Porque pegou nessa corda?
 - Para atar e para estrangular.
 - E esse punhal?
 - Para cortar e para separar.
 - Está pronto a jurar que usará essa corda e esse
punhal contra todo o condenado cujo nome seja inscrito no livro do sangue?
 - Sim.
 - Jure.
 - Juro!
 - Entrega-se à corda e ao punhal, igualmente, se acaso acontecesse trair o juramento que acaba de fazer, sobre a espada e a cruz?
 - Entrego-me!(1)
 - Está bem. Considere-se recebido entre os amigos da União da Virtude. E agora pode ficar ou não mascarado, conforme o seu coração esteja confiante ou desconfiado.
Sem hesitação, o jovem retirou com um só movimento a venda e a máscara. Ao mesmo tempo, deixava cair o manto.
 - Quem nada teme - disse - pode olhar e ser olhado a rosto descoberto.
Viu-se então um belo jovem de vinte e cinco a vinte e seis anos, com aspecto militar, olhos azuis, cabelos e bigode castanho baços, usando um fato completo de estudante, se bem que, tudo o indicava, tivesse deixado há muitos anos os bancos da universidade.
Mas no momento em que todos os olhos se fixavam nele, a porta de bronze que formava a saída aberta no pilar abriu-se bruscamente, e o décimo sétimo filiado, que representava Hanover, entrou assustado.
 - Irmãos - disse ele - estamos perdidos!
 - Que se passa? - perguntou o presidente.
 - Mais de cem pessoas entraram nas ruínas, e disseram-me o santo e a senha, pelo que tomei-os por irmãos, e no entanto poderão ser inimigos prontos a envolver-nos.
 - Porque julga assim?
(1) Não reproduzimos a forma exacta do juramento. Para mais amplos pormenores, ver o drama Leo Burkart que há cerca de dezasseis anos fizemos, com Gerard de Nerval, e o excelente prefácio que o nosso caro colaborador e amigo fez sozinho, sobre as sociedades secretas na Alemanha. (N. do A.)
 - Em primeiro lugar, porque aqui não estão mais do que dezasseis.
 - E depois?...
 - Depois, porque, rendido na guarda, reentrei por meu turno nas ruínas. Mas, em vez de descer, e suspeitando de qualquer traição, escondi-me atrás de uma parede desmantelada, espiei aquele que me foi render, e ele não é dos nossos. Passados alguns instantes, um grupo de cinquenta homens, mais ou menos, totalmente armados, foi ter com ele. O chefe do grupo avançou ao reconhecimento, e a sentinela deixou passar chefe e tropa, os quais se dispersaram pelas ruínas. Então corri a prevenir-vos, e espero ter chegado a tempo, senão para salvarmos, pelo menos para morrer convosco.
 - As armas, irmãos! Às armas!
Houve um momento de terrível confusão durante o qual todos correram ao arsenal e se muniram da arma mais preferida. No meio dessa desordem, Schlick aproximou-se do recipiendário e disse-lhe rapidamente:
 - Recoloque a sua máscara, e tratemos de fugir. A sala tem muitas saídas.
 - Recolocarei a máscara, mas não fugirei - retorquiu o jovem.
 - Então, arme-se e combata.
O jovem lançou-se para o monte de armas. Mas durante o diálogo com Schlick, por muito célere que tenha sido, os companheiros haviam-se apoderado das espingardas e das pistolas. De forma que só lhe restava uma espada.
Igualmente, durante esses momentos, começaram a ouvir do lado do pilar como que um ruído de armas, e cedo pela porta de bronze, que o representante de Hanover havia deixado entreaberta na sua precipitação, viu-se surgirem as ameaçadoras pontas de algumas baionetas.
 - Fogo - gritou o presidente.
Dez filiados obedeceram. Mas só se ouviu o ruído seco dos percutores sobre o ferro, e apenas se viram as faíscas ocasionadas por esse choque.
 - Fomos traídos! - gritaram os estudantes. - As espingardas estão descarregadas. Para as portas secretas, irmãos! Para as portas secretas!
E os filiados, como pessoas que tivessem previsto o perigo, correram para diferentes pontos das tapeçarias que cobriam as paredes. Mas as tapeçarias rasgaram-se em cinco ou seis pontos diferentes, e viu-se o brilho de armas.
Os estudantes detiveram-se, e olharam em torno. Estavam prisioneiros num círculo de baionetas. Cento e cinquenta soldados vestidos com uniformes bávaros cercavam-nos.
 - Irmãos - disse o presidente - mais não nos resta do que morrer.
Depois, baixinho.
 - Fogo à pólvora! - comandou.
A ordem circulou entre as fileiras, e como se cedessem perante as baionetas, os filiados, com uma manobra tão bem ensaiada como as anteriores, recuaram para o centro da circunferência, seguidos e empurrados pelos soldados bávaros, que cada vez mais os cercavam.
Chegados ao centro, os estudantes muniram-se de mechas de artilheiro previamente preparadas para uma eventualidade destas. Depois, cada um pegou fogo à sua, lançando-a para o interior do barril que lhe servia de assento.
Mas um grito de raiva fez-se ouvir. Haviam substituído a mecha torcida e ensopada na pólvora por uma mecha normal, que se recusava a arder.
 - Traídos! Vendidos! - gritaram de todos os lados os estudantes, chorando.
 - Diabo! - disse Schlick ao ouvido do companheiro- parece-me que a coisa vai mal!... Bem que é verdade que poderemos sempre sair deste aperto dizendo quem somos - prosseguiu, mais baixinho ainda - uma vez que os bávaros são aliados do vosso imperador.
O jovem percorreu o cerco dos soldados bávaros com um olhar cujo brilho se podia ver através da máscara, e, brandindo a espada, em vez de entregá-la, disse:
 - É o mesmo, gostaria de combater, até contra aliados. E foi confundir-se com o grupo dos estudantes. Nesse momento, o círculo dos soldados bávaros estava
de tal modo fechado, que bastavam cinco ou seis passos para que as baionetas tocassem no peito dos dezoito conspiradores.
 - Senhores - disse o capitão que comandava a tropa - em nome do rei Maximiliano da Baviera, considerem-se prisioneiros!
 - É possível - respondeu o presidente - porque estamos sob o jugo da força. Somente que estamos prisioneiros, mas não nos rendemos.
 - Tanto faz - volveu o oficial. - Não vim aqui para brincar às palavras. Vim para fazer o meu dever, cumprindo as ordens que recebi.
 - Amigos - gritou o presidente - prisioneiros do rei da Baviera, nas mãos do rei da Baviera, prontos a morrer aos golpes do rei da Baviera - qual é o julgamento que tendes contra ele?
 - O rei da Baviera - disse uma voz - é um traidor.
 - Que seja irradiado da grande família germânica! - clamou uma outra.
 - Que deixe de intitular-se príncipe alemão, e que assine: "Aliado dos franceses".
 - A quem todo o membro das nossas sociedades secretas tem o direito de ferir com o punhal.
 - Que todo o membro da sociedade humana tenha o direito de esmagar-lhe o rosto!
 - Silêncio! - bradou o oficial, com uma voz terrível.
 - Viva a Alemanha - gritaram todos os estudantes, num só brado.
 - Silêncio! - repetiu o oficial - e que se coloquem sem resistência numa só linha.
 - Seja! - disse o presidente - se é para nos fuzilar. Verdadeiros soldados da Alemanha, aos vossos postos!
Cada um tomou o seu lugar, a cabeça erguida e o olhar ameaçador.
O capitão retirou do bolso um papel e leu:
"O capitão Ernesto de Muhldorf escolherá cinquenta homens, cercará e fará uma busca nas ruínas do castelo de Abensberg, que serve de receptáculo a um bando de conspiradores. Prenderá todos os que encontrar na sala dita de Conselho, que é a antiga sala do Tribunal secreto; fá-los-á alinhar. Se forem dez, fuzilará um. Se forem vinte, fuzilará dois, e assim por diante. Consumada a execução, os outros serão postos em liberdade.
Munique, 16 de Abril de 1809.
Maximiliano."
 - Viva a Alemanha! - gritaram como resposta os prisioneiros.
 - Eh! oiça - disse em voz baixa Schlick ao companheiro - trate de mudar de lugar, tenente. Creio que é justamente o décimo.
Mas aquele a quem se dirigia nada respondeu, e não se mexeu.
 - Senhores - prosseguiu o capitão - não sei quem sois. Mas eu sou soldado, e um soldado só tem a sua missão.
"A justiça militar é inexorável, e estou encarregado de fazer justiça."
 - Faça-a! - respondeu uma voz.
O capitão contou da direita para a esquerda, até dez. Como havia dito Schlick, o companheiro, o novo iluminado, era o décimo.
 - Saia da fila - disse o capitão. O jovem obedeceu.
 - Será o senhor quem pagará a dívida de sangue - informou o capitão.
 - Está bem, senhor - respondeu o recipiendário, com voz calma.
 - Está pronto?
 - Estou.
 - Tem algumas disposições a fazer?
 - Nenhuma.
 - Não tem parentes... amigos... família?
 - Tenho um irmão. O homem que me serviu de padrinho, e que segundo a ordem que acabou de ler-nos deverá ser libertado quando eu tiver pago por todos, conhece meu irmão, e dir-lhe-á como morri.
 - É católico ou protestante?
 - Sou católico.
 - Talvez deseje um padre?
 - Arrisco a vida todos os dias, e Deus, que lê no meu coração, sabe que nada tenho a censurar-me.
 - Portanto, não pede graça nem adiamento?
 - Fui apanhado com as armas na mão, conspirando contra o aliado do rei da Baviera e, por consequência, contra o próprio rei da Baviera. Faça de mim o que quiser.
 - Então, prepara-se para morrer.
 - Disse-lhe que estou pronto.
 - Pode manter a sua máscara, ou tirá-la. Se a mantiver, será enterrado com ela, e ninguém saberá quem é.
 - Mas, se a mantiver, podem julgar que o faço para esconder a palidez. Tiro-a!
E o jovem arrancou a máscara e mostrou o rosto.
Fez-se um murmúrio de admiração entre os filiados.
Um soldado bávaro aproximou-se do prisioneiro, trazendo na mão um lenço dobrado.
O prisioneiro afastou o homem com a mão, bem como ao lenço.
 - Perguntou-me há pouco se eu tinha alguma graça a reclamar - continuou o jovem, com a mesma firmeza de voz e a mesma dignidade no olhar. - Pois tenho uma.
 - Qual? - perguntou o capitão.
 - Sou soldado, como vós, senhor. Oficial, como vós. Peço que não me vendem os olhos e para comandar o pelotão de fuzilamento.
 - Concedido!
 - Pois bem, agora sou eu quem espera - prosseguiu o jovem.
Um dos filiados saiu da fileira e estendeu-lhe a mão.
 - Irmão - disse-lhe - em nome da Baviera, saúdo-te como mártir.
Os outros dezassete fizeram o mesmo, cada um deles em nome de um povo. O capitão deixou que assim fizessem, sem dúvida vencido por essa força sobrenatural que se apodera do coração de um soldado.
O prisioneiro foi depois colocar-se contra a parede.
 - Estou bem aqui, capitão? Este fez um sinal afirmativo.
 - Oito homens - comandou o capitão. Oito homens avançaram.
 - Coloquem-se a dez passos do condenado, e em duas filas. Obedeçam às vozes.
Os oito homens colocaram-se a dez passos.
 - As armas estão carregadas? - perguntou o condenado.
 - Sim - respondeu o capitão.
 - Isso facilita a minha missão - disse sorrindo o jovem oficial.
E depois, em voz alta:
 - Atenção, camaradas!
Os olhos dos oito homens fixaram-se nele.
 - Levantar... armas!
 - Apresentar... armas!
O movimento seguiu a ordem com toda a precisão militar.
 - Apontar!... - continuou o condenado.
Os oito canos das espingardas baixaram-se na sua direcção.
 - Meu padrinho - disse ele, interrompendo-se com um sorriso - aproxime a luz do meu rosto, a fim de que possa testemunhar que o seu afilhado o honra.
 - É inútil, senhor - disse o capitão. - Reconhecemos que é um bravo.
 - Nesse caso... Fogo!
Os oito tiros partiram, e deram uma só detonação. Mas, para grande espanto, o condenado não só ficou de pé, mas ainda não sentiu qualquer dor.
 - Viva a Alemanha! - gritaram em uníssono os estudantes e os soldados.
 - Que é isto? - perguntou o condenado, duvidando de que ainda vivia.
 - É que se tratava de uma prova - disse Schlick - da qual se saiu gloriosamente.
 - Viva a Alemanha! - repetiram as vozes.
 - Agora - disse ao iniciado o mesmo jovem que em primeiro lugar lhe apertara a mão, saudando-o como mártir - agora, irmão, podes empalidecer, podes tremer.
O jovem oficial descolou-se da parede, e caminhando para aquele que lhe dirigira a palavra, pegou-lhe na mão, e como resposta levou-a ao seu próprio coração.
 - Rendo-me a ti, teu coração bate menos do que o meu - disse o outro.
 - E agora, irmãos - perguntou o prisioneiro tornado livre, o condenado devolvido à vida - não tínhamos uma obra a cumprir?
 - Irmãos - disse o presidente ao capitão e aos seus soldados - retirem-se, deixem-nos sós, e zelem por nós.
O capitão e os soldados obedeceram. Nesse ínterim, Schlick aproximou-se do afilhado e baixinho, disse-lhe:
 - Raios e coriscos! Tem uma coragem maravilhosa, e a minha opinião é que a partir de hoje pode chamar-se Richard Coração de Leão.
O presidente seguiu com os olhos os irmãos de inferior grau que haviam desempenhado o papel de oficiais e de soldados bávaros, até que o último saísse.
E então, virando-se para os iluminados:
 - Irmãos - disse ele - retomemos os nossos lugares. E foi sentar-se no cadeirão, enquanto cada membro
da associação ia para o seu lugar, o qual haviam abandonado face "ao perigo".
 - Silêncio! - ordenou o presidente.
O barulho pareceu morrer, e toda a vida como que se escoou, até mesmo o bater dos corações.
 - Vingadores - prosseguiu o presidente - que horas são?
Um dos assistentes levantou-se:
 - Quem é este? - perguntou Richard Coração de Leão ao padrinho.
 - O acusador - informou Schlick.
O acusador respondeu à pergunta do presidente.
 - São horas de resolução.
 - Vingadores, que tempo faz?
 - O tempo da repressão.
 - Vingadores, em que mãos está o raio?
 - Nas mãos de Deus e nas nossas.
 - Vingadores, que é feito da Santa Vehme?
 - Morta na Westefália e ressuscitada na Baviera.
 - Que provas têm disso?
 - Esta mesma reunião.
 - Irmão, dou-te a palavra de acusador. Acusa! Nós julgaremos.
 - Acuso o imperador Napoleão de tentar o maior crime que pode existir aos olhos de um alemão - ou seja: o de querer destruir a nacionalidade da Alemanha. E foi para destruir a nacionalidade da Alemanha que nomeou o cunhado Murat grão-duque de Berg; foi para destruir a Alemanha que nomeou o irmão Gerónimo rei da Westefália; é para destruir a Alemanha que quer destronar o imperador Francisco II, e colocar no lugar dele o irmão, José, a quem os espanhóis renegam. Finalmente, é para destruir a nacionalidade da Alemanha que hoje faz com que a Baviera lute contra a Áustria, a federação do Reno contra o Império, amigos contra amigos, alemães contra alemães, irmãos contra irmãos!
 - Irmãos - exclamou o presidente - estão com o acusador? Ou estão contra ele?
 - Estamos com ele, estamos por ele, e como ele acusamos. Viva a Alemanha!
 - Portanto, o imperador Napoleão é culpado a vossos olhos?
 - Sim! - responderam em uníssono os filiados.
 - E que castigo merece?
 - A morte!
 - E quem lha dará?
 - Nós.
 - E entre nós?...
 - O eleito pela sorte.
 - Vigia, traz a urna. O vigia obedeceu.
 - Irmãos - prosseguiu o presidente. - Vamos colocar no interior da urna tantas bolas brancas quantas são as províncias aqui reunidas pelos seus representantes, e mais uma bola negra. Se esta se mantiver no fundo da urna, é porque Deus não aprova o nosso parecer, e encarrega-se Ele mesmo da vingança, porque a última bola será a de Deus. Aceitam esta proposta?
 - Sim - responderam todas as vozes.
 - Aquele a quem sair a bola negra dedicará a sua vida ao cumprimento da santa obra?
 - Sim - responderam as mesmas vozes.
 - Jura morrer sem denunciar os irmãos, morrer como se a sua acção seja um acto isolado, morrer como o nosso novo irmão ia morrer há pouco, sem uma queixa, sem um suspiro?
 - Sim - responderam todas as vozes.
 - Então, metamos as bolas brancas, e a bola negra - disse o presidente.
O vigia voltou a urna. Dezassete bolas brancas e uma negra rolaram sobre a mesa.
O presidente contou as dezassete bolas brancas, e, ao contá-las, meteu-as na urna. Depois, fez o mesmo à negra, e, sem tocar com os dedos, misturou todas as bolas sacudindo a urna.
Depois, concluída esta operação, afirmou:
 - Agora, os deputados das províncias vão tirar uma bola cada, por ordem alfabética. Que província representa o nosso novo irmão?
 - A Alsácia - respondeu o afilhado de Schlick.
 - Alsácia? - espantaram-se todos os irmãos. - Mas então és francês?
 - Francês ou alemão, conforme preferirem.
 - Tens razão - exclamaram duas ou três vozes. - Os alsacianos são alemães, os alsacianos pertencem à grande família germânica. Viva a Alemanha!
 - Irmãos - disse o presidente - que decidem em relação ao nosso novo irmão?
 - Que foi recebido, que é um filiado, que suportou a prova e que, uma vez que a Holanda, a Espanha e a Itália estão aqui representadas, não se vê porque a França não o será também.
 - Está bem - consentiu o presidente. - Aqueles que estejam de acordo em que o nome da Alsácia seja incluído na urna juntamente com os outros, levantem o braço.
Todos os braços se levantaram.
 - Irmão - disse o presidente - a Alsácia é alemã. E atirou para o interior da urna a décima oitava bola
branca que o vigia lhe entregara.
 - E agora - prosseguiu - procedamos pela ordem
alfabética. E fazendo a chamada:
 - Alsácia!
O jovem avançou para a urna, e no momento em que mergulhou a mão pôde ver-se no seu rosto uma hesitação que nem no momento em que comandava o pelotão de execução transparecera.
Tirou uma bola branca.
 - Branca - gritaram todas as vozes.
 - Bade! - chamou o presidente.
Schlick mergulhou a mão na urna, e retirou uma bola branca.
 - Branca! - repetiram todas as vozes.
O deputado pela Baviera avançou, mergulhou a mão na urna, e tirou uma bola negra.
 - Negra! - disse ele, com voz calma e quase feliz.
 - Negra! - repetiram as outras vozes.
 - Está bem - disse o deputado pela Baviera. - Dentro de três meses, Napoleão morrerá, ou eu serei fuzilado.
 - Viva a Alemanha! - repetiram em coro todas as vozes.
E como se chegara ao fim da sessão, os Amigos da Virtude separaram-se.
VI.
Seis polegadas mais abaixo, e o rei da França chamava-se Luís XVIII
UMA noite, a um canto do palácio imperial de Schõnbrunn, o jovem duque de Reichstadt conversava com os filhos do príncipe Carlos. E ao conversarem, as crianças riam tão alto que o príncipe, nesse momento tagarelando no canto oposto, em tom grave, com o imperador, os arquiduques e as arquiduquesas, receou que as altezas e as majestades ficassem incomodadas pelos risos das crianças. Julgou pois dever intervir. Correu de um para o outro lado do salão, perguntou às crianças o que as punha tão alegres, e a que propósito riam daquela maneira.
 - Oh! papá - respondeu o mais velho dos filhos do arquiduque - não ligue. É Reischstadt que nos conta como o pai dele sempre o vencia, e isso diverte-nos muito!
O arquiduque Carlos, que era um homem destemido, riu ainda mais alto do que as crianças. No que foi secundado pelo imperador, pelos arquiduques e pelas arquiduquesas, da mesma forma ou talvez ainda com maior vontade.
Verdade seja dita que na época em que se ria assim tão francamente dos defeitos do ilustre arquiduque vencedor de Tengen, de Abensberg, de Landshut, de Eck-muhl e de Ratisbonne, ele estava morto,
A anedota é autêntica. Foi-me contada pela rainha Hortênsia, no decurso de oito dias de hospitalidade que teve a bondade de conceder-me, em 1832, no castelo de Arenenberg, pouco tempo depois de ter ocorrido a morte do rei de Roma.
Consagremos um capítulo à descrição desta campanha de 1809, uma das mais maravilhosas de Napoleão.
A 17 de Abril, ao meio-dia, havíamos deixado o imperador em Donaiiworth, preparado para fazer chegar as suas ordens aos marechais e tenentes. Aquele junto de quem ele tinha mais urgência que as ordens chegassem - porque era o que estava mais afastado e, por consequência, deveria recebê-las num prazo mais lato - era o marechal Davoust, que, como já sabemos, ocupava Ratisbonne. Assim, o primeiro oficial que Napoleão chamou para entrega de ordens foi o tenente Paul Richard. Mas o príncipe de Neuchâtel, sempre a roer as unhas e com um ar bastante embaraçado, anunciou ao imperador que se havia servido desse oficial para uma missão especial.
Verdade seja dita que o príncipe oferecia - no caso de o imperador insistir absolutamente em que o seu despacho fosse levado por um oficial chamado Richard - verdade seja dita, afirmávamos, que o príncipe de Neuchâtel oferecia o tenente Luís Richard, recém-chegado da Itália.
Mas o imperador declarou que a partir do momento em que reenviava ao marechal Davoust um homem diferente daquele que o marechal havia enviado, pouco lhe interessava o nome do correio, desde que esse correio fosse activo, valente e inteligente.
Um oficial apresentou-se.
O imperador entregou-lhe o despacho dirigido ao marechal Davoust.
Por outro lado, Berthier mandou tirar duas cópias desse despacho, e expediu-as por outros dois homens, e por caminhos diferentes.
Seria uma grande infelicidade se nenhum dos três mensageiros chegasse ao seu destino.
Vejamos quais eram as ordens do imperador:
"Abandonar imediatamente Ratisbonne, deixando ali um batalhão para defender a cidade.
"Subir o Danúbio, caminhando com precaução mas com resolução, entre a corrente e o grosso dos austríacos.
"Finalmente, juntar-se a ele, Napoleão, através de Abach e Ober-Saal, nas cercanias de Abensberg, no local em que este se lança no Danúbio."
Expedidas estas ordens para Davoust, havia que prevenir Massena.
Arranjaram-se outros três mensageiros, e expediu-se a seguinte tripla ordem:
"O imperador ordena ao marechal Massena que deixe Augsburgo a 18, pela manhã, a fim de descer sobre o flanco esquerdo dos austríacos, pelo caminho de Pfaf-fenhofen, até Abens. O imperador reserva-se o direito de comandar em seguida a marcha do marechal na direcção do Danúbio, Isar, Neustadt ou Landshut.
"O marechal partirá fazendo constar o boato de que marcha na direcção do Tirol, e deixando em Augsburgo um bom comandante, dois regimentos alemães, todos os homens doentes ou fatigados, víveres, munições, tudo, enfim, para que se aguentem quinze dias.
"O imperador recomenda ao marechal que desça na direcção do Danúbio a toda a pressa. Pois que jamais teve tanta necessidade da sua dedicação."
O despacho terminava com estas três palavras e a abreviatura de assinatura, escritas pela própria mão do imperador:
"Actividade e Velocidade! NAP."
Tendo partido estes dois despachos, Napoleão chamou o tenente Luís Richard, se Berthier por acaso não o tivesse enviado em missão, como ao irmão.
O jovem apresentou-se todo contente por ter voltado a ver o seu querido irmão Paul, recomposto pelas duas horas de repouso e apto a voltar à estrada.
Para o príncipe Eugénio, o imperador entregou-lhe uma carta concebida nestes termos:
"Senhor: Ao deixar-se bater em Pordenone, perdeu qualquer hipótese de entrar connosco em Viena, onde estaremos provavelmente cerca de 15 do próximo mês. Venha juntar-se a nós tão cedo quanto possível, e marche a direito sobre a capital da Áustria. Nada fica alterado em relação às primeiras ordens que lhe dei.
"Depois do que, senhor príncipe, nada mais tendo a dizer-lhe, peço a Deus que vos tenha na Sua santa e digna protecção. - NAPOLEÃO."
"P. S. - Darei ordem ao general Macdonald para que se junte ao exército da Itália, com instruções que ele só a si comunicará."
O jovem oficial recebeu a carta das próprias mãos do imperador, inclinou-se, saiu, saltou para o cavalo e desapareceu.
Um instante depois, o imperador deixou Donauwõrth : partiu para Ingolstadt. Ora, Ingolstadt colocava-o exactamente entre Ratisbonne e Augsburgo - ou seja: no centro da acção.
Conhecem-se as diferentes distâncias que separam Donauwõrth de Ratisbonne, e Donauwõrth de Augsburgo.
Em Donauwõrth, o imperador estava a vinte e duas léguas de Ratisbonne, e somente a oito ou nove de Augsburgo.
Resultou disto que Massena recebeu as suas ordens cerca das cinco horas, e pôde imediatamente fazer os preparativos de partida para a manhã de 18, ao nascer do dia. Ao passo que só ao começo da noite Davoust recebeu as ordens que lhe diziam respeito.
Foi necessário ao marechal todo o dia de 18, primeiro para reunir os seus cinquenta mil homens, depois para concentrar a divisão Friant - a qual, durante o trajecto que acabara de efectuar entre Bayreuth e Amberg havia por momentos entrado em contacto com o exército austríaco do general Bellegarde(1) e que, devido à sua boa actuação, havia coberto a marcha do corpo a que pertencia - e, finalmente, para levar a totalidade das suas tropas da margem direita para a margem esquerda do Danúbio, enquanto a divisão Morand se mantinha alerta junto aos muros de Ratisbonne.
Este exército de Bellegarde, composto por cinquenta mil homens, e que era necessário que fosse detido, a fim de que não participasse no combate que iria travar-se, constituía o exército da Boémia, o qual, na obediência a um plano de concentração, o arquiduque Carlos chamara para junto de si.
O dia 18 foi portanto utilizado pelo marechal Davoust a fazer passar da margem direita para a esquerda
(1) Que não haja estranheza por se encontrarem constantemente nomes franceses, como os de Bellegarde, Thierry, Lusignan, Latour. etc, nas fileiras austríacas. Há três séculos que assim acontece.
do Danúbio as divisões Saint-Hilaire e Gudin, e a cavalaria pesada do general Saint-Sulpice, enquanto a cavalaria ligeira do general Montbrun efectuava, alargando-se em leque sobre Strauling, Eckmuhl e Abach, reconhecimentos que tinham por finalidade aferir de qual a posição real do arquiduque. É que o marechal Davoust, como se lhe faltasse o ar, a ele e aos seus cinquenta mil homens, sentia-se instintivamente encurralado entre o exército húngaro, que acabara de repelir a divisão Friant, e o grosso do exército austríaco, que pela rota de Landshut se aproximava.
O ponto de encontro geral, conforme já vimos, fora marcado para o planalto do Abbens, em Abensberg.
A 19, pela manhã, o general Davoust pôs-se a caminho.
Não faremos uma história dessa célebre campanha, e por conseguinte não seguiremos a bela, prudente e sábia marcha do marechal sobre a margem direita do grande rio, entre os seus terríveis inimigos. Contentar-nos-emos em seguir a sombra de uma conspiração que tinha por finalidade efectuar com o punhal o que o destino se recusava a realizar com a espada, com a espingarda ou com o canhão.
Por entre este gigantesco movimento de tropas, será todavia aos passos de Napoleão que iremos recorrer, uma vez que ele é o alvo ameaçado pelos acontecimentos que o precedente capítulo deu a conhecer.
Na noite de 19 para 20, Napoleão descera de Ingols tadt para Vohbourg. Ali, soube de um fraco recontro contra os austríacos, que haviam avançado até Abensberg - local escolhido pelo imperador para concentração das suas tropas - e foram repelidos, pelo que o planalto onde deveria estacionar o general Davoust estava livre.
Durante todo esse dia 19, ouvira-se troar o canhão.
A 20, pelas 9 horas da manhã, uma cavalgada composta pelo imperador e todo o estado-maior do príncipe de Neuchâtel, chegara ao planalto de Abensberg, precedida por batedores, e detivera-se no local mais elevado, a cem passos, mais ou menos, da casa do pastor Stiller.
Haviam feito a Napoleão o convite para subir a uma habitação. Mas ele preferira manter-se ao ar livre, sobre uma escarpa de onde dominava a região, até Birwang, pela direita, e até Thann, pela esquerda.
Além disso, na sequência de uma conversa com o seu batedor Schlick, o príncipe de Neuchâtel havia tomado as suas precauções para defesa do imperador.
Desde a véspera à noite, todo o regimento que ocupava Abensberg havia recebido ordem de se alojar nas casas que circundavam o planalto, de acampar nos intervalos das casas e nas ruínas do velho castelo.
Sem que disso se apercebesse, e sobretudo sem que a sua preocupação lhe permitisse que o notasse, Napoleão estava assim rodeado por um cerco de soldados que velavam por ele. Para cúmulo, o imperador nunca se preocupara com cuidados desse tipo. Isso competia aos que o rodeavam. Fosse porque acreditava na Providência, como um cristão, na fatalidade, como um muçulmano, ou no destino, como um romano, a verdade é que se oferecia às balas do inimigo tão bem como ao punhal dos fanáticos. A sua vida pertencia a Deus, que havia delineado os Seus planos relativamente ao imperador.
Segundo o costume, foi montada uma mesa, e sobre esta abriram-se os mapas, e fizeram-se os relatórios.
Vejamos o que se passara na véspera.
O marechal Davoust partira de Ratisbonne ao nascer do dia, e em quatro colunas. A guarda avançada seguia à frente, e à esquerda, pela rota de Ratisbonne a Landshut, passando por Eckmúhl; duas colunas marchavam ao centro, por caminhos de aldeia. Finalmente, a extrema-direita era composta pelas bagagens, e seguia a rota que se estende ao longo do Danúbio, entre Ratis-bonne e Mainburgo.
No mesmo dia, o arquiduque Carlos, que estava em Rohr - ou seja: sobre um planalto mais ou menos semelhante ao de Abensberg, dominando simultaneamente o vale do Danúbio e o do grande Laber, rio que segue um percurso inverso ao do Abbens e vai lançar-se no Danúbio quinze léguas mais abaixo de Ratisbonne, outro tanto acontecendo ao Abbens, mas quinze léguas mais além. - Nesse mesmo dia 19, dizíamos nós, ao mesmo tempo que o marechal Davoust recebia e dava execução à ordem de marchar sobre Abensberg, o príncipe Carlos, julgando encontrar ainda o marechal em Ratisbonne, tomou a resolução de marchar sobre ele, e esmagá-lo entre os oitenta mil homens que conduzia e os cinquenta mil homens do exército de Bellegarde, que deveria estar a chegar pela Boémia e que, conforme vimos, efectivamente chegara, uma vez que dera que fazer à divisão Friant.
Resultou destes dois movimentos que Napoleão iria encontrar Abensberg vazia, e o príncipe Carlos - salvo o regimento que fora deixado pelo marechal Davoust - encontrara Ratisbonne evacuada. Mas assim, dada a linha diagonal que as formações seguiam, era inevitável que em qualquer local as extremidades dos dois exércitos se encontrassem.
O príncipe Carlos seguia a vertente oriental da cadeia de colinas que separam o vale do Danúbio do vale do grande Labor. O marechal Davoust seguia a vertente ocidental.
Às 9 horas da manhã, duas das testas de coluna francesas haviam franqueado as colinas, e passaram da vertente ocidental para a vertente oriental.
A divisão Gudin, que formava a extrema esquerda, havia espalhado à distância os atiradores do 7.o Ligeiro. Esses atiradores encontraram os do príncipe Rosenberg, e trocaram com eles um certo número de rajadas. Mas o marechal Davoust, reconhecendo que o contacto não era coisa séria, metera o cavalo a galope, e fora pessoalmente dar a ordem às duas colunas para continuarem a marcha, e aos atiradores para seguirem as colunas, dando a entender que cediam terreno.
Os atiradores austríacos haviam-se assim apoderado da aldeia de Schneider, evacuada pelo 7.º Ligeiro, e o corpo do general Rosenberg, ao qual pertenciam, abatera-se sobre Dinsling, enquanto o corpo do general Hohenzollern entrava em Hausen, havia pouco evacuada pelas últimas companhias do 1º Ligeiro, e ocupava o maciço de bosques formando, face à aldeia de Tengen, uma imensa ferradura.
Ali, com efeito, deveriam verdadeiramente bater-se as duas extremas esquerdas, a francesa e a austríaca. E na verdade foi ali que se bateram.
Era a notícia deste recontro que levavam a Napoleão.
Fora terrível!
Combatera-se em Dinsling. Nesse local, enfrentavam-se Montbrun e Rosenberg.
Combatera-se em Tengen. Ali, enfrentaram-se Saint-Hilaire e Friant contra Hohenzollern e os príncipes Luís e Maurício de Liechtenstein.
Além disso, houvera também combates em todos os postos intermediários que ligavam as duas extremas-esquerdas.
Somente que o arquiduque Carlos se enganara. Tomara a extrema-esquerda francesa pela extrema-direita, e julgara ter diante de si Napoleão e todo o grosso do exército francês, ao passo que este se escapava entre o Danúbio e o grosso do próprio exército austríaco.
Resultou daí que, lavrando neste erro, o príncipe Carlos se mantivera nas alturas de Grub, imóvel espectador do combate, com doze batalhões de granadeiros, não querendo arriscar uma batalha definitiva antes de ter reunido a si o corpo do exército do arquiduque Luís.
Consequentemente, enviou ordens ao arquiduque Luís e manteve-se no mesmo sítio, preparando-se, com a sábia lentidão dos príncipes austríacos, para atacar na manhã seguinte.
Ora, vejamos quais os pormenores que Napoleão recebeu acerca do combate travado na véspera:
A guarda avançada do general Montbrun perdera duzentos homens. A divisão Friant, trezentos. A divisão Saint-Hilaire, mil e setecentos; a divisão Morand, vinte e cinco; e a divisão bávara, cem ou cento e cinquenta cavaleiros.
Ao todo, dois mil e quinhentos homens, mais ou menos.
Por seu turno, o inimigo havia perdido: em Dinzling, quinhentos homens; em Tengen, quatro mil e quinhentos; em Nuch e em Arnhofen, setecentos ou oitocentos.
No todo, cerca de seis mil homens.
Napoleão vira o que não pudera ver o arquiduque Carlos: tal como a águia que adoptara para sua insígnia, planava sobre os acontecimentos com as suas asas de génio. Quase simultaneamente com a sua chegada a Abensberg, chegava também ali o general Davoust, por Tengen e Burkdorff, e o marechal Lannes surgia do lado de Neustadt, ao passo que a divisão Wrède, estabelecida entre Biburgo e Siegenburgo, estava pronta a passar o Abbens.
Napoleão decidiu que o exército iria evolucionar em Tengen, forçar os postos centrais do exército austríaco, cortar em duas a linha de operação do príncipe Carlos, e lançar toda a sua retaguarda no Danúbio, em Landshut. Depois do que regressaria, e se o príncipe Carlos não estivesse na secção do exército já destruída ou dispersa, viria com todas as suas forças colocar o arquiduque e o seu exército entre dois fogos.
Em consequência, ordenou ao marechal Davoust que se mantivesse firme, com vinte e quatro mil homens, em Tengen. Ordenou a Lannes que marchasse a direito, à sua frente, com vinte e cinco mil homens, e que se apoderasse de Rohr, fosse a que preço fosse. E ordenou ao marechal Lefebvre, que comandava quarenta mil wurtenburgueses e bávaros, que tomassem Arnhofen e Offenstettes. Finalmente, e prevendo que na manhã seguinte a retaguarda austríaca, em retirada, tentaria voltar a passar o Danúbio em Landshut, ordenou ao marechal Massena, que se tornava inútil a partir do momento em que dispunha de noventa mil homens, que se colocasse directamente em frente a Landshut, por Freising e Moosburgo.
Depois, assistiu ao desfile dos wurtemburgueses e dos bávaros, inimigos transformados em aliados, que iam colocar-se em linha, exaltando-os à medida que passavam, deixando depois de cada exortação o tempo necessário aos oficiais para efectuarem a tradução.
Napoleão gritava-lhes:
"Povos da grande família germânica, não é por mim que hoje os mando combater, é por vós. É a vossa nacionalidade que defendo contra a ambição da casa da Áustria, desesperada por já não vos ter sob o seu jugo.
"Desta vez, cedo lhes oferecerei a paz, e para sempre. E fá-lo-ei com um tal crescimento de poder que no futuro poderão defender-se a si próprios contra as pretensões dos vossos antigos opressores.
"Além disso - acrescentou, enquanto montava a cavalo e se ia colocar entre as fileiras - é convosco que hoje quero combater, e entrego a sorte da França e a minha vida à vossa lealdade."
Mal havia ele pronunciado estas palavras, fez-se ouvir um tiro de espingarda, e o chapéu do imperador, catapultado da cabeça, caiu a seis pés do cavalo.
Dissemos mal, ao afirmar que "fez-se ouvir um tiro de espingarda". O tiro de espingarda mal se ouviu entre o tumulto, e a queda do chapéu foi atribuída ao movimento um pouco brusco que a montada fizera.
Um oficial bávaro saiu das fileiras, colheu o chapéu e apresentou-o a Napoleão.
O imperador lançou-lhe um rápido golpe de vista, sorriu e recolocou-o na cabeça.
Depois do que a multidão de soldados espalhou-se e desceu do planalto, em marcha para Arnhofen.
Chegado à base do planalto, Berthier aproximou-se do imperador para receber as últimas ordens. Napoleão deu-lhas. Depois, pegando no chapéu e mostrando ao major-general o orifício de uma bala:
 - Seis polegadas mais abaixo - disse-lhe tranquilamente - e o rei da França chamava-se Luís XVIII!
Berthier empalideceu ao ver o perigo por que acabara de passar o imperador, e, voltando-se para um ajudante de campo, comandou:
 - Que me tragam imediatamente o tenente Paul Richard!
VII.
Cinco vitórias em cinco dias
O que Napoleão previra concretizou-se.
Lannes, que mantinha a esquerda com vinte e cinco mil infantes, mil e quinhentos caçadores e três mil e quinhentos couraceiros, avançou sobre Rohr, que, segundo a ordem recebida, recordemo-lo, deveria tomar, fosse a que preço fosse, seguindo por Offenstetten e Bachel.
Marchava através de uma região semeada de bosques e cortada por inúmeros desfiladeiros, de forma que a sua cabeça de coluna atacou repentinamente, e de flanco, o general austríaco Thierry e a sua infantaria. A cavalaria, que cumpria um movimento ordenado pelo arquiduque Carlos, há muito que havia passado, deslocando-se muito mais depressa do que a infantaria.
Lannes mandou atacar essa infantaria pelos seus mil e quinhentos caçadores a cavalo, os quais caíram sobre ela à rédea solta.
Em vez de formar em quadrado e esperar a carga, a infantaria, que ignorava quão pesado era o número de cavaleiros a que faria frente, tentou alcançar o abrigo dos bosques. Mas antes de lá chegar, foi passada a sabre.
O general Thierry retirou em desordem para Rohr, onde encontrou o general Schustecu.
Os dois generais reuniram as suas forças.
Mas Lannes lembrava-se da ordem que recebera: tomar Rohr a todo o preço; de modo que os seus caçadores perseguiram os fugitivos, espetando-lhes os sabres nos rins.
Os generais austríacos dispunham de três mil hussardos, que lançaram sobre os caçadores. Ao ver estes movimentos, Lannes lançou por seu turno um regimento de couraceiros, que atravessou de ponta a ponta a divisão de hussardos, forçando-a a retirar para a aldeia de Rohr.
Nesse momento chegaram os vinte mil infantes.
O 30.º regimento, apoiado pelos couraceiros, ataca a aldeia de frente, enquanto o 13.º e o 17.º se esgueiravam para a direita e para a esquerda, a fim de fecharem o cerco.
Os dois generais austríacos, no interior da aldeia, mal tiveram tempo para retirar. Ao fim de meia hora de combate, as suas colunas espalhavam-se de Rohr a Rothenburgo.
Lannes destacou um mensageiro que partiu a galope para levar ao imperador a notícia de que Rohr estava tomada, e que empurraria os austríacos à sua frente enquanto houvesse luz para disparar uma espingarda.
Esta notícia chegou a Napoleão na altura em que os seus wurtenburgueses e bávaros levavam à frente o arquiduque Luís na rota de Neustadt a Landshut. Perseguição que durou todo o dia e só permitiu ao arquiduque um repouso em Pfaffenhausen.
Ao tomar conhecimento da tomada de Rohr, Napoleão lançara-se no encalço de Lannes. À noite chegou a Rothenburgo. Fora ali que o seu tenente se havia detido, tal como prometera, e só por causa do cair da noite.
O dia fora esplêndido.
Lannes perdera apenas duzentos homens, e havia morto ou aprisionado quatro mil homens ao inimigo.
O general Thierry estava incluído entre os prisioneiros.
Os bávaros e os wurtemburguéses de Lefebvre perderam mil homens, depois de terem morto três mil inimigos e de terem empurrado estes últimos para o Isar.
Mas a importância do dia não estava no número de homens mortos em combate, se bem que os números representassem algo. A importância residia na separação do arquiduque Carlos da respectiva esquerda. O exército austríaco estava cortado em dois por Napoleão, que comandava uma massa de cerca de cem mil homens. Iria finalmente demonstrar estar correcto nas suas previsões, ao atacar, um após outro, esses dois pedaços de serpente mutilada.
Somente que Napoleão ignorava a verdadeira posição do príncipe Carlos. Julgou-o retirado para o Isar, e resolveu abater-se sobre ele na manhã seguinte, com todas as suas forças, a fim de surpreendê-lo em Landshut - ou seja: na passagem do rio que se lança no Danúbio a oito ou dez léguas de Landshut.
Se Massena não encontrasse obstáculos na sua rota, e se chegasse a tempo, tudo o que houvesse de austríaco entre Napoleão e o Isar seria morto, prisioneiro ou afogado. Consequentemente, é dada ordem a Davoust, que não se mexera de Tengen, onde servia de base a todo o exército, para que ali deixasse algumas tropas às suas ordens, e que seguisse o movimento do exército na direcção do Isar, livre para em seguida regressar sobre Ratisbonne, a fim de esmagar ali Bellegarde e os seus, mal fosse consumada a captura do arquiduque Carlos.
Napoleão acaba por crer que é ao próprio príncipe que persegue. Não tem a mínima dúvida de que aquelas poucas tropas que Davoust mantém em respeito são o grosso do exército austríaco. Como supor, com efeito, que durante trinta e seis horas o arquiduque Carlos, à cabeça de quase sessenta mil homens, não tenha dado sinal de existência?
Acontece que durante todo o dia 20 - ignorando que o exército francês se esgueirara entre ele e o Danúbio - o príncipe Carlos espera que Napoleão ataque de frente, não querendo ser ele a atacar, ele, que não fizera a junção das suas tropas com o exército do arquiduque Luís. Será escusado dizer que em vão esperou. São esses cinquenta mil homens que Napoleão está prestes a empurrar para o Isar e lançá-los no rio.
Só que ao ouvir o tiro do canhão, o arquiduque compreendera que algo se passava na sua retaguarda. Dera meia-volta e dirigira-se para Ratisbonne, onde deveria encontrar o exército da Boémia, e estacionou na rota entre Ratisbonne e Landshut, ficando com Eckmiihl. Napoleão nem sequer mudou de roupa, tão ansioso estava por ter o recontro com os austríacos, na manhã seguinte. Mas mais apressados ainda em fugir estavam os austríacos.
Chegaram durante a noite a Landshut, por dois caminhos entre Rothenburgo e Pfaffenhausen.
Entretanto, Napoleão reflectira. Os austríacos pareciam ter abandonado o terremo muito facilmente. Seria o grosso do exército, ou uma ínfima parte, a que ele levava assim à sua frente, como o vento do Outono leva as folhas secas? Não estaria Davoust, a quem deixara para trás, exposto a ser cercado, ele e os seus vinte e quatro mil homens, por um desses ardorosos golpes de mão de que os seus inimigos tivessem podido saber o segredo?
