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O CARDEAL DO KREMLIN - P. II / Ton Clancy
O CARDEAL DO KREMLIN - P. II / Ton Clancy

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CARDEAL DO KREMLIN

Parte II

 

Ponto Culminante

¯ Tudo que precisamos é montar a armadilha ¯ disse Vatutin a seu chefe. A voz tinha um tom definitivo, e o rosto permanecia impassível enquanto ele depositava as provas sobre a escrivaninha de Gerasimov.

¯  Excelente trabalho, coronel! ¯ O diretor-geral da KGB permitiu-se um sorriso. Vatutin percebeu que ali havia mais do que somente a sa­tisfação de encerrar um caso sensível e delicado. ¯ Seu próximo passo?

¯  Devido ao status incomum do suspeito, acho que deveríamos ten­tar comprometê-lo no momento da transferência de documentos. Tu­do leva a crer que a CIA sabe que quebramos a corrente de mensageiros entre eles e Filitov. Tomaram uma iniciativa fora do comum ao utili­zar um dos próprios agentes para realizar a transferência. Sem erros. Esse foi um ato desesperado, apesar da precisão com a qual fora exe­cutado. Gostaria de expor os Foley ao mesmo tempo. Eles devem ser um casal muito orgulhoso para nos ter enganado por tanto tempo. Apanhá-los no ato vai destruir esse orgulho e pode ser um grande gol­pe psicológico para a CIA como um todo.

¯  Aprovado ¯ concordou Gerasimov. ¯ O caso é seu para dirigir como quiser, coronel. Use o tempo que precisar. ¯ Os dois homens sabiam que ele queria dizer menos do que uma semana.

¯  Obrigado, camarada diretor. ¯ Vatutin voltou imediatamente a seu escritório, onde instruiu seus oficiais.

Os microfones eram muito sensíveis. Como a maioria das pessoas dormindo, Filitov virava-se e revirava-se na cama, exceto quando sonhava e o gravador de rolo captara o farfalhar dos lençóis e alguns murmúrios quase ininteligíveis. Finalmente um novo som apareceu e o homem com os fones de ouvido gesticulou aos camaradas. Lem­brava o ruído de uma vela se enfunando ao vento e significava que o suspeito atirava as cobertas para fora da cama.

A seguir veio a tosse. O velho tinha problemas nos pulmões, dizia a ficha médica. Ele era particularmente vulnerável a resfriados e infecções respiratórias. Evidentemente estava tendo algum acesso. A se­guir ele assoou o nariz, e os homens da KGB sorriram um para o outro. Parecia o apito de uma locomotiva.

¯  Peguei ele ¯ disse o homem que operava a câmera de televisão. ¯ Está indo em direção ao banheiro.

Os próximos ruídos foram perfeitamente previsíveis. Havia duas câ­meras de televisão cujas lentes poderosas estavam assestadas sobre as duas janelas do apartamento. Dispositivos especiais permitiam que eles enxergassem o interior do apartamento, apesar da pouca claridade matinal.

¯  Sabe, fazer isso a alguém já é o bastante ¯ observou um dos téc­nicos. ¯ Se mostrassem a alguém uma fita de um de nós acordando, morreríamos de vergonha.

¯  Pois a morte desse aí vai ser de outra causa ¯ declarou friamen­te o agente mais graduado. Aquele era um dos problemas com tal tipo de investigação. O agente começava a se identificar com o suspeito e precisava ficar se lembrando de como eram odiosos os traidores. On­de foi que você errou?, perguntou-se o major. Um homem com a sua fi­cha de guerra!-Ele já imaginava como seria tratado aquele caso. Um julgamento público? Poderiam ousar tornar tudo público com um fa­moso herói de guerra? Aquela, disse ele a si mesmo, era uma decisão política.

A porta se abriu e fechou, indicando que o coronel apanhara sua cópia do Estrela Vermelha, entregue diariamente por um mensageiro do Ministério da Defesa. Eles escutaram o gorgolejar da máquina de café e trocaram um olhar ¯ esse traidor filho da puta bebe café toda manhã!

Agora ele estava visível, sentado à pequena mesa da cozinha e lendo seu jornal. Ele era um anotador, eles viram, escrevendo num bloco ou no próprio jornal. Quando o café ficou pronto, ele se levantou para apanhar o leite no pequeno refrigerador. Cheirou-o antes de adicioná-lo ao café para certificar-se de que não estava azedo. Tinha manteiga suficiente para espalhá-la generosamente em seu pão preto, que eles sabiam ser seu desjejum habitual.

 ¯  Ainda come como um soldado ¯ comentou o operador de câmera.

¯  Ele foi um bom soldado uma vez ¯ observou outro agente. ¯ Seu velho tolo, como é que pôde fazer isso?

O desjejum acabou logo depois, e eles observaram Filitov andando até o banheiro, onde se lavou e se barbeou. Voltou ao campo de visão para vestir-se. Na tela de vídeo, viram-no apanhar uma escova para polir as botas. Ele sempre usava botas, eles sabiam, o que era inco­mum para oficiais do ministério. Mas as três estrelas de ouro na blusa de seu uniforme também o eram. Ficou em pé em frente ao espelho do armário, examinando-se. O jornal foi para o interior da valise, e Filitov saiu pela porta. O último ruído que ouviram foi o da chave na fechadura do apartamento. O major veio ao telefone.

¯  O suspeito está saindo. Nada de anormal. Equipe de campana em alerta.

¯  Muito bem ¯ respondeu Vatutin e desligou.

Um dos câmeras ajustou seu instrumento para gravar a saída de Fi­litov do edifício. Ele recebeu a continência do motorista, entrou no carro e desapareceu rua abaixo. Uma manhã completamente rotinei­ra, todos concordavam. Podiam dar-se ao luxo de serem pacientes agora.

As montanhas para os lados do oeste estavam encobertas pelas nu­vens e uma garoa fina caía. O Arqueiro ainda não partira. Havia ora­ções a serem ditas e pessoas a consolar. Ortiz estava sendo tratado por um dos médicos franceses, enquanto seu amigo folheava os papéis do agente da CIA.

Fazia-o sentir-se culpado, mas o Arqueiro disse a si mesmo que sim­plesmente procurava os dados que ele próprio fornecera ao agente da CIA. Ortiz era um anotador compulsivo, e o Arqueiro sabia que, além disso, era também um apreciador de mapas. O mapa que ele desejava encontrava-se num lugar inesperado, preso por um clipe a vários dia­gramas, que copiou a mão livre, rápida e silenciosamente, antes de repor tudo exatamente como estava.

¯  Vocês são tão quadrados ¯ riu Bea Taussig.

¯  Seria uma vergonha estragar essa imagem ¯ replicou Al, um sor­riso escondendo seu desprazer pela convidada.

Nunca entendera por que Candi gostava daquela... o que quer que ela fosse. Gregory não sabia por que havia soado o alarme no fundo de sua cabeça. Não era o fato de que ela não gostasse dele ¯ Al não importava nem um pouco com isso. Sua família e a noiva o ama e todos os que trabalhavam com ele respeitavam-no. Era o sufi­ciente. Se não se encaixava na noção que alguém tinha de como deveria ser um oficial do Exército, foda-se. Mas havia alguma coisa em Bea que...

¯  Muito bem, vamos falar de negócios ¯ disse a convidada, com

uma expressão divertida. ¯ Existem pessoas em Washington me per­guntando quando...

¯  Alguém devia dizer a esses burocratas que não se ligam e desli­gam as coisas assim ¯ reclamou Candi.

¯  Seis semanas, no máximo. ¯ Al sorriu. ¯ Talvez menos.

¯  Quando? ¯ indagou Candi.

¯  Logo. Ainda não tivemos a chance de passar o sistema no simu­lador, mas parece que está tudo certo. Foi idéia de Bob. Já estava na hora, e ele conseguiu dinamizar o pacote de software até melhor do que eu estava tentando. Não vamos ter de usar tanta IA quanto imaginei.

¯  Ah, é? ¯ O uso de IA (inteligência artificial) era supostamente crucial para o desempenho do espelho e discriminação do alvo.

¯  E, e estávamos sobrecarregando o problema, tentando usar ra­zão em vez de instinto. Não precisamos dizer ao computador como pensar em tudo. Podemos reduzir a carga de comandos em vinte por cento colocando opiniões preconcebidas no programa. Descobrimos que é mais rápido e mais fácil do que fazer o computador fazer seus julgamentos a partir de um cardápio.

¯  E quanto às anomalias? ¯ perguntou Taussig.

¯  É exatamente essa a dificuldade. As rotinas IA estavam na ver­dade retardando as coisas mais do que imaginávamos. Estávamos ten­tando fazer as coisas tão flexíveis que tínhamos problemas ao realizar qualquer operação. O desempenho esperado do laser é bom o sufi­ciente para que ele mesmo possa fazer a opção de disparo mais rápido do que o programa IA pode decidir onde mirar... portanto, por que não optar pelo disparo? Se o perfil não encaixar, disparamos do mes­mo jeito.

¯  Seus pontos de vista sobre o laser mudaram ¯ observou Bea.

¯  Bem, não posso falar sobre isso.

Outro sorriso do menino prodígio. Taussig deu um jeito de sor­rir de volta. Eu sei de uma coisa que você não sabe!, é isso? Só o fa­to de olhar para ele já arrepiava sua pele, mas o pior era a maneira como Candi olhava para ele, como se fosse Paul Newman ou algo parecido! Compleição amarelada, até mesmo espinhas, e ela amava aquela coisa. Bea não sabia se isso lhe dava vontade de rir ou de chorar...

¯  Mesmo nós, os idiotas da administração, precisamos planejar com uma certa antecedência ¯ disse Taussig.

¯  Desculpe, Bea. Você conhece as regras de segurança.

¯  Faz a gente imaginar como conseguimos realizar alguma coisa.

¯ Candi sacudiu a cabeça. ¯ Se piorar um pouco, Al e eu não vamos poder falar um com o outro nos intervalos... ¯ Ela sorriu lascivamente para o amante.

Al riu.

¯  Estou com dor de cabeça.

¯  Bea, você acredita nesse cara? ¯ perguntou Candi.

¯  Nunca acreditei ¯ afirmou Taussig, reclinando-se.

¯  Quando você vai sair com o doutor Rabb? Sabe que ele está se atirando para o seu lado há seis meses.

¯  Pois tomara que caia. Meu Deus, que pensamento desagradável você teve!

Seu olhar para Candi escondeu estranhamente bem seus sentimen­tos. Ela também compreendera que as informações sobre o programa que ela enviara para fora do país não tinham mais valor algum. Maldi­to seja o monstrinho por mudar tudo!

¯  É alguma coisa. A pergunta é: o quê? ¯ Tones apertou a chave em seu microfone. ¯ Sonar de Connecticut, temos um contato ru­mando zero-nove-oito. Designar esse contato sierra-quatro.

¯  Tem certeza de que é um contato? ¯ indagou o jovem oficial su­balterno.

¯  Vê isso aqui? ¯ Jones correu o dedo ao longo da tela. O "dispo­sitivo catarata" estava desordenado com o ruído ambiente. ¯ Lembre-se de que estamos procurando dados não aleatórios. Esta linha não é aleatória. ¯ Ele digitou um comando para alterar a tela. O compu­tador começou a processar uma série de discretas faixas de freqüên­cia. No espaço de um minuto o quadro estava claro. Ou pelo menos foi o que pensou o senhor Jones, reparou o jovem operador de sonar. O indicador luminoso na tela tinha uma forma irregular, curvando-se para a frente e estreitando-se para baixo, cobrindo um ângulo de cer­ca de 5 graus. O "técnico civil" olhou fixamente para a tela durante vários segundos, depois falou novamente.

¯ Sonar de Connecticut, classificar alvo sierra-quatro como fraga­ta classe Krivak, rumando zero-nove-seis. Parece que ela está fazendo curvas a cada 15 nós. ¯ Joe voltou-se para o jovem. Lembrava-se do seu primeiro cruzeiro. Aquele rapaz de 19 anos não tinha nem as pri­meiras divisas ainda. ¯ Vê isso? É o registro em alta freqüência das turbinas, é uma pista inconfundível, e se pode ouvi-lo a uma boa dis­tância, geralmente, porque o Krivak não tem bom isolamento acústico. Mancuso entrou no compartimento. O Dallas era um submarino clas­se 688 de primeira geração e não tinha acesso direto da sala de contro­le para o sonar, como os modelos posteriores. Em vez disso tinha-se que vir a vante e descer por um buraco no convés que descia até lá. Provavelmente o recondicionamento corrigiria isso. O capitão acenou sua caneca de café em direção à tela.

¯  Onde está o Krivac?

¯  Bem aqui, rumo ainda constante. Temos bastante água ao redor. Provavelmente já está fora de alcance.

O comandante sorriu. Jones sempre tentava estimar o alcance. O diabo sobre aquilo era que nos dois anos em que Mancuso o tivera a bordo como membro da tripulação ele tinha razão na maioria dos casos. A ré, na sala de controle, a equipe do rastreamento de controle de fogo determinava a posição do alvo, comparando-a com a rota co­nhecida do Dallas, para determinar o alcance e o curso da fragata so­viética.

Não havia muita atividade à superfície. Os outros três contatos de sonar realizados eram todos navios mercantes de uma hélice. Embora o tempo estivesse bem naquele dia, o mar Báltico ¯ um lago tamanho-familia na opinião de Mancuso ¯ raramente era um lugar agradável no inverno. Relatórios do serviço de Informações afirmavam que a maior parte dos navios do lado oposto estava atracada para reparos. Eram boas novas. Melhor ainda, não havia muito gelo. Uma estação realmente rigorosa poderia congelar tudo, e isso poria fim à missão, pen­sou o capitão.

Até o momento somente seu outro visitante, Clark, sabia qual era a missão.

¯  Capitão, temos um positivo em sierra-quatro ¯ anunciou um te­nente da sala de controle.

Jones dobrou um pedacinho de papel e entregou-o a Mancuso.

¯  Estou esperando.

¯  Alcance trinta e seis mil, curso aproximado dois-nove-zero. Mancuso dobrou a nota e riu.

¯  Jones, você ainda parece uma maldita bruxa! ¯ Devolveu o pa­pel, depois foi em direção a ré, para alterar o curso do submarino, a fim de evitar o Krivak.

O rapaz do sonar ao lado de Jones agarrou a nota e a leu em voz alta.

¯  Como você sabia? Não deveria ser possível fazer isso.

¯  Prática, meu rapaz, prática ¯ respondeu Jones no seu melhor sotaque caipira. Ele notou que o curso do submarino mudara. Não parecia o Mancuso do qual se recordava.

Nos velhos dias, o comandante se aproximaria para tirar fotografias através do periscópio, disparar algumas soluções com torpedos e ge­ralmente tratar o navio soviético como se fosse um alvo real numa guer­ra real. Daquela vez estavam saindo de alcance da fragata russa, afastando-se. Jones não achava que Mancuso tivesse mudado tanto e começou a perguntar-se sobre que diabos seria aquela missão.

Quase não havia visto o sr. Clark. Ele passava a maior parte do tempo a ré na sala das máquinas, onde ficava o centro de exercí­cios ¯ uma roda cilíndrica espremida entre duas engrenagens. A tripulação já começava a comentar que ele não era de falar muito. Apenas sorria, concordava e prosseguia em seu caminho. Um dos homens reparara na tatuagem do antebraço de Clark e andava co­mentando sobre o significado da foca vermelha, especificamente que simbolizava os comandos de elite SEAL. O Dallas nunca tivera um daqueles a bordo, embora outros barcos sim, e as histórias, contadas em voz baixa à exceção das interrupções do tipo: "Não brinca!", haviam circulado através da força de submarinos e em nenhum outro lugar. Se existia uma coisa que os tripulantes de submarinos sabiam fazer era guardar segredo.

Jones ficou em pé e andou em direção a ré. Resolveu que já tinha aprendido o suficiente para um dia, e seu status como "técnico civil" permitia que vagasse à vontade. Notou que o Dallas navegava tran­qüilamente em direção leste, a 9 nós. Uma olhada na carta infor­mou-o da posição em que estavam, e a maneira como o navegador ba­tia o lápis lhe disse quão longe iriam. Jones começou a pensar seria­mente enquanto descia para apanhar uma Coca-Cola. Ele voltara para uma viagem bem tensa, afinal de contas.

¯  Sim, senhor presidente ¯ respondeu o juiz Moore ao telefone com um olhar preocupado. Seria hora da decisão?

¯  Aquele assunto sobre o qual falamos outro dia...

¯  Sim, senhor. ¯ Moore olhou para o aparelho.

Além da parte que ele segurava do aparelho, o sistema do telefone de "segurança" era um cubo de 90 centímetros, habilmente oculto em sua escrivaninha. As palavras eram quebradas em bits digitais, mis­turadas além do ponto de reconhecimento e enviadas para outra caixa onde eram novamente reconstituídas. Um interessante efeito colateral do sistema era que produzia conversas muito claras, uma vez que os ruídos e interferências eram eliminados no processo.

¯  Pode prosseguir. Não podemos... bem, decidi ontem à noite que não podemos abandoná-lo. ¯ Esse devia ter sido seu primeiro telefo­nema do dia, e o conteúdo emocional também foi transmitido.

Moore imaginou se ele teria perdido o sono pela vida do agente sem rosto. Provavelmente tinha. O presidente era aquele tipo de homem. E também era o tipo, como Moore sabia, para apoiar totalmente uma decisão tomada. Pelt tentaria mudá-la durante o dia inteiro, mas o pre­sidente a externava às 8 da manhã, e teria que ater-se a ela.

¯  Obrigado, senhor presidente. Vou colocar as coisas em andamen­to. ¯ Moore tinha Bob Ritter em seu escritório dois minutos depois. ¯ A retirada do Cardeal recebeu um "sim".

¯  Me faz sentir contente por ter votado nele ¯ disse Ritter, esfre­gando as mãos. ¯ Daqui a dez dias nós o teremos numa bela casa de segurança. Meu Deus, o relatório vai durar anos ¯ Depois veio uma pausa mais sóbria. ¯ É uma pena perder os serviços dele. Além do mais, Mary Pat recrutou um par de agentes "quentes" para nós. EÍa passou os filmes ontem à noite. Não tenho os detalhes, mas supo­nho que tenha sido uma entrega "cabeluda".

¯  Ela sempre foi um pouco...

¯  Mais do que um pouco, Arthur, mas todos os agentes de campo têm um pouco de caubói dentro deles. ¯ Os dois texanos trocaram um olhar. ¯ Mesmo os que vêm de Nova York.

¯  Que belo grupo. Com esses genes, a gente fica imaginando co­mo serão os filhos deles ¯ observou Moore com um risinho. ¯ Bob, conseguiu seu desejo. Agora vamos depressa.

¯  Sim, senhor. ¯ Ritter saiu para enviar sua mensagem, depois informou o almirante Greer.

O telex foi enviado via satélite e chegou a Moscou quinze minutos depois: ORDENS DE VIAGEM APROVADAS. GUARDEM OS RE­CIBOS PARA CONFERÊNCIA DE ROTINA.

Ed Foley apanhou a mensagem decodificada em seu escritório. En­tão, o tal burocrata que tinha os pês frios sobre a gente achou suas meias, afinal. Graças a Deus!

Só falta mais uma transferência! Vamos passar a mensagem ao mesmo tempo, e Misha apanha um vôo para Leningrado, depois seguimos o pla­no. Uma boa coisa sobre o Cardeal era que ele praticava sua rotina de fuga pelo menos uma vez por ano. Sua velha unidade militar estava agora baseada no Distrito de Leningrado, e os russos entendiam esse tipo de sentimento. Misha também providenciara ao longo dos anos para que seu regimento fosse sempre o primeiro a receber novos equi­pamentos e treinos em táticas novas. Depois de sua morte, seriam de­signados os Guardas Filitov ¯ ou ao menos era o que o Exército soviético planejava fazer. Era pena, pensou Foley, que tivessem de alte­rar aquele plano. Por outro lado, talvez a CIA construísse um tipo de memorial para o homem...

Mas havia ainda aquela transferência a fazer, e não seria nada fácil. Um passo de cada vez, disse a si mesmo. Primeiro precisamos avisá-lo. Meia hora depois, um portador não identificado da embaixada dei­xava o edifício. A uma certa hora ele estaria parado num certo lugar. O "sinal" foi apanhado por alguém sem probabilidade de estar sendo seguido pelo "Dois". Essa pessoa fez mais alguma coisa. Não sabia o motivo, apenas onde e como precisava fazer a marca. Achava aquilo muito frustrante. O trabalho do espião devia ser excitante, não devia?

¯ Lá está nosso amigo. ¯ Vatutin ia no interior de um carro, que­rendo verificar pessoalmente se as coisas estavam caminhando direito.

Filitov entrou em seu veículo e o motorista partiu. O carro de Vatu­tin o seguiu por meio quilômetro, depois virou quando o segundo carro assumiu, correndo por uma paralela para acompanhar o suspeito.

Monitorava a perseguição pelo rádio. As transmissões eram claras e com aparência de comerciais, enquanto os seis carros circulavam den­tro e fora da perseguição, geralmente mantendo um à frente do veículo-alvo e outro atrás. O carro de Filitov parou no empório que abastecia os oficiais superiores do Ministério da Defesa. Vatutin possuía um ho­mem no interior ¯ era sabido que Filitov parava lá duas ou três vezes por semana ¯ para ver o que ele comprava e com quem falava.

Podia dizer que a operação corria perfeitamente, o que era espera­do, já que explicara a todos que o diretor tinha um interesse pessoal no caso. O motorista de Vatutin andava à frente da presa, deixando o coronel do outro lado da rua do prédio de Filitov. Vatutin entrou e subiu para o apartamento no qual estavam instalados.

¯  Boa cronometragem ¯ disse o agente encarregado enquanto Va­tutin passava pela porta.

O homem do "Dois" olhava discretamente pela janela e viu o carro de Filitov parar. O carro perseguidor passou sem parar enquanto o coronel entrava em seu prédio.

¯  Suspeito acaba de entrar no prédio ¯ anunciou um especialista em comunicações.

No interior, uma mulher com um saco fino e cheio de maçãs entra no elevador com Filitov. No andar de Filitov, duas pessoas que pareciam adolescentes passariam pelo elevador quando ele saísse, continuando pelo corredor com sussurros de amor eterno exagerada­mente altos. Os microfones de vigilância captaram o fim daquilo quan­do Filitov abriu a porta. ¯-Peguei a imagem dele ¯ disse o operador de câmera.

¯  Vamos ficar afastados da janela ¯ disse Vatutin desnecessa­riamente.

O homem com os binóculos estava bem afastado e, uma vez que as luzes do apartamento estavam apagadas ¯ as lâmpadas haviam sido removidas dos soquetes ¯, ninguém poderia saber que as salas encontravam-se ocupadas.

Uma coisa que eles apreciavam sobre o homem era sua aversão a baixar as persianas. Seguiram-no até o quarto, onde o observaram mu­dar de roupa para algo mais confortável e chinelos. Voltou à cozinha e preparou uma refeição simples. Observaram-no rasgar a parte supe­rior do invólucro na boca de uma garrafa de meio litro de vodca. O homem estava sentado, olhando pela janela.

¯  Um velho solitário ¯ observou um agente. ¯ Será que foi isso que o transformou?

¯  De uma maneira ou de outra, vamos descobrir.

Por que o Estado pode trair a nós?, perguntou Misha ao cabo Roma­nov, duas horas depois.

Porque somos soldados, eu acho. Misha notou que o cabo estava evi­tando a questão e o assunto. Será que sabia o que seu capitão tentava perguntar?

Mas se nós trairmos o Estado...

Então morremos, camarada capitão. É simples assim. Recebemos o ódio e a desaprovação dos camponeses e trabalhadores, e morremos. Romanov encarou os olhos de seu oficial através do tempo. O cabo tinha agora sua própria pergunta. Faltava-lhe a vontade de externá-la, mas os olhos pareciam dizer: O que fez, meu capitão?

Do outro lado da rua, o homem com o equipamento de gravação escutou soluços, e imaginou o que os estaria causando.

¯  O que está fazendo, querida? ¯ perguntou Ed Foley, e os mi­crofones ouviram.

¯  Começando a fazer listas para quando partirmos. São tantas coi­sas para lembrar, que é melhor começar agora.

Foley debruçou-se sobre seu ombro. Ela tinha um bloco e um lápis, mas estava escrevendo numa folha plástica com uma caneta de mar­car. Era o tipo de objeto que se pendurava nas geladeiras, e podia ser apagado com uma passada de pano úmido.

 EU O FAREI, ela havia escrito. TENHO A DESCULPA PERFEI­TA. Mary Pat sorriu e mostrou uma fotografia do time de hóquei de Eddie. Cada jogador a havia assinado, e, rabiscado no alto em russo, Eddie escrevera, instruído pela mãe: "Para o homem que nos trouxe sorte. Obrigado, Eddie Foley".

Seu marido franziu as sobrancelhas. Era típico da mulher usar a aproximação direta, e ele sabia que ela costumava utilizar sua cober­tura com habilidade consumada. Mas... ele sacudiu a cabeça. Mas o quê? O único homem da corrente do Cardeal que o poderia identifi­car nunca vira seu rosto. Faltava a Ed o panache da esposa, porém ele era mais circunspecto. Sentia que era melhor do que ela em contravi-gilância. Ele sabia da paixão de Mary Pat pelo trabalho e sua habili­dade de ação, mas ¯ que diabos, ela era muito ousada às vezes. Ótimo... por que não diz isso a ela?, perguntou a si mesmo.

Ele sabia o que iria acontecer ¯ ela iria alegar o lado prático da ação. Não havia tempo para estabelecer mais uma série de "elos". Ambos sabiam que a cobertura dela era sólida, que ela nem tinha chegado perto de ser suspeita ainda. Mas... que merda, esse negócio é uma série contínua de MAS! OK, MAS CUBRA SUA LINDA BUNDINHA!, escreveu ele no plástico. Os olhos dela brilhavam quando ela apagou as letras. Depois escreveu a própria mensagem: VAMOS DEIXAR OS MICROFONES COM TESÃO! Ed quase sufocou tentando segurar o riso. Sempre antes de uma mis­são, pensou ele. Não que ele se importasse. Mas achava aquilo um pouco estranho.

Dez minutos depois, numa sala do porão do edifício, um par de téc­nicos em escuta ouvia atentamente os ruídos produzidos no quarto dos Foley.

Mary Pat Foley acordou em seu horário costumeiro, às 6hl5. Ainda estava escuro lá fora, e ela imaginou quanto do caráter do avô formara-se pelo frio e pela escuridão dos invernos russos... e quanto do caráter dela. Como a maior parte dos americanos designados para Moscou, ela detestava a idéia de ter dispositivos de escuta pelas paredes. Oca­sionalmente sentia um prazer pervertido com eles, como na noite an­terior, mas depois vinha o pensamento de que os soviéticos também os haviam colocado no banheiro. Parecia uma coisa que eles fariam, pensou ela olhando-se no espelho. A primeira tarefa do dia era tirar a temperatura. Ambos queriam mais uma criança e estavam tentando há alguns meses ¯ era muito melhor do que assistir à televisão russa. Profissionalmente, claro, a gravidez era uma cobertura e tanto. De­pois de três minutos, ela anotou a temperatura num cartão que con­servava no armarinho do banheiro. Provavelmente ainda não, pensou ela. Talvez em mais alguns dias. Jogou fora os restos do Teste Prematu­ro de Gravidez na lata de lixo, de qualquer modo.

A seguir, havia as crianças para acordar. Ela começou a preparar o café e sacudiu a todos. Morar num apartamento com apenas um ba­nheiro exigia um horário rígido de todos. Vieram os habituais grunhidos de Ed, e os costumeiros protestos e resmungos das crianças.

Meu Deus, como vai ser bom voltar para casa, disse a si mesma. Por mais que gostasse do desafio de trabalhar na boca do dragão, viver ali não era exatamente uma diversão para os garotos. Eddie adorava o hóquei, mas estava perdendo a infância naquele lugar frio e árido. Bem, aquilo mudaria logo. Embarcariam todos num avião da Pan Am e voariam para casa, deixando Moscou para trás ¯ se não para sem­pre, pelo menos por cinco anos. A vida no litoral da Virgínia. Velejar na baía de Chesapeake. Invernos suaves! Aqui é preciso embrulhar as crian­ças como Nanook, da porra do norte, pensou ela. Estou sempre lutando contra os resfriados.

Colocou o desjejum na mesa ao mesmo tempo que Ed saía do ba­nheiro, permitindo que ela se lavasse e se vestisse. A rotina era de que ele tomasse o desjejum e depois se vestisse, enquanto a esposa apron­tava os garotos.

No banheiro ela ouviu a televisão ligada e riu para o espelho. Eddie adorava o programa de exercícios matinais ¯ a mulher que aparecia nele parecia um estivador, e ele a chamava de Mulher Maltrapilhaaa! Seu filho ansiava pelas manhãs com os Transformers ¯ ' 'Mais do que os olhos enxergam!", ele ainda lembrava da música. Eddie sentiria falta de seus amigos russos, mas o garoto era americano, e nada mu­daria aquilo. Por volta das 7hl5 todos estavam vestidos e prontos para sair. Mary Pat colocou um envelope embrulhado sob o braço.

¯  Dia de limpeza, não é?

¯  Estarei de volta a tempo de abrir a porta ¯ assegurou Mary Pat.

¯  Certo. ¯ Ed abriu a porta e liderou a procissão até o elevador.

Como de hábito, sua família era a primeira a sair pela manhã. Ed­die correu na frente e apertou o botão para chamar o elevador, que chegou ao mesmo tempo que o resto da família. Eddie saltou para o interior, apreciando a elasticidade dos cabos dos elevadores soviéticos.

Para sua mãe, sempre parecia que o raio da geringonça iria despencar até o porão, mas o filho achava divertido quando o carro descia al­guns centímetros. Três minutos mais tarde entraram no automóvel. Ed tomou o volante nessa manhã. Na saída, os meninos acenaram pa­ra o miliciano, que era na verdade da KGB, e acenou de volta com um sorriso. Tão logo o carro atingiu as ruas, ele levantou o fone em sua guarita.

Ed manteve o olho no retrovisor, e sua mulher já ajustara o espelho de fora de forma que ela também pudesse observar a ré. Os garotos envolveram-se em alguma discussão no banco traseiro, que os pais ig­noraram.

¯  Parece um belo dia ¯ disse ele calmamente. Ninguém está nos seguindo.

¯  Hum-hum. ¯ Concordo. Precisavam ser cuidadosos com o que diziam na frente das crianças, claro. Eddie poderia repetir qualquer coisa que dissessem tão facilmente quanto lembrava da música de aber­tura do desenho animado dos Transformers. Sempre havia também a possibilidade de que existissem microfones no carro.

Ed dirigiu primeiro até a escola, permitindo que a esposa acompa­nhasse os filhos até o interior. Eddie e Katie pareciam ursinhos de pe­lúcia em suas roupas de frio. Sua esposa parecia infeliz quando entrou no carro.

¯  Nikki Wagner está doente. Eles pediram para que eu assumisse sua aula à tarde. ¯ O marido grunhiu. Na verdade era perfeito. Ele engrenou o Volkswagen e retornou à Avenida Leninsky. Hora do jogo!

Agora as verificações nos espelhos eram para valer.

Vatutin esperava que eles nunca tivessem pensado naquilo antes. As ruas de Moscou estavam sempre cheias de caminhões de transpor­te de materiais, andando de uma construção para outra. As cabines altas ofereciam excelente visibilidade e o movimento dos veículos parecidos chamava menos atenção do que os dos sedas sem placas. Tinha nove caminhões a seu serviço hoje, e os agentes que os di­rigiam comunicavam-se através de radiotransmissores militares co­dificados.

O próprio coronel Vatutin estava no apartamento seguinte ao de Fi­litov. A família que morava lá mudara-se dois dias antes para o Hotel Moscou. Ele observara as fitas de vídeo sobre o suspeito, bebendo. até ficar insensível, e aproveitara a oportunidade para deixar entrar mais três agentes armados do "Dois". Ambos tinham microfones transistorizados introduzidos na parede de comunicação entre os apartamentos e ouviam atentamente o coronel cambaleando em sua rotina matinal. Alguma coisa lhe dizia que aquele era o dia.

Foi a bebida, disse a si mesmo enquanto saboreava seu chá. Aquilo provocou um sorriso. Talvez fosse necessário um bom bebedor para entender outro. Tinha certeza de que Filitov estivera se preparando para alguma coisa, e lembrou-se de que, quando vira o coronel junto ao atendente traidor nos banhos, ele viera da sala de vapor com ressa­ca... exatamente como eu. As coisas se encaixavam, resolveu ele. Fili­tov era um herói que ficara mau ¯ mas ainda um herói. Não poderia ter sido fácil para ele cometer traição, e provavelmente ele precisava do álcool para dormir com sua consciência atormentada. Agradava a Vatutin que as pessoas sentissem assim, que a traição fosse uma coisa difícil de fazer.

¯  Eles estão se dirigindo para cá ¯ anunciou um homem de co­municações pelo rádio.

¯  Bem aqui ¯ disse Vatutin a seus subordinados. ¯ Vai acontecer a 100 metros de onde estamos.

Mary Pat repassou suas tarefas. Quando entregasse a fotografia em­brulhada, receberia o filme, que enfiaria no interior da luva. Depois, o sinal. Esfregaria as costas da mão enluvada pela testa, como se esti­vesse limpando o suor, depois cocaria a sobrancelha. Esse era o sinal de perigo e fuga. Esperava que ele prestasse atenção. Ela mesma nun­ca tinha feito o gesto; Ed certa vez oferecera uma fuga, apenas para ser rejeitada. Isso ela entendera melhor do que o marido ¯ afinal de contas, seu trabalho na CIA era mais baseado na paixão do que na razão ¯, mas agora bastava. O homem mandava dados para o Oci­dente desde quando ela aprendia a brincar com bonecas.

Aquele era o prédio. Ed dirigiu-se para a curva, esbarrando nas tar­tarugas enquanto sua mão agarrava o pacote. Ao segurar a maçaneta, seu marido deu-lhe tapinhas na perna. Boa sorte, menina.

¯  Foleyeva acabou de sair do carro e se dirige à entrada lateral ¯ grasnou o alto-falante do receptor de rádio.

Vatutin sorriu à "russificação" do nome estrangeiro. Considerou se devia ou não sacar a pistola automática de serviço, mas decidiu-se contra. Melhor ter as mãos livres, pois uma arma pode disparar aci­dentalmente. Aquela não era a hora para acidentes.

¯  Alguma idéia? ¯ indagou ele.

¯  Se fosse eu, tentaria uma entrega sub-reptícia ¯ arriscou um dos homens.

 Vatutin concordou. Estava preocupado por não ter sido possível a instalação de câmeras de vigilância no corredor em si, devido a fatores técnicos. Aquele era o problema com os casos realmente delicados. Os espertos eram os desconfiados. Não se podia correr o risco de alertá-los, e ele tinha certeza de que os americanos já estavam em alerta. Alerta o suficiente, ele pensou, para assassinar um de seus próprios agentes no pátio da estrada de ferro.

Felizmente, a maioria dos apartamentos de Moscou possuía olhos mágicos instalados na porta. Vatutin ficou grato pelo aumento dos as­saltos a residências, pois seus técnicos conseguiram trocar as lentes originais por outras que permitiam a visão da maior parte do corre­dor. Ele mesmo assumiu a posição de observador.

Devíamos ter instalado microfones nas escadarias, disse a si mesmo. Faça uma nota sobre isso para a próxima vez. Nem todos os espiões usam elevadores.

Mary Pat não era tão atleta quanto o marido. Ela fez uma pausa no patamar, olhando para cima e para baixo da escadaria, atenta a todos os sons enquanto as batidas de seu coração diminuíam bastante. Veri­ficou o relógio digital. Era hora.

Ela abriu a porta de incêndio e andou diretamente pelo centro do corredor.

Muito bem, Misha. Espero que você tenha se lembrado de acertar o re­lógio ontem a noite.

A última vez, coronel. Pelo amor de Deus, aceite o sinal de fuga desta vez. Talvez eles o interroguem lá na base de treinamento da CIA, e meu filho possa conhecer um verdadeiro herói russo...

Puxa, gostaria que meu avô me visse agora...

Ela nunca estivera ali antes, nunca fizera uma entrega naquele pré­dio. Mas o conhecia de cor, tendo passado vinte minutos estudando o diagrama. A porta do Cardeal era aquela!

Era hora! Seu coração parou quando viu a porta se abrir, a 10 me­tros de distância.

Que profissional! Mas o que se seguiu foi tão frio quanto uma adaga de gelo.

Vatutin arregalou os olhos horrorizado com o ruído. A tranca na porta do apartamento fora instalada com mão-de-obra tipicamente russa, aproximadamente meio milímetro fora de lugar. Enquanto ele a desli­zava, preparando-se para abrir a porta, produzira um ruído metálico e audível.

Mary Pat Foley mal alterou o passo. Seu treinamento assumiu o con­trole do corpo como um programa de computador. Um orifício de ob­servação numa porta passara de escuro para claro.

Havia alguém ali.

Esse alguém acabara de mover-se.

Esse alguém acabara de mexer na fechadura da porta.

Ela deu meio passo para a direita e esfregou as costas da mão enlu­vada na testa. Não estava fingindo limpar o suor.

Misha viu o sinal e estacou, com um olhar de curiosidade, que co­meçou a mudar para de divertimento até que ouviu a porta se abrir. Soube no mesmo instante que o homem que saía não era seu vizinho.

¯  Vocês estão presos! ¯ gritou Vatutin, e então percebeu que a mu­lher americana e o russo estavam parados a 1 metro um do outro, e ambos tinham as mãos ao lado do corpo. Ainda bem que os outros agentes do "Dois" atrás dele não podiam ver a expressão em seu rosto.

¯  Desculpem-me? ¯ a mulher disse em ótimo russo.

¯  O quê? ¯ rugiu Filitov com ultraje só possível a um soldado pro­fissional.

¯  Você ¯ ele apontou para a sra. Foley ¯, contra a parede.

¯  Sou cidadã americana, e você não pode...

¯  Você é uma espiã americana ¯ disse um capitão, empurrando a mulher contra a parede.

¯  O quê? ¯ A voz dela continha pânico e alarme, nem um pouco de profissionalismo ali, pensou Vatutin, mas então sua mente espantou-se com a observação. ¯ Do que está falando? O que significa isso? Quem é você? ¯ A seguir ela começou a gritar: ¯ Polícia... Alguém chame a polícia. Estou sendo atacada! Alguém me ajude, por favor!

Vatutin a ignorou. Já tinha agarrado a mão de Filitov, e, enquanto outro agente empurrava o coronel contra a parede, ele apanhou o ma­gazine de filme. Por um breve instante que pareceu estender-se por horas, ele foi atingido pelo pensamento horrível de que estragara tu­do, e ela realmente não pertencia à CIA. Com o filme na mão, engoliu em seco e fixou o interior dos olhos de Filitov.

¯  Está preso por traição, camarada coronel. ¯ Sua voz sibilou ao final da sentença. ¯ Levem-no daqui.

Voltou-se para encarar a mulher. Os olhos dela estavam arregalados de medo e ultraje. Quatro pessoas agora estavam com a cabeça para fora de suas portas, olhando o saguão.

¯  Sou o coronel Vatutin, da Comissão para a Segurança do Esta­do. Acabamos de efetuar uma prisão. Fechem as portas e vão cuidar de suas vidas. ¯ Reparou que o cumprimento de sua ordem demorou menos de cinco segundos. A Rússia ainda era a Rússia.

¯  Bom dia, senhora Foley ¯ disse ele a seguir. Notou o esforço dela para recuperar o autocontrole.

¯  Quem é você... e o que está acontecendo?

¯  A União Soviética não vê com bons olhos os convidados que rou­bam segredos de Estado. Certamente lhe disseram isso em Washing­ton... desculpe, em Langley.

A voz dela tremeu quando falou.

¯  Meu marido é um conceituado membro da missão diplomática dos Estados Unidos em seu país. Desejo ser imediatamente colocada em contato com minha embaixada. Não tenho idéia do que está res­mungando, mas sei que, se você fizer a mulher grávida de um diplo­mata perder seu bebê, vai ter um incidente diplomático nas mãos grande o suficiente para chegar ao noticiário da televisão. Eu nem fa­lei com aquele homem. Eu não o toquei, e ele não me tocou... e você sabe muito bem disso, moço. O que me disseram lá em Washington foi que vocês, palhaços, adoram embaraçar os americanos com esses seus joguinhos bobos de espiões.

Vatutin recebeu impassível todo o discurso, embora a palavra "grá­vida" tivesse chamado sua atenção. Ele soubera, pelos relatórios da arrumadeira que limpava o apartamento deles duas vezes por semana, que Foleyeva estava fazendo os testes. E se... haveria um incidente mui­to maior do que ele desejava. Novamente o dragão da polícia levantou a cabeça. O chefe Gerasimov teria que decidir sobre isso.

¯  Meu marido está esperando por mim.

¯  Vamos avisá-lo de que está sendo detida. Será solicitada a res­ponder a algumas perguntas. Não será maltratada.

Mary Pat já sabia disso. Seu horror ao que acabara de acontecer es­tava ofuscado pelo orgulho. Ela representara perfeitamente e sabia disso. Como parte da comunidade diplomática, ela estava fundamentalmen­te salva. Eles poderiam retê-la por um dia, ou até dois, mas qualquer tratamento rude resultaria em ter meia dúzia de russos em Washing­ton embarcados de volta. Além do mais, não estava grávida de verdade.

Tudo aquilo não importava. Ela não verteu nenhuma lágrima, não demonstrou nenhuma emoção além da esperada, só o que fora ins­truída e treinada para demonstrar. O que importava era que seu mais importante agente fora apanhado, e com ele informações da maior im­portância. Ela queria chorar, precisava chorar, mas não ia dar esse gosto aos putos. O choro viria quando estivesse no avião de volta para casa.

 

Avaliação de Danos

¯ Diz muito sobre o homem o fato de que a primeira coisa que fez foi ir até a embaixada e passar o telex ¯ disse Ritter afinal. ¯ O em­baixador entregou sua nota de protesto ao ministro das Relações Exte­riores antes que eles tornassem pública a prisão por "conduta incompatível com o estatuto diplomático".

¯  Belo consolo ¯ observou sombriamente Greer.

¯  Devemos tê-la de volta em um dia ou menos ¯ continuou Rit­ter. ¯ Eles já foram declarados personae non gratae, e vão-se embora no próximo vôo internacional da Pan Am.

Ryan remexeu-se em sua cadeira. E quanto ao Cardeal?, perguntou-se. Meu Deus, primeiro eles me contam sobre esse superagente e uma se­mana depois... Certamente eles não têm lá uma Corte Suprema que difi­culte a execução das pessoas.

¯  Alguma chance de podermos trocá-lo? ¯ indagou Jack.

¯  Está brincando, rapaz. ¯ Ritter levantou e andou até a janela. Às 3 da madrugada o estacionamento da CIA estava quase vazio, ape­nas alguns carros esparsos entre as pilhas de neve arada. ¯ Não te­mos nem mesmo alguém suficientemente importante para barganhar uma redução de sentença. Não há nenhuma possibilidade de que o deixem sair, mesmo por um chefe de setor, que aliás não possuímos.

¯  Então ele está morto, e os dados perdidos com ele.

¯  Isso é o que o homem está dizendo ¯ concordou o juiz Moore.

¯  Ajuda dos aliados? ¯ perguntou Ryan. ¯ Talvez Sir Basil tenha alguma coisa que possa nos ajudar.

¯ Ryan, não há nada que possamos fazer para ajudar o homem. ¯ Ritter voltou-se para descarregar sua raiva no primeiro alvo opor­tuno. ¯ Ele está morto... claro, ainda respira, mas está morto do mes­mo jeito. Um mês, dois ou três a partir de agora, a notícia será dada, nós a confirmaremos através de outras fontes, e então vamos abrir uma garrafa e beber um pouco à sua memória.

¯  E quanto ao Dallas? ¯ quis saber Greer.

¯  O quê? ¯ Ryan voltou-se.

¯  Você não precisa saber sobre isso ¯ declarou Ritter, contente em ter um alvo. ¯ Devolva-o à Marinha.

¯  Certo ¯ acedeu Greer. ¯ E provável que isso tenha sérias con­seqüências. ¯ Aquilo atraiu um olhar sombrio do juiz Moore. Agora ele precisava ir até o presidente.

¯  Que acha, Ryan?

¯  Sobre as conversações de controle de armas? ¯ Jack encolheu os ombros. ¯ Depende de como vão tratar o assunto. Eles têm um grande leque de opções, e qualquer um que lhe diga que pode prever qual eles vão escolher é um mentiroso.

¯  Nada como a opinião de um especialista ¯ observou Ritter.

¯  Sir Basil acha que Gerasimov quer fazer uma jogada em direção ao topo. Ele poderia usar isso para seus fins ¯ disse Jack friamente ¯, mas acho que Narmonov tem muito impacto político agora que possui o quarto homem no Politburo. Ele pode, portanto, escolher entre prosseguir com o acordo e mostrar ao Partido como pode ser forte seu esforço pela paz ou, se sentir mais vulnerabilidade política do que pres­sinto, pode consolidar seu controle do Partido tachando-nos de incorrigíveis inimigos do Socialismo. Se existe uma avaliação de probabilidades nessa escolha, que não seja adivinhação, ainda não descobri.

¯  Pois trabalhe nisso ¯ ordenou o juiz Moore. ¯ O presidente quer algo sólido o suficiente para agarrar, antes que Ernie Allen comece a falar em colocar a Iniciativa de Defesa Estratégica na mesa de nego­ciações outra vez.

¯  Sim, senhor. ¯ Jack ficou em pé. ¯ Juiz, podemos esperar que os soviéticos tornem pública a prisão do Cardeal?

¯  Essa é uma boa pergunta ¯ disse Ritter. Ryan dirigiu-se para a porta e parou outra vez.

¯  Espere um pouco.

¯  O que é? ¯ perguntou Ritter.

¯  Você disse que o embaixador entregou seu protesto para o mi­nistro das Relações Exteriores, certo?

¯  Exato, Foley trabalhou bem rápido para batê-los no impacto inicial.

¯  Com todo o respeito devido ao senhor Foley, ninguém é tão rá­pido assim ¯ disse Ryan. ¯ Eles deviam ter a nota oficial já impressa antes de realizarem a prisão.

¯  E daí? ¯ indagou o almirante Greer.

Jack andou de volta até os outros três homens.

¯  Daí que o ministro das Relações Exteriores é um dos homens de Narmonov, não é? Como Yazov no Ministério da Defesa. Eles não sabiam ¯ afirmou Ryan. ¯ Ficaram tão surpresos quanto nós.

¯  Não acredito nisso ¯ resmungou Ritter. ¯ Não é assim que fa­zem as coisas.

¯  Isso nós é que presumimos, senhor. ¯ Jack manteve sua posi­ção. ¯ Que evidências apoiam tal afirmativa?

¯  Nenhuma que saibamos no momento. ¯ Greer sorriu.

¯  Que porra, James, eu sei que ele...

¯  Continue, doutor Ryan ¯ disse o juiz Moore.

¯  Se aqueles dois ministros não soubessem o que acontecia por bai­xo do pano, isso colocaria uma visão diferente no assunto, não? ¯ Jack sentou-se no encosto da cadeira. ¯ Muito bem, posso entender que tenham deixado o ministro da Defesa de fora... o Cardeal era seu prin­cipal auxiliar... Mas por que deixar de fora o ministro das Relações Exteriores? Nesse tipo de coisa a gente quer se mover depressa, pegar os jornalistas com uma história de impacto... Com toda a certeza a gente não quer que o outro lado fique sabendo antes.

¯  Bob? ¯ chamou o diretor-geral dos Serviços de Informações.

O vice-diretor de Operações nunca apreciara muito Ryan ¯ ele acha­va que o homem tinha vindo muito longe depressa demais ¯, mas, por tudo isso, Bob Ritter era um sujeito honesto. Ele sentou-se e sa­boreou seu café por um instante.

¯  O garoto pode ter razão. Vamos ter que confirmar alguns deta­lhes, mas se eles verificarem... então a operação é tão política quanto um simples caso do "Dois".

¯  James?

O vice-diretor de Informações concordou com um gesto de cabeça.

¯  Assustador.

¯  Talvez não estejamos falando apenas sobre perder uma boa fonte ¯ continuou Ryan, especulando à medida que falava. ¯ A KGB pode estar usando este caso para fins políticos. O que não entendo é a base de poder que possam possuir. A facção de Alexandrov tem três mem­bros sólidos. Narmonov tem quatro, contando esse sujeito novo, Vaneyev...

¯  Merda! ¯ disse Ritter. ¯ Presumimos que, quando sua filha foi apanhada e solta em seguida, eles não a tinham quebrado... Que dia­bos, eles disseram que ela parecia bem... ou então que seu pai era importante demais para...

¯  Chantagem. ¯ Agora era a vez do juiz Moore. ¯ Tinha razão, Bob. E Narmonov não sabe de nada. Precisamos concedê-lo a Gerasimov, o miserável fez belos movimentos... Se tudo isso é verdade, Nar­monov está em inferioridade e não sabe disso. ¯ Ele fez uma pausa para franzir as sobrancelhas. ¯ Estamos especulando como um pu­nhado de amadores.

¯  Bem, isso tudo produz um cenário e tanto. ¯ Ryan quase sorriu ao anunciar a conclusão lógica. ¯ Talvez tenhamos derrubado o pri­meiro governo soviético em trinta anos que estava empenhado em li­beralizar o próprio país. ¯ O que os jornais não fariam com uma notícia dessas?, perguntou Jack a si mesmo. E sabemos que isso acaba apare­cendo. E um prato muito suculento para permanecer secreto por muito tempo...

¯  Sabemos o que anda fazendo, e sabemos há quanto tempo vem fazendo isso. Aqui estão as evidências. ¯ Ele atirou as fotografias so­bre a mesa.

¯  Belas fotos ¯ comentou Mary Pat. ¯ Onde está o homem da minha embaixada?

¯  Não queremos que ninguém fale com você. Podemos mantê-la aqui durante o tempo que desejarmos. Anos, se for necessário ¯ acres­centou ele agourentamente.

¯  Escute aqui, moço, sou americana, certo? Meu marido é um di­plomata. Ele tem imunidade diplomática e eu também. Só porque você pensa que sou uma dona de casa americana e burra, acha que pode ficar me assustando para assinar alguma confissão absurda, dizendo que sou uma espécie de espiã idiota. Pois bem, eu não sou, e meu governo vai me proteger. Portanto, no que me diz respeito, pode pegar aquela confissão, passar mostarda nela e comê-la inteirinha. Deus sa­be que a comida aqui é tão ruim que um pouco de fibras iria fazer bem para sua dieta ¯ observou ela. ¯ Está dizendo que aquele bom velho para o qual eu levava a fotografia foi preso também, é? Pois eu acho que você está louco.

¯   Sabemos que se encontrou várias vezes com ele.

¯  Duas vezes. Eu o vi num jogo no ano passado, também... não, espere aí, encontrei-me com ele numa recepção diplomática, algumas semanas atrás. Foram três vezes, mas apenas relacionadas a assuntos de hóquei. Foi por isso que trouxe a fotografia. Os rapazes do time acham que ele traz boa sorte a eles... Pergunte a eles, todos assinaram a foto não foi? Nas duas oportunidades em que ele esteve presente, ganhamos jogos importantes, e meu filho marcou alguns pontos. E você acha que ele é espião só porque foi a um jogo de hóquei da liga juvenil? Meu Deus, vocês devem enxergar espiões americanos embai­xo de todas as camas.

Na verdade, ela estava se divertindo. Eles a trataram com cuidado. Nada como uma gravidez ameaçada, disse Mary Pat a si mesma, en­quanto quebrava ainda mais uma das comprovadas regras de seguran­ça no campo da espionagem: Não diga nada. Ela reclamava, como faria qualquer cidadão comum ultrajado ¯ com o escudo da imunidade diplomática, claro ¯ perante a estupidez dos russos. Observou de perto seu interrogador, atenta às reações dele. Se havia alguma coisa que um russo detestava era ser olhado de cima, principalmente por america­nos, perante os quais apresentavam um complexo de inferioridade terminal.

¯ Eu costumava achar que o pessoal de segurança da embaixada era uma amolação ¯ bufou ela depois de um momento. ¯ Não faça isso, não faça aquilo, seja cuidadosa quando tirar fotografias. Eu não estava tirando nenhuma fotografia, eu estava levando uma fotografia para ele! E os garotos na fotografia são russos... à exceção de Eddie. ¯ Ela se voltou, olhando para o espelho.

Mary Pat perguntou-se se os russos tinham pensado naquele deta­lhe sozinhos, ou se tinham copiado a idéia de algum filme policial ame-

ricano.

¯  Quem treinou essa sabia o que estava fazendo ¯ observou Vatu­tin, olhando através do espelho na sala ao lado. ¯ Ela sabe que esta­mos aqui, mas não deixa transparecer. Quando vamos soltá-la?

¯  No final da tarde ¯ respondeu o chefe do Segundo Diretório. ¯ Mantê-la aqui não vai valer o esforço. Seu marido já está arruman­do as coisas no apartamento. Você devia ter esperado mais alguns se­gundos ¯ acrescentou o general.

¯  Eu sei. ¯ Não faria sentido explicar a fechadura com defeito. A KGB não aceitava desculpas, mesmo de coronéis. Aquilo não era

o ponto principal, como sabiam Vatutin e seu chefe. Eles haviam apa­nhado Filitov ¯ não exatamente no ato, mas ainda assim fora apanhado. Esse era o objetivo do caso, pelo menos no que se referia a eles. Ambos os homens conheciam as outras partes do assunto, mas as tratavam co­mo se não existissem. Era a conduta mais inteligente para ambos.

¯  Onde está meu subordinado? ¯ exigiu Yazov.

¯  Ele está no Presídio Lefortovo, claro ¯ respondeu Gerasimov.

¯  Quero vê-lo. Imediatamente. ¯ O ministro da Defesa não che­gara nem mesmo a retirar o gorro, permanecendo em pé trajado com o sobretudo até a altura da coxa, as bochechas ainda rosadas pelo ar frio de fevereiro.... ou talvez de raiva, pensou Gerasimov. Talvez até de temor...

¯  Este não é o lugar apropriado para fazer exigências, Dmitri Ti­mofeyevich. Eu também sou membro do Politburo. Eu também par­ticipo do Conselho de Defesa. E pode ser que esteja implicado nessa investigação. ¯ Os dedos de Gerasimov brincavam com um relatório sobre a escrivaninha.

Aquilo mudou a compleição de Yazov. Ele ficou pálido, e definiti­vamente não foi de medo. Gerasimov ficou surpreso que o soldado não perdesse o controle, mas o marechal realizou um supremo esforço e falou no tom que empregaria com um recruta:

¯  Mostre suas provas aqui e agora se tiver colhões!

¯  Muito bem. ¯ O diretor-geral da KGB abriu a pasta e retirou uma série de fotografias, passando-as ao outro.

¯  Você mandou vigiar a mim?

¯  Não, estávamos vigiando Filitov. Você estava presente por acaso. Yazov atirou as fotografias de volta, com expressão de desgosto.

¯  E daí? Misha foi convidado para um jogo de hóquei. Eu o acom­panhei. Foi um bom jogo. Havia um rapaz americano no time... eu encontrei a mãe numa recepção outro dia.... ah, sim, foi no Salão São Jorge quando os negociadores americanos estiveram aqui da última vez. Ela estava neste jogo e nos cumprimentamos. Ela é uma mulher divertida, de uma maneira fútil. Na manhã seguinte preenchi um re­latório de contato. E Misha também.

¯  Se ela é tão fútil assim, por que se deu ao trabalho? ¯ indagou Gerasimov.

¯  Porque ela é americana, seu marido é algum tipo de diplomata, e fui tolo o suficiente para permitir que ela me tocasse, como pode ver. O relatório de contato está no arquivo. Vou lhe enviar uma cópia do meu e a do coronel Filitov. ¯ Yazov falava com mais confiança agora. Gerasimov calculara algum aspecto erradamente.

¯  Ela é agente da CIA.

¯  Neste caso estou convencido de que o Socialismo vai predomi­nar, Nikolay Borissovich. Não pensei que empregasse tantos tolos... pelo menos até hoje.

O ministro da Defesa permitiu-se acalmar-se. Embora novo no cenário  político de Moscou ¯ até recentemente fora comandante do Dis­trito Militar do Extremo Oriente, onde Narmonov o descobrira ¯, sabia obre a verdadeira luta que era travada ali. Ele não acreditava e não oodia acreditar que Filitov fosse um traidor ¯ não acreditava pela fi­cha do homem; não podia acreditar, porque o escândalo destruiria uma das mais bem planejadas carreiras do Exército soviético. A dele.

¯ Se possui alguma prova verdadeira contra meu homem, quero que meu pessoal de segurança verifique. Você, Nikolay Borissovich, está tentando jogar um jogo político com meu ministério. Não permi­tirei interferência da KGB na maneira como dirijo meu Exército. Al­guém da GRU virá aqui esta tarde. Você vai cooperar com ele, ou eu mesmo levarei este assunto ao Politburo.

Gerasimov não exibiu nenhum tipo de reação enquanto o ministro da Defesa deixava a sala, mas compreendeu que cometera um erro. Apostara em demasia no próprio jogo ¯ não, disse a si mesmo, você antecipou a jogada em um dia. Esperava que Yazov desmoronasse e se curvasse à pressão, para aceitar uma proposta ainda não feita.

E tudo porque aquele idiota do Vatutin não conseguiu evidências positi­vas. Por que ele não podia ter esperado mais um segundo?

Bem, a única coisa afazer é conseguir uma confissão completa de Filitov.

O trabalho oficial de Colin McClintock era no escritório comercial da embaixada britânica de Sua Majestade, na margem do rio Moscou oposta ao Kremlin, um local que sabotara a Revolução e incomodara a liderança soviética desde o tempo de Stálin. Mas ele também era um jogador no Grande Jogo. Era, na verdade, o agente controlador que "dirigia" Svetlana Vaneyeva e a emprestara à CIA com um propósito que nunca ficara bem explicado, mas as ordens vieram da Century House, em Londres, a sede do SIS, o Serviço Secreto Britânico. No momento ele estava conduzindo um grupo de homens de negócios bri­tânicos através do Gosplan, apresentando-os aos burocratas com quem teriam de negociar os contratos para o que quer que tivessem espe­rança de vender aos bárbaros locais, pensou McClintock. Um "ilhéu" de Whalsay, ao largo da costa escocesa, encarava a todos que habita­vam ao sul de Aberdeen como bárbaros, porém trabalhava para o SIS de qualquer maneira. Quando falava em inglês, usava um sotaque can­tado, misturando as palavras usadas apenas no norte da Escócia, e seu russo era mal compreensível, porém ele era capaz de ligar e desligar sotaques como se tivesse um interruptor. E seus ouvidos não tinham nenhum sotaque. As pessoas imaginam invariavelmente que alguém com problemas de fala também os tivesse para ouvir. Era uma impres­são que McClintock fazia o possível para cultivar.

Fora assim que encontrara Svetlana, enviando um relatório para Lon­dres que a classificava como possível alvo para recrutamento, e um oficial graduado no SIS fizera exatamente isso no salão superior da Brasserie Langlan's na Stratton Street. Desde então McClintock a vi­ra apenas a negócios, com outros ingleses e russos por perto. Outros agentes do SIS em Moscou recolhiam as informações em dead-drop, embora fosse ele o responsável pelas operações dela. Os dados que ela enviava eram desapontadores, mas ocasionalmente úteis num sentido comercial. Com agentes de informações tendia-se a aproveitar o que se podia obter, e ela passava rumores internos, que escutava do pai. Mas alguma coisa acontecera a Svetlana Vaneyeva. Ela desaparecera de sua escrivaninha, então retornara, provavelmente depois de ser in­terrogada em Lefortovo, informara a CIA. Aquilo não fazia muito sen­tido para McClintock. Uma vez que se ia para Lefortovo, ficava-se por mais de um dia ou dois. Alguma coisa muito estranha acontecera, e ele aguardara por mais de uma semana até surgir a oportunidade de descobrir exatamente o que poderia ter havido. As informações que ela deixara permaneceram intactas, claro. Ninguém do SIS chegaria perto delas, exceto para verificar se não tinham sido perturbadas, de uma distância discreta.

Agora, entretanto, ele tivera sua chance, levando a delegação atra­vés da sala que continha a seção têxtil da agência de planejamento. Ela olhou para cima e viu os estrangeiros passando. McClintock deu o sinal de rotina para interrogatório. Precisava partir do princípio de que ela fora dobrada, totalmente comprometida, mas precisava reagir de alguma maneira. Ele fez o sinal, um esfregar das mãos contra o cabelo, tão natural quanto respirar, como eram todos os sinais. A res­posta dela seria o abrir de sua gaveta, tirando de lá um lápis ou uma caneta. O primeiro significava "tudo certo", a última era um aviso. Ela não fez nenhuma das duas coisas e meramente devolveu o docu­mento que estivera lendo. Quase surpreendeu o jovem agente, que te­ve vontade de encará-la, mas lembrou-se a tempo de quem era e onde estava, e voltou-se, procurando outros rostos na sala, as mãos agitando-se nervosamente, fazendo gestos que poderiam significar qualquer coisa para quem estivesse observando.

O que permaneceu em sua mente foi o olhar no rosto dela. O que fora animado parecia vazio. O rosto vivido de emoções agora parecia tão desprovido delas quanto o das pessoas numa rua de Moscou. A pessoa que fora a filha privilegiada de um homem com cargo muito elevado no Partido estava diferente agora. Não era fingimento. Tinha certeza disso, ela não possuía a habilidade para fazê-lo.

Eles chegaram até ela, disse McClintock a si mesmo. Eles a apanha­ram e a soltaram. Ele não tinha a menor pista sobre o motivo que tive­ram para deixá-la sair, mas essa preocupação não era sua. Uma hora mais tarde, levou os negociantes até o hotel onde se hospedavam e vol­tou a seu escritório. O relatório que ele despachou para Londres ti­nha apenas três páginas. Não tinha a menor idéia sobre a tempestade que iria desencadear. Nem sabia que outro agente do SIS enviara ou­tro relatório no mesmo malote.

¯  Oi, Arthur ¯ disse a voz pelo telefone.

¯  Bom dia... desculpe, boa tarde, Basil. Como está o tempo em Londres?

¯  Frio, úmido, horroroso. Pensei em dar um pulo até sua margem do lago e apanhar um pouco de sol.

¯  Não esqueça de parar perto da loja.

¯  Era o que eu planejava fazer. De manhã bem cedo?

¯  Sempre tenho um espaço para você em minha agenda.

¯  Vejo você amanhã, então.

¯  Ótimo. Até amanhã. ¯ O juiz Moore desligou.

Que dia!, pensou o diretor-geral dos Serviços de Informações. Pri­meiro perdemos o Cardeal, depois Sir Basil Charleston quer vir até aqui para tratar de um assunto sobre o qual não pode falar no sistema mais se­guro de telefone que os órgãos da segurança e defesa implantaram! Ainda não era meio-dia e ele já estava no escritório havia nove horas. O que, diabo, ia dar errado ainda?

¯  Chama a isso de provas? ¯ O general Yevgeny Ignatyev estava encarregado do departamento de contra-espionagem da GRU, a agên­cia soviética de Inteligência militar. ¯ Parece a esses olhos cansados que o seu pessoal pulou em gelo fino procurando por um peixe.

Vatutin estava estupefato ¯ e furioso ¯ com o fato de que o diretor-geral da KGB tivesse enviado aquele homem ao seu escritório, para verificar o seu caso.

¯  Se conseguir encontrar uma explicação plausível para o filme, a câmera e o diário, talvez fosse bondoso a ponto de partilhá-la comi­go, camarada.

¯  Você afirma que tirou o filme da mão dele, não da mulher. ¯ Foi uma afirmação, não uma pergunta.

¯  Um erro de minha parte para o qual não há desculpas ¯ disse Vatutin com uma dignidade que soou estranha aos ouvidos de ambos.

¯  E quanto à câmera?

¯  Foi encontrada grudada magneticamente ao painel interno da ge­ladeira.

¯  Você não a encontrou quando realizou a primeira busca no apar­tamento. Estou entendendo. E não tinha impressões digitais. E suas fitas de vigilância não mostram Filitov fazendo uso dela. Portanto, se ele me disser que você colocou lá tanto a câmera quanto o filme, como posso convencer o ministro de que é ele que está mentindo?

Vatutin ficou surpreso pelo tom da pergunta.

¯  Quer dizer que afinal acredita que ele é um espião?

¯  O que eu acredito não é importante. Acho perturbadora a existên­cia do diário, mas você não acreditaria nas quebras de segurança com as quais sou obrigado a lidar, especialmente nos níveis mais elevados. Quanto mais importantes as pessoas se tornam, menos importantes pen­sam que são as regras. Você sabe quem é Filitov. Ele é mais do que ape­nas um herói, camarada. É famoso por toda a União Soviética... o velho Misha, o Herói de Stalingrado. Ele lutou em Minsk, em Vyasma, nos arrabaldes de Moscou quando derivemos os fascistas, o desastre de Khar­kov, depois batalhando a retirada, depois o contra-ataque...

¯  Eu li a ficha dele ¯ afirmou Vatutin em tom neutro.

¯  Ele é um símbolo para todo o Exército. Não se pode executar um símbolo com base em evidências como essas, Vatutin. Tudo o que você tem são essas fotografias, sem nenhuma evidência de que ele as tenha tirado.

¯  Ainda não o interrogamos.

¯  E você acha que vai ser fácil? ¯ Ignatyev girou os olhos nas ór­bitas. Seu riso seco lembrou um latido. ¯ Não sabe como esse ho­mem é corajoso? Esse homem matou alemães enquanto estava com o corpo em chamas! Esse homem viu a morte de perto milhares de vezes e mijou em cima dela.

¯  Posso obter dele o que preciso ¯ insistiu Vatutin em voz baixa.

¯  Tortura, é? Está louco? É bom manter em mente que a Divisão de Infantaria Blindada de Taman está baseada a alguns quilômetros daqui. Pensa que o Exército Vermelho vai ficar sentado enquanto vo­cê tortura um de seus heróis? Stálin está morto, camarada coronel, e Berya também.

¯  Podemos extrair as informações sem causar qualquer mal físico ¯ disse Vatutin. Aquele era um dos segredos mais bem guardados da KGB.

 Conversa!

Nesse caso, general, o que recomenda? ¯ indagou Vatutin, já sabendo a resposta.

¯ Deixe-me assumir o caso. Providenciaremos para que ele nunca mais traia a Rodina, pode ficar certo disso ¯ prometeu Ignatyev.

¯ E poupar um bocado de embaraço ao Exército, é claro.

¯  Pouparíamos embaraço a todos, inclusive a você, camarada co­ronel, por foder toda essa pseudo-investigação.

Bem, era mais ou menos o 'que eu esperava. Uma gritaria e algumas ameaças, misturadas com um pouco de solidariedade e camaradagem. Va­tutin percebeu que tinha uma saída, mas a segurança prometida seria também o final de seu avanço. A mensagem escrita à mão pelo diretor-geral deixava isso bem claro. Estava preso entre dois inimigos, e, em­bora ainda pudesse obter a aprovação de um deles, o objetivo mais elevado envolvia o maior risco. Ele podia afastar-se dos objetivos ver­dadeiros da investigação e permanecer um coronel pelo resto da vida, ou podia fazer o que esperara fazer quando começara ¯ sem motivos políticos, lembrou Vatutin desolado ¯ e arriscar a desgraça. Parado­xalmente a decisão era fácil. Vatutin era um homem do "Dois"...

¯  Este caso é meu. O diretor-geral me encarregou de dirigi-lo, e vou fazer isso à minha maneira. Muito obrigado pelos conselhos, ca­marada general.

Ignatyev apreciou o homem e a declaração. Não era sempre que ele encontrava integridade e o entristecia de uma maneira vaga e distante não poder cumprimentar o homem que demonstrava a mais rara das qualidades. Mas a lealdade ao Exército soviético vinha em primeiro lugar.

¯  Como quiser. Espero ser informado sobre suas atividades. ¯ Ig­natyev saiu sem dizer mais nada.

Vatutin permaneceu sentado à escrivaninha por mais alguns minu­tos, avaliando a própria posição. Depois chamou um carro. Vinte mi­nutos mais tarde estava em Lefortovo.

¯  Impossível ¯ declarou o médico, antes mesmo que a pergunta lhe fosse feita.

¯  O quê?

¯  Quer colocar esse homem no tanque de privação de sentidos, não é?

¯  É claro.

¯  Isso provavelmente o mataria. Não acho que queira fazer isso e tenho certeza de que não arriscaria meu projeto em alguma coisa assim.

¯  O caso é meu, e pretendo dirigi-lo...

¯  Camarada coronel, o homem em questão tem mais de 70 anos de idade. Tenho sua ficha médica aqui comigo. Ele possui todos os sintomas de uma doença cardiovascular moderada... normal em sua idade, claro, e um histórico de problemas respiratórios. O quadro do primeiro período de ansiedade explodiria seu coração como uma be­xiga. Quase posso garantir isso.

¯  O que quer dizer com "explodir o coração"?

¯  Desculpe... mas é difícil explicar termos médicos a leigos. As artérias coronárias estão recobertas com quantidades moderadas de plaquetas. Isso acontece a todos; vêm com a comida que ingerimos. As artérias dele estão mais obstruídas que as suas ou as minhas por causa da idade; também pela idade as artérias são menos flexíveis do que as de uma pessoa mais jovem. Se a taxa de batimentos cardíacos se eleva, os depósitos de plaquetas se desalojam e causam o bloqueio da circulação. Isto é o que chamamos de ataque cardíaco, coronel, um bloqueio numa das artérias coronárias. Parte do músculo cardíaco mor­re, o coração pára por completo ou se torna arrítmico; em qualquer dos casos, cessa o bombeamento de sangue e o paciente inteiro morre. Está claro assim? O uso daquele tanque vai provocar quase com certe­za um ataque cardíaco no paciente, e esse ataque quase com certeza será fatal. Se não for um ataque cardíaco, ainda permanece a possibi­lidade mais remota de choque... ou ambos poderiam acontecer. Não, camarada coronel, não podemos usar o tanque com esse homem. Não acho que queira matá-lo antes de obter suas informações.

¯  E quanto a outros métodos físicos? ¯ perguntou baixinho Vatu­tin. Meu Deus, e se não pudermos?...

¯  Se você tem certeza da culpa dele, pode mandar fuzilá-lo de uma vez e acabar logo com isso ¯ observou o médico. ¯ Mas qualquer tipo de abuso físico pode matar o paciente.

E tudo por causa de uma maldita fechadura, disse a si mesmo o coro­nel Vatutin.

Era um foguete feio, o tipo de coisa que uma criança poderia ter desenhado ou uma companhia de fogos de artifício poderia ter produ­zido, embora nos dois casos os autores o tivessem colocado no local adequado, abaixo do avião, em vez de estar em cima. Mas estava so­bre a aeronave, enquanto as luzes da pistas se acendiam na escuridão.

O avião era o famoso Blackbird SR-71, a aeronave de reconheci­mento Mach-3 da Lockheed. Aquele fora trazido da Base da Força Aérea em Kadena, na fronteira ocidental do Pacífico; dois dias antes. Rolava pela pista da Base Aérea de Nellis, Nevada, um pouco adiante das chamas gêmeas dos foguetes retropropulsores. O combustível que vazava dos tanques do SR-71 ¯ o Blackbird vazava bastante ¯ era inflamado pelo calor, para o entretenimento dos controladores na tor­re. O piloto puxou para trás o manche no momento apropriado e o nariz do Blackbird apontou para cima. Segurou o manche inclinado por mais tempo do que normalmente, apontando o pássaro num ân­gulo ascendente de 45 graus, a toda potência, e num momento tudo o que restou no chão foi a memória de um trovão. A última visão que as pessoas tiveram foi a dos dois pontos brilhantes, que desaparece­ram através das nuvens que flutuavam a mais de 3 quilômetros.

O Blackbird continuou subindo. Os controladores de tráfego aéreo em Las Vegas notaram o sinal em suas telas, percebendo que quase não se movia lateralmente, embora a leitura da altitude relativa mu­dasse tão rapidamente quanto os coloridos discos das máquinas caça-níqueis no saguão do aeroporto. Trocaram um olhar ¯ "Mais um Hot-Dog da Força Aérea" ¯ e depois voltaram ao trabalho.

O Blackbird agora passava pela marca de 20 quilômetros, e nivelou-se dirigindo-se para sudeste em direção à Base de Mísseis White Sands. O piloto verificou o combustível ¯ havia bastante ¯ e relaxou depois da subida de tirar o fôlego. Os engenheiros tinham razão. O míssil sobre o avião não alterara nada seu comportamento. Quando ele co­meçara a pilotar o Blackbird, o propósito da montagem sobre a fuse­lagem fora ultrapassado pelos acontecimentos. Projetado para conter um veículo teleguiado monomotor de reconhecimento fotográfico, as montagens haviam sido removidas de todos os SR-71 à exceção desse, por motivos que não ficavam muito claros no manual de manutenção. O foguete fora concebido originalmente para ir a lugares onde o Black­bird não pudesse, mas tornou-se redundante com a descoberta do fato de que não havia lugar onde o SR-71 não pudesse ir com segurança, como o piloto provava regularmente com seus vôos de Kadena. O único limite da aeronave era o combustível, e isso não importava naquele dia.

¯  "Juliet Whiskey", aqui é o controle. Está ouvindo? Câmbio ¯ disse o sargento ao microfone.

¯  Controle, aqui "Juliet Whiskey". Todos os sistemas funcionan­do. Estamos de acordo com o perfil.

¯  Entendido. Comece seqüência de lançamento ao meu comando. Cinco, quatro, três, dois um: lançar!

A 160 quilômetros de distância, o piloto acelerou novamente e pu­xou outra vez o manche. O Blackbird teve um desempenho tão bom como sempre, inclinando-se para o alto e subindo pelo céu impulsionado por quase 50 toneladas de empuxo. O piloto mantinha os olhos fixos nos instrumentos, enquanto o altímetro girava como um relógio enlouquecido. A velocidade era agora de mais de 2 000 quilômetros por hora e aumentando, enquanto o SR-71 exibia um completo des­prezo pela gravidade.

¯  Separação em vinte segundos ¯ disse o operador de sistemas na poltrona atrás do piloto.

O Blackbird passava agora pela marca de 33 000. O alvo estava a 40 000. Os controles já não respondiam tão bem. Não havia ar sufi­ciente para controlar adequadamente o avião, e o piloto estava toman­do mais cuidado do que o normal. Observou a velocidade atingir 3 000 quilômetros por hora vários segundos mais tarde, então...

¯  Preparar para separação... agora, agora! ¯ disse o homem no assento traseiro.

O piloto abaixou o nariz da aeronave e iniciou uma curva suave pa­ra a esquerda, que o levaria através do Novo México antes de retornar a Nellis. Aquilo era muito mais fácil do que voar ao longo da fronteira soviética ¯ e ocasionalmente ultrapassá-la... O piloto imaginou se po­deria dirigir até Vegas a tempo de assistir a um show depois que ater­rissasse.

O alvo continuou subindo por mais alguns segundos, e surpreen­dentemente não inflamou seus foguetes. Era agora um objeto balísti­co comportando-se em obediência às leis físicas. Suas aletas superdimensionadas proporcionavam suficiente sustentação aerodinâ­mica para mantê-lo apontado na direção correta, enquanto a gravida­de começava a reclamar o objeto para si. O foguete estabilizou-se a 40 000 metros, relutantemente apontando o nariz em direção à Terra.

Então o foguete disparou. O motor movido a combustível sólido quei­mou apenas durante quatro segundos, mas foi o suficiente para acele­rar o nariz cônico até uma velocidade que teria aterrorizado o piloto do Blackbird.

¯  Certo ¯ disse um oficial do Exército.

O radar de rastreamento de defesa passou de alerta a ativo. Detec­tou imediatamente o veículo esperado. O foguete-alvo estava penetrando na atmosfera com a velocidade aproximada de uma ogiva ICBM. Não precisou acionar nenhum comando. O sistema era completamente au­tomático. A 200 metros dali, uma cobertura de fibra de vidro explo­diu, expondo um orifício de concreto na pavimentação de gesso, e um FLAGE partiu em direção aos céus. O FLAGE, Experimento Adap­tável Teleguiado leve, parecia mais uma lança do que um foguete, e era quase tão simples quanto uma. O radar de ondas milimétricas ras­treava o veículo esperado e os dados eram processados no microcom­putador de bordo. O que havia de notável sobre esse artefato é que todos os seus componentes eram da mais alta tecnologia de armamen­tos então existente.

Do lado de fora, os homens observavam por trás de uma proteção de terra. Viram o risco de luz amarelada que subia e escutaram o rugido do motor a combustível sólido do foguete, depois mais nada por vários segundos.

O FLAGE apontava para o alvo, manobrando algumas frações de graus com pequenos foguetes de controle de altitude. A ponta do na­riz se abriu, e o que se desdobrou-se pareceria aos olhos de um obser­vador com uma armação metálica de guarda-chuva, com talvez 10 metros de diâmetro...

Parecia um foguete da Festa da Independência, em 4 de julho, mas sem o ruído. Algumas pessoas aplaudiram. Embora as ogivas, tanto do alvo quanto do FLAGE, fossem totalmente inertes, a energia da colisão converteu metal e cerâmica em vapor incandescente.

¯  Quatro por quatro ¯ disse Gregory. Tentou não bocejar. Já vira fogos de artifício muitas vezes.

¯  Não vai ganhar todos os elogios, major ¯ o general Parks provo­cou o jovem. ¯ Ainda precisamos dos sistemas de meio-curso e os de defesa terminal.

¯  Concordo, mas o senhor não precisa mais de mim aqui. O siste­ma funciona.

Nos primeiros três testes, o foguete-alvo fora disparado de um caça Phantom, e o pessoal de Washington clamara que a série de testes su­bestimara a dificuldade de interceptar as ogivas atacantes. Usar o SR-71 como plataforma de lançamento fora idéia de Parks. Lançar o alvo de maior altitude, com maior velocidade inicial, produzira um alvo com maior velocidade de reentrada muito maior. Esse teste na verdade fi­zera as coisas mais difíceis do que se esperava, e o FLAGE não se im­portara nem um pouco. Parks estivera um pouco preocupado com o software que dirigia o míssil, mas, como Gregory observara, tinha fun­cionado.

¯  Al ¯ disse Parks. ¯ Estou começando a acreditar que todo esse programa vai funcionar.

¯  Claro. Por que não? ¯ Se esses idiotas da Agência puderem conse­guir os planos do laser russo...

O Cardeal estava sentado sozinho numa cela de 1 metro e meio de largura por 2 e meio de comprimento. Havia uma única lâmpada ace­sa sobre sua cabeça, um catre de madeira com um balde embaixo, mas nenhuma janela, à exceção do postigo na enferrujada porta de metal. As paredes eram de concreto sólido e não se ouvia nenhum tipo de som. Ele não escutava os passos do guarda no corredor, ou mesmo o ruído do tráfego na rua, fora da prisão. Eles lhe haviam tirado a tú­nica do uniforme, o cinto e as botas polidas, tendo substituído as últi­mas por chinelos baratos. A cela ficava no porão. Aquilo era tudo que ele sabia e deduzia da umidade do ar. Estava frio.

Mas não tão frio quanto em seu coração. A enormidade do seu cri­me o atingira como nunca antes. O coronel Mikhail Semyonovich Fi­litov, três vezes Herói da União Soviética, encontrava-se sozinho com sua traição. Ele pensou na terra ampla e magnífica em que morava, cujos horizontes distantes e vistas sem fim eram habitados por seus companheiros russos. Servira-os durante toda a vida com orgulho e honra, além do próprio sangue, como atestavam as cicatrizes em seu corpo. Recordou os homens com os quais servira, muitos deles vindo a morrer sob seu comando. E a maneira como morriam, maldizendo desafiadoramente os tanques alemães enquanto queimavam vivos em seus T-34, retirando-se apenas quando forçados, preferindo atacar mes­mo quando sabiam que estavam condenados. Lembrava-se de ter li­derado seus soldados em cem confrontos, da jovialidade frenética que acompanhava o rugido dos motores diesel, dos rolos de fumaça mal­cheirosa, da determinação mesmo em face da morte, que ludibriara várias vezes.

E afinal traíra tudo aquilo.

O que os homens diriam de mim agora? Ele fixava o olhar na parede branca de concreto do lado oposto de seu catre.

O que diria Romanov?

Acho que ambos estamos necessitando de uma bebida, meu capitão, disse a voz. Só Romanov conseguia ser ao mesmo tempo sério e divertido. Tais pensamentos são considerados com mais facilidade com vodca ou Samogan.

Sabe por quê?, perguntou Misha.

O senhor nunca nos disse por quê, meu capitão, ecoou a voz. E foi o que Misha fez. Levou muito pouco tempo.

Os dois filhos e sua esposa. Diga-me, camarada capitão, por que morremos?

Misha não sabia aquilo. Mesmo durante o tiroteio ele não soubera. Ele era um soldado, e quando o país de um soldado era invadido os soldados lutavam para repelir o inimigo. Era muito mais fácil quando o inimigo era tão brutal quanto os alemães...

Lutamos pela União Soviética, cabo.

Será mesmo? Parece que me lembro de lutar pela Mãe Rússia, mas lem­bro principalmente de lutar por você, camarada capitão.

Mas...

