Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CARDEAL DO KREMLIN
Parte I
Ameaças ¯ Velhas, Novas e Eternas
Eles o chamavam de Arqueiro. Era um título honorífico, já que fazia mais de um século que seus compatriotas Acham abandonado os arcos recurvos, passando a utilizar armas de fogo. O apelido, em parte, traduzia a natureza eterna da luta. O primeiro dos invasores ocidentais ¯ pois assim os consideravam ¯ fora Alexandre, o Grande, e desde então muitos outros o seguiram. Definitivamente, todos fracassaram. As tribos afegãs tinham na fé islâmica uma grande motivação para resistir, e a coragem obstinada que demonstravam fazia parte de sua herança racial tanto quanto os olhos escuros e impiedosos.
O Arqueiro era um homem jovem e velho ao mesmo tempo. Nas ocasiões em que lhe ocorria não apenas o desejo mas também a oportunidade de banhar-se num riacho de montanha, podia-se observar a musculatura jovem de seu corpo de 30 anos. Eram músculos flexíveis de um homem para quem uma escalada de trezentos metros em rocha nua equivalia a uma tarefa tão insignificante quanto uma caminhada ao correio.
Seus olhos é que haviam envelhecido. Os afegães são um povo belo e altivo, cujas feições francas e a pele lisa sofrem rápido os efeitos do vento, do sol e da poeira, que os fazem parecer mais idosos. Só que no caso do Arqueiro o desgaste não fora causado pela ação do vento. Professor de matemática até três anos antes, formado em curso superior num país onde a maioria julgava suficiente saber ler o sagrado Corão, casara-se jovem, como era o costume local, e tornara-se pai de duas crianças. Mas a mulher e a filha acabaram mortas, assassinadas por foguetes lançados por um caça de combate Sukhoi-24. Seu filho desaparecera. Seqüestrado. Depois que os soviéticos arrasaram o vilarejo da família de sua mulher com bombardeio aéreo, vieram as tropas terrestres, matando os adultos remanescentes e recolhendo todos os órfãos, para embarcá-los para a União Soviética, onde seriam educados e treinados segundo outros pontos de vista mais modernos. Tudo porque a mulher quisera que a mãe conhecesse os netos antes de morrer, recordava-se o Arqueiro, tudo porque uma patrulha soviética fora atacada a poucos quilômetros da vila. No dia em que ficara sabendo da tragédia ¯ uma semana depois do ocorrido ¯, o professor de álgebra e geometria empilhara cuidadosamente seus livros sobre a escrivaninha e partira da pequena cidade de Ghazni em direção às montanhas. Uma semana depois refornaria à cidade após o escurecer com outros três homens e provaria ser digno de seus ancestrais, matando três soldados soviéticos e apoderando-se de suas armas. Ainda trazia consigo aquele primeiro Kalashnikov.
Mas não fora por isso que ele ficara conhecido como o Arqueiro. O chefe de seu pequeno bando de mudjahidin ¯ cujo significado é "guerreiros da liberdade'' ¯ era um líder perspicaz e não menosprezara o recém-chegado que consumira a juventude em salas de aula, assimilando costumes estrangeiros. Nem levara em conta a falta de confiança que aquele jovem demonstrara inicialmente. Quando iniciara no grupo, o professor possuía um conhecimento muito superficial do islamismo, mas o chefe acabou por recompensá-lo pelas lágrimas amargas que vertera copiosamente por seus olhos inocentes enquanto o imã o aconselhava a seguir a vontade de Alá. No período de um mês, o jovem professor tornara-se o mais implacável ¯ e o mais eficiente ¯ guerreiro do grupo, obviamente um instrumento da vontade divina. E fora ele o escolhido pelo líder para viajar ao Paquistão, onde poderia usar seus conhecimentos científicos e matemáticos para aprender a utilizar os mísseis terra-ar, SAM. Os primeiros mísseis SAM com que aquele homem sério e calado do "Amerikastão" equipou os mudjahidin foram os modelos soviéticos SA-7, conhecidos pelos russos como strela, "flecha". Como eram os primeiros SAM do tipo "portátil", não se revelaram muito eficazes, a menos que fossem utilizados com grande habilidade. Poucos homens possuíam tal habilidade. Dentre eles, o professor de aritmética era o melhor, e por seus sucessos com as "flechas" russas os companheiros passaram a chamá-lo de Arqueiro.
Naquele momento, ele estava de tocaia, com um novo míssil, um modelo americano denominado Stinger, "ferrão", apesar de que agora todos os mísseis terra-ar em seu grupo ¯ e na realidade em toda a região ¯ eram conhecidos tão-somente como flechas: arsenal do Arqueiro. Aguardava de bruços numa saliência estreita e pontiaguda, cem metros abaixo do topo da montanha, de onde dominava a vista de um vale desértico. A seu lado estava Abdul, seu batedor. O nome significava "criado", apropriadamente, uma vez que o adolescente carregava dois mísseis adicionais para seu tubo lançador de foguetes e, mais importante, tinha olhos de falcão. Eram olhos ardentes. O rapaz era órfão.
O Arqueiro esquadrinhava o terreno montanhoso, especialmente as bordas elevadas, com uma expressão que refletia uma experiência milenar de combate. Embora bastante amigável, era raro vê-lo sorrir; não demonstrava interesse em conseguir uma nova esposa, nem mesmo em unir sua solidão à de alguma viuva recente. Em sua vida só havia lugar para uma paixão.
¯ Ali ¯ declarou Abdul, estendendo o braço.
¯ Já vi.
A batalha que se desenrolava no fundo do vale ¯ uma das muitas daquele dia ¯ já durava cerca de trinta minutos, tempo suficiente para que os soldados soviéticos recebessem o apoio de sua base de helicópteros, que ficava
O Stinger fora uma surpresa desagradável para os russos, que vinham mudando diariamente suas táticas aéreas para fazer frente à nova ameaça. O vale era profundo, porém mais estreito do que os demais. Para o piloto atingir os companheiros de guerrilha do Arqueiro, precisaria vir pelo fundo da apertada passagem rochosa. Ele tinha de permanecer no alto, pelo menos a
Mas não fora por isso que ele ficara conhecido como o Arqueiro. O chefe de seu pequeno bando de mudjahidin ¯ cujo significado é "guerreiros da liberdade'' ¯ era um líder perspicaz e não menosprezara o recém-chegado que consumira a juventude em salas de aula, assimilando costumes estrangeiros. Nem levara em conta a falta de confiança que aquele jovem demonstrara inicialmente. Quando iniciara no grupo, o professor possuía um conhecimento muito superficial do islamismo, mas o chefe acabou por recompensá-lo pelas lágrimas amargas que vertera copiosamente por seus olhos inocentes enquanto o imã o aconselhava a seguir a vontade de Alá. No período de um mês, o jovem professor tornara-se o mais implacável ¯ e o mais eficiente ¯ guerreiro do grupo, obviamente um instrumento da vontade divina. E fora ele o escolhido pelo líder para viajar ao Paquistão, onde poderia usar seus conhecimentos científicos e matemáticos para aprender a utilizar os mísseis terra-ar, SAM. Os primeiros mísseis SAM com que aquele homem sério e calado do "Amerikastão" equipou os mudjahidin foram os modelos soviéticos SA-7, conhecidos pelos russos como strela, "flecha". Como eram os primeiros SAM do tipo "portátil", não se revelaram muito eficazes, a menos que fossem utilizados com grande habilidade. Poucos homens possuíam tal habilidade. Dentre eles, o professor de aritmética era o melhor, e por seus sucessos com as "flechas" russas os companheiros passaram a chamá-lo de Arqueiro.
Naquele momento, ele estava de tocaia, com um novo míssil, um modelo americano denominado Stinger, "ferrão", apesar de que agora todos os mísseis terra-ar em seu grupo ¯ e na realidade em toda a região ¯ eram conhecidos tão-somente como flechas: arsenal do Arqueiro. Aguardava de bruços numa saliência estreita e pontiaguda, cem metros abaixo do topo da montanha, de onde dominava a vista de um vale desértico. A seu lado estava Abdul, seu batedor. O nome significava "criado", apropriadamente, uma vez que o adolescente carregava dois mísseis adicionais para seu tubo lançador de foguetes e, mais importante, tinha olhos de falcão. Eram olhos ardentes. O rapaz era órfão.
O Arqueiro esquadrinhava o terreno montanhoso, especialmente as bordas elevadas, com uma expressão que refletia uma experiência milenar de combate. Embora bastante amigável, era raro vê-lo sorrir; não demonstrava interesse em conseguir uma nova esposa, nem mesmo em unir sua solidão à de alguma recente. Em sua vida só havia lugar para uma paixão.
¯ Ali ¯ declarou Abdul, estendendo o braço.
¯ Já vi.
A batalha que se desenrolava no fundo do vale ¯ uma das muitas daquele dia ¯ já durava cerca de trinta minutos, tempo suficiente para que os soldados soviéticos recebessem o apoio de sua base de helicópteros, que ficava
O Stinger fora uma surpresa desagradável para os russos, que vinham mudando diariamente suas táticas aéreas para fazer frente à nova ameaça. O vale era profundo, porém mais estreito do que os demais. Para o piloto atingir os companheiros de guerrilha do Arqueiro, precisaria vir pelo fundo da apertada passagem rochosa. Ele tinha de permanecer no alto, pelo menos a
Vagarosamente, o Arqueiro levantou o lançador e apontou a mira de dois elementos para o helicóptero que se aproximava. Deslizando o polegar para o lado e para baixo, pressionou a chave que ativava o sistema e apoiou o rosto na barra de condutância, escutando o suave apito eletrônico da unidade de busca do lançador. O piloto já fizera a estimativa e tomara sua decisão. Aproximava-se pelo lado oposto do vale, um pouco além do alcance de um míssil, para a primeira carga sobre o inimigo. O nariz do Hind vinha abaixado, e o artilheiro, sentado à frente e um pouco abaixo do piloto, apontava as armas na direção dos combatentes. Do chão do vale brotaram pequenas colunas de fumaça. Os soldados soviéticos utilizavam o fogo de morteiros para indicar as posições atacantes e o helicóptero alterou o curso levemente. Chegava o momento. Dos suportes de foguetes do helicóptero irromperam chamas e a primeira salva de artilharia partiu para o solo.
Nesse momento, um outro rastro de fumaça lançou-se para cima. O helicóptero guinou para a esquerda, bem longe da trajetória do projétil, que o piloto interpretou como inofensivo no momento, mas ainda assim um sinal de perigo. O Arqueiro firmou as mãos no lançador. O helicóptero fazia um desvio que o trazia mais para perto, aumentando de tamanho no anel interior da mira. Agora estava dentro do alcance. O Arqueiro golpeou o botão dianteiro com o polegar esquerdo, "liberando" o míssil e permitindo que a ogiva infravermelha de busca do Stinger tivesse a sua primeira "visão" do calor que se irradiava das turbinas do Mi-24. O som que penetrava pelo osso malar até seus ouvidos mudou de freqüência. O míssil agora rastreava o alvo. O piloto do Hind resolveu atingir a área de onde o "míssil" fora lançado, trazendo o aparelho ainda mais para a esquerda numa curva suave. Inadvertidamente, virou de tal maneira que o escape dos jatos ficou voltado para a posição em que estavam os guerrilheiros na encosta.
O míssil emitia agora um apito de prontidão, mas o Arqueiro não se moveu. Tentou pensar como o piloto inimigo, julgando que ele ainda tentaria aproximar-se mais antes de ter a posição ideal de tiro contra os odiados guerrilheiros afegães. E foi o que aconteceu. Quando o Hind encontrava-se à distância de
O lançador saltou em suas mãos quando o Stinger partiu num arco suave para cima, antes de riscar os ares em busca do alvo. Os olhos do Arqueiro eram penetrantes o suficiente para distinguir o fino e quase invisível rastro de fumaça. O míssil exibiu suas aletas de direção, que se moveram por poucas frações de milímetro, obedecendo às ordens de comando do cérebro computadorizado ¯ um microchip do tamanho de um selo. Nas alturas, a bordo do circulante An-26, um observador distinguiu a minúscula nuvem de fumaça e estendeu o braço na direção do microfone para dar o alerta, mas sua mão mal tocou o instrumento plástico antes que o míssil se chocasse com o alvo.
O míssil entrou diretamente num dos motores do helicóptero e explodiu, deixando-o instantaneamente fora de combate. O eixo transmissor do rotor traseiro partiu-se, e o Hind começou a girar para a esquerda, enquanto o piloto tentava desesperadamente entrar em auto-rotação, procurando abaixo um local plano, e o artilheiro emitia um estridente pedido de socorro pelo rádio. O piloto colocou o motor em marcha lenta, ajustando o manche para torque controlado, avistou um espaço relativamente plano abaixo, desligou os comutadores e ativou o sistema extintor de bordo. Como todos os homens que voam, temia o fogo acima de tudo, embora fosse verificar seu erro mais cedo do que esperava.
O Arqueiro observou o Mi-24 bater de nariz contra a base do penhasco,
O piloto lutava com as correias que o prendiam de cabeça para baixo ao assento. Estava sentindo dores, mas sabia que só os vivos sentem dor. O novo modelo de helicóptero tinha aperfeiçoados sistemas internos de segurança. À custa deles e da própria habilidade conseguira salvar sua vida. Mas não a de seu artilheiro, como constatou olhando para o lado. O homem estava imóvel, com o pescoço quebrado e os braços pendendo em direção ao chão. Só que agora não havia tempo para lamentar coisa alguma, com o assento destroçado e a armação metálica da cabine amassada transformada em verdadeira jaula. O fecho de emergência tinha enguiçado e os parafusos explosivos recusavam-se a detonar. Apanhou sua pistola do coldre no ombro e começou a atirar metodicamente na grade. Perguntava-se se o An-26 acima tinha recebido sua chamada de emergência. Imaginou se o helicóptero de apoio da base já estaria a caminho. O rádio de salvamento estava num bolso de sua calça, e ele o ativaria assim que saísse do aparelho danificado. Cortou as mãos ao afastar as tiras de metal, abrindo espaço suficiente para passar o corpo. Agradeceu a sorte de não terminar seus dias numa pira funerária de graxa e metal enquanto soltava as correias e saía do aparelho para o solo pedregoso.
Sua perna esquerda estava quebrada. A ponta afiada e esbranquiça-da de um osso perfurava o macacão; embora não sentisse dor ainda devido ao choque, a simples visão do ferimento deixou-o horrorizado. Guardou a pistola descarregada na cartucheira e apanhou um pedaço de metal para usar como bengala. Precisava sair logo dali. Rastejou penosamente até a encosta íngreme, onde divisou o que parecia ser uma trilha. As forças aliadas estavam a
O Arqueiro abençoou o nome de Alá ao sacar a faca da bainha.
Não podem ter deixado muita coisa aí dentro, pensou Ryan. O casco parecia intacto ¯ pelo menos à primeira vista ¯, mas exibia sinais de remendos malfeitos, tão evidentes quanto as cicatrizes do monstro do barão Frankenstein. Uma comparação bastante apropriada, refletiu ele. O homem construía dessas coisas, que podiam um dia destruir seu criador no espaço de uma hora.
¯ Meu Deus, é impressionante como eles parecem grandes por fora...
¯ E pequenos por dentro? ¯ completou Marko, com uma ponta de tristeza.
Não fazia muito tempo que o capitão Marko Ramius, da Voyenno Morskoi Flot, trouxera o submarino para o dique seco onde se encontrava. Não permanecera para presenciar os técnicos da Marinha americana dissecando a embarcação, como médicos-legistas debruçados sobre um cadáver, removendo os mísseis, o reator nuclear, os sonares, os computadores de bordo e equipamentos de comunicação, os peris-cópios e até mesmo os fogões da cozinha, tudo destinado a ser analisado em bases espalhadas pelos Estados Unidos afora. A autorização para ausentar-se fora concedida a seu próprio pedido. O ódio que Ramius devotava ao regime soviético não se estendia às embarcações que construíam. Navegara bem naquele submarino ¯ e o Outubro Vermelho, em russo Krazny Oktyabr, salvara sua vida.
E a de Ryan também. Jack passou os dedos sobre o cicatriz na testa, ao lado do couro cabeludo, e imaginou se teriam limpado seu sangue do console em frente ao timão.
¯ Pensei que fosse oferecer-se para levá-lo ¯ declarou ele a Ramius.
¯ Não. ¯ Marko balançou a cabeça. ¯ Só queria me despedir. Era um bom barco.
¯ Bom mesmo ¯ concordou Jack, baixinho.
Procurou com o olhar o buraco mal remendado que o torpedo Alfa fizera no casco a bombordo, e balançou a cabeça em silêncio. Bom o suficiente para salvar meu rabo quando aquele torpedo explodiu. Os dois homens observavam em silêncio, um pouco afastados dos marinheiros e fuzileiros navais que cuidavam da segurança da área desde dezembro anterior.
O dique seco começava a ser alagado, a água imunda do rio Eliza-beth penetrando lentamente no tanque de concreto. Eles o levariam aquela noite. Seis submarinos americanos de ataque rápido estavam agora "varrendo" a área oceânica a leste da Base Naval de Norfolk, participando ostensivamente de um exercício que também envolvia algumas belonaves de superfície. Eram 9 horas de uma noite sem lua. Iria demorar pelo menos uma hora para inundar o dique seco. A tripulação de trinta homens já se encontrava a bordo. Acionariam os motores diesel e a embarcação partiria em sua segunda e última viagem, rumando para a profunda fossa ao norte de Porto Rico, onde seria afundada em
Ryan e Ramius observavam enquanto a água cobria os dormentes de madeira que suportavam o casco, molhando a quilha do submarino pela primeira vez em quase um ano. A água chegava com mais rapidez agora, subindo pelas marcas de flutuação máxima pintadas a vante e a ré e na proa. No convés, um punhado de marinheiros usando coletes salva-vidas de cor alaranjada berrante preparava-se para soltar as catorze amarras que mantinham firme a embarcação.
O submarino em si continuava imóvel. O Outubro Vermelho acolhia a água com indiferença. Talvez saiba do destino que o aguarda, disse Ryan a si mesmo. Era um pensamento bobo ¯ mas também sabia que há milênios os homens do mar atribuíam personalidade ao navio no qual serviam.
Finalmente o submarino se moveu. A água fez o casco flutuar acima dos dormentes de madeira. Seguiu-se uma série de ruídos ocos e abafados, mais sentidos através do piso que escutados, à medida que o casco se elevava alguns centímetros de cada vez.
Minutos depois, os motores diesel da embarcação roncaram com vida e os homens que manejavam os cabos começaram a recolhê-los. Ao mesmo tempo, a lona que cobria a saída voltada para o mar foi retirada e todos puderam ver a névoa suspensa sobre o rio lá fora. As condições eram perfeitas para a operação. Tinham de ser, a Marinha aguardara seis semanas por uma noite sem lua e pelo espesso nevoeiro que costumava cobrir a região da baía de Chesapeake naquela época do ano. Quando a última amarra foi solta, um oficial na torre do submarino levantou uma buzina a ar comprimido e produziu um único e lamentoso som.
¯ A caminho! ¯ gritou ele, enquanto os marinheiros na proa retiravam a bandeira.
Pela primeira vez, Ryan percebeu que era o pavilhão soviético. Sorriu. Era um toque simpático. Na popa, outro marinheiro hasteava a bandeira naval soviética, com a brilhante estrela vermelha adornada pelo escudo da Esquadra do Norte. A Marinha, sempre zelosa de suas tradições, saudava o homem que estava a seu lado.
Ryan e Ramius observaram o submarino quando ele começou a mover-se impulsionado pelos próprios motores, as duas hélices de bronze girando suavemente em rotação inversa à medida que a embarcação penetrava de marcha a ré no curso do rio. Aproveitando o apoio de um dos cabos, virou para o norte. Em mais um minuto tinha desaparecido de vista. Só o ronco dos motores era audível por sobre a água oleosa do estaleiro.
Marko assoou o nariz e piscou meia dúzia de vezes. Quando desviou os olhos da água, sua voz estava firme.
¯ Então, Ryan, trouxeram você da Inglaterra para isso?
¯ Não, já faz algumas semanas que voltei. Um novo trabalho.
¯ Pode dizer que trabalho é? ¯ interessou-se Marko.
¯ Controle de armamentos. Querem que eu coordene a parte de Inteligência para a comissão de negociações. Teremos que partir em janeiro.
¯ Moscou?
¯ Isso. E uma sessão preliminar: organizar a agenda, fazer um pouco de trabalho técnico, esse tipo de coisas. E você?
¯ Eu trabalho nas Bahamas com o AUTEC, o Centro de Avaliação e Testes de Submarinos no Atlântico. Bastante sol e praia. Não reparou no meu bronzeado? ¯ Ramius sorriu. ¯ Venho a Washington a cada dois ou três meses. Daqui a cinco horas vou pegar o vôo de volta. Estamos trabalhando em um novo projeto, bastante tranqüilizador. ¯ Deu outro sorriso. ¯ É sigiloso.
¯ Ótimo! Então quero que apareça em minha casa. Ainda estou
lhe devendo um jantar. ¯ Jack estendeu um cartão. ¯ Aqui está meu número. Telefone alguns dias antes de chegar e eu providencio as coisas com a Agência.
Ramius e seus auxiliares estavam sob um regime muito severo de proteção pelos agentes da CIA. O que realmente surpreendia era o fato de que a história não houvesse vazado. Nenhum dos meios de comunicação ficara sabendo, e, se a segurança era tão boa quanto parecia, provavelmente os russos não tinham idéia do paradeiro de seu submarino lançador de mísseis, o Outubro Vermelho. A essa altura, ele devia estar guinando para leste, pensou Jack, para passar além do túnel de Hampton Roads. Mais ou menos dali a uma hora, mergulharia e seguiria para sudeste. Ele balançou a, cabeça.
A tristeza de Ryan com o destino da embarcação diminuiu quando ele recordou o propósito de sua construção. Lembrava-se ainda da sensação que tivera um ano antes, a primeira vez que estivera tão perto daqueles acontecimentos tenebrosos. Jack concordava com o fato de que as armas nucleares mantinham a paz ¯ se é que se podia chamar de paz as condições em que o mundo se encontrava ¯, porém, como a maioria das pessoas, acreditava que devia haver uma maneira melhor de preservá-la. Bem, de qualquer maneira era um submarino, vinte e seis mísseis e cento e oitenta e duas ogivas nucleares a menos. Estatisticamente, disse Ryan a si mesmo, não faz tanta diferença assim.
Mas já era alguma coisa.
A
A maioria dos trabalhadores era constituída de jovens e ambiciosos membros do Komsomol, Liga da Juventude Comunista, trazidos para terminar um projeto de construção iniciado em 1983. Um deles, candidato a mestrado em física na Universidade Estatal de Moscou, afastou a chuva dos olhos e endireitou as costas doloridas de permanecer na mesma posição. Aquela não era maneira de se ocupar um jovem e promissor engenheiro, pensou Morozov. Em vez de ficar brincando com instrumentos de observação, poderia estar construindo geradores de laser em seu laboratório, contudo pretendia tornar-se membro efetivo do Partido Comunista da União Soviética, e desejava evitar o serviço militar. A combinação do adiantamento escolar e do trabalho para o Komsomol conduziria a esse último objetivo.
¯ Então?
Morozov voltou-se para um dos engenheiros locais. Um engenheiro civil, ao que parecia, que se qualificava como um homem que entendia de concreto.
¯ A posição está correta, camarada engenheiro.
O homem mais velho inclinou-se para observar através do visor.
¯ Concordo. E graças ao bom Deus este é o último.
Os dois tiveram um sobressalto ao escutar uma explosão distante. Engenheiros do Exército Vermelho destruindo mais uma formação rochosa fora do perímetro delimitado. Não é necessário ser soldado para entender o que está acontecendo, pensou Morozov.
¯ Você tem jeito para lidar com instrumentos ópticos. Talvez venha a tornar-se um engenheiro civil também, hein? Construir coisas úteis para o Estado!
¯ Não, camarada. Eu estudo física avançada... Principalmente laser. ¯ Também são conhecimentos úteis.
¯ Nesse caso talvez ainda volte para esses lados... ¯ O engenheiro grunhiu, balançando a cabeça. ¯ Deus o ajude.
¯ E isso...
¯ Você não ouviu nada de mim ¯ declarou o engenheiro com firmeza.
¯ Compreendo... ¯ admitiu baixinho Morozov. ¯ Já suspeitava.
¯ Se fosse você, eu seria muito cuidadoso ao externar essas suspeitas ¯ aconselhou o engenheiro, voltando o rosto para o caminho de volta.
¯ Esse deve ser um ótimo lugar para ver as estrelas ¯ observou Morozov, aguardando a resposta correta.
¯ Eu não saberia dizer... ¯ O engenheiro civil sorriu. ¯ Nunca encontrei um astrônomo.
Morozov também sorriu interiormente. Ele tinha razão em suas suposições, afinal. Eles haviam acabado de marcar a posição onde seriam montados espelhos, todos eqüidistantes de um ponto central na construção fortemente guarnecida por guardas armados. Uma tamanha precisão, ele sabia, só poderia ter duas aplicações. Uma delas era a astronomia, que captava a luz vinda do céu. A outra aplicação envolvia luz subindo para o céu. O jovem engenheiro disse a si mesmo que era esse o lugar para onde queria ir. Esse local mudaria o mundo.
A Recepção do Partido
Os negócios estavam em andamento. Todos os tipos de negócios. Todos ali sabiam disso. Todos ali participavam deles. Todos ali dependiam deles. E ainda assim todos ali se dedicavam de uma maneira ou de outra a obstruí-los. Para cada pessoa ali no Salão São Jorge do Grande Palácio do Kremlin, o dualismo era um componente normal da vida.
Os participantes eram principalmente russos e americanos, e dividiam-se em quatro grupos.
Em primeiro lugar vinham os políticos e diplomatas. Podiam-se distingui-los facilmente pelas roupas caras e bem confeccionadas, pela postura ereta, e pelos sorrisos mecânicos, automáticos, além da pronúncia cuidadosa, mesmo depois de várias doses de álcool. Eles eram os superiores, sabiam disso, e sua atitude o denunciava.
Em segundo, os militares. Não se podiam realizar negociações sobre armamentos sem incluir os homens que controlavam as armas, faziam sua manutenção, os testes e as mimavam, repetindo o tempo todo que os políticos que controlavam os homens nunca dariam a ordem de disparar. Os militares com seus uniformes permaneciam sobretudo em pequenos grupos homogêneos por nacionalidade e patente, cada um segurando um copo de bebida pela metade e um guardanapo na mão, enquanto examinavam o salão com olhares inexpressivos, como se procurassem uma ameaça num campo de batalha desconhecido. Pois era exatamente essa a impressão que tinham, de um campo de batalha sem sangue onde seriam definidos os verdadeiros combates se os figurões políticos chegassem a perder o controle, a perder a calma, a perder a perspectiva, a perder o que quer que existia no interior de um homem que tenta evitar o desperdício inútil de vidas jovens. Os militares confiavam apenas uns nos outros, e em alguns casos confiavam mais nos inimigos que usavam uniformes diferentes do que em seus superiores de roupas finas. Pelo menos sempre se podia saber de que lado estava um militar. Não se podia dizer o mesmo dos políticos, mesmo dos compatriotas. Os militares conversavam entre si em voz baixa, sempre observando para saber se alguém estava escutando, parando ocasionalmente para um rápido gole, acompanhado de mais um olhar pelo salão. Eles eram as vítimas, mas também os predadores ¯ os cães, talvez, mantidos na coleira por aqueles que se intitulavam donos dos eventos.
Os militares também tinham problemas para acreditar nisso.
Em terceiro lugar, vinham os jornalistas. Também podiam ser reconhecidos pelas roupas, que sempre se encontravam amassadas, em virtude de serem dobradas repetidas vezes em malas menores do que o desejável. Eles careciam do refinamento dos políticos, assim como dos sorrisos permanentes, substituídos por olhares inquisidores infantis, combinados ao cinismo dos dissolutos. De preferência, mantinham o copo na mão esquerda, algumas vezes com um pequeno bloco fazendo as vezes de guardanapo, enquanto uma caneta ficava meio disfarçada na direita. Circulavam como aves de rapina. Se um deles encontrava alguém disposto a falar, os outros notavam e vinham beber as informações. Um observador casual poderia perceber quão interessante era a informação pela velocidade com que o grupo saía em busca de uma nova fonte. Nesse sentido os americanos e os outros jornalistas ocidentais tinham um comportamento diferente do de seus colegas soviéticos, que na maior parte se mantinham solidários aos seus senhores, como condes de outras épocas, não só por mostrar lealdade ao Partido, como também agindo como proteção contra os colegas de outros países. Mas, juntos, formavam a platéia na peça teatral que tinha lugar ali.
Em quarto lugar, vinha o grupo final, invisível, aqueles que não se podiam identificar com facilidade. Eram os espiões, e os agentes da contra-espionagem que os caçavam. Distinguiam-se dos agentes de segurança, que encaravam a todos abertamente com ar de suspeita. No interior do salão, os espiões ficavam tão invisíveis quanto os garçons que circulavam com pesadas bandejas de prata cheias de taças de cristal com champanhe e cálices de vodca, requisitados à Casa dos Roma-nov. Alguns dos garçons eram agentes de contra-espionagem, é claro. Esses tinham que circular pelo salão, de ouvido atento a trechos de conversa, a uma voz baixa demais, ou alguma palavra que não se encaixasse ao espírito da reunião. Não era uma tarefa nada fácil. Num dos cantos, um quarteto de cordas tocava música de câmara, à qual ninguém parecia prestar atenção, mas, como aquilo era próprio das recepções diplomáticas, a ausência de músicos seria notada com certeza. Depois havia ainda o volume da voz humana. No interior do salão circulavam por volta de cem pessoas, cada uma falando pelo menos durante a metade do tempo. Os que estavam próximos ao quarteto eram obrigados a falar mais alto para serem ouvidos. Todo o barulho resultante estava contido num salão de
Mas os espiões estavam ali. Todos sabiam disso. Qualquer um em Moscou poderia falar sobre espiões. Se você se encontrasse regularmente com um ocidental, o mais prudente seria relatar o fato, pois, se um policial da Milícia de Moscou ¯ ou um oficial do Exército com sua maleta ¯ passasse pelo local, voltaria a cabeça e faria anotações. Talvez superficiais, talvez não. Os tempos haviam mudado desde Stá-lin, claro, porém a Rússia ainda era a Rússia, e a desconfiança em relação aos estrangeiros e suas idéias era muito mais antiga do que qualquer ideologia.
A maior parte das pessoas no salão tinha conhecimento de tudo isso, mas procurava não pensar muito no assunto ¯ exceto os que realmente participavam do jogo. Os diplomatas e políticos estavam mais acostumados a tomar cuidado com o que diziam e não pareciam especialmente preocupados no momento. Para os jornalistas, tudo não passava de um jogo fabuloso que na verdade não os interessava, embora cada jornalista ocidental soubesse ipso facto que aquele ou aquela fosse na verdade um agente da espionagem do governo soviético. Os militares eram os que mais se preocupavam. Sabiam a importância da Inteligência, precisavam dela, avaliavam-na e, acima de tudo, desprezavam os que reuniam as informações pela sujeira em que estavam metidos.
Quem eram os espiões?
Claro que um punhado de pessoas não se encaixava em nenhuma das categorias ¯ ou encaixava-se em mais de uma.
¯ E o que achou de Moscou, doutor Ryan? ¯perguntou um russo.
Jack interrompeu o exame que fazia do belo relógio do Salão São Jorge.
¯ Fria e escura, receio ¯ respondeu Ryan, depois de dar um gole em sua taça de champanhe. ¯ Não que nós tivéssemos tido chance de ver muita coisa.
O grupo de americanos não veria muita coisa mesmo. Estavam há apenas quatro dias na União Soviétiva e voariam de volta no dia seguinte, depois de concluírem a sessão técnica que precedia a sessão plenária.
¯ É uma pena ¯ comentou Sergey Golovko.
¯ É verdade ¯ concordou Jack. ¯ Se toda a arquitetura por aqui é bonita assim, gostaria de ter alguns dias só para admirá-la. Quem quer que tenha construído essa casa tinha classe.
Indicou aprovadoramente com um gesto as paredes brancas e uniformes, a cúpula do teto e os adornos de ouro. Na verdade ele achava um pouco exagerado, mas sabia que os russos tinham uma tendência nacional a exagerar em muitas coisas. Para os russos, que raramente tinham o bastante de qualquer coisa, "ter o suficiente" significava ter mais do que os outros; de preferência, mais do que todos os outros. Ryan considerava esse modo de pensar a evidência de um tipo de complexo de inferioridade nacional, e lembrou a si mesmo que as pessoas que se sentiam inferiores tinham um desejo patológico de questionar as próprias percepções. Esse fator dominava todos os aspectos do processo de controle de armas, deslocando a própria lógica como a base para se alcançar um acordo.
¯ Os decadentes Romanov! ¯ observou Golovko. ¯ Tudo vindo do suor dos camponeses.
Ryan riu polidamente.
¯ Bom, pelo menos algum dinheiro dos impostos foi aplicado em algo belo, inofensivo... e imortal. Se quer saber minha opinião, é melhor do que comprar armas feias que se tornam obsoletas em dez anos. Aí está uma idéia, Sergey Nikolayevich. Precisamos redirecionar nossas competições político-militares para a beleza, em vez de para as armas nucleares.
¯ Está satisfeito com os progressos, então?
Negócios. Ryan encolheu os ombros e continuou e apreciar o salão.
¯ Acho que já concordamos sobre a agenda. Depois, aquele pessoal ao lado da lareira vai tratar dos detalhes. ¯ Olhou para um dos enormes candelabros de cristal, imaginando quantos anos de esforço teria custado e como devia ter sido difícil pendurar um objeto que pesava tanto quanto um automóvel pequeno.
¯ Está satisfeito com o aspecto da "verificabilidade"?
Está confirmado, pensou Ryan, com um sorriso. Golovko é da GRU,
a agência soviética de Inteligência militar. E a ela estavam afetos os Meios Técnicos Nacionais, expressão que designava satélites-espiões e outros métodos de observação de países inimigos, assuntos que nos Estados Unidos eram tratados pela CIA. A despeito de a minuta do acordo mencionar inspeção no local, a maior parte desse item, no texto final do acordo, versaria sobre os satélites-espiões. Essa devia ser a área de Golovko.
Não era nenhum segredo que Jack trabalhava para a CIA, nem tinha que ser, pois ele não era um agente de campo. Sua ligação com o grupo de negociações devia-se a uma questão de lógica. Sua função atual estava relacionada ao controle de certos sistemas de armas estratégicas no interior da União Soviética. Antes de assinar qualquer tratado, cada lado precisava satisfazer sua própria paranóia institucionalizada, certificando-se de que nenhum truque estava sendo aplicado ao outro. Jack aconselhava o chefe das negociações nesse sentido. Isto é, quando ele estava disposto a ouvir.
¯ A verificabilidade é uma questão técnica e difícil ¯ replicou depois de um momento. ¯ Receio que eu não tenha competência para falar sobre isso. O que o seu pessoal achou da nossa proposta de limitar o número de equipamentos baseados em terra?
¯ Nós dependemos mais dos mísseis baseados em terra do que vocês ¯ declarou Golovko baixando a voz, mais cauteloso ao abordar o cerne da posição soviética.
¯ Não entendo por que não colocam mais ênfase nos submarinos, como nós...
¯ Confiabilidade, como bem sabe.
¯ O que é isso, os submarinos são confiáveis... ¯ provocou Jack, continuando a examinar o relógio. Era simplesmente magnífico. Um militante com jeito de camponês estendia uma espada a outro camarada, incitando-o para que ele fosse à luta. Não ê exatamente uma idéia nova, pensou Jack, o velho espertalhão mandando algum garoto para morrer em seu lugar.
¯ Lamento dizer que tivemos alguns acidentes.
¯ Ouvi dizer, aquele ianque que naufragou nas Bermudas...
¯ E o outro.
¯ Como? ¯ Jack foi obrigado a voltar-se, fazendo um esforço para não sorrir.
¯ Por favor, doutor Ryan, não insulte minha inteligência. Conhece a história do Outubro Vermelho tão bem quanto eu.
¯ Como é o nome? Já sei: o Typhoon que vocês perderam ao largo das Carolinas. Nessa época eu estava em Londres. Não recebi informações sobre o caso.
¯ De qualquer modo acho que os dois acidentes ilustram bem os problemas que nós, soviéticos, enfrentamos. Não podemos confiar em nossos submarinos tão completamente quanto vocês confiam nos seus.
¯ Hum. ¯ Isso sem mencionar os pilotos, pensou Ryan, tendo o cuidado de manter o rosto impassível.
¯ Posso fazer uma pergunta objetiva? ¯ insistiu Golovko.
¯ Claro, desde que não espere uma resposta objetiva ¯ retrucou Ryan.
¯ Sua comunidade de informações vai aprovar nossa proposta de tratado de desarmamento?
¯ E agora, como é que eu poderia saber a resposta a uma pergunta dessas? ¯ Jack interrompeu-se. ¯ E quanto à sua Inteligência?
¯ Eles farão o que nossos órgãos de segurança estatal disserem para fazer ¯ assegurou Golovko.
Ele tem razão, disse Ryan a si mesmo.
¯ Em nosso país, se o presidente decide apoiar um tratado de limitação de armamentos, e acha que pode aprová-lo no Senado, então não importa muito o que a CIA e o Pentágono achem...
¯ Mas seu complexo industrial-militar... ¯ interrompeu Golovko.
¯ Meu Deus, vocês adoram bater nessa tecla! Sergey Nikolayevich, você, melhor do que ninguém, devia saber...
Mas Golovko era um agente de Inteligência militar, e talvez não soubesse, lembrou-se Ryan tarde demais. A extensão dos pontos nos quais os Estados Unidos e a União Soviética se desentendiam era um assunto ao mesmo tempo divertido e incrivelmente perigoso. Jack perguntou-se se a comunidade de informações dali tentava obter a verdade, como a CIA fazia agora, ou simplesmente dizia o que seus senhores queriam ouvir, como a CIA tinha feito demasiadas vezes no passado. Achou que a última hipótese era mais provável. As agências russas de Inteligência eram politizadas, exatamente como a CIA costumava ser. Um ponto a favor do juiz Moore foi que ele deu duro para pôr fim a essa situação. Mas ele não ambicionava de modo algum ser presidente, o que o distinguia de seus equivalentes soviéticos. Um diretor da KGB, Comissão para a Segurança do Estado, conseguira chegar até o topo, e pelo menos um outro tentara. Isso fazia da KGB um organismo político, o que lhe afetava a objetividade. Jack suspirou em seu champanhe. Os problemas entre os dois países não terminariam se as falsas percepções desaparecessem, mas pelo menos as coisas ficariam mais fáceis de controlar.
Talvez. Ryan admitiu para si mesmo que essa solução poderia ser
tão falsa quanto todas as outras; afinal de contas, nunca tinha sido tentada antes.
¯Posso fazer uma sugestão?
¯Certamente ¯ respondeu Golovko.
¯ Vamos deixar de lado os negócios e você me conta tudo sobre esta sala enquanto eu saboreio o meu champanhe. ¯ Isso vai economizar tempo a nós dois quando formos escrever nossos relatórios amanhã.
¯ Talvez queira um cálice de vodca.
¯ Não, obrigado. Esse champanhe é muito bom. É fabricado aqui mesmo?
¯ É feito aqui na Geórgia ¯ informou Golovko orgulhosamente. ¯ Pessoalmente, acho melhor que o francês.
¯ Não me importaria nem um pouco em levar algumas garrafas para casa ¯ arriscou Jack.
Golovko deu um riso curto, numa manifestação de divertimento e poder.
¯ Vou providenciar, não se preocupe. Pois bem. O palácio foi acabado em 1849, ao custo de 11 milhões de rublos, uma boa quantia naquele tempo. Foi o último grande palácio construído, na minha opinião o melhor...
Ryan não era o único que não conhecia o salão. A maior parte da delegação americana nunca estivera ali. Russos aborrecidos passavam pelo aposento acompanhando os visitantes e fornecendo explicações. Várias pessoas da embaixada seguiam junto, mantendo um olhar ora distraído, ora atento aos detalhes.
¯ Então, Misha, o que acha das mulheres americanas? ¯ perguntou o ministro da Defesa, Yazov, a seu ajudante-de-ordens.
¯ Essas que vêm vindo não são nada feias, camarada ministro ¯ observou reservadamente o coronel.
¯ É, mas tão magrinhas... Ah, é verdade, eu sempre esqueço. Sua bela esposa Elena era esguia. Que boa mulher ela foi, Misha.
¯ Obrigado por lembrar-se, Dmitri Timofeyevich.
¯ Olá, coronel! ¯ cumprimentou uma das mulheres americanas, em russo.
¯ Como vai, senhora...
¯ Foley. Encontramo-nos no jogo de hóquei, em novembro último.
¯ Conhece essa mulher? ¯ perguntou o ministro ao ajudante-de-ordens.
¯ Meu sobrinho... quer dizer, meu sobrinho-neto Mikhail, neto da irmã de Elena... joga hóquei na liga juvenil, e fui convidado para assistir a um jogo. Aconteceu que eles permitiram o ingresso de um imperialista no time. ¯ O coronel levantou a sobrancelha.
¯ Seu filho joga bem? ¯ indagou o marechal Yazov.
¯ É o terceiro artilheiro de toda a liga ¯ informou a sra. Foley.
¯ Mas que ótimo! Então precisa permanecer em nosso país, e seu filho pode jogar para o time do Exército da região central quando crescer. ¯ Yazov sorriu. Era quatro vezes avô. ¯ O que faz aqui?
¯ Meu marido trabalha na embaixada. Ele está por ali, levando os repórteres a algum lugar. Mas o importante é que vim aqui esta noite. Nunca vi nada tão bonito! ¯ Os olhos brilhantes revelavam muitos copos de alguma coisa. ¯ Esse assoalho é tão bonito que me parece um crime andar em cima dele. Não temos nada parecido por lá.
Ela provavelmente tinha bebido champanhe. Parecia mais o tipo que bebia champanhe, mas era bem atraente, e falava bem o russo, fato raro nas mulheres americanas.
¯ Nunca tiveram czares, o que foi uma sorte ¯ respondeu Yazov, como bom marxista. ¯ Mas, como russo, sou obrigado a admitir que aprecio o senso artístico que eles demonstraram.
¯ Não o vi mais nos outros jogos, coronel ¯ comentou a sra. Foley, voltando-se para Misha.
¯ Não tenho tido tempo.
¯ Mas trouxe boa sorte. Naquela noite o time ganhou, Eddie fez um gol e deu o passe para um outro.
¯ E nosso pequeno Misha só conseguiu duas faltas por usar o taco alto demais.
¯ Não estava usando essas medalhas quando nos encontramos ¯ comentou a americana, apontando as três estrelas de ouro no peito do coronel.
¯ Talvez eu não tivesse tirado o sobretudo...
¯ Ele sempre as usa ¯ assegurou o marechal. ¯ Sempre se usa uma medalha de Herói da União Soviética.
¯ É o mesmo que a nossa Medalha de Honra?
¯ As duas são mais ou menos equivalentes ¯ respondeu Yazov, pois Misha era estranhamente modesto sobre esse assunto. ¯ O coronel Filitov é o único homem vivo que ganhou três em batalha.
¯ É mesmo? ¯ interessou-se a sra. Foley. ¯ Como é que alguém consegue ganhar três?
¯ Lutando contra alemães ¯ disse secamente o coronel.
¯ Matando alemães ¯ corrigiu Yazov. Quando Filitov já despontava como uma das estrelas do Exército Vermelho, ele não passava de
tenente. ¯ Misha é um dos melhores oficiais de tanque que já
¯Só cumpri meu dever, como muitos soldados naquela guerra ¯ respondeu o coronel, corando com o elogio.
¯ Meu pai também foi condecorado nessa guerra ¯ comentou a americana. ¯ Liderou duas missões para salvar pessoas dos campos de prisioneiros nas Filipinas. Não gostava muito de falar sobre isso, mas o fato é que lhe deram algumas medalhas. Conversa com seus filhos sobre essas cruzes de ouro?
Filitov enrijeceu-se por um momento e pareceu sem ação. O marechal veio em seu auxílio. ¯Os filhos do coronel Filitov faleceram há alguns anos.
¯ Oh! Oh, desculpe, coronel. Sinto muitíssimo. ¯ A sra. Foley parecia mortificada.
¯ Já faz muito tempo... ¯ Misha sorriu e mudou de assunto. ¯ Lembro-me bem de seu filho no dia do jogo, um ótimo jovem! Ame suas crianças, minha cara, pois não vai conservá-las a seu lado para sempre. Agora, se me desculpam por um momento...
Misha partiu na direção das salas de descanso. A sra. Foley olhou angustiada para o ministro.
¯ Senhor, não tive intenção...
¯ Certamente que não. Como poderia saber disso? Misha perdeu seus filhos há alguns anos, e logo depois a mulher. Cheguei a conhecê-la, quando eu era muito jovem... Uma mulher adorável, dançarina do Balé Kirov. É uma história triste, mas o povo russo está acostumado a grandes tristezas. Só que não precisamos falar agora sobre essas coisas... Em que time seu filho joga? ¯ O interesse de Yazov pelo hóquei foi grandemente ampliado pela beleza do rosto a sua frente.
Misha chegou rapidamente à sala de descanso. Americanos e russos tinham salas diferentes, claro, e o coronel Filitov encontrava-se sozinho no que deveria ter sido o banheiro privativo de um príncipe, ou da amante de algum czar. Lavou suas mãos e observou-se no espelho de bordas lapidadas. Só tinha um pensamento: Mais uma vez. Outra missão. Filitov suspirou profundamente, endireitou o corpo e se recompôs. Um minuto mais tarde estava de volta à arena.
¯ Desculpe ¯ falou Ryan. Voltando-se, dera um encontrão num soviético mais idoso que saíra da sala de descanso.
Golovko disse algo em russo que Jack não entendeu. O outro oficial pronunciou algumas palavras em tom educado e continuou caminhando até o ministro da Defesa.
¯Quem é ele? ¯ indagou Jack ao companheiro russo. ¯os americanos sabem de alguma coisa que desconhecemos? Ou, melhor ainda: será que Ryan sabia de alguma coisa que Golovko ignorava? O coronel franziu a testa, depois lembrou-se de que era ele quem sabia, e não Ryan. Sorriu levemente ao pensar que tudo era parte de um grande jogo. O maior que havia.
¯ Vocês devem ter andado a noite inteira.
O Arqueiro concordou gravemente, depositando o saco que carregara durante cinco dias nos ombros. Era quase tão pesado quanto o que Abdul trouxera. O homem da CIA pôde observar que o jovem encontrava-se à beira de um colapso por exaustão. Os viajantes acomodaram-se em almofadas.
¯ Bebam alguma coisa.
O nome do contato da CIA era Emilio Ortiz, suficientemente moreno para passar por nativo de qualquer região do Cáucaso. Também tinha cerca de 30 anos, estatura mediana e porte atlético, com musculatura de nadador. Fora assim que conseguira uma bolsa de estudos para a Universidade do Sul da Califórnia, onde se formara em línguas. Ortiz tinha um dom muito raro nesse campo: depois de ouvir uma língua, dialeto ou sotaque, era capaz de falar como um nativo em qualquer parte do mundo. Demonstrava principalmente um profundo respeito pelos costumes das pessoas com as quais trabalhava. Isso significava que a bebida oferecida não era e nem poderia ser alcoólica. Era suco de maçã. Observou o guerrilheiro beber tudo com a consideração que um conhecedor de vinhos dedicaria a um novo bordeaux.
¯ Que as bênçãos de Alá caiam sobre esta casa ¯ disse o Arqueiro quando terminou o primeiro copo.
O fato de que tivesse esperado até tomar seu suco de maçã era o mais próximo que ele chegaria de uma piada. Ortiz percebeu a fadiga no rosto do guerrilheiro, embora não a demonstrasse de qualquer outra maneira. Ao contrário de seu jovem companheiro, o Arqueiro parecia imune às provações do mundo. Isso não era verdade, mas Ortiz compreendia a força interior que o levava a suprimir os sentimentos humanos.
Os dois homens estavam vestidos de maneira quase idêntica. Ortiz considerou a vestimenta do Arqueiro e notou a semelhança com a dos índios apaches da América e do México. Um de seus ascendentes fora oficial das tropas de Terrazas quando o Exército mexicano esmagara as forças de Victorio, nas montanhas Três Castillos. Os afegães também usavam calças rústicas sob as tangas. E também, apesar da pequena estatura, eram guerreiros ágeis. Além disso, tratavam seus prisioneiros como ruidosas diversões para suas facas. Olhou para a faca do Arqueiro e imaginou como ela seria usada. Depois resolveu que seria melhor não saber. ¯Quer alguma coisa para comer?
¯ Pode esperar ¯ declarou o Arqueiro, enfiando a mão na mochila Ele e Abdul haviam trazido dois camelos carregados, mas o material realmente importante estava em sua mochila. ¯ Disparei oito mísseis, atingi seis aparelhos, mas um tinha dois motores e conseguiu fugir. Dos cinco destruídos, dois foram helicópteros e três, caças-bombardeiros. O primeiro helicóptero que destruímos era o modelo novo de 24 de que você tinha falado. Tinha razão. Uma parte do equipamento era nova. Aqui tem alguma coisa.
Era irônico que os equipamentos mais sensíveis da aviação militar estivessem intactos, ao passo que a tripulação morrera. Enquanto ele observava, o Arqueiro revelou seis placas verdes de circuitos integrados, usadas para os localizadores laser que agora eram equipamento-padrão para os Mi-24. Um capitão do Exército americano, que até aquele momento permanecera nas sombras em silêncio, adiantou-se na direção das placas. Suas mãos tremiam quando ele apanhou os circuitos.
¯ Também tem o laser? ¯ perguntou ele, em imperfeito pashtu ou pata, dialeto majoritário no Afeganistão.
¯ Estava muito estragado, mas trouxemos assim mesmo. ¯ O Arqueiro voltou-se e deu com Abdul roncando a seu lado. Quase sorriu, porém lembrou-se de que também tinha um filho.
Ortiz entristeceu-se. Ter sob suas ordens um homem educado como o Arqueiro era bastante estranho. Provavelmente fora um bom professor, que agora não poderia voltar mais a ensinar. A guerra mudara a vida do Arqueiro tão completamente como se ele tivesse morrido. Era um grande desperdício.
¯ Os novos mísseis? ¯ perguntou o Arqueiro.
¯ Posso te dar dez. Um modelo aperfeiçoado, com um alcance adicional de
O Arqueiro concordou gravemente, movendo de modo quase imperceptível os cantos da boca, no que teria sido um sorriso em outros tempos.
¯ Talvez agora eu consiga derrubar um avião de transporte. Os foguetes de fumaça funcionaram muito bem, meu amigo. A cada vez traziam os invasores mais perto de mim. Ainda não descobriram essa tática.
Ele não dissera truque, dissera tática, reparou Ortiz. Agora ele quer ir atrás dos transportes, matar centenas de russos de uma só vez. Meu Deus, em que monstro transformamos esse homem! O agente da CIA balançou a cabeça, afastando o assunto que não lhe dizia respeito.
¯ Parece cansado, meu amigo. Descanse agora, podemos comer depois. Honre minha casa dormindo sob meu teto.
¯ É verdade, estou cansado ¯ admitiu o Arqueiro. Dois minutos depois estava dormindo.
Ortiz e o capitão começaram a fazer o inventário das peças recebidas. Havia um manual de manutenção para o equipamento laser do Mi-24 e folhas de código para o rádio, além de outros itens que já tinham visto anteriormente. Por volta do meio-dia já haviam catalogado tudo e começaram a fazer os arranjos para embarcar o material para a embaixada; de lá seria enviado para a Califórnia, onde o avaliariam adequadamente.
O VC-137 da Força Aérea americana decolou no horário. Era uma versão modificada do Boeing 707. O "V" do prefixo significava que fora preparado para transportar VIPs ¯ pessoas muito importantes ¯, e o interior refletia exatamente isso. Jack recostou-se no sofá e abandonou-se à fadiga que o envolvia. Dez minutos mais tarde alguém sacudiu seu ombro.
¯ O chefe quer ver você ¯ informou um membro da equipe.
¯ Será que ele não dorme nunca? ¯ resmungou Jack.
¯ Você é que deve saber.
Ernest Allen estava nas acomodações VIP da aeronave, uma cabine situada exatamente sobre a longarina da asa, com seis poltronas acol-choadas. Havia também uma cafeteira sobre a mesa. Ryan sentia que, se não tomasse uma xícara, logo começaria a ficar incoerente; por outro lado, se tomasse, não conseguiria mais dormir. Decidiu que o governo não o pagava para dormir, e serviu-se de uma xícara cheia.
¯ Pois não, senhor?
¯ Podemos verificar? ¯ Allen dispensou as formalidades.
¯ Ainda não sei ¯ respondeu Jack. ¯ Não é somente uma questão de Meios Técnicos Nacionais. Verificar a eliminação de tantos lançadores...
¯ Mas eles estão propondo inspeção local limitada ¯ observou um dos membros mais jovens do grupo.
¯ Sei disso ¯ respondeu Jack. ¯ A pergunta é: será que significa alguma coisa? A outra pergunta é: por que eles subitamente concordaram com alguma coisa que queríamos por trinta anos?
¯ O quê? ¯ insistiu o rapaz.
¯ Os soviéticos trabalharam um bocado em seus novos lançadores móveis. E se possuírem muito mais do que acreditamos? Pensa que é viável localizar algumas centenas de mísseis em movimento pelo país?
¯ Mas nós temos radares apontados para a superfície nos novos pássaros e...
¯ E eles sabem disso, o que significa que podem evitar se quiserem ¯ objetou Ryan. ¯ Sabemos que nossos porta-aviões iludem os radares dos satélites de vigilância oceânica. Se a gente pode fazer isto com um navio, eles podem muito bem fazer com um trem.
Allen prestava atenção, abstendo-se de fazer qualquer comentário, permitindo que Jack continuasse para ver aonde chegaria. Uma velha raposa, Ernie Allen.
¯ Então a CIA vai ser contra! Mas essa foi a melhor concessão que já fizeram!
¯ Ótimo. E uma boa concessão, e todos aqui sabem disso! Antes de aceitarmos, vamos checar se o que eles concederam ainda tem alguma importância. E existem ainda outros aspectos.
¯ Então vai mesmo se opor! ¯ espantou-se o jovem.
¯ Não vou me opor a coisa nenhuma. Só estou dizendo para ir com calma, e não aceitar correndo como se fosse um presente.
¯ Mas esse esboço do tratado é... quase bom demais para ser verdade. ¯ Com isso o jovem acabava de provar o ponto de vista de Ryan, sem se dar conta.
¯ Doutor Ryan ¯ disse Allen ¯, se os detalhes técnicos puderem ser resolvidos satisfatoriamente, como analisa o tratado?
¯ Senhor, falando de um ponto de vista estritamente técnico, uma redução de cinqüenta por cento no número de ogivas nucleares não tem efeito algum no balanço estratégico. É...
¯ Mas isso é loucura! ¯ interrompeu o rapaz, indignado.
Jack estendeu o braço na direção do jovem, esticando o indicador como se fosse o cano de uma arma.
¯ Vamos dizer que eu tenha uma pistola apontada para o seu peito agora. Pode ser uma Browning
O outro não disse nada, e Jack continuou, voltando-se para Allen.
¯ Eu pessoalmente não me sentiria. É exatamente sobre isso que estamos falando. Se ambos os lados reduzirem seus efetivos pela metade, isso deixaria cerca de cinco mil ogivas nucleares para atingir nosso país. Pense no que esse número representa. Esse acordo todo serve para reduzir a sobremorte. A diferença entre cinco mil e dez mil diz respeito apenas à extensão da destruição. Se começarmos a falar em reduzir o número para mil em cada lado, então talvez eu possa começar a acreditar que estamos chegando a algum lugar.
¯ Acredita que é possível atingir o limite de mil ogivas nucleares? ¯ quis saber Allen.
¯ Não acredito, senhor. Eu gostaria que fosse, mas me disseram que o limite de mil ogivas nucleares seria capaz de tornar a guerra "vencível", seja lá o que quiserem dizer com isso. ¯ Ryan encolheu os ombros. ¯ Senhor, o que quero dizer é que, se o acordo passar, as coisas ficam melhores do que estão. Talvez o significado simbólico do acordo tenha valor em si mesmo; isto é um fator a ser considerado, mas foge ao meu campo. A economia será real para ambos os lados, se bem que pequena se comparada aos gastos globais militares. Todos mantêm metade de seus arsenais atuais, e isto significa ficar com a metade mais moderna e eficiente, é claro. A constante permanece: num conflito nuclear, os dois lados estão igualmente mortos. Não vejo como este tratado possa reduzir a "ameaça de guerra", seja lá o que for isso. Para fazer isto de verdade, precisamos eliminar completamente essas coisas, ou então inventar algo que as impeça de detonar. Se alguém me perguntar, acho que devíamos tentar a segunda alternativa. Então o mundo seria um lugar um pouco mais seguro. Talvez...