Tratava-se de um dos frequentes golpes de génio de Napoleão, o que rompia por entre essa gloriosa noite que separava dois dias de vitórias.
Destacou a divisão do general Demont, os couraceiros do general Nansouty, as divisões bávaras do general Deroy e do príncipe herdeiro, e enviou toda essa gente a Davoust, enquanto ele, com os vinte e cinco mil homens de Lannes e os bávaros do general Wrède, iria continuar a perseguir os austríacos em Landshut, onde, aliás, julgava ir encontrar Massena com uns trinta mil homens.
Cerca das 9 horas da manhã, o imperador estava em Altford com a infantaria do general Morand, os couraceiros e a cavalaria ligeira.
Ao longo de todo o caminho haviam capturado fugitivos, feridos, artilharia e bagagens. A retirada transformava-se definitivamente em derrota.
À saída dos bosques, sobre uma espécie de planalto de onde dominava a fértil planície do Isar com a cidade de Landshut em frente, deteve-se.
Era um bom espectáculo, para um vencedor!
O exército inimigo fugia como em debandada; cavalaria, infantaria, artilharia, bagagens, tudo isso se pressionava e amontoava à entrada das pontes. Era um tumulto assustador, uma indizível confusão.
Mais não havia a fazer do que matar.
Mas, na sua pressa de chegar e ver, Napoleão havia ultrapassado o grosso do seu corpo de exército. Chegara ao planalto com pouco mais de oito ou dez mil homens. O resto vinha atrás.
Bassières, à cabeça dos couraceiros, e Lannes, no comando dos caçadores do 13.º Ligeiro da divisão Morand, carregaram ambos como simples colunas avançadas sobre essa massa oito vezes mais numerosa.
A cavalaria austríaca saiu então de toda essa confusão, e tentou detê-los e defender a passagem. Mas couraceiros, caçadores, infantaria - todos eles sentindo que tinham por si a boa estrela do imperador, que estava entre eles - derrotaram essa cavalaria.
Os austríacos fizeram um supremo esforço, e juntaram a infantaria. Mas a divisão Morand chegou em peso, e a infantaria austríaca, já de si assustada, foi forçada a regressar às pontes.
Infelizmente, a artilharia francesa não pudera acompanhar a luta. Porque se assim não fosse, ter-se-ia colocado uma dúzia de canhões em linha, e ter-se-ia passado a metralha e a balas toda aquela multidão que assim era preciso atravessar a golpes de sabre e à baioneta. A arma branca mata... mas lentamente, ao passo que o canhão cumpre mais depressa esse serviço.
De resto, enquanto isso, eram reunidos os fugitivos dispersos pela planura, aqueles que não tinham qualquer esperança de passar as pontes, e que se rendiam, não ousando lançar-se ao Isar. Foram confiscados os canhões, as bagagens e até um soberbo trem de pontões montado em carroças, com o qual havia a ideia de atravessar não só o Danúbio, mas até o próprio Reno.
Era o chicote que Xerxes havia transportado para castigar os gregos, mas com o qual fora obrigado a bater no mar.
À medida que o exército inimigo passava as pontes, uma parte retirava para Neumarkt, rumo a Múhldorf, enquanto os que pareciam menos apressados pelo medo tomavam posição na cidade de Landshut e no subúrbio de Seligenthal. Mas ao tempo em que a divisão Morand, que, como dissemos, havia chegado em peso, as cabeças de coluna de Massens apareciam em Moosburgo. Chegavam demasiado tarde para cortar a retirada aos austríacos, mas suficientemente cedo para a precipitar.
De repente, viu-se surgir na direcção da ponte principal uma grande nuvem de fumo. Eram os austríacos que incendiavam essa ponte a fim de ao mesmo tempo poderem colocar a água e o fogo entre eles e os franceses.
Napoleão virou-se para um dos seus ajudantes de campo.
 - Vamos, Mouton! - disse ele. O general compreendeu, tomou conta do comando do 17.º, e sem outra exortação para além destas palavras: "O imperador tem os olhos em vocês", conduziu-o em linha recta para a ponte incendiada.
A ponte foi atravessada sob a ameaça de duas espécies de morte: a água e o fogo, e as balas. Depois, lançou-o nas escarpadas ruas de Landshut.
Das elevações da cidade, os austríacos puderam ver as massas francesas surgirem de todos os lados. Napoleão, com vinte e cinco mil homens, Wrède com vinte mil, e Massena com outros vinte mil.
Não havia meio de sustê-los. O inimigo era superior.
Pouca gente foi morta, dois ou três mil homens, talvez. Havia faltado o canhão. Mas foram feitos sete ou oito mil prisioneiros, haviam sido confiscadas bagagens, material e artilharia. Além disso fora desfeita - o que é bem mais importante - a linha de operação do arquiduque, de forma a que ela jamais pudesse ser readquirida.
No momento em que a fuzilaria começava a apagar-se, Napoleão deteve-se e apurou o ouvido.
Atrás dele, entre o pequeno e o grande Laber, fazia-se ouvir o canhão.
Com o ouvido exercitado de um artilheiro, Napoleão reconheceu que se combatia a algumas oito ou nove léguas dali.
Tratava-se, com certeza, de Davoust que entrara em contacto com o inimigo.
Mas que inimigo?
Seria o exército de Bellegarde que chegara da Boémia? Seria o exército austríaco comandado pelo príncipe Carlos? - é que o imperador começava a temer ter deixado o arquiduque na sua retaguarda; ou seriam ambos - ou seja: uma massa de cento e dez mil homens, mais ou menos?
Um só desses exércitos teria sido por si só demasiado para os quarenta mil homens de Davoust.
No entanto, Napoleão não podia abandonar a sua posição e, ao recuar perante o exército vencido, permitir a este que se reagrupasse e que acabasse por atacá-lo pelas costas.
Esperou, fiando-se na coragem e na prudência do marechal Davoust. Mas esperou em plena ansiedade.
O canhão continuava a troar com a mesma intensidade, e ecoava até Eckmuhl.
Às oito horas da tarde, lentamente, o fogo cessou.
Na noite precedente, Napoleão atirara-se completamente vestido para cima da cama; desta vez, nem sequer se deitou.
Às 11 horas, anunciaram-lhe o general Pire, que vinha da parte do marechal Davoust.
O imperador soltou um grito de alegria, e correu ao encontro do general.
 - E então? - perguntou-lhe, antes que o outro tivesse sequer tempo de abrir a boca.
 - Vai tudo bem, sire! - apressou-se a responder o general.
 - Bom! Sois vós, Pire? Tanto melhor! Que se passou? Conte-me isso.
Então, Pire contou a esse homem de bronze, que de dia combatia e velava à noite, o que se passara durante o dia.
Cumprindo o seu movimento e apoiando à esquerda, Davoust havia encontrado os corpos do exército de Hohenzollern e de Rosenberg. Atacara-os, e, para limpar a estrada, havia-os feito retirar para Eckmuhl.
Durante essa retirada dos austríacos, haviam sido valentemente tomadas à baioneta as aldeias de Paring e de Schierling. Estava-se no meio dessa luta, que durava já há três horas, quando foram vistos os reforços enviados por Napoleão, que chegavam.
Então, Davoust compreendera que, uma vez que o imperador lhe cedia vinte mil homens, era porque já não tinha necessidade deles, a não ser para guardar o inimigo à vista.
O inimigo havia-se intrincheirado em Eckmuhl, e parecia disposto a defender-se ali. Davoust contentou-se pois em bombardeá-lo - o que, aliás, era dar notícias ao imperador pela voz que lhe era mais familiar: a do canhão.
E essa voz, Napoleão ouvira-a. E o general Pire acabava de traduzi-la.
Davoust havia perdido mil e quatrocentos homens, e havia matado três mil austríacos.
Por seu turno, Napoleão havia perdido em Landshut três centenas de homens, ao passo que, conforme já vimos, matara ou aprisionara sete mil ao inimigo. Total da jornada: dez mil austríacos fora de combate. Enquanto o general Pire estava ainda com ele, anunciaram um correio vindo de Ratisbonne. Passara por Abensberg, Pfaffenhause e Altdorf, o que equivale a dizer que percorrera o mesmo caminho de Napoleão.
Vejamos quais eram as novidades que trazia.
Recordamo-nos que o imperador havia dado a Davoust ordem para deixar um regimento em Ratisbonne. Era bem pouca coisa, um regimento! Mas, como tinha necessidade de todas as suas forças, Napoleão não se permitira deixar mais.
Davoust havia escolhido o 65.º regimento, comandado pelo coronel Coutard. Tinha confiança nesse regimento, e também no respectivo comandante.
O coronel deveria barricar as portas, formar barreiras nas ruas e defender-se a todo o transe.
A 19, dia da batalha de Abensberg, o exército da Boémia, com cinquenta mil homens, apresentara-se às portas de Ratisbonne.
O regimento entrara em combate contra o exército, e a tiro havia-lhe matado cem homens. Mas na manhã : seguinte, sobre a margem direita do Danúbio, surgira o exército do arquiduque Carlos, que vinha de Landshut.
O regimento disparara contra esse novo exército o que lhe restava de cartuchos. Depois, na impossibilidade de defender uma cidade como Ratisbonne com duas mil baionetas contra mais de cem mil, o coronel Coutard conseguira pelo menos um adiamento, passando toda a manhã a parlamentar. E, finalmente, cerca das cinco horas da tarde, havia-se rendido exigindo que fosse dado um salvo-conduto a um mensageiro seu.
Esse mensageiro partira logo a galope. Fizera uma vintena de léguas em dez horas, e à uma hora da manhã estava diante do imperador, em Landshut.
A notícia que assim se recebia era das mais importantes. O coronel Coutar e o seu regimento estavam prisioneiros. Mas Napoleão tinha pormenores sobre a posição do inimigo.
O exército da Boémia e o exército austríaco haviam efectuado a sua junção, e o arquiduque Carlos dominava a região compreendida entre Eckmúhl e Ratisbonne.
Assim, esse inimigo que Davoust guardava à vista era o corpo do exército do príncipe Carlos! O imperador apenas tinha que voltar a bater-se em Eckmúhl, e esmagá-lo entre os quarenta mil homens de Davoust e os seus oitenta mil. Só que não havia tempo a perder.
O general Pire voltou a montar a cavalo e partiu para Eckmúhl. Devia anunciar ao marechal Davoust que o imperador, com todas as suas forças, chegaria entre o meio-dia e a uma hora. A sua posição seria anunciada por um tiro de bataria. Cinquenta peças de artilharia fariam fogo ao mesmo tempo. Seria esse o sinal de ataque para Davoust.
Com o mensageiro a caminho, o imperador lançou para além do Isar e em perseguição dos quarenta mil homens do arquiduque Luís - em três dias, este perdera vinte e cinco mil! - a cavalaria ligeira do general Marulaz, uma parte da cavalaria alemã, a divisão bávara de Wrède e a divisão Molitor.
Em seguida, escalonou outros vinte mil homens entre o Danúbio e o Isar, de Neustadt a Landshut.
Depois, expediu - pelo caminho de Landshut a Ratisbonne e pelo vale do grande Laber - o general Saint-Sulpice com os seus quatro regimentos de couraceiros, o general Vandamme com os seus wurtemburgueses, e o marechal Lannes com os seis regimentos de couraceiros do general Nansouty e as duas divisões Morand e Gudin.
A ordem era para caminhar toda a noite, chegar diante de Eckmúhl ao meio-dia, repousar uma hora, e atacar.
Finalmente, ele próprio partiu com as três divisões de Massena e a divisão de couraceiros do general Espagne.
Assim, Davoust tinha cerca de trinta e cinco mil homens; os generais Vandamme e Saint-Sulpice levavam-lhe treze ou catorze mil; Lannes, vinte e cinco mil, Napoleão quinze ou dezasseis mil. Era assim uma coisa como uma massa de noventa mil homens, aquilo a que o arquiduque Carlos teria de fazer face.
Nesse momento, o arquiduque, depois de ter hesitado dois dias, tomava enfim uma decisão: tentar efectuar contra a linha de operação francesa a mesma manobra que Napoleão acabava de executar contra os austríacos.
Resolveu tentar um ataque contra Abach.
Ora, como os couraceiros do general Montbrun - que a 10, tal como vimos, combatera em Dinsling - haviam ficado em Abach e continuavam a manter escaramuças com as tropas ligeiras austríacas, o arquiduque julgou ter pela frente um número de tropas importante, quando afinal apenas mediria forças com um "pivot" do exército que, depois de ter sido a extrema-direita, passara a ser a extrema-esquerda e que, depois de ter formado a retaguarda durante todo o tempo que Napoleão marchava de Abensberg para Landshut, passara a ser a guarda-avançada a partir do momento em que Napoleão marchava de Landshut para Eckmúhl.
A fim de dar ao general Kollowrath, destacado no exército da Boémia, tempo de passar para a margem esquerda do Danúbio, o príncipe Carlos decidiu que o ataque só teria lugar entre o meio-dia e a uma hora.
Recordemo-nos que este fora o momento escolhido por Napoleão para forçar a passagem até Eckmuhl.
Duas colunas deveriam ser utilizadas nesse movimento. Uma, de vinte e quatro mil homens, que marcharia de Burg-Weinting para Abbach, e outra, de doze mil homens, que carregaria de Weilhoe sobre Peising, enquanto uma terceira tinha ordens para se manter imóvel enquanto evolucionavam as outras duas colunas - e era composta por quarenta mil homens, distribuídos pelos corpos de Rosenberg, que face ao marechal Davoust estavam colocados nas aldeias de Ober e de Unter-Leuchling, dos corpos de Hohenzollen, que cortava a fuga de Eckmuhl, pelos granadeiros da reserva e pelos couraceiros que deviam guardar, na direcção de Egglofsheim, a planície de Ratisbonne. A noite passou-se nestes movimentos. O dia levantou-se nebuloso. Um espesso nevoeiro cobria toda a planície, e só cerca das nove horas da manhã se esfumou.
Dissemos que era preciso dar tempo ao general Kollowrath para atravessar o Danúbio. E só ao meio-dia essa passagem ficou concluída. Até aí, não se ouvira um só tiro de espingarda. Os dois corpos de exército iam pôr-se em marcha, um sobre Abach, o outro sobre Peising, quando, repentinamente, ressoou um assustador disparo dos lados de Buchausen.
Era o exército francês em peso, conduzido por Napoleão, que surgia diante de Eckmuhl.
O imperador não tivera necessidade de dar o sinal convencionado. Ao verem-no chegar, os austríacos haviam-no saudado com forte metralha.
Os wurtemburgueses, que constituíam a testa da coluna, caíram a princípio, sob esse terrível fogo, seguido por cargas de cavalaria ligeira do general Wukassovitch. Mas Vandamme levou-os para a frente, e, apoiado pelas divisões Morand e Gudin, rumou a passo de corrida a aldeia de Lintach, depois obliquou para a esquerda com a divisão Demon e dos bávaros, as quais haviam desde a véspera sido para ali enviadas pela previsão de Napoleão.
Ao ruído do canhoneiro, Davoust havia dado liberdade às suas duas divisões, que há mais de uma hora esperavam com impaciência.
A artilharia começou por abrir caminho, espalhando sobre a frente do inimigo um dilúvio de metralha.
Sob este terrível fogo, os austríacos abandonaram a sua primeira linha, e, entrincheirando-se nas aldeias de Ober-Lenchling e de Unter-Leuchling, receberam por seu turno com feroz fuzilaria a divisão Saint-Hilaire, que se lançara na perseguição. Mas tinham que haver-se com homens habituados ao fogo.
A aldeia de Ober-Leuchling foi a primeira a ser tomada à baioneta. Mais escarpada, melhor barricada, a de Unter-Leuchling defendeu-se com maior encarniçamento. Sob o duplo fogo da aldeia e do planalto que o dominava, o 10.º Ligeiro perdeu quinhentos homens nos cinco minutos que levou a subir a escarpa. Mas a aldeia fora atingida, e, uma vez alcançada, caíra também.
Nela penetrou o 10.º Ligeiro, matando todos os que opuseram resistência, e fez três centenas de prisioneiros.
Os defensores de ambas as aldeias haviam-se então retirado para o planalto. E no meio de uma assustadora fuzilaria, o 10.º Ligeiro ali os perseguiu.
O general Friant lançou imediatamente a sua divisão pelos bosques que se estendem entre essas duas aldeias.
O general Barbanegra colocou-se pessoalmente à cabeça do 48.º e do 111.º, e avançou de baioneta em punho através da metralha, rechaçou para lá das duas aldeias três regimentos - do arquiduque Luís, de Chasteler e de Coburgo - e empurrou-os para a retaguarda de Eckmuhl.
Então, a confusão foi total.
O corpo do general Rosemberg, encurralado, como acabamos de dizer, na retaguarda de Eckmuhl, tentava manter-se, mau grado as cargas do 48.º e do 111.º. A cavalaria bávara, apoiada pelos couraceiros, carregava na pradaria sobre a cavalaria austríaca; os infantes wurtemburgueses tentavam tomar a vila de Eckmuhl à infantaria de Wukassovitch, e, conseguindo entrar nela à segunda carga, forçavam toda a infantaria inimiga a subir para as zonas mais altas.
Restava a Napoleão estoirar à luz do dia com as massas que povoavam a retaguarda da aldeia, e precipitar das elevações em que se haviam refugiado os regimentos do arquiduque Luís, de Chasteler e de Coburgo, toda a infantaria de Wakossovitch e uma parte da brigada de Biber.
Lannes recorreu à divisão Gudin, atravessou o grande Laber, subiu verticalmente as elevações de Rockiag, contornou a direita austríaca, e regressou sobre ela, expulsando-a de planalto para planalto.
Entretanto, Napoleão lançava a sua cavalaria sobre um montado em que se juntavam os austríacos em retirada.
Vendo este movimento, os austríacos detiveram-se e lançaram sobre os cavaleiros bávaros e wurtemburgueses a sua cavalaria ligeira, a qual, carregando a fundo, ajudada que era pelo declive do terreno, fendeu os aliados. Mas, vencidos os bávaros e os wurtemburgueses, a cavalaria inimiga encontrou-se face a um muro de ferro: eram os couraceiros.
Esse muro de ferro lançou-se a galope, passou sobre o corpo da cavalaria austríaca, esmagou toda a massa inimiga, e chegou ao cimo do planalto no mesmo momento em que, do lado oposto, a infantaria do general Gudin, senhora de Rocking, aparecia na elevação.
Os infantes viram essa bela carga, esses esplêndidos cavaleiros que haviam carregado, a subir, como os inimigos haviam feito a descer, e toda a divisão bateu palmas e gritou:
 - Vivam os couraceiros!
Ao mesmo tempo, o general Saint-Hilaire, tomando o planalto arborizado que dominava Unter-Leuching, expulsava o inimigo de rampa em rampa, e, mau grado as cargas dos cavaleiros ligeiros de Vincent e dos hussardos de Stipsciz, lançava-os em desordem para a mesma retaguarda onde reinava tão terrível confusão.
O obstáculo foi forçado. Em fuga, os austríacos procuravam abrigo a coberto dos seus últimos couraceiros, que se mantinham em linha de combate em Egglofsheim - ou seja: cerca de duas léguas distante de Eckmuhl.
Então, as vagas francesas surgiram por seu turno na planura, com a cavalaria ao centro e a infantaria nos flancos.
A cavalaria era composta pelos regimentos bávaros e wurtemburgueses e por dez regimentos de couraceiros dos generais Nansouty e Saint-Sulpice.
Um tremor de terra não teria abalado mais profundamente o chão do que essa carga de quinze mil cavaleiros!
As divisões Friant e Saint-Hilaire, excitadas pela vitória, corriam nos flancos com um passo quase tão rápido como os cavaleiros.
O choque foi terrível.
Ao ver o inimigo aproximar-se, a cavalaria austríaca havia por seu turno largado a toda a brida, e cavalgara ao encontro dos franceses.
Eram sete horas da tarde. Em Abril, é essa a hora do crepúsculo.
Verificou-se uma assustadora confusão, encarniçada, inaudita, na qual a cada instante se imiscuíam novos adversários: hussardos, cavaleiros ligeiros e couraceiros, bávaros, austríacos, franceses, todos eles vibrando golpes quase ao acaso na penumbra, fizeram refulgir durante uma hora, na escuridão que caiu, os golpes de sabres e as armaduras dos couraceiros.
Depois, de repente, como um rio que rompe um dique, toda essa multidão debandou rumo a Ratisbonne.
A última resistência fora esmagada e destruída. Uma vez em fuga, os couraceiros austríacos, que não usam protecções nas costas - como se jamais devessem mostrá-las ao inimigo - ficaram perdidos! Dois mil, de entre eles, juncaram o caminho com os seus cadáveres, todos eles mortos pelas costas, como se mortos por golpes de punhal.
Napoleão deu ordens para que o combate cessasse. Poder-se-ia encontrar o segundo exército do arquiduque, fresco e em boa ordem, e corria-se o risco de perecer perante ele.
Caso o arquiduque se mantivesse diante de Ratisbonne, na manhã seguinte travar-se-ia um quinto combate. Caso passasse o Danúbio, seria perseguido.
Eram horas de acampar. Os soldados morriam de fadiga. Os que chegaram de Landshut haviam caminhado desde o nascer do dia até às doze horas, e desde essa hora e até às oito da noite que se batiam.
As três divisões Massena chegaram às três horas da tarde, e não foi preciso incitá-las. A jornada fora dura! A vitória custara caro! Tivemos dois mil e quinhentos homens fora de combate. Os austríacos tiveram seis mil mortos ou feridos, e três mil prisioneiros. Perderam vinte e cinco ou trinta peças de artilharia.
Davoust, por seu turno, ganhou o título de príncipe de Eckmiihl, e Napoleão conquistou o direito de dormir algumas horas.
De resto, segundo todas as probabilidades, o arquiduque Carlos não arriscaria de forma alguma uma batalha na manhã seguinte. Tentará passar o Danúbio.
Na verdade, e conforme Napoleão previra, o arquiduque havia, durante a noite, tomado as suas posições.
Surpreendido no seu movimento em Peising, chegara a tempo de ver cair a vila de Eckmiihl, mas não suficientemente cedo para deter o movimento retrógrado das suas tropas. O exército estava demasiado desmoralizado para arriscar nesse momento uma batalha, sobretudo tendo o Danúbio nas suas costas. Por último, tem muito pouca cavalaria para que esta possa tentar defender a pradaria que se estende de Egglofsheim a Ratisbonne.
O arquiduque voltará pois a atravessar o Danúbio, metade do exército pela ponte de pedra de Ratisbonne; a outra metade sobre a ponte de barcas que o exército da Boémia trouxera com ele. O corpo do exército do general Collowrath, que não teve outro cansaço para além de ir até Abbach e regressar, cobrirá a retirada.
Desde as 3 horas da madrugada, começou a desfilar o exército do arquiduque. Embrenhou-se pelas duas pontes, deixando todo o corpo de exército de Collowrath em frente da cidade, a fim de disfarçar e proteger a deslocação, e, ainda à frente das tropas de Kollowrath, toda a sua cavalaria.
Os austríacos esperavam ser atacados assim que nascesse o dia, e não se enganaram: às quatro horas, Napoleão estava a cavalo.
Mal se conseguiu distinguir os objectos, a nossa cavalaria ligeira avançou. Tinha por missão reconhecer se acaso haveria uma batalha a travar, ou uma retirada para perseguir.
A cavalaria austríaca não lhe deu tempo para cumprir essas observações; lançou-se sobre a cavalaria francesa com a coragem dos bravos soldados que têm de vingar a derrota da véspera.
Então, uma balbúrdia semelhante à que só a noite interrompera na véspera, recomeçou. Sempre a combater, os cavaleiros austríacos retrocediam na direcção da cidade, chamando a atenção dos franceses, a fim de que os granadeiros e o resto da infantaria em fuga tivessem tempo de ganhar a outra margem do Danúbio, sobre a ponte de barcas.
Por fim, alguns hussardos aperceberam-se do que se passava, e, correndo ao encontro do general Lannes, mostraram-lhe o grosso do exército franqueando a corrente, para lá de Ratisbonne.
Lannes mandou chamar toda a artilharia de que dispunha, estabeleceu uma bataria, e fez com que caísse uma chuva de balas de obus sobre a ponte de barcas.
Ao cabo de uma hora, a ponte estava desfeita, um milhar de homens jaziam, mortos ou afogados, e os batéis, desunidos e incendiados, seguiam o curso do Danúbio, levando assim a Viena a notícia da derrota do arquiduque.
No lado oposto, e para dar tempo ao exército do príncipe Carlos para se movimentar, Kollowrath barricou-se na cidade, e fechou as respectivas portas diante das baionetas dos nossos caçadores.
A cidade tinha apenas uma muralha, com torres de distância em distância, e um grande fosso.
Napoleão ordenou que essa muralha fosse escalada. Não queria dar ao arquiduque o tempo necessário a fazer saltar a ponte de pedra, da qual necessitava para prosseguir a sua marcha.
Quarenta peças de artilharia foram colocadas em bataria em menos de um quarto de hora, e começaram a alvejar a muralha e a deitar fogo à cidade com o auxílio dos obuses.
Napoleão avançou até a metade do alcance de espingarda, perto da muralha que estava pejada de atiradores austríacos.
Inutilmente lhe suplicaram os que lhe eram mais dedicados para que se retirasse; recusava dar um único passo à retaguarda.
De repente, com igual sangue-frio ao de um mestre de armas que acusa um golpe de florete num assalto, afirma:
 - Tocado!
Berthier, que o não abandonara, e que fazia com que ele fosse o mais possível protegido, precipitou-se para o imperador, empalidecendo:
 - Eu bem lhe tinha dito, sire! Estava pendente, desde Abensberg!
 - Sim - consentiu Napoleão. - Somente que em Abensberg ele apontou demasiado alto, e em Ratisbonne ele visou demasiado baixo!
A 13 de Maio seguinte, Napoleão entrou em Viena, e o tambor-mor do 1.º regimento da guarda afirmava, frizando o bigode e olhando para o palácio do imperador Francisco II:
 - Ora aí está essa velha casa austríaca de que o imperador tanto nos falou!
VIII.
O estudante e o plenipotenciário
NA terça-feira 11 de Outubro de 1809 - ou seja, exactamente cinco meses depois da segunda capitulação de Viena imposta pelo exército francês - um oficial de cerca de quarenta anos, usando um uniforme de general austríaco e acompanhado por dois ajudantes de campo e um criado que levava um cavalo pela mão, seguia pela estrada que liga Altenburgo a Viena.
A franqueza da fisionomia e a limpidez do olhar, revelavam, seguindo o sistema frenológico de Gall, que, entre as qualidades ou os defeitos da sua formação - examinada que seja a coisa sob o aspecto diplomático ou moral - a astúcia não deveria ocupar mais do que um medíocre lugar, o que não impedia que o seu rosto fosse coberto por uma espécie de manto sombrio, não passando isso, evidentemente, do reflexo dos seus pensamentos.
O resultado desse estado de espírito foi que os dois ajudantes de campo, deixando o general entregue às suas preocupações, em vez de o escoltarem à direita e à esquerda, depois de trocarem um sinal de olhos, se haviam retirado para a retaguarda, e conversando despreocupadamente seguiam a principal figura da pequena cavalgada, eles próprios seguidos à distância pelo criado que levava um cavalo pela brida.
Eram cerca de quatro horas da tarde, e a noite ia cair.
Ao ver os cavaleiros que se aproximavam, um jovem que sem dúvida repousava na berma da estrada, levantou-se, atravessou essa berma e aproximou-se do local por onde teriam de passar o general e a respectiva comitiva.
Tratava-se de um jovem de estatura meã, com cabelos louros que caíam sobre os ombros, belos olhos azuis ensombrados por uma contracção de sobrancelhas que parecia ser-lhe habitual, e com louros bigodes, os quais, apenas a despontar, tinham toda a flexibilidade virginal de um primeiro buço.
Vestia uma casaca com três folhos e um colete curto, calças cinzentas, justas, botas flexíveis, que terminavam abaixo do joelho - trajo que constitui, senão o uniforme, pelo menos a roupagem habitual dos estudantes alemães.
O seu gesto à aproximação da cavalgada parecia significar que teria algum favor, ou pelo menos qualquer informação, a pedir àquele que parecia o chefe do grupo.
Com efeito, depois de ter lançado um rápido olhar de esguelha ao oficial que seguia à frente, o jovem afirmou:
 - Senhor conde, terá vossa excelência a bondade de informar-me se estou ainda longe de Viena?
O oficial estava de tal modo preocupado que percebeu o ruído de uma voz, mas não compreendeu o sentido das palavras.
Baixou sobre o estudante um olhar benevolente, e o jovem repetiu a pergunta, acerca da distância que o separava ainda da cidade.
 - Três léguas, meu rapaz - respondeu então o general.
 - Senhor conde - insistiu- o jovem, com voz firme, tal como se pedisse algo tão simples que nem corresse o risco de uma recusa - estou no fim de uma longa viagem, muito fatigado, e obrigado a chegar esta noite a Viena. Seria tão bom que me permitisse montar o cavalo que o seu criado traz pela brida?
O oficial contemplou o jovem com maior atenção do que anteriormente, e, reconhecendo nele todos os sintomas de uma educação distinta, respondeu-lhe:
 - De bom grado, senhor. Depois, voltando-se para o criado:
 - Jean, dá o cavalo de brida ao... O seu nome, senhor?
 - A um viajante fatigado, senhor conde - respondeu o estudante.
 - A um viajante fatigado - repetiu o general, sorrindo de forma a indicar que respeitava o anonimato de que o companheiro de estrada desejava continuar a desfrutar.
Jean obedeceu, e o jovem, alvo de um olhar trocista dos dois ajudantes de campo, montou o cavalo com uma facilidade que provava não ser ele de forma alguma estranho aos princípios da equitação - se não mesmo à arte de cavalgar.
Depois, como o seu lugar não fosse ao lado de um criado, guiou a marcha do cavalo de forma a manter-se na mesma linha dos ajudantes de campo.
O conde mirou o jovem com toda a fixidez e profundidade de que eram capazes os seus olhos.
 - Senhor estudante - disse ele, passados uns instantes - sabe que tudo não passa de bons e maus momentos, neste mundo. O acaso fez com que me encontrasse. O acaso fez com que o meu criado trouxesse um cavalo pela brida; e o acaso fez com que, estando fatigado, me tivesse pedido para montar esse cavalo. Finalmente, o acaso fez com que eu tivesse concedido como a um amigo, aquilo que qualquer outro teria negado a um desconhecido.
O estudante inclinou-se.
 - Parece triste, infeliz. Será a sua tristeza daquelas que podemos consolar? A sua infelicidade será daquelas que podemos minorar?
 - Bem vê - retorquiu o jovem com uma profunda entoação de melancolia - que nenhuma vantagem tenho sobre si, e que o senhor me conhece tão bem como eu a si! Nada mais me perguntará, agora; conhece o meu país, sabe qual será a minha opinião, conhece pois os meus sentimentos.
 - Pelo contrário, perguntar-se-lhe-á ainda mais uma coisa. E repetirei a pergunta: poderei consolar a vossa tristeza? Poderei amenizar a sua infelicidade?
O jovem sacudiu a cabeça.
 - A minha tristeza não pode ser consolada, senhor conde, e a minha infelicidade é irreparável!
 - Ah! jovem! Jovem! - exclamou o conde de Bubna - atrás de tudo isso esconde-se, o amor.
 - Sim, se bem que esse amor não seja a minha única preocupação.
 - É possível. Mas insisto em que será a sua maior infelicidade.
 - Acertou em cheio, senhor conde.
 - A mulher que ama foi-lhe infiel?
 - Não.
 - Morreu?
 - Quisesse-o o céu!
 - Como?
 - Foi desonrada por um oficial francês, senhor!
 - Ah! pobre criança! - disse o conde de Bubna, estendendo a mão ao jovem companheiro de viagem, significando assim o duplo interesse que lhe suscitavam ele e a jovem cuja infelicidade acabara de conhecer.
 - E assim?... - perguntou ele, mas agora evidentemente mais por simpatia do que por curiosidade.
 - E assim - prosseguiu o jovem - acabo de acompanhar o pai e as duas irmãs (há uma segunda irmã, criança de dez anos) à região de Bade onde, escondendo o nome, o pobre pai poderá esconder a sua vergonha. E depois de os ter acompanhado, vim até aqui.
 - A pé?
 - Sim... Agora já não se admira de que eu esteja cansado, não é verdade? E que, desejando chegar a todo o transe esta noite a Viena, tenha recorrido à vossa boa vontade?
 - Compreendo - assentiu o conde. - O homem que desonrou a sua amada está em Viena?
 - E também aquele que desonrou a minha pátria! - murmurou o jovem, mas suficientemente baixo para que o senhor de Bubna o não entendesse.
 - Nos meus tempos, manejava-se bem a espada, na Universidade de Gõttingen - disse o conde, aludindo às intenções que, julgava ele, levariam o estudante a Viena.
Mas este não respondeu.
 - Vejamos - prosseguiu o conde - fale com um soldado, diabo! Com um homem que sabe dever ser reparada toda e qualquer afronta, e que não se ultraja impunemente um homem como o senhor!
 - E então? - perguntou o jovem.
 - Então, confesse que vem a Viena para matar o homem que desonrou a sua amada.
 - Matar?...
 - Lealmente, bem entendido - emendou o conde. - Com a espada ou a pistola nas mãos.
 - Não sei quem seja esse homem, nunca o vi, nem sei qual o seu nome.
 - Ah! - exclamou o conde. - Então não é por causa dele que vem a Viena?
 - Creio ter-lhe afirmado, senhor, que o amor não era a minha única preocupação.
 - Não lhe pergunto qual seja a outra.
 - E faz bem, pois não lhe responderia.
 - Nesse caso, não pretende dizer-me algo mais?
 - Sobre o quê?
 - Sobre o senhor, os seus projectos, as suas esperanças.
 - As minhas esperanças... já não as tenho! Os meus projectos são os seus. Apenas que o senhor quer a paz para a Áustria, e eu quero a paz para o mundo. Sou um pobre estudante, fraco, ignorado, cujo nome nada lhe diria, se bem que esteja destinado, talvez, a ser um dia célebre. - E não quer dizer-me esse nome?
 - Senhor conde, tenho pressa de chegar a Viena. Permita-me que, levando o cavalo que teve a bondade de emprestar-me, siga à sua frente? Em caso afirmativo, dir-me-ia em que hotel pretende hospedar-se, e o homem que lhe devolverá o seu cavalo será também encarregado, simultaneamente, de lhe apresentar os meus agradecimentos e de dizer-lhe qual é o meu nome.
 - O cavalo que monta pertence-lhe, senhor estudante. Quanto a mim, hospedo-me no hotel Prussia. Se tiver algo para dizer-me, lá me encontrará.
 - Então, Deus o defenda, senhor conde! - disse o jovem.
E metendo o cavalo a galope, cedo descobriu o arsenal, depois o passeio de Graben, a seguir os velhos declives da cidade, bombardeados quando da resistência do arquiduque Maximiliano, e, finalmente, o palácio imperial.
Chegado a este ponto da sua cavalgada, o jovem virou à esquerda, deteve-se diante de uma porta do arrabalde de Mariahilf, bateu três vezes a intervalos regulares com a aldraba de cobre que brilhava na referida porta, e ele e o cavalo entraram num pátio.
A porta fechou-se à sua passagem.
No entanto, no mesmo momento em que por seu turno o conde de Bubna atingia os arredores da cidade, e se dirigiu para o hotel Prussia, seguido pelos seus dois ajudantes de campo e pelo criado, essa pequena porta do arrabalde de Mariahilf reabriu-se, e dela saiu a pé o jovem que ali entrara a cavalo, para, seguindo ao longo das casas - para as quais lançava, ao passar, curiosos olhares - cedo entrar na loja de um mestre ferrador.
Ali, depois de examinar punhais de diferentes tamanhos e formas, deteve a sua escolha sobre uma lâmina comprida, de punho negro, a qual comprou por um zwanziguer.
Depois, saindo da loja, reentrou na pequena casa do arrabalde de Mariahilf, e ao mesmo tempo que um criado desaparelhava o cavalo do conde de Bubna, o jovem afiava com cuidado o punhal, numa pedra de amolar, e sem dúvida para se assegurar de que a ponta era suficientemente aguda e o fio cortante a contento, afiou um lápis e, despregando do seu bloco de notas uma folha de papel, escreveu:
"A sua excelência o general conde de Bubna, no hotel Prússia:
"Seu reconhecido e devotado servidor,
Frederico Staps."
Dez minutos depois, o cavalo estava nas cavalariças do hotel, e o bilhete nas mãos do conde de Bubna.
IX.
O palácio de Schõnbrunn
A três quilómetros de Viena, para lá do arrabalde de Mariahilf, e um pouco à esquerda deste, eleva-se o palácio imperial de Schõnbrunn, iniciado por José I e terminado por Maria Teresa. Era o quartel general usual de Napoleão de cada vez que tomava Viena. Ali se alojara em 1805, depois da batalha de Austerlitz; ali se aloja em 1809, depois da batalha de Wagram; e será ali também que alojará seu filho, terminada a batalha de Waterloo.
Salvo as muralhas de tijolo e os agudos telhados, Schõnbrunn é construído mais ou menos à imagem de Fontainebleau. Trata-se de uma grande construção principal com duas alas em redor, uma dupla escada formando uma escadaria, que coroam o peristilo e dão para o primeiro andar. Paralelamente à construção principal, ligam-se às extremidades de cada uma das alas baixas construções que servem de estrebarias e de alojamentos do pessoal, e que, deixando somente ao centro da escadaria uma abertura com uma dezena de metros, a cada lado da qual se vê um obelisco, formam o desenho e delimitam o pátio.
Chega-se a essa entrada por uma ponte sob a qual corre um desses mil riachos que vão desaguar no Danúbio, sem terem obtido caudal suficientemente importante para que se lhes dê um nome.
Na retaguarda do palácio estão os jardins, dispostos em anfiteatro e encimados por um miradouro colocado no topo de um imenso prado, o qual é flanqueado, em cada lado, por encantadores caramanchões plenos de sombra e de frescura.
É nesse mesmo miradouro que no 12 de Outubro desse mesmo ano de 1809 passeia, impaciente e quase inquieto, o vencedor de Wagram.
E porque inquieto?
Porque ainda dessa vez o seu génio lhe valera; porque a sua sorte, dessa vez ainda, lhe fora fiel - mas porque, apesar disso, sentiu no seu destino o início de uma resistência. Porque, depois de lutar contra os homens, começara a lutar contra as forças da natureza, e compreendera que se novamente ousasse desafiar Deus, a natureza que lhe proporcionara esse terrível aviso da cheia do Danúbio, poderia bem, finalmente, deixar-se vencer!
E porque impaciente?
Porque, apesar das suas sucessivas derrotas, a Áustria, que está tomada, não se rende!
Por um instante, Napoleão tivera a esperança de riscar a casa de Habsburgo do número das famílias reinantes, como fizera com a casa de Bragança, em Portugal, e com a de Bourbon, na Espanha. Mas percebeu que as cristas da águia de duas cabeças estavam mais fortemente vinculadas no império do que antes supusera. Seria bastante bom,  no entanto, apoderar-se das três coroas da Áustria, da Boémia e da Hungria, e dispersá-las sobre as cabeças austríacas ou alemãs! Mas reconheceu que esse orgulhoso sonho era impossível, e que só com grande esforço obteria os quatro ou cinco milhões de almas e as seis ou sete províncias que exige.
As primeiras conversações, com efeito, tiveram lugar cerca do fim de Agosto, entre os senhores Metternich, Nugent e Champagny, e eis que se chega ao 12 de Outubro sem se conseguir obter dos dois diplomatas austríacos uma resposta definitiva.
E isto porque também as condições apresentadas pelo negociador francês eram duras para a Áustria.
Tinham por causa a negociação "uti possidetis".
Não sabe o que significa "uti possidetis", não é verdade, caro leitor? Pois bem, eu explico-lhe.
O imperador Napoleão pedia a seu irmão, o imperador da Áustria, que abandonasse à França não o território ocupado pelos exércitos - o que seria impossível, uma vez que submetiam Znaim, Viena, Bríinn, Presburgo, Adelsberg e Gratz - mas o equivalente a esses territórios noutras regiões.
Tudo isso perfazia nove milhões de habitantes e doze ou quinze mil léguas quadradas - ou seja: pouco mais do que um terço dos súbditos do imperador austríaco, e um pouco mais do que um quarto dos seus estados.
No entanto, a pouco e pouco, Napoleão chegara ao ponto de não exigir mais do que quatro ou cinco milhões de almas, e seis ou sete mil léguas quadradas de terras.
Mas Francisco pretendia que era ainda demasiado.
Assim, e como sabia qual a facilidade com que se obtinham concessões desse terrível vencedor quando se sabe dirigir-se directamente a algumas qualidades do seu carácter, decidira ele, em vez de permitir que as coisas se prolongassem nas mãos dos diplomatas, enviar a Napoleão o general conde de Bubna, seu ajudante de campo e simultaneamente homem da guerra, mundano e espirituoso.
Já no capítulo precedente travámos conhecimento com o negociador de sua majestade imperial Francisco II; não temos portanto que acrescentar aqui seja o que for às suas qualidades físicas e morais.
Era a esse negociador que o imperador Napoleão - não menos desejoso de regressar à França do que o imperador austríaco desejava vê-lo pelas costas - aguardava com uma tão grande impaciência, de tal forma que de cinco em cinco minutos, interrompendo o passeio silencioso e agitado, voltava a colar a fronte, moldada como a de um busto antigo, contra a janela vidrada que dava para o lado do castelo.
Finalmente, o general diplomata surgiu, subindo a rampa de verdura que conduzia do castelo ao miradouro.
Napoleão controlava tão mal a sua impaciência que, contrariamente às regras da etiqueta, que exigiam a entrada do senhor de Bubna na sequência de determinadas formalidades, foi ele mesmo quem lhe abriu a porta.
 - Venha, venha, senhor de Bubna! - disse-lhe, ao vê-lo. - O meu irmão imperador da Áustria tem razão ao queixar-se dos negociadores. Todos esses diplomatas endemoninhados não passam de verdadeiros comerciantes de palavras! É ver quem coloca maior número de mercadorias, como se diz em linguagem comercial. Vivam os militares, para tratar da paz! Vamos conduzir esta coisa como uma batalha, senhor de Bubna.
 - Nesse caso, sire, dou-me adiantadamente por derrotado - respondeu o conde. - Apresente então as suas condições.
Entrego-lhe a minha espada.
 - Mas é ainda necessário que as discuta, a essas condições. Olhe, vou tratar disto com uma franqueza que seria imprudente caso não tivesse a consciência da minha força, e se não estivesse numa situação que torna inúteis quaisquer dissimulações diplomáticas. Vejamos, sabe o que peço. Que está autorizado a conceder-me?
 - Vossa majestade quer aumentar a Saxónia, reforçar a Baviera, apropriar-se dos nossos portos no Adriático. Não seria melhor absorver a nova Polónia?
Napoleão deteve o senhor de Bubna com um gesto e um sorriso.
 - Quer dizer, meter-me com a Rússia? Sim, sem dúvida que isso seria melhor para a Áustria, se bem que a Rússia acaba de provar-me que não é um aliado muito fervoroso, deixando-me combater sozinho contra a Áustria, sua verdadeira inimiga.
 - Sire, vossa majestade pode conduzir a discussão desta questão para o terreno que melhor lhe convier. Mas permita-me que diga...
 - Que nos afastamos do verdadeiro sujeito em discussão? - interrompeu o imperador. - É possível. Olhe, senhor de Bubna, podemos terminar tudo num só dia, numa só hora, se quiser falar-me em nome do seu soberano tão francamente como eu falo em meu próprio nome. Tem razão, não tenho interesse nenhum em desejar alguns milhões de habitantes mais para a Saxónia e para a Baviera. O meu interesse, o meu verdadeiro interesse, é seguir a política dos meus predecessores: terminar a obra começada por Henrique IV, por Richelieu e por Luís XIV - é, enfim, destruir a monarquia austríaca separando as três coroas da Áustria, da Boémia e da Hungria. Para separar estas três coroas, seria preciso que combatêssemos uma vez mais, e se bem que seja provável que ao fim e ao cabo o façamos, dou-lhe a minha palavra de honra que não é esse o meu desejo.