Um soldado luta por seus camaradas, meu capitão. Eu lutei por minha família. Suponho que também tenha lutado por sua família, a pequena e a grande. Sempre o invejei por isso, meu capitão, e tinha orgulho por ter me feito participar de ambas da maneira que fez.

Mas eu o matei. Eu não deveria...

Todos nós temos nosso destino, camarada capitão. O meu era morrer em Vgasma sem mulher e sem filhos, mas mesmo assim não morri sem família.

Eu o vinguei, Romanov. Peguei o Mark-IV que o matou.

Eu sei. Você vingou todos os mortos de sua família. Por que pensa que o amávamos? Por que pensa que morremos por você?

Você compreende?, perguntou Misha surpreso.

Os operários e camponeses talvez não entendam, mas seus homens, sim. Entendemos o destino agora, de uma forma que ainda não pode.

Mas o que devo fazer?

Capitães não fazem tais perguntas a cabos. Romanov riu. Você tinha todas as respostas para as nossas perguntas.

Filitov levantou a cabeça quando o trinco correu na porta da cela.

Vatutin esperara encontrar um homem sem vontade. O isolamento da cela, o despojamento da identidade e a solidão do prisioneiro com seus medos e seus crimes sempre provocavam o efeito adequado. Mas, enquanto olhava para o velho cansado e aleijado, viu os olhos e a boca mudarem.

Obrigado, Romanov.

¯  Bom dia, Sir Basil ¯ disse Ryan ao apanhar as malas do recém-chegado.

¯  Olá, Jack! Não sabia que o estavam usando como carregador.

¯  Depende das malas de quem estou carregando, por assim dizer. O carro está nesta direção. ¯ Ele acenou. Estava estacionado a 50 me­tros dali.

¯  Constance manda lembranças. Como está a família? ¯ indagou Sir Basil Charleston.

¯  Todos bem, obrigado. Como está Londres?

¯  Você certamente não esqueceu de nossos invernos.

¯  Não. ¯ Jack riu ao abrir a porta. ¯ Lembro-me da cerveja também.

Um momento mais tarde ambas as portas estavam fechadas e travadas.

¯  Eles verificam as rodas toda semana ¯ disse Jack. ¯ Como está a situação?

¯  Como está? Foi exatamente o que vim descobrir aqui. Alguma coisa muito estranha está acontecendo. Seus colegas tiveram uma ope­ração que deu errado, não foi?

¯  Posso responder sim a essa pergunta, mas o resto será dito pelo juiz. Desculpe, mas só tenho acesso a uma parte das infor­mações.

¯  Recentemente, aposto.

¯ É. ¯ Ryan mudou de marcha ao virar na estrada do aeroporto.

¯  Então vamos ver se ainda sabe juntar dois mais dois, Sir John. Jack sorriu enquanto mudava de faixa para ultrapassar um caminhão.

¯  Eu estava fazendo um Relatório Especial sobre Informações Con­fidenciais a respeito das negociações de armamentos quando deparei com isso. Agora estou encarregado de verificar a vulnerabilidade polí­tica de Narmonov. A menos que eu esteja errado, este é o motivo pelo qual voou até aqui.

¯  E, a menos que eu esteja muito longe da verdade, sua operação disparou alguma coisa realmente séria.

¯  Vaneyev?

¯  Correto.

¯  Meu Deus! ¯ Ryan voltou-se por um instante. ¯ Espero que vocês tenham algumas idéias, porque nós com certeza não temos.

Ele elevou a velocidade para 120 quilômetros por hora. Quinze mi­nutos depois estavam em Langley. Estacionaram na garagem subter­rânea e tomaram o elevador privativo para o sétimo andar.

¯  Olá, Arthur. Não é sempre que eu tenho um cavaleiro como mo­torista, mesmo em Londres. ¯ O chefe do SIS tomou assento enquanto Ryan reunia os chefes de departamento.

¯  Oi, Bas ¯ disse Greer entrando.

Ritter apenas acenou. Fora a sua operação que deflagrara a presen­te crise. Ryan tomou a cadeira menos confortável disponível.

¯  Gostaria de saber exatamente o que aconteceu de errado ¯ afir­mou com simplicidade Charleston, sem ao menos esperar que o café fosse servido.

¯  Um agente foi preso. Um agente muito bem colocado.

¯  É por isso que os Foley estão saindo hoje do país? ¯ Charleston sorriu. ¯ Não sei quem são eles, mas, quando duas pessoas são ex­pulsas daquele país adorável, geralmente presumimos que...

¯  Ainda não sabemos o que houve de errado ¯ declarou Ritter. ¯ Eles devem estar aterissando em Frankfurt neste momento, depois mais dez horas até que os tenhamos aqui para fazer o relatório. Eles estavam controlando um agente que...

¯  Que era ajudante de Yazov... o coronel M. S. Filitov. Já deduzi­mos até aí. Por quanto tempo o utilizaram?

¯  Foi um de seus agentes que o recrutou para nós ¯ respondeu Moore. ¯ Um coronel também.

¯  Você não quer dizer... Oleg Penkovsky? Por Deus! ¯ Charles­ton parecia surpreendido dessa vez, notou Ryan. Não acontecia com muita freqüência. ¯ Tanto tempo assim?

¯  Tanto ¯ confirmou Ritter. ¯ Mas as possibilidades nos apanha­ram finalmente.

¯  E a mulher, Vaneyeva, que emprestamos a vocês como mensa­geira fazia parte dessa...

¯  Correto. Ela nunca se aproximou das pontas da corrente, a pro­pósito. Sabemos que ela provavelmente foi apanhada, mas está de vol­ta ao trabalho. Ainda não a verificamos, mas...

¯  Nós fizemos isto, Bob. Nosso homem relatou que ela... mudou de alguma forma. Ele disse que era difícil de descrever, mas impossí­vel de passar despercebido. Como aquelas histórias macabras sobre lavagem cerebral, Orwell, e tudo o mais. Ele reparou que ela estava livre... ou o que passa por liberdade lá... e disse isso ao pai dela. En­tão ficamos sabendo de alguma coisa grande no Ministério da Defesa: que um ajudante de Yazov tinha sido preso. ¯ Charleston fez uma pausa para saborear seu café. ¯ Temos uma fonte interna no Kremlin que guardamos com todo o cuidado. Soubemos que o diretor-geral Gerasimov passou muitas horas com Alexandrov na semana passada, e sob circunstâncias bastante incomuns. A mesma fonte nos preveniu de que Alexandrov tem urgência considerável de acabar com essa his­tória de perestwika.

¯  Bem, tudo está claro, não? ¯ perguntou Charleston retoricamente. Estava bastante claro para todos. ¯ Gerasimov subornou um mem­bro do Politburo sabidamente leal a Narmonov, e pelo menos comprometera o apoio do ministro da Defesa, e passou um bom tem­po com o homem que deseja a saída de Narmonov. Receio que a ope­ração de vocês tenha deflagrado um acontecimento com as conseqüências mais desagradáveis.

¯  Há mais ainda ¯ afirmou o diretor-geral dos Serviços de Infor­mações. ¯ Nosso agente estava enviando material sobre pesquisa de armas espaciais soviética. Ivã pode ter feito um grande avanço.

¯  Maravilhoso ¯ comentou Charleston. ¯ Uma volta aos maus e velhos dias, só que desta vez a nova versão da crise de mísseis é potencialmente real, não é? Estou velho demais para mudar minha política. É uma pena. Você sabia, claro, que existe um vazamento em seu programa?

¯  Ah, sim? ¯ fez Moore, com o rosto impassível.

¯  Gerasimov disse isso a Alexandrov. Sem nenhum detalhe, infe­lizmente, a não ser que a KGB acha que é muito importante.

¯  Tivemos alguns avisos. Estamos cuidando disso ¯ disse Moore.

¯  Bem, as questões técnicas podem resolver a si mesmas. Geral­mente é o que acontece. As questões políticas, por outro lado, cria­ram um bocado de aborrecimento para o primeiro-ministro. Já aparecem complicações suficientes quando derrubamos um governo que desejamos derrubar, mas fazer isso por acidente...

¯  Não gostamos das conseqüências tanto quanto você, Basil ¯ ob­servou Greer. ¯ Mas não há absolutamente nada que possamos fazer a respeito.

¯  Vocês podem aceitar os termos do tratado ¯ sugeriu Charleston.

¯ Então nosso amigo Narmonov teria sua posição suficientemente for­talecida para que possa dizer a Alexandrov que suma de vez. Essa, para todos os efeitos, é a posição não oficial do governo de Sua Ma­jestade.

E esse é o verdadeiro motivo de sua visita a nós, Sir Basil, pensou Ryan. Era tempo de dizer alguma coisa:

¯  Mas isso significa colocar restrições não razoáveis em nossa pes­quisa SDI e reduzir nossas reservas de ogivas, sabendo que os russos prosseguem com o próprio programa. Não acho que seja bom negócio.

¯  E um governo soviético liderado por Gerasimov seria?

¯  O que acontece se as coisas acabarem assim de qualquer jeito?

¯ perguntou Ryan. ¯ Meu relatório já está escrito. Sou contra qual­quer concessão adicional.

¯  Sempre se pode mudar um documento escrito ¯ lembrou Char­leston.

¯  Senhor, eu tenho uma regra. Se alguma coisa sai com o meu no­me na frente, diz exatamente o que penso, não o que alguém me diz para pensar ¯ declarou Ryan.

¯  Por favor, lembrem-se, cavalheiros, de que sou um amigo. O que está para acontecer ao governo soviético seria um contratempo maior para o Ocidente do que uma restrição temporária de um de seus pro­gramas de defesa.

¯  O presidente não vai apoiar a idéia ¯ disse Greer.

¯  Talvez ele seja obrigado a fazer isso ¯ respondeu Moore.

¯  Deve haver um outro jeito ¯ sugeriu Ryan.

Não a não ser que se possa derrubar Gerasimov ¯ dessa vez foi Ritter quem falou. ¯ Não podemos oferecer a, ajuda direta a Narmonov. Mesmo se assumirmos que ele levaria em conta um aviso de nossa parte, o que provavelmente não aconteceria, estaríamos correndo   risco ainda maior por envolvimento na política interna deles. Se o resto do Politburo souber de qualquer rumor sobre isso... acho que pode começar uma pequena guerra.

¯  Mas, e se pudermos? ¯ indagou Ryan.

¯  Se pudermos o quê?¯ quis saber Ritter.

 

Conspirações

"Ann" voltou a Folhas de Eva mais cedo que o esperado, notou a do­na da loja. Com o sorriso usual, escolheu um vestido no cabideiro e levou-o para o provador. Um minuto mais tarde, olhou-se nos espe­lhos de corpo inteiro e recebeu os cumprimentos de hábito sobre sua bela aparência. Novamente pagou em dinheiro, partindo com mais um sorriso encantador.

Do lado de fora, no estacionamento, as coisas foram diferentes. A capita Bisyarina quebrou o protocolo ao abrir a cápsula e ler o conteú­do. Aquilo provocou um palavrão curto e feio. A mensagem consistia numa única folha de papel de anotação. Bisyarina acendeu um cigarro com seu isqueiro a gás, depois queimou o papel no cinzeiro do carro.

Todo aquele trabalho perdido! E já estava em Moscou, sendo anali­sado. Ela se sentia tal qual uma idiota. Era duplamente frustrante que seu agente tivesse sido completamente honesto, entregando a ela o que acreditava ser material altamente sigiloso, e, tão logo soube que tudo fora considerado sem valor, passara rapidamente adiante a informa­ção. Ela nem mesmo teria a oportunidade de transferir a reprimenda que por certo receberia por perder o tempo da Central de Moscou,

Bem, ele nos avisaram sobre isso. Pode ser a primeira vez, mas certa­mente não será a última. Bisyarina foi para casa e fez o rascunho de sua mensagem.

Os Ryan não eram conhecidos especialmente por sua assiduidade no circuito de coquetéis em Washington, mas havia alguns que eles ¯  conseguiam evitar. A recepção visava a levantar fundos para o Hospital Infantil de Washington, e a esposa de Jack era amiga do chefe Ha Cirurgia. A noite seria de entretenimento. Um destacado músico de iazz devia a vida de sua neta ao hospital e estava pagando essa dívi­da com um concerto beneficente no Kennedy Center. A recepção era realizada para dar a chance ao pessoal da capital de conhecê-lo "de perto" e ouvir seu saxofone de uma maneira mais íntima. Na verda­de como todas as festas do poder, era para que os membros da elite vissem e fossem vistos uns pelos outros, confirmando a própria im­portância. Como em muitas partes do mundo, a elite sentia a necessi­dade de pagar pelo privilégio. Jack entendia o fenônemo, mas achava que não fazia muito sentido. Por volta das 11 horas, a alta sociedade de Washington havia provado que podia falar tão futilmente e embebedar-se tanto quanto as pessoas de outros lugares no mundo. Cathy manteve-se com apenas um copo de vinho branco, mas Jack tinha vencido o sorteio naquela noite: ele podia beber, e ela dirigiria o carro. Tendo sido indulgente com o álcool, a despeito de alguns olha­res de advertência da esposa, encontrava-se imerso numa aura suave de filosofia que o fez pensar estar exagerando um pouco seu papel ¯ mas por outro lado não devia parecer mesmo representação. Ele só esperava que tudo corresse de acordo com o planejado naquela noite. A parte divertida era a maneira como Ryan era tratado. Sua posição na Agência sempre fora um pouco incômoda. Os comentários iniciais eram algo como: "Como vão as coisas em Langley?", geralmente em tom afetado e conspiratório, e, quando Jack respondia que era apenas burocracia governamental, um prédio enorme que continha grande quantidade de papel em trânsito, ficavam surpresos. A CIA era tida na conta de possuir milhares de agentes de campo ativos. O número real era sigiloso, claro, porém muito menor do que se pensava.

¯  Trabalhamos em horário normal ¯ explicava Jack a uma mu­lher bem vestida, cujas pupilas dos olhos estavam levemente dilata­das. ¯ Vou até tirar o dia de folga, amanhã.

¯  E mesmo?

¯  E, sim. Matei um agente chinês na terça-feira, e a gente sempre ganha um dia de folga com essas coisas ¯ afirmou ele, com ar sério, depois sorriu.

¯  Você está brincando!

¯  E verdade, estou brincando. Por favor, desculpe tudo o que eu disse. ¯ Quem será essa puta velha?, imaginou ele.

¯  E sobre as notícias de que você está sendo investigado? ¯ per­guntou outra pessoa.

Jack voltou-se, surpreso.

¯  E quem seria o senhor?

¯  Scott Browning, do Chicago Tribune. ¯ O homem não ofereceu a mão. O jogo havia apenas começado. O jornalista não sabia que era um jogador, mas Ryan sabia.

¯  Poderia repetir a pergunta? ¯ pediu Jack educadamente.

¯  Tenho fontes que informaram que você está sendo investigado por transação ilegal de ações.

¯  Pois isso é novidade para mim ¯ retrucou Jack.

¯  Sei que você se encontrou com os investigadores da Comissão de Valores Mobiliários ¯ anunciou o jornalista.

¯  Se sabe disso, então também deve saber que eu dei as informa­ções que eles queriam, e foram embora satisfeitos.

¯  Tem certeza disso?

¯  Claro que tenho. Não fiz nada de errado e tenho documentos para provar isso ¯ insistiu Ryan, um tanto forçadamente na opinião do jornalista. Ele adorava quando as pessoas bebiam demais. In vino ventas.

¯  Não foi o que minhas fontes disseram ¯ persistiu Browning.

¯  Bem, não posso fazer nada quanto a isso! ¯ declarou Ryan. Ha­via emoção em sua voz agora, e algumas cabeças se voltaram.

¯  Se não fosse por pessoas como você, talvez tivéssemos uma agên­cia de informações que funcionasse ¯ observou um recém-chegado.

¯  E quem diabos pensa que é? ¯ perguntou Ryan antes de voltar-se. Ato I, Cena 2.

¯  O senador Trent ¯ informou o jornalista. Trent estava numa co­missão parlamentar de controle.

¯  Acho que uma desculpa é devida ¯ disse Trent. Ele parecia bêbado.

¯  Por quê?

¯  Que tal por aquela merda toda do outro lado do rio?

¯  Em oposição à que temos deste lado?

As pessoas se aproximavam. O divertimento está onde se está.

¯  Sei muito bem o que tentaram fazer, e você caiu bem em cima do traseiro. Não nos deixou saber de nada, como exige a lei. Conti­nuou de qualquer jeito, e vou dizer uma coisa: você vai pagar, vai pa­gar bem caro pelo que fez.

¯  Se tivéssemos que pagar sua conta do bar, aí, sim, sairia muito caro. ¯ Ryan voltou-se, despedindo o homem.

¯  Que grande homem ¯ disse Trent pelas. costas. ¯ Está cami­nhando para uma grande queda também.

Havia talvez umas vinte pessoas observando e ouvindo a cena agora. Viram Jack apanhar um copo de vinho de uma das bandejas que passavam. Repararam no olhar assassino que era lançado, e algumas pessoas se lembraram de que ele já matara antes. Era um fato que adi­cionava à sua reputação um toque de mistério. Ele tomou um gole co­medido do chablis antes de voltar-se.

¯  E que tipo de queda poderia ser, senhor Trent?

¯  O senhor ficaria surpreso.

¯  Nada que faça poderia me surpreender, colega.

¯  Isso pode ser, mas você nos surpreendeu, doutor Ryan. Não pen­sávamos que fosse um vigarista, nem que fosse tão burro a ponto de se envolver com aquele desastre. Acho que estávamos errados, afinal.

¯  O senhor está errado sobre muitas coisas ¯ sibilou Jack.

¯  Sabe, Ryan? Juro que não consigo adivinhar que tipo de homem

você é.

¯  Isso nãc me surpreende.

¯  E então, que tipo de homem é, Ryan?

¯  Sabe, senador, essa é uma experiência inédita para mim ¯ de­clarou Jack alegremente.

¯  O quê?

Os modos de Ryan se alteraram abruptamente. A voz ecoou forte pela sala.

¯  Nunca tive minha hombridade questionada por um veado an­tes! ¯ Desculpe, parceiro...

A sala ficou em silêncio. Trent não fazia segredo de sua preferência sexual, que viera a público seis anos antes. Aquilo não impediu que ele ficasse pálido. O copo em sua mão tremeu o suficiente para derra­mar um pouco do conteúdo no chão de mármore, mas o senador re­cobrou o controle e falou quase delicadamente:

¯  Vou arrebentar você por isso.

¯  Faça o que puder, queridinha. ¯ Ryan voltou-se e saiu da sala, sentindo os olhares às suas costas.

Continuou andando até enxergar o trânsito da Avenida Massachusetts. Sabia que havia bebido demais, porém o ar frio começou a cla­rear sua cabeça.

¯  Jack? ¯ ouviu-se a voz de sua esposa.

¯  Sim, querida?

¯  O que foi tudo isto?

¯  Não posso dizer.

¯  Acho que é hora de você ir para casa.

¯ E eu acho que tem toda a razão. Vou buscar os casacos. ¯ Ryan voltou para dentro e entregou as fichas na chapeleira.

Percebeu o silêncio que se formara quando ele retornou. Podia sen­tir os olhares cravados nele. Jack vestiu o sobretudo e pendurou no braço o casaco de pele da esposa antes de se voltar e perceber os olhos que o observavam. Apenas um par deles o interessava, e lá estavam.

Misha não era um homem fácil de surpreender, mas a KGB teve sucesso. Ele se preparara para a tortura, para os piores tipos de abuso, apenas para ficar... desapontado?, perguntou a si mesmo. Aquela cer­tamente não seria a palavra certa.

Continuava na mesma cela, e, tanto quanto podia definir, encontrava-se sozinho no bloco de celas. Aquilo provavelmente era falso, mas não havia evidência palpável de que alguém mais estivesse perto dele, ab­solutamente nenhum som, nem mesmo batidas nas paredes de con­creto. Talvez fossem grossas demais para isso. A única "companhia" que tinha eram os ocasionais ruídos metálicos no postigo da porta da cela. Pensou que a solidão deveria supostamente provocar alguma afli­ção nele. Filitov sorriu ante essa idéia. Eles acham que estou sozinho. Não sabem sobre meus camaradas.

Só havia uma resposta possível: esse sujeito, Vatutin, podia ser ino­cente, afinal de contas ¯ mas isso não seria possível, disse Misha a si mesmo. Aquele bastardo chekista apanhara o filme de suas mãos.

Ainda tentava resolver a dúvida, olhando para a parede vazia de con­creto. Nada daquilo fazia sentido.

Mas, se esperavam que ficasse com medo, teriam de viver com seu desapontamento. Filitov já enganara a morte muitas vezes. Parte dele até ansiava por ela. Talvez se reunisse a seus camaradas. Falava com eles, não falava? Talvez ainda estivessem... bem, não exatamente vi­vos, mas tampouco ausentes. O que era a morte? Na fase da vida que atingira, essa questão passava a ser puramente intelectual. Mais cedo ou mais tarde, ele descobriria, claro. A resposta passara próxima a ele muitas vezes, mas seu toque nunca fora suficientemente firme...

A chave retiniu na porta, as dobradiças gemeram.

¯ Devia lubrificá-la. Todo o equipamento dura muito mais se fi­zermos a manutenção corretamente ¯ disse ele ao se levantar.

O carcereiro não respondeu, meramente acenando para que saísse da cela. Dois guardas estavam ao lado do carcereiro, rapazes imberbes de 20 anos mais ou menos, pensou Misha, as cabeças elevadas com a arrogância comum aos da KGB. Quarenta anos. antes, e ele teria con­dições de fazer alguma coisa sobre isso, disse Filitov a si mesmo. Estavam desarmados, afinal, e ele era um combatente para quem tirar uma vida era tão natural quanto respirar. Não se tratava de soldados de ver­dade. Um olhar confirmava isso. Era bom ser orgulhoso, mas um sol­dado precisa também permanecer alerta...

Será que era isso?, pensou ele subitamente. Vatutin me trata com todo o cuidado, apesar do fato de saber...

Mas por quê?

¯  O que significa isso? ¯ perguntou Mancuso.

¯  É meio difícil de dizer ¯ respondeu Clark. ¯ Provavelmente al­gum bunda-mole na capital não consegue se decidir. Acontece sempre.

Os dois sinais haviam chegado com menos de doze horas de inter­valo entre eles. O primeiro abortara a missão e ordenava que o sub­marino retornasse a mar aberto, mas o segundo dissera ao Dallas para permanecer no Báltico ocidental e aguardar novas ordens.

¯  Não gosto de ficar esperando.

¯  Ninguém gosta, capitão.

¯  Como isso afeta você? ¯ indagou Mancuso. Clark deu de ombros eloqüentemente.

¯  O mais importante é a parte mental. Como concentrar-se antes de um grande jogo. Não esquente, capitão. Eu dou aulas sobre esse tipo de coisa... quando não estou em missão.

¯  Quantas?

¯  Não posso dizer, mas a maioria delas correu perfeitamente.

¯  A maioria... mas não todas? E quando elas não...

¯  Fica bem excitante para todos. ¯ Clark sorriu. ¯ Especialmen­te para mim. Tenho algumas histórias ótimas, mas não posso contar. Bem, acho que você também deve ter.

¯  Uma ou duas. Tira um pouco da graça, não tira? ¯ Os dois ho­mens trocaram um olhar de entendimento.

Ryan fazia compras sozinho. O aniversário de sua esposa se avizi­nhava ¯ aconteceria durante sua estada em Moscou ¯, e ele queria resolver tudo com antecedência. As joalherias sempre eram um bom lugar para se começar. Cathy ainda usava a gargantilha de ouro que lhe dera alguns anos antes, e ele estava procurando brincos que com­binassem. O problema é que ele não conseguia lembrar-se exatamen­te do desenho... Sua ressaca não ajudava, nem o nervosismo. E se eles não mordessem a isca?

¯  Olá, doutor Ryan ¯ disse uma voz familiar. Jack voltou-se surpreso.

¯  Não sabia que eles deixavam vocês virem tão longe. ¯ Ato II, Cena 1. Jack não deixou transparecer seu alívio. Nesse ponto a ressa­ca ajudou.

—  O roteiro de viagem passa exatamente pela Garfinckels, se exa­minar cuidadosamente os mapas ¯ ressaltou Sergey Platonov. ¯ Fa­zendo compras para sua esposa?

¯  Tenho certeza de que minha ficha lhe forneceu todas as pistas.

¯  Sim, o aniversário dela. ¯ Ele olhou para a montra da loja. ¯ E uma pena que eu não possa me permitir comprar uma dessas jóias para a minha.

¯   Se você fizesse as concessões apropriadas, a Agência provavel­mente arranjaria algo, Sergey Nikolayevich.

¯  Mas a Rodina talvez não compreenda ¯ observou Platonov. ¯ Um problema com o qual está se familiarizando, não é?

¯  Você está muito bem informado ¯ resmungou Jack.

¯  É o meu trabalho. Também estou com fome. Talvez possa usar um pouco de sua fortuna para me pagar um sanduíche.

Ryan olhou acima e abaixo da galeria com interesse profissional.

¯  Hoje não. ¯ Platonov riu. ¯ Alguns de meus amigos... alguns de meus camaradas estão mais ocupados do que o normal hoje, e receio que o seu FBI está com falta de pessoal para a tarefa de vigilância.

¯  Um problema que a KGB não tem ¯ observou Jack, enquanto se afastavam da loja.

¯  Você ficaria surpreso. Por que os americanos acham que nossos órgãos de informações são muito diferentes dos de vocês?

¯   Se com isso você quer dizer fodidos, acho que é um pensamento reconfortante. Como prefere comer cachorro-quente?

¯  Só se for kosher ¯ respondeu Platonov, explicando em seguida: ¯ Não sou judeu, como sabe, mas acho o gosto melhor.

¯  Você está aqui há tempo demais ¯ declarou Jack com um sorriso.

¯  Mas a região de Washington é um lugar tão agradável!

Jack entrou numa lanchonete especializada em bagels e corned beef, e que também servia outras coisas. O serviço era rápido, e os homens ocuparam uma mesa branca de fórmica que ficava isolada no centro do corredor da galeria. Muito inteligente, pensou Jack. As pessoas po­diam passar e não escutar mais do que algumas palavras áo acaso. Mas ele sabia que Platonov era um profissional.

¯  Fiquei sabendo que enfrenta dificuldades legais bastante desagra­dáveis no momento. ¯ A cada palavra, Platonov sorria. Devia parecer que estava discutindo amenidades, supunha Jack, com o acréscimo de que seu colega russo parecia estar se divertindo enormemente.

¯  Acredita naquela bicha de ontem à noite? Sabe, uma coisa que eu aprecio na Rússia é a maneira como tratam...

¯  Comportamento anti-social? Sei... Cinco anos em um campo de regime estrito. Nossa nova abertura não se estende a fazer vista grossa à perversão sexual. Seu amigo Trent conheceu alguém durante a últi­ma viagem que fez à União Soviética. O... jovem em questão está ago­ra num desses campos. ¯ Platonov não mencionou que o rapaz se recusara a colaborar com a KGB, por isso foi sentenciado. Para que confundir o assunto?, pensou ele.

¯  Pode guardá-lo, com minhas bênçãos. Temos muitos deles por aqui ¯ retrucou Jack.

Sentia-se mal de verdade; seus olhos pareciam querer fugir da ca­beça como resultado do vinho e da noite maldormida.

¯  Foi o que reparei. Podemos ficar com a Comissão de Valores Mo­biliários também? ¯ indagou Platonov.

¯  Sabe como é, não fiz nada de errado. Nada mesmo! Recebi um palpite de um amigo e o segui. Não fiquei procurando, apenas acon­teceu. Então ganhei alguns dólares... e daí? Eu escrevo relatórios de segurança para o presidente! Sou bom nisso... e eles estão vindo atrás de mim depois de toda a... ¯ Ryan parou de falar e encarou dolorosa­mente Platonov. ¯ E que diabo importa a você tudo isso?

¯  Desde que nos encontramos em Georgetown alguns anos atrás, francamente eu o admirei. Aquele negócio com os terroristas. Não con­cordo com sua visão política, como você discorda radicalmente da mi­nha. Mas, falando de homem para homem, você tirou alguns vermes das ruas. Pode escolher entre acreditar ou não, mas eu discuti com o Estado por apoiar tais animais. Verdadeiros marxistas que preten­dem libertar seus povos... Sim, a esses devemos apoiar de todas as ma­neiras possíveis... Mas bandidos são assassinos, mero rebotalho humano que nos enxerga como fonte de armas, nada mais. Meu país não lucra nada com isso. Colocando a política de lado, você é um ho­mem de coragem e honra. É claro que respeito isso. E uma pena que seu país não faça o mesmo. Os Estados Unidos só colocam seus me­lhores homens em pedestais para que os menores possam fazê-los de alvo.

O olhar alerta de Ryan foi substituído por um de avaliação.

¯  Pois você acertou em cheio.

¯  Então, meu amigo... o que vão fazer a você?

Jack exalou profundamente enquanto focalizava os olhos no passeio.

¯  Preciso arranjar um advogado esta semana. Acho que ele saberá o que fazer. Esperava evitar algo assim. Pensei que podia sair dessa só com conversa, mas... esse novo filho da puta que o Trent... ¯ Mais uma pausa para respirar. ¯ Trent usou sua influência para arrumar o emprego para ele. Quanto quer apostar que aqueles dois... Estou de acordo com você. Se temos de ter inimigos, que sejam inimigos que se possam respeitar.

¯  A CIA não pode ajudá-lo?

¯  Não tenho muitos amigos lá, você sabe disso. Subi depressa de­mais, o garoto mais rico do quarteirão. A cria de Greer, as minhas co­nexões com os britânicos... Podem-se arranjar inimigos dessa forma, também. Às vezes fico pensando se algum deles... Não posso provar, mas você não acreditaria na rede de computadores que temos em Lan­gley, e todas as minhas transações ficam arquivadas ali. Sabe de mais uma coisa? Dados de computadores podem ser alterados por quem saiba como fazê-lo... Mas tente provar isso, amigo.

Jack retirou duas aspirinas de uma latinha e as engoliu.

¯  Ritter não gosta de mim, nunca gostou. Fiz com que ele ficasse em má situação há alguns anos, e ele não é o tipo de homem que es­quece essas coisas. Talvez um de seus homens... ele possui alguns dos melhores. O almirante quer ajudar, mas ele está velho. O juiz está a ponto de se aposentar, deveria ter deixado o cargo um ano atrás, mas resiste sabe Deus como. Não poderia me ajudar mesmo que quisesse.

¯  O presidente gosta de seu trabalho. Sabemos disso.

¯  O presidente é um advogado, um promotor. Se ele ouvir, mesmo que seja um rumor, sobre alguém quebrar uma lei... Bem, é surpreen­dente como se pode ficar sozinho depressa. Existe um bando do De­partamento de Estado que também está atrás de mim. Não vejo as coisas do jeito que eles gostariam. Esta é uma merda de cidade para se ser honesto.

E verdadeiro, então, pensou Platonov. Ele conseguira a informação de Peter Henderson, codinome Cassius, que passava dados à KGB por quase dez anos, primeiro como assessor especial do senador Donaldson, da Comissão de Inteligência do Senado, e agora um analista de informações para o Controle Geral. A KGB sabia que Ryan era uma estrela em ascensão no Diretório de Inteligência da CIA. Sua ficha na Central de Moscou de início o designava como um diletante rico. Isso mudara alguns anos atrás. Fizera algo que chamara a atenção pre­sidencial, e agora escrevia quase a metade dos relatórios especiais que" iam para a Casa Branca. Era do conhecimento de Henderson que ele realizara um complexo dossiê sobre a situação dos armamentos estra­tégicos, que havia provocado arrepios em Foggy Bottom. Platonov for­mara sua opinião sobre ele há muito tempo. Como bom avaliador de caráter, desde seu primeiro encontro na Galeria Georgetown, classifi­cara Ryan como um oponente brilhante e corajoso ¯ porém um ho­mem muito acostumado a privilégios, enfurecendo-se facilmente com ataques pessoais. Sofisticado, porém estranhamente ingênuo. O que dissera durante o lanche confirmara isso. Ele via as coisas em preto e branco, bom e mau. Mas o que importava hoje era que se sentira invencível, e agora estava aprendendo que não era bem assim. Por es­se motivo, andava furioso.

¯  Todo o trabalho desperdiçado ¯ disse ele depois de alguns se­gundos. ¯ Eles vão jogar minhas recomendações no lixo.

¯  O que quer dizer?

¯  Quero dizer que Ernest "Fodido" Allen convenceu o presiden­te a colocar a Iniciativa de Defesa Estratégica na mesa de negociação. ¯ Foi necessário todo o profissionalismo de Platonov para não reagir visivelmente a essa afirmação. Ryan continuou: ¯ Todo o esforço por nada. Eles desacreditaram minha análise por causa desse assunto idiota das ações. A Agência não está me apoiando como deveria. Estão me atirando aos malditos leões. E não há nada que eu possa fazer a res­peito disso. ¯ Jack terminou seu cachorro-quente.

¯  Sempre dá para fazer alguma coisa ¯ insinuou Platonov.

¯  Vingança? Já pensei nisso. Eu poderia ir aos jornais, mas o Post vai publicar uma matéria sobre esse negócio da Comissão de Valores Mobiliários. Alguém na Colina está orquestrando uma festa de enfor­camento. Trent, suponho. Aposto que foi ele quem pôs aquele jorna­lista atrás de mim ontem à noite, o filho da puta. Se eu tentar espalhar o que realmente aconteceu, quem vai escutar? Meu Deus, eu estou colocando minha bunda na linha de fogo só por estar aqui conversan­do com você, Sergey.

¯  Por que diz isso?

¯  Por que não adivinha? ¯ Ryan permitiu-se um sorriso que ter­minou repentinamente. ¯ Não pretendo ir para a cadeia. Preferiria morrer a me desgraçar desta maneira. Que diabo, arrisquei minha vi­da... coloquei tudo em jogo. Algumas coisas você sabe, outras nãos. Arrisquei minha vida por este país e agora querem me colocar na cadeia!

¯  Talvez possamos ajudar. ¯ Finalmente veio a oferta.

¯  Desertar? Deve estar brincando. Não espera de verdade que eu viva no seu paraíso do proletariado, não é?

¯  Não, mas com o incentivo correto talvez pudéssemos mudar sua situação. Haverá testemunhas contra você. Eles podiam sofrer aci­dentes...

¯  Não me venha com esse papo! ¯ Jack inclinou-se para a frente. ¯ Você não faz esse tipo de coisas em nosso país e nós não fazemos no de vocês.

¯  Tudo tem um preço. Certamente compreende isso muito melhor do que eu. ¯ Platonov sorriu. ¯ Por exemplo, o "desastre" que o senador Trent sugeriu ontem à noite. O que poderia ser?

¯  E como vou saber para quem está trabalhando de fato? ¯ inda­gou Jack.

¯  O quê?

Aquilo o havia surpreendido, percebeu Ryan através da dor latejan­te em seus seios nasais.

¯  Quer um incentivo? Sergey, estou a ponto de colocar minha vida em jogo. Só porque já fiz isso uma vez, não pense que é fácil. Temos alguém infiltrado na Central de Moscou. Alguém importante. Diga-me o que este nome poderia comprar para mim.

¯  Sua liberdade ¯ respondeu Platonov sem demora. ¯ Se ele é tão importante como diz, poderíamos mesmo fazer muita coisa.

Ryan não pronunciou nenhuma palavra por mais de um minuto. Os dois homens olharam um para o outro como se jogassem car­tas e estivessem apostando tudo que possuíam ¯ muito embora Ryan soubesse que seu cacife era menor. Platonov igualava a intensidade do olhar do americano e ficou contente em perceber que seu poder prevalecera.

¯  Estou partindo para Moscou no final da semana, a menos que a história estoure antes disso, e nesse caso estou fodido. O que eu aca­bei de lhe dizer não deve passar pelos canais normais. A única pessoa que tenho certeza de que não é, é Gerasimov. A informação precisa ir ao diretor-geral pessoalmente, diretamente, sem intermediários, ou nos arriscamos a perder o nome.

¯  E por que devo acreditar em você? ¯ O russo impunha sua van­tagem, mas com cuidado.

Foi a vez de Jack sorrir. A carta que esperava tinha entrado em seu jogo.

¯  Não sei o nome, mas conheço os dados. Com as quatro informa­ções que eu sei que vieram do Condutor, o codinome dele, seus ho­mens podem deduzir o resto. Se sua carta seguir pelos canais normais, provavelmente não chego nem até o avião. É para mostrar quão eleva­do é o cargo que ele ocupa, se é dele que se trata, mas provavelmente sim. Como vou saber que você manterá sua palavra?

¯  No ramo da Inteligência, a gente precisa cumprir as promessas ¯ assegurou Platonov.

¯  Então diga ao seu diretor-geral que desejo encontrá-lo, se ele pu­der. De homem para homem. Sem truques.

¯  O diretor-geral? O diretor-geral não...

¯ Nesse caso tomo minhas próprias providências legais e arrisco a sorte. Não pretendo ir para a cadeia por traição, tampouco, se puder evitar. Este é o trato, camarada Platonov ¯ concluiu Jack. ¯ Tenha um bom dia.

Jack se levantou e afastou-se. Platonov não o seguiu. Ele olhou em volta e encontrou seu segurança, que sinalizou para informar que eles não tinham sido observados.

E ele tinha sua própria decisão a tomar. Ryan estava sendo sincero? Cassius achava que sim.

Ele controlava o agente Cassius há três anos. Os dados de Peter Henderson sempre saíam do país. Eles o usaram para seguir e prender um coronel da Força de Foguetes Estratégicos que estivera trabalhan­do para a CIA, arranjou informações políticas e estratégicas inestimá­veis, e até mesmo uma análise interna do caso do Outubro Vermelho no ano anterior ¯ não, foi há dois anos, logo antes que o senador Donaldson se aposentasse ¯, e, agora que trabalhava na GAO, tinha o melhor de dois mundos: acesso direto a dados sigilosos de defesa e todos os contatos políticos na Colina. Cassius lhes havia dito, há al­gum tempo, que Ryan estava sendo investigado. Na época parecera apenas uma coisa pequena, ninguém havia levado muito a sério. Os americanos estavam sempre investigando uns aos outros. Era o seu es­porte nacional. Então ouviu a mesma história uma segunda vez, de­pois aquela cena com Trent. Seria mesmo possível?

Um vazamento nas altas esferas da KGB, pensou Platonov. Havia um protocolo, claro, para enviar qualquer dado importante ao diretor-geral. A KGB permitia essa possibilidade. Uma vez a mensagem enviada, teria de ser seguida. Só a pista de que a CIA possuía um agente na cúpula da KGB...

Mas esta era a única consideração a ser feita.

Uma vez lançado o anzol, fisgaremos o doutor Ryan. Talvez ele seja tolo o suficiente para acreditar que uma troca de informações para os servi­ços possa ser realizada apenas uma vez, e que não ouvirá mais falar de nós... é mais fácil ele estar tão desesperado que não se importe, no momen­to. Que tipo de informação poderíamos obter dele?

Assistente especial do vice-diretor de Inteligência! Ryan devia ter acesso a quase tudo! Recrutar um agente tão valioso ¯ isso não fora feito des­de "Kim" Philby, há quase cinqüenta anos!

Mas ele é tão importante assim para quebrar as regras?, perguntou-se Platonov enquanto terminava sua bebida. Nunca em toda sua exis­tência a KGB cometera qualquer ato de violência contra os Estados Unidos ¯ havia um acordo de cavalheiros quanto a esse assunto. Mas quais eram as regras contra esse tipo de vantagem? Talvez um ou dois americanos tivessem um acidente de carro, ou um ataque cardíaco ines­perado. Isto teria de ser aprovado pelo diretor-geral. Platonov faria sua recomendação. Seria seguida. Tinha certeza disso.

O diplomata era um homem meticuloso. Limpou o rosto com o guar­danapo de papel, colocou todos os restos no interior do copo descartá­vel e depositou tudo na lata de lixo próxima. Não deixou nada para trás que pudesse sugerir que estivera ali.

O Arqueiro estava certo de que iriam vencer. Ao anunciar sua mis­são aos subordinados, a reação não poderia ter sido melhor. Sorrisos, expressões divertidas, olhares de lado, acenos de concordância. O mais entusiástico dentre todos fora o novo membro, o ex-major do Exército afegão. Em sua barraca, 20 quilômetros para o interior do Afeganis­tão, os planos foram preparados em cinco horas de tensão.

O Arqueiro examinou a fase 1, já completa. Seis caminhões e três transportadores BTR-60 de infantaria estavam em suas mãos. Alguns danificados, como era previsível. Os soldados mortos das tropas con­troladas estavam sendo despidos de seus uniformes. Onze sobreviven­tes passavam por interrogatório. Eles não participariam desta missão, claro, mas, se provassem ser dignos de confiança, lhes seria permitido juntar-se a bandos aliados de guerrilheiros. Quanto aos outros...

O ex-oficial do Exército recuperou mapas e códigos de rádio. Sabia todos os procedimentos que os russos haviam ensinado aos "irmãos" afegães.

Existia uma base-acampamento de um batalhão, 10 quilômetros ao norte dali, pela Rodovia Shékábád. O ex-major fez contato com eles pelo rádio, indicando que "Girassol" repelira a emboscada com per­das moderadas, e estavam se dirigindo para lá. Isto teve a aprovação do comandante do batalhão.

Carregaram alguns dos corpos, ainda em seus uniformes ensangüen­tados. Ex-membros treinados do Exército afegão assumiram as me­tralhadoras pesadas nos transportadores BTR enquanto a coluna se movia, mantendo a formação tática adequada na estrada de cascalho. A base ficava no lado distante do rio. Vinte minutos mais tarde pude­ram avistá-la. A ponte há muito fora destruída, mas os engenheiros russos colocaram cascalho suficiente para fazer a passagem a vau. A coluna estacou no posto leste de guarda.

Essa foi a parte mais tensa. O major fez o sinal apropriado, e o guarda acenou para que passassem. Um a um, os veículos atravessaram o rio. A superfície estava congelada e os motoristas tiveram de seguir uma linha de varas para evitar ficarem presos na água profunda sob o gelo quebradiço. Mais 500 metros.

O acampamento da base ficava numa pequena elevação. Era cerca­do por trincheiras feitas de sacos de areia e troncos. Nenhuma estava completamente guarnecida. O acampamento era bem localizado, com campos largos se estendendo em todas as direções, mas só guameciam completamente os postos armados ao anoitecer. Apenas uma compa­nhia de soldados estava na base, enquanto os restantes patrulhavam as colinas ao redor. Além disso, a coluna chegava na hora do almoço. A garagem do batalhão estava à vista.

O Arqueiro ocupava o banco da frente do primeiro caminhão. Perguntou-se por que confiara tão completamente no major traidor, mas resolveu que não era a hora apropriada para esse tipo de preo­cupação.

O comandante do batalhão saiu de sua casamata mastigando um bo­cado de comida, enquanto observava os soldados que saíam do cami­nhão. Estava esperando pelo comandante da unidade e demonstrou certo aborrecimento quando a porta do BMP se abriu lentamente e um homem uniformizado surgiu.

¯  Quem é você?

¯  Allahu akhbarl ¯ gritou o major.

Seu fuzil derrubou o inquiridor. As metralhadoras pesadas foram disparadas contra a massa de homens que almoçava, enquanto o Ar­queiro e seus homens corriam para as trincheiras metade desguarne­cidas. Levou dez minutos até que toda a resistência cessasse, mas não houve chance para os defensores, não com mais de cem homens ar­mados no interior do acampamento. Foram feitos vinte prisioneiros. Os únicos russos em seu posto ¯ dois tenentes e um sargento de co­municações ¯ foram mortos inadvertidamente, e os outros colocados sob vigilância, enquanto o major e seus homens corriam para a garagem.

Apanharam mais dois transportadores BTR e quatro caminhões. Aquilo devia ser o bastante. O resto, queimaram. Queimaram tudo o que não puderam carregar. Levaram quatro morteiros, meia dúzia de metralhadoras e todos os uniformes de reserva que conseguiram encontrar. O restante do acampamento foi totalmente destruído ¯ es­pecialmente os rádios, que primeiro foram destroçados a coronhadas, depois queimados. Uma pequena força de guarda ficou para trás com os prisioneiros, a quem seria dada a chance de juntar-se aos mudjahi­din ¯ ou morrer por sua lealdade aos infiéis.

Eram cinqüenta quilômetros até Kabul. A coluna de veículos, ago­ra aumentada, dirigiu-se para o norte. Mais homens do Arqueiro juntaram-se a eles, saltando a bordo dos veículos. Seu contingente agora totalizava duzentos homens, vestidos e equipados como soldados re­gulares do Exército afegão, rodando para o norte em veículos milita­res russos.

O tempo era o inimigo mais perigoso. Atingiram os arrabaldes de Kabul noventa minutos depois e encontraram o primeiro dos vários postos de controle.

A pele do Arqueiro arrepiou-se por estar tão próximo a tantos sol­dados russos. Quando veio o crepúsculo, os soviéticos voltaram aos seus vagões e casamatas, deixando as ruas para os afegães, porém nem mesmo o sol poente fez com que se sentisse seguro. As verificações eram mais rigorosas do que esperara, e o major conversando com os guardas fez com que passassem por todas elas, usando documentos de viagem e senhas do acampamento recentemente destruído. Mais objetiva, a rota de viagem os manteve afastados das partes mais guarnecidas da cidade. Em menos de duas horas, a cidade ficou atrás de­les, e rodaram para a frente sob a escuridão acolhedora.

Continuaram até que começaram a ficar sem combustível. Nesse ponto os veículos foram retirados das estradas. Um ocidental ficaria surpreso com a felicidade dos mudjahidin ao abandonar os veículos, mesmo que isso significasse carregar as armas nas costas. Bem des­cansados, os guerrilheiros marcharam para as colinas, em direção ao norte.

O dia só trouxera más notícias, notou Gerasimov, enquanto encara­va o coronel Vatutin.

¯  Está me dizendo que não pode dobrar o homem?

¯  Camarada diretor-geral, nosso pessoal médico se declara contra o procedimento de privação de sentidos, ou qualquer forma de abu­sos físicos. ¯ A palavra tortura não era mais usada na sede da KGB. ¯ Poderia matá-lo. Em vista de sua insistência numa confissão, pre­cisamos usar... métodos primitivos de interrogatório. O prisioneiro é uma pessoa muito difícil. Mentalmente é muito mais resistente do que imaginamos a princípio ¯ declarou Vatutin, tão calmamente quanto conseguiu. Ele seria capaz de matar por um pouco de álcool, no momento.

¯  Tudo porque você pôs a perder a prisão! ¯ observou friamente Gerasimov. ¯ Tinha grandes esperanças em você, coronel. Pensei que fosse um homem de futuro. Pensei que estivesse pronto para progre­dir Será que eu estava errado, camarada coronel?

¯Minha preocupação com esse assunto está limitada a desmasca­rar um traidor da Mãe Pátria. ¯ Foi necessária toda a disciplina de Vatutin para não perder o autocontrole. ¯ Sinto que fiz isso. Sabe­mos que ele cometeu traição. Temos as provas...

¯  Yazov não vai aceitá-las.

¯  Contra-inteligência é um assunto da KGB e não do Ministério

da Defesa.

¯  Talvez tivesse a bondade de explicar isso para o secretário-geral do Partido ¯ disse Gerasimov, deixando sua raiva extravasar. ¯ Co­ronel Vatutin, preciso dessa confissão.

Gerasimov esperara conseguir mais um trunfo profissional nesse dia, mas o relatório FLASH dos Estados Unidos o anulara ¯ pior ainda, Gerasimov havia passado a informação um dia antes de validá-la. A agente Livia se desculpava, dizia o relatório, mas o programa de computador transmitido pela camarada Bisyarina estava, infelizmente, ob­soleto. Algo que talvez pudesse apaziguar as coisas entre a KGB e o Ministério da Defesa já não existia.

Ele precisava da confissão, e tinha de ser uma não extraída por tor­tura. Todos sabiam que a tortura podia produzir quase tudo o que os interrogadores desejassem, que todos os prisioneiros temiam a dor para admitir o que quer que fosse. Precisava de algo bom o suficiente para apresentar ao próprio Politburo, cujos membros não receavam mais a KGB, a ponto de aceitar apenas a palavra de Gerasimov.

¯  Vatutin, preciso da confissão, e preciso logo. Quando pode con­seguir?

¯  Utilizando os métodos aos quais ficamos limitados agora, não mais do que duas semanas. Podemos privá-lo de sono. Isso leva tempo, ainda mais que cs velhos precisam dormir menos do que os jovens. Gradual­mente ele ficará desorientado e cederá. Por tudo o que sabemos sobre esse homem, vai usar toda a sua coragem para lutar contra isso... É corajoso, mas é apenas um homem. Duas semanas ¯ afirmou Vatu­tin, sabendo que dez dias seriam suficientes. Melhor prevenir.

¯  Muito bem. ¯ Gerasimov fez uma pausa. Era hora para encora­jamento. ¯ Coronel Vatutin, para falar objetivamente, você conduziu bem a investigação, a despeito do desapontamento na fase final. Não é razoável esperar a perfeição de todas as coisas, e as complicações po­líticas não são de sua alçada. Se providenciar o que é necessário, será recompensado adequadamente. Continue.

¯  Obrigado, camarada diretor-geral.

Gerasimov observou-o partir, depois chamou seu carro.

O diretor-geral da KGB não viajava sozinho. Seu Zil particular ¯ uma limusine feita à mão que lembrava um gigantesco carro america­no de trinta anos atrás ¯ era seguido por um Volga ainda mais feio, cheio de guarda-costas escolhidos por sua habilidade em combate e lealdade absoluta ao diretor-geral. Gerasimov sentava-se sozinho no banco traseiro, observando os prédios de Moscou pelo vidro, enquan­to o carro era conduzido pela faixa central das largas avenidas. Logo saíram da cidade, penetrando nas florestas onde os alemães foram de­tidos em 1941.

Muitos dos que foram capturados ¯ aqueles que sobreviveram ao tifo e à fome ¯ haviam construído as dachas, casas de campo soviéti­cas. Por mais que os russos odiassem os alemães, a nomenklatura ¯ a classe dominante nessa sociedade sem classe ¯ era viciada em equi­pamentos alemães. Aparelhos eletrônicos Siemens e utilidades domés­ticas Blaupunkt faziam parte dos lares tanto quanto o exemplar do Pravda e o noticiário "Tass Branco". As moradias nas florestas de pi­nheiros a leste de Moscou eram tão bem construídas como tudo dei­xado pelos czares. Gerasimov sempre se perguntava o que tinha acontecido aos soldados alemães que trabalharam para fazê-las. Não que isso importasse.

A dacha oficial do acadêmico Mikhail Petrovich Alexandrov não era diferente do resto: dois andares, a lateral de madeira pintada de creme e um telhado bastante inclinado que pareceria natural se estivesse na Floresta Negra. O acesso consistia numa trilha de cascalho entre as árvores. Apenas um carro estava estacionado ali. Viúvo, Alexandrov havia passado da idade em que poderia procurar a companhia de be­las jovens. Gerasimov abriu a própria porta, verificando rapidamente se o pessoal de sua segurança estava se dispersando pelas árvores co­mo sempre. Pararam apenas para colocar agasalhos que foram buscar na mala do carro, espessos casacos de pele branca e botas pesadas pa­ra manter os pés aquecidos sobre a neve.

¯  Nikolay Borissovich! ¯ Alexandrov atendeu pessoalmente a porta.

A dacha era servida por um casal que fazia arrumação e limpeza, mas sabia quando ficar fora do caminho. Essa era uma das ocasiões. O acadêmico tirou o casaco de Gerasimov e o pendurou num cabide ao lado da porta.

¯  Obrigado, Mikhail Petrovich.

¯  Chá? ¯ Alexandrov fez um gesto em direção à sala de estar.

¯  Está frio lá fora ¯ comentou Gerasimov.

Os dois homens sentaram em lados opostos da mesa, em antigas ca­deiras estofadas. Alexandrov gostava de receber pessoas, pelo menos seus associados. Ele despejou o chá, depois serviu num pratinho uma pequena quantidade de cerejas brancas cristalizadas. Beberam o chá da maneira tradicional, colocando algumas das cerejas adocicadas na boca, e deixando que o chá passasse entre elas. Isso tornava a conver­sa um pouco desajeitada, mas era tipicamente russo. Alexandrov apre­ciava velhos hábitos. Da mesma forma que estava comprometido com os ideais do marxismo, o chefe ideológico do Politburo mantinha os costumes de sua juventude nos mínimos detalhes.

¯  O que há de novo?

Gerasimov fez um gesto de aborrecimento.

¯  O espião Filitov é um velho duro de roer. Vai demorar mais uma semana ou duas para conseguir a confissão.

¯  Devia fuzilar aquele seu coronel que... O diretor-geral da KGB balançou a cabeça.

¯  Não, não. Precisamos ser objetivos. O coronel Vatutin procedeu bem. Devia ter deixado o ato da prisão para um homem mais jovem, mas eu lhe disse que o caso era dele, e sem dúvida ele tomou minhas instruções ao pé da letra. Lidou com o restante do caso de modo qua­se perfeito.

¯  Você está ficando generoso cedo demais, Kolya ¯ observou Ale­xandrov. ¯ É tão difícil assim surpreender um velho de 72 anos?

¯  Não este. O espião americano era bom, como seria de esperar. Bons agentes de campo possuem instintos aguçados. Se eles não fos­sem tão habilidosos, o socialismo mundial já poderia ter sido alcança­do ¯ acrescentou ele, um pouco desajeitadamente.

Alexandrov vivia em seu universo acadêmico, pouco sabendo sobre como as coisas funcionavam no mundo real. Era difícil respeitar al­guém como ele, mas menos difícil temê-lo.

O homem mais velho grunhiu.

¯  Suponho que possamos esperar mais uma semana ou duas. Não gosto da idéia de fazer tudo enquanto a delegação americana estiver aqui...

¯  Pode ser depois que eles* saírem. Se for alcançado um acordo, não perdemos nada.

¯  É loucura reduzir nossos armamentos! ¯ insistiu Alexandrov. Mikhail Petrovich ainda achava que armas nucleares eram como tan­ques e homens: quanto mais, melhor. Como a maioria dos políticos teóricos, não se incomodava em apreender os fatos.

¯   Vamos manter os foguetes mais recentes e os melhores ¯ expli­cou pacientemente Gerasimov. ¯ E o mais importante é que Estrela Brilhante está se desenvolvendo bem. Com o que nossos cientistas já conseguiram, mais o que aprendermos com os planos do programa americano, em menos de dez anos estaremos em condições de defen­der a Rodina contra qualquer ataque estrangeiro.

¯  Você tem boas fontes dentro do programa americano?

¯  Muito boas ¯ declarou Gerasimov, colocando de lado seu chá. ¯ Parece que alguns dados que acabamos de receber foram enviados cedo demais. Algumas das instruções do computador nos foram en­viadas antes dos testes e revelaram-se defeituosas. Um embaraço, sem dúvida, mas, se é para ficar embaraçados, melhor por excesso de zelo do que por ineficiência.

Alexandrov descartou o assunto com um aceno de mão.

¯  Falei com Vaneyev ontem à noite.

¯  E?

¯  Ele é nosso. Não pode suportar a idéia da bela filhinha dele em um campo de trabalhos forçados... ou algo pior. Expliquei o que que­remos dele. Foi muito fácil. Uma vez que consiga a confissão daquele filho da mãe do Filitov, faremos tudo ao mesmo tempo. Melhor reali­zar tudo de uma vez. ¯ O acadêmico balançava a cabeça, reforçando suas palavras. Ele era perito em manobras políticas.

¯  Estou preocupado com as possíveis reações do Ocidente... ¯ ob­servou cautelosamente Gerasimov.

A velha raposa sorriu sobre seu chá.

¯  Narmonov sofrerá um ataque cardíaco. Ele tem idade para isso. Não será fatal, claro, mas suficiente para afastá-lo. Vamos assegurar ao Ocidente que sua política continuará sendo seguida. Posso até con­viver com o desarmamento, se você insiste. ¯ Alexandrov fez uma pau­sa. ¯ Não faz sentido alarmarmos ninguém sem motivo. Tudo o que me preocupa é a primazia do Partido.

¯  Naturalmente. ¯ Gerasimov sabia o que se seguiria e recostou-se na poltrona para ouvir novamente.

¯  Se não pararmos Narmonov, o Partido está liquidado! O idiota, atirando fora tudo o que conseguimos com tanto trabalho. Sem a lide­rança do Partido, um alemão poderia estar morando nesta casa. Sem Stálin para colocar aço na espinha das pessoas, onde estaríamos nós? E Narmonov condena nosso maior líder... depois de Lênin ¯ acres­centou rapidamente o acadêmico. ¯ Este país precisa é de alguém com mão forte, uma mão forte, não milhares de pequenas mãos! Nosso po­vo entende isso. Nosso povo deseja isso.

Gerasimov sinalizou sua concordância, perguntando-se por que aque­le tolo balbuciante tinha de repetir sempre a mesma coisa. O Partido não queria nenhuma mão forte, por mais que Alexandrov negasse o fato O Partido em si era composto por um milhar de mãozinhas sequiosas: os membros do Comitê Central, os apparatchik que pagaram suas dívidas, repetiram seus slogans, compareceram às reuniões se­manais até ficarem completamente enjoados de tudo que o Partido di­zia, mas continuavam porque esse era o caminho para progredir, e progresso significava privilégios. Progresso significava um carro, e via­gens para Sochi... e eletrodomésticos Blaupunkt.

Gerasimov sabia que todos os homens tinham seu ponto fraco. O de Alexandrov era que tão poucas pessoas acreditassem realmente no Partido. Gerasimov não acreditava. O Partido era o que nutria ambi­ções. O poder tinha a sua própria justificativa, e, para ele, o Partido era a trilha para o poder. Passara toda a sua vida protegendo o Partido daqueles que queriam alterar a equação do poder. Agora, como diretor-geral da própria "espada e escudo" do Partido, estava na melhor po­sição possível para tomar as rédeas do Partido. Alexandrov ficaria sur­preso, escandalizado mesmo, ao saber que seu jovem aluno só tinha o poder como objetivo, sem nenhum outro plano que não seu status quo ante. A União Soviética continuaria como antes, segura por trás de suas fronteiras, procurando estender sua forma de governo a qual­quer país que quisesse aproveitar a oportunidade. Haveria algum avan­ço, em parte por mudanças internas, em parte pelo que pudesse ser obtido do Ocidente, mas não o bastante para provocar mudanças brus­cas, como Narmonov ameaçara fazer. Com o poder da KGB para apoiá-lo, não precisava temer por sua segurança ¯ certamente não depois de derrotar o Ministério da Defesa. Portanto, escutou a arenga de Ale­xandrov sobre teoria do Partido, concordando quando era apropria­do. Para um observador, pareceria com a cena de milhares de fotografias antigas ¯ quase todas falsas ¯ de Stálin escutando com atenção redo­brada as palavras de Lênin. Como Stálin, ele usaria as palavras para obter seus próprios desígnios. Gerasimov acreditava em Gerasimov.

 

Vantagens

¯ Mas eu acabei de comer! ¯ protestou Misha.

¯  Qual nada! ¯ respondeu o carcereiro. Estendeu seu relógio. ¯ Veja a hora, seu velho bobo. Pode comer, está chegando a hora do seu interrogatório. ¯ O homem se inclinou para a frente. ¯ Por que não diz a eles o que querem saber, camarada?

¯  Não sou um traidor! Isso não!

¯  Como quiser. Coma bastante. ¯ A porta da cela retiniu no ba­tente com um ruído metálico.

¯  Não sou um traidor! ¯ disse Filitov depois que a porta se fe­chou. ¯ Isso não! ¯ captou o microfone. ¯ Isso não...

¯  Estamos quase conseguindo ¯ comentou Vatutin.

O que sucedia a Filitov não era muito diferente do que o médico tentava provocar no tanque para privação de sentidos. O prisioneiro perdia contato com a realidade, embora muito mais lentamente do que Vaneyeva. Seu tanque era o interior do prédio, que subtraía ao prisio­neiro o ritmo do dia e da noite. A única lâmpada nunca se apagava. Depois de alguns dias, Filitov perdeu toda noção de tempo. A seguir, as funções orgânicas começaram a apresentaf alguma irregularidade. Depois, foi alterado o intervalo entre as refeições. O corpo sabia que alguma coisa estava errada, sentia isso e tinha tão pouco sucesso ao lidar com a desorientação que a situação do prisioneiro era semelhan­te a uma doença mental. Era uma técnica clássica: dificilmente um indivíduo a suportava por mais de duas semanas, e mesmo assim de­pois se descobria que o prisioneiro resistira apoiado em acontecimentos fora do controle de seus interrogadores, tais como ruídos de trânsito ou pelo encanamento, sons que seguiam padrões regulares. Gradual­mente, o "Dois" aprendera a isolar todos eles. O novo bloco de celas especiais era isolado acusticamente do resto do mundo. A cozinha fi­cava num andar acima para eliminar aromas. Esta parte de Lefortovo refletia anos e anos de experiências no sentido de dobrar o espírito humano.

Melhor que tortura, pensou Vatutin. Tortura invariavelmente afetava também os interrogadores. Era um problema. Uma vez que um ho­mem ¯ em casos raros, uma mulher ¯ ficava perito no assunto, a mente da pessoa mudava. O torturador aos poucos ficava louco, resul­tando em interrogatórios não confiáveis e em um agente inútil da KGB que precisava ser substituído e, ocasionalmente, hospitalizado. Nos anos 30, tais agentes eram executados assim que seus mestres políti­cos compreendiam o que haviam criado, e apenas para serem substi­tuídos por outros, até que os interrogadores começaram a buscar métodos mais criativos e inteligentes. Melhor para todos, pensou Vatu­tin. As novas técnicas, mesmo as abusivas, não infligiam danos físicos permanentes. Agora quase parecia que tentavam curar o distúrbio men­tal provocado, e os médicos que tratavam disso para a KGB já podiam afirmar com segurança que a traição contra a Mãe Pátria era em si um sintoma de grave desvio de personalidade, que demandava trata­mento enérgico. Fazia com que todos se sentissem melhor sobre o tra­balho. Afinal, enquanto se podia sentir culpa causando dor em um inimigo corajoso, era possível sentir-se bem ajudando a curar um doente mental.

Este é mais doente que a maioria, pensou Vatutin amargamente. Ele era um pouco cínico demais para acreditar no besteirol que os novatos do "Dois" aprendiam no Treinamento e Orientação. Lembrou-se das histórias notáveis dos que o treinaram quase trinta anos antes ¯ nos bons e velhos dias de Berya... Embora sua pele se tivesse arrepiado ao ouvir aqueles loucos falarem, pelo menos eram honestos sobre o que faziam. Embora fosse grato por não ter ficado como eles, não con­seguia iludir-se quanto a Filitov ser um homem doente. Era, na ver­dade, um homem corajoso que escolhera de livre e espontânea vontade trair seu país. Um homem mau, com certeza, porque violara as regras da sociedade em que vivia, e um adversário valoroso por tudo isso. Vatutin olhou pelo tubo de fibra óptica que corria para o teto da cela de Filitov, observando-o enquanto ouvia o som captado pelo microfone.

Há quanto tempo vem trabalhando para os americanos? Desde que sua família morreu? Tanto tempo assim? Quase trinta anos... seria possível?, indagava-se o coronel do Segundo Diretório. Era uma enorme perda de tempo. "Kim" Philby não durara tudo isso, e a carreira de Ri­chard Jorge, apesar de brilhante, fora breve.

Bem, fazia sentido. Havia ainda homenagens a serem prestadas a Oleg Penkovsky, o traidor coronel da GRU cuja captura fora um dos maiores casos do "Dois" ¯ agora envenenado pelo pensamento de que Penkovsky usara a própria morte para impulsionar a carreira de um espião ainda maior que ele... e provavelmente recrutado pessoal­mente por ele. Aquilo é que era coragem, disse a si mesmo Vatutin. Por que tanta virtude precisa ser investida em traição?, enfureceu-se. Por que não podem amar sua Mãe Pátria como eu amo? O coronel meneou a cabeça. O marxismo exigia objetividade de seus partidários, mas is­so era um exagero. Sempre havia o perigo de identificar-se intima­mente demais com os ideais do prisioneiro. Ele raramente tinha esse problema, mas por outro lado nunca lidara com um caso assim. Três vezes Herói da União Soviética! Um verdadeiro ícone nacional, cujo rosto estivera na capa de revistas e livros. Será que algum dia poder-se-á tornar conhecido o que ele fizera? Como reagiria o povo soviético à notícia de que Misha, o herói de Stalingrado, um dos mais corajosos combatentes do Exército Vermelho, se tornara traidor da Rodina? O efeito no moral nacional era algo a ser considerado.

Esse problema não é meu, disse a si mesmo. Observou o velho atra­vés do seu dispositivo de alta tecnologia. Filitov tentava ingerir sua refeição, sem acreditar muito que era hora de comer, mas ignorando que seu desjejum ¯ todas as refeições eram iguais, por motivos ób­vios ¯ fora servido apenas noventa minutos antes.

Vatutin pôs-se de pé e esticou-se para aliviar a dor nas costas. Um efeito colateral dessa técnica era a maneira como desregulava a vida dos próprios interrogadores. Seu horário ficava arruinado. Passava um pouco da meia-noite, e ele mal conseguira dormir sete horas nas últi­mas trinta e seis. Mas pelo menos sabia a hora, o dia e a estação. Fili­tov não, com certeza. Inclinou-se para ver o prisioneiro terminando sua tigela de trigo-sarraceno.

¯ Tragam-no ¯ ordenou o coronel Klementi Vladimirovich Vatutin.

Ele entrou no banheiro e borrifou um pouco de água fria no rosto. Deu uma olhada no espelho e decidiu que não precisava barbear-se. A seguir, certificou-se de que o uniforme estava com o caimento perfeito. O único fator constante no mundo desordenado do prisioneiro era o ros­to e a imagem de seu interrogador. Vatutin praticava até mesmo seu olhar no espelho: orgulhoso, arrogante, mas também cheio de compaixão. Não ficou envergonhado do que viu. Aquele era um profissional, disse ao pró­prio reflexo no espelho. Não um bárbaro, não um degenerado, mas um homem habilidoso fazendo um trabalho difícil e necessário.

Vatutin estava sentado na sala de interrogatório, como sempre, quan­do o prisioneiro entrou. Invariavelmente ele parecia estar fazendo al­guma coisa quando a porta se abria, e sua cabeça sempre se levantava como a dizer: Ah, já é hora de falar com você outra vez? Ele fechou a pasta à sua frente e guardou-a na valise, enquanto Filitov sentava na cadeira. Aquilo era bom, notou Vatutin sem olhar. O prisioneiro dispensava ordens e sabia o que precisava fazer, a mente fixa na única realidade que possuía: Vatutin.

¯  Espero que tenha dormido bem ¯ disse ele a Filitov.

¯  Bastante bem ¯ foi a resposta.

Os olhos do velho estavam embaçados. O azul não tinha mais o bri­lho que Vatutin admirara na primeira sessão.

¯  Está sendo alimentado adequadamente?

¯  Tenho comido melhor. ¯ Um sorriso alquebrado, com alguma rebeldia e orgulho por trás, mas nem tanto quanto imaginava seu por­tador. ¯ Mas também tenho comido pior.

Vatutin mediu desapaixonadamente a força de seu prisioneiro: ha­via diminuído. Você sabe, pensou o coronel, você sabe que vai perder. Sabe que é só uma questão de tempo. Posso ver isso. E estreitou os olhos, procurando e encontrando fraqueza no olhar do outro. Filitov tentava não vacilar diante daquele olhar, mas os limites foram atingidos e al­guma coisa estava se soltando enquanto Vatutin observava. Você sabe que está perdendo, Filitov.

Qual é a vantagem, Misha?, dizia-lhe sua voz interior, em desespe­ro. Ele tem tempo... ele controla o tempo. Vai fazer de tudo para quebrar você. Ele está ganhando, e você sabe disso.

Diga-me, camarada capitão, por que se pergunta coisas tão tolas? Por que precisa explicar-se por ser homem?, perguntou uma voz conhecida. Em todo o caminho, desde Brèst-Litovsk até Vyasma, sabíamos que está­vamos perdendo, mas nunca desisti, nem você. Se pode desafiar o Exérci­to alemão, certamente pode desafiar esse chekista molenga da cidade!

Obrigado, Romanov.

Como conseguiu se virar sem mim, meu capitão?, riu a voz. Apesar de toda sua inteligência, pode às vezes ser um homem muito tolo.

Vatutin percebeu que alguma coisa havia mudado. Os olhos se tor­naram límpidos, e as velhas costas se endireitaram novamente.

O que está dando forças a você? Ódio? Detesta o Estado pelo que acon­teceu à sua família... ou seria algo completamente diferente?

¯  Diga-me ¯ começou Vatutin. ¯ Diga-me por que odeia a Mãe

Pátria.

¯  Não odeio ¯ respondeu Filitov. ¯ Matei pela Mãe Pátria. Eu queimei pela Mãe Pátria. Mas não fiz essas coisas por gente como vo­cê. ¯ Apesar de toda a fraqueza, o brilho desafiador em seus olhos parecia uma chama. Vatutin não se comoveu.

Eu estava perto de conseguir, mas alguma coisa mudou. Se descobrir o que é, Filitov, eu pego você! Algo disse a Vatutin que ele já possuía o que precisava. O truque residia em identificar a informação.

O interrogatório continuou. Embora Filitov fosse resistir dessa vez, e da próxima, e mesmo depois disso, Vatutin estava drenando a ener­gia física e emocional do homem. Ambos sabiam disso. Era apenas uma questão de tempo. Numa coisa, porém, ambos estavam errados. Os dois achavam que Vatutin controlava o tempo, embora o tempo fosse o senhor supremo do homem.

Gerasimov ficou surpreso com o novo despacho FLASH dos Esta­dos Unidos, desta feita vindo de Platonov. Chegou por cabo, alertando-o de que uma mensagem exclusiva para o diretor-geral estava a cami­nho na mala diplomática. Aquilo era muito incomum. A KGB, mais do que outras agências de informações, ainda dependia de sistemas de códigos de despistamento. Eram impenetráveis, mesmo no sentido teórico, a menos que a seqüência de código em si fosse comprometi­da. Era vagaroso mas infalível, e a KGB queria o "infalível". Além daquele nível de transmissão, entretanto, havia outro protocolo ¯ pa­ra cada estação, um código especial ¯ que nem tinha nome, mas cor­ria diretamente do rezident para o diretor-geral. Platonov era mais importante do que a CIA suspeitava. Ele era o rezident de Washing­ton, o chefe de setor.

Quando o despacho chegou, foi trazido diretamente ao escritório de Gerasimov. Seu auxiliar para códigos, um capitão especialmente cre­denciado, não foi chamado. O diretor-geral decifrou a primeira sen­tença pessoalmente, percebendo que era um aviso sobre um possível traidor. A KGB não possuía um termo para designar um traidor em seu próprio quadro, mas os escalões mais altos conheciam o mundo ocidental.

O despacho era longo, e levou uma hora inteira para ser traduzido por Gerasimov, maldizendo o tempo todo sua falta de jeito ao decifrar as transposições aleatórias das trinta e três letras do alfabeto russo.

Um agente infiltrado na KGB?, perguntou-se Gerasimov. Em que ní­vel? Chamou seu secretário particular e pediu as fichas sobre o agente Cassius e Ryan, da CIA. Como sempre nessas ocasiões, não demorou muito. Deixou Cassius de lado por um instante e abriu o dossiê sobre Ryan.

Havia um esboço biográfico de seis páginas, atualizado seis meses antes, além dos recortes originais de jornais e respectivas traduções. Ele não precisava das últimas. Gerasimov falava num inglês aceitável, embora com sotaque. A idade era 35, ele leu, juntamente com as cre­denciais no mundo dos negócios, acadêmicas, e na comunidade de informações. Ele progredira depressa dentro da CIA: agente especial de ligação com Londres. Sua primeira avaliação das atividades da KGB era colorida por visões políticas de analista, notou Gerasimov. Um di­letante rico e sem fibra. Não, não era correto. Ele progredira muito rapidamente para isso ser verdade, a não ser que tivesse contado com influência política ¯ algo incompatível com seu perfil. Provavelmen­te um homem brilhante, e escritor, notou Gerasimov, reparando que havia exemplares de dois livros seus em Moscou. Certamente seria uma pessoa orgulhosa, acostumada ao conforto e aos privilégios.

Então você quebrou as leis cambiais americanas? O pensamento bro­tou com facilidade na mente do diretor-geral. A corrupção constituía o caminho para a riqueza e o poder em qualquer sociedade. Ryan ti­nha seu ponto fraco, como qualquer um. Gerasimov sabia que o seu era a sede de poder, mas julgava tudo que ficasse aquém disso como o objetivo de um tolo. Retomou a leitura do despacho de Platonov.

"Avaliação", concluía a mensagem: "O elemento não é motivado por razões ideológicas ou financeiras, mas pela raiva e pelo seu ego. Possui verdadeiro pavor da prisão, porém mais ainda de sua desgraça pessoal. Ryan provavelmente tem a informação que alega possuir. Se a CIA possui um espião altamente colocado na Central de Moscou, é provável que Ryan tenha visto dados dele, embora não conheça o nome nem o rosto. As informações devem ser suficientes para identi­ficar o vazamento.

"Recomendação: A oferta deveria ser aceita por dois motivos. Pri­meiro, identificar um espião americano. Segundo, fazer uso de Ryan no futuro. A única oportunidade oferecida possui duas faces. Se eli­minarmos as testemunhas contra ele, ele fica em dívida para conosco. Se esta ação for descoberta, ele pode ser incriminado pela CIA, e os inquéritos resultantes causarão grandes danos à agência americana. "

¯ Hum ¯ murmurou Gerasimov para si mesmo enquanto deixava de lado a pasta.

O dossiê do agente Cassius era muito mais grosso. Ele estava a ca­minho de se tornar uma das melhores fontes da KGB em Washing­ton. Gerasimov já o lera várias vezes e passou direto para as informações mais recentes. Dois meses antes, Ryan fora investigado, mas os deta­lhes eram desconhecidos ¯ Cassius os classificara como mexericos sem fundamento. Esse era um ponto a favor dele, pensou o diretor-geral. Também desligava o oferecimento de Ryan dos fatos mais recentes...

Filitov?

E se o agente bem colocado que Ryan poderia identificar fosse o mesmo que acabavam de prender?, imaginou Gerasimov.

Não. Ryan era suficientemente bem colocado na CIA para não con­fundir um ministério com outro. A única notícia ruim era que um espião dentro da KGB não era nada do que Gerasimov precisava no momento. Já era bastante ruim que existisse um, mas se a história se espalhasse para fora da sede... poderia ser um desastre. Se lançásse­mos uma investigação de verdade, a notícia se espalharia. Se não encon­trarmos o espião em nosso meio, e se estiver num alto cargo como Ryan afirma, e se a CIA descobrir que Alexandrov e eu...

E se descobrirem? E se esse... Gerasimov sorriu e olhou fora da jane­la. Ele perderia o lugar. Perderia o jogo. Cada fato tinha pelo menos três faces, e cada pensamento tinha seis. Não, se acreditasse naquilo, precisaria admitir que Cassius estava sob controle da CIA, e que tudo fora planejado depois que Filitov fora preso. Seria quase impossível.

O diretor-geral da Comissão para a Segurança do Estado verificou seu calendário para saber quando viriam os americanos. Haveria mais compromissos sociais nessa época. Se os americanos estivessem mes­mo resolvidos a colocar o programa Guerra nas Estrelas na mesa de negociações, isso melhoraria a imagem do secretário-geral Narmonov, mas quantos votos no Politburo conquistaria? Não muitos, enquanto eu conseguir manter a obstinação de Alexandrov sob controle. E se puder mos­trar que recrutei um agente tão bem colocado na CIA... se puder anunciar que os americanos vão negociar seus programas de defesa, então eu rouba­ria para mim um pouco da glória pela iniciativa de paz de Narmonov...

A decisão foi tomada.

Mas Gerasimov não era um homem impulsivo. Mandaria um sinal a Platonov para verificar alguns detalhes por meio do agente Cassius. Esse sinal poderia ser enviado por satélite.

O sinal chegou a Washington uma hora depois. Foi adequadamente captado do satélite soviético de comunicações, tanto pela embaixada soviética como pela agência americana de segurança nacional, que a arquivou em fita de computador ao lado de milhares de outros sinais russos com que a Agência trabalhava 24 horas por dia para decifrar.

Era mais fácil para os soviéticos. O sinal foi levado para um setor seguro da embaixada, onde um tenente da KGB converteu as letras embaralhadas em texto legível. Depois foi tudo trancado num cofre vigiado até a chegada de Platonov pela manhã.

Isso aconteceu às 6h30. Os jornais de costume estavam sobre sua escrivaninha. A imprensa americana era muito útil à KGB, pensou ele. A idéia de uma imprensa livre era tão estranha a ele que nunca che­gou a considerar sua verdadeira função. Mas outras coisas vinham em primeiro lugar. O agente de vigilância noturna entrou em seu escritó­rio às 6h45 e colocou-o a par dos acontecimentos da noite anterior, entregando também mensagens de Moscou, onde já passava da hora do almoço. No alto da lista de mensagens havia referência a uma nota exclusiva para o rezident. Platonov sabia qual o assunto em pauta e foi imediatamente até o cofre. O jovem agente da KGB que guardava essa parte da embaixada verificou escrupulosamente a identificação de Platonov ¯ seu antecessor perdera o emprego por ser ousado a ponto de presumir que conhecia Platonov de vista depois de apenas nove me­ses. A mensagem, num envelope lacrado, estava no nicho adequado, e Platonov colocou-a em seu bolso antes de fechar e trancar a porta.

O setor da KGB em Washington era maior do que o da CIA em Moscou, embora não grande o suficiente para adequar-se a Platonov, desde que o número de pessoas fora reduzido a uma equivalência nu­mérica com o pessoal da embaixada americana na União Soviética, algo que os americanos levaram anos para admitir. Ele geralmente reu­nia seus chefes de seção às 7h30 para uma conferência matinal, mas naquele dia mandou chamar um dos agentes mais cedo.

¯  Bom dia, camarada coronel ¯ disse apropriadamente o homem. A KGB nunca ficou conhecida por suas cortesias.

¯¯ Preciso de informações de Cassius sobre esse assunto do Ryan. E imperativo que confirmemos as dificuldades legais dele o mais bre­ve possível. Isso significa hoje, se você puder cuidar dos detalhes.

¯  Hoje? ¯ admirou-se o homem, com certo desconforto enquanto apanhava as instruções por escrito. ¯ E arriscado mover-se tão rápido.

¯  O diretor-geral está ciente disso ¯ observou secamente Platonov.

¯  Hoje, então ¯ aquiesceu o homem.

O rezident sorriu interiormente enquanto o agente saía. Esse fora o máximo de emoções que ele demonstrara em seis meses. Esse rapaz tinha futuro.

¯ Lá está Butch ¯ observou um dos agentes do FBI quando o ho­mem saiu da embaixada.

Eles sabiam seu verdadeiro nome, claro, mas o primeiro agente que o seguira notara que ele tinha aparência de Butch, e o apelido pegou. Sua rotina matinal era abrir ostensivamente alguns escritórios, depois sair para realizar pequenos serviços antes que o pessoal diplomático graduado aparecesse, às 9. Aquilo envolvia apanhar o café da manhã numa lanchonete ali perto, comprar vários jornais e revistas e freqüen­temente deixar uma marca ou duas em algum dos vários locais que percorria. Como na maioria das operações de contra-espionagem, a parte difícil era pegar a primeira pista. Depois disso era mero traba­lho policial. Haviam conseguido a primeira pista sobre Butch dezoito meses atrás.

Ele andou os quatro quarteirões até a loja, agasalhado contra o frio ¯ todos concordavam em que ele provavelmente achava o inverno em Washington bastante ameno ¯, e chegou ao local no horário. Como a maioria das lanchonetes, aquela possuía clientes regulares. Três de­les eram agentes do FBI. Uma estava vestida como uma mulher de negócios, sempre lendo seu Wall Street Journal, sozinha num reserva­do no canto. Dois usavam cintos com ferramentas de carpinteiro e dirigiam-se ao balcão antes ou depois de Butch entrar. Naquele dia, esperavam por ele. Não ficavam sempre lá, claro. A mulher, a agente especial Hazel Loomis, coordenava seu horário com o expediente co­mercial, tomando o cuidado de faltar nos feriados bancários. Era um risco, mas vigilância intensa, mesmo cuidadosamente planejada, não podia ser muito regular. Da mesma forma, os dois homens apareciam mesmo quando sabiam que Butch não viria, nunca alterando a roti­na, de modo que pudessem demonstrar interesse em seu objetivo.

A agente Loomis anotou o horário de chegada à margem de um ar­tigo ¯ ela sempre rabiscava no jornal ¯, e os carpinteiros o observa­ram pela parede espelhada atrás do balcão, enquanto devoravam ensopado de carne com batatas e trocavam piadas sujas. Como sem­pre, Butch comprara quatro jornais diferentes na banca vizinha à lanchonete. As revistas que ele cornprava chegavam nas terças-feiras. A garçonete serviu o café sem que ele precisasse pedir. Butch acen­deu seu cigarro habitual ¯ Marlboro, um favorito dos russos ¯ e tomou sua primeira xícara de café enquanto olhava a primeira página do Washington Post, que era o seu jornal habitual.