¯ Seria o início de uma nova corrida às armas.
¯ Senhor, essa corrida começou há tanto tempo que dificilmente pode ser chamada de nova...
Tea Clipper
¯ Estão chegando mais fotografias de Dushanbe ¯ informou a Ryan uma voz pelo telefone.
¯ Certo, daqui a alguns minutos estarei chegando aí.
Jack levantou-se e atravessou o corredor em direção ao escritório do almirante Greer. Seu superior estava de costas para o branco ofuscan-te da espessa camada de neve que cobria tudo à volta do quartel-general da CIA. Ainda limpavam o estacionamento, e até mesmo a plataforma gradeada do lado de fora das janelas do sétimo andar tinha mais de
¯ O que houve, Jack? ¯ perguntou o almirante.
¯ Dushanbe. O tempo limpou de repente. O senhor pediu para ser avisado assim que isso acontecesse.
Greer olhou para o monitor de vídeo no canto do escritório. Estava próximo ao terminal de computador que ele se recusava a usar, pelo menos quando havia alguém por perto para observar suas tentativas de digitar com os dois indicadores, auxiliado por um dos polegares nos dias de inspiração. O almirante poderia, se quisesse, ter as fotografias dos satélites, em tempo real, transmitidas "ao vivo" para seu escritório, mas ultimamente vinha evitando fazê-lo, e Jack não sabia o motivo.
¯ Muito bem, vamos até lá.
Ryan manteve a porta aberta para que o vice-diretor dos Serviços de Informações passasse, e ambos tomaram a esquerda até o final do corredor da ala executiva no último andar do prédio, onde ficava o elevador que os conduziria até lá. O bom era que não se precisava esperar muito.
¯ Como estão seus horários? ¯ perguntou Greer, referindo-se aos longos vôos que Ryan realizara há menos de vinte e quatro horas.
¯ Já estou completamente recuperado, senhor. Voar para o oeste não me incomoda muito, para o leste é que acaba comigo. ¯ Puxa, como é bom estar em terra firme!
A porta se abriu, e os dois andaram em direção ao novo anexo, que abrigava o Setor de Análise de Imagens. Este departamento era privativo do Diretório de Inteligência, separado do NPIC, o Centro Nacional de Informações Fotográficas, o qual representava um esforço conjunto da CIA e da DIA, a Agência de Informações da Defesa, servindo a toda a comunidade de Informações.
A sala de projeção contentaria um produtor de Hollywood. Trinta poltronas estofadas ficavam em frente a uma tela de
¯ Calcularam muito bem o tempo. Teremos as imagens em mais um minuto. ¯ Ele levantou o fone de comunicação com a cabine de projeção e pronunciou algumas palavras. A tela iluminou-se imediatamente. Aquilo era chamado de "Imagem Aérea", lembrou-se Jack.
¯ Foi mesmo uma sorte. Aquele sistema siberiano de alta pressão fez uma volta brusca para o sul e parou a frente quente como se fosse uma parede de tijolos. Condições perfeitas de visibilidade. A temperatura ao nível do solo é de zero grau, e a umidade relativa do ar não pode ser muito maior do que isso. ¯ Graham sorriu. ¯ Manobramos o satélite para aproveitar a oportunidade. Faltam três graus para ficar exatamente acima do local, e não acho que Ivã tenha tido tempo para perceber a manobra que já está em andamento.
¯ Aí está Dushanbe. ¯ Jack respirou fundo quando parte da República Socialista Soviética do Tadjiquistão apareceu na tela.
A primeira imagem era vista através da câmera grande-angular. O satélite de reconhecimento KH-14 em órbita tinha um total de onze câmeras. O "pássaro" representava o primeiro da mais nova geração de satélites e estava orbitando havia apenas três semanas. Dushanbe, conhecida por um curto período como Stalinabad ¯ isso deve ter deixado o povo contente, pensou Ryan ¯, provavelmente surgira na rota das antigas caravanas. O Afeganistão ficava a menos de 160 quilômetros. A legendária Samarcanda de Tamerlão situava-se a noroeste dali, não muito distante... e talvez Scheherazade tivesse viajado por aquelas estradas mil anos antes. Jack perguntou-se por que a História sempre se repetia, os mesmos nomes e lugares parecendo saltar de um século para o outro.
Só que o interesse atual da CIA por Dushanbe não tinha nenhuma relação com o comércio da seda.
A imagem mudou para uma das câmeras de alta definição do satélite, mostrando a princípio um vale profundo e montanhoso, onde um rio estava represado pela parede de rocha e concreto de uma barragem hidrelétrica. Embora se localizasse
¯ Aquilo parece uma fundação para outro conjunto de torres ¯ observou Ryan.
¯ Paralelas às primeiras ¯ concordou Graham. ¯ Estão instalando novos geradores. Bem, sabíamos desde o princípio que só estavam obtendo a metade do potencial utilizável da represa.
¯ Quanto tempo levaria para colocar o restante da energia em linha? ¯ indagou Greer.
¯ Eu teria de verificar com um dos consultores. Mas acho que não vai levar mais do que algumas semanas para estender os cabos, e a casa de força já está pronta. Eu diria que os alicerces para os novos geradores devem estar prontos, e, se isso for verdade, tudo o que têm a fazer é montar o novo equipamento. Seis meses, talvez oito, se o tempo não ajudar.
¯ Tão rápido assim? ¯ espantou-se Ryan.
¯ Eles desviaram o pessoal de outras duas hidrelétricas. Ambas faziam parte do projeto Herói. Nunca se comentou nada sobre esta obra; as tropas de construção foram retiradas de dois locais para trabalhar nesse. Ivã sabe muito bem concentrar seus esforços quando quer, doutor Ryan. Seis ou oito meses é uma estimativa otimista. Acho que pode ser feito mais depressa do que isso ¯ declarou Graham.
¯ Qual será a potência total disponível quando terminarem?
¯ A estrutura não é tão grande assim. O total de saída no pico com os novos geradores? Por volta de 1 100 megawatts, eu diria.
¯ Pois isso é um bocado de energia, e vai toda para aquelas montanhas ¯ comentou Ryan, como se falasse consigo mesmo.
O pico a que a Agência chamava de "Mozart" era alto, mas, como aquela região configurasse o limite ocidental da cordilheira do Himalaia com suas altitudes gigantescas, parecia insignificante. Haviam construído uma estrada até o topo à custa de explosões ¯ não existiam entidades de controle ambiental na União Soviética ¯ e também um heliporto para receber as personalidades importantes que chegavam aos dois aeroportos de Dushanbe. Dezesseis construções destacavam-se na imagem projetada. Uma delas era um prédio de apartamentos, de onde a vista devia ser fantástica, ainda que tivesse sido construído segundo o estilo arquitetônico padrão soviético, tão atraente quanto um bloco cúbico de concreto. Terminado seis meses atrás, muitos engenheiros já moravam ali com suas famílias. Parecia deslocado um prédio daquele tipo num lugar tão inacessível, mas a mensagem que passava era clara: as pessoas que viviam ali eram privilegiadas. Engenheiros e acadêmicos, profissionais tão habilitados que o Estado quisera cuidar de seu conforto e necessidades. A comida era transportada em caminhões para o alto ou, quando o tempo se tornava muito ruim, ia por via aérea. Outra das construções era um teatro, e a terceira um hospital. A programação de televisão era fornecida por uma estação rastreadora de satélites localizada ao lado de um edifício que continha muitas lojas. Esse tipo de mordomia não era muito comum na União Soviética, mas limitado aos altos oficiais do Partido e pessoas que trabalhavam em projetos essenciais de defesa. Aquela não era uma estação de esportes de inverno.
Tal fato também se tornava óbvio pela presença da cerca que circundava todo o perímetro, além das torres de vigia, ambas de construção recente. Um dos itens facilmente reconhecíveis nos complexos militares soviéticos eram as torres de vigia; Ivã tinha verdadeira fixação por esse tipo de controle. Três cercas encerravam dois espaços internos de uns
¯ Consegue focalizar um dos guardas? ¯ perguntou Jack.
Graham falou ao bocal e a imagem mudou. Um dos técnicos já trabalhava naquele sentido, mais para testar a regulagem da câme-ra e as condições ambientes do que para o propósito que Ryan tinha em mente.
Assim que a câmera começou a aproximar a imagem, o que era um ponto móvel transformou-se numa silhueta humana envolta num sobretudo e provavelmente usando gorro de peles. Levava um grande cão de raça incerta pela coleira e um fuzil de assalto Kalashnikov pendurado ao ombro direito. Homem e cachorro soltavam uma pequena nuvem de vapor ao exalarem o ar. Ryan inclinou-se para a frente, como se aquilo o ajudasse a ver melhor.
¯ A ombreira desse sujeito não parece verde? ¯ perguntou ele a Graham.
¯ É ¯ concordou o perito em reconhecimento. ¯ Ele é mesmo
da KGB.
¯ Tão perto assim da fronteira do Afeganistão? ¯ espantou-se o almirante. ¯ Eles sabem que temos gente operando naquela zona. Pode ter certeza de que levarão a sério as medidas de segurança.
¯ Eles deviam querer muito esses picos ¯ comentou Ryan. ¯ A pouco mais de
¯ O quê, por exemplo?
¯ Ir atrás dos meus satélites, talvez. ¯ Art Graham sempre se referia aos satélites como se pertencessem a ele.
¯ Eles "cutucaram" algum recentemente? ¯ quis saber Jack.
¯ Não, desde que abalamos Ivã, em abril. Parece que o bom senso prevaleceu pelo menos uma vez.
Aquela era uma velha história. Em inúmeras oportunidades, nos últimos anos, os satélites americanos de reconhecimento tinham sido "cutucados" com feixes de raios laser ou energia de microondas, focalizados nos satélites apenas o bastante para "cegar" os receptores, mas não para causar danos sérios. A grande dúvida era o motivo que teria levado os soviéticos a procederem assim. Poderia ser um tipo de teste para ver como reagiria o Comando de Defesa Aeroespacial da América do Norte, o NORAD, no monte Cheyenne, no Colorado? Seria uma forma de saber quão sensíveis eram os satélites? Ou uma demonstração, como aviso da capacidade de destruí-los? De qualquer forma, era sempre muito difícil saber o que os soviéticos estavam pensando.
Eles invariavelmente protestavam inocência, é claro. Quando um satélite americano ficara momentaneamente cego ao passar sobre Sary Shagan, disseram que uma tubulação conduzindo gás natural se incendiara. O fato de que o oleoduto Chimkent-Pavlodar nas proximidades transportava principalmente petróleo escapara à imprensa
ocidental. A passagem do satélite acabara de completar-se. Numa sala vizinha, as fitas de vídeo estavam sendo rebobinadas e dali por diante as cenas poderiam ser examinadas à vontade.
¯ Vamos dar uma olhada em Mozart outra vez, e em Bach também, por favor ¯ ordenou Greer.
¯ É uma bela troca, essa ¯ declarou Jack.
A área residencial e industrial em Mozart distava apenas um quilômetro das instalações em Bach, o pico seguinte, porém a estrada parecia assustadora. A imagem parou em Bach. A fórmula das cercas e torres de vigia repetia-se aqui, só que dessa vez a distância entre a cerca externa e a interna era de pelo menos
¯ Não estão brincando, estão? ¯ murmurou Graham.
¯ Então é isso que estão guardando... ¯ comentou Ryan. Havia um total de treze prédios no perímetro delimitado pela cerca
interior. Numa área do tamanho aproximado de dois campos de futebol ¯ cujo solo também fora nivelado ¯ dispunham-se dez escava-ções, em dois grupos. Um dos grupos era composto de seis buracos, um alinhamento hexagonal, cada qual com
¯ Eles abrem. Gostaria de saber o que tem ali dentro... ¯ conjetu-rou Graham.
Umas duzentas pessoas em Langley estavam a par de Dushanbe, e todas elas queriam saber o que existia abaixo daqueles domos de metal, instalados no lugar apenas há alguns meses.
¯ Almirante, gostaria de levantar um novo assunto ¯ declarou Jack.
¯ Qual assunto?
¯ Tea Clipper.
¯ Está pedindo demais! ¯ objetou Greer. ¯ Eu mesmo não tenho acesso a essas informações.
¯ Almirante, se o que eles estão fazendo em Dushanbe for a mes-ma coisa que estamos tentando em Tea Clipper, nós precisamos saber.
¯Ryan recostou-se na poltrona. ¯ Que diabos, como podemos saber o que procurar se nem sabemos como deve ser a aparência de um lu-gar desses?
¯ Tenho dito isso há algum tempo ¯ O vice-diretor dos Serviços de Informações riu. ¯ O diretor-geral não vai gostar nem um pouco. O juiz vai ter de ir até o presidente para conseguir isso.
¯ Pois que vá ao presidente. E se essa atividade que vimos aqui estiver ligada ao esboço de tratado que eles apresentaram?
¯ Acha que sim?
¯ Quem pode saber? ¯ respondeu Ryan. ¯ E uma coincidência, e isso me preocupa.
¯ Muito bem, vou falar com o diretor.
Duas horas mais tarde, de volta para casa, Ryan dirigia seu Jaguar XJS no tráfego da Rodovia George Washington. O carro era uma das boas lembranças que trouxera do tempo de serviço da Inglaterra. Ele gostava tanto da sensação produzida pelo ronronar suave do motor de doze cilindros que chegara a aposentar seu velho Rabbit. Como sempre, deixou Washington e os negócios de lado, engatando as cinco marchas sucessivamente e concentrando-se em dirigir.
¯ E então, James? ¯ perguntou o diretor-geral dos Serviços de Informações.
¯ Ryan acha que a atividade recente em Bach e Mozart pode estar relacionada ao novo tratado. Também acho que isso seja possível. Ele quer as informações de Tea Clipper. Eu disse que você teria de ir ao presidente. ¯ O almirante Greer sorriu.
¯ Tudo certo, vou arranjar uma permissão por escrito para ele. Vai deixar o general Parks mais feliz, de qualquer jeito. Eles têm um teste marcado para o fim de semana e vou arranjar para que Jack o acompanhe. ¯ O juiz Moore sorriu preguiçosamente. ¯ O que acha?
¯ Acho que ele tem razão: Dushanbe e Tea Clipper são na essência o mesmo projeto. Vejo muitas similaridades aparentes, um número mui-to grande para ser simples coincidência. Devíamos atualizar nossos conhecimentos.
¯ Certo. ¯ Moore voltou-se para olhar pela janela. O mundo vai mudar outra vez. Talvez ainda leve dez anos, mas vai mudar. Daqui a dez anos não vai ser problema meu, disse a si mesmo o juiz, mas com certeza vai ser um problema de Ryan. ¯ Vou providenciar para que ele tome um avião para lá amanhã. Talvez tenhamos sorte com Dushanbe. Foley conseguiu avisar o Cardeal de que estamos muito interessados naquele lugar.
As fitas de vídeo estavam sendo rebobinadas e dali por diante as cenas poderiam ser examinadas à vontade.
¯ Vamos dar uma olhada em Mozart outra vez, e em Bach também, por favor ¯ ordenou Greer.
¯ É uma bela troca, essa ¯ declarou Jack.
A área residencial e industrial em Mozart distava apenas um quilômetro das instalações em Bach, o pico seguinte, porém a estrada parecia assustadora. A imagem parou em Bach. A fórmula das cercas e torres de vigia repetia-se aqui, só que dessa vez a distância entre a cerca externa e a interna era de pelo menos
¯ Não estão brincando, estão? ¯ murmurou Graham.
¯ Então é isso que estão guardando... ¯ comentou Ryan. Havia um total de treze prédios no perímetro delimitado pela cerca
interior. Numa área do tamanho aproximado de dois campos de futebol ¯ cujo solo também fora nivelado ¯ dispunham-se dez escavações, em dois grupos. Um dos grupos era composto de seis buracos, em alinhamento hexagonal, cada qual com
¯ Eles abrem. Gostaria de saber o que tem ali dentro... ¯ conjetu-rou Graham.
Umas duzentas pessoas em Langley estavam a par de Dushanbe, e todas elas queriam saber o que existia abaixo daqueles domos de metal, instalados no lugar apenas há alguns meses.
¯ Almirante, gostaria de levantar um novo assunto ¯ declarou Jack.
¯ Qual assunto?
¯ Tea Clipper.
¯ Está pedindo demais! ¯ objetou Greer. ¯ Eu mesmo não tenho acesso a essas informações.
¯ Almirante, se o que eles estão fazendo em Dushanbe for a mesma coisa que estamos tentando em Tea Clipper, nós precisamos saber.
¯Ryan recostou-se na poltrona. ¯ Que diabos, como podemos saber o que procurar se nem sabemos como deve ser a aparência de um lugar desses?
¯ Tenho dito isso há algum tempo ¯ O vice-diretor dos Serviços de Informações riu. ¯ O diretor-geral não vai gostar nem um pouco. O juiz vai ter de ir até o presidente para conseguir isso.
¯ Pois que vá ao presidente. E se essa atividade que vimos aqui estiver ligada ao esboço de tratado que eles apresentaram?
¯ Acha que sim?
¯ Quem pode saber? ¯ respondeu Ryan. ¯ É uma coincidência, e isso me preocupa.
¯ Muito bem, vou falar com o diretor.
Duas horas mais tarde, de volta para casa, Ryan dirigia seu Jaguar XJS no tráfego da Rodovia George Washington. O carro era uma das boas lembranças que trouxera do tempo de serviço da Inglaterra. Ele gostava tanto da sensação produzida pelo ronronar suave do motor de doze cilindros que chegara a aposentar seu velho Rabbit. Como sempre, deixou Washington e os negócios de lado, engatando as cinco marchas sucessivamente e concentrando-se em dirigir.
¯ E então, James? ¯ perguntou o diretor-geral dos Serviços de Informações.
¯ Ryan acha que a atividade recente em Bach e Mozart pode estar relacionada ao novo tratado. Também acho que isso seja possível. Ele quer as informações de Tea Clipper. Eu disse que você teria de ir ao presidente. ¯ O almirante Greer sorriu.
¯ Tudo certo, vou arranjar uma permissão por escrito para ele. Vai deixar o general Parks mais feliz, de qualquer jeito. Eles têm um teste marcado para o fim de semana e vou arranjar para que Jack o acompanhe. ¯ O juiz Moore sorriu preguiçosamente. ¯ O que acha?
¯ Acho que ele tem razão: Dushanbe e Tea Clipper são na essência o mesmo projeto. Vejo muitas similaridades aparentes, um número muito grande para ser simples coincidência. Devíamos atualizar nossos conhecimentos.
¯ Certo. ¯ Moore voltou-se para olhar pela janela. O mundo vai mudar outra vez. Talvez ainda leve dez anos, mas vai mudar. Daqui a dez anos não vai ser problema meu, disse a si mesmo o juiz, mas com certeza vai ser um problema de Ryan. ¯ Vou providenciar para que ele tome um avião para lá amanhã. Talvez tenhamos sorte com Dushanbe. Foley conseguiu avisar o Cardeal de que estamos muito interessados naquele lugar.
¯ O Cardeal? Ótimo!
¯ Mas se acontecer alguma coisa... Greer assentiu.
¯ Por Deus, espero que ele tenha cuidado ¯ disse o vice-diretor dos Serviços de Informações.
Desde a morte de Dmitri Fedorovich que o Ministério da Defesa não tem sido o mesmo, escreveu com a mão esquerda o coronel Mikhail Sem-yonovich Filitov em seu diário. Tendo acordado cedo como sempre, sentara-se à escrivaninha de carvalho, com um século de idade, que sua esposa lhe comprara pouco antes de morrer, há... quanto tempo? Trinta anos, disse Misha a si mesmo. Completaria 30 anos em fevereiro próximo. Seus olhos se fecharam por um momento. Trinta anos.
Não se passou um só dia sem que se lembrasse da sua Elena. A fotografia da esposa estava sobre a mesa, o tom sépia apagado pela ida de, e emoldurada em prata enegrecida. Nunca arranjava tempo para polir a moldura oxidada, e não queria ser incomodado com a presen-ça de uma empregada. A imagem ainda nítida mostrava uma jovem com as pernas girando como fusos, os braços elevados acima da cabeça graciosamente inclinada para o lado. O rosto eslavo arredondado era iluminado por um sorriso amplo e convidativo, demonstrando perfeitamente a alegria que sentia quando dançava com o Balé Kirov.
Misha sorriu ao lembrar-se de sua primeira impressão como jovem oficial dos blindados a quem haviam dado a entrada como recompensa por ter o tanque com a melhor manutenção na divisão: Como é que eles conseguem fazer isso? Dançam na ponta dos pés como se tivessem pernas de pau com ponta afiada. Lembrou-se de seus tempos de criança, quando brincara desajeitadamente com suas pernas de pau, mas nunca com tanta graça e equilíbrio! Então ela sorrira para o belo e jovem oficial na primeira fileira. Os olhos de ambos encontraram-se pelo breve espaço que teria durado uma piscadela, e o sorriso dela se alterara. Não era mais para a audiência: naquele instante eterno, o sorriso era só para ele. Uma bala no coração não teria um efeito mais devastador. Misha não conseguiu depois lembrar-se do resto da apresentação, e a partir de então não soubera a qual dança havia assistido. Recordava-se de ter ficado ali sentado durante o resto do espetáculo, enquanto sua mente planejava o que faria a seguir. O tenente Filitov já estava marcado como um homem destinado ao sucesso, para quem a brutal ação de Stálin contra o corpo de oficiais significava oportunidade e promoção rápida. Escrevera artigos sobre táticas de combate motorizado e praticava exercícios inovadores com os tanques, contestando veementemente as falsas "lições" da Espanha com a segurança de um homem nascido para aquela profissão.
O que vou fazer agora?, indagara-se então. O Exército Vermelho não lhe ensinara a se aproximar de uma artista. Aquela não era nenhuma camponesa entediada com seu trabalho no kolkhoz a ponto de se oferecer a qualquer um ¯ principalmente um jovem oficial que poderia desviá-la de seu caminho. Misha ainda se recordava de suas atitudes vergonhosas na juventude ¯ embora não as achasse nada vergonhosas na época ¯ quando apelava para as divisas de oficial a fim de levar para a cama todas as garotas que lhe chamassem a atenção.
Mas nem sei o nome dela, lembrara a si mesmo. O que faço agora? O que fizera na época, é claro, fora encarar o assunto como um exercício militar. Assim que a apresentação terminou, ele abriu caminho até o banheiro e lavou o rosto e as mãos. Com um canivete, removeu cuidadosamente os restos de graxa abaixo das unhas. Molhou os cabelos e penteou-os, examinando a seguir o uniforme, como o faria um rigoroso general, esfregando alguns pontos e removendo fiapos. Afastou-se do espelho para examinar o brilho das botas, sem perceber que os outros homens o observavam com um sorriso divertido e uma ponta de inveja, tendo adivinhado suas intenções. Satisfeito com sua aparência, Misha saiu do teatro e perguntou ao porteiro onde era a saída dos artistas. Pagou um rublo pela informação e deu a volta ao quarteirão ate a porta indicada, onde encontrou outro porteiro, um velho de barbas longas cujo capote ostentava dragonas por serviços prestados durante a Revolução. Misha esperou algum tipo de deferência por parte do homem, como camaradagem de um soldado para outro, mas logo descobriu que ele encarava as bailarinas como suas próprias filhas, e não como prostitutas prontas a se atirar aos pés do primeiro militar que aparecesse. Misha havia considerado a possibilidade de oferecer dinheiro ao ancião, mas teve o bom senso de não o fazer, evitando insinuar que ele era um alcoviteiro. Em vez disso, falou com moderação e sinceridade, contando que estava encantado por uma donzela dançarina cujo nome não sabia, e gostaria simplesmente de encontrá-la.
¯ E por quê? ¯ indagou secamente o velho.
¯ Vovô, ela sorriu para mim ¯ respondeu Misha, com o ardor de um menino.
¯ E você se apaixonou, é isso? ¯ A voz ainda era severa, mas o rosto do veterano se abrandava. ¯ Sabe quem é ela?
¯ Ela estava na fila, com as outras... quer dizer, não é uma das importantes, eu acho. Como é que costumam dizer? Vou me lembrar daquele rosto até o dia em que eu morrer. ¯ Ele já tinha consciência disso.
O porteiro encarou o jovem oficial a sua frente, verificando que seu uniforme estava impecável, e as costas permaneciam eretas. Não parecia um daqueles porcos suados dos oficiais da NKVD, a polícia secreta de Stálin, cujo hálito arrogante recendia a vodca. Este parecia ser um verdadeiro soldado, jovem e bem-apessoado.
¯ Camarada tenente, é um homem de sorte. Sabe por quê? Tem sorte porque um dia já fui jovem, e mesmo velho como estou tenho lembrança disso. Elas vão sair em dez minutos. Fique em pé ali, adiante, e não faça nenhum barulho.
Os dez minutos transformaram-se em trinta. Os artistas começaram a sair aos pares, ou em grupos de três. Misha vira os homens que participavam da companhia e pensava deles o que pensaria qualquer soldado. Sua hombridade ficava ofendida pela maneira como eles davam as mãos às belíssimas bailarinas. A cada vez que as portas se abriam, ele ficava ofuscado pela quantidade enorme de luz amarelada que se projetava do interior para a viela às escuras e quase não a reconheceu, tão diferente estava sem maquilagem.
Misha olhou-a no rosto, indeciso sobre se se tratava da pessoa certa, e aproximou-se de seu objetivo com mais cuidado que o faria sob o fogo dos canhões alemães.
¯ Você estava na cadeira doze ¯ disse ela, antes que ele reunisse coragem suficiente para falar.
Ela tinha voz!
¯ Sim, camarada artista ¯ replicou ele automaticamente.
¯ Gostou da apresentação, camarada tenente? ¯ a pergunta foi acompanhada de um tímido sorriso, ainda que convidativo.
¯ Foi maravilhosa!
¯ Não é sempre que vemos jovens e belos oficiais na fileira da frente ¯ comentou ela.
¯ Ganhei o ingresso como recompensa por mérito em minha unidade. Sou piloto de tanque ¯ declarou ele orgulhoso. Ela me chamou de belo!
¯ E o camarada tenente-piloto de tanques tem um nome?
¯ Sou o tenente Mikhail Semyonovich Filitov.
¯ Eu sou Elena Ivanova Makarova.
¯ Está muito frio esta noite para alguém tão delicada, camarada artista. Existe um restaurante aqui por perto?
¯ Restaurante? ¯ O riso dela era cristalino. ¯ Não vem muito freqüentemente a Moscou, vem?
¯ Minha divisão está baseada aqui, mas não venho muito até a cidade ¯ admitiu ele.
¯ Camarada tenente, existem muito poucos restaurantes mesmo em Moscou nestes dias. Pode vir até o meu apartamento?
¯ Bem... claro! ¯ gaguejou Misha enquanto a porta se abria novamente.
¯ Marta! ¯ disse Elena à bailarina que acabava de sair. ¯ Temos escolta militar para casa hoje.
¯ Tânia e Resa também vêm.
Misha na verdade ficara aliviado com aquilo. A ida ao apartamento demorou trinta minutos, pois, como o metrô de Moscou ainda não estava completo, preferiram caminhar a esperar um bonde àquela hora da noite.
Ela era muito mais bonita sem maquilagem, lembrou Misha. O vento frio do inverno coloria as bochechas de maneira mais natural. Seu andar era tão gracioso quanto dez anos de treinamento intensivo podiam proporcionar. Ela deslizava pelas ruas como uma aparição, enquanto ele progredia ruidosamente com suas botas pesadas. Sentia-se um tanque ele mesmo, rolando ao lado de um puro-sangue, e tomava cuidado para não chegar muito perto, com medo de atropelá-la. Ainda não conhecia a força que se escondia por trás da graça e leveza de Elena.
A noite nunca lhe parecera tão esplêndida, embora nos... ¯ quanto tempo fazia? ¯ vinte anos seguintes tivesse passado muitas noites semelhantes, depois mais nenhuma nos últimos trinta. Meu Deus, pensou ele, teríamos completado cinqüenta anos de casamento em... 14 de julho. Inconscientemente esfregou os olhos com o lenço.
Trinta anos, entretanto, era o número que ocupava sua mente.
O pensamento o afligia, e os dedos ficaram esbranquiçados ao re-dor da caneta. Misha ainda se surpreendia com o fato de que amor e ódio eram emoções finamente mescladas. Voltou a escrever em seu diário...
Uma hora mais tarde ele levantou da escrivaninha e foi até o armário do quarto. Vestiu a farda de coronel da Divisão de Tanques. Tecnicamente estava na lista de oficiais reformados, e já estava antes que muitos coronéis da lista atual tivessem nascido. Mas trabalhar no Ministério da Defesa tinha suas prerrogativas, e Misha fazia parte da equipe pessoal do ministro. Essa era uma razão. As outras três pendiam de sua túnica, três estrelas de ouro sob galões púrpura. Filitov era o único soldado na história do Exército soviético que conquistara por três vezes a condecoração de Herói da União Soviética, por bravura demonstrada em campo de batalha em face do inimigo. Existiam outros com tais medalhas, porém agora eram com freqüência concedidas por motivos políticos, como sabia o coronel. Ficava esteticamente ofendido com isso, pois aquela não era uma medalha para premiar trabalho de gabinete, e muito menos para que um membro do Partido oferecesse a outro como enfeite de lapela. Herói da União Soviética era uma honraria que devia ser reservada a homens como ele, que enfrentaram a morte, sangraram, e até morreram pela Rodina. Lembrava-se disso a cada vez que envergava o uniforme. Sob sua camiseta escondiam-se as cicatrizes com aparência de plástico que trouxeram sua última medalha de ouro, quando um projétil 88 alemão perfurou a blindagem de seu tanque, incendiando a munição e sua própria roupa, enquanto ele manobrava o canhão
Agora, fazia seu dever perante sua Elena.
Filitov saiu do apartamento e encaminhou-se para o elevador, uma pasta de couro pendendo da mão direita. Era apenas para isso que utilizava esse lado do corpo. A babushka ¯ avozinha ¯ que operava o elevador saudou-o como sempre. Ambos eram idosos, sendo ela a viúva de um sargento que estivera no regimento de Misha, e também merecera a medalha de ouro, colocada em seu peito pelo próprio comandante.
¯ Como é sua nova neta? ¯ perguntou o coronel.
¯ Um verdadeiro anjo! ¯ foi a resposta entusiasmada.
Filitov sorriu, concordando. Será que existia alguma criança que parecesse feia aos olhos da avó? Sorriu também porque expressões como "anjo" haviam resistido a setenta anos de "socialismo científico".
O carro esperava por ele em frente ao prédio. O motorista era um rapaz recém-saído da academia de sargentos e da auto-escola. Saudou
cerimoniosamente o coronel, mantendo a porta aberta com a outra mão.
¯ Bom dia, camarada coronel.
¯ É o que parece, sargento Zhdanov ¯ respondeu Filitov.
A maior parte dos oficiais de alta patente teria grunhido em resposta ao cumprimento, mas Misha era um ex-combatente cujo sucesso resultava, em grande parte, da maneira como tratava seus homens. Essa era uma lição que infelizmente muito poucos oficiais entendiam. Era uma pena.
O interior do carro apresentava uma temperatura agradável, resultante do aquecedor ligado ao máximo quinze minutos antes. Filitov tornava-se cada vez mais sensível ao frio, um sinal da idade avançada. Acabara de ser hospitalizado com pneumonia pela terceira vez nos últimos cinco anos. Sabia que uma das próximas vezes seria a derradeira. Afastou esse pensamento. Estivera próximo da morte demasiadas vezes para temê-la. A vida ia e vinha num movimento constante. Será que saberia quando viesse o último segundo? Iria importar-se com isso?
O motorista partiu em direção ao Ministério da Defesa antes que o coronel pudesse responder a essa pergunta.
Ryan tinha certeza de que já trabalhara para o governo por tempo demasiado. Não aprendera a gostar de voar, mas já apreciava a conveniência de fazê-lo. Estava a apenas quatro horas de Washington, onde embarcara num Learjet C-21 da Força Aérea, cujo capitão era uma mulher, com aparência de quem ainda cursava o segundo ano da faculdade.
Está ficando velho, Jack, dissera ele a si mesmo. O vôo desde o campo de aviação até o topo das montanhas fora realizado de helicóptero, tarefa não muito fácil na altitude em que se encontravam. Ryan nunca estivera no Novo México antes. Os picos eram desprovidos de vegetação, e o ar parecia rarefeito demais, obrigando-o a respirar com maior freqüência, mas o céu estava tão límpido que ele imaginou por um momento ser um astronauta olhando para as estrelas no espaço frio e sem nuvens.
¯ Café, senhor? ¯ ofereceu um sargento, estendendo um copo térmico.
¯ Obrigado. ¯ Ryan aceitou o líquido fumegante despejado pela garrafa térmica, iluminada somente por alguns raios da lua nova.
Deu um pequeno gole e olhou a sua volta. Havia poucas luzes para se ver. Talvez existisse algum agrupamento de construções atrás do próximo agrupamento de picos; podia distinguir até mesmo o halo de luz formado por Santa Fé, embora não houvesse maneira de precisar a distância. Sabia que a plataforma rochosa em que se encontrava elevava-se a mais de
¯ Dezessete minutos! ¯ anunciou uma voz. ¯ Todos os sistemas operantes. Rastreadores em automático. ADS em oito minutos!
¯ ADS? ¯ estranhou Jack, achando-se um pouco ridículo. Sentia tanto frio que as bochechas começavam a ficar amortecidas.
¯ Aquisição de Sinal ¯ explicou o major a seu lado.
¯ Mora por aqui?
¯ Sessenta e cinco quilômetros naquela direção ¯ o jovem major apontou vagamente. ¯ Praticamente do outro lado da rua pelos padrões daqui. ¯ O sotaque do Brooklyn justificava o comentário.
Era esse quem tinha feito doutorado na Universidade Estadual de Nova York, em Stony Brook, lembrou Ryan. Com apenas 29 anos de idade, o major não parecia nem mesmo um militar, quanto mais um oficial graduado. Na Suíça ele seria comparado a um gnomo, com 1, 65 metro, a pele alva e macilenta, e algumas espinhas marcando-lhe o rosto anguloso. No momento fixava os olhos profundos na porção do horizonte onde deveria aparecer o ônibus espacial Discovery, Ryan recordou-se do documento que examinara sobre o major, achando que ele provavelmente não se lembrava de que cor era a parede de sua sala de estar. O major morava no Laboratório Nacional de Los Alamos, conhecido localmente como The Hill, a Colina. Fora o primeiro de sua classe na Academia de West Point, e dois anos depois concluíra o doutorado em física de alta energia, com uma tese considerada altamente sigilosa. Jack a lera e não entendera por que eles se incomodaram: as duzentas páginas pareciam ter sido escritas em curdo. Já se falava em Alan Gregory no mesmo tom que se usava para referir-se a cientistas como Stephen Hawking, de Cambridge, ou Freeman Dyson, de Princeton. A única diferença era que poucas pessoas sabiam seu nome. Jack imaginou se não iriam considerar até isso como segredo de Estado.
¯ Está tudo pronto, major Gregory? ¯ perguntou um general da Força Aérea.
Jack notou o tom respeitoso que o oficial usara. Gregory não era um simples major.
¯ Sim, senhor ¯ respondeu Gregory com um sorriso nervoso, enxugando na calça as mãos suadas, apesar da temperatura de 15 graus abaixo de zero. Era bom saber que o rapaz tinha emoções.
¯ É casado? ¯ quis saber Ryan, que não se lembrava de ter visto nada sobre isso no dossiê.
¯ Noivo, senhor. Ela é especialista em óptica de laser, na Colina. Vamos nos casar no dia três de junho. ¯ A voz dele era trêmula, en-trecortada.
¯ Parabéns! A família trabalhando unida, não é? ¯ brincou Jack.
¯ Sim, senhor ¯ respondeu distraidamente Gregory, ainda examinando o horizonte a sudoeste.
¯ ADS! Já temos o sinal! ¯ anunciou alguém atrás deles.
¯ Os óculos! ¯ avisou uma voz metálica através do alto-falante. ¯ Todos coloquem a proteção ocular.
Jack assoprou as mãos antes de apanhar os óculos de plástico no bolso, onde lhe recomendaram que os colocasse para que permanecessem aquecidos. Mesmo assim pareceram frios demais ao contato. Ryan ficou efetivamente cego. As estrelas e a lua haviam desaparecido.
¯ Rastreando! Enquadramos o alvo. Discovery estabeleceu a ligação. Todos os sistemas operando.
¯ Aquisição do alvo ¯ anunciou outra voz. ¯ Iniciar seqüência de correção... primeiro alvo enquadrado... circuitos de disparo automático ativados.
Não houve nenhum som para indicar o que tinha acontecido. Não vi nada, pensou Ryan, ou vi? Teve a impressão fugaz de que alguma coisa... Será que foi imaginação? A seu lado, o major soltava o fôlego, aliviado.
¯ Teste concluído ¯ avisou a voz pelo alto-falante. Jack tirou os óculos.
¯ É só isso? ¯ O que vimos? O que eles fizeram? Será que estava tão por fora, mesmo depois da explicação, que não era capaz de entender o que se passara perante seus olhos?
¯ A luz do laser é quase impossível de ser vista ¯ explicou Gregory. ¯ A essa altitude, não existe poeira ou umidade para refleti-la.
¯ Então por que colocamos os óculos?
¯ É que, se um pássaro estiver na hora e no lugar errados, o impacto poderia ser, bem, algo espetacular. ¯ Gregory sorriu, tirando os óculos. ¯ Poderia ferir os olhos.
Três mil e duzentos quilômetros acima de suas cabeças, o Discovery prosseguia em direção ao horizonte. O ônibus espacial continuaria em órbita por mais três dias, conduzindo "missões científicas de rotina", principalmente estudos oceanográficos, segundo os comunicados distribuídos à imprensa, além de alguma coisa secreta para a Marinha. Os jornais, que vinham especulando há semanas, afirmavam que era algo relacionado com o rastreamento orbital de submarinos transportadores de mísseis. Na verdade, não havia melhor maneira de esconder um segredo do que encobri-lo com outro, e os assessores de imprensa da Marinha, a cada vez que eram procurados para falar sobre o assunto, usavam a rotina do "sem comentários".
¯ Funcionou? ¯ indagou Jack, olhando para cima e tentando avistar o ponto luminoso que indicava a nave de 1 bilhão de dólares.
¯ Precisamos verificar. ¯ O major encaminhou-se para a caminho-nete com pintura de camuflagem, estacionada próximo a eles, seguido pelo general de três estrelas e por Ryan.
No interior do veículo, a temperatura estava mais próxima de zero e o oficial chefe de segurança rebobinava uma fita de vídeo.
¯ Onde estavam os alvos? ¯ perguntou Jack. ¯ Isso não constava do relatório.
¯ Mais ou menos a 45 graus sul, 30 graus oeste ¯ respondeu o general, enquanto o major Gregory se debruçava sobre um monitor de televisão.
¯ É perto das ilhas Malvinas, não é?
¯ Na verdade é mais perto da ilha Geórgia do Sul ¯ corrigiu o general. ¯ É um lugar bem sossegado, fora das rotas, e a distância é adequada.
E os soviéticos não possuem nenhum artefato de busca de informações num raio de quase
¯ Está pronto ¯ disse o oficial de segurança.
A imagem na tela não estava muito boa, vinha de um ângulo ao nível do mar, especificamente de uma câmera postada no convés do Ob-servation Island, uma embarcação dotada de instrumentação de longo alcance que retornava de alguns testes com mísseis Trident no oceano Índico. Ao lado do monitor de vídeo, outra tela reproduzia a imagem do radar rastreador de mísseis "Cobra Judy", também no Observa-tion Island. Os dois monitores mostravam quatro objetos, dispostos em linha irregular. No canto direito da tela, um cronômetro apresentava os números como numa competição esportiva, com três dígitos à direita da marca dos segundos.
¯ Acertou! ¯ Um dos pontos desapareceu numa explosão de luz verde.
¯ Errou. ¯ Nada de perceptível aconteceu na tela.
¯ Errou.
Jack estava um pouco desapontado com aquilo. De certa forma, esperara ver raios de luz pelo céu, como acontecia no cinema. Não havia partículas suficientes no ar para demarcar a trajetória da linha de energia.
¯ Acertou. ¯ Mais um ponto desapareceu na tela.
¯ Acertou. ¯ Agora só restava um.
¯ Errou.
¯ Errou. ¯ O último não queria morrer, pensou Ryan.
¯ Acertou. ¯ Mas acabou morrendo. ¯ Tempo total: 1 segundo e 806 milésimos.
¯ Cinqüenta por cento... ¯ disse baixinho o major Gregory. ¯E ele corrigiu a si mesmo, não foi? ¯ O oficial concordou com a cabeça. ¯ Funciona!
¯ Qual o tamanho dos alvos? ¯ quis saber Jack.
¯ Três metros. Balões esféricos, é claro. ¯ Gregory quase não conseguia controlar seu entusiasmo. Parecia um garoto a quem o Natal tivesse apanhado de surpresa.
¯ O mesmo diâmetro de um míssil terra-terra SS-18.
¯ Alguma coisa em torno disso ¯ desta vez foi o general quem respondeu.
¯ Onde está o outro espelho?
¯ Dez mil quilômetros acima, no momento sobre a ilha de Ascensão. Oficialmente é um satélite meteorológico que não chegou a alcançar sua órbita. ¯ O general sorriu.
¯ Eu não sabia que podíamos mandar a energia tão longe.
¯ Nem nós... ¯ O major Gregory riu.
¯ Então o que fizeram foi enviar o raio daqui até o espelho do Dis-covery, onde foi refletido até o outro espelho sobre o equador, e de lá até o alvo?
¯ Exatamente ¯ concordou o general.
¯ Então o sistema de mira e aquisição de alvo está no outro satélite, é isso?
¯ É ¯ admitiu secamente o general.
¯ Isto quer dizer que se pode distinguir um alvo de
¯ É algo que não precisa saber ¯ replicou com frieza o general.
¯ Tiveram quatro tiros no alvo e quatro erros... oito tiros em menos de dois segundos, e o major disse que o sistema de mira corrigiu os erros ¯ continuou Ryan. ¯ Muito bem, se em vez do alvo fossem quatro mísseis SS-18 lançados da Geórgia do Sul, teriam sido neutralizados pelos disparos?
¯ Provavelmente não ¯ disse Gregory. ¯ Esse gerador de laser produz apenas 5 megajoules. Sabe quanto vale 1 joule?
¯ Dei uma recordada em minha física dos tempos de faculdade antes de vir para cá. Um joule vale 1 newton. metro por segundo, ou 0, 102 quilogramas-força, mais alguns quebrados, certo? ¯ O outro anuiu. ¯ Muito bem, 1 megajoule é um milhão de vezes maior, o que totaliza... 102 000 quilogramas-força. Em termos que eu possa entender...
¯ Um megajoule equivale, mais ou menos, a um bastão de dinamite. A energia real transferida no processo equivale a 1 quilo de explosivos, mas os efeitos não são exatamente comparáveis.
¯ Está me dizendo que o efeito do raio laser não é exatamente queimar o alvo, mas seria mais parecido com um choque? ¯ Ryan espremia até os limites seus conhecimentos técnicos.
¯ Exatamente ¯ respondeu o general. ¯ Na verdade chamamos de "morte por impacto". Toda a energia chega em alguns milionési-mos de segundo, muito mais rápido do que uma bala.
¯ Então essas histórias de que o polimento especial nos mísseis ou a rotação exagerada podem impedir...
¯ Gostei dessa quando ouvi. ¯ O major Gregory riu novamente. ¯ Uma bailarina rodopiando em frente a uma espingarda teria o mesmo efeito defensivo. O que acontece é que a energia tem de ir para algum lugar e esse lugar só pode ser o corpo do míssil. Quase todos os mísseis deles usam combustível líquido, certo? Só o efeito do choque hidrostático é suficiente para estourar os tanques de pressão. Ca-buuml Acabou-se o míssil. ¯ O major sorria como se estivesse descrevendo uma peça pregada em seu professor.
¯ Certo. Agora quero saber como funciona.
¯ Escute, doutor Ryan... ¯ começou o general, logo interrompido por Jack.
¯ General, tenho acesso a Tea Clipper. O senhor sabe disso, portanto chega de rodeios.
A contragosto, o general acenou com a cabeça para o major Gregory, que retomou a explicação.
¯ Senhor, temos cinco laser de 1 megajoule...
¯ Onde?
¯ Está na frente de um deles, senhor. Os outros quatro estão enterrados ao redor deste pico. A taxa de energia é pulsante, é claro. Cada um deles emite uma pulsação e produz 1 milhão de joules em alguns milionésimos de segundo.
¯ E em quanto tempo eles recarregam?
¯ Quarenta e seis milésimos de segundo. Podemos enviar vinte "tiros" por segundo, em outras palavras.
¯ Mas não dispararam a essa velocidade.
¯ Na verdade não precisamos, senhor. O fator limitante presente nesse caso é a programação do sistema localizador do alvo. Estamos trabalhando nisso. Um dos propósitos deste teste era realizar uma avaliação do software envolvido. Sabemos que os laser funcionam, já os temos há três anos. Os raios convergem para um espelho a aproximadamente
¯ Eles precisam estar... quero dizer, os raios todos precisam estar sintonizados, certo?
¯ Tecnicamente chamamos de Phased-Array Laser ¯ disse Gregory.
¯ Todos os raios laser têm de estar perfeitamente em fase.
¯ E como diabos conseguem fazer isso? ¯ Ryan fez uma pausa.
¯ Deixe para lá, eu não ia entender mesmo. Então o que temos é um único raio refletido por aquele espelho...
¯ O espelho é especial. É composto por milhares de segmentos, cada um deles controlado por um chip piezelétrico, chamado "óptico adaptável". Enviamos um raio exploratório ao espelho, que hoje foi emitido pelo ônibus espacial, e fazemos uma leitura das distorções atmosféricas. O computador analisa a maneira como o raio é curvado pela atmosfera e corrige todos os espelhos. Só então disparamos o tiro verdadeiro. O espelho no Discovery também possui ópticos adaptáveis. Recolhe o raio e o focaliza no satélite-espelho Flying Cloud, que o reflete para o alvo. Pronto!
¯ E simples assim? ¯ espantou-se Ryan, sacudindo a cabeça.
Sabia que aquela simplicidade só se tornara possível porque nos últimos dezenove anos haviam sido gastos 40 bilhões de dólares em pesquisa de base, cobrindo vinte campos diferentes só para que aquele teste pudesse ser realizado.
¯ Ainda precisamos acertar alguns detalhes ¯ acrescentou Gregory. Aqueles pequenos detalhes levariam pelo menos cinco anos, e Deus
sabe quantos bilhões de dólares a mais. O que interessava era que no momento tinha-se uma chance real de atingir o objetivo. Tea Clipper não era mais um projeto nas nuvens depois do teste que haviam presenciado.
¯ E foi você o cara que conseguiu nosso avanço no sistema de localização do alvo ¯ declarou Jack. ¯ Descobriu uma maneira para que o raio gerasse suas próprias informações de rastreamento.
¯ É mais ou menos isso ¯ confirmou o general. ¯ Dr. Ryan, essa parte do sistema está classificada tão alto que não podemos fornecer mais detalhes sem autorização por escrito.
¯ General, o propósito de minha vinda até aqui foi fazer uma avaliação deste programa em relação aos esforços soviéticos em armamentos similares. Se quiser que o meu pessoal descubra o que eles estão fazendo, tenho de saber que diabos procurar!
Como sua argumentação não provocasse nenhuma resposta, Ryan encolheu os ombros e retirou um envelope do interior do sobretudo, entregando-o ao general. O major assistiu à cena, intrigado.
¯ Ainda não gosta da idéia ¯ comentou Jack, quando o general dobrou o documento, depois de examiná-lo.
¯ Nem um pouco ¯ confessou o general, de cara fechada.
¯ General, quando eu estava no Corpo de Fuzileiros, ninguém nunca disse que eu devia gostar das ordens, só obedecer. ¯ Ryan mudou de tom ao notar que o general estava a ponto de perder a paciência. ¯ Estou do mesmo lado que o senhor.
¯ Pode continuar, major Gregory ¯ disse por fim o general Parks.
¯ Eu chamo de: "a dança dos leques do algoritmo" ¯ começou Gregory, assumindo o tom entusiasmado de um garoto explicando seu projeto na feira de ciências. Não demorou a expor a idéia básica por trás do funcionamento.
¯ Só isso? ¯ comentou Ryan, verdadeiramente impressionado com a simplicidade do raciocínio, consciente de que cada especialista em computação no projeto Tea Clipper devia ter se perguntado por que não pensara naquilo. Não era à toa que chamavam aquele Gregory de gênio. Ele tinha feito um avanço enorme na tecnologia do laser em Stony Brook e depois disso aperfeiçoara o software. ¯ É simples mesmo!
¯ É verdade, senhor, mas demorou quase dois anos para entrar em condições de funcionamento, e um computador Cray-2 para conseguir desenvolvê-lo numa velocidade compatível com as necessidades. Ainda temos mais algum trabalho pela frente, depois de analisar o que saiu errado esta noite. Acho que levaremos uns quatro ou cinco meses para colocar tudo em ordem.
¯ E qual será o próximo passo?
¯ Construir um laser de 5 megajoules. Um outro grupo já está próximo desta fase. Juntaremos vinte deles e poderemos enviar um pulso de 100 megajoules vinte vezes por segundo, e atingir qualquer alvo que desejemos. A energia de impacto será da ordem de, digamos,
¯ E isso derruba qualquer míssil que alguém possa construir.
¯ Sim, senhor. ¯ Gregory sorriu, satisfeito.
¯ Então o que está me dizendo, major... é que Tea Clipper funciona!
¯ Ele está dizendo que validamos a arquitetura do sistema ¯ atalhou o general. ¯ Desde que começamos, cinco anos atrás, havia onze barreiras técnicas. Agora existem apenas três, e em mais cinco anos não restará nenhuma. Então poderemos começar a construí-lo.
¯ As implicações estratégicas... ¯ Ryan interrompeu-se, a mente trabalhando com rapidez. ¯ Meu Deus!
¯ Vai mudar o mundo ¯ afirmou Parks.
¯ Sabe que estão fazendo a mesma coisa em Dushanbe?
¯ Sei ¯ admitiu o major. ¯ E sei também que eles devem ter conseguido resolver algum problema que ainda não solucionamos.
Ryan concordou. O rapaz era esperto o suficiente para saber que existiam outros mais espertos. Aquilo era muito bom.
¯ Cavalheiros, no helicóptero que me trouxe existe uma maleta. Será que podiam pedir para que alguém a traga até aqui? Trouxe algumas fotografias de satélite que vão achar interessantes...
¯ Quando foram tiradas essas fotografias? ¯ indagou o general Parks cinco minutos mais tarde.
¯ Há uns dois dias ¯ informou Jack.
O major Gregory continuou examinando as imagens por mais algum tempo antes de se pronunciar.
¯ Acho que temos aqui duas instalações ligeiramente diferentes. Chamamos de sparse array. Essa disposição esparsa hexagonal com os seis pilares é um transmissor. A construção no centro da estrutura deve ser projetada para abrigar seis geradores laser. Os pilares são bandejas opticamente estáveis para os espelhos. O raio laser é emitido no interior da construção e se reflete nos espelhos, que são controlados por computador para concentrar os raios no alvo.
¯ O que quer dizer com "opticamente estáveis"? ¯ perguntou Ryan.
¯ Os espelhos precisam ser controlados com um alto grau de precisão, senhor ¯ explicou Gregory. ¯ Isolando completamente o meio, eliminam-se as vibrações provenientes de um carro passando, e até do andar de um homem. Se o espelho balançar, mesmo por uma fração da freqüência do raio laser, o efeito se altera completamente. Aqui usamos montagens especiais contra choque, para aumentar o fator de isolamento. É uma técnica originalmente desenvolvida em submarinos. Certo até aqui? Essa outra disposição em losango deve ser o receptor.
¯ O quê? ¯ O raciocínio de Jack pareceu ter esbarrado em uma barreira de pedra.
¯ Vamos dizer que você queira fazer uma boa fotografia de alguma coisa. Quero dizer, boa mesmo, com alto poder de resolução. Nesse caso usa-se o laser como fonte de iluminação para tirar a foto.
¯ Mas... por que quatro espelhos?
¯ Porque é mais barato e mais fácil construir quatro espelhos pequenos do que um grande. ¯ Gregory fez uma pausa. ¯ Por outro lado, talvez estejam tentando obter uma imagem holográfica em três dimensões. Se puderem manter por muito tempo os raios em fase... é possível, pelo menos teoricamente. Ainda precisariam resolver mais alguns pontos delicados, mas os soviéticos gostam desses desafios... Que idéia! ¯ Os olhos do major brilharam. ¯Uma idéia muito interessante. Preciso depois pensar nisso.
¯ Está me dizendo que eles construíram tudo isso só para tirar fotografias de nossos satélites?
¯ Não, senhor. Mas podem usá-lo para fazer isso, se quiserem. E uma cobertura perfeita. Um sistema que consiga rastrear e fotografar um satélite em órbita geoestacionária pode com certeza derrubar um em órbita mais próxima à Terra. Se pensar nesses quatro espelhos como um telescópio, é só lembrar que um telescópio pode servir de lente a uma câmera, ou servir de mira num fuzil. Quer dizer que seria um ótimo sistema de mira. Quanta energia é fornecida a esse laboratório?
¯ A potência atual fornecida pela barragem é alguma coisa em torno de 500 megawatts. ¯ Ryan abaixou a fotografia que estivera examinando. ¯ Mas...
¯ Estão instalando novas linhas elétricas ¯ completou o major. ¯ Por quê?
¯ A usina geradora tem dois andares, desse ângulo não dá para ver. Parece que estão ativando a metade superior agora. Isto iria elevar a potência total de pico para 1 100 megawatts aproximadamente.
¯ Quanto dessa potência vai para as instalações.
¯ Chamamos esse lugar de Bach ¯ esclareceu Jack. ¯ Talvez uns 100 megawatts. O resto vai para Mozart, a cidade que fica na elevação seguinte. O que significa que estão dobrando a potência.
¯ É muito mais do que isso, senhor ¯ observou Gregory. ¯ A menos que dobrem o tamanho da cidade, podemos presumir que toda a potência restante vai para os geradores laser.
Jack quase engasgou. Como é que eu não pensei nisso antes?
¯ O que estou querendo dizer ¯ continuou o major ¯ é que vão injetar mais 500 megawatts no sistema. Meu Deus, e se eles conseguiram algum avanço na área de potência? É muito difícil saber o que está se passando lá?
¯ Dê uma olhada nas fotos e me diga se acha fácil infiltrar alguém no local ¯ sugeriu Ryan.
¯ Oh... ¯ exclamou Gregory, desanimado. ¯ É que seria muito bom saber quanta energia eles conseguem colocar na ponta do seu sistema. Há quanto tempo esse lugar existe, senhor?
¯ Há mais ou menos quatro anos, mas ainda não está pronto. Mozart é nova. Até pouco tempo atrás os trabalhadores estavam alojados em barracas e instalações provisórias. Começamos a reparar quando os apartamentos foram construídos ao mesmo tempo que as cercas de segurança. Quando os soviéticos paparicam seus trabalhadores, sabemos que o projeto tem prioridade total. Se possui cercas e torres de vigia, sabemos que é militar.
¯ Como encontraram o lugar?
¯ Foi por acidente. A Agência estava revendo alguns dados meteorológicos sobre a União Soviética e um dos técnicos decidiu fazer uma análise em computador dos melhores locais para observações astronômicas. Este é um deles. Nos últimos meses, o tempo tem se apresentado encoberto, mas geralmente lá é tão claro quanto aqui. O mesmo vale para Sary Shagan, Semipalatinsk, e o mais novo, Storozhevaya. ¯ Ryan espalhou novas fotos sobre a bancada.
¯ Eles andam ocupados por lá...
¯ Bom dia, Misha ¯ cumprimentou o marechal da União Soviética Dmitri Timofeyevich Yazov.
¯ Para o senhor também, camarada ministro da Defesa ¯ respondeu o coronel Filitov.
Um sargento ajudou o ministro a tirar o sobretudo, enquanto outro entrou com uma bandeja contendo um serviço de chá. Ambos se retiraram quando o coronel abriu sua pasta.
¯ Então, Misha? Como está o meu dia hoje?