 - Pois bem, sire, porque não ligar-se à Áustria por uma aliança íntima?
 - Mas, e o meio para se chegar lá?
 - Sire, há duas maneiras de conquistar a paz.
 - Diga então, senhor.
 - Uma, grande, generosa, digna de vossa majestade: devolver à Áustria todas as províncias que lhe tirou, fazê-la tão poderosa quanto ela era antes da guerra; e, então, fiar-se na sua lealdade e no seu reconhecimento; a outra - permita-me que lho diga - a outra, mesquinha, perigosa, resfriante, cruel, pouco proveitosa para a potência despojada, menos proveitosa ainda, talvez, para a potência que a despoja...
 - Perdão, senhor de Bubna - disse Napoleão - mas interrompo-o. O primeiro sistema de paz, depois de Austerlitz, quando sua majestade meu irmão foi visitar-me na minha tenda de campanha, tentei-o eu. Sobre a sua palavra de jamais me fazer a guerra, restitui-lhe todos os estados, à excepção das fracas recordações que quis guardar dessa campanha. Depois de eu me ter conduzido deste modo, podia, pelo menos assim me pareceu, contar com uma paz durável. E mal me havia comprometido contra os espanhóis e os ingleses, vejo todas essas promessas esquecidas, todos os juramentos traídos! Não posso confiar na palavra do seu imperador, senhor!
"Olhe - acrescentou Napoleão - quer uma prova de que não é à Áustria pessoalmente que eu faço guerra, e de que é apenas ao vosso imperador que eu desafio? O imperador Francisco fala frequentemente do seu desgosto pelo trono, do seu desejo de abdicar. Pois bem, que ele abdique em favor de seu irmão o grão-duque de Wurtzburgo, de quem eu gosto e que gosta de mim, e que tem vontade própria, não se deixando manejar pelos ingleses. Ele que abdique, e eu deixo Viena e entrego ao sucessor todas as províncias que tomei, além do que, longe de exigir cento e cinquenta milhões que faltam ainda cumprir sobre a contribuição de duzentos milhões, com que castiguei a Áustria, restituo-lhe os cinquenta milhões já pagos, empresto outros cem milhões sobre palavra, se houver necessidade disso... sim, olhe, ainda mais: entrego-lhe o Tirol!"
 - Sire - respondeu o senhor de Bubna, bastante embaraçado - não duvido de que o imperador, meu amo, ao saber das condições que vossa majestade exige para a paz, se decida a abdicar, preferindo assegurar a integridade do império nas mãos do seu sucessor do que ter uma coroa tão retalhada na sua própria cabeça.
 - Entenda-me bem - prosseguiu Napoleão. - Não são estas as minhas condições supremas ou extremas, como dizem. Trata-se de uma hipótese. Mas as atenções que são devidas entre soberanos impedem-me de impor uma coisa assim. Somente, se a vontade de abdicar se apoderar do vosso imperador... pois bem! Seria, como bem está a ver, uma grande benesse para a Áustria. Mas, enfim, como não creio de forma alguma nessa hipótese, como não posso voltar a pensar em ser generoso para com a Áustria, sou forçado a regressar às minhas primeiras propostas.
 - Tornando-as mais suaves, sire, espero-o...
 - Tornando-as mais suaves, seja.
"Renuncio à "uti possidetis". Havia reclamado três círculos na Boémia. Não se fala mais disso. Havia exigido a alta Áustria até ao Ens: abandono o Ens, renuncio a uma parte da Coríntia, e apenas mantenho Villach. Restituo-lhes Clagenfurt, mas fico com a Carnicola e a direita da Saxónia, até à Bósnia. Exigia-lhes dois milhões e seiscentos mil súbditos da Alemanha; apenas lhes peço um milhão e seiscentos mil. Fica a Galícia.
Veja bem, preciso de fazer qualquer coisa por um aliado! que me não ajudou, verdade seja dita, mas que tambéms me não traiu. Devo aumentar-lhe o grão-ducado. Ambos facilitaremos as coisas por esse lado, pois esses territórios não nos interessam. O mesmo não acontece, previno-o, com respeito à Itália. Preciso de um espaçoso caminho em direcção da Turquia, um caminho por onde passar trezentos mil homens e trezentas peças de canhão! A minha influência no Mediterrâneo está subordinada à influência que exerça sobre a Porta; ora, essa influência só é possível a menos que eu me faça vizinho do império turco. Bem preciso de terras, uma vez que, de cada vez que estou prestes a conquistar o oceano ou o Mediterrâneo aos ingleses, o seu amo arranca-me a Inglaterra de entre os dedos!...
"Mas deixemos os meus aliados, tem razão, e retornemos a mim e ao meu império. Dêem-me o que vos pedirei no Adriático e na Illyria, e quanto ao restante descobrirão que sou persuadível. Mas compreenda bem, senhor de Bubna, este é o meu ultimatum: mal parta, darei as minhas ordens para regressarem as hostilidades. Depois de Wagram, o meu exército aumentou diariamente. A minha infantaria está completa, repousada, mais bela do que nunca. Toda a minha cavalaria se reuniu na Alemanha. Tenho quinhentas peças de artilharia atreladas, e outras trezentas prontas a fazer fogo sobre as praças que ocupo. Junot, Massena e Lefèvre têm oitenta mil homens na Saxónia e na Boémia; Davoust, Oudinot e a minha guarda formam uma massa de cento e cinquenta mil homens. Com ela, começarei por Presburgo em quinze dias irei dar os últimos golpes na monarquia austríaca até aos confins da Hungria.
 - Sire - interrompeu o senhor de Bubna - vossa majestade deu-me o exemplo da franqueza. Também nós não desejamos uma guerra que tudo pode levar-nos a perder. No entanto, preferi-la-emos a uma paz quase tão desastrosa como a guerra. Vossa majestade fala de duzentos e trinta mil soldados. Nós temos trezentos mil. Mas a esses trezentos mil falta um general que possa fazer frente a vossa majestade. Que vossa majestade atenda, então, o apelo que fazemos à sua generosidade, e nos dê a sua última palavra.
 - Pegue numa pena, senhor, e escreva - respondeu Napoleão.
O conde de Bubna sentou-se, pegou numa pena, e, ditado pelo imperador, escreveu o seguinte ultimatum:
"Do lado da Itália:
"O círculo de Willach sem o de Clagenfurt, ou seja, a abertura para os Alpes nórdicos; depois, Laybach e a margem direita do Save até à Bósnia.
"Do lado da Baviera:
"Uma linha traçada entre Passau e Lintz, partindo do Danúbio na zona de Efferding, descendo até Schwans-tadt, abandonando aí o território de Gmund e reencontrando a zona de Salzburgo pelo lago de Kammer-See.
"Do lado da Boémia:
"Alguns enclaves sem importância que designarei, e que não representarão mais do que uma população de cinquenta mil almas.
"Do lado da Galícia:
"A nova Galícia, do Vístula ao Silica, à esquerda, e do Vístula ao Berg, à direita. O círculo de Zamosc, com menos terras do lado de Cracóvia, mas incluindo as minas de sal de Wielicskz."
 - Como pode ver - prosseguiu Napoleão - em vez do milhão e seiscentos mil súbditos na Itália e na Áustria, contento-me com um milhão e quatrocentos mil, e, em vez dos três milhões de súbditos na Galícia, limito-me a dois milhões.
 - E vossa majestade desiste das outras pretensões? - perguntou com vivacidade o senhor de Bubna.
 - Oh! não - respondeu Napoleão. - Não está a compreender. Há dois pontos importantes a regularizar. O primeiro...
O senhor de Bubna aprestava-se a escrever.
 - Espere, não escreva - disse-lhe o imperador. - Esses dois pontos importantes a regularizar serão objecto de uma carta particular entre mim e o seu amo. Além disso, o que tenho a pedir-lhe não é complicado, e estou seguro de que a sua memória será suficiente. Quero - compreenda, não disse desejo, afirmei quero - que a Áustria reduza o seu exército a cento e cinquenta mil homens, e que me pague cem milhões para liquidação da contribuição de guerra de que apenas recebi, até agora, cinquenta mil.
 - Sire, isso é duro! - disse o senhor de Bubna.
 - É assim - volveu o imperador.
 - No entanto, será necessário um fim, para essa vassalidade.
 - Olhe - respondeu Napoleão - quero dar uma oportunidade ao seu imperador. O fim dessa "vassalidade", uma vez que assim lhe chama, será o termo da guerra marítima. Que a Inglaterra nos ofereça a paz, uma paz certa, uma paz verdadeira, e autorizo-vos a rearmarem os quinhentos mil homens que tinham no início da campanha.
 - Sire - perguntou o senhor de Bubna, levantando-se - quando devo voltar?
 - Senhor - volveu Napoleão, tomando uma súbita resolução - é inútil que regresse, pois não me encontraria aqui.
 - Vossa majestade parte?
 - Parto, sim. - E quando?
 - Amanhã... Tem o meu ultimatum. O senhor de Champagny tem plenos poderes. Se for necessário combater, regressarei. Mas, digo-lho, senhor de Bubna, mal daqueles que me obriguem a regressar!
 - Vossa majestade parte? - repetiu o senhor de Bubna, estupefacto.
 - Oh! meu Deus! Sim! Venha comigo. Passo ao pátio do castelo para a minha revista de despedida.
O emissário austríaco compreendeu que, dessa feita, estava dita a última palavra de Napoleão.
Levantou-se, guardou no bolso a carta que acabara de escrever, e seguiu o imperador.
Ambos desceram as rampas da planura, atravessaram o castelo e apareceram sobre a escada do lado do pátio.
Este estava pejado de curiosos.
O imperador aproximou-se do balcão que formava o centro das duas escadarias reunidas. Tinha à sua direita o senhor de Bubna, e à esquerda o príncipe de Neuchâtel.
Rapp, o ajudante-de-campo, mantinha-se um pouco à sua frente, sobre o terceiro degrau da escada.
Os soldados desfilaram sob o balcão aos gritos de "Viva o Imperador!" e formaram em quadrado no pátio.
O imperador fez ao senhor de Bubna um sinal para que o seguisse, e desceu as escadas para se colocar no centro do quadrado.
Rapp continuava a caminhar à frente, como se tivesse sido prevenido de que o imperador tinha algo a temer.
De resto, desde há quatro ou cinco meses que era assim, e por todo o lado o vigilante olho de Berthier procurava o assassino prometido pela reunião nas ruínas de Abensberg.
De repente, no momento em que a multidão se afastava para dar passagem a Napoleão, um jovem, em vez de afastar-se como os outros, atirou-se para a frente.
Rapp viu um brilho como um relâmpago. Estendeu o braço, e segurou pelo pulso uma mão armada com um punhal.
 - Staps! - gritou o senhor de Bubna. - Oh! sire sire...
 - Que é isto? - perguntou o imperador, sorrindo.
 - Este jovem tentou assassiná-lo. Não o viu?
 - Nunca vejo essas coisas, senhor. Ou sou necessário à França, e então, estou couraçado pela minha missão, ou então sou um inútil, e, nesse caso, que Deus disponha de mim!
Depois, sem se preocupar mais por causa do assassino, a quem Rapp remetera para as mãos dos gendarmes,, penetrou no quadrado, tão calmo como no dia em que, em Abensgerg, uma bala havia furado o seu chapéu. Tanto como no dia em que, em Ratisbonne, uma bala o ferira num pé.
Mas, baixinho, disse a Berthier:
 - O senhor de Bubna conhecia esse jovem.
 - Como sabe isso, sire?
 - Ao vê-lo, pronunciou o respectivo nome.
 - E o jovem chama-se?...
 - Staps.
X.
O vidente
DUAS horas depois da revista e depois da partida do senhor de Bubna, Napoleão encontrava-se no mesmo pavilhão onde o surpreendêramos de manhã.
Dessa vez, não estava só, antes pelo contrário, passeava de um lado para o outro com um homem de cerca de cinquenta anos, com um olhar rápido e inteligente, todo vestido de negro, com quem falava familiarmente. Esse homem era Corvisart, médico do imperador.
 - Sabe, sire, que fiquei muito apreensivo quando me mandaram alguém da sua parte? - dizia o ilustre doutor. - O boato de um atentado que fora praticado sobre vossa alteza espalhava-se por toda a parte, e temi que o tivessem ferido.
 - Obrigado pela sua prontidão em acorrer, meu caro doutor. Nada se passa, como pode ver, e se mandei buscá-lo, não o fiz por minha causa.
 - Então porquê?
 - Por causa do meu assassino.
 - Recebeu ele algum golpe grave, durante o atentado, ou tentou suicidar-se?
 - Quanto a qualquer golpe grave, creio que foram, pelo contrário, o mais solícitos possíveis com ele, uma vez que não sofreu a mais leve beliscadura e, por outro lado, não ouvi falar ainda de qualquer tentativa de suicídio.
 - O senhor de Bubna, que ontem, por acaso, viajou com o jovem em questão, a quem chegou mesmo a emprestar um cavalo no qual ele percorreu a última etapa, disse-me algumas palavras que motivam o meu interesse pelo jovem.
 - Pelo vosso assassino?
 - E porque não? Aprecio a persistência, meu caro Corvisart, e tenho razão para crer ser essa uma virtude que mora com o senhor Frederico Staps. Gostaria de saber se essa persistência, no caso do jovem, é uma mania, ou uma qualidade, se ele é um patriota ou um louco. Encarrega-se de averiguar isso?
 - Tentarei, sire.
 - Há por detrás de tudo isto um caso de mulher bastante interessante, segundo pude depreender, mas que em nada se relaciona comigo.
 - Em suma, vossa majestade pretende um pretexto para salvá-lo?
 - Talvez - respondeu Napoleão.
 - Pois bem, vejamos, sire. Mande-o vir. Napoleão chamou Rapp e perguntou-lhe se as suas
ordens haviam sido executadas.
 - Sim, sim, sire - respondeu o general.
 - Nesse caso, faça entrar o prisioneiro.
Rapp saiu. Um instante depois, o jovem surgiu entre dois gendarmes, os pulsos presos em algemas. Rapp vinha atrás dele.
 - Soltem as mãos desse rapaz - disse Napoleão. Foi obedecido.
Depois, virando-se para Rapps:
 - Deixem-no sozinho, comigo e com Corvisart.
O general hesitava; Napoleão franziu o sobrolho, qual Júpiter olímpico.
Rapp mandou sair os dois gendarmes à sua frente, lançou um último olhar às três figuras que deixava juntas, e saiu, prometendo-se manter-se com a mão sobre o punho do sabre e a orelha colada à porta.
O imperador estava sentado na extremidade de uma mesa oval. Corvisart mantinha-se de pé, junto dele.
 - Fala francês? - perguntou o imperador a Stapps.
 - Um pouco - respondeu este.
 - Quer responder com a ajuda de um intérprete, ou prefere tentar responder directamente?
 - Prefiro responder directamente.
 - O seu nome é mesmo Frederico Staps?
 - Sim.
 - De onde é natural?
 - De Erfurth.
 - Desde quando está em Viena?
 - Desde ontem.
 - Com que intenção veio aqui?
 - Com a intenção de pedir a paz, e de provar-lhe que ela é necessária.
 - Julga que eu ouviria um homem sem missão?
 - A minha missão é bem mais santa do que a do senhor de Bubna!
 - O senhor de Bubna veio à minha presença da parte do imperador.
 - E eu, venho da parte de Deus!
Napoleão olhou Corvisart, interrogando-o com os olhos. Este fez um sinal que significava: "continue".
 - E se eu não o tivesse ouvido, qual era então a sua intenção? - perguntou o imperador, virando-se para Staps.
 - Matá-lo.
 - Que mal lhe fiz eu?
 - Oprime o meu país.
 - O seu país ergueu-se contra mim. Venci-o, é a sorte da guerra! Alexandre venceu e oprimiu os persas, César oprimiu e venceu os gauleses, Carlos Magno venceu e oprimiu os saxões.
 - Fosse eu persa, que teria apunhalado Alexandre! Gaulês, e teria apunhalado César! Saxão, e teria apunhalado Carlos Magno!
 - Será o fanatismo religioso que o levou a essa determinação?
 - Não, é o patriotismo nacional.
 - Tem cúmplices?
 - O meu próprio pai ignora o meu projecto.
 - Já me tinha visto?
 - Três vezes antes desta, que foi a quarta. A primeira, em Abensberg, a segunda em Ratisbonne. A terceira, no pátio do palácio de Schõnbrunn.
 - É franco-mação?
 - Não. ;
 - Iluminado?
 - Não.
 - Pertence a alguma sociedade secreta alemã?
 - Já disse que não tenho cúmplices.
 - Conhece o major Schill?
 - Não.
 - Conhece Brutus?
 - Qual deles? Há dois.
 - Sim - disse Napoleão, com um sorriso intencional - há o que matou o pai, e aquele que matou o filho...
Tinha conhecimento das conspirações de Moreau e Pichegru?
 - Nada mais sei para além do que vem publicado
nos jornais.
 - Que pensa desses homens?
 - Que só trabalharam para eles próprios, e temeram a morte.
 - Encontraram-lhe nos bolsos um retrato feminino.
 - Roguei que me deixassem ficar com ele, e acederam aos meus pedidos.
 - Quem é essa mulher?
 - Para que importa isso?
 - Desejo saber quem ela é.
 - É uma jovem a quem eu deveria desposar.
 - Amava! Tinha um pai, uma noiva, e transformou-se em assassino!
 - Cedi à voz que me dizia: "Vibrai"
 - Mas, será que esperava poder fugir, depois de vibrar?
 - Nem sequer tinha desejos de fazê-lo.
 - De onde vem todo esse desgosto pela vida?
 - Vem desde que a fatalidade me tornou a vida impossível.
 - Se lhe perdoasse, que uso daria à liberdade?
 - Como estou convencido de que deseja a desonra da Alemanha, esperaria uma outra ocasião, escolheria melhor o momento, e talvez que dessa vez fosse bem sucedido.
O imperador encolheu os ombros.
 - Aí tem, Corvisart - disse ele - o resto é consigo. Examine-o, e diga-me o que pensa dele.
 - É um fanático do tipo Cassius e Jacques Clement - respondeu o médico.
 - E nada de loucura? - perguntou Napoleão.
 - Nenhuma.
 - Febres?
 - Quatro pulsações mais do que o estado normal.
 - Nesse caso, está calmo?
 - Perfeitamente calmo...
O imperador caminhou direito ao jovem, e, fixando nele um profundo olhar, perguntou-lhe:
 - Vejamos: queres viver?
 - Para quê?
 - Para seres feliz.
 - Não posso sê-lo.
 - Promete-me que voltas para junto de teu pai, para junto da tua noiva, que ficas tranquilo e inofensivo, e perdoo-te.
O jovem olhou Napoleão com ar espantado. Depois, ao cabo de uma pausa, disse:
 - Far-lhe-ia uma vã promessa.
 - Como é isso?
 - Não a respeitaria.
 - Sabes que vais ser julgado por um conselho de guerra e que, por consequência, em três dias tudo estará acabado?
 - Estou pronto para morrer.
 - Escuta, parto amanhã. Vais portanto ser julgado e fuzilado na minha ausência...
 - Serei fuzilado? - perguntou Staps, com uma certa alegria.
 - Sim... a menos que, como te disse, queiras dar-me a tua palavra.
 - Tenho um compromisso com Deus - respondeu o jovem, sacudindo a cabeça.
 - Mas, se calhar, no momento de perder a vida, irás lamentá-lo?
 - Não creio.
 - No entanto, é possível.
 - Sem dúvida. O homem é fraco!
 - Pois bem, se em vez de fraco fosses arrependido...
 - Que faria?
 - Farias a promessa que te peço.
 - A quem?
 - A Deus.
 - E depois?
 - E depois mostrarias este papel ao presidente da
comissão.
E Napoleão, escrevendo algumas palavras num papel, assinou-o e deu-o a Staps. Este pegou-lhe e, sem o ler, meteu-o no bolso do colete.
 - Uma última vez, Corvisart - perguntou Napoleão - tem a certeza de que este homem não está maluco?
 - Não o está, sire.
 - Rapp?
Rapp reapareceu.
 - Reconduza o acusado à prisão - disse o imperador. - Que se reúna uma comissão militar que analise o seu crime.
Depois, voltando-se para Corvisart:
 - Doutor - prosseguiu, como se não conservasse no seu pensamento qualquer recordação do que acabava de se passar.
 - O quê, sire?
 - Um homem de quarenta anos pode ter filhos?
 - Porque não? - respondeu Corvisat.
 - E um homem de cinquenta?
 - Também.
 - E um homem de sessenta?
 - Por vezes.
 - E um homem de setenta?
 - Sempre.
O imperador sorriu.
 - Preciso de um filho! Preciso de um filho! - disse Napoleão. - Se esse louco me tivesse matado, para quem seria o trono da França?
Depois, deixando cair a cabeça sobre o peito.
 - Há uma coisa que me assusta - murmurou. - É que não é já à Revolução Francesa, mas a mim, que têm e a quem perseguem como o autor de um mal universal, como agente dessa convulsão incessante e terrível que abala o mundo. E no entanto, Deus é minha testemunha, em como não desejo a guerra! Que têm afinal mais do que eu, esses reis que encontram fanáticos que os adoram e que assassinam para defendê-los?... Que têm eles mais do que eu? Nasceram no trono... Ah! se ao menos eu fosse o meu neto!
E, voltando a sentar-se no cadeirão, ficou por alguns momentos pensativo, a fronte apoiada na mão.
Que se passaria, durante esses escassos minutos, naquela profunda cabeça, e que correntes de pensamento apoquentariam aquele espírito inquebrantável como um rochedo?
Esse é um dos muitos segredos que se mantiveram entre ele e Deus.
Finalmente, puxou com lentidão uma folha de papel, pegou numa pena, mergulhou-a na tinta, virou-a e revirou-a várias vezes entre os dedos, e escreveu:
"Ao MINISTRO DA POLÍCIA
Schònbrunn, 12 de Outubro de 1809
"Um jovem de dezassete anos, filho de um ministro luterano de Erfurth, tentou, na parada de hoje, aproximar-se de mim. Foi detido por oficiais, e como nesse jovem houvesse sinais de excitação, tal foi suficiente para que as suspeitas nascessem. Foi revistado, e encontrou-se-lhe um punhal.
"Mandei-o vir à minha presença, e esse pequeno miserável, que aliás me pareceu bastante instruído, confessou que queria assassinar-me para livrar a Áustria da presença dos franceses. Não lhe descobri fanatismo religioso nem fanatismo político. Bem me quis parecer que se tratava de um Brutus. A febre da exaltação impediu de saber-se mais qualquer coisa. Será interrogado assim que tenha acalmado e esteja em jejum. É possível que não seja nada de grave.
"Quis informá-lo deste assunto, a fim de que não façam dele algo mais importante do que na verdade é. Espero que não se torne conhecido. Caso venha a ser assim, será preferível fazê-lo passar por louco. Mantenha este assunto secreto. Na parada, não chegou a fazer qualquer alarido. Nem eu próprio me apercebi do que se passava.
NAPOLEÃO."
"P. S. - Repito uma vez mais, e compreendê-lo-á, que não deverá fazer-se um caso desta ocorrência."
Depois, tocando a campainha:
 - Chame Rapp - disse ele ao meirinho.
 - O general está aqui, sire.
 - Então que entre. Rapp entrou.
NOTA - A carta existe, e está autografada. Seria intencionalmente, e para que se acreditasse na acção de uma criança, e não de um homem, que Napoleão sonegava três anos na idade do assassino?
 - Rapp - disse-lhe Napoleão - ponha um correio a caminho, imediatamente, e que leve esta carta ao senhor Fouché.
Com uma prontidão militar e uma obediência essencialmente passiva, Rapp pegou na carta e rodou sobre os calcanhares.
 - Entregue só a ele, a ele próprio! - bradou o imperador.
XI.
A execução
NO dia imediato àquele em que, segundo o programa confessado ao senhor de Bubna, Napoleão deixara Viena, a notícia espalhou-se, quando o sol se deitava; o conselho de guerra, convocado por ordem do marechal Berthier, condenara Frederico Staps à pena de morte.
O acusado confessara tudo, nem sequer havia tentado refutar a acusação, e depois de ter escutado a sentença de morte, não pedira clemência nem atenuantes.
Apenas que, uma vez entrado na prisão, havia pedido que fossem rogar ao oficial relator, um jovem graduado dos caçadores, chamado Paul Richard, que fosse vê-lo, na manhã seguinte, alguns momentos antes da execução.
Depois, rezara as suas preces, recomendara que o acordassem a horas, e dera ao carcereiro, como recompensa pelos cuidados tidos com ele, quatro fredericos de ouro que tinha consigo, e que constituíam toda a sua fortuna.
Depois disto, deitara-se, retirara do peito um medalhão, beijara-o ternamente várias vezes, e, finalmente, adormecera com o medalhão apoiado sobre o coração.
Às seis horas da manhã, o carcereiro entrara na cela, e acordara-o.
Então, Staps abrira os olhos sorrindo, agradecera àquele que o acordara o ter-lhe dado, por escassos momentos embora, a consciência de que ainda existia, arranjara-se com uma espécie de esmero, penteara os belos cabelos com uma vaidade toda especial, e mal lhe perguntaram o que queria para pequeno-almoço, respondeu:
 - Creio que um copo de leite bastará.
Acabava de esvaziar esse copo, quando o jovem oficial que havia solicitado na véspera para uma entrevista "in extremis" surgiu na soleira da porta.
Era evidente que o jovem oficial dos caçadores, se bem que não denotasse qualquer embaraço, teria preferido que a escolha do condenado recaísse sobre qualquer outro que não ele.
 - Agradeço-lhe, senhor, ter acedido ao meu convite - disse Staps. - Tenho um favor a pedir-lhe.
 - Pois eis-me apto a cumpri-lo, senhor - respondeu o jovem oficial.
 - Não é esta a primeira vez que nos encontramos, tenente.
 - Azares! Não é, não, senhor, e lamento que a sorte me tivesse escolhido para ser relator no seu caso.
 - Oh! não faço alusão apenas às três audiências do conselho de guerra em que compareci, senhor. Já antes nos havíamos encontrado.
 - É possível, senhor. Mas a verdade é que esqueci completamente o lugar e quando nos encontrámos.
 - Nada de mais natural. Eu estava mascarado, e o senhor não.
 - Ah! - exclamou Paul Richard, estremecendo. - Foi nas ruínas de Abensberg?
 - Foi aí, sim, senhor. E por um instante, o senhor pôde crer que seria também fuzilado.
 - Infelizmente, aquilo que em relação a mim não passou de uma brincadeira, é uma realidade relativamente a si! - disse o tenente.
 - Será! Mas o senhor ignorava que se tratava de um jogo, e enfrentou as coisas resolutamente, até ao fim. Tenente Richard, o senhor é um bravo, e houve razão ao baptizarem-no, nessa noite, de Ricardo, Coração de Leão.
O jovem empalideceu.
 - Sabe qual a razão da minha presença nessa noite, senhor? - perguntou ele.
 - Não, tenente. Mas sei que um soldado é escravo da sua missão, tanto quanto um homem honesto o é quanto à sua palavra... Reconheci a sua cara, e disse para comigo: pois bem, o resto pouco me importa! Todos os corações fortes são irmãos. Tens aí um irmão, Staps, e podes confiadamente pedir-lhe um último favor.
 - E não se enganou. Tudo o que Seja humanamente possível fazer por si, farei, nos limites do meu dever.
 - Oh! fique tranquilo - respondeu o prisioneiro. - Nada do que tenho a pedir-lhe poderá comprometê-lo.
 - Fale - disse o jovem oficial.
 - Eu gostava de uma rapariga - prosseguiu Staps. - Sem os acontecimentos agora ocorridos, ela seria minha mulher. O pai dela e o meu são amigos. O nosso casamento estava tratado...
 - Sim - disse o jovem oficial. - Mas nessa altura entrou para a associação do Tugendbund. E foi então que a sorte o designou para atingir o imperador, e foi então que todas as suas aspirações amorosas se perderam?
 - Não, senhor - respondeu Staps, melancolicamente.
 - Continue - disse o oficial.
 - Com efeito, tenho os minutos contados... Esteja tranquilo, não farei com que me esperem.
O tenente inclinou a cabeça, em sinal de convicção.
 - Sabe - continuou Staps - que encontraram nas minhas roupas um retrato de mulher?
 - Sim, senhor.
 - Pedi para que mo deixassem guardar até à hora da morte.
 - E esse pedido foi satisfeito sem qualquer hesitação.
 - Pois bem, senhor, quando morrer, esse retrato estará aqui, sobre o meu coração.
E o prisioneiro apertou a mão contra o peito.
 - Deseja ser enterrado com esse retrato?
 - Não, desejo que depois da minha morte um amigo o retire, e me faça o favor de um dia qualquer o entregar à minha noiva, à qual dirá de que forma morri, e, sobretudo, que morri pensando nela.
 - Ela mora na Baviera?
 - Não, senhor. Na sequência de uma terrível catástrofe, ela e o pai deixaram a Baviera, e foram estabelecer-se em Wolfach, pequena vila do ducado de Bade. Lá a encontrará.
 - Bem. No momento da morte, entregar-me-á o retrato?
 - Disse-lhe que gostaria de morrer mantendo-o contra o peito. Retirá-lo-á do meu cadáver, depois de eu morrer.
 - E o nome da jovem?
 - Está escrito nas costas do retrato.
 - É tudo quanto deseja, senhor?
 - Não. Um último favor. Faço questão de não ser confundido com os vulgares assassinos, senhor. Depois de ter retirado do meu peito o retrato, abrirá a minha mão direita. Nela estará um papel, o qual fará o favor de entregar aos oficiais que formaram o conselho de guerra diante do qual compareci, e ao coronel que o presidia.
 - Far-se-á como deseja. É tudo?
 - Sim.
 - Então, resta-me estender-lhe a mão, senhor, e desejar-lhe coragem.
 - Aceito a mão e o desejo, senhor, se bem que o conselho, como aliás pode verificar, seja, pelo menos, inútil. Onde o verei?
 - No local da execução.
 - Nesse caso, no terreiro?
 - No terreiro.
O jovem e o prisioneiro apertaram uma última vez as mãos, e o oficial saiu.
A prisão militar onde haviam encerrado Staps estava situada no próprio terreiro. A execução deveria verificar-se às 8 horas. Eram 7 horas e 45 minutos. O terreiro estava cheio de gente.
Essa multidão pertencia, em parte, ao exército francês, e outra parte à população vienense.
Quando viram Paul Richard sair da prisão, rodearam-no e quiseram saber coisas sobre o prisioneiro.
Paul respondeu que o cativo, tendo-o reconhecido, por ambos se terem encontrado em Abensberg, o havia mandado chamar, por ser a única pessoa conhecida a quem confiar as últimas vontades.
 - Nesse caso, está decidido que ele será executado esta manhã? - perguntou um capitão que fizera parte do conselho de guerra.
 - Sim - respondeu Paul. - Sabia, capitão, que as sentenças da justiça militar são executáveis sem demora?
 - Certamente. Mas também sei que o coronel mandou dizer ao prisioneiro que este poderia pedir graça ao marechal Berthier, e o coronel disse-me ainda que no caso de ser feito o pedido o príncipe de Neuchâtel recebera plenos poderes do imperador.
 - Pois bem - disse Paul - o condenado não quis aproveitar o conselho do coronel.
 - E não aproveitará? - perguntaram várias vozes.
 - Não. Creio que o desgraçado tem qualquer razão para desejar a morte, razão que só ele e Deus conhecem.
Nesse momento, soaram as oito horas.
A porta da prisão abriu-se.
Passou primeiro um sargento, depois quatro homens seguiram-no.
Atrás desses quatro homens, vinha o condenado.
Havia deixado a casaca e o colete na cela, e vestia apenas a camisa, as calças justas e as botas.
O rosto apresentava-se pálido, mas calmo, sem expressão de orgulho nem de fraqueza.
Ao vê-lo, percebia-se que estava ali um homem friamente preparado para morrer.
Esse homem sabia ao que ia. Se bem que tivesse sacrificado a vida aos vinte anos, o entusiasmo não o exaltava. E se fora o entusiasmo que o levara a cometer o seu crime, esse fictício e febril sentimento dera lugar a uma inquebrantável resolução que podia ler-se na ligeira contracção das sobrancelhas e no rictus do queixo e dos lábios, que davam à boca a aparência de um sorriso.
Atrás do condenado marchava o resto do pelotão que ele examinava em seu torno, como se procurasse alguém.
Os olhos pousaram-se então nos do tenente Richard, que parecia dizer-lhe:
"Eis-me. Como vê, mantenho a minha palavra."
Então, saudou com a cabeça, e logo desapareceu o ligeiro traço de preocupação que por momentos ensombrara o seu rosto.
A marcha prosseguiu até ao local onde deveria consumar-se a execução.
De repente, o canhão disparou.
 - Que é isto? - perguntou Staps.
 - É a paz assinada esta noite, e que está a ser anunciada à Alemanha através do canhão.
 - A paz? - repetiu o prisioneiro. - É verdade, o que está a dizer-me?
 - Sem dúvida - responderam-lhe.
 - Então, deixem-me agradecer a Deus.
 - Agradecer o quê?
 - Por ele finalmente trazer a tranquilidade à Alemanha.
E, metendo um joelho em terra, o jovem deteve-se entre as duas filas de soldados que o escoltavam e proferiu uma breve oração.
No momento em que ele se erguia, Richard aproximou-se e disse-lhe:
 - Isto altera alguma coisa nas suas intenções?
 - A que propósito me faz tal pergunta, senhor?
 - Porque, se pedisse clemência, seria possível... O condenado interrompeu-o.
 - Sabe qual o favor que espero de si, tenente?
 - Sim.
 - Continua disposto a cumprir a sua promessa?
 - Sem dúvida.
 - Bem, nesse caso, a sua mão. Richard estendeu-lha.
Staps passou da mão direita para a esquerda um objecto que Richard não conseguiu identificar. Depois disso, apertou cordialmente a mão do jovem oficial.
Tudo isto foi feito com simplicidade, sem ostentação, mas com a mesma firmeza que Richard sempre notara no condenado.
Depois, o cortejo retomou a marcha.
Havia cerca de trezentos passos a serem dados desde a porta da prisão até ao local onde deveria consumar-se a execução.
Não foram precisos menos de dez minutos para completar esse trajecto.
Durante esses dez minutos, o canhão disparava regularmente de minuto em minuto. Staps pôde assim concluir que não o tinham enganado, e assegurar-se, pela regularidade dos disparos, que se tratava de qualquer grande solenidade.
Chegaram ao valado. O destacamento fez alto.
 - É aqui? - perguntou Staps.
 - Sim, senhor - respondeu o sargento.
 - Posso escolher o lado para que estarei virado, quando morrer?
O sargento não compreendeu bem.
Richard aproximou-se novamente.
Staps repetiu a pergunta, a qual Richard explicou ao sargento. O condenado desejava morrer com o rosto virado para ocidente, ou seja, olhando para Abensberg.
O pedido foi-lhe concedido.
 - Senhor - disse Staps a Richard - - bem sei que me torno demasiado exigente. Mas como não pretendo ser eu próprio a comandar o fogo, uma vez que não sou militar, desejaria que a operação fosse comandada pela voz do único amigo que tenho aqui entre toda esta gente que veio para ver-me morrer.
Richard olhou para o sargento.
 - Faça-o, meu tenente - disse este.
Richard respondeu a Staps com um movimento de cabeça que significava que o seu último desejo iria ser satisfeito.
 - Assim, estou pronto - disse o condenado. Um soldado aproximou-se com um lenço.
 - Oh! tenente - disse Staps - , acha que isso será necessário?
O tenente Richard fez um sinal. O soldado afastou-se, levando o lenço. Então, com voz menos firme do que aquela que utilizara nas ruínas de Abensberg, comandou o tenente:
 - Atenção!
Por entre o silêncio que caíra sobre o valado, ouviu-se o manejo das armas.
 - Preparar... Armas!
Um tiro de canhão fez-se ouvir.
 - Apresentar... Armas!... Apontar...
Depois, como o jovem tenente hesitasse em proferir a ordem final:
 - FOGO! - gritou Staps, com voz firme.
Os soldados não deram qualquer atenção ao facto de a ordem ter sido dada pelo tenente ou pelo condenado. Obedeceram.
A fuzilada estourou, e Frederico Staps tombou, atingido por oito balas.
O tenente Richard havia desviado os olhos.
Mal pousou de novo os olhos no condenado, que um minuto antes estava vivo e que não passava já de um cadáver, reparou em que o jovem morrera com a mão esquerda apoiada no peito, e a direita, fechada.
Aproximou-se do cadáver.
 - Meus amigos - disse ele - , foi a mim que este infeliz escolheu para cumprir as suas últimas vontades. Tem sobre o peito um retrato de mulher, e na mão, um bilhete.
Os soldados afastaram-se com respeito.
Então, Richard colocou um joelho em terra, soergueu o corpo de Frederico Staps, abriu o botão da camisa, viu um pequeno fio fino como um cabelo, e retirou-o do peito do jovem.
Um medalhão pendia desse fio.
Com alguma hesitação, o tenente procurou o retrato com os olhos, ao vê-lo, soltou um grito:
 - Margarida Stiller! - exclamou. - Oh! eu bem suspeitei!...
Depois, precipitando-se sobre a mão direita do cadáver, a qual abriu com esforço, retirou um papel, e alisou-o.
O papel continha estas palavras:
"Eu perdoo-lhe
NAPOLEÃO."
 - Oh! infeliz! - bradou Paul Richard - , quis morrer!
E acrescentou com voz sombria, apertando com mão convulsiva o medalhão e o papel. - E fui eu, eu, a causa da sua morte!...
XII.
A retirada
A 14 de Setembro de 1812, do alto do monte Salut, Napoleão vira, à luz de um belo sol de Verão, as cúpulas douradas da cidade santa. E todo o exército, reduzido de um quarto pela batalha de Moscova, mas ainda contando noventa mil homens, havia batido palmas a esta visão, gritando: "Moscovo! Moscovo!", da mesma forma que catorze anos antes - penetrando no Oriente pela porta oposta - havia gritado: "As pirâmides! As pirâmides!"
Na mesma tarde, Napoleão entrava numa Moscovo deserta. Os gauleses, ao entrarem no Capitólio, pelo menos encontraram os senadores sentados nos seus lugares. Havia qualquer coisa para matar!
Mas não aconteceu assim em Moscovo. Apenas foram encontrados comerciantes franceses que, apavorados, contavam esta estranha notícia: - Moscovo está deserta! Mais tarde, na mesma noite, Napoleão foi surpreendido  - e não acordado, porque não dormira - por um grito:
 - Ao fogo!
A esse grito, aproximou-se de uma das janelas do Kremlin que dominava a cidade: o palácio do Comércio estava em chamas.
Primeiramente atribuiu o incêndio a uma imprudência. Acusa Mortier de ter feito defeituosamente o policiamento do exército. Acusa um soldado bêbedo de ter ateado o incêndio. Ordena que esse soldado seja procurado, punido e fuzilado! Mas dizem-lhe que as coisas não se passaram assim; que entre a meia-noite e a uma hora da manhã uma bola de fogo abatera-se, descendo dos céus, sobre o palácio, e que somente a esse facto se ficou a dever não só o incêndio, mas também o sinal incendiário.
Com efeito, tratou-se de um sinal, uma vez que ao mesmo tempo surgiram chamas, elevaram-se e propagaram-se em três outros pontos da cidade.
Napoleão duvida ainda. Mas as informações sucedem-se. Acaba de deflagrar um incêndio na Bolsa, e foram vistos homens da polícia atearem-no com varas incandescentes! Em vinte, em trinta, em cem casas diferentes, granadas escondidas em sótãos explodiram quando ateadas, e mataram ou feriram soldados franceses, incendiando as casas! Melhor - ou pior ainda: bandos de bandidos percorrem as ruas da cidade, com archotes nas mãos. Propagam o incêndio com o encarniçamento da loucura, ou talvez com a loucura do patriotismo. Verem os franceses mais não fez do que exaltá-los. E as ameaças apenas os incentivaram na prossecução da sua obra de destruição. Não foi possível tirar-lhes os archotes das mãos e, a golpes de sabre, foi necessário abater simultaneamente as mãos e os archotes.
Napoleão escuta todos estes relatos com profunda estupefacção. Não quer acreditar, renega a evidência, e contenta-se em murmurar:
 - Oh! os miseráveis! Os bárbaros! Oh! os citas! Sucede-se o dia, menos brilhante do que a noite, pois
esta fora aclarada pelas chamas, e o dia estava obscurecido pela fumarada.
Não era possível desviar Napoleão daquele espectáculo. Ia de janela em janela, gritando:
 - Extingam o fogo! Mas, vamos, extingam-no!
E, por uma segunda vez, a sua voz, tão possante face aos homens, mostrava-se impotente perante os elementos.
Lançara um grito mais ou menos semelhante em Viena, no dia da batalha de Essling, quando o Danúbio havia enchido e levado as pontes na corrente. Mas, enfim, o Danúbio vencera-o ele.
Ultrapassaria o fogo, da mesma forma que ultrapassara a água?
Não. Como se alimentado por invisível força, o incêndio estendia o seu imenso cerco, e aproximava-se sempre. Napoleão estava literalmente envolto num mar de chamas. Cada casa era uma vaga que se aproximava, e a terrível maré crescia incessantemente, e começou a abater-se sobre as paredes do Kremlin.
O dia escoa-se assim, nesta terrível contemplação. Insta-se o imperador, pedem-lhe que abandone o Kremlin. Mas este, como se temesse que o levassem à força, agarra-se às barras das janelas. Cai a noite, e o incêndio está tão próximo, que os reflexos das chamas brilham no rosto desse outro Júpiter cercado pelos titãs.
Todos aqueles que julgaram ter alguma influência junto dele acorreram. O seu confidente íntimo, príncipe de Neuchâtel, depois o cunhado Murat, mais tarde o enteado, príncipe Eugénio. Este pedir-lhe-á, suplicar-lhe-á.
Parece surdo e insensível, mudo! Todas as suas faculdades estão concentradas num só sentido: a vista! Braços cruzados, cabeça descoberta, o rosto dourado por um reflexo cor de cobre, contempla...
De repente, passa um murmúrio de boca em boca. Cada um transmite-o o mais rapidamente possível ao vizinho, e empurra-o assim de forma a que chegue até ao imperador.
 - O fogo chegou ao Kremlin! Mas isso não é ainda suficiente.
 - Que o apaguem - ordenou o imperador. Obedecem-lhe. O fogo é extinto.
Dez minutos depois, o mesmo murmúrio renova-se, ameaçador.
 - Apaguem! Apaguem! - repete Napoleão.
Mas uma terceira vez o fogo se ateia. Deflagra natorre do paiol. Dessa vez, apanharam o incendiário. É um soldado da polícia.
Levam-no diante de Napoleão, que o interroga.
O homem obedecia a uma ordem recebida. De quem recebera essa ordem? Do seu chefe. E de quem a recebeu o chefe? Daquele que é o chefe dele.
Assim, a ordem veio sempre de mais acima. Nesse caso, não se deve ao fanatismo individual de alguns miseráveis, o motivo para o incêndio que devora a capital da Rússia. Trata-se de uma ordem superior que é executada, trata-se de um plano organizado, que se cumpre.
Napoleão encolhe os ombros e, com um gesto desgostoso, faz sinal para que retirem da sua frente o incendiário. Levam-no para o pátio, e atravessam-no a golpes de baioneta. Morre rindo, e proferindo palavras ameaçadoras, em russo.
Um polaco compreendeu essas palavras. Sobe apressado os degraus do palácio, e chega à sala onde Napoleão se obstina em manter-se.
 - O Kremlin está minado! - informa ele. - Os russos esperam fazer saltar o imperador e todo o seu estado-maior.
 - Sire - diz Eugénio - , contra homens, luta-se como César o fez contra Alexandre! Contra os deuses, luta-se como Diómidas e Aquiles. Mas não se luta contra o fogo!
 - Vamos - decidiu-se Napoleão - onde fica a escadaria norte?
As portas foram rapidamente abertas. Os guias correm a indicar o caminho, pressionados como eles próprios estão para escaparem ao perigo, e desce-se a famosa escadaria norte.
 - Para onde quer o imperador transferir o seu quartel general? - pergunta Berthier.
 - No caminho para Petersburgo, no castelo imperial de Petrovsky - respondeu Napoleão.