A segunda xícara era grátis, e a dele chegou bem em tempo. Levou

escassos seis minutos, o que correspondia ao normal, como todos repararam. Terminando, ele apanhou seus jornais e deixou algum dinheiro na mesa. Quando se afastou do lugar, puderam ver que ele havia amassado seu guardanapo de papel numa bola, colocada no pires ao lado da xícara de café vazia.

Negócios, pensou Loomis imediatamente. Butch apanhou sua conta na outra extremidade do balcão, pagou-a e saiu. Ele era bom, notou Loomis mais uma vez. Ela sabia onde e como ele deixara o sinal, mas ainda assim raramente percebia.

Mais um cliente entrou, um motorista de táxi que geralmente toma­va uma xícara de café logo cedo, e sentou-se sozinho na ponta do bal­cão. Abriu seu jornal na seção de esportes, enquanto corria o olhar pela lanchonete, como sempre fazia. Pôde ver o guardanapo no pires. Não era tão bom quanto Butch. Colocando o jornal no colo, correu a mão sob o balcão, disfarçando, e apanhou a mensagem. Escondeu-a entre as páginas do jornal.

Depois disso, foi muito fácil. Loomis pagou sua conta e saiu, sal­tando em seu Ford Escort e dirigindo para os apartamentos do Edifí­cio Watergate. Possuía uma chave do apartamento de Henderson.

¯  Hoje vai receber uma mensagem de Butch ¯ disse ela ao agente Cassius.

¯  Certo. ¯ Henderson interrompeu seu desjejum.

Ele não gostava nada de ser um agente duplo "controlado" por essa garota. Não gostava especialmente do fato de que ela entrara no caso devido a sua aparência, que a "cobertura" para os encontros era um suposto relacionamento amoroso que, claro, não passava de ficção. Por toda a doçura dela, o meloso sotaque sulista ¯ e a surpreendente be­leza ¯, Henderson sabia muito bem que Loomis o considerava pouco mais que um micróbio. "Lembre-se", dissera ela uma vez, "há uma sala esperando por você". Ela se referia a instalações penitenciárias americanas ¯ não a "estabelecimentos correcionais" ¯ em Marion, Illinois, que tinham substituído Alcatraz para receber os mais perigo­sos. Não era lugar para um homem educado em Harvard. Mas ela só fizera isso uma vez, costumando tratá-lo com educação, até mesmo tomando seu braço em publico. Isso só tornava as coisas piores.

¯  Quer ouvir boas novas? ¯ indagou Loomis.

¯  Claro.

¯  Se esse caso correr como estamos esperando, você pode sair com­pletamente limpo. ¯ Ela nunca lhe dissera isso.

¯  O que está havendo? ¯ perguntou Cassius interessado.

¯  Há um agente da CIA chamado Ryan...

¯  E, ouvi dizer que a Comissão de Valores Mobiliários o andou investigando, já faz alguns meses. Você me disse que podia passar a informação aos russos...

¯  Ele está sujo. Quebrou as regras, conseguiu ganhar meio milhão de dólares com informações privilegiadas, e há um júri daqui a duas semanas que vai foder com a alegria dele. ¯ O vocabulário era das mais coloridas expressões de rua, junto com o sorriso de heroína su­lista. ¯ A Agência vai colocá-lo de molho. Ninguém vai ajudá-lo. Ritter o odeia. Não se sabe por quê, mas você ouviu o assessor do senador Fredenburg. A impressão é de que ele vai ser o bode expiatório de alguma coisa que deu errado, sem saber do que se trata. Talvez algo ocorrido meses atrás, na Europa Central, mas isso foi tudo que ficou sabendo. Pode contar um pouco agora. O resto você os deixa esperan­do até a tarde. Mais uma coisa: você escutou rumores de que a Inicia­tiva de Defesa Estratégica pode ser colocada na mesa de negociações. Acha que a informação é ruim, mas ouviu um senador comentar al­guma coisa a respeito. Entendeu?

¯  Entendi ¯ concordou Henderson.

¯  Certo. ¯ Loomis foi até o banheiro. A lanchonete favorita de Butch servia comida gordurosa demais para seu organismo.

Henderson dirigiu-se ao quarto e escolheu uma gravata. Limpo?, devaneou ele, enquanto dava o nó, e depois mudou de idéia. Se era ver­dade... ele tinha de admitir que ela nunca mentira para ele. Me trata como ralé, mas nunca mentiu para mim, pensou. Então posso cair fora? E depois?, perguntou a si mesmo. Será que isso importa?

Importava, mas importava ainda mais o fato de sair limpo.

¯  Gosto mais da vermelha ¯ observou Loomis da porta. Ela sor­riu suavemente. ¯ Uma gravata "poderosa" para hoje, eu acho.

Henderson estendeu a mão para a vermelha.. Não lhe ocorreu pro­testar.

¯  Pode me dizer...

¯  Não sei... e você sabe o suficiente para não perguntar. Mas eles não me dariam autorização para dizer isso, a menos que todos achas­sem que já pagou alguma coisa, senhor Henderson.

¯  Por que não me chama de Peter, pelo menos uma vez? ¯ quis saber ele.

¯  Meu pai foi o vigésimo nono piloto abatido no Vietnã do Norte. Eles o apanharam vivo, havia fotos dele vivo, mas ele nunca voltou.

¯  Eu não sabia.

Ela falava no tom de quem discutia as condições do tempo.

¯  Você não sabia de uma porção de coisas, senhor Henderson. Não me deixaram pilotar como papai fazia, mas no FBI eu torno a vida desses filhos da mãe a mais difícil possível. Isso eles me deixam fazer. Espero que machuque tanto quanto eles me machucaram. ¯ Ela sor­riu outra vez. ¯ Isso não é muito profissional, é?

¯  Desculpe. Acho que não sei mais o que dizer.

¯  Claro que sabe. E só dizer ao seu contato o que lhe instruí. Ela lhe passou um minigravador, dotado de timer computadorizado

e um dispositivo antiescuta. Enquanto estivesse no táxi, ele ficaria sob vigilância intermitente. Se tentasse avisar seu contato de qualquer ma­neira que fosse, haveria uma chance ¯ cujo tamanho ele jamais sabe­ria ¯ de que fosse detectado. Não gostavam dele e nem confiavam. Sabiam que jamais mereceria afeição ou confiança, mas tentaria sair fora assim mesmo.

Deixou o apartamento alguns minutos mais tarde e desceu as esca­das. Havia o número normal de táxis circulando. Não gesticulou, mas esperou que um viesse até ele. Não começaram a falar até que o carro penetrou no tráfego da Avenida Virgínia.

O táxi o levou à rede do Controle Geral na Rua G Noroeste. No in­terior do prédio, entregou o gravador a outro agente do FBI. Hender­son suspeitava de que o aparelho também fosse um radiotransmissor, mas na verdade não era. O gravador foi para o Edifício Hoover. Loo­mis estava esperando quando ele chegou ali. A fita foi rebobinada e reproduzida.

¯  A CIA acertou uma vez ¯ observou ela ao supervisor. Havia al­guém ainda mais graduado lá. Loomis logo percebeu que o assunto era mais importante do que ela pensara de início.

¯  É o que parece. Uma fonte como Ryan não surge todo dia. Hen­derson representou muito bem seu papel.

¯  Eu disse a ele que isso podia ser o seu bilhete de saída. ¯ A voz dela sugeria mais que isso.

¯  Não aprova? ¯ perguntou o diretor assistente. Ele dirigia todas as operações de contra-espionagem.

¯  Ele ainda não pagou o suficiente pelo que fez.

¯  Senhorita Loomis, depois que isso terminar, vou lhe explicar por que está errada. Deixe o resto de lado, certo? Fez um ótimo trabalho cuidando desse caso. Não estrague tudo agora.

¯  O que vai acontecer a ele?

¯  O normal, dentro do programa de proteção a testemunhas. Ele pode acabar dirigindo uma loja em Billings, Montana, pelo que sei. ¯ O diretor assistente encolheu os ombros. ¯ Você será promovida e enviada ao setor de campo em Nova York. Temos mais um para o qual achamos que está pronta. É um diplomata ligado à ONU que precisa de um bom controlador.

¯  Certo. ¯ Desta vez o sorriso não era forçado.

¯  Eles morderam a isca de verdade ¯ disse Ritter a Ryan. ¯ Só espero que possa fazê-lo, rapaz.

¯  Não há nenhum perigo envolvido. ¯ Jack esfregou as mãos. ¯ Deve ser algo bastante civilizado.

Só as partes que você conhece.

¯  Ryan, você ainda é amador em operações de campo. Lembre-se disso.

¯  Tenho que ser, para esse tipo de trabalho ¯ ressaltou Ryan.

¯  Aqueles a quem os deuses destroem, primeiro ficam orgulhosos ¯ afirmou o vice-diretor de Operações.

¯  Não citou Sófocles corretamente ¯ sorriu Jack.

¯  Do meu jeito é melhor. Sou citado como autor da frase no mural que existe lá no campo de treinamento da CIA.

A idéia de Ryan para a missão fora simples ¯ simples demais ¯, e Ritter a tinha sofisticado um pouco durante um período de dez ho­ras, transformando-a numa operação de verdade. Simples em teoria, teria suas complicações. Todas as operações tinham, mas Ritter não apreciava isso.

Bart Mancuso havia muito se acostumara com a idéia de que o sono não estava incluído nas prioridades dos imediatos de submarino, mas, se havia uma coisa que ele detestava especialmente, era uma batida à porta quinze minutos depois que conseguia deitar.

¯  Entre! ¯ E morra, deixou de dizer.

¯  Tráfego FLASH, apenas para o capitão ¯ disse o tenente, em tom de desculpa.

¯  É bom que seja importante! ¯ resmungou Mancuso, puxando para o lado as cobertas da cama.

Foi em direção a ré trajando roupas de baixo, até a sala de comuni­cações, a bombordo e logo atrás do centro de ataque. Dez minutos depois saiu e entregou uma tira de papel ao navegador.

¯  Quero estar nesse ponto dentro de dez horas.

¯   Sem problema, capitão.

¯  A próxima pessoa que me incomodar, é melhor que seja uma crise nacional muito grave!

Andou para a frente, pisando descalço. nas lajotas do convés.

¯  Mensagem entregue ¯ disse Henderson a Loomis durante o jantar.

¯  Mais alguma coisa? ¯ Luz de velas e tudo o mais, pensou ela.

¯  Só queria confirmar. Eles não desejavam informações novas, só confirmação do que já possuíam por outras vias. Pelo menos foi assim que entendi. Tenho outro material para eles.

¯  O que é?

¯  O novo relatório sobre defesa aérea em campo de combate. Nunca entendi por que eles se incomodam com isso. Podem ler tudo no Aviation Week antes do fim do mês, de qualquer maneira.

¯  Não vamos estragar a rotina agora, senhor Henderson.

Dessa vez a mensagem pôde ser tratada dentro do fluxo normal de informações. Seria levada à apreciação do diretor-geral porque se tra­tava de informação "pessoal" sobre um agente de informações gra­duado inimigo. Gerasimov era conhecido nos altos escalões da KGB por ser interessado tanto em mexericos ocidentais quanto russos.

A mensagem esperava por ele quando chegou na manhã seguinte. O diretor-geral detestava a diferença de oito horas entre Moscou e Washington ¯ tornava as coisas tão inconvenientes! Para a Central de Moscou, ordenar ação imediata implicava risco automático de desco­berta dos agentes de campo pelos americanos. Como resultado disso, muito poucos sinais verdadeiros de "ação imediata" foram enviados, e o chefe da KGB ficava ofendido com o fato de que seu poder pudes­se ser neutralizado por coisas tão prosaicas como fusos horários.

"Agente P", começava o despacho ¯ sendo a letra R do alfabeto ocidental correspondente a P no alfabeto cirílico ¯, "é agora o alvo de uma investigação criminal secreta como parte de um assunto não relativo à Inteligência. Suspeita-se entretanto que o interesse em P pos­sui fundamentos políticos, talvez um esforço da parte de senadores pro­gressistas para causar danos à CIA em virtude de um fracasso operacional desconhecido, possivelmente envolvendo a Europa cen­tral, mas isso não tem confirmação. A desgraça criminal de P será da­nosa aos agentes da CIA responsáveis por sua colocação. Este setor classifica a confiabilidade política da informação como A. Três fontes independentes agora confirmam as alegações despachadas no EOC 88(B)531-C. Detalhes completos seguem via malote diplomático. O setor recomenda o acompanhamento. Rezident de Washington. Final."

Gerasimov atirou o relatório sobre a mesa.

¯  Muito bem ¯ disse o diretor-geral a si mesmo.

Verificou o relógio. Precisava comparecer à reunião habitual das quintas-feiras de manhã do Politburo, dentro de duas horas. Como correria? De uma coisa ele sabia: seria interessante. Ele planejava apre­sentar uma nova variante em seu jogo ¯ o jogo do poder.

Seu relatório diário de operações era sempre um pouco mais longo às quintas-feiras. Não fazia mal nenhum mencionar casos pequenos e inofensivos nas reuniões. Seus colegas do Politburo eram todos ho­mens a quem a conspiração vinha tão facilmente como a respiração, e não houve um só governo durante o último século cujos membros não gostassem de saber sobre operações sigilosas. Gerasimov fez al­guns apontamentos, tomando o cuidado de escolher assuntos que pu­dessem discutir sem comprometer casos importantes. Seu carro veio na hora aprazada, precedido como sempre por uma viatura de guarda-costas. Partiram em velocidade para o Kremlin.

Gerasimov nunca era o primeiro a chegar, nem o último. Desta vez entrou logo atrás do ministro da Defesa.

¯  Bom dia, Dmitri Timofeyevich ¯ disse o diretor-geral sem sor­rir, mas cordialmente.

¯  Igualmente, camarada diretor-geral ¯ respondeu Yazov, fican­do alerta.

Ambos tomaram seus assentos. Yazov tinha mais de um motivo pa­ra estar alerta. Além do fato de que Filitov pendia sobre sua cabeça como a espada mitológica, ele não era membro efetivo, com direito a voto no Supremo Conselho soviético. Gerasimov era. Aquilo dava mais poder político à KGB do que à Defesa, mas, nas únicas vezes na história recente em que o ministro da Defesa tivera um voto nessa sala, ele se comportara primeiramente como um homem do Partido ¯ como Ustinov. Yazov era em primeiro lugar um soldado. Um mem­bro leal do Partido por tudo isso, seu uniforme não representava o mes­mo do que representara para Ustinov. Yazov nunca teria um voto nessa mesa.

Andrey Ilych Narmonov entrou na sala com o vigor habitual. De todos os membros do Politburo, apenas o chefe da KGB era mais no­vo do que ele, e Narmonov sentia a necessidade de demonstrar ener­gia onde quer que aparecesse perante os membros mais velhos reu­nidos em volta da "sua" mesa de reuniões. O desgaste e o stress do trabalho haviam produzido efeito nele, todos podiam constatar. O chumaço de cabelos negros tornava-se grisalho com rapidez, e tam­bém parecia perder terreno para a calvície. Mas isso não era inco­mum para um homem nos seus 50 anos. Ele fez um gesto para que todos se sentassem.

¯  Bom dia, camaradas ¯ disse ele em tom comercial. ¯ A discussão inicial será sobre a chegada do grupo americano de negociação de armamentos.

¯  Tenho boas notícias ¯ falou imediatamente Gerasimov.

¯  É mesmo? ¯ perguntou Alexandrov antes do secretário-geral, destilando o próprio veneno.

¯  Recebemos informações que sugerem que os americanos concor­dam em princípio em colocar seu programa de defesa estratégica na mesa ¯ declarou o diretor-geral da KGB. ¯ Não sabemos que con­cessões vão exigir para isso, nem a extensão das concessões que que­rem fazer em seu programa, mas sem dúvida é uma mudança na posição americana.

¯  Acho difícil de acreditar ¯ falou Yazov. ¯ O programa deles vai muito bem... como você mesmo nos disse a semana passada, Nicolay Borissovich.

¯  Existem alguns desentendimentos políticos dentro do governo americano, e possivelmente uma luta pelo poder na própria CIA no momento. Acabamos de saber. De qualquer forma, essa foi a infor­mação que recebemos, e a encaramos como medianamente confiável.

¯  Isto é uma surpresa. ¯ Cabeças se voltaram para o local onde estava sentado o ministro das Relações Exteriores. Ele parecia cético. ¯ Os americanos têm sido completamente intransigentes nesse pon­to. Você disse "medianamente confiável", mas não totalmente?

¯  A fonte é altamente colocada, mas a informação ainda não foi confirmada. Saberemos mais por volta do fim da semana.

Assentimentos de cabeça percorreram a mesa. A delegação ameri­cana chegaria sábado ao meio-dia, e as negociações não teriam início antes de segunda-feira. Os americanos teriam 36 horas para se recu­perar da diferença de fusos horários, durante as quais haveria um jan­tar de boas-vindas no Hotel da Academia de Ciências, e pouco mais.

¯  Tais informações obviamente são de grande interesse para mi­nha equipe de negociações, mas acho tudo deveras surpreendente, par­ticularmente em vista dos' relatórios aqui fornecidos sobre nosso programa Estrela Brilhante e seu equivalente.

¯  Existem motivos para acreditar que os americanos já sabem so­bre Estrela Brilhante ¯ respondeu Gerasimov suavemente. ¯ Talvez tenham achado nosso progresso assustador.

¯  Houve algum vazamento? ¯ perguntou outro membro. ¯ Como?

¯  Ainda não temos certeza. " Estamos trabalhando nisso ¯ respon­deu Gerasimov, evitando olhar para o lado de Yazov. Sua jogada, ca­marada ministro da Defesa.

¯  Nesse caso, os americanos estariam mais interessados em fechar nosso programa do que em limitar o deles ¯ observou Ale­xandrov.

¯  E eles acham que nossos esforços têm sido o oposto disso ¯ res­mungou o ministro das Relações Exteriores. ¯ Seria bom para mim poder dizer ao meu pessoal quais são na verdade os verdadeiros pon­tos relevantes.

¯  Marechal Yazov? ¯ chamou Narmonov. Não sabia que estava encostando o próprio aliado contra a parede.

Até agora, Gerasimov ainda não tinha certeza se Yazov sentia sufi­ciente segurança política para levar o caso até seu protetor. Isto lhe daria a resposta. Yazov tem medo da possibilidade ¯ da certeza, corrigiu a si mesmo, e Yazov já deve saber disso a essa altura ¯ de que pode­mos desgraçá-lo. Também teme que Narmonov não arrisque sua posi­ção política para salvá-lo. Será que fiz uma opção dupla, Yazov e Vaneyev? Se for assim, talvez seja interessante manter Yazov depois de substituir o secretário-geral... A decisão é sua, Yazov...

¯  Já ultrapassamos o problema da potência de saída do laser. O problema restante é o controle do computador. Estamos bem aquém da tecnologia americana devido à superioridade que possuem na in­dústria de informática. Somente na semana passada o camarada Ge­rasimov nos forneceu dados sobre o programa de controle americano, porém, quando estávamos começando a examiná-lo, o próprio pro­grama foi ultrapassado pelos eventos. Não quero com isso criticar a KGB, claro...

Sim! Nesse momento Gerasimov teve certeza. Ele está fazendo a própria proposta para mim. E a melhor parte: nenhum outro na sala, nem mesmo Alexandrov, percebeu o que acabou de acontecer.

¯    ... na verdade, os dados ilustram tecnicamente "muito bem o pro­blema, camaradas. Este também pode ser ultrapassado. Minha opi­nião é que estamos à frente dos americanos. Se eles souberem disso, ficarão com medo. Nossa posição para negociar, nesse ponto, tem si­do objetar somente aos programas baseados no espaço, e não em ter­ra, desde que sabemos que nossos sistemas baseados em terra são mais promissores que os similares americanos. Possivelmente a mudança na posição americana confirma isso. Se for assim, recomendaria con­tra a negociação de Estrela Brilhante em troca de qualquer outra coisa.

¯  Esta é uma opinião defensável ¯ disse Gerasimov depois de um momento. ¯ Dmitri Timofeyevich levantou uma questão a ser medi­tada aqui.

Cabeças acenaram em concordância ao redor. da mesa ¯ sabiamen­te, eles todos pensavam, porém mais errados do que ousariam imaginar ¯, enquanto o diretor-geral da KGB e o' ministro da Defesa consumavam sua barganha com nada mais do que um olhar e uma sobrancelha levantada.

Gerasimov voltou-se para o chefe da mesa enquanto a discussão pros­seguia a seu redor. O secretário-geral Narmonov observava o debate com interesse, fazendo apontamentos, sem notar o olhar do diretor-geral da KGB.

Será que essa cadeira é mais confortável do que a rninha?

 

Viajantes

Ryan ficou contente em saber que até mesmo a 89? Ala de Transporte Aéreo Militar preocupava-se com a segurança. As sentinelas que guar­davam as chamadas "Asas do Presidente" na Base Aérea de Andrews portavam fuzis carregados e ostentavam expressões sérias para os "vi­sitantes especiais", como a Força Aérea dos Estados Unidos designa­va os VIPs. A combinação de soldados armados e o aparato habitual de um aeroporto asseguravam que ninguém seqüestraria o avião pre­sidencial e o levaria para... Moscou. Tinham uma tripulação qualifi­cada para isso.

A Ryan acudiam sempre os mesmos pensamentos antes de voar. En­quanto aguardava para passar pelo detector de metais em forma de portal, imaginava que alguém havia entalhado na parte superior: ABAN­DONAI TODA ESPERANÇA, 0 VÓS QUE ENTRAIS. Ele acabara de supe­rar seu medo de voar; sua ansiedade do momento decorria de um assunto completamente diferente, reconheceu para si mesmo. Não adiantou. Os temores são cumulativos, não paralelos, descobriu ele, enquanto saía do prédio.

Estavam tomando o mesmo avião que os levara da última vez. O número inscrito na cauda era 86971. O aparelho, um 707 que saíra da fábrica da Boeing em Seattle em 1958, fora convertido para a con­figuração VC-137. Mais confortável do que o VC-135, também tinha janelas. Se havia uma coisa que Ryan detestava, era viajar a bordo de um avião sem janelas. Não havia plataforma sanfonada de acesso à aeronave, e todos subiram a bordo por uma antiquada escada de rodas. No seu interior, o avião mostrava uma curiosa mistura do lugar-comum com o original. O lavatório da frente ficava no local habitual, perto da porta dianteira, porém imediatamente atrás localizava-se o console que dava ao avião conexão instantânea e segura, via rádios-satélite, com qualquer lugar do mundo. A seguir vinham as acomoda­ções da tripulação, relativamente confortáveis, depois a cozinha. A comida a bordo da aeronave era muito boa. O lugar de Ryan ficava na área quase-DV, num dos dois conjuntos estofados em cada lado da fuselagem, bem à frente das seis poltronas reservadas para as pessoas mais importantes. A ré desses lugares situavam-se conjuntos de cinco poltronas para repórteres, pessoal do Serviço Secreto, e outros menos qualificados, não se sabendo quem era o responsável por tais decisões. Essa área estava em grande parte vazia nessa viagem, embora alguns membros menos graduados da delegação se encontrassem lá, estican­do as pernas para descontrair.

A única coisa realmente ruim sobre o VC-137 era seu alcance limi­tado. Não podia chegar até Moscou sem escalas, e geralmente parava para reabastecimento em Shannon antes de fazer o percurso final. O avião presidencial ¯ na verdade existiam dois Air Force One ¯ foi baseado no modelo 707-320, e logo haveria uma troca pelo ultramoderno 747. A Força Aérea estava ansiosa por possuir uma aeronave presidencial mais nova em idade do que a maioria da tripulação. Ryan também. Este aparelho saíra da fábrica quando ele cursava o segundo grau, e isso o preocupava mais que o normal. O que poderia ter acon­tecido na época?, imaginou ele. Seu pai podia tê-lo levado a Seattle, apontado o avião e dito: Sabe, você vai voar para a Rússia naquele ali, um dia.

Como se prevê o futuro? Como se prevê o futuro.... De início o tom era de brincadeira, mas depois de um instante o pensamento o aterrorizou.

Seu trabalho é prever o futuro, mas o que o faz pensar que pode mesmo fazê-lo? O que adivinhou errado dessa vez, Jack?

Merda!, enraiveceu-se consigo mesmo. Toda vez que eu subo na porra de um avião... Apertou o cinto, olhando para um técnico do Departa­mento de Estado que adorava voar.

Os motores foram ligados um minuto depois, e o avião começou a rodar na pista. Os avisos do intercomunicador não eram muito dife­rentes daqueles de uma companhia de aviação, apenas o suficiente para insinuar que não se tratava de uma. linha comercial. Jack já deduzira aquilo. A aeromoça tinha buço, quase como bigodes. Era algo para se divertir enquanto a aeronave taxiava até o final da pista Um-Esquerda.

Os ventos vinham do norte, e o VC-137 decolou contra eles, fazen­do uma curva à direita um minuto depois. Jack voltou-se também, olhando para a estrada U. S. 50, a mesma que levava à sua casa em Annapolis. Perdeu a visão quando a aeronave penetrou nas nuvens. O véu branco e impessoal sempre lhe parecera uma bela cortina, mas agora... Agora significava que ele não podia ver o caminho de casa. Bem, nada que pudesse fazer quanto a isso. Ryan tinha o sofá inteiro à disposição, e resolveu desfrutá-lo. Tirou os sapatos e esticou-se para tirar um cochilo. Uma coisa de que ele iria precisar era descanso. Dis­so tinha certeza.

Dallas subira à superfície na hora e lugar aprazados, depois foram avisados de uma mudança nos planos. Agora subiam novamente. Man­cuso foi o primeiro a subir a escada até o alto da torre, seguido por um oficial menos graduado e dois vigias. O periscópio já esquadri­nhava a superfície à procura de outras embarcações. A noite estava calma e clara, o tipo de céu que só se pode ver no mar, recoberto de estrelas, como brilhantes sobre veludo negro.

¯  Ponte para comandante. Mancuso apertou o botão.

¯  Pode falar, ponte.

¯  A vigilância eletrônica acusa um transmissor de radar aerotransportado no rumo um-quatro-zero. Curso parece firme.

¯  Muito bem. ¯ O capitão se voltou. ¯ Pode acender as luzes de navegação.

¯  Tudo claro a estibordo ¯ anunciou um vigia.

¯  Tudo claro a bombordo ¯ repetiu o outro.

¯  Contato ainda firme em um-quatro-zero. Força do sinal au­mentando.

¯  Possível aeronave na proa, bombordo! ¯ avisou um vigia. Mancuso ergueu o binóculo e começou a vasculhar na escuridão.

Se é que estava perto, as luzes de vôo não se encontravam acesas. Mas então ele viu um punhado de estrelas desaparecer, oculto por algum corpo...

¯  Achei. Bom olho o seu, Everly! Oh, acenderam as luzes de vôo.

¯  Ponte para comandante. Mensagem chegando.

¯  Passe para cá ¯ respondeu prontamente Mancuso.

¯  Pronto, senhor.

¯  Eco-Golf-Nove, aqui é Alfa-Whiskey-Cinco, câmbio.

¯  Alfa-Whiskey-Cinco, aqui Eco-Golf-Nove. Estou ouvindo alto e claro. Senha para autenticação, câmbio.

¯  Bravo-Delta-Hotel, câmbio.

¯  Entendido. Entendido, obrigado. Estamos em alerta. Vento cal­mo. Mar liso.

Mancuso estendeu a mão e ligou as luzes dos instrumentos da esta­ção de controle. Não necessárias no momento ¯ o Centro de Ataque ainda detinha o comando ¯, dariam, ao helicóptero que se aproxima­va, um alvo.

Eles o ouviram um momento depois, a princípio só o ruído das pás do rotor, depois o silvo das turbinas. Menos de um minuto depois sen­tiram o vento de cima para baixo enquanto o helicóptero circulava duas vezes para se orientar. Mancuso perguntou-se se ele acenderia as luzes de aterrissagem ou viria no escuro.

Veio no escuro, ou, mais adequadamente, manobrou como se esti­vesse fazendo uma transferência pessoal sigilosa: uma "missão de com­bate". O piloto fixou-se nas luzes da torre do submarino e levou a aeronave a pairar 50 metros a bombordo. A seguir reduziu a altitude e deslizou de lado em direção ao submarino. A ré, viram a porta de carga se abrir. Uma mão estendeu-se e apanhou o gancho na ponta do cabo do guindaste.

¯  Todos em alerta ¯ disse Mancuso a seu pessoal. ¯ Já fizemos isso antes. Verifiquem seus cabos de segurança. Todo mundo tenha cuidado.

O vento de cima, soprando diretamente sobre eles, agora ameaçava atirar todos escada abaixo para o Centro de Ataque. Enquanto Man­cuso observava, uma forma humana emergiu da porta de carga e foi baixada. Os dez metros pareceram durar uma eternidade enquanto a forma descia, girando levemente em virtude da torção do cabo de aço do guindaste. Um dos marinheiros esticou os braços e apanhou um pé, puxando o homem na direção deles. O capitão pegou uma das mãos, e os dois juntos o trouxeram a bordo.

¯  Tudo bem, já pegamos você ¯ disse Mancuso.

O homem livrou-se das correias e virou-se enquanto o cabo voltava.

¯  Mancuso!

¯  Filho da puta! ¯ exclamou o capitão.

¯  Isso é jeito de cumprimentar um camarada?

¯  Merda! ¯ Mas os negócios vinham em primeiro lugar. Mancuso olhou para cima.

O helicóptero já se encontrava a 70 metros sobre eles. Ele estendeu a mão, acendendo e apagando as luzes de navegação do submarino por três vezes: TRANSFERÊNCIA COMPLETADA. O helicóptero imedia­tamente baixou o nariz e dirigiu-se de volta à costa alemã.

¯   Desça. ¯ Bart riu. ¯ Vigias para baixo. Saiam do passadiço. ¯ Filho de uma puta, reclamou para si mesmo.

O capitão observou seus homens descendo as escadas, desligou as luzes de comando e realizou uma checagem final de segurança antes de descer atrás deles. Um minuto mais tarde estava no Centro de Ataque.

¯  Agora peço permissão para subir a bordo ¯ falou Marko Ramius.

¯  Navegador?

¯  Todos os sistemas em alerta e verificados. Pronto para submer­gir ¯ informou o navegador. Mancuso voltou-se automaticamente pa­ra verificar o painel.

¯  Muito bem. Submergir. Profundidade de 33 metros, curso zero-sete-um, a um terço. ¯ Ele se voltou. ¯ Bem-vindo a bordo, capitão.

¯  Obrigado, capitão. ¯ Ramius envolveu Mancuso num feroz abra­ço de urso e beijou-o na bochecha. A seguir retirou a mochila que carregava. ¯ Podemos conversar?

¯  Vamos para vante.

¯  E a primeira vez que venho a bordo do seu submarino ¯ obser­vou Ramius. Um momento mais tarde uma cabeça apareceu na porta da sala do sonar.

¯  Capitão Ramius! Reconheci sua voz! ¯ Jones olhou para Man­cuso. ¯ Desculpe, senhor. Acabamos de fazer um contato rumando zero-oito-um. Parece um navio mercante. Uma hélice, com motores diesel de baixa potência. Provavelmente se afastando. Sendo relatado ao oficial de dia agora, senhor.

¯  Obrigado, Jonesy. ¯ Mancuso levou Ramius para sua cabine e fechou a porta.

¯  Que diabo foi isso? ¯ perguntou a Jones um jovem operador de sonar, pouco depois.

¯  Temos companhia.

¯  Notou um sotaque meio esquisito?

¯  Alguma coisa assim. ¯ Jones apontou para o console do sonar. ¯ Esse contato também tem sotaque. Vamos ver em quanto tempo você pode identificar que tipo de navio mercante é esse.

Era perigoso, mas tudo na vida era, pensou o Arqueiro. A fronteira soviético-afegã naquele local consistia num rio alimentado pela neve, que serpenteava através das gargantas que cavara montanhas adentro. A fronteira também era fortemente guardada. Ajudava, porém, o fato de todos os homens usarem uniformes de estilo soviético. Os russos há muito colocaram os soldados em uniformes simples e quentes de inverno. Os que eles envergavam eram brancos para confundir-se com a neve, apresentando listras e manchas suficientes para alterar a silhueta. Naquele local, precisavam ser pacientes. O Arqueiro deitava-se incli­nado sobre uma escarpa, usando binóculos russos para reconhecer o terreno, enquanto seus homens descansavam alguns metros atrás e abai­xo dele. Poderia ter pedido o auxílio de um bando local de guerrilhei­ros, mas viera muito longe para arriscar aquilo. Algumas das tribos do norte haviam sido recrutadas pelos russos, ou pelo menos foi o que lhe disseram. Verdadeiro ou não, já corria riscos suficientes.

Havia um posto de guarda russo no topo da montanha à sua esquer­da, a 6 quilômetros de distância. Era grande, talvez um pelotão intei­ro residisse ali, e aqueles soldados da KGB eram responsáveis pelo patrulhamento desse setor. A fronteira em si estava protegida por uma cerca e campos minados. Os russos adoravam minar campos, mas o solo congelado não permitia que as minas funcionassem bem, embo­ra ocasionalmente explodissem quando o gelo se derretia ao redor.

Escolhera cuidadosamente o ponto. A fronteira aqui parecia virtual­mente intransponível ¯ no mapa. Entretanto, os contrabandistas a vi­nham utilizando fazia séculos. Já do outro lado do rio havia uma passagem coleante formada por anos e anos de neve derretida. Se os russos a estivessem guardando, seria uma armadilha mortal. Aquilo seria decidido pela vontade de Alá, disse a si mesmo, entregando-se ao destino. Era hora.

Ele viu as línguas de fogo antes de ouvi-las. Dez homens com uma metralhadora pesada e um de seus preciosos morteiros. Algumas ba­las traçadoras amarelas passavam pela fronteira em direção ao acam­pamento russo. Enquanto observava, alguns dos projéteis ricochetearam nas pedras, desenhando trajetórias erráticas no céu de veludo. Então os russos começaram a responder aos disparos. O som o alcançou lo­go depois disso. Esperava que seus homens conseguissem escapar, en­quanto se voltava e dava o sinal de avançar a seu grupo.

Eles correram para a encosta da montanha, sem prestar atenção à segurança. A única boa notícia era que os ventos tinham varrido a ne­ve da superfície das rochas, tornando-as menos escorregadias. O Ar­queiro liderou seus homens para baixo, em direção ao rio. Surpreendentemente, ele não estava congelado, pois o curso muito ín­greme impedia que a água solidificasse, mesmo a temperaturas abai­xo de zero.

Havia ainda a cerca de arame. Um jovem com um alicate manejado a duas mãos abriu passagem, e novamente o Arqueiro os liderou pelo vão. Seus olhos estavam acostumados à escuridão, e ele prosseguiu mais lentamente agora, correndo e olhando para o chão à procura das ben­ditas saliências que indicariam a presença de minas no solo congela­do. Ele não precisou avisar os que estavam atrás para ficar em fila indiana e pisar na rocha firme sempre que possível. Para a esquerda, foguetes iluminantes clareavam o céu, mas o tiroteio diminuíra bastante.

Levou quase uma hora, mas ele conseguiu atravessar todos os seus homens e prosseguir em direção à trilha de contrabandistas. Dois guer­rilheiros ficariam para trás, cada um numa colina, vigiando a cerca. Observaram o sapador amador que cortara os fios fazendo os reparos necessários para ocultar a entrada. Depois ele também desapareceu na escuridão.

O Arqueiro não parou até o amanhecer. Estavam dentro do horário quando pararam por algumas horas para descansar e comer. Tudo cor­rera bem, comentaram os oficiais, melhor do que haviam esperado.

A escala em Shannon foi curta, o tempo suficiente para reabastecer e receber a bordo um piloto soviético cujo trabalho era liberá-los atra­vés do sistema de controle do tráfego aéreo soviético. Jack acordou durante a aterrissagem e pensou em esticar as pernas, mas resolveu que as free-shops podiam esperar até a parada da volta. O russo tomou seu lugar numa poltrona na cabine, e o 86971 começou a rodar no­vamente.

Era noite agora. O piloto parecia loquaz, anunciando a aproxima­ção de Wallasey. Toda a Europa, disse ele, apresentava tempo claro e frio, e Jack observava as luzes amarelo-alaranjadas das cidades in­glesas deslizando abaixo deles. A tensão na aeronave cresceu ¯ talvez ansiedade fosse uma palavra melhor, pensou ele, ao escutar o tom das vozes ao redor aumentar, embora em volume baixo. Não se podia voar para a União Soviética sem assumir um tom conspiratório. Logo to­das as conversas eram feitas aos sussurros. Jack sorriu sem muita von­tade em direção do plástico das janelas, e seu reflexo perguntou-lhe o que achava tão engraçado. A água apareceu novamente abaixo deles ao sobrevoarem o mar do Norte na direção da Dinamarca.

O Báltico veio a seguir. Podia-se dizer onde o Leste e o Ocidente se encontravam. Para o sul, as cidades da Alemanha Ocidental esta­vam alegremente iluminadas, cada uma delas cercada por um brilho acolhedor das luzes. Não era o que acontecia do lado oriental da bar­reira de cercas e campos minados. Todos a bordo notaram a diferen­ça, e as conversas diminuíram ainda mais.

A aeronave seguia a rota aérea G-24; o navegador na cabine tinha uma carta de navegação desdobrada sobre sua mesa. Outra diferença entre o Leste e o Ocidente era a escassez de rotas aéreas no primeiro. Bem, disse ele a si mesmo, não existem muitos Piper e Cessna aqui... Claro, tinha havido aquele Cessna do rapaz alemão...

¯  Subindo em curva. Estamos tomando o rumo zero-sete-oito, en­trando sob o controle soviético.

¯  Certo ¯ respondeu o comandante da aeronave, depois de um momento. Ele estava cansado. Havia sido um longo dia de vôo.

Ainda estavam no Nível de Vôo 381 ¯ 38 100 pés, ou 11 600 me­tros de altitude. O piloto não gostava do sistema métrico, embora seus instrumentos fossem calibrados de ambas as maneiras. Depois de exe­cutar a curva, voaram por mais 100 quilômetros antes de cruzar a fron­teira soviética em Ventspils.

¯  Estamos aquiii! ¯ disse alguém próximo a Ryan.

Visto do ar, à noite, o território soviético fazia a Alemanha Oriental parecer Nova Orleans em pleno carnaval de Mardi Gras. Ele se lem­brou das fotografias noturnas de satélites. Era tão fácil identificar os campos de prisioneiros do Gulag! Formavam as únicas áreas ilumina­das por todo o país... Que lugar temível este, em que apenas as pri­sões são bem iluminadas.

O piloto marcou a entrada apenas como ponto de referência. Mais 85 minutos, dadas as condições do vento. O sistema soviético de con­trole de tráfego aéreo ao longo dessa rota ¯ agora chamada G-3 ¯ era o único no país que falava inglês. Na verdade, não precisavam do oficial soviético para completar essa missão ¯ ele era um agente de informações da Força Aérea, claro ¯, mas, se algo corresse errado, a situação seria diferente. Os russos apreciavam a idéia de controle positivo. As ordens que ele recebia agora eram muito mais precisas do que receberiam em espaço aéreo americano, embora ele não sou­besse o que fazer, a não ser que algum idiota em terra lhe dissesse. Nisso tudo havia um elemento interessante. O piloto era o coronel Paul von Eich. Sua família tinha vindo da Prússia para os Estados Unidos cem anos antes, mas nenhum deles fora capaz de retirar o "von" do nome, um importante símbolo de status familiar. Alguns de seus an­cestrais haviam lutado aqui, refletiu ele, nas planícies cobertas de ne­ve do solo soviético. Certamente alguns parentes mais novos lutaram. Provavelmente alguns se achavam enterrados ali, enquanto ele passa­va no alto a 1 000 quilômetros por hora. Imaginou brevemente o que pensariam eles de seu trabalho, enquanto os pálidos olhos azuis per­corriam o céu à procura das luzes de outros aviões.

Como a maioria dos passageiros, Ryan julgava sua altitude pelo que podia observar do solo, mas os escuros campos soviéticos lhe negavam essa possibilidade. Só soube que já estavam próximos quando a aeronave iniciou uma curva para a esquerda. Escutou um lamento me­cânico quando os flaps baixaram e notou que o ruído dos motores di­minuía. Logo foi capaz de ver as árvores deslizando. A voz do comandante fez-se ouvir, pedindo para apagarem os cigarros e atarem os cintos outra vez. Cinco minutos depois retornaram ao nível do solo no Aeroporto Sheremetyevo. A despeito do fato de que todos os aero­portos do mundo se pareciam, Ryan notou que este se diferenciava num detalhe ¯ a pista de manobras era mais esburacada do que qual­quer outra.

A conversa na cabine era mais animada agora. A excitação cresceu à medida que a tripulação da aeronave começou a se movimentar. O que se seguiu ficou envolto num borrão. O presidente Ernie Allen foi recepcionado por um comitê de boas-vindas de nível adequado, e partiu numa limusine da embaixada. Todos os outros foram relegados a um ônibus. Ryan sentou-se sozinho, ainda observando os campos do lado de fora do veículo alemão.

Será que Gerasimov vai morder a isca, de verdade?

E se não morder?

E se morder?, perguntou Ryan a si mesmo, com um sorriso.

Tudo parecera bastante objetivo em Washington, mas aqui, a 8 000 quilômetros de distância... Bem, primeiro dormiria um pouco, aju­dado por um único comprimido vermelho fornecido pelo governo. De­pois conversaria com algumas pessoas na embaixada. O resto viria por si.

 

A Chave do Destino

O frio era cortante quando Ryan acordou com o sinal eletrônico do alarme de seu relógio. Gelo cobria as vidraças, mesmo sendo 10 da manhã, e ele compreendeu que não verificara se a calefação do quarto funcionava. A primeira atitude consciente do dia foi enfiar um par de meias. Seu quarto no sétimo andar ¯ chamado de "apartamento eficiente" ¯ dominava a vista do conjunto. Nuvens haviam se forma­do, e o dia tornara-se plúmbeo, com ameaça de neve.

¯  Perfeito ¯ comentou Jack consigo mesmo a caminho do banheiro.

Ele sabia que poderia ser pior. Somente conseguira aquelas acomo­dações porque o agente que a habitava regularmente estava em lua-de-mel. Pelo menos o encanamento funcionava, mas ele encontrou um aviso preso com fita colante ao armarinho do banheiro, pedindo que ele não fizesse tanta bagunça quanto o último ocupante. A seguir foi verificar o refrigerador. Não havia nada dentro: Bem-vindo a Moscou. De volta ao banheiro, lavou-se e fez a barba. Outro fato estranho so­bre a embaixada era que, para descer do sétimo andar, tinha-se que tomar um elevador até o nono e de lá mais um até b saguão. Jack ain­da sacudia a cabeça inconformado quando entrou na cantina.

¯  Você não adora essa diferença de horários? ¯ saudou-o um dos membros da delegação. ¯ O café está ali.

¯  É o que chamo de choque de viagem. ¯ Ryan apanhou uma ca­neca e voltou. ¯ Bem, o café parece decente. Onde está todo mundo?

¯  Provavelmente ainda recolhidos, mesmo o tio Ernie. Dormi al­gumas horas no vôo, e agradeço a Deus pela pílula que nos deram.

Ryan não conteve uma risada.

¯  Eu também. Talvez até me sinta humano lá pela hora do jantar, esta noite.

¯  Quer explorar o terreno um pouco? Gostaria de fazer uma cami­nhada, mas...

¯  Andar aos pares ¯ concordou Ryan. A regra aplicava-se aos par­ticipantes das negociações de armamentos. Esta fase seria crítica para os negociadores, e as regras do grupo eram mais rígidas do que habi­tualmente. ¯ Talvez mais tarde. Tenho trabalho a fazer.

¯  Hoje e amanhã são nossas únicas chances ¯ lembrou o diplomata.

¯  Eu sei ¯ concordou Ryan.

Verificou o relógio e resolveu que esperaria até a hora do almoço para comer. Seu ciclo de sono estava quase em sintonia com Moscou, mas o estômago ainda não sabia bem disso. Jack voltou para a chan­celaria.

Os corredores encontravam-se em grande parte vazios. Fuzileiros os patrulhavam, com expressões sérias em virtude dos problemas re­centemente ocorridos, porém havia pouca evidência de atividade na­quele sábado de manhã. Jack caminhou até a porta apropriada e bateu. Sabia que estava trancada.

¯  Você é Ryan?

¯  Exato. ¯ A porta se abriu para fazê-lo entrar, depois foi fechada e trancada.

¯  Pegue uma cadeira. ¯ O nome dele era Tony Candeia. ¯ O que há?

¯  Temos uma operação em andamento.

¯  Isso é novidade para mim. Você não pertence a Operações, é da Inteligência ¯ objetou Candeia.

¯  É verdade. Bem, é o que Ivã também acha. Essa vai ser um pou­co diferente. ¯ Ryan explicou a operação por quase cinco minutos.

¯   "Um pouco diferente", você diz? ¯ Candeia girou os olhos nas órbitas.

¯  Preciso de um ajudante para uma das partes. Preciso também de alguns números de telefone que eu possa chamar, e talvez precise de um carro que esteja no local e horário que eu determinar.

¯  Isso pode me custar alguns contatos.

¯  Sabemos disso.

¯  É claro que se funcionar...

¯  Certo. Precisamos nos esforçar de verdade desta vez.

¯  Os Foley sabem algo sobre isso?

¯  Receio que não.

¯  É uma pena. Mary Pat iria adorar. Ela é o cowboy. Ele é mais do tipo executivo. Então, espera que ele morda a isca na segunda ou terça-feira à noite?

¯  Esse é o plano.

¯  Pois deixe que eu lhe conte uma coisa sobre planos ¯ disse Candeia.

Eles o deixaram dormir. Os médicos haviam-no prevenido outra vez, resmungou Vatutin. Como era possível que conseguisse alguma coisa se eles continuavam...

¯  Lá está aquele nome de novo ¯ disse com voz cansada o homem com os fones de ouvido. ¯ Romanov. Já que ele fala durante o sono, por que não confessa de uma vez?

¯  Talvez esteja conversando com o fantasma do czar ¯ brincou ou­tro agente. O rosto de Vatutin se ergueu.

¯  Ou talvez de uma outra pessoa. ¯ O coronel balançou a cabeça. Ele mesmo estivera a ponto de cochilar. Romanov, embora fosse o

nome da extinta família real do Império Russo, não era um nome in­comum ¯ um dos membros do Politburo chamava-se assim.

¯  Onde está a pasta dele?

¯  Aqui. ¯ O homem que brincara abriu uma gaveta e passou os documentos pedidos pelo superior.

O dossiê pesava 6 quilos e vinha dividido em várias partes. Vatutin tinha a maior parte dele em sua memória, mas havia se concentrado nas duas últimas seções. Desta vez abriu a primeira parte.

¯  Romanov... ¯ murmurou para si mesmo. ¯ Onde foi que eu vi esse nome?...

Levou quinze minutos folheando as páginas, tão rápido quanto possível.

¯  Achei! ¯ Era uma citação, escrita a lápis. ¯ Cabo A. I. Roma­nov, morto em ação em 6 de outubro de 1941, "... ousadamente colo­cou seu tanque entre o inimigo e o tanque avariado de seu comandante, permitindo-lhe retirar a tripulação ferida... " Sim, é isso mesmo. Essa estava num livro que li quando criança. Misha levou seus homens fe­ridos para o convés de outro tanque, saltou para dentro e acertou pes­soalmente o tanque que pegou Romanov. Ele salvou a vida de Misha e lhe foi concedida postumamente a Bandeira Vermelha... ¯ Vatutin parou. Percebeu que estava chamando o prisioneiro de Misha.

¯  Quase cinqüenta anos atrás?

¯  Eles eram amigos. Esse rapaz, Romanov, fez parte da tripulação do tanque de Filitov durante os primeiros meses de campanha. Bem, ele foi um herói. Morreu pela Mãe Pátria, salvando a vida de seu ofi­cial comandante ¯ observou Vatutin. E Misha ainda fala com ele... Peguei você, Filitov.

¯  Vamos acordá-lo e...

¯  Onde está o médico? ¯ indagou Vatutin.

Descobriu-se que o médico estava a ponto de sair para casa, e não ficou nem um pouco contente em ser chamado de volta. Mas não ti­nha graduação suficiente para discutir com o coronel Vatutin.

¯  Como devemos proceder? ¯ quis saber Vatutin, depois de ex­plicar o caso.

¯  Ele deve estar cansado, mas bem acordado. Isso pode ser feito facilmente.

¯  Então devemos acordá-lo agora, e...

¯  Não. ¯ O médico balançou a cabeça. ¯ Não quando ele está na fase REM do sono.

¯  O quê?

¯  Movimento rápido dos olhos... É como chamamos quando o pa­ciente está sonhando. Podemos saber se está sonhando pelo movimento dos olhos, quer ele esteja falando, quer não.

¯  Mas não podemos ver isso daqui ¯ objetou outro agente.

¯  É verdade. Talvez devêssemos redesenhar o sistema de observa­ção ¯ brincou o médico. ¯ Mas isso não importa muito. Durante o sono REM o corpo fica efetivamente paralisado. Você pode reparar que ele não está se movendo agora, certo? A mente faz isso para evitar danos ao corpo. Quando ele começar a mover-se outra vez, é porque o sonho terminou.

¯  Quanto tempo? ¯ perguntou Vatutin. ¯ Não queremos que ele fique muito descansado.

¯  Depende do paciente, mas eu não ficaria muito preocupado com isso. Mande o carcereiro ficar com uma refeição preparada, e, logo que ele começar a mover-se, acordem-no e sirvam-lhe a comida.

¯  É claro. ¯ Vatutin sorriu.

¯  Depois, é só mantê-lo acordado, oito horas ou um pouco mais. É, acho que isso será suficiente. É tempo bastante para você?

¯  Certamente ¯ afirmou Vatutin, aparentando mais confiança do que sentia.

Ficou em pé e verificou seu relógio. O coronel do "Dois" chamou, o Centro e deu algumas ordens. Seu organismo também pedia um pou­co de sono. Mas para ele havia uma cama confortável. Queria estar com a mente clara quando a hora chegasse. O coronel despiu-se meto­dicamente, chamando um ordenança para polir suas botas e passar seu uniforme enquanto dormia. Estava tão cansado que não sentiu ne­cessidade de álcool.

¯  Peguei você ¯ murmurou ao deixar-se levar pelo sono.

¯  Boa noite, Bea ¯ despediu-se Candi à porta, enquanto a amiga abria o carro.

Taussig virou-se uma última vez e acenou antes de entrar. Candi e o Monstrinho não puderam ver a maneira violenta como ela enfiava a chave no contato. Dirigiu apenas meio quarteirão, virando uma es­quina antes de encostar ao meio-fio e olhar para o céu noturno.

Já estão fazendo aquilo, pensou ela. Durante o jantar inteiro, a manei­ra como ele olhava para ela... e a maneira como ela olhava para ele! Aque­las mãozinhas sequiosasjá estariam brigando com os botões da blusa dela...

Acendeu um cigarro e recostou-se no banco, imaginando a cena en­quanto seu estômago se contraía numa bola rija e ácida. O Cara-Espinhenta e Candi. Ela suportara três horas daquilo, o jantar como sempre bem preparado de Candi. Por vinte minutos, enquanto ela dava os retoques finais na cozinha, Taussig ficara na sala com ele, escutan­do piadas idiotas e tendo de sorrir polidamente. Ficava claro que Alan tampouco gostava dela, mas por ser amiga de Candi ele sentia-se obri­gado a ser simpático, bonzinho com a pobre Bea, que estava a cami­nho de tornar-se solteirona, ou seja lá que nome usavam agora ¯ vira isso nos tolos olhos dele. Ser suportada por ele já era ruim o suficien­te, mas que sentisse piedade...

E agora ele a devia estar tocando, beijando-a, escutando seus mur­múrios, sussurrando melosidades estúpidas ¯ e Candi apreciava aquilo tudo! Como isso era possível?

Candace era mais do que bonita, como Taussig sabia. Era um es­pírito livre. Tinha uma mente de descobridora, aliada a uma alma cálida e sensível. Seus sentimentos fortes a tornavam maravilhosamente feminina, com aquele tipo de beleza que começa no coração e se irra­dia através do sorriso perfeito.

Mas agora ela está se entregando àquela coisa! Ele provavelmente já está gozando. Aquele monstrinho não deve ter nenhuma idéia de como se conter e demonstrar amor e sensibilidade de verdade. Aposto que ele vai e faz de uma vez, babando e dando risadinhas como um atleta adolescente de 15 anos. Como ousa!

¯  Oh, Candace ¯ gemeu a voz de Bea.

Ela foi invadida pela náusea e precisou lutar para controlar-se. Teve sucesso, e ficou sozinha sentada no carro por vinte minutos de silen­ciosas lágrimas, antes de ser capaz de guiar novamente.

¯  O que acha disso?

¯  Acho que ela é lésbica ¯ disse a agente Jennings depois de um momento.

¯  Não há nada disso na ficha dela, Peggy ¯ observou Will Perkins.

¯  A maneira como ela olha para a doutora Long, e a maneira co­mo reage com Gregory... É o que eu sinto.

¯  Mas...

¯  Certo, e o que podemos fazer sobre isso? ¯ observou Margaret Jen­nings enquanto dirigia. Brincou com a idéia de ir atrás de Taussig, mas o dia fora longo e cansativo. ¯ Não há evidências, e mesmo se tivésse­mos e agíssemos de acordo, teríamos que perder um bom tempo.

¯  Você acha que os três...

¯  Will, você anda lendo aquelas revistinhas outra vez. ¯ Jennings riu, quebrando o clima por um instante. Perkins era mórmon e ja­mais tinha tocado em material pornográfico. ¯ Aqueles dois estão tão apaixonados que não têm idéia do que se passa em volta deles... a não ser pelo trabalho. Aposto que a conversa na cama é sobre assuntos si­gilosos. O que acontece, Will, é que Taussig está sendo cortada da vida da amiga e não está contente com isso. Ela resiste.

¯  Então como anotamos isso?

¯  Um monte de nada.

O trabalho deles naquela noite tinha sido verificar uma denúncia de que carros estranhos eram ocasionalmente vistos na residência dos Gregory-Long. Provavelmente originada, pensou a agente Jennings, de um puritano local que achava que duas pessoas não podiam viver juntas sem a papelada adequada. Ela mesma era um pouco antiquada sobre o assunto, mas isso não tornava nenhum dos dois um risco para a se­gurança. Por outro lado...

¯  Acho que deveríamos escolher Taussig para checar a seguir.

¯  Ela mora sozinha.

¯  Tenho certeza disso. ¯ Levaria algum tempo para verificar to­dos os membros graduados de Tea Clipper, mas não se podia apressar esse tipo de investigação.

¯  Não devia ter vindo aqui ¯ comentou Tânia imediatamente ao abrir a porta. O rosto não demonstrava a raiva que sentia. Tomou a mão de Taussig e levou-a para o interior.

¯  Ann, foi simplesmente horrível.

¯  Venha sentar-se. Foi seguida? ¯ Idiota! Pervertida! "Ann" aca­bara de sair do chuveiro e trajava um roupão de banho, com uma toa­lha enrolada sobre o cabelo.

¯  Não. Verifiquei o caminho todo.

Claro, pensou Bisyarina. Ela ficaria surpresa se soubesse que era verdade. A despeito da displicente segurança do projeto ¯ permitir o ingresso de alguém assim no interior! ¯, a agente quebrara todas as regras ao aparecer em sua casa.

¯  Não pode ficar por muito tempo.

¯  Eu sei. ¯ Ela assoou o nariz. ¯ Eles quase terminaram o pri­meiro esboço do novo programa. O Monstrinho reduziu os comandos em oitenta mil linhas de código... e retirou toda aquela história de in­teligência artificial, o que faz uma boa diferença. Sabe, eu acho que ele tem decorado na cabeça todo o material novo... Eu sei, eu sei que é impossível, mesmo para aquilo.

¯Quando é que vai poder...

¯  Não sei. ¯ Taussig sorriu por um segundo. ¯ Devia tê-lo traba­lhando para você. Acho que ele é o único que realmente entende todo o programa... quero dizer, todo o projeto.

Infelizmente tudo que temos é você, Bisyarina deixou de dizer em voz alta. O que ela fez foi muito mais difícil. Estendeu a mão e tomou a de Taussig.

As lágrimas começaram novamente. Beatrice quase saltou nos bra­ços de Tânia. A mulher russa abraçou-a, tentando sentir compaixão por sua agente. Tinha assistido a muitas aulas na escola da KGB, to­das elas preparadas para auxiliar a manobrar os agentes. Era preciso uma mistura de compaixão e disciplina. Era preciso tratá-los como crianças mimadas, misturando favores e repreensões para que atuas­sem. E a agente Li via era a mais importante de todas.

Mesmo assim foi difícil virar o rosto para a cabeça que repousava em seu ombro e beijar a bochecha salgada por lágrimas antigas e re­centes. Bisyarina respirou mais livremente quando sentiu que não pre­cisaria ir além disso. Ela nunca precisara ir além disso, mas vivia com medo de que "Livia" exigisse mais dela algum dia ¯ certamente acon­teceria se ela compreendesse que sua pretensa amante não tinha o me­nor interesse em seus avanços. Bisyarina maravilhava-se com aquilo. Beatrice Taussig era brilhante à sua maneira, certamente mais do que a agente que a controlava, mas sabia pouco sobre as pessoas. A maior ironia é que ela era muito parecida com o Alan Gregory que tanto detes­tava. Embora fosse mais bonita e mais sofisticada, faltava-lhe também a capacidade de atingir as pessoas quando precisava. Gregory provavel­mente fizera isso pelo menos uma vez, e essa era a diferença entre os dois. Ele chegou primeiro porque Beatrice não teve coragem de fazê-lo. Foi melhor assim, pensou Bisyarina. A rejeição a teria destruído.

 Bisyarina imaginou como seria Gregory. Provavelmente outro aca­dêmico ¯ como era mesmo que os ingleses os chamavam? Boffins, ou sabichões. Um boffin brilhante ¯ bem, todos os que estavam liga­dos a Tea Clipper eram brilhantes de um modo ou de outro. Aquilo a assustava. À sua própria maneira, Beatrice estava orgulhosa do pro­grama, embora o considerasse como uma ameaça à paz mundial, um ponto com o qual Bisyarina concordava. Gregory era um boffin que queria mudar o mundo. Bisyarina entendia sua motivação. Também ela queria mudá-lo, só que em outro sentido. Gregory e Tea Clipper eram uma ameaça àquilo. Ela não o odiava. Se tivesse de escolher, pen­sou, provavelmente gostaria dele. Mas sentimentos pessoais não podiam ser cogitados nos serviços secretos.

¯  Está se sentindo melhor? ¯ perguntou ela quando as lágrimas cessaram.

¯  Preciso ir.

¯  Tem certeza de que está bem?

¯  Tenho. Não sei quando vou poder...

¯  Entendo. ¯ Tânia acompanhou-a até a porta.

Pelo menos tivera o bom senso de estacionar o carro em outro quar­teirão, reparou "Ann". Ela esperou, segurando a porta até ouvir o som inconfundível de um carro esporte. Depois de fechar a porta, olhou para suas mãos e foi ao banheiro lavá-las.

A noite caiu cedo em Moscou, o sol escondido pelas nuvens que começavam a despejar sua carga de neve. A delegação reuniu-se no vestíbulo da embaixada e embarcou nos carros destinados a levá-los até o local do jantar de boas-vindas. Ryan estava no carro número 3 ¯ uma pequena promoção desde a última viagem, reparou ele amar­gamente. Quando a caravana partiu, lembrou-se de uma observação do motorista durante a última vez, de que as ruas de Moscou tinham nomes principalmente para identificar os buracos no asfalto. O carro avançou para leste, por entre ruas praticamente vazias. Atravessaram o rio em frente ao Kremlin e passaram pelo Parque Górki. Pôde notar que o parque se encontrava alegremente iluminado, cheio de patina­dores sob a neve que caía. Era bom ver pessoas comuns divertindo-se de verdade. Até mesmo Moscou era uma cidade de verdade, cheia de pessoas comuns, vivendo vidas comuns. Tratava-se de um fato fácil de esquecer quando o trabalho o forçava a concentrar-se num peque­no grupo de inimigos.

O carro virou na Praça Outubro, e após várias manobras intrinca­das estacou frente ao Hotel da Academia de Ciências. Era um prédio em estilo quase moderno, que nos Estados Unidos poderia ser toma­do por um conjunto de escritórios. Uma linha de vidoeiros abandona­dos entre a parede cinza de concreto e a rua, os galhos nus e sem vida estendendo-se em direção ao céu salpicado. Ryan meneou a cabeça. Com mais algumas horas de nevasca, a cena ganharia beleza. A tem­peratura girava em torno de zero ¯ Ryan pensava em graus Farenheit, não em centígrados ¯, e o vento estava quase parado. Condições per­feitas para a queda de neve. Ele sentia o ar pesado e frio ao seu redor enquanto se encaminhava para a entrada principal do hotel.

Como a maior parte dos prédios russos, aquele estava superaquecido. Jack retirou seu casaco e passou-o ao atendente. A delegação soviética já estava perfilada para saudar seu pares americanos, que se misturavam à fila de anfitriões, terminando todos numa mesa de bebidas, da qual compartilhavam. Haveria noventa minutos de co­quetéis e confraternização antes do jantar propriamente dito. Bem-vindo a Moscou. Ryan aprovou o esquema. Uma quantidade sufi­ciente de álcool poderia fazer com que qualquer refeição parecesse uma festa, e ainda lhe faltava experimentar uma refeição russa que saísse do trivial. A sala estava parcamente iluminada, permitindo que todos apreciassem pelas grandes vidraças o espetáculo da neve que caía.

¯  Olá novamente, doutor Ryan ¯ disse uma voz familiar.

¯  Sergey Nikolayevich, espero que não esteja dirigindo esta noite ¯ falou Jack, gesticulando com sua taça de vinho em direção ao cáli­ce de vodca de Golovko. As bochechas do russo estavam coradas, os olhos azuis brilhando com alcoólica jovialidade.

¯  Apreciou o vôo ontem à noite? ¯ perguntou o coronel da GRU. Riu alegremente antes que Ryan pudesse responder. ¯ Ainda tem medo de voar?

¯  Não, o que me incomoda de verdade é atingir o chão. ¯ Jack sorriu. Ele sempre fora capaz de rir do seu temor principal.

¯  Ah, sim. Seu ferimento nas costas, da queda do helicóptero. É compreensível.

¯  Quanta neve acha que teremos esta noite? ¯ Ryan apontou em direção às janelas.

¯  Talvez meio metro, talvez um pouco mais. Não é uma nevasca muito forte, mas amanhã o ar estará fresco e claro, e a cidade vai res­plandecer com seu manto branco. ¯ Golovko foi quase poético em sua descrição.

Ele já está bêbado, disse Ryan a si mesmo. Bem, esta noite deveria ser uma ocasião social, nada mais, e os russos sabiam ser muito hospitaleiros, quando queriam. Embora um dos homens experimentasse sen­sações bem diferentes, recordou-se Jack.

¯  Sua família está bem? ¯ indagou Golovko, ao alcance dos ouvi­dos de outro membro da delegação americana.

¯  Está, sim, obrigado. E a sua?

Golovko gesticulou para que Jack o seguisse ao longo da mesa de bebidas. Os garçons ainda não haviam saído. O agente de informa­ções apanhou outro copo de vodca.

¯  Sim, todos estão bem. ¯ Ele sorriu largamente. Sergey era a pró­pria imagem da boa camaradagem russa. Seu rosto não se alterou nem um pouco quando pronunciou as palavras seguintes: ¯ Segundo fui informado, deseja encontrar-se com o diretor-geral Gerasimov.

Meu Deusl A expressão de Jack congelou-se; seu coração pulou uma ou duas batidas.

¯  É mesmo? O que lhe deu essa idéia?

¯  Não pertenço à GRU na verdade, Ryan. Minha tarefa original era no Terceiro Diretório, mas desde então mudei para outras coisas ¯ explicou ele, antes de rir novamente. Essa risada era autêntica. Ele acabara de invalidar os dados da CIA sobre sua pesssoa, mais a pró­pria observação de Ryan. Sua mão deslocou-se para dar uma tapinha no ombro esquerdo de Ryan. ¯ Vou deixá-lo ir agora. Em cinco mi­nutos você passará pela porta atrás de você e para a esquerda, como se estivesse procurando o banheiro. Depois disso, seguirá instruções. Entendido? ¯ Novo tapinha no braço de Ryan.

¯  Entendido.

¯  Não o verei mais esta noite. ¯ Apertaram-se as mãos e Golovko afastou-se.

Merdal, resmungou Ryan para si mesmo. Um grupo de violinistas entrou na sala de recepção, dez ou quinze deles tocando temas ciga­nos enquanto circulavam. Deviam ter praticado muito, pensou Jack, para tocar em sincronismo perfeito a despeito da sala escura e dos próprios meneios aleatórios. Os movimentos e a relativa escuridão tornavam muito difícil ouvir alguém individualmente durante a recepção. Era um toque profissional direcionado no sentido de facilitar a saída de Jack.

¯  Olá, doutor Ryan ¯ disse outra voz.

Era um jovem diplomata soviético, um assessor que tomava notas e fazia pequenos serviços para os mais graduados. Agora Jack sabia que ele também pertencia à KGB. Compreendeu que Gerasimov não estava contente com uma única surpresa para a noite. Queria impressionar Ryan com a precisão da KGB. Vamos ver quanto a isso, pensou ele, mas a bravata pareceu-lhe vazia. Muito cedo, muito cedo.

¯  Boa noite. Nós nunca nos encontramos. ¯ Jack enfiou a mão no bolso da calça e sentiu seu chaveiro. Não o havia esquecido.

¯  Meu nome é Vitaly. Sua ausência não será notada. O banheiro fica nessa direção. ¯ Ele apontou.

Jack passou-lhe seu copo e andou em direção à porta. Ficou quase paralisado ao deixar a sala. Ninguém ali poderia sabê-lo, mas o corre­dor estava deserto, exceto pelo homem no extremo mais distante, que gesticulou uma vez. Ryan andou em sua direção.

Oh, merda. Lá vamos nós...

Era um homem de seus 30 anos, aparentemente muito forte. Em­bora seu físico estivesse oculto pelo sobretudo, ele se movia da manei­ra vigorosa e eficiente de um atleta. A expressão facial e os olhos penetrantes faziam dele um guarda-costas. A melhor idéia que ocor­reu a Ryan foi que ele devia parecer nervoso. Não era necessário mui­to talento para isso. O homem conduziu-o além da esquina do corredor e lhe passou um sobretudo russo e um chapéu de pele, depois pro­nunciou uma única palavra:

¯  Venha.

Levou Ryan por um corredor de serviço e saíram para o ar frio de uma viela. Outro homem estava aguardando no exterior, a vigiar. Ace­nou brevemente para o acompanhante de Ryan, que se voltou e fez sinal a Jack para apressar-se. A viela terminava na Rua Shabolovka, e os dois viraram à direita. Esta parte da cidade era antiga, como Jack percebeu imediatamente, com prédios em sua maioria de antes da Re­volução. O centro da rua tinha trilhos incrustados nos pedregulhos, e acima ficavam os fios que forneciam energia aos bondes. Ele obser­vou enquanto um deles passava ruidosamente ¯ na verdade eram dois carros ligados, pintados de branco sobre vermelho. Continuaram atra­vés da rua escorregadia rumo a uma construção de tijolos vermelhos que parecia ter teto de alumínio. Ryan não estava certo sobre o que seria, até que viraram a esquina.

Era uma garagem de bondes, ele compreendeu, recordando-se de lugares parecidos em Baltimore, onde passara a infância. Os trilhos se curvavam para dentro, depois divergiam para vários compartimentos na garagem. Parou por um momento, mas seu acompanhante lhe fez um sinal urgente para prosseguir, levando-o em direção ao nicho mais afastado, à esquerda.. No interior, claro, havia bondes alinhados como gado adormecido na escuridão. Tudo completamente parado aqui, percebeu ele com surpresa. Nada de gente trabalhando, do som de martelos e ferramentas. O coração de Ryan batia forte ao passar por dois bondes imóveis. Seu acompanhante parou no terceiro. As por­tas estavam abertas, e um terceiro homem do tipo guarda-costas des­ceu e examinou-o. Imediatamente pôs-se a revistá-lo, procurando por armas numa busca rápida mas completa, e não encontrando nenhu­ma. Um aceno do polegar o dirigiu para cima e para dentro do bonde. Evidentemente o carro acabara de chegar, pois ainda havia neve no primeiro degrau. Ryan escorregou e teria caído se um dos homens da KGB não tivesse segurado seu braço. Ele lançou a Jack um olhar que no Ocidente teria sido acompanhado por um sorriso, porém os russos não são um povo sorridente, a menos que o desejem. Subiu outra vez, as mãos firmes nas alças de segurança. Tudo o que tem a fazer...

¯  Boa noite ¯ ouviu uma voz dizer. Não muito alto, pois era des­necessário.

Ryan apertou os olhos e viu a luz alaranjada da brasa de um cigarro. Inspirou profundamente e andou nessa direção.

¯  Diretor-geral Gerasimov, presumo?

¯  Não me reconhece? ¯ Um tom divertido na voz. O homem acen­deu seu isqueiro ocidental a gás para iluminar-lhe a face. Era Nikolay Borissovich Gerasimov. A chama dava a seu rosto a aparência certa. O Príncipe das Trevas em pessoa...

¯  Agora sim ¯ disse Jack, lutando para controlar a voz.

¯  Segundo fui informado, deseja falar comigo. Como posso ser útil? ¯ perguntou ele num tom cortês que destoava do cenário.

Jack voltou-se e indicou os dois guarda-costas que permaneciam em pé à porta do carro. Não precisou dizer nada. Gerasimov pronunciou uma simples palavra em russo, e ambos se afastaram.

¯  Por favor, desculpe-os, mas o dever deles é proteger o diretor-geral, e meus homens levam as ordens muito a sério. ¯ Acenou em direção à cadeira em frente à sua. Ryan sentou-se.

¯  Não sabia que falava tão bem o inglês.

¯  Obrigado. ¯ Um gesto cortês seguido de uma observação em tom comercial: ¯ Devo preveni-lo de que o tempo é curto. Tem infor­mações para mim?

¯   Sim, tenho. ¯ Jack enfiou a mão no interior do casaco. Gerasi­mov ficou tenso por um instante, depois relaxou. Só um maluco ten­taria matar o chefe da KGB, e ele sabia pelo dossiê de Ryan que ele não era louco. ¯ Tenho uma coisa para você ¯ declarou o americano.

¯  Sim? ¯ Impaciência.

Gerasimov não gostava de ficar esperando. Observou as mãos de Ryan mexendo em alguma coisa e ouviu o som de metal contra metal. A falta de jeito de Ryan desapareceu quando a chave saiu do anel, e ao falar adotou um tom diferente.

¯  Aqui está. ¯ Ryan passou o objeto.

¯  O que é isto? ¯ O tom era de suspeita, agora. Alguma coisa es­tava muito errada, errada o suficiente para que a voz o traísse.

Jack não o fez esperar. Falou num tom de voz que vinha ensaiando há uma semana. Sem reparar, falou mais rápido do que pretendera.

¯  Isto, diretor-geral Gerasimov, é a chave de controle das ogivas nucleares do submarino lançador de mísseis balísticos Outubro Ver­melho. Foi-me dada pelo capitão Marko Aleksandrovich Ramius quan­do ele desertou. Ficará contente em saber que ele gosta de sua nova vida nos Estados Unidos, bem como todos os oficiais.

¯  O submarino foi...

Ryan cortou suas palavras. A luz era escassa para ver o contorno do rosto, mas suficiente para perceber a mudança de expressão na fa­ce do homem.

¯  Destruído pelas próprias cargas de demolição? Não. O espião de bordo disfarçado de cozinheiro... chamava-se Sudets, se não me engano... bem, não há sentido em esconder isso. Eu o matei. Não me orgulho disso, mas era ele ou eu. Para dizer a verdade, ele era um jo­vem corajoso ¯ afirmou Jack, recordando-se dos dez minutos horrí­veis que passara na sala de mísseis do submarino. ¯ Sua pasta sobre mim não menciona nada sobre operações, menciona?

¯  Mas...

Jack interrompeu-o novamente. Não era hora para refinamentos. Pre­cisavam abalar o homem, precisavam sacudi-lo forte.

¯  Senhor Gerasimov, existem algumas coisas que desejamos de você.

¯  Bobagem. Nossa conversa terminou. ¯ Mas Gerasimov não se levantou, e dessa vez Ryan o fez esperar pelo tempo de algumas bati­das de coração.

¯  Queremos o coronel Filitov de volta. Seu relatório oficial ao Po­litburo afirmou que o submarino foi destruído e que uma deserção provavelmente^ nunca foi planejada, mas a segurança da GRU foi pe­netrada e recebeu ordens falsas depois que os motores foram sabota­dos. A informação chegou até você através do agente Cassius. Ele trabalha para nós ¯ explicou Jack. ¯ Você usou esse assunto para desgraçar o almirante Gorshkov e para reforçar seu controle sobre a segurança militar interna. Ainda estão furiosos com isso, não é? Por­tanto, se não tivermos de volta o coronel Filitov, na semana que vem em Washington, uma história será distribuída à imprensa a tempo para as edições de domingo. Vai conter detalhes da operação e uma foto­grafia do submarino em repouso numa doca seca em Norfolk, Virgí­nia. Depois disso vai aparecer o capitão Ramius. Ele vai dizer que o supervisor político da embarcação... um dos homens do seu Departa­mento Três, eu suponho... fazia parte da conspiração. Infelizmente, Putin morreu logo após a chegada, de ataque cardíaco. É uma menti­ra, naturalmente, mas tente provar o contrário.

¯  Não pode me chantagear, Ryan! ¯ Não havia emoção nenhu­ma, agora.

¯  Mais uma coisa. A Iniciativa de Defesa Estratégica não está na mesa de negociações. Você disse ao Politburo que estava? ¯ indagou Jack. ¯ Está acabado, senhor Gerasimov. Temos a possibilidade de desgraçá-lo, e você é um alvo muito bom para deixar passar. Se não tivermos Filitov de volta, podemos fazer vazar todo tipo de coisas. Al­gumas serão confirmadas, mas as realmente boas serão negadas, en­quanto o FBI lança uma investigação completa para identificar os autores.

¯  Vocês não fizeram tudo isso por causa de Filitov ¯ afirmou Ge­rasimov, agora com a voz controlada.

¯  Não exatamente. ¯ De novo ele fez com que o outro esperasse um pouco: ¯ Queremos que você saia também.

Jack deixou o bonde cinco minutos mais tarde. Seu acompanhante levou-o de volta ao hotel. A atenção aos detalhes era impressionante. Antes de retornar ao vestíbulo, os sapatos de Jack foram enxugados completamente. Ao entrar novamente na sala, ele foi imediatamente até a mesa com as bebidas, mas encontrou-a vazia. Avistou um gar­çom com uma bandeja e apanhou o primeiro drinque que pôde alcan­çar. Descobriu que era vodca, mas mesmo assim Ryan virou-a de um só gole antes de apanhar outra. Quando acabou a segunda, começou a perguntar-se onde seria o banheiro, de fato. Descobriu que ficava exatamente no lugar que lhe fora indicado. Jack chegou lá bem em tempo.

Foi preparado tão minuciosamente quanto se poderia fazê-lo durante uma simulação em computador. Nunca antes haviam feito um assim, claro, e era exatamente esse o propósito do teste. O computador de controle no solo não sabia o que estava fazendo, nem tampouco os ou­tros. Uma das máquinas, programada para acusar uma série de con­tatos distantes pelo radar, recebia um conjunto de sinais idênticos aos gerados pelo satélite Flying Cloud, enviados por um dos "pássaros" do Programa de Apoio à Defesa em órbita geoestacionária. O computador passava essa informação para o computador de controle em ter­ra, que checava os critérios de autoridade para liberar o uso de armas e decidia que eram válidos. Levou alguns segundos para que os gera­dores de laser atingissem a potência necessária, e eles acusaram pron­tidão poucos segundos depois.

O fato de que os geradores em questão não existiam de verdade não era pertinente ao teste. O espelho de terra existia, e respondeu às ins­truções do computador, enviando o feixe laser imaginário para o espe­lho de apoio 800 quilômetros acima. Esse espelho, recentemente transportado pelo ônibus espacial e atualmente sobre a Califórnia, re­cebia suas próprias instruções e alterava a configuração de acordo com elas, transmitindo o feixe laser ao espelho de combate, que estava na fábrica Lockheed em vez de se achar em órbita, e recebia instruções por terra. Em todos os três espelhos era mantido um controle rígido das distâncias focais e ajustes de azimute em constante mudança. Es­sas informações chegavam enfim ao monitor de disparos no Controle Geral, em Tea Clipper.

O teste que Ryan observara algumas semanas antes possuíra vários propósitos. Ao validar a arquitetura do sistema, tinham também rece­bido dados empíricos inestimáveis sobre o funcionamento real do equi­pamento físico. Como resultado disso, agora podiam simular exercícios reais em terra, com confiança quase absoluta nos resultados teóricos.

Gregory girava uma caneta esferográfica nas mãos enquanto os da­dos apareciam no terminal de vídeo, depois de ter parado de mastigá-la por medo de encher a boca de tinta.

¯  Muito bem, esse é o último tiro ¯ anunciou um engenheiro. ¯ Lá vem a contagem.

¯  Uau! ¯ exclamou Gregory. ¯ Noventa e seis em cem! Qual o tempo de ciclagem?

¯  Ponto zero-um-seis ¯ respondeu um perito em software. ¯ Isso representa quatro milésimos abaixo do esperado... Podemos checar duas vezes cada comando de mira enquanto o laser recarrega.

¯  E isso aumenta o rendimento em trinta por cento ¯ disse Gre­gory. ¯ Podemos até tentar atirar-olhar-atirar, em vez de atirar-atirar-olhar, e ainda economizar tempo no final. Pessoal! ¯ Ele deu um pu­lo e ficou em pé. ¯ Conseguimos! A porra do software está pronta! Qua­tro meses antes do prometido!

A sala irrompeu em exclamações de alegria que ninguém, além da equipe de trinta pessoas, teria entendido.

¯  Muito bem, seus nojentos do laser! ¯ gritou alguém. ¯ Façam a parte de vocês e construam o raio da morte! A mira já está pronta!

¯  Seja gentil com os nojentos do laser. ¯ Gregory riu. ¯ Trabalho com eles também.

Do lado de fora da sala, Beatrice Taussig estava simplesmente pas­sando perto da porta, a caminho de uma reunião de rotina, quando ouviu a bagunça. Ela não podia entrar no laboratório ¯ dotado de uma fechadura cifrada, da qual ela não tinha a combinação ¯, mas também não precisava. A experiência da qual tivera uma pista duran­te o jantar da noite anterior acabava de ser completada. O resultado era suficientemente óbvio. Candi estava lá dentro, provavelmente bem ao lado do Monstrinho, pensou ela. Continuou seu caminho.

¯  Graças a Deus não há muito gelo ¯ comentou Mancuso, olhan­do através do periscópio. ¯ Sessenta centímetros, talvez noventa.

¯  Haverá um canal desimpedido aqui. Os navios quebra-gelos man­têm todos os portos da costa abertos ¯ disse Ramius.

¯  Abaixar periscópio ¯ ordenou o capitão a seguir. Foi até a mesa de mapas. ¯ Quero os cálculos para que nos desloquemos 200 metros para o sul, depois até o fundo. Isso vai nos colocar sob um teto espes­so de neve, e deve manter a distância os Grisha e Mirka.

¯  Certo, capitão ¯ respondeu o contramestre.

¯  Vamos tomar um pouco de café ¯ Mancuso convidou Ramius e Clark.

Conduziu-os um convés abaixo e para estibordo em direção à copa. Em todas as ocasiões semelhantes nos últimos quatro anos, Mancuso ficava nervoso. Estavam a menos de 70 metros de profundidade, à vista da costa soviética. Se descobertos e localizados por um navio soviéti­co, seriam atacados. Já acontecera antes. Embora nenhum submarino ocidental tivesse na verdade sofrido algum dano, sempre havia uma primeira vez para essas coisas, especialmente se se começava a achar tudo seguro, disse o capitão do Dallas a si mesmo. Sessenta centíme­tros de gelo eram demais para os cascos finos dos barcos de patrulha classe Grisha, e sua principal arma anti-submarina, um lançador múl­tiplo de foguetes chamado RBU-6000, era inútil sobre o gelo, porém um Grisha poderia chamar um submarino. Havia submarinos russos por perto. No dia anterior tinham ouvido dois.

¯  Café, senhor? ¯ indagou o encarregado da copa. Obteve um ace­no positivo e trouxe um bule e xícaras.

¯  Tem certeza de que estamos perto o suficiente? ¯ perguntou Man­cuso a Clark.

¯  Tenho. Posso entrar e sair.

¯  Não vai ser muito divertido ¯ observou o capitão.

Clark deu um sorriso afetado.

¯  É por isso que me pagam tanto. Eu...

A conversa cessou por um instante. O casco do submarino estalou enquanto ele assentava no fundo, adernando levemente. Mancuso olhou para o café em sua xícara, calculando a inclinação em 6 a 8 graus. O machismo típico dos tripulantes de submarino não deixou que exter­nasse qualquer reação, porém ele nunca realizara uma manobra como essa não com o Dallas. Um punhado de submarinos da Marinha dos Estados Unidos fora especialmente projetado para essas missões. Os especialistas podiam identificá-los com uma olhada aos poucos dispo­sitivos especiais fixados ao casco, mas o Dallas não contava entre eles.