Yazov serviu duas xícaras de líquido fumegante. Ainda estava escuro fora do prédio do Conselho de Ministros. O perímetro interno das paredes do Kremlin estava iluminado por lâmpadas branco-azuladas e as sentinelas apareciam e desapareciam como borrões escuros nos focos de luz sobre a neve.
¯ Parece um dia bem cheio, Dmitri Timofeyevich ¯ respondeu Misha. ¯ Hoje temos a delegação que veio da estação experimental do Tadjiquistão.
Yazov não era o homem que Dmitri Ustinov fora, mas Filitov precisava admitir que ele começava o dia como um verdadeiro soldado. Ya-zov havia iniciado a carreira como oficial de tanques, e, embora nunca se tivessem encontrado durante a guerra, cada um conhecia a reputa-ção do outro. Misha era melhor oficial de combate, e os puristas afir-mavam que ele representava o mesmo que um oficial de cavalaria da velha-guarda, embora Filitov odiasse cavalos; Dmitri Yazov logo ficara famoso como organizador, revelando-se um oficial de gabinete muito hábil também em política. Antes de mais nada, Yazov era um homem devotado ao Partido, de outra forma jamais teria conseguido o posto de marechal.
¯ Ah, Estrela Brilhante. A reunião está marcada para hoje.
¯ Acadêmicos ¯ resmungou Misha. ¯ Eles não reconheceriam uma arma de verdade nem que tivessem uma encostada na bunda.
¯ O tempo das lanças e sabres já passou, Mikhail Semyonovich ¯ declarou Yazov com um sorriso. Sem possuir o brilhante intelecto de Ustinov, o atual ministro tampouco era um tolo, como seu predeces-sor Sergey Sokolov. Sua falta de conhecimentos na área de engenharia era contrabalançada por um reconhecimento dos méritos das novas armas e uma perspicácia incomum para o pessoal do Exército soviético. ¯ Essas invenções são extraordinariamente promissoras.
¯ É claro. Eu só gostaria que tivéssemos um soldado dirigindo o projeto, e não esses professores de olhos esbugalhados.
¯ Mas o general Pokryshkin,..
¯ Ele era um piloto de caça. Eu disse um soldado, camarada ministro. Pilotos apoiam qualquer coisa que tenha botões e reloginhos. Além do mais, Pokryshkin tem passado mais tempo sentado nas bibliotecas das faculdades do que em assentos de aviões. Acho que nem voa mais. Pokryshkin deixou de ser um soldado há dez anos, e agora é procurador dos mágicos. ¯ Também está construindo lá o seu império particular; mas é melhor deixar esse assunto para outro dia.
¯ Gostaria de ser designado para uma nova missão, Misha? ¯ perguntou argutamente Yazov.
¯ Não essa, muito obrigado ¯ riu Filitov. ¯ O que estou tentando dizer, Dmitri Timofeyevich, é que o progresso conseguido em Estrela Brilhante fica... empanado pelo fato de não termos um militar de verdade no comando. Alguém que entenda as sutilezas de combate e que saiba o que deve ser esperado de uma arma.
¯ Estou entendendo o que quer dizer ¯ assentiu o ministro pensativamente, balançando a cabeça. ¯ Eles raciocinam em termos de instrumentos em lugar de armas. Isso é verdade. Fico preocupado com a complexidade do projeto.
¯ Quantas partes móveis possui esta nova montagem?
¯ Não tenho idéia. Milhares, eu suponho,
¯ Um instrumento não se transforma numa arma até que possa ser manejado por um soldado raso... bem, pelo menos por um tenente. Alguém de fora do projeto fez um estudo de viabilidade? ¯ perguntou Filitov.
¯ Não que eu me lembre.
¯ Ai' está, Dmitri Timofeyevich ¯ declarou Filitov, apanhando sua xícara de chá. ¯ Não acha que o Politburo pode vir a interessar-se por isso? Até agora eles têm aprovado fundos para esse projeto experimental, mas... ¯ O coronel deu um pequeno gole. ¯ Eles vêm para obter mais verbas a fim de tornar o projeto operacional, e nós não temos nenhuma avaliação independente de viabilidade.
¯ E o que você faria para resolver isto?
¯ Obviamente não tenho capacidade para fazê-lo. Estou muito velho e não tenho os conhecimentos necessários, mas existem alguns jovens coronéis brilhantes no ministério, especialmente na seção de sinalização. Não são oficiais combatentes, mas são soldados, e bastante competentes para analisar essas pequenas maravilhas eletrônicas. Mas é apenas uma sugestão, camarada ministro. ¯ Filitov achou melhor não insistir muito. Havia plantado a semente de sua idéia, e Yazov era muito mais fácil de manipular do que Ustinov.
¯ E quanto aos problemas em Chelyabinsk, com os tanques? ¯ indagou Yazov, mudando de assunto.
Ortiz observou o Arqueiro subindo o morro a
¯ Bem que eu tomaria uma cerveja ¯ reclamou o capitão. Ortiz voltou-se para ele.
¯ Capitão, a única coisa que me permite negociar com esses homens e obter sucesso é que vivo como eles vivem. Observo suas leis e as respeito, e isso significa: não beber nada alcoólico, não comer porco e respeitar as mulheres deles.
¯ Merda! ¯ resmungou o oficial. ¯ Esses selvagens ignorantes não...
¯ Capitão! ¯ cortou Ortiz. ¯ Da próxima vez que disser isso, ou mesmo pensar em voz alta, será o seu último dia aqui. Essas pessoas estão trabalhando para nós e arranjando coisas que não podemos con-seguir em nenhum outro lugar. Você irá tratá-los com todo o respeito que merecem. Está claro?
¯ Sim, senhor. ¯ Que merda! Esse cara virou um fanático muçulma-no de tanto viver como esses "negros da areia"
A Raposa Cansada
¯ E impressionante... se se conseguir adivinhar o que estão fazendo.
¯ Jack bocejou. Havia tomado o mesmo transporte da Força Aérea de Los Alamos para Andrews, e seu sono estava novamente atrasado. Não sabia lidar com aquilo, como das outras vezes em que acontecera. ¯ Esse rapaz, o Gregory, é esperto como o diabo. Demorou mais ou menos dois segundos para identificar a instalação em Bach, praticamente com as mesmas palavras do pessoal do NPIC, o Centro Nacional de Informações Fotográficas. ¯ Com a diferença de que os técnicos do NPIC haviam levado quatro meses e preparado três relatórios para chegar às mesmas conclusões.
¯ Acha que ele pertence ao grupo de avaliação? ¯ quis saber o almirante Greer.
¯ Senhor, isso seria como perguntar se queremos um cirurgião numa sala de operações. A propósito, ele gostaria que infiltrássemos alguém em Bach. ¯ Jack girou os olhos nas órbitas.
O almirante quase deixou cair sua xícara.
¯ Esse garoto deve ver muitos filmes de Kung-fu.
¯ É bom saber que alguém ainda acredita em nós ¯ brincou Jack, assumindo um tom sério depois. ¯ De qualquer forma, Gregory quer saber se eles fizeram algum avanço com a potência de saída do laser. Desculpe, acho que o termo correto é throughput. Ele suspeita de que a maior parte da potência adicional produzida pela hidrelétrica vai para Bach.
Os olhos de Greer se estreitaram.
¯ Esse é um mau pensamento. Acha que ele tem razão?
¯ Existe muita gente competente em tecnologia de laser do lado de lá, senhor. Nikolay Bosov, lembre-se, desde que ganhou o Prêmio Nobel, vem se dedicando à pesquisa de armamento laser, ao lado de Yevgeniy Velikhov, que é um ativista da paz; e o chefe do Instituto Laser é o filho de Dmitri Ustinov, por Deus! A instalação de Bach é um emissor sparse array laser, com certeza. Precisamos determinar ainda que tipo de laser estão usando. O rapaz acha que é do tipo elétron livre, mas diz que é apenas uma suposição. Fez cálculos que mostravam as vantagens de montar os dispositivos nessa montanha, onde ficariam acima de metade da atmosfera, e sabemos quanta energia é necessária para fazer algumas das coisas que eles querem. Disse que vai tentar reconstituir os dados no computador, para ver se descobre a quantidade total de energia do sistema. A estimativa será pessimis-ta. Considerando tudo o que o major Gregory disse e a recente fase de acabamento das instalações residenciais em Mozart, teremos de presumir que o local vai entrar em fase de teste formal e avaliação num futuro próximo, talvez até operacional em dois ou três anos. Se isso acontecer, Ivã pode ter em pouco tempo um laser capaz de riscar do espaço um de nossos satélites. O major diz que provavelmente será uma morte atenuada, apagando as lentes das câmeras e as células fo-tovoltaicas. Mas o próximo passo...
¯ Certo. Estamos mesmo numa corrida.
¯ Qual é a chance de que Ritter e o pessoal de Operações consigam descobrir alguma coisa no interior de uma das construções em Bach?
¯ Acho que posso discutir com ele as possibilidades ¯ disse Greer sem muita convicção, mudando a seguir de assunto: ¯ Você parece um pouco cansado.
Ryan entendeu a mensagem: ele não precisava saber o que o pessoal de Operações iria fazer.
¯ Todas essas viagens foram muito cansativas. Se não se importa, senhor, gostaria de ser dispensado pelo resto do dia.
¯ Parece justo. Vejo você amanhã, então. Mas antes... Jack? Recebi um telefonema do pessoal da Comissão de Valores Mobiliários.
¯ Ah, eu já tinha esquecido deles. ¯ Jack inclinou a cabeça. ¯ Ligaram para mim logo antes da viagem a Moscou.
¯ Sobre o quê?
¯ É sobre uma das companhias da qual possuo ações, os agentes estão sendo investigados por compra e venda internamente. Comprei minhas ações ao mesmo tempo que eles, e a Comissão quer saber como foi isso.
¯ E como foi? ¯ quis saber Greer. A CIA já tinha escândalos sufi-cientes, e o almirante não queria nenhum começando em seu setor.
¯ Alguém me deu um palpite de que aquela poderia ser uma companhia interessante para investir, e quando fui verificar descobri que a própria empresa estava comprando suas ações. Isso tudo é legal, chefe. Tenho as cópias dos relatórios em casa, porque faço tudo isso por computador... Bem, pelo menos fazia antes de vir trabalhar no Departa-mento, e tenho cópias impressas de todos os dados. Não infringi nenhuma regra, senhor, e posso provar.
¯ Vamos tentar resolver tudo nos próximos dias ¯ sugeriu Greer.
¯ Sim, senhor.
Cinco minutos depois, Jack estava em seu carro. O percurso até sua casa em Peregrine Cliff foi mais fácil do que normalmente, levando apenas cinqüenta minutos em vez de uma hora e quinze. Cathy estava trabalhando, como sempre, e as crianças estavam na escola ¯ Sally em St. Mary's e Jack na pré-escola. Ryan serviu-se de um copo de leite na cozinha. Quando terminou de beber, subiu as escadas, tirou os sapatos e caiu na cama, sem ao menos se incomodar em tirar a calça.
O coronel Gennady Iosifovich Bondarenko, do Serviço de Comunicações do Exército, estava sentado em frente a Misha, as costas eretas e orgulhoso, e tão jovem quanto se esperava de um oficial de campanha. Não se mostrava nem um pouco intimidado pelo coronel Filitov, que possuía idade suficiente para ser seu pai e cujo passado era uma verdadeira lenda viva no Ministério da Defesa. Então era esse o vetera-no guerreiro que participara de praticamente todas as batalhas de tanques durante os primeiros dois anos da Grande Guerra Patriótica. Viu nos olhos do homem a tempera que a idade e a fadiga jamais apagariam, e reparou na falta de movimento no braço direito, lembrando-se de como tinha acontecido. Diziam que o velho Misha ainda visitava as fábricas de tanques com alguns homens de seu antigo regimento, para verifi-car se o controle de qualidade dos tanques ainda correspondia aos padrões estabelecidos e certificar-se de que seus frios olhos azuis ainda eram capazes de distinguir e acertar o alvo da cadeira do artilheiro. Bondarenko tinha uma espécie de respeito por esse homem, que era um exemplo entre os soldados, e acima de tudo sentia-se orgulhoso por usar o mesmo uniforme que ele.
¯ Em que posso servi-lo, coronel? ¯ perguntou ele a Misha.
¯ Sua ficha diz que você é muito bom com aparelhos eletrônicos, Gennady Yosifovich. ¯ Filitov apontou uma pasta de arquivo sobre sua mesa.
¯ E meu trabalho, camarada coronel. ¯ Bondarenko era mais do que "muito bom", ambos sabiam disso. Ele ajudara a desenvolver rniras a laser para os campos de batalha, e até pouco tempo atrás estivera envolvido com um projeto de utilização de laser em vez de radiotransmissores para tornar mais seguras as comunicações na linha de frente.
¯ O que estamos a ponto de discutir foi classificado como ultra-secreto. ¯ O jovem coronel concordou gravemente e Filitov continuou. ¯ Durante os últimos anos, o ministério vem financiando um projeto chamado Estrela Brilhante... o nome em si também é sigiloso, é claro. Seu objetivo original é obter fotografias de alta resolução dos satélites ocidentais, embora quando completamente desenvolvido seja capaz de cegá-los... ao tempo em que tal ação seja politicamente desejável. O projeto é dirigido por acadêmicos e por um ex-piloto de caça da Defesa Aérea... Esse tipo de instalação infelizmente fica sob a autoridade das forças de defesa aérea. Eu pessoalmente teria preferido que fossem dirigidas por um verdadeiro soldado, mas...
Misha parou e fez um gesto em direção ao teto. Bondarenko sorriu em concordância. Política, comunicaram-se ambos em silêncio. É de espantar que se consiga realizar alguma coisa.
¯ O ministro deseja que você voe até lá e faça uma avaliação do potencial dos armamentos nas instalações, particularmente sob o ponto de vista de viabilidade. Se vamos tornar esse local operacional, seria bom sabermos se a merda toda vai funcionar na hora em que precisarmos dela.
O jovem oficial concordou pensativamente, enquanto sua mente disparava. Aquela era uma missão para a qual fora escolhido ¯ mais do que isso. Deveria responder ao ministro através de seu mais confiável auxiliar. Se fizesse um bom trabalho, teria a insígnia pessoal do ministro no paletó. Aquilo lhe garantiria estrelas de general, um apartamento maior para a família, boa educação para os filhos e muitas das coisas pelas quais lutava havia anos.
¯ Camarada coronel, devo presumir que eles sabem da rninha ida? Misha gargalhou ruidosamente.
¯ É assim que o Exército Vermelho faz agora? Avisam as pessoas quando elas vão passar por uma inspeção? Não, Gennady Iosifovich, se vamos avaliar viabilidades, devemos fazer a inspeção de surpresa. Tenho uma carta aqui para você do próprio marechal Yazov. Será mais do que suficiente para que possa passar pela segurança... A segurança do local está a cargo de seus colegas da KGB ¯ informou Misha friamente. ¯ Vai lhe permitir acesso a todas as dependências da instalação. Se tiver qualquer tipo de dificuldade, telefone para mim imediatamente. Posso ser encontrado neste número. Mesmo se estiver na sauna, meu chofer virá me chamar.
¯ A que nível de detalhes deve chegar a avaliação, camarada coronel?
¯ O suficiente para que um velho piloto de tanques como eu possa entender toda essa feitiçaria que andam fazendo por lá ¯ declarou Misha. ¯ Acha que tem condições de entender tudo aquilo?
¯ Se não tiver, o senhor será informado, camarada coronel. ¯ Era uma boa resposta, reparou Misha. Bondarenko iria longe.
¯ Excelente, Gennady Iosifovich. Eu prefiro mesmo que um ofi-cial me diga que não sabe, em vez de tentar me impressionar com um monte de mudnya. ¯ Bondarenko entendeu muito bem a mensagem. Circulavam boatos de que o tapete do escritório do coronel era vermelho-ferrugem do sangue de oficiais que tentaram enganá-lo e passar por cima dele. ¯ Quando pode partir?
¯ São muito grandes as instalações?
¯ São. Acomodam quatrocentos acadêmicos e engenheiros, mais uns seiscentos homens do pessoal de apoio. Pode levar uma semana para fazer sua avaliação; a velocidade no caso não é tão importante quanto a precisão.
¯ Nesse caso vou colocar mais um uniforme na bagagem. Posso estar a caminho em duas horas.
¯ Excelente. Está dispensado. ¯ Misha abriu uma nova pasta.
Como geralmente acontecia, Misha trabalhou alguns minutos a mais do que o ministro. Trancou os documentos pessoais no cofre, e o res-, tante foi levado por um mensageiro, cujo carrinho rodou em direção aos Arquivos Centrais, alguns metros ao longo do corredor. O mesmo mensageiro lhe entregou um bilhete, informando que o coronel Bondarenko havia embarcado no vôo 1730 da Aeroflot para Dushanbe e que ele providenciara transporte terrestre do aeroporto civil até Estre-la Brilhante. Filitov prometeu-se lembrar de parabenizar Bondarenko por sua argúcia. Como membro da corregedoria interna do ministério, ele poderia ter requisitado transporte especial e voado até o aeroporto militar da cidade, mas o oficial de segurança em Estrela Brilhante sem dúvida teria lá alguns de seus homens, que informariam a chegada de tal vôo. Da forma como foi feito, um coronel de Moscou poderia perfeitamente passar pelo que geralmente eram os coronéis na capital ¯ garotos de recados. Aquilo ofendia Filitov. Um homem que trabalhara duro o suficiente para obter o posto de comandante de um regimento ¯ que era o melhor trabalho em qualquer Exército ¯ não devia ser um escravo de gabinete a preparar bebidas para seu general. Mas sabia também que era assim que a coisa funcionava em qualquer organização militar. Pelo menos Bondarenko teria a chance de experimentar seus dentes naqueles vadios do Tadjiquistão.
Filitov levantou-se e apanhou o casaco. Um momento depois, com a maleta pendendo da mão direita, saiu do escritório. Seu secretário ¯ um oficial de segurança ¯ automaticamente apanhou o interfone e chamou a garagem para que o carro estivesse pronto. Já estava aguardando quando Misha saiu pela porta da frente.
Quarenta minutos depois, Filitov vestia roupas confortáveis. A televisão ligada transmitia qualquer coisa absurda o suficiente para ter vindo do Ocidente. Misha sentou-se sozinho à mesa da cozinha. Ao lado de sua refeição noturna, uma garrafa aberta de meio litro de vodca. Comia salsicha, pão preto e vegetais em conserva, uma refeição não muito diferente das que partilhara em campanha com seus homens, duas gerações antes. Descobrira depois que seu estômago se dava melhor com aquele tipo de comida do que com pratos mais delicados, um fato que confundira o pessoal do hospital durante sua última crise de pneumonia. Depois de cada mordida, dava um pequeno gole na vodca, olhando para as persianas, reguladas de forma a permitir que se visse através das janelas. As luzes da cidade de Moscou brilhavam, além dos incontáveis retângulos amarelos das janelas de apartamentos.
Ele conseguia lembrar-se dos odores à vontade. O cheiro viçoso da boa terra russa, o aroma delicado da grama verde, entremeados com os vapores desagradáveis do óleo diesel, e acima de tudo o fedor ácido da pólvora dos canhões do tanque, que permanecia no macacão, não importando quantas vezes se tentasse lavá-lo. Para um piloto de tanques essa mistura era o cheiro de combate, isso e o cheiro mais desagradável dos veículos em fogo e das tripulações no interior. Sem olhar, ele levantou a salsicha e cortou um pedaço generoso, trazendo-o à boca com a faca. Olhava pela janela, como se fosse uma tela de televisão, e o que enxergava era o vasto e distante horizonte colorido pelo pôr-do-sol e colunas de fumaça que se elevavam em meio ao verde e azul, alaranjado e marrom. A seguir, uma mordida na textura rica e mais compacta do pão preto. Como sempre acontecia nas noites anteriores às ocasiões em que cometia traição, os fantasmas voltavam para visitá-lo.
Mostramos a eles, não foi, camarada capitão?, perguntou uma voz fa-tigada.
Fomos obrigados a recuar, cabo, ele ouviu a própria voz responder. Mas pelo menos mostramos a esses cabeças-de-merda que não podem brincar com os nossos T-34. É muito bom esse pão que você roubou, cabo.
Roubei? Mas, camarada capitão, é um trabalho muito pesado defender esses fazendeiros, não é?
E dá muita sede, não acha, cabo?
É verdade, camarada. O cabo riu. Das costas, uma garrafa foi passada para baixo. Não era a vodca produzida pelo Estado, e sim Samo-gan, o destilado caseiro que Misha conhecia muito bem. Todo russo verdadeiro que fosse consultado diria que adorava o sabor, embora ninguém o tocasse se houvesse vodca por perto. Mesmo assim, no momento Samogan era o que desejava, ali em solo soviético, compartilhado com o que restava das tropas de tanques que resistiam entre uma fazenda estatal e os panzers de Guderian.
Eles vão atacar outra vez pela manhã, afirmou o piloto.
E amanhã estouramos mais alguns tanques cinza, completou o carregador.
Depois do quê, Misha não falou em voz alta, recuamos mais 10 quilômetros. Só
Não era um pensamento que se dissesse aos homens. Misha limpou cuidadosamente as mãos antes de desabotoar o bolso da túnica. Agora chegara a hora de alimentar a alma.
Muito delicada, observou o cabo, olhando por sobre o ombro do capitão pela centésima vez, como sempre com uma ponta de inveja. Delicada como cristal. E um filho tão bonito o senhor tem. Sorte para o senhor, camarada capitão, que ele seja parecido com a mãe. Ela é tão pequenina, como é que pode ter gerado um rapaz tão grande desse jeito e não ter se machucado?
Deus sabe como, foi sua resposta inconsciente. Era muito estranho que depois de alguns dias de guerra até o ateu mais convicto invocasse o nome de Deus. Mesmo alguns dos comissários, para divertimento dos soldados.
Voltarei para você, prometeu ele à fotografia. Nem que tenha de passar por todo o Exército alemão, através de todos os fogos do inferno, eu voltarei para você, Elena.
Nesse instante chegou o correio, uma ocorrência cada vez mais rara na frente de batalha. Havia apenas uma carta para o capitão Filitov, mas a textura do papel e a delicada caligrafia denunciavam sua importância. Ele abriu o envelope com o fio brilhante da faca de combate e extraiu a carta tão cuidadosamente quanto o permitiu sua pressa, para não manchar as palavras do seu amor com a graxa do tanque de batalha. Segundos depois levantou-se de um salto e gritou para as estrelas no céu do crepúsculo.
Serei pai novamente na primavera! Deve ter sido naquela noite da partida, três semanas antes de começar essa loucura...
Não estou surpreso, disse o cabo alegremente. Depois da fodida que demos nos alemães hoje! Esse e' o homem que lidera essa tropa. Nosso ca-pitão é um verdadeiro garanhão!
Você é um grosso, cabo Romanov. Sou um homem casado!
Então talvez eu possa me pôr no lugar do camarada capitão?, perguntou o cabo esperançoso, passando novamente a garrafa. A mais um bom fílho, e à saúde de sua bela mulher. Lágrimas de alegria brilhavam nos olhos do homem, uma alegria misturada à tristeza de saber que apenas uma sorte muito grande permitiria que ele fosse pai. Mas ele nunca diria tal coisa. Romanov era um bom soldado e um bom camarada, pronto para comandar seu próprio tanque.
E Romanov conseguira seu próprio tanque, recordou Misha, observando o crepúsculo em Moscou. Em Vyasma, ele ousadamente colocara seu tanque entre o indefeso T-34 de seu capitão e um Mark-IV alemão que atacava, salvando a vida do comandante enquanto a sua própria terminava num turbilhão de labaredas alaranjadas. Aleksey Ilych Romanov, cabo do Exército Vermelho, ganhou naquele dia a Ordem da Bandeira Vermelha. Misha imaginou se seria uma compensação justa para com a mãe pelos olhos azuis e pelas sardas do filho.
A garrafa de vodca estava agora três quartos vazia, e, como ele fize-ra tantas vezes, Misha soluçava, sozinho em sua mesa.
Tantas mortes...
Esses idiotas no Alto Comando! Romanov assassinado em Vyasma. Iva-nenko perdido perto de Moscou. O tenente Abashin em Kharkov... Mir-ka, o belo poeta, o delicado e sensível j0vem oficial que tinha o coração e a coragem de um leão, morto enquanto liderava o quinto contra-ataque, mas livrando a rota de fuga para que Misha passasse com o resto do regi-mento através do Donets antes que o martelo alemão caísse sobre eles.
E sua Elena, a última de todas as vítimas... Todos mortos não pelo inimigo, mas pela brutalidade indiferente da própria Mãe Pátria.
Misha tomou um último e longo gole da garrafa a sua frente. Não era a Mãe Pátria. Não a Rodina, nunca a Rodina. Foram os putos desumanos que...
Levantou-se e cambaleou em direção ao quarto, deixando acesas as luzes da sala de estar. O relógio na cabeceira marcava 9h45, e alguma parte distante do cérebro de Misha encontrou conforto no fato de poder dormir nove horas para recuperar-se dos abusos que infligira ao que tinha sido um corpo magro e resistente, que tinha suportado ¯ e até se desenvolvido ¯ sob as desgastantes condições das prolongadas operações de combate. Mas o stress que Misha suportava agora fazia o combate parecer férias, e seu subconsciente parecia se alegrar com a certeza de que logo tudo terminaria, e o descanso viria fi-nalmente.
Cerca de meia hora depois, um carro passou pela rua. No assento do passageiro, uma mulher levava seu filho de um jogo de hóquei para casa. Éla olhou para cima e reparou que as luzes de uma certa janela estavam acesas e as persianas abertas.
O ar era rarefeito. Bondarenko levantou às 5 horas em ponto, como sempre fazia, vestiu o abrigo de malha e tomou o elevador para descer de seu quarto de hóspede, no décimo andar. Por um instante ficou surpreso ¯ os elevadores funcionavam. Isso significava que os técnicos podiam ir e vir percorrendo as instalações, dia e noite. Bom, pensou o coronel.
Saiu do prédio com uma toalha pendurada ao pescoço e consultou o relógio. Franziu as sobrancelhas ao começar. Em Moscou ele tinha uma rotina matinal regular de exercícios, uma distância medida entre os quarteirões da cidade. Ali não podia ter certeza da distância, quando terminariam os
O vôo no qual chegara terminara de forma espetacular. A lua cheia havia iluminado a planície deserta de Kara Kum sob o avião ¯ e então a paisagem arenosa acabara num monumental paredão que parecia construído pelos deuses. No espaço de 3 graus de longitude, o relevo mudara de planícies com
Imediatamente notou que respirava mais fortemente do que o normal através do tecido da máscara no rosto. Era a altitude, claro. Bem, aquilo encurtaria um pouco o exercício. O prédio de apartamentos já ficara para trás e ele olhou à direita, passando pelo que seu mapa indicava como lojas de aparelhos e artigos ópticos.
¯ Alto! ¯ gritou uma voz em tom de urgência.
Bondarenko praguejou. Não gostava nem um pouco de interromper seus exercícios matinais. Especialmente, notou ele, por quem usasse as ombreiras verdes da KGB. Espiões... assassinos... brincando de soldados.
¯ O que foi, sargento?
¯ Seus papéis, por favor, camarada. Não estou reconhecendo você. Por sorte a esposa de Bondarenko havia costurado vários bolsos no
agasalho Nike que conseguira obter no "mercado cinza" de Moscou, um presente por seu último aniversário. O coronel manteve as pernas em movimento enquanto entregava sua identificação.
¯ Quando chegou o camarada coronel? ¯ indagou o sargento. ¯ E o que pensa que está fazendo a esta hora da manhã?
¯ Onde está seu oficial? ¯ retrucou Bondarenko.
¯ No posto principal, a
¯ Então venha comigo, sargento, e falaremos com ele. Um coronel do Exército Soviético não dá explicações a sargentos. Vamos indo, acho que precisa de um pouco de exercício também! ¯ desafiou ele, pondo-se em movimento.
O sargento devia ter por volta de 20 anos, mas usava um pesado sobretudo e carregava o fuzil e o cinto de munição. Depois de 200 metros, Gennady ouviu-o resfolegando.
¯ Aqui, camarada coronel! ¯ balbuciou o jovem um minuto depois.
¯ Não devia fumar tanto, sargento ¯ observou Bondarenko.
¯ Que diabos está acontecendo aqui? ¯ berrou um tenente da KGB de trás de sua escrivaninha.
¯ Seu sargento me desafiou. Sou o coronel G. I. Bondarenko e estou fazendo minha corrida matinal.
¯ Usando roupas ocidentais?
¯ E o que você tem a ver com as roupas que eu uso quando faço exercício? Idiota! Será que pensa que os espiões fazem cooper?
¯ Coronel, sou o oficial do turno na segurança. Não o reconheço, e meus superiores não me alertaram sobre sua presença.
Gennady enfiou a mão em outro bolso e tirou de lá seu passe especial de visitante, junto com a identificação.
¯ Estou aqui na qualidade de representante especial do ministro da Defesa. O propósito de minha visita não é assunto de sua alçada. Aqui represento a autoridade pessoal do marechal da União Soviética D. T. Yazov. Se tiver mais alguma pergunta, pode chamá-lo diretamente neste número telefônico.
O tenente da KGB leu escrupulosamente os documentos de identificação para certificar-se de que eram o que lhe fora dito.
¯ Por favor, desculpe-me, camarada coronel, mas temos ordens de levar a sério as medidas de segurança. Além do mais, é fora do comum por aqui encontrarmos um homem em roupas ocidentais correndo ao amanhecer.
¯ Presumo que também seja fora do comum seus soldados correrem a qualquer hora ¯ observou secamente Bondarenko.
¯ Na verdade quase não há espaço aqui no alto da montanha para um regime apropriado de treinamento físico, camarada coronel.
¯ É mesmo? ¯ Bondarenko sorriu enquanto retirava um pequeno bloco e um lápis de um dos bolsos na perna. ¯ Diz que leva a segurança a sério, mas não cumpre as normas de treinamento físico para seus soldados. Muito obrigado pela informação, camarada tenente. Discutiremos esse assunto com seu oficial comandante. Posso ir agora?
¯ Tecnicamente tenho ordens para escoltar todos os visitantes oficiais...
¯ Esplêndido! Gosto de companhia quando corro. Será que o senhor teria a bondade de me acompanhar, tenente?
O oficial da KGB estava numa armadilha e sabia disso. Cinco minutos mais tarde, ele bufava como um peixe fora dágua.
¯ Qual é a principal ameaça à segurança? ¯ perguntou Bondarenko maliciosamente, pois não diminuiu a marcha.
¯ A fronteira afegã fica a apenas
¯ Eles fazem contato com os cidadãos locais?
¯ Não, ao que saibamos, mas essa é uma preocupação. A população local é em grande parte muçulmana. ¯ O tenente começou a tossir. Gennady parou.
¯ Nesse ar gelado descobri que usar uma máscara ajuda ¯ disse ele. ¯ Esquenta um pouco o ar antes que seja respirado. Endireite o corpo e respire profundamente, camarada. Se pretende levar tão a sério as disposições de segurança, você e seus homens deveriam estar em boa forma física. Posso garantir que os afegães estão. Dois inver-nos atrás passei muito tempo com os comandos especiais Sperznaz, perseguindo-os por mais de meia dúzia de montanhas miseráveis. Não conseguimos apanhá-los. ¯ Mas eles nos apanharam, ele não disse. Bon-darenko nunca esquecera aquela emboscada.
¯ Não puderam usar helicópteros?
¯ Nem sempre eles podem voar com tempo ruim, meu jovem camarada, e em meu caso tentávamos provar que também podíamos lu-tar nas montanhas.
¯ Aqui temos patrulhas circulando o dia inteiro, é claro.
Foi alguma coisa na maneira como ele disse aquilo que incomodou Bondarenko, e o coronel prometeu-se verificar esse ponto mais tarde.
¯ Quanto já corremos?
¯ Dois quilômetros ¯ estimou o tenente.
¯ A altitude dificulta mesmo as coisas. Venha, vamos andar de volta. O nascer do sol era espetacular. A esfera flamejante elevava-se sobre
uma montanha sem nome a leste, e sua luz descia pelas encostas mais próximas, perseguindo vagarosamente as sombras pelos vales profundos e desérticos. Aquelas instalações não eram um objetivo fácil, mesmo para os bárbaros e desumanos mudjahidin. As torres de vigia eram bem localizadas, com amplos corredores de tiro que se estendiam por vários quilômetros. Não usavam holofotes, em consideração aos civis residentes, mas os dispositivos para visão noturna eram uma escolha melhor de qualquer maneira, e ele tinha certeza de que os soldados da KGB os utilizavam. Além disso, ele deu de ombros, a segurança do local não era o motivo que o trazia ali, embora fosse uma boa desculpa para esmiuçar os detalhes da segurança da KGB.
¯ Posso saber como obteve essa roupa de exercícios? ¯ perguntou o oficial da KGB assim que voltou a respirar em ritmo normal.
¯ É um homem casado, camarada tenente?
¯ Sou, sim, camarada coronel.
¯ Pessoalmente não costumo interrogar minha esposa sobre onde ela compra presentes de aniversário para mim. Mas não sou um che-kista. ¯ Bondarenko fez algumas flexões para demonstrar que era, entretanto, um homem melhor.
¯ Coronel, embora nossos deveres não sejam exatamente os mesmos, ambos servimos a União Soviética. Sou um oficial jovem e inexperiente, como o senhor mesmo já deixou claro. Uma das coisas que me perturbam é a rivalidade desnecessária entre o Exército e a KGB.
Bondarenko voltou-se para encarar o tenente antes de responder:
¯ Muito bem observado, meu jovem camarada. Talvez se lembre desse sentimento algum dia, quando usar estrelas de general.
Deixou o tenente da KGB de volta ao seu posto e voltou rapidamente ao prédio de apartamentos, a brisa gelada ameaçando congelar o suor sobre seu pescoço. Entrou e tomou o elevador. Sem surpresa, constatou que àquela hora da manhã não havia água quente para seu banho matinal de chuveiro. O coronel suportou o frio, que ajudou a espantar os últimos vestígios de sono, barbeou-se e vestiu-se antes de caminhar para a cantina, a fim de tomar a primeira refeição.
Ele não precisava chegar antes das 9 horas ao ministério, e no caminho havia um banho turco. Uma das coisas que Filitov aprendera ao longo dos anos fora que nada podia curar uma ressaca e clarear a cabeça melhor do que o vapor. Já tinha prática suficiente. Seu sargento levou-o aos Banhos Sandunovski, na Kuznetsky Most, a seis quarteirões do Kremlin. Não estava sozinho, mesmo àquela hora da manhã. Um punhado de outras pessoas presumivelmente importantes subia as escadarias de mármore que levavam às instalações de primeira classe ¯agora não mais chamadas assim, é claro ¯do segundo andar, desde que milhares de moscovitas partilhavam com o coronel tanto seu mal quanto sua cura. Alguns deles eram mulheres, e Misha con-jeturou se as instalações femininas seriam muito diferentes das que ele estava a ponto de usar. Era estranho. Vinha àquele lugar desde quando ingressara no ministério, em 1943, e nunca dera uma espiada na ala das mulheres. Bem, agora estou velho demais para isso.
Seus olhos estavam injetados de sangue e pareciam pesados enquanto o coronel se despia. Nu, apanhou uma volumosa toalha na pilha que havia próximo à saída, mais um punhado de ramos de vidoeiro. Filitov respirou o ar puro e frio do vestiário antes de abrir a porta que levava as salas de vapor. O piso que fora inteiramente de mármore agora apresentava grandes remendos feitos com azulejos alaranjados. Podia lembrar-se da época em que o assoalho estivera praticamente intacto, Dois homens nos seus 50 anos discutiam sobre alguma coisa, provavelmente política. Podia ouvir as vozes exaltadas acima do assobio ao vapor saindo da grande caixa que ocupava o centro da sala. Misha contou mais cinco homens, as cabeças inclinadas, cada um deles curtindo a ressaca numa solidão mal-humorada. Escolheu um assento na fileira da frente e sentou-se.
¯ Bom dia, camarada coronel ¯ cumprimentou uma voz, a 5 metros de distância.
¯ Igualmente, camarada acadêmico ¯ respondeu Misha ao companheiro de banho.
Apertava fortemente com as mãos o feixe de ramos enquanto esperava que o suor começasse. Não demorou muito ¯ a temperatura ambiente alcançava 60 graus centígrados. Ele respirava cuidadosamente, como faziam os mais experientes freqüentadores. As aspirinas que havia tomado com o chá matinal começavam a fazer efeito, embora a cabeça ainda parecesse pesada, e os seios nasais estivessem latejando. Bateu levemente as folhas contra as costas, como se assim exorcizasse os venenos do corpo.
¯ Como está esta manhã nosso herói de Stalingrado? ¯ insistiu o acadêmico.
¯ Quase tão bem quanto nosso gênio do Ministério da Educação
¯ respondeu Misha, provocando uma gargalhada.
Nunca conseguia lembrar direito o nome do sujeito... Ilya Vladimi-rovich Qualquer coisa. Que tipo de idiota riria daquele jeito durante uma ressaca? O homem dissera que bebia por causa da mulher. Você bebe para se livrar dela, não é? Você se gaba das vezes em que trepou com a secretária, enquanto eu daria minha alma por mais um olhar ao rosto de Elena. E ao rosto dos meus dois filhos, disse a si mesmo. Meus dois belos filhos. Não havia problema em lembrar-se daquelas coisas em tais manhãs.
¯ O Pravda de ontem falava das negociações sobre armamentos ¯ insistiu o homem. ¯ Alguma esperança de progresso?
¯ Não tenho a menor idéia ¯ respondeu Misha.
O atendente entrou. Era jovem, por volta de 25 anos, e de baixa estatura. Contou as cabeças no recinto.
¯ Alguém deseja alguma bebida? ¯ perguntou ele. Beber era absolutamente proibido nos banhos, mas, como diria qualquer russo de verdade, aquilo só melhorava o sabor da vodca.
¯ Nãão! ¯ veio a resposta em coro dos freqüentadores. Ninguém parecia interessado em curar a mordida com o veneno, reparou Misha, levemente surpreso. Bem, ainda estavam no meio da semana. Numa manhã de sábado teria sido diferente.
¯ Muito bem ¯ disse o atendente retirando-se em direção à saída.
¯ Temos toalhas limpas aqui fora e o aquecedor da piscina já foi consertado. Nadar é um ótimo exercício, camaradas. Lembrem-se de usar os músculos que estão aquecendo e ficarão refrescados pelo resto do dia. Misha olhou para o rapaz. Então esse é o novo homem.
¯ Por que será que eles têm que ser tão alegres assim? ¯ perguntou um homem no canto.
¯ Ele está alegre porque não é um velho bêbado! ¯ respondeu um outro. Aquilo provocou um coro de gargalhadas.
¯ Cinco anos atrás a vodca não me deixava assim ¯ disse o primeiro homem. ¯ Para mim, o controle de qualidade já não é o mesmo.
¯ Nem o seu fígado, camarada!
¯ Envelhecer é uma coisa terrível.
Misha olhou para trás a fim de ver quem havia falado. Era um homem que mal atingira seus 50 anos, cuja barriga inchada tinha a cor de peixe morto e que fumava um cigarro, também infringindo as regras.
¯ Uma coisa mais terrível ainda é não envelhecer, mas vocês jovens se esquecem disso! ¯ disse ele automaticamente, perguntando-se a seguir por quê.
Cabeças se voltaram e viram as cicatrizes em seu peito e nas costas. Mesmo os que não sabiam quem era Mikhail Semyonovich Filitov perceberam que aquele não era um homem do qual se zombasse. Misha permaneceu mais dez minutos em silêncio antes de sair.
O atendente estava ao lado de fora da porta quando ele saiu. O coronel passou-lhe o feixe de ramos e a toalha usada, depois foi até os chuveiros de água fria. Dez minutos depois, sentia-se um novo homem, sem a dor e a depressão causadas pela ressaca, o cansaço ultrapassado. Vestiu-se rapidamente e desceu as escadas até o carro, que estava esperando. O sargento notou a mudança no andar do coronel e perguntou-se o que havia de tão revigorante em ficar cozinhando como um pedaço de carne.
O atendente tinha sua própria tarefa. Ao perguntar novamente sobre as bebidas um minuto depois, descobriu que duas pessoas na sala de vapor tinham mudado de idéia. Passou pela porta traseira do edifício, em direção a uma pequena loja, cujo proprietário ganhava mais dinheiro com a venda clandestina de bebidas do que lavando roupas a seco. O atendente voltou com uma garrafa de meio litro de "Vodca" ¯ não havia nenhuma marca nela: a premiada Stolychnaya era vendida apenas fora do país e para a elite ¯ a um pouco mais do que o dobro do preço de mercado. A restrição nas vendas das bebidas alcoólicas havia criado um novo e extremamente lucrativo campo no mercado negro. O atendente também passara um pequeno cartucho de filme, que seu contato lhe passara entre os ramos de vidoeiro. De sua parte, o atendente dos banhos também se sentia aliviado agora. Aquele era o seu único contato. Não sabia o nome do homem e dissera a frase em código, com o medo natural de que essa parte da rede da CIA em Moscou estivesse infiltrada pelo departamento de contra-espionagem da KGB, o temido Segundo Diretório. Sua vida estava comprometida e ele sabia disso. Mas precisava fazer alguma coisa. Desde o ano que passara no Afeganistão, as coisas que vira e as que fora obrigado a fazer... Imaginou por um instante quem seria aquele velho com as cicatrizes, mas lembrou a si mesmo que sua identidade e o teor da informação não eram assuntos de sua alçada.
A pequena loja de limpeza a seco servia principalmente a estrangeiros, uma clientela de repórteres, executivos e uns poucos diplomatas, além de alguns soviéticos extravagantes, querendo proteger as roupas adquiridas fora do país. Uma mulher que parecia pertencer a este último grupo apanhou um sobretudo inglês, pagou 3 rublos e saiu. Andou duas quadras até a mais próxima estação de metrô, desceu pela escada rolante e tomou o trem da linha Zhdanovsko¯ Krasnopresnenskaya, que era marcada em cor púrpura nos mapas locais. O trem estava cheio, e ninguém a viu passar o filme. Na verdade, ela mesma não viu o rosto do homem. Por sua vez, ele desceu na estação seguinte, Pushkinskaya, e atravessou para a estação Gor'kovs-kaya. Mais uma transferência foi realizada dez minutos depois, desta vez para um americano a caminho da embaixada, um pouco atrasado naquela manhã, tendo permanecido até tarde na recepção diplomática na noite anterior.
Seu nome era Ed Foley; ele era adido à imprensa na embaixada na Ulitsa Chaykovskogo. Ele e sua mulher, Mary Pat, outra agente da CIA, residiam em Moscou havia quase quatro anos, e ambos ansiavam em sair daquela cidade austera e cinzenta de uma vez por todas. Tinham dois filhos, a quem já haviam sido negados cachorros-quentes e jogos de bola por tempo suficiente.
Não que ambos não fossem bem-sucedidos em seu dever. Os russos sabiam que a CIA utilizava um certo número de duplas marido-mulher em campo, mas a idéia de que espiões levassem suas crianças para o exterior não era uma coisa que os soviéticos aceitassem com facilidade. Havia ainda a questão da cobertura. Ed Foley fora repórter no New York Times antes de ingressar no Departamento de Estado ¯ porque, como explicava ele, o pagamento era aproximadamente o mesmo, e um repórter policial nunca viajava mais longe do que ao Presídio de Attica. Sua esposa passava a maior parte do tempo em casa com as crianças ¯ embora quando necessário trabalhasse como professora-substituta no Colégio Anglo-Americano, no número 78 da Avenida Lênin ¯, freqüentemente saindo com elas na neve. O filho mais velho jogava hóquei no time juvenil, e os agentes da KGB que costumavam segui-los tinham anotado em seus arquivos que Edward Foley II era um ponta-esquerda muito bom. O pior aborrecimento do governo soviético com a família tinha a ver com a curiosidade desordenada do Foley mais velho a respeito dos crimes nas ruas da capital, que era na pior das hipóteses um eco das atividades anteriores em Nova York. Mas isso só vinha provar que ele era relativamente inofensivo. Ele demonstrava uma curiosidade óbvia demais para ser qualquer tipo de agente secreto. Eles, afinal de contas, faziam o possível para passar despercebidos.
Foley percorreu a pé os poucos quarteirões da estação do metrô até a embaixada. Acenou educadamente para o miliciano que guardava os portões sobriamente decorados, depois para o sargento dos fuzileiros navais no interior antes de entrar em seu escritório. Não era mui-to. A embaixada fora descrita oficialmente no Boletim do Departamento de Estado da URSS como "acanhada e de manutenção difícil". O mesmo autor provavelmente chamaria um sótão semidestruído na pior parte do Brooklyn de "cobertura", pensou Foley. Na última reforma da embaixada, refizeram seu escritório a partir de um depósito de vassouras e materiais de limpeza transformado numa minúscula sala de trabalho isolada com pouco mais do que
Com apenas 33 anos, alto e bastante magro, Edward Foley era um irlandês de Queens cuja inteligência brilhante, combinada a uma taxa extraordinariamente baixa de batimentos cardíacos e um rosto inexpressivo de jogador de pôquer, ajudara-o a abrir caminho além das montanhas Holy Cross, no Colorado. Recrutado pela CIA no último ano de faculdade, passara quatro anos no Times para construir uma "história" pessoal. Era lembrado na redação como um repórter competente, um tanto preguiçoso, capaz de se esmerar em seus textos, mas que não chegaria a lugar nenhum. Seu editor não se importara nem um pouco em perdê-lo para o serviço do governo, desde que em seu lugar entrara um recém-formado da Faculdade de Jornalismo de Co-lúmbia que tinha faro e disposição para descobrir notícias. O atual correspondente do Times em Moscou o descrevera aos colegas como intrometido, e bastante aborrecido por sinal, fazendo assim um dos mais almejados elogios no ramo da espionagem: Quem, ele? Não é esperto o suficiente para ser espião. Por essa e várias outras razões é que Foley estava encarregado do agente local mais antigo e mais produtivo da Agência, o coronel Mikhail Semyonovich Filitov, nome de código: Cardeal. O próprio codinome, é claro, era secreto de tal maneira que apenas cinco pessoas no interior da Agência sabiam que significava mais do que um religioso de chapéu vermelho, com categoria diplomática principesca.
A informação que vinha diretamente do Cardeal era considerada Informação Especial/Exclusiva-Delta e só seis funcionários tinham acesso a Delta em todo o governo americano. A cada mês a palavra-código para receber os dados era alterada. O nome naquele mês era CETIM, para o qual menos de vinte homens estavam liberados. Mesmo sob esse título, os dados eram invariavelmente parafraseados e sutilmente alterados depois de saírem da fraternidade Delta.
Foley retirou o filme do bolso e trancou-se na sala escura. Poderia efetuar todos os passos do processo de revelação mesmo que estivesse bêbado e com sono. Na verdade tinha feito aquilo algumas vezes. Em seis minutos o trabalho estava realizado, e Foley limpou-se meticulosamente. Seu antigo editor em Nova York teria ficado surpreso com tanto capricho.
Foley seguia procedimentos que haviam permanecido inalterados por quase trinta anos. Examinou os seis negativos expostos com uma lupa do tipo usado para observar dispositivos de
¯ Está a fim de ir para casa esta noite? Os olhos do homem brilharam.
¯ Com a final do campeonato de futebol americano neste domingo? Está brincando! Passo na sua sala às quatro?
¯ Combinado. ¯ Foley fechou a porta e voltou para seu escritório. O mensageiro reservou um lugar no vôo das 17h40 pela British Airways, para o Aeroporto de Heathrow.
A diferença de fusos horários entre Washington e Moscou garantia que as mensagens de Foley chegassem à capital americana de manhã bem cedo. Às 6h00, um agente da CIA entrou na sala de correspondência do Departamento de Estado e apanhou as mensagens de uma dúzia de caixas diferentes, e prosseguiu em seu carro para Langley. Veterano agente de campo no Diretório de Operações, estava impedido de realizar missões no exterior em virtude de um ferimento recebido em Budapeste ¯ onde um delinqüente de rua lhe fraturara a cabeça, tendo sido trancafiado por cinco anos pela irada polícia local. Se eles soubessem, pensou o agente, teriam dado uma medalha ao cara. Entregou as mensagens aos escritórios correspondentes e foi para o próprio gabinete.
O formulário estava sobre a escrivaninha de Bob Ritter quando ele chegou, às 7h25. Ritter era o vice-diretor de Operações da Agência. Seu setor, tecnicamente denominado Diretório de Operações, incluía todos os agentes de campo da CIA, e todos os cidadãos estrangeiros que recrutavam e empregavam como agentes. A mensagem de Moscou ¯ como sempre havia mais que uma, mas aquela era a que contava ¯ foi imediatamente colocada em seu arquivo particular, e Ritter preparou-se para a reunião diária das 8h00, realizada todos os dias pelos oficiais do plantão noturno.
¯ Entre, está aberto. ¯ Em Moscou, Foley levantou os olhos ao ouvir as batidas na porta. O mensageiro entrou.
¯ O avião sai em uma hora. Preciso me apressar.
Foley abriu uma gaveta e apanhou o que parecia ser uma cara cigar-reira de prata. Passou-a ao mensageiro, que a apanhou com delicadeza antes de colocá-la no bolso de dentro do paletó. As páginas datilografadas estavam dobradas no interior, juntamente com uma pequena carga pirotécnica. Se a caixa de prata fosse aberta de maneira não adequada, ou sofresse uma aceleração violenta ¯ como uma queda ao chão ¯, a carga explodiria e destruiria o papel inflamável no interior. Poderia também incendiar o terno do mensageiro, o que explicava o carinho ao manusear a caixa.
¯ Devo estar de volta na terça-feira de manhã. Quer que lhe traga alguma coisa, senhor Foley?
¯ Eu soube que saiu um novo livro de Far Side... ¯ Isso produziu uma gargalhada, pelo trocadilho entre Far Side, "facção oposta", e o nome Forsyth, do escritor de romances de espionagem.
¯ Tudo bem, vou verificar. Pode me pagar na volta.
¯ Faça uma viagem segura, Augie.
Um dos motoristas da embaixada levou Augie Giannini para o Aeroporto Sheremetyevo, a
Três horas depois, o 747 aterrissou no Aeroporto de Heathrow. Mais uma vez, Giannini passou diretamente pelo controle alfandegário. Sendo um homem que passava mais tempo no ar do que muitos pilotos comerciais, tinha acesso livre às salas de espera de primeira classe na maioria dos aeroportos do mundo. Ali aguardou por uma hora a chegada de outro 747 para o Aeroporto Internacional Dulles, em Washington.
Atravessando o Atlântico, o correio saboreou um jantar da Pan Am e assistiu a um filme que ainda não tinha visto, o que acontecia cada vez mais raramente. Quando acabou seu livro, o avião fazia as manobras de aterrissagem em Dulles. O mensageiro passou a mão no rosto, tentando lembrar-se que horas seriam em Washington. Quinze minutos mais tarde, entrava num Ford não identificado a serviço do governo, que seguiu para sudeste. Augie ia na frente para poder esticar as pernas.
¯ Que tal o vôo? ¯ quis saber o motorista.
¯ O mesmo de sempre: chatóvski. ¯ Por outro lado, era melhor do que realizar missões de resgate e salvamento no Vietnã. O governo pagava a ele 20 000 por ano para sentar-se nos aviões e ler livros, o que, combinado à sua aposentadoria do Exército, lhe permitia um padrão de vida razoável. Nunca chegara a incomodar-se pensando sobre o que carregava na mala diplomática, ou na pequena caixinha metali-ca que transportava no bolso. Estava convencido de que era uma perda de tempo de qualquer forma. O mundo não mudara tanto assim.
¯ Está com a caixa? ¯ perguntou o homem no banco traseiro.
¯ Claro. ¯ Giannini enfiou a mão no bolso e passou a caixa ao companheiro com ambas as mãos.
O agente da CIA recebeu a caixa, usando as duas mãos, enfiando-a num recipiente forrado de espuma. O agente era um instrutor do Departamento de Serviços Técnicos, parte do Diretório de Ciência e Tecnologia. O setor realizava um bocado de trabalho burocrático, mas esse agente especial era perito em armadilhas e explosivos em geral. Em Langley, ele tomou o elevador para o escritório de Ritter e abriu a pequena caixa sobre a escrivaninha, depois voltou à sua sala sem olhar o conteúdo.
Ritter foi até sua copiadora Xerox e produziu várias cópias dos papéis datilografados por Foley, os quais foram queimados em seguida. Não tanto por medida de segurança, mas por simples precaução. Ritter não queria um maço de material inflamável em seu escritório. Começou a ler antes mesmo de terminar todas as cópias. Como sempre, balançou a cabeça para a esquerda e para a direita no final do primeiro parágrafo. O vice-diretor de Operações andou até a escrivaninha e pressionou o botão do intercomunicador em linha com o escritório do diretor.
¯ Está ocupado? O pássaro pousou.
¯ Pode subir ¯ respondeu a voz do juiz Moore sem demora. Nada era mais importante do que informações do Cardeal.
Ritter apanhou o almirante Greer no caminho, e os dois entraram no espaçoso escritório do diretor da Agência Central de Informações.
¯ A gente tem que adorar esse cara ¯ disse Ritter, passando os papéis. ¯ Ele conseguiu convencer Yazov a mandar um coronel até Bach para fazer um "estudo de viabilidade" do sistema inteiro. Esse coronel Bondarenko deve preparar um relatório sobre o funcionamento de tudo, usando vocabulário leigo para que o ministro possa entender e relatar aos colegas do Politburo. Naturalmente ele encarregou Misha de ajudá-lo, e portanto o relatório passa antes pela mesa dele.
¯ Esse garoto que o Ryan foi ver... Gregory, se não me engano... ele queria que nós infiltrássemos um agente em Dushanbe ¯ disse Greer, sorrindo. ¯ Ryan disse a ele que era impossível.
¯ Ótimo. Todos sabem como é aquele pessoal do Diretório de Operações. ¯ Toda a CIA tinha um orgulho perverso do fato de que apenas os fracassos chegavam aos noticiários.
O Diretório de Operações necessitava particularmente da vexação pública que a imprensa atribuía a eles. As falhas da KGB nunca chamavam tanto a atenção quanto as das CIA, e essa imagem pública era amplamente aceita, até mesmo pela comunidade de informações soviética. Nunca ocorreu a ninguém que os vazamentos de informação fossem propositais.
¯ Eu gostaria muito que alguém dissesse a Misha que existem agentes audaciosos e agentes velhos ¯ disse o juiz Moore. ¯ Mas muito poucos agentes velhos e audaciosos,
¯ Ele é um homem muito cuidadoso, chefe ¯ disse Ritter.
¯ É, eu sei. ¯ O diretor olhou para os papéis.
Desde a morte de Dmitri Fedorovich, está tudo diferente no Ministério da Defesa, leu o diretor. Às vezes eu me pergunto se o marechal Yazov leva a sério os novos avanços tecnológicos, mas a quem posso confidenciar minhas dúvidas? Será que a KGB acreditaria em mim? Preciso ordenar meus pensamentos antes de fazer qualquer acusação. Mas posso quebrar algumas regras de segurança...
Porém que escolha me resta? Se não puder documentar minhas dúvidas, quem irá acreditar em mim depois? E uma coisa difícil quebrar regras de segurança, mas a segurança do Estado fica acima de tais regras. É preciso.
Assim como os poemas épicos de Homero sempre iniciavam com uma invocação da Musa, as mensagens do Cardeal invariavelmente começavam dessa maneira. A idéia se desenvolvera no final da década de 60. As mensagens do Cardeal começavam como fotografias de seu diário pessoal. Os russos são diaristas inveterados. A cada vez que ele começava, expressava seu cri de coeur eslavo, exprimindo suas preocupações pessoais com as decisões políticas do Ministério da Defesa. Algumas vezes expressava inquietação com a segurança de determinado projeto, ou desempenho de um novo tanque ou aeronave. A cada caso, os detalhes técnicos de um equipamento ou de uma decisão política eram descritos minuciosamente, mas sempre focalizando um suposto problema burocrático interior do ministério. Se algum dia o apartamento de Filitov fosse revistado, seu diário seria encontrado facilmente, com certeza não escondido como faria um espião, e, enquanto quebrava definitivamente algumas regras de segurança, seria certamente advertido por isso, mas havia pelo menos a chance de ser bem-sucedido em sua defesa. Ou essa era a idéia geral.
Quando eu tiver o relatório de Bondarenko, em mais uma ou duas semanas, talvez possa persuadir o ministro de que esse projeto é muito importante para a Rodina, finalizava o Cardeal.
¯ Então parece que eles fizeram mesmo progressos quanto à potência de saída do laser ¯ comentou Ritter.
¯ O termo em uso é throughput ¯ corrigiu Greer. ¯ Pelo menos foi o que Jack me disse. As notícias não são muito boas, cavalheiros.