Assim, mau grado o incêndio, as chamas, a minagem ameaçadora, mau grado o vulcão aberto a seus pés, não baterá em retirada, não recuará na direcção da França. Pelo contrário, andará mais uma légua ainda na direcção de Petersburgo.
Mas chegar-se-á a Petrovsky? Espera-se demasiado! Há pouco ainda, estava-se apenas a ser atacado pelo fogo. Agora, estava-se bloqueado.
Graças a uma espécie de corredor aberto através das rochas, chega-se a uma porta lateral, e finalmente o Kremlin é abandonado.
Mas, uma vez fora do Kremlin, apenas se está mais próximo das chamas. Está-se no centro de um enorme braseiro. As ruas desaparecem, envoltas em turbilhões de fumo. O ar, carregado de cinzas, deixa de ser respirável, e queima o peito.
Embrenham-se ao acaso naquilo que se parece mais com uma rua. Por felicidade, era com efeito uma rua, mas estreita, tortuosa, e incendiada de ambos os lados.
O imperador avançava a pé, no meio de uma vintena de homens; à sua frente, agitando os chapéus para tornar o ar mais respirável, seguiam Murat e Eugénio. Berthier ia atrás dele - sempre o mesmo - mantendo-se à retaguarda, agora como dantes. Passando por onde passava o imperador, não seguindo nem à frente nem ao lado. Recebendo a iniciativa do imperador, mas jamais a temendo.
Caminhavam, assim, por entre duas muralhas de fogo, sob um manto de fogo, sobre uma terra em fogo! Pedaços flamejantes caíam à direita e à esquerda. Ferro e chumbo fundidos rolavam dos tectos tal qual chuva num dia de tempestade. As chamas, curvadas pelo vento, com as suas linguas devoradoras, lambiam as plumas dos oficiais. Depois, endireitando-se subitamente, elevavam-se para o céu, como bandeirolas ardentes.
Era preciso sair dali, encontrar uma escapada, ou então sufocava-se.
Cinco minutos mais, e ninguém sairia daquele inferno!
Houve por um instante a ideia de retroceder. Mas várias casas desmoronaram-se repentinamente, e viu-se uma barricada inflamada amontoar-se, barrando a retirada.
 - Nesse caso, avante! Avante! - disse Murat.
 - Avante! - repetiu Eugénio.
 - Avante! - repetiu o próprio Napoleão.
Mas os que formavam a guarda-avançada, agarrando a cabeça com ambas as mãos, responderam com voz sufocada:
 - Impossível! Já nada vemos! O fogo está em todo o lado!
Nesse momento, ouviu-se uma voz que gritava entre a fumarada!
 - Por aqui! Por aqui!
E um homem de trinta anos, com o rosto marcado por um golpe de sabre, pálido ainda pela ferida recente, surgiu à esquerda do imperador, saindo de um turbilhão de fumo.
 - Guia-nos - ordenou Napoleão.
 - Por aqui, sire - respondeu o jovem.
E, lançando-se no turbilhão de fumo, repetiu:
 - Por aqui! Por aqui! Responsabilizo-me por tudo! Napoleão apoiou o lenço na boca. O ar tornara-se
insuportável, sufocante, mortal.
 - Por aqui, sire - dizia sempre a mesma voz.
Ao cabo de alguns passos, com efeito, as chamas eram menos ardentes, e a fumarada menos espessa. Estava-se num quarteirão que fora incendiado durante a manhã.
Um oficial general transportado numa liteira ia embrenhar-se na devoradora fornalha de onde os outros acabavam de sair como se por milagre. Era o marechal Davoust, ferido na Moscova, que se fazia transportar ao Kremlin para conseguir que Napoleão abandonasse o palácio.
Ao ver o imperador, ergue-se e estendeu para ele os braços. O imperador recebeu-o, reconhecido, mas calmo, como se acabasse de cumprir um trajecto normal.
Nesse momento, viu-se surgir, a cinquenta passos, um comboio de pólvora que desfilava através das chamas.
 - Deixem passar o imperador! - gritou o jovem oficial.
 - Deixe passar a pólvora, senhor - disse o imperador. Em caso de incêndio (e disse-o com um ligeiro sorriso) a pólvora é sempre aquilo que mais urgente se torna salvar.
Soou um armão.
Os que rodeavam Napoleão pressionaram-se em torno do imperador.
Estouraram então um segundo armão, um terceiro, depois um quarto. Os estilhaços espalharam-se como chuva incandescente.
Foi uma série de cinquenta. Esperou-se que passassem, e depois retomou-se o caminho.
Ao chegarem à porta de Petrovsky, o imperador perguntou :
 - Não é o tenente Richard, que me enviou a Donauwõrth, quem segue à nossa frente, e que tão a propósito surgiu para mostrar-nos o caminho por entre as chamas?
 - Sim, sire - respondeu Davoust. - E enquanto não o faz comandante de batalhão, conceda-lhe a sua cruz de oficial da Legião de Honra.
O marechal chamou o jovem oficial e, retirando a sua própria cruz de ouro, disse-lhe:
 - Capitão Richard, da parte do imperador.
O capitão Richard inclinou-se, e Napoleão, ao passar, fez-lhe com a mão um sinal que queria dizer:
"Reconheci-te, e não te esquecerei."
O jovem retirou-se, pronto a morrer pelo imperador, sem uma indecisão, sem uma queixa.
Na manhã seguinte, ao levantar-se, Napoleão correu à janela que abria para o lado de Moscovo. Esperava ver o incêndio extinto, ou pelo menos acalmado. Mas toda a cidade não passava de um mar de fogo, de uma nuvem de fumo. Essa Moscovo que de tão longe fora procurada, parecia fugir adiante, como as miragens do deserto: essa mesma Moscovo, mal, finalmente, se lhe punha a mão em cima, não passava de um pedaço de cinzas! Já não eram só os exércitos do czar os inatingíveis, as próprias cidades eram-no também.
Que vai fazer o homem de 1805, de 1806, de 1809; o homem das resoluções rápidas, o homem que abandonou o campo de Bolonha para vencer a batalha de Austerlitz, o homem que deixou o palácio das Tulherias anunciando qual o dia em que entraria em Berlim; o homem que deixara a Espanha, atravessara a França, e marchara em passo de corrida até Viena?
Vai marchar sobre Petersburgo. Pelo menos, di-lo.
Numa mesa é aberto o mapa que indica o caminho para a segunda capital do império moscovita; mas, sobre uma mesa vizinha, é aberto o mapa que mostra o caminho para Paris.
Levará oito dias a tomar uma resolução. Oito dias serão necessários para que a sua carta ao imperador Alexandre chegue a Petersburgo e provoque uma resposta. Está-se só a 19 de Setembro, e o tempo é bom. Há tempo para tomar um partido.
Além disso, ao cabo de três dias, a cidade estava consumida pelas chamas, bem certo, mas o fogo extinguira-se. Intocado, o Kremlin voltara a ser habitável.
O imperador regressou ao Kremlin. Parecia-lhe, ao fazê-lo, que pela segunda vez conquistava Moscovo.
Do Kremlin, pôde ver o terrível espectáculo de um exército esfomeado devorando as ruínas de uma cidade.
Durante os três dias que Moscovo levara a incendiar-se e a apagar o incêndio, Murat havia perdido o rasto do exército de Kutusov, a quem perseguia - mas não tardaria a serem recebidas notícias dele.
Depois de ter fugido rumo ao Oriente, Kutusov havia repentinamente obliquado, e aboletara-se entre Moscovo e Kaluga.
Napoleão ordenou a Murat que o perseguisse. Este obedeceu e a 29 de Setembro alcançou o seu adversário, e depois a 11 de Outubro.
As notícias destas duas batalhas fizeram estremecer Napoleão nas suas esperanças. O que acontecia era tão inesperado como o que por vezes acontece nesses belos dias de Verão em que repentinamente se houve estalar o trovão, sem que no céu se veja uma só nuvem de onde ele possa ter saído.
À excepção da sua última campanha na Áustria, o imperador sempre vira a guerra terminada, uma vez tomada a capital. Porque não aconteceria nessa campanha como nas outras, em Moscovo como nas outras capitais?
Mas ali havia uma coisa, ou melhor três coisas ate-morizadoras, que Napoleão não encontrara noutros lados: três silêncios. O silêncio de Moscovo, o silêncio do deserto que envolvia Moscovo, e, enfim, o silêncio de Alexandre, que parecia não se preocupar com Moscovo.
Napoleão contava os dias. Há onze dias, onze séculos, que durava o silêncio.
Seja. Nesse caso, lutar-se-á em teimosia! Napoleão passará o Inverno em Moscovo.
Nomeia um intendente da capital do Império russo, e; organiza as municipalidades. São dadas ordens para o abastecimento do exército. Far-se-á da cidade um grande campo intrincheirado. O pão e o trigo, esses dois grandes reparadores das forças humanas, não faltarão. Os cavalos que não puderem ser alimentados, serão salgados. Se os alojamentos faltarem, estabelecer-se-ão nas caves. Os melhores autores de Paris virão representar em Moscovo, como o fizeram em Dresde. Há que ficar durante cinco meses; cinco meses passam depressa. Na Primavera, chegarão os reforços. A Lituânia inteira acorrerá a juntar-se em armas, e a conquista será consumada.
Sim. Mas que dirá Paris que, durante cinco meses, não terá notícias do seu imperador e de um exército de cento e cinquenta mil homens? Que farão os da Prússia e os austríacos, esses aliados tão pouco firmes, e que de um momento para o outro podem transformar-se em inimigos?
É um sonho a que é preciso renunciar.
A 3 de Outubro, é tomada uma nova resolução. Quei-mar-se-ão os restos de Moscovo, marchar-se-á por Tver, sobre Petersburgo. Macdonald juntar-se-á ali ao grosso do exército. Murat e Davoust comandarão a retaguarda do exército.
Este novo plano é lido ao general Eugénio. Os generais, os marechais, os príncipes e os reis entreolham-se. Perguntam uns aos outros com os olhos se o imperador terá ficado insensato.
Não. Somente que a sua sorte começa a falhar. Outrora, quando era obrigado a dar um passo à retaguarda, sentava-a perto dele, apoiava-se nela. Hoje, ela deixou de existir, e o braço do imperador só encontra o vazio!
Com efeito, não é só isso o que lhe falta: é também a paz.
O imperador manda chamar Caulaincourt. Este, que durante dois anos fora embaixador junto de Alexandre e a quem o czar sempre tratou como amigo, obterá dele boas condições. Mas Caulaincourt recusa. Conhece Alexandre. Napoleão não obterá do seu inimigo uma só palavra de resposta, a menos que tenha evacuado totalmente o território russo.
Será enviado Lauriston.
Lauriston aceita, parte para o campo de Kutusov, a fim de pedir ao velho general um passaporte para Petersburgo. Mas os poderes de Kutusov não são assim tão latos. Propõe enviar o conde Bolkonski a Petersburgo, sem duvidar de que o resultado seja o mesmo.
E tem razão. Nem Bolkonski, nem Lauriston, nem Caulaincourt trarão qualquer resposta. É que essa resposta será o Inverno encarregado de dá-la.
A 14 de Outubro, chega ele. Vêem-se as primeiras neves.
O imperador compreende finalmente o aviso. Dá ordem para pilharem as igrejas de todos os ornamentos que possam servir de troféus ao exército.
Os Inválidos serão bem partilhados. Terão, para a sua catedral, a cruz de ouro do grande Ivan, que domina a torre principal do Kremlin.
A 16, sem que se pense ainda na retirada - a palavra fatal que marcará o ocaso da sorte imperial nem sequer será proferida - encaminham-se para Mojaisk a divisão Claparède, os troféus da campanha e todos os feridos ou doentes em estado de serem transportados.
Os feridos e os doentes que não puderem suportar a fadiga da viagem serão deixados no hospital das crianças abandonadas. Aliás, nessa casa de dor há tantos franceses como russos. Os cirurgiões que trataram uns e outros com iguais cuidados, numa filantropia que não conhece quaisquer diferenças de nações, para quem os homens são apenas homens - os cirurgiões, ficarão com eles.
De repente, o canhão - que, aliás, não cessara de troar aqui e além - soou mais perto de Moscovo.
O imperador, que no pátio do Kremlin passa em revista a divisão de Ney, ouve o fúnebre eco, mas faz de conta que nada ouviu. E à noite, como ninguém ousa dar-lhe a terrível notícia, Durac aventura-se. Entra nos aposentos do imperador, e diz-lhe que Kutusov atacou Murat em Voronovo, evolucionou à esquerda do rei de Nápoles, cortou-lhe a retirada, apoderou-se de doze canhões, vinte armões, trinta furgões, matou dois generais e pôs fora de combate quatro mil homens. O próprio rei de Nápoles foi ferido ao realizar milagres para restabelecer a batalha, a qual, graças a Poniatowsky, a Claparède e a Latour-Maunourg, só apenas se perdeu em metade.
Era o que Napoleão esperava. Precisava de um pretexto para abandonar Moscovo. Esse pretexto estava encontrado.
Trata-se então de castigar Kutusov.
Durante a noite de 18, o exército põe-se em movimento na direcção de Voronovo, e na manhã de 19, o próprio imperador deixa a cidade santa estendendo a mão na direcção de Kaluga, e proferindo estas palavras:
 - Infelicidade para aqueles que estiverem no meu caminho.
Esteve-se trinta e cinco dias em Moscovo. Sai-se da cidade com cento e quarenta e cinco mil homens, cinquenta mil cavalos, quinhentos canhões, duas mil viaturas de artilharia, quatro mil armões, caleches, viaturas e carroças de toda a espécie.
Quatro dias depois, na noite de 22 para 23 de Outubro, cerca de uma hora da manhã, se bem que o exército esteja já a três dias de Moscovo, o ar foi abalado por uma violenta explosão, e a terra estremeceu como se alvo de um tremor de terra.
Os que velavam em torno do imperador levantaram-se em sobressalto, espavoridos, perguntando qual seria a catástrofe capaz de provocar um tal estrondo.
Duroc entra nos aposentos de Napoleão, que se deitara completamente vestido sobre o leito.
O imperador não dormia, e ao ouvir a barulheira que o marechal fez ao entrar, virou a cabeça.
 - Ouviu, sire? - perguntou Duroc.
 - Sim - respondeu Napoleão.
 - E então?
 - Não é nada. É o Kremlin que estoura. E virou a cabeça para o lado da parede. Duroc saiu.
XIII.
A passo comum
ESTAVA-SE a 19 de Novembro, exactamente um mês depois da saída de Moscovo.
Uma coluna francesa composta por quatro ou cinco mil homens, mais ou menos, levando consigo uma dezena de canhões, estendia-se como uma longa linha negra, a um dia de distância de Smolensko, entre Korytnia e Krasnie.
Trezentos cavaleiros seguiam nos flancos dessa coluna. Esses cavaleiros, reunidos em Smolensko, pertenciam a todas as armas. Só por uma questão de coragem se haviam reunido e continuavam a caminhada. Que acontecera aos seus regimentos, e até aos corpos de exército de que faziam parte, ninguém o sabia dizer. Que lhes acontecera? Exactamente o mesmo que na Primavera seguinte aconteceria à neve sobre a qual se marchava. Com efeito, no exacto momento em que lançamos um olhar sobre os restos de um dos mais belos corpos de exército, Napoleão, que o precedia com cerca de três dias de avanço, acabava de entrar em Orcha com seis mil homens da velha guarda, sobreviventes de trinta e cinco mil. Eugénio, com mil e oitocentos soldados, resto dos quarenta e dois mil. Davoust, com quatro mil combatentes, resto de setenta mil! Era a isso que Napoleão - caminhando ele próprio de bastão na mão para dar o exemplo de coragem e de paciência - se obstinava em chamar o grande exército...
Oh, queda de Aníbal! Amanhãs de Átila!
Ao falar de Smolensko, a 14 de Novembro, o imperador havia resolvido que o príncipe Eugénio e os marechais Davoust e Ney, sairiam, por ordem respectiva, atrás dele: Eugénio o primeiro, Davoust o segundo e Ney o terceiro. Além disso, ordenara que colocassem um dia de intervalo entre cada partida. Consequentemente, ele partira a 14, Eugénio a 15, Davoust a 16 e Ney a 17.
Acrescentara a este último que serrasse os eixos de todas as peças de artilharia que deixasse pelo caminho, que destruísse todas as munições, que levasse à sua frente todos os retardatários do exército e que em quatro locais fizesse saltar os suportes da cidade.
Ney havia executado religiosamente estas ordens. Depois, como último, avançou pelo mesmo caminho já estragado pela passagem dos três exércitos que precediam o seu. Verdade seja dita que já nem eram exércitos, os seis mil guardas de Napoleão, os mil e oitocentos soldados de Eugénio e os quatro mil combatentes de Davoust. Mas era bem pior: eram homens esfaimados por trinta e um dias de retirada sobre a neve e o deserto, pelo que nenhuma mantinha mais do que a disciplina julgada necessária à sua conservação pessoal.
Já não conhecíamos os chefes nem o estandarte. Ontem, grande exército, e agora, bando! Já não se distinguiam as alas nem o centro. Nevava! Os feridos abrigavam-se nos ventres dos cavalos mortos; em redor dos acampamentos desolados, viam-se clarins gelados nos seus postos, que se mantinham na sela e, mudos, brancos de gelo, colando as bocas empedernidas às trombetas de cobre! Balas, metralha, obuses, misturados com flocos brancos choviam; os granadeiros, surpresos por tremerem, marchavam pensativos, com o gelo agarrado aos cinzentos bigodes
Nevava, nevava sempre! O vento gelado silvava; sobre o gelo, em lugares desconhecidos, não havia pão, e caminhava-se a pés nus. Já não havia corações vivos, homens de guerra: era um sonho errante na bruma, um mistério, uma procissão de sombras sob um céu negro. A solidão, vasta, temível de ver, surgia por todo o lado, muda, vingadora. O céu, sem um ruído, fazia com a espessa neve uma imensa mortalha para aquele exército! E cada um, sentindo-se morrer, estava só...
Oh, Victor Hugo! Grande poeta e caro amigo! Ousarei eu relatar um episódio dessa funesta retirada depois do admirável quadro por ti traçado?
Era pois o resto das quatro divisões comandadas por Ney, no início da campanha, que avançava, como dizíamos, entre Korytnia e Krasnoie, reduzido a quatro ou cinco mil baionetas e a duas ou três centenas de cavaleiros.
De repente, os poucos batedores que seguiam à frente detiveram-se e olharam para o chão. Ney correu para eles, e reconheceu o que lhes fixara a atenção.
Traços recentes de um campo de batalha! A neve estava coberta de sangue, juncada de armas em pedaços, de cadáveres mutilados. Os mortos, em longas filas, revelavam ainda os postos que ocupavam, em vivos.
Logo um dos cavaleiros que, sob uma pele de urso esconde os restos de um uniforme de oficial dos caçadores da guarda, salta em terra.
 - Oh! - murmura ele - foi o corpo de exército do príncipe Eugénio que combateu aqui! Estão aqui, nas placas das armas, os números dos seus regimentos.
E com ansiedade seguiu as filas de mortos que jazem como as espigas à entrada de um silo. Mas a busca é inútil. Os mortos juncam a neve aos milhares! Além disso, a noite aproxima-se, e há que regressar ao caminho.
Sem dúvida que o combate tivera lugar às primeiras horas da véspera, pois nenhum ferido responde aos gritos que os novos recém-vindos soltavam a fim de reabrirem os olhos daqueles que ainda os não tivessem definitivamente cerrado. Uma noite passara sobre o campo de batalha e, com os trinta graus negativos que fazia, uma noite sem fogueira é mortal. Assim tudo era silêncio nessa superfície de uma ou duas léguas totalmente pejada de cadáveres.
Pelo menos a pista fúnebre indicava a rota que era necessário seguir-se. Seguiram-na ainda durante duas horas, e depois fez-se alto.
Havia que passar a noite, acampar, arranjar fogueiras.
Todas as noites, era uma coisa terrível, essa paragem. Então, cada um errava ao acaso, procurando alguma cabana para demolir, alguns víveres para roubar. Partiam muitos, e ficava-se sempre surpreendido pelo escasso número dos que regressavam. Uns eram mortos pelo frio, e outros eram feitos prisioneiros.
Nessa noite, as grandes caminhadas foram inúteis. Uma floresta de abetos forneceu a madeira, e os cavalos mortos forneceram a carne. Só na véspera haviam deixado Smolensko, e ainda havia pão.
O oficial que vimos saltar do cavalo e procurar entre os mortos, foi um dos primeiros a regressar ao campo de batalha. Mas depois de ter por ali passado o exército, uma alcateia de lobos viera com a noite, e foi preciso afugentá-los.
Por felicidade, os animais carnívoros preferem a carne humana à dos animais. Os cavalos estavam, portanto, mais ou menos intactos, e proporcionaram um lauto repasto à tropa que seguimos.
Foram acesas fogueiras, colocadas sentinelas, e para além dos uivos dos lobos, a noite passou-se tranquilamente.
Na manhã seguinte, mal nasceu o dia, o marechal deu ordem de partida. Alma de fogo num corpo de aço, era sempre o último a deitar-se e o primeiro a levantar-se.
Como de costume, algumas centenas de homens mantiveram-se deitados em volta das fogueiras mal acesas e fumegantes. Chegavam, no sono, a um estado tal de entorpecimento que os colocava tão perto da morte, que achavam, ao acordarem, ser mais fácil descer completamente até ela do que trepar de novo rumo à vida.
Puseram-se a caminho. Nevara durante a noite, e nevava ainda. Caminhava-se ao acaso, com uma bússola, virando as costas ao norte, e sobre um oceano de gelo. À cabeça da coluna seguiam Ney, o general Ricard e dois ou três outros oficiais generais precedidos de homens, que não formavam qualquer guarda-avançada, mas em debandada, e mais apressados do que os outros.
Nessa altura, um movimento estranho atrai a atenção de Ney: esses homens que o precedem detiveram-se subitamente, agrupam-se, temerosos, e os mais avançados começam a recuar sobre os que os seguem. Ney impele o cavalo e pergunta-lhes o que se passa; através de uma clareira na neve, que por momentos cai menos espessa, mostram ao general as montanhas que os cercam, completamente cobertas por russos.
Haviam ido cair em cheio sobre o flanco do exército de Kutusov - ou seja: sobre os oitenta mil homens que perseguiam Napoleão! Não os haviam visto porque nevava, e com neve caminha-se de cabeça baixa. Mas os outros, do alto das colinas que dominam, há mais de uma hora que seguem o movimento da pequena coluna que imprudentemente se vem entregar.
Com efeito, o imenso semicírculo que forma o exército russo mais não tinha que reunir ambas as extremidades, e os cinco ou seis mil homens de Ney seriam presos num vasto anfiteatro.
Ney manda preparar as armas.
Nesse momento, vê-se destacar-se um oficial envolto num manto. Vem direito aos franceses. É um parlamentar...
Aguardam-no...
A cinquenta passos das primeiras filas, retira e agita o chapéu. Não só é um parlamentar, mas ainda por cima um francês.
No instante em que estas palavras correm pelas fileiras "É um francês! É um francês!", o oficial de caçadores que reconhecera os cadáveres do campo de batalha que atravessámos como pertencentes ao exército do príncipe Eugénio, adianta-se, salta do cavalo, e lança-se nos braços do parlamentar.
Os dois oficiais trocam algumas palavras.
 - Paul!...
 - Luís!...
 - Meu irmão!...
Depois, esses dois homens que, cada um por seu lado, se haviam procurado entre os mortos, agradeceram a Deus o estarem ainda vivos.
Entretanto, correram outros para eles, e rodearam-nos.
O jovem oficial que descera das alturas explica então
a sua missão. É o oficial às ordens do príncipe Eugénio. Fora feito prisioneiro nessa mesma batalha que deixara os mortos tão bem alinhados nas suas fileiras, cujo teatro atravessámos na véspera. O velho marechal russo reconheceu Ney, e manda propor-lhe que se renda.
 - E é o senhor, um francês, quem se encarregou de tal missão? - disse Ney ao jovem.
 - Espere, senhor marechal, e deixe-me acabar - respondeu este. - Vou primeiro repetir-lhe as palavras do marechal, e acrescentarei as minhas. Ele não ousaria, disse-me, fazer uma tal proposta a um tão grande general, e a um guerreiro de tanta nomeada, se restasse a esse inimigo que honra uma só possibilidade de salvação. Mas oitenta mil russos e cem peças de canhão estão diante e em redor dele, e assim envia-lhe um prisioneiro francês, julgando que as palavras deste conseguirão sem dúvida granjear mais credibilidade do que a palavra de um oficial russo.
 - Está bem - retorquiu Ney - já falou pelos russos. Fale agora por si.
 - Se falar por mim, senhor general, será para dizer que ontem à noite a mesma proposta foi feita ao príncipe Eugénio, e que o príncipe Eugénio respondeu carregando, com seis mil homens, contra oitenta mil. E fê-lo à baioneta. Se tivéssemos que enfrentar Miloradovitch, dir-lhe-ia: estamos perdidos! Morramos juntos! Mas enfrentamos Kutusov.
Perderemos um quarto, um terço dos homens, a metade, mesmo. Mas escaparemos.
 - Pois bem, regresse para junto de Kutusov, e diga-lhe o que deveria ter-lhe dito logo de início: que um marechal da França faz-se matar, mas não se rende.
 - Oh! eu disse-lhe isso - respondeu simplesmente o jovem oficial.
Depois, virando-se para o irmão.
 - Agora, Paul, uma arma qualquer! Que possa eu, no meio da confusão, desembaraçar-me daqueles que me guardam, e reunir-me a vocês.
O oficial dos caçadores retirou do interior da sua pele de urso um longo punhal de Tuia, de lâmina persa, com punho demasquinado a ouro, e deu-o ao irmão, dizendo-lhe:
 - Toma, espero-te!
O jovem oficial ordenança saudou o marechal e voltou a cavalgar na direcção dos russos.
Então, Ney aproveitou esse momento de espera para reunir todos os seus homens.
De um lado, oitenta mil russos, com as fileiras completas, profundas, alimentadas, linhas redobradas, soberba cavalaria, formidável artilharia e finalmente - o que duplica tudo isso - a superioridade da posição. Do outro lado, cinco mil soldados pertencentes a todas as armas, uma coluna perdida no deserto, homens mutilados, enfraquecidos, morrendo de fome e de frio.
Não importa! Serão os cinco mil que atacarão os oitenta mil!
Ney deu o sinal.
Mil e quinhentos soldados, restos da divisão Ricard, estão à cabeça. O general Ricard e os seus mil e quinhentos homens farão o primeiro impacto. Ney e o resto do exército lançar-se-ão em seguida.
Ao primeiro passo que Ricard dá contra os russos, todas as colinas, um instante antes frias e mudas, agitam-se e inflamam-se como vulcões. Ricard e os seus mil e quinhentos homens trepam sob esse fogo a colina que lhes está em face. Encontram uma ravina onde se enfiam na neve até ao pescoço, atravessam-na e vão ferir a linha russa, que os repele, desfazendo-os, para a ravina.
Mas então já Ney está no meio deles. Ney volta a reuni-los, forma-os de novo, e avança à cabeça deles, ordenando a quatrocentos homens, entre os quais vê o oficial de caçadores, que ataquem de flanco o exército inimigo.
Isto parece quase insensato, não é verdade? Quatrocentos homens apanhando de flanco oitenta mil! Um homem para cada duzentos e cinquenta!
No entanto, era assim que se procedia, nesses tempos de guerras épicas.
Com os seus três mil homens, Ney sobe ao assalto dessa cidadela viva, e com os seus quatrocentos homens, o capitão Richard ataca o exército de flanco.
Ney não fizera qualquer exortação aos seus soldados. Não dissera uma só palavra. Colocou-se à frente, e caminhou. Todos os outros o seguiram.
A primeira linha é atacada à baioneta, e atravessada. A segunda está a duzentos passos de distância.
 - Avante! - gritou Ney.
Mas no momento em que está a atingir essa segunda linha, trinta peças de artilharia colocadas em bataria troam sobre esses dois flancos. Cortada em três secções, como uma serpente, a coluna recua, levando consigo o marechal.
Tentara-se o impossível.
 - Recuar! A passo normal! - grita o general.
 - Estão a ouvir, soldados? - gritou por seu turno o general Ricard. - O marechal disse: "A passo normal!"
E aqueles homens recuaram a passo normal, atravessaram a ravina a passo normal, e regressaram, sempre a passo normal, ao local de onde haviam partido.
Apenas, haviam partido em número de cinco mil, e só dois mil regressavam.
Em contrapartida, porém, eis que do flanco da montanha descem os quatrocentos soldados, em maior número dos que haviam partido: encontraram uma coluna russa de cinco mil homens que conduzia trezentos prisioneiros franceses, alemães e polacos. Caíram sobre essa coluna, atacaram-na com a fúria do desespero. E passados alguns instantes de luta, a coluna dera um passo à retaguarda, os prisioneiros foram libertados, e os dois irmãos Paul e Luís Richard encontraram-se nos braços um do outro.
Foi nessa altura que viram Ney e os seus dois mil homens retrocedendo e voltando a agrupar-se sob o fogo da artilharia de Kutusov. Uma vez que o movimento central falhara, o capitão Paul Richard deu ordem para se reunirem ao corpo do exército do marechal.
Que fazer? Formar em quadrado, e morrer.
Mas os prisioneiros chegam. Conhecem Kutusov. Kutusov, que deixou passar Napoleão, que deixou passar Eugénio, esse Kutusov deixará também passar Ney. Apenas há que fazer um desvio. Kutusov não os perseguira, fia-se no Inverno do seu país. O Inverno, segundo ele, é um inimigo mais rápido e seguro do que as granadas.
 - O Inverno - costuma ele dizer - é o meu comandante-chefe. Não passo do tenente do Inverno.
Nesse momento, como se para ajudar à retirada, a neve recomeça a cair.
Ney reflecte um instante, e dá ordem para retroceder em direcção a Smolensko.
Todos ficam mudos, interditos. Assim, reentra-se a norte, em direcção ao frio, viram-se as costas a Napoleão!
 - Rumo a Smolensko, e a passo normal! - repete Ney.
Percebe-se que há nessa retirada um plano elaborado, provavelmente a salvação da coluna. Voltam a formar, e marcham sob a metralha de cinquenta peças de artilharia, mas, pelo menos, apenas sob essa metralha.
Com efeito, a previsão dos prisioneiros cumpriu-se. Kutusov, o Fabius escandinavo, ficara entre as suas colinas.
Se apenas um corpo de exército russo abandonasse a altura das colinas, e fosse abater-se sobre os dois mil franceses - e tudo teria acabado ali mesmo! Mas nenhum deles ousou movimentar-se sem ordens do comandante-chefe.
No entanto, a artilharia troava, e chovia metralha sobre esse pobre resto de um exército, quase tão disperso como a neve, o que obrigava os artilheiros a apontar ao acaso. Os mortos caíam, e estendiam-se com a rijeza dos cadáveres. Os feridos caíam também, levantavam-se, marchavam, voltavam a cair, tentavam levantar-se, caíam uma vez mais, agitavam-se. Depois, pouco a pouco, a neve proporcionava-lhes o que proporcionava aos mortos: cobria-os com a imensa mortalha tecida pelo Inverno russo para desfazer o orgulho da França.
Por todo o lado um pouco, o caminho estava juncado de pequenos montículos que, a princípio vermelhos, embranqueciam a pouco e pouco. Esses montículos correspondiam aos cadáveres do exército.
A meio desse percurso, cegos simultaneamente pela neve e pelo gelo, deram com uma massa negra e espessa. Era uma coluna russa.
 - Parem! Quem são vocês? - gritou o general que comandava essa coluna.
 - Fogo! - ordenou o marechal.
 - Silêncio - opôs um prisioneiro polaco que fora há pouco libertado.
E depois, avançando, disse em russo:
 - Não nos reconhecem? Somos o corpo de Uvarov, e contornamos os franceses, que estão cercados na ravina.
O general russo contentou-se com esta resposta, e deixou-os passar - sendo tão grande a obscuridade proporcionada pela neve e a desordem provocada pela metralha - e a coluna só fez alto duas léguas depois, no campo de batalha do príncipe Eugénio.
Estavam fora do alcance dos canhões russos, e longe da vista do marechal.
XIV.
A confissão
ENTRE os feridos que ficaram para trás contava-se o capitão Paul Richard. Um estilhaço havia-lhe ferido a coxa e simultaneamente matara-lhe o cavalo. No meio da desordem, caíra sem que ninguém reparasse nessa queda, nem mesmo o irmão. Mas da mesma forma que a todo o instante os olhos de Paul procuravam Luís, também a cada momento os olhos deste buscavam o irmão. Por isso Luís rapidamente se apercebeu de que Paul deixara de estar entre a fileira. Pediu informações, e um alemão vira-o cair com o cavalo.
Luís estava a pé. Correu para a retaguarda, chamando por Paul com todas as suas forças. Uma voz respondeu-lhe.
Por entre o nevão que caía, dirigiu-se na direcção da voz. Começava já a formar-se um montículo, cobrindo cavaleiro e cavalo. Paul caíra com a perna presa sob a montada. Não podendo servir-se da outra perna, que estava ferida, esperava tranquilamente a morte, quando a voz do irmão chegou até ele. Com uma força sobre-humana Luís levantou o cavalo, mais pesado ainda por inerte, e soltou a perna do irmão. Depois puxou o irmão para si, tomou-o nos braços como se fosse uma criança, e tentou levá-lo.
Mas como Paul lhe fizesse compreender que era impossível seguir a coluna daquela maneira, pousara-o contra o cadáver do cavalo e correu a juntar-se aos companheiros.
Paul ficou com as duas pistolas dos alforjes do cavalo, pronto a estourar os miolos aos dois primeiros cossacos que se aproximassem.
Luís alcançou a coluna, sobre a qual a artilharia russa continuava a despejar metralha. Ali, peão que estava, misturou-se entre os cavaleiros - havia ainda cinquenta, mais ou menos - e o primeiro que morreu abandonou as rédeas quase nas mãos de Luís, que só esperava por esse momento. Ajudou o cadáver a soltar os estribos, saltou para a sela vazia, virou a cabeça do animal para a banda do exército russo, e pela segunda vez retrocedeu.
Parava de vez em quando, chamando com todas as suas forças. Contara com um enorme abeto, que lhe serviria de referência. Mas os flocos de neve formavam diante dos seus olhos uma cortina de tal forma espessa, que era completamente impossível ver a dez passos de distância. Continuou a chamar. Pela segunda vez, uma voz respondeu à sua. Dirigiu-se na direcção dessa voz.
A artilharia disparava sempre. Mas a miséria e o frio eram tantos, que já não se dava atenção às balas e aos estilhaços. Felizes aqueles que eram mortos rapidamente! O que se temia era a neve, o frio, os lobos que vinham comer os feridos meio mortos.
De grito em grito, os dois irmãos reencontraram-se. Luís pegou de novo em Paul nos seus braços, içou-o para o cavalo. Fosse por controle sobre si mesmo, fosse porque não sentia a perna ferida, a verdade é que o capitão não soltou um único queixume. Luís pegou no cavalo pela brida. Paul acomodou-se sobre a sela, e voltaram a seguir a coluna francesa.
Durante mais ou menos uma meia légua - como no conto de fadas em que as pedras indicam às pobres crianças o caminho para casa - os cadáveres, ou quanto muito os montículos e os traços de sangue indicaram a pista da coluna.
Passada essa meia légua, porém, só se via o sangue. Era dos feridos que haviam podido continuar a andar, e que assim deixavam a sua pista. Mas depois, coberto por seu turno pela neve, o sangue deixou de aparecer. Estava-se fora do alcance das balas russas. Havia que andar ao acaso.
Ao cabo de duas horas, o cavalo, que desde Smolensko não comia, começou a cambalear a cada passo, e finalmente abateu-se. À força de golpes, Luís obrigou-o, duas ou três vezes a levantar-se.
Então, Paul suplicou ao irmão que o abandonasse. São e salvo como estava, envolto num bom manto, podia, juntando às suas vestes a pele de urso com que se cobria o ferido, alcançar a coluna e salvar-se - caso ela conseguisse salvar-se. Luís encolheu os ombros. - Irmão - disse ele - bem vês que o marechal faz uma caminhada falsa. Vai deixar ao exército de Kutusov o tempo necessário para passar, depois regressará sobre os seus passos, alcançará o Dniepr, que deve estar congelado, e reunir-se-á ao exército francês em Liady ou em Orcha. Por seu turno, Paul sacudiu a cabeça.
 - E quando julgas que a coluna regressará sobre os seus passos?
 - Esta noite, ou amanhã de manhã, o mais tardar - respondeu ardentemente Luís.
 - Nesse caso, façamos um acordo.
 - Qual?
 - Comprometes a tua honra em como o cumpres?
 - Fala.
 - Aceito a tua ajuda até amanhã de manhã. Mas ao nascer do dia, se a coluna não se tiver reunido a nós, abandonas-me?
 - Veremos.
 - Amanhã, ao nascer do dia, abandonas-me?
 - Pois bem - respondeu Luís, para acabar com a resistência do irmão - está combinado.
 - A tua mão.
 - Ei-la.
 - Faz então o que quiseres de mim, até ao nascer do dia de amanhã.
Luís olhou em seu redor. Um exército - provavelmente o do príncipe Eugénio - acampara ali. Apenas uma barraca estava ainda de pé naquele deserto. Sem dúvida que servira de abrigo ao vice-rei. Luís tomou o irmão nos braços, apoiou-o contra a parede mais funda da cabana, e depois procurou lenha para uma fogueira.
Alguns abetos magros, tristes, brancos como fantasmas, elevavam-se aqui e além. Muitos deles haviam sido arrasados por balas. Luís apanhou uma grande braçada que levou para a cabana. Depois juntou alguns desperdícios e palha amontoados a um canto do acampamento.
Paul compreendeu a intenção do irmão, e para acender o fogo ofereceu-lhe uma das suas pistolas. Mas Luís
disse-lhe para guardá-las. Era a defesa suprema contra os lobos que talvez os visitassem, durante a noite, ou contra os cossacos, que certamente os visitariam no dia seguinte.
Em seguida foi ter com o cavalo que se abatera, e procurou nos alforjes. Não só encontrou um par de pistolas, mas igualmente um saco com pólvora e balas.
Regressou, encantado com a sua descoberta.
O ferido seguia-o com os olhos nos quais brilhava uma profunda ternura. Para acalmar o irmão, Luís não parecia inquieto, antes quase feliz. Sacudiu a neve dos ramos resinosos, fez um monte com essas ramas no centro da cabana, um outro monte a um canto, meteu sob os ramos tudo quanto pôde encontrar de palha, tirou do bolso um resto de papel, embrulhou nele uma carga de pólvora, com a vareta descarregou uma das pistolas, deixou nesta apenas meia carga de pólvora sem bucha, aproximou o cano do papel, e soltou o cão da pistola, que largou uma chama sem estampido. Essa chama deitou fogo à pólvora encerrada no papel, o qual imediatamente se incendiou.
Então, Luís aproximou rapidamente a boca e soprou. O papel e a palha inflamaram-se primeiro, e depois, com um pouco de mais resistência, os ramos de abeto.
Cinco minutos depois, a fogueira estava em chamas. Bastava apenas deixá-la queimar.
 - E agora - disse Paul - que comeremos?
 - Espera - respondeu Luís.
E regressou ao cavalo, para cortar um pedaço de carne com o punhal de Tuia que o irmão lhe dera, e que tão útil fora para se desembaraçar dos russos. Mas o pobre animal não morrera ainda, e como se pressentisse o que lhe ia acontecer, fez um esforço, levantou-se, dirigiu-se para o lado do fogo, entrou na cabana e desatou a comer as folhas verdes do abeto.
 - Ah! guloso! - exclamou Luís.
Mas não teve coragem para matá-lo. Além disso, Paul opor-se-ia. Caso pudessem dar algumas forças à pobre besta, na manhã seguinte utilizá-la-iam.
Luís partiu à descoberta deixando ao irmão uma bolsa onde restavam ainda algumas gotas de aguardente. Encontrou um arbusto de ramas menos amargas do que o abeto, cortou-o totalmente e regressou puxando-o até à cabana. As ramadas mais tenras serviram de alimento ao cavalo. Os troncos e o caule foram postos de parte, para alimentarem o fogo.
Depois caiu a noite.
 - Com tudo isto - perguntou Paul - que comeremos?
 - Está tranquilo, Paul, tenho o meu plano.
De repente, de quatro ou cinco locais diferentes, ouviram-se uivos.
 - Olha, aí está o nosso jantar que vem ao nosso encontro!
Passado um instante, viram-se passar na neve algumas sombras negras. Por vezes, uma dessas sombras voltava-se, olhava o fogo, e a chama reflectia-se nesses olhos, que lançavam clarões.
 - Compreendo - disse Paul. - Ao primeiro que vier até à porta da cabana, matá-lo-ás?
 - Exactamente, irmão.
 - Toma as minhas duas pistolas. São pistolas de Versalhes. Valem mais do que as tuas.
 - Não! Talvez que os cossacos rondem por aqui. Se ouvissem um tiro, acorreriam.
 - Então como vais fazer?
Luís envolveu o braço esquerdo com o xairel do cavalo - o qual, depois de comer, se deitara a um canto da cabana - e depois pegou no punhal com a mão direita, fez com que o irmão lhe ligasse o punho com um lenço, e foi colocar-se atrás de um tronco de árvore, a dez passos da cabana.
Não passaram cinco minutos sem que um lobo enorme o tivesse visto, e foi colocar-se a seis passos dele, olhando-o com olhos inflamados, e rangendo os dentes.
Luís caminhou direito ao lobo. Este recuou, mas lentamente, sem fugir, os olhos sempre fixos sobre o jovem oficial, e pronto a lançar-se sobre ele, caso desse um mau passo.
De repente, pareceu a Luís que lhe faltava a terra sob os pés, e que caía num abismo de neve.
Com efeito, acabava de meter-se por uma ravina A neve, que não cedera ao ligeiro peso do lobo, abatera-se-lhe sob os pés.
No mesmo instante, pareceu-lhe que um peso caía sobre a sua cabeça, e que dentes aguçados se enfiavam no seu ombro. Instintivamente, levantou o braço armado com o punhal, e sentiu imediatamente descerrarem-se os dentes do lobo, e cair-lhe sobre o rosto um líquido quente. Acabara de mergulhar o punhal até ao cabo no peito do animal.
A luta não passara de uma luta de angústia.
O lobo quis fugir. Mas, dados dez passos, deitou-se sangrando sobre a neve. Quanto a Luís, conforme se debatera, os pés haviam assentado sobre uma capa de gelo, e penetrara a água até ao joelho.
Era preciso regressar à planície, trepando o talude. Graças ao punhal, que enfiava na neve para nele se apoiar, conseguiu-o. Correu na direcção do lobo - que, à sua aproximação, tentou em vão escapar-se.
Pegou-lhe pelas patas traseiras, e puxou-o para o lado da cabana.
 - Então? - perguntou Paul.
 - Então - respondeu Luís - aqui temos, sem contar com a pele, um repasto como nenhum rei, nenhum príncipe e nenhum marechal da França terá hoje para o jantar.
 - Mas que sangue é esse com que estás coberto?
 - Não é nada, é sangue do lobo.
A verdade é que tinha algum sangue seu misturado com o do lobo, mas Luís não quis falar disso.
Entrou e depositou o lobo, depois do que retirou um pedaço.
Por felicidade, desde a retirada do exército francês que os lobos haviam engordado.
Finalmente, Luís atirou para a fogueira uma coxa, e a carne sanguinolenta estalou. Voltando-se para o irmão, perguntou:
 - E então, que me dizes ao meu banquete?
 - Digo - murmurou o ferido - que preferiria um copo de água.
 - Vais ser servido com fartura, irmão.
E retirando uma das sacolas da sela do cavalo, metendo nessa sacola sete ou oito balas de chumbo, e suspendendo-a pelas rédeas soltas, Luís dirigiu-se à ravina, deixou cair a sacola até à água em que os seus pés haviam mergulhado, e retirou-a cheia de água.
Um bando de lobos seguia-o. Um só passo em falso, e seria imediatamente devorado. A carne grelhada cujo cheiro se espalhava em torno da cabana havia atraído os animais numa área de uma légua em redor.
Luís regressou são e salvo, e deu a sacola cheia de água ao irmão, que a esvaziou de um só trago, como se fosse um copo normal. Luís regressou à ravina, mas levando dessa vez na mão esquerda um archote bem ardente. Alguns dos lobos haviam rugido tão perto, no regresso, que julgou melhor tomar aquela precaução. O archote mantinha-os à distância, e, tal como da primeira vez, regressou são e salvo.