¯  Quanto tempo vai demorar? ¯ perguntou Mancuso.

¯  Pode ser que simplesmente não aconteça ¯ observou Clark. ¯ Quase metade das missões não acontece. A espera mais longa que já tive de suportar desse jeito foi... doze dias, eu acho. Pareceu um tem­po incrivelmente longo. Daquela vez não aconteceu nada.

¯  Pode dizer quantas? ¯ quis saber Ramius.

¯  Desculpe, senhor. ¯ Clark balançou negativamente a cabeça. Ramius falou em tom melancólico:

¯  Sabe, quando menino, costumava pescar aqui, bem neste lugar, muitas vezes. Não sabíamos que vocês, americanos, também vinham pescar.

¯  É um mundo maluco ¯ concordou Clark. ¯ Como é a pesca por aqui?

¯  No verão, muito boa. O velho Sasha me levava em seu barco. Foi onde eu conheci o mar, onde aprendi a ser marinheiro.

¯  E quanto às patrulhas locais? ¯ indagou Mancuso, trazendo o tema de volta.

¯  Haverá um baixo índice de prontidão. Seus diplomatas estão em Moscou, portanto a chance de guerra é mínima. Os navios de patru­lha da superfície pertencem principalmente à KGB. Eles guardam a costa à procura de contrabandistas... e espiões. ¯ Apontou Clark. ¯ Não era tão bom contra submarinos, mas isso estava mudando quan­do parti. Estavam aumentando a prática da guerra anti-submarino na Esquadra do Norte e, segundo soube, na do Báltico também. Mas es­te lugar é muito ruim para a detecção de submarinos. Há muita água doce dos rios, e uma camada de gelo por cima. Isso dificulta o uso do sonar.

Bom de ouvir, pensou Mancuso. Sua embarcação estava em estado de alerta avançado. O equipamento de sonar contava com guarnição completa e assim iria permanecer*indefinidamente. Poderia colocar o Dallas em movimento em dois minutos, e isso devia bastar, pen­sou ele.

Gerasimov também pensava. Sozinho em seu escritório, controlan­do suas emoções melhor ainda que a maioria dos russos, seu rosto não demonstrava nada do que se passava no interior, apesar de não haver mais ninguém que pudesse reparar. Na maioria das pessoas, isso teria sido notável, pois ele contemplava sua própria destruição com objeti­vidade.

O diretor-geral da Comissão para a Segurança do Estado avaliava sua posição tão completa e desapaixonadamente quanto examinava qualquer aspecto de seus deveres oficiais. O Outubro Vermelho. Tudo vinha daí. Tinha usado o Outubro Vermelho para sua própria vanta­gem, primeiro subornando Gorshkov, depois descartando-se dele; tam­bém o usara para fortalecer a posição do ramo do Terceiro Diretório. Os militares haviam começado a administrar sua própria segurança interna, mas Gerasimov acenara com seu relatório do agente Cassius para convencer o Politburo de que apenas a KGB reunia condições para garantir a lealdade e segurança aos militares soviéticos. Aquilo lhe valera muitos ressentimentos. Havia declarado, novamente segun­do o agente Cassius, que o Outubro Vermelho fora destruído. Cassius dissera à KGB que Ryan estava sob suspeita criminal e...

E nós... eu!... caí na armadilha.

Como poderia explicar aquilo para o Politburo? Um de seus melho­res agentes fora dobrado, mas quando? Perguntariam isso, e ele não saberia a resposta; portanto, todos os relatórios vindos de Cassius fi­cavam sob suspeita. A despeito do fato de que muitos dados válidos tinham vindo do agente, o conhecimento de que se tornara um agente duplo numa época desconhecida comprometia todos eles. Aquilo ar­ruinava sua pretensiosa visão do pensamento político ocidental.

Ele anunciara erroneamente que o submarino não desertara, e não descobrira seu erro. Os americanos tiveram uma fonte inesperada de informações, e a KGB não sabia disso. Nem a GRU, mas isso não ser­via de consolo.

Anunciara ainda que os americanos haviam mudado substancialmen­te sua estratégia de negociação sobre armamentos, e isso também era falso. Será que poderia sobreviver às três revelações de uma vez?, perguntou-se Gerasimov.

Provavelmente não.

Em outra idade, enfrentaria a morte, e isso teria tornado a decisão muito mais fácil. Ninguém escolhe a morte, pelo menos não um homem são, e Gerasimov era friamente são em tudo que fazia. Mas a situação era diferente agora. Ele terminaria com um cargo ministerial de segundo escalão em algum lugar, lidando com papelada. Seus con-taros na KGB lhe seriam inúteis, exceto por pequenos favores sem siggnificado, como a obtenção de mantimentos decentes. As pessoas iriam observá-lo andando na rua ¯ sem mais temor de encará-lo de frente, sem medo do seu poder, apontariam e ririam dele pelas costas. Fun­cionários do escritório perderiam aos poucos o respeito e responde­riam até mesmo gritariam com ele ao saber que seu poder se extinguira de uma vez por todas. Não, disse ele a si mesmo, não suportarei isso.

Desertar então? Passar de uma das pessoas mais poderosas do mundo a mercenário, a um mendicante que trocava o que sabia por dinheiro e uma vida confortável? Gerasimov aceitou o fato de que sua vida fica­ria mais confortável em termos materiais, mas... perder seu poderl Esta era a questão, afinal. De qualquer forma, se fosse ou ficasse, tornar-se-ia outro homem... E isso seria a morte, não seria?

Bem, o que vai fazer agora?

Ele precisava mudar de posição, precisava alterar as regras do jogo, precisava fazer algo dramático... mas o quê?

A escolha era entre a desgraça e a deserção? Para perder tudo aquilo por que lutara ¯ com seu objetivo à vista ¯ e enfrentar uma opção como essa?

A União Soviética não é uma nação de jogadores. Sua estratégia na­cional sempre foi mais parecida com a paixão russa pelo xadrez, uma série de movimentos cuidadosos e planejados com antecedência, nun­ca arriscando demais, sempre protegendo sua posição, procurando pe­quenas e progressivas vantagens onde fosse possível. O Politburo quase sempre se movimentara desta forma. O próprio Politburo era com­posto de homens assim. Mais da metade eram apparatchik que fala­vam as palavras apropriadas, preenchiam as cotas necessárias, tirando proveito quando podiam, e que conquistaram seus avanços por meio de uma impassibilidade de cuja perfeição podiam dispor ao redor da mesa no Kremlin. Mas a função de tais homens era influenciar mode­radamente aqueles a que aspiravam governar, e esses sim eram os jo­gadores. Assim também Gerasimov. Ele jogara seu próprio jogo, aliando-se a Alexandrov para estabelecer uma base ideológica, chantageando Vaneyev e Yazov para que traíssem seu senhor.

Era um jogo bom demais para se abandonar tão facilmente. Preci­sava mudar novamente as regras, só que o jogo, na verdade, não tinha regras, exceto uma: vencer. Se vencesse, as desgraças não importariam.

Gerasimov apanhou a chave no bolso e examinou-a pela primeira vez à luz do abajur da escrivaninha. Parecia perfeitamente comum. Usada da maneira para a qual fora projetada, tornaria possível a mor­te de quantos? Cinqüenta, cem milhões? Mais? Os homens do Tercei­ro Diretório nos submarinos e nos regimentos de foguetes baseados em terra tinham esse poder ¯ o zampolit, o supervisor político unica­mente tinha autoridade para ativar as ogivas sem as quais os foguetes eram meros fogos de artifício. Virar a chave da maneira adequada no momento adequado, e os foguetes se transformariam nos mais assus­tadores instrumentos de morte já concebidos pela mente humana. Uma vez lançados, nada poderia detê-los.

Mas essa regra também seria mudada, não?

Quanto valeria ser o homem que poderia realizar isso?

¯ Ah! ¯ Gerasimov sorriu.

Valia a pena mais do que todas as regras combinadas, e ele lembrou que os americanos haviam quebrado uma regra também, ao matar seu mensageiro no pátio de manobras Moskvich. Levantou o fone e cha­mou um agente de comunicações. Por uma vez, os fusos horários tra­balhavam a seu favor.

A dra. Taussig ficou surpresa quando viu o sinal. Decididamente, "Ann" nunca alterava sua rotina. A despeito do fato de que ela visita­ra impulsivamente seu contato, ir ao shopping center era sua rotina nor­mal aos sábados. Havia estacionado seu Datsun a uma certa distância, para que nenhum idiota num imenso furgão lhe arranhasse a porta. No caminho viu o Volvo de Ann, e o pára-sol do lado do motorista estava abaixado. Taussig verificou seu relógio e apertou o passo em direção à entrada. Assim que entrou, virou à esquerda.

Peggy Jennings trabalhava sozinha naquele dia. Estavam muito es­palhados para fazer o serviço tão rápido quanto Washington desejava, mas essa história não era novidade, era? O cenário era bom e ruim ao mesmo tempo. Seguir sua presa até o shopping fora relativamente fácil, porém uma vez lá dentro era praticamente impossível seguir al­guém decentemente, a menos que houvesse um time completo de agen­tes operando. Ela chegou à porta apenas um minuto atrás de Taussig, já sabendo que a perderia. Bem, essa era apenas uma vigilância preli­minar. Rotina, disse Jennings a si mesma ao abrir a porta.

Jennings olhou acima e abaixo da alameda e não conseguiu enxer­gar quem procurava. Franzindo a sobrancelha por um momento, co­meçou a perambular de loja em loja, observando as vitrinas e ima­ginando se Taussig não teria ido a um cinema.

Bea! ¯ disse Bisyarina do interior de Folhas de Eva. ¯ Como vai? ¯ocupada ¯ respondeu Taussig. ¯ Isso fica ótimo em você.

¯  Ela veste bem qualquer coisa ¯ observou a proprietária da loja.

¯  Mais do que eu ¯ concordou Taussig, levantando um terninho do cabideiro mais próximo e caminhando até o espelho. De corte só­brio, combinava com seu humor no momento. ¯ Posso experimentar

esse?

¯  Certamente ¯ concordou depressa a proprietária. Era uma peça

de 300 dólares.

¯  Precisa de ajuda? ¯ ofereceu Ann.

¯  Claro. Você pode me contar o que anda fazendo. ¯ Ambas se dirigiram para os provadores.

Dentro da cabine as duas mulheres conversaram animadamente, dis­cutindo assuntos do cotidiano que pouco diferiam entre mulheres e homens. Bisyarina estendeu uma tira de papel, que Taussig leu, ga­guejando um pouco antes de sinalizar sua concordância. Seu rosto mu­dou do choque inicial para a aceitação, depois modificou-se outra vez de uma forma que Bisyarina não gostou em absoluto ¯ mas a KGB não a pagava para gostar de seu emprego.

O terninho serviu perfeitamente, viu a proprietária assim que as duas saíram do provador. Taussig pagou como fazia a maioria das pessoas, com um cartão de crédito. Ann acenou e saiu, virando para o lado da loja de armas na saída pela alameda.

Jennings viu Taussig deixar a loja alguns minutos mais tarde, carre­gando uma sacola plástica de compras. Bem, então era isso, disse ela a si mesma. O que quer que a estivesse incomodando ontem à noite, ela veio fazer compras para sentir-se melhor e arranjou outro daqueles terninhos. Jennings seguiu-a por mais uma hora antes de abandonar a vigi­lância. Nada de especial por aqui.

¯  Aquele sujeito é muito frio ¯ disse Ryan a Candeia. ¯ Eu não esperava que ele pulasse no meu colo e me agradecesse pela oferta, mas esperava alguma reação!

¯  Bem, se ele morder a isca, você vai logo ficar sabendo.

¯  Claro.

 

O Gambito do Valete

O Arqueiro tentou convencer-se de que o tempo não era aliado de nin­guém, mas certamente isso não era verdade. O céu estava claro, os ventos gelados sopravam do nordeste, vindos do glacial centro da Sibéria. Ele queria nuvens, pois agora o grupo só podia deslocar-se no escuro. Isso tornava o avanço lento, e, quanto mais tempo ficassem em território so­viético, maior a chance de que alguém os notasse. Se fossem descobertos...

Não havia necessidade de especular sobre esse assunto. Tudo que tinha a fazer era erguer a cabeça e observar os veículos blindados pas­sando pela estrada de Dangara. Existia pelo menos um batalhão de­signado para o local, possivelmente um regimento motorizado completo de soldados armados, em patrulha permanente das estradas e trilhas. O contingente do Arqueiro era grande e formidável para os padrões dos mudjahidin, porém contra um regimento de russos em sua pró­pria terra, só Alá em pessoa poderia salvá-los.

E talvez nem mesmo Ele, pensou o Arqueiro, recriminando-se a se­guir pela blasfêmia não pronunciada. Seu filho não devia estar longe dali, talvez a uma distância menor do que haviam percorrido para che­gar até aquele lugar ¯ mas onde? Um local que ele nunca encontra­ria. O Arqueiro tinha certeza disso. Ele abandonara a esperança há muito tempo. Seu filho seria criado à maneira estranha e infiel dos russos, e tudo que ele podia fazer era rezar para que Alá chegasse até o menino antes que fosse tarde demais. Seqüestrar crianças certamen­te era o mais hediondo dos crimes. Roubá-las dos pais e de sua fé... Bem, melhor não ficar pensando nisso.

Cada um de seus homens tinha motivo suficiente para odiar os russsos.

Famílias assassinadas ou dispersas, lares bombardeados. Os guerrilheiros não sabiam que esse era o estilo de uma guerra moderna. Como "primitivos", achavam que as guerras cabiam a guerreiros exclusivamente. Seu líder sabia que isso deixara de ser verdadeiro muito antes de terem nascido. Ele não entendia por que as nações "civilizadas" haviam mudado essa regra, porém era fato estabelecido. Com esse conhecimento vinha a consciência de que seu destino diferia do que havia escolhido. O Arqueiro perguntou-se se algum homem escolhia verdadeiramente seu destino, ou se este repousava em mãos maiores do que aquelas que empunhavam livros ou fuzis. Mas esse era outro pensamento complexo e inútil, desde que para o Arqueiro e seus homens o mundo se resumira em algumas verdades simples e ódios pro­fundos. Talvez isso mudasse um dia, mas para os mudjahidin o mundo se limitava ao que podiam ver e sentir no momento. Procurar mais longe era perder de vista o que interessava, e isso significava morte. O único pensamento grandioso que os homens tinham era sua fé, e para aquela circunstância era o suficiente.

O último veículo da coluna desapareceu na curva da estrada. O Arqueiro balançou a cabeça. Já pensara demais. Os russos que acabara de observar já estavam todos no interior de seus transportadores de infantaria BMP com lagartas, dotados de aquecimento; embora mantidos quentes dentro do veículo, não podiam ver muito bem. Isso era o que importava. Ele levantou o rosto para ver seus homens, bem camuflados em trajes soviéticos e escondidos atrás de rochas, deitados em frestas aos pares, o que permitiria a um deles dormir enquanto o outro, a exemplo do líder, vigiava e ficava de sentinela.

O Arqueiro olhou para cima a fim de observar o sol em declínio. Logo ele deslizaria para trás da cadeia de montanhas, e seus homens poderiam continuar a marcha para o norte. Viu o sol brilhar sobre a casca de alumínio de um avião que fazia curva lá no alto, acima de suas cabeças.

O coronel Bondarenko, sentado na poltrona ao lado da janela, olhou para baixo, em direção às montanhas ameaçadoras. Lembrou-se de seu breve tempo de serviço no Afeganistão, as montanhas interminá­veis que cansavam as pernas, onde se podia viajar num círculo perfei­to e parecer subir o tempo todo. Bondarenko meneou a cabeça. Aquilo pelo menos ficara para trás. Cumprira seu tempo de serviço, experi­mentara o combate, e agora podia voltar para a ciência aplicada da en­genharia, afinal de contas sua primeira paixão. Operações de combate eram um jogo para jovens, e Gennady Iosifovich já passara dos 40. Tendo provado uma vez que podia escalar rochedos com os mais jo­vens, estava resolvido a não fazer isso de novo. Além do mais, outra pessoa ocupava seus pensamentos.

O que estará acontecendo com Misha?, perguntou a si mesmo. Quan­do o homem desaparecera do ministério, ele presumira com naturali­dade que o coronel mais velho ficara doente. Quando a ausência se alongou por vários dias, assumira que talvez fosse algo sério e inda­gou ao ministro se o coronel Filitov estava hospitalizado. A resposta havia sido tranqüilizadora na ocasião ¯ mas agora já não tinha tanta certeza. O ministro Yazov comportara-se com excessivo desembaraço ¯ e a seguir Bondarenko recebera ordens para retornar a Estrela Bri­lhante para fazer uma avaliação mais completa do local. O coronel sentia-se tirado do caminho ¯ mas por quê? Alguma coisa na manei­ra como Yazov reagira à sua inocente pergunta? Havia ainda o assunto da vigilância que ele descobrira. Poderiam as duas coisas estar rela­cionadas? A relação era tão óbvia que Bondarenko a ignorou sem uma consideração consciente. Era simplesmente impossível que Misha ti­vesse sido alvo de uma investigação de segurança, e menos possível ainda que a investigação produzisse provas substanciais de crime. O mais provável, concluiu ele, era que Misha estivesse fora em alguma missão confidencial para Yazov. Ele certamente fazia isso com freqüên­cia. Bondarenko olhou para baixo em direção ao impressionante ater­ro da represa hidrelétrica de Nurek. A segunda linha de força estava quase pronta, reparou ele, enquanto o avião baixava os flaps e as ro­das para aterrissar em Dushanbe-Leste. Ele foi o primeiro homem a desembarcar após o pouso.

¯  Gennady Iosifovich!

¯  Bom dia, camarada general ¯ disse Bondarenko, um tanto surpreso.

¯  Venha comigo ¯ disse Pokryshkin, depois de retribuir a conti­nência do coronel. ¯ Você não quer entrar nesse ônibus miserável, quer? ¯ Ele acenou ao sargento, que apanhou a mala de Bondarenko.

¯  Não precisava ter vindo pessoalmente.

¯  Bobagem. ¯ Pokryshkin liderou o pequeno grupo até seu heli­cóptero privativo, cujo rotor já girava. ¯ Algum dia preciso ler aquele relatório que você escreveu. Tive três ministros aqui, ontem. Agora to­dos sabem da nossa importância. Nossas verbas foram aumentadas em 35 por cento. Gostaria de poder escrever um relatório como esse!

¯  Mas eu...

¯  Coronel, não quero escutar. Você viu a verdade e a comunicou aos outros. Agora faz parte da família Estrela Brilhante. Quero que pense sobre  vir para cá depois de terminar seu trabalho em Moscou. Se-gundo sua ficha, possui excelentes credenciais em engenharia e administração, e eu preciso de um bom subcomandante. ¯ Ele se vol­tou com um olhar conspiratório. ¯ Acha que seria possível convencê-lo a usar um uniforme da Força Aérea?

¯  Camarada general, eu...

¯  Tá sei, uma vez soldado do Exército Vermelho, sempre um sol­dado do Exército Vermelho. Não insistiremos nesse ponto. Além dis­so pode me ajudar com aqueles cabeças-duras da KGB na guarda do perímetro. Eles podem atirar a experiência que têm ao rosto de um alquebrado piloto de caça, mas não contra um homem com a Bandei­ra Vermelha conquistada em combate corpo a corpo. ¯ O general ace­nou para que o piloto decolasse. Bondarenko ficou surpreso que o comandante não estivesse ele próprio pilotando o aparelho. ¯ Pois eu lhe digo, Gennady, em alguns anos isso será um ramo de serviço in­teiramente novo. "Tropas de Defesa Cósmica", talvez. Haverá espaço para você criar uma carreira inteiramente nova, e muito espaço para progredir. Quero que pense seriamente nisso. Provavelmente será ge­neral dentro de três ou quatro anos, de qualquer maneira, mas posso lhe garantir mais estrelas do que o Exército.

¯  Por enquanto... ¯ Ele pensaria no assunto, mas não no interior de um helicóptero.

¯  Estamos examinando os planos dos espelhos e computadores que os americanos estão utilizando. O chefe de nosso grupo de espelhos acha que pode adaptar os projetos deles ao nosso equipamento. Vai levar cerca de um ano para executar o projeto, ele diz, mas quanto à parte de engenharia ele não sabe. Nesse meio tempo estamos mon­tando geradores de laser de reserva e tentando simplificar o projeto para facilitar a manutenção.

¯  Isso é trabalho para mais dois anos ¯ observou Bondarenko.

¯  Pelo menos ¯ concordou o general Pokryshkin. ¯ Este progra­ma não vai render seus frutos antes da minha partida. Isso é inevitá­vel. Se tivermos mais um teste importante bem-sucedido, serei chamado a Moscou para chefiar o ministério, e na melhor das hipóteses o siste­ma não será colocado em uso antes que eu me aposente. ¯ Ele balan­çou tristemente a cabeça. ¯ É uma coisa difícil de aceitar, o longo tempo de duração desses programas. É por isso que quero você aqui. Preciso de um jovem que leve esse projeto até o fim. Procurei entre muitos oficiais. Você é o melhor deles, Gennady Iosifovich. Quero que esteja aqui para assumir, quando a hora chegar.

Bondarenko ficou chocado. Pokryshkin o escolhera, sem dúvida preferindo-o aos homens da própria Arma.

¯  Mas o senhor mal me conhece...

¯  Não cheguei a general sem saber julgar as pessoas. Você tem as qualidades que procuro, e está no momento certo da carreira, pronto para um comando independente. Seu uniforme é menos importante do que o tipo de homem que é. Eu já enviei um telex ao ministro so­bre esse assunto.

Bem. Bondarenko ainda estava surpreso demais para apreciar o fa­to. E tudo porque o velho Misha resolveu que eu era o melhor homem para fazer uma viagem de inspeção. Espero que ele não esteja muito doente.

¯  Ele já está acordado há nove horas ¯ disse um dos agentes, qua­se acusadoramente, a Vatutin.

O coronel dobrou-se para espiar pelo tubo de fibra óptica, obser­vando o prisioneiro por vários minutos. Este estava deitado, tossin­do e revirando-se enquanto tentava dormir, porém seus esforços fra­cassavam. Depois disso vieram a náusea e a diarréia provocadas pela cafeína que o impedia de dormir. A seguir ele se levantou e reto­mou o andar em círculos que estivera praticando, na tentativa de cansar-se e trazer o sono que parte do seu corpo pedia, enquanto o restante protestava.

¯  Tragam-no aqui em cima em vinte minutos. ¯ O coronel da KGB olhava com ar divertido seu subordinado.

Vatutin dormira sete horas e passara as últimas duas certificando-se de que as ordens dadas antes de se recolher tinham sido inteiramente cumpridas. Depois tomou um banho de chuveiro e barbeou-se. Um mensageiro apanhara um uniforme limpo em seu apartamento, enquan­to um ordenança polira suas botas até brilharem como espelho. No desjejum, permitira-se uma xícara extra de café, trazida do refeitório dos oficiais no andar superior. Fez pouco-caso dos olhares dos outros membros do grupo de interrogatório, não concedendo nem ao menos um sorriso enigmático para indicar que sabia o que estava fazendo. Se ainda não sabiam, a essa altura, ao diabo com eles. Quando termi­nou, limpou os lábios com o guardanapo e caminhou até a sala de in­terrogatório.

Como a maioria de tais salas, a mesa vazia que ela continha era mais do que aparentava. Sob a borda onde o tampo ultrapassava o apoio, encontravam-se vários botões que poderiam ser pressionados sem que ninguém percebesse. Inúmeros microfones estavam instalados nas pa­redes aparentemente brancas e vazias, e o único espelho que as adornava na verdade de duas faces, de maneira que o prisioneiro podia ser observado e fotografado da sala contígua.

Vatutin  sentou-se e apanhou a pasta que deixaria de lado quando Filitov  entrasse. Sua mente repassava o que  pretendia fazer. Já tinha tudo planejado, claro, até mesmo as palavras do relatório verbal que faria ao diretor-geral Gerasimov. Verificou seu relógio, acenou para o espelho e passou os minutos seguintes preparando-se para o que vi­ria. Filitov chegou no horário.

Ele parecia forte, porém abatido, constatou Vatutin. Era o efeito da cafeína misturada à sua última refeição. A imagem que ele projetava era dura, mas fina e quebradiça. Filitov demonstrava irritação agora. Antes, demonstrava também determinação.

¯  Bom dia, Filitov ¯ cumprimentou Vatutin, mal olhando para cima.

¯  Coronel Filitov, para você. Diga-me, quando vai acabar essa pa­lhaçada?

Ele provavelmente acredita nisso também, pensou Vatutin. O prisio­neiro repetira para si mesmo tantas vezes a história de como Vatutin colocara o filme em sua mão que já estava a meio caminho de acredi­tar nela agora. Aquilo não era incomum. Ele tomou sua cadeira sem permissão, e Vatutin acenou para que o carcereiro saísse da sala.

¯  Quando resolveu trair a Mãe Pátria? ¯ começou Vatutin.

¯ Quando você resolveu parar de sodomizar rapazinhos? ¯ repli­cou zangado o velho.

¯  Filitov... desculpe, coronel Filitov... Você está ciente de que foi preso com um microfilme na mão, a apenas 2 metros de uma agente de informações americana. Esse filme continha informações sobre ins­talações de pesquisa de defesa altamente secretas, informações essas que vem fornecendo há anos aos americanos. Não existe dúvida quanto a isso, caso tenha esquecido ¯ explicou pacientemente Vatutin. ¯ O que estou perguntando é há quanto tempo vem fazendo isso?

¯  Vá tomar no eu! ¯ rebateu Misha. Vatutin notou um pequeno tremor em suas mãos. ¯ Sou três vezes Herói da União Soviética. Eu já estava matando os inimigos desse país quando você ainda doía na virilha de seu pai, e tem coragem de me chamar de traidor?

¯  Sabe, quando eu estava no curso secundário, lia livros sobre vo­cê. Mishas expulsando os fascisti dos portões de Moscou. Misha, o tanquista endiabrado. Misha, o matador de alemães. Misha, lideran­do o contra-ataque no saliente de Kursh. Misha... ¯ concluiu Vatutin finalmente ¯ traidor da Mãe Pátria.

Misha acenou com a mão, parecendo aborrecido.

¯   Nunca tive muito respeito pelos chekistas. Quando eu comanda­va meus homens, eles estavam lá, atrás de nós. Eram muito eficientes para atirar nos prisioneiros... prisioneiros apanhados por soldados de verdade. Eram também muito bons em assassinar pessoas forçadas a retirar-se. Até me lembro de um caso em que um tenente chekista as­sumiu o comando de um grupo de tanques e levou todos até a merda de um pântano. Pelo menos os alemães que matei eram homens de verdade, combatentes. Eu os odiava, mas podia respeitá-los por se­rem os soldados que eram. A sua laia, por outro lado... talvez nós, os simples soldados, nunca tivéssemos entendido quem era o verda­deiro inimigo. Às vezes eu me pergunto quem matou mais russos: os alemães ou pessoas como você?

Vatutin permaneceu impassível.

¯  O traidor Penkovsky recrutou você, não foi?

¯  Uma ova! Eu mesmo denunciei Penkovsky. ¯ Filitov deu de om­bros. Estava surpreso com a maneira como se sentia, mas não foi ca­paz de se controlar. ¯ Acho que os de sua laia têm alguma serventia. Oleg Penkovsky era um homem triste e confuso, que pagou o preço que homens assim devem pagar.

¯  Como você pagará ¯ afirmou Vatutin.

¯  Não posso impedi-lo de matar-me, mas vi a morte inúmeras ve­zes. A morte levou minha mulher e meus filhos. A morte me levou muitos camaradas e tentou me levar várias vezes. Mais cedo ou mais tarde a morte vai ganhar, vinda de você ou de qualquer um. Esqueci como ter medo dela.

¯  Diga-me: do que tem medo?

¯  Não de você. ¯ Ele não disse isso sorrindo, mas com um olhar gelado e desafiador.

¯  Mas todos os homens temem alguma coisa ¯ observou Vatutin. ¯ Teve medo de combater? ¯ Ah, Misha, está falando demais. Não sabe disso?

¯  Sim, no começo. A primeira vez que um tiro atingiu meu T-34, mijei na calça. Depois disso aprendi que a blindagem deteria quase todos os tiros. Um homem pode se acostumar ao perigo físico, e como oficial geralmente ficamos ocupados demais para perceber que se de­veria estar com medo. A gente tem medo por todos os homens que comandamos. A gente tem medo de perder, numa missão de comba­te, porque outros dependem de nós. Sempre temos medo da dor... não da morte, mas da dor. ¯ Filitov surpreendeu-se ao falar tanto, mas já agüentara demais aquele idiota da KGB. Era quase como a fre­nética excitação do combate, sentar-se aqui e duelar com esse homem.

 

Eu li que todos os homens temem o combate, e o que os sustenta é a auto-magem. Sabem que não podem deixar seus camaradas perceber que são menos do que supostamente deveriam ser. Os homens, portanto, têm mais medo da covardia do que do perigo. Têm medo de trair sua masculinidade e seus companheiros. ¯ Misha concordou balançando levemente a cabeça. Vatutin pressionou um dos botões sob mesa ¯ Filitov, você traiu seus homens. Não percebe isso? Não compreende que, ao entregar segredos da defesa ao inimigo, você traiu todos os homens que serviram com você?

¯  Vai precisar um pouco mais do que palavras para...

A porta se abriu silenciosamente. O jovem que entrou usava um ma­cacão sujo e coberto de graxa, e o capacete em gomos dos tanquistas. Todos os detalhes estavam perfeitos: havia um fio para os interfones do tanque, e o cheiro acre de pólvora invadiu a sala junto com o ra­paz. O macacão estava rasgado e chamuscado, o rosto e as mãos en­voltos em ataduras. O sangue pingava do olho coberto, traçando uma trilha sobre a sujeira do rosto. E ele era a imagem viva de Aleksey Ilych Romanov, cabo do Exército Vermelho, ou tão perto disso quanto a KGB poderia conseguir durante uma noite de esforços frenéticos.

Filitov não o ouviu entrar, mas parou de falar e voltou-se assim que sentiu o cheiro. Sua boca se abriu de puro choque.

¯  Diga-me, Filitov, como acha que seus homens reagiriam se sou­bessem o que fez?

O jovem ¯ na verdade um cabo que trabalhava para um funcioná­rio subalterno do Terceiro Diretório ¯ não disse nada. A substância química irritante em seu olho fazia-o lacrimejar, e, enquanto o adoles­cente tentava não crispar o rosto com a dor que sentia, as lágrimas corriam pelas bochechas. Filitov não percebera que sua comida fora drogada ¯ ele estava há tanto tempo em Lefortovo que não possuía mais a habilidade de registrar as coisas que lhe estavam sendo feitas. A cafeína produzira o efeito exatamente oposto ao da embriaguez. Sua mente estava tão desperta como estivera em combate, todos os senti­dos procurando estímulos, reparando em tudo o que acontecia a seu redor ¯ mas durante toda a noite nada houve a registrar. Sem dados a transmitir, sua mente começara a fabricar imagens, e Filitov estava tendo alucinações quando os guardas vieram buscá-lo. Com Vatutin ele tivera um alvo onde fixar sua psique. Mas Misha também estava cansado, exausto pela rotina a que fora submetido, e a combinação dos sentidos em alerta e da fadiga esmagadora colocara-o num estado parecido com o sonho, onde ele perdera a capacidade de distinguir o real do imaginário.

¯   Vire-se,  Filitov! ¯ gritou Vatutin. ¯ Olhe para mim quando eu falar com você! Fiz uma pergunta: E quanto aos homens que serviram com você?

¯  Quem...

¯  Como, quem? Os homens que você comandava, seu velho tolo!

¯  Mas... ¯ Ele voltou-se outra vez, e a figura desaparecera.

¯  Estive lendo em sua ficha todas aquelas citações que você escre­veu sobre seus homens, mais do que a maioria dos comandantes. Ivaneko aqui, e Pukhov, e esse cabo Romanov. Todos os homens que morreram por você, o que eles pensariam agora?

¯  Eles entenderiam! ¯ insistiu Misha, totalmente dominado pela raiva.

¯  O que eles entenderiam? Diga-me, o que eles entenderiam?

¯  Homens como você é que os mataram. Não os alemães, mas ho­mens como você!

¯  E seus filhos também, não é?

¯  É! Meus dois belos filhos, meus dois rapazes, fortes e bonitos, que tentaram seguir meus passos e...

¯  Sua mulher também?

¯  Acima de tudo minha mulher! ¯ gritou Filitov. Ele se inclinou sobre a mesa. ¯ Vocês tomaram tudo de mim, seu chekista filho da puta, e ainda pergunta por que eu precisei lutar contra vocês? Ne­nhum homem serviu o Estado melhor do que eu, e veja minha re­compensa, veja a gratidão do Partido. Tudo que eu tinha no mundo foi tomado, e você tem coragem de dizer que eu traí a Rodina?  Você que a traiu, e traiu a mim também!

¯  E por causa disso Penkovsky se aproximou de você, e por causa disso você começou a fornecer informações ao Ocidente... Você nos enganou todos esses anos!

¯  Não é uma grande proeza enganar a sua laia! ¯ Ele deu um soco na mesa. Trinta anos, Vatutin. Por trinta anos eu... eu... ¯ ele parou, com um olhar estranho no rosto, pensando sobre o que acabara de dizer.

Vatutin esperou antes de falar e quando o fez sua voz era amável:

¯  Obrigado, camarada coronel. E o bastante por hora. Mais tarde vamos falar sobre o que exatamente você forneceu ao Ocidente. Desprezo-o pelo que fez, Misha. Não posso perdoar ou entender a traição, mas você é o homem mais corajoso que já conheci. Espero que enfrente o que resta de sua vida com igual bravura. É importante agora que enfrente a si mesmo e seus crimes tão corajosamente como enfrentou os fascisti, para que sua vida termine com tanta honra como quando viveu. ¯ Vatutin apertou um botão e a porta se abriu.

Os  guardas levaram Filitov, que ainda olhava seu interrogador, mais reso do que qualquer coisa. Surpreso por ter sido enganado. Filitov não chegou a entender o que acontecera, mas também os outros ra­ramente compreendiam, pensou o coronel do Segundo Diretório. Levantou-se também, depois de um minuto, recolhendo formalmente suas pastas, antes de sair da sala e subir as escadas.

¯Você teria sido um ótimo psiquiatra ¯ observou o médico em primeiro lugar.

¯  Espero que os gravadores tenham captado tudo ¯ disse Vatutin a seus técnicos.

¯  Todos os três, mais a câmera de televisão.

¯  Este foi o sujeito mais difícil com quem já cruzei ¯ disse um

major.

¯  É verdade, muito difícil. Um homem corajoso. Não um aventu­reiro, nem um dissidente. Este era um patriota, ou pelo menos era o que ele pensava. Queria salvar o país do Partido. ¯ Vatutin sacudiu a cabeça maravilhado. ¯ Onde vão buscar tais idéias?

Seu diretor-geral, lembrou-se ele, deseja quase a mesma coisa ¯ ou mais precisamente quer salvar o país para o Partido. Vatutin apoiou-se contra a parede por um instante enquanto tentava decidir quão pare­cidos ou diferentes eram os motivos de ambos. Concluiu em pouco tempo que esse não era um pensamento apropriado para um simples agente de contra-espionagem. Pelo menos ainda não. Filitov formou suas idéias a partir da maneira desajeitada com a qual o Partido tratara sua família. Bem, embora o Partido afirmasse que nunca cometia erros, todos sabemos que não é bem assim. E pena que Misha não pudesse fazer esta concessão. Afinal de contas, o Partido é tudo que temos.

¯  Doutor, certifique-se de que ele descanse um pouco ¯ pediu ele ao sair. Havia um carro esperando para levá-lo.

Vatutin ficou surpreso ao constatar que já era manhã. Após dois dias de inteira dedicação, achava que seria noite. Melhor ainda, poderia ver o diretor-geral imediatamente. O detalhe surpreendente era que, na verdade, ele estava em horário razoavelmente normal. Poderia ir para casa esta noite e dormir normalmente, reaproximar-se de sua mulher e filhos, ver um pouco de televisão. Vatutin sorriu para si mesmo. Tam­bém podia antever uma promoção. Afinal de contas, dobrara o homem mais cedo do que prometera. Isso devia tornar feliz o diretor-geral.

Vatutin apanhou-o entre refeições. Encontrou Gerasimov numa atitute pensativa, olhando pela janela o tráfego da Praça Dzerzhinsky.

¯  Camarada diretor-geral, consegui a confissão ¯ anunciou Vatu­tin. Gerasimov voltou-se.

¯  Filitov?

¯  Bem... sim, camarada diretor-geral. ¯ Vatutin demonstrou sua surpresa.

Gerasimov sorriu depois de um instante.

¯  Desculpe, coronel. Estava pensando num assunto operacional. Já tem em mãos a confissão?

¯  Nada detalhado ainda, claro, mas ele admitiu que estava envian­do segredos para o Ocidente e que vem fazendo isso há trinta anos.

¯  Trinta anos... e durante esse tempo todo não descobrimos na­da... ¯ observou Gerasimov em voz baixa.

¯  É verdade ¯ admitiu Vatutin. ¯ Mas nós o apanhamos e vamos passar semanas verificando tudo o que ele comprometeu. Acho que vamos descobrir que sua colocação e métodos operacionais eram mui­to difíceis de detectar, mas aprendemos com isso, como temos apren­dido em todos esses casos. De qualquer modo, o senhor pediu a confissão e agora já a temos ¯ ressaltou o coronel.

¯  Excelente ¯ replicou o diretor-geral. ¯ Quando estará pronto seu relatório escrito?

¯  Amanhã? ¯ disse Vatutin sem pensar. Quase se encolheu de me­do aguardando a resposta. Esperava ter a cabeça cortada, mas Gerasi­mov pensou durante infinitos segundos antes de concordar.

¯  E o suficiente. Obrigado, camarada coronel. Isso é tudo.

Vatutin obrigou-se a prestar atenção e bateu continência ao sair. Ama­nhã?, perguntou-se no corredor. Depois de tudo, ele está disposto a espe­rar até amanhã? Que diabo! Não fazia nenhum sentido. Mas Vatutin tampouco tinha uma explicação imediata, e precisava fazer seu relató­rio. O coronel caminhou até seu escritório, apanhou um bloco de ano­tações e começou a rascunhar seu relatório.

¯  Então é esse o lugar? ¯ indagou Ryan.

¯  E esse. Havia uma loja de brinquedos bem em frente, ah. Chamava-se O Mundo da Criança, acredita nisso? Acho que alguém percebeu como isso era louco, e acabaram mudando-a de lugar. A es­tátua no centro é de Félix Dzerzhinsky. Um maldito trabalho bem-feito para um cara frio como o diabo. Perto dele Heinrich Himmler era um escoteiro.

¯  Himmler não era tão esperto ¯ observou Jack.

¯  Verdade. Félix impediu pelo menos três atentados para depor Lênin, e um deles foi bastante sério. A história completa nunca trans­pirou, mas pode apostar que os registros estão bem ali ¯ disse o mo­torista.

Ele era australiano, funcionário da empresa contratada para cuidar da segurança da embaixada, além de ex-membro dos serviços secretos além de ex membro dos serviços secretos de seu país. Nunca realizara verdadeiras atividades de espionagem ¯ pelo  menos não para os Estados Unidos ¯ mas freqüentemente tomava parte nelas, fazendo coisas estranhas. Ele aprendera a avistar e des­pistar perseguidores pelo caminho, e isso fazia com que os russos tivessem certeza de que ele pertencia à CIA ou era algum tipo de es­pião. Servia também de excelente guia turístico. Verificou o espelho.

¯  Nossos amigos ainda estão aí. Não espera que aconteça alguma coisa, espera?

¯  Veremos. ¯ Jack voltou-se. Eles não pareciam muito sutis, mas ele não esperava que fossem. ¯ Onde fica Frunze?

¯  Ao sul da embaixada, parceiro. Devia ter me dito que queria pas­sar lá, teríamos feito isso antes. ¯ Ele fez uma curva em "U" num local permitido, enquanto Ryan continuava olhando para trás.

Como era esperado, o Zhiguli ¯ parecia um Fiat antigo ¯ fez o mesmo, seguindo-os como um cachorro fiel. No caminho passaram em frente do prédio ocupado pelos americanos, depois pela ex-igreja ortodoxa conhecida entre o pessoal da embaixada como Nossa Senho­ra dos Microchips, pela quantidade de dispositivos de vigilância que certamente continha.

¯  O que estamos fazendo exatamente? ¯ indagou o motorista.

¯  Estamos só passeando. Na ultima vez que estive aqui, a única coisa que conheci foi o caminho de ida e volta ao Ministério das Rela­ções Exteriores e o interior de um palácio.

¯  E se nossos amigos se aproximarem?

¯  Bem, se eles quiserem falar comigo, suponho que seja minha obri­gação atendê-los ¯ respondeu Ryan.

¯  Está falando sério? ¯ Ele sabia que Ryan trabalhava para a CIA.

¯  Pode apostar nisso ¯ riu Jack.

¯  Sabe que eu tenho de fazer um relatório escrito sobre coisas co­mo essa?

¯  Você tem seu trabalho, eu tenho o meu.

Rodaram por mais uma hora, porém nada aconteceu. Para desapon­tamento de Ryan e alívio do motorista.

Chegaram de maneira habitual. "Embora os pontos de cruzamento fossem escolhidos ao acaso, o carro ¯ um Plymouth Radiant com apro­ximadamente quatro anos de uso, placa de Oklahoma ¯ parou na gua­rita do posto de controle da Patrulha da Fronteira. Havia três homens no interior, um dos quais aparentemente dormia no banco traseiro e teve de ser acordado.

¯  Boa tarde ¯ cumprimentou o patrulheiro. ¯ Posso ver sua iden­tificação, por favor? ¯ Os três homens passaram as licenças de moto­rista, e as fotografias conferiam. ¯ Alguma coisa a declarar?

¯  Um pouco de bebida. Dois quartos de... quero dizer, litros de bebida para cada um de nós. ¯ Ele observou com interesse enquanto um cachorro farejava ao redor do carro. ¯ Quer que a gente abra o porta-malas?

¯  Por que foram ao México?

¯  Representamos a Cummings-Oklahoma Ferramentas e Moldes, que vende tubulações e equipamentos de refinação ¯ explicou o mo­torista. ¯ Principalmente válvulas de controle de grande diâmetro e maquinaria semelhante. Tentamos vender alguma coisa para a Pemex, a estatal de petróleo mexicana. O mostruário está no porta-malas.

¯  Tiveram sorte? ¯ indagou o patrulheiro.

¯  Foi a primeira tentativa. Vamos precisar de mais algumas, eu acho. É o que geralmente acontece.

O homem com o cachorro acenou negativamente a cabeça. Seu cão Labrador não havia demonstrado interesse no carro. Inexistia cheiro de drogas ou de nitratos. O homem no carro não se ajustava ao perfil. Pareciam razoavelmente honestos, mas não em demasia, e não haviam escolhido uma hora de movimento excessivo para fazer a travessia.

¯  Bem-vindos de volta ¯ disse o patrulheiro. ¯ Tenham uma boa viagem para casa.

¯  Obrigado, senhor. ¯ O motorista acenou e colocou o carro em movimento. ¯ Até mais.

¯  Não acredito ¯ desabafou o homem no assento traseiro, assim que se afastaram cerca de 100 metros do posto de controle. Ele falou em inglês. ¯ Eles não têm a menor idéia do que seja segurança.

¯  Meu irmão é major dos Guardas da Fronteira. Acho que ele te­ria um ataque do coração se visse como passamos fácil ¯ observou o motorista.

Ele não riu. A parte difícil seria sair, e a partir de agora estavam em território inimigo. Dirigia exatamente à velocidade permitida, en­quanto os motoristas locais passavam por eles. Ele gostava do carro americano, embora lhe faltasse potência. Nunca dirigira um automó­vel com mais de quatro cilindros, e não sabia muito bem qual a dife­rença. Estivera antes nos Estados Unidos, mas nunca para um trabalho como este, e nunca com tão pouca preparação.

¯ falavam um perfeito inglês americano, com o sotaque leve-mente cantado do interior para coincidir com seus papéis de identifitificação ¯ era como eles chamavam suas licenças de motorista e cartões H euro social, embora dificilmente pudessem ser chamados de "domentos". O estranho sobre isso era que ele gostava dos Estados Uni­dos especialmente da fartura de comida barata e saudável. Pararia numa lanchonete a caminho de Santa Fé, de preferência um Burger King onde se entregaria à sua paixão por um hambúrguer feito na brasa servido com alface, tomates e maionese. Esta era uma das coi­sas que os soviéticos achavam mais surpreendentes sobre os Estados Unidos: a maneira como qualquer um podia obter comida ¯ geral­mente boa ¯ sem ficar numa fila do tamanho de um quarteirão. Co­mo podiam os americanos ser tão bons em tarefas difíceis como produção e distribuição de alimentos, pensou ele, e ser tão estúpidos em coisas sim­ples como segurança adequada? Eles simplesmente não faziam sentido, porém era errado ¯ perigoso ¯ desdenhar deles. Compreendia isso. Os americanos jogavam por um conjunto de regras tão diferentes que chegavam a ser incompreensíveis... E havia tanto ao acaso por aqui! Aquilo assustava o agente da KGB de uma maneira fundamental. Não se podia saber para que lado iriam pular, mais do que se podia prever o comportamento de um motorista numa estrada. Acima de qualquer outra coisa, era o acaso que o lembrava estar em solo inimigo. Ele e seus homens precisavam ser cuidadosos e ater-se ao treinamento rece­bido. Ficar à vontade num ambiente estranho era a rota mais curta para o desastre ¯ a lição fora martelada durante todo o tempo na aca­demia. Simplesmente havia muitas coisas que o treinamento não po­dia fazer. A KGB mal podia prever o que o governo americano faria. Não havia maneira de estar preparado para as ações individuais de mais de 200 milhões de pessoas que pulavam de uma decisão para outra.

Era isso, pensou ele. Precisavam tomar muitas decisões a cada dia. Que comida comprar, que estrada escolher, que carro dirigir. Ele ima­ginou quantos de seus compatriotas suportariam tal carga de decisões, forçada dia após dia. Seria o caos, ele sabia. Resultaria em anarquia, e este era historicamente o grande temor dos russos.

¯ Gostaria de ter estradas como essas em casa ¯ disse o homem próximo a ele.

O que estava no banco traseiro dormia, desta vez de verdade. Am­bos vinham pela primeira vez. aos Estados Unidos. A operação fora preparada com muita rapidez. Oleg tinha feito vários trabalhos na Amé­rica do Sul, sempre usando a cobertura de homem de negócios americano. Como moscovita, recordou que lá, uma vez passados 20 quilô­metros do anel rodoviário externo, todas as estradas eram de cascalho ou simplesmente de terra. A União Soviética não tinha uma única es­trada pavimentada que levasse de um extremo a outro. O motorista, cujo nome era Leonid, pensou a respeito.

¯  De onde viria o dinheiro?

¯  É verdade ¯ concordou Oleg, cansado. Viajavam há mais de dez horas. ¯ Mas poderíamos ter estradas tão boas quanto o México.

¯  Hum. ¯ Nesse caso as pessoas teriam que escolher aonde ir, e nin­guém se importaria em ensinar-lhes como fazer isso. Ele olhou para o re­lógio no console. Mais seis horas, talvez sete.

A capita Tânia Bisyarina chegou à mesma conclusão ao verificar o relógio no painel de seu Volvo. O "aparelho" nesse caso não era uma casa, mas um velho reboque que parecia mais do tipo usado como escritório móvel por empreiteiros e engenheiros. Começara como mo­radia, depois como escritório, até ser abandonado por uma firma de engenharia alguns anos atrás, ao completar um serviço nas colinas em volta de Santa Fé. A rede de esgotos que estavam instalando num loteamento não chegou a ser terminada. O empreiteiro perdeu seu fi­nanciamento, e a propriedade ainda estava embargada por litígios nos tribunais. A localização era perfeita, perto da rodovia interestadual, próxima à cidade, mas escondida atrás de uma serra e marcada ape­nas por um acesso de terra, que nem mesmo os adolescentes locais haviam descoberto para usar como ponto de encontro depois dos bai­les. Quanto à visibilidade, era boa e ruim ao mesmo tempo. Pinheiros escondiam o reboque de vista, mas em compensação permitiam a apro­ximação de clandestinos. Precisariam postar um vigia do lado de fora. Bem, não se podia ter tudo. Ela entrou com as luzes apagadas, tendo calculado sua chegada para uma hora na qual a estrada mais próxima estivesse efetivamente deserta. Da traseira do Volvo ela descarregou dois sacos de mantimentos. O reboque não possuía eletricidade, e to­da a comida era imperecível. Isso significava que a carne consistia em salsichas enroladas em plástico, havendo também uma dúzia de latas de sardinha. Os russos as adoravam. Uma vez arrumados os manti­mentos no interior, ela apanhou uma pequena valise no carro e colocou-a próxima aos dois jarros de água no precário banheiro.

Teria preferido cortinas nas janelas, mas não era uma boa idéia alte­rar muito a aparência do trailer. Nem era uma idéia brilhante estacio­nar um carro ali. Depois que o grupo chegasse, iriam até um local coberto de vegetação 100 metros acima da estrada de terra, para deixá-lo lá. Teriam de estar preparados para esse pequeno inconveniente. Es­tabelecer esconderijos seguros ¯ principalmente "aparelhos" ¯ nunca tão fácil quanto as pessoas pensavam, mesmo em lugares abertos como os Estados Unidos.

Seria muito mais fácil se tivesse tido um aviso em tempo decente, mas esta operação fora montada virtualmente durante a noite, e o úni­co lugar que possuía era aquele tosco reboque, alugado logo após sua chegada. A intenção inicial não era outra senão ter um lugar para su­mir por uns tempos, ou talvez ocultar sua agente se por acaso se tor­nasse necessário. A intenção nunca fora utilizá-lo para a missão em andamento, mas não houvera tempo para outras providências. A úni­ca alternativa era sua própria casa, e isso ficava definitivamente fora de questão. Bisyarina imaginou se seria repreendida por não ter des­coberto um local melhor, mas sabia que seguira à risca suas instru­ções, como em todas as suas operações de campo.

A mobília era funcional, apesar de suja. Sem nada melhor para fa­zer, começou a limpá-la. O líder do grupo que estava a caminho era um agente graduado. Não lhe conhecia o nome nem o rosto, mas seu posto tinha de ser mais alto que o seu para este tipo de trabalho. Quan­do o único sofá do reboque ficou razoavelmente apresentável, ela se esticou para tirar uma soneca, tendo primeiro o cuidado de ajustar o pequeno despertador para acordá-la dentro de algumas horas. Pare­cia que tinha acabado de deitar-se quando a campainha arrancou-a do colchão de vinil.

Eles chegaram uma hora após o amanhecer. A sinalização das estra­das facilitou, e Leonid tinha o caminho totalmente memorizado. Cin­co milhas ¯ ele precisava pensar em milhas agora ¯ fora da rodovia estadual, virou à esquerda numa estrada lateral. Logo depois de um anúncio de cigarros, viu a estrada de terra que parecia não conduzir a lugar nenhum. Desligou as luzes do carro e enveredou pela estradinha, tendo o cuidado de não pisar no breque para que as luzes de freio não os denunciassem entre as árvores. Depois da primeira subida, a estrada formava um declive e fazia uma curva para a direita. Lá estava o Volvo. Próxima a ele havia uma figura.

Foi um momento de tensão. Ele estava fazendo contato com um co­lega da KGB, mas sabia de casos em que as coisas não tinham corrido muito bem. Puxou o freio de mão e saiu do carro.

¯  Está perdido? ¯ perguntou uma voz de mulher.

¯  Estou procurando a Vista da Montanha ¯ respondeu ele.

¯  Fica do outro lado da cidade ¯ disse ela.

¯  Ah, então devo ter tomado a saída errada. ¯ Ele percebeu o alí­vio dela quando a seqüência foi completada.

¯  Tânia Bisyarina. Pode me chamar de Ann.

¯  Sou Bob ¯ disse Leonid. ¯ No carro estão Bill e Lenny.

¯  Cansados?

¯  Estamos dirigindo desde o anoitecer de ontem ¯ respondeu Leonid/Bob.

¯  Pode dormir lá dentro. Tem comida e bebida. Não tem eletrici­dade nem água corrente. Providenciei duas lanternas e um lampião a querosene... que pode ser usado para ferver a água do café.

¯  Quando vai ser?

¯  Esta noite. Leve seu pessoal para dentro, e eu lhe mostro onde estacionar o carro.

¯  E quanto à fuga?

¯  Ainda não sei. A tarefa de hoje já é bastante complexa. ¯ Aqui­lo a lançou na descrição da operação.

O que a surpreendeu, embora não devesse, foi o profissionalismo dos três homens. Cada um deles devia estar se perguntando o que a Central de Moscou tinha em mente quando ordenou essa operação. O que estavam fazendo era insano em si, sem mencionar o tempo em que precisava ser realizado. Mas nenhum dos quatro deixou que os sentimentos pessoais interferissem com o trabalho. A operação fora ordenada pela Central, e Moscou sabia o que estava fazendo. Todos os manuais afirmavam isso, e os agentes de campo acreditavam, mes­mo quando céticos.

Beatrice Taussig acordou uma hora depois. Os dias ficavam mais longos, e agora o sol não batia mais em seu rosto enquanto dirigia pa­ra o trabalho. Em vez disso brilhava pela janela do quarto de dormir como um olho acusador. Hoje, pensou, a aurora marcava o que deve­ria ser realmente um novo dia, e ela preparou-se para ir ao seu encon­tro. Começou com um banho de chuveiro e o uso do secador no cabelo. Sua máquina de café já estava ligada, e ela tomou a primeira xícara enquanto decidia o que vestir. Disse a si mesma que era uma decisão importante, e achou que devia ingerir mais do que café e bolinho de milho. A ação requer energia, repetiu ela gravemente, fritando dois ovos. Teria que lembrar-se de ser frugal na hora do almoço, pois man­tivera o peso constante nos últimos quatro anos e era cuidadosa com sua aparência.

Alguma roupa com babados, decidiu Taussig. Não tinha muitas as­sim, mas talvez o costume azul... Ela ligou a televisão enquanto fazia o desjejum, captando o noticiário da CNN, a Cable News Network, sobre as negociações de armamentos em Moscou. Talvez o mundo se tornasse mais seguro, e era bom pensar que ela trabalhava por isso. Metodicamente, colocou os pratos usados no escorredor da lavadora antes de voltar ao quarto. O costume azul rendado estava um ano fora de moda, mas poucos no Projeto iriam reparar ¯ as secretárias, sim, mas quem ligava para elas? Colocou uma echarpe de lã ao redor do pescoço para mostrar que Bea ainda era Bea.

Taussig chegou à vaga reservada para ela no horário habitual. O passe de segurança saiu da bolsa e foi pendurado ao pescoço, preso por uma corrente de ouro, e ela cruzou a porta, passando pelos pontos de controle.

¯  Bom dia, doutora ¯ cumprimentou um dos guardas.

Deve ser o traje, pensou Bea. De qualquer modo, deu-lhe um sorri­so, o que tornou a manhã incomum para ambos. Foi a primeira a che­gar em seu escritório, como sempre. Isso significava que podia regular a máquina de café da maneira que gostava, bem forte. Enquanto a água fervia, ela abriu seu armário lacrado e retirou o pacote no qual estive­ra trabalhando no dia anterior.

Surpreendentemente, a manhã passou mais depressa do que espe­rava. O trabalho ajudou. Precisava entregar uma análise de projeção de custos por volta do fim do mês, e para fazer isso devia folhear uma verdadeira montanha de papéis, a maioria dos quais já fotografara e passara a Ann. Era muito conveniente possuir um escritório privativo com porta e uma secretária que sempre batia antes de entrar. Sua se­cretária não a apreciava, mas Taussig não ligava muito para ela, uma crente cuja idéia de diversão era entoar hinos. Bem, muitas coisas mu­dariam, disse a si mesma. Este era o dia. Ela vira o Volvo no drive-in, estacionado no lugar apropriado.

¯  Oito-ponto-um no medidor de ereção ¯ disse Peggy Jennings.

¯  Você devia ver as roupas que ela compra.

¯  Então ela é excêntrica ¯ concedeu Will Perkins com tolerância.

¯  Você vê alguma coisa que eu não vejo, Peg. Além do mais, eu a vi quando chegou de manhã, e ela parecia razoavelmente decente, ex­ceto talvez pela echarpe.

¯  Algo de diferente? ¯ indagou Jennings. Colocou os sentimentos pessoais de lado.

¯  Não. Ela levanta cedo demais, mas talvez demore para se arru­mar de manhã. Não vejo nenhum motivo especial para continuar a vigilância. ¯ A lista era longa, e havia falta de pessoal. ¯ Sei que você não gosta de homossexuais, Peg, mas não têm confirmação nenhu­ma ainda. Talvez não goste da garota ¯ sugeriu ele.

¯  Ela é desembaraçada no jeito de ser, mas conservadora nas rou­pas. Fala demais sobre muitas coisas, mas nunca de trabalho. É uma verdadeira coleção de contradições. ¯ E isso se encaixa perfeitamente no perfil, dispensou-se de acrescentar.

¯  Talvez ela não fale sobre trabalho porque sabe que não deve fa­lar, como os idiotas da segurança aconselham. Ela dirige como uma ocidental, sempre com pressa, mas usa roupas conservadoras... Tal­vez goste da maneira como as roupas caem nela. Peg, não pode ser desconfiada com tudo.

¯  Pensei que esse fosse o nosso trabalho. ¯ Jennings bocejou. ¯ Explique o que vimos na outra noite.

¯  Não posso explicar, mas você está colocando sua imaginação pa­ra trabalhar. Não há nenhuma prova, Peg, para justificar um aumen­to de vigilância. Olhe aqui, depois de verificarmos os outros da lista, voltamos a ela.

¯  Isso é loucura, Will. Temos um suposto vazamento num projeto de alta segurança e somos obrigados a ficar pisando em ovos, com me­do de ofender alguém. ¯ A agente Jennings levantou-se e caminhou até sua escrivaninha.

Não foi longa a caminhada. A agência local do FBI estava superlo­tada com gente vinda do escritório de contra-espionagem, e o pessoal da sede se acomodara na sala de refeições. As "escrivaninhas" eram mesas do refeitório, na verdade.

¯  Pois vou dizer uma coisa: a gente podia pegar todas as pessoas que tiveram acesso ao material copiado e colocarmos todas na caixa. ¯ Isso significava sujeitar todo mundo a um teste com o detector de mentiras.

Da última vez que isso fora feito, quase começou uma revolução em Tea Clipper. Os cientistas e engenheiros não eram do ramo de infor­mações para compreender a necessidade dessas medidas, mas acadê­micos que consideravam todo esse processo como um insulto ao seu patriotismo. Ou um jogo: um dos engenheiros de programação tenta­ra até mesmo usar técnicas de biofeedback para estragar o resultado. O principal efeito desse esforço, dezoito meses mais tarde, fora mos­trar que o pessoal científico tinha um bocado de hostilidade em rela­ção aos vagabundos da segurança, o que em absoluto foi uma surpresa. O que finalmente detivera o teste foi o irado artigo de um cientista graduado que provava não terem sido detectadas algumas das menti­ras que ele contou deliberadamente. Aquilo, mais a controvérsia causada dentro de várias seções, acabou com os testes antes que o programa

fosse completado.

¯  Taussig não esteve na caixa da ultima vez ¯ observou Jennings. Ela verificou. ¯ Ninguém do pessoal administrativo esteve. A revolta

acabou com o programa antes que chegasse a vez deles. Ela foi uma das que

¯  Foi por causa do pessoal da programação, que lhe encaminhou os protestos. Ela pertence à administração, não se esqueça, e precisa manter felizes os cientistas. ¯ Perkins também verificara. ¯ Olhe, se está tão certa sobre isso, podemos voltar a ela mais tarde. Eu pes­soalmente não vejo motivo, mas confio em seus instintos... Só que no momento temos um monte de gente para verificar.

Margaret Jennings declarou sua rendição. Perkins tinha razão, afi­nal de contas. Não havia nada sólido em que se apoiar. Mas ela... o quê?, indagou-se Jennings. Ela achava que Taussig era lésbica ¯ em si já não significava tanto, como atestavam os tribunais ¯ e não havia prova palpável. Três anos atrás, logo antes de ingressar no setor de contra-espionagem, atuara num caso de rapto envolvendo um casal de...

Compreendeu também que Perkins estava adotando uma atitude mais profissional. Embora fosse mórmon e de caráter mais reto que uma flecha, ele não deixava que seus sentimentos pessoais interferis­sem com o trabalho. O que ela não conseguiu foi livrar-se do senti­mento em suas entranhas, que a despeito de toda a lógica e experiência lhe dizia estar certa. Certa ou errada, ela e Will tinham ainda seis re­latórios a preencher antes que pudessem sair a campo. Só se podia passar metade do tempo em ação, agora. O restante era sempre passa­do à escrivaninha ¯ ou mesa de almoço convertida ¯, explicando às pessoas o que se fazia quando não se estava ali.

¯  Al, aqui é Bea. Podia dar uma passadinha em meu escritório?

¯  Claro. Passo aí em cinco minutos.

¯  Ótimo. Obrigada! ¯ Taussig desligou.

Até mesmo Bea admirava Gregory por sua pontualidade. Ele en­trou pela porta exatamente no horário.

¯  Espero não ter interrompido nada.

Não. Há mais um teste de simulação de geometria de alvo em andamento, mas não precisam de mim para isso. O que houve? ¯ per­guntou o major Gregory, elogiando a seguir a roupa de Bea.

¯  Obrigada, Al. Preciso que me ajude com uma coisa.

¯  O que é?

¯  É um presente de aniversário para Candi. Vou apanhá-lo hoje à tarde e preciso de alguém para me ajudar.

¯  É mesmo! Daqui a três semanas, não?

Taussig sorriu para Al. Até mesmo os barulhos que ele fazia eram de monstrinho.

¯  Vai ter que começar a lembrar esse tipo de coisa.

¯  O que você está comprando para ela?

¯  É uma surpresa, Al. ¯ Fez uma pausa. ¯ Uma coisa que Candi precisa. Você vai ver. Candi veio de carro hoje, não veio?

¯  É, e ela precisa ir ao dentista depois do serviço.

¯  Então não lhe diga nada, por favor. Vai ser uma grande surpresa ¯ explicou Bea.

Ele percebeu que isso era o máximo que ela conseguia fazer para manter o rosto impassível. Devia ser uma bela surpresa, então.

¯  Está certo, Bea. Vejo você às 5h.

Acordaram depois do meio-dia. Bob foi até o banheiro antes de lembrar-se de que não tinham água corrente. Verificou pelas janelas se havia alguma atividade lá fora antes de sair. Quando voltou, os ou­tros já estavam fervendo água. Tinham apenas café instantâneo, mas Bisyarina comprara uma marca decente, e o restante da comida para desjejum era tipicamente americano, cheio de açúcar. Eles sabiam que não precisavam disso. Quando todos terminaram a rotina "matinal", apanharam seus mapas e equipamentos para repassar os detalhes da operação. Por um período de três horas examinaram tudo, até que ca­da homem soubesse exatamente o que precisava acontecer.

E lá estava, disse o Arqueiro a si mesmo. As montanhas sempre pro­porcionam boas vistas. Nesse caso, o objetivo ainda estava a duas noi­tes de marcha, a despeito do fato de que podiam vê-lo no momento. Enquanto seus subordinados acomodavam os homens em esconderijo, ele apoiou o binóculo contra uma pedra e examinou o local. Uns 25 quilômetros de distância, calculou ele, verificando o mapa a seguir. Is­so mesmo. Teria de levar seus homens para baixo, atravessar um ria­cho, depois pela encosta numa escalada perigosa, até onde fariam o último acampamento... lá. Concentrou sua visão no local, a 5 quilôme­tros do objetivo propriamente dito, escondido da vista pelas escarpas. A escalada final seria muito difícil, mas que escolha havia? Ele poderia conceder uma hora de descanso antes do ataque. Isso ajudaria e lhe da­ria tempo para instruir os homens sobre suas missões individuais, além de tempo para rezar. Seus olhos se voltaram para o objetivo.

Obviamente as obras de construção ainda continuavam, mas nesse tipo de lugar nunca paravam de construir. Foi bom estarem agora a pontoo de atacá-lo. Em mais alguns anos o local seria inexpugnável.

Mesmo agora...

Seus olhos tentaram distinguir detalhes. Mesmo com o binóculo era difícil enxergar qualquer coisa menor do que as torres de vigia. À pri­meira luz da aurora podia ver as construções individualmente. Teriam de aproximar-se mais para descobrir os detalhes dos quais dependiam os planos de última hora, mas por ora seu interesse prendia-se à terra. Qual seria a melhor maneira de acercar-se? Como aproveitar a monta­nha em seu favor? Se o local fosse mesmo guardado pelas tropas da KGB, como afirmavam os documentos da CIA que examinara, ele sa­bia que eram tão preguiçosos quanto cruéis.

Torres de vigia, três delas do lado norte. Deve haver uma cerca ali. E minas?, pensou ele. Com minas ou não, teriam de agir rápido contra as torres. Possuíam metralhadoras pesadas e contavam com uma visi­bilidade total do terreno. Como poderiam fazer aquilo?

¯  Então esse é o lugar? ¯ O ex-major do Exército abaixou-se a seu lado.

¯  Os homens?

¯  Todos escondidos ¯ respondeu o major. Ficou um minuto exa­minando o local em silêncio. ¯ Lembra-se das histórias sobre as for­talezas da seita dos assassinos, na Síria?

¯  Ah! ¯ O Arqueiro voltou-se. Então era isso que a construção lhe recordava. ¯ E como foi tomada?

O major sorriu, mantendo os olhos em seu objetivo.

¯  Com mais recursos do que nós possuímos, meu amigo... Se al­gum dia fortificarem toda a colina, seria necessário um regimento com apoio de helicópteros até mesmo para penetrar no perímetro. Como planeja fazer?

¯  Em dois grupos.

¯  Concordo.

O major não concordava com nada daquilo. Seu treinamento ¯ to­do ele fornecido pelos russos ¯ lhe dizia que essa missão era uma lou­cura com uma força tão pequena, porém antes de contrariar um homem como o Arqueiro ele teria de demonstrar habilidade em combate. E isso significava assumir riscos loucos. Nesse meio tempo, o major tentou aplicar suas táticas na direção certa.

¯  As máquinas estão na colina do norte. As pessoas estão na coli­na ao Sul. ¯ Enquanto observavam, os faróis dos ônibus moviam-se de um local para o outro.

Era hora da troca de turnos. O Arqueiro considerou isso por um momento, mas precisava não só realizar o ataque na escuridão como partir na escuridão se pretendiam ter alguma chance de escapar.

¯  Se pudermos nos aproximar sem ser vistos... Posso fazer uma sugestão? ¯ perguntou em voz baixa o major.

¯  Continue.

¯  Levar todos juntos até a elevação no centro, depois atacar pelas duas encostas.

¯  É perigoso ¯ observou imediatamente o Arqueiro. ¯ Muito es­paço aberto a ser percorrido de ambos os lados.

¯  Também é mais fácil de ser atingido sem sermos vistos. A apro­ximação de um grupo é menos provável de ser notada que a de dois. Podemos colocar aqui as armas pesadas, que poderão observar e dar cobertura aos dois ataques...

Aqui estava a diferença entre um combatente por instinto e um sol­dado treinado, admitiu o Arqueiro para si mesmo. O major sabia me­dir as chances melhor do que ele.

¯  Tenho dúvidas sobre as torres de vigia... O que você acha?

¯  Não estou certo. Eu... ¯ O major empurrou a cabeça de seu comandante para baixo. Um momento depois um avião zuniu pelo vale.

¯  Aquele foi um MiG-21, versão de reconhecimento. Não estamos lidando com gente burra. ¯ Olhou para trás a fim de verificar se seus homens continuavam escondidos. ¯ Talvez tenham tirado uma foto­grafia nossa.

¯  Será que eles...

¯  Não sei. Teremos de confiar em Deus, meu amigo. Ele não per­mitiu que viéssemos tão longe para falhar ¯ disse o major, imaginan­do se seria verdade ou não.

¯  Então, aonde vamos? ¯ perguntou Gregory no estacionamento.

¯  Encontre-me no shopping center, do lado sul do estacionamento, certo? Só espero que caiba no carro.

¯  Vejo você lá. ¯ Gregory caminhou até o automóvel e partiu. Bea aguardou alguns segundos antes de seguir. Não havia sentido

em que reparassem que saíram ao mesmo tempo. Estava excitada ago­ra e, para combater o sentimento, tentou dirigir devagar, algo tão alheio ao seu modo de ser que simplesmente aumentou a excitação. Como se tivesse vontade própria, o Datsun pareceu escolher o próprio cami­nho, mudando marchas e pistas. Ela chegou ao estacionamento vinte minutos depois. Al estava esperando. Ele deixara o carro a dois espaços de uma pedra bem distante da primeira loja. Escolhera mais ou menos o lugar adequado, reparou Bea Taussig enquanto estacionava ao lado do carro .

¯  Por que demorou? ¯ quis saber ele. ¯  Não estava com pressa de verdade.

¯  Agora o que fazemos?

Bea não sabia. Tinha conhecimento do que iria acontecer, mas não de como eles planejaram fazê-lo ¯ não sabia nem se havia um "eles" para fazer aquilo. Talvez Ann fosse manejar sozinha as coisas. Ela riu para encobrir o nervosismo.

¯  Venha ¯ disse, acenando para que ele a seguisse.

¯  Deve ser um presente e tanto, esse ¯ declarou Gregory. A sua direita, reparou que um carro saía da vaga.

Bea notou que o estacionamento estava cheio de carros, mas não de pessoas. Os compradores da tarde haviam voltado para suas casas, os recém-chegados aumentavam suas atividades, e os freqüentadores dos cinemas só chegariam dali a uma hora, mais ou menos. Mesmo as­sim, ficou tensa enquanto seus olhos corriam para a esquerda e para a direita. Ela deveria estar a uma pista da entrada do cinema. A hora estava correta. Se algo desse errado, pensou nervosamente, teria de escolher um presente grande e pesado. Mas não precisou chegar a is­so. Ann caminhava em sua direção. Só carregava uma grande bolsa.

¯  Oi, Ann! ¯ chamou Taussig.

¯  Oi, Bea. Este é o major Gregory?

¯  Oi ¯ cumprimentou Al, enquanto tentava se lembrar se conhe­cia ou não essa mulher.

Al não tinha uma memória fisionômica, tão ocupado ficava o seu cérebro com números.

¯  Nós nos conhecemos no último verão ¯ declarou Ann, confundindo-o ainda mais.

¯  O que está fazendo aqui? ¯ perguntou Taussig à sua controladora.

¯  Apenas compras rápidas. Tenho um encontro hoje à noite e pre­cisava comprar... bem, eu lhe mostro.

Ela enfiou a mão na bolsa e retirou o que Gregory pensou ser um aerossol de perfume ¯ ou como quer que chamem esses borrifadores, meditou ele, enquanto esperava. Estava contente por Candi não ser assim. Ann pareceu espalhar um pouco de perfume em seu pulso e segurá-lo próximo ao nariz de Bea, enquanto um carro avançava pe­la pista.

Candi iria adorar... O que acha, Al? ¯ perguntou Bea, enquan­to aproximava o frasco do rosto do major.

¯ Hum? ¯ Nesse momento seu rosto ficou cheio de essência de noz-moscada, substância química irritante.

Ann calculara perfeitamente o tempo, aspergindo o líquido quando Gregory inspirava, apontando por baixo dos óculos diretamente nos olhos. Pareceu que o rosto fora envolvido em fogo, a dor penetrando pelos pulmões. Num instante ele ficou de joelhos, com as mãos na face. Não conseguiu gritar nem pôde ver o carro que parou a seu la­do. A porta se abriu, e o motorista deu apenas meio passo para fora antes de golpeá-lo do lado do pescoço.

Bea observou quando o corpo amoleceu. Tão perfeito, pensou ela. A porta traseira do carro se abriu e mãos saíram para agarrar os om­bros de Gregory. Bea e Ann ajudaram com as pernas, e o motorista entrou novamente. Enquanto a porta traseira se fechava, as chaves do carro do major voaram pela janela na direção delas, e o Plymouth des­lizou para longe, praticamente sem ter parado.

No mesmo instante, Ann olhou em volta. Ninguém os vira, certificou-se, enquanto ela e Bea andavam na direção oposta às lojas, para onde os carros estavam estacionados.

¯  O que vão fazer com ele? ¯ perguntou Bea.

¯  Por que se importa? ¯ respondeu sem demora Bisyarina.

¯  Vocês não vão...

¯  Não, não vamos matá-lo.

Ann imaginou se isso seria ou não verdadeiro. Não sabia, apenas suspeitava que um assassinato não estivesse nos planos. Eles haviam quebrado uma regra inviolável. Era o bastante para um dia.

 

Medidas Rápidas

Leonid, ou Lenny, cujo disfarce exigia que dissesse "Pode me cha­mar de Bob", dirigiu-se para o extremo mais distante do estaciona­mento. Para uma operação carente de planejamento, a parte mais perigosa correra muito bem. Lenny, no banco traseiro, tinha a missão de controlar o oficial americano que haviam acabado de seqüestrar. De compleição atlética, ele participara dos comandos Spetznaz. Bill, no banco da frente, fora designado para a missão por ser um especia­lista em espionagem científica; o fato de que seu campo fosse a enge­nharia química não abalara Moscou. O caso exigia um especialista científico, e ele representava o que possuíam de mais parecido.

Na traseira, o major Gregory começou a gemer e agitar-se. A pan­cada em seu pescoço fora suficiente para atordoar, mas não para pro­duzir nada mais sério que uma forte dor de cabeça. Não haviam de ter passado por tudo aquilo e matar o homem acidentalmente, coisa que já acontecera no passado. Pelo mesmo motivo ele não fora droga­do, prática mais perigosa do que em geral se acredita, que certa vez matara um fugitivo soviético, impedindo os homens do Segundo Di­retório de ter acesso às suas informações. Para Lenny, ele parecia uma criança acordando de um longo sono. O cheiro da substância química contida na essência era tão forte que todas as janelas foram mantidas abertas alguns centímetros, a fim de não atordoar os agentes da KGB. Gostariam de colocar amarras e mordaça no prisioneiro, mas elas cau­sariam problemas se avistadas. Lenny era capaz de controlar o ameri­cano, claro. Bastavam cuidado e experiência, não dando nada como garantido. Pelo que sabiam, o passatempo de Gregory poderia ser ar­tes marciais ¯ coisas das mais estranhas já tinham acontecido. Quan­do ele ficou vagamente consciente, a primeira coisa que viu foi um silenciador de pistola automática pressionado contra seu nariz.

¯ Major Gregory, disse Lenny, utilizando propositadamente o so­taque russo. ¯ Sabemos que é um jovem brilhante e talvez também corajoso. Se resistir será morto ¯ mentiu ele. ¯ Sou muito hábil nis­so. Você não vai dizer nenhuma palavra e permanecerá imóvel. Se fi­zer isso, nenhum mal vai lhe acontecer. Se entende o que eu digo, acene com a cabeça...

Gregory estava completamente consciente. Não chegara a perder os sentidos, apenas sentia-se atordoado pela pancada que ainda fazia doer sua cabeça, como um balão inflado. Seus olhos lacrimejavam como uma torneira vazando, e cada inspiração parecia acender uma foguei­ra em seu peito. Tentara reagir quando o colocavam no carro, mas seus membros haviam ignorado as ordens frenéticas enquanto a mente se enfurecia. Nesse instante, alcançou-o um pensamento: É por isso que odeio Bea. Não eram suas maneiras afetadas e o jeito esquisito de ves­tir que o incomodavam. Deixou isso de lado no momento. Tinha coi­sas mais importantes para preocupar-se, e sua mente corria como nunca antes. Ele acenou em concordância.

¯  Muito bem ¯ ouviu-se a voz, enquanto braços fortes o retira­vam do soalho para colocá-lo no banco traseiro. A ponta metálica da pistola apoiou-se agora em seu peito, sob o braço esquerdo do homem.

¯  O efeito do irritante químico vai passar em mais ou menos uma hora ¯ avisou Bill. ¯ Não haverá nenhum dano permanente.

¯  Quem são vocês? ¯ perguntou Al. Sua voz era um mero sussur­ro, áspera como lixa.

¯  Lenny lhe disse para ficar quieto ¯ respondeu o motorista. ¯ Além do mais, um sujeito tão inteligente como você já deve saber quem somos. Estou certo? ¯ Bob olhou pelo retrovisor e foi recompensado com um aceno.

Russos!, Al disse a si mesmo numa combinação de assombro e cer­teza. Russos aqui, fazendo uma coisa dessas... Por que querem a mim? Será que vão me matar? Sabia que não podia acreditar em nada do que dissessem. Falariam qualquer coisa para mantê-lo sob controle. Sentiu-se como um idiota. Ele devia agir como homem e como oficial, mas em vez disso estava tão indefeso quanto uma garotinha de 12 anos ¯ e chorando como uma também, reparou ele, odiando cada lágrima que lhe pingava nos olhos. Nunca em sua vida Gregory sentira tamanha raiva. Olhou para a direita e compreendeu que não tinha a mínima chance. O homem com a arma tinha quase o dobro de seu peso, e além disso ainda havia a arma apoiada em seu peito. Os olhos de Gregory  agora piscavam quase como limpadores de pára-brisa de um carro. Não conseguia enxergar direito, mas pôde perceber que o homem o observava com interesse clínico, sem nenhuma emoção nos olhos. Parecia ser um profissional na aplicação de violência. Spetznaz, co­mandos russos de "objetivos especiais", pensou Gregory imediatamen­te Al inspirou fundo, ou antes, tentou. Quase explodiu num acesso de tosse.

¯ É melhor você não fazer isso ¯ advertiu o homem no assento da frente. ¯ Inspire aos poucos. O efeito passa aos poucos. ¯ Coisa maravilhosa essa essência chamada Mace, pensou Bill. E, nos Estados Unidos, qualquer um podia comprar uma lata. Surpreendente.

Bob já havia saído do enorme estacionamento, dirigindo de volta ao "aparelho". Tinha o caminho gravado na memória, claro, embora não estivesse completamente à vontade. Não pudera percorrê-lo pre­viamente, nem medir o tempo ou estudar rotas alternativas, mas já passara tempo suficiente nos Estados Unidos para saber como dirigir dentro da lei e com cuidado. O trânsito da região era melhor do que no nordeste do país, a não ser nas rodovias interestaduais, onde cada ocidental se julgava com o direito de dirigir feito um maníaco. Como não estava na interestadual, e sim naquela estrada de quatro pistas, o tráfego da hora do rush fluía compacta e ininterruptamente. Com­preendeu que sua estimativa de tempo fora no mínimo otimista, mas isso não importava. Lenny não teria problemas para controlar seu hós­pede. Estava escuro, poucas luzes acesas nas ruas, e o carro deles era apenas mais um entre os que se dirigiam para casa depois do expe­diente.

Bisyarina já se encontrava a 8 quilômetros de distância, indo na di­reção oposta. O interior do carro estava em pior estado do que imagi­nara. Sendo uma pessoa asseada, ficou chocada ao perceber que o jovem literalmente cobrira o soalho do carro com embalagens plásti­cas de algum tipo, e ela perguntou-se por que o Chevy não estava cheio de formigas. Essa idéia fez arrepiar sua pele. Verificou o retrovisor para certificar-se de que Taussig estava logo atrás. Dez minutos de­pois ela chegou a um bairro de classe média. Todas as casas possuíam alamedas para entrada de carros, mas muitas famílias ali tinham mais do que um veículo, e vários estavam estacionados na rua. Ela encon­trou uma vaga próxima a uma esquina e parou. O Datsun de Taussig apareceu ao lado do Chevy, que ficou ali, apenas mais um carro estacionado ao meio-fio. Quando Taussig parou no semáforo seguinte, Bis­yarina abaixou o vidro e atirou as chaves de Gregory por uma boca de lobo. Com aquilo, terminava para ela a parte mais perigosa da mis­são. Sem precisar de ordem, Taussig tomou o caminho de volta ao shop­ping center, onde Bisyarina apanharia seu Volvo.

¯  Tem certeza de que não vão matá-lo? ¯ quis saber Bea, depois de um minuto.

¯  Tenho, Bea ¯ respondeu Ann. Ela perguntou-se por que Taus­sig se conscientizará tão subitamente. ¯ Se adivinhei corretamente, talvez ele tenha até uma chance de continuar seu trabalho... em al­gum outro lugar. Se cooperar, então será muito bem tratado.

¯  Vão até arrumar uma namorada para ele, não vão?

¯  É uma forma de manter os homens felizes ¯ admitiu Bisyarina.

¯  Pessoas felizes trabalham melhor.

¯  Ótimo ¯ comentou Taussig, surpreendendo sua controladora um bocado. Explicou logo depois: ¯ Não quero que ele se machuque. O que sabe vai ajudar os dois lados a tornar o mundo mais seguro.

¯  E o quero fora do meu caminho, pensou.

¯  Ele é muito valioso para que alguém o machuque ¯ observou Ann. A menos que algo corra errado, nesse caso outras regras podem ser aplicadas...