¯ È o seu olho aguçado para detalhes, James ¯ declarou Ritter. ¯ Meu Deus, o que acontece se eles chegarem lá primeiro?
¯ Também não é o fim do mundo. Lembre-se de que são precisos dez anos para desenvolver o sistema depois que o conceito for validado, e eles ainda não estão nem perto disso ¯ afirmou o diretor. ¯ O céu não está caindo sobre nossas cabeças ainda. Aliás, isso pode até trabalhar a nosso favor, não acha, James?
¯ Se Misha conseguir uma descrição utilizável do avanço deles, sim. Na maioria das áreas estamos mais avançados que eles ¯ respondeu o vice-diretor de Informações. ¯ Ryan vai precisar disso para fazer seu relatório.
¯ Ele não está liberado para essas informações! ¯ reclamou Ritter.
¯ Ele já examinou as informações Delta antes ¯ lembrou Greer.
¯ Uma vez. Só uma vez, e tivemos uma boa razão para fazer isso... E verdade que ele se saiu muito bem para um amador. James, não há nada aqui que ele possa utilizar, a não ser que temos razão para suspeitar de que Ivã conseguiu um... throughput na área de potência. Aliás, aquele rapaz, o Gregory, já suspeita disso. Diga a Ryan que confirmamos as suspeitas através de outras fontes. Juiz, o senhor pode dizer pessoalmente ao presidente que alguma coisa está acontecendo, mas é preciso esperar umas semanas. É bom não entrar em detalhes por algum tempo.
¯ Parece razoável ¯ anuiu o juiz Moore. Greer cedeu sem discutir.
Agora restava a tentação de mencionar que aquela seria a missão mals importante do Cardeal, porém isso seria dramático demais para os três executivos de altos cargos; além do mais, o Cardeal proporcionara à CIA um bom volume de informações importantes ao longo dos anos. O juiz Moore releu os relatórios depois que os outros saíram. Foley acrescentara que Ryan literalmente esbarrara no Cardeal, logo depois que Mary Pat lhe passara a nova missão ¯ e bem na frente do marechal Yazov. O juiz sacudiu a cabeça. Que casal, os Foley. E que admirável o fato de Ryan ter feito contato com o coronel Filitov. Era um mundo louco.
Estrelas Brilhantes e Navios Ligeiros
Jack não se incomodou em perguntar que "fontes" haviam confirmado as suspeitas do major Gregory. As operações de campo eram uma coisa pela qual lutara ¯ na maior parte das vezes com sucesso ¯ para manter sob controle. O que importava era que a informação era apresentada como Classe-1 em termos de segurança ¯ a CIA adotara recentemente um sistema de gradação utilizando os números de
¯ E quanto às informações técnicas específicas?
¯ Eu aviso vocês, assim que chegarem ¯ respondeu Greer.
¯ Tenho duas semanas para entregar o relatório, chefe ¯ observou Ryan. Deixar para a última hora não teria sentido. Especialmente porque o documento a ser preparado era para o presidente.
¯ Parece que eu me lembro de ter lido a respeito em algum outro lugar, Jack ¯ observou o almirante. ¯ O pessoal da ACDA liga todos os dias pelo mesmo motivo. Acho que mandaremos você até lá para apresentar tudo pessoalmente a eles.
Ryan estremeceu. Seu Relatório Especial sobre Informações Confidenciais tinha como objetivo ajudar a preparar o cenário para a próxima sessão de negociações. A ACDA, Agência de Controle de Armas e Desarmamento, precisava dele, claro, para saber o que exigir e quanto conceder com segurança. Aquilo representava um peso adicional em seus ombros, mas, como o almirante Greer gostava de mencionar, Ryan trabalhava melhor sob pressão. Jack chegou a pensar em cometer al-guns erros propositais, só para desmentir essa crença.
¯ Quando terei de ir até lá?
¯ Ainda não decidi.
¯ Será que pode me avisar alguns dias antes?
¯ Vamos ver.
O major Gregory estava em casa no momento. Embora esse fato em si já fosse bastante incomum, havia ainda mais: ele estava tirando o dia de folga. Mas não fora por sua iniciativa. Seu general decidira que o excesso de trabalho, sem nenhuma diversão, começava a abater o jovem cientista. Só não lhe ocorrera que Gregory podia também trabalhar em casa.
¯ Você nunca pára? ¯ perguntou Candi.
¯ Bem, o que vamos fazer no intervalo? ¯ sorriu Gregory, ao teclado do microcomputador.
O conjunto de alojamentos chamava-se "Vista da Montanha". Não era propriamente um nome original. Naquela parte do país a única maneira de não ver montanhas era fechar os olhos. Gregory tinha seu próprio computador pessoal ¯ um Hewlett-Packard de grande capacidade, fornecido pelo Projeto ¯ e ocasionalmente trabalhava lá em seu "código". Precisava ser muito cauteloso com a classificação da segurança em seu trabalho, embora ele sempre brincasse dizendo que ele mesmo não estava autorizado a ver o que fazia. Não seria uma situação insólita no interior do governo.
A dra. Candance Long, esguia, e com os cabelos castanho-escuros cortados curtos, era quase
EÍa era magra porque, como muitos acadêmicos, envolvia-se tanto com o trabalho que na maioria das vezes esquecia a hora das refeições. Conheceram-se durante um seminário para candidatos a mestrado na Universidade de Colúmbia. Ela era especialista em óptica, mais especificamente em espelhos de ópticos adaptáveis, um campo que escolhera para complementar o passatempo de sua vida, a astronomia. Morando na região montanha do Novo México, ela podia fazer observações num telescópio Meade de 5 000 dólares e, quando fosse o caso, utilizar os instrumentos do Projeto para perscrutar os céus ¯ porque, como ela dizia, era a única maneira eficiente de calibrá-los. Tinha pouco interesse na obsessão de Alan pela defesa contra mísseis balísticos, mas não tinha dúvida de que os instrumentos que estavam desenvolvendo teriam todo o tipo de aplicações "reais" no campo de interesse dele.
Nenhum dos dois estava muito vestido no momento. Ambos os jovens se classificavam alegremente como solitários e desajustados e, como acontecia muitas vezes, despertavam reciprocamente os sentimentos adormecidos ¯ sentimentos que os colegas mais atraentes não teriam julgado possíveis.
¯ O que está fazendo? ¯ perguntou ela.
¯ Analisando os erros que tivemos. Acho que o problema é no código de controle dos espelhos.
¯ É mesmo? ¯ Era o espelho dela. ¯ Tem certeza de que o problema é no software?
¯ Tenho. Verifiquei as leituras de Flying Cloud no escritório. Estava focalizado muito bem, só que no lugar errado.
¯ Quanto tempo acha que vai demorar para encontrar o erro?
¯ Algumas semanas. ¯ Ele franziu as sobrancelhas para o monitor, depois desligou-o com uma careta. ¯ Para o diabo com isso! Se o general descobrir que estou fazendo isso, ele é capaz de não me deixar voltar para o trabalho.
¯ É o que sempre digo. ¯ Ela circundou-lhe a nuca com as mãos. Inclinando-se para trás, Alan Gregory apoiou a cabeça nos seios de
Candi. São muito bonitos, pensou. Para ele fora uma descoberta notável que as mulheres pudessem ser interessantes. Saíra ocasionalmente com algumas garotas no colegial, mas durante a maior parte de sua vida em West Point, depois Stony Brook, levara uma existência mo-nástica, devotado aos estudos e aos modelos nos laboratórios. Quando conhecera Candi, interessara-se inicialmente pelas idéias que ela desenvolvia sobre configurações de espelhos, mas durante o café na União de Estudantes começara a reparar que ela parecia... bem... atraente ¯ além de rápida e criativa em física óptica. O fato de que as coisas que discutiam na cama só podiam ser entendidas por menos de 1 por cento da população era irrelevante. Eles achavam tão interessantes quanto as outras coisas que faziam na cama ¯ ou quase. Havia muito o que experimentar ali também, e como bons cientistas chegaram a comprar livros "didáticos" ¯ como os classificavam ¯ para explorar todas as possibilidades juntos. Como em qualquer novo campo de estudos, acharam tudo muito excitante.
Estendendo os braços, Gregory segurou a cabeça da dra. Long, fazendo-a aproximar o rosto do seu.
¯ Acho que não estou mais com vontade de trabalhar.
¯ Não é bom tirar o dia de folga?
¯ Talvez eu arranje mais um na semana que vem...
Boris Filipovich Morozov desceu do ônibus uma hora depois do pôr-do-sol. Ele e catorze outros jovens engenheiros e técnicos recentemente designados para o projeto Estrela Brilhante ¯ embora não soubessem o nome ainda ¯ foram recebidos no Aeroporto de Dushanbe pelo pessoal da KGB, que verificou escrupulosamente seus papéis de identidade e fotografias. Durante a viagem de ônibus, um capitão, também da KGB, fizera uma preleção sobre segurança, séria o bastante para prender a atenção de todos. Não podiam discutir seu trabalho com ninguém fora das instalações; não podiam escrever a ninguém sobre o que faziam, nem mesmo mencionar o local onde estavam. O endereço para correspondência era uma caixa postal em Novosibiirsk ¯ a mais de
O capitão da KGB também terminou sua preleção de forma amena, descrevendo os esportes e atividades sociais na base, e a hora e local das reuniões quinzenais do Partido, que Morozov tinha intenção de freqüentar regularmente se o trabalho o permitisse. As acomodações, continuou o capitão, é que ainda constituíam um problema. Morozov e os outros recém-chegados seriam acomodados no dormitório ¯ os barracões originalmente levantados pela turma de construção que explodira a rocha para erigir as instalações. Não ficariam apertados, disse ele, e os barracões possuíam sala de jogos, biblioteca, e até mesmo um telescópio no telhado para observação astronômica; tinham acabado de fundar um pequeno clube amador de astronomia. De hora em hora, partia um ônibus fazendo a ligação com as instalações residenciais permanentes, onde havia um cinema, uma lanchonete e um bar. Existiam exatamente trinta e uma mulheres solteiras na base, concluiu o capitão, mas uma delas era sua noiva, "e qualquer um que se engraçar com ela será fuzilado". Aquilo produziu muitas gargalhadas. Era muito raro encontrar um oficial da KGB com senso de humor.
Já escurecera quando o ônibus atravessou os portões das instalações, e todos a bordo sentiam-se fatigados da longa viagem. Morozov não chegou a ficar muito desapontado com as acomodações. Todas as camas eram beliches. Ele foi designado para um leito superior, num canto do quarto. Avisos nas paredes pediam silêncio na área dos dormitórios já que os trabalhadores alternavam-se em três turnos, ininterruptamente. O jovem engenheiro estava contente ao mudar de roupa para dormir. Fora designado para a Seção de Aplicações Direcionais durante um mês, depois do quê, faria um contrato permanente. Estava imaginando o que significava aplicações direcionais quando o sono chegou.
Uma boa coisa sobre as caminhonetes fechadas era que cada vez mais pessoas as possuíam, e não se podia enxergar quem viajasse em seu interior, pensou Jack, enquanto o veículo branco estacionava em sua entrada de carros. O motorista era da CIA, claro, assim como o segurança no banco direito. Ele desceu e examinou a área por um instante antes de abrir a porta lateral. Revelou-se um rosto familiar.
¯ Oi, Marko! ¯ cumprimentou Ryan.
¯ Então esta é casa do espião! ¯ comentou alegremente o capitão de primeira classe da Marinha soviética Marko Aleksandrovich Ramius (reformado). Seu inglês havia melhorado, mas ele ainda esquecia alguns artigos. ¯ Não, casa de timoneiro?
Jack sorriu e balançou a cabeça.
¯ Marko, não podemos falar sobre isso.
¯ Seu família não sabe?
¯ Ninguém sabe. Mas pode ficar tranqüilo. Minha família não está.
¯ Entendo.
Marko seguiu Jack para o interior da casa. Em seu passaporte, no cartão do Seguro Social e na licença de motorista da Virgínia constava o nome de Mark Ramsey. Mais uma demonstração de originalidade da CIA, embora fizesse sentido perfeitamente; é preciso que as pessoas lembrem do próprio nome. Jack observou que ele estava mais magro, agora que comia uma dieta com menos farinha. E bronzeado. Quando se encontraram pela primeira vez, no tubo de escape de proa do submarino lançador de mísseis Outubro Vermelho, Marko ¯ Mark! ¯ ostentava a pele branca e lívida dos oficiais de submarinos, e agora parecia um freqüentador inveterado do Club Méditerranée.
¯ Parece cansado ¯ observou "Mark Ramsey".
¯ Tenho passado muito tempo dentro de aviões ultimamente. O que está achando das Bahamas?
¯ Está vendo meu bronzeado, não está? Areia branca, sol quente, calor todo dia. Parece Cuba quando estive lá, mas as pessoas são mais simpáticas.
¯ AUTEC, certo? ¯ perguntou Jack.
¯ É, mas não posso discutir isso ¯ respondeu Mark.
Os dois trocaram um olhar. AUTEC, o Centro de Avaliação e Testes de Submarinos no Atlântico, era o local onde a Marinha testava os submarinos, onde homens e navios se empenhavam em exercícios chamados miniguerras. O que ocorria ali era secreto, naturalmente. A Marinha protegia com empenho suas operações submarinas. Certamente Marko trabalhava desenvolvendo táticas para a Marinha, sem dúvida representando o papel de comandante soviético nos exercícios, proferindo conferências, ensinando. Ramius fora conhecido como "o mestre-escola" na Marinha soviética. As coisas realmente importantes nunca mudam.
¯ O que está achando?
¯ Não diga a ninguém, mas eles me deixaram ser capitão do submarino americano por uma semana... Capitão verdadeiro deixou eu fazer tudo, entende? Eu afundei porta-aviões! Sim! Afundei a Forres-tal! Eles iam ficar orgulhosos na Esquadra do Norte, não iam?
Jack riu.
¯ E a Marinha, o que achou disso?
¯ Capitão do submarino e eu ficamos bêbados. Capitão do Forrestal ficou zangado, mas... bom esportista. Vai se juntar a nós na semana que vem e discutimos todo o exercício. Ele aprendeu alguma coisa, então foi bom para todos. ¯ Ramius fez uma pausa. ¯ Onde está família?
¯ Cathy foi visitar o pai. Joe e eu não nos damos muito bem.
¯ É porque você é espião?
¯ Razões pessoais. Aceita uma bebida?
¯ Cerveja, por favor ¯ pediu o soviético.
Ramius olhou à sua volta enquanto Ryan ia até a cozinha. O teto abobadado da sala elevava-se a uns
¯ Ryan, não sou bobo ¯ disse ele severamente, indicando o ambiente. ¯ A CIA não paga tão bem assim.
¯ Já ouviu falar do mercado de ações? ¯ perguntou Ryan com um sorriso.
¯ Claro. Parte do meu dinheiro está aplicada lá. ¯ Todos os oficiais do Outubro Vermelho tinham dinheiro suficiente investido para não precisar trabalhar mais.
¯ Bem, eu ganhei um bocado de dinheiro com ações, depois resolvi largar e fazer outra coisa.
Essa foi uma nova idéia para o capitão Ramius.
¯ Mas você não é... como se diz? Ambicioso. Não tem mais
ambição?
¯ De quanto dinheiro será que um homem precisa? ¯ perguntou Ryan, enfaticamente. O soviético balançou a cabeça, concordando pen-sativamente. ¯ Escute, gostaria de fazer algumas perguntas.
¯ Ah, os negócios ¯ riu o soviético. ¯ Essas coisas você não esquece.
¯ No seu depoimento, você mencionou um exercício no qual disparou um míssil, e depois outro míssil foi disparado contra você.
¯ Sim. Foi em 1981... em abril. Isso mesmo, era 20 de abril. Eu comandava submarino classe Delta, e disparamos dois mísseis do mar Branco, um no mar de Okhotsk, outro em Sary Shagan. Foi um teste dos foguetes, claro, mas também do radar de defesa e do sistema anti-míssil... eles simularam disparo contra o submarino.
¯ Você disse que falhou. Marko assentiu.
¯ Os foguetes do submarino funcionaram perfeitamente. O radar em Sary Shagan funcionou, só que devagar demais para interceptar... disseram que era problema no computador. Disseram que iam arranjar novo computador. A terceira parte do teste quase funcionou.
¯ A parte de interceptação. Foi a primeira vez que ouvimos falar desse tipo de testes ¯ observou Ryan. ¯ Como é que foi conduzido?
¯ Eles não dispararam os foguetes de terra, é claro ¯ disse Marko, com o indicador apontando para o alto. ¯ Se fizerem isso, vocês percebem a natureza do teste, certo? Os soviéticos não são idiotas como você pensa. É claro que sabe que a fronteira da União Soviética é coberta por uma rede de radar. Eles detectam um lançamento e computam a localização do submarino... isso é muito fácil. Depois eles avisam o Quartel-General da Força de Foguetes Estratégicos, que tem uma bateria de velhos foguetes em alerta para isso. Estavam prontos para disparar três minutos depois de captar míssil-foguete no radar. ¯ Ele parou por um instante. ¯ Não tem isso na América?
¯ Não que eu saiba. Mas nossos mísseis disparam de uma distância muito maior do que essa.
¯ É verdade, mas ainda é boa coisa para soviéticos, entende?
¯ Qual é o grau de confiabilidade do sistema?
¯ Não muito confiável. ¯ Ramius encolheu os ombros. ¯ O problema é o estado de alerta. Em tempos de... como se diz? Tempos de crise, é isso? Em tempos de crise todos estão em alerta, e o sistema funciona algum tempo. Mas cada vez que funciona, muitas, muitas bombas não explodem na União Soviética. Isso é importante para a liderança soviética. Centenas de milhares de escravos a mais para se ter no fim da guerra ¯ acrescentou Marko para expressar seu desagrado com o governo de sua antiga pátria. ¯ Não há nada assim nos Estados Unidos?
¯ Não que eu saiba ¯ disse Ryan com sinceridade.
¯ Eles dizem que existe. Depois que disparamos mísseis, mergulhamos fundo e navegamos em linha reta para qualquer direção lateral, a toda a velocidade.
¯ No momento estou querendo descobrir quanto a União Soviética está interessada em copiar nossas pesquisas da Iniciativa de Defesa Estratégica.
¯ Interessada? Vinte milhões de soviéticos morreram na Grande Guerra Patriótica. Pensa que querem tudo acontecendo de novo? Eu lhe digo, nesse ponto soviéticos são mais inteligentes que americanos... tivemos lições mais duras, e aprendemos melhor. Algum dia vou contar sobre minha cidade natal depois da guerra, tudo destruído. Sim, tivemos boas lições para proteger a Rodina.
Essa é uma outra coisa que devemos lembrar sobre os soviéticos, pensou Ryan. Não era exatamente uma história antiga; existiam episódios recentes que eles jamais esqueceriam. Esperar que os soviéticos esquecessem as perdas da Segunda Guerra Mundial era tão fútil e tão irrazoável quanto pedir aos judeus que esquecessem o Holocausto.
Então, pouco mais de três anos atrás, os russos testaram seus foguetes antibalísticos ABM contra mísseis lançados por submarinos. A aquisição de alvo e o sistema de radar funcionaram, mas o sistema falhou devido a problemas com o computador. Isso era importante, mas...
¯ Qual o motivo pelo qual o computador não funcionou direito?
¯ Isso é tudo que eu sei. Só posso garantir que foi um teste honesto.
¯ Como assim?
¯ Nossas primeiras... sim, nossas ordens originais eram para disparar de um local conhecido. Mas mudaram ordens assim que o submarino saiu do porto. Novas ordens só para capitão, assinadas pelo ajudante-de-ordens do ministro da Defesa. Acho que era coronel do Exército Vermelho. Não lembro nome. Ele queria um teste... como se diz?
¯ Espontâneo? ¯ arriscou Ryan.
¯ Isso! Não espontâneo. O teste real devia ser surpresa. Portanto, minhas ordens me enviaram a um lugar diferente numa hora diferente. Tínhamos um general da Defesa Aérea a bordo, e quando viu novas ordens ele ficou maluco. Muito, muito zangado, mas que tipo de teste é se não há surpresa? Submarinos de mísseis americanos não avisam os russos pelo telefone onde vão cair. Ou se está pronto, ou não
¯ concluiu Ramius.
¯ Não fomos avisados de sua vinda ¯ observou secamente o general Pokryshkin.
O coronel Bondarenko teve o cuidado de manter o rosto impassível. Apesar de possuir ordens por escrito do Ministério da Defesa, e apesar de pertencer a uma arma completamente diferente, estava tratando com um general protegido por membros da Comissão Central. Mas o general também precisava ser cauteloso. Bondarenko trajava seu melhor uniforme, com várias fileiras de galões, incluindo duas condecorações por bravura no Afeganistão, e a divisa especial nas ombreiras usada pelos oficiais de gabinete do Ministério da Defesa.
¯ Camarada general, lamento qualquer inconveniência que tenha causado ao senhor, mas tenho minhas ordens.
¯ É claro ¯ concordou Pokryshkin, com um sorriso aberto. Apontou uma bandeja de prata. ¯ Chá?
¯ Aceito, obrigado.
O general serviu pessoalmente duas xícaras de chá em vez de chamar o ordenança.
¯ Como ganhou esse galardão vermelho que estou vendo? Afeganistão?
¯ Exatamente, camarada general. Passei algum tempo lá.
¯ E como foi que a ganhou?
¯ Participei de uma unidade Spetznaz como observador especial. Estávamos seguindo um pequeno grupo de guerrilheiros. Infelizmente eles eram mais espertos do que julgava o comandante de nossa unidade, e ele deixou que caíssemos numa emboscada. Metade dos companheiros foram dizimados ou feridos, incluindo o comandante. ¯ Que foi atrás da própria morte, pensou Bondarenko.
¯ Assumi o comando e chamei reforços. Os guerrilheiros se retiraram antes que pudéssemos trazer forças maiores, mas deixaram oito cadáveres atrás.
¯ E como é que um perito em comunicações...
¯ Fui voluntário. Estávamos tendo dificuldades com as comunicações táticas, e eu resolvi ver a situação de perto. Não sou um combatente, camarada general, mas existem coisas que precisamos verificar pessoalmente. Aliás, estamos perigosamente próximos à fronteira com o Afeganistão, e seu sistema de segurança parece... não relaxado, mas confortável demais. Pokryshkin concordou com um gesto de cabeça.
¯ É verdade. A força responsável pela segurança pertence à KGB, como já deve ter notado. Eles estão subordinados a mim, mas não diretamente sob minhas ordens. Para um alerta antecipado de possíveis ameaças, tenho uma combinação com a Aviação Frontal. A escola deles de reconhecimento aéreo utiliza os vales aqui ao redor como área de treinamento. Um colega meu de Frunze conseguiu cobertura para toda essa região. É um trecho longo do Afeganistão até aqui e, se alguém tentar se aproximar, saberemos bem antes que cheguem.
Bondarenko aquiesceu com aprovação. Procurador dos feiticeiros ou não, Pokryshkin não tinha se esquecido de tudo, como muitos generais no comando tendiam a fazer.
¯ Muito bem, Gennady Iosifovich, o que exatamente está procurando? ¯ indagou o general. Agora que o profissionalismo fora estabelecido por ambos, a atmosfera entre os dois era mais amena.
¯ O ministro deseja uma estimativa de eficácia e confiabilidade de seus sistemas.
¯ Seu grau de conhecimento sobre laser? ¯ perguntou o general, levantando uma sobrancelha.
¯ Tenho alguma familiaridade com aplicações práticas. Participei do grupo com o acadêmico Goremykin, que desenvolveu o novo sistema de comunicações a laser.
¯ É mesmo? Temos alguns aqui.
¯ Não sabia disso ¯ disse Bondarenko.
¯ É verdade. Nós os utilizamos nas torres de vigia, e para ligar os laboratórios com as lojas. É muito mais fácil do que estender linhas telefônicas, e também mais seguro. Sua invenção provou ser muito útil, Gennady Iosifovich. Muito bem, camarada. Sabe qual é nossa missão, é claro.
¯ Sim, camarada general. Está perto do seu objetivo?
¯ Temos um teste de todo o sistema dentro de três dias.
¯ É mesmo? ¯ Bondarenko ficou bastante surpreso com aquilo.
¯ Só ontem recebemos permissão para fazê-lo. Talvez o ministério não tenha sido completamente informado. Pode ficar para acompanhá-lo?
¯ Não o perderia por nada.
¯ Excelente. ¯ O general Pokryshkin levantou-se. ¯ Vamos, venha ver os meus feiticeiros.
O céu estava límpido e azul, o azul intenso que se vê nos locais acima da maior parte da atmosfera. Bondarenko ficou surpreso em ver que o próprio general guiava seu UAZ-469, o equivalente soviético
do jipe.
¯ Não precisa perguntar, coronel. Eu mesmo dirijo porque não temos espaço aqui em cima para pessoal desnecessário, e além disso... bem, eu fui piloto de combate. Por que deveria confiar minha vida a um jovem imberbe que mal sabe mudar as marchas? O que está achando de nossas estradas?
Não estou gostando nem um pouco, pensou Bondarenko sem dizer nada, enquanto o general disparava por uma descida perigosamente inclinada. A estrada mal possuía
¯ Devia ver como fica isso com gelo! ¯ riu o general. ¯ Temos tido sorte com o tempo ultimamente. No último outono choveu durante duas semanas. O que, aliás, é muito difícil por aqui, pois as monções deveriam despejar toda a água na índia. Mas o inverno tem sido agradavelmente seco e claro. ¯ Ele mudou de marcha quando a estrada começou a nivelar-se.
Um caminhão vinha em sentido contrário e Bondarenko fez tudo o que pôde para não se encolher, enquanto as rodas do lado direito do jipe giravam lançando cascalhos pela borda irregular da estrada. Pokryshkin estava se divertindo com aquilo, mas isso era de esperar. O caminhão cruzou com eles a uma distância de talvez
¯ Não temos nem espaço para um escritório adequado aqui... para mim, pelo menos ¯ declarou Pokryshkin. ¯ Os acadêmicos têm prioridade.
Bondarenko vira apenas uma das torres quando correra naquela manhã pela zona residencial, e, quando o jipe terminou a subida, toda a área de Estrela Brilhante tornou-se visível.
Havia três postos de controle. O general Pokryshkin parou o veículo e mostrou seu passe em cada um deles.
¯ As torres de vigia? ¯ indagou o coronel.
¯ Todas guarnecidas vinte e quatro horas por dia. É duro para os chekistas. Fui obrigado a instalar aquecedores elétricos nas torres. ¯ O general riu. ¯ Temos mais energia elétrica aqui do que podemos usar. Originalmente deixávamos cães de guarda soltos entre as cercas também, mas tivemos de parar com isso. Duas semanas atrás, muitos morreram congelados. Não achei mesmo que iria funcionar. Ainda conservamos alguns, mas agora eles fazem a patrulha junto com os guardas. Pretendo livrar-me deles assim que tenha uma chance.
¯ Mas...
¯ Mais bocas para alimentar ¯ explicou Pokryshkin. ¯ Assim que começa a nevar, precisamos trazer comida de helicóptero. Para manter os cães de guarda felizes, eles precisam comer carne. Faz uma idéia do efeito que causa ao moral dos homens alimentar os cães com carne enquanto nossos cientistas não têm o suficiente? Os cachorros não valem a amolação que causam. O comandante da KGB concorda. Está tentando obter permissão para dispensá-los. Usamos visores noturnos starlight em todas as torres. Podemos ver e identificar um intruso antes que os cães tenham oportunidade de ouvi-los ou farejá-los.
¯ Qual o total de guardas?
¯ Uma companhia reforçada e armada com fuzis. Cento e dezesseis oficiais e soldados, comandados por um tenente-coronel. Existem pelo menos vinte homens em serviço dia e noite. Metade fica aqui, metade no outro morro. ¯ O general indicou uma torre. ¯ Nesse ponto temos dois homens permanentemente em cada torre, mais quatro em patrulha constante e, é claro, o pessoal dos postos de verificação para os veículos. A área é segura, coronel. Uma companhia inteira com fuzis de assalto e armas pesadas no alto dessa montanha... para ter certeza, tivemos um grupo de Spetznaz fazendo um ataque simulado em outubro passado. Os observadores declararam todos mortos antes que chegassem a
¯ Sim, camarada general. Por favor, desculpe minha natureza cautelosa.
¯ Não ganhou essas belas condecorações sendo covarde ¯ observou o general suavemente. ¯ Estou sempre aberto a novas idéias. Se tem algo a dizer, minha porta nunca está trancada.
Bondarenko resolveu que iria gostar do general Pokryshkin. Ele estava suficientemente longe de Moscou para não ser um burocrata em-proado e, ao contrário da maioria dos generais, evidentemente ele não via um halo refletido no espelho quando se barbeava. Talvez houvesse uma esperança de que o projeto funcionasse, afinal. Filitov gostaria de saber disso.
¯ Me sinto como um rato com um gavião no céu em cima de mim ¯ disse Abdul.
¯ Então faça o que faz um rato ¯ respondeu prontamente o Arqueiro. ¯ Fique nas sombras.
Olhou para ô alto, em direção ao An-26. Encontrava-se a 5 000 metros acima de suas cabeças, o zunido das turbinas ainda não chegavam até eles. Muito longe para um míssil, o que era uma pena. Outros mudjahidin com lançadores já haviam abatido alguns Antonov, mas não o Arqueiro. Podia-se matar quarenta russos dessa maneira. Os soviéticos estavam aprendendo a utilizar os transportadores modificados para vigilância terrestre. Isso tornava mais difícil a vida dos guerrilheiros.
Os dois homens seguiam uma trilha estreita ao longo da encosta íngreme de mais uma montanha, e o sol ainda não os havia alcançado, embora a maior parte do vale estivesse completamente iluminada sob o céu sem nuvens de inverno. As ruínas de uma vila bombardeada erguiam-se às margens de um rio modesto. Talvez duzentas pessoas tivessem vivido lá até o dia em que vieram os bombardeiros de grande altitude. Ele podia ver as crateras, espalhadas a intervalos irregulares de 2 ou
Tanta coisa já fora perdida. Tudo o que ele havia sido, mais as esperanças de um futuro que não chegou a existir, sua vida passada diluindo-se a cada dia. Parecia que ele apenas pensava nelas quando dormia, como agora ¯ e, quando acordava, os sonhos de uma vida pacífica e satisfatória deslizavam para longe de seu alcance, como neblina matinal. Mas mesmo esses sonhos estavam desaparecendo. Ainda podia ver o rosto da esposa, de sua filha e de seu filho, mas agora eles lembravam uma fotografia antiga, sem profundidade e sem vida, memórias de tempos que não existiam mais. Pelo menos davam um sentido a sua luta. Quando sentia piedade por suas vítimas, quando questionava a aprovação de Alá pelo que ele fazia ¯ das coisas que o enojavam a princípio ¯, ele fechava os olhos por um instante e se lembrava por que os gritos dos inimigos moribundos eram tão doces ao seu ouvido quanto os gemidos apaixonados da esposa.
¯ Está indo embora ¯ informou Abdul.
O Arqueiro voltou-se para olhar. O sol brilhou por um instante no leme vertical ao passar além dos picos das montanhas longínquas. Ainda que ele estivesse sobre aqueles picos rochosos, ainda assim o An-26 voava alto demais. Os russos não eram tolos. Não voavam mais baixo do que o estritamente necessário. Se ele quisesse mesmo derrubar um desses, teria de se aproximar de um aeroporto... ou talvez criar um tática nova. Era uma idéia. O Arqueiro começou a equacionar o problema em sua mente enquanto percorria a trilha pedregosa que parecia não ter fim.
¯ Vai funcionar? ¯ perguntou Morozov.
¯ É exatamente esse o propósito do teste. Para saber se funciona
¯ explicou pacientemente o engenheiro veterano. Lembrou-se de quando era jovem e impaciente.
Morozov tinha um bom potencial. Sua ficha da universidade provava-o claramente. Filho de um operário de Kiev, sua inteligência e capacidade de trabalho conquistaram-lhe uma indicação para a faculdade mais conceituada da União Soviética, onde merecera as mais altas honras
¯ suficientes para conseguir dispensa do serviço militar, o que era muito incomum para alguém sem proteção política.
¯ Então esse é o novo revestimento óptico... ¯ Morozov olhou para o espelho de uma distância de poucos centímetros. Os dois homens usavam aventais, máscaras e luvas, para que não danificassem a superfície refletora do espelho número quatro.
¯ Como já deve ter adivinhado, esse é um elemento do teste. ¯ O engenheiro voltou-se para o alto. ¯ Pronto!
¯ Evacuar o local! ¯ avisou um técnico.
Subiram por uma escada fixa à lateral do pilar, passando depois através da abertura para o anel de concreto que circundava a concavidade.
¯ É bem fundo ¯ comentou Morozov.
¯ Precisamos determinar a eficiência das medidas de isolamento das vibrações ¯ comentou o engenheiro, preocupado. Escutando o ruído do motor de um jipe, viu o comandante do campo conduzindo outro homem para o interior do prédio do laser. Mais um visitante de Moscou, deduziu ele. Como podemos trabalhar com todos esses caras do Partido bisbilhotando por aqui?
¯ Já conhecia o general Pokryshkin? ¯ perguntou a Morozov.
¯ Não. Que tipo de homem ele é?
¯ Já encontrei piores. Como todos os outros, ele acha que os laser são a parte importante. Lição número um, Boris Filipovich: a parte importante do projeto são os espelhos, e os computadores. O feixe de laser será inútil, se não pudermos focalizar sua energia em algum ponto do espaço.
Essa lição informou a Morozov qual a parte do projeto sob a autoridade desse homem, mas o jovem engenheiro recém-formado já aprendera a lição principal ¯o sistema inteiro tinha de funcionar perfeitamente. Qualquer segmento que falhasse transformaria o equipamento mais caro da União Soviética numa coleção de brinquedos curiosos.
O Olho da Serpente A Face do Dragão
O Boeing 767 modificado tinha dois nomes. Originalmente conhecido como Anexo Óptico Aerotransportado (AOA), agora era chamado de Cobra Belle, que pelo menos soava melhor. A aeronave era pouco mais do que uma plataforma móvel para um telescópio infravermelho tão grande quanto possível para caber no corpo largo da aeronave comercial. De uma certa forma, os engenheiros haviam improvisado, é claro, dando à fuselagem uma deselegante espécie de corcova, que começava logo atrás da cabine de comando, estendendo-se por metade do comprimento do 767, o que lhe conferia a aparência de uma serpente que tivesse acabado de engolir algum animal grande demais.
Entretanto, o que parecia ainda mais notável a respeito da aeronave eram os dizeres pintados em sua cauda: U. S. ARMY. Esse fato, que irritava o pessoal da Força Aérea, era o resultado de uma previsão in-comum ou obstinação por parte do Exército, que mesmo nos anos 70 nunca abandonara suas pesquisas sobre defesa contra mísseis balísticos, cujos hobby-shops ¯ como eram conhecidos tais lugares ¯ haviam inventado os sensores infravermelhos agora usados no AOA.
Agora, porém, faziam parte de um programa da Força Aérea, cujo nome genérico era Cobra. Trabalhavam em coordenação com o radar Cobra Dane, em Shemya, e freqüentemente voavam em conjunção com uma aeronave chamada Cobra Belle ¯um 707 modificado -, porque Cobra era o nome em código da família de sistemas dirigida para ras-trear mísseis soviéticos. O Exército ficava presunçosamente satisfeito pelo fato de a Força Aérea precisar de sua ajuda, embora consciente das tentativas em andamento para apropriar-se do programa.
A tripulação de vôo conferia sua lista de verificações calmamente, já que tinha tempo de sobra. Toda ela era da Boeing. Até aqui o Exército resistira com sucesso à pressão da Força Aérea para colocar o próprio pessoal na cabine de comando. O co-piloto, que pertencera à Força Aérea corria o dedo pela lista de coisas a fazer, anunciando as tarefas numa voz nem excitada nem entediada, enquanto o piloto e a navegadora-engenheira de bordo apertavam os botões, checavam medidores e aprontavam a aeronave para um vôo seguro.
A pior parte da missão era o tempo em terra. Shemya era uma das menores ilhas das Aleutas ocidentais, com aproximadamente 6 quilômetros de comprimento por 3 de largura, cujo ponto mais alto elevava-se a apenas
¯ Torre de Shemya, aqui é "Charlie Bravo", pronto para taxiar.
¯ "Charlie Bravo", tem permissão para taxiar. Ventos de dois-cinco-zero a quinze graus. ¯ A torre não precisava anunciar nenhuma prioridade de trânsito para o Cobra Belle. No momento, o 767 era o único avião na base. Deveria estar na Califórnia realizando testes no equipamento e viera depressa de lá há apenas vinte horas.
¯ Entendido. "Charlie Bravo" a caminho. ¯ Dez minutos depois o Boeing rodou pela pista, iniciando o que parecia ser mais uma missão de rotina.
Vinte minutos mais tarde, o AOA atingiu sua altitude de cruzeiro, a
Havia instrumentos a ativar, computadores a reciclar, ligações de dados a estabelecer e de vozes a verificar. A aeronave estava equipada com todos os tipos de sistemas de comunicação inventados pelo homem, e teria também um telepata a bordo se esse programa do Departamento de Defesa ¯ existia mesmo um ¯ tivesse progredido conforme o esperado. O homem que comandava tudo isso era um artilheiro com mestrado em astronomia na Universidade do Texas. Seu último comando fora o de uma bateria de mísseis Patriot, na Alemanha. Enquanto a maioria das pessoas olhava os aviões e desejava pilotá-los, seu interesse sempre fora derrubá-los. Sentia-se da mesma maneira a respeito dos mísseis balísticos, e ajudara a desenvolver as modificações que permitiam ao míssil Patriot atingir também outros mísseis, além das aeronaves soviéticas. Isso também lhe dera certa fa-milíaridade com os instrumentos utilizados para rastrear mísseis em vôo.
O livro da missão nas mãos do coronel era uma cópia exata do que estava arquivado na DIA, a Agência de Informações da Defesa, informando que dentro de quatro horas e dezesseis minutos os soviéticos levariam a cabo um disparo de teste do ICBM SS-25. O livro não mencionava como a DIA obtivera a informação, embora o coronel soubesse que não fora lendo um anúncio no Izvestia. A missão do Cobra Belle era monitorar o disparo, interceptar as transmissões de telemetria dos instrumentos de teste do míssil e, o mais importante, fotografar as ogivas em vôo. Os dados coletados seriam analisados mais tarde para determinar o desempenho do míssil, e particularmente a precisão das ogivas, um assunto de grande interesse em Washington.
Como comandante da missão, o coronel não tinha muita coisa a fazer. Seu painel de controle apresentava uma série de luzes coloridas, que mostravam a situação dos vários sistemas a bordo. Uma vez que o AOA era um aparelho relativamente novo, tudo a bordo funcionava bem, No momento, o único problema era uma conexão de dados de apoio, e um dos técnicos trabalhava para estabelecer a ligação enquanto o coronel bebericava seu café. Era um esforço para ele parecer interessado em tudo, sem ter nada em particular para fazer; se tivesse uma aparência chateada, seria um mau exemplo para o pessoal. Abriu o zíper de uma da mangas do macacão e apanhou um caramelo. Eles eram mais saudáveis do que os cigarros que fumava quando era tenente, embora fossem piores para os dentes, como costumava dizer o dentista da base. O coronel chupou caramelos por cinco minutos, depois decidiu que precisava fazer alguma coisa. Soltou o cinto que o prendia à cadeira de comando e foi até a cabine do piloto, na proa da aeronave.
¯ Bom dia, pessoal. ¯ A hora era 0004-Lima, ou 12h04 em horário local.
¯ Bom dia, coronel ¯ respondeu o piloto pela tripulação. ¯ Tudo está funcionando direito lá atrás, senhor?
¯ Até agora, sim. Como está o tempo na área de patrulha?
¯ Uma sólida camada de nuvens entre 4 e
Geralmente o 767 operava com uma tripulação de dois oficiais de vôo. Mas não este. Desde que o vôo 007 da Korean Airlines fora derrubado pelos soviéticos, todas as aeronaves do Pacífico ocidental eram especialmente cuidadosas com a navegação. Isso era duplamente levado a sério no caso do AOA; os soviéticos detestavam as plataformas avançadas de informações. Nunca tinham chegado a menos de 80 quilômetros do território soviético, nem dentro do Zona de Identificação da Defesa Aérea Russa, porém por duas vezes os soviéticos haviam enviado caças para mostrar ao AOA que estavam alerta.
¯ Bem, desta vez não vamos chegar muito perto ¯ observou o coronel.
Inclinou-se entre o piloto e o co-piloto para observar através dos vidros. As duas turbinas funcionavam a contento. Ele teria preferido um avião com quatro motores em vôos longos sobre o mar, mas a decisão não fora sua. A navegadora levantou uma sobrancelha perante o interesse do coronel e recebeu um tapinha no ombro à guisa de desculpas. Era hora de deixar a cabine.
¯ Quanto falta para chegarmos à área de observação?
¯ Três horas e dezessete minutos, senhor; e três horas e trinta e nove minutos para o ponto orbital.
¯ Acho que tenho tempo para tirar um cochilo ¯ declarou o coronel no caminho para a porta.
Depois de fechá-la atrás de si, ele dirigiu-se a ré, atravessou a área ocupada pelo telescópio para a cabine principal. Por que será que as tripulações de vôo são tão jovens agora? Provavelmente estão pensando que eu preciso dormir um pouco em vez de ficar entediado.
A frente, o piloto e o co-piloto trocaram um olhar de entendimento. O velho bundão não confia em nós para pilotar o avião. Acomodaram-se melhor nas poltronas, procurando com o olhar as luzes de outros aviões, enquanto o piloto automático mantinha o Cobra Belle na rota programada.
Morozov vestia-se como todos os outros cientistas na sala de controle, com um avental branco adornado com um passe de segurança. Ainda estava sob orientação, e sua designação para o grupo de controle de espelhos era provavelmente temporária. Naquele momento era que começava a apreciar a importância daquela parte do programa. Em Moscou ele aprendera como o laser funcionava e fizera um bom trabalho de laboratório com modelos experimentais, mas nunca lhe ocorrera considerar o fato de que a tarefa estava apenas começando quando a energia saía do equipamento. Além do mais, Estrela Brilhante realmente tivera um avanço significativo na quantidade de energia transmitida pelo laser.
¯ Reciclar ¯ disse o engenheiro-chefe ao microfone.
Testavam a calibragem do sistema apontando os espelhos para uma
estrela. Não importava qual estrela fosse, e escolhiam uma ao acaso para cada teste.
¯ É um ótimo telescópio, não acha? ¯ observou o engenheiro, olhando para o monitor de vídeo.
¯ Estava preocupado com a estabilidade do sistema. Por quê?
¯ É que necessitamos um alto grau de precisão, como pode imaginar. Nunca chegamos a testar o sistema completo. Podemos ras-trear estrelas com facilidade, mas... ¯ O engenheiro encolheu os ombros. ¯ Esse é um programa muito jovem ainda, meu amigo. Como você.
¯ Por que não usam o radar e escolhem um satélite para continuar rastreando?
¯ Esta é uma ótima pergunta! ¯ O homem mais velho riu. ¯ Já me perguntei isso também. Tem alguma coisa a ver com os tratados de controle de armas, ou outra besteira qualquer. Por enquanto, eles dizem, é suficiente que nos forneçam as coordenadas dos alvos por terra. Não devemos procurá-los nós mesmos. Bobagem!
Morozov recostou-se em sua cadeira para olhar ao redor. Do outro lado da sala, todos os componentes do grupo de controle do laser moviam-se de um lado para o outro atarefados, enquanto um contingente de soldados uniformizados conversava entre si atrás deles. A seguir examinou o relógio ¯ sessenta e três minutos até o início do teste. Um a um, os técnicos saíam para a sala de repouso. Ele não sentia necessidade alguma de descansar e, pelo jeito, nem o engenheiro-chefe, que finalmente se dava por satisfeito com o funcionamento de seus sistemas e colocava todos eles em estado de prontidão.
A
Os técnicos que monitoravam o DSP em Sunnyvale ¯ o Vale do Silício, na Califórnia ¯ entretinham-se em contar instalações industriais. Havia a Usina de Aço Lênin, em Kazan, e havia aquela grande refinaria perto de Moscou, e também...
¯ Atenção! ¯ anunciou um sargento. ¯ Temos uma fonte de energia em Plesetsk. Parece que um "pássaro" está levantando vôo do campo de testes de ICBM.
O major que estava de serviço nesse turno da noite imediatamente ligou para o "Palácio de Cristal", o quartel-general do NORAD, instalado sob o monte Cheyenne, no Colorado, a fim de certificar-se de que eles estavam gravando os dados do satélite. É claro que estavam.
¯ Esse foi o lançamento sobre o qual nos avisaram ¯ disse baixinho, para si mesmo.
Enquanto observavam, a imagem brilhante do calor despejado pelo foguete começou a tomar um rumo oriental, enquanto o ICBM descrevia a trajetória balística que dava nome ao míssil. O major sabia de cor todas as características dos mísseis soviéticos. Se esse fosse um SS-25, o primeiro estágio deveria separar-se... agora.
A tela ficou brilhante quando uma bola de fogo de
¯ Parece que esse explodiu ¯ observou desnecessariamente o sargento. ¯ De volta à prancheta, Ivã...
¯ Ainda não resolveram o problema com o segundo estágio ¯ acrescentou o major.
Imaginou por um momento qual teria sido o problema, mas decidiu que não importava tanto. Os soviéticos haviam apressado a produção da série-25 e já começavam a instalá-los em vagões ferroviários para maior mobilidade, porém ainda tinham problemas com o míssil de combustível sólido. O major estava contente que fosse assim. Não fosse pela falta de confiabilidade nos novos mísseis, o seu uso deixaria de ser uma coisa arriscada. Essa incerteza ainda era a maior garantia de paz.
¯ "Palácio de Cristal", o teste falhou cinqüenta e sete segundos após o lançamento. Cobra Belle monitorou o teste do alto?
¯ Afirmativo ¯ respondeu o oficial do outro lado. ¯ Vamos chamá-los de volta.
¯ Certo. Boa noite, Jeff.
A bordo do Cobra Belle, dez minutos depois, o comandante da missão acusou recebimento da mensagem e cortou o canal de rádio. Verificou o relógio e suspirou. Não tinha vontade de voltar para Shemya ainda. O capitão encarregado dos equipamentos sugeriu que aproveitassem o tempo para calibrar os instrumentos. O coronel pensou por um instante e aprovou a idéia com um aceno de cabeça. A aeronave e a tripulação eram novas o bastante para adquirir mais experiência. Os sistemas de rastreamento foram ajustados para o MTI, Indicador de Alvos Móveis. O computador que registrava todas as fontes de energia que o telescópio acusava começou a destacar apenas os pontos que se moviam. Os técnicos observaram as telas de vídeo enquanto o MTI eliminava rapidamente as estrelas e planetas, começando a indicar alguns satélites de baixa altitude e fragmentos de sucata espacial em órbita. O sistema da câmera era suficientemente sensível para detectar o calor de um corpo humano a
¯ A potência que conseguiram aplicar ao sistema é impressionante! ¯ comentou o coronel Bondarenko em voz baixa.
¯ É verdade ¯ concordou com entusiasmo o general Pokryshkin. ¯ O mais impressionante é como essas coisas acontecem. Um dos meus feiticeiros descobre alguma coisa e comenta com o vizinho, que conversa com um terceiro, e o terceiro diz alguma coisa que vai novamente ao primeiro, e assim por diante. Temos as mentes mais brilhantes do país aqui conosco, e o processo de descoberta mesmo assim parece tão científico quanto uma topada com o dedão numa cadeira. É essa a parte estranha. Mas é o que torna tudo fascinante. Gennady Iosifo-vich, essa é a coisa mais excitante que me aconteceu desde que ganhei meu breve de piloto! Esse lugar vai mudar o mundo! Depois de trinta anos de trabalho, acho que estamos muito perto da base de um sistema capaz de proteger a Rodina contra mísseis inimigos.
Bondarenko pensou que aquilo parecia um exagero, mas o teste demonstraria quanto de verdade havia ali. Uma coisa era certa: Pokryshkin parecia o homem certo para o posto que ocupava. O ex-piloto era um verdadeiro gênio para coordenar e direcionar os esforços dos cientistas e engenheiros, muitos dos quais possuíam um ego tão grande quanto um tanque de guerra, e infinitamente mais frágil. Quando o general precisava se impor, ele se impunha. Quando precisava lison-jear, ele lisonjeava. Fazia o papel de pai, tio ou irmão para todos eles. Era necessário um homem com um grande coração russo para realizar isso. O coronel adivinhou que comandar pilotos de caça fora uma ótima preparação, e Pokryshkin devia ter sido um comandante de esquadrão brilhante. O equilíbrio entre pressão, autoridade e encorajamento era muito difícil de atingir, mas para esse homem parecia tão natural quanto respirar. Bondarenko agora observava com atenção. Muitas lições ali ele poderia usar em sua carreira futura,
A sala de controle ficava separada do prédio do laser em si e era muito pequena para a grande quantidade de homens e equipamentos que continha. Ali se encontravam por volta de cem engenheiros ¯ sessenta deles com mestrado em física ¯, e mesmo aqueles chamados de técnicos poderiam lecionar em qualquer universidade da União Soviética. Sentavam-se aos painéis, ou andavam à sua volta. A maioria fumava, e o sistema de ar condicionado utilizado para manter constante a temperatura nos computadores desenvolvia um grande esforço para manter o ar relativamente limpo. Por todos os lados viam-se mos-tradores digitais. A maioria marcava a hora: a hora média de Green-wich, usada para rastrear os satélites; a hora local; e, é claro, a hora-padrão de Moscou. Outros mostradores apresentavam as coordenadas precisas do satélite-alvo, Cosmos-1810, que levava a numeração internacional de satélite 1986-102A. Fora lançado do Cosmódromo de Tyuratam em 26 de dezembro de 1986 e ainda estava no alto porque sua reentrada na atmosfera com seu filme falhara. A telemetria mostrava que seus sistemas elétricos ainda funcionavam, embora sua órbita estivesse decaindo, com um perigeu atual ¯ o ponto mais baixo da órbita ¯ de
¯ Nível de energia subindo ¯ avisou o engenheiro-chefe pelo sistema fone-microfone que usava à cabeça. ¯ Verificação final do sistema.
¯ Câmeras rastreadoras em linha ¯ informou um técnico. ¯ Fluxo de criogênio nominal.
¯ Controle de rastreamento dos espelhos em automático ¯ anunciou o engenheiro ao lado de Morozov. O jovem engenheiro estava na ponta da cadeira giratória observando ansiosamente o monitor de vídeo ainda sem imagem.
¯ Seqüenciamento do computador em automático ¯ disse um terceiro.
Bondarenko deu um gole em seu chá, tentando acalmar-se sem resultado. Sempre quisera presenciar um lançamento espacial, mas nunca tivera a oportunidade. Aqui acontecia o mesmo tipo de coisa. A exci-tação era difícil de dominar. Ao seu redor os equipamentos e os homens estavam se unindo numa só entidade para realizar um único objetivo, enquanto um após o outro anunciava sua prontidão e a de seus equipamentos. Finalmente:
¯ Todos os sistemas laser em linha com energia total.
¯ Estamos prontos para disparar ¯ o engenheiro-chefe concluiu a ladainha.
Todos os olhares se voltaram para o lado direito da construção, onde o grupo responsável pelas câmeras rastreadoras dirigia os instrumentos para uma seção do horizonte a noroeste. Um ponto brilhante surgiu, subindo vagarosamente pela abóbada negra do céu.
¯ Aquisição de alvo!
Ao lado de Morozov, o engenheiro levantou as mãos do painel de controle para certificar-se de que não acionaria inadvertidamente nenhum botão. A luz que indicava funcionamento automático piscava intermitentemente.
A
No monitor em frente ao engenheiro-chefe agora havia uma imagem do Cosmos-1810. Como medida final de segurança, ele e mais três técnicos precisavam fazer uma identificação visual positiva do alvo.
¯ Aquele é o Cosmos-1810 ¯ dizia o capitão ao comandante do Cobra Belle. ¯ Um "pássaro" de reconhecimento quebrado. Deve ter havido uma falha nos motores de reentrada, porque não voltou quando mandaram. Está em órbita degenerativa e deve ter mais uns quatro meses de vida. Ainda envia dados de telemetria de rotina. Nada de importante, que a gente saiba. Só para mostrar ao Ivã que ainda está lá.
¯ Os painéis solares ainda devem estar funcionando ¯ observou o coronel. ¯ O calor vem da energia interna.
¯ É. Fico pensando por que será que não o desligaram ainda... De qualquer forma, a leitura da temperatura de bordo é de 15 graus centígrados. Ótimo fundo frio para fazer a leitura. Se fosse a luz do sol, acho que não captaríamos a diferença entre o aquecimento solar e o do satélite...
Os espelhos na estrutura transmissora do laser rastreavam muito lentamente, mas o movimento podia ser percebido nas seis telas de televisão que os monitoravam. Um laser de baixa potência refletia num dos espelhos, partindo em direção ao alvo... Além de servir para apontar todo o sistema, enviava uma imagem de alta resolução para o console de comando. A identidade do alvo estava confirmada agora. O engenheiro-chefe girou a chave que "liberava" todo o sistema. Estrela Brilhante estava agora fora do controle de mãos humanas, comandado inteiramente pelo complexo principal de computadores.
¯ Já se fixou no alvo ¯ observou Morozov a seu superior.
O engenheiro concordou com um aceno de cabeça, sem tirar os olhos da tela. Sua leitura de alcance estava decrescendo rapidamente à medida que o satélite vinha na direção deles, circulando a 18 000 quilômetros por hora na direção de sua destruição. A imagem que aparecia no monitor era de uma bolha levemente oblonga, branca em virtude do calor interno, contrastando fortemente contra um céu sem calor. Localizava-se exatamente no centro da retícula de alvo, como uma oval branca no centro da alça de mira.
Eles não escutavam nada, é claro. O prédio que abrigava os geradores de raios laser era completamente isolado térmica e acusticamente. Também não enxergavam nada ao nível do solo. Mas, observando as telas de televisão na sala de controle, os cem homens cerraram os punhos no mesmo instante.
¯ Que diabos! ¯ exclamou o capitão. A imagem do Cosmos-1810 subitamente ficara brilhante como um
sol. O computador ajustou a sensibilidade no mesmo instante, mas por vários segundos não conseguiu acompanhar as mudanças de temperatura no satélite.
¯ Mas que diabo acertou... Senhor, isso não pode ser calor interno. ¯ O capitão digitou um comando no teclado a sua frente e obteve uma leitura digital da temperatura aparente do satélite. Radiação infravermelha é uma função de quarto grau. O calor cedido por um objeto é o quadrado do quadrado de sua temperatura. ¯ Coronel, a temperatura foi de 15 graus centígrados para... parece que 1 800 graus em dois segundos. Ainda está subindo... espere, está diminuindo. Agora sobe de novo. A taxa de aumento é irregular, quase.,. Agora está caindo. Que porra foi essa?
À esquerda do homem, o coronel começou a pressionar alguns botões no seu console de comunicação, ativando uma ligação em código via satélite com o monte Cheyenne. Quando falou, foi no tom frio e profissional que os militares reservam apenas para os piores pesadelos. O coronel sabia exatamente o que havia visto.
¯ Palácio de Cristal, aqui Cobra Belle. Fiquem alerta para copiar uma mensagem Superflash.
¯ A postos. Pode falar.
¯ Tivemos uma ocorrência de alta energia. Repito, estamos acompanhando um evento de alta energia. Cobra Belle declara um Drops-hot. Acuse recebimento. ¯ Olhou para o capitão ao lado, e seu rosto estava pálido.
No quartel-general do NORAD, o oficial graduado do turno da noite teve de vasculhar rapidamente sua memória para lembrar o significado de Dropshot. Dois segundos depois um "Jesus" foi dito baixinho ao sistema fone-microfone preso a sua cabeça.
¯ Cobra Belle, acusamos recebimento do Dropshot. Fique a postos enquanto a gente toma algumas providências por aqui. Jesus! ¯ disse ele outra vez, voltando-se para seu auxiliar. ¯ Transmita um alerta Dropshot ao NMCC, e diga para eles permanecerem alertas para receber os dados impressos. Encontre o coronel Welch e traga-o aqui. ¯ O oficial levantou o telefone a seu lado e digitou o código do CINC-NORAD, comandante-chefe do NORAD.
¯ Sim? ¯ uma voz rouca disse ao aparelho.
¯ General, aqui é o coronel Henriksen. Cobra Belle relatou um Alerta Dropshot. Dizem que acabam de presenciar um evento de alta energia.
¯ Já informou o NMCC? ¯ Referia-se ao Centro Nacional de Comando Militar.