Quanto ao ser cercado na cabana, nada havia a temer. Desde que o fogo brilhasse, os lobos não se aproximariam, e Luís havia reunido lenha suficiente para manter a fogueira acesa até à manhã seguinte.
Estando portanto feita a provisão de água e de lenha, Luís sentou-se perto do irmão, picou com a ponta do punhal um dos pedaços de lobo que lhe pareceu suficientemente assado, e pôs-se a devorá-lo com o mesmo apetite que teria caso fosse um bife cozinhado na taberna mais confortável de Londres.
Paul via-o comer com um olhar melancólico.
 - Não comes? - perguntou-lhe Luís.
 - Não. Só tenho sede.
 - Bebe - disse Luís, dando a sacola ao irmão. Este pegou-lhe, e avidamente bebeu alguns goles.
 - Bebe tudo - disse-lhe o irmão. - A fonte não está longe.
 - Não, obrigado - respondeu Paul. - Além disso, preciso falar-te.
Luís olhou para o irmão.
 - Sim, irmão, e seriamente - acrescentou o ferido.
 - Fala - disse Luís.
 - É possível que te enganes, irmão, esperando que a coluna regresse sobre os seus passos.
 - É impossível que proceda de outra forma - disse Luís.
 - Não importa. Admitamos que não regressa.
 - Não o admito - insistiu Luís.
 - Mas eu admito. Ou quanto muito, para não te contrariar, suspeito disso.
 - E então? - prosseguiu Luís, olhando o irmão com inquietação.
 - Pois bem, se amanhã ao nascer do dia ela não vier, serás tu quem a irá procurar.
 - Hum! - fez Luís com um ar que significava: "Não estejas muito certo disso."
 - Está combinado, irmão. Além disso, discutiremos isso amanhã.
 - Seja.
 - Entretanto, como ao fim e ao cabo tens mais algumas hipóteses do que eu em rever a França, deixa-me fazer-te uma confissão.
 - Uma confissão?
 - Sim... Escuta, irmão, cometi na minha vida uma má acção.
 - Tu? Impossível!
 - No entanto, é assim. E para que morra sem remorsos...
 - Para que morras? - interrompeu Luís.
 - Bem, se devo morrer, para que morra sem remorsos, é preciso que me prometas reparar essa má acção.
 - Fala! E tudo quanto um homem possa fazer por outro, fá-lo-ei.
 - Irmão, existe na Alemanha uma jovem... a filha de um pastor... do pastor de Abensberg - sabes, essa aldeia onde atiraram sobre o imperador?
 - E então?...
 - Essa jovem, a quem chamam Margarida Stiller, desonrei-a eu!
 - Tu?
 - Tinha-te prevenido... É mais do que uma má acção, irmão. É um crime! Olha, não sei porquê - penso nisso amiudadamente, é certo - mas pensava na pequena quando o estilhaço me feriu. "É uma punição do céu" - pensei eu. E caí.
 - Irmão...
 - Tinha grande vontade de chamar-te, ao cair, e dizer-te em duas palavras o que neste momento te digo lentamente. Mas reflecti que chamar-te seria perder-te, comigo, e por isso desisti.
 - Ah! sim, mas eu dei pela tua ausência...
 - E foste um irmão devotado! Mas não te agradeço, Luís. Aquilo que fizeste por mim, tê-lo-ia feito por ti. Mas no teu regresso vi um favor do céu que me permitirá talvez reparar os meus erros...
"Essa jovem que eu desonrei, pela força, que violei - que queres tu! Estava bêbedo de pólvora e de cólera! - essa jovem, tinha um noivo. Esse noivo era Frederico Staps, que quis matar o imperador em Schoenbrunn.
 - Staps?
 - Infelizmente! Sim... até parece um romance. Esse Frederico Staps, que me tinha visto numa reunião de iluminados - não tenho agora tempo para contar-te como lá estive - mandou-me chamar à sua prisão. Lá fui. Pediu-me que o acompanhasse no local de execução, e que ali, quando ele estivesse morto, que ficasse com o medalhão que tinha no peito, e lesse o papel que teria na sua mão direita. Depois de ter lido esse papel, deveria entregá-lo ao coronel que presidira ao conselho de guerra que o condenara à morte. Tudo lhe prometi. Acompanhei-o no local de execução. Tombou, atravessado por cinco ou seis balas...
 - E ficaste com o retrato?
 - Fiquei com o retrato, e li o papel... o retrato era o de Margarida Stiller!
 - Oh!
 - Espera... O papel, tinha palavras e uma assinatura: "Perdoo-lhe. NAPOLEÃO."
 - Irmão!
 - Compreendes, ele não quis aproveitar essa graça! Que poderia ele fazer? Aquela que amava fora desonrada por um miserável... Esse miserável, irmão, era eu!
 - Paul! Paul!
 - Esse miserável, irmão, era eu - repetiu Paul. - Agora compreendes? Se morro, és o meu herdeiro. Temos cada um uma fortuna de duzentos mil francos, mais ou menos. Não necessitas dos meus duzentos mil francos; portanto, digo-te:
"Irmão, não sei se poderás encontrar essa mulher, mas, uma vez de regresso à França, partirás para a Alemanha, não é assim?
 - Sim, irmão.
 - Procurarás Margarida Stiller... O pai dela, repito-te, era pastor em Abensberg em 1809.
 - Sim, irmão.
 - Quando a encontrares, dir-lhe-ás o que aconteceu, como Deus me castigou, como, numa cabana deserta, ao ruído dos uivos dos lobos e dos hurras dos cossacos, te contei esta miserável aventura. Como me prometeste reparar o meu crime - se, no entanto, um tal crime for reparável - e dando-lhe assim toda a minha fortuna. Para ajudar-te a reconhecê-la, eis aqui o seu retrato.
E retirou do peito o medalhão que havia retirado do peito de Staps. Luís pendurou ao pescoço o mesmo fio. E depois, disse:
 - Fica descansado, irmão!
 - A tua mão - pediu Paul.
 - Ei-la.
 - Agora, trata de dormir. Necessitas das tuas forças para amanhã.
 - Como queres que durma!...
Luís levantou-se, lançou algumas ramadas para a fogueira quase em extinção, e depois, retirando do braseiro um tição, atirou-o para o meio dos lobos que, atraídos pelo cheiro da carne assada, mas mantidos à distância pela fogueira, se haviam postado em semicírculo em redor da cabana, enquanto outros vinham farejar através das frinchas de madeira.
Assustados pelo tição que rolou entre eles, os lobos fugiram, uivando.
A fogueira lançava uma grande claridade. Luís embrulhou-se no manto e deitou-se perto do irmão com a intenção de não se deixar adormecer. Mas passado um quarto de hora a fadiga, a necessidade de sono, tão imperiosa na juventude, fizeram com que começasse a confundir os objectos, ao mesmo tempo que as ideias se lhe baralhavam no espírito, tudo ficando indistinto e vago, para depois tudo se extinguir tanto a seus olhos como no cérebro. Dormia.
Ao nascer do dia levantou-se pressionado por uma mão.
Era o irmão que o acordava.
 - Irmão - disse o ferido. - Tenho sede!
Luís esfregou os olhos, fez apelo à memória, pegou na sacola que lhe servia de jarro e encaminhou-se na direcção da fonte.
Mal saíra da cabana ouviu atrás de si a detonação de uma arma de fogo.
Regressou à cabana, tolhido por um sinistro pressentimento.
Sentindo que, com a sua coxa ferida, seria um obstáculo à fuga do irmão, Paul havia acabado de estourar os miolos!
XV.
O Dniepr
LUÍS Richard não se havia enganado nas suas conjecturas. Ao dirigir-se para norte, Ney apenas tivera uma intenção: a de despistar os russos. Estranho aos pormenores que relatámos, desviando a cabeça para não ver os mortos cair, tapando as orelhas para não ouvir os gritos dos feridos, marchava sempre a direito, mais descontente com os flocos de neve que o impediam de reconhecer o caminho do que com a metralha que caía sistematicamente.
Ao fim de três horas, o marechal deteve-se. Estava numa vila abandonada, como todas as vilas. Um ou dois, talvez mesmo três exércitos, haviam já passado por ali. Nem uma porta ou janela estava de pé. Por isso também ele não quis prolongar a paragem. Antes do dia nascer, voltaria a partir. O Dniepr deveria passar à sua frente. Mas à frente estão também os russos. Marchará por isso na direcção do leste, depois obliquará numa direcção central, e reencontrará a corrente.
Cerca das nove horas, ouviu-se o canhão. Será um corpo do exército que por ordem de Napoleão, ao sabê-lo perdido, o procura?
Não, as salvas são demasiadamente regulares. São os russos que no seu campo celebram a vitória.
Sem barcos, sem equipagens, sem pontes, é preciso que Ney e os dois mil homens que o acompanham prossigam o caminho. E oitenta mil homens estão a cavalo, sobre o mesmo caminho! Portanto, Ney não poderá escapar-lhes.
O que os canhões celebravam era a prisão de Ney...
O marechal explica isso mesmo aos seus soldados.
 - Agora - diz ele - trata-se de contrariá-los. Amanhã, antes do nascer do dia, partiremos. Amanhã, antes do anoitecer, ter-nos-emos juntado ao exército!
A noite não foi tão má como na pradaria. Se bem que portas e janelas estivessem desfeitas, as casas eram mesmo assim uma espécie de abrigo.
Às 4 horas da manhã, os chefes acordaram os soldados sem a ajuda de trombetas ou de tambores.
Houve uma hora de luta para acordar esses infelizes e forçá-los a remeterem-se ao caminho. Uns trezentos ou quatrocentos ficaram no mesmo sítio, pois nem pedidos, nem súplicas nem ameaças poderiam levá-los a levantar-se.
Voltou-se à caminhada pelo trajecto da véspera, somente que um pouco mais para a esquerda. Ao cabo de duas horas, caminhava-se assim ainda, quando, de repente, os soldados que formavam a testa da coluna detiveram-se e pareciam consultar-se.
Ney acorreu.
 - Que se passa? - perguntou o marechal. - Que vos preocupa?
Os soldados mostraram-lhe um ponto vermelho sobre  a neve, e por sobre esse ponto, uma coluna de fumo que subia, negra, rumo ao céu.
Não iriam dar de caras com um posto avançado dos cossacos?
Um homem destacou-se, fez um rodeio, e regressou informando que tudo quanto se via era uma cabana isolada que deveria servir de habitação a qualquer mujique. Não havia qualquer traço de russos nem de cossacos nas redondezas.
Marcharam na direcção da cabana. Quando se estava a vinte passos desta, viu-se sair um homem que tinha uma pistola em cada mão.
 - Quem vem lá? - perguntou o homem.
 - Um francês! Um francês! - gritaram em uníssono quinhentas vozes.
O homem reentrou na cabana.
Ninguém compreendia aquela indiferença. Esse francês deveria ter-se perdido. Como acolhia assim tão friamente os seus irmãos?
Avançaram, entraram na cabana, e encontraram-no de joelhos, junto de um cadáver.
- O capitão Luís Richard! - murmuraram algumas vozes.
 - O que chamava pelo irmão - disse o alemão que havia visto Paul cair.
Ney entrou então. Luís reconheceu-o.
 - Senhor marechal - disse ele - procura o Dniepr, não é verdade?
 - Sim - respondeu o marechal.
 - Pois bem, mande enterrar meu irmão, e eu conduzo-o ao rio.
 - Soldados tão bravos como ele - replicou o marechal - ficaram sem sepultura. Por muito pouco tempo.
que percamos a fazer uma cova, será sempre tempo perdido.
 - Senhor marechal, vi esta noite os lobos devorarem cadáveres, e não quero que meu irmão seja por eles devorado. O tempo que se perder, prometo-lhe, será por mim recuperado.
 - Saibam se há ainda alguns peões que tragam pás e picaretas.
Foram encontrados quatro ou cinco homens que haviam conservado esses instrumentos.
 - Aqueles que cavarem a sepultura de meu irmão terão uma pele de urso e o meu manto - disse Luís Richard.
Dois homens deitaram-se ao trabalho, e conseguiram cavar uma espécie de sepultura.
Nenhum general tivera tamanhas honras fúnebres desde a partida de Moscovo.
 - Bom - disse Luís Richard - agora marchemos.
E conduzindo o marechal à ravina na qual mergulhara durante a noite, e que estava ainda vermelha do sangue seu e do lobo, disse, apontando a água que corria para ocidente:
 - Aí tem, senhor marechal, é incontestavelmente um afluente do Dniepr. Se seguirmos esta corrente, encontraremos o rio.
Era tão provável que assim fosse, que ninguém opôs a mais pequena objecção. Seguiram a ravina, que conduzia a uma aldeia, tal como as outras, abandonada.
Atravessaram essa aldeia e à respectiva saída, viram o rio.
 - Agora - disse Luís - resta saber se a corrente será transponível.
 - Sê-lo-á - respondeu Ney. Aproximaram-se silenciosamente do rio. A corrente estaria ou não gelada? Tratava-se de uma questão de vida ou de morte para todos aqueles homens.
A corrente estava gelada!
Até àquele local, ainda corria. Mas, sustida repentinamente por uma curva das suas margens, acontecera que os pedaços de gelo se haviam solidificado uns contra os outros, e isso acontecera talvez há uma hora. Na superfície, e sob esta, viam-se pedaços flutuantes.
 - Resta apenas saber se aguentará - disse o marechal. - Haja um homem decidido que arrisque a pele pela salvação de dois mil franceses!
Mal acabara ele de fazer a exortação, e já um homem se aventurava pela flexível capa gelada. Era Luís.
A terrível dor que havia acabado de experimentar com a morte do irmão tornara-o insensível. Teria jogado a vida por um dedal. Portanto, não julgava qualquer mérito na forma como a arriscava nesse momento, por uma tal finalidade.
Todo o exército o seguia com os olhos, arquejante e presa de angústia. Sem se dar ao trabalho de efectuar um desvio para evitar o perigo, atingiu a outra margem.
Era tudo quanto se poderia esperar do intrépido jovem. Gritos de agradecimento chegaram-lhe, vindos da margem oposta.
Então - e isso ninguém lhe pedira - viram-no aventurar-se de novo sobre o gelo, e, com o mesmo desprezo pela própria vida, regressar para junto da coluna.
 - Os homens a pé passam, senhor marechal, desde que o façam com precaução e um a um. Talvez que alguns cavalos possam também chegar à outra margem. Mas será necessário abandonar o resto, e andar depressa. O gelo começa a quebrar-se.
Ney olhou à sua volta. Quase só tinha mij homens. A coluna, composta por soldados enfraquecidos, por feridos, por doentes, e seguida por mulheres e crianças, havia-se dividido, a fim de se procurarem víveres.
 - Espero três horas para que se dê a reunião - respondeu Ney.
 - Passe já, senhor marechal. Eu ficarei de guarda à passagem da coluna - disse o general Ricard.
 - Serei o último - insistiu Ney. - Mas como passei a noite acordado, aproveitarei essas três horas para dormir. Quando chegar o momento de fazer a travessia, que me acordem.
E, envolvendo-se no manto, deitou-se na neve e adormeceu como teriam feito César, Aníbal ou Alexandre, pois tinha o robusto temperamento dos grandes homens de guerra, a inesgotável saúde que ajuda os heróis.
Ao cabo de três horas acordaram-no. Tudo quanto havia para reunir estava nas areias do rio. Mas restavam apenas duas horas de claridade. Era necessário apressarem-se.
Luís Richard passou de novo, em primeiro lugar. Mas os que se lhe seguiram anunciaram que sentiam o gelo quebrar-se sob os seus pés. Um pouco mais adiante, gritaram que o gelo se estava a derreter, e que caminhavam já com água pelos joelhos. Depois, deixaram de ter necessidade de dizer fosse o que fosse. Ouviu-se o gelo partir-se.
 - Não passem senão um a um! - gritava o marechal. O instinto da conservação fez com que lhe obedecessem.
Viu-se então uma longa fila de soldados, caminhando distanciados, aventurar-se pelo rio, cuja superfície gelada e em movimento ondulava sob os seus pés.
Os primeiros atingiram a outra margem. Mas chegados lá, um talude íngreme, coberto de gelo, parecia querer jogá-los de novo na corrente. Estavam quase a abandonar a terra da velha Rússia, e dir-se-ia que a velha Rússia queria guardar os vivos junto com os mortos.
Muitos, a meio caminho, sobre o talude, desequilibraram-se, escorregaram, e, quebrando com o seu peso o gelo mal solidificado, desapareceram na água.
Depois, cerca das onze horas da noite - haviam-se passado cinco horas nessa lenta e perigosa passagem - chegou a vez dos doentes, das mulheres e das crianças. Transportados até ali em viaturas, esses infelizes não queriam descer, porque as viaturas guardavam tudo quanto possuíam e, além disso, como haveriam de viajar uma vez abandonadas as viaturas?
Havia sido encontrado um local mais sólido, por onde alguns cavalos passaram. O marechal permitiu que nesse mesmo local tentassem passar as viaturas.
Duas ou três arriscaram-se.
Tudo correu bem, até cerca de um terço da corrente. Ali chegados, o gelo começou a estalar e a quebrar. Começaram a ouvir-se os gritos. Mas já não se podia regressar. Só tinham um mínimo de segurança na certeza de que um peso de monta não podia ficar muito tempo no mesmo sítio.
Os cavalos foram incitados, e mau grado o respectivo instinto, que alertava os animais para se não arriscarem na superfície móvel, os animais, tão desesperados como os homens, venceram o terror, e avançaram, relinchando ruidosamente.
Os que haviam passado, os que esperavam vez de fazê-lo, seguiam com ansiedade os que passavam... De repente, viram essas sombras, apenas perceptíveis por entre as trevas, deterem-se, indecisas. Os cavalos romperam com as patas até à água. Ouviram-se gritos de angústia, depois lamentos entrecortados, logo a seguir queixumes que iam morrendo, e que cedo se extinguiram de vez...
Então, os olhos que se haviam desviado, apavorados, fixaram-se no gelo; e o gelo estava vazio. Tudo havia desaparecido, engolido pelo abismo! Em dois ou três lugares, a água marulhava, e era tudo.
Forçoso foi, portanto, abandonar as preciosas viaturas, e do seu interior retirar o que se queria salvar. A escolha foi longa. O terror prolongava-a. Depois, com as mulheres carregando as crianças, os doentes apoiados uns aos outros, e os feridos arrastando-se dolorosamente, começaram a desfilar, qual sequência silenciosa de fantasmas.
Um terço ficou na corrente, e dois terços passaram.
Dir-se-ia uma repetição em pequeno grau do terrível drama da Berezina.
Finalmente, cerca da meia-noite tudo havia passado ou fora engolido.
Sobreviveram cerca de mil e quinhentos homens capazes de carregar com as suas armas, e três ou quatro mil retardatários, feridos, doentes, mulheres e crianças!
Quanto aos canhões, nem sequer se tentou salvá-los. Foram mergulhados na água.
Ney foi o último a passar, como havia dito. Depois, uma vez chegado à outra margem, fez seguir em frente toda a lamentável gentalha.
Luís Richard seguia à cabeça. A profunda dor moral que o tolhia parecia torná-lo insensível ao frio e ao perigo.
Ao cabo de um quarto de hora, baixou-se, e apalpou o caminho. Haviam chegado a um caminho marcado.
Profundos sulcos indicavam que artilharia, canhões, carros, tudo havia por ali passado.
Tinham portanto evitado um exército, combateram o frio um dia, outro dia os homens, outro dia ainda uma corrente - para voltar a combater!
Estavam no fim das forças. Desde há muito que as esperanças haviam terminado! Não importa!
Ney gritou:
 - Em frente!
E em frente se seguiu.
Esse caminho conduziu a uma aldeia que fora ocupada.
Então, houve um momento de alegria entre a horda errante, da mesma forma que há um momento de claridade quando, na tormenta, brilha o relâmpago. Acabavam de encontrar tudo aquilo que lhes faltava desde Moscovo: víveres, quentes habitações, seres vivos! Esses vivos eram inimigos, verdade seja dita. Mas o silêncio, o deserto, a morte, eram inimigos bem mais temíveis!
Detiveram-se durante duas horas na aldeia, e depois puseram-se de novo a caminho. A cerca de vinte ou trinta léguas, tinham à frente deles Orchoa, onde, julgavam, se deveria encontrar o exército francês.
Às 10 horas, enquanto repousavam numa aldeia - era a terceira que encontravam, desde a uma hora da manhã - viram sombrias florestas de abetos que pareciam marchar com a coluna fugitiva, encherem-se de movimento e de ruídos. São os cossacos de Platov, que assustaram o exército de Ney - se é que pode designar-se por exército mil e duzentos ou mil e quinhentos combatentes e cinco ou seis mil retardatários.
Uma outra aldeia bordejava o Dniepr. Refugiaram-se nela. A esquerda, pelo menos, será garantida pela corrente.
Desde o nascer do dia que seis ou oito mil homens e vinte e cinco canhões seguem o flanco direito da coluna. Porque não carregaram? Porque não se aproveitaram de duas ou três passagens desvantajosas da coluna para atacar?
O chefe estava bêbedo. Não podia dar ordens, e os soldados não ousavam agir!
Dessa feita, a providência não esteve pelos bêbedos.
No entanto, o momento chegara. Era necessário combater - ou pelo menos assim se julgava. Mas Ney não conhecia esses miseráveis.
 - Soldados - disse ele aos seus homens, que estavam a preparar-se para comer - acabem tranquilamente a vossa refeição. Duzentos, de entre vocês, entre os que estão mais bem armados, chegarão para suster o inimigo.
Duzentos homens reunidos por Luís Richard envolveram o marechal.
Ney não se enganava. Com esses duzentos homens, manteve em respeito cinco mil cossacos.
Sem dúvida que o respectivo chefe não havia ainda recobrado a razão.
Simultaneamente, foi dada ordem para que se regressasse à caminhada mal a refeição terminasse.
Passada uma hora, a coluna pôs-se em movimento.
Talvez que os cossacos tivessem querido aboletar-se na aldeia, uma vez que, mal ficou um espaço ínfimo entre o último retardatário e a última cabana, todas as lanças se baixaram e refulgiram, e todos os canhões rugiram. Envolvida por uma nuvem de cossacos, a coluna é atacada por todos os lados.
Por outro lado, os feridos, os retardatários, as mulheres e as crianças ficam apavoradas e correm sobre o flanco do pequeno exército, onde julgam encontrar abrigo, ameaçando, porém, arrastá-lo para a corrente.
Ney ordena que se lhes aponte as baionetas. Frente a elas, são forçados a deter-se.
Então, em vez de se tornarem agentes ruinosos, acabam por ser uma causa libertadora. Em vez de um obstáculo, constituem uma defesa.
As lanças fendem essa massa, e os canhões silvam. Mas os tiros perdem-se e não atingem o centro, não ferem a vida. Os fracos protegem os fortes, escudos vivos e involuntários, mas eficazes.
Enquanto isso, o marechal apressa o passo, protegido de um lado pela corrente e do outro pelo amontoado de gente onde se perdem os golpes do inimigo.
Por vezes, porém, as dificuldades do terreno obrigam-no a afastar-se da margem, e uma linha de cossacos passa entre ele e o rio. Mas uma descarga faz então justiça. De outras vezes, a fim de não desperdiçar munições, Ney, com o sabre na mão, carrega à cabeça de quinhentas ou seiscentas baionetas. Então os cossacos são empurrados, homens e cavalos atirados para o rio. Franceses e russos, amigos e inimigos, andarão à deriva nas mesmas águas verdes do Mar Negro.
Caminha-se desta forma durante dois dias. E desta forma são percorridas vinte léguas. Têm o aspecto de uma população cercada, mas em movimento. Tal como um touro cercado pelos picadores que o sangram.
Finalmente, vem a terceira noite. Embrenharam-se nela como se numa esperança de repouso. Só que era impossível deterem-se. Havia que abandonar os que caíam. Alguns, sublimes assassinos, tinham a coragem de estourar a cabeça de um amigo, a pedido deste!
Ney via tudo isto, e com ambas as mãos sustinha o coração prestes a vacilar, afastando os olhos quase lacrimejantes.
Caíra a noite, dizíamos, e avançava-se às apalpadelas por entre uma floresta de abetos, batendo nos ramos e fazendo tombar a neve. De repente, a sombria floresta iluminou-se, ecoou uma descarga de artilharia, e a metralha passou, silvando, tolhendo no caminho homens e abetos, tendo cada um lançado à sua maneira o grito de dor.
A coluna recuou, misturou-se, desorganizou-se.
 - Ah! eles aí estão, finalmente! - gritou Ney. - Em frente, amigos! Em frente!
E, com cinquenta soldados, esse homem-titã, esse herói de Homero, esse Ajax que quer salvar-se contra a vontade dos deuses, lançou-se para a frente, e, em vez de fugir, colocou em fuga os que o atacavam.
O senhor Segur fez de toda essa epopeia um grande poema. Então porque não foi mais além do que o poema? Será que a Academia lhe proibia que escrevesse?
Não, foi porque ele vira o espectáculo terrível, e queria retratar as sensações experimentadas. Pois que, como Eneias, ele podia dizer:
Et quorum pars magna fui!
Chegada a manhã, encontraram-se de novo com as lanças e as granadas dos cossacos de Platov. Verdade seja dita que tinham a floresta a servir de abrigo. Mas era um fraco abrigo do qual, apenas com as espingardas, era impossível manter à distância os assaltantes; estes, acossavam-nos a meio alcance de tiro de canhão, flagelando-nos e destruindo-nos, realizando uma linha de fogo igual, em comprimento, àquela que percorríamos. Havia que aguardar e sofrer a morte sèm ripostar. Esperava-se, e morria-se.
Marchava-se sob fogo, parava-se sob fogo, comia-se debaixo de fogo; morria-se a marchar, parado ou a comer; dir-se-ia que apenas a morte não desistia.
A noite regressou - a quarta noite. Resolveu-se não parar, caminhando sempre. Os franceses não deveriam estar longe.
Restava uma vintena de cavalos e outros tantos cavaleiros. Luís Richard, que havia caminhado por entre mil mortos sem sofrer uma beliscadura, colocou-se à frente desses cavaleiros, e avançou na direcção em que se supunha ficar Orcha - ou seja, o exército francês.
XVI.
A minha coroa por um cavalo! (Ricardo III)
A 14 de Novembro, como já dissemos, Napoleão deixara Smolensko.
No primeiro dia o único inimigo que se lhes deparara fora o terreno - inimigo suficientemente forte, terrível e encarniçado por si só, para destruir um exército inteiro! Haviam partido de noite, em silêncio. Apenas que esse silêncio era interrompido pelas imprecações dos soldados do comboio, pelos golpes que vibravam nos cavalos, pelo ruído que faziam canhões e armões que a grande custo eram guindados até ao cume de qualquer elevação, e que, uma vez ali chegados, sobrepondo o seu peso à força de tracção, tombavam em grande confusão uns sobre os outros, destruindo-se e danificando-se no fundo da ravina.
A artilharia da guarda levou assim vinte e duas horas para percorrer cinco léguas!
O exército alongava-se por cerca de dez léguas - ou seja: de Smolensko a Krasnoie.
Já os apressados na fuga atingiam Krasnoie, e os retardatários mal haviam saído das portas de Smolensko.
Korytnia fica a meio caminho entre Smolensko e Krasnoie, e por consequência a cinco léguas de Smolensko e outras tantas de Krasnoie, e era em Korytnia que Napoleão tencionava deter-se. Mas nessa localidade uma outra estrada, a de Elnia, cruzava-se com a de Krasnoie. Ora, por essa estrada avançava um outro exército, um exército tão ordeiro como o francês estava em desordem, tão numeroso quanto o nosso era reduzido, tão desperto quanto o nosso estava alquebrado.
Compunha-se esse exército de noventa mil homens, e era comandado por Kutusov.
A respectiva guarda-avançada havia-nos precedido em Korytnia.
Esta notícia foi anunciada a Napoleão.
 - É em Korytnia que desejo deter-me - afirmou ele. - Que os russos sejam desalojados!
Um general, não se sabe qual - só os grandes nomes sobreviviam nesse desastre, da mesma forma que num naufrágio só os grandes blocos à deriva chamam a atenção - um general, pois, colocou-se à cabeça de um milhar de homens, e desalojou os russos de Korytnia.
O desespero, ou talvez o desespero da morte, havia quintuplicado as forças. Aquilo que anteriormente só se poderia fazer com dez mil homens, fazia-se agora com quinhentos!
No momento em que Napoleão entrava em Korytnia, informaram-no de que uma outra guarda-avançada tomava posições por detrás de uma ravina, três léguas para além da aldeia. Era essa guarda-avançada a de Miloradovitch, que, por seu turno, chegava ao local a passo de corrida, com vinte e cinco mil homens.
Seria pois preciso matar cento e quinze mil homens para poder regressar à França!
Napoleão escutou este relatório na única casa que se mantinha de pé na vila de Korytnia.
Havia-se pensado que essa única casa que restava de pé fora uma armadilha ali colocada para atrair Napoleão ao seu interior. Que talvez estivesse minada; que qualquer mujique sacrificado voluntário viria talvez, no momento propício, deitar fogo a uma mecha escondida, e que então o semideus que realizara na Terra mais tempestades do que Júpiter jamais fizera no céu, desapareceria, tal como Rómulo, numa tempestade!
Napoleão talvez percebesse ou não o que se dizia. Mas foi sentar-se a uma mesa onde estavam abertos os mapas de estradas, mapas de terras desconhecidas, e que nunca eram de uma exactidão mais do que relativa.
Um ajudante-de-campo do general Sebastiani entrou.
Havia encontrado em Krasnoie a guarda-avançada de um terceiro exército, e esse não se sabia por quem era comandado. Sebastiani ia provocá-lo a fim de deixar a passagem livre, e era disso que informava Napoleão.
Por outro lado, ouvira-se dizer - fora o mesmo ajudante-de-campo quem difundira a novidade - que em Liady, aldeia situada três léguas além de Krasnoie, uma quarta guarda-avançada, que se julgava pertencer a qualquer corpo irregular de cossacos, havia aprisionado os homens que caminhavam isolados, e, entre esses homens, dois generais.
Esperava-se que Napoleão, ao saber de todos esses movimentos hostis que se realizavam em seu torno e à sua frente, enviasse instruções aos exércitos de Eugénio, de Davoust e de Ney, que haviam ficado em Smolensko, para que apressassem a sua marcha, a fim de opor quinze mil homens, pelo menos, aos duzentos mil inimigos. Mas Napoleão manteve-se pensativo, e não deu qualquer ordem.
Na manhã seguinte, puseram-se em movimento, tal como se os batedores houvessem anunciado que a estrada estava livre. Com Napoleão ao centro, a coluna avançava sem precauções, como se a estrela que anteriormente guiara rumo a Marengo e a Austerlitz aqueles conquistadores do mundo brilhasse ainda no céu nevoso da Rússia.
Os ratoneiros e os fugitivos formavam a guarda-avançada; feridos e doentes, constituíam a retaguarda.
Somente onde Napoleão se encontrava havia forças.
De repente, encontraram-se face a uma linha imóvel, obstáculo de homens e cavalos que se elevava na planura de neve.
Ratoneiros e fugitivos detiveram-se. Essa paragem atinge também o cavalo de Napoleão, e este levanta a cabeça, fixa o binóculo nessa linha negra, e contenta-se em dizer:
 - São os cossacos. Enviem ao encontro deles uma dezena de atiradores. Que abram uma passagem, e nós por ela seguiremos.
Um oficial escolhe uma dezena de homens, e flagela a linha. Todo o grupo foge como um bando de pássaros aflitos. A passagem fica livre.
Mas eis que soa à esquerda uma bataria de canhões. Os projécteis atingem o flanco da coluna, e flagelam o caminho através do qual ela se alonga.
Todos os olhos se viram para Napoleão.
 - Então? - pergunta ele.
 - Veja, sire!
E mostram-lhe três homens atingidos pelo mesmo projéctil, a dez passos dele.
 - Calem essa bataria! - comanda o imperador.
Embora ferido, Exelmans coloca-se à frente de setecentos ou oitocentos westefalianos, e ataca a bataria, enquanto o que resta da velha guarda se agrupa em torno de Napoleão para amortecer os golpes.
Passam tranquilos e despreocupados sob esse fogo. E os músicos da guarda lançam para o ar: Ou peut-on être mieux qau sein de sa famille?
Mas o imperador estende a mão. A música pára.
 - Meus amigos - diz ele - cantem Velllons au salut de Vempire!
E enquanto é entoada essa canção, o que só é conseguido devido ao frio e à alta coragem, a música da guarda, calma como se numa parada, ataca a ária pedida por Napoleão.
Os tiros extinguiram-se antes que a música tivesse terminado.
Exelmans havia subido a colina, e devastado artilharia e artilheiros.
 - Vejam - disse Napoleão - são estes os inimigos com os quais temos de bater-nos.
Nesse dia, o terreno fora mais difícil de vencer do que o inimigo. Mal havíamos perdido uma centena de homens, mas cada acidente do caminho havia-nos retirado um canhão, um armão, um carroção.
Felizmente que, apesar de os retardatários terem tempo suficiente para pilharem as bagagens, não o tinham para armar os canhões. É que cada peça abandonada podia, uma hora depois, ser virada contra a coluna.
Napoleão chegou a Krasnoie mas, atrás dele, aquele exército que das alturas nos havia visto passar, desceu para a planície, e os vinte e cinco mil homens de Miloradovitch colocaram-se entre Napoleão e os três corpos de exército que o seguiam.
Assim, depois de ter pernoitado em Krasnole, ouviu-se na manhã seguinte, no momento em que iam retomar a caminhada, o troar do canhão a cinco ou seis léguas, na retaguarda. Tratava-se de Eugénio que, atacado por Miloradovitch, semeava de mortos esse campo de batalha, por onde deveria, por seu turno, passar o marechal Ney, e por entre cujos cadáveres vimos Paul Richard, agora ele próprio cadáver, procurar o corpo do irmão.
Napoleão ordenou que se detivesse a marcha das colunas. Desde há muito que Eugénio, seu filho bem-amado, havia resgatado as derrotas de Pordenone e da Sicília. O imperador não deixaria Eugénio nas mãos do inimigo.
Durante todo o dia o imperador esperou. Mas Eugénio não compareceu.
Pela noite, a canhonada deixou de ouvir-se.
Napoleão tinha uma esperança, e exprimiu-a bem alto a fim de aumentar a sua confiança na adesão dos outros: Eugénio fora sem dúvida rechaçado para junto de Davoust e de Ney, e, na manhã seguinte, ver-se-iam os três corpos, reunidos, romper a linha russa e juntarem-se à nossa retaguarda.
A noite passou, veio o dia, mas ninguém chegou. Apenas, o canhão voltou a ouvir-se. Era Kutusov que esmagava Ney do alto dessas mesmas colinas de onde, na véspera, havia esmagado Eugénio.
Napoleão chamou Bessières, Mortier e Lefèvre, os três marechais que mantinha junto de si. Quanto a Berthier, não teve necessidade de chamá-lo: Berthier era a sombra do imperador.
Era evidente que o exército francês tinha atrás de si o exército russo. Este havia julgado ter envolvido Napoleão. Mas deixara-o passar. Julgara César prisioneiro - mas apenas tinha os respectivos tenentes.
Prosseguindo a marchas-forçadas - e enquanto esse inimigo se encarniçava sobre Eugénio, sobre Davoust e sobre Ney - poder-se-ia ganhar um dia, dois dias, três dias talvez, ao inimigo. Nesse caso, estar-se-ia a salvo, uma vez que pisavam chão da Lituânia, um país amigo, e seriam os russos, por seu turno, a estar em terra inimiga.
Mas ter-se-ia que abandonar cobardemente valorosos companheiros. Salvar-se-ia a cabeça à custa dos membros! Não seria melhor morrer em conjunto, ou então salvarem-se em conjunto?
Napoleão já não dá ordens. Interroga. Já não diz "Quero!", diz antes: "Querem?"
Um só lhe responde.
 - Vamos!
Então, o leitão de dentes de aço dá meia-volta. Mas nesse preciso momento avisam-no de que o general russo Òjarovsky o havia ultrapassado com uma guarda-avançada. Não era possível reentrar na Rússia com os russos na peugada.
O imperador chama Rapp.
 - Vai ao encontro dessa guarda-avançada - diz-lhe - sem perder um só minuto. Ataca-a a coberto da escuridão. Nem um único tiro, percebes? Só a baioneta! Pretendo que, se pela primeira vez dão mostras de tal audácia, se recordem bem das consequências, e durante muito tempo!
Mais não se sabia do que obedecer, quando Napoleão comandava. Sem responder uma só objecção, Rapp atirou-se para a frente, mas mal dera ele dez passos e já Napoleão voltava a chamá-lo.
Todo um mundo de ideias lhe havia atravessado o espírito, nesses escassos segundos.
 - Não - emendou. - Fica aqui, Rapp. Não quero fazer com que morras em semelhante suicídio. Para o ano que vem terei necessidade de ti em Dantzig. Que Roguet te substitua.
E Rapp afastou-se, agora também pensativo, para participar a ordem ao general Roguet. Também pensativo, dizíamos, porque, com efeito, tinha razões para se espantar, uma vez que, prestes a reentrar na Rússia, cercado por cento e cinquenta mil russos, numa altura em que os outros falavam da França como de uma terra imaginária, ele, Napoleão, antevia já o que faria daí a um ano, e concedia a um dos seus tenentes a cidade que este defenderia a cento e oitenta e cinco léguas do lugar em que ele próprio parecia incapaz de defender-se!
Roguet partiu, atacou o inimigo à baioneta, perseguiu-o em Chirkova e em Malievo, e operou nele um tal choque, que o exército russo recuou dez léguas, e durante vinte e quatro horas suspendeu as suas operações.
Cerca da meia-noite, foi assinalado Eugénio.
O príncipe chegava sozinho. Conseguira escapar por entre os russos, mas ignorava completamente o que acontecera a Davoust e a Ney. Provavelmente combatiam, porque durante todo o dia ouvira, à sua direita, troar o canhão.
Kutusov era, decididamente, a providência do exército francês. O ancião, tão gelado como o seu Inverno, contentava-se em destruir com o auxílio de canhões, da mesma forma que o Inverno destruía com a neve e o vento.
Napoleão aproveitou a inércia de Kutusov e a sacudidela dada por Roguet em Ojarovsky, para lançar sobre Orcha e Borisov, Victor com trinta mil homens, e Schwartzenberg com os despojos. Mas o imperador não abandonará Davoust e Ney, da mesma forma que não abandonara Eugénio. Esforçar-se-á para se lhes reunir. Apenas que já não é, como acontecera em Eckmiihl, para conseguir uma grande vitória que efectuará esse supremo movimento. Será para salvar os dois marechais e os restos dos dois exércitos.
A 17, ordena que todos estejam prontos às cinco horas da manhã. Depois, quando todo o exército - o que resta desse exército - julga que vão marchar rumo à Polónia, Napoleão vira as costas a esse país, e dirige-se para Norte.
 - Para onde vamos? - perguntam todas as vozes. - Que caminho nos fazem percorrer?
 - Vamos salvar Davoust e Ney! Tomamos o caminho da dedicação!
E todas as vozes se calaram. A coisa afigurava-se toda ela simples, e obedeciam.
Napoleão arrancaria os seus dois tenentes à Rússia, ou então ficaria com eles. Salvo, Eugénio continuará a sua marcha rumo a Liady. Depois do esforço feito, pode ainda caminhar, mas já não pode combater. O general Claparède, com os doentes e os feridos, defenderá Krasnoie; feridos e doentes são suficientes para manter em respeito um inimigo que se assusta, desde que tocado.
Ao nascer do dia, Napoleão está rodeado por três exércitos; um à sua direita, outro à esquerda, e outro ainda diante de si. A esses exércitos bastava marcharem, reunirem-se, e entre cento e vinte mil soldados esmagarem Napoleão e os seus onze mil homens! Bastava-lhes aproximarem as suas batarias e durante um único dia abrirem fogo, para tudo destruírem! Nem um só teria podido escapar!
Mas os homens mantiveram-se nas suas posições, e os canhões calaram-se.
É que havia aliados, invisíveis aos olhos dos soldados franceses, que surgiam ameaçadores aos olhos dos russos. Tratava-se de Rivoli, das Pirâmides, de Marengo, de Austerlitz, de Iena, Friedland, Eckmuhl e Wagram!
Seriam precisos três anos para que fosse compreendida a vulnerabilidade desse Aquiles. Seria precisa uma Inglaterra, esse encarniçado inimigo, para aprofundar no coração do leão moribundo o punhal dos "horse-guards"; seria necessária a grande derrocada de Waterloo para servir de tumba à guarda imperial!
Finalmente, o canhão iniciou o tiroteio. Mas isso aconteceu na retaguarda, em Krasnoie. Respeitando Napoleão, o inimigo atacava Claparède.
Estavam cercados por quatro lados.
Sem dúvida que se tratava de um sinal. Os outros três lados inflamaram-se, por seu turno.
Continuaram a progredir. Tratava-se, em ponto maior, de algo parecido com o que acontecera no Kremlin: marchava-se contra o fogo, e entre duas muralhas de fogo.
De repente, essa muralha ardente abriu-se, miraculosamente rompida por Davoust e os seus homens!
Só faltava Ney para se reunir e responder.
Davoust não ouvira falar dele. Sabia apenas que o camarada deveria estar um dia atrasado em relação a ele. Ora, tornava-se impossível aguardar um dia sob um tão terrível fogo. O exército fundir-se-ia em tal fornalha, tal como um bronze.
Napoleão chamou Mortier.
Ordenou-lhe que defendesse Krasnoie, e que lá aguentasse por Ney tanto mais tempo quanto lhe fosse possível, enquanto Napoleão ia abrir caminho ao exército, por Orcha e Liady.
Com Napoleão está a força, já o dissemos, e torna-se necessária uma terrível máquina de guerra para ultrapassar os quarenta mil russos que, enquanto Napoleão termina o seu movimento na direcção de Smolensko, passaram entre ele e a Polónia.
O imperador e os que restam da velha guarda tomam o caminho de Krasnoie. Mortier, Davoust e Roguet protegem a retirada.
Roguet e a guarda jovem, que na véspera haviam feito de cabeça de coluna em Chirkova e Malieve, faziam, no dia seguinte, de retaguarda em Krasnoie. Assim, ao reentrar na vila, do 1º corpo de batedores, de todo um regimento que por duas vezes havia subido ao assalto de uma bataria russa, restavam pouco mais de cinquenta soldados e onze oficiais.
Nessa noite Napoleão chegou a Liady. No dia seguinte, estava em Orcha.
Em Smolensko, tinha ainda vinte e cinco mil homens, cento e cinquenta canhões, um tesouro, e víveres. Em Orcha, pouco mais tinha do que dez mil homens, vinte canhões e um tesouro pilhado.
Não se tratava de uma retirada, era uma derrota. Já não se pensava em retirar: era a fuga.
Foi enviado o general Éblé, com oito companhias de sapadores e de peões, para assegurar a passagem a esses dez mil homens.
Talvez Napoleão devesse abandonar Orcha. Mas, ao fazê-lo, abandonaria Ney. E, mais infeliz do que Augusto, que pelo menos podia reclamar as suas legiões a Varus, era a ele mesmo, Napoleão, quem reclamava Ney.
Às mais díspares horas da noite perguntava:
 - Há notícias de Ney?
A cada ruído que ouvia na rua abria a janela e perguntava:
 - É Ney que chega?
Todos os olhos se voltavam para as bandas do Norte. Mas só se viam linhas de batalhões russos, que diariamente engrossavam. Punham-se à escuta, e nem mesmo o canhão se ouvia. E esse era o som da tumba. Se Ney vivesse, estaria ainda a bater-se... Ney estava morto!
E tal como se essa morte estivesse confirmada, começava a dizer-se de uns para os outros:
 - Eu vi-o a 15, e ele disse-me...
 - E eu vi-o a 16, e ele respondeu-me... Napoleão, esse, dizia:
 - Ney! Meu bravo Ney! Daria todos os milhões que tenho nas caves das Tulherias para resgatar o meu duque de Elchingen, o meu príncipe de Moskova!
De repente, ao meio da noite, ouve-se os passos de um cavalo que chega a galope, e depois gritos, entre os quais se distingue o nome de Ney!