Bob ficou surpreso quando o trânsito parou. Estavam logo atrás de uma caminhonete. A exemplo da maioria dos motoristas americanos, ele odiava aquelas coisas porque não enxergava nada para frente e pa­ra os lados. Abriu o cinzeiro e pressionou o botão do acendedor de cigarros, enquanto franzia o cenho em frustração. Bill, próximo a ele, também apanhou um cigarro. Pelo menos ajudaria a disfarçar o fedor acre que ainda impregnava o estofamento do automóvel. Bob resolveu que deixaria todas as janelas abertas quando estacionasse de noite, só para se ver livre do cheiro. Seus próprios olhos lacrimejavam, agora que não havia vento para dispersar os vapores químicos. Quase teve piedade do prisioneiro pela dose direta que recebeu, mas era preferí­vel a um droga potencialmente letal, ou uma pancada que lhe que­brasse o pescocinho magro. Ao menos ele estava se comportando bem. Se tudo continuasse a correr de acordo com os planos, por volta do final da semana regressariam a Moscou. Teria de esperar um dia ou dois antes de seguir para o México. Usariam um local diferente para cruzar a fronteira, e talvez uma ação de despistamento, ainda não es­tabelecida, fosse utilizada para assegurar sua rápida travessia para o país mais conveniente, onde se podia apanhar um avião para Cuba e de lá voar diretamente para Moscou. Depois disso, seu grupo do Primeiro Diretório ganharia um mês de descanso. Seria bom, disse Bob si mesmo, ver a família novamente. Era muito solitário, no exterior. Tão solitário que uma vez ou duas fora infiel à sua esposa, o que tam­bém se constituía numa violação das ordens vigentes ¯ não uma vio­lação que muitos agentes levassem a sério, mas nada do que se orgulhar. Talvez conseguisse uma nova posição na Academia da KGB. Ele agora era veterano, e depois de uma missão como essa...

O trânsito começou novamente a mover-se. Ficou surpreso ao ver as luzes de alerta da caminhonete se acenderem. Dois minutos depois, horrorizou-se ao perceber por quê. Um trator-reboque articulado blo­queava completamente a estrada, com os restos de um carro pequeno esmagado sob as rodas dianteiras. Um verdadeiro exército de luzes ro­tatórias de ambulâncias iluminava os esforços de policiais e bombei­ros para retirar o idiota que estivera dirigindo o pequeno carro importado. Sem poder distinguir qual a marca do carro, Bob, como a maioria dos outros motoristas, ficou olhando fascinado para o desas­tre por alguns segundos, até lembrar-se de quem era e onde estava. Um policial todo de preto trocava as lanternas de sinalização e desvia­va o tráfego que demandava o sul para uma estradinha lateral. Bob voltou a ser agente de informações no mesmo instante. Aguardou até que aparecesse um espaço vazio atrás do policial, e enveredou por ele. Aquilo lhe conquistou um olhar zangado e só. O mais importante: o policial não tivera tempo de olhar para o carro. Bob acelerou na subi­da, até perceber que outro efeito de sua hesitação fora não reparar em que direção seguia o tráfego desviado.

Eu não trouxe o mapa, pensou a seguir. Ele o destruíra por todas as marcas que continha. Na verdade, não havia nenhum mapa no car­ro. Mapas eram coisas perigosas, e além do mais ele era capaz de de­corar todas as informações de que precisava para suas missões. Mas não tivera tempo para reconhecer a área, e só conhecia um caminho de volta ao esconderijo.

Malditas sejam essas operações de "prioridade imediata"!

Virou à esquerda no cruzamento, seguindo uma rua em curva de um bairro residencial. Demorou vários minutos para compreender que ali todas as ruas eram tão tortuosas que já não sabia para que direção estavam avançando. Pela primeira vez esteve a ponto de perder a com­postura, mas conteve-se. Uma imprecação mental em sua língua ma­terna lembrou-o de que não deveria nem mesmo pensar em russo. Bob acendeu outro cigarro e prosseguiu devagar enquanto tentava orientar-se. As lágrimas nos olhos não ajudavam nem um pouco.

Ele está perdido,  notou Gregory depois de um momento. Lera sufi-cientes romances de espionagem para saber que o estariam levando para um "aparelho", ou um aeroporto clandestino, ou até outro veí­culo que o levaria... para onde? Porém, assim que reconheceu o mes­mo carro pelo qual haviam passado minutos antes, teve de reprimir um sorriso. Eles fizeram algo de errado. A curva seguinte os levou a descer, e Gregory confirmou suas suspeitas quando divisou as luzes vermelhas que marcavam o local do acidente. Notou as imprecações enquanto o motorista manobrava numa entrada para carros, engatan­do marcha a ré para subir novamente a colina.

Tudo que os russos odiavam nos americanos retornou à consciência de Bob. Muitas estradas, muitos carros ¯ algum americano imbecil atravessara um sinal vermelho e... ¯ Espero que tenha morrido!, enraivecia-se o motorista com os veículos estacionados na rua residen­cial. Espero que tenha morrido berrando de agonia. Sentiu-se melhor de­pois de expulsar o pensamento.

E agora?

Ele continuava numa rota diferente, seguindo a rua sobre o topo da colina, de onde podia enxergar outra estrada. Talvez, se seguisse para o sul por aquela ali embaixo, depois poderia voltar para a rodovia on­de estavam. Valia a pena tentar, pensou ele. Ao lado direito, Bill lan­çou um olhar interrogativo, e Lenny na traseira estava ocupado demais com o prisioneiro para notar que alguma coisa corria mal. Enquanto ganhavam velocidade, ao menos o ar circulou pelas janelas e desanu­viou seus olhos. Havia um semáforo ao fim da descida, junto com uma placa que dizia: PROIBIDO VIRAR À ESQUERDA.

Govno!, murmurou Bob a si mesmo enquanto virava à direita. Esta rodovia de quatro pistas era dividida ao meio por uma mureta de con­creto. Você devia ter gasto mais tempo estudando o mapa. Devia ter diri­gido por aqui algumas horas. Mas agora era tarde para recriminações, e ele sabia que não tinha tempo. A manobra os levou de volta ao nor­te. Bob verificou seu relógio de pulso, esquecendo que havia um no painel. Já perdera quinze minutos. Estava em campo aberto e vulne­rável, em solo inimigo. E se alguém os tivesse visto no estacionamen­to? E se o policial que atendia ao desastre tivesse anotado sua chapa?

Bob não entrou em pânico. Era muito bem treinado para isso. Obrigou-se a respirar fundo, e mentalmente examinou todos os ma­pas da área que vira. Estava a oeste da rodovia interestadual. Se pu­desse confirmar isso, ainda se lembrava da saída que usara mais cedo ¯ teria sido no mesmo dia? ¯ e poderia chegar ao esconderijo de olhos vendados. Se estivesse a oeste da rodovia interestadual, tudo que tiha a fazer era encontrar uma estrada importante no sentido leste-oeste, e tudo correria bem. Certo.

Após quase cinco minutos, encontrou uma auto-estrada no sentido leste-oeste e nem se preocupou em ver seu nome. Mais cinco minu­tos e ele ficou grato ao avistar a placa vermelha, branca e azul que anunciava a rodovia interestadual, 800 metros adiante. Só então respi­rou aliviado.

¯  Qual é o problema? ¯ perguntou finalmente Lenny do banco traseiro.

¯  Tive que mudar o caminho ¯ respondeu Bob em russo, num tom mais relaxado do que julgara possível alguns minutos atrás. Ao voltar-se para responder, deixou de ler uma placa.

Era o aviso sobre rampas de saída. As placas verdes anunciavam que podia tomar o norte ou o sul. Queria ir para o sul, e a saída estava...

No lugar errado. Ele se encontrava na pista da direita, mas a saída ficava à esquerda, apenas 50 metros à frente. Cruzou as pistas da es­trada sem olhar. Imediatamente atrás dele, o motorista de um Audi pisou nos freios e pressionou a mão na buzina. Bob ignorou a impertinência enquanto tomava a saída desejada. Estava na curva ascenden­te, olhando o tráfego da rodovia, quando viu luzes piscando sobre o carro preto imediatamente atrás dele. Os faróis piscaram, e ele soube o que viria a seguir.

Não entre em pânico, disse a si mesmo. Escusou-se de falar com seus camaradas, não considerando nem de longe a possibilidade de fugir. Tinham sido instruídos quanto a isso, também. Os policiais americanos eram corteses e profissionais. Não exigiam pagamento no local, como faziam os policiais de trânsito russos. Bob também sabia que os policiais americanos andavam armados com revólve­res Magnum.

Parando o Plymouth logo depois do viaduto, Bob aguardou. Obser­vou pelo espelho retrovisor a viatura policial parando logo atrás, leve­mente deslocada para a esquerda. Pôde ver o policial saindo, trazendo uma prancheta na mão esquerda. Aquilo deixava a direita livre, repa­rou Bob, e aquela era a mão que empunhava a arma. Na traseira, Lenny dizia ao prisioneiro o que aconteceria se fizesse algum ruído.

¯  Boa tarde, senhor ¯ disse o policial. ¯ Não sei quais são as leis em Oklahoma, mas aqui preferimos não mudar de pistas desse jeito, Posso dar uma olhada em sua habilitação e no registro do carro? ¯

uniforme preto e prateado fez que Leonid se lembrasse dos SS na­zistas, mas não era hora para tais pensamentos. Seja educado, disse calmamente a si mesmo, aceite a multa e depois vá embora. Passou os documentos e esperou que o policial começasse a preencher seu talão vazio. Talvez fosse apropriado pedir desculpas agora?

¯  Desculpe, senhor, pensei que a saída fosse do lado direito, e...

¯  É por isso que gastamos tanto dinheiro em placas, senhor Taylor. Esse é o seu endereço atual?

¯  Sim, senhor. Como disse, sinto muito. Se quiser me multar, acho que mereço.

¯  Gostaria que todos fossem assim tão compreensivos ¯ comen­tou o policial. Poucos eram, e ele resolveu certificar-se da aparência desse sujeito educado. Olhou para a fotografia na carta de motorista e inclinou-se para verificar se era a mesma pessoa. Acendeu a lanterna no rosto de Bob. Era o mesmo rosto, mas... ¯ Que diabo de cheiro é esse?

Mace, veio à mente do policial quase de imediato. O facho de luz varreu o interior. Os ocupantes do carro tinham aparência normal, dois na frente, dois atrás e... ali um deles trajava o que parecia ser um ca­saco militar...

Gregory perguntou-se se a sua vida estaria realmente em jogo. Resolveu descobrir e rezou para que o policial estivesse alerta.

Na traseira, o que estava do lado esquerdo ¯ aquele com o paletó estranho ¯ pronunciou, sem emitir som, uma única palavra: Socorro. Isso meramente deixou mais curioso o guarda, porém o que estava no banco direito da frente viu o movimento e ficou paralisado. Todos os instintos do policial se acenderam de uma só vez. Sua mão direita deslizou para o revólver de serviço, soltando a tira de segurança.

¯ Para fora do carro, um de cada vez, já!

Ficou horrorizado ao ver uma arma, surgida como que por encanto nas mãos do sujeito à direita no banco traseiro, e antes que ele pudes­se sacar seu revólver... A mão de Gregory não chegou a tempo, mas seu cotovelo, sim, estragando a pontaria de Lenny.

O guarda ficou surpreso quando não ouviu nada, a não ser um pa­lavrão numa língua desconhecida, mas, quando isto lhe ocorreu, a man­díbula saltou numa nuvem de estilhaços esbranquiçados. Caiu para trás, o revólver agora na mão, atirando como que por vontade própria.

Bob encolheu-se e engatou a marcha. As rodas da frente giraram no cascalho solto, mas aderiram, impulsionando o Plymouth vagaro­samente para longe do barulho da arma. Na traseira, Lenny, que ati­rara uma única vez, aplicou uma coronhada à cabeça de Gregory. Seu tiro de mira perfeita teria perfurado o coração do policial, mas em vez disso o atingira no rosto, e ele não sabia se tinha sido mortal. Gritou alguma coisa que Bob não se importou em ouvir.

Três minutos depois, o Plymouth saía da interestadual. Abaixo do acidente que ainda bloqueava o trânsito, a estrada estava livre. Bob entrou na pequena estrada de terra com os faróis apagados e chegou ao reboque antes que o prisioneiro recobrasse a consciência.

Atrás deles, um motorista que passava viu o policial caído e saiu da rodovia para auxiliá-lo. O homem sofria bastante, com um ferimento sangrento no rosto e nove dentes a menos. O motorista correu para a viatura e fez uma chamada pelo rádio. Levou um minuto para que o operador do outro lado conseguisse entender o que ocorrera, mas três minutos depois uma segunda radiopatrulha chegava ao local, se­guida por mais cinco em outros tantos minutos. O policial ferido não conseguia falar, mas passou sua prancheta aos companheiros, onde es­tavam anotados a descrição do carro e o número da placa. Ele tam­bém ficara com a habilitação de motorista pertencente a "Bob Taylor". Isso foi o suficiente para seus colegas. Uma chamada urgente foi pas­sada a todas as freqüências locais da polícia. Alguém atirara num guar­da. O verdadeiro crime cometido era muito pior, mas a polícia não sabia, e nem isso teria feito diferença.

Candi ficou surpresa ao ver que Al não se encontrava em casa. Sua mandíbula ainda estava amortecida pelas injeções de xilocaína, e ela resolveu tomar uma sopa. Mas onde está Al? Talvez tivesse que ficar até mais tarde para resolver alguma coisa. Sabia que poderia telefonar, mas não era tão importante assim, e, no estado em que se achava sua boca, de qualquer modo não poderia falar direito.

Na Central de Polícia, na Cerrilos Road, os computadores já esta­vam zumbindo. Um telex foi transmitido sem demora para Oklahoma, onde os plantonistas tomaram conhecimento da magnitude do crime e acionaram seu próprio banco de dados. Na mesma hora des­cobriram que não fora expedida nenhuma habilitação para Robert J. Taylor, Rua 108, número 1353, Oklahoma City, OK 73210, nem ha­via um Plymouth Reliant com placa número XSW-498. Esse número de licença, na verdade, não existia. O sargento que dirigia a seção de computadores ficou mais do que surpreso. Receber a resposta negati­va de registro de uma determinada placa não era tão incomum assim, mas receber respostas negativas sobre a placa e sobre a habilitação, e ainda por cima num caso de tiroteio envolvendo um policial, era exi­gir demais da lei das probabilidades. Ele levantou o fone para falar com o oficial superior encarregado.

¯ Capitão, temos um resultado maluco aqui, naquele caso do poli­cial Mendez.

O Estado do Novo México, cheio de áreas pertencentes ao governo federal, possuía uma longa história de atividades altamente sigilosas. O capitão não sabia o que estava acontecendo, mas entendeu imedia­tamente que não se tratava de um acidente de trânsito. Um minuto depois, estava ao telefone falando com o escritório local do FBI.

Jennings e Perkins chegaram lá antes que o policial Mendez saísse da cirurgia. A sala de espera estava tão cheia de guardas que era uma sorte o hospital não estar atendendo a outros casos de cirurgia no mo­mento. O capitão que dirigia a investigação estava presente, bem co­mo o capelão da polícia estadual e meia dúzia de agentes que trabalhavam no turno de Mendez, mais a mulher dele, grávida de se­te meses. O médico entrou e anunciou que ele ficaria bom. O único dano num vaso importante fora reparado, e um cirurgião maxilar co­meçaria a consertar o estrago dentro de mais um ou dois dias. A mu­lher do policial chorou um pouco, depois foi levada para ver o marido antes que dois colegas a deixassem em casa. Então era hora de trabalhar.

¯  Ele devia estar com a arma nas costas do coitado ¯ disse Men­dez devagar, as palavras distorcidas pelos fios metálicos que segura­vam sua mandíbula. Já recusara um analgésico. Queria passar as informações rapidamente, e não se importava em sofrer um pouco pa­ra fazê-lo. Estava furioso. ¯ Era a única maneira de conseguir sacar tão depressa.

¯  A fotografia na carteira de motorista é parecida com o homem? ¯ perguntou a agente Jennings.

¯  Sim, senhora. ¯ Pete Mendez era um policial jovem, e fez com que a agente Jennings se sentisse velha com aquela forma de trata­mento. A seguir forneceu descrições gerais dos homens. Depois veio a da vítima: ¯ Trinta anos talvez, magrinho, de óculos. Estava usan­do um casaco que parecia ser de uniforme. Não vi a insígnia, mas não olhei por muito tempo. O corte de cabelo poderia ser à militar. Não sei a cor dos olhos também, mas percebi alguma coisa esquisita com eles... Brilhavam como se... Ah! O cheiro de Mace. Talvez fosse isso. Talvez tenham espirrado a essência nele. Não disse nada, mas mexeu os lábios, sabe como é? Achei que fosse piada, mas o sujeito da frente ficou alterado com aquilo. Eu fui lento. Devia ter reagido mais de­pressa. Fui muito lento.

¯  Você afirmou que um deles disse alguma coisa? ¯ quis saber Perkins.

O filho da puta que atirou em mim. Não sei o que era. Não era inglês nem espanhol. Só me lembro a última palavra... maht, ou al­guma coisa parecida ¯ YoV tvoyu matl ¯ disse Jennings sem demora. -É  é isso mesmo ¯ reconheceu Mendez. ¯ O que quer dizer?

¯  Quer dizer "vá foder com sua mãe". Desculpe. ¯ Perkins corou. Mendez ficou rígido na cama. Não se dizem tais coisas a um ho­mem furioso, de sangue espanhol.

¯  O quê? ¯ perguntou o capitão de polícia.

¯  É russo, um dos xingamentos favoritos. ¯ Perkins olhou para Jennings.

¯  Meu Deus! ¯ suspirou ela, quase incapaz de acreditar. ¯ Va­mos ligar já para Washington.

¯  Temos de identificar o... espere um pouco! Gregory? ¯ disse Per­kins. ¯Deus Todo-Poderoso! Ligue para Washington. Vou telefonar para a sede do Projeto.

Aconteceu que a polícia estadual chegou mais rápido. Candi aten­deu a uma batida na porta e ficou surpresa ao encontrar um guarda parado ali. Ele perguntou educadamente se podia ver o major Al Gre­gory e obteve a resposta negativa de uma jovem cujo maxilar começa­va a voltar ao normal enquanto o mundo ao seu redor ruía. Ela nem entendera ainda as novidades quando o chefe de segurança do Tea Clip­per apareceu. Apenas presenciou uma chamada pelo rádio para que procurassem o carro de Al, chocada demais, até para chorar.

A fotografia da carteira de habilitação de "Bob Taylor" já estava em Washington, sendo examinada por membros da divisão de contra-espionagem do FBI, porém não constava nos arquivos de agentes so­viéticos identificados. O diretor assistente desse tipo de operações já fora chamado em sua casa pelo supervisor de plantão e, por sua vez, chamou o diretor do FBI Emil Jacobs, que chegou ao Edifício Hoover às 2 da manhã. Mal puderam acreditar, porém o policial ferido confirmou que se tratava do major Alan T. Gregory. Os soviéticos nun­ca tinham cometido um crime violento nos Estados Unidos, regra tão bem estabelecida que a maioria dos fugitivos soviéticos, se desejasse, podia viver abertamente e sem proteção. Mas o que estava acontecen­do era muito pior do que a eliminação de um indivíduo que pelas leis soviéticas era considerado um traidor. Um cidadão americano fora se­qüestrado; para o FBI, o seqüestro era um crime que pouco diferia do assassinato.

Havia um plano, claro. Embora nunca tivesse acontecido, os peritos em operações, cujo trabalho era pensar em acontecimentos inimagi­náveis, tinham proposto um conjunto de medidas a serem tomadas. Antes da aurora, trinta agentes graduados levantaram vôo da Base Aé­rea de Andrews, entre eles os membros do Grupo Anti-Seqüestro. Agentes de escritórios de campo por todo o sudoeste instruíram os guar­das da Patrulha da Fronteira sobre o caso.

Bob/Leonid sentou-se sozinho, bebendo café morno. Por que eu não continuei andando e fiz o retomo mais adiante?, recriminou-se. Por que tanta pressa? Por que estava tão nervoso na hora errada?

Pois agora era hora de ficar nervoso. Seu carro apresentava três bu­racos de bala, dois na lateral esquerda e um na tampa do porta-malas. Sua licença de motorista estava nas mãos da polícia, contendo sua fo­tografia.

Desse jeito não vai conseguir um posto de professor na Academia, tovarich. Sorriu amargamente para si mesmo.

No "aparelho", consolou-se por estar em segurança mais um dia ou dois. Esse era com certeza o refúgio provisório da capita Bisyarina, que nunca pretendeu nada além de um lugar para se esconder se fosse preciso. Por causa disso, o local não tinha telefone, e ele não tinha meios para comunicar-se com a agente residente. E se ela não voltar? A res­posta era clara. Ele seria obrigado a assumir o risco de dirigir um car­ro com placas conhecidas ¯ e buracos de bala! Assim, talvez fosse melhor roubar outro. Teve visões de milhares de policiais patrulhan­do as estradas com um pensamento apenas: encontrar os maníacos que haviam baleado um companheiro. Como ele pudera deixar as coisas correrem tão mal, em tão pouco tempo!

Escutou a aproximação de um carro. Lenny ainda estava guardan­do o prisioneiro. Bob e Bill apanharam suas pistolas e espiaram pela borda da única janela que dava para a frente do reboque. Ambos res­piraram aliviados quando identificaram o Volvo de Bisyarina. Ela des­ceu e fez os gestos apropriados, indicando que tudo estava certo, depois veio em direção ao reboque, trazendo uma grande sacola.

¯  Parabéns! Você conseguiu aparecer no noticiário da televisão ¯ disse ela ao entrar. Idiota! Essa parte não precisou ser dita. Ficou no ar, como uma nuvem carregada.

¯  E uma longa história ¯ começou ele, propenso a mentir.

¯  Tenho certeza de que sim. ¯ Ela colocou a sacola sobre a mesa. ¯ Amanhã vou alugar um carro novo. E muito perigoso usar o mes­mo. Onde vocês...

¯ Duzentos metros estrada acima embaixo das maiores árvores que conseguimos encontrar, coberto com galhos. É difícil de avistar, mesmo do ar.

 

-Sim,  é bom manter isso em mente. A polícia por aqui tem helicópteros. Tome. ¯ EÍa atirou uma grande peruca preta para Bob. A seguir, vieram dois óculos, um par com lentes claras e outro com lentes espelhadas.

¯  E alérgico a maquilagem?

¯  O quê?

¯  Maquilagem, seu tolo...

¯  Capita... ¯ começou Bob calorosamente. Bisyarina calou-o com um olhar.

¯  Sua pele é clara. Caso não tenha notado, um bom número de pessoas por aqui é de origem hispânica. Este é meu território, e vocês vão fazer exatamente como estou dizendo. ¯ Ela fez uma pequena pau­sa. ¯   Vou tirar vocês daqui.

¯  A mulher americana, ela conhece você de vista...

¯  É óbvio. Suponho que você queira eliminá-la? Afinal, já que­braram uma regra, por que não mais uma? Quem foi o maluco de mer­da que ordenou essa missão?

¯  As ordens vieram de muito alto ¯ respondeu Leonid.

¯  Alto quanto? ¯ quis saber ela, obtendo apenas uma sobrancelha levantada como resposta. ¯ Está brincando!

¯  A natureza da ordem, o código de "ação imediata"... O que acha?

¯  Acho que todas as nossas carreiras estão arruinadas, e isso quer dizer... bem, sofreremos as conseqüências. Mas não posso concordar com a morte da minha agente. Ainda não matamos ninguém, e não acho que suas ordens incluam...

¯  Tem razão ¯ disse Bob em voz alta, sacudindo a cabeça enfati­camente para um lado e para outro. Bisyarina espantou-se.

¯  Isto poderia dar início a uma guerra ¯ disse ela baixinho, em russo.

Não se referia a uma guerra de verdade, mas algo tão ruim quanto isso, um conflito aberto entre agentes da CIA e da KGB, algo que nunca ocorrera, mesmo em países do Terceiro Mundo, onde geralmente su­bordinados matavam subordinados, a maior parte do tempo sem sa­ber os motivos ¯ mas esses acontecimentos eram incomuns. O trabalho dos serviços de Inteligência era reunir informações. Todos concorda­vam tacitamente que a violência cruzava o caminho da verdadeira mis­são. Mas se ambos os lados começassem a matar homens escolhidos como alvos estratégicos entre seus oponentes...

¯  Devia ter recusado a ordem ¯ opinou ela, após uma pausa.

¯  Certamente ¯ comentou Bob. ¯ Ouvi dizer que os campos de Kolima são muito bonitos nessa época do ano, com a planície branca brilhando em seu manto de neve.

O estranho em tudo isso ¯ pelo menos pareceria estranho a um oci­dental ¯ era que nenhum dos agentes sequer considerou a hipótese de render-se, com um pedido de asilo político. Embora isso terminas­se com seus riscos pessoais, significaria trair o país natal.

¯  O que fazem aqui é de sua responsabilidade, mas não vou matar minha agente ¯ afirmou Ann, encerrando a discussão sobre o assun­to. ¯ Vou tirar vocês daqui.

¯  Como?

¯  Ainda não sei. De carro, acho, mas terei de descobrir alguma coisa nova. Talvez não exatamente um carro. Talvez um caminhão... ¯ imaginou ela em voz alta.

Havia muitos caminhões por ali, e não era tão raro assim ver uma mulher dirigindo um. Levar uma caminhonete através da fronteira, talvez? Com Gregory numa caixa, drogado ou amarrado, talvez ambas as coisas? Quais os procedimentos da Alfândega com caminhonetes? Nunca antes preocupara-se com isso. Com o prazo de uma semana, como teria sido adequado para uma operação decente, ela encontraria tempo para responder um bocado de perguntas.

Vamos com calma, disse a si mesma. Já tivemos pressa demais por aqui.

¯  Dois dias, talvez três.

¯  É bastante tempo ¯ comentou Leonid.

¯  Talvez precise de todo ele para avaliar as contramedidas que pre­cisamos enfrentar. Por enquanto, não se preocupe em fazer a barba.

¯  O território é seu ¯ Bob concordou.

¯  Quando voltar, pode usar o caso num estudo sobre por que as operações precisam de uma preparação adequada ¯ comentou Bisya­rina. ¯ Querem mais alguma coisa?

¯  Não.

¯  Muito bem. Vejo vocês amanhã.

¯  Não ¯ disse Beatrice Taussig aos agentes. ¯ Eu vi Al esta tarde. Eu... ¯ olhou sem graça para Candi ¯... queria que ele me ajudasse com... bem, a apanhar um presente de aniversário para Candance ama­nhã. Eu também o vi no estacionamento, mas foi só. Vocês acham mes­mo... quero dizer, os russos...

¯  É o que parece ¯ declarou Jennings.

¯  Meu Deus!

¯  Será que o major Gregory sabe o suficiente para que os russos...

¯  Jennings  ficou surpresa ouvindo Taussig responder, no lugar da dra. Long.

   ¯  Sabe, sim Ele é o único que realmente entende o projeto intei­ro. Al é muito inteligente. E um amigo ¯ acrescentou ela.

Aquilo despertou um sorriso cálido em Candi. Havia agora lagri­mas de verdade nos olhos de Bea. Ficava magoada ao ver a amiga so­frendo mesmo que soubesse que era para o próprio bem dela.

¯  Ryan, você vai adorar essa.

Jack acabara de voltar da última rodada de negociações no edifício do Ministério das Relações Exteriores, vinte andares em estilo bolo de casamento, no Avenida Smolensky. Candeia passou-lhe o despacho.

¯  Aquele filho da puta! ¯ desabafou Ryan.

¯  Não esperava que ele cooperasse, esperava? ¯ perguntou sarcasticamente o agente, depois mudou de idéia: ¯ Desculpe, doutor. Eu também não esperava por isso.

¯  Conheço esse garoto. Eu mesmo andei com ele quando veio a Washington para nos explicar o projeto... ¯ É sua culpa, Jack. Foi a sua idéia que provocou isso... Fez algumas perguntas.

¯  É, com certeza ¯ disse Candeia. ¯ Parece que eles foderam com tudo. Deve ter sido planejado durante a noite. Ei, os caras da KGB também não são super-homens, parceiro. Seguem ordens como nós.

¯  Tem alguma idéia?

¯  Não existe muito que a gente possa fazer deste lado da corda, além de esperar que os guardas locais consigam endireitar as coisas.

¯  Mas se tudo vier a público...

¯  Exiba alguma prova. Não se acusa um governo estrangeiro de algo assim sem provas. Que diabo, existe uma meia dúzia de enge­nheiros na Europa que foram assassinados por terroristas de esquerda nos últimos dois anos, todos ligados a pesquisas para o Guerra nas Es­trelas. Isso sem mencionar alguns "suicídios". Não fizemos disso tu­do um assunto público, também.

¯  Mas isso quebra as regras, ora!

¯  Quando" se chega ao ponto, só existe uma regra: ganhar.

¯  Será que o serviço do governo ainda tem aquele esquema global de televisão?

¯  Em rede mundial? Claro. É um ótimo programa.

¯  Se não conseguirmos Gregory de volta, vou espalhar pessoal­mente a história do Outubro Vermelho, e danem-se as conseqüên­cias! ¯ praguejou Ryan. ¯ Mesmo que custe minha carreira, vou fazer isso!

¯  Outubro Vermelho?  ¯ Candeia não tinha a menor idéia do que se tratava.

¯  Confie em mim, é uma boa história.

¯  Pois diga isso aos seus amigos da KGB. Que diabo, pode até fun­cionar.

¯  Mesmo que não funcione... ¯ falou Ryan, mais controlado ago­ra. É sua culpa, Jack, pensou novamente. Candeia concordava, e Jack percebia isso.

O mais engraçado, pensava a polícia estadual, é que não haviam for­necido à imprensa a parte mais suculenta do caso. Logo que o grupo do FBI chegou, as regras foram estabelecidas. Por enquanto tratava-se de um simples caso de agressão a tiro contra um policial. O envolvimen­to federal deveria ser mantido em segredo, e, se por acaso descobrissem alguma coisa, seria espalhado que um traficante internacional estava à solta, daí o pedido de ajuda federal. As autoridades de Oklahoma foram instadas a dizer aos repórteres abelhudos que apenas haviam ajudado na identificação do suspeito. Entretanto, o FBI tomava conta do caso, e con­tingentes federais começavam a encher a área. Aos cidadãos foi dito que bases militares próximas conduziam manobras de rotina ¯ exercícios es­peciais de busca e salvamento ¯, o que explicava a atividade anormal de helicópteros na área. Os que trabalhavam no projeto Tea Clipper fo­ram instruídos sobre o que ocorrera, e lhes pediram para guardar segre­do sobre o assunto, tão sigiloso quanto os outros.

O carro de Gregory foi localizado em questão de horas, sem nenhu­ma impressão digital ¯ Bisyarina usara luvas, claro ¯ nem outra evi­dência qualquer, embora o posicionamento do carro e o do local do tiroteio simplesmente confirmassem o profissionalismo da ação.

Gregory fora assunto em Washington de homens mais importantes do que Ryan. A primeira reunião matinal do presidente era com o ge­neral Bill Parks, o diretor do FBI Emil Jacobs e o juiz Moore.

¯  Bem? ¯ a pergunta era dirigida a Jacobs.

¯  Essas coisas levam tempo. Alguns dos melhores homens que te­mos estão investigando o caso, senhor presidente, mas ficar olhando por sobre o ombro deles só atrasa as coisas.

¯  Bill ¯ chamou o presidente a seguir. ¯ Qual é a importância do rapaz?

¯  Ele não tem preço ¯ respondeu Parks com simplicidade. ¯ Es­tá entre meus três melhores homens, senhor. Pessoas assim não po­dem ser substituídas facilmente.

O presidente considerou com seriedade a resposta durante algum tempo. A seguir voltou-se para o juiz Moore. -Nós provocamos isso, não foi?

Sim senhor presidente. De uma certa maneira. Obviamente atingimos Gerasimov num ponto muito sensível. Minha avaliação coinci-cide com a do general. Eles desejam o que Gregory sabe. Gerasimov provavelmente pensa que, se conseguir informações dessa magnitude, pode ultrapassar as conseqüências políticas do caso do Outubro Ver­melho. É um palpite difícil, daqui do outro lado do oceano, mas a aná­lise que ele fez é bastante pertinente.

¯  Eu sabia que não devíamos ter feito aquilo... ¯ falou baixinho o presidente, sacudindo depois a cabeça. ¯ Bem, a responsabilidade foi minha. Eu autorizei tudo. Se a imprensa...

¯  Senhor, se a imprensa captar um rumor que seja sobre isso, com toda certeza não vai ser pela CIA. Em segundo lugar, sempre podere­mos dizer que este foi um golpe desesperado... eu preferiria usar vigo­roso... na tentativa de salvar a vida de nosso agente. Não precisamos ir além disso, e esse tipo de ação é esperado dos serviços de informa­ções. Eles vão até os limites para proteger seus agentes. E nós tam­bém. É uma das regras do jogo.

¯  E onde Gregory se encaixa nessa regra? ¯ indagou Parks. ¯ E se acharem que temos a mínima chance de salvá-lo?

¯  Então não sei ¯ admitiu Moore. ¯ Se Gerasimov tiver sucesso em salvar a si mesmo, provavelmente dirá a nós que o forçamos a fa­zer isso, porque nem a CIA., nem a KGB querem começar uma guer­ra. Para responder diretamente a sua pergunta, general, minha opinião é de que nesse caso podem ter ordens de eliminar o prisioneiro.

¯  Quer dizer assassiná-lo? ¯ indagou o presidente.

¯ E uma possibilidade. Gerasimov deve ter ordenado essa missão com muita pressa. Homens desesperados dão ordens desesperadas. Se­ria temerário pressupor menos do que isso.

O presidente refletiu por um minuto. Recostou-se na cadeira e to­mou um gole de seu café.

¯  Emil, e se conseguirmos descobrir onde estão?

¯  O Grupo Anti-Seqüestro está de prontidão, todos os homens a postos. Os helicópteros serão operados pela Força Aérea, mas no mo­mento só resta sentar e esperar.

¯  Se eles entrarem em ação, quais as chances de que consigam salvá-lo?

¯  Muito boas, senhor presidente ¯ afirmou Jacobs.

¯   "Muito boas" não resolve o problema ¯ disse Parks. ¯ Se os russos tiverem ordem de matá-lo...

¯  Meu pessoal é tão bem treinado quanto os melhores do mundo ¯ protestou o diretot do FBI.

¯  Quais são os regulamentos? ¯ exigiu Parks.

¯  Eles são treinados para usar meios mortais em sua própria pro­teção, ou de qualquer pessoa inocente. Se alguém der a impressão de estar ameaçando a segurança de um refém, é um homem morto.

¯  Ainda não está bom ¯ declarou Parks a seguir.

¯  O que quer dizer com isso? ¯ quis saber o presidente.

¯  Quanto demora para um homem se voltar e estourar a cabeça de alguém? E se eles estiverem dispostos a morrer no cumprimento da missão? Esperamos que nosso pessoal faça isso, não é?

¯  Arthur? ¯ As cabeças se viraram para o juiz Moore.

O diretor-geral dos Serviços de Informações encolheu os ombros.

¯  Não posso prever a dedicação dos soviéticos. Isso é possível? Sim, suponho que seja. Mas é certo? Isso não sei. Ninguém sabe.

¯  Eu costumava pilotar aviões de caça para viver. Conheço os tem­pos de reação do corpo humano ¯ falou Parks. ¯ Se um sujeito re­solve se voltar e atirar, mesmo que nosso homem tenha uma arma apontada para o outro, ele pode não ser suficientemente rápido para salvar a vida de Al.

¯  O que quer que faça? Que diga para o meu pessoal matar qual­quer um que avistarem? ¯ perguntou Jacobs em voz baixa. ¯ Nós não fazemos estas coisas, de modo nenhum.

A seguir Parks dirigiu-se para o presidente:

¯  Senhor, mesmo que os russos não consigam Gregory, se o per­dermos, eles ganham. Podem passar anos até que seja possível substituí-lo. Pressuponho, senhor, que o pessoal de Jacobs é treinado para lidar com criminosos, não com profissionais, e não numa situação como essa. Senhor presidente, recomendaria que chamasse a Força Delta em Fort Bragg.

¯  Eles não têm jurisdição sobre esse caso ¯ observou imediata­mente Jacobs.

¯  Mas recebem o tipo certo de treinamento ¯ respondeu o general. O presidente permaneceu em silêncio por mais de um minuto.

¯  Emil, seu pessoal é bom em obedecer a ordens?

¯  Eles farão o que o senhor disser, presidente. Mas a ordem terá de ser sua, e por escrito.

¯  Pode colocar-me em contato com eles?

¯  Sim, é claro.

Jacobs apanhou o fone e efetuou uma chamada através do seu escri­tório no Edifício Hoover. Ao longo do caminho, a ligação foi apressada.

¯  Agente Werner, por favor... Alô, aqui é o diretor Jacobs. Tenho uma mensagem especial para você. Espere um pouco. ¯ Passou o te­lefone ao presidente. ¯ Este é Gus Werner. Tem sido o líder do grupo por cinco anos. Gus desistiu de uma promoção para ficar com o Gru­po Anti-Seqüestro.

¯  Senhor Werner, aqui e o presidente. Reconhece rninha voz? Óti­mo. Por favor, ouça com atenção. Na eventualidade de você tentar res­gatar o major Gregory, sua única missão será retirá-lo. Todas as outras considerações são secundárias a esse objetivo. A prisão dos crimino­sos em questão não é, eu repito, não é um assunto importante. Isso está claro? Sim, a simples possibilidade de ameaça ao refém é motivo suficiente para o uso de meios mortais. O major Gregory é um quadro insubstituível. A sobrevivência dele é sua única missão. Colocarei is­so por escrito e entregarei ao diretor. Obrigado, e boa sorte. ¯ O pre­sidente recolocou o fone no lugar. ¯ Ele disse que consideraram essa possibilidade.

¯  É o que ele faria ¯ comentou Jacobs. ¯ Gus tem uma ótima imaginação. Agora o bilhete, senhor.

O presidente tomou uma pequena folha de papel de sua escrivani­nha e oficializou a ordem. Só percebeu o que havia feito depois de terminar. Isso não era um exercício intelectual. Ele acabara de escre­ver à mão uma sentença de morte. Descobriu quão deprimente era fazê-lo.

¯  General, está satisfeito?

¯  Espero que esse pessoal seja tão bom quanto o diretor afirma ¯ foi tudo que Parks se permitiu dizer..

¯  Juiz, alguma repercussão do outro lado?

¯  Não, senhor presidente. Nossos colegas soviéticos entendem es­se tipo de coisa.

¯  Então é só. ¯ E Deus tenha piedade de minha alma.

Ninguém havia dormido. Candi não fora trabalhar. Com a chegada do grupo de investigação de Washington, Jennings e Perkins estavam cuidando dela. Havia a remota possibilidade de que Gregory escapas­se, e nesse caso ele telefonaria primeiro para casa. Havia um segundo motivo, é óbvio, mas não oficial.

Bea Taussig transformara-se num verdadeiro furacão de energia. Pas­sara a noite arrumando a casa e servindo café para todos. Estranho como possa parecer, isso deu-lhe uma ocupação além de ficar sentada em seu próprio tipo de carro, usava o próprio tipo de roupas, e ao diabo com o que os outros pensassem. Bea, a covarde, que mesmo depois de arriscar tudo não tinha a coragem de se comunicar com a única pessoa no mundo que importava. Mais um movimento hesitante. Bei­jou a amiga novamente, provando o gosto salgado das lágrimas e sen­tindo uma entrega desesperada nos braços que envolviam seu peito. Taussig respirou fundo e moveu uma das mãos até os seios da amiga!

Jennings e Perkins passaram pela porta menos de cinco segundos depois de ouvir o grito. Viram o horror estampado no rosto de Long, e uma expressão ao mesmo tempo parecida e muito diferente no de Taussig.

 

Planos Mais Elaborados

¯ A posição do governo dos Estados Unidos ¯ declarou Ernest Al­len do seu lado da mesa ¯ é de que os sistemas projetados para prote­ger civis inocentes das armas de destruição em massa não representam ameaça nem desestabilização, e que restrições ao desenvolvimento de tais sistemas não têm finalidade prática. Essa posição tem sido cons­tantemente enfatizada nos últimos oito anos, e não temos intenção de alterá-la. Acolhemos com prazer a iniciativa de reduzir as armas ofen­sivas em 50 por cento, e examinaremos os detalhes da proposta com interesse, mas uma redução de armas ofensivas não se estende às ar­mas defensivas, que não são objeto de negociação além de sua aplica­bilidade aos acordos vigentes entre nossos países.

Continuou o presidente:

¯ Quanto à questão das inspeções in loco, ficamos desapontados ao notar que o grande progresso obtido recentemente deveria...

É preciso admirar esse sujeito, pensou Ryan. O presidente não con­cordava com o que dizia, porém estava representando a posição de seu país, e Ernie Allen nunca deixou seus sentimentos pessoais saírem do compartimento secreto onde os trancava antes dessas sessões.

A reunião terminou oficialmente quando Allen acabou o discurso, pronunciado pela terceira vez naquele dia. As cortesias de costume foram trocadas. Ryan apertou a mão de seu colega soviético. Ao fazê-lo, passou um bilhete, como aprendera em Langley. Golovko não de­monstrou nenhuma reação, o que lhe valeu um aceno amigável ao fi­nal do aperto de mão. Jack não tinha alternativa. Precisava continuar com o plano. Ficaria sabendo nos próximos dias que tipo de jogador era Gerasimov: se continuaria a correr o risco das revelações da CIA, acrescido das ameaças de outras ainda mais espetaculares que Ryan prometera, ou... Mas Ryan não conseguia admirar o homem. Intuía que Gerasimov era o chefe assassino da principal agência de assassi­nos de um país que se permitia ser governado por assassinos. Tinha consciência de que essa era uma maneira simplista e perigosa de ver as coisas, mas não sendo agente de campo, embora agora se compor­tasse como um deles, ainda não aprendera que o mundo visto de sua segura sala com ar condicionado no sétimo andar da CIA não era tão definido como os relatórios que escrevia. Esperava que Gerasimov ce­desse a seu pedido, depois de um prazo razoável para avaliar sua posi­ção. Ocorreu-lhe que o diretor-geral da KGB pensava como um mestre de xadrez, porque era o que se esperava do seu posto, e agora se con­frontava com um homem disposto a abrir o jogo ¯ como era esperado que os americanos fizessem. A ironia devia ser divertida, disse Jack a si mesmo, caminhando pelo saguão de mármore do Ministério das Relações Exteriores. Mas não era.

Jennings nunca vira alguém tão completamente destruído como Bea Taussig. Por baixo da pose rude e confiante, batia afinal de contas um solitário coração humano, consumido por uma raiva enorme do mun­do que não a tratava da maneira como desejava, maneira que ela mes­ma não conseguia impor. Quase sentiu piedade pela mulher de algemas, mas compaixão não era um sentimento que se misturava com traição, e muito menos com seqüestro, o crime mais alto ¯ ou mais baixo ¯ no panteão institucional do FBI.

O colapso fora compreensivelmente completo, e isso era o que im­portava no momento. Isso e o fato de que ela e Will Perkins extraíram as informações de que precisavam. Ainda estava escuro quando a le­varam para fora, a um carro do FBI que estava esperando. Deixaram o Datsun na entrada de automóveis para sugerir que ela permanecia na casa, porém quinze minutos mais tarde Bea entrava pela porta dos fundos do escritório do FBI de Santa Fé e dava a informação aos in­vestigadores recém-chegados. Não foi muito; na verdade, apenas um nome, um endereço e um tipo de carro, mas representavam o fio da meada. Um carro do FBI passou em frente à casa logo depois, e os homens repararam que o Volvo permanecia no lugar. A seguir, uma lista telefônica especial permitiu que eles chamassem a família que mo­rava do outro lado da rua, avisando que dois agentes do FBI iriam bater na porta dos fundos. Os dois estabeleceram vigilância na sala de estar  da família, assustando e excitando o jovem casal que morava na casa requisitada. Disseram aos agentes que "Ann", como ela era cohecida parecia ser uma mulher sossegada, cuja profissão desconheciam que não causava nenhum incômodo à vizinhança, embora às vezes cumprisse horários excêntricos, como muitas pessoas soltei­ras Na noite anterior, por exemplo, ficara fora de casa até tarde, ob­servou o marido, e chegou uns vinte minutos antes de terminar o programa de Jimmy Carson na televisão. Um encontro cansativo, ele pensara. Era estranho que nunca trouxesse ninguém à sua casa...

¯  Ela está acordada. Algumas luzes estão acendendo.

Um dos agentes apanhou o binóculo, quase desnecessário para en­xergar o outro lado da rua. O segundo estava munido de uma câmera fotográfica com teleobjetiva e filme de alta sensibilidade. Nenhum dos dois conseguia ver algo mais do que uma sombra movendo-se atrás das cortinas fechadas. Do lado de fora, observaram um homem com capacete de ciclista passar ao lado do carro estacionado em sua bici­cleta de dez marchas, realizando o exercício matinal. Do vantajoso pon­to de observação onde se encontravam, puderam distinguir quando ele colocou o sinalizador de rádio na parte interior do pára-choque traseiro, mas apenas porque sabiam para onde olhar.

¯  Quem ensina os caras a fazerem essas coisas? ¯ perguntou o ho­mem com a câmera. ¯ David Copperfield?

¯  Stan de Tal... que trabalha em Quântico. Joguei baralho com ele uma vez ¯ riu o outro. ¯ Ele me devolveu o dinheiro da aposta e mostrou o que tinha na mão. Desde esse dia nunca mais joguei pôquer a dinheiro.

¯  Pode nos dizer o que está acontecendo? ¯ indagou o dono da casa.

¯  Desculpe. Vocês vão saber de tudo, mas agora não há tempo. Olha lá!

¯  Peguei. ¯ A câmera automática começou a fotografar.

¯  Essa foi em tempo! ¯ O homem com o binóculo levantou seu radiotransmissor. ¯ O suspeito está saindo da casa e entrando no carro.

¯  Estamos prontos ¯ respondeu uma voz metálica ao aparelho.

¯  Lá vai ela, rumando para sul, estamos quase perdendo contato visual. Perdemos. Ela é toda de vocês agora.

¯  Certo. Já avistamos. Desligo.

Nada menos do que onze carros estavam destacados para a vigilân­cia, porém mais importante ainda eram os helicópteros circulando a 1 200 metros acima do solo. Havia mais um helicóptero aguardando em terra, na base Aérea de Kirtland. Era um UH-1N, a variante de dois motores do venerando Huey, famoso no Vietnã, emprestado pela Força Aérea e agora sendo aparelhado com cordas de abordagem.

Ann dirigia o Volvo de forma aparentemente normal, mas por trás dos óculos espelhados os olhos verificavam o retrovisor a intervalos de segundos. Precisava de toda sua habilidade agora, todo seu treina­mento, e, apesar de ter dormido apenas cinco horas, mantinha os pa­drões profissionais. Próxima a ela no banco repousava uma garrafa térmica com café. Ela já tomara duas xícaras e levava o restante para seus três camaradas.

Bob também estava se movimentando. Vestido com macacão e bo­tas, ele corria por entre os bosques, parando apenas para examinar a bússola, durante o percurso de 3 quilômetros através dos pinheiros. Dera a si mesmo quarenta minutos para percorrer essa distância. A altitude e o ar rarefeito fizeram-no resfolegar antes mesmo de chegar às encostas. Teve de deixar para trás todas as suas recriminações. A única coisa que importava agora era a missão. As coisas já haviam cor­rido mal em operações de campo anteriormente, embora nunca com ele, e a prova de valor de um verdadeiro agente era a maneira como contornava as adversidades e cumpria sua tarefa. Dez minutos depois das 7 horas, enxergou a estrada e, na margem mais próxima, o arma­zém. Parou 20 metros antes da fímbria da floresta e esperou.

O caminho de Ann era aleatório, ou pelo menos assim parecia. Di­rigiu acima e abaixo da estrada, antes de encetar a parte final da via­gem. Às 7hl5 ela parou no estacionamento da pequena mercearia e entrou.

O FBI ficara reduzido a dois carros agora, tão hábeis foram as ma­nobras de evasão. Cada curva aleatória que ela fazia forçava um carro a abandonar a perseguição ¯ presumia-se que ela poderia identificar cada automóvel que visse mais de uma vez ¯, e uma chamada frenéti­ca fora enviada para conseguir reforço. Ela escolhera o armazém com cuidado. Não podia ser visto por ninguém que estivesse na estrada propriamente dita; o volume de tráfego não permitia. O carro núme­ro 10 entrou no mesmo estacionamento. Um de seus ocupantes foi ao interior do estabelecimento, enquanto o outro ficou no veículo.

O homem no armazém fez o primeiro contato real do Bureau com Ann, enquanto ela comprava algumas rosquinhas e resolvia levar mais café em grandes copos plásticos e outras bebidas, todas elas de alto teor de cafeína, embora o agente não tivesse reparado nisso. Ele saiu imediatamente atrás dela, com um jornal e dois cafés grandes. Observou enquanto ela saía pela porta e viu quando um homem entrou no carro tão naturalmente quanto se fosse o noivo de uma mulher que gostasse de dirigir seu próprio carro. Apressou-se em direção à porta do veículo, mas mesmo assim quase a perderam.

¯  Olhe aqui. ¯ Ann passou o jornal a ele. A fotografia de Bob es­tava na primeira página. Fora reproduzida em cores, apesar de a qua­lidade do original na carteira de habilitação não ser das melhores. ¯ Estou contente que tenha lembrado de usar a peruca ¯ observou ela.

¯  Qual é o plano? ¯ perguntou Leonid.

¯  Em primeiro lugar vou alugar outro carro para levá-lo de volta ao reboque. A seguir vou comprar um pouco de maquilagem para que possa mudar suas características. Depois, acho que deveríamos arru­mar um pequeno caminhão para atravessar a fronteira. Vamos preci­sar também de algumas embalagens. Ainda não resolvi isso, mas decidirei até o final do dia.

¯  E a travessia?

¯  Amanhã. Vamos partir antes do meio-dia e cruzar a fronteira lá pela hora do jantar.

¯  Tão rápido assim? ¯ perguntou Bob.

¯  Da. Quanto mais penso sobre isso... eles vão encher a área de agentes se demorarmos muito.

Percorreram em silêncio o restante do caminho. Ela retornou à ci­dade e parou o carro num estacionamento público, deixando Leonid a esperar enquanto atravessava a rua e andava meio quarteirão até uma agência locadora de carros em frente a um grande hotel. Ali cumpriu as formalidades em menos de quinze minutos, e logo estacionou um Ford ao lado de seu Volvo. Ela atirou as chaves para Bob e lhe disse para segui-la até a rodovia interestadual, depois do quê, estaria por conta própria.

Quando chegaram à rodovia, o FBI estava praticamente a pé. Uma decisão teve de ser tomada, e o agente encarregado da segurança agiu certo. Um carro não identificado da polícia estadual assumiu a cober­tura do Volvo. Por sua vez, o último carro do FBI seguia o Ford pela estrada. Enquanto isso, cinco veículos que haviam participado da vi­gilância sobre "Ann" correram para emparelhar-se com "Bob" e seu Ford. Três deles tomaram a mesma saída, depois seguiram-no ao lon­go da rodovia secundária em direção ao "aparelho". Enquanto adap­tava sua velocidade ao limite permitido, dois dos carros foram forçados a passá-lo, porém o terceiro ficou para trás ¯ até que o Ford entrasse no acostamento e parasse. Esse trecho da estrada era reto como uma flecha por quase 2 quilômetros, e ele havia parado bem no centro.

¯ Peguei-o, estou vendo ¯ anunciou um dos helicópteros de ob­servação, de uma distância de 5 quilômetros, usando binóculos esta­bilizados.

Viu uma minúscula figura humana abrir o capo do carro, depois curvar-se para o interior e permanecer vários minutos antes de fechá-lo e prosseguir.

¯  O sujeito é um profissional ¯ disse o observador ao piloto.

Mas não o suficiente, pensou o piloto, os olhos fixos no distante pon­to que era o teto do carro. Pôde divisar o Ford virando na estrada de terra que desaparecia entre as árvores.

¯  Oba!

Já era esperado que o esconderijo fosse isolado. A geografia da área prestava-se a isso. Tão logo o local foi identificado, um Phantom RF-4C do 67? Esquadrão de Reconhecimento Tático decolou da Base Aérea de Bergstrom, no Texas. A tripulação de dois homens pensou que fosse algum tipo de brincadeira, mas não se importaram em fazer a viagem, que demorou menos de uma hora. Como missão, era tão simples que qualquer um a realizaria. O Phantom fizera um total de quatro passa­gens a grande altitude sobre a área e depois de filmar algumas cente­nas de metros através de seus sistemas de múltiplas câmeras, aterrissou na Base Aérea de Kirtland, nos arredores de Albuquerque. Um avião de carga trouxera pessoal e equipamento adicional algumas horas an­tes. Enquanto o piloto desligava os motores, dois técnicos de apoio removeram o compartimento do filme e levaram-no para o reboque que servia como laboratório fotográfico portátil. Equipamentos auto­máticos de revelação entregaram as cópias úmidas aos interpretadores de imagem meia hora depois que o avião desligara os motores.

¯  Aqui está ¯ comentou o piloto, quando viu a fotografia certa. ¯ Boas condições: tempo claro, frio, baixa umidade, bom ângulo do sol. Nem ao menos deixamos esteira de fumaça.

¯  Obrigado, major ¯ disse a sargenta ao examinar o filme da câ­mera panorâmica KA-91. ¯ Parece que temos uma estrada de terra saindo da rodovia nesse ponto, depois ondulando por essas elevações... e ali parece haver um reboque, um carro estacionado a uns 50 me­tros... mais um coberto aqui. Dois carros, portanto. Certo, o que mais...

¯  Espere um pouco... não estou vendo o segundo carro ¯ protes­tou um agente do FBI.

¯  Está aqui, senhor. O sol está refletindo em alguma coisa, muito grande para ser uma lata de refrigerante. Provavelmente o pára-brisa do carro,  talvez uma janela traseira, mas eu diria que essa é a parte da frente.

¯  Por quê? ¯ indagou o agente. Ele precisava saber.

A intérprete não olhou para cima.

¯  Bem senhor, se fosse eu que estivesse escondendo um carro, eu o colocaria de ré para que pudesse sair rapidamente, sabe como é?  O homem fez o possível para não rir.

¯  Certo, sargenta.

EÍa passou para outra imagem.

¯  Veja lá... aqui temos um reflexo do pára-choque, e aqui prova­velmente a grade. Vê como cobriram tudo? Olhe aqui ao lado do re­boque. Pode ser um homem ali nas sombras... ¯ Ela passou para a fotografia seguinte. ¯ Isso mesmo, parece uma pessoa.

O homem tinha quase 2 metros, atlético, com cabelo escuro e uma sombra no rosto, indicando que não se barbeara. Nenhuma arma es­tava visível.

Encontraram cerca de trinta fotografias utilizáveis do local, oito das quais foram ampliadas para o tamanho de posters. Estas foram para o hangar com o UH-1N. Gus Werner estava lá. Não gostava de mis­sões apressadas tanto quanto as pessoas no reboque, mas suas opções eram tão limitadas quanto as deles.

¯  Então, coronel Filitov, vamos voltar a 1976.

¯  Dmitri Fedorovich me levou com ele quando se tornou ministro da Defesa. Facilitou as coisas, é claro.

¯  E aumentou suas oportunidades ¯ observou Vatutin.

¯  E verdade.

Não havia recriminações agora, ou acusações, ou mesmo comentá­rios sobre a natureza do crime que Misha cometera. Haviam supera­do esse estágio. A admissão de culpa viera em primeiro lugar, como sempre acontecia, e isso era sempre difícil, porém, depois de os acu­sados serem dobrados ou levados a confessar, vinha a parte mais difí­cil. Podia durar várias semanas, e Vatutin não tinha idéia de quando terminaria. A fase inicial era destinada a dar uma idéia geral. O exa­me detalhado de cada caso teria lugar a seguir, mas a divisão do inter­rogatório em duas fases era crucial para estabelecer um ponto de referência, caso o prisioneiro tentasse alterar ou negar alguma coisa em particular. Mesmo nessa fase, revendo alguns detalhes, Vatutin e seus homens ficaram estarrecidos. Especificações de cada tanque e ca­nhão na União Soviética, incluindo as variações nunca enviadas aos árabes ¯ o que era a mesma coisa que entregá-los aos israelenses, portanto o mesmo que dá-los aos americanos ¯ ou mesmo aos outros paí­ses do Pacto de Varsóvia, foram cedidas aos americanos antes mesmo que os primeiros protótipos entrassem em produção. Especificações de aeronaves. Desempenho de ogivas convencionais e nucleares de to­dos os tipos. Dados de avaliação de mísseis estratégicos. Imagens do interior do Ministério da Defesa, e agora, ao entrar na época em que Ustinov fora indicado para o Politburo, disputas políticas de alto ní­vel. E o que causara mais danos é que Filitov passara adiante tudo que sabia sobre estratégia soviética... e ele sabia tudo que havia para saber. Ao tornar-se conselheiro e confidente de Dmitri Ustinov, e usar sua capacidade como combatente lendário, ele representara um olhar burocrático no mundo real dos combatentes.

E então, Misha, o que acha disso?... Ustinov deve ter feito a mesma pergunta milhares de vezes, compreendeu Vatutin, mas nunca sus­peitara...

¯  Que tipo de homem era Ustinov? ¯ indagou o coronel do "Dois".

¯  Brilhante ¯ respondeu Filitov sem hesitar. ¯ Seu talento admi­nistrativo não tinha paralelo. Seus instintos para os processos de fa­bricação, por exemplo, eram tão aguçados como nunca vi iguais. Era capaz de cheirar uma fábrica e dizer se o trabalho em andamento esta­va bom ou não. Conseguia enxergar cinco anos à frente e determinar quais armas seriam necessárias e quais não seriam. Só era fraco no conhecimento de como as armas seriam usadas em combate, e por is­so às vezes discutíamos quando eu tentava torná-las mais fáceis de ma­nipular. Quero dizer, ele procurava métodos para acelerar a produção, enquanto eu buscava uma forma de melhorá-las no campo de batalha. Geralmente eu ganhava, mas não sempre.

Impressionante, pensou Vatutin enquanto tomava notas. Misha nun­ca parou de lutar para tornar as armas melhores, embora estivesse passan­do os segredos para o Ocidente... Por quê? Mas ele não poderia perguntar isso agora, nem por um bom tempo. Não podia deixar que Misha visse a si mesmo como um patriota outra vez, até que todas as traições esti­vessem completamente documentadas. Os detalhes dessa confissão, ele agora sabia, levariam meses.

¯  Que horas são em Washington? ¯ perguntou Ryan a Candeia.

¯  Quase 10 horas da manhã. A sessão foi curta hoje.

¯  E. A oposição pediu para antecipar um recesso. Alguma notícia de Washington sobre o assunto Gregory?

¯  Nada ainda ¯ respondeu Candeia, desanimada.

¯  Você nos disse que eles colocariam os sistemas de defesa na me­sa ¯disse Narmonov ao chefe da KGB.

O ministro das Relações Exteriores acabara de declarar o contrario. Na verdade, tomaram conhecimento do fato no dia anterior, mas ago­ra tinham certeza absoluta de que não era um ardil. Os soviéticos op­taram por um recuo quanto ao item sobre inspeção de armamentos constante da proposta inicial, esperando que isso abalasse os america­nos um pouco que fosse, na questão da Iniciativa de Defesa Estraté­gica. Mas o gambito encontrara uma muralha de pedra.

¯  Parece que nossa fonte estava incorreta ¯ admitiu Gerasimov. ¯ Ou talvez a concessão esperada demore mais tempo.

¯  Eles não alteraram a posição e nem o farão. Você foi mal infor­mado, Nikolay Borissovich ¯ declarou o ministro das Relações Exte­riores, definindo sua posição de aliança com o secretário-geral.

¯  Isso é possível? ¯ indagou Alexandrov.

¯  Um dos problemas em reunir informações sobre os americanos é que eles nem sempre sabem qual a posição que ocupam. Nossa in­formação vem de uma fonte muito bem colocada, e o relatório coinci­diu com o de outros agentes. Talvez Allen desejasse fazer isso, mas tenha sido proibido.

¯  É possível ¯ concedeu o ministro do Interior, não desejando pres­sionar demais Gerasimov. ¯ Há algum tempo venho sentindo que ele tem idéias próprias sobre a questão. Mas isso não importa agora. Te­remos de mudar nossa maneira de abordar o problema. Será que isso é um indício de que os americanos tenham conseguido outro avanço técnico?

¯  Possivelmente. Estamos trabalhando nisso, no momento. Tenho um grupo tentando trazer material importante. ¯ Gerasimov não ou­sou ir além.

Sua operação para apanhar o major americano era mais desespera­da do que Ryan teria imaginado. Se viesse a público, ele seria acusado de tentar boicotar importantes negociações em andamento ¯ e de tê-lo feito sem consultar seus pares. Até mesmo os membros do Politbu­ro deviam discutir suas ações, mas ele não pudera. Seu aliado Alexan­drov iria querer saber o motivo, e Gerasimov não podia arriscar-se a revelar a armadilha para ninguém. Por outro lado, ele estava certo de que os americanos manteriam sigilo sobre o seqüestro. Para eles, tal revelação implicava correr um risco idêntico ¯ políticos em Washing­ton tentariam acusar os conservadores de usar o incidente para sabo­tar as conversações por interesse próprio. O jogo era grande como jamais tora, e os riscos que Gerasimov estava correndo, embora graves, meramente se adicionavam ao contexto. Era tarde demais para ser cuidadoso. Já se encontrava um passo adiante e, embora sua própria vida estivesse em jogo, a dimensão do risco era digna de seu objetivo final.

¯  Não sabemos se ele está lá, sabemos? ¯ perguntou Paulson. Ele era o melhor atirador do Grupo Anti-Seqüestro. Membro do "Clube da Meia Polegada", ele conseguia colocar três tiros num cír­culo de meia polegada a 200 metros ¯ e dessa meia polegada 0,308 pertencia ao diâmetro da bala em si.

¯  Não, mas é o melhor que temos no momento ¯ admitiu Gus Werner. ¯ São três homens. Sabemos com certeza que dois deles es­tão ali. Eles não deixariam um homem só tomando conta do refém... Não seria profissional.

¯  Faz sentido, Gus ¯ concordou Paulson. ¯ Mas não temos cer­teza. Vamos com isso então. ¯ Não era uma pergunta.

¯  Certo. ¯ Paulson voltou-se e olhou para a parede. Estavam usan­do a sala de prontidão dos pilotos. A cortiça na parede, colocada ali para absorver o som, era perfeita para pendurar mapas e fotografias. O reboque, todos viram, era do tipo barato. Apenas algumas janelas, e, das duas portas originais, uma estava fechada com tábuas. Presu­miram que a sala próxima da porta remanescente estava ocupada pe­los "bandidos", enquanto a outra abrigava o refém. O que havia de bom sobre o caso é que seus oponentes eram profissionais, portanto razoavelmente previsíveis. Faziam a coisa mais lógica na maioria dos casos, ao contrário da maioria dos criminosos, que apenas agiam con­forme lhes ocorria no momento.

Paulson olhou para uma foto diferente, depois para o mapa topológico, e então escolheu sua rota de aproximação. As fotografias de alta definição foram uma dádiva dos deuses. Elas mostravam um homem do lado de fora, vigiando a estrada, que era a rota mais provável de aproximação. Ele andou um pouco por ali, pensou Paulson, mas a maior parte do tempo estava de olho na estrada. Portanto, o grupo observador-atirador se aproximaria pelo lado oposto.

¯  Acha que são tipos de cidade? ¯ perguntou ele a Werner.

¯  Provavelmente.

¯  Vou chegar por esse lado. Marty e eu podemos nos aproximar até uns 400 metros por trás dessa serra, depois descer por aqui, para­lelamente ao reboque.

¯  Onde vai ser o seu posto?

¯  Lá. ¯ Paulson tocou com o dedo a melhor das fotografias. ¯ Acho que devíamos levar a metralhadora. ¯ Explicou o motivo, e to­dos concordaram.                                ¯  Mais uma mudança ¯ anunciou Werner. ¯ Temos novos regu­lametos.. Se alguém achar que o refém corre perigo, pode acertar os bandidos. Paulson, se houver alguém perto dele quando começarmos, vocè derruba com o primeiro tiro, quer ele esteja armado ou não.

Espere um pouquinho, Gus ¯ reclamou Paulson. ¯ Essa coisa toda vai parecer uma...

¯O refém é importante, e existe razão para acreditar que qualquer tentativa de libertá-lo pode resultar em morte...

¯  Alguém anda assistindo a muitos filmes de espionagem ¯ co­mentou outro membro do grupo.

¯  Quem? ¯ perguntou Paulson em voz baixa, mas incisiva.

¯  O presidente. O diretor Jacobs estava ao telefone também. Pe­gou a ordem por escrito.

¯  Não estou gostando nem um pouco dessa história ¯ declarou o atirador. ¯ Eles vão colocar alguém bancando a babá com ele, e você quer que eu acerte o sujeito, mesmo que ele não esteja ameaçan­do o refém.

¯  Exatamente ¯ confirmou Werner. ¯ Se não puder fazer isso, é melhor dizer agora.

¯  Gus, preciso saber por quê.

¯  O presidente o chamou de patrimônio nacional insubstituível. Ele é o homem-chave de um projeto importante o suficiente para que ele fosse pessoalmente explicar tudo ao presidente. Foi por isso que o raptaram, e a idéia geral é que, se eles perceberem que não podem ficar com ele, também não vão deixar que nós fiquemos. Veja o que fizeram até agora ¯ concluiu o líder do grupo.

Paulson considerou as palavras por um momento e acenou em con­cordância. Voltou-se para Marty, que fez o mesmo.

¯  Certo. Temos de atirar pela janela. Trabalho para dois fuzis. Werner caminhou até o quadro-negro e fez um esboço do plano de

assalto tão detalhado quanto possível. A disposição interna do rebo­que era desconhecida, e muita coisa dependeria das informações de última hora que Paulson captaria pela mira telescópica com aumento de dez vezes. Os detalhes do plano não eram muito diferentes dos de uma ação militar. Em primeiro lugar, Werner estabeleceu a cadeia de comando ¯ todos já sabiam, mas tudo foi precisamente definido as­sim mesmo. A seguir veio a composição dos grupos de assalto e suas partes na missão. Médicos e ambulâncias ficariam a postos, bem co­mo um grupo de peritos para recolher provas. Depois de uma hora, o plano não estava tão completo quanto gostariam, mas o treinamento que tinham garantia a ação. Uma vez deflagrada, a operação ficaria apoiada na perícia e poder de julgamento dos membros individuais do grupo, mas em última análise tais coisas sempre se passavam as­sim. Quando terminaram, todos passaram à ação.

Ela resolveu-se por uma pequena caminhonete U-Haul, do mesmo tamanho que as utilizadas como microônibus ou para entregas comer­ciais. Um veículo maior, pensou ela, iria demandar muito para ser carre­gado com as caixas apropriadas, as quais foi adquirir mais tarde num lugar chamado "O Celeiro das Caixas". Era algo que jamais fizera an­tes ¯ todas as suas transferências de informações haviam sido realiza­das por meio de rolos de filmes, que cabiam no bolso de qualquer um ¯, porém tudo o que precisou fazer foi procurar nas Páginas Ama­relas e fazer alguns telefonemas. Adquiriu dez embalagens com cantoneiras de madeira e laterais de papelão plastificado, tudo completamente desmontado para facilitar o transporte. O mesmo es­tabelecimento lhe vendeu etiquetas para indicar o conteúdo e espuma de poliestireno para proteger o carregamento. O vendedor insistira nesse último item. Tânia observou enquanto dois homens carregavam a ca­minhonete, depois saiu.

¯  O que você acha que significa tudo isso? ¯ perguntou um agente.

¯  Acho que ela pretende levar alguma coisa a algum lugar. ¯ O motorista seguia várias centenas de metros atrás, enquanto seu com­panheiro chamava mais agentes para conversarem com a companhia de transportes. Uma caminhonete U-Haul era muito mais fácil de se­guir do que um Volvo.

Paulson e três outros homens desceram do Chevy Suburban no ex­tremo distante de um bairro planejado, cerca de 2 quilômetros do re­boque. Uma criança que brincava no jardim de uma casa arregalou os olhos para os homens que penetravam nos bosques ¯ dois portan­do fuzis e um terceiro levando uma metralhadora M-60. Dois carros de polícia ficaram ali depois que o Chevy foi embora, e os policiais bateram nas portas para dizer às pessoas que não discutissem o que tinham ¯ ou na maioria dos casos não tinham ¯ visto.

Uma vantagem dos pinheiros é que eles soltavam agulhas, e não as folhas secas e barulhentas que atapetavam as colinas da Virgínia Oci­dental, que ele percorria todos os anos ao caçar corças. Neste ano, não acertara nenhuma. Tivera duas boas oportunidades, mas os cervos que eram menores do que gostaria de levar para casa, e decidiu poupá-lo para o ano seguinte, aguardando outra chance.

Paulson era um homem afeito a florestas, pois nascera no Tennesse, ficando muito à vontade na mata, andando silenciosamente entre árvores grandes e o chão virgem recoberto de folhas caídas e vegetação rasteira. Liderou os outros três,  lenta e cuidadosamente, fazendo tão pouco ruído quanto possível ¯ como os agentes federais que ha­viam levado seu avô montanhês a parar com sua produção caseira de aguardente, lembrou-se ele sem sorrir. Paulson nunca matara ninguém em quinze anos de serviço. O Grupo Anti-Seqüestro possuía os mais bem treinados franco-atiradores do mundo, porém nunca na verdade aplicavam seu ofício. Ele mesmo chegara a ponto de fazê-lo meia dú­zia de vezes, mas antes sempre tivera um motivo para não atirar. Nes­se dia seria diferente; tinha certeza disso, o que mudava sua disposição. Uma coisa era entrar numa missão sabendo que um tiroteio poderia acontecer. No Bureau essa possibilidade estava sempre presente. Você a planejava, esperando sempre que não fosse necessária ¯ sabia mui­to bem o que acontecia quando se matava alguém, com os pesadelos e a depressão que nunca apareciam nos filmes policiais de televisão. O médico já devia estar vindo para cá, pensou ele. O FBI mantinha um psiquiatra de plantão para ajudar os agentes no período posterior a um tiroteio, porque, mesmo quando se sabe que não houve escolha, a mente humana hesita perante a possibilidade de uma morte desne­cessária e pune o sobrevivente por estar vivo e sua vítima não. Esse era um dos preços do progresso, pensou Paulson. Não tinha sido sempre assim, e com os criminosos não era, na maioria dos casos. Eis a dife­rença entre uma comunidade e outra. Mas a que comunidade perten­ciam os homens que iria enfrentar? Eram criminosos? Não, eram profissionais treinados, patriotas na concepção da sociedade deles. Pes­soas realizando um trabalho. Como eu.

Escutou um ruído. Sua mão esquerda subiu, e os quatro homens se abaixaram procurando cobertura. Alguma coisa se movia para o la­do esquerdo. -Continuou o trajeto, afastando-se do caminho. Talvez um garoto, pensou, um menino brincando na floresta. Aguardou mais um pouco para certificar-se de que estava se distanciando, depois come­çaram a movimentar-se novamente. O grupo de atiradores usava ca­muflagem padrão militar sobre o equipamento de proteção, nas combinações dos tons verdes e marrons da floresta. Depois de meia hora,  Paulson verificou seu mapa.

¯  Ponto de Verificação Um ¯ disse ele no rádio.

¯  Entendido ¯ respondeu Werner, a 5 quilômetros de distância

¯  Algum problema?

¯  Negativo. Prontos para andar até a próxima escarpa. Devemos ter o objetivo à vista daqui a quinze minutos.

¯  Entendido. Podem continuar.

¯  Certo. Desligo.

Paulson e seu grupo formaram uma fila para subir a primeira escar­pa, muito alta, de onde começavam os 200 metros restantes. De lá po­diam ver o reboque, e daí por diante as coisas prosseguiram lentamente. Paulson passou seu fuzil ao quarto homem. O agente moveu-se sozi­nho para a frente, olhando para o chão à escolha do caminho mais silencioso. Era principalmente uma questão de olhar onde se pisava, e não de adotar uma maneira especial de andar, habilidade perdida nas pessoas da cidade, que invariavelmente achavam o chão da flores­ta um lugar barulhento. O solo ali era pedregoso, e ele aproveitou as pedras para andar, chegando à segunda escarpa em cinco minutos de percurso silencioso. Paulson encolheu-se contra o tronco de uma ár­vore e apanhou o binóculo ¯ mesmo este era recoberto com uma ca­mada de plástico verde. ¯ Boa tarde, senhores ¯ disse baixinho para si mesmo. Ainda não enxergava ninguém, pois o reboque bloqueava a visão do local onde se esperava que estivesse o homem de fora, e havia mui­tas árvores no caminho. Paulson procurou movimentos ao seu redor. Demorou vários minutos olhando e escutando antes de acenar para que os companheiros viessem. Eles levaram dez minutos. Paulson ve­rificou seu relógio. Haviam entrado na mata fazia noventa minutos, e estavam ligeiramente adiantados.

¯  Viu alguém? ¯ perguntou o outro atirador, quando chegou ao lado de Paulson.

¯  Ainda não.

¯  Meu Deus, espero que não tenham saído daí ¯ disse Marty. ¯ E agora?

¯  Vamos continuar para a esquerda, depois descemos a ravina ali. Aquele é o nosso local. ¯ Ele apontou.

¯  Exatamente como nas fotos.

¯  Todos prontos? ¯ indagou Paulson. Resolveu esperar mais um minuto antes de partir, permitindo que

todos bebessem um gole de água. O ar estava seco e rarefeito, e a gar­ganta tendia a ficar irritada. Não queria que ninguém tossisse. Gotas para tosse, pensou o líder dos atiradores. Devíamos incluir gotas para tosse no equipamento...

Levou mais meia hora até que cada um atingisse o ponto predeterminado. Paulson escolhera um local úmido ao lado de um grande bloco de granito, depositado ali pela última geleira a invadir o local. Ficava cerca de 6 metros acima do nível do reboque, mais ou menos o que escolhera como ponto ideal, além de não formar um ângulo exato de 90°graus. Tinha uma visão direta da grande janela na seção traseirado reboque. Se Gregory estivesse lá, esse era o local onde se esperava o mantivessem. Era hora de descobrir. Paulson desdobrou os dois pés de apoio do fuzil, retirou a tampa protetora da mira telescópica e começou seu trabalho. Apanhou novamente o rádio, colocando o fo­ne/microfone na cabeça. Exprimiu-se num murmúrio mais baixo que o do vento nas agulhas de pinheiro acima dele.

¯  Aqui é Paulson. Estamos no local, agora olhando. Em posição.

¯  Entendido ¯ respondeu uma voz no aparelho.

¯  Puxa ¯ disse Marty primeiro. ¯ Estou vendo o homem. Do la­do direito.

Al Gregory estava sentado numa poltrona, sem muita opção. Seus pulsos estavam atados no colo ¯ concessão feita para seu conforto ¯, porém a parte superior dos braços e das pernas estava firmemente imo­bilizada. Os óculos foram retirados, e todos os objetos da sala lhe pa­reciam ter contornos indefinidos. Isso incluía o homem chamado de Bill. Estavam alternando turnos para vigiá-lo. Bill sentava-se no canto mais distante da sala, imediatamente depois da janela. Havia uma pis­tola automática enfiada no cinto, e, embora Gregory não pudesse dis­tinguir a marca, o perfil anguloso era inconfundível.

¯  O que...

¯  ... vamos fazer com você? ¯ completou Bill. ¯ O diabo me car­regue se eu sei, major. Algumas pessoas estão interessadas no que o senhor faz para viver, eu acho.

¯  Pois eu não...

¯  Tenho certeza disso ¯ disse Bill com um sorriso. ¯ Agora, já pedimos uma vez para ficar quieto. Se não obedecer, ponho a morda­ça de volta. ¯  Calminha, garoto.

¯  Para que ela disse que eram as embalagens? ¯ perguntou o agente.

¯  Falou que a companhia estava embarcando algumas estátuas. Al­gum artista local, se não me engano... acho que era uma mostra em San -Francisco.

Existe um consulado soviético em San Francisco, pensou o agente imediatamente. Mas eles não podem estar fazendo isso... ou podem?

¯  Embalagens do tamanho de homens, você disse?

¯  Dava para colocar umas duas pessoas nas grandes, com facilida­de, e levou também algumas pequenas.

¯  Quanto tempo para montar tudo?

¯  Não precisa usar nenhuma ferramenta especial. Meia hora, no máximo.

Meia hora? Um dos agentes deixou a sala para fazer um telefonema. A informação foi transmitida pelo rádio para Werner.

¯  Atenção ¯ anunciou o fone de ouvido. ¯ Um caminhão U-Haul... espere, corrigindo para caminhonete... vem chegando pela es­trada principal.

¯  Não podemos ver daqui ¯ disse Paulson baixinho a Marty, a seu lado.

Um dos problemas com a localização escolhida era que não po­diam ver o reboque inteiro de onde se encontravam, e só enxerga­vam trechos da estrada que levava até lá. As árvores eram muito fe­chadas para isso. Ter uma visão melhor significava mover-se para a frente, risco esse que não estavam dispostos a assumir. O visor a la­ser mostrava que estavam a 201 metros do reboque. As miras dos fuzis estavam reguladas para 200 metros, e a roupa de camuflagem os tornava praticamente invisíveis a essa distância, contanto que não se movessem. Mesmo com o binóculo, as árvores eram tão compactas que simplesmente havia muitos detalhes para que o olho humano os distinguisse.

Escutou a caminhonete. Escapamento ruim, pensou ele. Então escu­tou a batida metálica da porta e o rangido de uma outra se abrindo. Vozes vieram a seguir, mas, embora percebesse que duas pessoas con­versavam, não conseguiu entender uma só palavra.

¯  Isso deve ser suficiente ¯ disse a capita Bisyarina a Leonid. ¯ Tenho duas dessas caixas e três das pequenas. Usaremos as menores para colocar por cima das outras.

¯  O que estamos levando?

¯  Estátuas. Há uma exposição de arte daqui a três dias, e vamos atravessar a fronteira no ponto mais próximo à mostra. Se partirmos em duas horas, chegaremos à fronteira bem a tempo.

¯  Tem certeza...

¯  Eles revistam embalagens que vão para o norte, não indo para o sul ¯ assegurou Bisyarina.

 

Muito bem, vamos montar as caixas lá dentro. Diga a Oleg para sair.

Bisyarina foi para o interior. Leonid ficou do lado de fora, já que estava mais acostumado a trabalhar em ambiente aberto que os outros dois agente. Enquanto Oleg e Leonid carregavam as embalagens para dentro, ela caminhou para a parte traseira do reboque e deu uma olhadela  em Gregory.

¯  Olá, major. Está bem instalado?

¯  Peguei mais um no visor ¯ disse Paulson, no momento em que ela entrou no campo de visão. ¯ Sexo feminino, é aquela das fotos... a do Volvo ¯ avisou ele pelo rádio. ¯ Está falando com o refém.

¯  Três homens agora visíveis ¯ anunciou o fone a seguir. Outro agente tinha um posto do outro lado do reboque. ¯ Estão carregando caixas para o interior do reboque. Vou repetir: três homens à vista. A mulher está no interior, fora de vista.

¯  Acho que todos estão à vista. Fale sobre as caixas. ¯ Werner es­tava ao lado do helicóptero num campo a vários quilômetros de dis­tância, segurando um diagrama do reboque.

¯  Estão desmontadas. Acho que pretendem armá-las.

¯  Só tivemos informações sobre quatro agentes ¯ disse Werner a seus homens. ¯ E o refém está aqui.

¯  Isso deve ocupar dois deles montando as embalagens ¯ disse um dos homens do grupo de assalto. ¯ Um do lado de fora, outro com o refém... parece bom, Gus.

¯  Atenção, aqui é Werner. Vamos começar. Todos a postos!

Ele gesticulou para o helicóptero, que iniciou a seqüência de opera­ções para ligar o motor. O líder do Grupo Anti¯ Seqüestro realizou uma verificação mental enquanto embarcava no aparelho. Se os russos ten­tassem escapar na caminhonete, seus homens também poderiam ata­car, mas nesse caso teriam visão apenas do motorista e do passageiro, através das janelas ¯ o que significava que dois deles, talvez três, fi­cassem fora do campo de visão, muito provavelmente capazes de ma­tar o refém antes que seus homens tivessem acesso a ele. Seu primeiro instinto fora correto: tinham de ir agora. O Chevy Suburban do gru­po partiu levando quatro homens e tomou a estrada principal que con­duzia ao local.

Paulson moveu a trava de segurança do fuzil, e Marty fez o mesmo. Já haviam discutido o passo seguinte. A 3 metros dele, o operador da metralhadora e seu carregador aprontavam a arma vagarosamente para evitar ruídos metálicos.

¯  Nunca sai exatamente de acordo com o plano ¯ observou baixi­nho o segundo atirador.

¯  É por isso que eles treinam tanto a gente. ¯ Paulson tinha as linhas da mira sobre o alvo.

Não era fácil porque a janela de vidro refletia muita luz. Mal podia ver a cabeça dela, mas era uma mulher, alguém perfeitamente identi­ficado como alvo. Calculou o vento em cerca de 10 nós, soprando pela direita. Ao longo dos 200 metros, isso deveria mover a bala cerca de 5 centímetros para a esquerda, que teriam de ser compensados. Mes­mo com um visor que ampliava dez vezes, uma cabeça humana não é um alvo grande a 200 metros, e Paulson balançou levemente o fuzil para manter a cabeça no centro da mira enquanto ela andava. O olhar não se prendia ao alvo, mas à retícula do visor em si, mantendo-a ali­nhada com o alvo. O procedimento que seguia era automático. Con­trolava a respiração, apoiando-se nos cotovelos, e mantinha a arma firmemente em posição.