¯ Sim, senhor, e estamos trazendo Doug Welch também.
¯ Já têm os dados?
¯ Estarão aqui quando o senhor chegar.
¯ Muito bem, coronel, estou a caminho. Mande um avião para Shemya, para trazer aquele cara do Exército até aqui.
O coronel a bordo do Cobra Belle estava ordenando a seu oficial de comunicações que enviasse os dados via comunicação digital para o NORAD e o Vale do Silício. A tarefa foi realizada em cinco minutos. A seguir o comandante da missão disse à tripulação para voltar a Shemya. Ainda tinham combustível para duas horas de patrulha, mas achou que nada mais aconteceria essa noite. O que acontecera até aqui era o suficiente. O coronel acabara de ter o privilégio de testemunhar um acontecimento que muito poucos homens haviam presenciado na história da humanidade. Tinha visto o mundo mudar e, ao contrário da maioria dos homens, ele entendia o significado dessa mudança. Era uma honra, pensou ele, que dentro em pouco seria obrigado a esquecer completamente.
¯ Capitão, eles chegaram primeiro. ¯ Meu Deus!
Jack Ryan estava a ponto de tomar a saída pelo trevo da rodovia 1-495 quando o telefone do seu carro tocou.
¯ Sim?
¯ Precisamos de você aqui.
¯ Certo. ¯ Jack ouviu a linha ser desligada do outro lado. Jack tomou a saída, mas continuou a curva, passando sob o viaduto
e retornando à Washington Beltway, o caminho de volta à CIA. Aquilo nunca falhava. Ele tirara a tarde de folga para encontrar-se com o pessoal do SEC. Descobrira que os agentes da companhia foram investigados e liberados de qualquer suspeita, o que se estendia a ele também ¯ ou deveria, se os investigadores do SEC chegassem mesmo a encerrar sua ficha. Ele nutrira a esperança de tirar o resto do dia de folga e ir para casa. Ryan resmungava enquanto se encaminhava de volta a Virgínia, perguntando-se qual seria a crise daquela vez.
O major Gregory e mais três membros de seu grupo de software estavam em pé ao lado de um quadro-negro, diagramando o fluxo do pacote de programas de controle do espelho quando um sargento entrou na sala.
¯ Major, o senhor está sendo chamado ao telefone.
¯ Estou ocupado. Não pode esperar?
¯ É o general Parks, senhor.
¯ A voz do dono ¯ resmungou Al Gregory. Atirou o giz ao homem mais próximo e saiu da sala. Em pouco mais de um minuto estava ao telefone.
¯ Há um helicóptero a caminho para apanhá-lo ¯ informou o general sem rodeios.
¯ Senhor, estamos tentando resolver...
¯ Em Kirtland haverá um Lear esperando por você. Não temos tempo para esperar um vôo comercial. Não vai precisar fazer as malas. A caminho, major!
¯ Sim, senhor.
¯ O que aconteceu de errado? ¯ indagou Morozov. O engenheiro a seu lado olhava com cara de bravo para o painel.
¯ Distorção térmica. Merda! Pensei que já tínhamos superado isso. Do outro lado da sala de controle, o laser de baixa energia produzia
outra imagem do alvo. A imagem monocromática era uma fotografia de aproximação em preto-e-branco, só que o preto aparecia como marrom. Os técnicos em vídeo haviam dividido a tela, colocando a imagem antiga ao lado da atual, para comparação.
¯ Nenhum furo! ¯ disse Pokryshkin, amargamente.
¯ E daí? ¯ quis saber Bondarenko, sem entender. ¯ Meu Deus! O laser derreteu aquela coisa! Aquilo parece que foi mergulhado no aço fundido.
Parecia mesmo. As superfícies planas estavam agora retorcidas em virtude do calor intenso que ainda se irradiava. As células solares dispostas ao redor do corpo do satélite ¯ projetadas para absorver energia luminosa ¯ pareciam ter se queimado completamente. Num exame mais cuidadoso podia-se constatar que todo o corpo do satélite apresentava-se distorcido pela energia que o atingira. Pokryshkin concordou, mas sua expressão não se alterou. ¯ Tínhamos de fazer um furo no satélite. Se tivéssemos conseguido, teria dado a impressão de que algum pedaço de sucata espacial tinha se chocado com ele. Esse é o tipo de concentração de energia que estávamos procurando.
¯ Mas agora pode destruir qualquer satélite que desejar!
¯ Estrela Brilhante não foi construída para destruir satélites, coronel. Já podemos fazer isso com facilidade.
Só então Bondarenko entendeu a mensagem. De fato, Estrela Brilhante na verdade havia sido construída com um propósito específico, mas o avanço na energia excedera as expectativas por um fator de quatro, e Pokryshkin queria matar dois coelhos com uma só cajadada, demonstrando a capacidade de interceptação de satélites e um sistema que podia ser adaptado à defesa contra mísseis balísticos. Era um homem ambicioso, ainda que não no sentido comum da palavra.
Bondarenko deixou de pensar no assunto e concentrou-se no que acabara de presenciar. O que tinha acontecido de errado? Devia ter sido distorção térmica. Ao serem transmitidos pela atmosfera, os raios laser transferiram uma quantidade fracionária de sua energia na forma de calor para a atmosfera. Tal distorção provocara uma "turva-ção" do ar, alterando suas propriedades ópticas, movendo o feixe para cima e para baixo do alvo, e alargando o feixe laser num diâmetro maior que o pretendido.
Mas, a despeito disso tudo, ainda teve potência suficiente para derreter metal a
¯ Algum dano ao sistema? ¯ perguntou o general ao diretor do projeto.
¯ Nenhum, de outra maneira não teríamos conseguido a imagem logo a seguir. Parece que as medidas de compensação da atmosfera foram suficientes para o feixe de imagem, mas não para a transmissão de alta energia. Meio sucesso, camarada general.
¯ É verdade. ¯ Pokryshkin esfregou os olhos por um momento, depois disse com firmeza: ¯ Camaradas, demonstramos grande progresso esta noite, mas ainda há muito trabalho a fazer.
¯ E esse é meu trabalho ¯ disse baixinho o engenheiro ao lado de Morozov. ¯ Vamos resolver esse filho da puta!
¯ Precisa de mais alguém no grupo?
¯ Trata-se em parte de espelhos e em parte de computadores. Quanto sabe sobre esses assuntos?
¯ Isso é o senhor que decide. Quando começamos?
¯ Amanhã. O pessoal da telemetria vai levar umas doze horas para organizar os dados. Pretendo apanhar o próximo ônibus para a área residencial e beber alguma coisa em meu apartamento. Minha família foi passar a semana fora. Quer me acompanhar?
¯ O que pensa que foi isso? ¯ perguntou Abdul. Haviam acabado de chegar ao topo de uma serra quando o meteoro apareceu. Pelo menos a princípio parecia com o rastro de um meteoro entrando na atmosfera. Porém a linha fina e dourada permanecera ali e dava a impressão de ir da terra para o céu ¯ rápida, mas nitidamente. Uma linha fina e dourada, pensou o Arqueiro. O ar em si parecia ter brilhado. Mas o que teria provocado tal reação no ar? Por um momento ele esqueceu quem era e onde estava, retornando aos seus dias na universidade. Calor provocava aquele tipo de efeito. Apenas o calor. Quando um meteoro caía, a fricção de sua passagem... Mas aquilo não fora um meteoro. Mesmo que o sentido de baixo para cima não passasse de uma ilusão ¯ e ele não tinha certeza disso; os olhos enganam a gente ¯, a luz dourada durara aproximadamente cinco segundo. Talvez um pouco mais, refletiu o Arqueiro. É muito difícil medir o tempo com a mente. Hum... Sentou-se abruptamente e apanhou o bloco de anotações. O homem da CIA lhe dera aquele bloco e lhe dissera para anotar os eventos, como um diário. Era um instrumento útil; não lhe ocorrera antes. Anotou cuidadosamente a hora, data, local e a direção aproximada. Dentro de mais alguns dias voltaria ao Paquistão, e talvez o homem da CIA achasse aquilo interessante.
Um "Se" a Menos
Já estava escuro quando ele chegou. O motorista que conduzia o carro de Gregory saiu da Rodovia George Washington em direção à avenida de acesso ao Pentágono. A sentinela levantou o portão, permitindo que o Ford do governo sem identificação ¯ o Pentágono estava comprando automóveis Ford naquele ano ¯ subisse a rampa, desse a volta ao punhado de carros estacionados e deixasse seu passageiro logo atrás de um ônibus. Gregory já conhecia bem a rotina: mostrar seu passe ao guarda, passar através do detector de metais, andar ao longo de um corredor cheio de bandeiras dos Estados, depois descer ao longo da rampa que conduzia à área de compras, uma galeria construída e iluminada ao estilo de um calabouço do século 12. Na verdade, Gregory jogara "Dragões e Labirintos" quando estava no colegial, e a primeira vez que fora à grande construção poligonal convencera-se de que o autor do jogo inspirara-se naquele lugar.
O escritório da Iniciativa de Defesa Estratégica ficava exatamente sob a área de lojas comerciais ¯ na verdade a entrada ficava diretamente sob a confeitaria ¯, num espaço com cerca de
O general Bill Parks tampouco estava com vontade de sorrir. Seu amplo escritório continha uma escrivaninha, um pequena mesa de centro para o café e conversas mais íntimas, além de uma mesa maior para conferências. As paredes estavam cobertas de fotografias emolduradas de várias atividades espaciais, modelos reais e imaginários de veículos... e de armas. Parks era geralmente um homem cordial. Ex-piloto de testes, sua carreira correra tão bem que se poderia imaginá-lo como uma figura bajuladora e popular, apertando as mãos de todo mundo. Em vez disso, Parks tinha o aspecto de um monge, com um sorriso que era ao mesmo tempo encantadoramente tímido e intenso. Suas muitas divisas não adornavam a camisa de mangas curtas, que somente ostentava uma miniatura das asas de piloto-comandante. Não precisava impressionar as pessoas com o que tinha feito, mas com o que era. Parks era um dos mais inteligentes homens no governo, certamente entre os dez mais, talvez até o mais brilhante. Gregory viu que o general tinha companhia aquela noite.
¯ Então nos encontramos outra vez, major ¯ disse Ryan, voltando-se. Ele tinha nas mãos uma brochura de duzentas páginas, aberta na metade.
Gregory ficou em posição de sentido ¯ para Parks ¯ e apresentou-se formalmente ao general.
¯ Que tal o vôo?
¯ Fantástico. Senhor, aquela máquina de refrigerantes ainda fica no mesmo lugar? Estou morrendo de sede.
O general sorriu rapidamente antes de responder:
¯ Pode ir até lá. Não estamos com tanta pressa assim. ¯ Gregory saiu para o corredor e fechou a porta atrás de si. ¯ A gente só pode adorar esse garoto.
¯ Será que a mãe dele sabe o que ele anda fazendo depois da escola? ¯ brincou Ryan, ficando sério logo em seguida. ¯ Ele ainda não viu nada disso, certo?
¯ Não, e nem teve tempo. Além do mais, o coronel do Cobra Belle deve demorar mais cinco horas para chegar aqui.
Jack assentiu. Era por isso que ele e Art Graham da unidade de satélites eram os únicos membros da CIA presentes; os outros teriam uma noite de sono decente enquanto os dois preparavam o relatório dos acontecimentos para a manhã seguinte. O próprio Parks podia ter tirado o corpo fora, deixando o trabalho para seu cientista-chefe, mas ele não era esse tipo de homem. Quanto mais Ryan conhecia de Parks, mais o apreciava. O general preenchia os requisitos de um bom líder. Era um homem com um ideal ¯ ideal esse que Ryan partilhava. Ali estava um comandante militar graduado que odiava armas nucleares. Isso em si não era um fato tão incomum ¯ militares tendiam a apreciar um mundo organizado, e as armas nucleares provocavam uma situação bastante imprevisível. Mas muito poucos soldados, marinheiros e pilotos tinham engolido suas opiniões pessoais e construído a carreira em torno de armamentos que esperavam nunca ser utilizados. Parks passara os últimos dez anos de sua carreira tentando achar uma maneira de eliminá-los. Jack apreciava as pessoas que nadavam contra a corrente. Coragem moral era um atributo mais raro do que a coragem física, um fato tão verdadeiro na profissão militar quanto em qualquer outra.
Gregory reapareceu com uma lata de Coca-Cola, retirada da máquina próxima à porta. Gregory não gostava de café. Era hora de trabalhar.
¯ O que está acontecendo, senhor?
¯ Temos uma fita de vídeo gravada por Cobra Belle. Eles decolaram para acompanhar um teste de ICBM soviético. O "pássaro" deles, um SS-25, explodiu, e o comandante da missão resolveu ficar lá em cima e testar seus brinquedinhos. Isso foi o que ele viu. ¯ O general pressionou o botão do controle remoto do videocassete e a imagem surgiu na tela.
¯ Esse é o Cosmos-1810 ¯ explicou Art Graham, passando uma fotografia ao major. ¯ Um satélite de reconhecimento que não funcionou direito.
¯ Imagem infravermelha na tevê, não é? ¯ Gregory deu um gole em seu refrigerante. ¯ Meu Deus!
O que fora um simples ponto de luz expandiu-se como uma estrela explodindo num filme de ficção científica. Só que não era ficção. A imagem mudou enquanto o sistema de imagem computadorizado adaptava-se ao súbito aumento de energia. No canto inferior apareceu uma série de dígitos, mostrando a temperatura aparente do satélite. Em poucos segundos a imagem desapareceu e novamente o computador precisou ajustar-se para acompanhar o Cosmos.
Houve um segundo ou dois de estática na tela, depois uma nova imagem começou a se formar.
¯ Isso foi feito noventa minutos atrás. O satélite passou sobre o Havai algumas órbitas depois. Temos câmeras lá para monitorar os satélites soviéticos ¯ declarou Graham. ¯ Dê uma olhada na fotografia que lhe entreguei.
¯ "Antes e depois", certo? ¯ Os olhos de Gregory passeavam de uma imagem para outra. ¯ Os painéis solares se foram... puxa! Do que é feito o corpo do satélite?
¯ A maior parte é de alumínio ¯ esclareceu Graham. ¯ Os russos acreditam mais em construções resistentes do que nós. As estruturas internas talvez sejam feitas de aço, mas acho mais provável titânio ou magnésio.
¯ Isso pode nos dar uma base de cálculo para uma estimativa da transferência de energia envolvida no processo ¯ afirmou Gregory. ¯ Eles destruíram o "pássaro". Conseguiram calor suficiente para derreter os painéis solares e provavelmente para romper os circuitos elétricos no interior. A que altura ele estava?
¯ Cento e oitenta quilômetros.
¯ Foi de Sary Shagan, ou daquele lugar novo que o senhor Ryan me mostrou?
¯ Dushanbe ¯ disse Ryan. ¯ O novo.
¯ Mas as linhas de força ainda não estão prontas.
¯ É verdade ¯ concordou Graham. ¯ Eles ainda podem dobrar a potência que acabamos de ver demonstrada. Ou pelo menos acham que podem. ¯ A voz parecia com a de quem acabava de saber que um membro da família tinha uma doença fatal.
¯ Posso ver a primeira seqüência de novo? ¯ disse Gregory. Parecia mais uma ordem de Gregory do que uma pergunta, e Jack notou que o general a realizou sem perda de tempo.
Nos quinze minutos seguintes, Gregory permaneceu a
¯ Posso fazer uma estimativa mais precisa em meia hora, mas acho que eles enfrentaram problemas.
¯ Distorção ¯ disse Bill Parks.
¯ E também dificuldades no sistema de mira, senhor. Pelo menos, é o que parece. Preciso de algum tempo para trabalhar e de uma boa calculadora. Deixei a minha no escritório ¯ admitiu Gregory sem graça. Graham passou-lhe uma Hewlett-Packard programavel.
¯ E quanto à energia? ¯ quis saber Ryan.
¯ Preciso de algum tempo para dar números exatos ¯ informou pacientemente o major. ¯ No momento, posso afirmar que excederam em oito vezes tudo o que podemos fazer. Preciso de um lugar tranqüilo para trabalhar. Posso usar a sala de lanches? ¯ perguntou ele a Parks. O general assentiu, e ele deixou a sala.
¯ Oito vezes... ¯ repetiu Art Graham, impressionado. ¯ Meu Deus, isso quer dizer que podem deixar fora de ação qualquer satélite do DSPS. Aliás, podem acertar qualquer satélite de comunicações, se quiserem. Bem, sempre existem maneiras de protegê-los...
Ryan sentiu-se um pouco marginalizado. Sua formação em história e economia não incluía a linguagem técnica das ciências físicas, que ele ainda não dominava completamente.
¯ Três anos ¯ declarou o general Parks, servindo mais um café. ¯ Pelo menos três anos à nossa frente.
¯ Mas só em potência... ¯ disse Graham.
Jack olhava de um para outro, sabendo o significado geral do que eles discutiam, mas não entendendo o conteúdo. Gregory voltou em vinte minutos.
¯ Calculei o pico da potência de saída deles entre 25 e 30 milhões de watts ¯ anunciou ele, sem rodeios. ¯ Se assumirmos que usam seis geradores laser para a transmissão, isso faz... bem, mais do que o suficiente, não é? E só uma questão de focalizar e dirigir todos para o mesmo alvo. ¯ Gregory fez uma pausa. ¯ Estas são as más notícias. As boas são que eles definitivamente estão enfrentando problemas de distorção pela atmosfera. Conseguiram chegar à potência de pico apenas nos primeiros milésimos de segundo, depois o raio começou a ser distorcido. A potência média no impacto ficou entre 7 e 10 megawatts. Ao que parece, eles também tiveram problemas de mira além da distorção. Ou os suportes contra vibrações não foram bem instalados, ou eles não conseguiram corrigir completamente o balanço de rotação da Terra. Talvez as duas coisas. Qualquer que seja a causa, tiveram problemas para apontar com uma precisão maior do que três segundos de arco. Isso significa que só podem ter uma precisão de
¯ Como é isso? ¯ indagou Ryan.
¯ Os satélites de órbita baixa se movem no espaço com uma velocidade razoável, algo em torno de
Ryan assentiu, embora sua mente estivesse atingindo novamente o limite. Mal entendia a linguagem que o garoto usava, e a informação que Gregory tentava transmitir estava num campo que ele simplesmente não dominava. Graham interferiu.
¯ Está dizendo que não devemos nos preocupar com isso por enquanto?
¯ Não, senhor! Se a potência está disponível para ser utilizada, sempre se pode alcançar os meios para fazer isso. Que diabos, nós já resolvemos esse problema. Essa é a parte mais simples.
¯ É como eu disse ¯ afirmou o engenheiro a Morozov. ¯ O problema não está na quantidade de energia que o feixe laser pode carregar, essa é a parte fácil. O difícil é levar essa energia até o alvo.
¯ O computador não pode corrigir a... exatamente o quê?
¯ Deve ser uma combinação de fatores. Vamos repassar os dados ainda hoje. O erro principal? Provavelmente o programa de compensação atmosférica. Pensamos que poderíamos ajustar o processo de mira para eliminar a distorção... mas não conseguimos. Três anos de trabalho teórico foram embutidos no teste de ontem. Meu projeto. E não funcionou. ¯ O engenheiro olhou na direção do horizonte, franzindo as sobrancelhas. A operação em sua criança doente não fora bem-sucedida, mas os médicos achavam que ainda havia esperança.
¯ Então foi daí que partiu o aumento da potência de saída do laser? ¯ quis saber Bondarenko.
¯ Foi. Dois dos mais jovens entre o pessoal, ele com 32 e ela com 28, descobriram uma maneira de aumentar o diâmetro da cavidade do laser. O que precisamos, entretanto, é de um controle melhor dos eletroímãs ¯ disse Pokryshkin.
O coronel concordou. A vantagem do laser de elétron livre no qual os dois lados estavam trabalhando é que ele podia ser "sintonizado" da mesma forma que um rádio, oferecendo a possibilidade de escolha da freqüência luminosa que se queria transmitir... ou pelo menos assim afirmava a teoria. Na prática, porém, a maior potência de saída ficava sempre na mesma zona de freqüência... que era a errada. Se no dia anterior tivessem tido a possibilidade de escolher uma freqüência ligeiramente diferente, que penetrasse com mais eficiência na atmosfera, a distorção térmica poderia ter sido reduzida em 50 por cento ou mais. Mas isso significaria controlar melhor os ímãs supercondu-tores. São chamados de wigglers, ou oscilantes, porque induzem um campo magnético oscilante através dos elétrons carregados na cavidade do laser. Infelizmente, o mesmo avanço que aumentou a cavidade teve também um efeito inesperado sobre a capacidade de controlar o fluxo do campo magnético. Ainda não descobrimos nenhuma explicação teórica para isso, e a opinião dos cientistas mais experientes é de que houve um pequeno problema de engenharia, ainda insuspeita-do, no projeto do ímã. Os engenheiros graduados, é claro, alegam que o erro está nas explicações teóricas para o que acontecia, porque eles sabem que os ímãs funcionam perfeitamente. As discussões que já agitavam as salas de conferências eram vigorosas, porém cordiais. Um bom número de pessoas donas das mentes mais brilhantes lutavam juntas para descobrir a Verdade ¯ do tipo científico que não dependesse da opinião humana.
A mente de Bondarenko repassava os detalhes enquanto fazia as anotações. Ele se julgara um homem com conhecimento de tecnologia laser ¯ afinal de contas, havia ajudado a projetar uma aplicação completamente nova ¯, mas, ao examinar o trabalho que estava sendo realizado ali, imaginou-se como uma criança a vagar por um laboratório de universidade, maravilhando-se com as luzes brilhantes. O avanço principal, escreveu ele, era no projeto da cavidade do laser. Aquilo permitia o grande aumento na potência de saída e fora concebido numa mesa de cantina, quando um engenheiro e uma física tropeçaram juntos num pedaço da Verdade. O coronel sorriu interiormente. Pravda fora a palavra usada, na realidade. Verdade era a tradução exata, e os dois jovens acadêmicos pronunciavam-na de maneira bastante simples. Ultimamente, essa era uma palavra que vinha ganhando popularidade em Estrela Brilhante, e Bondarenko perguntou-se quanto daquilo se constituía numa piada particular, de um jeito ou de outro.
"Mas é pravilno?", perguntavam sobre um fato. É "verdadeiro"?
Bem, disse o coronel a si mesmo, uma coisa é bastante verdadeira.
Aquelas duas pessoas que se encontraram para discutir sua vida amorosa ¯Bondarenko já escutara a história em detalhes ¯ numa mesa da cantina haviam se juntado para permitir um colossal salto para a frente em relação à potência do laser. O resto viria a seu tempo, disse Bondarenko a si mesmo. Sempre vinha.
¯ Então parece que o problema principal é o controle do computador, tanto do campo de fluxo magnético quanto do conjunto de espelhos.
¯ Correto, coronel ¯ concordou Pokryshkin. ¯ E precisamos de verbas adicionais para corrigir essas dificuldades. Precisa dizer a eles em Moscou que o trabalho mais importante já foi realizado e provou funcionar.
¯ Camarada general, já me conquistou.
¯ Não, camarada coronel. O senhor simplesmente possui a inteligência necessária para perceber a verdade. ¯ Os dois deram uma boa gargalhada enquanto apertavam-se as mãos.
Bondarenko mal podia esperar para voar de volta a Moscou. Já se fora o tempo em que um oficial soviético temia ser portador de más notícias, porém a divulgação de notícias boas sempre ajudava a carreira de quem as trazia.
¯ Bem, eles não podem estar usando ópticos adaptáveis ¯ declarou o general Parks. ¯ O que eu quero saber é de onde vêm as camadas ópticas deles.
¯ É a segunda vez que escuto isso. ¯ Ryan levantou-se e andou ao redor da mesa para ativar a circulação. ¯ Qual é o problema com o espelho? É um espelho de vidro, não é?
¯ De vidro, não. O vidro não suporta a quantidade de energia. No momento, estamos usando cobre ou molibdênio ¯ informou Gregory. ¯ Um espelho de vidro possui sua superfície refletora na parte de trás. No nosso tipo de espelho, a superfície refletora fica na face frontal. Há um sistema de resfriamento na parte de trás.
¯ Como? ¯ Você devia ter feito mais cursos de ciências na Universidade de Boston, Jack.
¯ A luz não se reflete diretamente sobre o metal ¯ disse Graham. Ryan sentiu que era o único tapado na sala. E fora o escolhido, é claro, para escrever o Relatório Especial sobre Informações Confidenciais. ¯ O que reflete é a camada óptica. Para aplicações muito precisas, como por exemplo um telescópio astronômico, a camada sobre o espelho tem a aparência de um pouco de gasolina sobre uma poça d'água.
¯ Nesse caso, por que usar o metal? ¯ quis saber Jack. O major respondeu:
¯ Usa-se metal para manter a superfície refletora tão refrigerada quanto possível. Na verdade estamos tentando abandonar os metais. Projeto AD-AMANT, ou seja, Desenvolvimento Acelerado de Materiais Avançados e Novos Grupos de Tecnologia. Esperamos que o próximo espelho seja feito de diamante.
¯ O quê?
¯ Diamante artificial feito de puro carbono-12, que é um isótopo do carbono comum e serve perfeitamente para nós. O problema é a absorção de energia ¯ continuou o major. ¯ Se a superfície retém muita luz, a energia térmica pode arrancar a camada refletora do vidro e então o espelho se quebra. Vi isso acontecer uma vez com um espelho de meio metro de diâmetro. Soou como Deus estalando os dedos. Com o diamante de carbono-12 podemos ter um material que é quase um supercondutor de calor. Permite um aumento na densidade de potência, com um espelho menor. A General Electric acaba de desenvolver um método para obter diamantes com a qualidade de pedras preciosas a partir do carbono-12. Candi já está trabalhando para ver como podemos montar um espelho com esse material.
Ryan deu uma olhada em suas trinta páginas de anotações, depois esfregou os olhos.
¯ Major, com a permissão do general, o senhor vem a Langley comigo. Gostaria que atualizasse os conhecimentos de nosso pessoal de Ciência e Tecnologia, e queria que tomasse conhecimento de todas as informações que possuímos sobre o projeto soviético. Tudo bem para o senhor? ¯ Jack perguntou a Parks. O general concordou com um aceno de cabeça.
Ryan e Gregory saíram juntos. Precisava-se de um passe para sair, também. Os guardas haviam trocado de turno, mas encaravam a todos com igual seriedade. Quando chegaram ao estacionamento, o major disse que o Jaguar XJS de Ryan era "bárbaro". Ainda usam esse termo?, perguntou-se Jack.
¯ Como é que um fuzileiro chega a trabalhar para a Agência? ¯ indagou Gregory, admirando o estofamento de couro. E onde consegue grana para comprar um carro desses?
¯ Eles me convidaram. Antes disso eu lecionava história em An-napolis. ¯ Nada como ser o famoso Sirjohn Ryan. Bem, em compensação não terei o nome em nenhum livro didático sobre laser...
¯ Que escola freqüentou?
¯ Bacharelado na Universidade de Boston, e fiz mestrado aqui, bem do outro lado do rio, em Georgetown.
¯ Você não disse que era doutor ¯ observou o major. Ryan soltou uma risada antes de responder:
¯ É um campo muito diferente, amigo. Tenho um bocado de dificuldade para entender que diabos você estão fazendo, mas apesar disso fui incumbido de explicar o que significa para os... bem, para as pessoas envolvidas nas negociações sobre redução de armamentos. Tenho trabalhado com eles nos últimos seis meses.
Gregory soltou um grunhido.
¯ Aquela turma quer me colocar para fora dos negócios. Querem entregar tudo.
¯ Eles também têm um emprego ¯ concedeu Jack. ¯ Preciso de sua ajuda para convencê-los de que seu trabalho é importante.
¯ Os russos acham que é importante.
¯ É. Aliás, foi o que acabamos de ver, não foi?
Bondarenko desceu do avião e teve uma surpresa agradável ao encontrar um carro oficial aguardando por ele. Era da Defesa Aérea. O general Pokryshkin havia se adiantado. O dia de trabalho tern^inara, e o coronel pediu ao motorista que o levasse para casa. Escreveria o relatório no dia seguinte, apresentá-lo-ia ao coronel Filitov, e talvez depois fosse explicá-lo ao próprio ministro. Perguntou-se depois, saboreando um copo de vodca, se Pokryshkin não o teria manobrado ¯ não conhecia a expressão ocidental "engraxado" ¯ o suficiente para causar uma falsa impressão. Não era o suficiente, pensou o major. O general fizera um bom trabalho vendendo a imagem do programa e a sua própria, mas nada disso era pokazhuka. Não falharam no teste e tinham sido honestos ao detalhar seus problemas. Tudo que pediam era o que realmente necessitavam. Não, Pokryshkin tinha uma mis-são a realizar, disposto a colocar sua carreira, senão em segundo plano, pelo menos ao lado de seus ideais; e isso era tudo o que se podia pedir razoavelmente de alguém. Se estava construindo seu próprio império, pelo menos era um império que valia a pena construir.
A rampa de acesso fora construída de maneira a parecer ao mesmo tempo singular e corriqueira. A alameda tinha uma aparência comum, com um passeio coberto que abrigava noventa e três lojas, mais um agrupamento de cinco pequenas salas de projeção. Havia seis lojas de sapatos e três joalherias. Combinando com a localização oeste do conjunto, existia uma loja de artigos esportivos que possuía uma parede cheia de rifles de caça Winchester Modelo 70, um artigo que não se via freqüentemente na Costa Leste. Três estabelecimentos de roupas masculinas pontilhavam a alameda, além de sete lojas femininas. Uma delas ficava ao lado da loja de armas.
Tal fato era conveniente para a proprietária de Folhas de Eva, uma vez que a loja de armas possuía um sofisticado sistema de alarme contra roubos, o que, combinado à segurança da galeria, perniitia que ela mantivesse um estoque razoável de roupas femininas exclusivas, sem aumentar muito a taxa do seguro. A loja começara com pouco movimento ¯ a moda de Paris, Roma e Nova York não era muito bem aceita a oeste do rio Mississípi, exceto talvez na orla do Pacífico ¯, porém uma boa parte da comunidade acadêmica vinha de ambas as costas e procurava manter seus hábitos. Não foi necessário muito tempo de uso nos clubes de campo para que Ann Klein II se tornasse uma marca procurada, mesmo nas montanhas Rochosas.
Ann entrou na loja. A proprietária sabia que se tratava de uma cliente fácil de vestir. O manequim 42 lhe caía perfeitamente, e Ann só expe-rimentava as roupas para ver como ficavam. Nunca precisava fazer ajustes ou alterações, o que facilitava a vida de todos e permitia que a proprietária lhe concedesse um desconto de 5 por cento em tudo que comprava. Além disso, a cliente costumava gastar um bom dinheiro, nunca menos de 200 dólares por visita. Ela vinha regularmente, a cada seis semanas. A proprietária não sabia exatamente qual era a profissão da freguesa, mas ela agia como uma médica. Era muito precisa e cuidadosa em relação a todos os detalhes. Estranhamente, pagava em espécie, o que se constituía em mais um motivo para o desconto no preço, pois as companhias de cartões de crédito sempre retinham uma percentagem em troca da garantia de pagamento. Isso devolvia os 5 por cento à proprietária, e mais um pequeno lucro. Era uma pena, pensou ela, que todos os clientes não fossem assim. Ann tinha olhos de um castanho límpido, e cabelos da mesma cor levemente ondulados, que lhe chegavam até os ombros. Era meio baixa e magra, e seus movimentos eram firmes e precisos. Outra coisa que chamava a atenção era o fato de que nunca usava qualquer tipo de perfume, motivo pelo qual a proprietária acreditava que a cliente era médica. Isso e as horas que escolhia para visitar a loja ¯ nunca vinha nas horas de movimento, como se não tivesse patrão e controlasse os próprios horá-rios. A profissão de médica encaixava-se perfeitamente com esses fatos, e isso agradava à proprietária.
Ela escolheu uma combinação de saia e blusa, saindo em direção aos provadores no fundo da loja. Embora a proprietária não se desse conta, a cliente utilizava sempre o mesmo cubículo. No interior, Ann abriu o zíper da saia e desabotoou a blusa, porém antes de vestir as roupas novas enfiou a mão sob o banco de madeira maciça onde se podia sentar e extraiu de lá um magazine de microfilme, colocado ali na noite anterior com fita adesiva. Guardou-o na bolsa. A seguir vestiu o novo conjunto, saindo depois para admirar-se nos espelhos.
Como é que as mulheres americanas conseguem usar esse lixo?, perguntou Tânia Bisyarina à própria imagem sorridente no espelho. Tinha o posto de capitão no Departamento S do Primeiro Diretório da KGB, também conhecido como "Estrangeiro", respondia perante o Depar-tamento T, que cuidava da espionagem científica, e trabalhava em cooperação com a Comissão Estatal de Ciência e Tecnologia. A exemplo de Edward Foley, ela "dirigia" um único agente, o de codinome Livia.
O preço do conjunto era de 273 dólares, e Bisyarina pagou em dinheiro. Disse a si mesma que precisava lembrar-se de usar aquela roupa quando viesse da próxima vez, mesmo que ficasse um lixo.
¯ Até breve, Ann ¯ despediu-se a dona da loja.
Esse era o único nome pelo qual era conhecida em Santa Fé. Tânia voltou-se e acenou em resposta. A proprietária era uma mulher agradável, em toda a sua estupidez. Como qualquer bom agente de informações, a soviética tinha uma aparência comum e agia normalmente. No contexto daquela região, aquilo implicava vestir-se de forma moderadamente requintada, dirigir um carro decente mas não extravagante e viver num estilo que aparentava conforto sem ostentação. Sob esse aspecto, a América se constituía num objetivo fácil. Se a pessoa tivesse o estilo de vida apropriado, ninguém questionava sua origem. O ato de atravessar a fronteira tinha sido um exercício quase cômico. Havia passado um longo tempo preparando seus documentos e decorando sua "história pessoal", e tudo o que a Patrulha de Fronteira fizera fora deixar que um cachorro farejasse o carro à procura de drogas ¯ ela havia entrado através da fronteira mexicana em El Paso ¯ e com um sorriso dera o sinal para que atravessasse. E por isso ¯ ela sorriu interiormente, já passados oito meses do acontecido ¯ fiquei toda excitada.
Levou quarenta minutos para chegar em casa, verificando como sempre se ninguém a seguia, e uma vez lá revelou o filme e tirou cópias; não exatamente da maneira de Foley, mas de forma muito parecida. Nesse caso, ela obteve fotografias de documentos verdadeiros do governo. Colocou a tira revelada num pequeno projetor e focalizou a imagem na parede branca de seu quarto. Bisyarina tivera uma formação técnica, um dos motivos de sua missão atual, e tinha idéia de como avaliar o material recebido. Teve certeza de que seus superiores ficariam muito contentes com as informações.
Na manhã seguinte ela fez a entrega, e as fotografias viajaram através da fronteira do México numa carreta pertencente a uma companhia de transportes pesados com sede em Austin. Estavam entregando maquinaria de perfuração de petróleo. Por volta do fim do dia, as fotografias estariam na embaixada soviética na Cidade do México. No dia seguinte, chegariam a Cuba, onde seriam colocadas a bordo de um avião da Aeroflot diretamente para Moscou.
Catalisadores
¯ Então, coronel, qual é sua avaliação? ¯ perguntou Filitov.
¯ Camarada, Estrela Brilhante pode ser o programa mais importante na União Soviética ¯ afirmou Bondarenko com convicção. Entregou quarenta páginas escritas à mão. ¯ Aqui está o primeiro esboço do meu relatório, que escrevi no avião. Terei uma cópia datilografada corretamente hoje, mas achei que o senhor...
¯ Agiu bem. Soube que realizaram um teste...
¯ Foi há trinta e seis horas. Assisti ao teste e me foi permitido inspecionar grande parte do equipamento antes e depois. Fiquei profundamente impressionado com as instalações e as pessoas que as dirigem. Se me for permitido um comentário, o general Pokryshkin é um excelente oficial, e o homem ideal para o posto que ocupa. Decididamente ele não parece um militar de carreira, mas um oficial progressista da melhor qualidade. Lidar com aqueles acadêmicos no alto da montanha não é uma tarefa fácil.
Misha concordou com um grunhido.
¯ Sei tudo sobre acadêmicos. Está me dizendo que eles os organizou como uma unidade militar?
¯ Não, camarada coronel, mas Pokryshkin aprendeu como mantê-los relativamente felizes e produtivos ao mesmo tempo. Existe um certo... senso de missão em Estrela Brilhante que raramente encontramos, mesmo entre os militares. Não digo isso levianamente, Mikhail Semyonovich. Fiquei impressionado com todos os aspectos da operação. Talvez aconteça o mesmo nas instalações de programas espaciais.
Pelo menos foi o que ouvi falar, mas, como nunca estive em nenhuma delas, não posso tecer comparações.
¯ E quanto aos sistemas?
¯ Estrela Brilhante ainda não é uma arma. Persistem certas dificuldades técnicas. Pokryshkin as identificou e explicou-as a mim com detalhes. Por enquanto ainda não passam de um programa em fase experimental, porém os avanços importantes já foram obtidos. Dentro de mais alguns anos será uma arma de grande potencial.
¯ E quanto ao custo? ¯ indagou Misha, provocando um encolher de ombros.
¯ Impossível avaliar. Irá custar muito no total, porém a parte mais cara do programa, relativa à pesquisa e desenvolvimento, está em grande parte completa. Os custos reais de produção e engenharia devem ser menores do que se poderia esperar, quero dizer, da arma em si. Não posso avaliar os custos do equipamento de apoio, os radares e satélites de vigilância. De qualquer modo, isso não fazia parte da minha missão. ¯ Como os militares em qualquer parte do mundo, o coronel pensava em termos de missão, e não de orçamento.
¯ E quanto à confiabilidade do sistema?
¯ Isso será um problema, mas possível de manejar. Os geradores de laser, individualmente, são complexos e difíceis de manter. Por outro lado, se forem construídos em maior número do que o sistema realmente utiliza, poderíamos facilmente realizar um programa de manutenção alternada, de maneira a termos sempre o número necessário em linha. Na verdade, foi esse o método proposto pelo engenheiro-chefe do projeto.
¯ Isso quer dizer que eles resolveram o problema da potência de saída?
¯ Meu esboço descreve genericamente esse ponto. O relatório final será mais especifico.
¯ Em termos que até eu possa entender? ¯ perguntou Misha, permitindo-se um sorriso.
¯ Camarada coronel, sei que possui um conhecimento maior de assuntos técnicos do que demonstra ¯ respondeu Bondarenko, sério. ¯ Os aspectos importantes de nosso avanço na potência aplicada são na verdade teoricamente simples. Os detalhes de engenharia envolvidos podem ser bastante complexos, mas são facilmente confirmados através de um novo projeto do dispositivo gerador de laser. A exemplo da primeira bomba atômica, uma vez que a teoria foi estabelecida, a construção pôde ser realizada.
Excelente! Pode terminar seu relatório até amanhã?
¯ Sim, camarada coronel.
Misha levantou-se e Bondarenko fez o mesmo.
¯ Pretendo ler seu relatório preliminar esta tarde. Traga-me o documento final até amanhã, e vou estudá-lo durante o fim de semana. Na semana que vem vamos apresentá-lo ao ministro.
Os caminhos de Alá certamente são misteriosos, pensou o Arqueiro. Por mais que desejasse abater um avião de transporte soviético, tudo o que deveria fazer no momento era retornar ao seu lar, a cidade ribeirinha de Ghazni. Havia apenas uma semana que deixara o Paquistão. Uma tempestade local mantivera as aeronaves soviéticas em terra nos últimos dias, permitindo que viajasse rapidamente. Chegara com o novo carregamento de mísseis e encontrara seu líder planejando um ataque ao aeroporto retirado da cidade. O inverno era inclemente com todos, e os infiéis haviam deixado os postos avançados de sentinela para os soldados afegães a serviço do governo traidor em Ka-bul. O que ignoravam, entretanto, era que o major comandante do batalhão que patrulhava o perímetro externo no campo trabalhava para os mudjahidin. Quando chegasse a hora, uma parte estaria desguarnecida, permitindo que trezentos guerrilheiros atacassem diretamente o acampamento soviético.
Seria uma grande ataque. Os guerreiros da liberdade estavam organizados em três companhias de cem homens cada uma. Todos iriam atacar; o líder compreendia perfeitamente a necessidade de uma reserva tática, porém tinha uma grande área a cobrir com poucos homens. Representava um risco, mas seus homens vinham aceitando riscos como esse desde 1980. O que importava mais um? Como de hábito, o líder estaria no local de maior perigo, e o Arqueiro ficaria bem próximo. Iriam dirigir-se para o aeroporto pelo lado a favor do vento. Os soviéticos tentariam decolar com suas aeronaves ao menor sinal de perigo, tanto para retirá-los da área de perigo, como para providenciar apoio defensivo. O Arqueiro avistou através dos binóculos quatro helicópteros MI-24, todos equipados com armamentos pendentes das asas curtas de suporte. Os mudjahidin só possuíam um lançador de morteiros capaz de atingi-los no chão, e por esse motivo o Arqueiro ficaria um pouco atrás da onda de assalto para fornecer apoio. Não havia tempo para montar sua armadilha habitual, porém à noite isso não era importante.
Cem metros à frente dos outros, o líder dos guerrilheiros encontrou-se no local combinado com o major do Exército afegão. Abraçaram-se e louvaram o nome de Alá. O filho pródigo retornara ao rebanho islâmico. O major informou que dois dos comandantes em sua companhia prontificavam-se a agir conforme o planejado, porém o comandante da Companhia Três permanecia fiel aos soviéticos. Um sargento de confiança mataria esse oficial em poucos minutos, permitindo que o setor fosse usado para a fuga. Ao redor deles, os homens aguardavam no vento cortante. Quando o sargento tivesse cumprido sua mis-são, devia disparar um foguete de iluminação.
O capitão soviético e o tenente afegão eram amigos, o que surpreendia a ambos nos momentos de reflexão. Uma das coisas que ajudava era que o oficial soviético fazia um esforço real no sentido de respeitar os hábitos dos moradores locais, e seu companheiro afegão acreditava que o marxismo-leninismo era o caminho do futuro. Qualquer coisa seria melhor do que as rivalidades e vendetas tribais que caracteriza-ram seu povo infeliz durante todo o período histórico do qual tinha lembrança. Reconhecido há algum tempo como receptivo a conversas ideológicas, fora levado para a União Soviética, onde lhe mostraram como a vida era boa ¯ comparada ao Afeganistão ¯, especialmente nos serviços de saúde pública. O pai do tenente morrera, quinze anos antes, de infecção proveniente de um braço quebrado, e, como ele não gozava da simpatia do chefe local, seu filho único não tivera uma adolescência muito agradável.
Juntos, os dois homens examinavam um mapa, decidindo quais se-riam as atividades das patrulhas na semana seguinte. Precisavam guar-dar constantemente a área contra ataques dos bandidos mudjahidin. Naquele dia, as patrulhas estavam a cargo da Companhia Dois.
Um sargento entrou na casamata com um formulário. Seu rosto não demonstrou a surpresa que sentiu ao encontrar dois oficiais em vez de um. Passou o envelope ao tenente afegão com a mão esquerda. Na palma da mão direita estava a empunhadura de uma faca, escondida verticalmente na manga larga de sua túnica em estilo russo. Tentou permanecer impassível enquanto o capitão soviético olhava para ele e ficou observando o oficiai cuja morte era sua responsabilidade. Finalmente, o soviético desviou o olhar para a estreita abertura de tiro da casamata. Quase como uma deixa, o tenente afegão jogou a mensagem sobre a mesa de mapas, delineando sua resposta.
O soviético voltou-se abruptamente. Algo o alertara, e ele soube que alguma coisa não estava correndo bem antes que tivesse tempo de determinar exatamente o quê. Viu o braço do sargento subir num rápido movimento ascendente em direção à garganta de seu amigo. O capitão soviético mergulhou na direção de seu fuzil, enquanto o tenente recuava para evitar o primeiro golpe. Só teve sucesso porque a faca do sargento prendeu-se na longa manga da túnica. Soltando uma imprecação, ele liberou a lâmina e projetou-a para a frente, atingindo seu alvo na altura do abdômen. O tenente gritou, mas conseguiu agarrar o braço do sargento antes que a faca atingisse seus órgãos vitais. Os rostos dos dois homens estavam próximos o suficiente para que cada um sentisse o hálito do outro. A face de um parecia muito chocada para sentir medo, e a do outro expressava raiva. No final, a vida do tenente foi salva pelo tecido largo da manga, enquanto o soviético liberava a trava de segurança do seu fuzil e disparava dez projéteis no flanco do assassino. O sargento caiu sem um gemido. O tenente levou a mão ensangüentada aos olhos. O capitão gritou, dando o alarme.
O ruído seco e metálico dos disparos do Kalashnikov percorreu os
O Arqueiro xingou ao ver as luzes se apagando no campo de pouso, a
Enquanto um helicóptero Mi-24 decolava primeiro, lutando contra o ar rarefeito e o vento forte para ganhar altitude, os projéteis do morteiro começaram a atingir o interior do perímetro do aeroporto. Uma carga incendiaria de fósforo caiu a poucos metros de outro Hind, sua luz branca e Cante ateando fogo ao combustível do Mi-24, fazendo com que a tripulação saltasse, um dos homens em chamas. Mal tinham chegado a uma distância segura quando o helicóptero explodiu, levando outro Hind com ele. O último aparelho levantou vôo pouco depois, balançando para trás e desaparecendo na noite escura, com as luzes apagadas. Ambos retornariam ¯ o Arqueiro tinha certeza ¯, porém os homens conseguiram eliminar dois ainda no chão, o que ia além de sua expectativa.
Notou que todo o resto corria mal. Cargas de morteiro caíam em frente às tropas de assalto. Viu as chamas provenientes do cano das armas e dos explosivos. Acima dos ruídos veio outro som do campo de batalha: os gritos de guerra dos combatentes e os lamentos dos feridos. A essa distância era difícil distinguir os soviéticos dos afegães. Mas não era um assunto que o preocupasse.
O Arqueiro não precisava pedir a Abdul que perscrutasse os céus à procura dos helicópteros. Tentou usar o lançador de mísseis para localizar o calor invisível das turbinas. Não encontrando nada, voltou os olhos para a única aeronave que ainda podia ver. Cargas de morteiros explodiam agora ao redor do An-26, mas a tripulação já acionara os motores. Dentro de instantes começou a perceber um movimento lateral do aparelho. O Arqueiro fez uma avaliação do vento e concluiu que o avião de transporte tentaria decolar contra o vento e depois faria uma volta para a esquerda, na direção da área mais segura do aeroporto. Não seria fácil decolar naquele ar rarefeito, e quando o piloto fizesse a curva iria diminuir o poder de sustentação das asas à procura de velocidade. O Arqueiro bateu no ombro de Abdul e começou a correr para a esquerda. Quando parou para olhar novamente, o avião soviético havia percorrido
O Arqueiro pôs-se de pé para dar ao míssil uma visão melhor do alvo, e imediatamente o rastreador sinalizou, ao "avistar" os motores aquecidos contra a noite fria e sem lua.
¯ U-Um! ¯ gritou o co-piloto acima dos ruídos dos motores e da batalha. Seus olhos estavam presos aos instrumentos enquanto o piloto lutava para manter firme o avião. ¯ V-R... rotação!
O piloto afrouxou a pressão no manche. O nariz se ergueu, e o An-26 bateu pela última vez na pista desigual e dura. O co-piloto imediatamente retraiu os trens de pouso para reduzir a resistência do ar, permitindo que a aeronave subisse mais depressa. O piloto realizou uma pequena curva para a direita, tentando evitar o que parecia ser uma maior concentração de fogo inimigo. Uma vez fora de perigo, tomaria o rumo norte para Kabul e a segurança. Atrás dele, o navegador não examinava as cartas. Em vez disso, lançava foguetes de iluminação providos de pára-quedas a cada cinco segundos. Não se destinavam a auxiliar as tropas terrestres e sim a enganar os mísseis lançados de terra. O manual dizia para lançá-los a cada cinco segundos.
O Arqueiro mediu cuidadosamente os intervalos entre os foguetes de iluminação. Podia perfeitamente escutar a mudança de tom no sinal emitido pelo rastreador quando eles caíam pela porta do compar-timento de carga ao lado direito do avião e se incendiavam. Se quisesse atingir o alvo, precisava apontar diretamente para o motor esquerdo e calcular a hora do disparo com precisão. Mentalmente já havia medido o ponto de maior aproximação, cerca de
Como sempre, sentiu um prazer quase sexual quando o lançador recuou em suas mãos. Os sons de batalha ao redor desapareceram enquanto o Arqueiro se concentrava na pequena chama amarela que aumentava de velocidade.
O navegador acabara de soltar mais um foguete quando o Stinger atingiu o motor esquerdo. Seu primeiro pensamento foi de ultraje: o manual estava errado! O engenheiro de vôo não tinha tais pensamentos. Automaticamente acionou o botão de emergência que desligava a turbina número um. Esse procedimento cortava o abastecimento de combustível, desligava a eletricidade, fazia com que a hélice girasse solta, e acionava os extintores de incêndio. O piloto pressionou o pe-dal de leme para compensar o balanço produzido pela perda de potência a bombordo e abaixou o nariz. Era uma manobra arriscada, mas precisava escolher entre velocidade e altitude, e decidiu que precisava acima de tudo de velocidade. O engenheiro avisou que o tan-que esquerdo de combustível estava furado, mas Kabul ficava a apenas
¯ Luz de alerta de incêndio no número um!
¯ Acione os extintores.
¯ Já acionei! Despejou tudo. O piloto resistiu à tentação de olhar para o lado. Estavam apenas
a uma centena de metros do chão, e não podia deixar que nada interferisse em sua concentração. Sua visão periférica captou uma língua de fogo amarelo-alaranjada, mas forçou os olhos a se dirigirem do horizonte para o medidor de velocidade do ar, para o altímetro e de volta ao horizonte.
¯ Perdendo altitude ¯ anunciou o co-piloto.
¯ Inclinar os flaps mais 10 graus ¯ ordenou o piloto, considerando que tinha velocidade suficiente para arriscar a manobra. O co-piloto abaixou-se para cumprir a ordem e assim fazendo condenou a aeronave e seus passageiros.
A explosão do míssil danificara a tubulação hidráulica de comando dos flaps do lado esquerdo. O aumento de pressão necessária para mudar a inclinação arrebentou os dois tubos, e o flap da asa esquerda retraiu-se de uma vez, sem aviso. A perda de sustentação de apenas um dos lados quase fez com que a aeronave girasse no ar, porém o piloto percebeu e conseguiu nivelar. Muitas coisas erradas aconteciam ao mesmo tempo. O Antonov começou a perder altitude, e o piloto gritou, pedindo mais potência, sabendo que o motor do lado direito já estava em seu limite. Rezou para que pudesse ainda salvar seu avião, porém mantê-lo nivelado era praticamente impossível, e perdiam altitude rapidamente no ar rarefeito. Precisava aterrissar. No último momento, o piloto acendeu as luzes, à procura de um lugar plano. Avistou apenas um campo repleto de rochas, e usou sua última reserva de controle para apontar a aeronave em queda para um espaço entre as duas maiores. Um segundo antes que o avião atingisse o chão, ele soltou uma imprecação, não de desespero, mas de pura raiva.
Por um instante o Arqueiro pensou que a aeronave pudesse escapar. A luz produzida pelo míssil não dava margem a enganos, mas por vários segundos nada aconteceu. A seguir veio a língua de fogo anunciando que o alvo fora fatalmente atingido. Trinta segundos depois, houve uma explosão no solo, talvez a
Embora ainda não soubesse, o ataque em Ghazni estava se desmantelando. A Companhia Três do Exército afegão ainda atirava no vazio, e o oficial soviético presente não conseguia fazer com que as coisas corressem bem. O comandante soviético reagira instantaneamente ao som do fogo inimigo e colocara seus homens em posição ao cabo de dois minutos de confusão. Os afegães agora enfrentavam um batalhão completo e alerta de tropas regulares, apoiados por armas pesadas e abrigados em casamatas. Disparos intimidatórios de metralhadoras conservaram a frente de ataque a
O Arqueiro percebeu que alguma coisa estava errada quando os morteiros russos começar a atirar foguetes de iluminação num lugar diferente. Um helicóptero disparava foguetes e suas metralhadoras sobre os guerrilheiros, porém não conseguia manter a pontaria sobre o alvo. A seguir ouviu os gritos de seus camaradas. Não os berros excitados de incentivo ao ataque, mas os gemidos de alerta dos homens em reti-rada. Abaixou-se e concentrou-se em sua arma, consciente de que agora seus serviços seriam mais necessários do que nunca. O Arqueiro mandou que Abdul encaixasse sua unidade rastreadora de reserva em outro tubo lançador. O jovem fez em menos de um minuto o que lhe fora ordenado.
¯ Lá! ¯ disse Abdul. ¯ Do lado direito.
¯ Estou vendo.
Uma série de clarões lineares apareceu no céu. O Hind disparava seus foguetes. Apontou o lançador para o local e foi recompensado com o sinal de aquisição do alvo. Não sabia exatamente a distância ¯ é muito difícil julgar distâncias à noite ¯, porém resolveu arriscar. O Arqueiro aguardou até que o som se estabilizasse, e disparou o segundo Stinger da noite.
O piloto do Hind avistou o lançamento. Estivera pairando uma centena de metros acima dos foguetes de iluminação que desciam de pára-quedas, e puxou seu controle para mergulhar entre eles. Funcionou. O míssil perdeu o alvo inicial e atingiu diretamente um dos foguetes incandescentes, errando o helicóptero por apenas
O Arqueiro deixou-se cair no chão atrás do rochedo que escolhera como abrigo. Os foguetes caíram a uma centena de metros de sua posição. Então desta vez a luta era de homem para homem... e esse pilo-to parecia muito habilidoso. Apanhou o segundo lançador. O Arqueiro sempre rezava por uma situação como essa.
Mas o helicóptero tinha desaparecido agora. Onde estaria?
O piloto virará o Hind a favor do vento, utilizando essa manobra, como lhe fora ensinado, para encobrir o ruído do motor. Pediu pelo rádio que fossem atirados mais foguetes de iluminação desse lado do aeroporto e foi atendido quase imediatamente. Os soviéticos faziam de tudo para apanhar um lançador de mísseis. Enquanto o outro helicóptero no ar atacava os mudjahidin em retirada, este concentraria seus esforços sobre o atirador de SAM. A despeito do perigo envolvido, era uma missão que o piloto desejava acima de tudo. Os lançadores de mísseis constituíam-se em seus inimigos pessoais. Conservou o aparelho fora do alcance conhecido dos Stinger e aguardou que os foguetes iluminassem o terreno baixo.
O Arqueiro usava novamente a unidade rastreadora para tentar localizar o inimigo. Não era uma forma muito eficiente de busca, porém o Mi-24 devia estar em algum lugar do arco que seu conhecimento das táticas soviéticas podia prever com facilidade. Em duas oportunidades obteve um breve sinal sonoro, à medida que o helicóptero dançava para a esquerda e para a direita, alterando também a altitude, num esforço consciente para tornar impossível a tarefa do Arqueiro. Esse era um inimigo experiente, disse para si mesmo o guerrilheiro. Sua morte seria mais do que satisfatória. Clarões pontilhavam o céu acima, porém ele sabia que a luminosidade desigual produziria condições ruins de visibilidade enquanto ele ficasse imóvel.
¯ Estou vendo um movimento ¯ informou o artilheiro. ¯ Posição: dez horas.
¯ É o lugar errado ¯ afirmou o piloto.
Moveu o controle para a direita e deslizou horizontalmente enquanto seus olhos perscrutavam o solo rochoso. Os soviéticos haviam capturado vários Stinger americanos e os testaram exaustivamente com o fim de determinar sua velocidade, alcance e sensibilidade. O piloto calculou que estava pelo menos
¯ Apanhe um foguete de fumaça ¯ disse o Arqueiro.
Abdul só tinha um deles. Tratava-se de um dispositivo de plástico com aletas, pouco mais do que um brinquedo. Fora desenvolvido para o treinamento de pilotos da Força Aérea americana, para simular a sensação ¯ o terror ¯ de sentir-se sob o fogo de mísseis. Ao custo de 6 dólares, tudo o que o pequeno artefato podia fazer era voar em linha reta por alguns segundos, desprendendo um rastro fino de fumaça. Tinham sido fornecidos aos mudjahidin meramente para assus-tar os pilotos soviéticos quando os SAM acabassem, porém o Arqueiro encontrara um uso real para eles. Abdul correu aproximadamente
¯ Agora, russo, onde está você? ¯ perguntou o Arqueiro à noite.
¯ Tem alguma coisa na frente. Tenho certeza de que alguma coisa se moveu ¯ disse o artilheiro.