 - Ney? - grita Napoleão. - Quem me traz notícias de Ney?
Levam diante do imperador um jovem coberto pelos restos de um uniforme azul bordado a prata.
Napoleão reconheceu no oficial um ordenança de Eugénio.
 - Ah! é o senhor, Paul Richard! - exclamou Napoleão.
 - Não, sire. Sou eu, Luís Richard... Meu irmão Paul morreu! Mas o marechal vive, sire.
 - Onde está ele?
 - A três léguas daqui. Pede socorros.
 - Davoust! Eugénio! Mortier! Em socorro de Ney! Venham, meus marechais! Temos notícias de Ney...
Todas as nossas perdas não foram em vão. Ney está salvo! Eugénio é o primeiro a entrar.
 - Uma cruz de oficial da Legião de Honra para este mensageiro de tão boas-novas, Eugénio.
 - Esta é a de meu irmão, sire - disse o jovem, retirando do peito a cruz que tirara do uniforme de Paul, depois da morte deste.
 - Ah! é você, meu bravo Luís! - alegrou-se Eugénio. - A notícia é boa. Mas um tal mensageiro torna-a ainda melhor!
 - Sire - disse Mortier, entrando - estou pronto a partir.
 - E eu também - disse Eugénio.
 - Eu sou mais antigo do que o príncipe - objectou Mortier.
 - Sire - replicou Eugénio - e eu sou rei. Reclamo o privilégio do meu posto. Ninguém antes de mim dará ajuda a Ney.
Mortier retrocedeu um passo.
 - Dê-me a sua mão.
Mortier pegou na mão de Napoleão, e beijou-a com um suspiro.
 - Um dia far-te-ei rei, Mortier. E nessa altura, também tu dirás: "Eu quero!"
Duas horas depois, Napoleão via entrar Ney no seu quarto, e estendia-lhe os braços, gritando:
 - Salvei as minhas águias, uma vez que estás vivo, Ney!
E depois, dirigindo-se aos que o olhavam e o rodeavam:
 - Senhores, teria dado trezentos milhões, há três horas, por este minuto de alegria que Deus acaba de oferecer-me de graça!
XVII.
O regresso
PASSARAM-SE três anos, quase dia a dia, desde que, no início de todas estas operações militares, introduzimos o leitor no gabinete particular de Napoleão, nas Tulherias. Rogamos-lhe que nos aguarde ali, por entre essa silenciosa obscuridade dos palácios vazios dos seus donos. Estamos a 18 de Dezembro de 1812. Não se manterá por muito mais tempo nas trevas e no silêncio.
Com efeito, uma velha caleche de viagem deteve-se diante da porta das Tulherias que abria para a Rua da Escada, e, durante dez minutos, tentam em vão que a porta se abra.
Finalmente, o porteiro, acordado mais pelos soldados da guarda do que pelas pancadas que se fazem ouvir, decidiu-se a ir ver o que se passava, e ficou estupefacto ao ver o mameluco Roustan, envergando o seu uniforme egípcio, que através das grades lhe grita, impaciente:
 - Mas despacha-te! É o imperador!
O porteiro precipita-se para as portadas, que imediatamente rodam sobre os gonzos. A viatura passa pela abertura, corta diagonalmente pelo pátio, e detém-se perto da entrada.
Dois homens - um alto, e o outro de estatura meã - totalmente envoltos em mantas, apeiam-se da viatura, e sobem rapidamente os degraus.
O mameluco Roustan precede-os, dizendo apenas estas palavras:
 - O imperador! O imperador! O imperador!
Um criado de viagem, que chegara com o ilustre viajante, toma um candelabro das mãos de um dos seus colegas atraídos pelo barulho, e segue a direito, rumo ao gabinete de Napoleão.
Sabe que o descanso é somente o segundo desejo do homem de ferro a quem obedece.
O imperador atravessa o gabinete onde, três anos antes, se detivera por momentos a dormir, e onde a pobre Josefina, ligeira como um fantasma fora, doce como um sonho acariciador, pousar-lhe um beijo na fronte.
Mas desta vez não se detém, nem tão-pouco dorme. Caminha, dizendo com voz breve:
 - O arquichanceler!
É sempre Cambacères quem ele manda chamar. Somente que desta feita só o deseja a ele.
Depois disto, embrenha-se, acompanhado pelo mesmo homem alto, no corredor que conduz aos aposentos da imperatriz.
Esta preparava-se para se deitar, triste e sofredora. Acabara de despedir a sua aia de quarto, madame Durand, e metia-se na cama, quando essa mesma aia de quarto, que também se preparava para deitar-se numa cama colocada num quarto contíguo ao da imperatriz, ouviu os passos no salão, abriu a porta, e solta um grito ao ver entrar dois homens.
Depois, sem compreender como puderam dois homens entrar ali a uma tal hora, pouco segura das intenções dos misteriosos indivíduos embrulhados em mantas, quais conspiradores, corre para defender o quarto da imperatriz, quando um dos homens lança o manto sobre um cadeirão, e nele reconhece Napoleão.
 - O imperador! - grita ela. - O imperador! E afasta-se respeitosamente.
Então, o imperador faz ao acompanhante um sinal para que o espere, e entra no quarto, dizendo:
 - Sou eu Louise, sou eu.
É que a imperatriz já não era a amável crioula de esbelta figura mau grado os seus quarenta anos, de cabelos e olhos negros, boa alma que só recebeu uma coroa, e que deixou uma auréola. Já não é a bem amada e popular Josefina. A imperatriz é uma mulher de vinte e três anos, loura, opaca, fria, com olhos azuis muito levantados, de tez branca e rosa, com o fogo interior moribundo. É a filha de François II, a sobrinha de Maria Antonieta, que fez de Napoleão sobrinho de Luís XVI. Trata-se da antipática e impopular Maria Luísa.
Porque desejaria Napoleão a outra? Porque procura aquela? Mistério do coração humano, inexplicável para todos, mas que é o mesmo, tanto em Napoleão como no mais baixo dos seus súbditos.
 - O imperador! - gritou Maria Luísa, espantada.
 - Bonaparte! - teria gritado Josefina, feliz.
Mas ela tinha razão, a loura filha de Arminius, a descendente dos césares de lábios pendentes. Já não era Napoleão: era o imperador.
Como tinha ele conseguido vencer a distância que de Orcha - onde o deixámos, quando acaba de reencontrar Ney - o separava ainda de Paris?
Vamos dizê-lo em duas palavras.
Numa curta paragem que o imperador determinara em Korytnia, chegara até ele um correio vindo da França. Esse correio era portador de uma carta do conde Frochet. Ora, o imperador, a quem desde Moscovo nunca ninguém voltara a ver empalidecer, tornou-se lívido ao ler essa carta.
Depois, pegou numa pena, atirou uma folha de papel para a sua frente, e escreveu uma longa resposta. Mas, sem dúvida temendo que o mensageiro fosse aprisionado pelos russos, despedaçou o que escrevera e, em Orcha, queimou a carta do conde Frochet, juntamente com outros papéis, pelo que ninguém a viu, ninguém a leu, e nunca ninguém soube o seu conteúdo. Depois, a impressão causada pela dita carta, se bem que bem inculcada no espírito do Imperador, desapareceu pouco a pouco do seu rosto, o qual, em escassas horas, regressou ao impassível ar do costume.
Napoleão decidira que a retirada se efectuaria por Borisov, e lembremo-nos que enviará Éblé com a missão de lançar pontes sobre o Berezina.
A 22 de Novembro, puseram-se a caminho através de uma larga estrada bordejada de bétulas tristes e nuas. Caminhava-se numa lama líquida onde se enterravam até aos joelhos. Coisa inacreditável! Alguns estavam tão fracos que, ao caírem nessa lama, não conseguiam levantar-se, e morriam afogados.
Depois, ao longo do caminho, chegaram as terríveis notícias.
Pela noite, viu-se chegar um oficial, que galopava à rédea solta, e que pedia para falar com o imperador.
Para dar coragem a todos, o imperador marchava a pé como o último dos seus soldados, com um bastão na mão. Apontaram o imperador a esse oficial.
Mensageiro de má nova, vinha anunciar que Borisof havia caído em poder de Tchitchakof.
O imperador escutou, impassível. Mas quando o relato terminou, zurziu o chão com o bastão, gritando:
 - Estará então escrito lá em cima que tudo deverá ser contra nós?
Então, Napoleão deteve-se, ordenou que fossem queimadas todas as viaturas inúteis e metade dos furgões, para dar cavalos à artilharia. Que fossem utilizados todos os cavalos de tiro, e mesmo os dos próprios cavaleiros, de preferência a deixar em poder dos russos um canhão ou um armão.
Depois, dando o exemplo, embrenhara-se pela obscura e imensa floresta de Minsk. Doze ou quinze mil homens nela penetraram com ele, moles e silenciosos, e, pouco a pouco, a sombra do grande exército perdeu-se por entre as árvores.
Toda essa gente seguia Napoleão, tal como os hebreus em fuga seguiam a coluna de fumo. Além disso, para esses homens, para esses espectros, não era o inimigo que havia a temer: era o Inverno. Russos, que era isso? Estavam habituados a romper através dos esquadrões deles. Mas o frio, a neve, os gelos, a fome, a sede, a lama - esses sim, eram verdadeiros obstáculos.
Chegaram às margens do Berezina, e passaram-no, apesar dos russos. O monstro que tolheu o exército pelos pés e que dele se apossou, o abismo que devorou uma grande parte, foi o próprio rio. Ali ficaram doze mil homens - pois haviam-se juntado aos corpos do exército de Victor e de Oudinot - mas o rio foi atravessado.
A 9, o imperador havia deixado para trás as fatais margens do rio.
Três correntes lhe barraram o caminho de uma forma horrível, em três locais diferentes: o Danúbio, em Essling; o Berezina, em Borisof; e o Elster, em Leipzig.
A 30 de Novembro estava em Pleszczenitzy; a 4 de Dezembro chegava a Blenitza, e a 5 a Smorgony.
Ali, reuniu todos os seus marechais, endereçou a cada um deles a parte dos elogios que lhes era devida, e para si, o chefe, reservou a parte das censuras, acrescentando apesar de tudo estas palavras:
 - Se eu fosse um Bourbon, ter-me-ia sido fácil não ter cometido qualquer erro.
Depois, quando, a ordem sua, Eugénio leu o vigésimo nono relatório, anunciou-lhes oficialmente a sua partida.
Essa partida deveria verificar-se nessa mesma noite. A sua presença em Paris era indispensável. Só de Paris poderia socorrer o exército, conter os austríacos e os prussianos, e organizar as coisas de forma a que, volvidos três meses, pudesse reencontrar-se no Vístula, mas com quinhentos mil homens.
Quanto ao comando, deixava-o ao rei de Nápoles.
Eram dez horas da noite. O imperador levantou-se, beijou os seus tenentes, e partiu.
Encerrou-se numa desconjuntada viatura com Caulaincourt e o intérprete Vonsovitch. Atrás dele, num trenó, seguiam Lobau e Duroc. Por comitiva, levava simplesmente Roustan e um alabardeiro.
Primeiro passara por Miedniky, onde o duque de Bassano havia assegurado os abastecimentos. Rações de pão, de carne, de aguardente e de forragens contavam-se por cem mil, e o exército poderia ali aboletar-se durante uma semana.
De Kovno e de Vilkovisky, onde tomara um trenó, havia expedido correios enquanto se aparelhava. Em Varsóvia detivera-se, conferenciara com os ministros polacos, havia-lhes pedido um recrutamento de dez mil homens, concedera-lhes alguns subsídios, prometeu-lhes o regresso à frente de trezentos mil homens, e retomara viagem.
Em Dresde, avistara-se com o rei de Saxe, e escrevera ao imperador da Áustria. Depois, ditara ao senhor de Saint-Aignan, seu ministro em Weimar - que momentaneamente se encontrava na capital do Saxe - cartas para todos os seus colegas da confederação do Reno, e para os principais comandantes militares da Alemanha.
Ali deixou o trenó, e o senhor de Saint-Aignan cedeu-lhe uma das suas viaturas.
Finalmente, a 18, cerca das onze horas da noite, chegava às Tulherias, conforme já relatámos.
De Moscovo a Smorgony, ele havia sido Xerxes, dirigindo a sua famosa retirada: de Smorgony à fronteira francesa, não fora mais do que Ricardo Coração de Leão, no regresso da Palestina, e a quem o primeiro duque da Áustria com quem se cruzasse poderia mandar prender. Em Paris, nas Tulherias, reencontrava-se, momentaneamente, pelo menos, no lugar de senhor da Europa.
Vimo-lo entrar, atravessar o gabinete de trabalho, precipitar-se no quarto de Maria Luísa. Ainda lá está quando lhe anunciam que Cambacérès estava às ordens dele.
Ao regressar ao salão, encontrou Caulaincourt, que adormecera enquanto o aguardava. Só ele conseguia passar sem dormir.
 - Oh! então é verdade que regressou, sire! - exclamou o arquichanceler.
 - Sim, meu caro Cambacérès - respondeu Napoleão. - Chego exactamente da mesma forma que há catorze anos regressei do Egipto: quase fugitivo, depois de ter intentado chegar à índia pelo Norte, da mesma forma que tentei pelo Oriente.
Mas o que Napoleão não dizia é que, no regresso do Egipto, a sua sorte estava no começo, e que no regresso da Rússia, o destino que lhe cabia era frio e sombrio como o país que abandonara.
Cambacérès aguardava. Sabia que em tais circunstâncias, e por ter muitas coisas a dizer, Napoleão precisava de falar.
Este deu alguns passos com as mãos atrás das costas. Depois, repentinamente, detendo-se e dirigindo-se a Cambacérès como se o arquichanceler pudesse ter-lhe seguido a ordem dos pensamentos, da mesma forma que um viajante debruçado sobre a margem de um rio segue a força da corrente, gritou:
 - A guerra que mantenho é uma guerra política. Fi-la sem animosidade. Quis extirpar à Rússia os males que ela própria angariou... Poderia ter armado contra ela a maior parte da sua população, proclamando a liberdade dos escravos. Recusei-me a abrir mão a essa medida que teria condenado à morte e aos piores dos suplícios muitas famílias.
Depois, sempre dando resposta ao seu próprio pensamento, que, numa corrida bem mais célebre do que um trenó de Vilkovisky, transportava-o dos pântanos de Berezina a Paris, prosseguiu:
 - É à ideologia que a França deve todos os males por que passou. Os seus erros teriam de conduzi-la, na verdade conduziram, ao regime dos homens de sangue, que proclamaram o princípio da insurreição como um dever, que adularam o povo elevando-o a uma soberania que ele era incapaz de exercer.
"Desde que se seja chamado a regenerar um Estado, são princípios totalmente opostos aqueles, os que é necessário seguir-se. É na História que se torna necessário procurar as vantagens e os inconvenientes das diversas legislações.
Eis o que os magistrados jamais devem esquecer: têm a obrigação, a exemplo dos presidentes Harlay e Mole, de estarem sempre dispostos a defender o soberano, o trono e as leis.
"A mais bela morte será a do soldado que cai no campo da honra, se acaso a do magistrado que pereça em defesa do seu soberano, do trono e das leis, não for mais gloriosa ainda... Mas - acrescentou, animando-se - ao contrário disso, há magistrados pusilâmines que se mantêm constantemente aquém dos seus poderes!
E voltando-se repentinamente para Cambacérès:
 - Vejamos, você, que é meu amigo, conte-me como se passou a coisa.
Cambacérès havia pressentido o refluir da onda. Percebera até onde queriam chegar essas palavras ditas como uma maré. Compreendeu que se tratava da conjura de Malet, cuja notícia, recebida em Korytnia, tanto preocupara o imperador.
 - Vossa majestade quer pormenores? - perguntou Cambacérès.
 - Sim, vamos, diga-me tudo - confirmou o imperador, sentando-se.
 - Vossa majestade conhece Malet?
 - Não... só de vista. Uma vez vi-o, e disseram-me: "aquele é o general Malet". Sabia que ele era da sociedade dos Filadélfios, grande amigo de Oudet, morto em Wagram, cuja morte não deixaram de me imputar... Em 1808, quando estava eu na Espanha, esse Malet já tinha conspirado contra mim. Nessa altura podia mandá-lo fuzilar - graças a Deus tinha provas suficientes para tanto - mas, que quer! Tenho horror ao sangue... Esse pequeno Staps, foi ele quem quis morrer. Eu concedera-lhe o perdão. Julgam que é fácil matar-me, os insensatos!
"Mas voltemos a esse homem... Fora transferido, por autorização minha, para uma casa de saúde... Está a ver, Cambacérès, vejo no que dá falarem-me sempre em clemência! E com tudo isto ainda por cima me dizem um tirano duro!
"Onde ficava essa casa de saúde?"
 - Na barreira do Trono, sire.
 - Como se chama o proprietário?
 - Doutor Dubuisson.
 - Amigo ou inimigo.
 - O doutor?
 - Sim. Pergunto-lhe se está conivente na conspiração.
 - Ah! bom Deus, o pobre homem! Não suspeitava de nada.
 - Enfim, mas abriu a porta?
 - Eh! não, Malet passou sobre o muro.
 - Sozinho?
 - Com um abade, Lafon, um bordelês. Tinham uma pasta cheia de ordens, de consultas ao senado, de proclamações. Dois cúmplices aguardavam-nos na rua: Bou-treux, um receptor, e Rateau, que é cabo.
 - E são esses palermas os mesmos que se permitiram desempenhar o papel de prefeito da Polícia e de ajudante -de-campo?
 - Sim, sire. Julgo que havia ainda um outro padre...
 - Os padres! E, no entanto, muito fiz eu por eles.
 - Este era espanhol.
 - Então, já não me surpreende...
 - Era um conhecimento antigo, feito por Malet na prisão. Morava na Praça Royale. Foi na casa dele que esconderam as armas e o uniforme de general, um manto de ajudante-de-campo e um cinturão de comissário da Polícia.
 - Haviam previsto tudo! - bradou Napoleão, com impaciência. - E depois?
 - Uma vez uniformizado, armado, Malet vai bater à porta da caserna de Popincourt, faz-se anunciar ao coronel sob o nome do general Lamotte...
 - Assim - murmura Napoleão - foi sob um nome falso, ignorado, desconhecido, que foi possível fazer semelhantes coisas! E o coronel?
 - O coronel, sire, estava na cama, doente, com as febres. O general Malet abordou-o com as seguintes palavras: "Ora bem, coronel, há novidades. Bonaparte morreu!"
 - Bonaparte! - repetiu Napoleão. - Sim, para alguns, serei sempre Bonaparte! Mas então para que me serviram catorze anos de êxitos, o 18-Brumário, a sagração, a minha aliança com a velha casa da Europa, para que no dia em que o primeiro a dizer "Bonaparte morreu" tudo tenha acabado?... Bonaparte morreu! Mas, e de Napoleão II, que fariam dele? Napoleão II estava vivo, creio eu?
 - Sire - respondeu Cambacérès - sabe bem o que são soldados. Vêem uma ordem, não discutem, obedecem.
 - Sim, e quando a ordem é falsa?
 - O coronel julgou-a verdadeira. Mandou chamar o major, e a ordem foi lida novamente pelo pretenso general Lamotte. A soldadesca é reunida, e posta à disposição de Malet. Com essa soldadesca, que não tem um único cartucho, e cujos fusis estavam carregados com balas de madeira para os exercícios, Malet chega à Força, manda abrir as portas, chama um corso de nome Broccheciampi...
 - Um corso? - interrompeu Napoleão. - Tenho a certeza absoluta de que esse não foi enganado! E depois?
 - E depois os generais Lahorie e Guidal.
 - Guidal! Outro a quem poderia ter mandado julgar por um conselho de guerra, e enviar para Toulon Os seus entendimentos com os ingleses eram evidentes quanto a esse, segundo creio.
 - Pois bem, assim. Mas, em vez disso, levam-lhe o posto de senador. Depois vem Lahorie, a quem entregaram a nomeação de ministro da Polícia, e a ordem para mandar prender o seu antecessor, Rovigo.
 - Esse - voltou a interromper Napoleão, com aquele sentido exacto da justiça, que por vezes poderia desviar-se, mas que, apesar disso, era parte constante do seu carácter - , esse podia enganar-se. Acordado às quatro da manhã, levado pela força armada, tinha uma desculpa...! Vejamos, Cambacérès, vejamos em que dá tudo isso.
 - Aqui, sire, a acção divide-se. Enquanto o novo ministro da Polícia vai providenciar a detenção do antigo, Malet começa por expedir uma ordenança à caserna de Babylone, com um embrulho dirigido aos suboficiais que estão no quartel. Esse embrulho continha cópias das decisões senatoriais, e ordem de substituir com uma nova companhia os postos da Bolsa, do Tesouro, do Banco e das barreiras.
 - Quem era o coronel do regimento? - perguntou Napoleão.
 - O coronel Rabbe.
 - Esse resistiu, espero?
 - Foi tão enganado como o coronel Soulié, e obedeceu.
Napoleão bateu as mãos uma contra a outra.
 - Enfim - murmurou. - Sigamos, sigamos!
 - Enquanto isso, Lahorie encaminhava-se para o comando-geral da polícia, depois de ter destacado Boutreux na prefeitura. O prefeito é preso e conduzido à Força...
 - Na cela de Guidal... Está bem! Porque se deixou prender?
 - No entretanto, sire, no meio do tumulto, o barão Pasquier tivera tempo de enviar um mensageiro ao duque de Rovigo, mas o mensageiro não conseguiu chegar
lá. Lahorie marchava rapidamente e prosseguia deitando as portas abaixo. Deitava precisamente abaixo a do ministro, quando este surgiu à porta da frente.
 - Mas, Lahorie e Rovigo não eram amigos? Já não me lembro em que condições Rovigo me recomendara esse homem.
 - Tratavam-se por tu, sire. E foi dessa forma que Lahorie gritou ao ministro:
"Rende-te, Savary! És meu prisioneiro; não quero fazer-te mal."
 - E Savary?
 - Quis resistir, sire. Savary, como sabe, não é homem que se deixe prender facilmente. Mas Lahorie gritou: "Apanhem-no!", e dez homens lançaram-se sobre o ministro, que estava desarmado, e a quem Guidal, por seu turno, conduziu à Força, apesar dos protestos.
 - Siga, siga! Escuto-o.
 - Entretanto, Malet, que fora introduzido em casa de Hullin, comandante de Paris, havia-o prendido, por ordem do ministro da Polícia, e à primeira observação do conde de Hullin, abatera-o com um tiro de pistola no maxilar. Dali, passou a casa do ajudante general Doucet, chefe do Estado-Maior, anuncia-lhe que o novo governo o mantém nas suas funções, e indica-lhe a acção que deve desenvolver. De repente, um homem avança, e, interrompendo-o no meio da sua prelecção, diz-lhe:
 - O senhor não é o general Lamotte. É o general Malet! E ontem estava, talvez mesmo ainda esta noite, prisioneiro do Estado!
 - Até que enfim! - bradou Napoleão. - Pelo menos surgiu um! E chamava-se?
 - O ajudante de praça Laborde, chefe da Polícia militar... Então, Malet retira a segunda pistola, e vai disparar sobre Laborde, quando o general Doucet lhe detém o braço, e afasta Laborde. Ao sair, Laborde encontra Pâques, inspector-geral do ministro, que vem para avistar-se com o ajudante de praça acerca da transferência de Guidal para Toulon. Para seu grande espanto, Pâques é informado por Laborde de que Guidal é senador, Lahorte ministro da Polícia, Boutreux prefeito, e que o general Hullin fora gravemente ferido por um tiro de pistola disparado pelo general Malet, chefe do governo provisório...
"Cinco minutos depois, graças a Laborde e a Pâques, Malet estava por seu turno aprisionado, e prenderam Lahorie, o qual, até ao fim, de boa fé, não conseguia perceber porque o prendiam. Guidal só à noite foi preso, e Boutreux oito dias depois.
 - E presentemente - pergunta Napoleão - que resta de tudo isso?
 - Resta o coronel Rabbe, que obteve uma prorrogação, e o cabo Rateau, cujo tio é procurador-geral em Bordéus.
 - E os outros?
 - Os outros?
 - Sim, os conspiradores.
 - Os três generais, o coronel Soulié, o major Piquerel, quatro oficiais dos respectivos corpos e dois do regimento de Paris, foram fuzilados a 20 de Outubro.
Napoleão ficou por um instante pensativo. Depois, com alguma hesitação, prosseguiu, fixando em Cambacérès um olhar que significava "exijo a verdade":
 - E como morreram?
 - Bem, sire, e tanto quanto convém em militares, mesmo que culpados. Malet, pleno de ironia, mas também de convicção. Os outros, calmos, firmes, mas admirados por subirem ao cadafalso com um homem e por causa de um complot que desconheciam.
 - Todavia, achou que deveria permitir essa execução, senhor arquichanceler?
 - Julguei, uma vez que o crime era grande, dever exigir pronta justiça.
 - Talvez tenha razão... do seu ponto de vista.
 - Do meu ponto de vista, sire?
 - Sim, de arquichanceler, ou seja, de um alto justiceiro. Mas, do meu ponto de vista...
Napoleão deteve-se.
 - Perdão, sire - disse Cambacerês, insistindo para conhecer o ponto de vista de Napoleão.
 - Pois bem, por mim, ou seja, de um ponto de vista político, teria agido de forma diferente...
 - Sire...
 - Disse eu, e não você, meu caro Cambacérès.
 - Nesse caso, vossa majestade teria perdoado?
 - A todos os cúmplices, por terem julgado obedecer a ordens superiores.
 - E a Malet?
 - Malet, é outro caso. Fá-lo-ia encerrar em Charenton, como louco!
 - De maneira que o coronel Rabbe e o cabo Rateau?...
 - Que sejam amanhã de manhã postos em liberdade, meu caro Cambacérès! E que se saiba também que estou de regresso a Paris.
Depois, com um daqueles sinais de intimidade com que Napoleão honrava os mais próximos:
 - Boa noite, meu caro arquichanceler. Até amanhã, no conselho de Estado.
E reentrando nos seus aposentos, murmurou:
 - Lahorie, Lahorie... um antigo ajudante-de-campo de Moreau! Não me surpreenderia que Moreau surgisse diante do Havre com a frota inglesa!
Apenas se enganou por um ano. No ano seguinte, Moreau deveria deixar a América para, diante de Dresde, deixar-se cortar ambas as pernas por um projéctil francês!
No 1º de Maio de 1813 - tal como anunciara aos seus marechais, ao deixar Smorgony - o imperador está na planície de Lutzen, à cabeça de um exército de trezentos mil homens.
Teria quinhentos mil, caso a Prússia o não tivesse abandonado, e se a Ustaria não estivesse pronta a traí-lo.
Não era portanto culpa dele, nem da França, se o exército contava com menos duzentos mil homens do que ele predissera.
Desde o 9 de Abril que os primeiros tiros de canhão haviam sido disparados.
A 2 de Maio, a vitória de Lutzen tornou-o senhor de toda a margem esquerda do rio Elba, desde a Boémia até Hamburgo!
XVIII.
O caminho do exílio
NO sábado 3 de Setembro de 1815, um navio de alto bordo, levando na popa o pavilhão inglês e no mastro principal a bandeira de navio-almirante, atravessou a linha zero de latitude, zero de longitude e zero de declinação. Vinha da Europa, e, pelo caminho que levava, parecia fazer rota para a América do Sul ou para a índia.
Era dia de grande barba, como diziam os ingleses. Por isso havia festa a bordo.
Essa festa - celebrada em tal circunstância a bordo de todos os navios das nações civilizadas - era a da passagem do Equador. Simplesmente que, se bem que no fundo igual em todas as armadas, ela varia por vezes de processos.
A bordo do navio inglês, como sempre, o comando parecia suspenso e abandonado aos marinheiros, que, por decisão unânime, o havia confiado ao mais velho marujo, o qual, armado com um tridente, disfarçado com uma longa barba, e a fronte cingida por uma coroa de papel, estava sentado num trono erguido aos pés do grande mastro.
Ali, sua majestade Tropical fazia vir a si todos os que pela primeira vez atravessavam o Equador, mandava engordurar-lhes o rosto com alcatrão, passava-lhes pelas faces e pelo bigode uma enorme navalha de barbear em lata, e, quando ficavam assim barbeados, a um sinal seu, um enorme tonel de cerveja, que só em relação ao famoso tonel de Heidelberg ficava em desvantagem, derramava sobre o paciente, devido a um movimento de báscula, um duche de água salgada equivalente à cascata de Pissevache.
Feito isto, a barba estava acabada, e o passageiro, oficial ou marujo, podia secar-se ao sol do Equador, enquanto o secretário do deus Neptuno lhe passava um certificado, atestando que havia pago tributo de passagem no Trópico.
No meio desse cerimonial, surgiu de repente um oficial francês sobre a ponte, e, aproximando-se do deus Neptuno, disse-lhe num bom inglês:
 - Majestade, eis cem peças de ouro, enviadas da parte do imperador Napoleão.
 - Do imperador Napoleão? - disse o deus. - Não conheço esse. Só conheço o general Bonaparte.
 - Pois bem, seja - assentiu o general, sorrindo. - Esqueço-me sempre que o general Bonaparte foi dez anos imperador... Emendo-me, portanto, e digo: eis cem napoleões enviados da parte do general Bonaparte.
 - Isso é outra coisa! - afirmou o deus, estendendo a mão.
Mas uma mão branca, fina, aristocrática, interpôs-se entre a mão do oficial francês e a do marujo inglês, e recebeu os cem napoleões, afirmando:
 - Dê-me essa bolsa, general. Creio ser prudente fazer a partilha disto só logo à noite.
O deus Neptuno resmungou sob a sua barba de algas. Mas calou-se, e a cerimónia da grande barba ia prosseguir, quando um marujo gritou:
 - Oéee! À retaguarda, um tubarão!
 - Ao tubarão! Ao tubarão! - gritaram todas as vozes.
E o deus Neptuno, abandonado, levantou-se do seu trono, e foi, tal como os outros, ver o que se passaria à ré.
Com autorização do almirante - pois que, conforme indicava o pavilhão adejando no mastro principal, o barco era comandado por um almirante - com a autorização do almirante, dizíamos, os marujos instalaram-se na ré, que, como se sabe, é usualmente reservada aos oficiais superiores.
Um deles atou um anzol gigantesco, com um pedaço de carne, na ponta de uma corrente de ferro, e lançou o anzol para a água.
O horrível esqualo, cuja barbatana dorsal se via à flor da água, mergulhou rapidamente, e, passados alguns segundos, os marujos que tinham atado a extremidade da corrente à barra do timão, sentiram uma assustadora sacudidela, viram a corrente esticar-se rapidamente em três ou quatro direcções diferentes. Os anéis gemiam, ao rolar na borda do navio, e poderia julgar-se que iriam romper-se.
Finalmente, as sacudidelas esmoreceram um pouco, e viu-se algo branco que se agitava na extremidade da corrente violentamente estendida. Era o ventre do agonizante tubarão.
Nessa altura ouviram-se grandes gritos, lançados por toda a equipagem. Gritos de triunfo, mais altos do que os que haviam solto durante a festa da passagem do Equador.
Assim, e a esses gritos, viu-se surgir da escada da ré um homem que não aparecera ainda na ponte.
Esse homem usava o pequeno e tradicional chapéu dos caçadores da guarda, cujo uniforme verde envergava, sobre o qual brilhava a estrela da Legião de Honra e a simples cruz de cavaleiro, fixadas à coroa de ferro. Vinha seguido pelo general que acabara de entregar os cem napoleões, e por um outro, oficial de quarenta e cinco a cinquenta anos, que envergava o uniforme da marinha francesa.
Esse homem era Napoleão. O general que o seguia era Montholon; e o oficial que usava o uniforme da marinha francesa, era Las Cases.
Estava-se a bordo do Northumberland, comandado pelo almirante Cockburn, que fazia rumo da ilha de Santa Helena, com ordens dadas aos marujos, aos oficiais e ao próprio almirante, de não darem a Napoleão outro título senão o de General Bonaparte. As velas haviam sido enfunadas a 7 de Agosto. Por consequência há quarenta e sete dias que havia sido abandonado o porto de Plymouth.
Acabava-se de atravessar o Equador. Mas, por uma atenção especial do almirante, nem o imperador - reduzido que estava ao posto de general Bonaparte - nem nenhum dos seus acompanhantes, haviam sido submetidos à ridícula cerimónia do baptismo. Apenas que, tendo-se apercebido da diferença de tonalidade posta nos gritos dos marujos, o ilustre prisioneiro havia subido à ponte e vinha ver de que se tratava.
Tudo a bordo se divertia. E quando Napoleão soube que um tubarão acabara de ser apanhado e seguia a reboque o navio, foi sentar-se no canhão que era o seu assento preferido, e esperou.
Um instante depois, os gritos dos marujos anunciaram que estavam aptos a içar o tubarão. Depois, viram-no surgir mais alto do que a amurada do navio, a cabeça pontiaguda e a boca armada de uma tripla fileira de dentes. Um último esforço colocou o animal sobre a ponte. Mas no momento em que ali tombou, os marujos afastaram-se precipitadamente. Nenhum se arriscava a assistir demasiado perto à agonia do tubarão.
Com efeito, mal o tubarão foi colocado na ponte, deu saltos que atingiam a altura do traquete. Depois, apanhando um apoio de canhão ao alcance da boca, mordeu-o de tal forma que, uma vez enterrados os dentes na madeira, foi forçado a ficar imóvel, preso momentaneamente pela sua própria dentada.
O mestre carpinteiro aproveitou a ocasião. Aproximou-se do tubarão e descarregou-lhe na cabeça um terrível golpe de machada.
O animal retirou os dentes da madeira do suporte, onde deixaram profundas marcas, e de um só salto passou de estibordo para bombordo. Três ou quatro homens com quem colidiu nesse percurso foram derrubados pelo choque. Um deles ficou sem conhecimento. Os outros saltaram para os abrigos, e destes para as enxárcias, com a agilidade de um bando de macacos.
Tudo isto aconteceu por entre gritos e gargalhadas da equipagem, acontecendo que as máscaras dos marujos tornavam a luta e a evolução que ela sofria de um pitoresco inultrapassável.
Napoleão sentiu a princípio algum divertimento nessa espécie de batalha. Depois, por entre o movimento, os gritos e os clamores, acabou por cair numa profunda meditação.
Quando saiu dela, o tubarão tinha a cabeça cortada, e o ventre aberto. Um marujo segurava o coração do animal numa mão, e o cirurgião de bordo, enquanto o corpo sem cabeça se mantinha aberto de um extremo ao outro, verificou que o coração separado do corpo continuava a contrair-se, tão grande é o poder vital entre os animais possantes.
Napoleão foi tolhido por um sentimento de piedade pelo gigantesco sofrimento. Desviou os olhos, e esses olhos, ao desviarem-se, encontraram os de Las Cases.
 - Venha - disse o imperador - que eu dito-lhe um capítulo das minhas Memórias.
Las Cases seguiu o imperador. Mas quando este estava prestes a desaparecer no portaló, o comandante Ross inclinou-se na direcção do conde e disse-lhe:
 - E então porque se vai embora, o general Bonaparte?
 - O imperador recolhe-se - elucidou Las Cases - porque não pode suportar os sofrimentos desse animal.
Os ingleses entreolharam-se, espantados. Haviam-lhes dito que após cada combate Napoleão passeava por entre os campos de batalha a fim de extasiar os seus olhos com o espectáculo dos mortos, e encher os ouvidos com os gemidos dos feridos.
Mal o espanto se esvaiu, a ponte coberta de sangue foi lavada, e recomeçou-se a festa interrompida pelo surgimento do tubarão.
Entretanto, Napoleão ditava as páginas em que refuta o envenenamento dos empestados de Jaffa.
Fora uma ideia que surgira ao imperador devido ao aborrecimento, a de escrever a história dessas campanhas.
A estação estava quente, e o dia monótono. No início da travessia, o imperador raramente subia à ponte - nunca o fazia antes do pequeno-almoço - e, tal como em campanha, tomava essa refeição a horas desconexas.
Quanto aos ingleses, faziam-no precisamente às oito horas, e os franceses às dez.
Desde esse momento até às quatro horas, o imperador lia, ou conversava com Montholon, Bertrand ou Las Cases. Às quatro horas, vestia-se, passava ao salão comum e entretinha-se com uma partida de xadrez. Às cinco horas, o almirante vinha, em pessoa, anunciar que o jantar estava pronto.
Nessa altura ia-se para à mesa.
O jantar do almirante durava, habitualmente, cerca de duas horas. E isso era uma hora e cinquenta minutos mais do que a duração dos jantares de Napoleão. Assim, desde o primeiro dia, no momento em que o café era servido, o imperador levantava-se. O grande marechal e Las Cases, convidados da mesa do almirante, levantavam-se igualmente, e recolhiam.
O espanto era grande. O almirante esteve a ponto de zangar-se. Pronunciou em inglês algumas palavras de censura à falta de elegância do imperador. Mas a senhora Bertrand, que ficara para o café, respondera no mesmo idioma:
 - Senhor almirante, esquece-se, ao que me parece, que está a lidar com aquele que foi o senhor do mundo, e que, quando ele se levantava da mesa, fosse em Paris, em Berlim ou em Viena, os reis a quem dava a honra de ter por convidados da sua mesa se levantavam atrás dele e seguiam-no.
 - É verdade, isso, minha senhora - respondeu o almirante. - Mas, como não somos reis, e como não estamos em Paris, nem em Berlim e tão-pouco em Viena, não acharíamos mal que o general Bonaparte se levantasse antes do fim do jantar. Apenas que ele terá de achar bem que nós fiquemos.
A partir desse dia, total liberdade nesse aspecto foi tomada e aceite.
Foi durante as longas conversas a bordo que Las Cases recolheu da própria boca do imperador todas as histórias que cita, no seu Memorial, acerca da infância e da juventude do prisioneiro de Santa Helena. Depois, chegou o momento em que esse tipo de conversas enfastiava, em que Napoleão deixou de contá-las, se bem que o seu auditor não quisesse deixar de ouvi-las. E, no sábado 9 de Setembro, começou a ditar as suas campanhas na Itália.
Excepção feita a algumas distracções, que a princípio lhe tomavam meia hora, e depois duas, chegando mesmo a três, os dias passavam-se numa monótona uniformidade - e assim foram contados desde a segunda-feira 7 de Agosto até ao sábado 13 de Outubro.
Nesse dia, ao jantar, o almirante anunciou que no dia seguinte, cerca das 6 horas da tarde, esperava avistar Santa Helena. Esta foi, compreender-se-á bem, uma grande notícia que correu a bordo, pois já tinha sessenta e sete dias de viagem.
No dia seguinte, efectivamente, enquanto estavam à mesa, o marujo que desde as duas horas da tarde fora colocado no mastro da vigia, entre as barras do posto, gritou:
 - Terra!...
Estava-se na altura dos doces. Levantaram-se e subiram à ponte.
O imperador chegou à proa do navio e com os olhos procurou terra.
Uma espécie de névoa que lhe pareceu brilhar no horizonte foi tudo quanto pôde aperceber.
Era necessário ter-se olho de marinheiro para afirmar que essa névoa era um corpo sólido.
No dia seguinte, desde o nascer do sol, toda a gente se reunira na ponte. Se bem que durante parte da noite o navio se tivesse mantido imóvel, havia-se no entanto navegado o suficiente para que nesse momento, graças à limpidez matinal, a ilha se tornasse perfeitamente visível. Cerca do meio-dia, foi lançada âncora. Não se estava a mais de duas ou três milhas de terra, e havia cento e dez dias que Napoleão deixara Paris. A travessia do exílio havia durado mais do que o segundo reino, colocado entre a ilha de Elba e a de Santa Helena.
O imperador, que havia saído dos seus aposentos mais cedo do que habitualmente, caminhou ao longo da amurada e fixou na ilha um olhar impassível. Nem um só músculo do seu rosto se contraiu. E, diga-se em abono da verdade, essa máscara de ariano estava tão bem submetida à vontade do moderno Augusto, que os únicos músculos que nela pareciam viver eram os vizinhos da boca.
A paisagem fornecida pela ilha não era, no entanto, consoladora. Apercebia-se uma aldeia mais comprida do que larga, perdida entre gigantescos rochedos, nus, secos, devorados pelo sol.
Tal como em Gibraltar, poderia prometer-se cem luíses ao engenheiro suficientemente hábil para encontrar um local onde faltasse um canhão.
No termo de dez minutos de contemplação, o imperador virou-se para Las Cases:
 - Vamos trabalhar! - disse ele.
E desceu, fez com que Las Cases se sentasse, e começou a ditar sem que a sua voz denotasse a mais leve hesitação.
Lançada a âncora, o almirante descera imediatamente e havia-se remado rumo a terra.
Às seis horas da tarde regressou, muito fatigado. Havia percorrido toda a ilha e julgara ter encontrado um local conveniente. Infelizmente, havia necessidade de algumas reparações, e essas reparações poderiam exigir dois meses.
Ora, a ordem bem positiva dos ministros ingleses era a de não desembarcar Napoleão em terra sem que a sua morada estivesse apta a recebê-lo.
Mas o almirante apressou-se a dizer que, uma vez que o general Bonaparte deveria estar cansado do mar, tomava à sua responsabilidade desembarcá-lo. Só que esse desembarque não era possível durante a noite. O almirante anunciou então que no dia seguinte almoçariam uma hora mais cedo do que habitualmente, a fim de que fosse possível desembarcar logo em seguida.
No dia seguinte, ao sair da casa de jantar, o imperador encontrou todos os oficiais reunidos na ponte, e três quartos da equipagem alinhados no tombadilho.
Uma canoa aguardava. E Napoleão desceu com o almirante e o grande marechal.
Um quarto de hora mais tarde, na segunda-feira 16 de Outubro de 1815, tocava o chão de Santa Helena.
Para saber o resto, será bom ler Prometido, de Ésquilo.
XIX.
Lieschen Waldeck
EXACTAMENTE à mesma hora em que Napoleão pisava a terra devoradora do exílio, na pequena aldeia de Wolfach, escondida num dos mais pitorescos vales do grão-ducado de Bade, uma jovem de dezasseis anos, tal como a Margarida de Goethe, deixava deter-se a sua roca, e, de braços caídos, a cabeça apoiada no muro e os olhos levantados aos céus, murmurou essa canção tão conhecida na Alemanha:
Nada consola,
Do seu adens;
Fico louca,
Meu Deus, Meu Deus!
Minha alma está vazia,
Meu coração está surdo;
Tenho os olhos lívidos,
E a cabeça pesada.
Minha pobre cabeça
Está virada do avesso
Adeus à festa do Universo.
Na sua presença, o mundo é belo;
Na sua ausência É um túmulo!
À janela,
O seu olho distraído Vê-me aparecer
Desde que ele apareça.
Sua voz me atinge,
De dentro, fora;
Que ele entra ou saia
Entro ou saio eu.(1)
Chegada a este passo da canção, a jovem estava tão absorta nos seus pensamentos, que não ouviu a porta que dava para um pátio interior abrir-se, e não viu entrar, ou quanto muito deter-se no umbral dessa porta, um jovem de vinte e nove a trinta anos, vestido com as roupas dos camponeses da Westefália.
Dizemos vestido com, porque, ao analisar de perto esse jovem, ver-se-ia nele, mau grado o seu esforço para escondê-lo, um certo ar militar, revelador de que o uniforme de oficial era o único que ficaria bem a um tal porte, simultaneamente forte e decidido.
(1) Tradução livre.
Quanto ao rosto, era belo e másculo, simultaneamente, os olhos cinzentos e profundos, vivos, destemidos. Os cabelos eram de um louro quase esbatido, e os dentes soberbos.
A jovem, que não se apercebera do intruso, continuou:
Feliz pela sua sombra, segundo a sua lei,
Sou a sua sombra,
E deixei de ser eu.
Nada consola,
do seu adeus;
Fico louca,
Meu Deus, meu Deus!
A entoação da pequena, à medida que a canção avançava, tornava-se tão triste, dir-se-ia quase dolorosa, que o jovem não teve coragem para escutar as três ou quatro quadras que faltavam ainda cantar, e, aproximando-se vivamente, disse:
 - Lieschen!
A jovem estremeceu, virou-se, distinguiu o jovem através da obscuridade que permitira instalar-se, sem acender a lâmpada de três bicos em cobre, que estava preparada sobre um baú, e com uma voz quase assustada, disse:
 - É você!