¯  Quem é você? ¯ indagou Gregory.

¯  Tânia Bisyarina. ¯ Ela andou um pouco para esticar as pernas.

¯  Tem ordens para me matar?

Tânia admirou-se com o estilo direto da pergunta. Gregory não cor­respondia exatamente à idéia que se fazia de um soldado, mas às vezes a parte importante ficava escondida.

¯  Não, major. Vai fazer uma pequena viagem.

¯  Lá está a caminhonete ¯ disse Werner. Sessenta segundos da es­trada até o reboque. Ele ergueu seu transmissor. ¯ Todos os grupos: vamos lá!

As portas do helicóptero correram e as cordas enroladas foram colo­cadas a postos. Werner bateu com a mão no ombro do piloto com for­ça suficiente para machucar, mas o homem estava muito ocupado para reparar nisso. Abaixou o coletivo e mergulhou o helicóptero na dire­ção do reboque, agora menos de 1 600 metros abaixo deles.

Escutaram o ruído característico das pás do rotor, antes de ver o apa­relho. Havia tráfego suficiente de helicópteros na área para que o pe­rigo não fosse imediatamente identificado. O que estava do lado de fora foi até a ponta do reboque e espiou por entre o cimo das árvores, depois virou-se ao pensar ter ouvido um veículo aproximando-se pela estrada.

 

No interior, Leonid e Oleg levantaram os olhos da embalagem semi-desmontada, mais  irritados do que preocupados. Isso mudou no instante em que o ruído tornou-se ensurdecedor, quando o aparelho pairou exatamente sobre eles. Na traseira do reboque, Bisyarina té a janela e foi quem viu primeiro o helicóptero. Foi também a última coisa que viu.

¯  No alvo ¯ disse Paulson.

¯  No alvo ¯ concordou o outro atirador.

¯  Fogo!

Dispararam quase no mesmo instante, mas Paulson sabia que o ou­tro tiro partira primeiro. Foi o que estilhaçou a janela, a bala desviada pelo vidro a quebrar-se. O segundo projétil, de ponta oca, veio um segundo atrás e atingiu a agente soviética no rosto. Paulson assistiu pelo visor, mas foi o momento de atirar que ficou gravado em sua men­te, o cruzamento da retícula sobre o alvo. Para a esquerda, o homem com a metralhadora já começava a disparar quando Paulson relatou seu tiro.

¯  No meio da testa.

¯  Alvo abatido ¯ disse o segundo atirador ao rádio. ¯ Mulher fo­ra de ação. Refém à vista.

Ambos carregaram os fuzis e procuraram novos alvos.

Cordas com peso na ponta caíram do helicóptero, e quatro homens desceram por elas. Werner vinha na frente e passou através da janela quebrada, com a submetralhadora MP-5 pronta na mão. Gregory es­tava lá, gritando alguma coisa. Um outro membro do grupo juntou-se a Werner e atirou a cadeira ao chão, ajoelhando-se entre ela e a estru­tura. Então um terceiro homem entrou, e os três apontaram as armas para o outro lado.

Do lado de fora, o Chevy Suburban chegou a tempo de ver um dos homens disparando sua pistola sobre um agente que caíra sobre o re­boque e enganchara em alguma coisa, ficando impossibilitado de apon­tar sua arma. Dois agentes saltaram do veículo e dispararam três projéteis cada um, derrubando o homem ao chão. O agente sobre o reboque libertou-se e acenou.

No interior, Leonid e Oleg tentavam alcançar suas armas. Um de­les olhou na direção da corrente contínua de balas de metralhadora que passava através das paredes metálicas do reboque, obviamente para evitar que se aproximassem de Gregory. Mas essa era a ordem que pre­cisavam obedecer.

¯  Refém a salvo, refém a salvo. Mulher fora de ação ¯ disse Werner ao rádio.

¯  Alvo do lado de fora abatido ¯ anunciou outro agente, do exte­rior. Observou outro membro do grupo, que colocava uma pequena carga de explosivos na porta. O homem recuou e acenou.

¯  Pronto!

¯  Metralhadora, cessar fogo, cessar fogo ¯ ordenou Werner.

Os dois agentes no interior do reboque perceberam que os tiros ha­viam cessado e foram em direção à traseira. Enquanto se moviam, a porta foi arrancada dos gonzos. A explosão deveria ter sido suficiente para atordoá-los, mas ambos estavam alertas demais para isso. Oleg voltou-se, segurando a arma com as duas mãos para cobrir Leonid. Disparou na direção da primeira figura através da porta, atingindo-a no braço. O agente caiu, tentando girar a arma. Disparou e errou, mas atraiu a atenção de Oleg sobre si. O segundo homem na porta tinha sua MP-5 pronta no braço. A última impressão de Oleg foi de surpre­sa: não os ouvira atirar. Entendeu quando viu os silenciadores bojudos.

¯ Agente ferido e bandido abatido. Outro bandido tentando recuar. Eu o perdi de vista na curva. ¯ O agente correu atrás dele, mas tro­peçou numa caixa semimontada.

Deixaram que ele passasse pela porta. Um agente, com o tórax pro­tegido por colete à prova de balas, estava entre a porta e o refém. Ago­ra podiam se dar ao luxo de não abatê-lo imediatamente. Era aquele que tinha apanhado o carro alugado, reparou Werner, e sua arma ain­da não estava apontada para ninguém. Via três homens vestidos com macacões almofadados, obviamente protegidos com blindagem corpo­ral. O rosto demonstrou sua hesitação.

¯ Largue a arma! ¯ gritou Werner. ¯ Não...

Leonid viu onde Gregory estava e lembrou-se de suas ordens. A pis­tola começou a virar.

Werner fez o que dissera a seu pessoal para não fazer, e nunca se lembraria por quê. Disparou meia dúzia de balas no braço do homem, visando a arma ¯ e miraculosamente funcionou. A pistola balançou e caiu, numa nuvem de sangue que espirrou. Werner saltou para a frente, derrubando o adversário e apoiando a ponta da submetralhadora com silenciador na têmpora do homem.

¯  Número três fora de combate! Refém a salvo! Grupo: aproximar-se para verificação.

¯  Lado de fora, número um morto.

¯  Reboque, número dois morto! Um agente ferido no braço, sem gravidade.

¯  Mulher morta ¯ avisou Werner. ¯ Um dos homens feridos e sob  custódia. Segurança na área! Ambulâncias, podem vir agora.

Desde o primeiro disparo do franco-atirador, decorrera um total de vinte e nove segundos.

Três agentes apareceram na janela pela qual Werner e os dois colegas haviam entrado. Um dos homens no interior apanhou sua faca de caca e cortou as cordas que prendiam Gregory, depois praticamente atirou-o pela janela, onde foi apanhado e levado como uma boneca de trapos. Al foi colocado na traseira do caminhão do Grupo Anti-Seqüestro que partiu em seguida. Na rodovia, um helicóptero da Força érea aterrissou. Assim que Gregory foi lançado ao seu interior, le­vantou vôo.

Todos os membros do pessoal de resgate possuíam treinamento mé­dico, e dois dos componentes do grupo de assalto eram adestrados co­mo bombeiros-paramédicos. Um deles, ferido no braço, orientava a colocação de ataduras no próprio braço, pelo homem que matara Oleg. Os outros paramédicos voltaram e começaram a tratar de Leonid.

¯  Ele vai viver, mas o braço pode precisar de cirurgia. Rádio, ulna e úmero, todos fraturados, chefe.

¯  Você devia ter largado a arma ¯ disse Werner. ¯ Não teve mui­ta chance.

¯  Jesus! ¯ Era Paulson.

Estava em pé do lado de fora da janela e olhava o estrago que sua única bala tinha causado. Um agente revistava o corpo, procurando alguma arma. Levantou-se, sacudindo a cabeça. Aquilo revelou ao ati­rador o que ele teria preferido não saber. Nesse momento, percebeu que jamais seria capaz de caçar outra vez. A bala penetrara logo abai­xo do olho esquerdo. A maior parte do conteúdo da cabeça estava na parede oposta à janela. Paulson disse a si mesmo que não deveria ter olhado. O atirador voltou-se depois de cinco longos segundos e des­carregou sua arma.

O helicóptero levou Gregory diretamente para o Projeto. Seis ho­mens armados da segurança estavam esperando no local de aterrissa­gem e escoltaram-no para dentro. Ele ficou surpreso ao ver alguém tirando fotografias. Uma pessoa jogou uma lata de Coca-Cola para Al, que tomou um banho da espuma espirrada quando puxou o anel do fecho. Depois de tomar um gole, falou:

¯  O que significa tudo isso?

¯ Nós mesmos ainda não temos certeza ¯ respondeu o chefe de segurança do Projeto.

 

Levou mais alguns segundos para que a mente de Gregory apreendesse o significado do que aconteceu. Foi quando começou a tremer.

Werner e seu pessoal estavam ao lado de fora do reboque enquanto o grupo de técnicos levantava as provas. Uma dúzia de carros da polícia estadual do Novo México também estava lá. O agente federal feri­do e o agente da KGB foram colocados na mesma ambulância, embora o último estivesse algemado a sua maça, esforçando-se para não gritar de dor pelos três ossos esmigalhados em seu braço.

¯  Aonde vão levá-lo? ¯ perguntou um capitão da polícia.

¯  Para o hospital da Base de Kirtland, os dois ¯ respondeu Werner.

¯  É um longo caminho.

¯  As ordens são para manter este aqui embaixo do pano. Para to­dos os efeitos, o sujeito que acertou o seu guarda é aquele ali... Pela descrição que recebemos, deve ser ele mesmo, de qualquer jeito.

¯  Estou surpreso que tenha apanhado um com vida. ¯ Aquilo con­quistou um olhar curioso. ¯ Quero dizer, estavam todos armados, certo?^

¯  É... ¯ concordou Werner, com um estranho sorriso no rosto. ¯ Também estou surpreso.

 

As Regras do Jogo

O impressionante é que o assunto não chegou ao noticiário. Apenas um punhado de tiros sem silenciador fora disparado, e esse ruído não era tão raro assim no Oeste americano. Uma consulta à polícia esta­dual do Novo México teve como resposta que a investigação sobre o ataque ao guarda Mendez continuava, sendo os resultados aguarda­dos para qualquer momento, mas a atividade de helicópteros era par­te de uma rotina de exercícios de busca e salvamento conduzida em conjunto pela polícia estadual e pela Força Aérea. Não era uma histó­ria tão convincente assim, mas boa o suficiente para manter os repór­teres afastados por um dia ou dois.

O grupo de técnicos que procurava provas vasculhou o reboque, e como era de esperar não encontrou muita coisa digna de nota. Um fotógrafo da polícia tirou as fotos de praxe de todas as vítimas ¯ ele se considerava uma espécie de vampiro profissional ¯ e entregou o filme, ainda no local, ao agente mais graduado do FBI. Os corpos fo­ram colocados em sacos plásticos e levados para Kirtland, de onde voa­ram para a Base Aérea de Denver, onde havia um centro especial de recepção, composto de patologistas do Judiciário. As fotos dos agen­tes mortos da KGB, depois de reveladas, foram enviadas eletronica­mente para Washington. A polícia local e o FBI começaram a discutir sobre como seria tratado o caso do agente da KGB sobrevivente. Foi estabelecido que ele estava incurso em pelo menos doze artigos legais, divididos igualmente entre as jurisdições federal e estadual, e seriam precisos vários advogados para desfazer essa confusão, embora soubessem que a verdadeira decisão seria tomada em Washington. Erra­ram nesse ponto, entretanto. Parte dela seria tomada em outro lugar

Eram 4 da manhã quando Ryan sentiu a mão em seu ombro. Rolou na cama a tempo de ver Candeia acendendo a luz de cabeceira.

¯  O quê? ¯ perguntou Ryan, com o máximo da coerência que con­seguiu reunir.

¯  O Bureau conseguiu apanhar o major. Eles resgataram Gregory, e ele está ótimo ¯ disse Candeia, passando algumas fotos. Os olhos de Ryan piscaram várias vezes antes de se arregalarem.

¯  É uma fantástica notícia para acordar a gente ¯ disse Ryan, an­tes mesmo de ver o que tinha acontecido com Tânia Bisyarina. ¯ Puxa!

Ele largou as fotos sobre a cama e foi até o banheiro. Candeia ouviu o som de água correndo, depois Ryan saiu e foi até a geladeira. Apa­nhou e abriu uma lata de soda.

¯  Com licença. Quer uma? ¯ Ele apontou para o refrigerador.

¯  É um pouco cedo para mim. Entregou a nota a Golovko ontem?

¯  Entreguei. A sessão começa esta tarde. Quero ver nosso amigo às 8 hoje. Pretendia acordar às 5h30.

¯  Achei que gostaria de ver esse material imediatamente ¯ justifi­cou Candeia^ Aquilo provocou um grunhido.

¯  Claro. É muito melhor do que o jornal da manhã... Pegamos o homem pelo rabo, agora ¯ observou Ryan, olhando para o carpete. ¯ A menos que...

¯  A menos que ele queira terminar muito mal ¯ completou o agente da CIA.

¯  E quanto à mulher e à filha dele? ¯ perguntou Jack. ¯ Se tem alguma sugestão, gostaria muito de ouvi-la.

¯  O encontro vai ser onde eu sugeri?

¯  Vai.

¯  Force o homem o mais que puder. ¯ Candeia apanhou as fotogra­fias e enfiou-as num envelope. ¯ Não deixe de mostrar as fotos. Não acho que vá incomodar muito a consciência dele, mas com certeza pro­vará que estamos falando sério. Se quer minha opinião, antes achei que você era louco. Agora... ¯ ele sorriu. ¯ Acho que é o tipo de louco que pode dar certo. Volto quando estiver completamente acordado.

Ryan concordou e observou-o partir antes de entrar no chuveiro. Sob a água quente, Jack demorou-se, enchendo tanto o pequeno ba­nheiro de vapor que ele teve de limpar o espelho. Quando barbeou-se, fez um esforço consciente para fixar-se na barba, não nos olhos. Não era hora para duvidar de si mesmo frio lá fora. Moscou não ficava iluminada da mesma maneira que uma cidade americana. Talvez fosse a ausência de carros a essa hora. Washington sempre tinha alguém se movimentando. Aqui se ti-nha a impressão que de alguma forma as pessoas estavam em outro lugar, tratando de seus negócios, o que quer que isso significasse. O conceito era diferente aqui. Assim como as palavras de uma língua nunca correspondem exatamente às de outra, Moscou se parecia com muitas grandes cidades que ele visitara, e ao mesmo tempo a mais es­tranha por suas diferenças. As pessoas não iam cuidar de seus negó­cios mas na maior parte do tempo faziam o que lhes era mandado fazer por outra pessoa. A ironia era que ele logo seria um dos que dava ordens, a uma pessoa que não estava mais acostumada a obedecê-las.

O alvorecer chegava lentamente em Moscou. Os ruídos da passa­gem dos bondes e o ronco surdo dos motores a diesel dos caminhões eram abafados pela camada de neve, e a janela de Ryan não ficava na direção do nascente para captar as primeiras luzes da manhã. O que fora cinza começava a adquirir colorido, como se uma criança brin­casse com os controles de cor de um aparelho de televisão. Jack termi­nou sua terceira xícara de café e abaixou o livro que começara a ler às 7h30. O horário era tudo nessas ocasiões, dissera Candeia. Fez uma visita final ao banheiro antes de vestir-se para sua caminhada matinal.

As calçadas haviam sido varridas da neve caída durante a tempesta­de de domingo, embora ainda se acumulassem pilhas nas esquinas. Ryan acenou para os guardas de segurança ¯ australiano, americano e russo ¯, antes de tomar a direção norte pela Chaykovskogo. O vento setentrional cortante fazia seus olhos lacrimejarem, e ele apertou mais o cachecol ao redor do pescoço ao caminhar em direção à Praça Vosstaniya. Este era o bairro das embaixadas em Moscou. Na manhã ante­rior virará à direita no lado mais distante da praça e vira meia dúzia de delegações misturadas ao acaso, porém nesta manhã ele virará à esquerda em Kudrinsky Pereulok ¯ os russos possuíam pelo menos nove maneiras diferentes de dizer "rua", mas as nuanças não eram captadas por Jack ¯, depois dobrou à direita, e novamente à esquerda em Barrikadnaya.

"Barricada" era um nome estranho, tanto para uma rua quanto para um cine-teatro. Parecia mais estranho ainda escrito em alfabe­to ciríico. O B se podia reconhecer, embora o B cirílico fosse vir­tualmente um V, e os R da palavra pareciam P romanos. Jack alte­rou seu caminho um pouco, andando tão próximo aos prédios quan­to possível, ao se aproximar. Tal como esperava, uma porta se abriu e ele entrou. Novamente foi revistado. O segurança encontrou o envelope fechado no bolso do paletó, mas não o abriu, para alívio de Ryan.

¯  Venha.

Foi a mesma coisa que dissera da primeira vez, reparou Jack. Tal­vez o homem tivesse um vocabulário limitado.

Gerasimov estava sentado numa cadeira da platéia junto ao corre­dor, as costas confiantemente voltadas para Ryan, enquanto este des­cia a rampa para encontrá-lo.

¯  Bom dia ¯ disse ele para o homem ainda de costas.

¯  O que está achando do tempo por aqui? ¯ indagou Gerasimov, acenando para que o segurança se fosse. Levantou-se e conduziu Jack em direção à tela.

¯  Não era tão frio assim onde eu me criei.

¯  Devia usar chapéu. A maior parte dos americanos prefere não usar, mas em nosso clima é uma necessidade.

¯  No Novo México também faz muito frio ¯ disse Ryan.

¯  Assim me disseram. Pensou que eu não faria nada? ¯ indagou o diretor-geral da KGB.

Falou aquilo sem qualquer emoção, como um professor explicando algo a um estudante de raciocínio lento. Ryan resolveu deixá-lo apre­ciar o sentimento por um instante.

¯  Então devo negociar com você a liberdade do major Gregory? ¯ perguntou Jack tentando manter a voz neutra. O café a mais que tomara de manhã havia intensificado um pouco suas emoções.

¯  Se quiser... ¯ respondeu Gerasimov.

¯  Tenho a impressão de que vai achar isso interessante. ¯ Jack en­tregou o envelope.

O diretor-geral da KGB abriu-o e extraiu as fotografias. Não de­monstrou reação nenhuma enquanto examinava as três reproduções, mas, quando voltou-se para encarar Ryan, seus olhos fizeram o vento cortante da manhã parecer uma brisa de primavera.

¯  Um deles continua vivo ¯ informou Jack. ¯ Está ferido mas vai ficar bom. Não tenho a foto dele. Alguém fez uma besteira do lado de lá. Temos Gregory de volta, ileso.

¯  Entendo.

¯  Deve também entender que suas opções agora são as que pre­tendíamos inicialmente. Preciso saber o que vai escolher.

¯  E óbvio, não é?

¯  Uma das coisas que aprendi estudando seu país é que nada aqui é tão óbvio quanto parece. ¯ Aquilo provocou o que quase passava por um sorriso.

¯   Como serei tratado?

¯Muito bem. ¯ Bem melhor do que merece, pensou Ryan.

¯  Minha família?

¯  Também.

¯  E como pretende tirar os três do país?

¯  Acredito que sua mulher é letoniana por nascimento, e ela sem­pre viaja para a terra dela. Providencie para que viaje na sexta-feira ¯(^sse Ryan, acrescentando mais alguns detalhes.

¯Exatamente o que...

¯  Não precisa dessa informação, senhor Gerasimov.

¯  Ryan, você não pode...

¯  Posso, sim, senhor ¯ cortou Jack, perguntando-se por que o cha­mara de "senhor".

¯  E quanto a mim? ¯ perguntou o diretor-geral. Ryan lhe disse o que deveria fazer. Gerasimov concordou. ¯ Tenho uma pergunta a fazer.

¯  Sim?

¯  Como enganou Platonov? Ele é um homem astuto.

¯  Realmente houve um pequeno problema com a Comissão de Va­lores Mobiliários, mas essa não foi a parte importante. ¯ Ryan aprontou-se para sair. ¯ Não teríamos conseguido se não fosse por você. Tínhamos de preparar um cenário muito bom, algo de que não duvidasse. O senador Trent esteve aqui seis meses atrás e conheceu um sujeito chamado Valery. Ficaram bons amigos. Depois ele desco­briu que você condenou Valery a cinco anos de prisão por "atividades anti-sociais". De qualquer forma, ele quis ficar quite. Pedimos sua ajuda e ele não pensou duas vezes. Portanto, posso dizer que usamos suas próprias maldades contra você.

¯  O que queria que fizéssemos com essas pessoas, doutor Ryan? ¯ indagou o diretor-geral. ¯ O que...

¯  Não faço as leis, senhor Gerasimov. ¯ Ryan saiu.

Era bom, pensou ele na volta à embaixada, ter o vento nas costas, pa­ra variar.

¯  Bom dia, camarada secretário-geral.

¯  Não precisa ser tão formal, Ilya Arkadyevich. Existem membros do Politburo mais graduados que você sem direito a voto, e nós nos conhecemos há... bastante tempo. O que o incomoda? ¯ perguntou Narmonov cautelosamente. A dor nos olhos do colega era evidente. Tinham marcado um encontro para conversar sobre a colheita do tri­go no inverno, mas...

¯  Andrey Ilych, não sei como começar. ¯ Vaneyev quase engas­gou com as palavras, e lágrimas começaram a brotar de seus olhos. ¯ É minha filha... ¯ Ele continuou a falar por dez minutos.

¯  E? ¯ perguntou Narmonov, quando o amigo deu a impressão de terminar, mas, como era óbvio, havia mais. ¯ Alexandrov e Gera­simov, então. ¯ Narmonov recostou-se na poltrona e olhou para a pa­rede. ¯ Precisou mesmo de grande coragem para vir a mim com esse assunto, meu amigo.

¯  Não posso deixar que eles... mesmo que envolva minha carrei­ra, Andrey, não posso deixar que o parem agora. Você tem muitas coi­sas a fazer ainda, nós... você ainda tem muitas coisas para mudar. Preciso partir. Sei disso. Mas você precisa ficar, Andrey. O povo pre­cisa de você aqui, se quisermos realizar alguma coisa.

Narmonov não pôde deixar de reparar que ele disse o povo, e não o Partido. Os tempos realmente estavam mudando. Não, não era isso ainda. Tudo o que pretendia era criar a atmosfera dentro da qual os tempos tivessem a possibilidade de mudar. Vaneyev era um dos que compreendiam que o problema não residia tanto no objetivo final, mas no processo em si. Cada membro do Politburo sabia ¯ e sabiam há anos ¯ as coisas que precisavam ser mudadas. Não conseguiam con­cordar era sobre o método de mudança. Era como manobrar um navio para um novo curso, pensou ele, sabendo que o leme poderia quebrar st o fizessem. Continuar no mesmo curso levaria o navio para... para onde? Para onde se encaminhava a União Soviética? Não sabiam nem ao menos isso. Mas mudar de curso envolvia riscos, e, se o leme que­brasse ¯ se o Partido perdesse sua hegemonia ¯, então só haveria o caos. Era uma escolha que nenhum homem racional gostaria de en­frentar, mas também uma escolha cuja necessidade nenhum homem racional poderia negar.

Nem ao menos sabemos o que o país está fazendo, pensou Narmonov. Pelo menos nos últimos oito anos todos os dados sobre o desempenho econômico foram falseados de uma maneira ou de outra, num encadeamento contínuo, até que as previsões econômicas geradas pela burocra­cia do Gosplan tornaram-se tão fictícias como a lista das virtudes de Stálin. O navio que ele comandava penetrava mais e mais fundo num nevoeiro envolvente de mentiras, contadas por funcionários cujas carreiras seriam destruídas pela verdade. Era assim que ele discursava nas reuniões se­manais do Politburo. Quarenta anos de objetivos e previsões haviam sim­plesmente traçado um curso numa carta que não significava mais nada. Mesmo o próprio Politburo não sabia o estado em que se encontrava a União Soviética ¯ algo de que o Ocidente mal suspeitava.

A alternativa? Esse era o ponto delicado, não? Em seus momentos , desânimo, Narmonov imaginava -se ele ou alguém mais poderia mes­mo mudar as coisas. O objetivo de toda a sua política havia sido adquirir o poder que agora detinha, e só agora compreendia completamente quão circunscrito era o poder. Durante toda a ascen­são de sua carreira, ele reparara nas coisas que precisavam ser muda­das sem considerar realmente como isso seria difícil. O poder que possuía não era o mesmo que Stálin tivera. Seus antecessores mais re­centes haviam cuidado disso. Agora a União Soviética não era tanto um navio a ser guiado, mas uma enorme mola burocrática, que ab­sorvia e dissipava energia, vibrando apenas em sua própria freqüên­cia ineficiente. A menos que aquilo mudasse... o Ocidente estava caminhando para uma nova era industrial enquanto a União Soviética ainda não conseguia alimentar o próprio povo. A China estava toman­do lições econômicas com o Japão, e em duas gerações poderia vir a ser a terceira maior economia do mundo: um bilhão de pessoas com uma economia forte e dirigida, bem na nossa fronteira, ávidas por terras, e com tamanho ódio racial por todos os russos que fazia as legiões nazistas de Hitler parecerem um bando de torcedores arruaceiros. Essa era uma ameaça estratégica a seu país que fazia as armas nucleares dos Estados Unidos e da OTAN encolherem-se à sua insignificância ¯ e ainda assim a bu­rocracia do Partido não enxergava que precisava mudar, ao risco de tornar-se o agente da própria ruína!

Alguém precisa tentar, e esse alguém sou eu.

Mas, para poder tentar, ele precisava sobreviver, sobreviver o bastante para comunicar sua visão dos objetivos nacionais, primeiro ao Partido, depois ao povo ¯ ou talvez o inverso? Nenhum dos dois seria fácil. O Partido possuía suas idéias, sempre resistindo a mudanças, e as pessoas, os narod, não ligavam mais para o que o Partido e seu líder lhes diziam. Esse era um paradoxo divertido. O Ocidente ¯ os inimigos de sua na­ção ¯ o tinham em mais alta conta do que seus compatriotas.

E o que significa isso?, perguntou a si mesmo. Se são inimigos, sua aprovação significa que estou no caminho certo? Certo para quem? Nar­monov perguntou-se se o presidente dos Estados Unidos seria um ho­mem tão solitário quanto ele. Mas antes de enfrentar essa tarefa impossível ainda tinha o problema de sobrevivência pessoal e cotidia­na. Mesmo agora, mesmo nas mãos de um colega confiável. Narmo­nov suspirou, produzindo um som tipicamente russo.

¯ Então, Ilya, o que pretende fazer? ¯ perguntou ele ao homem que fora incapaz de cometer um ato de traição mais abominável que o de sua filha.

¯  Vou apoiá-lo, mesmo que signifique minha desgraça. Minha Sve­tlana terá de enfrentar as conseqüências do ato que praticou. ¯ Vane­yev endireitou-se na cadeira e enxugou os olhos. Parecia um homem a ponto de enfrentar o pelotão de fuzilamento, juntando sua hombri­dade para um último ato de desafio.

¯  Eu mesmo posso ser obrigado a denunciá-lo ¯ declarou Narmonov.

¯  Vou entender, Andrushka ¯ respondeu Vaneyev, com a voz car­regada de dignidade.

¯ Preferiria não fazer isso. Preciso de você, Ilya. Preciso de seus conselhos. Se puder salvar seu lugar, eu o farei.

¯  Não posso pedir mais do que isso.

Era hora de elevar novamente o ânimo do homem. Narmonov pôs-se de pé e deu a volta à escrivaninha para tomar a mão do amigo.

¯  O que quer que digam a você, concorde sem nenhuma reserva. Quando a hora chegar, você vai mostrar que tipo de homem é.

¯  E você vai fazer o mesmo, Andrey.

Narmonov acompanhou-o até a porta. Tinha mais cinco minutos até o próximo encontro marcado. Seu dia estava cheio de compromis­sos econômicos, decisões que vinham até ele pela indecisão que havia no escalão ministerial, que procurava sua bênção, como se ele fosse o pároco da aldeia... Como se eu já não tivesse preocupações suficientes, disse a si mesmo o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Gastou seus cinco minutos contando votos. Deveria ser mais fácil para ele do que para seu colega americano ¯ na União Soviética apenas os membros plenos do Politburo possuíam o direito de voto, e só existiam treze deles ¯, mas cada homem representava uma vasta coleção de interesses, e Narmonov estava pedindo a cada um deles que fizesse coisas nunca antes consideradas. Numa análise final, o poder ainda contava mais do que tudo, disse a si mesmo, e ainda podia con­tar com o ministro da Defesa, Yazov.

¯  Acho que vai gostar daqui ¯ declarou o general Pokryshkin en­quanto caminhavam pelo perímetro da cerca.

Os guardas da KGB fizeram continência quando os dois oficiais pas­saram, e ambos retribuíram com gestos mecânicos. Não havia mais cachorros agora, e Gennady achava que isso era um erro, com proble­mas de alimentação ou não.

¯  Minha mulher não ¯ respondeu Bondarenko. ¯ Ela tem me se­guido de um campo a outro por quase vinte anos, até finalmente che­garmos a Moscou. Ela gosta de lá.

Voltou-se para olhar o lado de fora da cerca e sorriu. Será que alguém consegue se cansar dessa vista? Mas o que vai dizer minha mulher quando eu lhe contar isso? Não era muito freqüente que um militar soviético pudesse fazer esse tipo de escolha, e isso ela entenderia.

 -Talvez estrelas de general alterem o modo de pensar dela. Além russo ainda estamos trabalhando para tornar esse lugar mais hospita­leiro Faz idéia de como lutei por isso? Finalmente eu disse que meus engenheiros eram como bailarinos, que precisavam estar felizes para atuar. Acho que algum homem do Comitê Central é devoto do Bolshov. e aquilo finalmente fez com que entendessem. Foi quando auto­rizaram a construção do teatro e também quando começaram a trazer comida decente de caminhão. Por volta do próximo verão a escola es­tará terminada, e as crianças virão para cá. É claro que precisaremos fazer outro bloco de apartamentos. ¯ Ele riu. ¯ E o próximo coman­dante de Estrela Brilhante terá de ser um mestre-escola.

¯  Em mais cinco anos não teremos mais espaço para os laser. Bem, pelo que vejo, deixou o ponto mais alto para eles.

¯  Ê verdade, essa discussão demorou nove meses. Só para convencê-los de que talvez possamos construir algo mais potente do que o que temos.

¯  A verdadeira Estrela Brilhante ¯ comentou Bondarenko.

¯  E você a construirá, Gennady Iosifovich.

¯  Sim, camarada general, eu a construirei. Aceito o encargo, se ain­da me quiser. ¯ Ele se voltou para olhar ao redor. Um dia tudo isso será meu....

¯  E a vontade de Alá ¯ afirmou o major, com um encolher de ombros.

Ele estava ficando cansado de dizer aquilo. A paciência do Arquei­ro e até mesmo sua fé estavam sendo testadas pelas mudanças força­das nos planos. As tropas soviéticas estavam passando acima e abaixo da estrada pelas últimas trinta e seis horas. Conseguira atravessar me­tade de suas forças até começar, depois sofreu com seus homens divi­didos, cada-lado observando os caminhões e transportadores rodando e imaginando se os russos não iriam parar, descer, e depois subir as colinas para procurar seus visitantes. Haveria uma luta sangrenta se isso acontecesse, e muitos russos morreriam ¯ mas ele não estava aqui simplesmente para matar russos. Estava aqui para feri-los de uma ma­neira pior que a simples perda da vida.

Mas havia uma montanha a escalar, ele estava bem atrasado, e todo o consolo que os outros podiam oferecer estava relacionado à vontade de Alá. Onde estava Alá quando as bombas caíram em minha mulhe e minha filha? Onde estava Alá quando levaram meu filho embora? Onde estava Alá quando bombardearam o campo de refugiados?... Por que a vida precisa ser tão cruel?

¯  É difícil esperar, não é? ¯ comentou o major. ¯ Esperar é a pior parte. A mente fica sem ocupação, e surgem as perguntas.

¯  Quais as suas?

¯  Quando vai acabar essa guerra? Existem rumores... mas há anos que escuto esses rumores. Estou cansado dessa guerra.

¯  Passou um bom pedaço dela do outro... A cabeça do major voltou-se rapidamente.

¯  Não diga isso! Venho passando informação a seu bando há mui­tos anos! Seu líder não lhe disse isso?

¯  Não. Sabíamos que ele recebia alguma informação, mas...

¯  Ele era um bom homem e sabia que precisava me proteger. Sabe quantas vezes enviei meus soldados em patrulhas inúteis para que não encontrassem vocês, e quantas vezes meu próprio povo atirou em mim... o tempo todo sabendo que eles queriam me matar, maldizen­do meu nome? ¯ A explosão de emoção deixou os dois homens sur­presos. ¯ Finalmente não pude mais suportar. Aqueles soldados sob meu comando que queriam trabalhar para os russos... bem, não foi muito difícil mandá-los para as suas emboscadas, mas eu não podia mandar só a eles, podia? Sabe por acaso, meu amigo, quantos dos meus soldados... meus soldados bons, mandei para a morte por suas mãos? Aqueles que restaram eram leais a mim, leais a Alá, e já era tempo de nos juntarmos de uma vez por todas aos guerreiros da liberdade. Possa Deus me perdoar por todos aqueles que não viveram o suficien­te para isso.

Cada homem tinha uma história para contar, refletiu o Arqueiro, e o único comentário consistente resumia-se numa única sentença:

¯  A vida é dura.

¯  Vai ser mais dura ainda para aqueles que estão no topo da mon­tanha. ¯ O major olhou ao redor. ¯ O tempo está mudando. Os ven­tos agora sopram do sul. As nuvens vão trazer umidade com eles. Talvez Alá não nos tenha desertado afinal de contas. Talvez Ele nos deixe con­tinuar essa missão. Talvez sejamos Seu instrumento, e através de nós Ele vá mostrar que eles deveriam deixar nosso país, ou continuare­mos visitando o deles.

O Arqueiro grunhiu e olhou para a montanha. Não podia mais en­xergar seu objetivo, mas isso não importava, pois, ao contrário do ma­jor, ele tampouco conseguia avistar o fim da guerra.

Vamos atravessar os outros esta noite. 

¯  Certo. Eles estarão bem descansados, meu amigo.

¯  Senhor Clark?

Ele estivera na roda de exercícios por uma hora. Mancuso sabia disso por causa do suor quando ele finalmente apertou o botão para desligar.

¯  Sim capitão? ¯ Clark tirou o fone de ouvido. ¯ O rapaz do sonar, Jones, me emprestou seu aparelho. Ele só tem fitas de Bach, mas ajuda a manter o cérebro ocupado.

¯  Mensagem para você. ¯ Mancuso entregou a tira de papel, que continha apenas seis palavras. Eram palavras em código, tinham de ser. já que não significavam coisa alguma.

¯  É a ordem para ir.

¯  Quando?

¯  Isso não diz. Será a próxima mensagem.

¯  Acho que já é hora de me dizer como vai ser essa coisa ¯ obser­vou Mancuso.

¯  Não aqui ¯ disse Clark baixinho.

¯  Meu camarote é por aqui ¯ indicou Mancuso.

Foram a vante passando pelas turbinas do submarino, depois pelo compartimento do reator com sua porta irritantemente barulhenta, fi­nalmente pelo Centro de Ataque e para o interior da cabine de Man­cuso. Era quase a maior distância que se podia andar num submarino. O capitão atirou uma toalha para Clark limpar o suor do rosto.

¯  Espero que não se tenha desgastado muito ¯ disse ele.

¯  E o tédio. Todos vocês têm algum trabalho para fazer. Eu só posso ficar sentado esperando. Esperar é uma merda. Onde está o capitão Ramius?

¯  Dormindo. Ele não precisa ser inteirado disso tão cedo, precisa?

¯  Não ¯ aquiesceu Clark.

¯  Qual é a missão exatamente? Pode me dizer isso agora?

¯  Vou trazer duas pessoas de lá ¯ declarou Clark com simplicidade.

¯  Dois russos? Você não vai apanhar um objeto? São duas pessoas? ~ Isso mesmo.

¯  E vai me dizer que faz isso o tempo todo? ¯ espantou-se Mancuso.

¯  Não exatamente o tempo todo ¯ admitiu Clark. ¯ Fiz uma vez três anos atrás, e outra um ano antes disso. Duas outras não deram certo, e nunca descobri por quê. "Necessidade de saber", sabe como é?

¯  Já ouvi isso antes.

¯  É engraçado ¯ comentou Clark. ¯ Aposto que as pessoas que  tomam as decisões nunca ficaram com a bunda exposta ao vento.

¯  As pessoas que vai apanhar... elas sabem?

¯  Não. Sabem o suficiente para estar num determinado lugar a uma determinada hora. Minha preocupação é que elas possam estar cerca­das pela versão da SWAT na KGB. ¯ Clark levantou o rádio. ¯ A sua parte é bem fácil. Se eu não disser a coisa certa da maneira certa e na hora certa, você dá o fora daqui.

¯  E deixo você. ¯ Não foi uma pergunta.

¯  A menos que prefira juntar-se a mim no Presídio Lefortovo. Junto com o resto da tripulação, é claro. Não vai ficar nada bem nos jornais, capitão.

¯  Você me pareceu ser um homem sensível, também. Clark riu.

¯  É uma longa história.

¯  Coronel Eich?

¯ Von Eich ¯ o piloto corrigiu Jack. ¯ Meus antepassados eram prussianos. Você é o doutor Ryan, certo? O que posso fazer pelo senhor?

Jack sentou-se. Estavam ambos no escritório do adido à Defesa, um general que permitira o uso da sala.

¯  Sabe para quem eu trabalho?

¯  Parece que me lembro de você como um dos caras da Inteligên­cia, mas eu sou só o motorista, certo? Deixo as coisas importantes pa­ra os caras com as roupas macias ¯ declarou o coronel.

¯  Não mais. Tenho um trabalho para você.

¯  Como assim, um trabalho?

¯  Você vai adorar. Jack estava errado. Ele não adorou.

Era difícil manter a mente em seu trabalho oficial. Parte disso era devido à monotonia hipnótica do processo de negociação, mas a maior parte devia-se à qualidade embriagante de seu trabalho não oficial, e sua mente vagava por esses assuntos enquanto ele lutava com o fone de ouvido para conseguir captar toda a tradução simultânea da segun­da versão do discurso atual do negociador soviético. O assunto do dia anterior, que as inspeções locais seriam mais limitadas do que o acor­dado anteriormente, agora acabara. Em vez disso, estavam pedindo maior autoridade para inspecionar bases americanas. Aquilo faria o Pen­tágono feliz, pensou Jack com um sorriso contido. Agentes de informações soviéticos subindo pelas fábricas e descendo pelos silos para ver os mísseis americanos, todos sob o olhar vigilante de agentes americanos de contra-inteligência e guardas do Comando Aéreo Estratégico ¯ que  ficariam mexendo o tempo todo em suas novas pistolas Beretta.  E os rapazes dos submarinos, que muitas vezes encaravam o pessoal de sua própria Marinha como inimigos, o que achariam de receber os russos a bordo? Parecia que não iriam muito além de ficar em pé sobre o convés enquanto os técnicos no interior abriam as por­tas em tubo sob os olhares vigilantes das tripulações e dos fuzileiros e guardavam as bases dos boomer. O mesmo aconteceria do lado so­viético. Cada oficial enviado nos grupos de verificação seria um es­pião, talvez um agente de carreira, para tomar notas de coisas que apenas um operador perceberia. Era impressionante. Depois de trin­ta anos de insistência dos Estados Unidos, os soviéticos finalmente acei­taram a idéia de que os dois lados deveriam reconhecer oficialmente a espionagem. Quando isso aconteceu, durante a rodada anterior de negociações sobre armas de médio alcance, a reação americana tinha sido mais de suspeita e espanto: Por que os russos estão concordando agora com os nossos termos? Por que disseram sim? O que estão realmente tramando?

Mas era um progresso, depois que se acostumava com a idéia. Am­bos os lados teriam uma maneira de saber o que o outro fazia, e o que o outro possuía. Nenhum dos lados confiaria no outro. Ambas as co­munidades de informações providenciariam para que isso aconteces­se. Os espiões ainda estariam rondando, procurando indicações de que o outro lado estivesse trapaceando, ou montando os mísseis em locais secretos e escondendo-os em lugares esquisitos para um ataque de surpresa. Eles encontrariam tais lugares, redigiriam relatórios internos de aviso e tentariam parar as informações. A paranóia institucional duraria mais do que as armas em si. Os tratados não mudariam isso, por maior que fosse a euforia em torno dos papéis. Jack voltou o olhar para o soviéti­co que estava discursando.

Por quê? Por que vocês mudaram de idéia? Sabem o que eu disse em weu Relatório Especial sobre Informações Confidenciais? Ainda não che­gou aos jornais, mas talvez já tenham visto. Eu disse que tinham final­mente compreendido: 1) quanto custam essas malditas coisas; 2) que dez mil ogivas nucleares são suficientes para fritar os Estados Unidos oito ve­zes, quando três ou quatro seriam provavelmente o bastante; 3) que se eco­nomizaria dinheiro eliminando todos os mísseis antigos, os que não se pode

anter mais. E apenas negócio, eu disse a eles, e não uma mudança de posição. Ah, sim: 4) é muito bom para relações públicas, e vocês ainda gostam de jogar com isso, embora estraguem tudo a cada vez.

Não que nos importemos, claro.

Uma vez que o acordo fosse aprovado ¯ e Jack achava que seria ¯, ambos os lados economizariam ao redor de 3 por cento das despesas de defesa, talvez mais de 5 por cento para os russos em virtude do sistema mais variado de mísseis, mas não se podia ter certeza. Essa pequena porção do orçamento seria suficiente para que os russos fi­nanciassem algumas fábricas novas, ou talvez construíssem estradas que realmente estavam precisando no momento. Como iriam redistri­buir suas economias? Já que estava no assunto, como os Estados Uni­dos iriam fazer isso? Jack devia fazer também uma avaliação disso, outro Relatório Especial sobre Informações Confidenciais. Mais um título sonoro e pomposo para o que era, afinal de contas, nada mais do que uma adivinhação oficial, e no momento Jack não tinha nenhuma pista.

O orador russo finalizou, e chegou a hora de uma pausa para o ca­fé. Ryan fechou sua pasta encapada em couro e caminhou para fora como todos os outros. Preferiu uma xícara de chá, só para ser diferen­te, e decorou seu prato com salgadinhos.

¯  Então, Ryan, o que acha? ¯ Era Golovko.

¯  Isso é negócio ou conversa social? ¯ indagou Jack.

¯  Pode ser o último, se preferir.

Jack caminhou até a janela mais próxima e olhou para fora. Um dia desses, prometeu a si mesmo, verei um pouco de Moscou. Deve haver alguma coisa que valha a pena tirar algumas fotos por aqui. Talvez um dia haja paz, e eu possa trazer a família... Ele se voltou. Mas não hoje, nem este ano, nem no ano seguinte. Uma pena.

¯  Sergey Nikolayevich, se o mundo fizesse sentido, caras como eu e você poderíamos sentar e resolver essa história em dois ou três dias. Que diabos, nós dois sabemos que ambos os lados querem cortar os efetivos pela metade. O ponto que estamos discutindo a semana toda é quantas horas de aviso são necessárias antes que cada grupo de inspeção-surpresa chegue, mas isso porque nenhum dos dois lados con­segue chegar a um acordo sobre a resposta; estamos falando a respeito de um assunto sobre o qual já concordamos, em lugar de seguirmos em frente. Se fosse só entre nós dois, eu diria uma hora, você diria oito e eventualmente chegaríamos a um acordo em três ou quatro horas...

¯  Quatro ou cinco ¯ riu Golovko.

¯  Quatro, então. ¯ Jack também riu. ¯ Está vendo? Já acertamos o filho da puta, não foi?

¯  Mas não somos diplomatas ¯ observou Golovko. ¯ Sabemos barganhar, mas não da maneira normalmente aceita. Somos diretos demais. Ah, Ivan Emmetovich, ainda vamos fazer de você um russo. ¯ Ele acabara de russificar o nome Jack, Ivan Emametovich, ou seja John, filho de Emmet.

Hora de negócios outra vez, pensou Ryan. Mudou de disposição resolveu  brincar um pouco com o outro

¯ Não acho que não. Aqui faz muito frio. Vamos fazer uma coisa, Você vai até o seu chefe de negociações, e eu vou até o tio Ernie. Vã­os dizer a eles que já resolvemos sobre o tempo de aviso da inspe­ção: quatro horas. Vamos fazer isso já! Que tal?

 Jack percebeu que aquilo o abalou. Por uma breve fração de segun­do Golovko pensou que ele falara a sério. O agente da GRU/KGB re­cuperou a compostura em um momento, e mesmo Jack mal notou o lapso. O sorriso quase não foi interrompido, porém, enquanto a ex­pressão permanecia fixa ao redor da boca, esmaeceu por um átimo de segundo nos olhos, depois retornou. Jack não reparou a enormida­de do erro cometido.

Deveria estar muito nervoso, Ivan Emmetovich, mas não está. Por quê? Antes estava. Estava tão tenso na recepção da outra noite que parecia que iria explodir a qualquer momento. E ontem, quando passou a nota, pude sentir o suor na palma da mão. Mas hoje faz piadas. Tenta me irritar com zombarias. Qual é a diferença, Ryan? Você não é oficial de campo. Seu nervosismo anterior provou isso, só que agora está agindo como um. Por quê?, perguntou a si mesmo o soviético enquanto todos voltavam para a sala de reuniões. Todos sentaram-se para a nova rodada de monólo­gos, e Golovko ficou de olho em seu colega americano.

Ryan não parecia agitado agora, notou ele um pouco surpreso. Na segunda-feira e na terça-feira estivera. Agora parecia unicamente abor­recido, nada mais desconfortável do que isso. Não deveria estar à von­tade, Ryan, pensou Golovko.

Não fazia muito sentido. Golovko escutava o zumbido das palavras em seu ouvido ¯ era a vez dos americanos de comentar tudo o que já fora discutido ¯, porém sua mente estava longe. Pensava no dossiê sobre Ryan na KGB. Ryan, John Patrick. Filho de Emmet William Ryan e Catherine Burke Ryan, ambos falecidos. Casado, com dois fi­lhos. Formado em Economia e História. Rico. Serviço militar no Corpo ae fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Ex-corretor de ações e professor de História. Entrou para a CIA em base de meio período quatro anos antes, depois de um trabalho de consulta no ano anterior a isso. Logo depois, tornou-se agente analista em tempo integral. Nun­ca recebeu treinamento no campo-escola da CIA, em Camp Peary, Virgínia. Ryan envolvera-se em dois acidentes violentos, e em ambos os casos portara-se muito bem ¯ o treinamento dos fuzileiros, supôs Go­lovko, mais suas qualidades inatas, coisas que os russos respeitavam. Muito corajoso quando precisava ser um inimigo perigoso. Ryan tra­balhava diretamente para o vice-diretor dos Serviços de Informações responsável pelo setor de Análises, e era sabido que preparara vários relatórios especiais, mas... uma missão séria de espionagem? Não fo­ra treinado para isso. Provavelmente tinha o tipo errado de personali­dade. Muito aberto, pensou Golovko, com pouca malícia. Quando ele estava escondendo alguma coisa, nunca se saberia o que era, mas percebia-se que ele escondia algo...

Estava escondendo alguma coisa antes, mas, e agora?

E o que significa isso, Ivan Emmetovich? Que diabos de nome é Emmet?, divagou Golovko irrelevantemente.

Jack percebeu que o homem o encarava e percebeu a dúvida nos olhos dele. Não se tratava de nenhum idiota, disse Jack a si mesmo, enquanto Ernest Allen falava de um ou outro detalhe técnico. Achara que o homem pertencia à GRU, e na verdade ele era da KGB ¯ ou assim parecia, corrigiu-se Jack. Haverá mais alguma coisa sobre ele que não saibamos?

Na posição número 9 do Aeroporto Sheremetyevo, o coronel Von Eich postou-se junto à porta traseira para entrada de passageiros. À sua frente, um sargento mexia na vedação da porta, com uma quanti­dade impressionante de ferramentas espalhadas perto dele. Como a maioria das portas de aviões, esta abria para fora apenas depois de fa­zer um movimento para dentro, permitindo que o fecho pressurizado se abrisse e saísse de lado para não se danificar. Portas defeituosas já haviam derrubado aviões anteriormente, sendo o caso mais famoso o do DC-10 próximo a Paris dez anos antes. Abaixo deles, um guarda uniformizado da KGB montava guarda com um fuzil carregado, no lado de fora do avião. Sua própria tripulação de vôo precisa passar por verificações de segurança. Todos os russos levavam a segurança realmente a sério, e os homens da KGB eram verdadeiros fanáticos pelo assunto.

¯ Não sei por que a luz de aviso está acendendo, coronel ¯ disse o sargento depois de vinte minutos. ¯ A vedação está perfeita, o in­terruptor funciona perfeitamente... parece que a porta está ótima, se­nhor. Vou verificar o painel dianteiro a seguir.

Ouviu isso? Paul von Eich teve vontade de repetir tudo para a senti­nela 5 metros abaixo, mas não pôde.

Sua tripulação já estava preparando o avião para a viagem de volta.

Tiveram dois dias para fazer turismo. Desta vez fora um velho mosteiro cerca de 65 quilômetros fora da cidade ¯ cujos últimos 16 prova-r°lmente eram uma estrada de terra no verão, mas agora eram uma ^ istura de lama e neve. Tiveram seu passeio com um guia e guardas fora de Moscou, e agora o pessoal já estava pronto para ir para casa.  não dissera a seus homens o que Ryan lhe contara. A hora para fazer isso seria amanhã à noite. Imaginou como eles reagiriam.

A sessão terminou no horário, com uma sugestão por parte dos so­viéticos de que estariam dispostos a falar sobre a inspeção no dia se­guinte. Teriam de resolver isso depressa, pensou Ryan, pois a delegação partiria na noite do dia seguinte, e precisavam levar alguns resultados para casa nessa fase das negociações. Afinal, a reunião de assinatura do acordo já estava informalmente marcada. Esta teria lugar em Mos­cou. Moscou na primavera, pensou Ryan. Será que vão me trazer para a cerimônia de assinatura? Será que vai haver um tratado para assi­nar? É melhor que sim, concluiu Ryan.

Golovko observou os americanos saindo, depois acenou para o pró­prio carro, que o levou até o quartel-general da KGB. Caminhou dire­tamente para o escritório do diretor-geral.

¯ Então, o que nossos diplomatas entregaram hoje? ¯ perguntou Gerasimov, sem preâmbulos.

¯  Acho que amanhã vamos fazer nossa proposta emendada sobre o tempo de aviso de inspeção. ¯ Ele fez uma pausa antes de conti­nuar. ¯ Falei com Ryan hoje. Ele parece ter mudado um bocado e achei que devia trazer isso a seu conhecimento.

¯  Continue ¯ incentivou o diretor-geral.

¯  Camarada diretor-geral, não sei o que vocês dois discutiram, mas a mudança no comportamento dele é tão grande que achei que devia saber. ¯ Golovko continuou, explicando o que havia visto.

¯  Certo. Não posso discutir nossas conversas com você, porque não está liberado para esse assunto, mas eu não ficaria preocupado, coro­nel. Estou tratando pessoalmente desse assunto. Sua observação foi recebida. Ryan terá de aprender a controlar melhor suas emoções. Tal­vez não seja suficientemente russo. ¯ Gerasimov não era um homem dado a fazer piadas, mas esta era uma exceção. ¯ Mais alguma coisa sobre as negociações?

¯  Meu relatório estará pronto sobre sua mesa amanhã pela manhã. ¯ Ótimo. Dispensado. ¯ Gerasimov observou enquanto o homem partia.

 Seu rosto não se alterou até que ouviu o estalido do trinco da porta Era ruim perder, pensou ele, principalmente para alguém não profissio­nal... Mas ele perdera, e tampouco era profissional, sendo apenas o homem do Partido que lhes dava ordens. Essa decisão ficara para trás. Já era ruim o suficiente ter perdido os agentes em ¯ como quer que se chamasse o maldito lugar ¯, porém eles falharam e mereceram seus destinos. Levantou o fone e ordenou que o secretário providenciasse para que a esposa e a filha voassem na manhã seguinte de avião para Tallin, a capital da República Socialista Soviética da Estônia. Sim, tam­bém precisariam de um carro com motorista. Não, apenas um. O mo­torista faria também o papel de segurança. Não existiam muitas pessoas que conhecessem sua esposa, e a viagem não estava programada ape­nas para encontrar velhos amigos. Muito bem. Gerasimov pendurou o fone e olhou ao redor de seu escritório. Ele sentiria falta. Não tanto do escritório em si: do poder. Mas sabia que sentiria mais falta ainda de sua vida.

¯  E quanto a esse coronel Bondarenko? ¯ perguntou Vatutin.

¯  Um jovem oficial muito bom. Muito inteligente. Dará um bom general quando chegar a hora.

Vatutin imaginou como seu relatório final trataria o assunto. Não havia suspeita sobre o homem, exceto por sua ligação com Filitov. Mas em compensação também não havia pairado nenhuma suspeita sobre o próprio Filitov, a despeito de sua ligação com Oleg Penkovsky. O coronel Vatutin sacudiu a cabeça, assombrado. Aquele fato seria dis­cutido em aulas de segurança durante uma geração. Como é que eles não perceberam?, perguntariam os jovens candidatos a agentes. Co­mo podia alguém ser tão idiota? Porque apenas os mais confiáveis eram espiões ¯ não se dá informação sigilosa a quem não se confia. A lição era a mesma que sempre fora: não confiar em ninguém. Voltando a Bondarenko, imaginou o que aconteceria a ele. Se fosse realmente o oficial leal e excepcional que parecia ser, não deveria ser afetado por esse assunto. Mas ¯ sempre havia um mas, não é? ¯ ainda faltavam perguntas a serem respondidas, e Vatutin foi até o fim de sua lista. Seu relatório inicial sobre o interrogatório era esperado na manhã se­guinte sobre a escrivaninha de Gerasimov.

A escalada na escuridão total durou a noite inteira. As nuvens vin­das do sul cobriram tanto a Lua como as estrelas, e a única ilumina­ção provinha das luzes nos limites do objetivo, refletidas pelas nuvens. Agora podiam avistá-lo facilmente. Ainda era um percurso apreciável, mas estavam perto o suficiente para que as unidades individuais pudessem inteirar-se de suas tarefas e vissem o que tinham de fazer. O Arqueiro escolheu para si um lugar alto e apoiou o binóculo sobre uma rocha enquanto observava o local. Parecia haver três acampamentos. Apenas dois deles eram cercados, embora no terceiro pudesse dis­tinguir pilhas de mourões e arame próximas a uma luz alaranjada fixada no topo de um poste do tipo usado em iluminação de ruas. A extensão da área construída espantou-o.

Fazer tudo isso ¯ e no alto de uma montanha! Quão importante poderia ser um lugar assim para merecer todo esse esforço, todas as despesas? Alguma coisa que enviava um feixe laser aos céus... com que propósito? Os americanos haviam perguntado se ele vira o que o raio atingira. Eles sabiam que tinha atingido alguma coisa, então. Alguma coisa no céu. O que quer que fosse, assustara os americanos, assustara as mesmas pessoas que fabricaram os mísseis com os quais matara tantos pilotos russos... O que poderia assustar pessoas tão es­pertas? O Arqueiro conseguia ver o lugar, porém não enxergava nada mais ameaçador do que as torres de vigia dotadas de metralhadoras. E uma daquelas construções abrigava soldados equipados com armas pesadas. Isso sim era motivo para ficar assustado. Qual das constru­ções? Precisava saber aquilo, porque a construção precisava ser ataca­da primeiro. Seus morteiros procurariam acertar nela antes de mais nada. Mas qual delas era?

Depois disso... Ele dividira seus homens em duas seções, de quase cem homens cada. O major lideraria uma e seguiria pela esquerda. Ele levaria a outra pela direita. O Arqueiro selecionara seu objetivo assim que atingiram o topo da montanha. Aquela construção, disse a si mesmo, era onde as pessoas estavam. Era onde os russos viviam. Não os soldados, mas aqueles a quem os soldados guardavam. Algu­mas das janelas estavam acesas. Um prédio de apartamentos no topo de uma montanha, pensou ele. Que tipo de gente os russos alojariam nu­ma construção geralmente usada em cidades? Pessoas que precisavam de conforto. Pessoas que precisavam ser protegidas. Pessoas que tra­balhavam em alguma coisa da qual os americanos tinham medo. Pes­soas que ele poderia matar sem piedade, disse o Arqueiro a si mesmo.

O major aproximou-se e deitou-se a seu lado.

¯ Todos os homens estão bem escondidos ¯ disse o homem. Assestou o próprio binóculo sobre o objetivo. Estava tão escuro que o Arqueiro mal podia distinguir a silhueta do homem, somente o con­torno do rosto e a sombra indefinida do bigode. ¯ Julgamos mal o terreno da outra colina. Vai levar mais três horas para chegarmos perto.

¯  Mais perto de quatro, eu acho.

¯  Não estou gostando dessas torres de vigia ¯ comentou o major. Ambos tremiam de frio. O vento apertara, e não estavam mais abriga­dos pela encosta da montanha. Seria uma noite difícil para todos os homens. ¯ Uma ou duas metralhadoras em cada uma. Podem nos varrer da encosta da montanha enquanto fazemos o assalto final.

¯  Não há holofotes ¯ observou o Arqueiro.

¯  Então eles devem estar usando dispositivos para visão noturna. Eu mesmo já os usei.

¯  São bons?

¯  O alcance é limitado por causa da maneira como funcionam. Po­dem ver objetos grandes, como caminhões, a essa distância. Um ho­mem contra um fundo irregular como esse... talvez 300 metros. É uma distância suficiente para os propósitos deles, meu amigo. As torres pre­cisam cair primeiro. Use os morteiros nelas.

¯  Não. ¯ O Arqueiro balançou a cabeça. ¯ Temos menos do que cem cargas para eles. Serão usadas nas barracas dos guardas. Se pu­dermos matar todos os soldados dormindo, vai facilitar muito as coi­sas quando entrarmos.

¯  Se os artilheiros com metralhadoras nos virem chegando, meta­de dos homens vai morrer antes de os guardas acordarem ¯ observou o major.

O Arqueiro grunhiu. Seu companheiro tinha razão. Duas das tor­res estavam localizadas de maneira a permitir que seus ocupantes metralhassem a encosta íngreme que os homens teriam de escalar para chegar ao topo achatado da montanha. Poderia responder com o fogo das próprias metralhadoras... mas duelos desse tipo terminavam ge­ralmente com a vitória do defensor. O vento os fustigava bastante, e os dois homens teriam de encontrar abrigo ou correr o risco de conge­lar os dedos.

¯  Merda de frio! ¯ xingou o major.

¯  Acha que as torres estão frias também?

¯  Até pior. Estão mais expostas do que nós.

¯  Como estarão vestidos os soldados russos? O major riu.

¯  Da mesma forma que nós. Afinal de contas, estamos usando as roupas deles, não estamos?

O Arqueiro aquiesceu, procurando um pensamento que parecia pai­rar nos limites de sua consciência. Chegou até sua mente apesar do cérebro amortecido pelo frio, e ele deixou o posto, dizendo ao major que permanecesse. Voltou trazendo um lançador de mísseis Stinger.

O tubo de metal estava frio ao toque enquanto ele o montava. As unidades de aquisição de  alvo eram todas transportadas no interior das

de aquisição de alvo eram todas transportadas no interior nas dos homens, para proteger as baterias do frio. Experiente ¯ ele montou e ativou a arma, depois descansou a bochecha na barra de condutância e apontou para a torre de vigia mais próxima...

¯ Escute ¯ disse ele, passando a arma ao camarada. O oficial a apanhou e fez como lhe foi indicado.

¯  Ah! ¯ Seus dentes formaram um sorriso incorpóreo na escuri­dão como o do Gato Risonho de Alice no País das Maravilhas.

Clark também estava ocupado. Era obviamente um homem caute­loso, notou Mancuso ao observar enquanto ele arrumava todo o equi­pamento e o verificava. As roupas pareciam comuns, embora amassadas e não muito bem cortadas.

¯  Compradas em Kiev ¯ explicou Clark. ¯ Não se pode trajar Hart, Schaffner e Marx e querer ficar parecido com um nativo.

Ele tinha também um macacão para se proteger, com listras de ca­muflagem. Havia uma coleção completa de papéis de identidade ¯ em russo, que Mancuso não sabia ler ¯ e uma pistola. Era pequena, um pouco maior do que o silenciador ao lado dela.

¯  Nunca tinha visto um desses ¯ disse o capitão.

¯  Bem, é um silenciador tipo baffle sem estrias e com uma baioneta interna no cilindro.

¯  O que...

O sr. Clark riu.

¯  Vocês estão me empurrando esse vocabulário técnico de subma­rino desde que eu cheguei, comandante. Agora é minha vez.

Mancuso levantou a pistola.

¯  Mas é apenas uma 22!

¯  É praticamente impossível silenciar algo maior do que isso, a me­nos que se queira um silenciador do tamanho do seu antebraço, como aqueles que os homens do FBI usam nos seus brinquedinhos. Eu pre­ciso de algo que caiba num bolso. Esse é o melhor que Mickey conse­gue fazer, e ele é o melhor nisso.

¯  Quem?

¯  Mickey Finn. E o nome verdadeiro dele. Ele faz projetos para a Qual-A-Tec, e eu não usaria o silenciador de mais ninguém. Não é como na televisão, capitão. Para que um silenciador funcione direito, precisa ser de calibre pequeno, é preciso usar munição subsônica e uma culatra selada. E ajuda muito se for em espaço aberto. Aqui, o tiro seria ouvido por causa das paredes de metal. Lá fora, seria possível ouvir algo num raio de 30 metros, mas não daria para distingui o tipo de som. O silenciador

encaixa em pistolas como essa, você o gira ¯ ele demonstrou o movimento ¯ e agora a arma só atira uma vez. O silenciador trava a ação. Para dar outro tiro, é preciso girá-lo outra vez e acionar manualmente o mecanismo.

¯  Quer dizer que vai entrar lá com uma 22 de um tiro só?

¯  É assim que se faz, capitão.

¯  Você já...

¯  Você não quer mesmo saber. Além do mais, não posso falar so­bre isso. ¯ Clark sorriu. ¯ Eu mesmo não estou liberado para o meu trabalho. Se isso o faz sentir-se melhor, sim, estou morrendo de me­do, mas é para isso que sou pago.

¯  Mas se...

¯  É melhor sair daqui agora. Tenho autoridade para lhe dar essa ordem, capitão, lembra-se? Ainda não aconteceu. Não se preocupe com isso. Eu me preocupo por nós dois.

 

Convergência

Maria e Katryn Gerasimov sempre recebiam o tratamento VIP que lhes era devido como familiares próximos de um membro do Politbu­ro. Um carro da KGB fora buscá-las em seu apartamento vigiado de oito aposentos na Avenida Kutuzovky, levando-as até o Aeroporto de Vnukovo, geralmente usado para vôos domésticos, onde foram espe­radas na sala de repouso reservada aos vlasti. Era atendida por um número de serviçais maior do que o de freqüentadores presentes, e naquela manhã os poucos que ali estavam silenciaram. Uma atenden­te levou os chapéus e casacos enquanto outro as conduzia até um sofá, onde um terceiro perguntou se queriam comer ou beber alguma coi­sa. Ambas pediram café, mais nada. Os empregados olhavam suas rou­pas com inveja, A atendente do vestiário correu as mãos pela textura sedosa das peles, e pensou que seus ancestrais talvez tivessem visto a nobreza czarista com o mesmo grau de inveja que sentia agora des­sas duas. Sentaram-se em isolamento régio, tendo apenas a compa­nhia distante dos guarda-costas enquanto saboreavam o café, olhando através das vidraças alguns aviões estacionados.

Mana Ivanovna Gerasimov não era, na verdade, estoniana, embora tívesse nascido lá cinqüenta anos antes. Sua família era inteiramente de etnia russa, desde que o pequeno Estado do Báltico fizera parte do Império Russo sob o domínio dos czares, apenas para experimen­tar um breve período de "liberação" ¯ como os baderneiros costumavam chamá-la ¯ entre as guerras mundiais, durante o qual os nacionalistas estonianos não haviam facilitado nem um pouco a vida dos russos puros. Suas memórias infantis mais remotas de Tallin não eram nada agradáveis, mas como todas as crianças ela fez amigos que continuariam amigos para sempre. Sobreviveram até mesmo a um ca­samento com um jovem do Partido, que para surpresa geral ¯ espe­cialmente a dela ¯ fora promovido ao comando do mais odiado órgão governamental. Pior ainda, ele fizera carreira reprimindo elementos dissidentes. Que seus amigos de infância tivessem suportado esse fato era um testemunho à sua inteligência. Meia dúzia de pessoas foram poupadas em campos de trabalho, ou transferidas de uma prisão com regime severo para outra de regime mais brando, devido à sua intercessão. Os filhos de seus amigos freqüentavam universidades em vir­tude de sua influência. Aqueles que haviam zombado de seu nome russo não se deram tão bem, embora ela tivesse ajudado um deles só um pouquinho, o suficiente para parecer piedosa. Tal comportamen­to era o bastante para mantê-la ligada à vida do pequeno subúrbio de Tallin, a despeito de sua mudança para Moscou. Também ajudou o fato de o marido a ter acompanhado à cidade natal uma única vez. Ela não era má pessoa, simplesmente alguém que utilizava o poder vicário que possuía como uma princesa da época anterior teria feito: arbitrariamente, mas nunca maliciosamente. Seu rosto tinha uma qua­lidade real que se ajustava a essa imagem. Beldade radiante vinte e cinco anos atrás, ainda era uma mulher bonita, se bem que um tanto mais séria. Como uma extensão da identidade oficial do marido, ela tinha que desempenhar seu papel no jogo ¯ não tanto quanto a espo­sa de um político ocidental, claro, mas seu comportamento precisava ser adequado. A prática a deixara em boa forma agora. Aqueles que a observavam nunca poderiam adivinhar seus pensamentos.

Ela imaginava o que estava errado, consciente unicamente da gravi­dade do fato. Seu marido a prevenira para estar num local determina­do, num momento determinado, e não lhe fazer nenhuma pergunta, apenas prometer cumprir exatamente o que lhe fosse pedido, a des­peito das conseqüências. A ordem fora dada em tom de voz baixo, mo­nótono e sem emoção enquanto a água corria na pia da cozinha. Foi a coisa mais assustadora que já ouvira, desde que os tanques alemães entraram em Tallin no ano de 1941. Outro legado da ocupação alemã foi o valor que aprendera a dar à sobrevivência.

Sua filha nada sabia sobre o que estavam fazendo. Sua reação não era confiável. Katryn nunca conhecera o perigo como sua mãe, ape­nas raros desconfortos, e cursava o primeiro ano da Universidade de Moscou, onde escolhera especialização em Economia, e viajara junta­mente com uma pequena multidão de crianças tão importantes quanto ela, todas do escalão ministerial pelo menos. Já se tornara membro do partido ¯ 18 anos era a idade mínima permitida ¯ e também ela desempenhava seu papel. No outono anterior, Katryn viajara com al­guns colegas de classe e ajudara na colheita do trigo, principalmente posando para uma fotografia publicada na segunda página do Komsomohkaya Pravda, o jornal da Liga da Juventude Comunista. Não que ela gostasse, mas as novas regras de Moscou "encorajavam" as crian­ças dos poderosos a pelo menos fingirem realizar sua justa parte. Po­deria ter sido pior. Ela retornara do encargo com um novo namorado, e a mãe imaginava se houvera intimidade entre eles, ou se o jovem assustara-se com os guarda-costas ou com o conhecimento de quem era o pai dela. Ou será que a enxergava como uma chance de entrar para a KGB? Ou seria desses da nova geração, que nem ligavam? Sua filha estava entre gente assim. O Partido era uma entidade à qual as pessoas se juntavam para consolidar suas posições, e o posto de seu pai a colocava no caminho certo para um emprego confortável. Ela sentava-se silenciosa ao lado da mãe, lendo uma revista de moda da Alemanha Ocidental, agora já vendida na União Soviética, e decidin­do quais roupas gostaria de usar nas aulas. Ela teria de aprender, pen­sou a mãe, relembrando que aos 18 anos o mundo é um lugar com horizontes próximos e distantes ao mesmo tempo, dependendo do es­tado de espírito.

Por volta do momento em que terminavam o café, o vôo foi chama­do. Elas esperaram. O avião não partiria sem elas. Finalmente, quan­do veio a última chamada, um atendente trouxe os chapéus e os casacos, e outro as conduziu pelas escadas até o carro. Os outros passageiros haviam sido levados num ônibus ¯ os russos ainda não haviam des­coberto as passarelas sanfonadas para jatos ¯, e, quando o carro che­gou à pista, subiram os degraus para o aparelho. A aeromoça as conduziu solicitamente até os lugares de primeira classe na cabine da frente. Não eram chamados de primeira classe, claro, porém eram mais largos, tinham mais espaço para as pernas, e estavam reservados. O avião comercial decolou às 10 horas, hora de Moscou, parou primeiro em Leningrado, depois prosseguiu até Tallin, onde aterrissou logo após as 13 horas.

¯ Então, coronel, tem o sumário das atividades do prisioneiro? ¯ perguntou Gerasimov em tom informal.

Ele parecia preocupado, reparou imediatamente Vatutin. Deveria mostrar-se mais interessado, especialmente com a reunião do Politbu­ro dali a uma hora.

¯  Vão escrever livros sobre esse caso, camarada diretor-geral. Fili­tov tinha acesso a praticamente todos os nossos segredos de defesa. Ele chegava a ajudar a fazer a política defensiva. Precisei de trinta pá­ginas só para o resumo do que ele fez. O interrogatório completo leva­rá vários meses.

¯  A rapidez é menos importante do que a precisão ¯ disse Gerasi­mov sem muito tato.

Vatutin não exibiu nenhuma reação.

¯  Como quiser, camarada diretor-geral.

¯  Se me der licença agora, coronel, há uma reunião no Politburo esta manhã.

O coronel Vatutin ficou em posição de sentido, girou nos calcanha­res e saiu. Encontrou Golovko na ante-sala. Os dois haviam se conhe­cido casualmente. Tinham cursado a Academia da KGB com um ano de diferença, e suas carreiras progrediram aproximadamente na mes­ma proporção.

¯  Coronel Golovko ¯ disse a secretária do chefe. ¯ O diretor-geral precisa sair imediatamente e sugere que retorne amanhã de manhã por volta das 10 horas.

¯  Mas...

¯  Ele já está saindo ¯ informou a secretária.

¯  Muito bem ¯ retrucou Golovko, colocando-se de pé. Ele e Va­tutin saíram juntos.

¯  O diretor-geral está ocupado ¯ comentou Vatutin enquanto to­mavam o corredor.

¯  Não estamos todos? ¯ respondeu o outro depois que a porta se fechou. ¯ Pensei que ele quisesse isto. Cheguei aqui às 4 para redigir o maldito relatório! Bem, acho que agora vou tomar o desjejum. Co­mo vão as coisas no "Dois", Klementi Vladimirovich?

¯  Também estamos ocupados... Os cidadãos não nos pagam para ficar parados. ¯ Ele também chegara cedo para completar seu traba­lho burocrático, e seu estômago roncou audivelmente.

¯  Você também deve estar com fome. Quer me acompanhar?

Vatutin acenou concordando e os dois dirigiram-se à cantina. Ofi­ciais graduados ¯ de coronéis para cima ¯ possuíam um refeitório separado, e eram servidos por garçons de uniforme branco. A sala nun­ca ficava vazia. A KGB trabalhava 24 horas por dia, e horários estra­nhos pediam refeições irregulares. Além do mais, a comida era boa, especialmente a servida aos oficiais graduados. A sala formava um am­biente tranqüilo. Quando as pessoas falavam por ali, mesmo que esti­vessem discutindo esportes, faziam-no aos sussurros.

¯ Você não está ligado às negociações sobre armamentos, agora? ¯ perguntou Vatutin bebericando o chá.

¯ É verdade... Virei babá de diplomatas. Sabe, os americanos pen­sam que pertenço à GRU. ¯ Golovko arqueou as sobrancelhas, parte para mostrar-se divertido com os americanos, parte para mostrar ao seu quase-colega de classe como era importante seu trabalho.

¯ É mesmo? ¯ Vatutin estava surpreso. ¯ Eu teria pensado que eles estavam mais bem informados... pelo menos... bem... ¯ Enco­lheu os ombros para indicar que não podia prosseguir. Eu também te­nho assuntos que não posso discutir, Sergey Nikolayevich.

¯  Suponho que o diretor-geral esteja preocupado com a reunião do Politburo. Os rumores...

¯  Ele ainda não está pronto ¯ afirmou Vatutin com a confiança tranqüila de quem possuía fontes seguras.

¯  Tem certeza?

¯  Tenho.

¯  De que lado está? ¯ quis saber Golovko.

¯  De que lado você está? ¯ retrucou Vatutin. Ambos trocaram um olhar divertido, mas depois Golovko tornou-se sério.

¯  Narmonov precisa de uma chance. O acordo sobre armamen­tos... se os diplomatas conseguirem não atrapalhar e executar o acor­do... será uma coisa boa para todos.

¯  Pensa realmente assim? ¯ Vatutin ainda não se decidira por la­do nenhum.

¯  Penso, sim. Tive de tornar-me especialista em armas dos dois lados. Sei o que nós temos e sei o que eles têm. Existe um limite para tudo. Uma vez que um homem esteja morto, não se fica atirando mais sobre o cadáver. Existem maneiras melhores de gastar o dinheiro. Exis­tem coisas que precisam mudar.

¯  Devia ter mais cuidado dizendo essas coisas ¯ avisou Vatutin. Golovko viajara demais. Conhecera o Ocidente, e muitos agentes da

KGB voltavam contando histórias maravilhosas ¯ se a União Soviéti­ca pudesse fazer isso, ou aquilo... Vatutin percebia a verdade ali con­tida, mas era por natureza muito mais cauteloso. Era um homem do "Dois", que ia atrás de perigos, enquanto Golovko, do Primeiro Di­retório, procurava oportunidades.

¯  Não somos nós os guardiões? Se não pudermos falar, então quem pode? ¯ disse Golovko, cedendo um pouco. ¯ Desde que seja de acor­do com a orientação do Partido a todos os momentos, claro... Mas até mesmo o Partido vê a necessidade de realizar mudanças.

Tinham de concordar sobre aquilo. Cada jornal soviético proclamava a necessidade de uma nova visão, e cada artigo precisava ser apro­vado por alguém importante, dotado de pureza política. O Partido nun­ca estava errado, ambos sabiam, mas certamente alterara bastante sua mente kollectiv.

¯  Uma pena que o Partido não veja a importância do descanso pa­ra seus guardiões. Homens cansados cometem erros, Sergey Nikola­yevich.

Golovko contemplou os ovos em seu prato por um instante, depois baixou mais ainda o tom de voz.

¯  Klementi... vamos imaginar por um momento que eu sei do fa­to de que uma pessoa do alto escalão da KGB está se encontrando com um agente graduado da CIA.

¯  Alto escalão?

¯  Mais alto do que chefe de Diretório ¯ respondeu Golovko, di­zendo a Vatutin exatamente quem era, sem usar o nome ou o título. ¯ Vamos presumir que fui eu quem arranjou os encontros, e que ele me diz que não preciso saber qual foi o assunto. Finalmente, vamos supor que esse mesmo oficial graduado anda agindo... estranhamen­te. O que acha que devo fazer? ¯ perguntou ele, sendo a seguir brin­dado com uma resposta ao pé do regulamento:

¯  Deveria escrever um relatório ao Segundo Diretório, é claro. Golovko quase derrubou seu café.

¯  Uma ótima idéia. Logo depois posso cortar minha garganta com uma lâmina de barbear e economizar a todos tempo e trabalho de in­terrogatório. Existem algumas pessoas que estão acima de suspeita... ou têm tanto poder que ninguém ousa suspeitar delas.

¯  Sergey, se existe uma coisa que aprendi nas últimas semanas, é que não existe isso de "acima de suspeita". Estivemos trabalhando num caso tão alto no Ministério da Defesa... você não iria acreditar. Eu mal consigo acreditar. ¯ Vatutin acenou para que q garçom trou­xesse um novo bule de chá.

A pausa deu ao outro algum tempo para pensar. Golovko tinha co­nhecimento íntimo daquele ministério em virtude do seu trabalho com armas estratégicas. Quem poderia ser? Não havia muitos homens dos quais a KGB era incapaz de suspeitar ¯ essa era uma condição desen­corajada pela agência ¯ e menos ainda no Ministério da Defesa, que a KGB deveria encarar com mais rigor. Mas...

¯  Filitov? Vatutin empalideceu e cometeu um erro.

¯  Quem lhe contou?

¯  Meu Deus, ele deu instruções para mim no ano passado sobre armas de  médio alcance. Ouvi dizer que estava doente. Não está brin­cando, está?

 ¯ Não existe nem um pingo de brincadeira em tudo isso. Eu não posso falar muito, e é preciso que não saia desta mesa, mas... Sim, Filitov estava trabalhando para... alguém de fora de nossas fronteiras. Ele confessou, e a primeira parte do interrogatório já terminou.

¯Mas ele sabia de tudo! O grupo de negociações precisa saber disso. Altera toda a base das conversações ¯ declarou Golovko.

Vatutin não havia pensado nisso, mas não era o lugar certo para to­mar decisões políticas. Afinal de contas, não passava de um policial com um toque especial. Golovko poderia ter razão em sua avaliação,mas regras são regras.

¯  A informação está sendo retida em sigilo máximo por enquanto, Sergey Nikolayevich. Lembre-se disso.

¯  Compartimentação de informações pode ser uma faca de dois gumes, Klementi ¯ avisou Golovko, imaginando se deveria prevenir os negociadores.

¯  Acho que tem razão ¯ concordou Vatutin.

¯  Quando capturou seu prisioneiro? ¯ indagou Golovko, ouvindo a seguir a resposta. As datas... Ele tomou fôlego e esqueceu sobre as negociações. ¯ O diretor-geral encontrou-se pelo menos duas vezes com um agente graduado da CIA...

¯  Quem e quando?

¯  Domingo à noite e ontem de manhã. O nome é Ryan. Ele tem uma posição equivalente à minha no grupo americano, mas é ligado à Inteligência, não um agente de campo que eu fui. O que conclui disso?

¯  Tem certeza de que ele não pertence a Operações?

¯  Tenho. Posso até lhe dizer em que sala trabalha. Isso não é um fator de incerteza. Ele é analista, e graduado, mas apenas um homem de gabinete. Assistente especial do vice-diretor dos Serviços de Infor­mações, e antes disso era parte de um empréstimo de alto nível para Londres. Ele nunca foi agente de campo.

Vatutin terminou seu chá e serviu-se de outra xícara. A seguir pas­sou manteiga num pedaço de pão. Enquanto isso, pensava sobre o as­sunto. Havia ampla possibilidade para adiar uma resposta, mas...

¯  Tudo o que temos aqui é atividade incomum. Talvez o diretor-geral tenha motivos para ficar assim sensível...

¯  Sim... ou talvez seja essa a impressão que ele queira dar ¯ ob­servou Golovko.

Para alguém do "Um" você tem a maneira de pensar parecida com a nossa, Sergey. Muito bem. O que faríamos normalmente...  Não que um caso como esse seja normal, se entende o que eu digo... é reu­nir as informações e levá-las ao diretor do Segundo Diretório. O diretor-geral tem guarda-costas. Eles poderiam ser separados e interrogados Mas tal assunto teria de ser tratado muito, muito cuidadosamente. Meu chefe teria de ir a... a quem? ¯ perguntou Vatutin retoricamente. ¯ Um membro do Politburo, talvez, ou ainda o secretário-geral do Co­mitê Central, mas o assunto Filitov está sendo manuseado sem ne­nhum alarde. Acredito que o diretor-geral possa desejar utilizar isso como alavanca política contra o ministro da Defesa e Vaneyev...

¯  O quê?

¯  A filha de Vaneyev estava agindo como espiã do Ocidente. Bem, como mensageira, para ser preciso. Nós a dobramos, e...

¯  Por que isso não se tornou de conhecimento público?

¯  A mulher está de volta ao trabalho, por ordem do diretor-geral

¯  informou Vatutin.

¯  Klementi, tem alguma idéia do que está acontecendo aqui?

¯  Não, ainda não. Presumi que o diretor-geral estivesse procuran­do fortalecer sua posição política, mas o encontro com o homem da CIA... tem certeza disso?

¯  Eu mesmo combinei os encontros ¯ repetiu Golovko. ¯ O pri­meiro deve ter sido combinado antes que os americanos chegassem, e simplesmente supervisionei os detalhes. Ryan pediu o segundo. Ele me passou uma nota... quase tão bem como um agente recém-treinado em sua primeira missão. Eles se encontraram no Teatro Barricada on­tem, como eu lhe disse. Klementi, alguma coisa muito estranha está acontecendo.

¯  É o que tudo indica. Mas não temos nada...

¯  O que quer dizer...