¯ Vamos ver. ¯ O piloto ativou seus próprios controles e disparou dois foguetes, que atingiram o solo a
¯ Agora! ¯ gritou o Arqueiro. Avistara o ponto de onde o soviético lançara, e apontara o lançador. O receptor infravermelho começou a sinalizar.
O piloto apavorou-se quando viu a chama rápida de um foguete, mas antes que realizasse qualquer manobra percebeu que não iria atingi-lo. Tinha sido lançado próximo ao ponto onde ele disparara momentos antes.
¯ Peguei você! ¯ gritou do interior da cabine. O artilheiro começou a disparar na direção do local com a metralhadora.
O Arqueiro viu as balas traçadoras e escutou os projéteis batendo contra a rocha, à direita. Agora, sim! Sua pontaria era quase perfeita. Usando suas próprias armas, o Hind deu ao Arqueiro uma mira perfeita. E o terceiro Stinger foi lançado.
¯ Dois deles! ¯ gritou o artilheiro pelo intercomunicador.
O piloto já estava mergulhando e desviando, mas desta vez não havia nenhum foguete de iluminação por perto. O Stinger explodiu contra uma das lâminas dos rotores, e o helicóptero caiu como uma pedra. O piloto conseguiu ainda retardar a velocidade da queda, mas mesmo assim bateu no chão com muita força. Miraculosamente, não houve fogo. Um momento depois apareceram homens armados à sua janela. O piloto percebeu que um deles era um capitão soviético.
¯ Está bem, camarada?
¯ Minhas costas... ¯ gemeu o piloto.
O Arqueiro já se movia. Havia abusado o suficiente da boa vontade de Alá por uma noite. Os dois lançadores deixaram para trás os tubos vazios e correram a se juntar aos guerrilheiros em retirada. Se os soldados soviéticos os tivessem perseguido, poderiam tê-los alcançado. Mas, em vez disso, o comandante ordenou que ficassem onde esta-vam, e o único helicóptero sobrevivente contentou-se em circular sobre o perímetro do aeroporto. Meia hora depois, o Arqueiro soube que o líder morrera. A claridade do dia traria as aeronaves soviéticas para apanhá-los no aberto, e os guerrilheiros precisavam atingir logo a proteção dos campos rochosos. Porém ainda havia mais uma coisa a fazer. O Arqueiro partiu com Abdul e mais três homens para encontrar os destroços do Antonov abatido. O preço dos mísseis Stinger era a inspeção de cada aeronave derrubada, para procurar equipamentos que pudessem interessar à CIA.
O coronel Filitov terminou suas anotações no diário. Como Bondaren-ko dissera, seus conhecimentos sobre assuntos técnicos eram muito mais amplos do que se poderia suspeitar ao examinar suas credenciais acadê-micas. Depois de quarenta anos nos altos escalões do Ministério da Defesa, Misha tornara-se um autodidata em assuntos técnicos que iam desde trajes de proteção contra gases até equipamentos de comunicação em có-digo, e... geradores de laser. O que eqüivale a dizer que ele não compre-endia a teoria tanto quanto desejava, mas podia descrever o equipamento em si tão bem quanto os engenheiros que o haviam montado. Levou qua-tro horas para transcrever tudo em seu diário. Aqueles dados precisavam ser enviados. As implicações eram por demais assustadoras.
O problema com o sistema de defesa estratégica era que nenhuma arma fora considerada "ofensiva" ou "defensiva" por si só. A natureza de qualquer arma, como a beleza de qualquer mulher, residia nos olhos de quem a contemplava ¯ ou na direção para a qual estava apon-tada ¯, e através da história o sucesso militar era determinado pelo equilíbrio de elementos ofensivos e defensivos.
A estratégia nuclear soviética, disse Misha a si mesmo, fazia mais sentido do que a do Ocidente. Os estrategistas soviéticos não consideravam a guerra nuclear inimaginável. Aprenderam a ser pragmáticos: o problema, ainda que complexo, possuía uma solução ¯ mesmo que não fosse perfeita ¯, e, ao contrário de muitos pensadores ocidentais, partiam do princípio de que viviam num mundo imperfeito. A estratégia soviética mudara muito desde a Crise dos Mísseis em Cuba, em 1962 ¯ o evento matara o homem que recrutara Filitov, o coronel Oleg Penkovsky ¯, e estava baseada numa simples frase: "Limitação de Danos". O problema não residia em destruir o inimigo com armas nucleares. Quando se tratava de armas nucleares, era mais uma questão de não destruir tanto, eliminando todos que poderiam negociar a fase de "término da guerra". O problema que ocupava as mentes soviéticas era o de impedir que armas nucleares inimigas destruíssem a União Soviética. Com vinte milhões de mortos em cada uma das duas guerras mundiais, os soviéticos já haviam provado destruição suficiente e não desejavam mais.
Tal tarefa não era considerada fácil, mas a razão de sua necessidade era tanto política quanto técnica. O marxismo-leninismo apresenta a História como um processo: não mera coleção de fatos passados, mas uma expressão científica da evolução social do homem, que irá ¯ precisará ¯ culminar no reconhecimento coletivo da humanidade de que o marxismo-leninismo é a forma ideal para toda a sociedade humana. Um marxista convicto acreditava na total supremacia do seu credo com tanta fé quanto cristãos, judeus e muçulmanos acreditavam na vida após a morte. Da mesma maneira que as comunidades religiosas através da História demonstraram sua vontade de espalhar suas boas novas com ferro e fogo, também era dever do marxista tornar realidade sua visão, da maneira mais rápida possível.
A dificuldade do caso, claro, se constituía em que nem todos no mundo partilhavam da mesma visão histórica que o marxismo-leninismo. A doutrina comunista atribuía esse distanciamento às forças reacionárias do imperialismo, do capitalismo, da burguesia, e de todo o seu panteão de inimigos, cuja resistência era previsível, mas cujas táticas não eram. Como um jogador cuja mesa de jogo estivesse "preparada", os comunistas "sabiam" que iriam ganhar, mas, também como um jogador, nos piores momentos admitiam relutantemente que a sorte ¯ ou mais cientificamente o acaso ¯ poderia alterar sua equação. Na ausência de uma visão mais científica, as democracias ocidentais também não possuíam senso comum, o que as tornava imprevisíveis.
Mais do que qualquer outro motivo, era por isso que o Leste temia o Oeste. Desde que Lênin assumira o controle ¯ e alterara o nome ¯ da União Soviética, o governo comunista havia investido milhões de dólares na espionagem do Oeste. E com todos os meios de informações, seu propósito mais importante era poder prever o que o Oeste poderia fazer, e o que faria.
Mas, a despeito de inúmeros sucessos táticos, o problema fundamental prevalecia: vez por outra, o governo soviético interpretara mal algumas ações e intenções ocidentais; e na idade nuclear a imprevisi-bilidade podia significar que um líder americano desequilibrado, inglês ou francês em menor proporção, poderia decretar o fim da União Soviética ou o adiamento do socialismo mundial por várias gerações
¯ para um soviético, a última alternativa era mais grave, uma vez que nenhum russo autêntico queria ver o mundo levado ao socialismo sob a liderança chinesa. O arsenal nuclear ocidental era a maior ameaça ao marxismo-leninismo; anular esse arsenal era a maior tarefa dos militares soviéticos. Contudo, ao contrário do Ocidente, os soviéticos não enxergavam a prevenção desse arsenal como a simples prevenção da guerra. Desde que os soviéticos viam o Ocidente como politicamente imprevisível, sentiam que não podiam satisfazer-se em impedir o seu uso. Precisavam ser capazes de eliminar, ou pelo menos degradar, o arsenal ocidental se uma crise ameaçasse avançar além das meras palavras.
O arsenal nuclear soviético era concebido precisamente com essa tarefa em vista. Aniquilar cidades e seus milhões de habitantes seria sempre um simples exercício. Destruir os mísseis que os inimigos possuíam não era. Anular mísseis americanos tinha significado o desenvolvimento de gerações de foguetes de alta precisão ¯ e de alto custo ¯ como os SS-18, cuja única missão era reduzir a pó os esquadrões de mísseis americanos Minuteman, bem como os submarinos e bases de bombardeiros. À exceção desses últimos, todos se encontravam distantes dos grandes centros populacionais; conseqüentemente, um ataque destinado a desarmar o Ocidente poderia ser lançado sem que isso resultasse necessariamente num holocausto em escala mundial. Ao mesmo tempo, os americanos não possuíam ogivas suficientes para ameaçar da mesma forma os mísseis soviéticos. Os soviéticos, portanto, tinham a vantagem de poder lançar um potencial ataque interceptador ¯ do tipo dirigido às armas, e não às pessoas.
A deficiência era naval. Mais da metade das ogivas americanas estavam depositadas nos submarinos nucleares. A Marinha americana acreditava que os submarinos de mísseis nunca haviam sido rastreados pelos seus correlativos soviéticos. Tal informação era incorreta. Foram rastreados exatamente três vezes em 27 anos, e nunca por mais de quatro horas. Apesar de uma geração inteira de trabalho realizado pela Marinha soviética, ninguém podia prever se esse objetivo seria alcançado. Os americanos admitiam que eles mesmos não conseguiam rastrear os próprios boomers, como eram conhecidos os submarinos portadores de mísseis. Por outro lado, os americanos podiam rastrear os submarinos soviéticos que levavam mísseis, e por esse motivo os soviéticos nunca depositaram neles mais do que uma fração de suas ogivas, e até recentemente nenhum dos lados conseguira basear armas interceptadoras em submarinos.
O jogo, porém, estava mudando novamente. Os americanos haviam produzido mais um milagre técnico. Seus artefatos lançados por submarino logo seriam mísseis Trident D-5, com capacidade de estourar alvos bem protegidos. Isso ameaçava a estratégia soviética com um reflexo do seu próprio potencial, ainda que um dos elementos cruciais do sistema fossem os Satélites de Posicionamento Global, sem os quais os submarinos americanos seriam incapazes de determinar suas próprias posições com precisão suficiente para atingir instalações subterrâneas de lançamento de mísseis. A lógica distorcida do equilíbrio nuclear estava novamente voltando-se sobre si mesma, como tinha de acontecer pelo menos uma vez a cada geração.
Já fora reconhecido antes que os mísseis eram armas ofensivas com uma missão defensiva e que a capacidade de destruir os oponentes era a fórmula clássica de evitar a guerra e alcançar os objetivos em tempo de paz. O fato de que tal poder, acumulado por ambos os lados, transformara a fórmula historicamente provada da intimidação unilateral em desencorajamento bilateral é que tornava indigesta essa solução.
Desencorajamento Nuclear: prevenir a guerra pela ameaça do holocausto mútuo. O que os dois lados diziam era, em essência: se matarem nossos civis indefesos, mataremos os seus. A defesa não era mais a proteção da sociedade e sim a ameaça de violência mútua. Misha sorriu. Nenhuma tribo de selvagens havia ousado formular tal idéia ¯ mesmo os povos mais bárbaros eram avançados demais para abrigar tais pensamentos, embora fosse isso precisamente o que os povos mais avançados do mundo haviam decidido, ou encontrado pelo caminho. Embora o desencorajamento funcionasse, significava que a União Soviética ¯ e o Ocidente ¯ vivia sob a ameaça de vários gatilhos. Ninguém achava que esta fosse uma situação satisfatória, porém os soviéticos haviam realizado o que consideravam o melhor dentro de uma barganha não vantajosa, projetando um arsenal estratégico com que podiam desarmar em grande escala o outro lado, se assim o exigisse uma crise mundial. Adquirindo a capacidade de eliminar grande parte do arsenal americano, tinham a vantagem de ditar as condições sob as quais seria disputada uma guerra nuclear, o que se constituía em termos clássicos um passo na direção da vitória, e, segundo a concepção soviética, a negativa do Ocidente de que a "vitória" era uma possibilidade na guerra nuclear era o primeiro passo na direção da própria derrota. Os teóricos de ambos os lados sempre reconheceram a natureza insatisfatória de toda a questão nuclear e sempre trabalharam em silêncio para lidar com ela de outras formas.
Por volta dos anos 50, tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética tinham iniciado as pesquisas de defesa contra mísseis balísticos, a última em Sary Saga, no sudoeste da Sibéria. Um sistema operacional soviético quase fora colocado em uso no final da década de 60, porém o advento das MIRV (ogivas múltiplas de reentrada independente) invalidara o trabalho de quinze anos ¯ perversamente, para os dois lados. A luta pela supremacia entre sistemas ofensivos e defensivos sempre tendia aos últimos.
Mas isso terminara. As armas laser e outros sistemas de projeção de energia, combinados à maior capacidade dos computadores, foram um verdadeiro salto quântico no campo da estratégia. Uma defesa confiável, como mencionava o relatório de Bondarenko ao coronel Filitov, transformava-se agora em possibilidade real. E o que significaria isso?
Significava que a equação nuclear estava destinada a retornar ao equilíbrio clássico entre ataque e defesa, e que ambos os elementos agora poderiam tomar parte na mesma estratégia. Os soldados profissionais achavam esse sistema satisfatório em teoria ¯ que homem deseja pensar em si mesmo como o maior assassino da História? ¯, mas agora as possibilidades táticas começavam a despertar em suas cabeças feias. Vantagem e desvantagem, movimentos e contramovimentos. Um sistema americano de defesa estratégica poderia invalidar toda a postura nuclear soviética. Se os americanos pudessem evitar que os SS-18 decolassem de suas bases em terra, então o primeiro ataque de desarmamento do qual dependiam os soviéticos para evitar os danos à Rodina não seria mais possível. Isso significava que todos os bilhões gastos na produção de mísseis balísticos teriam se tornado tão úteis quanto dinheiro jogado no mar.
Porém ainda havia mais. Da mesma maneira que o scutum dos le-gionários romanos era encarado pelos seus inimigos bárbaros como uma arma que lhes permitia golpear impunemente, nos dias atuais a Iniciativa de Defesa Estratégica poderia ser encarada como um escudo atrás do qual o inimigo podia lançar seu primeiro ataque para desarmar o oponente, usando depois suas defesas para reduzir ou mesmo eliminar os efeitos do ataque retaliatório resultante.
Esta visão, claro, era simplista. Nenhum sistema poderia ser à prova de falhas ¯ e mesmo que o sistema funcionasse, Misha sabia, os líderes políticos encontrariam uma maneira de usá-lo da pior maneira, pois sempre se podia contar com os políticos para isso. Um esquema viável de defesa estratégica teria o poder de acrescentar um novo elemento de incerteza à equação. Seria muito difícil que qualquer país no mundo pudesse eliminar todas as ogivas atacantes, e a morte de uns "poucos" vinte milhões de cidadãos seria uma coisa horripilante de se ver, mesmo para a liderança soviética. Mas até mesmo um sistema rudimentar de escudo espacial seria o bastante para invalidar qualquer idéia de contra-ataque.
Se os soviéticos possuíssem tal sistema, o escasso arsenal de contra-ataque dos Estados Unidos poderia ser anulado mais facilmente do que o soviético, assim como a situação estratégica que a União Soviética trabalhara durante trinta anos para manter inalterada. O governo soviético possuiria o melhor dos dois mundos, uma força de mísseis de precisão muito maior, com a qual eliminaria ogivas americanas, e um escudo para anular a maior parte do ataque retaliatório contra suas bases de mísseis de reserva ¯ e os sistemas americanos baseados no mar poderiam ser neutralizados com um ataque aos satélites de navegação GPS, sem os quais ainda poderiam atingir as cidades, mas a possibilidade de acertar silos de mísseis se perderia irrecuperavelmente.
O coronel Mikhail Semyonovich Filitov divisava o cenário que serviria de caso de estudo padrão para os soviéticos. Algumas crises irromperiam (a do Oriente Médio era a favorita, já que ninguém podia predizer o que aconteceria lá) e, enquanto Moscou se movimentasse para manter a situação estabilizada, o Ocidente interferiria ¯ desajeitada e estupidamente, claro ¯ e começaria a falar abertamente à imprensa sobre um iminente confronto nuclear. Os órgãos de Inteligência imediatamente passariam a Moscou a informação de que a possibilidade era real. O contingente de mísseis SS-18 da Força de Foguetes Estratégicos entraria secretamente em alerta, bem como as guarnições das novas armas laser baseadas em terra. Enquanto os altos escalões do Ministério das Relações Exteriores ¯ nenhuma das forças militares apreciava seus colegas diplomatas ¯ lutavam para ajeitar as coisas, o Ocidente fincaria pé e faria ameaças, talvez, de ataque a uma frota soviética para mostrar sua firmeza, e certamente mobilizando os exércitos da OTAN para uma ameaça de invasão à Europa Oriental.
O pânico começaria a espalhar-se de verdade ao redor do mundo. Quando o tom de retórica do Ocidente atingisse o máximo, as ordens de lançamento seriam enviadas à força de mísseis e trezentos SS-18 partiriam, enviando três ogivas para cada um dos silos de Minuteman americanos. Armas menores perseguiriam os submarinos e as bases de bombardeiros para limitar as perdas ao mínimo possível ¯ os soviéticos não desejavam exacerbar a situação mais do que o necessário. Simultaneamente, as armas laser desarmariam tantos satélites de reconhecimento e navegação quanto fosse possível, poupando entretanto os satélites de comunicações ¯ um gesto calculado como prova de "boas" intenções. Os americanos não seriam capazes de responder ao ataque antes que as ogivas soviéticas os atingissem. ¯ Misha preocupava-se com isso, mas fontes da KGB e da GRU tinham informado que havia sérias falhas no sistema de comando e controle americanos, além dos fatores psicológicos envolvidos. Provavelmente os americanos manteriam suas armas submarinas na reserva e lançariam os Minuteman restantes em direção aos silos soviéticos, porém era esperado que não mais de duzentas ou trezentas ogivas permanecessem após o primeiro ataque; muitas delas atingiriam silos vazios de qualquer forma, e o sistema de defesa destruiria muitas das armas atacantes.
Ao final da primeira hora, os americanos iriam perceber que a utilidade de seus mísseis baseados em submarinos estava grandemente reduzida. Mensagens constantes e cuidadosamente preparadas¯seriam enviadas pela Linha Quente entre Moscou e Washington: NAO PODEMOS DEIXAR QUE ISSO CONTINUE. Provavelmente os americanos iriam parar e pensar. Era esse o ponto importante: fazer as pessoas pararem e pensarem. Um homem poderia atacar cidades por impulso, ou num momento de raiva, mas não depois de refletir sensatamente sobre o assunto.
Filitov não estava preocupado com o fato de que cada um dos lados visse seus sistemas de defesa como um motivo de apoio para ataques ofensivos. Numa crise, entretanto, sua existência poderia diminuir o medo que antecede o lançamento ¯ se o outro lado não tiver defesa. Portanto, ambos os lados precisavam de seus sistemas de defesa. Eles tornariam o primeiro ataque muito improvável, e "isso" sim faria do mundo um lugar mais seguro. Os sistemas defensivos não poderiam mais ser contidos agora. Seria mais fácil deter a maré. Agradava ao velho soldado a idéia de que os mísseis intercontinentais, tão ofensivos à ética do guerreiro, poderiam finalmente ser neutralizados, e a morte na guerra retornaria a homens armados no campo de batalha, ao qual pertencia...
Bem, pensou ele, você está cansado, e é muito tarde para esse tipo de pensamento profundo. Terminou seu informe com os dados do relatório final de Bondarenko, fotografou-o e colocou o filme na caixa da tomada de força na parede.
Transferência de Documentos
O dia estava amanhecendo quando o Arqueiro encontrou os destroços do avião. Dez homens o acompanhavam, além de Abdul. Tinham precisado mover-se com rapidez. Tão logo o sol se erguesse sobre as montanhas, os soviéticos viriam. Observou de um outeiro os restos da aeronave. Ambas as asas haviam sido arrancadas ao primeiro impacto, e a fuselagem projetara-se para a frente ao longo de um aclive suave, rolando e se arrebentando, de modo que somente se podia reconhecer a cauda. Não havia como saber que fora preciso um piloto brilhante para conseguir tal efeito e que descer o avião mantendo algum tipo de controle fora praticamente um milagre. Gesticulou aos homens e andou rapidamente em direção ao corpo principal dos destroços. Ordenou a eles que procurassem armas, depois qualquer tipo de documentos. O Arqueiro e Abdul dirigiram-se ao que restara da cauda.
Como sempre, a cena do desastre apresentava contradições. Alguns dos corpos estavam despedaçados, enquanto outros permaneciam aparentemente intactos, a morte causada por traumatismos internos. Estranhamente, os cadáveres tinham uma aparência pacífica, rígidos mas ainda não congelados pela temperatura baixa. Ele contou seis corpos na parte traseira da aeronave. Viu que todos eram soviéticos, todos uniformizados. Um deles usava o uniforme de capitão da KGB e permanecia ainda preso pelo cinto ao seu assento. Havia uma espuma cor-de-rosa em volta de seus lábios. Devia ter sobrevivido por algum tempo à queda e tossido sangue, pensou o Arqueiro. Chutou o corpo e percebeu que havia uma valise algemada ao pulso do homem. Aquilo parecia promissor. O Arqueiro curvou-se para verificar se as algemas poderiam ser retiradas com facilidade, mas não teve essa sorte. Encolhendo os ombros, desembainhou a faca. Teria de cortar o pulso fora. Girou a mão e começou...
... quando o braço se retraiu e um grito agudo fez o Arqueiro colocar-se de pé num salto. Será que aquele ainda vivia? Curvou-se para o rosto do homem e foi recompensado com respingos de sangue espalhados pela tosse. Os olhos azuis se abriram, arregalados de choque e de dor. A boca moveu-se para produzir ruídos inteligíveis.
¯ Verifique se mais alguém está vivo ¯ ordenou o Arqueiro a seu assistente. Voltou-se depois para o oficial da KGB, balançando a lâmina a poucos centímetros de seus olhos, e disse em dialeto pashtu: ¯ Oi, russo.
O capitão começou a tossir outra vez. Agora estava completamente acordado e sentindo dores consideráveis. O Arqueiro revistou-o à procura de armas. Enquanto suas mãos se moviam, o corpo retorceu-se de dor. Devia ter pelo menos algumas costelas quebradas, embora os membros parecessem intactos. Com esforço, disse algumas palavras. O Arqueiro entendia um pouco de russo, mas teve problemas para compreendê-las. Não devia ser tão difícil, pois a mensagem era óbvia, embora o guerrilheiro demorasse quase meio minuto para reconhecê-la.
¯ Não me mate...
Uma vez entendido o apelo, o Arqueiro continuou sua busca. Apanhou a carteira do capitão e examinou o conteúdo. Foram as fotografias que fizeram com que parasse. O homem tinha uma esposa. Ela era pequena, com um rosto redondo, e morena. Não parecia bonita, com exceção do sorriso. Era o tipo de sorriso reservado para o homem a quem se ama, e o rosto estava iluminado de uma maneira que o próprio Arqueiro conhecera no passado. Mas o que realmente chamou sua atenção foram as duas fotografias seguintes. O homem tinha um filho. A primeira teria sido tirada com a idade de 2 anos talvez, mostrando um garotinho com cabelo desgrenhado e um sorriso travesso. Não se podia odiar uma criança, mesmo sendo o filho de um oficial da KGB. A fotografia seguinte era tão diferente que foi difícil estabelecer uma relação entre as duas. O cabelo tinha desaparecido e a pele do rosto estava esticada... transparente como as páginas de um velho Corão. A criança estava morrendo. Com três, quatro anos talvez?, perguntou-se ele. O rosto da criança moribunda ostentava um corajoso sorriso de dor e amor. Por que a ira de Alá precisa visitar os pequeninos? Voltou a foto para o rosto do oficial.
¯ Seu filho? ¯ indagou o Arqueiro, em russo.
¯ Morto. Câncer ¯ explicou o homem, percebendo depois que o bandido não estava entendendo. ¯ Doença. Doença longa. ¯ Por um breve instante toda a dor desapareceu das feições, deixando apenas uma tristeza profunda.
Aquilo salvou sua vida. Ficou surpreso ao ver o bandido embainhar a faca, porém estava sentindo muita dor para demonstrá-lo de maneira visível.
Não. Não trarei mais mortes à vida desta mulher. A decisão surpreendeu o próprio Arqueiro. Foi como se a voz de Alá o lembrasse de que a piedade perde apenas para a fé, na lista das virtudes humanas. Aquilo em si não bastava ¯ seus companheiros de guerrilha não se deixariam convencer por um versículo da Escritura ¯, mas a seguir o Arqueiro encontrou um chaveiro no bolso da calça. Usou uma das chaves para abrir as algemas e outra para abrir a valise, que estava cheia de pastas para documentos, cada uma ostentando uma fita multicolorida com alguma versão da palavra SECRETO. E essa era uma palavra russa que ele conhecia.
¯ Meu amigo ¯ disse o Arqueiro em pashtu ¯, vai visitar um outro amigo meu... Se viver o bastante.
¯ E muito sério? ¯ perguntou o presidente.
¯ Potencialmente, é muito sério ¯ respondeu o juiz Moore. ¯ Gostaria de trazer algumas pessoas para colocá-lo a par de tudo.
¯ Ryan já não está preparando uma avaliação?
¯ Ele será uma das pessoas. A outra é esse major Gregory do qual já ouviu falar.
O presidente abriu sua agenda de mesa.
¯ Posso lhe conceder quarenta e cinco minutos. Esteja aqui às onze.
¯ Estaremos aí, senhor. ¯ Moore desligou o telefone. A seguir chamou sua secretária. ¯ Mande entrar o doutor Ryan.
Ryan entrou um minuto depois. Nem chegou a ter tempo de sentar-se.
¯ Vamos ver o "Homem" às onze. Como está seu material?
¯ Sou o cara errado para falar em física, mas acho que Gregory pode tomar conta disso. Ele está conversando agora com o general Parks e o senhor Ritter. O general também vai?
¯ Vai.
¯ Certo. Quanto apoio visual quer que eu leve? O juiz Moore pensou por um momento.
¯ Não queremos que ele fique tonto com muito material. Um par de fotografias gerais e um bom diagrama. Você também acha que é muito importante?
¯ Não se trata de uma ameaça imediata, mesmo usando a imaginação, mas podíamos perfeitamente passar sem esse desenvolvimento. Os efeitos sobre as conversações de controle de armas são difíceis de analisar. Não acho que exista uma ligação direta...
¯ Não existe, temos certeza disso ¯ o diretor-geral fez uma pausa e sorriu. ¯ Pelo menos achamos que temos certeza.
¯ Juiz, existem alguns dados no ar sobre esse assunto que eu ainda não vi.
Moore sorriu com benevolência.
¯ Como sabe disso, filho?
¯ Passei a maior parte da sexta-feira examinando velhos arquivos sobre o programa soviético de defesa contra mísseis. Em 1981, eles realizaram um teste importante em Sary Shagan. Sabíamos bastante sobre o assunto... por exemplo, sabíamos que os parâmetros da missão foram alterados do interior do Ministério da Defesa. Essas ordens foram seladas em Moscou e entregues pessoalmente ao comandante do submarino que atirou os mísseis: Marko Ramius. Ele me contou o outro lado da história. Com isso, e mais alguns trechos de informação que encontrei, comecei a pensar que devemos ter um homem dentro do ministério e nos altos escalões.
¯ Que trechos de informação? ¯ quis saber o juiz.
Jack hesitou por um momento, mas decidiu continuar a expor suas deduções.
¯ Quando o Outubro Vermelho desertou, o senhor me mostrou um relatório que vinha bem de dentro, também do Ministério da Defesa; o nome de código no arquivo era WILLOW, como me recordo. Só vi mais um outro arquivo com esse nome, sobre um assunto inteiramente diferente, mas também relativo à defesa. Isso me fez imaginar que havia uma fonte interna com um ciclo de codinomes que muda rapidamente. Só se faz isso com uma fonte muito delicada, e se for alguma coisa para a qual eu não esteja liberado, bem... só posso concluir que é uma informação muito bem guardada. Há apenas duas semanas, o senhor me disse que as afirmações de Gregory sobre as instalações em Dushanbe foram confirmadas através de "outras fontes". ¯ Jack sorriu. ¯ O senhor me paga para descobrir ligações, juiz. Não me importo em ficar por fora em assuntos que não tenho necessidade de saber, mas estou começando a pensar que aí está parte do que eu estou tentando fazer. Se quiser que informe o presidente, senhor, eu deveria entrar lá com as informações corretas.
¯ Sente-se, doutor Ryan. ¯ Moore não se importou em perguntar se Jack tinha discutido o assunto com mais alguém. Será que já era tempo de admitirem um novo membro na fraternidade Delta? Depois de um momento, permitiu-se um sorriso sagaz. ¯ Você deu um encontrão nele.
Jack inclinou-se em sua cadeira e cerrou os olhos. Depois de pensar por um instante, conseguiu ver o rosto do homem novamente.
¯ Meu Deus! E ele está obtendo as informações... Mas seremos capazes de utilizá-las?
¯ Ele já nos passou dados técnicos antes. A maior parte colocamos em uso.
¯ O presidente sabe de tudo isso? ¯ indagou Jack.
¯ Não. A idéia é dele, e não nossa. Ele nos disse algum tempo atrás que não queria os detalhes das operações secretas, só os resultados. É como a maioria dos políticos... fala demais. Pelo menos é esperto o suficiente para saber disso. Já perdemos agentes porque os presidentes falaram demais. Sem mencionar aquele estranho senador.
¯ Para quando espera a chegada do relatório?
¯ Logo. Talvez por esta semana, talvez demore mais três...
¯ E, se funcionar, podemos pegar o que eles sabem e juntar ao que nós sabemos... ¯ Ryan olhou através da janela, para os galhos pelados das árvores. ¯ Desde que estou aqui, juiz, pergunto a mim mesmo pelo menos uma vez por dia: o que é mais admirável neste lugar, as coisas que sabemos ou as que não sabemos?
Moore concordou com um aceno de cabeça.
¯ O jogo é assim, doutor Ryan. Traga suas anotações de apoio. Não faça nenhuma referência ao nosso amigo. Eu mesmo tratarei disso se achar necessário.
Jack voltou a seu escritório, meneando a cabeça. Suspeitara algumas vezes de que tinha acesso a informações que o presidente ignorava. Agora tinha certeza. Perguntou a si mesmo se essa era uma boa idéia e admitiu que não sabia. O que enchia sua mente era a importância desse agente e suas informações. Havia precedentes. O brilhante agente Richard Sor-ge no Japão em 1941, cujos avisos a Stálin não foram ouvidos. Oleg Pen-kovsky, que fornecera ao Ocidente informações sobre os militares soviéticos que podiam ter prevenido uma guerra nuclear durante a Crise dos Mísseis em Cuba. É agora mais um. Não refletiu sobre o fato de que era o único na CIA a conhecer o rosto do agente, mas não seu nome verdadeiro nem o de código. Não ocorreu a ele que o juiz Moore não conhecia o rosto do Cardeal, tendo evitado olhar sua fotografia por motivos que nunca explicara, mesmo a seus diretores.
O telefone tocou e uma mão saiu de baixo do cobertor para apanhá-lo.
¯ Alô?
¯ Bom dia, Candi ¯ disse Al Gregory, de Langley.
A mais de
¯ Você está no aeroporto?
¯ Ainda estou em Washington, meu bem ¯ sua voz parecia cansada. ¯ Se tiver sorte, posso voltar hoje para casa.
¯ O que está acontecendo afinal? ¯ perguntou ela.
¯ Oh, alguém fez um teste, e preciso explicar a algumas pessoas o que isto significa.
¯ Certo. Me avise quando for chegar, Al. Vou apanhar você. ¯ Candi Long estava muito zonza para reparar que seu noivo tinha quebrado uma regra de segurança ao responder a sua pergunta.
¯ Claro. Amo você.
¯ Também te amo, meu bem. ¯ Ela desligou o telefone e olhou novamente para o relógio.
Ainda havia tempo para dormir por mais uma hora. Procurou lembrar-se de pegar uma carona com um amigo para o trabalho. Al tinha deixado seu carro no laboratório antes de voar para o leste, e ela poderia usá-lo para buscá-lo no aeroporto.
Ryan acabou levando o major Gregory em seu carro novamente. O general Parks foi com o juiz Moore na limusine da Agência.
¯ Já perguntei isso a você antes: quais são as chances de descobrir o que Ivã está fazendo em Dushanbe?
Jack hesitou um pouco, antes de responder, mas compreendeu que Gregory iria ouvir tudo no Salão Oval.
¯ Temos alguns trunfos que estão trabalhando para descobrir como eles conseguiram aumentar a potência de saída.
¯ Adoraria saber como vocês fazem essas coisas ¯ observou o jovem major.
¯ Acho que não. Pode acreditar. ¯ Ryan tirou os olhos do trânsito por instantes, para encarar o companheiro. ¯ Se você soubesse coisas como essa e cometesse um pequeno engano, podia matar pessoas. Já aconteceu antes. Os soviéticos são duros com espiões. Ainda corre por aí uma história sobre como eles cremaram um sujeito... com isso quero dizer que puseram o coitado no crematório ainda vivo.
¯ Qual é! Ninguém é tão...
¯ Major, um desses dias seria muito bom que saísse do seu laboratório e descobrisse como o mundo pode ser sujo e mau. Cinco anos atrás, algumas pessoas tentaram matar minha esposa e meu filho. Precisavam voar quase
¯ É isso mesmo! Você foi aquele cara que...
¯ É uma velha história, major ¯ interrompeu Jack, cansado de repetir o relato de suas aventuras.
¯ Como é, senhor? Quer dizer, estar em combate de verdade, pra valer.
¯ Não é nada divertido. ¯ Ryan quase riu de si mesmo por expressar-se dessa forma. ¯ É como se fosse uma representação teatral, só isso. Ou você representa direito, ou perde. Se tiver sorte, não entra em pânico até tudo acabar.
¯ Disse lá no laboratório que foi fuzileiro...
¯ É, isso ajudou. Pelo menos alguém se lembrou de me ensinar um pouquinho sobre combate, uma vez. ¯ Mais ou menos quando você estava no colegial, pensou Jack. ¯ Já encontrou o presidente alguma vez?
¯ Não, senhor.
¯ Pode me chamar de Jack, certo? Ele é um bom homem, presta muita atenção e sempre faz perguntas. Não se deixe enganar pelo aspecto sonolento dele. Acho que faz isso para enganar os políticos.
¯ Eles se deixam enganar tão fácil assim? Aquilo provocou uma gargalhada.
¯ Alguns deles. O sujeito que é chefe do controle de armas também vai estar lá. O tio Ernie. Ernest Allen, antigo diplomata de carreira, formado em Dartmouth e Yale; é muito esperto.
¯ Ele acha que devemos barganhar meu trabalho. Por que o presidente fica com ele?
¯ Ernie sabe negociar com os soviéticos, é um profissional. Não deixa que suas opiniões pessoais interfiram em seu trabalho. É como um médico nesse ponto. Um cirurgião não precisa gostar de você pessoalmente. Ele só precisa consertar o que está errado. Com o senhor Allen, a vantagem é que ele sabe enxergar através de todas as baboseiras que são ditas durante as negociações. Nunca aprendeu nada sobre isso, não foi? ¯ Jack sacudiu a cabeça e sorriu. ¯ Todos pensam que é dramático, mas não é. Nunca vi nada mais chato. Os dois lados repetem exatamente as mesmas coisas por horas a fio. Repetem a si mesmos a cada quinze ou vinte minutos o dia inteiro, todos os dias. Então, depois de mais ou menos uma semana, um dos lados faz uma pequena alteração e fica repetindo isso por muitas horas. O outro lado verifica com o próprio governo, faz uma pequena alteração no texto e começa a repetir isso. As coisas continuam desse jeito por semanas, meses e até anos. Mas o tio Ernie é bom nisso. Ele acha tudo muito excitante. Eu pessoalmente, depois de agüentar uma semana, tenho vontade de começar uma guerra só para acabar com o processo de negociação. ¯ Ryan sorriu novamente. ¯ Não me culpe por isso. É tão excitante como ver tinta secar. Ainda que seja monótono, é uma tarefa importante, e é preciso um tipo especial de inteligência para isso. Ernie é um velho seco e duro de roer, mas sabe realizar esse trabalho como ninguém.
¯ O general Parks diz que ele quer acabar com nossas pesquisas.
¯ Porra, major, pode perguntar pessoalmente a ele. Eu mesmo gostaria de descobrir isso. ¯ Jack saiu da Avenida Pennsylvania, seguindo a limusine da CIA.
Cinco minutos mais tarde, ele e Gregory sentavam-se na sala de recepção da Ala Oeste, sob uma cópia da famosa pintura de George Washington atravessando o rio Delaware, e o juiz conversava com o conselheiro de Segurança Nacional do presidente, Jeffrey Pelt. O presidente terminava uma audiência com o secretário do Comércio. Por fim, um agente do Serviço Secreto chamou-os e os conduziu através dos corredores.
Como acontece com os estúdios de televisão, o Salão Oval é menor do que a maioria das pessoas espera. Ryan e Gregory foram conduzidos até um sofá na parede norte, mas nenhum dos dois sentou; o presidente estava em pé, ao lado de sua escrivaninha. Ryan reparou que Gregory parecia um pouco mais pálido agora e lembrou-se da primeira vez em que estivera naquela sala. Mesmo os que trabalhavam na Casa Branca ocasionalmente admitiam ficar impressionados com a sala e o tremendo poder que ela continha.
¯ Oi, Jack. É bom vê-lo de novo. ¯ O presidente adiantou-se para cumprimentar Ryan. ¯ E você deve ser o famoso major Gregory.
¯ Sim, senhor. ¯ Gregory quase desafinou e teve de limpar a garganta. ¯ Quero dizer, sim, senhor presidente.
¯ Sente-se e relaxe. Quer um pouco de café? ¯ O presidente foi até o canto da mesa, e Gregory arregalou os olhos quando a xícara foi estendida em sua direção.
Ryan fez o que pôde para controlar a vontade de rir. O homem que tornara a presidência "imperial" novamente, ou o que quer que isso signifique, era um mestre na arte de deixar as pessoas à vontade. Ou pelo menos aparentando, pensou Jack. A rotina do primeiro café freqüentemente os deixava ainda mais sem graça.
¯ Major, ouvi referências muito boas em relação ao senhor e seu trabalho. O general diz que o senhor é sua maior estrela. ¯ O presidente sentou-se ao lado de Jeff Pelt, enquanto o general se remexia na cadeira. ¯ Muito bem, vamos começar.
Ryan abriu a pasta e retirou uma fotografia, colocando-a sobre a mesa baixa. A seguir tirou um diagrama.
¯ Senhor presidente, isto é uma fotografia tirada por satélite dos locais que chamamos de Bach e Mozart. Estão sobre uma montanha a sudeste da cidade de Dushanbe, na República Socialista Soviética do Tadjiquistão, cerca de
¯ Essa disposição aqui em Bach é um transmissor laser.
¯ E eles explodiram um satélite com isso? ¯ quis saber Jeff Pelt.
¯ Sim, senhor ¯ respondeu o major Gregory. ¯ Eles o "derreteram", como dizemos no laboratório. Enviaram até o satélite tanta energia que, bem, derreteu parte do metal e destruiu completamente as células solares.
¯ Não conseguimos fazer isso ainda? ¯ perguntou o presidente a Gregory.
¯ Não, senhor. Ainda não conseguimos colocar tanta energia na ponta do sistema.
¯ Como eles passaram à frente? Estamos aplicando um bocado de dinheiro em pesquisa de laser, não estamos, general?
Parks não estava contente com os recentes desenvolvimentos, mas sua voz era neutra.
¯ Os russos também, senhor presidente. Eles conseguiram alguns avanços como fruto dos esforços dirigidos para a fusão. Há anos investigam física de alta energia, como parte de um grande esforço para conseguir bons reatores de fusão nuclear. Quinze anos atrás, esse esforço foi combinado com o programa de mísseis de defesa. Se a gente coloca tanto tempo e esforço em pesquisa de base, pode esperar um retorno, e eles tiveram um bocado. Inventaram o RFQ, o quadripolo de freqüência de rádio, que usamos em nossas experiências com armamentos de partículas neutras. Inventaram o dispositivo de contenção magnética Tokamak que copiamos em Princeton e inventaram o Gyrotron. São três avanços significativos em física de alta energia, dos quais ouvimos falar. Usamos alguns deles em nossas próprias pesquisas SDI, e com toda a certeza podemos presumir que fazem o mesmo.
¯ Certo, e o que sabemos sobre esse teste que eles fizeram? Era a vez de Gregory novamente.
¯ Senhor, sabemos que veio de Dushanbe, porque os outros locais que pesquisam física de alta energia, em Sary Shagan e Semipalatinsk, estavam abaixo do horizonte visível... quero dizer, não podiam enxergar o satélite. Sabemos que não foi laser infravermelho, porque o raio seria detectado pelos sensores do Cobra Belle. Se tivesse de fazer uma dedução, diria que o sistema utiliza laser de elétrons livres...
¯ Usa mesmo ¯ confirmou o juiz Moore. ¯ Acabamos de confirmar esse ponto.
¯ É o mesmo sistema no qual estamos trabalhando em 7éa Clipper. Parece oferecer o maior potencial para aplicações em armamentos.
¯ Posso perguntar por quê, major? ¯ indagou o presidente.
¯ Eficiência na transmissão de energia, senhor. O efeito laser ocorre numa corrente de elétrons livres, o que significa que não estão presos a nenhum átomo como habitualmente, senhor, isso no vácuo. Usa-se um acelerador de partículas para produzir uma corrente de elétrons, e os disparamos no interior de uma cavidade, que possui um raio laser de baixa energia ao longo do eixo. A teoria é que podemos usar eletroímãs para oscilar os elétrons ao longo do campo. O que se obtém é um raio de luz coincidente com a freqüência oscilatória dos ímãs, o que significa que se pode sintonizar como um rádio, senhor. Alterando-se a energia do feixe de laser inicial, pode-se escolher a freqüência exata que se quer gerar. Depois os elétrons são reciclados de volta ao acelerador de partículas e atirados outra vez à cavidade do laser. Uma vez que os elétrons já estão em estado de alta energia, aqui se ganha uma grande eficiência de transmissão de energia. Em resumo, senhor, teoricamente se consegue uma saída de quarenta por cento da energia injetada no sistema. Se pudermos realizar isso de forma viável, poderemos destruir tudo aquilo que virmos... e, quando falamos em níveis altos de energia, falamos em termos relativos, senhor. Comparada à energia elétrica que este país utiliza para cozinhar, a quantidade necessária para um sistema de defesa laser é irrisória. O truque é só fazer tudo isso funcionar. Não conseguimos isso ainda.
¯ Por que não? ¯ O presidente inclinava-se levemente para a frente em sua cadeira, interessado no assunto.
¯ Ainda estamos aprendendo a fazer o laser, senhor. O problema fundamental é a cavidade do laser... onde a energia sai dos elétrons e se transforma em raio luminoso. Ainda não conseguimos construir uma que fosse suficientemente larga. Se for muito estreita, obteremos uma densidade de energia tão grande que derreterá as camadas ópticas da própria cavidade, e dos espelhos usados para apontar o raio formado.
¯ Mas eles resolveram o problema. Como acha que conseguiram?
¯ Eu sei o que eles estão tentando fazer. Quando a energia passa para o feixe de raios, os elétrons se tornam menos energéticos, certo? Isso significa que o campo magnético que os contém precisa ser diminuído, e sem esquecer que a ação oscilatória do campo precisa continuar também. Ainda não conseguimos resolver esse problema. Eles provavelmente conseguiram, e a solução deve ter vindo das pesquisas sobre energia de fusão. Todas as idéias sobre retirar energia de fusão controlada se utilizam de um campo magnético para conter a massa de plasma em alta energia. Em princípio é a mesma coisa que fazemos com os elétrons livres. A maior parte da pesquisa de base nesse campo é originária da União Soviética. Eles estão à frente porque gastaram mais tempo e dinheiro no lugar mais importante.
¯ Certo, muito obrigado, major. ¯ O presidente voltou-se para o juiz Moore. ¯ Arthur, o que a CIA acha de tudo isso?
¯ Bem, não pretendemos discordar do major Gregory, que acaba de passar o dia atualizando os conhecimentos do nosso pessoal de Ciência e Tecnologia. Confirmamos que os soviéticos possuem de fato seis emissores laser de elétron livre nesse local. Fizeram um grande avanço em potência de saída, e estamos tentando descobrir exatamente qual foi.
¯ Podem fazer isso? ¯ perguntou o general Parks.
¯ Disse que estamos tentando, general. Se tivermos sorte, teremos uma resposta lá pelo final do mês.
¯ Certo, então sabemos que podem construir um laser muito poderoso ¯ disse o presidente. ¯ Próxima pergunta: será que é mesmo uma arma?
¯ Provavelmente não, senhor presidente ¯ afirmou o general Parks. ¯ Pelo menos ainda não. Ainda há um problema com a distorção pela camada de ar, porque ainda não copiaram nossos ópticos adaptáveis. Dominam muita tecnologia do Ocidente, mas até agora não possuem esta. Até que o façam, não podem usar os armamentos laser baseados em terra como nós, ou seja, enviar o feixe de raios passando por um espelho orbital até um alvo distante. Contudo, com o que possuem no momento podem causar grandes danos a um satélite em órbita baixa. Existem maneiras de proteger os satélites, é claro, mas é o velho compromisso entre uma couraça mais pesada, ou ogivas mais pesadas. No final geralmente a ogiva vence.
¯ Que é exatamente o motivo pelo qual deveríamos negociar a eliminação desse tipo de armamento ¯ afirmou Ernie Allen, intervindo na conversa pela primeira vez. O general Parks olhou para ele sem disfarçar sua irritação. ¯ Senhor presidente, estamos apenas tendo uma amostra, uma pequena amostra de como essas armas podem ser perigosas e desestabilizadoras. Se considerarmos meramente que esse local em Dushanbe pode ser uma arma anti-satélite, vejam as implicações que isso trará para a verificação do cumprimento do tratado e para a reunião de informações de uma forma geral. Se não pararmos essas coisas agora, iremos todos para um verdadeiro caos.
¯ Não se pode parar o progresso ¯ observou o general Parks.
¯ Progresso? ¯ fez Allen. ¯ Que diabos, temos um tratado na mesa de negociações que pode reduzir o número de armas pela metade. Isso é progresso, general. No teste que realizaram no sul do Atlântico erraram a metade dos disparos... Posso retirar de ação tantos mísseis quanto vocês.
Ryan pensou que Parks fosse pular da cadeira ao ouvir essas palavras, mas em vez disso ele adotou seu tom intelectual.
¯ Senhor Allen, esse foi o primeiro teste de um sistema experimental, e metade dos tiros acertou o alvo. Na verdade, todos os alvos foram eliminados em menos de um segundo. O major Gregory aqui vai resolver esse problema até o verão, não vai, jovem?
¯ Claro, senhor ¯ respondeu Gregory, desafinando. ¯ Tudo o que precisamos fazer é reelaborar uma parte do código.
¯ Certo. Se o pessoal do juiz Moore puder nos dizer o que os russos fizeram para aumentar a potência do laser, já temos o resto da arquitetura do sistema testado e validado. Em dois ou três anos, podemos ter tudo... e depois podemos pensar seriamente em aplicações.
¯ E se os soviéticos começarem a abater nossos espelhos no espaço? ¯ perguntou secamente Allen. ¯ Poderíamos ter o melhor sistema de armamentos a laser em terra, mas só iríamos conseguir defender o Novo México.
¯ Primeiro, eles teriam de encontrar nossos satélites, o que é uma tarefa bem mais difícil do que o senhor pensa. Podemos colocá-los em órbitas muito mais altas, entre 480 e
¯ Jack, você esteve de perto com os soviéticos. O que acha? ¯ indagou o presidente.
¯ Senhor presidente, a verdadeira força com que nos defrontamos neste caso é a fixação dos soviéticos em defender seu país... e com isso quero dizer defender contra qualquer ataque. Já investiram nisso cerca de trinta anos de trabalho e uma pilha enorme de dinheiro, porque acreditam que vale a pena. Na época da administração Johnson, Kosygin disse: "Defesa é moral, ataque é imoral". Esse é um provérbio russo, senhor, e não apenas comunista. Para falar francamente, acho que é uma idéia da qual é difícil discordar. Se entrarmos numa nova fase de competição, pelo menos será defensiva em vez de ofensiva. É meio difícil matar milhares de civis com um feixe laser ¯ observou Jack.
¯ Mas vai alterar todo o equilíbrio de poder ¯ objetou Ernest Allen.
¯ O equilíbrio atual pode ser razoavelmente estável, mas ainda é fundamentalmente louco. ¯ disse Ryan.
¯ Mas funciona. Mantém a paz.
¯ Senhor Allen, a paz em que vivemos não passa de uma crise constante. Diz que podemos reduzir os arsenais pela metade... e daí? Se cortássemos dois terços do arsenal soviético, eles ficariam com ogivas suficientes para transformar nosso país num crematório. A recíproca é verdadeira. Como eu disse quando voltava de Moscou, o acordo de redução é apenas cosmético. Não traz nem um pouco mais de segurança. Pode ser um símbolo... talvez um símbolo importante, mas ainda assim sem substância.
¯ Não sei, não ¯ observou o general Parks. ¯ Se reduzirem minha carga de alvos pela metade, não iria me importar nem um pouco. ¯ Isso lhe valeu um olhar assassino por parte de Allen.
¯ Se descobrirmos exatamente o que os soviéticos estão fazendo diferente de nós, o que conseguiremos com isso? ¯ quis saber o presidente.
¯ Se a CIA nos fornecer dados que possamos usar? Major? ¯ Parks voltou-se para Gregory.
¯ Nesse caso, teremos um sistema de armamento pronto para demonstração em três anos, que seria colocado em operação de cinco a dez anos depois disso ¯ respondeu o jovem major, com convicção.
¯ Parece seguro ¯ comentou o presidente.
¯ Tão seguro quanto possível, senhor. É parecido com o Programa Apollo; não tanto uma questão de inventar uma ciência nova, mas de aprender a utilizar engenharia tecnológica que já possuímos. Só juntar as porcas e parafusos.
¯ É um jovem muito confiante, major ¯ disse Allen, com ares de professor.
¯ Sou mesmo, senhor. Acho que podemos realizar tudo isso. Senhor Allen, nosso objetivo não é diferente do seu. O senhor quer livrar-se das armas nucleares, e nós também. Talvez possamos ajudá-lo, senhor.
Na mosca, pensou Ryan com um sorriso mal disfarçado. Uma batida discreta soou à porta. O presidente consultou o relógio.
¯ Vamos ter de encerrar por aqui. Preciso dar uma olhada em alguns programas antidrogas durante o almoço com o procurador-geral. Obrigado por cederem seu tempo. ¯ Ele apanhou uma fotografia de Dushanbe e pôs-se de pé. Todos fizeram o mesmo. Saíram pela porta lateral, oculta na parede de estuque branco.
¯ Boa, garoto ¯ disse Ryan baixinho a Gregory.
Candi Long apanhou o carro em frente a sua casa. Era dirigido por sua amiga da Universidade de Colúmbia, a dra. Beatrice Taussig, outra física especializada em óptica. A amizade vinha desde os tempos em que não eram formadas. Ela era mais extravagante do que Candi. Taussig dirigia um Nissan 300Z esportivo e tinha multas de trânsito para prová-lo. O carro combinava com suas roupas, com seu cabelo oxigenado e com o temperamento fogoso, que parecia ligar os homens como um interruptor.
¯ Oi, Bea. ¯ Candi Long entrou no carro e afivelou o cinto antes de fechar a porta. Quando se andava de carro com Bea, sempre se afivelava o cinto... embora a própria motorista não se incomodasse em fazê-lo.
¯ Teve uma noite ruim, Candi?
Aquela manhã a amiga trajava um terninho de lã, severo mas não muito masculino, completado com uma echarpe de seda ao pescoço. Long não conseguia entender. Quando se passava o dia inteiro coberta com um avental barato de laboratório, quem se importava com o que estava embaixo? Exceto Al, é claro, porém ele se interessava pelo que ficava embaixo do que estava embaixo, pensou ela, sorrindo.
¯ Durmo melhor quando ele está aqui.
¯ Para onde ele foi? ¯ perguntou Taussig.
¯ Washington ¯ bocejou ela. O sol nascente delineava longas sombras na estrada à frente.
¯ A troco de quê? ¯ Bea reduziu a marcha e acelerou o carro, subindo o acesso que conduzia à auto-estrada. Candi sentiu-se pressionada lateralmente contra o cinto de segurança. Por que será que a amiga dirigia daquele jeito? Não estavam disputando o Grande Prêmio de Mônaco.
¯ Ele disse que alguém realizou um teste, e ele precisava explicar tudo para mais alguém.
¯ Hum! ¯ Beatrice fez um muxoxo, olhou de relance o retrovisor e deixou o carro em terceira marcha enquanto procurava uma brecha no tráfego pesado da hora do rush. Com habilidade, combinou sua velocidade com a da outra fila e deslizou para um espaço apenas
¯ Talvez hoje à noite. Vai ligar antes. Vou apanhar o carro dele. Ele o deixou no laboratório.
¯ Coloque uma toalha no banco antes de sentar ¯ brincou ela. Gregory tinha um Cheevy Citation. O carro perfeito para um menino
prodígio, pensou Bea Taussig. Estava cheio de embalagens amassadas de jujubas e ele o lavava somente uma vez por ano. Imaginou como seria ele na cama, mas reprimiu o pensamento. Nem de manhã, nem logo depois de acordar. A idéia de sua amiga... envolvida com aquilo fazia sua pele arrepiar-se. Candi era tão ingênua, tão inocente... e tão burra! Bem, talvez ela superasse isso. Ainda havia esperança.
¯ Como está indo o trabalho do seu espelho de diamante?
¯ Projeto AD-AMANT? Daqui a um ano saberemos. Gostaria que você ainda estivesse trabalhando em minha equipe ¯ disse a dra. Long.
¯ Me dou melhor com trabalho administrativo ¯ respondeu Bea com incomum honestidade. ¯ Além do mais, não sou tão inteligente quanto você.
¯ Só mais bonita ¯ observou Candi, ansiosamente.
Bea dirigiu o olhar para a amiga. Sim, ainda havia esperança.
Misha recebeu o relatório final por volta das 4 horas. Estava atrasado, explicara Bondarenko, porque todas as secretárias liberadas para documentos ultra-secretos encontravam-se ocupadas com outro material. Possuía 41 páginas, incluindo os diagramas. Filitov notou que o trabalho do jovem coronel era tão bom quanto sua palavra. Ele traduzira todo o jargão técnico de engenharia para linguagem clara e corrente. Misha passara as últimas semanas lendo tudo o que conseguira encontrar sobre laser. Se não chegara a entender os princípios de operação tão claramente quanto gostaria, tinha os detalhes de engenharia guardados na memória treinada. Isso fazia com que se sentisse como um papagaio. Podia repetir as palavras sem compreender seu significado. Bem, por enquanto era o bastante.
Lia vagarosamente, decorando à medida que prosseguia. Apesar de sua voz de camponês e do vocabulário grosseiro, sua mente era ainda mais aguçada do que julgara o coronel Bondarenko. Da maneira como as coisas se encaminhavam, nem precisaria ser assim. A parte importante do avanço parecia bastante simples, não tanto uma questão de aumentar a cavidade do laser, mas de adaptar sua forma ao campo magnético. Com o formato adequado, a cavidade podia ser aumentada quase à vontade... e o novo fator limitante passou a fazer parte da montagem supercondutora do controle de pulso magnético. Misha suspirou. O Ocidente conseguira novamente. A União Soviética não possuía os materiais adequados. Portanto, como de costume, a KGB assegurara seu fornecimento do Oeste, desta vez embarcados através da Tchecoslováquia, via Suécia. Será que não aprenderiam nunca?
O relatório concluía afirmando que os problemas remanescentes estavam na parte óptica e nos sistemas de computador. 7erei de verificar o que nossos organismos de informações estão fazendo acerca desse assunto, disse Filitov a si mesmo. Finalmente, passou vinte minutos estudando o diagrama do novo laser. Quando chegou ao ponto em que podia fechar os olhos e lembrar cada detalhe, guardou novamente o relatório em sua pasta. Verificou o relógio e pressionou um botão, chamando o secretário. O oficial de segurança apareceu na porta em questão de segundos.
¯ Sim, camarada coronel?
¯ Leve esta pasta ao Arquivo Central. Seção 5, Segurança Máxima. Ah, sim, onde está a sacola com o material a ser queimado?
¯ Está comigo, camarada.
¯ Vá buscar para mim. ¯ O homem foi até a ante-sala e voltou um momento depois, trazendo a sacola de lona que ia diariamente para a sala de destruição de documentos. Misha apanhou-a e começou a colocar papéis no interior. ¯ Dispensado. Eu mesmo a levarei quando sair.