 - Sim. Que canção tão triste e melancólica cantava?
 - Não a conhece?
 - Não - respondeu o jovem.
 - Bem se vê que é francês.
 - Porquê? Pela maneira como pronuncio o alemão? Inquieta-me um pouco, Lieschen, ao dizer-me isso.
 - Oh! não, fala o alemão como um saxão. Digo que se vê ser um francês porque entre nós, alemães, esta canção é muito popular, e porque, entre o Reno e o Danúbio, de Kehl a Viena, não há jovem que não a cante. É a Margarida à roca, do nosso grande poeta Goethe.
 - Sim, sei-o - disse o jovem, sorrindo. - E eis a prova.
E, no mais puro saxão, como dizia a jovem, repetiu as quatro primeiras quadras da melancólica canção.
 - Então, que me diz?
 - Eh! meu Deus, digo-lhe: "Fale, Lieschen! O som da sua voz rejuvenesce-me!", como digo ao pássaro "Canta, pássaro! Gosto de ouvir-te cantar!"
 - Pois bem, agora já falei.
 - Sim, e é a minha vez de falar. Aproximou-se da jovem, e estendeu-lhe a mão.
 - Adeus - disse ele.
 - Como é isso, adeus? - bradou ela.
 - Lieschen, há que partir, que deixar Wolfach, que me internar mais ainda na Alemanha.
 - Vai correr qualquer novo perigo?
 - O perigo que corre um proscrito, o de ser preso. E o mesmo que corre um condenado à morte: o de ser fuzilado.
Depois, com um ar que denunciava o homem familiarizado com todos os perigos, mesmo até com aquele, acrescentou:
 - E é tudo.
 - Oh! meu Deus! - disse a jovem, juntando as mãos - nem posso pensar nisso.
 - E no entanto foi essa a primeira palavra que lhe disse, já lá vão três dias, neste mesmo sítio, ao entrar esta mesma porta, que o acaso - não Lieschen, engano-me - que a Providência abria diante de mim. Foi pois a mesma palavra, a que lhe disse: "Tenho fome, tenho sede, e sou um proscrito."
 - Mas, anteontem, não me disse também que tinha um esconderijo seguro?
 - Lieschen, ao deixá-la, tenho de fazer-lhe uma confissão. Esse esconderijo, era a sua própria casa.
A jovem olhou-o com receio.
 - A nossa casa? - exclamou ela. - Escondeu-se na casa de meu pai, sem a autorização de meu pai?
 - Sossegue, Lieschen - disse o jovem. - Essa casa, vou agora deixá-la. Mas deixe-me dizer-lhe, antes disso, como nela entrei, e quem me recebeu.
A jovem pousou a roca de pé, apoiou as mãos nos dois joelhos, e encarou o proscrito com ar simultaneamente amigo e inquieto.
 - Eu estava na ilha de Elba com Napoleão, e ele enviou-me a França para preparar o regresso. Pus-me em contacto com o coronel Labédoyère e o marechal Ney. Ambos são fuzilados. Sou como eles condenado. Mas, mais feliz do que eles, prevenido com antecedência de que iria ser preso, fugi para Estrasburgo, a minha terra natal, onde, durante cerca de um mês, fiquei escondido em casa de um amigo.
"Há quatro dias, advertido de que o meu esconderijo estava descoberto, saltei de colina em colina, atravessei o Reno a nado, e encontrei-me diante do grão-ducado de Bade. Caminhei todo o dia por carreiros desviados, familiares à minha infância, e cheguei a Wolfach. A minha intenção era internar-me mais na Alemanha, onde tenho uma missão sagrada a cumprir, mas encontrei-a, Lieschen - que quer, o homem não é senhor do seu destino? - encontrei-a e correndo o risco das consequências, fiquei.
 - Julguei que tivesse partido. Quando voltei a vê-lo no dia seguinte, fiquei feliz por revê-lo, e não ousei perguntar-lhe porque ficara.
 - Porque fiquei - repetiu o jovem, cobrindo com um olhar ardente a casta criança que lhe confessava com tanta confiança e prazer que tivera de recebê-lo. - Porque fiquei? Vou dizer-lhe.
"Aquele palheiro sombrio no pátio conduz a uma escada, e através dela a uma pequena água-furtada abandonada. Foi lá que me refugiei, ao deixá-la. As mansardas dali dão para as suas janelas. Esperei a noite, ia partir, deitava apenas um último olhar na sua direcção, enviava-lhe apenas um último adeus, quando, repentinamente, a sua janela se abriu, e a ela apareceu você... Não tenho necessidade de dizer-lhe que é bela, Lieschen. Mas, na posição em que estava então, sob um raio de luz, estava maravilhosa!
Lieschen murmurou algumas palavras ininteligíveis,! enrubesceu, e baixou os olhos na obscuridade.
O jovem continuou.
 - Tinha na mão um ramo de rosas. Não sei que sentimento interior a animava, e, mais ainda, que luz de alma animava o seu rosto. Mas com os olhos fixos no caminho que eu deveria seguir se não tivesse ficado, desfolhou essas últimas pétalas do Outono, pálidas como os dias sem sol durante os quais nasceram, e desfolhava-as na direcção da Floresta Negra onde me julgava já embrenhado...
 - Desfolhava-as ao vento, e o vento levou-as para onde ele se dirigia também.
 - Pois bem, seja! O vento vinha da França. Era um vento amigo! Ficou assim, muito tempo, na sua janela, e eu passei todo esse tempo a olhá-la. Depois, mal finalmente a sua janela se fechou, eu tinha os pés ligados, não sentia mais coragem para partir.
 - E apesar disso, parte hoje? - pergunta Lieschen, com um suspiro.
 - Escute - respondeu o proscrito. - Hoje vi alguns gendarmes franceses circular pelas ruas da aldeia. Puseram-se em comunicação com os gendarmes do grão-duque, e não duvido que a esta hora uns e outros estejam no meu encalço.
 - Meu Deus! Que fazer? - alertou-se a jovem.
 - Oh! por mim, pouco me importaria, querida Lieschen - afirmou o jovem. - Mas a descoberta de um conspirador francês na sua casa comprometeria seu pai, e a si, sobretudo, que sob a promessa que lhe fiz, me guardou em segredo.
 - Essa promessa, fui mais eu quem a fez do que o senhor. Esse segredo guardei-o tão voluntariamente como meu pai - não sei porquê, tão bom, ele, tão cristão, tão misericordioso - dedica aos franceses um ódio tão implacável. Por dez vezes verifiquei já que ao ver um dos seus compatriotas, ele estremece e empalidece! E no entanto, caso se julgue aqui mais seguro do que na fuga, fique.
 - Lieschen! Querida Lieschen!
 - A vida de um homem é algo tão precioso aos olhos do Senhor, que o Senhor, espero eu, perdoar-me-á o que faço.
 - É um anjo, Lieschen! - afirmou o jovem. - E não é só um risco que corro ao afastar-me de si. Mas acontece, como já lhe disse, que tenho uma piedosa missão a cumprir. Vou à Baviera.
 - A Baviera? - disse a jovem, levantando os olhos.
 - Sim, em busca de uma jovem bela como você, Lieschen, mas que foi menos feliz... Cumprida essa missão, serei livre, e seja qual for o risco que corra ao manter-me nas fronteiras da França, oh! juro-lhe, regressarei!
 - Quando? - perguntou Lieschen.
 - Quando? Não sei. Mas peço-lhe três meses.
 - Oh! três meses! - bradava Lieschen, feliz.
 - Dentro de três meses, se me vir, Lieschen, promete reconhecer-me?
 - Não põe a minha memória a uma prova transcendente, senhor, e tenho por costume guardar durante mais de três meses a recordação dos meus amigos.
Nesse momento, soaram as sete horas.
O jovem oficial contou uma após outras as badaladas.
 - Sete horas - murmurou a jovem. - Meu pai partiu esta manhã para Ettenheim, e não deve tardar no regresso.
 - Sim - prosseguiu o proscrito. - Além disso, também eu preciso partir.
E foi até à janela aberta, olhando o horizonte.
 - Sabe qual o caminho que tomará, para partir - perguntou timidamente Lieschen.
 - Sim - respondeu o jovem. - Mas não me interessa o caminho que tomarei para ir, penso apenas naquele que percorrerei para regressar!
 - Pobre exilado. Compreendo, Wolfach está muito próximo da França, e cada passo que der...
 - Vai afastar-me dela e de si, Lieschen. É por isso. E depois, continuando agora com um profundo sentimento de melancolia:
 - É estranho! Toda a minha vida se passou fora da França. Só lá pus os pés de tempos a tempos, da mesma forma que o marinheiro, cuja existência se escoa entre o mar e o céu, de tempos a tempos põe o pé numa ilha diante da qual passa. Dos doze aos quinze anos, estive na Itália. Dos quinze aos vinte, no Tirol e na Alemanha; dos vinte aos vinte e cinco, na Áustria e na Boémia; dos vinte e cinco aos vinte e sete, na Polónia e na Rússia. Nunca, para me deslocar até esses países que acabei de nomear, lamentei afastar-me das fronteiras da França.
"Seguia a minha bandeira, e com os olhos postos nas suas águias emplumadas, ia para onde ela ia. Pois bem, hoje o meu coração despedaça-se ao pensar em deixar a França! Jamais ela me pareceu tão querida. Olhe, é uma loucura, Lieschen, e no entanto, acredite-me, daria um ano da minha vida com o seu amor, e dez anos dela caso não me amasse, para ver uma vez mais, através das matas do Reno, a flecha do campanário de Estrasburgo!
 - Sim, isso seria a pátria!
 - Não faz a mínima ideia do que isso representa, Lieschen! Estou só, no mundo. Tudo quanto amava, pai, mãe, irmão, tudo isso morreu. Amor, veneração, devoção, concentrei-os a todos esses sentimentos num só homem. E esse homem caiu de tão alto, que ao cair não me viu! Teria desejado segui-lo a Santa Helena, da mesma forma que o segui à ilha de Elba. Mas os ingleses rechaçaram-me. Regressei à França onde me condenaram à morte. Estava de tal forma farto de tudo, se bem que rico, pelo menos relativamente, que talvez eu próprio me entregasse se, ao fazê-lo, tivesse a consolação de saber da existência de um coração que me chorasse.
 - Nem um amigo? - perguntou Lieschen.
 - Os meus amigos eram os meus companheiros de armas. Vi-os cair à minha volta nos campos de batalha da Europa. E dos que sobreviveram, que foi feito deles? Proscritos, como eu! Dispersos e errantes neste mundo que conquistaram!
E o jovem encolheu tristemente os ombros.
 - Um amor! Sabíamos lá nós o que era isso, nós, viajantes armados que percorríamos o mundo a passo de corrida, a quem o vento da guerra empurrava à sua frente, e a quem uma voz sempre obedecida sem réplica nos repetia incessantemente: "Marcha! Marcha!"
"É incrível, mas é assim. Vou fazer trinta anos, Lieschen. Pois bem, o meu coração, endurecido por todas essas emoções, está ainda por nascer para as emoções ternas. Depois de ter sofrido como um homem, sinto-me capaz de amar como uma criança.
 - Meu Deus! - exclamou de repente a pequena - não ouve o ruído de uma viatura na estrada principal?
 - Sim - respondeu o proscrito.
 - É meu pai que regressa de Ettenheim.
 - O que significa que tenho de partir? A jovem estendeu a mão ao oficial.
 - Amigo - disse ela - acredite, ah! do fundo do coração, que gostaria de poder dizer-lhe: fique!
O oficial reteve entre as suas a mão que lhe era estendida por uns momentos.
 - Lieschen - disse - vou partir. Mas, antes de fazê-lo, uma graça...
 - Qual?
 - Não me deixe ir sem levar uma recordação da sua doce piedade por mim! Na outra noite, teria trocado dias da minha existência por uma das pétalas de rosa que lançava ao vento. Deve ter consigo - esse perfume chega até mim - um ramo de violetas. Dê-mo, e eu parto.
 - Um ramo de violetas? - repetiu tristemente Lieschen.,
 - Sim, será um talismã que na minha fuga me protegerá.
 - Triste talismã, senhor! - disse Lieschen. - Essas violetas, também elas últimos filhos do Outono, tal como as rosas de que falava há pouco, sabe onde foram colhidas?
 - Pouco me importa, uma vez que foram tocadas por si.
 - Foram colhidas no cemitério - prosseguiu a jovem - na campa de minha irmã, morta há... olhe, faz hoje exactamente três anos!... De resto, desde que o frio as não mate, pobres flores de morte, cada manhã recolho junto da campa um ramo semelhante, cujo perfume me envolve durante todo o dia. E esse perfume é para mim como uma emanação da minha pobre irmã.
 - Perdão, retiro o meu pedido.
 - Não, ei-lo... Agora parta!
 - Obrigado, Lieschen! Obrigado! Parto... parto duplamente exilado: exilado da França e exilado de si. Mas regressarei... Não me esqueça nas suas orações, Lieschen.
 - Infelicidade! Por quem rezaria? Nem sequer sei o seu nome.
 - Reze pelo capitão Richard.
 - Oh! o meu pai, o meu pai, lá em baixo, na estrada... O jovem pegou na mão de Lieschen e nela apoiou os
seus ardentes lábios. Depois, desapareceu por uma porta, ao mesmo tempo que uma outra se abria.
 - Até à vista, Lieschen - disse ele. - Custar-me-ia demasiado dizer adeus.
E desapareceu.
XX.
O pastor Waldeck
A jovem ficou sozinha e, pela primeira vez na vida, talvez, ao ouvir os passos do pai, não correu ao seu encontro.
No momento em que o oficial desaparecera, sentira que lhe faltavam as forças, e caíra sobre uma cadeira que estava colocada perto da pequena porta pela qual o fugitivo saíra.
Manteve-se ali, quando o pai entrou no quarto obscuro e silencioso.
Pareceu ao ancião tão estranho que a filha não tivesse corrido ao seu encontro, ou pelo menos não encontrá-la, que se deteve, depois de ter dado alguns passos, e procurou-a na escuridão.
Depois, volvidos alguns segundos, e nada distinguindo, chamou, meio interrogador, meio imperativo:
 - Lieschen!
Ao som proferido pela voz do pai, a criança como que saiu de um sonho, e correu para ele, dizendo:
 - Aqui estou, meu pai.
 - Então vem! - disse o pastor, um pouco estranho. E, como tivesse estendido a mão na direcção da voz, e sob essa mão encontrasse a filha, repetiu-lhe:
 - Anda, e beija-me, primeiro por ti, e outra vez por aquela que não está aqui...
A jovem lançou os braços em torno do pescoço do pai.
 - Oh! sim, sim, sim, meu pai! - exclamava, sentindo o coração transbordante sob o efeito do duplo sentimento que o enchia. - Oh! sim, meu pai, beijo-o tanto por mim como por ela, para que não sinta mais que lhe falta uma filha.
Depois, retirando-lhe o manto de sobre as espáduas e pegando na bengala, disse:
 - Dê cá.
E depôs o manto numa cadeira, colocando a bengala a um canto.
 - Porque estás tu sem luz, Lieschen? - perguntou o velho.
 - Esqueci-me de acender a luz, meu pai - respondeu a jovem com voz ligeiramente tremida.
 - E estavas assim sozinha, nesta escuridão?
 - Sonhava - balbuciou a pequena.
O pastor soltou um suspiro. Pareceu-lhe reconhecer um estranho embaraço na voz da filha.
Enquanto isso, ela havia-se aproximado da imensa lareira, e, procurando um carvão entre as cinzas, alumiou um dos bicos da lâmpada de cobre.
Essa lâmpada, ao acender-se, iluminou o rosto de um velho com cerca de sessenta anos. Era um rosto belo e grave. Percebia-se que se tratava do rosto de um homem que muito havia sofrido. No entanto, tinha uma expressão benevolente. A bondade transparecia além das profundas rugas de tristeza que a infelicidade talhara no rosto.
A criança não fez de forma alguma estas reflexões. Estava habituada à expressão melancólica daquele rosto. Via mesmo, ao encará-lo, um certo ar de felicidade que a enterneceu. Depois, ao perceber que o pastor mantinha nas mãos uma sacola, perguntou:
 - Vejamos, que traz aí, meu pai?
O pastor olhou-a com ar mais decidido.
 - Que trago?
 - Sim.
O velho levantou o saco.
 - O teu dote, minha filha.
 - O meu dote? - fez Lieschen, espantada. O pastor apresentou-lhe o saco.
 - Pega nele - disse-lhe.
A criança temeu deixar cair o saco que o pai lhe apresentava.
 - Oh! é pesado! - disse.
 - D'enho! - exclamou o velho, triunfante. - Contém dois mil thalers.
 - Dois mil thalers! - repetiu a pequena com uma expressão tão triste quanto a do pai era feliz. - Dois mil thalers! É por isto que se impõe tantas privações?
 - Que privações? - perguntou o pai.
 - É por isto que trabalha para além das suas forças?
 - Bom! Onde vês tu que eu trabalhe assim tanto, pequena?
 - Sozinho, talha e recolhe toda a nossa vinha.
 - Minha filha - disse o velho, sorridente - a vinha
é alvo de uma das parábolas do Evangelho, e a esse respeito, saberei demasiado bem tratar da minha.
 - Sacrifica-se por mim, meu pai. E a sua filha tem uma observação a fazer-lhe - e Liechen disse isto com um ar quase severo.
 - A mim?
 - Sim. Ama-me demasiado!
 - Não me digas isso, criança - retorquiu o velho,
puxando-a para os joelhos - pois dar-te-ei prova em contrário.
 - Oh! um exemplo, pai, desafio-o a dar um!
 - Não te recordas já que há cerca de três anos eu havia junto um dote semelhante a este?
 - Sim. E então?
 - Tal como este, era de dois mil thalers... Mas veio o terrível Inverno de 1812 a 1813. Nessa altura pensei, querida Lieschen, que tu não tinhas mais de catorze anos, que também os pobres eram meus filhos, que tu poderias esperar, já que o bom Deus te assegurava o pão de todos os dias, enquanto eles, esses tinham fome! Tinham sede! Tinham frio!
 - Bom pai!
 - Lembras-te? - continuou o velho, chegando mais e com ternura a filha contra o peito. - Era uma noite de Novembro, uma dessas noites em que fazia tanto frio entre o Reno e a Floresta Negra. O vento silvava, e uma chuva gelada fustigava a terra. E nós, cobertos de boas roupas, estávamos lá, perto do fogo crepitante, tu nesse lugar, eu naquele... Lembras-te, Lieschen?
 - Oh! sim, meu pai.
 - Eu sentia-me sonhador. Tu trabalhavas na roca, e disseste-me:
" - Em que pensa, meu pai?
" - Ah! - respondi eu - penso naqueles que têm frio, naqueles que têm fome, naqueles que não têm pão nem fogo.
"Então tu levantaste-te, foste ao armário, pegaste no saco que continha os dois mil thalers, e trouxeste-mo... Havíamo-nos compreendido, pobre e querida criança! Peguei o saco das tuas mãos, e saí... No dia seguinte, já não havia dote, minha bela Lieschen. Mas sessenta pobres tinham pão, lenha e roupas para todo o Inverno!
 - Sim, bom pai - disse a jovem, abraçando o velho. - E nas bocas deles surgiu um concerto de bênçãos que devem ter chegado ao bom Deus.
 - E chegaram mesmo, minha filha, uma vez que, passados dois anos, Ele permitiu que eu me visse senhor de igual importância. Apenas que, minha filha, como em vez de catorze tens dezassete anos, desta vez prometo-te que o dote não terá qualquer outro destino... a menos, claro, que conquistes algum rico cavaleiro, ou algum bom senhor, como por vezes se conta nas lendas alemãs.
 - Julga que isso seja possível, meu pai? - perguntou vivamente a jovem.
 - Porque não? Não és tu inteligente, boa e bela como Grisélida, e Grisélida não desposou o conde Percival?
 - E sem ir tão longe, meu pai, sem mesmo sair da família, minha irmã Margarida, não foi ela amada sucessivamente por Ulrich, o estudante de Heidelberg, por Wilhem, filho de um banqueiro de Francfort, e, finalmente, por um conde... o conde Rudolph de Offen-burgo?
 - Infelizmente! - murmurou o pastor, bastante sombrio.
 - Oh! prometo-lhe, meu pai - prosseguiu a criança, sem notar o véu de tristeza que acabava de estender-se sobre o rosto do velho - que não serei mais exigente nesse capítulo.
 - Sim - respondeu o pastor, com um suspiro. - Casar-te-ás, minha filha, e, com a ajuda de Deus, encontrar-te-emos um marido que seja digno de ti. Enquanto aguardas, porém, pega na sacola, por mais pesada que seja, e vai guardá-la no armário que está à cabeça da minha cama... Toma, aqui tens a chave.
 - E esse será o meu dote - prosseguiu a pequena, rindo. - A menos que, como o pai disse agora mesmo...
 - A menos que, para bem te arrumar, seja suficiente a tua face sorridente, os teus límpidos olhos e a tua frescura de rosa de Maio. Em todo o caso, foi Deus, e não eu, quem amealhou o teu dote.
A jovem alumiou mais um bico da lâmpada, e saiu levando a sacola, sob cujo peso o braço vacilava.
O pastor viu-a sair, e seguiu-a com aquele olhar profundamente enternecido que se vê nos pais amantes de seus filhos.
Depois, falando sozinho, murmurou:
"Não lhe disse que faltam três thalers naqueles dois mil. Um, que dei a uma velha, e dois a um pobre paralítico que não podia contar com Nosso Senhor para dizer-lhe: "Levanta-te, pega nas muletas e anda!" Mas antes de terminar a semana esses três thalers serão repostos, espero-o, e o dote ficará intacto. Que venha então o homem digno desse tesouro de inteligência e de bondade, e a minha pobre Lieschen será feliz."
Em seguida, levantando os olhos ao céu como se ali procurasse a imagem daquela que perdera:
"A Providência bem me deve essa compensação!" - acrescentou, que revelava simultaneamente um pedido e uma dúvida.
Nesse momento, a jovem reentrou na sala.
 - Bom pai - disse ela - o dinheiro está no armário, e aqui tem a chave.
 - Bem, minha filha. E agora, não sei se serás da mesma opinião, mas creio que são horas da refeição. Que dizes a isso?
 - Sim, meu pai - respondeu a jovem, distraída. Deu três passos, e deteve-se, pensativa.
O pai seguia-a com os olhos.
 - Ora bem, que tens agora?
 - Eu? Nada! - respondeu ela. E deu ainda alguns passos.
Depois começou a pôr a mesa. Mas de repente, apoiando ambas as mãos na toalha, olhou por seu turno para o velho com uma certa inquietação.
 - Lieschen? - perguntou este.
 - Meu pai - respondeu a jovem.
O velho fez-lhe um gesto com a mão.
 - Chega aqui ao pé de mim.
Lieschen aproximou-se com vivacidade, como se a ordem correspondesse a um desejo seu.
 - Aqui estou, meu pai.
 - Será que sofres? - perguntou o pastor. A criança sacudiu a cabeça.
 - Não.
 - Pelo menos andas preocupada, então?
 - Sim, tenho algo a dizer-lhe. Mas, pela primeira vez, hesito, sinto-me embaraçada...
 - Vejamos, fala! - disse o pastor, já inquieto. - Não sou eu para ti mais do que um pai indulgente? Nada de grave podes ter a censurar-te, minha filha.
 - Quem sabe? - respondeu Lieschen. - Uma boa
acção, talvez.
 - Uma boa acção! E como podes censurar-te por
causa de uma boa acção?
 - Oh! - fez a criança - não é por causa dessa boa acção em si mesma. É por causa do mistério de que ela se revestiu, e daquele que foi objecto dessa acção.
 - Quem é ele, então? Vamos, fala!
 - Escuta-me, meu pai.
 - Ah! eis que me tratas por tu?
 - Impede-mo?
 - Não. Mas quando eras mais nova, só me falavas assim quando tinhas perdão a pedir por qualquer coisa.
 - Não o preveni eu de que me sinto culpada?
 - Vamos, escuto-te.
 - Disse-me muitas vezes - prosseguiu Lieschen -  que os pais dos nossos pais haviam sofrido longas e cruéis perseguições por causa das suas crenças religiosas...
 - Sim, noutros tempos, na época de Lutero e da Guerra dos Trinta Anos.
 - E várias vezes, com as lágrimas nos olhos, contou-me as acções devotas daqueles que, pelo preço da liberdade, da fortuna e da própria vida, davam abrigo aos proscritos.
 - Sim. Mas em recompensa por aquilo que arriscavam na terra, Deus, a esses pelo menos, espero-o, terá dado um lugar à Sua direita, no céu.
 - Portanto não me quereria mal, meu pai, se eu tivesse sentido o coração comover-se de piedade por um homem a quem uma perseguição semelhante àquela de que falávamos houvesse expulso do seu país?
 - Por um proscrito?
 - Sim, meu pai.
 - E onde está, esse proscrito?
 - Ainda há pouco estava aqui. Neste momento estará bem longe, espero-o.
 - E para me falares desse infeliz, esperaste que ele partisse?
 - Desculpe, meu pai - disse Lieschen, hesitante - mas esse infeliz...
 - E então?
 - Era...
 - Oh! já adivinhei - interrompeu o pastor. - Era um francês, não é verdade?
 - Sim, meu pai, um francês que serviu sob as ordens de Napoleão e que, tendo colaborado no regresso do imperador da ilha de Elba, acaba de ser forçado a fugir da França.
 - Fizeste bem ao seguir o impulso do teu coração, minha filha. Mas fizeste mal em duvidar do meu.
 - Tê-lo-ia acolhido como eu, não é?
 - Sem dúvida. O tecto de um pastor não é, ao fim e ao cabo, o refúgio natural do proscrito e do abandonado? E que idade tem esse francês?
 - Que idade?
 - Sim.
 - Vinte e oito ou trinta, meu pai.
 - Eh! nesse caso é um jovem.
 - Deveria tê-lo repelido só por ser jovem? - perguntou Lieschen.
 - Não, decerto que não - respondeu o pastor olhando a filha com inquietação.
 - Como olha para mim, meu pai! - estranhou Lieschen.
 - Indago - respondeu o pastor.
 - O quê, meu pai?
 - Que fizeste tu do ramo de violetas que havias colhido de manhã na campa da tua irmã?
 - Poderia dizer-lhe que o perdi, meu pai - respondeu com tranquilidade a adolescente. - Mas Deus me livre de mentir a meu pai! Essas flores foram-me pedidas pelo francês, e eu dei-lhas.
 - Lieschen! Lieschen! - gritou o velho, recuando a cabeça. - Até hoje apontei a filha do pastor como um exemplo a todas as pequenas da aldeia...
 - Oh! compreendo-o, meu pai, e respondo-lhe sem corar e sem vergonha: o estrangeiro pediu-me o ramo em nome do reconhecimento, e eu dei-lho no da amizade.
 - Nunca mais verás esse homem? - perguntou o pastor.
 - É provável, meu pai... no entanto...
 - No entanto?
 - Disse-me que espera poder voltar, e pediu-me três meses de espera por esse regresso.
 - Lieschen, Lieschen, desconfia!
 - Dele, meu pai? Oh! não!
 - Os filhos do país dele são-nos funestos, minha filha!
 - Que quer dizer?
 - Quero dizer que este dia a que chegámos não é um dia normal, minha filha - prosseguiu o pastor. - É o 16 de Outubro, triste aniversário de uma morte misteriosa e prematura!
 - Sim, a morte da nossa pobre Margarida.
 - Já não usamos o luto, mas a mão do tempo, por rude e fria que seja, não o apagou dos nossos corações.
 - Não, meu pai, e o quarto de Gretchen, mantido tal qual era na época da morte dela, constitui um templo onde adoramos a sua recordação.
 - Recordação de santa e de mártir, minha filha. Falavas-me agora mesmo de franceses, e perguntavas-me de onde vem todo o ódio que tenho contra eles. Pois bem! Hoje, dia de tristeza e de lágrimas, vou contar-te como Margarida nos deixou, e por que doloroso caminho subiu ao céu esse anjo que Deus e a tua mãe me haviam dado.
 - Oh, meu pai, então que terrível aventura aconteceu a minha irmã, que três anos após a sua morte só fala dela com palidez e com essa emoção?
 - O que lhe aconteceu, minha filha, desejaria eu manter desconhecido da tua inocência, fazer disso um mistério eterno. Mas esse francês por ti socorrido, esse regresso prometido e talvez aguardado, fazem com que seja um dever nada te esconder... Se o francês regressar, dir-te-ei: Lembra-te! E se não vier, dir-te-ei: Esquece!
 - Oh! conte então, meu pai!
O pastor deixou cair por um instante a cabeça entre as mãos, como se mirasse o passado, e começou, amordaçando um suspiro.
XXI.
Vista de olhos sobre o passado
 - TEREMOS de retroceder sete anos, rumo ao passado, minha querida Lieschen - disse o velho. - Eras então uma gentil menina que ainda brincava com bonecas, quando foi anunciada a aproximação dos franceses pelo lado de Ratisbonne, e o dos austríacos, vindos de Munique.
 - Oh! lembro-me perfeitamente disso, meu pai! Vejo ainda no planalto de Ratisbonne, na zona das velhas ruínas do castelo, a pequena casinha branca com uma parreira sobre a porta e macieiras no fundo do jardim.
- Recordas, nesse caso, o dia em que os austríacos lá entraram?
 - Perfeitamente! Estava na sala, perto de minha irmã Margarida e do nosso amigo Staps, quando ouvimos o longínquo rufar dos tambores. Ao mesmo tempo, passaram estudantes na rua, cantando uma marcha militar. Staps estava sentado ao lado de minha irmã, levantou-se, e, aproximando-se da janela, fez um sinal ao grupo... Pai, que aconteceu depois ao nosso amigo Staps?
 - Foi fuzilado, minha filha.
 - Fuzilado? - estranhou a pequena, empalidecendo.
 - Sim, fuzilado.
 - Onde?
 - Em Viena.
 - Mas fuzilado porquê?
 - Por ter tentado assassinar o imperador Napoleão.
 - Oh! - soltou a pequena, deixando cair a cabeça sobre uma mão - pobre Staps!... Mas também, meu pai, foi um grande crime, o que ele cometeu! Para que queria assassinar Napoleão?
 - Porque, aos olhos dele, o imperador era opressor da Alemanha, minha filha. Além disso, Staps pertencia a uma sociedade secreta perante a qual, ao ser-se admitido, se renunciava a toda a vontade própria.
 - Nesse caso, pai, foi sem dúvida ele quem disparou o tiro de espingarda que provocou a pilhagem e o incêndio de Abensberg?
 - Não o acuso de nada, minha filha, se bem que todas as nossas infelicidades advenham disso.
 - Sim, o pai foi ferido. Misturaram-no com os mortos. E desde esse dia até àquele em que morreu, a própria Margarida não deixou de chorar... Que se passou com ela? De cada vez que quis falar desse acontecimento, respondeu-me o pai: "Mais tarde, minha filha, mais tarde."
 - Pois bem. Escuta o que aconteceu. Talvez que Napoleão não tenha dado grande atenção à bala que lhe furou o chapéu. Mas o general Berthier viu nisso um crime de que era necessário extrair vingança. Ordenou a um regimento que regressasse a Abensberg e que justiçasse o culpado, e para tanto que tornasse responsável pelo crime de um só homem toda uma aldeia. O regimento regressou, com efeito, a fim de executar a ordem do general. Mas os austríacos haviam já reconquistado a aldeia que os franceses tinham abandonado pouco antes.
"Isto foi, pelo menos parece-me, um ponto muito importante para os acontecimentos desse dia. Os franceses encarniçaram-se na reconquista, e os austríacos em conservá-la. Foi um dia horrível! A nossa casa, sobretudo, fora barricada qual uma fortaleza, e eu lá estava, no meio dos soldados embrenhados na carnificina, que cumpriam o seu dever defendendo a terra. Apenas que eu, homem de paz, que acredito em que os povos são irmãos e têm apenas uma só e igual pátria, sacudia a cabeça e rezava a Deus igualmente pelos amigos e pelos inimigos, pelos austríacos e pelos franceses. Mas eles não o compreenderam, os pobres cegos. Julgaram que a partir do momento em que não estava com eles, seria contra eles. Puseram-me então uma espingarda na mão e atiraram-me para as primeiras linhas de fogo.
 - Oh! meu Deus! - murmurou Lieschen. - E tudo isso se abatia sobre nós?
 - Sim, minha filha. Mas no meio da fuzilaria, enquanto as balas sibilavam às minhas orelhas, eu dizia:
"Senhor, Vós que sois grande, que sois poderoso, Vós que sois misericordioso, fazei com que um dia estes homens que se matam mutuamente dêem um beijo de fraternidade. Fazei com que Vós, a quem chamam o Deus da guerra, sejais um dia chamado, de um lado ao outro do mundo, o Deus da paz!"
"De repente, no meio da minha oração, vacilei. A voz faltou-me, os olhos fecham-se, e caí, banhado em sangue. Acabava de receber uma bala que me atravessara o peito.
 - Meu pai! - exclamou Lieschen, lançando os braços em torno do pescoço do velho, e com uma entoação tão dilacerante como se o ancião acabasse de ser ferido naquele mesmo instante.
 - A última coisa que vi, quando caí, foi tua irmã, que havia abandonado o abrigo, e que, desesperada, se atirava aos meus pés... O que eu sofri nesse minuto que separa a vida do desfalecimento, o dia da noite, seria incalculável! Parecia-me que era a morte em pessoa quem vinha tocar-me... Estendi as mãos na direcção da minha filha, que apercebia ainda através da névoa de sangue que me toldava a vista. Tentei balbuciar o nome dela, tocá-la, abençoá-la; mas faltaram-me as forças, tudo desapareceu, e desmaiei.
 - Oh! pobre e querido pai! - exclamou Lieschen.
 - Ignoro quanto tempo estive inconsciente. Mas o que sei, minha pobre filha, é que ao abrir os olhos à luz pura do céu, estava mais temeroso do que quando julguei fechá-los para sempre. E isso porque tinha mais dificuldade em resignar-me a viver do que sentira ao decidir-me a morrer!...
"Oh! aquilo era mesmo a guerra, a guerra com todos os seus horrores! A guerra seguida pelo seu cortejo de crimes! Haviam-me encontrado deitado, juntamente com os mortos, com uma espingarda na mão, e não ma haviam tirado porque me haviam julgado morto. A casinha branca não passava de um montão de escombros e de ruínas fumegantes. Toda a aldeia era uma enorme ruína! Havia sangue por todos os lados, nos celeiros dos campos, nos escoadouros junto às ruas, e até no tabernáculo do Senhor! Foi lá que encontrei tua irmã, pálida, assustada, moribunda e mais infeliz, a pobre pequena, do que se tivesse morrido.
 - Meu pai, meu pai! - gritou Lieschen, aos soluços.
 - Depois disso - prosseguiu o pastor com um acento de amarga tristeza - afirmou-se que se tratara de uma bela batalha, que simultaneamente honrou os que atacaram e os que defenderam... Deixei a minha ferida curar-se sozinha. Mas a tua irmã não aconteceu o mesmo. Cuidados, carinhos, devotamentos, nada puderam por ela. Julguei ser melhor abandonar a Baviera, ir para a Westefália, depois para o grão-ducado de Bade, e chamar-me Waldeck em vez de Stiller. Mas nada pôde agarrá-la a esta existência, e tão bem como eu, viste-a empalidecer, dobrar-se, perder em cada dia um alento, um sorriso, até que, finalmente, a 16 de Outubro de 1812, morreu perdoando!
 - Pobre irmã! - murmurou Lieschen.
 - Agora compreendes, não é verdade? porque Gretchen, a noiva de Staps, não quis desposar o estudante de Heidelberg, nem o filho do banqueiro de Francfort, e tão-pouco o conde Rudolph de Offenburgo? Porque fora desonrada pelo capitão Richard!
 - Ah! - gemeu Lieschen, com um grito de dor.
 - O que é? - perguntou o velho.
 - Pelo capitão Richard? - repetiu a filha.
 - Sim. Pelo capitão Richard! É o nome do miserável que vestiu de luto, a ti por um ano, minha filha - pois que na tua idade o luto é efémero - e a mim para toda a vida!
 - Ah! meu Deus! Meu Deus! - murmurou Lieschen, esmagada ao peso do nome que acabara de ouvir.
 - Assim, eu, palavra da paz - prosseguiu o velho - eu, joelho vergado diante do Senhor; eu, sagrado para perdoar e abençoar, apenas peço uma coisa a Deus: que a sua cólera jamais coloque esse homem no meu caminho, pois poderia enganar-me e julgar que era a Justiça do Senhor!
 - Meu pai, por favor!
E baixou os braços do ancião, levantados ao céu, como se para pedir vingança.
 - Sim, tens razão, minha filha - consentiu o pastor. - Não pensemos mais nisso, ou pelo menos não pensemos mais com um coração avinagrado, com o ódio na alma... O jantar está pronto? Pois bem, metamo-nos à mesa. Apenas que nessa mesa, entre ti e mim, há um lugar vago, o da pobre Margarida...
E o velho sentou-se, mas em vez de comer, deixou tombar a cabeça entre as mãos.
Apoiada ao espaldar da cadeira, colocada em face do pai, Lieschen olhava-o com uma profunda tristeza, quando a pouca distância se ouviu um tiro de pistola. Quase instantaneamente ouviram-se passos precipitados, e depois o ruído da porta que dava para o pátio a abrir-se vivamente.
Lieschen soltou um grito.
O pastor voltou-se e encontrou-se face ao jovem que há momentos havíamos visto a despedir-se de Lieschen.
 - É ele, meu pai - murmurou Lieschen.
 - Entre, senhor - convidou o velho.
 - Sou perseguido, senhor. Quererá salvar-me uma segunda vez? - perguntou o fugitivo.
 - Entre, depressa, e sente-se na mesa, perto de mim. Lieschen, um talher, imediatamente!... Fala alemão, senhor?
 - Sim - respondeu o jovem.
 - Pois bem, é nosso hóspede. Calma, e sangue-frio! Talvez haja ainda processo de salvá-lo.
O jovem sentou-se à mesa do pastor, naquele lugar onde, há escassos minutos, o pai lamentava não ver a sua filha Margarida.
Lieschen colocou diante dele, rapidamente, o talher necessário, e voltou a sentar-se, murmurando:
"Oh! meu Deus, é a Vossa cólera ou a Vossa misericórdia que o traz aqui?"
Nesse momento, um homem que envergava o uniforme de sargento da gendarmaria apoiou-se ao parapeito da janela, a qual se mantinha aberta, e enquanto metade do destacamento se mantinha no exterior, um rosto inquisidor penetrou no interior do aposento, e com um olhar abarcou a pequena mesa à qual se sentavam
os três convivas.
 - Oh! - disse Lieschen, baixinho. - O sargento
Schlick! Estamos perdidos.
Mas, precisamente ao contrário, o sargento que causava um tão grande receio em Lieschen, não parecia animado de quaisquer intenções hostis. Educadamente, tirou o chapéu e disse ao pastor:
 - Bom apetite, senhor Waldeck, e à sua companhia! Richard lançou uma olhadela rápida ao gendarme,
e julgou recordar-se de ter visto alguma vez aquele rosto. Quanto ao pastor, voltou-se, impondo ao rosto uma calma que estava longe de nascer no coração, e perguntou :
 - Quem está aí?
 - Não o incomodaremos, reverendo. Sou eu, o sargento Schlick, para servi-lo.
O nome do sargento, bem como o rosto, não eram estranhos ao capitão. No entanto, não conseguia recordar-se onde vira o rosto e ouvira o nome. Por seu turno, o sargento Schlick olhava Richard com uma fixidez que dava a entender que a sua memória era pelo menos tão boa como a do oficial francês, se não fosse melhor ainda. Ao fim de alguns segundos de exame, o gendarme fez um movimento com a cabeça, significativo de que as suas dúvidas, se existiam, estavam dissipadas.
 - O burgomestre recomendou-me que fosse o mais gentil consigo, reverendo - prosseguiu o sargento. - Assim, como vê, ponho... Pode-se entrar?
O pastor olhou para o capitão com um ar que queria dizer "firmeza, ou está perdido!", e depois disse ao sargento:
 - Sem dúvida, pode entrar. Não há qualquer impedimento.
E acrescentou:
 - Levanta-te, Lieschen, e dá luz ao senhor Schlick. Lieschen levantou-se, e pegando num candeeiro com a mão vacilante, apressou-se a alumiar o sargento. Mas nesse mesmo instante o sargento passou uma perna por cima do parapeito da janela, dizendo à rapariga:
 - Oh! não se incomode, minha bela menina! As janelas, para nós, são portas.
Lieschen voltou-se na direcção do francês. Estava calmo, parecia um actor perfeitamente estranho à cena que se passava, e à que parecia preparar-se.
 - Seja bem-vindo, senhor Schlick! - disse o pastor, com voz bastante firme.
Lieschen estava tão pálida, que o sargento teve pena dela.
 - Menina - disse ele - como está tão pálida, e porque essa palidez pode ser atribuída à minha presença inesperada, quero provar-lhe que não sou tão mau como pareço.
Enquanto falava, não tirou os olhos do francês que, por seu turno, mantendo uma boa postura, pousava o cotovelo na mesa, apoiava o queixo na mão, e olhava o gendarme de uma forma, se bem que não tanto curiosa, pelo menos tão tranquila como estava a ser olhado.
 - Oh! sargento - respondeu o pastor, dando razão ao mestre Schlick acerca da sua lealdade. - Pelo contrário! Sempre o conheci como bom rapaz.
Lieschen fez um enorme esforço para conseguir alinhavar um sorriso.
 - Senhor Schlick - disse ela - recordo-me de tê-lo ouvido várias vezes discutir com meu pai.
 - Discutir, menina! - espantou-se Schlick. - Discutir com um santo e sábio homem como o senhor Waldeck? Bem espero que jamais tenha a infelicidade de cometer uma tal impertinência!
 - Oh! fez sim, senhor Schlick - insistiu Lieschen. - E dir-lhe-ei até a propósito de quê, se o desejar.
 - Como é isso, se desejo, menina! Diga, menina!
 - Era a propósito dos franceses, senhor Schlick.
 - Ah! por causa disso, talvez. Sobre os franceses, sou intratável. Adoro os franceses, enquanto o senhor Waldeck os detesta. Será que minto, senhor Waldeck?
 - Não, o senhor diz a verdade exacta, senhor Schlick.
 - Oh! - prosseguiu o gendarme. - Decerto lhe fizeram qualquer mal bem grande durante as últimas guerras na Alemanha, esses franceses! Além disso, não é verdade que o senhor estava nessa altura na Westefália ou na Baviera? E nessas duas regiões, sobretudo na Baviera, a coisa esteve mesmo dura! Posso falar com conhecimento de causa, pois estive lá!
 - Esteve lá? - perguntou o pastor, com um certo interesse na voz.
 - Sim, meu Deus, sim... Fizeram-se mesmo, na minha estada no exército de sua majestade o imperador e rei, algumas coisas que devem ser criticadas... Nunca lhe aconteceu a si nada de especial, senhor Waldeck?
 - Não, nunca...
 - Pois, apesar disso, diz-se - as más línguas, claro -  diz-se que eu, por ter a facilidade de, para além do falar francês e do alemão - o que não surpreende quando se habita uma terra de fruteira - saber também os dialectos de outras regiões, como o tirolês, o lituano, o húngaro, aproveitava para circular por onde muito bem queria e informar o imperador Napo-leão do que via. Acrescentam que havia um acordo entre o príncipe de Neuchâtel e eu, e que, conforme a importância das informações que eu lhe dava, me pagava somas mais ou menos importantes.
 - Oh! mas se era realmente assim - disse desdenhosamente Lieschen - teria que chamar-se-lhe espião.
 - Exactamente, menina! E é o que dizem as más línguas. Mas eu mantenho que viajava por curiosidade, que por indiscrição apenas contava o que via, e que o imperador, que se divertia com as minhas extravagâncias, me dava dinheiro por generosidade.
 - Ah! - fez o pastor.
 - E como o imperador Napoleão - continuou o sargento - era muito generoso, lembro-me de que um dia cumpri, com um jovem oficial dos caçadores da guarda que me havia sido dado como companheiro, uma missão - pela minha fé! - bastante perigosa... Quer que lha conte, reverendo?
 - Certamente, senhor Schlick. Pouco gosto das histórias do imperador Napoleão. Mas as suas são tão engraçadas...