¯  Sergey, investigação é o meu trabalho. Não temos nada, a não ser fragmentos desconexos de informação, que podem ser explicados facilmente. Nada atrapalha mais uma investigação do que agir depressa demais. Antes de fazer qualquer coisa, precisamos reunir e analisar tudo o que temos. Então podemos ir a meu chefe, e ele é que poderá autorizar uma ação posterior. Acredita que dois coronéis possam agir num caso desses sem o apoio de uma autoridade maior? Você precisa colocar tudo o que sabe no papel e trazer a mim o resultado. Quando acha que pode fazer isso?

¯  Preciso estar na sessão de negociações em... ¯ ele verificou o relógio ¯ duas horas. Deve durar pelo menos dezesseis horas, segui­da de uma recepção. Os americanos partem às 22 horas.

Pode escapar da recepção?

-Será um pouco esquisito, mas acho que sim.

¯ Esteja  em meu escritório às 16h30 ¯ disse Vatutin formalmenmente. Golovlovko, que possuía um ano a mais de oficialato, sorriu pela primeira vez.

¯ Às suas ordens, camarada coronel

¯  Marechal Yazov, qual é a posição do ministério? ¯ perguntou Narmonov.

¯  Não aceitamos menos do que seis horas ¯ afirmou o ministro da Defesa. ¯ Nesse tempo deveremos ser capazes de ocultar a maior parte dos itens mais sensíveis. Como sabe, preferimos não ter nossos locais secretos inspecionados de modo nenhum, embora examinar as instalações americanas vá trazer vantagens em informações.

O ministro das Relações Exteriores concordou.

¯  Os americanos vão pedir menos, mas acho que podemos chegar a esse número.

¯  Eu discordo. ¯ As cabeças dos membros do Politburo voltaram-se para a cadeira de Alexandrov. O senso do idealista mostrava-se nova­mente. ¯ Já é ruim o suficiente reduzir nossos arsenais, mas ter os americanos examinando as fábricas, obtendo nossos segredos, é lou­cura total.

¯  Mikhail Petrovich, já passamos por tudo isso ¯ disse paciente­mente Narmonov. ¯ Mais alguma objeção? ¯ Ele olhou ao redor da mesa. Cabeças acenaram. O secretário-geral riscou o item de seu blo­co de anotações. Acenou para o ministro das Relações Exteriores.

¯  Seis horas, nada menos.

O ministro das Relações Exteriores sussurrou algumas instruções a seu ajudante-de-ordens, que deixou a sala imediatamente para cha­mar o chefe das negociações. A seguir inclinou-se para a frente.

¯  Isso deixa a questão sobre quais armas serão eliminadas, a ques­tão mais difícil de todas, claro. Será necessária outra sessão, e bem longa.

¯  Estamos programados para assinar o acordo em três meses... ¯ lembrou Narmonov.

¯  Sim. Isso deve estar decidido até lá. Sondagens preliminares so­bre essa questão não encontraram obstáculos sérios.

¯  E os sistemas americanos de defesa? ¯ perguntou Alexandrov. ~ E quanto a eles? ¯ As cabeças se voltaram novamente, desta vez Para o diretor-geral da KGB.

¯ Nossos esforços para penetrar a segurança de Tea Clipper continuam. Como sabem, corresponde ao nosso projeto Estrela Brilhante embora tenhamos a impressão de que estamos mais avançados em al­gumas áreas ¯ declarou Gerasimov, levantando os olhos de sua prancheta.

¯  Cortamos nossas forças de mísseis pela metade enquanto os ame­ricanos aprendem a derrubar os nossos ¯ resmungou Alexandrov.

¯  E eles vão reduzir as forças pela metade, enquanto trabalhamos no mesmo sentido que eles ¯ continuou Narmonov. ¯ Mikhail Petrovich, estamos trabalhando ao longo dessas linhas por trinta anos, e com muito mais afinco do que eles.

¯  Estamos também mais adiantados nos testes ¯ declarou Yazov -E...

¯  E eles sabem disso ¯ completou Gerasimov. Referia-se ao teste que os americanos haviam observado da aeronave Cobra Belle, mas Yazov não sabia nada sobre isso ainda, e mesmo a KGB não tinha co­nhecimento de como o teste fora observado, só que os americanos ti­nham conhecimento do assunto. ¯ Eles também têm serviços de informações, lembre-se disso.

¯  Mas não disseram nada sobre o teste ¯ argumentou Narmonov.

¯  Os americanos têm sido às vezes reticentes ao discutir tais as­suntos. Eles se queixam de alguns detalhes técnicos de nossas ativida­des de defesa, mas não de todos eles, por medo de comprometer seus métodos de coleta de informações ¯ explicou Gerasimov sem ênfase. ¯ Possivelmente terão conduzido testes similares, embora não tenha­mos conhecimento disso. Os americanos também são capazes de manter segredo quando desejam. ¯ Taussig não conseguira passar a informa­ção. Gerasimov recostou-se para deixar os outros falarem.

¯  Em outras palavras, os dois lados continuam como antes ¯ con­cluiu Narmonov.

¯  A menos que sejamos capazes de ganhar uma concessão ¯ disse o ministro das Relações Exteriores. ¯ O que não é muito provável de acontecer. Existe alguém nesta mesa que seja de opinião que deve­mos restringir nossos programas de defesa? ¯ Não havia. ¯ Nesse caso, por que devemos esperar que os americanos ajam diferentemente?

¯  Mas, e se eles passaram à nossa frente? ¯ insistiu Alexandrov.

¯  Um ótimo argumento, Mikhail Petrovich. ¯ Narmonov apro­veitou a oportunidade. ¯ Por que os americanos sempre parecem es­tar à nossa frente? ¯ perguntou ele aos líderes reunidos do país.

¯  Eles fazem isso não porque sejam mágicos, mas porque permiti­mos que façam... porque não podemos melhorar o desempenho de nossa economia. Isso nega ao marechal Yazov as ferramentas de que nossos homens uniformizados necessitam, nega ao nosso povo as boas coisas da vida que eles começam a esperar, e nos nega a capacidade He enfrentar o Ocidente como iguais.

¯  Nossas armas nos tornam iguais! ¯ discordou Alexandrov.

_¯ Mas que vantagem isso nos traz se o Ocidente também possui armas? Existe alguém em torno desta mesa que se contente em ser igual a0 Ocidente? Nossos foguetes fazem isso por nós ¯ disse Narmonov _-, porém existem mais coisas na grandeza de um povo do que o po­tencial de matar. Se vamos derrotar o Ocidente, não pode ser com bom­bas nucleares... a menos que desejem que os chineses herdem nosso mundo. ¯ Narmonov fez uma pausa. ¯ Camaradas, se pretendemos prevalecer, precisamos avançar com nossa economia.

¯  Mas ela está avançando ¯ obstou Alexandrov.

¯  Para onde? Algum de nós sabe para onde? ¯ perguntou Vane­yev, esquentando a atmosfera reinante na sala.

A discussão tornou-se tumultuada por vários minutos antes de cair na forma de argumentação de estudantes, comum ao Politburo. Nar­monov usara o assunto para testar a força de oposição. Julgou sua fac­ção mais do que simplesmente igual à de Alexandrov. Vaneyev não se traíra ¯ Alexandrov esperava que ele fingisse estar ao lado do secretário-geral, não era? E o secretário-geral ainda tinha Yazov. Narmonov uti­lizara a sessão para aumentar a importância da dimensão política dos problemas econômicos do país, ressaltando a necessidade de reforma como maneira de melhorar o poderio militar do país ¯ o que era ver­dade, claro, mas ainda assim um argumento que dificilmente Alexan­drov e sua malta poderiam refutar. Tomando a iniciativa, avaliou Narmonov, ele fora capaz de julgar ainda uma vez a força dos oposito­res, e, colocando o assunto em aberto, pusera-os em posição psicoló­gica de defesa, pelo menos temporariamente. Era tudo o que podia esperar no momento. Vivera para lutar mais um dia, disse Narmonov a si mesmo. Uma vez que o tratado de limitação de armamentos fosse assinado, seu poder nessa mesa aumentaria mais um ponto. O povo iria gostar ¯ e pela primeira vez na história soviética o que pensava o povo começava a ser levado em conta. Uma vez decidido que armas seriam eliminadas, e os prazos para isso, saberiam quanto dinheiro adicional teriam para gastar. Narmonov podia controlar a discussão de seu posto, usando os fundos para negociar mais poder entre os mem­bros do Politburo, enquanto os membros brigariam entre si, perse­guindo seus próprios pequenos projetos. Alexandrov não poderia interferir, desde que a base de seu poder era ideológica, e não econô­mica. Ocorreu a Narmonov que provavelmente venceria. Com a Defesa na retaguarda, e Vaneyev em seu bolso, ele venceria o confronto faria com que a KGB se dobrasse à sua vontade, e mandaria Alexan­drov para o pasto. Era apenas uma questão de decidir quando forçar o assunto. Teria de haver acordo quanto ao tratado, e ele trocaria de bom grado pequenas concessões para manter segura sua política do­méstica. O Ocidente ficaria surpreso com isso, mas algum dia ficaria ainda mais surpreso em ver o que uma economia viável poderia fazer com seu principal rival. Narmonov estava preocupado com sua sobre­vivência política imediata. Depois disso vinha a tarefa de injetar vida na economia de seu país. Esse era um objetivo posterior, que não mu­dara em três gerações, embora o Ocidente estivesse sempre descobrindo maneiras de ignorá-lo. Os olhos de Narmonov não estavam fixos nis­so, mas o problema ainda estava lá.

Ultima sessão, disse Ryan a si mesmo. Graças a Deus. O nervosismo voltara. Não havia motivo para que tudo não corresse bem ¯ a parte estranha é que Ryan não tinha idéia do que aconteceria com a família de Gerasimov. A "necessidade de saber" novamente levantara a cabeça cansada sobre esse assunto, mas a parte sobre retirar Gerasimov e o Car­deal era de tamanha simplicidade que ele jamais teria pensado nisso. Essa parte era de autoria de Ritter, e o miserável tinha jeito para a coisa. Os russos falaram primeiro dessa vez e, cinco minutos depois de ini­ciado o discurso, propuseram um tempo de alerta para as inspeções locais de surpresa. Jack teria preferido tempo zero, mas isso não era razoável. Não era necessário verificar o interior dos "pássaros", por mais desejável que isso fosse. Seria suficiente contar os lançadores e as ogivas, e qualquer coisa abaixo de dez horas era provavelmente o suficiente para isso ¯ especialmente se as visitas fossem coordenadas com a passagem dos satélites para detectar qualquer tentativa de alte­ração na última hora. Os russos ofereceram dez horas. Ernest Allen, em sua réplica, exigiu três. Duas horas mais tarde os números eram sete e cinco. Duas horas depois disso, para surpresa geral, os america­nos disseram seis, e o chefe da delegação russa concordou. Ambos os homens levantaram-se e inclinaram-se sobre a mesa para trocar um aperto de mãos. Jack ficou contente que tudo tivesse terminado, mas teria resistido em cinco. Afinal de contas, ele e Golovko haviam con­cordado em quatro, não?

Quatro horas e meia para resolver sobre um número miserável, pensou Jack. Pode ser o recorde de todos os tempos. Houve até mesmo aplausos quando todos se levantaram, e Jack entrou na fila do banheiro mais próximo. Alguns minutos depois retornou. Golovko estava lá.

¯ Vocês nos deixaram ganhar essa fácil ¯ comentou o agente da

¯ Acho que tem sorte de não ser minha função ¯ concordou Jack. ¯ É um bocado de trabalho por causa de duas ou três coisinhas.

¯ Acha que não são importantes?

¯ No Grande Esquema das Coisas... bem, são significantes, mas não tanto. Significam principalmente que podemos voltar para casa ¯ observou Jack, deixando transparecer um pouco de nervosismo na voz. Ainda não havia terminado.

¯  Está ansioso para voltar? ¯ perguntou Golovko.

¯ Não exatamente, mas lá vem você de novo... ¯ Desta vez não é o vôo que está me deixando nervoso, parceiro.

A tripulação de vôo ficara no Hotel Ukrania, à margem do rio Mos­cou, dois a dois em grandes quartos, fazendo compras nas "lojas da amizade'', e vendo tudo quanto podiam de uma forma geral, enquan­to mantinham um grupo de guardas na aeronave. Agora saíam juntos do hotel e subiam a bordo de um ônibus de turismo com cinqüenta lugares, que atravessou a ponte e dirigiu-se para leste pela Avenida Kalinina a caminho do aeroporto, a meia hora de viagem devido ao tráfego leve.

Quando o coronel Von Eich chegou, a equipe de terra da British Airways, responsável pela manutenção de apoio, estava terminando o abastecimento sob os olhos vigilantes do chefe ¯ o primeiro sargen­to que "possuía" a aeronave ¯ e do capitão que servia de co-piloto no assento direito da cabine do VC-137. Os membros da tripulação passaram pelo posto de controle da KGB, cujos agentes verificaram cuidadosamente a identidade de todos. Quando terminaram, a tripu­lação embarcou, acondicionou seu equipamento e começou a prepa­rar o 707 convertido para seu vôo de volta à Base Aérea de Andrews. O piloto reuniu cinco dos seus homens na cabine de comando e, sob o ruído do rádio de um deles, informou-os sobre o que fariam naque­la noite, que seria um "pouquinho diferente".

¯  Meu Deus, senhor ¯ comentou o chefe do pessoal ¯, isso é di­ferente mesmo.

¯  O que seria a vida sem um pouquinho de excitação? ¯ pergun­tou Von Eich. ¯ Todos entenderam bem suas partes? ¯ Recebeu afir­mativas. ¯ Então vamos trabalhar, pessoal.

O piloto e o co-piloto apanharam suas listas de verificações e saíram com o chefe para fazer a checagem pré-vôo. Todos concordavam que seria muito bom voltarem para casa ¯ se conseguissem levantar os pneus da pista. Estava frio como o mamilo de uma bruxa, observou o chefe da equipe. As mãos enluvadas, e agora vestidos com uniformes da Força Aérea, os homens não pareciam ter pressa enquanto andavam ao redor da aeronave. A 89? Ala de Transporte Aéreo Militar possuía um registro sem máculas de segurança voando aparelhos "DV" ao redor do mundo, e a manutenção era realizada com atenção total a cada detalhe. Von Eich perguntou-se se as 700 000 horas de vôo sem nenhum tipo de acidente não seriam maculadas naquela noite.

Ryan já havia feito as malas. Estariam partindo da recepção direta­mente para o aeroporto. Ele decidira barbear-se e escovar os dentes novamente antes de arrumar o conjunto de barbear num dos bolsos de sua valise para dois ternos. Estava usando um dos ternos ingleses. Era quase quente o bastante para o clima local, mas Jack prometeu a si mesmo que, se viesse novamente a Moscou no inverno, iria lembrar-se de trazer ceroulas. Já estava quase na hora quando soaram batidas à porta. Era Tony Candeia.

¯  Bom vôo para casa ¯ desejou ele.

¯  Claro ¯ riu Jack.

¯  Pensei em vir dar uma mãozinha. ¯ Ele apanhou a pequena mala, e Jack carregou apenas sua valise.

Juntos andaram até o elevador, que os conduziu do sétimo ao nono andar, onde aguardaram outro elevador para descer até o saguão.

¯  Sabe quem projetou este edifício?

¯  Obviamente foi alguém com senso de humor ¯ comentou Can­deia. ¯ Contrataram o mesmo sujeito para a construção da nova em­baixada americana...

Os dois riram. Aquela história era digna de um filme de catástrofe feito em Hollywood. Havia ali dispositivos eletrônicos em número su­ficiente para montar uma central de computadores. O elevador che­gou um minuto depois, deixando os dois no saguão. Candeia passou a Ryan sua maleta.

¯ Boa sorte ¯ desejou ele, antes de ir embora.

Jack saiu para onde os carros aguardavam e colocou sua bagagem no porta-malas aberto. A noite estava límpida. Havia estrelas no céu, e uma sugestão de aurora boreal no horizonte setentrional. Ouvira di­zer que esse fenômeno meteorológico podia ocasionalmente ser ob­servado de Moscou, mas era algo que nunca tinha testemunhado.

A caravana partiu dez minutos depois, tomando a direção sul para o Ministério das Relações Exteriores, repetindo o caminho que quase resumia todo o conhecimento de Ryan sobre essa cidade de 8 milhões de habitantes. Um a um, os carros fizeram a curva na alameda de aces-so, e seus ocupantes foram encaminhados para o interior do prédio. Aquela recepção não era tão elaborada quanto a última no Kremlin, mas essa rodada também não realizara tanta coisa. A próxima seria terrível com o prazo para a assinatura do acordo se aproximando, porém a próxima sessão seria em Washington. Os repórteres de jornais já levam esperando, e havia poucas câmeras de televisão presentes. Alguém se aproximou de Ryan assim que ele retirou o sobretudo.

-Doutor Ryan?

¯Sim? ¯Ele se voltou.

¯  Mike Paster, do Washington Post. Correm notícias em Washing­ton de que seus problemas com a Comissão de Valores Mobiliários foram resolvidos.

Jack riu.

¯  Meu Deus, é bom ouvir uma notícia que não tem nada a ver com armamentos, para variar! Como disse antes, não fiz nada de errado. Acho que aqueles... idiotas, mas pão diga que eu falei isso... aqueles sujeitos finalmente descobriram. Ótimo. Não gostaria de precisar con­tratar um advogado.

¯  Estão dizendo que a CIA colocou o dedo... Ryan o interrompeu.

¯  Vamos fazer uma coisa. Diga a sua central em Washington que, se me derem dois dias para me desvencilhar desse assunto, vou mos­trar todos os negócios que fiz. Faço tudo por computador e guardo cópias impressas de todo o material. Está bem assim?

¯  Claro... mas por que você não...

¯  E você quem vai me dizer ¯ declarou Jack, apanhando um co­po de vinho da bandeja de um garçom que passava. Ele precisava to­mar um, porém esta noite seria um só. ¯ Talvez algumas pessoas na capital tenham tesão pela Agência. Pelo amor de Deus, não vá publi­car isso também.

¯  Então, como vão indo as conversações? ¯ perguntou o repórter a seguir.

¯  Pode conseguir todos os detalhes com Ernest, mas, não oficial­mente, acho que vão indo muito bem. Não tanto como da última vez, e ainda sobrou muita coisa para fazer, mas acertamos alguns pontos difíceis, mais ou menos o que esperávamos dessa viagem.

¯  O acordo vai ficar pronto a tempo de ser assinado? ¯ indagou Paster a seguir.

¯  Extra-oficialmente ¯ disse Jack, de imediato. O repórter con­cordou. ¯ Eu diria que as chances são melhores do que duas para três.

¯  E o que a Agência acha disso?

¯  Não sou analista político, lembra-se? De um ponto de vista técnico, a redução de cinqüenta por cento é um fato com o qual podemos conviver. Na verdade não muda muita coisa, muda? Mas é uma atitu­de "simpática", isso eu garanto.

¯  Como quer que eu divulgue a autoria disso? ¯ quis saber Paster.

¯  Diga que foi um oficial novato da Administração. ¯ Jack sor­riu. ¯ Está bem assim? Tio Ernie pode falar em nome dele, mas eu não tenho permissão.

¯  E sobre o efeito que isso terá sobre o poder remanescente de Narmonov?

¯  Não é o meu campo ¯ mentiu Ryan. ¯ Minhas opiniões sobre isso são particulares, não profissionais.

¯  Portanto...

¯  Portanto é melhor perguntar a outra pessoa sobre isso ¯ sugeriu Jack. ¯ Pergunte-me as coisas realmente importantes, como quem os Skins vão contratar para a primeira fase do campeonato.

¯  Olson, o armador da Baylor ¯ informou o repórter imedia­tamente.

¯  Pois eu gosto daquele rebatedor da Penn State, mas ele vai ser vendido logo.

¯  Boa viagem ¯ disse o repórter enquanto fechava seu bloco de anotações.

¯  Claro, e você aproveite o resto do inverno, colega. O repórter começou a retirar-se, depois parou.

¯  Pode dizer alguma coisa, extra-oficialmente, sobre o casal Foley, que os russos mandaram de volta há...

¯  Quem? Ah, o casal que os russos acusaram de espionagem? Extra-oficialmente, e você nunca ouviu nada de mim sobre isso, é tudo men­tira. De qualquer outra forma, sem comentários.

¯  Certo. ¯ O repórter afastou-se com um sorriso. Jack permaneceu ali em pé, sozinho. Olhou em volta procurando

Golovko, mas não conseguiu encontrá-lo. Ficou desapontado. Inimi­go ou não, eles sempre podiam conversar, e Ryan chegara a apreciar essas conversas. O ministro das Relações Exteriores apareceu, depois Narmonov. Todos os outros ingredientes estavam lá: os violinos, as mesas com salgadinhos, os garçons circulando com bandejas de vi­nho, vodca e champanhe. O pessoal do Departamento de Estado esta­va envolvido em conversas com os colegas soviéticos. Ernie Allen estava rindo com seu equivalente soviético. Apenas Jack estava sozinho, e isso chamava atenção. Ele caminhou até o grupo mais próximo e ficou na  periferia, mal sendo notado enquanto verificava seu relógio de tempo em tempo, e bebericava seu vinho.

¯ Está na hora ¯ anunciou Clark.

Chegar até esse ponto fora muito difícil. O equipamento de Clark já  estava arrumado no compartimento à prova d'água que ia desde o Centro de Ataque até a torre do submarino. Possuía comportas em ambas as extremidades, e ali a água não penetrava, ao contrário do restante da torre, que se inundava normalmente. Mais um marinheiro o acompanhara como voluntário, e em seguida a escotilha do fundo foi fechada e bem apertada. Mancuso levantou o fone.

¯ Teste do sistema de comunicação.

¯  Alto e claro, senhor ¯ respondeu Clark. ¯ Quando estiver pronto.

¯  Não toque na escotilha até eu dar ordem.

¯  Certo, capitão. O oficial voltou-se.

¯  Estou no comando.

¯  O capitão está no comando ¯ repetiu o oficial de serviço.

¯  Oficial das águas, bombeie 1 500 quilos de lastro para fora. Es­tamos levantando do fundo. Sala das máquinas, estejam de prontidão ao toque do sino.

¯  Certo. ¯ O oficial das águas deu as ordens necessárias. Bombas elétricas ejetaram 1 tonelada e meia de água salgada, e o Dallas vaga­rosamente endireitou-se. Mancuso olhou à sua volta. O submarino es­tava em postos de combate. O grupo de rastreamento e controle de incêndio aguardava a postos. Ramius estava com o navegador. O pai­nel de controle de armas achava-se ativado. Abaixo na sala de torpe­dos os quatro tubos estavam carregados, e um deles já inundado.

¯  Sonar, aqui o comandante. Alguma coisa a declarar? ¯ pergun­tou Mancuso a seguir.

¯  Negativo, comandante. Nada em volta, senhor.

¯  Muito bem. Oficial das águas, profundidade nove-zero pés.

¯  Nove-zero pés, senhor.

Eles precisavam sair do fundo antes de imprimir qualquer movi­mento horizontal ao submarino. Mancuso observou o marcador de pro­fundidade mudar lentamente enquanto o especialista ajustava vagarosa e cuidadosamente o equilíbrio do submarino.

¯  Profundidade nove-zero pés, senhor. Vai ser difícil de manter.

¯  Manobras, quero potência para 5 nós. Timão, leme 15 graus à direita, novo rumo a zero-três-oito.

¯  Leme à direita, certo, novo rumo a zero-três-oito ¯ repetiu timoneiro. ¯ Senhor, leme 15 graus à direita.

¯  Muito bem. ¯ Mancuso observou o girabússola marcar um curso a nordeste.

Levou cinco minutos para sair de sob o gelo. O capitão ordenou pro­fundidade de periscópio. Mais um minuto.

¯  Levantar periscópio ¯ ordenou Mancuso em seguida. Um contramestre girou a roda de controle, e o capitão apanhou o instrumen­to que se elevava enquanto a ocular surgia no convés. ¯ Pare!

O periscópio parou 30 centímetros abaixo da superfície. Mancuso procurou por sombras ou possíveis blocos de gelo, mas não viu nada.

¯  Subir 50 centímetros. ¯ Ele estava de joelhos agora. ¯ Mais 50 e manter assim.

Ele usava o periscópio de ataque, mais fino, e não o de busca, que era mais volumoso. O periscópio de busca possuía maior luminosida­de, mas ele não queria arriscar-se a expor a grande seção transversal correspondente ao radar, e o submarino vinha usando somente luzes vermelhas internas durante as ultimas doze horas. Dava uma aparên­cia meio esquisita à comida, mas também propiciava a todos melhor visão noturna. Ele fez uma lenta varredura pelo horizonte. Não havia nada, a não ser gelo flutuante na superfície.

¯  Limpo ¯ anunciou ele. ¯ Tudo limpo. Acione medidas de vigi­lância eletrônica. ¯ Ouviu-se um silvo hidráulico enquanto a antena do sensor eletrônico subia. A haste de fibra de vidro possuía apenas meia polegada de largura, e era praticamente invisível ao radar. ¯ Abai­xar periscópio.

¯  Peguei aquele radar de vigilância de superfície, em zero-três-oito ¯ disse o operador do sensor eletrônico, anunciando a freqüência e o pulso característicos. ¯ O sinal está fraco.

¯  Lá vamos nós, pessoal. ¯ Mancuso levantou o fone para o tubo da torre. ¯ Está pronto?

¯  Sim, senhor ¯ respondeu Clark.

¯  Prepare-se. Boa sorte. ¯ O capitão recolocou o fone no lugar e voltou-se. ¯ Subam à torre e fiquem a postos para submergir o mais rápido possível.

Levou um total de quatro minutos. O alto da torre negra do Dallas irrompeu na superfície, orientada diretamente para o radar soviético mais próximo, a fim de minimizar o perfil exposto ao radar. Era mais do que difícil manter a profundidade.

¯  Pode ir, Clark!

¯  Certo.

Com todo o gelo que flutuava na água, a tela daquele radar deveria estar repleta de pontos, pensou Mancuso. Observou a luz indicadora da flotilha mudar de um traço, que significava fechada, para um círculo, significando aberta.

O compartimento da torre terminava numa plataforma 1 metro abai­xo da torre em si. Clark abriu a escotilha e subiu. A seguir içou seu inflável com a ajuda do marinheiro abaixo dele. Sozinho agora na pequena ponte ¯ a estação de controle do topo da torre ¯, ele jogou o pacote além da borda e puxou a corda que inflava a embarcação. O silvo agudo do ar comprimido pareceu gritar na noite, e Clark es­tremeceu ao ouvi-lo. Tão logo o tecido emborrachado enrijeceu, ele avisou ao marinheiro para fechar a escotilha, depois apanhou o fone da ponte.

¯  Tudo pronto aqui. Escotilha fechada. Vejo vocês em duas horas.

¯  Certo. Boa sorte ¯ desejou novamente Mancuso.

Clark subiu suavemente no inflável, enquanto o submarino afunda­va devagar abaixo dele, e ligou o motor elétrico. Abaixo, a escotilha inferior do compartimento da torre abriu-se apenas o necessário para que o marinheiro que estava acima saltasse para baixo, então ele e o capitão a fecharam e travaram.

¯  Escotilha superior fechada, estamos prontos para imergir ¯ in­formou o oficial das águas, quando o último indicador luminoso mu­dou para um risco.

¯  É isso ¯ disse Mancuso. ¯ Senhor Goodman, assuma o coman­do, e já sabe o que fazer.

¯  Estou no comando ¯ respondeu o oficial de dia enquanto o ca­pitão ia a vante em direção à sala do sonar. O tenente Goodman ime­diatamente deu ordem para imergir, dirigindo-se para o fundo.

Era como nos velhos tempos, pensou Mancuso, com Jones como chefe do sonar. O submarino girou, apontando o dispositivo de sonar mon­tado na proa para o caminho que Clark estava percorrendo. Ramius chegou um minuto depois para observar.

¯  Por que não quis olhar pelo periscópio? ¯ indagou Mancuso.

¯  É uma. coisa difícil enxergar a própria terra natal, quando não se pode...

¯  Lá vai ele. ¯ Jones bateu o dedo no monitor de vídeo. ¯ Fazen­do curvas a 18 nós. Bem silencioso para um motor de popa. É elétri­co, não é?

¯  É.

¯  Espero que tenha boas baterias, contramestre.

¯  São de lítio, ânodo rotativo. Eu perguntei.

¯  Que bom ¯ resmungou Jones. Retirou um cigarro de seu maço e ofereceu outro ao capitão, que

por um momento esqueceu que havia largado de fumar outra vez. Jo­nes acendeu-o e assumiu uma expressão contemplativa.

¯  Sabe, senhor, acabei de me lembrar por que quis me aposen­tar... ¯ sua voz esmaeceu enquanto ele observava o objeto acompa­nhado pelo sonar sumindo na distância. A ré o grupo de controle de fogo atualizava o alcance, apenas para ter o que fazer. Jones endireitou o pescoço e escutou. O Dallas estava tão silencioso como jamais esti­vera, e a tensão enchia o ar, tornando-o mais denso do que a própria fumaça dos cigarros.

Clark estendia-se deitado no fundo do bote. Feito de náilon emborrachado, seu padrão de cores era de listras verdes e cinzentas, não mui­to diferente do mar. Haviam pensado em acrescentar alguns pontos brancos em virtude do gelo encontrado na área durante o inverno, mas compreenderam que o canal era sempre percorrido por um navio quebra-gelos, e um ponto branco movendo-se rapidamente pela super­fície escura talvez não fosse uma idéia muito brilhante. Clark, princi­palmente, estava preocupado com o radar. A torre do submarino podia não ser detectada por entre todo o gelo, mas, se o radar russo tivesse um indicador de alvo móvel ativado, o computador simples que moni­torava os sinais de retorno podia muito bem prender-se a um objeto viajando a 20 milhas por hora. O barco em si ficava apenas 30 centíme­tros acima da água, sendo o motor outro tanto mais alto e revestido com material absorvente de radar. Clark manteve o nível de sua cabeça à mesma altura do motor e pensou se a meia dúzia de fragmentos de me­tal que decoravam sua anatomia era grande o suficiente para ser vista. Sabia que isso era irracional ¯ eles nem chegavam a disparar o detec­tor de metais no aeroporto ¯, mas homens solitários em situações peri­gosas tendem a desenvolver atividade mental incomum. Era, na verdade, melhor ser imbecil, disse a si mesmo. A inteligência apenas permitia perceber como essas missões eram perigosas. Depois que elas termina­vam, depois que os tremores passavam, depois de um banho quente de chuveiro, podia-se descansar, banhando-se na glória da coragem e da esperteza, mas não no momento. Agora parecia simplesmente peri­goso, para não dizer loucura, estar fazendo algo assim.

A linha da costa estava claramente visível, uma série de pontos de luz cobrindo o horizonte visível. Parecia uma vista comum, porém era território inimigo. O mero conhecimento disso trazia uma opressão mais gelada que o límpido ar noturno.

Pelo menos o mar está calmo, consolou-se. Na verdade, se estivesse pouco mais encapelado, as condições em relação ao radar seriam melhores, porém a superfície lisa permitia velocidade, e a velocidade sempre fazia com que se sentisse melhor. Olhou para trás. O barco não deixava uma esteira muito grande, e ele a diminuiria ainda mais ao re­duzir a velocidade quando se aproximasse do porto.

Paciência, recomendou a si mesmo sem resultado. Ele detestava a idéia de paciência. Quem gosta de esperar por alguma coisa?, pergun­tou Clark a si mesmo. Se tem de acontecer, é melhor que aconteça de uma vez e termine logo. Aquela não era a maneira mais segura, apressando as coisas, mas, pelo menos quando o movimento era mantido, estava-se fazendo alguma coisa. Porém, quando ensinava as pessoas a faze­rem esse tipo de coisa, sua ocupação normal, sempre lhes dizia para serem pacientes. Seu hipócrita fingido!, observou baixinho.

As bóias do porto lhe deram a distância da costa. Diminuiu a velo­cidade para 10 nós, depois para 5 e finalmente para 3. O motor elétri­co fazia um zumbido quase inaudível. Clark girou o manete e dirigiu o barco para um ancoradouro em ruínas. Tinha de ser velho, pois seus pilares estavam rachados e desgastados pelo gelo de muitos invernos. Sempre vagarosamente, apanhou seu visor noturno e examinou os ar­redores. Não viu nenhum movimento. Podia ouvir tudo agora, prin­cipalmente os sons de tráfego que chegavam até ele através da água, juntamente com um pouco de música. Era a noite de sexta-feira, afi­nal de contas, e até mesmo na União Soviética grupos de pessoas dirigiam-se a restaurantes, outras dançavam. Na verdade, seu plano dependia da presença de vida noturna aqui ¯ a Estônia é mais alegre que a maior parte do país, mas o ancoradouro estava em ruínas, como suas informações afirmavam que estaria. Aproximou-se, amarrando o bote a um pilar com cuidado redobrado ¯ se derivasse, aí, sim, te­riam problemas de fato. Próximo ao pilar havia uma escada. Clark re­tirou seu macacão e subiu, com a pistola na mão. Pela primeira vez reparou no cheiro do porto. Era um pouco diferente de seus equiva­lentes americanos, carregado do odor de óleo dos porões, e completa­do com toques de madeira apodrecida no ancoradouro. Para o norte, uma dúzia ou mais de barcos de pesca estava amarrada a outro anco­radouro. Para o sul havia mais um, este com pilhas de madeira. Então o porto devia estar sendo reconstruído, o que explicava as condições daquele onde atracara. Clark verificou seu relógio ¯ era um Pilot russo bastante usado ¯ e procurou por um ponto de espera: quarenta mi­nutos até que precisasse mover-se. Tinha permitido uma margem de tempo caso encontrasse o mar em piores condições, e tudo que conseguiu com a calma adicional foi tempo para meditar em como ele não passava de um lunático em aceitar mais uma dessas missões.

Boris Filopovich Morozov caminhou para fora do quartel onde ain­da vivia, olhando para o alto. As luzes de Estrela Brilhante transfor­mavam o céu num domo de flocos brancos caindo como penas. Ele adorava momentos como esse.

¯  Quem vem lá? ¯ perguntou uma voz, com autoridade.

¯  Morozov ¯ respondeu o jovem engenheiro enquanto uma figura avançava na direção da luz. Notou o chapéu de abas mais largas, indi­cando um oficial superior do Exército.

¯  Boa noite, camarada engenheiro. Está no grupo de controle dos espelhos, não é? ¯ perguntou Bondarenko.

¯  Já nos encontramos?

¯  Não. ¯ O coronel balançou a cabeça. ¯ Sabe quem eu sou?

¯  Sim, camarada coronel. Bondarenko gesticulou em direção ao céu.

¯  Bonito, não é? Acho que é um consolo para quem está do lado mais distante de lugar nenhum.

¯  Não, camarada coronel. Eu pedi para vir para cá.

¯  Ah, sim? E como ficou sabendo da existência deste lugar? ¯ quis saber o coronel.

¯  Estive aqui na última primavera com o Komsomol. Demos as­sistência aos engenheiros civis nas explosões e nas fundações dos pila­res dos espelhos. Formei-me com especialização em laser e adivinhei o que era a Estrela Brilhante. Não disse a ninguém, é claro ¯ acres­centou Morozov. ¯ Mas sabia que esse era o lugar certo para mim.

Bondarenko olhou para o rapaz com visível aprovação.

¯  Como vai indo o trabalho?

¯  Eu tinha esperança de entrar para o setor de laser, mas o chefe da minha seção conseguiu me recrutar para seu grupo.

¯  Está descontente com isso?

¯  Não... não, por favor, desculpe. Não foi isso que eu quis dizer. Eu não sabia como o grupo dos espelhos era importante. Aprendi mui­to. Agora estamos tentando adaptar o sistema de espelhos a um con­trole mais preciso pelo computador... Talvez eu passe logo a assistente do chefe de seção ¯ declarou Morozov orgulhosamente. ¯ Também tenho familiaridade com sistemas de computação, entende?

¯  Quem é seu chefe de seção? Govorov?

¯  Correto. Um engenheiro de campo brilhante, se me permite a liberdade. Posso fazer uma pergunta?

¯ Certamente.

Estão dizendo que o senhor... é o novo coronel do Exército do qual estão falando, certo? Dizem que pode ser o novo oficial encarredado do projeto. ¯ Talvez haja alguma substância nesses rumores ¯ concedeu Bon-

Então posso fazer uma sugestão, camarada? ¯ pediu Morozov. ¯Certamente. ¯ Existem muitos solteiros por aqui...

¯  E não temos mulheres solteiras em número suficiente?

¯  Existe mesmo uma falta de assistentes de laboratório.

¯Sua observação foi notada, camarada engenheiro ¯ respondeu Bondarenko com uma risada. ¯ Também estamos planejando cons­truir um novo prédio de apartamentos para aliviar a lotação. Que tal o quartel?

¯  A atmosfera é amigável. Os clubes de astronomia e de xadrez

andam bem ativos.

¯  Ah. Já faz muito tempo desde que eu joguei xadrez a sério. Co­mo é a concorrência? ¯ perguntou o coronel.

O homem mais jovem riu.

¯  Massacrante... eu diria até selvagem.

A 5 000 metros dali, o Arqueiro abençoava o nome de seu Deus. A neve caía e os flocos davam ao ar aquela qualidade mágica tão apre­ciada por poetas... e soldados. Podia-se ouvir, podia-se sentir o silên­cio enquanto a neve absorvia todos os sons. Ao redor deles, tanto quanto podiam ver acima e abaixo deles, estendia-se a cortina de neve que reduzia a visibilidade para menos de 200 metros. Ele reuniu os co­mandantes das subunidades e começou a organizar o ataque. Come­çaram a mover-se em poucos minutos. Estavam em formação tática, o Arqueiro com o grupo que liderava a primeira companhia, enquan­to seu segundo em comando ficou com a outra.

Surpreendentemente, a caminhada não era má. Os russos haviam espalhado ali todos os resíduos das explosões e, embora cobertos de neve, os fragmentos de rocha não estavam escorregadios. Isso foi bom, desde que a trilha os levou perigosamente próximos a uma parede ver­tical de pelo menos 100 metros de altura. A orientação mostrava-se difícil. O Arqueiro fazia isso de memória, mas ele passara horas exa­minando o objetivo e conhecia cada curva da montanha ¯ pelo me­nos era o que pensava. As dúvidas vinham agora, como sempre, e precisou de toda a concentração para manter sua mente na missão.

 Havia gravado uma dúzia de pontos de referência em sua memória antes de partirem. Um rochedo aqui, uma depressão ali, o lugar em que o caminho virava para a esquerda, um pouco mais adiante à direi-ta. De início o avanço parecia torturantemente lento, porém, quanto mais se aproximavam do objetivo, mais aumentava o ritmo. Em todos os instantes foram guiados pelo brilho das luzes. Como os russos eram confiantes em manter essas luzes ali, pensou ele. Havia mesmo um veículo se movendo, um ônibus, a julgar pelo ruído, com os faróis ace­sos. Os pequenos pontos de luz moviam-se através do manto branco envolvente. No interior da grande bolha de luz, os que estavam de guar­da ficariam em desvantagem agora. Geralmente os fachos de luz diri­gidos para fora serviam para cegar os intrusos, mas agora o inverso era verdadeiro. Pouco do brilho penetrava na neve, e uma grande par­te era refletida de volta, arruinando a visão noturna dos soldados ar­mados. Finalmente o grupo mais avançado alcançou o último ponto de referência. O Arqueiro parou com seus homens, para que o resto do grupo os alcançasse. Levou meia hora. Seus homens estavam divi­didos em grupos de três ou quatro, e os mudjahidin aproveitaram o tempo para beber um pouco de água e encomendar suas almas a Alá, preparando-se tanto para a batalha quanto para seu possível desfecho. O deles era o credo do guerreiro. Seu inimigo também era o inimigo de seu Deus. O que quer que fizessem para o povo que ofendera Alá seria perdoado, e cada um dos homens do Arqueiro lembrava-se de amigos ou familiares que morreram nas mãos dos russos.

¯  Isso é impressionante ¯ murmurou o major quando chegou.

¯  Alá está conosco, meu amigo ¯ respondeu o Arqueiro.

¯  Deve estar. ¯ Agora encontravam-se a 500 metros do local, e ainda incógnitos. Podemos até sobreviver...

¯  Quanto podemos nos aproximar ainda...

¯  Mais 100 metros. O equipamento de visão noturna que eles possuem pode penetrar uns 400. A torre mais próxima fica a 600 metros naquela direção. ¯ Ele apontou desnecessariamente. O Ar­queiro sabia exatamente onde ficava, e também a outra, 200 metros adiante.

O major verificou seu relógio e pensou por um momento.

¯ A guarda vai mudar dentro de mais uma hora se eles seguirem aqui o mesmo padrão adotado em Kabul. Aqueles em serviço estarão cansados e com frio, e os soldados que chegarem ainda não estarão inteiramente alertas. Esse será o momento.

¯ Boa sorte ¯ disse simplesmente o Arqueiro. Os dois homens se abraçaram.

¯ "Por que deveríamos nos recusar a lutar pela causa de Alá, quando nós e  nossas crianças fomos expulsos de nossos lares?" ¯ Quando eles encontraram Golias e seus guerreiros, disseram: Senhor, enchei nossos corações de coragem. Fazei firmes nossos pés e ajudai-nos contra os infiéis. A citação era do Corão, e nenhum dos homens achou estranho que a passagem se  referisse à batalha dos israelistas contra os filisteus. Davi e Saul foram conhecidos também dos muçulmanos, assim como sua causa. O major sorriu mais uma vez antes de correr e reunir-se com seus homens.

O Arqueiro voltou-se e acenou para seu grupo de lançadores de mísseis. Dois deles levavam seus Stinger e seguiam o líder enquanto ele continuava seu caminho pela montanha. Mais um outeiro e estariam olhando para as torres de vigia embaixo. Ele ficou surpreso que pu­desse na verdade avistar as três daquele local, e um terceiro míssil foi trazido. O Arqueiro deu suas instruções e deixou os homens para mntar-se ao grupo principal. Sobre o outeiro, as unidades de aquisi­ção de alvo cantavam sua canção mortal para cada lançador. As torres eram aquecidas ¯ e os Stinger eram guiados apenas por calor.

A seguir o Arqueiro ordenou que seu grupo de morteiros se aproxi­masse ¯ mais perto do que teria preferido, mas a visibilidade reduzi­da não estava apenas do lado dos mudjahidin. Observou a companhia do major deslizar para a esquerda, desaparecendo na neve. Eles ataca­riam as instalações do laser propriamente ditas, enquanto ele e seus oitenta homens iriam se dirigir para o local onde morava a maioria das pessoas. Agora era a vez deles. O Arqueiro liderou-os à frente tan­to quanto podia ousar, chegando ao limite de onde os holofotes pene­travam na neve. Foi recompensado com a visão de uma sentinela, encolhido pelo frio, deixando seu hálito uma série de pequenas nu­vens brancas que eram levadas pelo vento. Mais dez minutos. O Ar­queiro apanhou seu rádio. Tinham apenas quatro aparelhos, e ele não ousara fazer uso deles até agora, por medo de ser descoberto pelos russos.

Nunca deveríamos ter dispensado os cães, pensou Bondarenko. A pri­meira coisa que farei, quando me estabelecer aqui, é trazer os cães de volta. Ele estava caminhando ao redor do campo, apreciando o frio e a neve, valendo-se da atmosfera calma para ordenar os pensamentos. Ha­via coisas que precisavam de mudanças por aqui. Eles necessitavam de um soldado de verdade. O general Pokryshkin era muito confiante no esquema de segurança, e os soldados da KGB, muito relaxados.

Por exemplo, não mantinham patrulhas noturnas do lado de fora. Muito perigoso fazer isso num terreno assim, dizia o comandante; as patrulhas diurnas podem detectar qualquer um que se aproxime, os guardas da torre possuem visores noturnos, e o restante da área é iluminado com luz fluorescente. Mas dispositivos amplificadores de luz tinham a eficácia reduzida à metade com esse tipo de tempo.

E se houvesse um grupo de afegães esperando, agora mesmo?, ima­ginou ele. A primeira coisa, refletiu, é chamar o coronel Nikolayev no quartel-general dos Spetznaz, e eu mesmo vou encomendar um exercício de assalto a esse lugar para mostrar aos idiotas da KGB como são vulne­ráveis. Ele olhou para o alto da colina. Havia uma sentinela da KGB batendo os braços para manter-se aquecido, o fuzil pendurado ao om­bro ¯ demoraria quatro segundos para retirá-lo, apontá-lo e baixar a trava de segurança. Quatro segundos, e os últimos três o encontrariam morto se houvesse alguém competente emboscado agora... Bem, disse a si mesmo, o comandante de qualquer posto desses precisa ser um fi­lho da puta impiedoso, e, se estes chekistas querem brincar de solda­dos, é melhor começarem a agir como soldados. O coronel voltou-se para retornar ao bloco de apartamentos.

O carro de Gerasimov parou à frente da entrada administrativa do Presídio Lefortovo. Seu motorista ficou no carro enquanto o guarda-costas o acompanhou. O diretor-geral da KGB mostrou sua identifi­cação ao guarda e entrou sem diminuir o passo. A KGB era cuidadosa com segurança, mas todos conheciam bem o rosto do diretor-geral, e ainda melhor o poder que ele representava. Gerasimov virou à es­querda e dirigiu-se aos escritórios. O superintendente da prisão não estava lá, claro, mas um de seus assistentes, sim. Gerasimov encontrou-o preenchendo formulários.

¯  Boa noite. ¯ Os olhos do homem só não saltaram das órbitas por causa dos óculos que usava.

¯  Camarada diretor-geral! Eu não fui...

¯  Não era para ser avisado mesmo.

¯  E como posso...

¯  O prisioneiro Filitov. Preciso dele imediatamente ¯ disse Gera­simov, de mau humor. ¯ Imediatamente ¯ acrescentou, para obter mais efeito.

¯  Neste instante! ¯ O segundo assistente do superintendente sal­tou e correu até a outra sala. Voltou em menos de um minuto. ¯ Vai demorar cinco minutos.

¯  Ele deve estar vestido decentemente ¯ disse Gerasimov.

¯ De  uniforme? ¯ indagou o homem.

¯ Não, seu idiota! ¯ gritou o diretor-geral. ¯ Trajes civis. Ele deve ficar aresentável. Você tem todos os pertences pessoais dele aqui, não devem?

-Sim, camarada diretor-geral, mas...

¯ Não tenho a noite inteira ¯ disse ele, baixinho. Não havia nada mais perigoso do que um diretor-geral da KGB falando baixo. O segundo assistente praticamente voou para fora do aposento. Gerasimov voltou-se para seu guarda-costas, que sorria, divertido. Ninguém gos­tava de carcereiros. ¯ Quanto tempo acha que vai demorar?

¯  Menos de dez minutos, camarada coronel, muito embora ainda tenham que encontrar as roupas. Afinal, aquele rato sabe que mora num lugar maravilhoso. Eu o conheço.

¯  É?

¯  Ele pertencia originalmente ao "Um", mas foi mal em seu pri­meiro trabalho, e desde então tem sido carcereiro. ¯ O guarda-costas verificou seu relógio.

Demorou oito minutos. Filitov apareceu com seu terno quase vesti­do, embora a camisa não estivesse abotoada e a gravata simplesmente passada pelo seu pescoço. O segundo assistente segurava um paletó puído. Filitov nunca fora dado a comprar muitas roupas civis. Como coronel do Exército Vermelho, nunca se sentia confortável sem uni­forme. Os olhos do velho pareceram confusos a princípio, e então ele viu Gerasimov.

¯  O que significa isso? ¯ perguntou ele.

¯  Você vem comigo, Filitov. Abotoe sua camisa. Pelo menos tente parecer um homem!

Misha quase disse alguma coisa, mas optou por ficar calado. O olhar que lançou ao diretor-geral foi suficiente para que o guarda-costas mo­vesse sua mão um centímetro. Abotoou a camisa e fez o laço da grava­ta, que terminou sobre o colarinho porque ele não tinha espelho.

¯  Agora, camarada diretor-geral, se tiver a bondade de assinar aqui...

¯  Vai me dar a custódia de um criminoso assim?

¯  O que...

¯  Algemas, homem! ¯ gritou Gerasimov.

O segundo assistente do superintendente possuía um par em sua es­crivaninha. Ele as apanhou, colocou-as em Filitov, e quase pôs a cha­ve no bolso antes de ver a mão de Gerasimov estendida. ¯ Muito bem. Eu o trarei de volta a você amanhã à noite.

¯  Mas eu preciso que o senhor assine... ¯ O segundo assistem descobriu que falava a um par de costas que se afastava.

¯  Bem, com todo esse pessoal que trabalha para mim ¯ comentou Gerasimov com seu guarda-costas ¯, sempre há alguns...

¯  Sem dúvida, camarada diretor-geral.

O guarda-costas era um homem de 42 anos, completamente em for­ma, um ex-agente de campo perito em todas as formas de combate armado e desarmado. Seu aperto firme transmitiu a Misha todas essas coisas.

¯  Filitov ¯ declarou o diretor-geral por sobre o ombro ¯, nós o estamos levando para uma pequena viagem, um vôo, na verdade. Vo­cê não sofrerá nada. Se se comportar direito, poderemos até permitir uma ou duas refeições. Se não se comportar, Vasily aqui vai fazer com que deseje ter se comportado. Está claro?

¯  Claro, camarada chekista.

O guarda colocou-se em sentido e abriu a porta. As sentinelas do exterior bateram continência e foram recompensadas com acenos de cabeça. O motorista segurava a porta traseira aberta. Gerasimov pa­rou e voltou-se.

¯  Coloque-o atrás, junto comigo, Vasily. Deve fazer cobertura no banco da frente.

¯  Como quiser, camarada.

¯  Sheremetyevo ¯ disse Gerasimov ao motorista. ¯ Para o termi­nal de carga no lado sul da pista.

Lá estava o aeroporto, pensou Ryan. Conteve um arroto que tinha sabor de vinho e sardinhas. A caravana entrou no terreno do aeropor­to, depois realizou uma curva para a direita, evitando a entrada nor­mal do terminal e dirigindo-se para a área de estacionamento dos aviões. A segurança, reparou ele, era muito rígida. Sempre se podia confiar nos russos nesse ponto. Para qualquer lugar que olhasse, via soldados armados com fuzis e trajando uniforme da KGB. O carro dirigiu-se à direita após o terminal principal e passou por um de construção re­cente. Não estava em uso, mas parecia a nave alienígena do filme Con­tatos Imediatos do Terceiro Grau, de Spilberg. Teve vontade de perguntar a alguém por que fora construído, se ainda não estava ativado. Talvez da próxima vez, pensou Ryan.

A despedida formal fora realizada no Ministério das Relações Exte­riores. Alguns oficiais menos graduados se postavam ao pé das esca­das para apertar as mãos, e ninguém parecia ter pressa em deixar o conforto aquecido das limusines. O avanço era relativamente lento.

Seu carro inclinou-se para a frente e estacou. O homem da direita abriu  a porta, enquanto o motorista abria o porta-malas. Ele também não queria sair. Levara quase todo o tempo do percurso para que se sentisse o ar quente dentro do carro.

¯ Espero que tenham apreciado a visita ¯ disse o oficial soviético. Gostaria de voltar e conhecer a cidade no verão ¯ respondeu Jack, enquanto apertava a mão do homem.

¯ Ficaríamos encantados.

Claro que ficariam, pensou Jack ao subir as escadas. Uma vez na aeronave, olhou para a frente. Um oficial russo estava numa poltrona da cabine para auxiliar no controle de tráfego. Seus olhos estavam pou­sados no console de comunicações. Ryan fez um aceno para o piloto e recebeu uma piscadela em resposta.

¯  A dimensão política desse caso é que me assusta ¯ disse Vatu­tin. No número 2 da Praça Dzerzhinsky, ele e Golovko comparavam suas anotações.

¯  Acabaram-se os velhos tempos. Não podem nos fuzilar por se­guirmos os procedimentos e o treinamento.

¯  É mesmo? E se Filitov estivesse sendo "dirigido", com o conhe­cimento do diretor-geral?

¯  Isso é ridículo ¯ comentou Golovko.

¯  Será? E se o trabalho anterior dele com dissidentes o colocou em contato com o Ocidente? Sabemos que ele interveio pessoalmente em muitos casos, principalmente na região do Báltico, mas em outras também.

¯  Está mesmo pensando como um homem do "Dois", agora.

¯  Veja bem: prendemos Filitov e logo depois o diretor-geral se en­contra pessoalmente com o homem da CIA. Isso já aconteceu antes, alguma vez?

¯  Já ouvi histórias sobre Philby, mas... não, ele chegou depois disso.

¯  É uma coincidência infernal ¯ comentou Vatutin, esfregando os olhos. ¯ Eles não treinam a gente para acreditar em coincidências, e...

¯   Tvoyu mat! ¯ exclamou Golovko. Vatutin olhou aborrecido e viu o companheiro girar os olhos nas órbitas. ¯ A última vez que os ame­ricanos estiveram aqui... como pude esquecer disso! Ryan falou com Filitov... eles deram um encontrão, como se fosse acidental, e...

Vatutin levantou o telefone e discou.

¯  Quero falar com o superintendente da noite... E o coronel Vatu­tin. Acorde o prisioneiro Filitov. Quero vê-lo daqui a uma hora... O quê? Quem? Muito bem, obrigado. ¯ O coronel do Segundo Diretório ficou completamente imóvel. ¯ O diretor-geral Gerasimov acabou de retirar Filitov de Lefortovo, quinze minutos atrás. Disse que ia levá-lo numa viagem especial.                                                                               ¯  Onde está seu carro?

¯  Posso pedir...

¯  Não ¯ disse Golovko. ¯ Seu carro particular.

 

Operações Noturnas

Não havia pressa ainda. Enquanto a tripulação da cabine se acomo­dava, o coronel Von Eich percorria a lista de verificações. O VC-137 recebia força elétrica de um caminhão-gerador que também permiti­ria que dessem a partida em seus motores mais facilmente do que com os sistemas internos. Verificou o relógio e esperou que tudo tivesse corrido de acordo com o planejado.

A ré, Ryan passou por seu lugar habitual, bem à frente da cabine de Ernest Allen, e sentou-se na última fileira de assentos da parte tra­seira da aeronave. Era muito parecida com um avião normal de car­reira, embora as poltronas fossem agrupadas cinco a cinco, e esse espaço controlava o acúmulo nas áreas de "visitantes ilustres" mais à frente. Jack escolheu uma poltrona ao lado esquerdo, onde assentos ficavam aos pares, enquanto aproximadamente dez ocupantes entravam e es­colhiam seus lugares o mais na frente possível, para uma viagem mais suave, como preveniu um membro da tripulação. O chefe da equipe da aeronave estaria do outro lado do corredor à sua direita, em vez de ficar no alojamento da tripulação avante. Ryan desejou ter mais um homem para ajudar, mas não podiam parecer muito óbvios. Tinham um oficial soviético a bordo. Aquilo era parte da rotina normal, e evi­tar sua presença teria atraído atenção. Tudo se baseava em que todos deviam estar confortavelmente seguros, sabendo que tudo estava exa­tamente como devia estar.

A frente, o piloto chegou ao final de sua checagem.

¯ Todos a bordo?

¯  Sim, senhor. Pronto para fechar as portas.

¯  Fique de olho na luz indicadora da porta da tripulação. Tem se comportado de um jeito estranho ¯ disse Von Eich ao engenheiro de vôo.

¯  Algum problema? ¯ perguntou o piloto soviético de sua poltro­na. Despressurização súbita é um problema que todo aeronauta leva muito a sério.

¯  Cada vez que verificamos a porta, tudo parece bem. Provavel­mente um interruptor com defeito no painel, mas ainda não achamos o desgraçado. Eu mesmo fui verificar a vedação da porta ¯ assegurou ele ao russo. ¯ O defeito tem de ser elétrico.

¯  Pronto para decolar ¯ anunciou o engenheiro de vôo ao lado.

¯  Certo. ¯ O piloto olhou para certificar-se de que as escadas es­tavam afastadas, enquanto a tripulação colocava os fones. ¯ Tudo certo à esquerda.

¯  Tudo certo à direita ¯ disse o co-piloto.

¯  Ligando motor um.

Botões foram apertados, interruptores acionados, e o motor esquer­do começou a girar as lâminas das turbinas. Os mostradores em vá­rios painéis moveram-se e logo alcançaram os índices normais. O caminhão-gerador retirou-se, para que a aeronave pudesse utilizar sua própria energia elétrica.

¯  Ligando motor quatro ¯ anunciou o piloto a seguir. Passou seu microfone para o sistema de alto-falantes do avião. ¯ Senhoras e se­nhores, aqui é o coronel Von Eich. Estamos ligando os motores e de­vemos começar a manobrar em aproximadamente cinco minutos. Por favor, coloquem os cintos de segurança. Aqueles de vocês que fumam, tentem agüentar mais alguns minutos.

Em sua poltrona na última fila, Ryan teria matado alguém para fu­mar. O chefe da tripulação olhou para ele e sorriu. Ele certamente pa­recia durão o bastante para poder lidar com o assunto, pensou Jack. O chefe primeiro-sargento parecia estar chegando aos 50, mas também parecia alguém que poderia ensinar boas maneiras a um jogador de futebol americano. Usava luvas marrons de trabalho, com as correias de ajuste bem apertadas.

¯  Tudo pronto? ¯ perguntou Jack. Não havia perigo de serem ou­vidos. O barulho dos motores era enorme ali atrás.

¯  Quando quiser, senhor.

¯  Vai saber quando.

¯  Hum ¯ bufou Gerasimov. ¯ Ainda não é aqui.

O terminal de carga estava fechado e escuro, à exceção das luzes da

segurança.

¯Quer que eu faça uma chamada? ¯ perguntou o motorista.

¯ Não há pressa. O que... ¯ Um guarda sinalizou para que paras­sem¯ Já haviam passado por um posto de controle. ¯ Tudo bem, os americanos estão se preparando para partir. Isso deve estar fodendo com tudo.

O guarda veio até a janela do motorista e pediu os passes. O moto­rista apenas acenou para a traseira.

¯  Boa noite, cabo ¯ disse Gerasimov, segurando sua identificação. O jovem ficou em posição de sentido. ¯ Um avião vai chegar aqui para me buscar em poucos minutos. Os americanos devem estar atra­sando as coisas. A força de segurança saiu?

¯  Sim, camarada diretor-geral! Uma companhia inteira.

¯  Já que estamos aqui, por que não fazemos uma rápida inspeção? Quem é seu comandante?

¯  O major Zarudin, cam...

¯  Que diabo está... ¯ Um tenente aproximou-se. Chegou até o cabo antes de ver quem estava no carro.

¯  Tenente, onde está o major Zarudin?

¯  Na torre de controle, camarada diretor-geral. É o melhor lugar para...

¯  Tenho certeza de que é. Chame-o pelo seu rádio e diga que pre­tendo inspecionar a área, depois irei vê-lo para dizer o que acho. Con­tinue ¯ ordenou ele ao motorista. ¯ Tome a direita.

¯  Torre de Sheremetyevo, aqui nove-sete-um pedindo permissão para taxiar até a pista dois-cinco-direita ¯ disse Von Eich em seu mi­crofone.

¯  Nove-sete-um, permissão concedida. Vire à esquerda na pista principal de manobras. O vento está a dois-oito-um, a 40 quilômetros por hora.

¯  Entendido, desligo ¯ disse o piloto. ¯ Muito bem, vamos colo­car este pássaro para voar.

O co-piloto avançou os manches e a aeronave começou a mover-se. No chão em frente a eles, um homem com dois bastões luminosos for­necia instruções desnecessárias ¯ mas os russos sempre partiam do princípio de que todos precisavam receber ordens para saber o que fazer. Von Eich deixou o local de manobras e dirigiu-se para o sul na pista nove, onde dobrou à esquerda. A pequena roda que controlava a engrenagem dirigível do nariz estava endurecida, como sempre, e a aeronave virou devagar, impulsionada pelos motores externos. Ele sempre agia devagar, nesse ponto. Com as pistas tão esburacadas, sem­pre havia a preocupação de danificar alguma coisa. Não queria que isso acontecesse naquela noite. Faltava ainda um quilômetro até a ca­beceira da pista principal número 1, e os trancos e sacolejos podiam ser suficientes para causar enjôos. Finalmente virou à direita na pista número 5.

¯ Os homens parecem alertas ¯ comentou Vasily enquanto atra­vessavam a pista 25 esquerda. O motorista mantinha os faróis desliga­dos e trafegava pela borda da pista. Havia um avião chegando, e tanto o motorista quanto o guarda-costas fixavam o olhar nas luzes. Não vi­ram Gerasimov tirar a chave do bolso e abrir as algemas do atônito prisioneiro Filitov. A seguir o diretor-geral tirou uma pistola automá­tica do interior do casaco.

¯  Merda... tem um carro ali ¯ disse o coronel Von Eich. ¯ Que diabo está um carro fazendo aqui?

¯  Vamos passar ao lado com facilidade ¯ afirmou o co-piloto. ¯ Ele está metade para fora.

¯  Ótimo. ¯ O piloto voltou-se outra vez para a direita até o final da pista. ¯ Merda de motoristas domingueiros!

¯  O senhor não vai gostar nem um pouco disso, coronel ¯ disse o engenheiro de vôo. ¯ A luz da porta traseira está acesa de novo.

¯ Maldita! ¯ imprecou Von Eich pelo microfone. Alterou a regulagem para enviar o som ao sistema de alto-falantes, mas teve de controlar a voz antes de falar.

¯  Chefe de tripulação, verifique a porta traseira.

¯  Aqui vamos nós ¯ disse o sargento. ¯ Ryan retirou o cinto e moveu-se 1 metro enquanto observava o sargento mexendo no trinco da porta.

¯  Temos um curto em algum ponto do circuito ¯ informou o en­genheiro de vôo na cabine à frente. ¯ Acabei de perder as luzes das cabines de ré. O fusível acabou de estourar e não consigo achar outro para substituir.

¯  Talvez seja só um fusível com defeito? ¯ sugeriu o coronel Von Eich.

¯  Posso tentar um de reserva ¯ declarou o engenheiro.

¯  Vá em frente. Vou dizer aos caras lá atrás por que as luzes se apagaram. ¯ Era uma mentira, mas das boas, e com todos afivelados ao assento não era tão fácil assim virar e ver a traseira da cabine.

Onde está o diretor-geral? ¯ perguntou Vatutin ao tenente. Ele está conduzindo uma inspeção. Quem são vocês? Coronel Vatutin, e este é o coronel Golovko. Onde está a porra d0 diretor-geral, seu mocinho idiota? O tenente gaguejou por alguns segundos, depois apontou.

¯Vasily ¯ chamou o diretor-geral. Era uma pena. Seu guarda-costas voltou-se para encarar a ponta de uma pistola. ¯ Sua arma, por favor.

¯  Mas...

¯  Não há tempo para falar. ¯ Ele apanhou a arma e guardou-a no bolso. A seguir, passou as algemas. ¯ Os dois passem as mãos pe­lo volante.

O motorista ficou consternado, mas ambos fizeram como lhes foi ordenado. Vasily fechou uma das algemas em seu pulso esquerdo e passou a mão pelo volante para prender a outra ao motorista. Enquanto ele fazia isso, Gerasimov retirou o receptor de seu rádio e colocou-o no bolso.

¯  As chaves? ¯ perguntou Gerasimov. O motorista passou-as com sua mão esquerda livre. O mais próximo guarda uniformizado estava a uma centena de metros de distância. O avião se encontrava a apenas 20 metros. O diretor-geral da Comissão para a Segurança do Estado abriu ele mesmo a porta. Há meses não fazia aquilo. ¯ Coronel Fili­tov, quer vir comigo, por favor?

Misha ficou tão surpreso quanto todos os outros, mas fez como lhe foi pedido. À vista de todos no aeroporto ¯ pelo menos daqueles pou­cos que se incomodavam em observar as rotinas ¯, Gerasimov e Fili­tov caminharam em direção à cauda vermelha, branca e azul. Como por encanto, a porta traseira se abriu.

¯  Vamos depressa, pessoal. ¯ Ryan atirou uma escada de corda.

As pernas de Filitov o traíram. O vento e o escapamento das turbi­nas fizeram a escada flutuar como bandeira na brisa, e ele não conse­guia colocar os dois pés nela, a despeito da ajuda de Gerasimov.

¯  Meu Deus, olhe lá! ¯ Golovko apontou. ¯ Vamos! Vatutin não disse nada". Acelerou o carro e ligou os faróis altos.

¯  Encrenca ¯ avisou o chefe da tripulação quando viu o carro. Havia um homem armado de fuzil correndo nessa direção também. ¯ Venha logo, tio ¯ gritou ele, incentivando o Cardeal do Kremlin.

¯  Merda! ¯ Ryan empurrou o sargento de lado e saltou para o chão.

Era muito alto, e ele não aterrissou bem, torcendo o tornozelo e ras­gando a calça no joelho esquerdo. Jack desprezou a dor e ficou em pé. Apanhou um dos ombros de Filitov enquanto Gerasimov apoiou o outro, e juntos eles o colocaram alto o suficiente na escada para que o sargento na porta o içasse a bordo. Gerasimov subiu a seguir, com a ajuda de Ryan. Depois foi a vez de Jack ¯ mas ele teve o mesmo problema de Filitov. Seu joelho esquerdo já estava endurecido, e, quan­do ele tentou apoiar-se no tornozelo torcido, a perna direita simples­mente recusou-se a mexer. Xingou alto, suficiente para ser ouvido acima do som das turbinas, e tentou subir apenas com as mãos, mas perdeu o apoio e caiu no pavimento.

¯  Stoi, stoi! ¯ berrou alguém armado a 3 metros de distância. Jack olhou para cima, na direção da porta do avião.

¯   Vão embora! ¯ ele gritou. ¯ Feche a porra da porta e vão embora!

O chefe da tripulação fez exatamente isso, sem um momento de he­sitação. Ele se esticou para puxar a porta, e Jack a observou encaixar-se em questão de segundos. No interior, o sargento levantou o interfo­ne e disse ao piloto que a porta estava adequadamente selada.

¯  Torre, aqui nove-sete-um, partindo agora. Desligo. ¯ O piloto avançou os manches até a potência de largada.

A força de exaustão dos motores derrubou os quatro homens ¯ o soldado com o fuzil havia acabado de chegar à cena também ¯ para fora da pista gelada. Jack observou deitado de barriga, enquanto a luz, vermelha no topo do leme superior da aeronave diminuía na distân­cia, depois se elevava. Sua última visão foi o brilho dos dispositivos de infravermelho que protegiam o VC-137 contra mísseis terra-ar. Ele estava quase começando a gargalhar, quando foi virado e viu uma pis­tola contra seu rosto.

¯  Olá, Sergey ¯ disse Ryan ao coronel Golovko.

¯  Prontos ¯ disse uma voz pelo radiotransmissor ao Arqueiro. Ele levantou uma pistola sinalizadora e disparou um único foguete de ilu­minação de estrela simples, que detonou diretamente sobre um dos alvos.

Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Para a esquerda, três mísseis Stin­ger foram lançados depois de uma longa e monótona espera. Cada um deles atingiu uma torre de vigia ¯ ou, mais precisamente, os aquece­dores elétricos no interior delas. Os pares de sentinelas em cada torre tiveram tempo apenas de ver e surpreender-se com o foguete sinaliza­dor por sobre a região central das instalações, e apenas um dos seis viu um risco amarelo que se aproximava, rápido demais para permitir qualquer reação. Os três mísseis acertaram o alvo ¯ era difícil errar um alvo  estacionário ¯ e em cada caso a ogiva de 2, 700 quilos funcio­nou de acordo com o previsto. Menos de cinco segundos depois do primeiro tiro ser disparado, as torres haviam sido eliminadas, e com elas as metralhadoras que protegiam as instalações do laser.

A sentinela em frente ao Arqueiro morreu a seguir. Não teve ne­nhuma chance. Quarenta fuzis dispararam sobre ele ao mesmo tem­po, com metade dos projéteis acertando o alvo. Depois, os morteiros começaram a disparar tiros exploratórios, e o Arqueiro usou seu rádio para corrigir os disparos na direção do que ele acreditava serem as bar­racas dos guardas.

O som dos disparos de armas automáticas não pode ser confundido com mais nada. O coronel Bondarenko acabara de decidir que já pas­sara muito tempo comungando com a natureza bela mas fria, e volta­va a seus alojamentos quando o barulho fez com que estacasse. O primeiro pensamento foi de que um dos guardas da KGB tivesse des­carregado acidentalmente sua arma, porém essa impressão durou me­nos de um segundo. Ouviu um crec acima da cabeça e olhou para o alto a tempo de ver o foguete luminoso, então ouviu as explosões para o lado das instalações do laser, e, como se um interruptor fosse ligado, ele mudou de um homem surpreso para um bem treinado soldado pro­fissional sob ataque. O quartel da KGB estava a 200 metros à sua di­reita, e ele correu para lá o mais rápido possível.

Viu cargas de morteiro caindo sobre a nova casa de máquinas atrás do quartel. Homens tropeçavam porta afora quando ele chegou, e te­ve de levantar os braços para que não atirassem nele.

¯  Sou o coronel Bondarenko! Onde está seu oficial comandante?

¯  Aqui! ¯ Um tenente saiu. ¯ O que...

Alguém aprendera com o próprio erro. O morteiro seguinte atingiu a parte traseira das instalações.

¯  Sigam-me! ¯ gritou Bondarenko, levando-os para longe do alvo mais óbvio em vista. Ao redor deles matraqueava o fogo mortal dos fuzis... fuzis soviéticos... e o coronel notou imediatamente que não podiam valer-se do som para diferenciar os inimigos. Maravilhosol ¯ Em formação!

¯  O que...

¯  Estamos sob ataque, tenente! Quantos homens possui?

Ele voltou-se e contou. Bondarenko fez o mesmo, ainda mais rápi­do. Havia quarenta e um, todos com fuzis de assalto, mas nenhuma arma pesada e nenhum rádio. Podia ficar sem as metralhadoras, mas os radiotransmissores eram vitais.

Os cães, disse tolamente a si mesmo, eles deviam ter conservado os cães...

A situação tática parecia ruim, e ele sabia que só tendia a piorar. Uma série de explosões sacudiu a noite.

¯  O laser, nós precisamos... ¯ começou o tenente, mas Bonda­renko colocou a mão em seu ombro.

¯  Podemos reconstruir as máquinas ¯ argumentou Bondarenko com urgência. ¯ Mas não podemos reconstruir os cientistas. Vamos até o prédio de apartamentos e defender aquilo até sermos rendidos. Mande um bom sargento até o alojamento dos solteiros, e levem-nos para os apartamentos.

¯  Não, camarada coronel! Minhas ordens são para proteger o la­ser. Eu preciso...

¯  Estou ordenando que retire seus homens...

¯  Não! ¯ gritou em resposta o tenente.

Bondarenko jogou-o ao chão, tirou seu fuzil, abriu a trava e dispa­rou dois tiros no peito do homem. Depois voltou-se.

¯  Quem é o primeiro-sargento?

¯  Sou eu, coronel ¯ balbuciou um jovem.

¯  Eu sou o coronel Bondarenko, e estou no comando! ¯ anunciou o oficial, com a força de uma ordem divina. ¯ Leve quatro homens com você, vá até o quartel dos solteiros e leve todos para o bloco de apartamentos. ¯ O sargento apontou para quatro outros e saiu cor­rendo. ¯ O resto de vocês, venham comigo!

Ele os liderou em meio à neve que caía. Não houve tempo para que ele ou os homens vissem o que os aguardava. Antes que tivessem an­dado 10 metros, todas as luzes no campo se apagaram.

No portão da construção que abrigava o laser havia um jipe GAZ, com uma metralhadora pesada. O general Pokryshkin saiu correndo do prédio do controle, quando ouviu as explosões, e ficou perplexo ao ver apenas restos queimados remanescentes das três torres de vi­gia. O comandante do destacamento da KGB chegou correndo até ele.

¯  Estamos sob ataque ¯ anunciou desnecessariamente o oficial.

¯  Reúna seus homens... bem aqui. ¯ Pokryshkin olhou para ci­ma, vendo homens a correr. Estavam vestidos com uniformes soviéti­cos, mas de alguma maneira ele sabia que não eram russos. O general subiu na traseira de seu jipe e girou a metralhadora por sobre a cabe­ça do atônito oficial da KGB. A primeira vez que pressionou o gatilho não aconteceu nada, e ele precisou introduzir um carregador na câ­mara. Da segunda vez, Pokryshkin teve a satisfação de ver três homens caírem. O comandante da guarda não precisou de mais encorajamento. Gritou algumas ordens em seu rádio. A batalha em curso degenerou em confusão, como era previsto ¯ ambos os lados usavam uniformes e armas idênticos. Porém havia mais afegães do que russos.

Morozov e vários companheiros solteiros haviam saído do alojamento quando começou o tiroteio. A maioria deles contava com experiência militar, embora ele mesmo não a tivesse. Não importava, pois ninguém tinha a menor idéia sobre o que deveria ser feito. Cinco homens vie­ram correndo da escuridão. Estavam usando uniformes e portando fuzis.

¯  Venham! Todos vocês, sigam a gente. ¯ Mais armas começaram a disparar e dois soldados da KGB caíram, um morto e um ferido. Ele disparou em resposta, esvaziando o carregador numa única e lon­ga rajada. Houve um grito no escuro, seguido por outros. Morozov correu para o interior e chamou as pessoas para a porta. Os engenhei­ros não precisaram de muitos avisos.

¯  Para cima da colina ¯ indicou o sargento. ¯ Para os prédios de apartamentos. O mais rápido que puderem!

Os quatro soldados da KGB dirigiam os homens, procurando alvos ao redor, mas enxergando apenas o fogo dos disparos. Balas voavam por todos os lados agora. Outro dos soldados caiu, gritando suas últi­mas palavras, mas o sargento conseguiu acertar o homem que o tinha matado. Quando o último engenheiro deixou o barracão, ele e um sol­dado apanharam os fuzis que estavam sobrando e ajudaram seus ca­maradas a subirem a colina.

Era uma missão grande demais para oitenta homens, compreendeu o Arqueiro muito tarde. Vasta área a cobrir e muitos edifícios, mas havia infiéis correndo e por isso trouxera seus homens ali. Observou um deles explodir um ônibus com um projétil RPG-7 antitanque. Ir­rompeu em chamas "e derrapou para fora da estrada, rolando pela en­costa da montanha enquanto os que estavam no interior gritavam. Grupos de homens com explosivos entraram nas construções. Encon­traram ferramentas banhadas em óleo e instalaram as cargas com ra­pidez, correndo para fora antes que as explosões originassem os incêndios. O Arqueiro percebera um minuto além da conta qual das construções era o alojamento dos guardas, e agora estava em chamas enquanto ele trazia seus homens para liquidar os que habitavam aqui Estava atrasado, mas ainda não sabia. Uma carga perdida de morteiro arrebentara o cabo de força que conduzia toda a energia que ilumina­va o local, e todos os seus homens perderam a visão noturna, ofusca­dos pelo lampejo dos disparos das próprias armas.

¯ Muito bem, sargento! ¯ disse Bondarenko ao rapaz. Ele já or­denara que os engenheiros subissem. ¯ Vamos ocupar o terreno em volta do prédio. Eles podem nos forçar a uma retirada. Se isso aconte­cer, resistimos no primeiro andar. As paredes são de concreto. Os. RPG podem nos ferir, mas o telhado e as paredes nos protegerão das balas. Escolha um dos homens para ir lá dentro procurar gente com expe­riência militar. Dê a eles esses dois fuzis. Sempre que alguém for aba­tido, recuperem a arma e dêem a alguém que saiba usá-la. Vou entrar por um instante para ver se consigo fazer algum telefone funcionar...

¯  Existe um radiotelefone no escritório do primeiro andar ¯ disse o sargento. ¯ Todos os prédios têm um.

¯  Ótimo! Proteja a área, sargento. Volto em dois minutos.

Bondarenko correu para o interior. O radiotelefone estava pendura­do num gancho da parede, e ele ficou aliviado em constatar que era do tipo militar, usando a energia de uma bateria própria. O coronel colocou-o no ombro e correu de volta para fora.

Os atacantes ¯ quem seriam?, perguntou-se ele ¯ haviam planeja­do mal seu ataque. Primeiro falharam em identificar o quartel da KGB antes de desfecharem o assalto; em segundo lugar não haviam atingi­do a área residencial tão rápido quanto deveriam. Estavam se aproxi­mando agora, mas encontraram uma linha de Guardas da Fronteira deitados na neve. Bondarenko sabia que eram apenas soldados da KGB, mas haviam recebido treinamento básico, e a maioria deles sabia que não havia para onde correr. Observou também que o jovem sargento era bom. Movia-se de um ponto a outro pela área defendida, sem usar sua arma, mas encorajando os homens e dizendo-lhes o que fazer. O coronel ativou o rádio.

¯  Aqui é o coronel G. I. Bondarenko no projeto Estrela Brilhante. Estamos sob ataque. Repito, Estrela Brilhante está sendo atacado. Al­guma unidade dessa rede responda imediatamente. Câmbio.

¯  Gennady, aqui é Pokryshkin no prédio do laser. Estamos na sala de controle. Qual é sua situação?

¯  Estou nos apartamentos. Tenho aqui todos os civis que pude en­contrar lá dentro. Conto com quarenta homens, e vamos tentar prote­ger o local. E quanto à ajuda?

¯  Estou tentando. Gennady, não podemos ajudar daqui. Pode

agüentar?

¯  Me pergunte daqui a vinte minutos.

¯  Proteja meu pessoal, coronel! Proteja minha gente! ¯ gritou Pokrvshkin ao telefone.

¯Com a própria vida, camarada general. Desligo. ¯ Bondarenko manteve o rádio em suas costas e brandiu o fuzil. ¯ Sargento!

¯  Aqui, coronel! ¯ O jovem apareceu. ¯ Estão preparando ago­ra, ainda não lançaram o ataque.

¯  Procurando pontos fracos! ¯ Bondarenko voltou a ficar de joe­lhos. O ar parecia vivo com os projéteis, mas o fogo ainda não estava concentrado. Acima e atrás dos dois, janelas se despedaçavam. As ba­las atingiam as seções de concreto pré-moldado das paredes, espirrando estilhaços em todos os que estavam no exterior. ¯ Fique no canto opos­to a este. Vai defender as paredes norte e leste. Eu fico com essas duas. Diga a seus homens para atirarem apenas quando tiverem alvos...

¯  Já foi feito, coronel.

¯  Ótimo! ¯ Bondarenko deu um tapa no ombro do jovem. ¯ Não recue até que seja obrigado a fazê-lo, mas me avise. As pessoas nesse edifício são insubstituíveis. Precisam sobreviver. Agora vá! ¯ O coro­nel observou o sargento partir. Talvez a KGB treinasse bem alguns de seus homens, afinal de contas. Correu para o seu canto da cons­trução.

Ele agora tinha vinte ¯ não, contou dezoito homens. A roupa ca­muflada tornava difícil distingui-los. Ele correu de um homem a ou­tro, as costas curvadas sob o peso do rádio, espaçando-os e dizendo para que economizassem munição. Estava terminando de compor a linha do lado oeste quando ouviu vozes na escuridão.

¯  Lá vêm eles! ¯ gritou um soldado.

¯  Não disparem! ¯ berrou o coronel.

Vultos a correr apareceram como que por encanto. Num momento o cenário estava vazio de tudo, menos da neve que caía; no seguinte, uma linha de homens disparava fuzis de assalto Kalashnikov à altura da cintura. Ele os deixou chegar até 50 metros.

¯  Fogo!

Viu dez tombarem mo primeiro instante. O restante hesitou e pa­rou, depois caiu, deixando mais dois corpos atrás. Ouviram novos disparos do outro lado do prédio. Bondarenko imaginou se o sar­gento conseguira resistir, mas aquilo não estava mais em suas mãos. Alguns gritos por perto informaram-no de que seus homens haviam sofrido baixas também. Ao verificar a linha de combatentes, descobriu que um deles não havia feito barulho nenhum. Estava reduzido a quinze homens.

A subida foi rotineira, pensou o coronel Von Eich. Um pouco atrás dele, o russo em sua poltrona deu um olhar informal para o painel.

¯  Como vai a parte elétrica? ¯ perguntou o piloto, com irri­tação.

¯  Nenhum problema com o motor nem com a parte hidráulica. Parece ser no sistema de iluminação ¯ respondeu o engenheiro, des­ligando as luzes anticolisão da cauda e da ponta das asas.

¯  Bem... ¯ As luzes da cabine de comando estavam acesas, e não havia iluminação adicional para a tripulação de vôo. ¯ Podemos con­sertar quando chegarmos a Shannon.

¯  Coronel. ¯ Era a voz do chefe da equipe nos fones do piloto.

¯  Prossiga ¯ disse o engenheiro, certificando-se de que o fone do russo não estava no mesmo canal.

¯  Continue, sargento.

¯  Nós temos dois... nossos dois novos passageiros, senhor, mas o senhor Ryan... ficou para trás, coronel.

¯  Repita isso ¯ pediu Von Eich.

¯  Ele disse para irmos embora, senhor. Dois sujeitos armados, se­nhor, eles... Mas insistiu para irmos embora ¯ repetiu o homem.

Von Eich deixou escapar um suspiro.

¯  Certo. Como estão as coisas aí atrás?

¯  Estou com eles na última fileira, senhor. Acho que ninguém per­cebeu, com o barulho do motor e tudo o mais.

¯  Mantenha as coisas assim.

¯  Sim, senhor. Freddie está mantendo o resto dos passageiros na frente. A latrina da traseira quebrou, senhor.