¯ Obrigado, camarada coronel.
¯ Você já trabalha bastante, Yuri Ilych. Boa noite.
Quando a porta se fechou atrás do secretário, Misha apanhou algumas páginas a mais, documentos que não se originavam do ministério. A cada semana ou duas, ele mesmo se encarregava da sacola com os documentos a incinerar. O oficial de segurança que passara a obrigação quase clerical para Filitov presumia que o motivo para isso fosse a bondade do coronel, e talvez se relacionasse a alguns papéis especialmente secretos a serem destruídos. De qualquer forma, era um hábito que antecedia de longa data seu trabalho para o coronel, e os serviços de segurança o encaravam como rotina. Três minutos depois, a caminho do carro, Misha entrou na sala de destruição. Um jovem sargento cumprimentou o coronel como teria cumprimentado seu avô e abriu a porta do incinerador. Observou o Herói de Stalingrado pousar a valise no chão e usar o braço aleijado para abrir a sacola, enquanto o outro se elevava, despejando talvez um quilo de documentos sigilosos nas chamas a gás do aquecedor no porão do ministério.
Não poderia saber que estava ajudando um homem a destruir provas de alta traição. O coronel assinou o livro, declarando ter destruído os documentos de sua seção. Com um aceno amigável, Misha pendurou a sacola em seu cabide e saiu pela porta, a caminho de seu carro particular.
Misha sabia que naquela noite os fantasmas viriam novamente, e na manhã seguinte ele tomaria sauna outra vez, e outro pacote de informações iria para o Ocidente. A caminho de seu apartamento, o motorista parou num empório especial que abria somente para a elite. Ali os artigos eram restritos. Misha comprou salsicha, pão preto e uma garrafa de meio litro de vodca Stolychnaya. Num gesto de camaradagem, comprou mais uma para o motorista. Para um jovem soldado, vodca era melhor do que dinheiro.
Em seu apartamento, quinze minutos mais tarde, Misha extraiu seu diário da gaveta e antes de mals nada reproduziu o diagrama que acompanhava o relatório de Bondarenko. Á intervalos de poucos minutos ele passava um segundo ou dois olhando para a fotografia emoldurada da esposa. A maior parte do relatório final seguia a versão inicial escrita à mão; teve que escrever apenas dez páginas novas; inserindo cuidadosamente as fórmulas críticas enquanto prosseguia. Os relatórios do Cardeal eram sempre modelos de concisão e clareza, uma qualidade adquirida durante toda uma vida escrevendo instruções operacionais. Quando terminou, calçou um par de luvas e foi até a cozinha. Presa magneticamente ao painel traseiro de aço de sua geladeira proveniente da Alemanha Ocidental estava uma pequena câmera. Misha manuseava com facilidade a câmera, a despeito da inconveniência das luvas. Levou apenas um minuto para fotografar as novas páginas, depois rebobinou o filme e extraiu o cassete. Colocou-o no bolso e recolocou a câmera no esconderijo antes de tirar as luvas. A seguir ajustou as persianas das janelas. Misha não seria nada se não fosse cuidadoso. Um exame acurado da porta de seu apartamento mostraria arranhões na fechadura, indicando que tinha sido aberta por um perito. Na verdade, qualquer um poderia ter feito os arranhões. Quando recebesse a confirmação de que seu relatório tinha atingido Washington ¯ marcas de pneus numa parte predeterminada de uma curva ¯, ele rasgaria as páginas do diário, as levaria em seu bolso até o ministério, depois as colocaria no interior da sacola e as jogaria pessoalmente no incine-rador. Misha supervisionara a instalação do sistema de destruição de documentos, vinte anos atrás.
Quando a tarefa se completou, o coronel Mikhail Semyonovich Filitov olhou novamente para o retrato de Elena, perguntando se havia feito a coisa certa. Elena, porém, continuou sorrindo, como sempre fizera. Todos esses anos, pensou ele, e minha consciência ainda se perturba. Sacudiu a cabeça. Seguiu-se a parte final do ritual. Comeu salsicha com pão enquanto seus camaradas mortos na Grande Guerra Patriótica vinham visitá-lo, mas não conseguiu reunir coragem para perguntar aos que tinham morrido pelo seu país se tinha razão em traí-lo. Achou que eles entenderiam melhor do que Elena, porém tinha receio de descobrir. O meio litro de vodca tampouco trouxe a resposta. Pelo menos arrastou seu cérebro à insensibilidade, e ele cambaleou até a cama logo depois das 10 horas, deixando as luzes acesas.
Pouco depois das 11, um carro passou pelo amplo bulevar em frente ao apartamento e um par de olhos azuis verificou a janela do coronel. Desta vez era Ed Foley. Ele notou as persianas. A caminho de seu próprio apartamento, outra mensagem secreta foi passada. Um trabalhador sanitário de Moscou encarregou-se de fazer uma série de sinais. Eram coisas inócuas, como por exemplo uma marca feita com giz num poste de iluminação, cada uma das quais informando um dos membros da corrente de mensageiros para que estivesse em seu posto predeterminado. Um outro membro do pessoal da CIA em Moscou verificaria as marcas ao amanhecer, e, se faltasse alguma coisa, o próprio Foley podia abortar a operação, se desejasse.
Mesmo com seu trabalho tenso como era, Ed Foley achava muitos aspectos divertidos. Por um lado, os soviéticos facilitavam as coisas, dando ao Cardeal um apartamento numa rua com muito trânsito. Por outro, fazendo tamanha confusão com a reforma do novo edifício da embaixada que não permitiram que ele e sua família morassem no interior, e aquilo forçava Foley ou sua esposa a passar por aquele bulevar todas as noites. Ambos estavam muito felizes em ter seu filho no time de hóquei soviético. Aquela era uma coisa da qual iriam sentir saudades quando partissem, disse Foley a si mesmo enquanto saía do carro. Ele agora gostava mais de hóquei da divisão juvenil do que de beisebol. Bem, sempre havia o futebol. Não queria que seu filho jogasse futebol americano. Muitos garotos acabavam se machucando, e ele jamais seria grande o suficiente. Mas isso estava no futuro, e ele ainda precisava se preocupar com o presente.
Precisava ser cuidadoso com as coisas que dizia em voz alta no interior de seu apartamento. Presumia-se que cada sala de cada apartamento ocupado por americanos tinha mais microfones do que uma estação de rádio, mas ao longo dos anos Ed e Mary Pat fizeram disso também uma piada. Depois que ele entrava e pendurava o paletó, beijava a mulher e mexia ao mesmo tempo no lóbulo de sua orelha. Ela dava um risinho de reconhecimento, embora ambos já estivessem cansados da tensão que vinha com esse sinal. Faltavam só alguns meses.
¯ Como foi a recepção? ¯ perguntou ela, dirigindo-se mais aos microfones embutidos.
¯ A mesma coisa de sempre ¯ foi a resposta gravada.
Oportunidades
Beatrice Taussig não chegou a fazer um relatório, embora considerasse significativo o erro cometido por Candi. Com acesso a praticamente tudo o que acontecia no Laboratório Nacional de Los Alamos, não fora informada sobre testes não programados, e, se bem que uma parte do programa da Iniciativa de Defesa Estratégica se desenvolvesse na Europa e no Japão, nada requeria a interpretação de Al Gregory. Isso levava à conclusão de que o teste era russo, e se eles levaram de avião o menino prodígio para Washington ¯ o carro dele, como ela se lembrava, permanecera no estacionamento do laboratório; portanto, enviaram também um helicóptero ¯ tinha de ser muito importante. Antipatizava com Gregory, contudo não tinha motivos para duvidar da capacidade de sua mente. Ficou imaginando que tipo de teste seria, mas não tinha acesso ao que os russos realizavam e sua curiosidade era bem disciplinada. Tinha de ser. O que ela estava fazendo era perigoso. Mas era parte do divertimento, não era? Ela sorriu sozinha.
¯ Com isso ficam faltando três. ¯ Após os afegães, os russos inspecionavam os destroços do An-26. O homem que falara era major da KGB. Nunca estivera num desastre aéreo, e apenas o vento gelado em seu rosto conseguira manter no estômago seu café da manhã.
¯ Um de seus homens?
O capitão de infantaria do Exército soviético ¯ até pouco tempo atrás um conselheiro militar dos títeres no Exército afegão ¯ olhava em volta, para certificar-se de que seus soldados guameciam adequadamente o local. Seu estômago estava tão estável quanto possível nas circunstâncias. Presenciar de perto o camarada afegão quase estripa-do em frente a seus olhos fora o maior choque de sua vida, e imaginava se o amigo sobreviveria à cirurgia de emergência.
¯ Ainda desaparecido, eu acho.
A fuselagem do avião partira-se em vários pedaços. Os passageiros da seção dianteira ficaram banhados em combustível quando a aeronave atingira o chão, e estavam queimados além de qualquer possibilidade de reconhecimento. Ainda assim, os soldados montaram os pedaços de quase todos os corpos. Todos menos três, na verdade, e os especialistas em medicina legal determinariam quem tinha morrido e quem continuava desaparecido. Normalmente não eram tão solícitos com as vítimas dos desastres aéreos ¯ tecnicamente o An-26 fazia parte da Aeroflot, e não da Força Aérea soviética ¯, mas faziam um grande esforço naquele caso. O capitão desaparecido pertencia ao Nono Diretório ¯ os "Guardas" ¯ da KGB. Era um oficial da administração que estivera percorrendo a região, verificando o pessoal e as atividades de segurança em certas áreas sensíveis. Seus documentos de viagem incluíam alguns papéis altamente secretos e, o que era mais importante, ele possuía um amplo conhecimento sobre numerosos oficiais e atividades da KGB. Os papéis poderiam ter sido destruídos ¯ os restos do conteúdo de muitas valise foram encontrados reduzidos a cinzas, mas até que a morte do capitão fosse confirmada muita gente iria ficar inquieta no Centro de Moscou.
¯ Ele deixou família... bem, uma viúva. O filho morreu no mês passado, segundo me disseram. Algum tipo de câncer, ao que parece ¯ observou baixinho o major da KGB.
¯ Espero que o senhor cuide apropriadamente da esposa ¯ respondeu o capitão.
¯ Claro, temos um departamento encarregado desses assuntos. Será que eles o arrastaram daqui?
¯ Bem, sabemos quem são eles. Sempre revistam os locais dos acidentes, procurando armas. ¯ O capitão encolheu os ombros. ¯ Estamos lutando contra selvagens ignorantes, camarada major. Duvido que tenham interesse em documentos de qualquer tipo. Talvez tenham reconhecido o uniforme de oficial da KGB e o tenham levado para mutilar o corpo. Não acreditaria nas coisas que eles são capazes de fazer com os prisioneiros.
¯ Bárbaros! ¯ resmungou o homem da KGB. ¯ Abater um avião de transporte desarmado. ¯ Olhou em volta. Soldados "leais" afegães... um adjetivo muito otimista para essa gente, considerou ele... Colocavam os corpos e os pedaços encontrados em grandes sacos plásticos, para que fossem embarcados de helicóptero de volta a Ghazni e depois levados a Moscou para identificação. ¯ E se arrastaram daqui o corpo do meu companheiro?
¯ Nesse caso nunca o encontraremos. Existe uma chance, é claro, mas é muito pequena. Podemos mandar um helicóptero verificar cada abutre voando em círculos, mas... ¯ O capitão balançou a cabeça. ¯ As chances são de que o corpo esteja aqui, camarada major. Só precisamos de algum tempo para confirmar o fato.
¯ Pobre coitado... um homem de gabinete. Nem mesmo era seu território, mas o oficial da região foi internado no hospital com problemas na vesícula biliar, e ele aceitou esse trabalho além do próprio.
¯ Qual é a área em que trabalhava normalmente?
¯ Tadjiquistão. Acredito que ele quis um pouco de trabalho extra para tirar seus problemas da cabeça.
¯ Como está se sentindo, russo? ¯ perguntou o Arqueiro a seu prisioneiro.
Não podiam fazer muito na área de assistência médica. A equipe mais próxima de médicos, composta de profissionais e enfermeiras franceses, estava numa caverna perto de Hasan Khél. Os feridos que podiam andar dirigiam-se agora para lá. Os mais graves... bem, o que podiam fazer? Tinham um bom suprimento de analgésicos e ampolas de morfina fabricadas na Suíça, e aplicaram injeções aos moribundos, para aliviar as dores. Em alguns casos a morfina os ajudava, e qualquer um que mostrasse esperança de recuperação era colocado numa lliteira e carregado para sudeste, na direção da fronteira com o Paquistão. Aqueles que sobrevivessem à viagem de quase
Quem poderia supor, baseado nos olhos azuis inflexíveis e nas palavras frias, que pela primeira vez em três anos seu coração sentia piedade? Ele mesmo se espantava com isso. Por que tais pensamentos ecoavam em sua cabeça? Seria a vontade de Alá? Tinha de ser, pensou ele. Ç2uem mais poderia ter me impedido de matar um russo?
¯ Dói ¯ respondeu o russo finalmente.
Mas a piedade do Arqueiro não chegava a tanto. A morfina que os mudjahidin levavam era destinada somente a eles. Depois de verificar em volta se ninguém olhava para eles, passou ao russo as fotografias da família. Por um breve instante seus olhos se abrandaram. O oficiai da KGB o encarou com uma expressão de surpresa que suplantou a dor. Sua mão sadia apanhou as fotografias, apertando-as contra o peito. Havia gratidão em seus olhos, gratidão e perplexidade. O homem pensava no filho morto e contemplava seu próprio destino. O pior que podia acontecer, decidiu em meio à nuvem de dor, era reunir-se à criança, onde quer que ela se encontrasse. Os afegães não podiam feri-lo mais do que estava, no corpo ou na alma. O capitão encontrava-se naquele ponto em que a dor se tornara como uma droga, tão familiar que a agonia tornara-se tolerável, quase confortável. Havia escutado que isso era possível, mas não acreditara até então.
Seus processos mentais ainda não funcionavam normalmente. Num estado de semiconsciência, perguntava-se por que não fora assassinado. Ouvira muitas histórias em Moscou sobre como os afegães tratavam seus prisioneiros... e foi por isso que você se ofereceu como voluntário para aceitar essa viagem além de seu trabalho?... Agora divagava sobre seu destino e como ele o procurara.
Você não pode morrer, Valery Mikhailovich, precisa viver. Tem uma mulher, e ela já sofreu o suficiente, disse a si mesmo. Ela já está passando por... O pensamento se interrompeu sozinho. O capitão colocou a foto no bolso da túnica e rendeu-se à inconsciência enquanto o corpo trabalhava para curar-se. Não acordou quando foi amarrado a uma tábua e colocado sobre um travois, uma espécie de maça. O Arqueiro liderou a partida do grupo.
Misha acordou com sons de batalha reverberando dentro da cabeça. Ainda estava escuro lá fora ¯ o sol demoraria algum tempo para se levantar ¯ e a primeira ação considerada foi a ida ao banheiro, onde jogou água fria no rosto e engoliu três aspirinas. Ânsias de vômito seguiram-se, porém tudo o que expeliu foi bilis amarelada. Ele levantou a cabeça para olhar no espelho e constatar o que a traição fizera ao Herói da União Soviética. Ele não podia ¯ e não queria ¯ parar, claro, mas... mas veja o que está fazendo a si mesmo, Misha. Os olhos que tinham sido azuis encontravam-se injetados de sangue e sem vida, a compleição corada agora acinzentada como a de um cadáver. Sua pele estava flácida, e a superfície cinza em suas bochechas maculava um rosto que fora considerado bonito. Estendeu o braço direito, e como sempre o tecido das cicatrizes, com aparência de plástico, estava dolorido. Lavou a boca e andou penosamente até a cozinha para fazer café.
Pelo menos tinha um pouco de grãos, também adquiridos numa loja que abastecia os membros da nomenklatura, e uma máquina ocidental onde prepará-lo. Considerou a possibilidade de comer alguma coisa, mas resolveu ficar só com o café. Podia depois comer um pedaço de pão em sua escrivaninha. O café ficou pronto em três minutos. Bebeu a xícara de um só gole, ignorando os danos do líquido quente, depois levantou o fone para chamar seu carro. Queria ser apanhado cedo e, embora não dissesse que desejava visitar a casa de banhos, o sargento que atendeu ao telefone na garagem sabia o motivo.
Vinte minutos mais tarde Misha saía pela porta principal do edifício. Seus olhos lacrimejavam, e ele os estreitou dolorosamente contra o vento noroeste que tentava empurrá-lo de volta. O sargento pensou em alcançá-lo e firmar seu coronel, mas Filitov inclinou o corpo para contrabalançar os efeitos da mão invisível da natureza e entrou no carro da maneira que sempre fazia, como se estivesse embarcando em seu velho T-34 para combater.
¯ Para os banhos, camarada coronel? ¯ quis saber o sargento, depois de acomodar-se no banco da frente.
¯ Você vendeu a vodca que eu lhe dei?
¯ Bem... sim, camarada coronel ¯ respondeu o jovem.
¯ Bom para você, é muito mais saudável do que bebê-la. Aos banhos. Rápido ¯ declarou o coronel, fingindo seriedade ¯, e talvez eu sobreviva.
¯ Se os alemães não conseguiram matá-lo, meu coronel, duvido que uma pequena quantidade de boa vodca russa consiga fazer isso ¯ disse alegremente o rapaz.
Misha permitiu-se uma risada, aceitando com bom humor a ponta-da em sua cabeça. O motorista até mesmo se parecia com o cabo Romanov.
¯ O que acha de ser um oficial, algum dia?
¯ Obrigado, camarada coronel, mas desejo voltar à faculdade para terminar meus estudos. Meu pai é engenheiro químico e gostaria de seguir sua carreira.
¯ Pois então ele é um homem de sorte, sargento. Vamos andando. O carro chegou ao prédio desejado em dez minutos. O sargento deixou que o coronel descesse, depois estacionou num dos espaços reservados de onde ele podia observar as portas. Acendeu um cigarro e abriu um livro. Era um bom emprego esse, muito melhor do que arrastar-se na lama com uma companhia de combate. Pobre coitado, pensou ele, ser assim tão sozinho. Que sorte miserável um herói chegar a esse ponto.
No interior, a rotina era tão rígida que Misha poderia tê-la realizado dormindo. Depois de despir-se, apanhou sua toalha, os chinelos, os ramos de vidoeiro e foi até a sala de vapor. Viera mais cedo do que de costume. A maior parte dos freqüentadores regulares ainda não chegara. Melhor assim. Aumentou o fluxo de água nos tijolos refratários e sentou-se para permitir que sua cabeça latejante se desanuviasse. Três outros espalhavam-se pela sala. Reconheceu dois deles, mas não eram amigos e nenhum parecia ter vontade de falar. Para Misha estava ótimo assim. O simples fato de mover a mandíbula doía, e a ação da aspirina parecia mais lenta naquela manhã.
Quinze minutos mais tarde, o suor brotava do corpo branco. Levantou os olhos para observar o atendente, ouviu a cantilena de sempre sobre as bebidas ¯ ninguém quis nada ainda ¯, mais a parte sobre a piscina. Parecia uma coisa natural para um homem naquele trabalho dizer, mas o que a combinação exata de palavras significava era: Tudo certo. Estou pronto para a transferência. Em resposta, Misha limpou o suor das sobrancelhas num gesto exagerado e comum aos homens de sua idade. Pronto. O atendente saiu. Vagarosamente, Misha começou a contar até trezentos. Quando chegou a 257, um de seus companheiros alcoólatras levantou-se e saiu. Misha reparou no fato, mas não se preocupou. Tinha muita prática para isso. Quando chegou a trezentos, ergueu-se com um movimento oscilante dos joelhos e deixou a sala sem uma palavra.
O ar estava muito mais frio no vestiário, mas ele notou que o outro homem ainda não saíra. Falava sobre algum assunto com o atendente. Misha esperou com paciência que o atendente reparasse nele, o que aconteceu logo. O jovem veio em seguida, e o coronel andou alguns passos para encontrá-lo. Misha tropeçou num ladrilho solto e quase caiu. Seu braço bom projetou-se para a frente. O atendente o segurou, ou quase o fez. Os ramos de vidoeiro caíram ao chão.
O jovem apanhou-os num instante e ajudou Misha a firmar-se. Em mais alguns segundos deu-lhe uma toalha limpa para o banho de chuveiro e colocou-se a caminho.
¯ Está bem, camarada? ¯ indagou o outro homem do canto distante do aposento.
¯ Sim, obrigado. São meus velhos joelhos, e esse velho assoalho. Eles deviam cuidar melhor do assoalho.
¯ Deviam mesmo. Venha, vamos tomar uma ducha juntos ¯ convidou o homem. Tinha cerca de 40 anos, e não havia nada notável nele, à exceção dos olhos injetados. Mais um bebedor, reparou imediatamente Misha. ¯ Esteve na guerra, então?
¯ Como tanquista. O último canhão alemão me acertou... mas eu também o acertei, no saliente de Kursk.
¯ Meu pai esteve lá. Ele serviu no Sétimo Exército, sob o comando de Koniev.
¯ Eu estava do outro lado: Segundo de Tanques, sob o comando de Konstantin Rokossovsky. Minha última batalha.
¯ Posso ver por quê, camarada...
¯ Filitov, Mikhail Semyonovich, coronel da Divisão de Tanques.
¯ Sou Klementi Vladimirovich Vatutin, mas não sou herói. É um prazer conhecê-lo, camarada.
¯ É bom para um velho ser tratado com respeito.
O pai de Vatutin havia servido na campanha em Kursk, mas como agente político. Ele havia se aposentado como coronel da NKUD, e seu filho seguira suas pegadas naquela agência de segurança interna que depois se tornou a KGB.
Vinte minutos depois, o coronel saiu para seu escritório, e o atendente dos banhos esgueirou-se pela porta traseira e entrou na lavanderia a seco. O gerente da loja precisou ser chamado na sala de equipamentos, onde estivera lubrificando uma bomba. Como simples medida de segurança, o homem que apanhou o filme não deveria saber o nome do outro, nem onde ele trabalhava. Embolsou o magazine, passou três garrafas de meio litro de bebida e voltou a lubrificar a bomba, seu coração batendo rápido, como sempre acontecia em tais dias. Achava muito divertido o fato de que seu trabalho de cobertura como "agente" da CIA ¯ um soviético trabalhando para a agência americana de informações ¯ funcionava em seu próprio benefício fiscal. O comércio ilícito de álcool pagava em rublos "certificados", que poderiam ser utilizados para comprar bens ocidentais e gêneros alimentícios de primeira nas lojas de moeda estável. Pesou aquilo contra a tensão de sua missão enquanto retirava o óleo da superfície da máquina com as mãos. Fazia parte daquela corrente de "elos" há seis meses, e, embora não soubesse ainda, seu trabalho na corrente logo estaria terminado. Ainda seria usado para passar informações, mas não para o Cardeal. Em pouco tempo o homem dos banhos estaria procurando outro emprego, e aquela corrente de agentes sem nome seria dissolvida ¯ e impossível de seguir, mesmo para os incansáveis agentes de contra-inteligência do Segundo Diretório da KGB.
Quinze minutos mais tarde, uma cliente habitual apareceu com um de seus casacos ingleses. Era um modelo Aquascutum, com o forro de náilon removido. Como sempre, ela disse alguma coisa sobre tomar um cuidado especial e ser especialmente delicado com o casaco, e como sempre ele protestou afirmando que aquela era a melhor lavanderia em toda a União Soviética. Mas não possuía formulários impressos, e ele escreveu três vias à mão, usando folhas de papel carbono. A primeira foi presa ao casaco com um alfinete, a segunda foi para uma pequena caixa e a terceira... mas primeiro ele verificou os bolsos.
¯ Camarada, esqueceu alguns trocados aqui. Agradeço, mas não precisamos do dinheiro extra. ¯ Ele passou as moedas e o recibo. E mais alguma coisa. Era tão fácil... Ninguém verificava os bolsos, como no Ocidente.
¯ O senhor é de fato um homem honrado ¯ disse a mulher, com estranha formalidade, muito comum na União Soviética. ¯ Bom dia, camarada.
¯ Igualmente ¯ respondeu o homem. ¯ O próximo!
A mulher ¯ seu nome era Svetlana ¯ andou até a estação de metrô, como sempre. Seu horário lhe permitia um andar vagaroso no caso de problemas em algum estágio da entrega. As ruas de Moscou estavam sempre cheias de pessoas apressadas que não sorriam, muitas das quais olhavam para seu casaco com uma ponta de inveja. Ela possuía uma vasta coleção de roupas inglesas, tendo viajado ao Ocidente em várias oportunidades como parte de seu trabalho no Gosplan, órgão soviético de planejamento econômico. Na Inglaterra fora recrutada pelo Serviço Secreto Britânico de Inteligência. Fora utilizada na corrente do Cardeal porque a CIA não tinha muitos agentes disponíveis na Rússia, e ela realizava trabalhos cuidadosamente escolhidos para ficar no centro da corrente, nunca perto das pontas. Os dados que ela mesma proporcionava ao Ocidente eram informações econômicas de baixo nível, e seus serviços ocasionais como mensageira eram na verdade mais úteis do que as informações das quais tanto se orgulhava. Seu controlador nunca lhe dissera aquilo, claro; cada espião julga que possui as informações mais vitais que já saíram do país. Isso tornava o jogo mais interessante, e, por todas as motivações ideológicas (ou outras) envolvidas, os espiões viam sua obra como o maior de todos os jogos, uma vez que precisavam ludibriar os mais formidáveis aparatos de seus próprios países. Svetlana na verdade apreciava o fato de viver perigosamente entre a vida e a morte, embora não soubesse por quê. Também acreditava que seu pai, altamente colocado ¯ um membro já antigo do Comitê Central ¯, poderia protegê-la de qualquer coisa. Afinal de contas, sua influência permitia que ela viajasse para a Europa ocidental duas ou três vezes por ano, não era? Um homem pomposo, seu pai, mas Svetlana era sua única filha, a mãe de seu neto e o centro de seu universo.
Ela entrou na estação Kuznetsky Most a tempo de ver um trem partindo. Calcular o tempo era a parte mais difícil. Na hora do rush, os trens do metrô soviético corriam de trinta em trinta segundos. Svetlana verificou seu relógio, e mais uma vez calculou sua chegada com perfeição. O contato estaria no próximo trem. Andou ao longo da plataforma para o local exato onde estaria a porta dianteira do segundo carro daquele trem, assegurando-se de que seria a primeira a embarcar. Suas roupas ajudaram. Freqüentemente passava por estrangeira, e os moscovitas tratavam os estrangeiros com deferência geralmente reservada à realeza ¯ ou os gravemente enfermos. Não teve que esperar muito tempo. Logo escutou o rumor de um trem que se aproximava. As cabeças se voltaram, como faziam sempre, para ver as luzes do primeiro carro que se aproximava, e o ruído dos freios encheu a estação abobadada com um guincho agudo. As portas se abriram e uma pequena multidão saiu. Svetlana então embarcou e deu alguns passos em direção à traseira do carro. Agarrou a barra de apoio no alto ¯ todos os assentos encontravam-se ocupados, e nenhum homem lhe ofereceu lugar ¯ e ficou de frente antes que o trem andasse novamente. Sua mão esquerda, sem luva, permaneceu no bolso do casaco.
Nunca vira o rosto do seu contato no trem, mas sabia que ele já vira o seu. Quem quer que fosse, ele apreciava sua figura esguia. Ela sabia disso por causa do sinal. No aperto do carro apinhado, uma mão escondida por uma cópia do Izvestia correu ao longo de sua nádega esquerda e parou para apertar suavemente. Aquilo era novidade e ela lutou contra o impulso de ver o rosto do contato. Seria um bom amante? Até que poderia ter mais um. Seu ex-marido era tão... mas não. Dessa maneira era mais poético, mais russo, que um homem cuja face nunca vira a achasse bonita e desejável. Ela agarrou o filme entre o polegar e o indicador, aguardando dois minutos para que o trem parasse em Pushkinskaya. Seus olhos estavam fechados, e um milímetro de sorriso se formava em seus lábios enquanto ela imaginava a identidade e os atributos do contato cujas mãos a acariciavam. Teria horripilado seu agente controlador, mas não exteriorizou sinal algum.
O trem diminuiu a velocidade. Pessoas levantaram dos assentos, e os que estavam em pé prepararam-se para sair. Svetlana tirou a mão do bolso. O magazine estava escorregadio, ela não sabia se era água ou alguma substância oleosa da lavanderia. A mão abandonou seu quadril ¯ uma longa e vagarosa trilha de pressão suave ¯ e elevou-se para receber o pequeno cilindro metálico enquanto seu rosto virava para a direita.
Logo atrás dela, uma mulher idosa tropeçou nos próprios pés e foi de encontro ao contato. A mão dele bateu no magazine, arrancando-o de Svetlana. Por um momento ela não percebeu o que acontecera, e no instante seguinte o homem estava de quatro apanhando o filme. Ela olhou para baixo, mais surpresa do que assustada, vendo a parte traseira da cabeça do contato. Ele estava ficando careca, e o cabelo em volta de suas orelhas era cinza ¯ era um velho! Em um momento ele apanhou o magazine e ficou em pé. Velho mas ágil, pensou ela, vendo de relance a forma do maxilar. Um perfil forte ¯ sim, ele seria um bom amante, e talvez do tipo paciente, o melhor de todos. Ele desceu do trem, e ela aclarou a mente. Svetlana não reparou que um homem sentado ao lado esquerdo do carro levantara-se e andava contra as pessoas que entravam, saindo um segundo antes que as portas se fechassem novamente.
Chamava-se Boris, um agente do turno da noite no quartel-general da KGB, e estava a caminho de casa. Geralmente lia um jornal de esportes ¯ o Sovietsky Sport ¯, mas nesse dia esquecera-se de comprar seu exemplar na banca do prédio do quartel-general, e acidentalmente enxergara no chão sujo e preto do vagão um objeto que só poderia ser um magazine de filme, e pequeno demais para vir de uma câmera comum. Não vira a tentativa de mudá-lo de mãos, e não sabia quem o deixara cair. Presumiu que fosse o homem na casa dos 50, notando a habilidade demonstrada ao recuperá-lo. Uma vez fora do carro, compreendeu que ocorrera uma transferência, porém ficara surpreso demais para reagir prontamente, surpreso e cansado demais depois de uma longa noite de serviço.
Ele era um ex-agente controlador que agira na Espanha até voltar para casa depois de um ataque do coração, sendo destacado para o turno da noite em sua seção. Seu posto era o de major. Achava que merecia o coronelato pelo trabalho que realizara, mas esse pensamento também não estava em sua mente no momento. Seus olhos percorriam a plataforma, procurando pelo homem de cabelos grisalhos e casaco marrom. Lá estava] Ele começou a andar, sentindo uma pequena pon-tada do lado esquerdo do peito enquanto se movia atrás do homem. Ignorou aquilo. Havia deixado de fumar há alguns anos, e o médico da KGB dissera que estava indo bem. Chegou a
Havia sido treinado para isso, é claro, mas aquilo ficara mais de vinte anos atrás, e ele procurava freneticamente os procedimentos em sua mente. Conhecia a técnica de campo, sabia como identificar e despistar um perseguidor, mas era um homem do Primeiro Diretório, e as técnicas de sombreamento usadas pelos furões do Segundo Diretório não constavam de seu repertório. O que faço agora? Irritou-se consigo mesmo. Aquela era uma chance e tanto! Os homens do Primeiro Diretório tinham tendência a odiar naturalmente seus equivalentes do Segundo, e apanhar um deles em... Mas e se houvesse um agente do "Dois" por perto? Será que presenciava um exercício de treinamento? Será que naquele momento ele estaria sendo objeto da ira de um agente do "Dois" que tinha seu caso naquele mensageiro? Poderia lhe acontecer tal desgraça? O que faço agora? Olhou em volta, esperando identificar o homem da contra-inteligência que pudesse estar "trabalhando" o mensageiro. Não tinha esperança de reconhecer o rosto, mas talvez divisasse um gesto sinalizador. Achou que ainda se lembrava do código. Nada. O que faço agora? Estava suando na fria estação do metrô, e a dor em seu peito aumentava para piorar seu dilema. Existia um sistema de linhas telefônicas ocultas em cada estação do sistema de metrô. Todos os agentes da KGB sabiam utilizar-se delas, porém sabia que não tinha tempo para encontrar e ativar o sistema.
Tinha de seguir o homem. Tinha de correr o risco. Se a decisão provasse ser errada, bem, ele era um agente de campo experiente exercendo seu próprio direito e tinha procurado algum sinal. O pessoal do "Dois" iria criticá-lo, mas sabia que podia contar com seus superiores para protegê-lo. A decisão fora tomada, e a dor no peito aquietou-se. Mas restava ainda o problema de localizar o homem. O oficial da KGB abriu caminho através da multidão, suportando as reclamações à medida que progredia, mas finalmente teve o caminho bloqueado por um grupo de trabalhadores que discutia calorosamente sobre algum assunto. Esticou o pescoço para procurar a presa ¯ Sim! Ainda em pé, olhando para a direita... O som do trem do metrô veio como um verdadeiro alívio.
Permaneceu em pé, tentando não olhar com muita freqüência para o alvo. Ouviu as portas dos carros se abrirem com um assobio, ouviu a mudança súbito no barulho quando os passageiros saíram, depois o rumor arrastado de pés quando as pessoas avançaram em direção às portas.
O carro estava lotado! Seu homem achava-se no interior, mas as portas estavam bloqueadas por corpos. O agente da KGB correu para alcançar a porta traseira e lutou para entrar um momento antes que elas se fechassem. Compreendeu com um arrepio que talvez tivesse sido óbvio demais, porém não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Quando o trem começou a andar, abriu caminho em direção à frente. Pessoas sentadas e em pé repararam no movimento inconveniente. Enquanto observava, alguém ajeitou um chapéu. Três ou quatro jornais foram dobrados ¯ quaisquer desses sinais poderia servir de aviso ao mensageiro.
Um deles serviu. Ed Foley olhava para outro lado depois de ajeitar os óculos com a mão direita enluvada, segurando a outra luva. O mensageiro virou as costas para a frente do carro e repassou seus procedimentos de fuga. Foley repassou os seus. O mensageiro iria livrar-se do filme, expondo-o primeiro ao puxar a tira para fora do invólucro de metal, depois atirando-o na lata de lixo mais próxima. Isso havia acontecido duas vezes anteriormente, ao que ele soubesse, e em ambos os casos o "elo" conseguira fugir sem problemas. São treinados para isso, disse Foley a si mesmo. Sabem como fazê-lo. O Cardeal seria avisado, outro filme seria feito e... mas isso nunca acontecera no turno de Foley, e ele precisou usar de toda a sua disciplina para manter o rosto impassível. O mensageiro não fez nenhum movimento. Desceria no ponto seguinte de qualquer jeito. Não fizera nada fora do comum, nada que parecesse anormal. Ele diria que encontrara essa coisa pequena e engraçada, com a ¯ era um filme, camarada? ¯ tira para fora no assoalho do carro, e pensou que fosse simplesmente lixo para ser jogado fora. No interior do bolso, o homem tentava puxar o filme para fora do magazine. Quem quer que o tivesse utilizado, sempre deixava alguns milímetros para fora a fim de que se pudesse puxá-lo inteiro para fora ¯ ou assim lhe foi dito. Mas o magazine estava escorregadio, e ele não conseguia segurar com firmeza a ponta exposta. O trem parou novamente e o mensageiro saiu. Não sabia quem o estava seguindo. Não sabia nada, além de que recebera o sinal de fuga, e esse sinal também lhe dizia para destruir o material que levava da forma combinada ¯ mas nunca tivera de fazer isso antes. Tentou não olhar ao redor e saiu da estação tão rapidamente quanto qualquer um na multidão. De sua parte, Foley nem ao menos olhou para fora pela janela do trem. Era quase inumano, mas conseguiu controlar-se, temendo acima de tudo colocar seu agente em perigo.
O mensageiro subia sozinho num dos degraus da escada rolante. Apenas mais alguns segundos e ele estaria na rua. Encontraria um beco para expor o filme e um esgoto para jogá-lo fora, junto com o cigarro que acabava de acender. Um movimento suave da mão, e mesmo que fosse apanhado não haveria provas, e sua história, decorada e praticada diariamente, era boa o bastante para confundir a KGB. Sua carreira como espião estava terminada agora. Sabia disso e ficou surpreso com a onda de alívio que o envolveu como um banho quente e confortável.
O ar era um frio lembrete da realidade, mas o sol se elevava e o céu estava límpido. Voltou-se para a direita e começou a andar. Havia uma viela a meio quarteirão de distância, e uma grade de esgoto que poderia utilizar. Seu cigarro terminaria exatamente ao chegar lá, outro aspecto que havia praticado. Agora, se conseguisse tirar o filme do magazine e expô-lo à luz do sol... Merda. Retirou sua outra luva e esfregou as mãos. O mensageiro usou as unhas para apanhar a ponta do filme. Pronto! Ele amassou o filme, colocou o magazine de volta ao bolso, e...
¯ Camarada! ¯ A voz era forte para um homem de sua idade, pensou o mensageiro. Os olhos castanhos brilhavam em sinal de alerta, e a mão em seu bolso parecia forte. A outra, notou, escondia-se no bolso do homem. ¯ Quero ver o que tem na mão.
¯ Quem é você? ¯ retrucou o mensageiro. ¯ O que significa isso? A mão direita balançou dentro do próprio bolso.
¯ Sou o homem que vai matar você aqui na rua, a menos que veja o que tem na mão. Sou o major Boris Churbanov. ¯ Churbanov sabia que isso logo seria falso. Pela expressão no rosto do homem, sabia que tinha assegurado o posto de coronel.
Foley chegou ao escritório dez minutos depois. Mandou um de seus homens ¯ na verdade uma mulher ¯ sair às ruas para procurar sinais de que a dispensa do material fora bem-sucedida, e tinha esperança de haver bancado o bobo, apenas reagindo exageradamente a um passageiro habitual com pressa de chegar ao trabalho. Mas... havia alguma coisa naquele rosto que dizia profissional. Foley não sabia exatamente o quê, mas estivera lá. Tinha as mãos estendidas sobre a escrivaninha e ficou olhando para elas durante vários minutos.
O que fiz de errado?, perguntava a si mesmo. Fora treinado para realizar aquilo também, analisar as ações passo a passo, procurando falhas procurando erros, procurando... Fora seguido? Freqüentemente o era é claro, como todos os americanos que trabalhavam com o pessoal da embaixada. Chamava "George" ao homem que sempre o seguia. Mas George não estava presente com muita freqüência. Os russos não sabiam quem era Edward Foley. Tinha certeza disso. Esse pensamento lhe ficou atravessado na garganta. Ter certeza sobre qualquer coisa no negócio de espionagem era o caminho mais certo para o desastre. Esse era o motivo pelo qual nunca falhara nos procedimentos, nunca se desviara do treinamento que fora introduzido nele em Camp Peary, no rio York na Virgínia, e depois colocado em prática pelo mundo inteiro.
Bem. A próxima coisa a fazer estava predeterminada. Foi até a sala de comunicações e enviou um telex para Foggy Bottom. Este, entretanto, foi para um número cujo tráfego nunca era rotina. No espaço de um minuto de seu recebimento, um agente de plantão em Langley dirigiu até State para apanhá-lo. As palavras da mensagem eram inócuas, mas O significado não: PROBLEMAS NA LINHA DO CARDEAL. DADOS COMPLETOS A CAMINHO.
Eles não o levaram para a Praça Dzerzhinsky. O quartel-general da KGB, usado como prisão há tanto tempo ¯ um calabouço, considerando tudo o que acontecia lá ¯, era agora exclusivamente um prédio de escritórios, uma vez que a agência se expandira em obediência à lei de Parkinson, absorvendo todo o seu espaço disponível. Agora os interrogatórios eram realizados no Presídio Lefortovo, a um quarteirão do Cinema Sputnik. Havia muito espaço ali.
Ele estava sentado sozinho numa sala contendo uma mesa e três cadeiras. Nunca ocorrera ao mensageiro a idéia de resistir, e mesmo agora ele não compreendera que, se tivesse corrido ou lutado com o homem que o prendera, podia estar livre ainda. Não era a idéia de que o major Churbanov estivesse armado ¯ não estava ¯, mas simplesmente que aos russos, quando privados de liberdade, freqüentemente faltam os conceitos necessários para uma resistência ativa. Assistira sua vida acabar. Aceitava isso. O mensageiro tinha temores, mas temia apenas o que tinha de ser. Não se pode lutar contra o destino, disse a si mesmo.
¯ Então, Churbanov, o que temos aqui? ¯ quem fez a pergunta foi um capitão do Segundo Diretório, com cerca de 30 anos de idade.
¯ Peça para alguém revelar isso. ¯ Ele entregou o magazine. ¯ Acho que este homem é um agente mensageiro. ¯ Churbanov descreveu o que tinha visto e o que tinha feito. Não disse que havia rebobinado o filme de volta ao magazine. ¯ Foi pura sorte eu ter descoberto o homem ¯ concluiu.
¯ Não sabia que o pessoal do "Um" fazia esse tipo de coisa, camarada major. Muito bem!
¯ Estava com receio de estragar alguma operação de vocês, e...
¯ A essa altura já saberia. É necessário que faça um relatório completo. Se quiser acompanhar o sargento, ele o levará até uma estenó-grafa. Vou convocar também uma equipe completa de verificação. Isso vai levar algumas horas. Talvez queira avisar sua esposa.
¯ O filme ¯ insistiu Churbanov.
¯ É claro. Eu mesmo vou levá-lo ao laboratório. Se você acompanhar o sargento, vou ao seu encontro em dez minutos.
O laboratório ficava na ala oposta da prisão. O Segundo Diretório tinha uma pequena instalação ali, uma vez que a maior parte do trabalho centralizava-se em Lefortovo. O capitão surpreendeu o técnico do laboratório entre dois serviços, e o processo de revelação foi imediatamente iniciado. Enquanto esperava, telefonou para seu coronel. Ainda não havia maneira de saber o que aquele homem do "Um" descobrira, mas era quase certo que se tratava de um caso de espionagem, e todos eles eram tratados como assuntos de grande importância. O capitão balançou a cabeça. Um veterano ex-agente de campo tropeçando num assunto como aquele.
¯ Terminado. ¯ O técnico voltou. Havia revelado o filme e produzido uma ampliação, ainda úmida do processamento. Ele devolveu também o filme revelado, no interior de um pequeno envelope de papel manilha. ¯ O filme foi exposto à luz e rebobinado. Consegui salvar parte de uma exposição. E interessante, mas não tenho idéia do que seja.
¯ E quanto ao resto?
¯ Nada pode ser feito. Uma vez que o filme foi exposto à luz solar, os dados foram totalmente destruídos.
O capitão examinou a ampliação enquanto o técnico dizia mais alguma coisa. Tratava-se principalmente de um diagrama, com títulos em letras de fôrma. As palavras no alto do diagrama diziam: COMPLEXO ESTRELA BRILHANTE 1, e um dos pedaços de outro ca-beçalho era DISPOSIÇÃO DO LASER. O capitão disse um palavrão e deixou a sala.
O major Churbanov tomava chá com a equipe de verificação quando o capitão voltou. O cenário era de camaradagem. Ficaria ainda mais.
¯ Camarada major, o senhor descobriu algo da mais alta importância ¯ afirmou o capitão.
¯ Sirvo à União Soviética ¯ respondeu tranqüilamente Churbanov. Era a resposta perfeita, a recomendada pelo Partido. Talvez pulasse o posto de tenente-coronel e se tornasse um coronel...
¯ Deixe-me ver ¯ pediu o chefe da equipe de verificação. Era um coronel, e examinou cuidadosamente a ampliação. ¯ Isso é tudo?
¯ O resto foi destruído.
O coronel grunhiu. Aquilo iria criar um problema, mas não tão grande assim. O diagrama seria suficiente para identificar o local, onde quer que fosse. O desenho parecia ser o trabalho de uma pessoa jovem, provavelmente uma mulher em virtude do capricho. O coronel fez uma pausa e olhou através da janela por alguns segundos.
¯ Isso precisa ir para o alto, e depressa. O que está descrito aqui é... bem, eu nunca ouvi falar nisso, mas deve ser um assunto do mais alto sigilo. Comecem vocês a verificação, camaradas. Preciso dar alguns telefonemas. Você, capitão, leve o magazine para o laboratório verificar as impressões digitais e...
¯ Camarada, eu o segurei com as mãos nuas ¯ disse Churbanov, envergonhado.
¯ Não tem nada de que se desculpar, camarada major, sua vigilância foi mais do que exemplar ¯ afirmou generosamente o coronel. ¯ Verifique as impressões de qualquer modo.
¯ O espião? ¯ perguntou o capitão. ¯ Que tal interrogá-lo?
¯ Precisamos de alguém com experiência. Conheço o homem certo. ¯ O coronel levantou-se. ¯ Vou telefonar para ele também.
Muitos pares de olhos o observavam, avaliando-o, ao seu rosto, sua determinação, sua inteligência. O mensageiro ainda estava só na sala de interrogatório. Os cordões de seus sapatos foram retirados, é claro, além do cinto, os cigarros e tudo o mais que pudesse lhe servir de arma contra si mesmo. Não havia maneira de medir o tempo, e a falta de nicotina o deixava irritado e ainda mais nervoso do que deveria estar. Correu o olhar pela sala e viu um espelho, que permitia a visão do outro lado, embora ele não soubesse disso. A sala era completamente à prova de sons, negando-lhe até mesmo a possibilidade de medir o tempo através do som das passadas no corredor externo. Seu estômago roncou algumas vezes, mas fora isso não produziu nenhum som. Finalmente a porta se abriu.
O homem que entrou tinha por volta de 40 anos e estava bem vestido com roupas civis. Trazia algumas folhas de papel. O homem deu a volta até o outro lado da mesa e não olhou para o mensageiro até sentar-se. Quando o fez, seus olhos mostravam desinteresse, como alguém no zoológico examinando uma criatura de uma terra distante. O mensageiro tentou manter o olhar impassível, mas não conseguiu. O interrogador já sabia que aquele seria fácil. Depois de quinze anos, ele sempre podia prever.
¯ Você tem uma escolha ¯ declarou ele, depois de pouco mais de um minuto. Sua voz não era dura, mas tinha um tom decidido. ¯ Pode ser fácil para você, ou pode ficar muito desagradável. Você cometeu traição contra a Mãe Pátria. Não preciso dizer o que acontece com traidores. Se deseja viver, vai me dizer agora, hoje, tudo o que sabe. Se não fizer isso, vamos descobrir de qualquer maneira e você morrerá. Se nos disser tudo hoje, sèr-lhe-á permitido viver.
¯ Vocês vão me matar de qualquer jeito ¯ observou o mensageiro.
¯ Isso não é verdade. Se cooperar hoje, será na pior das hipóteses sentenciado a uma pena extensa num campo de trabalho de regime rigoroso. É até possível que o utilizemos para desmascarar outros espiões. Se for assim, será enviado para um campo de regime moderado, para cumprir uma pena menor. Mas, para que isso aconteça, você precisa cooperar, hoje. Vou explicar. Se retomar sua vida normal imediatamente, as pessoas para as quais trabalha podem não ficar sabendo que o prendemos. Portanto, continuarão a utilizá-lo e isso nos permitirá usar você para apanhá-los no ato de espionar a União Soviética. Você testemunhará contra eles nos tribunais, e isso permitirá que o Estado demonstre clemência. Demonstrar clemência em público é uma coisa útil ao Estado. Mas para que tudo isso aconteça, para salvar sua vida e expiar seus crimes, precisa cooperar hoje. A voz parou por um instante, e suavizou-se ainda mais.
¯ Camarada, não tenho nenhum prazer em produzir dor nas pessoas, mas, se meu trabalho assim o exigir, darei a ordem sem hesitação. Não pode resistir ao que faremos com você. Ninguém pode. Não importa o quanto seja corajoso, seu corpo tem limitações. O meu também. É só uma questão de tempo. O tempo é importante para nós apenas nas primeiras horas, compreende? Depois disso podemos demorar todo o tempo que quisermos. Um homem com um martelo pode quebrar a mais dura das rochas. Poupe-se da dor, camarada. Salve sua vida ¯ concluiu a voz. Os olhos, que eram estranhamente tristes e determinados ao mesmo tempo, fixaram-se no mensageiro.
O interrogador percebeu que tinha vencido. Sempre se podia saber pelos olhos. Os desafiadores, os difíceis, não desviavam os olhos. Podiam encarar os seus, ou mais freqüentemente um ponto fixo na parede atrás, porém os resolutos fixavam um ponto e retiravam dali sua força. Mas não esse. Seus olhos passeavam pela sala, buscando força e não encontrando nada. Bem, ele esperara mesmo que fosse fácil. Talvez mais um gesto...
¯Gostaria de fumar? ¯O interrogador retirou um maço do bolso e sacudiu-o, derrubando um cigarro sobre a mesa.
O mensageiro apanhou-o, e o papel branco do cigarro foi sua bandeira de rendição.
Avaliação de Danos
¯ O que sabemos? ¯ indagou o juiz Moore.
Passava um pouco das 6 horas da manhã em Langley, antes do alvorecer, e a vista do lado de fora das janelas combinava com o desânimo que o diretor e seus principais subordinados sentiam.
¯ Alguém estava seguindo o "elo" número quatro ¯ disse Ritter. O vice-diretor de Operações folheou os papéis em sua mão. ¯ Ele avistou o perseguidor poucos antes que a transferência fosse realizada, e deu o sinal para que o agente saísse. O perseguidor provavelmente não viu seu rosto e saiu atrás do agente. Foley disse que o homem parecia desajeitado... Isso é estranho, mas Foley usou o instinto, e ele é muito bom nisso. Colocou um agente na rua para procurar o sinal de que o "elo" despistara o perseguidor, mas não foi encontrado. Temos de presumir que o "elo" foi "queimado" e temos de presumir que o filme está nas mãos deles também, até provarmos o contrário. Foley quebrou a corrente. O Cardeal será notificado para nunca mais usar seu receptador. Vou dizer a Ed para usar a rotina de dados perdidos, e não a de emergência.
¯ Por quê? ¯ quis saber o almirante Greer. O juiz Moore respondeu.
¯ A informação que estava a caminho é muito importante, James. Se dermos o sinal de emergência, ele pode... bem, dissemos a ele que, caso isso acontecesse, ele deveria destruir tudo o que pudesse incriminá-lo. E se ele não puder recriar as informações? Precisamos delas.
¯ Além do mais, Ivã precisa fazer muita coisa para chegar até ele ¯continuou Ritter. ¯ Quero que Foley receba os dados restaurados e os envie, depois... depois quero retirar o Cardeal de uma vez por todas. Ele já pagou suas dívidas. Depois que obtivermos os dados, então daremos o sinal de emergência, e, se tivermos sorte, vai assustá-lo o suficiente para convencê-lo a sair.
¯ Como quer fazer isso? ¯ perguntou Moore.
¯ Pela via molhada, no norte ¯ respondeu o vice de Operações.
¯ Alguma sugestão, James? ¯ indagou Moore ao vice de Inteligência.
¯ Faz sentido. Leva algum tempo para preparar. Dez a catorze dias.
¯ Vamos fazer isso hoje. Você liga para o Pentágono e faz o pedido. Certifique-se de que eles nos dêem um bom meio.
¯ Certo ¯ concordou Greer, depois sorriu. ¯ Já sei que barco vou pedir.
¯ Logo que soubermos qual é, enviaremos nosso homem para lá. Usaremos o senhor Clark ¯ disse Ritter. Cabeças afirmaram sua concordância. Clark era uma pequena lenda no Diretório de Operações. Se havia alguém que podia fazê-lo, esse alguém era ele.
¯ Muito bem, envie a mensagem a Foley ¯ declarou o juiz. ¯ Tenho que dar conhecimento disso ao presidente. ¯ Não estava ansioso para fazê-lo.
¯ Ninguém dura para sempre. O Cardeal já teve sorte por três vezes ¯ disse Ritter. ¯ Lembre-se também de dizer isso a ele.
. ¯ Certo. Muito bem, cavalheiros; ao trabalho. O almirante Greer foi imediatamente para seu escritório. Eram quase 7 horas, e ele ligou para o OP-02, no Pentágono, o gabinete do subchefe de Operações Navais (Guerra Submarina). Depois de identificar-se, fez a primeira pergunta:
¯ O que o Dallas está fazendo?
O capitão Mancuso também já estava trabalhando. Sua última missão no USS Dallas começaria em cinco horas. Ele zarparia com a maré. Avante, os engenheiros já colocavam a postos o reator nuclear. Enquanto seu oficial imediato colocava as coisas em andamento, o capitão examinava novamente as ordens da missão. Iria ' 'para o norte'' uma última vez. Na Marinha dos Estados Unidos e na Marinha Real britânica, ' 'para o norte'' significava o mar de Barents, o local de manobras da Marinha soviética. Uma vez lá, conduziria o que a Marinha oficialmente denominava pesquisa oceanográfica, e no caso do USS Dallas significava que passaria todo o tempo possível seguindo submarinos soviéticos lançadores de mísseis. Não era um trabalho fácil, mas Mancuso era perito naquilo, e tinha certa feita observado um boomer russo mais de perto do que qualquer outro comandante de submarino americano. Não podia discutir o assunto com ninguém, claro, nem mesmo com seus colegas comandantes. Sua segunda medalha de mérito em serviço, conquistada nessa missão, era sigilosa e ele não podia usá-la; embora sua existência constasse na parte confidencial de sua ficha pessoal, a medalha em si não existia. Mas tudo aquilo ficara para trás, e Mancuso era um homem que sempre olhava para a frente. Se tinha de cumprir mais uma missão, bem que podia ser "para o norte". Seu telefone tocou.
¯ Capitão falando ¯ atendeu ele.
¯ Bart, Mike Williamson ¯ disse o comandante do Grupo Dois de Submarinos. ¯ Preciso de você aqui, imediatamente.
¯ A caminho, senhor. ¯ Mancuso desligou, surpreso. Em um minuto ele subia a escada, saía do barco e andava ao longo do cais betuminoso no Tâmisa, onde o carro do almirante aguardava. Entrou no escritório do Grupo Dois quatro minutos depois.
¯ Mudança nas ordens ¯ anunciou o contra-almirante Williamson tão logo a porta foi fechada.
¯ O que há?
¯ Você vai fazer uma corrida a toda velocidade para Faslane. Algumas pessoas vão encontrá-lo lá. Isso é tudo que eu sei, mas as ordens foram originadas em OP-02 e vieram através de um dos nossos submarinos no Atlântico em cerca de trinta segundos. ¯ Williamson não precisou dizer mais nada. Alguma coisa muito "quente" estava acontecendo. Assuntos "quentes" chegavam ao Dallas com freqüência. Na verdade vinham para Mancuso, mas afinal ele encarnava o Dallas.
¯ Minha seção de sonar ainda está um pouco crua ¯ informou o capitão. ¯ Tenho alguns jovens bons, mas meu novo chefe está no hospital. Se esta missão vai ser especialmente "cabeluda"...
¯ O que precisa? ¯ quis saber o almirante Williamson, escutando depois a resposta. ¯ Muito bem, vou trabalhar nisso. Você tem cinco dias para chegar à Escócia, e posso conseguir alguma coisa até lá. Dê duro no comando, Bart.
¯ Sim, senhor! ¯ Ele descobriria o que se passava quando chegasse a Faslane.
¯ Como está, russo? ¯ perguntou o Arqueiro. Ele estava melhor. Nos dois dias anteriores tivera certeza de que iria
morrer. Agora já não parecia tão convicto. Esperança falsa ou não, era algo que não existia antes. Churkin perguntava-se agora se haveria realmente um futuro em sua vida e se existiria alguma coisa que pudesse lhe provocar medo. Medo. Havia esquecido isso. Enfrentara a morte por duas vezes num curto período de tempo. Uma vez no avião em chamas que caía, atingindo o chão e assistindo ao instante em que sua vida terminara; depois, acordando da morte para encontrar um bandido afegão debruçado sobre ele com uma faca, encarara a morte ainda uma vez, apenas para vê-la parar e partir. Por quê? Aquele bandido, o que tinha um olhar estranho, duro e suave ao mesmo tempo, sem piedade e cheio de compaixão, queria que ele vivesse. Por quê? Churkin tinha tempo e energia para fazer a pergunta agora, mas eles não lhe deram resposta.
Estava sendo transportado em algum veículo. Churkin percebeu que estava deitado sobre metal. Um caminhão? Não, havia uma superfície plana sobre sua cabeça, também metálica. Onde estou? Tinha de estar escuro lá fora. Nenhuma luz passava atrás das seteiras no lado do... estava num carro blindado de transporte! Onde os bandidos teriam conseguido um daqueles? Para onde o estavam...