 - No entanto - observou Schlick, apontando para o capitão - se este senhor não fala o alemão...
 - E então? - perguntou Lieschen.
 - Pois bem, poderia contá-la em francês.
 - Não se incomode por minha causa, senhor sargento - disse em excelente alemão o capitão, que ainda não falara. - Como vê, posso perfeitamente ouvi-lo.
 - Oh! então, uma vez que estamos entre compatriotas - disse Schlick - já não hesito.
"Pois bem, senhor Waldeck, tratava-se muito simplesmente, para o jovem oficial e para mim, de penetrar nas ruínas de um velho castelo onde se efectuavam reuniões de modernos franco-juízes...
 - Em Abensberg? - perguntou o pastor...
 - Olhe, exactamente! Conhece Abensberg, senhor Waldeck?
 - Habitei lá durante algum tempo - respondeu o pastor, com indiferença.
 - Ora bem, tratava-se, pois, de penetrar nas ruínas do velho castelo de Abensberg e fazermo-nos filiados da associação, a fim de conhecer as intenções dos respectivos membros. Fizemo-nos filiados, com efeito, o oficial de caçadores e eu - quer dizer, e estava já inscrito na sociedade - e no dia seguinte contámos ao príncipe de Neuchâtel uma história tão interessante, que em nome do imperador, a quem a história divertiu imenso, ao que parece, o major-general deu-me cem napoleões!
 - Uma bela soma, senhor Schlick - disse o pastor. - E deve estar rico, se na sua vida contou muitas histórias tão interessantes como essa.
 - Nunca se é rico, reverendo, quando se tem mulher e filhos, e quando esse filho é uma rapariga a quem é necessário juntar um dote.
 - Compreendo, e por isso o senhor fez vista grossa aos escrúpulos do nacionalismo.
 - Quais escrúpulos, reverendo?
 - Enfim, o senhor era alemão, e ao servir o imperador Napoleão...
 - Alemão! Tem a certeza disso, reverendo?
 - Diabo!
 - O que eu sou é de Bade.
 - E então?
 - Ora, será que o grão-ducado de Bade saberá exactamente o que é, senhor Waldeck? Eu não estou mais catalogado do que ele, sou de Bade! Comecei, pois, como o grão-ducado de Bade, por ser alemão. Depois, como o grão-ducado de Bade se tornou francês, ou pelo menos quase, eu naturalmente fiz como o grão-ducado de Bade. Mas eis que agora se realiza toda uma convulsão na Europa, e que o congresso nos rechaça da confederação do Reno para um novo patrão: de forma que o grão-ducado de Bade, se bem que governado por uma princesa francesa, volta a ser um pedaço da Alemanha. Então eu, que sou um pedaço do grão-ducado, como compreende, tornei-me alemão!...
 - De tal forma, senhor Schlick? - perguntou o pastor olhando fixamente para o sargento, para saber aonde queria ele chegar.
 - De tal forma, senhor Waldeck, que, deixando de saber o que afinal era eu, tomei a decisão de ingressar na gendarmaria, a fim de fixar-me, o que faz com que hoje não seja alemão nem francês: sou gendarme, para servi-lo, como dizem os meus amigos franceses.
 - Vamos, senhor Schlick, conclua lá!
 - Concluir? Ah! quer que eu conclua?
E lançou um rápido olhar sobre o convidado do pastor, para ver se este era da mesma opinião que o anfitrião. Mas o capitão mantinha-se impassível.
"Meu Deus!" - murmurava a jovem, que sentia a situação a progredir rumo a uma denúncia.
 - Concluo! - replicou Schlick. - Eis-me pois gendarme de esporão e tricórnio. Mais a mais, sargento até aos ossos, e, nessa qualidade, encarregado de perseguir e prender um francês fugitivo, ex-soldado do outro, que por este se fez conspirador e que, para evitar a condenação à morte, de uma sola, como se diz do outro lado do Reno, e se refugiou no grão-ducado de Bade.
 - E como se chama esse francês? - perguntou o pastor.
 - Oom - gemeu baixinho a pequena, receando o golpe que, ao ser o nome pronunciado pelo sargento, tolheria o pai.
 - Pela minha fé - disse Schlick - que até agora negligenciaram ao ponto de me não terem dito o seu nome, contentaram-se com os sinais.
Depois, olhando para o capitão:
 - Quanto aos sinais, vejamos quais são: olhos azuis, cabelos louros, pele clara, boca pequena, dentes brancos, cinco pés e quatro polegadas de altura, vinte e oito a trinta anos.
Mau grado o receio que experimentava, e talvez mesmo por causa desse receio, o pastor pousou rapidamente os olhos no seu hóspede.
Lieschen, essa, não teve necessidade de olhar para saber que os sinais eram exactos, nos mais leves traços.
No entanto, o pastor, vendo que até ali nada havia de francamente hostil no olhar do sargento, recompôs-se, e fazendo ao jovem um sinal para que se não traísse, disse:
 - Mas tudo isso, senhor Schlick, não nos explica...
 - A razão da minha visita, senhor pastor? Já lá chego, esteja descansado. Imagine então que há três dias que procuramos o fugitivo, os meus dois gendarmes e eu, sem conseguirmos deitar-lhe a mão, se bem que saibamos que ele anda pelas redondezas. Mas esta tarde um dos meus gendarmes viu um cidadão que se escapulia muito cautelosamente ao longo de uma azinhaga.
Julgou reconhecer o indivíduo, e barrou-lhe o caminho, com a sua carabina. O outro retrocedeu e fugiu. O meu gendarme foi-lhe no encalço, e estava a deitar-lhe a mão, quando, chegado ao muro do seu jardim, o malandro, que parecia feito de ginástica, saltou de uma vez só sobre esse muro, e do muro para o vosso jardim. Nessa altura o meu homem disparou um tiro, menos na esperança de atingi-lo do que para prevenir-nos do que se passava.
"Acorremos, com efeito, ao local dos acontecimentos. Lá encontrámos o gendarme que recarregava a carabina. Contou-nos o que se passara, e viemos perguntar-lhe, reverendo, se por acaso não viu o francês em cujo encalço andamos?
 - Eu - fez o pastor.
 - E se por acaso não o esconde em sua casa?
 - Como pode supor, meu caro Schlick, que com a raiva que tenho às pessoas dessa nação...
 - Eh! - interrompeu o sargento - foi também o que disse aos meus camaradas.
 - Oh! não é verdade? - lançou Lieschen, que começava a respirar.
 - Disse isso aos meus camaradas - prosseguiu o gendarme, que parecia querer fazer com que os seus interlocutores passassem por todas as alternativas da esperança e do temor. - Mas para mim, Schlick, disse: Bah! O pastor é tão bom, que é capaz de ter esquecido o ódio e dar hospitalidade até mesmo ao seu pior inimigo!
 - Senhor Schlick, reviste toda a casa, e se encontrar o seu homem, leve-o, permito-lho.
 - Oh! - respondeu Schlick, com os olhos ficados sobre o convidado do pastor - desde que aquele que procuro não está aqui, é inútil procurar noutro lado.
E fez aquilo a que em teatro se chama uma falsa saída. Mas o pastor não se deixou enganar.
 - Senhor Schlick, dar-nos-ia o grande prazer de, antes de sair, beber connosco um copo de vinho do Reno.
 - Eu, reverendo? De boa vontade - respondeu Schlick - Será uma oportunidade para fazer um brinde aos meus antigos companheiros franceses.
 - Vai, minha filha - disse o pastor a Lieschen - e traz-nos do melhor.
A jovem levantou-se, cambaleante, foi buscar um pavio para acender a lâmpada. Mas aquele que, objecto embora de tudo o que se passava, parecia ser o mais calmo de todos, retirou-lhe o pavio das mãos, alumiou-o, e devolveu-lho.
A jovem saiu deitando para a retaguarda um longo e inquieto olhar.
XXII.
O primo Neumann
O sargento Schlick seguiu Lieschen com os olhos até que ela tivesse desaparecido completamente.
 - Sim - disse ele, como se falasse consigo próprio. - compreendo, a jovem queria simultaneamente ficar e ir; adivinha que aproveitarei a ausência dela para lhe fazer, senhor Waldeck, algumas perguntas que não ousaria diante dela.
 - Que perguntas tem a fazer-me, senhor Schlick? - perguntou o pastor, que via aproximar-se o momento fatal.
 - Primeiro, com a sua licença, tal como se diz do outro lado do Reno, vou perguntar-lhe directamente, e para não assustar essa boa menina Lieschen que já está suficientemente inquieta, que faz aqui este senhor?
 - Mas está a ver, julgo; este senhor janta connosco.
 - Sim, tem razão, e quanto a isso, vejo-o bem. Mas também era uma maneira de falar, pois o que queria era perguntar não era o que faz o senhor, mas sim quem é o senhor.
 - Não conhece este senhor? - perguntou o pastor.
 - Não - respondeu Schlick. - Mas desejo conhecê-lo.
E Schlick inclinou-se.
O estrangeiro virou a cabeça com um movimento de impaciência que dizia claramente: "Para quê esta comédia que me humilha e me fadiga? Deixe-me entregar-me."
Mas o pastor, que sem dúvida sabia melhor do que o jovem como lidar com Schlick, fez um sinal ao seu hóspede para ter paciência, pelo menos durante mais alguns instantes.
 - Sabe, senhor Schlick, que antes de habitar em Wolfach...
 - Sim, reverendo, havia habitado na Westefália e na Baviera, já me deu a honra de contar isso.
 - Pois bem, uma parte da minha família ficou na Baviera.
 - Em Abensberg?
 - Exactamente.
 - E este senhor é seu parente?
 - É filho de minha irmã, o meu sobrinho Neumann - respondeu o pastor, hesitando na mentira, por mais santa que fosse a razão que o levasse à mentira.
 - E veio para?...
 - Quem sabe? - respondeu o pastor, tentando sorrir.
 - Sim, compreendo - disse Schlick - há um casamento em vista. O primo Neumann vem para casar com a prima Lieschen... Senhor Neumann, felicito-o plenamente.
O falso Neumann contentou-se em inclinar-se. Mas isso não bastava, ao que parecia, para o brigadeiro Schlick, pois, aproximando-se do jovem, disse-lhe:
 - A sua mão, senhor.
O jovem deu-lhe a mão, mas franzindo as sobrancelhas de tal forma significativamente, que foi necessário um olhar quase imperativo do pastor para forçá-lo a continuar a desempenhar um papel naquela comédia. No entanto, a sua mão manteve-se perfeita e calma na de Schlick, e os olhos, que haviam encontrado os do sargento, já não estavam franzidos.
 - Vamos - murmurou o gendarme - é um bravo! E não me enganei quando, há sete anos, o baptizei Ricardo Coração de Leão.
Pronunciou estas últimas palavras suficientemente alto para que o oficial as pudesse ouvir. Mas quer tenham operado qualquer recordação neste último, quer não tivessem qualquer sentido as palavras ouvidas, o capitão pareceu nada ter percebido. Além disso, nesse momento Lieschen entrou. Uma parte da atenção do pastor e do oficial desviou-se para a jovem.
Trazia ela nas mãos uma dessas garrafas de vidro avermelhado e de gargalo alongado, cuja forma, só por si, seria ornamento de qualquer mesa. Pousou a garrafa perto do pai e só então ousou lançar um olhar sobre os diferentes actores que compunham a cena. Evidentemente, esse olhar procurava adivinhar qualquer alteração na situação que fora tomada na sua ausência.
A bonomia do rosto de Schlick sossegou-a um pouco.
Foi naturalmente dada a palavra ao sargento.
Assim, olhando Lieschen com ar mauzinho, ele disse:
 - Com efeito, dezasseis ou dezassete anos, jovem e bonita... Depois, virando-se para o capitão:
 - Vinte e oito a trinta anos, olhos azuis, cabelos claros, tez pálida, boca pequena, dentes brancos. Quanto à altura, não saberei julgar, mas se o senhor estivesse de pé juraria que medirá qualquer coisa como cinco pés e quatro polegadas... Ora, farão um belo par!
"Os sinais de há pouco" - murmuraram simultaneamente pai e filha.
"Reconheceu-me" - pensou Richard.
Enquanto isso, o pastor havia enchido o copo de vinho do sargento. Este pegou-lhe, e, erguendo-o, disse:
 - Pela minha fé! Minha bela menina, uma vez que tenho na mão um copo de vinho tão bom, não poderei resistir: bebo à sua saúde! À do primo Neumann, e à vossa felicidade no casamento!
Lieschen olhava sucessivamente para o pai e para o jovem, como se para perguntar qual o significado do brinde.
 - Pois bem! - prosseguiu o gendarme. - Não me dá razão? Mas a intenção é boa, juro-o!
 - À saúde do meu primo Neumann? Pela minha felicidade no casamento? Não compreendo - respondeu a jovem, não podendo adivinhar o que fora dito na sua ausência.
O pastor baixou a cabeça.
Era mais-do que podia suportar o oficial. Levantou-se, e disse em francês, dirigindo-se ao sargento:
 - Senhor, é inútil prolongar esta comédia. Sou o homem que procura.
Mas o sargento pousou-lhe uma mão no ombro, e fez com que se sentasse de novo.
 - Case-se! - disse, a meia voz. - Lembro-me de que fui francês, e bebo à saúde do primo Neumann, noivo da gentil menina Lieschen, e nada mais.
Depois, mais alto:
 - Portanto, à saúde do primo Neumann!
 - Senhor Schlick - exclamou o pastor - o senhor é um bravo!
 - Mas calem-se, raios e coriscos! - resmungou o sargento. - Podem ouvir-nos.
 - É verdade - disse Lieschen.
 - Queria simplesmente provar-lhes que um homem que foi encarregado pelo general do imperador Napo-leão (e o sargento tirou o chapéu) de lhe dar notícias interessantes, não é um denunciante, como se diz no outro lado do Reno.
 - Oh! senhor Schlick! - não conseguiu impedir-se de dizer Lieschen. - Como lhe fico reconhecida!
 - Chiuuu!... E por uma última vez, compreendam bem - disse mais baixo ainda o sargento. - Nem sempre terão que haver-se com o bom do Schlick... Agora - acrescentou mais alto - posso dizer aos meus camaradas que onde julgara encontrar um conspirador apenas vi um noivo. Apenas - e aqui baixou de novo a voz - - aconselho ao noivo que passe o noivado noutro sítio.
 - Oh! ca. o senhor Schlick! - murmurou a jovem, juntando as mãos em sinal de reconhecimento.
 - Silêncio, então! - repetiu o sargento. - E escondam este senhor onde quiserem, não importa onde, mas escondam-no, e que ele só saia quando toda a gente estiver deitada. Agora, boa noite, reverendo! Boa noite, senhorita Lieschen! Boa noite, primo Neumann!
E depois de ter feito uma última saudação a que juntou um sinal de cumplicidade, o sargento saiu.
Os actores da cena meio cómica meio dramática que acabava de ter lugar seguiram o sargento com os olhos até que a porta se fechou sobre as suas costas. Depois, sem dizer uma só palavra mas com o peito agitado, o pastor foi fechar as gelosias das janelas através da qual entrara o sargento. Dali, através das aberturas que manteve por um instante entreabertas, viu-o falar aos seus" homens.
Entretanto, Lieschen aproximara-se do oficial.
 - Oh! infeliz que eu sou! - disse ela. - Quase o fiz perder-se, e com outro que não Schlick, estaria mesmo perdido!
 - Sim - corroborou o pastor. - Mas graças a este bravo homem, está salvo.
 - Obrigado! Mil vezes obrigado, meu pai - disse o oficial, sorrindo e beijando a mão do pastor.
"O capitão Richard beija a mão do pai de Margarida! - pensou Lieschen. - Meu Deus! Foi então a Sua misericórdia, e não a Sua cólera, que o trouxe aqui."
 - Agora, senhor, acredite em mim - prosseguiu o pastor. - Siga o conselho que lhe deu Schlick.
Depois, mostrando o quarto de Margarida:
 - Fique com essa chave. Suba a esse quarto, e faça uso dele com respeito, pois é o quarto de uma pobre mártir... Vá! E mantenha-se lá até que o chamem.
 - Obrigado, senhor - disse o jovem. - Mas antes, duas palavras... Talvez seja obrigado a fugir sem voltar a vê-lo, sem ter tempo para falar-lhe.
 - E então, senhor? - respondeu o pastor, que à medida que o perigo se tornava menos eminente, sentia crescer em si o costumado ódio contra os franceses.
 - Esse homem, esse sargento, recordava-lhe há pouco que o senhor habitou na Westefália...
 - Sim.
 - E depois na Baviera.
 - E então, senhor?
 - Pronunciou até o nome da aldeia de Abensberg.
 - E depois?
 - Habitou na verdade em Abensberg?
"Meu Deus! - pensou Lieschen - que vai ele dizer!"
E aproximou-se do jovem, pronta a detê-lo se visse
que ele seguia aquela senda perigosa em que entrara.
 - Em Abensberg - disse o capitão - terá conhecido, entre os seus colegas, um digno homem chamado Stiller?
Lieschen mal conseguiu suster um grito. Pousou a mão no braço do jovem. Mas este pareceu não ter compreendido.
 - Stiller... Stiller! - repetia o pastor, olhando para o oficial, com espanto.
 - Sim, Stiller.
 - Conheci-o - disse o pastor.
 - Senhor - murmurou Lieschen. - Senhor, recorde-se dos perigos em que incorre não seguindo os conselhos do sargento!
 - Mais uma palavra, menina, por favor. E depois, dirigindo-se de novo ao pastor:
 - Senhor, ando em busca do senhor Stiller, junto de quem me leva um assunto importante. Poderei encontrá-lo ainda em Abensberg?
 - Em primeiro lugar, que lhe deseja? - perguntou o pastor, com voz alterada.
 - Perdão, senhor - respondeu o jovem - mas trata-se de um segredo que nem sequer é meu. Portanto, só posso repetir a minha pergunta.
E apesar da pressão exercida pela mão de Lieschen:
 - Encontrá-lo-ei ainda em Abensberg, ou terá morrido na sequência dos seus ferimentos?
 - Meu pai! - disse a jovem, colocando um dedo sobre os lábios, para rogar silêncio ao pai.
O pastor fez um sinal com a cabeça, ao mesmo tempo que murmurava:
 - O pastor Stiller morreu em consequência dos seus ferimentos.
 - Morto! - repetiu baixinho o jovem. - Morto! Depois, mais alto, perguntou:
 - Mas, ele tinha uma filha?
Lieschen apoiou-se às costas da cadeira, temendo desmaiar.
 - Tinha duas, senhor - respondeu o pastor. - De qual delas fala?
 - Da que se chamava Margarida, senhor. Lieschen colocou ambas as mãos frente à boca, para evitar um grito. O pastor empalideceu terrivelmente.
 - Sabe - disse ele com voz aborrecida - que ele tinha uma filha chamada Margarida?
 - Sim, sei, senhor.
Depois, hesitando, pois sentia que toda a alma do irmão a quem tanto amara estava na pergunta que ia fazer:
 - E essa filha, Margarida, é feliz?
 - Oh! bem feliz, senhor - respondeu o pastor. - Bem mais feliz do que neste mundo. Está no céu!
 - Morta também! - murmurou o jovem, baixando a cabeça.
Depois, passado um instante de silêncio, e tirando das mãos de Lieschen a lâmpada, acrescentou:
 - Está bem, senhor. Nada mais tenho a perguntar-lhe. Foi então o pastor quem, por seu turno, fez um movimento para deter o seu hóspede. Mas Lieschen meteu-se entre ambos.
 - Meu pai - disse ela - esquece-se de que este senhor deve esconder-se, que disso depende a sua vida?...
 - Em nome do céu, senhor - continuou ela, empurrando o jovem na direcção da escadaria - em nome do céu, não fique aqui nem mais um minuto, e suba para o quarto de minha irmã!
O jovem deteve-se, atónito.
 - Sim, suba - acrescentou ela a meia-voz. - E quando lá chegar, infeliz, olhe para o retrato que está entre as duas janelas, e fuja!
O oficial viu o rosto de Lieschen de tal forma alterado que só pensou em obedecer, adivinhando que se passava no coração da jovem e no velho qualquer coisa que, pelo menos nesse momento, não poderia ser-lhe explicado.
Deixou-se pois guiar pela jovem, e enquanto o velho, ora olhando para Lieschen ora para o seu hóspede, se perguntava quem poderia ser aquele francês, e que interesse o levaria a procurar o pastor Stiller, o hóspede abria a porta e fechava-a, penetrando no cuarto.
Mal a porta se fechou sobre as suas costas, Lieschen sentiu que lhe faltavam as forças, e caiu numa cadeira.
O pastor correu para ela, e, levantando os olhos ao céu, disse:
 - Meu Deus! Graças a Vós, mais que um se salvou!
Agora, tenho que salvar o outro.
E pegando na mão da pequena Lieschen:
 - Vamos, minha filha, coragem!
 - Que quer dizer, meu pai? - perguntou a jovem, virando a cabeça com vivacidade.
 - Quero dizer, minha pobre filha, que amas esse homem!
 - A ele? - perguntou a jovem, com terror.
 - Sim, a ele - confirmou o velho.
 - Oh! meu pai, não, meu pai - gritava Lieschen - juro-lhe que se engana.
 - Para quê tentar mentir, Lieschen? Sabes que isso é inútil, comigo.
 - Oh! não penso nisso, meu pai... ou, pelo menos, juro-lhe uma coisa.
 - Juras!
 - Sim, e sobre a sepultura de minha irmã Margarida!
 - E que queres tu jurar, criança, de uma forma assim tão santa?
 - Que esse jovem jamais será algo para mim!
 - Não o amas?
 - Não só o não amo, meu pai, mas ainda por cima me estarrece!
 - Estarrece-te?
 - Meu pai, em nome do céu, não falemos dele!
 - Pelo contrário, falemos já... Ele aterroriza-te! E porquê?
 - Por nada... Meu Deus, não ouça o que eu digo: sou louca!
 - Mas, enfim?
Em vez de responder, Lieschen deu um passo à retaguarda, fixando os olhos muito abertos sobre a porta.
 - O senhor Schlick, meu pai! - balbuciou ela. - Que vem ele fazer aqui?
O pastor voltou-se e viu efectivamente o sargento, de pé, na umbreira da porta.
XXIII.
Uma cabeça a prémio
SCHLICK tinha uma expressão bastante comprometida. Trazia a carabina na mão, e tanto bastava para denunciar uma intenção bem mais hostil do que da primeira visita, pois que dessa feita apresentara-se na casa sem armas. O pastor olhou-o com ar interrogativo.
 - Ah! sim, julgava-se desembaraçado de mim, senhor Waldeck? Também julguei que sim. Mas, como sabe, o homem põe, e Deus dispõe!
 - Sim, sei isso. Mas o que ignoro...
 - É o que me traz de volta, compreendo bem. Diabo! É difícil de explicar...
 - Diga, senhor Schlick.
 - Reverendo pastor, tem diante de si o homem mais comprometido, decerto, em toda a confederação do Reno!
 - Comprometido! Como é isso? - perguntou o pastor, enquanto Lieschen, ofegante, de certa forma bebia as palavras do sargento, à medida que elas lhe saíam dos lábios.
 - Disse-lhe há pouco, reverendo, que aguardava novas informações.
 - Sim.
 - Pois bem ao regressar a casa, tinha-as à minha espera.
E então, mais perto do pastor:
 - Parece-me que aquele a quem procuramos é um homem bem mais perigoso do que eu pensava!
 - Meu Deus! - murmurou Lieschen - então isto ainda não acabou?
 - Mais perigoso do que pensava? - repetiu o velho.
 - Tão perigoso, senhor Waldeck, que a sua cabeça foi posta a prémio.
Lieschen lançou um rápido olhar para o quarto. Mas por muito rápido que tenha sido esse olhar, o sargento •nterceptou-o tal como interceptaria um culpado.
"Está bem - disse para si mesmo - , o nosso homem ainda não partiu."
 - Posta a prémio? - perguntava o pastor, que, conhecendo a fraqueza do sargento pelo dinheiro, compreendeu que a luta iria começar.
 - Por dois mil thalers! Nada menos, senhor Waldeck!
 - E então? - disse o pastor, deixando assim o caminho aberto para a manobra do sargento.
 - E então, digo que aquele que o prender fará uma boa presa. E é isso o que eu digo!
Pálida como a morte, Lieschen trocou um olhar temeroso com o pai.
 - E isto sem contar com a promoção - acrescentou o sargento.
 - A promoção? - repetiu o pastor.
 - Certamente! Compreende certamente, senhor Waldeck: se for um sargento a prender o conspirador, será feito sargento-mor. Se for um sargento-mor, será promovido a segundo tenente. Ora como ele não pode deixar de ser preso...
 - Schlick - interrompeu-o o pastor - que está para aí a dizer?
 - Digo que não pode deixar de ser preso, senhor Waldeck. Se não for aqui, será um pouco mais além... E eu regressarei para lhe fazer uma observação cuja justeza o senhor saberá apreciar.
 - Que observação!
 - Ora bem! Tanto vale, ao que me parece, que seja eu ou outro qualquer a ficar com o prémio e a promoção.
 - Desgraçado! - gritou o pastor.
Lieschen nada disse, mas estendia ambas as mãos abertas para o sargento.
 - D'enho! - prosseguiu Schlick - é-se gendarme, senhor pastor, e dois mil thalers constitui uma dezena de anos de pré, para mim.
 - Oh!... E o senhor, ainda há pouco tão generoso, senhor Schlick, por uma miserável quantia...
 - Diabo! Senhor Waldeck, como vê a coisa! Dois mil thalers não são uma quantia miserável, e nos tempos em que eu contava histórias ao major-general, arrisquei-me muitas vezes a ser enforcado por apenas quinhentos!
 - Mas, desgraçado! - gritava o pastor. - Esse homem cuja cabeça está a prémio é um dos seus antigos irmãos de armas!
 - Sei-o muito bem, graças a Deus! - assentiu Schlick, coçando a orelha. - E é precisamente isso o que me
aborrece. Lieschen sentiu alguma esperança.
 - E fá-lo-á fuzilar a sangue-frio, Schlick?
A jovem sentiu um estremecimento percorrer-lhe todo o corpo.
 - Raios me partam! Estou desesperado, senhor Wal-deck! Que quer? O dinheiro é raro, nos tempos que correm, e, compreenda, precisar apenas de subir doze degraus para poder ter direito a dois mil thalers... D'enho, é tentador!
E ao dizer estas palavras, para que ao pastor não restassem quaisquer dúvidas, lançou uma demorada olhadela sobre a porta do quarto.
 - Oh! o senhor, o senhor, Schlick. Um homem tão honesto! - murmurava Lieschen.
 - Eh! justamente, menina - corroborou Schlick, interrompendo-a - mantenho-me honesto, uma vez que sou gendarme, e que a minha vida é prender pessoas!
 - Oh! por muito gendarme que seja, o senhor tem um coração - insistiu a jovem.
 - Sim, decerto, tenho um coração, menina Lieschen. Mas ao mesmo tempo tenho também uma mulher para sustentar, e uma filha a casar - não se casam filhas sem dote, bem o sabe, senhor Waldeck, o senhor que de tudo se priva para juntar um dote para a menina Lieschen - e os dois mil thalers, pois bem! Serão o dote de minha filha!
 - Esquece, senhor Schlick, que uma parte dessa soma será dividida pelos seus colegas?
 - Por nada deste mundo, o decreto do grão-duque afirma: "Aquele que prender..." Ora, os meus dois companheiros estão deitados. Não tive o cuidado de acordá-los! E como serei eu sozinho quem prenderá o conspirador, o prémio será meu e só meu.
 - Meu pai - murmurou Lieschen ao ouvido do pastor - jamais me casarei!
O pastor olhou para a criança com uma profunda ternura.
 - E ainda dizes que o não amas - murmurou.
Depois, voltando-se para o gendarme:
 - Escute, Schlick.
 - Escuto-o, reverendo, mas permita-me que o faça sem perder de vista essa porta (e virou-se para o lado da porta)... Estou perfeitamente à vontade, e escuto-o
melhor ainda...
 - Arrepender-se-á de fazer o que pretende, não é verdade?
 - Estou em desespero! - respondeu o sargento.
 - E não é por vontade própria que empurra um homem, um seu antigo compatriota, um antigo companheiro de armas, para o cadafalso?
 - Jamais me consolarei, senhor pastor! Nunca!
 - De forma que, se pudesse ganhar os dois mil thalers sem deter esse infeliz proscrito...
 - A piedade não se paga, reverendo.
 - Por vezes, senhor Schlick.
 - E quem o faz?
 - Aqueles para quem a piedade não é apenas uma virtude, mas também um dever.
 - Oh! meu pai! - exclamou Lieschen, feliz.
 - Se, por exemplo, eu lhe desse esses dois mil thalers?
 - O senhor?
 - Sim, eu, e para salvar esse homem.
 - Ficaria a promoção, senhor Waldeck.
 - Oh! a promoção não era coisa assegurada.
 - É, é, senhor Waldeck, palavra de honra. Mas está bem! Como quero fazer um sacrifício pela minha parte, seja, sacrificarei a promoção.
 - E deixará fugir o homem que persegue?
 - Quer dizer - prosseguiu o sargento, sorridente - que se me der os dois mil thalers, senhor Waldeck, será tão bom da sua parte, e eu ficarei mergulhado numa tão profunda admiração, que mais não terá que indicar-me para que lado quer que eu vire a cabeça, e por quanto tempo deseja que eu feche os olhos.
 - Minha filha - disse o pastor a Lieschen - toma a chave. Sabes onde está o dinheiro.
 - Meu pai! Meu pai! - gritava a jovem apoiando os lábios na mão do pastor.
 - Um momento, senhor Waldeck! - disse Schlick.
 - O que é? De que se arrepende?
 - Meu Deus! Meu Deus! - murmurava já a pequena.
 - Não - sossegou-os Schlick - a palavra é palavra! E o negócio fica de pé. Apenas quero que tenham a certeza de que vos não roubo dois mil thalers. Vejam o decreto em questão.
E pousando sobre a mesa, mas ao alcance da sua mão, a carabina de que se não separara por um só momento, retirou do bolso um papel que tinha o selo do governo, e leu:
"Será entregue a soma de dois mil thalers a todo o agente da força armada que se apodere do corpo, e o entregue às autoridades, do capitão Richard..."
 - Oh! - gemeu Lieschen, com desespero. - Tudo está perdido!
 - O capitão Richard? - repetiu o pastor, empalidecendo a ponto de julgar-se que iria morrer. - O capitão Richard? Não está aí esse nome, não é verdade?
 - Oh! por Deus, que está - insistiu Schlick. - E com todas as letras... Leia!
 - O capitão Richard! - murmurou o pastor, lançando-se para a carabina que o sargento havia deixado sobre a mesa, e apoderando-se dela com um movimento tão célere que o gendarme nem teve tempo para opor-se. - Nesse caso, não será o senhor, serei eu, eu mesmo...
E precipitou-se para a escada, mas no primeiro degrau, de joelhos, encontrou Lieschen, que, abraçando-o pela
cintura, lhe gritou:
 - Meu pai! Em nome de sua filha Margarida, que ao morrer perdoou!...
"Olá, olá - murmurou Schlick. - Que se passa agora?"
Houve uma pausa momentânea. Depois, o pastor deixou lentamente escapar a carabina que mantinha na mão esquerda, e com a direita apresentando a Lieschen a chave do armário:
 - Toma, minha filha - disse ele - Age segundo te manda o coração, e segundo o coração de Deus!
 - Oh! - exclamou Lieschen. - Meu pai, meu pai, o meu coração é todo seu! Toda a minha vida lhe pertence!
E foi a vez de o pastor, quase desfalecido, se deixar cair num cadeirão, perante o gendarme estupefacto.
Enquanto isso, a porta do quarto de Margarida, que por um instante fora cautelosamente aberta, fechou-se com lentidão.
 - Senhor Schlick - disse o pastor, passado um instante, e enquanto retirava da fronte o suor que testemunhava a luta travada consigo mesmo. - Senhor Schlick, vai receber o seu dinheiro, menos três thalers, porque desses três thalers fiz eu na manhã de hoje ofertas, as quais me trouxeram felicidade, uma vez que à noite, pude salvar a vida de um meu semelhante.
 - Três thalers? - disse Schlick. - Ah! Pela minha fé, senhor Waldeck, não sou tão exigente por causa de uma boa acção. E no entanto, como explicarei a minha mulher a ausência dos três thalers? Se ainda fosse francês, dir-lhe-ia que os gastei a comer. Ora, como sou alemão, dir-lhe-ei que os bebi.
O sargento acabava esta reflexão, a qual denunciava o profundo estudo que fizera aos dois povos a que pertencera, quando Lieschen entrou, com o saco nas mãos.
 - Eis o dinheiro - disse ela, cansada por ter corrido a ir buscá-lo.
 - Obrigado, minha bela menina - disse o brigadeiro, recebendo o saco das mãos de Lieschen. - Se fosse menos bonita, teria remorsos. Mas com um rosto como o seu, graças a Deus, não terá necessidade de dote.
 - Senhor Schlick - disse o pastor, com gravidade. - Desta vez, dará a sua palavra!
 - Oh! fique tranquilo, senhor Waldeck! Apenas, convide o primo Neumann a voltar depressa a Abensberg, e vá depois juntar-se-lhe com essa bela criança, para celebrar o noivado.
Ao mesmo tempo que a porta do átrio se fechava à sua passagem, a da escada reabria-se para dar passagem ao capitão. Mas Lieschen e o velho só tinham olhos para aquele que saíra. Além disso, mal Schlick desapareceu, Lieschen lançou-se para os braços do pastor, dizendo:
 - Oh! Meu pai, como és bom! Como és grande! O velho apertou a filha contra o peito, por um instante, e com um sorriso profundamente melancólico. Depois, afastando-a docemente, afirmou-lhe:
 - Espera. Agora é preciso que eu chame esse homem.
 - Mas, nem uma palavra, não é verdade, meu pai? - pediu Lieschen. - Nem uma censura?
 - Oh! fica tranquila, minha filha. Onde estaria, se não fosse assim, o mérito do que fiz?
E ao levantar a cabeça para chamar o capitão Richard, viu-o, apoiado no corrimão da escada. Todo o sangue lhe subiu ao rosto:
 - Estava aí, senhor?
 - Sim - disse o jovem - e ouvi tudo. E tal como lhe dizia ainda há pouco a sua filha, devo eu dizer-lhe: Oh! senhor Stiller, como é bom! Como é grande!
 - Ah! então sabe quem eu sou?
 - Aquele retrato, entre as duas janelas.
 - Reconheceu-o, senhor?
O jovem retirou do bolso um medalhão.
 - Graças a esta miniatura que meu irmão me deu como recordação, e que me deixou ao morrer, com a recomendação de procurar o pastor Stiller e a filha, Margarida, a quem ele lega toda a sua fortuna, não como uma reparação, mas em expiação pelo mal que lhes fez.
 - Nesse caso, senhor - exclamou Lieschen, arquejante - o capitão Richard?...
 - Éramos dois irmãos, querida Lieschen, dois irmãos gémeos, ambos militares, ambos capitães, e tão parecidos um com o outro, que só eram distinguidos pelas diferenças do uniforme, e de tal forma que Schlick, conhecido de meu irmão, ainda há pouco, conforme puderam ver, me confundiu com ele... Meu irmão é o culpado, Lieschen, e eu, uma vez que ele morreu, estou encarregado de pedir-lhes perdão por ele.
 - Oh, meu pai! Meu pai! - murmurava Lieschen, deixando-se cair de mãos juntas aos pés do velho.
Oito dias depois, o pastor Stiller recebeu uma carta endereçada de Amsterdão, que continha estas simples palavras:
"Venha o mais depressa possível com Lieschen, para o pé de mim, meu pai! Estou em segurança.
                              LUÍS RICHARD."
XXIV.
Augusto Schlegel
EM 1838 percorria eu as margens do Reno, a fim de recolher lendas e tradições nacionais que fazem do velho rio alemão o mais poético de todos, quando numa paragem por mim efectuada em Bona fui honrado com a apresentação, feita pelo poeta Simrock, ao velho professor Guilherme Augusto Schlegel, fundador do jornal Ateneu, autor do Paralelo entre Fedra de Racine e Fedra de Eurípedes, tradutor de Ramayana e amigo íntimo da senhora Stael, de Goethe e de Schiller.
Era um belo ancião de setenta anos que, nada tendo a fazer durante toda a vida senão criticar, não se esgotara como poderia ter acontecido a um poeta ou romancista obrigado a sem cessar esgotar-se a si próprio, e que se mantivera pleno de espírito, ciência e de vigor. Compreende-se facilmente que uma vez em presença de um dos mais instruídos homens da Alemanha, eu lhe expusesse a finalidade da minha viagem, e lhe pedisse que me proporcionasse os seus conhecimentos sobre lendas e tradições.
 - Que diria - respondeu-me ele - se eu lhe ensinasse uma tradição francesa, em vez de uma lenda alemã?
 - Diria que seria bem-vinda, senhor, tal como tudo o que venha de si.
 - Desejaria fazer um pequeno romance íntimo, uma novela com cerca de cinquenta páginas. Mas chega-se a uma idade, caro senhor Dumas, em que deixamos de ter a certeza de ter o tempo necessário para escrever um livro com cinquenta páginas! O senhor é jovem, o senhor (tinha eu então trinta e cinco anos, a exacta metade da idade de Schlegel) tem tempo à sua frente. E será o senhor a fazer, com a minha meia centena de páginas, um romance em dois ou três volumes.
 - Nada peço de melhor.
 - No entanto, com uma condição.
 - Qual?
 - A de que, como eu conheci os indivíduos, e que os dois principais heróis vivem ainda, nada modificará nos seus caracteres, nem tão-pouco ao desenrolar da acção.
 - Seja.
 - Compromete-se?
 - Comprometo-me.
Mandou vir chá. Peguei no meu bloco de viagem - para ajudar a minha memória com algumas notas, no caso de passar muito tempo entre o relato e a execução - e Schlegel começou a contar-me os acontecimentos que acabam de ler.
Ele conhecera todos os intervenientes dessa história, desde Napoleão ao espião Schlick - o único cujo nome me pediu que fosse alterado.
Escutei o ilustre professor como os seus alunos o escutam. Depois, quando ele acabou o relato, que durou cerca de meia-hora, e vendo que eu sorria, disse-me:
 - Aí tem. Que pensa da minha tradição?
 - Que penso?... Diabo! - respondi. - Não ouso fazer críticas diante do primeiro crítico do mundo.
 - Faça, faça! O seu fabulista - e os fabulistas são críticos disfarçados - escreveu um opúsculo em que um homem vê uma palha no olho do vizinho, e não vê uma trave no seu.
 - Pois bem - disse-lhe eu, encorajado pela autorização - creio que há algo a fazer com toda a parte militar. De cada vez que Napoleão, esse gigante das conquistas, como lhe chamou Hugo, surge no relato, esse mesmo relato engrandece-se e toma proporções de epopeia; todo o episódio de Staps é curioso e interessante; a morte de Paul Richard é dramática. Mas...
Hesitei.
 - Vá, vá, estou mentalizado para ouvi-lo.
 - Mas permita-me dizer-lhe que a partir do momento em que Luís Richard pede hospitalidade ao pastor Stiller, dá-me um tanto a impressão de cairmos no pastoreio.
 - O que significa que?...
 - Que a sua tradição francesa cai num idílio alemão.
 - Bom!
 - Na minha opinião - continuei - é esse o grande mal da literatura alemã: falta-lhe o equilíbrio. Ou se eleva até ao sublime, ou cai abaixo do mau.
 - Quer dizer que saltamos a pés juntos por cima do natural?
 - Exactamente.
 - E o diálogo dos Brigands?
 - É a alta fantasia. Mas nada de simples nem natural.
 - Assim, para o seu gosto francês, as cenas entre
Lieschen e Luís?...
 - São maneirismos poéticos que por vezes descem ao pueril.
 - Cite-me um exemplo.
 - Oh! é só escolher. Por exemplo, o ramo de violetas é infantil. Temos vinte peças de "vaudeville" que se iniciam com a tomada de um ramo, e que terminam com um ramo de flores dado.
 - Então já não se tomam ramos de flores, na França, e tão-pouco se dão? Há um símbolo que, na minha opinião, jamais deveria desaparecer, porque todos os anos se renova: são as flores.
 - Oh! não lhe afirmo, muito ilustre crítico, que as flores estejam fora de moda. Digo-lhe que um ramo pedido me parece muito simples, se pedido por um poeta que está no seu primeiro soneto, ou por um ajudante de notário que está no seu primeiro amor. Mas um oficial, um homem de trinta anos, um soldado que fez as guerras do Império, que atravessou os campos de batalha de Austerlitz, de Iena, de Wagram e de Moscova, que assistiu à terrível retirada, que de uma forma tão dolorosa perdera um irmão bem-amado, que seguiu o imperador até à ilha de Elba, que de lá regressou com ele, que meditou no campo de batalha de Waterloo, o mais filosófico de todos os campos de batalha - crê que um homem assim caia amoroso, ao ver uma jovem desfolhar flores, e que, forçado a deixar essa pequena, lhe peça, ao despedir-se, um ramo de violetas a título de talismã?
Schlegel seguiu a minha crítica com a mais profunda atenção, e quando acabei, perguntou-me:
 - Já alguma vez amou, senhor Dumas?
 - Muito jovem, senhor.
 - Amou da mesma forma que o capitão Luís Richard?
 - Sim, porque era um campónio, em vez de um soldado. Porque tinha quinze anos, e não trinta.
 - Escute-me bem, pois, por meu turno, vou responder-lhe.
 - Escuto-o.
 - Falou baseando-se no ponto de vista filosófico. Por minha banda, vou falar-lhe sob o ponto de vista realista.
 - Um alemão realista, caro senhor Schlegel? Isso será novo.
 - O coração tem as suas quatro estações, como a vida e os anos, não é verdade?
 - Há mesmo homens para os quais só tem uma.
 - A Primavera?
 - Exactamente! Viva eu até aos cem anos, e de uma coisa tenho a certeza: que o meu coração, no seu centésimo ano, será florido como um ramo de noivado.
 - Ora bem! Eis aonde o levei, senhor crítico! Essa primavera do coração, começa, para uns, aos quinze anos, para outros aos vinte, e para outros aos trinta. Rousseau, que começou a escrever aos quarenta, fazia-o com tanta frescura, com mais frescura até, como Vol-taire, que começara aos dezoito!
 - Vejo aonde quer chegar.
 - Não é difícil. Para Luís Richard, que não teve juventude; que até aos trinta anos apenas conheceu esse sangrento e terrível jogo da guerra - para ele, a Primavera é a primeira rapariga que encontra, e da qual se enamora. E a partir do momento em que fica amoroso, e em que esse amor é o seu primeiro, a Primavera inicia-se no seu coração.
"Que importam as emoções guerreiras que sentiu! Que importa os países que visitou! Que importa as batalhas ganhas ou perdidas! Tudo isso é o rumor, a agitação, era a glória, a vergonha, era a dedicação, seria tudo o que quiser - mas não era amor! O amor é a Primavera. E a Primavera faz nascer as flores, que o amor colhe. - Porquê, então, não levou o ramo de violetas até ao rio?
Porque não fez, no seu epílogo, como Scribe em Valerie?
 - Quer saber a verdade?
 - Ah! caro senhor, não peço outra coisa desde o dia em que possuí a primeira pena.
 - Pois bem, faça o epílogo com o ramo de violetas, faça-o o senhor.
Sorri.
 - Senhor Dumas - prosseguiu gravemente Schlegel - conheci, tal como lhe disse, os principais actores da história que acabei de contar-lhe.
 - Luís Richard?
 - Luís Richard. Em ambos os extremos da sua lareira tinha duas molduras. Numa delas, estava a cruz de oficial da Legião de Honra, que havia tirado do cadáver do irmão, e que lhe fora dada pelo imperador... Adivinhe o que estava na outra?
 - Não.
 - Precisamente esse famoso ramo de violetas que Lieschen lhe havia dado na hora da partida.
Curvei a cabeça.
 - Agora - acrescentou ele - lembre-se da promessa que me fez.
 - Fiz-lhe uma promessa?
 - Sim, a de que nada alteraria à minha tradição, ou que, se a publicasse, nada alteraria ao carácter dos diferentes intervenientes.
Mantive religiosamente essa promessa feita ao ilustre escritor. Cabe ao público pronunciar-se sobre o assunto.

 

 

                                                                  Alexandre Dumas

 

 

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