¯ Que pena ¯ observou o piloto. ¯ Diga aos passageiros para ir ao banheiro da frente, se precisarem.

¯  Certo, coronel.

¯  Setenta e cinco minutos ¯ avisou o navegador. Meu Deus, Ryan, pensou o piloto. Espero que goste dai...

¯  Eu devia matar você aqui e agora! ¯ disse Golovko. Estavam no carro do diretor-geral. Ryan encontrava-se frente a quatro

irados agentes da KGB. O mais bravo parecia ser o homem no assento direito dianteiro. O guarda-costas de Gerasimov, pensou Jack, o que tra­balhava sempre próximo a ele. Parecia ser do tipo atlético, e Ryan ficou contente por existir um encosto de assento separando-os. Tinha um problema mais imediato. Olhou para Golovko e imaginou que talvez fosse uma boa idéia acalmá-lo um pouco.

¯ Sergey, isso provocaria um incidente internacional que você nem consegue imaginar ¯ falou calmamente Jack.

As conversas que escutou a seguir foram todas em russo. Não podia entender o que estavam dizendo, mas o conteúdo emocional era sufi­cientemente claro. Não sabiam o que fazer com ele. Isso convinha per­feitamente a Ryan.

Clark caminhava ao longo de uma rua a três quarteirões da orla ma­rítima quando os viu. Eram llh45. Estavam exatamente no horário, graças a Deus. Esta parte da cidade possuía restaurantes e, embora ele mal conseguisse acreditar, algumas discotecas. Estavam saindo de uma delas quando os avistou. Duas mulheres, vestidas como lhe fora dito, com um companheiro: o guarda-costas. Apenas um, também de acordo com as ordens. Era uma surpresa agradável que tudo estivesse correndo de acordo com o plano. Clark contou mais de uma dúzia de pessoas na calçada, algumas em grupos ruidosos, outras em casais sossegados, muitas cambaleando pelo excesso de bebida. Mas era sexta-feira à noite, e isso era o que as pessoas faziam pelo mundo todo nas noites de sexta. Manteve contato visual com as três pessoas que o inte­ressavam e aproximou-se.

O guarda-costas era um profissional. Ficava à direita e à frente de­las, mantendo livre a mão que utilizava a arma e pronto a voltar a ca­beça em todas as direções. Clark ajustou o cachecol em volta do pescoço, depois colocou a mão no bolso, A pistola estava lá, e ele au­mentou o ritmo das passadas para alcançá-los. Não foi difícil. As duas mulheres não pareciam estar com pressa ao se aproximarem da esqui­na. A mais velha parecia estar passeando pela cidade, de prédios só aparentemente antigos. A Segunda Guerra Mundial passara por Talin em duas ondas devastadoras, deixando atrás nada além de pedras calcinadas. Mas quem quer que tenha sido o responsável por essa de­cisão optou por reconstruir a cidade da maneira como ela existira, e ela agora tinha um clima diferente de todas as outras cidades russas que Clark visitara antes. Fez com que se lembrasse da Alemanha de alguma forma, embora não conseguisse descobrir por quê. Esse foi seu último pensamento frívolo da noite. Estava agora 10 metros atrás deles, apenas mais um homem caminhando para casa numa noite fria de fevereiro, a cabeça abaixada para evitar o vento e um gorro de pele enfiado na cabeça. Podia ouvir suas vozes agora, e estavam falando em russo. Era hora.

¯  Russkiy  ¯ disse Clark, com sotaque de Moscou. ¯ Quer dizer que nem todos nessa cidade são uns bálticos arrogantes?

¯  Esta é uma cidade antiga e encantadora, camarada ¯ respondeu a mulher mais velha. ¯ Demonstre algum respeito.

Lá vamos nós..., disse Clark a si mesmo. Caminhou para a frente com os passos incertos de um bêbado.

¯  Me desculpe, adorável senhora. Tenha uma boa noite ¯ disse ele ao passar. Moveu-se ao redor da mulher e deu um encontrão no guarda-costas. ¯ Desculpe, camarada... ¯ O homem descobriu que havia uma pistola apontada para seu rosto. ¯ Virem à esquerda e en­trem no beco. Mantenha as mãos onde eu possa vê-las, camarada.

O choque na expressão do pobre-diabo foi muito divertido, pensou Clark, lembrando a si mesmo que esse era um homem treinado com uma arma no bolso. Agarrou a parte de trás do colarinho e manteve-o à distância de um braço, com sua arma firmemente apontada.

¯  Mãe... ¯ disse Katryn alarmada.

¯  Apresse-se e faça exatamente o que eu disser. Obedeça a esse homem.

¯  Mas...

¯  Contra a parede ¯ disse Clark ao homem.

Manteve a arma apontada para o centro da cabeça do guarda-costas enquanto a mudava de mão, depois aplicou um golpe forte no lado do pescoço com a mão direita. O homem caiu sem sentidos e Clark colocou-lhe algemas nos pulsos. A seguir amordaçou-o, amarrou seus tornozelos e arrastou-o para o canto mais escuro que conseguiu en­contrar.

¯  Senhoras, poderiam vir comigo, por favor?

¯  O que significa isso? ¯ perguntou Katryn.

¯  Não sei ¯ admitiu a mãe. ¯ Seu pai me disse para...

¯  Senhorita, seu pai resolveu visitar a América, e ele quer que vo­cê e sua mãe se reúnam a ele ¯ explicou Clark, em russo perfeito.

Katryn não respondeu. A luz no beco era pouca, mas ele conseguiu ver que o rosto dela havia perdido toda a cor. Sua mãe estava um pou­co melhor.

¯  Mas... ¯ disse finalmente a garota. ¯ Mas isso é traição. Não acredito.

¯  Ele me disse... ele me disse para fazer tudo o que esse homem ordenasse ¯ afirmou Maria. ¯ Katryn, precisamos...

¯  Mas...

¯  Katryn ¯ começou a mãe ¯, o que vai acontecer à sua vida se seu pai fugir e você ficar para trás? O que vai acontecer com seus amigos? O que vai acontecer a você? Vão tentar usá-la para trazer seu pai de volta, e fariam qualquer coisa, Katusha...

¯É hora de ir, pessoal. ¯ Clark tomou o braço das duas.

¯ Mas... ¯ Katryn gesticulou em direção ao guarda-costas.

¯Ele vai ficar bom. Nós não matamos pessoas. É muito ruim para os negócios. ¯ Clark as levou de volta à rua, virando à esquerda em direção ao porto.

O major dividira seus homens em dois grupos. O menor estava co­locando cargas explosivas em quase tudo o que conseguia encontrar. Um poste de iluminação ou um emissor laser, não importava. O gru­po maior havia derrubado grande parte dos soldados da KGB que ten­taram se aproximar de sua posição, ao redor da casamata de controle. Não uma casamata verdadeira, mas quem quer que tenha feito os pla­nos de construção evidentemente pensara que a sala de controle deve­ria ter o mesmo tipo de proteção do Cosmódromo Leninsk, ou talvez tenha considerado que a montanha poderia ser objeto de um ataque aéreo nuclear. O mais certo é que alguém decidira que o manual reco­mendava esse tipo de estrutura para esse tipo de lugar. O resultado fora uma construção sólida de concreto, com paredes de 1 metro de espessura. Os guerrilheiros mataram o comandante da KGB, toma­ram seu veículo com a metralhadora pesada, e estavam atirando atra­vés das seteiras na estrutura. Na verdade, ninguém as utilizava para observação, e os projéteis tinham há muito despedaçado o vidro gros­so e estavam atingindo os computadores e equipamentos de controle na sala.

No interior, o general Pokryshkin havia assumido naturalmente o comando. Tinha cerca de trinta soldados da KGB com ele, providos apenas de armas leves e da pouca munição que carregavam quando o ataque começara. Um tenente coordenava a defesa o melhor que po­dia, enquanto o general tentava obter ajuda pelo rádio.

¯  Vai levar uma hora ¯ dizia um comandante de regimento. ¯ Meus homens estão partindo agora!

¯  O mais rápido que puder! ¯ pediu Pokryshkin. ¯ As pessoas estão morrendo por aqui.

Já pensara em helicópteros, mas com aquele tempo não consegui­riam fazer nada. Um ataque de helicópteros não apenas seria arrisca­do, era simplesmente suicídio. Ele abandonou o rádio e sacou a pistola automática de serviço. Podia ouvir o barulho do lado de fora. Esta­vam explodindo todo o equipamento do local. Era capaz de viver com essa idéia agora. Por maior que fosse a catástrofe, as pessoas eram mais importantes. Quase um terço de seus engenheiros estava na casamata Terminavam uma conferência quando o ataque começara. Não fosse assim, haveria menos gente no interior, contudo muitos estariam no lado de fora trabalhando com o equipamento. Pelo menos aqui tinham uma chance.

Do outro lado das paredes de concreto, o major ainda tentava resol­ver a situação. Nunca esperara encontrar aqui esse tipo de estrutura Seus foguetes RPG antitanque meramente arranhavam a parede, e apontá-los para as estreitas aberturas era muito difícil na escuridão. A carga da metralhadora podia ser apontada com mais facilidade em virtude das balas traçadoras, que deixavam um rastro luminoso, mas aquilo não era o bastante.

Encontre os pontos fracos, disse a si mesmo. Fique calmo e pense. Or­denou a seus homens que mantivessem uma barragem contínua de fogo e começou a dar a volta ao redor da construção. Quem quer que estivesse no interior, tinha as armas igualmente dispersas, mas cons­truções como essas possuíam pelo menos um ponto vulnerável. O major só precisava encontrá-lo.

¯  O que está acontecendo? ¯ guinchou o rádio.

¯  Matamos talvez uns cinqüenta. O resto ficou numa casamata e estamos tentando chegar até eles também. E o seu objetivo?

¯  O prédio de apartamentos ¯ respondeu o Arqueiro. ¯ Estamos todos aqui e... ¯ O rádio transmitiu o som de disparos. ¯ Vamos pegá-los logo.

¯  Trinta minutos e precisamos partir, meu amigo ¯ lembrou o major.

¯  Sim. ¯ O rádio ficou silencioso.

O Arqueiro era um bom homem, e corajoso, pensou o major, enquanto examinava a face norte da casamata, mas com apenas uma semana de treinamento formal ele seria muito mais eficiente... apenas uma se­mana para sistematizar as coisas que aprendia sozinho... e passar adian­te as lições que outros deram sangue para...

Lá estava o lugar. Havia mesmo um ponto vulnerável.

As últimas cargas de morteiro estavam sendo disparadas no teto do prédio de apartamentos. Bondarenko sorriu ao observar. Finalmente eles faziam algo verdadeiramente cretino. Os projéteis de 82 milíme­tros não tinham a menor chance de arrebentar as placas de concreto, mas, se fossem detonados pela periferia do prédio, ele perderia mui­tos homens. Estava reduzido a dez, dois deles feridos. O fuzis dos que foram abatidos já se achavam no interior do prédio, sendo disparados do andar. Contou vinte corpos além da área defendida, e os atacantes  ¯eram afegães, agora tinha certeza ¯ perambulavam fora de seu campo de visão, tentando decidir o que fazer. Pela primeira vez Bodarenko sentiu que no fim poderia sobreviver. O general chamara pelo rádio para avisar que um regimento motorizado estava a caminho pela estrada de Nurek e, embora ele tremesse ao imaginar como seria dirigir os transportadores BTR de infantaria sobre as es­tradas cobertas de neve nas montanhas, a perda de alguns esquadrões de infantaria não era nada comparada à mão-de-obra especializada que ele tentava proteger agora.

O fogo dos fuzis tornou-se esporádico, apenas disparos explorató­rios enquanto decidia o que fazer a seguir. Se tivesse mais pessoal, tentaria agora um contra-ataque apenas para confundi-los, porém o coronel estava preso a seu posto. Ele não podia arriscar, não com ape­nas um esquadrão para cobrir os dois flancos do prédio.

Faço agora a retirada? Quanto mais tempo ficarem longe da constru­ção, melhor, mas devo fazer agora a retirada? Seus pensamentos vaga­vam, avaliando a situação. No interior do prédio seus soldados teriam muito mais proteção, porém ele perderia a capacidade de controlá-los, já que estariam separados pelas paredes internas. Se fossem para den­tro e se retirassem ocupando os andares superiores, dariam chance aos sapadores afegães para derrubar o prédio com cargas explosivas. Tal­vez não... Reprimindo o desespero, Bondarenko ouvia tiros esparsos que se alternavam com o grito dos feridos, e não conseguia decidir-se.

A 200 metros de distância, o Arqueiro estava a ponto de fazer aquilo pelo soviético. Julgando erradamente as baixas que tinha sofrido como indício de que aquele lado do prédio estava mais bem defendido, ele li­derava o que restara de seus homens para o outro flanco. Precisou de cinco minutos para fazê-lo, enquanto os guerrilheiros que deixou para trás despejavam fogo contínuo na área. Sem cargas de morteiro e sem projéteis RPG, a única coisa que restara foram algumas granadas e seis cargas explosivas satchel. Ao redor dele o fogo ardia na noite, em chamas rubras que se elevavam, separadas, tentando derreter a neve que caía. Ouviu os gemidos dos próprios feridos enquanto alinhava os cinqüenta homens que lhe restaram. Atacariam em massa, atrás do líder que os trouxera até ah. O Arqueiro acionou a trava de segurança de seu AK-47 e recordou-se dos três primeiros homens que matara com ele.

A cabeça de Bondarenko girou quando ouviu os gritos do outro la­do do prédio. Voltou-se e viu que nada acontecia ali. Era hora de fazer algo, e ele esperava que fosse a coisa certa.

¯ Todos de volta ao prédio. Rápido!

Dois dos dez remanescentes, feridos, tiveram de ser ajudados. De­morou cerca de um minuto enquanto a noite novamente cintilava com as rajadas de fuzis. Bondarenko levou cinco homens e apressou-se pe­lo corredor lateral do prédio, rumo a outra ala.

Não podia saber se os inimigos haviam conseguido passar, ou se os homens aqui também estavam se retirando ¯ novamente se viu impe­dido de atirar porque os dois lados estavam usando uniformes idênti­cos. Então um dos que corriam na direção do edifício disparou, e o coronel pousou um joelho no chão e derrubou-o com uma rajada de cinco tiros. Mais apareceram, e ele estava a ponto de disparar até que ouviu seus gritos.

¯  Nashi, nashi! ¯ Ele contou oito. O último era o sargento, ferido nas duas pernas.

¯  Eram muitos, não conseguimos...

¯  Entre ¯ disse-lhe Bondarenko. ¯ Ainda pode lutar?

¯  Porra, claro!

Ambos olharam em volta. Não podiam lutar a partir das salas indi­viduais. Tinham que resistir nos corredores e poços de escadas.

¯  A ajuda já está a caminho. Um regimento vem vindo de Nurek, se pudermos agüentar ¯ disse Bondarenko a seus homens. Não acres­centou quanto tempo podia demorar. Eram as primeiras boas notícias na última meia hora. Dois civis desciam as escadas, ambos portando fuzis.

¯  Precisa de ajuda? ¯ perguntou Morozov. Ele evitara o serviço militar, mas acabara de aprender que um fuzil não era tão difícil de manejar.

¯  Como estão as coisas por lá? ¯ indagou Bondarenko.

¯  O chefe da minha seção está mono. Peguei isso dele. Muitas pes­soas estão feridas, e o resto está tão apavorado quanto eu.

¯  Fique com o sargento ¯ instruiu o coronel. ¯ Mantenha a cal­ma, camarada engenheiro, e podemos sobreviver a isso. A ajuda já es­tá a caminho.

¯  Espero que esses putos se apressem. Morozov ajudava o sargento, ainda mais novo que o engenheiro, a chegar ao ponto mais distante do corredor.

Bondarenko colocou metade de seus homens nas escadas e a outra metade junto aos elevadores. Estava tudo quieto novamente. Podia es­cutar as vozes discutindo lá fora, mas o tiroteio havia amainado.

¯ Para baixo pela escada. Com cuidado ¯ disse Clark. ¯ Há uma plataforma no fundo. Pode pisar nela.

Maria olhou repugnada para a madeira cheia de limo, fazendo o que lhe foi ordenado, como imersa num sonho. Sua filha a seguiu. Clark foi por último, passou por elas e entrou no barco. Ele desamarrou os cabos e moveu o inflável com a mão até abaixo de onde as mulheres estavam em pé. Era um desnível de 1 metro.

¯Uma de cada vez. Você primeiro, Katryn. Venha devagar que eu apanho você.

Foi o que ela fez, os joelhos tremendo de dúvida e medo. Clark agar­rou seu tornozelo e puxou-a em sua direção. Ela caiu no barco com toda a elegância de um saco de feijões. Maria veio a seguir. Ele forneceu-lhe as mesmas instruções, mas Katryn tentou ajudar, movendo o bar­co ao fazê-lo. Maria perdeu seu apoio e caiu na água com um grito.

¯ Que foi isso? ¯ perguntou uma voz vinda do lado de terra do ancoradouro.

Clark não deu importância àquilo, agarrou as mãos que se deba­tiam e içou a mulher para bordo. Ela tremia de frio, mas não havia muito que pudesse fazer quanto a isso. Ouviu o som de pés que cor­riam pelo ancoradouro enquanto ligava o motor elétrico e dirigia-se para o largo.

¯Stoi! ¯ gritou uma voz. Era um tira, compreendeu Clark, tinha de ser um maldito tira. Voltou-se e viu o facho de uma lanterna. Não conseguiu alcançar o barco, mas fixou-se na esteira que ficou para trás. Clark levantou seu rádio.

¯  Tio Joe, aqui é Willy. A caminho. O sol está brilhando.

¯  Talvez tenham sido avistados ¯ disse o oficial de comunicação a Mancuso.

¯  Ótimo. ¯ O capitão prosseguiu. ¯ Goodman, vamos direto pa­ra o curso zero-oito-cinco. Seguimos em direção da costa a 10 nós.

¯  Comandante, aqui sonar, contato na direção dois-nove-seis. Mo­tor a diesel ¯ anunciou a voz de Jones. ¯ Duas hélices.

¯  Deve ser a fragata de patrulha da KGB, provavelmente Grisha ¯ informou Ramius. ¯ Patrulha de rotina.

Mancuso não disse nada, mas apontou para o grupo de controle de fogo. Eles começaram a calcular a posição do alvo que se aproximava, enquanto o Dallas se dirigia para a costa à profundidade de periscó­pio, mantendo elevada a antena de rádio.

¯  Nove-sete-um, aqui é o Centro de Velikiye Luki. Vire à direita para novo curso um-zero-quatro ¯ disse a voz russa ao coronel Von Eich. O piloto apertou o botão do microfone.

¯  Repita isso, Luki. Câmbio.

¯  Nove-sete-um, suas ordens são para virar à direita na direção um. zero-quatro e voltar a Moscou. Câmbio.

¯  Ah, muito obrigado, Luki. Negativo, estamos prosseguindo na direção dois-oito-seis de acordo com nosso plano de vôo. Câmbio.

¯  Nove-sete-um, estamos ordenando que retorne a Moscou! ¯ in­sistiu o controlador.

¯  Entendido, obrigado. Câmbio final. ¯ Von Eich olhou para bai­xo a fim de certificar-se de que o piloto automático estava no rumo correto, depois continuou sua busca visual por outra aeronave.

¯  Mas você não voltou ¯ afirmou o russo pelo intercomunicador.

¯  Não. ¯ Von Eich voltou-se para encarar o homem. ¯ Não dei­xamos nada para trás, que eu saiba.

¯  Mas eles ordenaram que...

¯  Filho, estou no comando desta aeronave, e minhas ordens são para voar até Shannon ¯ explicou o piloto.

¯  Mas... ¯ O russo desafivelou seu cinto e começou a levantar-se.

¯  Sente-se ¯ ordenou o piloto. ¯ Ninguém deixa a cabine de co­mando sem a minha permissão, moço! Você é um convidado em meu avião, e é melhor fazer exatamente o que eu digo. ¯ Que diabos, devia ser mais fácil do que isso! Ele fez um gesto ao engenheiro, que desligou outro interruptor, apagando todas as luzes na aeronave. O VC-137 es­tava agora totalmente às escuras. Von Eich ligou seu rádio novamente. ¯ Luki, aqui é nove-sete-um. Temos problemas elétricos a bordo. Não quero fazer nenhuma mudança radical no curso até que saibamos exa­tamente o que é. Entendeu? Câmbio.

¯  Qual é seu problema? ¯ perguntou o controlador. O piloto ima­ginou o que lhe teriam dito enquanto contava mais algumas mentiras.

¯  Luki, ainda não sabemos. Estamos perdendo energia elétrica. Todas as luzes se apagaram. O avião está às escuras no momento, re­petindo, estamos navegando sem luzes. Estou preocupado e não pos­so me distrair agora. ¯ Aquilo lhe valeu dois minutos de silêncio e 32 quilômetros na direção oeste.

¯  Nove-sete-um, já notifiquei Moscou de seus problemas. Acon­selharam que retornasse imediatamente. Vão limpar a área para uma aproximação de emergência ¯ ofereceu o controlador.

¯  Entendido, obrigado, Luki, mas não desejo arriscar uma mu­dança de curso agora, se entende o que digo. Estamos trabalhando para resolver o problema. Fiquem a postos. Darei informações. Câm­bio final. ¯ O coronel verificou o relógio em seu painel de instru­mentos. Mais trinta minutos até a costa.

¯  O quê? ¯ perguntou o major Zarudin. ¯ Quem entrou no avião? O diretor-geral Gerasimov e um espião inimigo preso ¯ respon­deu Vatutin.

¯  Num avião americano? Está me dizendo que o diretor-geral es­tá fugindo num avião americano! ¯ O oficial encarregado da segu­rança do aeroporto havia tomado conta da situação, como suas ordens lhe permitiam fazer. Descobriu que tinha dois coronéis, um tenente-coronel, um motorista e um americano no escritório que usava ali, junto com a história mais maluca que já escutara. ¯ Preciso pedir instru­ções.

¯  Sou seu superior! ¯ afirmou Golovko.

¯  Mas não é superior de meu comandante! ¯ declarou Zarudin, enquanto se dirigia ao telefone.

Ele tentara fazer com que o controlador de tráfego aéreo chamasse de volta o avião americano, mas não fora surpresa para seus visitantes que o piloto decidira não retornar.

Ryan sentou-se completamente quieto, mal respirando, nem ao me­nos movendo a cabeça. Concluiu que se não ficasse nervoso estaria completamente a salvo. Golovko era muito esperto para fazer alguma coisa impensada. Sabia quem era Jack e sabia o que aconteceria se um qualificado membro de uma missão diplomática em seu país so­fresse um arranhão sequer. Ryan já tinha se arranhado, claro. Seu tor­nozelo doía como o diabo, e seu joelho sangrava um pouco, mas ele mesmo provocara aquilo. Golovko olhou para ele de uma distância de 1 metro e meio. Ryan não devolveu o olhar. Engoliu seu medo e ten­tou parecer tão inofensivo quanto se mostrava no momento.

¯  Onde está a família? ¯ indagou Vatutin.

¯ Eles voaram para Tallin ontem ¯ respondeu Vasily, pouco con­vincentemente. ¯ Ela queria ver alguns amigos.

O tempo corria depressa para todos. Os homens de Bondarenko es­tavam reduzidos a menos de meio carregador cada um. Mais dois ha­viam sido mortos por granadas atiradas ao interior. O coronel observara um soldado saltar sobre uma delas, ficando em pedaços para salvar seus camaradas. O sangue do rapaz cobria o chão de ladrilhos, como tinta. Seis afegães empilhavam-se contra a porta. Fora assim em Sta­lingrado, disse o coronel a si mesmo. Ninguém excedia os soldados russos em lutas de casa a casa. A que distância estaria o regimento motorizado? Uma hora era um período de tempo tão curto... Metade de um filme, um show de televisão, um agradável passeio noturno... um tempo muito curto, desde que não estivessem atirando em você.

Nesse caso cada segundo se alongava perante os olhos, os ponteiros do relógio parecendo congelados, e a única coisa que funcionava rápido era o coração. Era apenas a sua segunda experiência em combate aproximado. Havia sido condecorado após a primeira, e imaginou se não seria enterrado depois da segunda. Mas pretendia impedir que isso acontecesse. Nos andares acima dele havia várias centenas de pes­soas ¯ engenheiros e cientistas, suas mulheres e filhos ¯, cujas vidas dependiam de sua habilidade em rechaçar os invasores afegães por me­nos de uma hora.

Vão embora, desejou ele. Pensam que nós queríamos vir e ser fuzilados naquele desgraçado monte de pedras que vocês chamam de país? Se quise­rem matar os responsáveis, por que não vão até Moscou? Mas aquela não era a maneira como as coisas funcionavam na guerra, era? Os políti­cos nunca ficavam suficientemente peno para ver o drama que haviam causado. Nunca na verdade sabiam o que faziam, e agora os bastardos tinham mísseis com ogivas nucleares. Possuíam o poder de matar mi­lhões, porém careciam de coragem para enxergar o horror num sim­ples e antiquado campo de batalha.

Quanta besteira a gente pensa nessas horas!, enraiveceu-se consigo mesmo.

Ele falhara. Seus homens haviam confiado nele para comandá-los, e ele falhara, pensou consigo o Arqueiro. Olhou em volta para os cor­pos na neve, e cada um parecia acusá-lo. Ele podia matar indivíduos, podia derrubar aviões do céu, mas nunca havia aprendido como lide­rar um grande grupo de homens. Seria essa a maldição de Alá sobre ele por torturar os pilotos russos? Não! Ainda havia inimigos a matar. Gesticulou a seus homens para que entrassem no prédio através das várias janelas quebradas ao nível do chão.

O major liderava na frente, como os mudjahidin esperavam. Ele conse­guira dez homens e subiu com eles pelas paredes da casamata, depois deslizou para a porta principal, coberto pelos disparos do resto da com­panhia. Perdera cinco homens, mas não era muito para uma missão co­mo essa. Obrigado pelo treinamento que me deram, meus amigos russos...

A porta principal era de aço. Ele instalou pessoalmente um par de cargas satchel nos cantos mais baixos e colocou os detonadores depois de rastejar pela quina em direção à porta. Fuzis russos dispararam so­bre sua cabeça, mas os que estavam no interior da construção não sa­biam onde ele se encontrava. Isso iria mudar. Ele instalou as cargas, acionou os detonadores e correu de volta até a quina.

Pokryshkin encolheu-se quando ouviu o estrondo. Voltou-se para a pesada porta de aço voando através da sala, esmagando-se contra um painel de controle. O tenente da KGB foi morto instantanea­mente pela explosão, e, enquanto os homens de Porkyshkin corriam rumo à abertura na porta, mais três pacotes de explosivos voaram pa­ra o interior. Não havia nenhum lugar para onde fugir. Os Guardas da Fronteira continuaram disparando, matando um dos atacantes na porta, porém nesse momento as cargas explodiram.

Um som estranho e oco, pensou o major. A força das explosões fora contida pelas resistentes paredes de concreto. Ele liderou os homens para o interior um segundo depois. Circuitos elétricos soltavam faís­cas, e os incêndios logo começariam, mas todos os que pôde ver no interior estavam caídos. Seus homens moviam-se rapidamente de um ferido para outro, apanhando armas e matando os que estavam sim­plesmente inconscientes. O major viu um oficial russo com estrelas de general. O homem sangrava pelas narinas e pelas orelhas, e tentava levantar a pistola quando foi abatido pelo major. Em mais um minu­to, estavam todos mortos. A construção se enchia rapidamente com uma fumaça espessa e acre. Ordenou que seus homens saíssem.

¯ Acabamos aqui ¯ disse ele em seu rádio. Não houve resposta. ¯ Você está aí?

O Arqueiro se apoiava contra uma parede, próximo a uma porta meio aberta. Seu rádio se encontrava desligado. Logo do lado de fora da sala estava um soldado, olhando para o corredor. Era hora. O guerrei­ro da liberdade moveu a porta com a ponta da arma e atirou no russo antes que ele tivesse chance de voltar-se. Gritou uma ordem, e cinco outros homens saíram de suas salas, mas dois foram mortos antes que pudessem atirar. Olhou acima e abaixo do corredor e não viu nada a não ser o fogo dos disparos e silhuetas meio ocultas.

A 50 metros de distância, Bondarenko reagiu à nova ameaça. Ele gritou uma ordem para que seus homens ficassem sob cobertura, e então com precisão assassina o coronel identificou e atacou os alvos que se moviam em aberto, identificados graças às luzes de emergência no corredor, transformado agora numa galeria de tiro, e ele abateu dois homens com o mesmo número de tiros. Outro correu em sua direção gritando algo ininteligível e disparando sua arma numa rajada contí­nua. Os tiros de Bondarenko erraram o alvo, para sua surpresa, po­rém alguém mais derrubou o homem. Novo tiroteio, com o som reverberando nas paredes e ensurdecendo completamente a todos. En­tão percebeu que só restava um dos atacantes. O coronel viu mais dois de seus homens caírem, e o último afegão disparou, produzindo esti­lhaços de concreto a centímetros do seu rosto. Os olhos de Bondaren­ko arderam com os fragmentos, e o lado direito do seu rosto encolheu-se de súbita dor. O coronel retirou-se da linha de fogo, mudou a regula­gem da arma para automático, inspirou profundamente e saltou para o corredor. O homem estava a menos de 10 metros de distância.

O momento prolongou-se uma eternidade enquanto os dois aponta­ram as armas para atirar. Ele viu os olhos do homem. Era um rosto jovem, logo abaixo da luz de emergência, mas os olhos... a raiva con­tida ali, o ódio, quase pararam o coração do coronel. Porém Bonda­renko era antes de mais nada um soldado. O primeiro tiro do afegão saiu errado. O seu não.

O Arqueiro sentiu o choque, não dor, em seu peito quando caiu. Seu cérebro enviou uma mensagem às mãos para trazer a arma para a esquerda, mas elas ignoraram a ordem e deixaram cair o fuzil. Ele veio ao chão em estágios, primeiro de joelhos, depois as costas, e fi­nalmente tombou olhando para o teto. Enfim terminara. Então o ho­mem ficou em pé a seu lado. Não era um rosto cruel, pensou o Arqueiro. Era o inimigo, e infiel, mas era também um homem, ou não? Havia curiosidade ali. Ele quer saber quem sou eu. O Arqueiro falou com seu último fôlego:

¯  Allahu akhbarl ¯ Deus é grande.

É, suponho que Ele seja, disse Bondarenko ao corpo inerte. Ele co­nhecia a frase bastante bem. Foi por isso que vieram? Notou que o ho­mem tinha um rádio. Começou a fazer ruídos, e o coronel abaixou-se para apanhá-lo.

¯  Você está aí? ¯ perguntou o rádio um momento depois. A per­gunta era em pashtu, mas a resposta foi dada em russo.

¯  Tudo está acabado aqui ¯ falou Bondarenko. O major olhou para seu radiotransmissor por um instante, depois soprou seu apito para reunir o que restava de seus homens. A compa­nhia do Arqueiro sabia o caminho até o ponto de encontro, mas tudo que importava agora era voltar para casa. Contou seus homens. Per­dera onze e tinha seis feridos. Com sorte chegaria à fronteira antes que a neve parasse. Cinco minutos depois os guerrilheiros estavam deixando a montanha.

¯ Protejam a área! ¯ disse Bondarenko aos seis remanescentes. ¯ Recolham as armas e distribuam.

Provavelmente havia terminado, pensou ele, mas "terminado" só es­taria com a chegada do regimento motorizado.

Morozov! ¯ chamou a seguir. O engenheiro apareceu um momento depois.

¯  Sim, coronel?

Existe algum médico lá em cima?

¯  Sim, vários. Vou buscar um.

O coronel percebeu que transpirava. A construção ainda guardava algum calor. Deixou cair o radiotelefone das costas e ficou surpreso ao constatar que duas balas o haviam atingido ¯ e até mais surpreso ao ver sangue numa das correias. Fora ferido e nem notara. O sargen­to aproximou-se e veio examinar.

¯  É só um arranhão, coronel, como estes nas minhas pernas.

¯  Me ajude a tirar este paletó, sim?

Bondarenko abriu seu sobretudo, expondo a blusa do uniforme. Com sua mão direita manteve o casaco levantado, enquanto a esquerda apa­nhava a condecoração designada Bandeira Vermelha. Então pren­deu-a ao colarinho do rapaz.

¯  Merece mais do que isso, sargento, mas é tudo o que posso lhe dar no momento.

¯  Subir periscópio. ¯ Mancuso usava o periscópio de busca ago­ra, com seu equipamento amplificador de luz. ¯ Nada ainda... ¯ Ele voltou-se para procurar a oeste. ¯ Opa, captei uma luz de mastro a dois-sete-zero...

¯  É nosso contato de sonar ¯ observou desnecessariamente o te­nente Goodman.

¯  Sonar, aqui comandante, tem uma identificação positiva sobre o contato?

¯  Negativo ¯ respondeu Jones. ¯ Estamos captando reverbera­ções. As condições acústicas estão muito ruins. Tem hélice dupla e é a diesel, mas sem identificação.

Mancuso ligou a câmera de televisão do visor. Ramius só precisou de uma olhada à imagem.

¯  Grisha.

Mancuso olhou para o grupo de rastreamento.

¯  Solução?

¯  Sim, mas está um pouco tremido ¯ respondeu o oficial de ar­mas. ¯ O gelo também não vai ajudar em nada ¯ acrescentou ele. O que queria dizer é que o torpedo Mark 48 em modo de ataque na superfície poderia ser confundido pelo gelo flutuante. Ele fez uma pau­sa. ¯ Senhor, se é um Grisha, como não aparece no radar?

¯ Novo contato! Sonar ao comandante, novo contato rumando zero-oito-seis... parece com o nosso amigo, senhor ¯ disse Jones. ¯Há mais alguma coisa próxima a esse rumo, hélice de alta velocidade definitivamente algo novo ali, senhor, a zero-oito-três.

¯  Subir 60 centímetros ¯ disse Mancuso ao contramestre. O pe­riscópio subiu. ¯ Estou avistando, bem no horizonte... 5 quilôme­tros. Há uma luz atrás deles. ¯ Ele bateu os manetes na vertical e o periscópio desceu imediatamente. ¯ Vamos para lá depressa. Para a frente a dois terços de potência.

¯  Para a frente a dois terços, certo. ¯ O timoneiro enviou a ordem à casa de máquinas.

O navegador calculou a posição do barco que se aproximava e con­tou os metros.

Clark olhava para trás na direção da costa. Havia uma luz balan­çando da esquerda para a direita sobre a água. Quem poderia ser? Não sabia se a polícia local possuía barcos, mas tinha que haver um desta­camento de Guardas da Fronteira da KGB: eles possuíam sua própria flotilha e também uma pequena força aérea. Mas quão alertas esta­riam eles numa sexta-feira à noite? Provavelmente mais do que esta­vam quando aquele rapaz alemão resolveu voar até Moscou... bem nesse setor, recordou-se Clark. Essa área provavelmente está bem aler­ta... onde está você, Dallas? Ele levantou o rádio.

¯  Tio Joe, aqui é Willy. O sol vai levantando, e estamos longe de casa.

¯  Ele diz que está próximo ¯ informou o oficial de comunicações.

¯  Navegador? ¯ chamou Mancuso.

O navegador levantou os olhos de sua mesa.

¯  Estamos a 15 nós. Devemos estar a uma distância de 500 metros agora.

¯  Em frente, potência a um terço ¯ ordenou o capitão. ¯ Subir periscópio! ¯ O tubo lubrificado subiu novamente... até o alto.

¯  Capitão, apanhei um emissor de radar à popa, rumando dois-seis-oito. E um Don-2 ¯ anunciou o operador de medidas de vigilân­cia eletrônica.

¯  Comandante, aqui sonar, ambos os contatos hostis aumentaram a velocidade. A velocidade estimada é de 20 nós e aproximando-se do Grisha, senhor ¯ disse Jones. ¯ Identidade confirmada do al­vo: é da classe Grisha. Contato mais a leste ainda desconhecido, uma hélice, provavelmente um motor a gasolina, girando a 20, mais ou menos.

Alcance: cerca de 6 000 metros ¯ anunciou o grupo de controle

¯Essa é a parte engraçada ¯ comentou Mancuso. ¯ Tenho-os na mira. Posição... alvol

¯Zero-nove-um.

¯Alcance. ¯ Mancuso apertou o gatilho para o visor laser do pe­riscópio. ¯ Alvol

¯Seiscentos metros.

¯Bela estimativa, navegador. Solução no Grisha? ¯ perguntou ao controle de fogo.

¯  Preparado para os tubos dois e quatro. Portas exteriores ainda fechadas, senhor.

¯  É melhor mantê-las assim. ¯ Mancuso dirigiu-se à escotilha in­ferior do tubo de acesso ao passadiço. ¯ Imediato, o comando é seu. Eu mesmo vou fazer a recuperação. Vamos acabar logo com isso.

¯  Tudo parado ¯ ordenou o imediato.

Mancuso abriu a escotilha e ganhou a escada. A escotilha inferior foi fechada atrás dele. Ouviu a água correndo na torre ao redor, de­pois sentiu os impactos das ondas na superfície. O intercomunicador lhe avisou que já podia abrir a escotilha do passadiço. Mancuso girou a roda de segurança e empurrou a pesada cobertura de aço. Foi re­compensado com um jorro de água do mar, fria e oleosa, mas ignorou-o e subiu.

Olhou para a ré primeiro. Lá estava o Grisha, a luz do mastro baixa no horizonte. A seguir olhou para a frente e retirou a lanterna do bol­so. Apontou diretamente para o bote e fez a letra D em código morse.

¯  Uma luz, uma luz! ¯ exclamou Maria.

Clark voltou-se de novo para a frente, enxergou o sinal e rumou pa­ra ele. Então viu mais alguma coisa.

O barco-patrulha atrás de Clark estava a mais de 3 quilômetros de distância, o holofote procurando no lugar errado. O capitão voltou-se para oeste, tentando enxergar o outro contato. Mancuso sabia de algu­ma forma distante que um Grisha carregava holofotes, mas permitira-se ignorar o fato. Afinal de contas, por que deveriam holofotes ser re­lacionados a um submarino? Quando se está na superfície, disse a si mesmo o capitão. O navio estava muito longe para vê-lo, com ou sem holofote, mas essa situação mudaria depressa. Observou a luz varren­do a superfície atrás do submarino e percebeu tarde demais que pro­vavelmente o Dallas estaria em seu radar agora.

¯  Aqui, Clark, depressa com essa porra! ¯ gritou ele através da água, balançando a lanterna para a direita e a esquerda. Os trinta se­gundos seguintes pareceram durar um mês inteiro. Então o barco apareceu.

¯  Ajude as senhoras ¯ disse o homem.

Ele manteve o inflável contra a torre do submarino, usando seu mo­tor. O Dallas ainda se movia, era obrigado a fazê-lo para manter essa profundidade precária, sem estar totalmente na superfície nem total­mente submerso. A primeira movia-se e parecia uma jovem, pensou o comandante enquanto a trazia para bordo. A segunda estava molhada e tremendo. Clark demorou-se um momento, ajustando uma peque­na caixa no topo do motor. Mancuso perguntou-se como ela ficara equi­librada ali, até perceber que aderira magneticamente ou fora colada.

¯  Desçam a escada ¯ indicou Mancuso às mulheres.

Clark saltou para bordo e disse alguma coisa ¯ provavelmente o mes­mo que o capitão ¯ em russo. Para Mancuso ele falou em inglês.

¯  Cinco minutos para explodir.

As mulheres já estavam na metade da descida. Clark foi atrás delas, e finalmente Mancuso, com um derradeiro olhar para o inflável. A última coisa que viu foi o barco da patrulha do porto, agora dirigindo-se diretamente para o submarino. Deixou-se cair, puxando a escotilha atrás de si. Então acionou o botão do intercomunicador.

¯  Vamos descer e sair daqui.

A escotilha do fundo abriu-se abaixo deles, e ele ouviu o imediato:

¯ Profundidade 30 metros, motor à frente dois terços, leme todo à esquerda.

Um suboficial recebeu as mulheres no final do tubo da torre. O as­sombro em seu rosto teria sido engraçado numa outra hora qualquer. Clark as levou pelo braço e conduziu-as para vante, em direção à sua cabine. Mancuso foi para ré.

¯  Estou no comando ¯ anunciou ele.

¯  O capitão está no comando ¯ concordou o imediato. ¯ A vigi­lância eletrônica diz que há um certo tráfego de rádio em UHF próxi­mo a nós, talvez o Grisha falando ao outro.

¯  Timoneiro, novo curso três-cinco-zero. Vamos entrar embaixo do gelo. Eles provavelmente sabem que estamos aqui... bem, sabem que alguma coisa está aqui. Navegador, como está a carta?

¯  Vamos ter que virar logo ¯ avisou o navegador. ¯ Água rasa a 8 000 metros. Recomendo vir a novo curso dois-nove-um. ¯ Man­cuso ordenou imediatamente a mudança.

¯  Profundidade agora 28 metros, nivelando ¯ informou o oficial das águas. ¯ Velocidade 18 nós. ¯ Um pequeno som abafado anun­ciou a destruição do bote e seu motor.

¯ Muito bem, pessoal, tudo que nos resta agora é sair daqui ¯ disse Mancuso aos homens do Centro de Ataque. Um estalido muito agudo alertou-os de que não ia ser assim tão fácil.

¯  Comandante, aqui sonar, estamos sendo atingidos. Esse foi o raio da morte do Grisha ¯ informou Jones, usando a gíria que designava a arma russa. ¯ Pode pegar a gente.

¯  Sob o gelo, agora ¯ anunciou o navegador.

¯  Alcance para o alvo?

¯  Um pouco menos do que 4 000 metros ¯ respondeu o oficial de armas. ¯ Para os tubos dois e quatro.

O problema era que não podiam disparar. O Dallas estava em águas territoriais soviéticas, e, mesmo que o Grisha atirasse neles, devolver os disparos não seria defesa própria, mas um ato de guerra. Mancuso examinou a carta. Tinha 10 metros de água sob a quilha e apenas 7 acima da torre ¯ menos a espessura do gelo...

¯  Marko? ¯ perguntou o capitão.

¯  Eles vão pedir instruções primeiro ¯ presumiu Ramius. ¯ Quan­to mais tempo tiverem, maior a chance de que atirem.

¯  Certo. Para a frente a toda força ¯ ordenou Mancuso. A 30 nós estaria em águas internacionais em dez minutos.

¯  O Grisha está passando de través a bombordo ¯ disse Jones. Mancuso foi até a sala do sonar.

¯  O que está acontecendo? ¯ indagou o capitão.

¯  Esse aparelho de alta freqüência funciona razoavelmente bem no gelo. Ele está procurando, de um lado e de outro. Sabe que existe al­guma coisa aqui, mas não exatamente onde.

Mancuso levantou um fone.

¯  Sala de cinco polegadas, lançar dois produtores de ruído. Um par de dispositivos geradores de bolhas foi ejetado a bombordo

do submarino.

¯  Boa, Mancuso ¯ aplaudiu Ramius. ¯ O sonar deles vai se fixar nisso. Ele não pode manobrar bem, com o gelo.

¯  Flanquear! ¯ gritou o capitão para ré.

¯  Os dispositivos ¯ disse Ramius. ¯ É surpreendente como dis­pararam tão rápido...

¯  Perdendo operação de sonar, comandante ¯ informou Jones, en­quanto a tela ficava alterada pela interferência. Mancuso e Ramius fo­ram para ré. O navegador tinha o curso marcado na carta.

¯ Oh-oh, vamos ter de passar por este lugar aqui onde não existe gelo. Quanto quer apostar que os russos sabem disso? ¯ Mancuso olhou para cima. Ainda estavam sendo alvejados, e ele não podia res­ponder ao fogo. E aquele Grisha podia melhorar a sorte.

¯  Rádio... Mancuso, posso falar no rádio? ¯ pediu Ramius.

¯  Não é assim que fazemos as coisas... ¯ protestou Mancuso. A orientação americana era de evasão, nunca dando a certeza de que ha­via um submarino na área.

¯  Sei disso. Mas não somos submarino americano, capitão Man­cuso, somos submarino soviético ¯ sugeriu Ramius.

Bart Mancuso concordou. Nunca fizera essa jogada antes.

¯  Levem-no até a profundidade de antena!

Um técnico de rádio sintonizou a freqüência da guarda soviética, e a fina antena de VHF foi levantada assim que o submarino saiu do gelo. O periscópio também subiu.

¯  Lá está ele. Ângulo na popa, zero. Abaixar periscópio.

¯  Contato no radar rumando dois-oito-um ¯ anunciou o alto-falante.

O capitão do Grisha estava chegando de uma semana de patrulhamento no mar Báltico, seis horas atrasado, aguardando quatro dias de folga. Então captaram uma transmissão da polícia do porto de Tallin sobre uma estranha embarcação vista deixando o ancoradouro, se­guida por alguma coisa da KGB, depois aconteceu uma pequena explosão perto do barco da polícia do porto, e a seguir vários contatos de sonar. O primeiro-tenente, de 29 anos, com a experiência de seus três meses de comando, fez uma estimativa da situação e disparou em direção ao que o seu operador de sonar chamou de um contato positi­vo de submarino. Estava agora imaginando se cometera um erro, e quão funesto poderia ser. Só sabia que não tinha a menor idéia do que esta­va acontecendo, mas, se estivesse mesmo perseguindo um submari­no, teria de ser na direção oeste.

E agora tinha um contato de radar à frente. O alto-falante para a freqüência do rádio da Guarda começou a chiar.

¯  Cessar fogo, seu idiota! ¯ gritou uma voz metálica três vezes.

¯  Identifique-se! ¯ respondeu o comandante do Grisha.

¯  Aqui é o Novosibiirsk Komsomoletsl O que diabos pensa que está fazendo disparando munição real num exercício? Identifique-se você!

O jovem oficial olhou para o microfone e disse um palavrão. Novo­sibiirsk Komsomolets era um navio de operações especiais baseado em Kronstadt, sempre participando das ações dos Spetznaz...

¯ Aqui é o Krepkiy.

Obrigado. Discutiremos esse episódio depois de amanhã. Fora na ponte de comando, o capitão olhou em volta para a tripulação. ¯Que exercícios?...

¯Uma pena ¯ disse Marko enquanto recolocava o microfone no gancho. ¯Ele reagiu bem. Agora vai levar vários minutos para chamar base e...

¯  É tudo de que precisamos. E mesmo assim eles não saberão o que está acontecendo. ¯ Mancuso voltou-se. ¯ Navegador, qual a ro­ta mais curta para sair?

¯  Recomendo dois-sete-cinco, a distância é de 11 000 metros.

A 30 nós, o percurso restante foi coberto rapidamente. Dez minutos mais tarde o submarino estava de volta às águas internacionais. O anticlímax foi sensível para todos os que estavam na sala de controle. Mancuso mudou o curso para águas mais fundas e ordenou que a ve­locidade fosse reduzida a um terço, depois voltou para o sonar.

¯  Agora deve ter terminado ¯ anunciou ele.

¯  Senhor, o que foi tudo isso? ¯ quis saber Jones.

¯  Bem, eu mesmo não sei para poder contar.

¯  Qual é o nome dela? ¯ Da cadeira da frente, Jones podia enxer­gar o corredor.

¯  Também não sei. Mas vou descobrir. ¯ Mancuso caminhou pe­lo corredor e bateu à porta da cabine de Clark.

¯  Quem é?

¯  Adivinha ¯ disse Mancuso.

Clark abriu a porta. O capitão viu uma jovem em roupas apresentáveis, mas com os pés molhados. Então a mulher mais velha apareceu, vinda do banheiro. Estava vestida com uma camisa caqui e a calça do maquinista-chefe do Dallas, e carregava seus perten­ces, todos molhados. Entregou-os a Mancuso, juntamente com uma frase em russo.

¯  Ela quer que você mande lavar e passar, comandante ¯ tradu­ziu Clark, começando a rir. ¯ Estas são nossas novas convidadas, a senhora Gerasimov e sua filha, Katryn.

¯  O que há de tão especial com elas? ¯ indagou Mancuso.

¯  Meu pai é o chefe da KGB! ¯ disse Katryn.

O capitão teve de fazer um esforço para não largar no chão a trouxa de roupas molhadas.

¯ Temos companhia ¯ informou o co-piloto. Estavam vindo pelo lado direito, as luzes fortes do que só podia ser um par de caças. ¯ Aproximando-se rapidamente.

¯  Vinte minutos até a costa ¯ avisou o navegador. O piloto já fize-ra o cálculo.

¯  Merda! ¯ xingou o piloto.

Os caças erraram o avião por menos de 200 metros na vertical, um pouco mais na horizontal. Um momento mais tarde, o VC-137 balan­çava na turbulência da esteira deles.

¯  Controle em Engure, aqui vôo da Força Aérea dos Estados Uni­dos número nove-sete-um. Quase tivemos uma colisão. Que diabos está acontecendo aí embaixo?

¯  Deixe-me falar com o oficial soviético! ¯ respondeu uma voz. Não soava em absoluto como a de um controlador.

¯  Eu respondo por esse avião ¯ afirmou o coronel Von Eich. ¯ Estamos cruzando na direção dois-oito-seis, nível de vôo 11 600 me­tros. Estamos num plano de vôo corretamente solicitado, no corredor aéreo designado, e temos problemas elétricos. Não precisamos de ne­nhum piloto de caça metido a engraçadinho e brincando conosco... Esta é uma aeronave americana com uma missão diplomática a bor­do. Quer começar a Terceira Guerra Mundial ou algo parecido? Câmbio.

¯  Nove-sete-um, suas ordens são para voltar.

¯ Negativo! Temos problemas elétricos e não podemos, repito: não podemos cumpri-las. Esse avião está voando sem luzes, e esses pilo­tos malucos de MiG quase nos atropelaram! Está tentando nos matar? Câmbio.

¯ Vocês estão raptando um cidadão soviético e precisam retornar imediatamente a Moscou.

¯  Repita essa última frase ¯ pediu Von Eich.

Mas o capitão não pôde. Como especialista interceptador de terra, ele fora trazido às pressas para Engure, o último posto de controle de tráfego aéreo dentro da fronteira soviética, e rapidamente instruído por um oficial da KGB para que forçasse o avião americano a voltar. Não deveria ter dito o que disse pela transmissão aberta.

¯  Você precisa parar esse avião! ¯ gritou o general da KGB.

¯  E simples, então. Ordeno a meus MiG que o derrubem! ¯ res­pondeu o capitão no mesmo tom. ¯ O senhor me dá essa ordem, ca­marada general?

¯  Não tenho autoridade para isso. Você tem que fazê-lo parar.

¯  Negativo. Podemos abatê-lo, mas não posso obrigá-lo a parar.

¯  Está querendo ser fuzilado? ¯ perguntou o general.

¯ Onde diabos ele está agora? ¯ perguntou o piloto do Foxbat a seu companheiro de esquadrilha.

Só o haviam avistado uma vez, e mesmo assim por um breve e ater­rador instante. Ele podia seguir o intruso ¯ exceto que estava partin­do, e não era na verdade um intruso, ambos sabiam ¯ pelo radar e acertá-lo com mísseis guiados por radar, mas aproximar-se do alvo na escuridão... Mesmo na noite relativamente clara, o avião estava total­mente apagado, e tentar encontrá-lo significava correr o risco que os pilotos americanos de caça chamavam de Fox-Four: colisão a meia al­tura, uma morte rápida e espetacular para todos os envolvidos.

¯ Líder Martelo, aqui Caixa-de-ferramentas. Suas ordens são para aproximar-se do alvo e forçá-lo a virar ¯ disse o controlador. ¯ O alvo está na sua posição a doze horas, alcance 3 000 metros.

¯  Sei disso ¯ disse o piloto a si mesmo.

Ele tinha o avião no radar, mas não visualmente, e seu radar não podia fornecer a precisão necessária para avisá-lo de uma colisão imi­nente. Ele também tinha que se preocupar com o outro MiG do lado

da outra asa.

¯  Fique para trás ¯ ordenou ao companheiro. ¯ Vou tratar sozi­nho desse assunto.

Ele avançou levemente os manetes e moveu o manche um pouco para a direita. O MiG-25 era pesado e lento, não um caça de boa manobrabilidade. Possuía um par de mísseis ar-ar acoplados em cada asa, e tudo o que tinham a fazer para parar essa aeronave era... Mas, em vez de lhe ordenarem que fizessem algo que estava treinado para fa­zer, algum cretino oficial da KGB queria...

Lá estava. Ele não enxergava muito do avião, mas viu alguma coisa à frente desaparecer. Ah! Puxou um pouco o manche para trás, a fim de ganhar algumas centenas de metros em altitude e... sim! Ele podia ver o Boeing delineado contra o mar. Vagarosa e cuidadosamente, moveu-se para a frente até que estivesse de través sobre o alvo, e 200 metros mais alto.

¯  Estou vendo luzes do meu lado direito ¯ disse o co-piloto. ¯ É um caça, mas não sei de que tipo.

¯  Se você fosse ele, o que faria?

¯  Desertava! ¯ Ou nos derrubaria...

Atrás deles no assento, o piloto soviético, cuja única função era falar russo em caso de emergência, estava afivelado à sua poltrona e não tinha a menor idéia sobre o que fazer. Fora retirado dos contatos pelo rádio e tinha apenas o intercomunicador agora. Moscou queria que eles voltassem com o avião. Ele não sabia por quê, mas... mas o quê? perguntou a si mesmo. ¯ Lá vem ele, deslizando para cá.

Tão cuidadosamente quanto possível, o piloto do MiG manobrou seu caça para a esquerda. Ele pretendia ficar sobre a cabine de co­mando do Boeing, de cuja posição ele poderia reduzir a altitude len­tamente e forçar o outro para baixo. Fazer isso exigia tanta perícia quanto ele era capaz de dominar, e o piloto podia apenas rezar para que seu colega americano fosse igualmente hábil. Posicionou-se de ma­neira que pudesse ver, mas...

O MiG-25 era projetado como interceptador, e o vidro da cabine per­mitia visibilidade restrita. Não podia mais enxergar o avião com o qual voava em formação. Olhou para a frente. O litoral estava a apenas al­guns quilômetros de distância. Mesmo que fosse capaz de conseguir que o americano reduzisse a altitude, estariam sobre o Báltico antes que importasse verdadeiramente a alguém. O piloto puxou o manche e su­biu em curva para a direita. Uma vez distante, inverteu seu curso.

¯ Caixa-de-ferramentas, aqui é o líder Martelo ¯ informou ele. ¯ Os americanos não vão alterar o curso. Tentei, mas não vou colidir meu avião sem ordens diretas.

O controlador havia observado os dois pontos se aproximando no radar e ficou surpreso com o fato de seu coração não parar. Que diabo estava acontecendo? Esse era um avião americano. Não podiam forçá-lo a parar, e, se houvesse um acidente, quem seria o culpado? Tomou sua decisão.

¯  Voltar à base. Câmbio final.

¯ Você vai pagar por isso ¯ prometeu o general da KGB ao oficial de interceptação.

Mas ele estava errado.

¯  Graças a Deus ¯ disse Von Eich enquanto passavam pela linha da costa. Ele chamou o chefe camareiro a seguir.

¯  Como está o pessoal na traseira?

¯  A maioria está dormindo. Acho que tiveram uma grande festa esta noite. Quando vai voltar a eletricidade?

¯  Engenheiro de vôo ¯ disse o piloto ¯, eles querem saber sobre o problema com a eletricidade.

¯  Parece que era um interruptor com defeito, senhor. Eu acho... sim, acabei de consertar.

O piloto olhou para o lado de fora de sua janela. As luzes da ponta da asa estavam novamente acesas, assim como as das cabines, exceto a traseira. Passando Ventspils, eles viraram à esquerda para uma nova direção a dois-cinco-nove. Deixou escapar um longo fôlego. Faltavam duas horas para chegar a Shannon.

¯  Um pouco de café seria ótimo ¯ pensou ele em voz alta.

Golovko desligou o telefone e despejou algumas palavras que Jack não entendeu exatamente, embora a mensagem parecesse bastante clara.

¯  Sergey, posso limpar meu joelho?

¯  O que exatamente você fez, Ryan? ¯ perguntou o agente da KGB.

¯  Caí do avião e os filhos da puta saíram sem mim. Desejo ser le­vado à minha embaixada, mas primeiro queria tratar do joelho.

Golovko e Vatutin trocaram um olhar, ambos pensando em várias coisas. O que havia acontecido na verdade? O que aconteceria a eles? O que fazer com Ryan?

¯  A quem podemos chamar? ¯ perguntou Golovko.

 

Por Baixo do Pano

Vatutin decidiu chamar o chefe de seu diretório, que chamou o vice-diretor, que chamou mais alguém, depois telefonou de volta ao escri­tório do aeroporto onde todos estavam esperando. Vatutin ouviu as instruções, levou todos para o carro de Gerasimov e deu ordens que Jack não entendeu. O carro atravessou as ruas vazias de Moscou na madrugada ¯ passava um pouco da meia-noite, e aqueles que tinham saído para os cinemas, ou a ópera, ou o bale, estavam agora em casa. Jack, acomodado entre os dois coronéis da KGB, esperava que o esti­vessem levando até a embaixada, porém o carro continuava atraves­sando a cidade em alta velocidade, depois acima das colinas Lênin, e ainda além, em direção às florestas que cercavam a cidade. Ficou assustado. A imunidade diplomática era uma coisa mais viável no ae­roporto do que nos bosques.

O carro diminuiu a velocidade depois de uma hora, saindo da estra­da asfaltada para uma de cascalho que se embrenhava entre as árvo­res. Havia muita gente uniformizada por ali, ele percebeu através das janelas. Homens com fuzis. Aquela visão fez com que esquecesse a dor no tornozelo e no joelho. Onde estava exatamente? Por que o ha­viam trazido até aqui? Por que os soldados armados?... A frase de que se lembrou foi simples e apavorante: "Levem-no para dar um pas­seio...

 

Não! Não podiam estar fazendo isso, disse-lhe a razão. Tenho um pas­saporte diplomático. Fui visto com vida por muitas pessoas. Provavelmente o embaixador já... ¯ mas ele não saberia de nada. Não tinha autorização   para saber o que acontecera, e a menos que tenham passado a informação do avião... Apesar disso, não seriam capazes de... O ditado dizia na União Soviética aconteciam coisas que simplesmente não podiam acontecer. A porta do carro foi aberta. Golovko saiu e puxou Ryan com ele.  A única coisa que Ryan sabia agora é que não havia sentido em resistir.

Era uma casa, uma casa comum de toras na floresta. As janelas bri­lhavam com uma luz amarelada que vinha de trás das cortinas. Ryan viu umas doze pessoas em pé por ali, todos com uniformes e fuzis, todos olhando para ele com o mesmo grau de interesse que dedica­riam a um alvo de cartolina. Um deles, um oficial, aproximou-se e revistou Ryan de maneira bastante completa, produzindo um gemido de dor ao chegar no joelho ensangüentado e na calça rasgada. Sur­preendeu Ryan com um aparente pedido de desculpas. O oficial ace­nou para Golovko e Vatutin, que entregaram suas automáticas e conduziram Ryan para o interior da casa.

Lá dentro, um homem apanhou os casacos. Mais dois homens em roupas civis eram obviamente tipos da polícia ou da KGB. Usavam jaquetas com o zíper aberto, e pela maneira como se movimentavam deviam estar portando pistolas, notou Jack. Ele acenou educadamen­te e não obteve resposta, a não ser mais uma revista por parte de um deles, enquanto o outro observava de uma distância segura, da qual poderia atirar, se necessário. Ryan surpreendeu-se ao notar que os dois oficiais da KGB também foram revistados. Quando isso se comple­tou, o outro os conduziu através de uma porta.

O secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, An­drey Ilych Narmonov, sentava-se numa poltrona estofada, em frente a um fogo aceso há pouco tempo. Ele se levantou quando os quatro homens entraram na sala e gesticulou para que se acomodassem no sofá em frente à sua poltrona.

O guarda-costas tomou posição em pé atrás do chefe do governo so­viético. Narmonov falou em russo. Golovko traduziu.

¯  Você é... ?

¯  John Ryan, senhor ¯ disse Jack. O secretário-geral apontou uma cadeira em frente à sua e percebeu que Ryan mancava.

¯  Anatoly ¯ disse ele ao guarda-costas, que em resposta tomou o braço de Ryan e levou-o a um banheiro no primeiro andar. O ho­mem umedeceu um pano em água quente e o entregou a Jack. Podia ouvir os outros falando na sala de estar, mas seus conhecimentos de russo não bastavam para entender o significado. Foi bom lavar a per­na, mas parecia que a calça havia ficado arruinada, e sua muda de roupas mais próxima devia estar agora ¯ consultou seu relógio ¯ pro­vavelmente sobre a Dinamarca. Anatoly observou-o o tempo todo. O guarda-costas retirou uma atadura de gaze do armário de remédios e auxiliou Ryan a aplicá-la no lugar, depois levou-o de volta tão gracio­samente quanto as dores de Ryan o permitiram.

Golovko ainda estava lá, embora Vatutin tivesse partido, e a cadeira vazia aguardava. Anatoly tomou seu lugar, atrás de Narmonov.

¯  O fogo está ótimo ¯ comentou Jack. ¯ Obrigado por me deixar lavar o joelho.

¯  Golovko me disse que não fomos nós que fizemos isso a você? Isso é correto?

A pergunta pareceu estranha a Jack, desde que Golovko é que estava traduzindo. Então Andrey Ilych fala um pouquinho de inglês, não é?

¯  Não, senhor. Fui eu mesmo que me feri. Não sofri nenhum tipo de maus-tratos. ¯ Só fiquei aterrorizado, pensou Ryan. Mas foi minha culpa. Narmonov olhou para ele com interesse silencioso por talvez meio minuto antes de falar novamente.

¯  Eu não precisava de sua ajuda.

¯  Não entendo o que quer dizer, senhor ¯ mentiu Ryan.

¯  Acha mesmo que Gerasimov poderia tomar meu lugar?

¯  Senhor, não sei sobre o que está falando. Minha missão era sal­var a vida de um de nossos agentes. Fazer isso significava comprome­ter o diretor-geral Gerasimov. Apenas uma questão de pescar com a isca apropriada.

¯  E pescar o peixe apropriado ¯ comentou Narmonov. O tom di­vertido em sua voz não transparecia no rosto. ¯ E seu agente era o coronel Filitov?

¯  Sim. O senhor sabe disso.

¯  Acabei de saber.

Então também sabe que Yazov está comprometido. Já pensou como eles podem ter chegado perto, camarada secretário-geral? Ryan não falou. Pro­vavelmente Narmonov também não sabia.

¯  Sabe por que ele se tornou traidor?

¯  Não, não sei. Só fui instruído sobre o que deveria saber para a missão.

¯  E portanto você não sabe de nada sobre o ataque ao nosso proje­to Estrela Brilhante?

¯  O quê? ¯ Jack ficou muito surpreso e demonstrou-o.

¯  Não me insulte, Ryan. Você conhece o nome muito bem.

¯  Fica a sudeste de Dushanbe. Eu conheço o nome. Foi atacado?

¯  Como pensei. Você sabe que isso foi um ato de guerra ¯ obser­vou Narmonov.

¯ Senhor, agentes da KGB seqüestraram um cientista americano da Iniciativa de Defesa Estratégica há vários dias. Isso foi ordenado por Gerasimov em pessoa. O nome do cientista é Alan Gregory. Ele é major do Exército dos Estados Unidos e foi salvo.

¯ Não acredito ¯ disse Golovko, antes de traduzir. Narmonov fi­cou aborrecido com a interrupção, mas chocado com o conteúdo da revelação de Ryan.

¯  Um de seus agentes foi capturado. Ele está vivo. É verdade, se­nhor ¯ garantiu Jack.

Narmonov sacudiu a cabeça e levantou-se para atirar mais uma tora de lenha no fogo. Ajeitou-a no lugar adequado com um atiçador.

¯  É loucura, sabia? ¯ disse ele da lareira. ¯ Temos uma situação perfeitamente satisfatória no momento.

¯  Desculpe? Não estou entendendo ¯ estranhou Ryan.

¯  O mundo é estável, não é? Mesmo assim, seu país quer mudar isso e nos força a perseguir o mesmo objetivo. ¯ Que o campo de tes­tes ABM em Sary Shagan estivesse operando há trinta anos, era um detalhe que não vinha ao caso no momento.

¯  Senhor secretário, se acredita que a capacidade de transformar cada cidade, cada casa de meu país em um fogo parecido com o que tem aí...

¯  Meu país também, Ryan ¯ corrigiu Narmonov.

¯  Sim, senhor, o seu país também, e mais um punhado de outros. Pode matar quase todos os civis em meu país, e podemos assassinar quase todos no seu em sessenta minutos ou menos, a partir da hora que der a ordem pelo telefone... ou que meu presidente o faça. E co­mo chamamos a isso? Chamamos de estabilidade.

¯  É estabilidade, Ryan ¯ afirmou Narmonov.

¯  Não, senhor. O nome técnico que usamos é MAD: destruição mútua assegurada, que descreve bem melhor a situação. Em inglês também significa louco, e a situação que temos é louca mesmo; o fato de que pessoas supostamente inteligentes nos colocaram nessa situa­ção não a torna menos delicada.

¯  Mas funciona, não funciona?

¯  Senhor, por que acha estabilizante manter vários milhões de pes­soas a menos de uma hora da morte? Por que tachamos de perigosas armas que possam defender as vidas dessas pessoas? Isso não é re­trocesso?

¯ Mas se nós nunca as usarmos... Acha que eu poderia viver com tamanho crime em minha consciência?

¯  Não, não acho que nenhum homem possa, mas alguém pode es­tragar tudo. Provavelmente estouraria os miolos depois de uma sema­na ou duas, mas aí seria um pouco tarde para o resto de nós. O diabo dessas coisas é que são fáceis de usar. Você aperta um botão, os mís­seis partem, e provavelmente funcionarão, porque não há nada que os detenha. A menos que algo fique no caminho das ogivas, não há razão para pensar que não funcionarão. Enquanto alguém tiver a cer­teza de que funcionarão, será muito fácil fazer uso delas.

¯  Seja realista, Ryan. Você acha que algum dia vamos conseguir nos livrar dessas armas atômicas? ¯ indagou Narmonov.

¯  Não, nós nunca nos veremos livres das armas. Sei disso. Ambos teremos a capacidade de ferir gravemente o outro, mas podemos tor­nar esse processo mais complicado do que é agora. Podemos dar a todos mais uma razão para não apertar o botão. Isso não é desestabilizante, senhor. É apenas bom senso. É só mais uma coisa para prote­ger sua consciência.

¯  Você parece seu presidente falando. ¯ Isso foi dito com um sorriso.

¯  Ele está certo. ¯ Ryan devolveu o sorriso.

¯  Já é ruim discutir as coisas com um americano. Não repetirei isso com outro. O que vão fazer com Gerasimov? ¯ perguntou o secretário-geral.

¯  Tudo vai ser tratado com muito sigilo, por motivos óbvios ¯ afir­mou Jack, esperando estar certo.

¯  Seria muito danoso para o meu governo se a deserção dele se tor­nar pública. Sugiro que ele morra num acidente aéreo...

¯  Vou transmitir isso a meu governo, se me for permitido fazê-lo. Podemos também manter o nome de Filitov longe dos jornais. Nada temos a ganhar com publicidade. Isso apenas complicaria as coisas para o seu país e o meu. Ambos queremos que o tratado so­bre armamentos prossiga, com todo o dinheiro que economizaria para os dois lados...

¯  Nem tanto ¯ observou Narmonov. ¯ Alguns pontos percentuais nos orçamentos de defesa de ambos os lados.

¯  Existe um ditado em nosso governo, senhor. Um bilhão aqui, um bilhão ali, em pouco tempo podemos juntar dinheiro de verdade. ¯ Aquilo conquistou uma gargalhada. ¯ Posso fazer uma pergunta, senhor?

¯  Continue.

¯  O que irá fazer com o dinheiro, por seu lado? Eu deveria adivi­nhar isso.

¯  Então talvez possa me oferecer alguma sugestão. O que faz você pensar que sei a resposta? ¯ perguntou Narmonov. Ele levantou-se, e Ryan fez o mesmo. ¯ De volta à sua embaixada, diga ao seu pessoal que é melhor para todos que isso nunca se torne público.

Meia hora mais tarde, Ryan era deixado na porta da frente da em­baixada. O primeiro a vê-lo foi um sargento dos fuzileiros navais. O segundo foi Candeia.

O VC-137 aterrissou em Shannon dez minutos atrasado, devido ao vento de frente sobre o mar no Norte. O chefe da tripulação e outro sargento conduziram os passageiros pela porta dianteira, e, depois que todos dei­xaram a aeronave, voltaram para abrir a porta traseira. Enquanto as câ­meras espocavam no terminal principal, uma escada foi colocada na cauda do Boeing e quatro homens saíram, vestindo os sobretudos do uniforme de sargento da Força Aérea dos Estados Unidos. Entraram num carro e foram levados para a extremidade distante do terminal, onde subiram a bordo de outro avião da 89? Ala de Transporte Aéreo Militar, um VC-20A, a versão militar do jato executivo Gulfstream-III.

¯  Olá, Misha. ¯ Mary Pat Foley encontrou-o na porta e levou-o para o interior. Ela não o havia beijado antes. Fez isso agora. ¯ Te­mos comida e bebida, e mais uma viagem de avião até chegarmos em casa. Venha, Misha. ¯ Ela tomou-lhe o braço e acompanhou-o até seu lugar.

A alguns metros, Robert Ritter cumprimentava Gerasimov.

¯  Minha família? ¯ perguntou o último.

¯  A salvo. Chegarão a Washington dentro de dois dias. Neste mo­mento estão a bordo de um submarino da Marinha dos Estados Uni­dos, em águas internacionais.

¯  Devo agradecer a você?

¯  Esperamos que coopere.

¯  Tiveram muita sorte ¯ comentou Gerasimov.

¯  É verdade ¯ concordou Ritter. ¯ Tivemos mesmo.

O carro da embaixada levou Ryan a Sheremetyevo no dia seguinte, para que apanhasse o vôo de linha num 727 da Pan Am para Frank­furt. A passagem que lhe forneceram era da classe turista, mas Ryan pagou a diferença para uma de primeira classe. Três horas mais tarde ele fez a conexão com um 747 para Dulles, também da Pan Am. Dor­miu a maior parte do trajeto.

Bondarenko sobrevivera à carnificina. Os afegães deixaram quaren­ta e sete corpos atrás de si, com evidências de muito mais. Apenas dois dos geradores de laser permaneceram incólumes. Todos os gal­pões de máquinas foram destroçados, juntamente com o auditório e os alojamentos dos solteiros. O hospital ficou em grande parte intacto, cheio de feridos. As boas novas eram que Bondarenko salvara três quar­tos do pessoal, entre cientistas e engenheiros, e quase todos os fami­liares. Quatro generais já haviam estado ali para saudá-lo como herói, prometendo medalhas e promoção, porém ele já tivera a única recom­pensa que realmente importava. Tão logo os reforços chegaram, ele providenciara para que as pessoas ficassem a salvo. Agora, apenas olha­va a paisagem do alto do teto do prédio de apartamentos.

¯  Há muito trabalho para fazer ¯ disse uma voz. O coronel, que logo se tornaria general, voltou-se.

¯  Morozov. Ainda temos dois geradores de laser. Podemos recons­truir os galpões e os laboratórios. Um ano, talvez dezoito meses.

¯  Mais ou menos isso ¯ concordou o jovem engenheiro. ¯ Os no­vos espelhos e os computadores do equipamento de controle vão de­morar pelo menos isso. Camarada coronel, as pessoas me pediram para..;

¯  E o meu trabalho, camarada engenheiro, e também precisei sal­var minha própria pele, lembra-se? Isso nunca mais vai acontecer. Do­ravante teremos aqui um batalhão de infantaria motorizada, do regimento de guardas. Já providenciei isso. Lá pelo verão, essa insta­lação será tão segura quanto qualquer lugar na União Soviética.

¯  Segura? O que significa isso, coronel?

¯  Esse será meu novo trabalho. E o seu ¯ disse Bondarenko. ¯ Está lembrado?

 

Terreno Comum

Ortiz não se surpreendeu quando o major voltou sozinho. O relatório da batalha havia durado uma hora, e novamente foram dadas ao agen­te da CIA algumas mochilas de equipamento. O bando do Arqueiro lutara para escapar, e, dos quase duzentos que haviam deixado o cam­po de refugiados, menos de cinqüenta haviam retornado naquele pri­meiro dia de primavera. O major lançou-se imediatamente ao trabalho, fazendo contatos com outros bandos, e o prestígio da missão que seu grupo levara a cabo permitiu-lhe negociar como igual com chefes mais velhos e poderosos. No espaço de uma semana preencheu suas perdas com novos e ansiosos guerreiros, e o arranjo que o Arqueiro fizera com Ortiz continuou válido.

¯  Já vai voltar? ¯ perguntou o agente da CIA ao novo líder.

¯  Claro. Estamos vencendo agora ¯ disse o major, com um grau de confiança que nem mesmo ele entendeu.

Ortiz observou-os partir ao anoitecer, uma única fila de pequenos e ferozes combatentes, agora liderados por um soldado treinado. Ele esperava que isso fizesse alguma diferença.

Gerasimov e Filitov nunca mais viram um ao outro. Os interrogató­rios, em locais separados, duraram semanas. Filitov foi levado ao Cam­po Peary, na Virgínia, onde encontrou um major de óculos do Exército americano e lhe contou o que se lembrava do progresso russo na potên­cia do laser. Parecia curioso para o velho que esse rapaz ficasse tão exci­tado com as coisas que ele decorara, mas nunca entendera completamente.

Depois disso vieram as explicações de rotina sobre a segunda car­reira que escolhera e manteve paralela à primeira. Uma geração intei­ra de agentes de campo visitou-o para tomar refeições, passear e algumas vezes beber, o que preocupava os médicos, mas não podia ser negado ao Cardeal. A área onde ficavam seus aposentos, fortemente guardada, contava até com microfones. O pessoal da escuta se espan­tou que ocasionalmente ele falasse durante o sono.

Um agente da CIA que estava a seis meses de se aposentar parou de ler o jornal local quando seus fones recomeçaram o ruído. Ele sor­riu e largou o artigo que lia sobre a ida do presidente a Moscou. Aque­le velho triste e solitário, pensou ele enquanto ouvia. A maior parte de seus amigos morreu, e ele só os vê durante o sono. Era por isso que traba­lhava para nós? O murmúrio. cessou, e nos aposentos contíguos a "ba­bá" do Cardeal voltou a ler seu jornal.

¯  Camarada capitão ¯ chamou Romanov.

¯  Sim, cabo? ¯ Parecia mais real do que a maioria dos sonhos, reparou Misha. Um momento depois soube por quê.

Estavam passando a lua-de-mel sob a proteção de oficiais de segu­rança, todos os quatro dias ¯ o"tempo mais longo que Al e Candi es­tavam dispostos a ficar longe do trabalho. O major Gregory atendeu ao telefone quando tocou.

¯  Sim... quero dizer, sim, senhor. ¯ Candi ouviu-o falar. Um sus­piro. Um tremor da cabeça na escuridão. ¯ Nem mesmo um lugar para mandar flores? Será que Candi e eu podemos... Oh, entendo. Obrigada por telefonar, general.

Ela o percebeu recolocar o telefone no lugar e exalar profunda­mente.

¯  Está acordada, Candi?

¯  Estou.

¯  Nosso primeiro filho vai se chamar Mike.

O posto de adido à Defesa na embaixada soviética em Washington, ocupado pelo major-general Grigori Dalmatov, trazia uma série de de­veres cerimoniais que conflitavam com sua missão principal, a obten­ção de informações. Ficara ligeiramente aborrecido quando recebera a chamada do Pentágono, pedindo-lhe que se dirigisse até o quartel-general militar americano ¯ para sua grande surpresa, pediram que fizesse isso trajando uniforme completo. Seu carro deixou-o na entra­da do rio, e um jovem capitão dos pára-quedistas escoltou-o para o interior, depois para o escritório do general Ben Crofter, chefe do Estado-Maior, Exército dos Estados Unidos.

¯  Posso perguntar o que está havendo?

¯  Alguma coisa que achamos que deveria presenciar, Grigori ¯ res­pondeu Crofter.

Andaram pelo edifício até o heliporto privativo do Pentágono, onde para assombro de Dalmatov subiram a bordo de um helicóptero da Marinha pertencente à frota presidencial. O Sikorski levantou vôo ime­diatamente, dirigindo-se para noroeste, pelas colinas de Maryland. Vin­te minutos mais tarde, estavam descendo. A mente de Dalmatov registrou ainda mais uma surpresa. O helicóptero aterrissava em Camp David. Um membro do corpo de guarda dos fuzileiros navais, em uni­forme azul, bateu continência ao pé das escadas enquanto deixavam a aeronave e escoltou-os através das árvores. Alguns minutos depois chegaram a uma clareira. Dalmatov não sabia que havia vidoeiros ali, talvez 2 quilômetros quadrados deles, e a clareira ficava no topo de um outeiro que permitia uma boa vista dos arredores.

Havia um buraco retangular no chão, com exatamente 2 metros de profundidade. Parecia estranho não haver lápide e que a grama tives­se sido cuidadosamente cortada e separada para reposição.

Ao redor do cenário, Dalmatov pôde distinguir mais fuzileiros na linha das árvores. Esses usavam fardas de camuflagem e cintos com pistolas. Bem, não foi particularmente uma surpresa constatar que ha­via um forte esquema de segurança, e o general achou reconfortante que na última hora pelo menos uma coisa não surpreendente ocorrera.

Um jipe apareceu primeiro. Dois fuzileiros ¯ igualmente em unifor­me azul ¯ saíram e erigiram uma plataforma pré-fabricada em volta do buraco. Eles devem ter praticado, pensou o general, já que levaram três minutos contados no relógio. Então, um caminhão de três quartos de tone­lada veio por entre as árvores, seguido de mais jipes. Acomodado na tra­seira do caminhão, havia um caixão de carvalho envernizado. O veículo chegou até perto do buraco e parou. Uma guarda de honra se formou.

¯  Posso perguntar por que estou aqui? ¯ indagou Dalmatov, quan­do não conseguiu agüentar mais.

¯  Começou sua carreira nos tanques, certo?

¯  Sim, general Crofter, assim como o senhor.

¯  É por isso que estamos aqui.

Os seis homens da guarda de honra colocaram o caixão sobre a pla­taforma. O sargento da artilharia, no comando, removeu a tampa. Crof­ter caminhou naquela direção. Dalmatov quase engasgou quando viu quem estava no interior.

¯  Misha!     

¯  Pensei que o conhecesse ¯ disse uma nova voz. Dalmatov voltou-se.

¯  Você é Ryan. Havia mais gente ali: Ritter, da CIA, o general Parks e um jovem

casal, de seus 30 anos, pensou Dalmatov. A mulher parecia estar grá­vida, embora mal se notasse ainda. Ela chorava silenciosamente na brisa suave da primavera.

¯  Sim, senhor.

O russo gesticulou em direção ao caixão.

¯  Onde... como foi que...

¯  Acabei de chegar de Moscou. O secretário-geral foi gentil em me fornecer o uniforme e as condecorações do coronel. Ele disse que... disse que, no caso desse homem, ele prefere lembrar-se dos motivos pelos quais ganhou as estrelas de ouro. Esperamos que diga a seu pes­soal que o coronel Mikhail Semyonovich Filitov, três vezes Herói da União Soviética, morreu pacificamente enquanto dormia.

Dalmatov ficou vermelho.

¯  Ele era um traidor do meu país... Não pretendo ficar aqui e escutar...

¯  General ¯ disse Ryan asperamente ¯, deve ficar claro que o secretário-geral não compartilha seus sentimentos. Esse homem pode ser um herói maior do que pensa, para o seu país e o meu. Diga-me, general, quantas batalhas travou? Quantos ferimentos recebeu em no­me de seu país? Pode mesmo olhar para esse homem e chamá-lo de traidor? De qualquer modo... ¯ Ryan gesticulou ao sargento, que fe­chou o ataúde.

Quando terminou, outro fuzileiro estendeu a bandeira soviética so­bre o caixão. Um grupo de atiradores aproximou-se e entrou em for­ma na cabeceira da sepultura. Ryan apanhou um papel em seu bolso e leu em voz alta as citações de Misha por bravura. Os fuzileiros le­vantaram as armas e dispararam uma salva. Um corneteiro fez soar o toque de silêncio.

Dalmatov ficou em posição de sentido e bateu continência. Parecia uma pena a Ryan que a cerimônia precisasse ser secreta, mas sua sin­geleza produzia dignidade, que pelo menos era adequada.

¯  Por que aqui? ¯ quis saber Dalmatov, quando a cerimônia terminou.

¯  Eu teria preferido Arlington, mas alguém poderia reparar. Bem ali naquelas colinas foi o campo de batalha Antietam. No dia mais san­grento da Guerra Civil, as forças da União repeliram a primeira invasão do general Lee, do Norte, depois de um combate desesperado. Me pareceu o lugar certo ¯ explicou Ryan. ¯ Se um herói precisa ter uma sepultura sem nome, deve pelo menos ser perto de onde tom­baram seus camaradas.

¯  Camaradas?

¯  De uma forma ou de outra, todos lutamos pelas coisas em que acreditamos. Isso não nos dá um certo terreno comum? ¯ perguntou Jack. E foi tomar seu carro, deixando Dalmatov com esse pensamento.

 

                                                                                            Ton Clancy

 

                      

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