Eles o levavam para o Paquistão! Pretendiam entregá-lo aos... americanos? A esperança transformou-se em desespero. Tossiu novamente, e sangue fresco saiu de sua boca.
De sua parte, o Arqueiro sentia-se com sorte. Seu grupo encontrara outro, que levava dois transportadores soviéticos blindados de infantaria BTR-60 para o Paquistão, e ficaram contentes em carregar os feridos de seu bando com eles. O Arqueiro era famoso, e não faria nenhum mal ter um atirador de SAM protegendo-os, se helicópteros russos aparecessem. Mas era pequena a possibilidade de que isso acontecesse. As noites eram longas, o tempo havia piorado, a média de velocidade era de quase
As coisas corriam bem para os mudjahidin. Havia rumores de que os russos poderiam realmente retirar-se do país. Seus soldados não procuravam mais combate direto com os afegães. Os soviéticos usavam a infantaria principalmente para obter contato, depois chamavam a artilharia e apoio aéreo. Colocando de lado alguns bandos de pára-quedistas maldosos e os odiados comandos Spetznaz, os afegães sentiam que haviam adquirido a superioridade moral nos campos de batalha ¯ devida, claro, à sua causa sagrada. Alguns de seus líderes na verdade falavam em vencer, e a conversa chegara até os combatentes. Agora também eles tinham esperança de outra coisa além da continua guerra santa.
Os dois transportadores atingiram a fronteira à meia-noite. Dali em diante seria mais facial. A estrada que levava ao Paquistão era protegida agora pelas próprias forças. Os pilotos do APC poderiam aumentar a velocidade e chegavam a divertir-se com o que faziam. Alcançaram Miram Shah três horas depois. O Arqueiro desceu primeiro, levando com ele o prisioneiro russo e seus feridos.
Encontrou Emilio Ortiz esperando por ele com uma lata de suco de maçã. Os olhos quase saíram das órbitas quando percebeu que o homem carregado pelo Arqueiro era um russo.
¯ Meu amigo, o que trouxe para mim?
¯ Está gravemente ferido, mas aqui está o que ele é. ¯ O Arqueiro passou uma das divisas de ombro, depois uma valise. ¯ E isso é o que ele levava.
¯ Filho da puta! ¯ xingou Ortiz em inglês. Viu o sangue coagulado ao redor da boca do homem e percebeu que
suas condições de saúde não eram promissoras, mas... que captura! Levou mais um minuto acompanhando os feridos até o hospital de campanha antes que a próxima pergunta viesse à sua cabeça: Que diabos vamos fazer com ele?
A equipe médica ali era composta principalmente de franceses, com poucos italianos e alguns suíços. Ortiz conhecia a maioria e suspeitava de que muitos deles enviavam informações ao DGSE, o departamento francês de contra-espionagem. O que importava, entretanto, era que havia ali alguns ótimos médicos e enfermeiras. Os afegães também sabiam disso e os protegiam como protegeriam a própria pessoa de Alá. O cirurgião que fazia a seleção colocou o russo em terceiro lugar na lista de operações. Uma enfermeira o medicou e o Arqueiro deixou Abdul encarregado de manter um olho nas coisas. Não tinha trazido o russo de tão longe para que morresse assassinado. Ele e Ortiz afastaram-se para conversar.
¯ Fiquei sabendo o que aconteceu em Ghazni ¯ disse o agente da CIA.
¯ Foi a vontade de Deus. Esse russo perdeu um filho. Não consegui... talvez eu tenha matado o suficiente para um dia. ¯ O Arqueiro deu um longo suspiro. ¯ Ele será útil?
¯ Isto aqui é. ¯ Ortiz já folheava os documentos. ¯ Meu amigo, você não sabe o que fez. Bem, vamos falar sobre as últimas duas semanas?
O relato durou até o amanhecer. O Arqueiro apanhou seu pequeno diário e repassou tudo o que tinha feito, parando apenas quando Ortiz mudou a fita do gravador.
¯ Aquela luz que você viu no céu.
¯ É... parecia muito estranha ¯ disse o Arqueiro, esfregando os olhos.
¯ O homem que trouxe ia para lá. Aqui está o diagrama da base.
¯ Aonde é, exatamente... e o que é?
¯ Não sei, mas fica a apenas cerca de
¯ Talvez uma semana ¯ respondeu o Arqueiro.
¯ Preciso relatar isso aos meus superiores. Talvez eles queiram vê-lo. Meu amigo, será amplamente recompensado. Faça uma lista do que precisa. Uma longa lista.
¯ E o russo?
¯ Vamos falar com ele, também. Se sobreviver.
O mensageiro andava ao longo da Lazovsky Pereulok, aguardando seu contato. Suas próprias esperanças oscilavam. Na verdade acreditava em seu interrogador. Por volta do fim da tarde apanhara o giz que usava e fizera a marca apropriada no lugar combinado. Sabia que fizera o sinal cinco horas mais tarde do que devia, mas esperava que seu controlador adiasse o processo de evasão. Não fizera a marca falsa, a qual alertaria o agente da CIA sobre quem se tornara. Não, agora jogava um jogo muito perigoso. Portanto, andava ao longo da temida calçada, esperando pelo controlador para um encontro clandestino.
O que não sabia era que o controlador estava sentado em seu escritório na embaixada americana e não iria àquela parte de Moscou por várias semanas. Não havia planos para entrar em contato com o mensageiro durante esse espaço de tempo. A corrente do Cardeal já não existia. No que tocava à CIA, era como se nunca tivesse existido.
¯ Acho que estamos perdendo tempo ¯ disse o interrogador. Ele e outro agente graduado do Segundo Diretório sentavam-se ao lado da janela de um apartamento. A janela seguinte estava outro agente "Dois" com uma câmera. Ele e outro agente ficaram sabendo de manhã o que era Estrela Brilhante, e o general que comandava o Segundo Diretório havia dado a maior prioridade possível àquele caso. Um vazamento de proporções colossais fora descoberto por aquele veterano alquebrado do "Um".
¯ Acha que ele mentiu para você?
¯ Não. Esse foi fácil de dobrar e... não, não foi fácil demais. Ele se entregou ¯ disse o interrogador com confiança. ¯ Acho que erramos ao mandá-lo para a rua tão rapidamente. Penso que eles sabem, e acho que quebraram a corrente.
¯ Mas o que saiu errado... quero dizer, do ponto de vista deles poderia ter sido rotina.
¯ Da ¯ concordou o interrogador. ¯ Mas sabemos que a informação é altamente importante. Isto significa que a fonte também deve ser. Eles devem, portanto, ter adotado medidas extraordinárias para protegê-la. Agora não podemos fazer as coisas da maneira mais fácil.
¯ Vamos apanhá-lo, então?
¯ Sim. ¯ Um carro aproximou-se do homem. Eles o observaram entrar antes de se dirigirem ao próprio veículo.
No espaço de trinta minutos estavam todos de volta ao Presídio Lefortovo. O rosto do interrogador demonstrava tristeza.
¯ Diga-me, por que acho que você mentiu para mim?
¯ Mas eu não menti. Fiz tudo o que tinha de fazer. Talvez estivesse atrasado, mas isso eu já disse.
¯ E o sinal que deixou, era aquele para avisá-los de que pegamos você?
¯ Não! ¯ O mensageiro quase entrou em pânico. ¯ Expliquei tudo isso, também.
¯ Veja bem, o problema é que não podemos distinguir entre uma e outra marcas de giz. Se você está bancando o espertinho, pode ter nos enganado. ¯ O interrogador inclinou-se para a frente. ¯ Camarada, você pode nos enganar. Qualquer um pode... por algum tempo. Mas não por muito tempo. ¯ Fez uma pausa para deixar a idéia no ar por um minuto. Era tão fácil interrogar os mais fracos. Dar esperança, depois tomá-la; restaurá-la e tirar outra vez. Elevar o ânimo e baixar até que não soubesse mais em que ponto estavam... E, na falta de uma medida dos próprios sentimentos, esses sentimentos tornavam-se do interrogador para usá-los como quisesse.
¯ Vamos começar de novo. A mulher que encontra no trem... quem é ela?
¯ Não sei o nome. Ela tem uns 30 anos, mas aparenta ser mais jovem. Cabelo bonito, esguia e atraente. Sempre está bem vestida, como uma estrangeira, mas não é estrangeira.
¯ Vestida como estrangeira... como assim?
¯ O casaco é geralmente ocidental. Dá para saber por causa do corte e do tecido. Ela é bonita, como já disse, e ela...
¯ Continue ¯ encorajou o interrogador.
¯ O sinal é que eu coloque a mão no traseiro dela. Ela gosta, eu acho. Às vezes ela se aperta contra minha mão.
O interrogador não ouvira antes esse detalhe, mas imediatamente classificou-o como verdadeiro. Detalhes como esse nunca se inventavam, e encaixavam-se perfeitamente. A contato era uma aventureira. Ela não era uma verdadeira profissional, nem reagia como tal. E isso provavelmente ¯ quase com certeza ¯ levava a crer que era russa.
¯ Quantas vezes encontrou-a dessa maneira?
¯ Só cinco. Nunca no mesmo dia da semana, nem no mesmo horário, mas sempre no segundo carro do mesmo trem.
¯ E o homem ao qual você passa o filme?
¯ Nunca vi seu rosto, quero dizer, o rosto inteiro. Ele sempre fica com a mão no apoio de cima, e move o rosto de jeito a manter o braço entre nós. Vejo parte do rosto, mas não inteiro. Ele é estrangeiro, eu acho, mas não sei de que nacionalidade.
¯ Cinco vezes, e diz que nunca viu o rosto! ¯ a voz gritou, e um punho bateu sobre a mesa. ¯ Está achando que eu sou idiota?
O mensageiro encolheu-se de medo, depois começou a falar rapidamente.
¯ Ele usa óculos; um ocidental, tenho certeza. Ele sempre está de chapéu. E também leva sempre um jornal dobrado. Izvestia, sempre o Izvestia. Entre isso e o braço não se pode ver mais do que um quarto do rosto dele. O sinal de vá-em-frente é dobrar um pouco o jornal, como se fosse para seguir uma história, depois se vira para esconder o rosto.
¯ Conte outra vez como é feita a transferência.
¯ Quando o trem pára, ele vem para a frente como se fosse descer no próximo ponto. Eu fico com a coisa na mão, e ele tira de lá por trás quando eu me vou.
¯ Então você conhece o rosto dela, mas ela não conhece o seu. Ele conhece o seu rosto, mas você não conhece o dele... ¯ O mesmo método que este aqui usa para fazer a transferência. E uma bela estratégia, mas por que eles usam a mesma técnica duas vezes na mesma corrente? A KGB utilizava essa técnica também, claro, mas era mais difícil do que os outros métodos, e duplamente no metrô repleto de gente, no frenético horário de pico. Estava começando a achar que um dos meios mais comuns de transferir informações, o dead-drop, não fazia parte dessa corrente. Esse fato também era curioso. Devia haver pelo menos um dead-drop, de outra forma a KGB poderia seguir a corrente. Talvez...
Já estavam tentando identificar a origem do vazamento de informações, claro, mas precisavam ser cuidadosos. Sempre havia a possibilidade de que o espião fosse ele próprio ¯ ou ela própria ¯ um agente de segurança. Essa era, sem dúvida, a atividade ideal para um espião, desde que o trabalho dava acesso a tudo, mais conhecimento adiantado das operações de contra-espionagem em andamento. Já acontecera antes ¯ a investigação de um vazamento alertara o espião, um fato descoberto muitos anos depois do término da investigação. A outra coisa estranha era que a única fotografia que possuíam não era um verdadeiro diagrama, e sim desenhada à mão.
Feita à mão ¯ seria esse o motivo para não haver dead-drops? O espião poderia ser identificado desta maneira, não poderia? Que maneira estúpida de...
Mas não existia nada de estúpido por ali, havia? Não, e nada acidental tampouco. Se as técnicas naquela corrente eram estranhas, eram também profissionais. Havia um outro nível em tudo isso, algo que o interrogador ainda não tinha.
¯ Acho que amanhã vamos dar uma voltinha de metrô.
O coronel Filitov acordou sem latejamento na cabeça, o que já era agradável. Sua rotina matinal "normal" não era muito diferente da outra, só que sem a dor e a visita aos banhos. Depois de vestir-se, verificou o diário enfiado na gaveta da escrivaninha esperando poder destruí-lo, de acordo com o procedimento usual. Já tinha um novo diário em branco, que iniciaria depois da destruição do antigo. Houve rumores sobre novos desenvolvimentos na área do laser no dia anterior, mais um relatório sobre sistemas de mísseis que examinaria na semana seguinte.
Ao entrar no carro, recostou-se, mais alerta do que normalmente, e olhou para o lado de fora da janela durante o percurso até o trabalho. Como era cedo, havia um bom número de caminhões na rua, e um deles bloqueava sua visão de um certo trecho de curva. Esse era o lugar do sinal para "dados-perdidos". Ficou um pouco aborrecido por não poder enxergar o local, mas seus relatórios raramente se perdiam, e não o incomodavam muito com isso. O sinal de "transferência bem-sucedida" ficava num lugar diferente, sempre fácil de ver. O coronel Filitov acomodou-se no banco, olhando através da janela à medida que se aproximavam do local... ali. Moveu a cabeça para acompanhar o ponto, procurando a marca... mas não estava lá. Esquisito. Será que a outra marca fora colocada? Teria que verificar isso na viagem de volta a casa esta noite. Em todos os seus anos de trabalho para a CIA, vários de seus relatórios foram perdidos de uma forma ou de outra, e o sinal de perigo não fora colocado, nem recebera o telefonema perguntando por Sergey, que lhe diria para abandonar o apartamento na mesma hora. Portanto, provavelmente não havia perigo. Apenas um incômodo. Pois bem. O coronel relaxou e meditou sobre seu dia no ministério.
Dessa vez o metrô estava completamente guarnecido. No total, cem homens do Segundo Diretório se encontravam naquele distrito, a maioria vestida como moscovitas comuns, alguns como trabalhadores. Os últimos operavam a linha "negra" de telefones instalada ao longo dos painéis elétricos de serviço através do sistema. O interrogador e seu prisioneiro andavam em trens de um lado para outro da linha "púrpura" e "verde", procurando uma mulher bem vestida num casaco ocidental. Milhões de pessoas viajavam pelo metrô diariamente, mas os agentes de contra-espionagem estavam confiantes. Tinham o tempo trabalhando a seu favor, e o perfil do alvo ¯ uma aventureira. Ela provavelmente não era disciplinada o bastante para separar as rotinas diárias das atividades encobertas. Tais coisas já haviam acontecido antes. Como questão de fé ¯ compartilhada com os colegas em todo o mundo ¯ os agentes de segurança acreditavam que as pessoas que espionavam sua terra natal eram deficientes em algum aspecto fundamental. Com toda a sua malícia, tais traidores provocariam, mais cedo ou mais tarde, a própria destruição.
E eles tinham razão, pelo menos nesse caso. Svetlana chegou à plataforma da estação carregando um pacote embrulhado em papel marrom. O mensageiro reconheceu seu cabelo de imediato. O penteado era comum, mas havia algo na maneira como ela movia a cabeça, uma coisa indefinível que o fez apontar, apenas para ter a mão forçada para baixo. Ela se virou, e o coronel da KGB conseguiu ver-lhe o rosto. O interrogador percebeu que ela estava completamente calma, mais ainda do que os passantes que demonstravam a apatia mal-humorada do moscovita. Sua primeira impressão foi de ver alguém que apreciava a vida. Isso mudaria.
Ele falou num pequeno radiotransmissor, e, quando a mulher embarcou no trem seguinte, tinha companhia. O homem do "Dois" que subiu com ela usava um fone de ouvido, quase como um aparelho de surdez. Atrás dele na estação, os homens trabalhando nos circuitos de telefone alertaram os agentes em cada estação. Quando ela desceu, uma equipe completa de sombreamento estava a postos. Eles a seguiram na subida da longa escada rolante até a rua. Um carro já estava à espera, e mais agentes iniciaram a rotina de vigilância. Pelo menos dois homens sempre mantinham contato visual com o sujeito, e os que estavam próximos alternavam-se rapidamente entre o grupo, enquanto mais agentes se juntavam à perseguição. Eles a seguiram até o prédio Gosplan, na Avenida Marksa, do lado oposto ao Hotel Moscou. Ela não percebeu que era seguida e nem ao menos tentou procurar algum sinal disso. No espaço de meia hora, vinte fotografias foram reveladas e mostradas ao prisioneiro, que a identificou positivamente.
Depois disso o procedimento foi ainda mais cauteloso. Um guarda do prédio forneceu o nome a um agente da KGB que o advertiu para não discutir o assunto com ninguém. De posse do nome dela, a identidade completa estava estabelecida por volta da hora do almoço, e o interrogador, que agora dirigia todos os aspectos do caso, ficou estarrecido ao saber que Svetlana Vaneyeva era filha de um membro superior do Comitê Central. Seria uma complicação a mais. Rapidamente o coronel montou outro conjunto de fotografias e reavaliou o prisioneiro, porém este reconheceu a mulher certa num grupo de seis. Um membro da família de um homem do Comitê Central não era alguém que se... mas eles tinham identificação positiva, e o caso era muito importante. Vatutin foi conferenciar com o chefe de seu diretório. O que aconteceu a seguir foi complicado. Embora tida como todo-poderosa pelo Ocidente, a KGB sempre estivera submetida ao mecanismo do Partido; mesmo a KGB precisava de permissão para investigar um parente próximo de um homem tão importante. O chefe do Segundo Diretório subiu as escadas até o chefe da KGB. Voltou trinta minutos depois.
¯ Pode apanhá-la.
¯ O secretário do Comitê Central...
¯ Ele não foi informado ¯ afirmou o general.
¯ Mas...
¯ Aqui estão suas ordens. ¯ Vatutin apanhou a folha de papel escrita à mão, assinada pessoalmente pelo diretor da KGB.
¯ Camarada Vaneyeva? Ela levantou os olhos e deparou com um homem em roupas civis.
¯ Gosplan era uma agência civil, claro ¯ que a olhava de modo estranho.
¯ Posso ajudá-lo?
¯ Sou o capitão Klementi Vladimirovich Vatutin, da Milícia de Moscou Gostaria que me acompanhasse. ¯O interrogador observou cuidadosamente a reação, mas não percebeu nada.
¯ Qual o motivo? ¯perguntou ela.
¯É possível que nos ajude na identificação de alguém. Não posso dizer mais aqui ¯ disse o homem, em tom de desculpa.
¯ Vai demorar?
¯ Provavelmente algumas horas. Podemos mandar alguém levá-la
de carro para casa.
¯ Muito bem. Não tenho nada muito urgente em rninha mesa no momento. ¯ EÍa levantou sem dizer mais nada.
Seu olhar a Vatutin traía um certo senso de superioridade. A Milícia de Moscou não era uma organização vista com respeito pelos cidadãos, e o mero posto de capitão para um homem de sua idade dizia muito sobre sua carreira. Em um minuto ela vestira o casaco, sobraça-ra o pacote e os dois saíram do prédio. Pelo menos o capitão era kul-tumy, notou ela, em segurar a porta aberta para ela. Svetlana presumiu que esse capitão Vatutin sabia quem ela era ¯ mais precisamente quem era seu pai.
Um carro os aguardava, e partiram imediatamente. Ela ficou surpresa com o caminho, mas só teve certeza quando passaram pela Praça Khokhlovskaya.
¯ Não vamos ao Ministério da Justiça? ¯ indagou ela.
¯ Não, vamos para Lefortovo ¯ respondeu Vatutin, de imediato.
¯ Mas...
¯ Não quis assustá-la no escritório, entende? Na verdade sou o coronel Vatutin do Segundo Diretório. ¯ Houve uma reação a essas palavras, mas Vaneyeva recuperou a compostura num instante.
¯ E o que posso fazer pelo senhor, nesse caso?
Ela era boa, notou Vatutin. Esta seria um desafio. O coronel era leal ao Partido, mas não necessariamente a seus representantes. Ele odiava a corrupção mais ainda do que a traição.
¯ Um assunto não muito importante... sem dúvida estará em casa para jantar.
¯ Minha filha...
Um dos meus homens a apanhará. Se as coisas atrasarem, seu pai não vai ficar aborrecido em vê-la, vai? Ela sorriu ao ouvir aquilo.
¯ Não, meu pai adora mimar a neta.
¯ De qualquer forma não vai demorar tanto assim ¯ declarou Vatutin, olhando pela janela. O carro passou pelos portões do prisídio. file a auxiliou a sair do carro, e um sargento abriu a porta do edifício para ambos. Dar esperança, depois tirá-la. Tomou-lhe delicadamente o braço. ¯ Meu gabinete é por aqui. Soube que viaja sempre ao Ocidente.
¯ Faz parte do meu trabalho. ¯ Ela agora parecia em guarda. Porém não mais do que qualquer pessoa que entrasse naquele edifício.
¯ É, eu sei. Seu departamento lida com tecidos. ¯ Vatutin abriu a porta e conduziu-a para o interior.
¯ É ela! ¯ disse uma voz.
Svetlana Vaneyeva estacou, como se o tempo tivesse parado. Vatutin tomou novamente seu braço e a conduziu até uma cadeira.
¯ Sente-se, por favor.
¯ O que significa isso? ¯ disse ela, finalmente alarmada.
¯ Este homem foi apanhado transportando cópias de documentos secretos do Estado. Ele nos disse que você as entregou a ele ¯ declarou Vatutin, sentando-se à sua mesa.
Vaneyeva voltou-se e encarou o mensageiro.
¯ Nunca vi esse rosto em toda a minha vida! Nunca!
¯ É verdade ¯ concordou Vatutin, com frieza. ¯ Sabemos disso.
¯ O que... ¯ Ela procurava as palavras. ¯ Mas isto não faz sentido.
¯ Você foi muito bem treinada. Nosso amigo aqui diz que o sinal para passar a informação é que ele passe a mão no seu traseiro.
Ela voltou o rosto para seu acusador.
¯ Govnoedl Essa coisa disse isso! Esse... ¯ ela engasgou por um instante. ¯ Inútil! Mentira!
¯ Então nega a acusação? ¯ perguntou Vatutin. Seria um prazer dobrar a vontade dela.
¯ E claro! Sou uma leal cidadã soviética. Sou membro do Partido. Meu pai...
¯ Sabemos sobre seu pai.
¯ Ele vai saber disso, coronel Vatutin, e se o senhor me ameaçar...
¯ Não a estamos ameaçando, camarada Vaneyeva, pedimos apenas informações. Por que estavam ontem no metrô? Sei que tem o próprio carro.
¯ Sempre ando de metrô. É mais simples do que dirigir, e eu tive de fazer uma parada no caminho. ¯ Ela apanhou o pacote do chão. ¯ É muito inconveniente estacionar o carro, entrar e depois continuar. Por isso tomei o metrô. Foi a mesma coisa hoje, quando apanhei o casaco. Pode verificar na lavanderia.
¯ E você não passou isto ao nosso amigo aqui? ¯ Vatutin segurava o magazine do filme.
¯ Nem sei o que é isso.
¯ É claro. ¯ O coronel Vatutin balançou a cabeça. ¯ Bem, aqui estamos. ¯ Pressionou um botão em seu aparelho intercomunicador. A porta lateral abriu-se um momento depois. Três pessoas entraram. Vatutin acenou para Svetlana. ¯ Preparem-na.
As reações dela não foram tanto de pânico quanto de descrença. Svetlana Vaneyeva tentou pular da cadeira, mas dois homens a agarraram pelos ombros, mantendo-a ali. O terceiro enrolou-lhe a manga do vestido e enfiou-lhe uma agulha no braço antes que ela tivesse presença de espírito suficiente para gritar.
¯ Não pode fazer isso! ¯ disse ela. ¯ Não pode... Vatutin suspirou.
¯ Ah, podemos sim. Quanto tempo?
¯ Isso vai mantê-la desacordada por duas horas pelo menos ¯ respondeu o médico. Ele e os dois auxiliares retiraram-na da cadeira. Vatutin deu a volta e apanhou o embrulho. ¯ Ela estará pronta para o senhor assim que eu fizer um check-up, mas não prevejo nenhum problema. A ficha médica dela é boa.
¯ Excelente. Vou descer para comer alguma coisa. ¯ Fez um gesto na direção do outro prisioneiro. ¯ Podem levá-lo. Acho que já terminamos com ele.
¯ Camarada, eu... ¯ começou o mensageiro, apenas para ser cortado.
¯ Nunca mais ouse pronunciar essa palavra. ¯ A reprimenda pareceu mais forte pela suavidade com que foi dita.
O coronel Bondarenko agora dirigia o setor de armas laser do ministério. Fora por decisão do ministro da Defesa Yazov, claro, e recomendado pelo coronel Filitov.
¯ Então, coronel, que notícias nos traz? ¯ perguntou Yazov.
¯ Nossos colegas da KGB nos entregaram planos parciais do espelho americano de ópticos adaptáveis. ¯ Ele passou duas cópias separadas dos diagramas.
¯ Não podemos fazer isso nós mesmos? ¯ quis saber Filitov.
¯ O projeto é na verdade muito engenhoso, e o relatório afirma que um modelo mais avançado está em estágio de projeto no momento. As boas novas são que o espelho precisa de menos acionadores...
¯ O que é isso? ¯ perguntou Yazov.
¯ Os acionadores são os mecanismos que alteram os contornos dos espelhos. Diminuindo seu número, também diminuímos as exigências do sistema de computador que controla a montagem dos espelhos. O espelho existente... este aqui... requer o controle de um supercomputador, que não podemos ainda reproduzir na União Soviética. O novo espelho é projetado para necessitar de um quarto da potência de computador. Isto permite que um computador menor opere o espelho e também um programa de controle mais simples. ¯ Bondarenko inclinou-se para a frente. ¯ Camarada ministro, como meu primeiro relatório indicou, uma das principais dificuldades em Estrela Brilhante é o sistema de computadores. Mesmo que pudéssemos fabricar um espelho como esse, ainda não possuímos hardware e software para operá-lo com eficiência máxima. Acredito que poderíamos fazer isso se tivéssemos o novo espelho.
¯ Mas ainda não temos os planos do novo espelho? ¯ indagou Yazov.
¯ Não. A KGB está trabalhando nisso.
¯ Não podemos nem duplicar esses novos "acionadores" ainda ¯ reclamou Filitov. ¯ Temos as especificações e diagramas há vários meses, e nenhuma fábrica conseguiu ainda...
¯ Tempo e fundos, camarada coronel ¯ censurou Bondarenko. Já estava aprendendo a falar com confiança na atmosfera mais rarefeita.
¯ Fundos ¯ resmungou Yazov. ¯ Sempre fundos. Podemos construir um tanque invulnerável... com fundos suficientes. Podemos alcançar a tecnologia ocidental de submarinos... com fundos suficientes. Cada projeto menor de cada acadêmico na União Soviética vai produzir a arma mais nova... se pudermos ceder fundos suficientes. Infelizmente não temos o suficiente para todos. ¯ Aqui está um aspecto no qual acompanhamos o Ocidentel
¯ Camarada ministro ¯ disse Bondarenko. ¯ Sou um soldado profissional há vinte anos. Servi em batalhão e em corpo de auxiliares de Divisão. Sempre servi o Exército Vermelho, e somente o Exército Vermelho. Estrela Brilhante pertence a outro ramo de serviço. A despeito disso, eu lhe digo que, se for necessário, devemos negar fundos para tanques, navios e aeronaves, a fim de conduzir Estrela Brilhante ao seu término. Possuímos suficientes armas convencionais para conter qualquer ataque da OTAN, mas não temos nada que impeça os mísseis ocidentais de despejarem resíduos sobre nosso país. ¯ Ele mudou de tom. ¯ Por favor, perdoe-me por impor minha opinião tão forçosamente.
¯ Nós lhe pagamos para pensar ¯ observou Filitov. ¯ Camarada ministro, encontro-me em posição de concordar com esse jovem.
¯ Mikhail Semyonovich, por que será que pressinto uma conspiração palaciana entre meus coronéis? ¯ Yazov concedeu um de seus raros sorrisos e voltou-se para o homem mais jovem. ¯ Bondarenko, entre estas paredes espero que me diga o que pensa. Se conseguiu persuadir esse veterano da cavalaria de que seu projeto de ficção científica vale a pena, então preciso pensar nele seriamente. Está dizendo que deveríamos dar prioridade total a esse projeto?
¯ Camarada ministro, deveríamos considerar o assunto. Resta um pouco da pesquisa de base, e sinto que a prioridade de fundos deveria ser drasticamente aumentada. ¯ Bondarenko parou um pouco antes do que Yazov sugeria. Aquela decisão era política, um terreno onde um simples coronel não deveria aventurar-se. Ocorreu ao Cardeal que ele havia subestimado aquele jovem e brilhante coronel.
¯ A taxa de batimentos cardíacos está aumentando ¯ disse o médico quase três horas depois. ¯ Hora zero, paciente consciente. ¯ Um gravador de carretei registrava suas palavras.
Ela não percebeu o ponto em que terminava o sono e começava a consciência. E uma zona indistinta para muitas pessoas, particularmente na ausência de despertador ou do primeiro raio de luz do sol. Ela não recebeu nenhum sinal. A primeira emoção de Svetlana Vaneyeva foi de espanto. Onde estou?, perguntou a si mesma depois de quinze minutos. O efeito residual de dormência dos barbitúricos diminuiu, mas nada substituiu o relaxamento confortável do sono sem sonhos. Ela estava... flutuando?
Tentou movimentar-se, mas... não pôde? Estava em repouso total, cada centímetro quadrado do corpo apoiado uniformemente, de maneira que nenhum músculo parecia distendido ou contraído. Nunca conhecera tamanha sensação de relaxamento. Onde estou?
Não podia ver nada, mas isso tampouco era correto. Não era exatamente negro, mas... cinza... como uma nuvem à noite refletindo as luzes da cidade de Moscou, sem forma, mas com alguma textura.
Não conseguiu ouvir nada, nem o ruído do tráfego, nem os sons de água correndo ou portas batendo...
EÍa voltou a cabeça, mas a vista permaneceu a mesma, um vazio acinzentado, como o interior de uma nuvem, ou uma bola de algodão, ou...
Ela respirou. O ar não trazia nenhum odor, nem gosto, nem umidade, e tampouco uma temperatura que pudesse distinguir. Ela falou... mas incrivelmente não ouviu nada. Onde estou?
Svetlana começou a examinar o mundo com mais cuidado. Passou cerca de uma hora de experiências cautelosas. Svetlana manteve controle das emoções, forçou-se a manter a calma, a relaxar. Tinha de ser um sonho. Nada de inconveniente poderia estar acontecendo na verdade, não a ela. O medo real não começara ainda, mas ela já sentia sua aproximação. Ela reuniu toda a sua determinação e lutou para conservá-la. Explore o ambiente. Os olhos se voltaram para a direita e para a esquerda. Havia luz suficiente apenas para negar-lhe a escuridão. Os braços estavam lá, mas pareciam afastados do corpo, e ela não conseguia aproximá-los, embora tentasse durante um tempo que lhe pareceu horas. O mesmo acontecia com as pernas. Tentou fechar a mão direita em punho... mas não conseguiu nem fazer com que os dedos se encontrassem.
Sua respiração estava mais rápida agora. Era tudo que tinha. Podia sentir o ar entrando e saindo, podia sentir o movimento do peito e nada mais. Fechar os olhos lhe dava a escolha de um vazio negro em vez do cinza, mas era tudo. Onde estou?
Movimento, disse ela a si mesma, mais movimento. Ela rolou de lado, procurando resistência, procurando cada sensação tátil fora de seu próprio corpo. Foi recompensada pela ausência total de estímulos, apenas a mesma resistência fluida ¯ para todos os lados que se voltava, a sensação de flutuar era a mesma. Não importava ¯ ela não sabia dizer ¯ se a gravidade a levava para cima ou para baixo, para a esquerda ou para a direita. Era tudo a mesma coisa. Gritou tão alto quanto conseguiu, apenas para ouvir alguma coisa real e próxima, apenas para certificar-se de que podia contar pelo menos com a própria companhia. Tudo o que ouviu foi o eco distante e fraco de um estranho.
O pânico começou a se instalar.
¯ Tempo: doze minutos... e quinze segundos ¯ disse o médico ao gravador. A cabine de controle ficava a
¯ Tanto maior a necessidade de impulsos sensoriais, eu sei ¯ resmungou Vatutin. Havia lido o relatório sobre os procedimentos, mas estava cético. Era uma técnica novíssima e exigia um tipo de auxílio especializado do qual nunca precisara em sua carreira.
¯ A taxa de batimentos cardíacos parece ter-se estabilizado em 177, sem grandes irregularidades.
¯ Como consegue impedi-la de ouvir a própria voz?
¯ É uma coisa nova. Usamos um dispositivo eletrônico para duplicar a voz e repeti-la exatamente fora de fase. Isso neutraliza quase completamente o som emitido, como se ela gritasse no vácuo. Levou dois anos para ser aperfeiçoado. ¯ Ele sorriu. Assim como Vatutin, apreciava seu trabalho, e aqui via uma chance de validar anos de esforço, para subverter a política institucional com alguma coisa nova e melhor, que levaria o seu nome.
Svetlana estava à beira da hiperventilação, mas o médico alterou a mistura de gases que lhe era fornecida. Precisava ficar de olho nos sinais vitais da paciente. Aquela técnica de interrogatório não deixava marcas no corpo, nem cicatrizes ou qualquer evidência de tortura ¯ na verdade não se tratava absolutamente de tortura. Pelo menos fisicamente. O inconveniente da privação sensorial, entretanto, era que o terror induzido podia levar as pessoas à taquicardia ¯ o que poderia matar o paciente.
¯ Assim está melhor ¯ disse ele, examinando a leitura do eletro-cardiograma. ¯ Taxa cardíaca estabilizada em 138... acelerado, porém normal. A paciente está agitada, mas estável.
O pânico não ajudava. Embora sua mente estivesse frenética, o corpo de Svetlana reagiu para evitar danos. Ela lutou para exercer controle e tornou-se estranhamente calma, outra vez.
Estou viva ou morta? Ela procurou em toda sua memória, em suas experiências, e não encontrou nada... mas...
Havia um som.
O que era?
Tum-tum, tum-tum... o que era?
Era o coração! Isso mesmo!
Seus olhos ainda estavam abertos, procurando a origem do som na escuridão. Havia alguma coisa lá, se apenas ela pudesse encontrá-la. Sua mente procurou uma maneira. Tenho de chegar lá. Preciso agarrar algo.
Porém ela estava presa no interior de uma coisa que não sabia descrever. Começou a mover-se outra vez. Novamente não encontrou nada a que se agarrar, nada que pudesse tocar.
EÍa estava apenas começando a perceber quão sozinha estava. Seus sentidos imploravam por sensações, dados, por alguma coisa! Os centros sensoriais do cérebro buscavam alimentação e encontravam apenas um grande vácuo.
E se eu estiver morta?, perguntou a si mesma.
Será que é isso o que acontece quando a gente morre... um grande vazio.... A seguir veio um pensamento ainda mais perturbador:
Aqui é o inferno?
Mas havia alguma coisa. Havia som. Ela concentrou-se nisso, apenas para descobrir que quanto mais tentava prestar atenção, mais difícil se tornava escutar. Era como tentar agarrar uma nuvem de fumaça, que só estava lá quando ela não tentava ¯ mas precisava agarrá-la.
E assim ela tentou. Svetlana cerrou os olhos com força e concentrou toda a sua força de vontade no som repetitivo do coração humano. Tudo o que conseguiu foi apagar o som dos próprios sentidos. Desapareceu, até que somente a própria imaginação o ouvia, depois isso também tornou-se tedioso.
Ela gemeu, ou pensou ter gemido. Não escutou quase nada. Como era possível falar e não escutar?
Será que estou morta? A pergunta exigia uma resposta, porém a resposta poderia ser aterradora demais para se encarar. Tinha de haver algo... Ela ousaria? Sim!
Svetlana Vaneyeva mordeu sua língua tão forte quanto conseguiu. Foi recompensada com o gosto salgado do sangue.
Estou vivai, disse a si mesma. Alegrou-se com sua revelação por um tempo que lhe pareceu bastante longo. Mas até os períodos longos terminavam:
Mas onde estou? Será que fui enterrada... viva? ENTERRADA VIVA!
¯ Taxa de batimentos cardíacos aumentando novamente. Parece ser o início do período de ansiedade secundária ¯ disse o médico para a gravação. Era uma pena, pensou ele.
Ajudara a preparar o corpo. Uma mulher jovem muito atraente, o ventre macio marcado apenas pelos pontos da maternidade. Haviam passado óleo em sua pele, vestindo-a depois com o traje feito especialmente de borracha Nomex da melhor qualidade, tão macia que não se podia senti-la quando seca sobre a pele ¯ quando molhada, simplesmente parecia não estar ali. Mesmo a água no interior do tanque fora especialmente formulada, com alto conteúdo de sais para que a paciente tivesse flutuabilidade neutra. Seus giros em volta do tanque a tinham deixado de cabeça para baixo e ela não se dava conta. O único problema real é que ela podia embaralhar os tubos de ar, porém um par de mergulhadores no tanque evitava que aquilo acontecesse, sempre tomando cuidado para não tocar a paciente, nem permitir que as mangueiras o fizessem. Na verdade, os mergulhadores ficavam com o trabalho mais difícil de toda a unidade.
O médico lançou a Vatutin um olhar presunçoso. Muitos anos de trabalho foram empregados naquela parte mais secreta da ala de interrogatórios em Lefortovo. A piscina, com
¯ Lá vamos nós. Parece que estamos no segundo estágio. Tempo: uma hora e seis minutos. ¯ Ele se voltou para Vatutin. ¯ Geralmente essa é a fase mais longa. Será interessante ver quanto dura com esta paciente.
Parecia a Vatutin que o médico era uma criança brincando com um jogo elaborado e cruel; por mais que desejasse o que a paciente sabia, no íntimo estava horrorizado com o que via. Perguntou-se se essa sensação vinha do medo de que um dia aquilo fosse aplicado nele...
Svetlana sentia-se fraca. Os tremores das longas horas de terror haviam deixado seus membros exaustos. A respiração vinha em arque-jos curtos, como o de uma parturiente controlando os espasmos do nascimento. Mesmo seu corpo a abandonara agora, e a mente procurava escapar de seus limites e explorar o próprio interior. A consciência tinha a impressão de se ter separado do inútil invólucro de carne, e o espírito, alma, ou o que fosse, estava só, agora, só e livre. Mas a liberdade era uma maldição tão grande quanto a sensação que se fora.
Podia mover-se livremente, podia ver o espaço a seu redor, porém tudo estava vazio. Moveu-se como se estivesse nadando ou voando num espaço tridimensional cujos limites não pudesse distinguir. Sentiu os braços e as pernas movendo-se sem esforço, mas, quando olhou para os membros, descobriu que ficavam fora de seu campo de visão. Podia senti-los a se moverem, mas... simplesmente não estavam lá. A parte da mente que ainda permanecia racional lhe dizia que tudo não passava de uma ilusão, que ela nadava em direção à própria destruição ¯ mas mesmo isso seria preferível a ficar sozinha, não seria?
Esse esforço durou uma eternidade. A parte mais gratificante era a falta de fadiga em seus membros invisíveis. Svetlana desligou seus infortúnios e alegrou-se com a liberdade, em poder enxergar o espaço à sua volta. Aumentou o ritmo. Imaginou que o espaço à sua frente era mais brilhante do que atrás. Se havia uma luz, ela precisava encontrá-la, e uma luz faria muita diferença. Parte dela lembrava da alegria de nadar quando era criança, algo que não tinha feito nos últimos... quinze anos, talvez. Fora a campeã de nado subaquático na escola, podia segurar o fôlego por muito mais tempo do que todos os outros. As lembranças remoçaram-na outra vez, jovem, ágil, mais bonita e mais bem vestida do que as outras. Seu rosto sorriu com expressão angelical e ignorou os avisos do que restava de seu intelecto.
Ela teve a impressão de nadar por dias, ou por semanas, sempre na direção do espaço luminoso à sua frente. Levou mais alguns dias para compreender que o espaço nunca ficava mais brilhante, porém ignorou esse último aviso de sua consciência. Nadou com maior vigor e sentiu fadiga pela primeira vez. Svetlana Vaneyeva ignorou isso também. Ela precisava usar a liberdade em sua vantagem. Tinha de saber onde estava, ou, melhor ainda, achar uma saída daquele lugar. Daquele lugar horrível.
Sua mente moveu-se ainda uma vez, viajando para longe do corpo, e quando atingiu altitude suficiente olhou para baixo, na direção da figura distante que nadava. Mesmo de sua elevada altitude não conseguia ver os limites daquele mundo amplo e amorfo; entretanto, enxergava a pequena figura abaixo, nadando sozinha no vácuo, movendo os membros espectrais num ritmo fútil... sem ir a nenhum lugar.
O grito que saiu do alto-falante na parede quase fez com que Vatutin saltasse da cadeira. Talvez os alemães tivessem escutado uma coisa parecida, o grito das vítimas nos campos de concentração quando as Portas eram fechadas e os cristais de gases aspergidos. Mas isso era pior. Já vira execuções. Já vira tortura. Ouvira gritos de dor, raiva e desespero, mas nunca tinha escutado o grito de uma alma condenada a algo pior do que o inferno.
¯ Aí está... deve ser o começo do terceiro estágio.
¯ O quê?
¯ Acontece ¯ exlicou o médico ¯ que o animal humano é um animal sociável. Nossos seres e nossos sentidos foram projetados para reunir dados que nos permitam reagir tanto ao meio ambiente quanto a outros seres humanos. Tire a companhia humana, tire os impulsos sensoriais, e a mente fica completamente sozinha consigo mesma. Existem muitos dados disponíveis para se constatar o que acontece. Esses idiotas ocidentais que velejam sozinhos ao redor do mundo, por exemplo. Um número surpreendente enlouquece, e muitos desaparecem, provavelmente suicídio. Mesmo os que sobrevivem, aqueles que utilizam diariamente seus radiotransmissores, precisam muitas vezes de médicos para aconselhá-los contra os perigos psicológicos de tal solidão. E eles podem ver a água em volta. Podem ver o barco. Podem sentir o movimento das ondas. Tire tudo isso... ¯ O médico balançou a cabeça. ¯ Eles durariam no máximo três dias. Nós tiramos tudo, como vê.
¯ Qual o tempo mais longo que alguém agüentou aqui?
¯ Dezoito horas... Ele foi voluntário, um jovem oficial do Primeiro Diretório. O único problema é que o paciente não deve saber o que está acontecendo. Isso altera o efeito. Ele também desiste, é claro, mas não tão completamente.
Vatutin respirou fundo. Essas foram as primeiras boas notícias que ele havia escutado.
¯ E esta, quanto vai demorar?
O médico limitou-se a consultar seu relógio e sorrir. Vatutin queria odiá-lo, mas reconheceu que aquele médico, aquele homem dedicado à cura, simplesmente fazia o que ele vinha fazendo há anos, mais rapidamente e sem danos visíveis que pudessem embaraçar o Estado nos julgamentos públicos que a KGB agora era obrigada a suportar. Depois havia ainda certa vantagem adicional que nem mesmo o médico esperara ao iniciar o programa...
¯ Então... o que é esse terceiro estágio?
Svetlana os viu nadando ao redor de sua forma. Tentou avisá-los, mas aquilo a traria de volta para o interior, ela não ousava. Não era tanto uma coisa que ela pudesse enxergar, mas havia formas, vultos predatórios flutuando no espaço ao redor de seu corpo. Um deles aproximou-se, mas depois virou. Então voltou outra vez. Ela também. Tentou lutar, mas algo a arrastou de volta ao corpo que logo se extinguiria. Ela chegou bem a tempo. Enquanto comandava às pernas que nadassem mais rápido, aquilo veio de trás. As mandíbulas se abriram e envolveram seu corpo inteiro, depois fecharam-se lentamente sobre ela. A última coisa que viu foi a luz na direção da qual tinha nadado ¯ a luz, ela percebeu finalmente que nunca estivera lá. Sabia que seu protesto seria em vão, mas explodiu de seus lábios.
¯ Não! ¯ ela não ouviu, é claro.
Ela retornara agora, condenada a usar seu inútil corpo real, de volta à massa cinza perante seus olhos, e aos membros que só se moviam sem propósito. De alguma forma ela entendeu que sua imaginação tentara protegê-la, libertá-la ¯ e falhara completamente. Mas ela não conseguia desligar a imaginação, então seus esforços se tornaram realmente destrutivos. Choramingou sem fazer ruído. O medo que sentia agora era pior do que somente pânico. Pelo menos o pânico era uma escapatória, uma negativa do que ela enfrentava, uma retirada para o interior de si mesma. Mas não havia um ego que pudesse encontrar. Ela o teria visto morrer, se estivesse lá quando aconteceu. Svetlana estava sem o presente, com certeza sem futuro. Tudo o que possuía agora era um passado, e sua imaginação escolhia apenas as piores partes...
¯ Sim, estamos no estágio final agora ¯ disse o médico. Levantou o fone e pediu um pote de chá. ¯ Esta foi mais fácil do que pensei. Ela se encaixa no perfil melhor do que imaginei.
¯ Mas ela não disse nada ainda ¯ protestou Vatutin.
¯ Ela vai dizer.
Ela vira todos os pecados de sua vida. Isso a ajudava a entender o que estava acontecendo. Aquele era o inferno cuja existência o Estado negava, e ela sofria sua punição. Tinha de ser isso. E ela colaborava. Precisava fazê-lo. Precisava ver tudo de novo e entender o que tinha feito. Precisava participar do julgamento no interior da própria mente. Seu choro não parava. As lágrimas corriam por dias a fio, enquanto ela observava a si mesma fazendo coisas que nunca deveria ter feito. Cada transgressão de sua vida passou diante de seus olhos com todos os detalhes. Especialmente aquelas que cometera nos últimos dois anos... De alguma forma sabia que foram elas que a levaram para lá. Svetlana assistiu a todas as vezes em que traíra a Mãe Pátria. Os primeiros flertes tímidos em Londres, os encontros clandestinos com homens sérios, os avisos para que não fosse frívola, depois os tempos em que usara sua importância para atravessar impunemente a alfândega, fazendo o jogo e divertindo-se enquanto cometia os piores crimes. Seus gemidos assumiram um timbre reconhecível. O tempo todo ela repetira aquilo sem se dar conta.
¯ Sinto muito...
¯ Agora vem a parte delicada.
O médico colocou na cabeça os fones. Fez alguns ajustes no console de comando.
¯ Svetlana... ¯ sussurrou ele ao microfone.
A princípio ela não ouviu, e demorou algum tempo até que seus sentidos fossem capazes de reconhecer que havia algo chamando.
Svetlana... chamou a voz. Ou teria sido sua imaginação?...
Sua cabeça girou em volta, procurando o que quer que fosse.
Svetlana... sussurrou a voz novamente. Ela segurou o fôlego pelo tempo que conseguiu, ordenando ao corpo que ficasse parado, mas novamente ele a traiu. O coração disparava, e o sangue latejava em suas orelhas, abafando o som, se é que havia um. Deixou escapar um gemido de desespero, imaginando que a voz não existisse, imaginando que só estava piorando... ou será que existia mesmo uma esperança?...
Svetlana... um pouco mais do que um murmúrio, o suficiente para demonstrar conteúdo emocional. A voz parecia tão triste, tão desapontada... Svetlana, o que você fez?
¯ Eu não... eu não... ¯ gaguejou ela, e não escutava a própria voz enquanto chamava da sepultura. Foi recompensada apenas com a renovação do silêncio. Depois do que lhe pareceu uma hora de intervalo ela gritou: ¯ Por favor, por favor, volte para mim!
Svetlana, repetiu a voz finalmente, o que você fez?....
¯ Sinto muito... ¯ repetiu ela, com a voz embargada pelas lágrimas.
¯ O que você fez? ¯ perguntou novamente. ¯ E quanto ao filme?
¯ Fui eu! ¯ respondeu ela, e em poucos momentos contou tudo.
¯ Tempo: onze horas, quarenta e um minutos. Exercício concluído. ¯ O médico desligou o gravador. A seguir acendeu e apagou várias vezes as luzes da piscina. Um dos mergulhadores no tanque acenou em resposta e introduziu uma agulha no braço da paciente Vaneyeva. Assim que o corpo amoleceu, ela foi retirada. O médico deixou a sala de controle e desceu para vê-la.
Ela estava deitada numa maça quando ele chegou, o traje já retirado. Ele sentou ao lado da forma inconsciente e segurou-lhe a mão enquanto um técnico administrava um estimulante fraco. Ela era bonita, pensou o doutor observando a respiração normalizar-se. Acenou para que o técnico saísse, deixando os dois a sós.
¯ Olá, Svetlana ¯ disse ele com sua voz mais gentil. Os olhos azuis se abriram, enxergaram a luz no teto e as paredes. Depois a cabeça se voltou para ele.
Ele sabia que estava sendo indulgente consigo mesmo, mas trabalhara muito durante uma noite e um dia naquele caso, que era provavelmente a mais importante aplicação do seu programa até agora. A mulher nua saltou da mesa para os seus braços e quase o estrangulou com um abraço. Não porque fosse particularmente bonito, como o médico sabia, mas simplesmente porque era um ser humano, e ela queria tocar um. Seu corpo permanecia escorregadio de óleo enquanto as lágrimas caíam no seu avental branco de laboratório. Ela nunca cometeria outro crime contra o Estado, não depois de tudo aquilo. Era uma pena que tivesse de ser enviada para um campo de concentração. Tamanho desperdício, pensou enquanto a examinava. Talvez pudesse fazer alguma coisa a respeito. Depois de dez minutos ela foi novamente sedada, e ele a deixou dormindo.
¯ Dei a ela uma droga chamada Versed. É um novo produto ocidental, que provoca amnésia.
¯ Por que essa em especial? ¯ indagou Vatutin.
¯ Vou lhe dar outra opção, camarada coronel. Quando ela acordar durante a manhã, vai lembrar muito pouco do que aconteceu. Versed age como a escopolamina, porém é mais eficiente. Ela não vai se lembrar de nenhum detalhe. Tudo parecerá um sonho ruim. Versed também é hipnótico. Por exemplo, posso voltar a ela e fazer a sugestão de que não se lembre de nada, mas que nunca traia novamente o Estado. Existe, grosso modo, uma possibilidade de oitenta por cento que nenhuma das sugestões seja violada.
¯ Está brincando!
¯ Camarada, um dos efeitos dessa técnica é que ela foi condenada com mais rigor do que o Estado o faria. Ela sente mais remorso pelo que fez do que sentiria enfrentando um pelotão de fuzilamento. Certamente leu 1984? Talvez tenha sido um sonho quando Orwell escreveu, mas, com a tecnologia moderna, já podemos fazê-lo. O truque não é quebrar a pessoa do exterior, mas do interior.
¯ Quer dizer que podemos usá-la agora?...
Procedimentos
¯ Ele não vai sobreviver. ¯ Ortiz ouvia o médico da embaixada, um cirurgião do Exército cujo verdadeiro trabalho consistia no tratamento de afegães feridos. Os pulmões de Churkin estavam muito danificados para combater a pneumonia que se instalara durante o transporte.
¯ Ele provavelmente não vai durar até o final do dia. Desculpe, mas houve muito dano ao pulmões. Um dia mais cedo, e poderíamos tê-lo salvado, mas... ¯ O médico balançou a cabeça. ¯ Gostaria de mandar um padre a ele, mas provavelmente é perda de tempo.
¯ Ele consegue falar?
¯ Não muito. Mas pode tentar. Não vai fazê-lo sentir mais dor já do que está sentindo. Ficará consciente por mais algumas horas, depois vai desmaiar.
¯ Obrigado por tentar, doutor ¯ disse Ortiz. Quase suspirou de alívio, mas a vergonha de tal gesto o deteve. O que teriam feito se ele sobrevivesse? Devolvê-lo? Ficar com ele? Trocá-lo?, perguntou a si mesmo. Imaginou por que motivo o Arqueiro o teria trazido. ¯ Bem ¯ disse a si mesmo. Em seguida entrou na sala.
Duas horas depois ele saiu. Ortiz apanhou o carro e foi até a embaixada, cuja cantina servia cerveja. Fez seu relatório a Langley e, pelas cinco horas seguintes, permaneceu sozinho sentado ao lado de uma mesa que reservou exclusivamente às garrafas, e embebedou-se lenta e completamente.
Ed Foley não podia se dar a esse luxo. Um de seus mensageiros desaparecera três dias antes. Outro deixara a escrivaninha no Gosplan e voltara dois dias depois. Agora de manhã, o homem da lavanderia ligara afirmando estar doente. Enviara um alerta para o garoto na casa de banhos, mas não sabia se fora recebido ou não. Não havia apenas uma perturbação na rede do Cardeal, e sim um verdadeiro desastre. A vantagem em usar Svetlana Vaneyeva residia em sua suposta imunidade contra as medidas mais severas da KGB, e ele contara com uma resistência de vários dias para remover seu pessoal. Ordens de aviso para a fuga do Cardeal haviam chegado, mas ainda aguardavam o momento de serem transmitidas. Não via nenhuma vantagem em assustá-lo antes que tudo estivesse completamente pronto. Depois disso, seria fácil para o coronel Filitov arranjar uma desculpa para visitar o Distrito Militar de Leningrado ¯ uma coisa que fazia a cada seis meses ¯ e tirá-lo do país.
Se isso funcionar, lembrou Foley. Só fora feito duas vezes antes, que ele soubesse, e mesmo que tivesse corrido bem... não havia nenhuma certeza, havia? Não mesmo. Era hora de sair. Ele e sua mulher precisavam de algum tempo para descansar, longe de tudo aquilo. Os próximos trabalhos deveriam ser com o pessoal de treinamento da "Fazenda", no rio York. Mas tais pensamentos não ajudavam a resolver seu problema atual.
Considerou se deveria alertar o Cardeal de alguma forma, para que fosse mais cuidadoso ¯ mas nesse caso ele destruiria os dados de que Langley precisava desesperadamente, e os dados eram essenciais. Aquela era a regra, uma regra que Filitov conhecia e aceitava, supostamente tão bem quanto Foley. Porém espiões eram mais do que simples objetos que produziam informações, não eram?
Agentes de campo como Foley e sua esposa deviam encará-los como bens valiosos mas dispensáveis, distanciando-se de seus agentes, e tratando-os bondosamente quando possível, mas impiedosamente quando necessário. Tratá-los como crianças, na verdade, com uma mistura de indulgência e disciplina. Só que eles não eram crianças. O Cardeal era mais velho do que seu próprio pai, e já era um agente quando Foley cursava o segundo grau! Poderia não demonstrar lealdade a Filitov? Claro que não. Precisava protegê-lo. Mas como?
Operações de contra-espionagem freqüentemente não passavam de trabalho policial, e como resultado disso o coronel Vatutin sabia tanto sobre investigação quanto os melhores homens da Milícia de Moscou. Svetlana entregara a ele o gerente da lavanderia, e, depois de dois dias de vigilância cerrada, decidira trazer o homem para ser interrogado. Não usaram o tanque com ele. O coronel ainda não confiava na nova técnica, e além do mais não havia necessidade de ir devagar com ele. Incomodava a Vatutin que Vaneyeva agora tivesse a chance de ficar livre ¯ livre, depois de trabalhar para os inimigos do Estado! Alguém queria usá-la como peça de barganha por algum favor do Comitê Central mas aquele não era um assunto da alçada do coronel. Agora o homem da lavanderia fornecera a descrição de outro membro daquela corrente infindável.
A parte que mais incomodava Vatutin era que ele pensava ter visto o rapaz! O gerente tinha contado logo sobre sua suspeita de que o rapaz trabalhasse nos banhos, e a descrição combinava com o atendente com quem conversara pessoalmente! Mesmo não sendo um contato profissional, enraivecia Vatutin que ele tivesse encontrado um traidor naquela manhã da semana que passara, sem reconhecê-lo pelo que parecia...
Qual era mesmo o nome daquele coronel?, perguntou subitamente a si mesmo. Aquele que tropeçara? Filitov ¯ Misha Filitov? Ajudante pessoal do ministro da Defesa Yazov?
Devia estar com uma tremenda ressaca para não fazer a ligação! Filitov de Stalingrado, o tanquista que matara alemães enquanto queimava em seu tanque atingido: Mikhail Filitov, três vezes Herói da União Soviética... Tinha de ser o mesmo. Seria ele o...
Impossível, disse a si mesmo.
Mas nada era impossível. Se é que aprendera alguma coisa, Vatutin aprendera isso. Clareou sua cabeça e considerou friamente as possibilidades. As boas notícias eram que qualquer pessoa preeminente na União Soviética possuía um arquivo no número 2 da Praça Dzerzhinsky. Era simples obter a ficha de Filitov.
O dossiê revelou ser grosso, como verificou quinze minutos mais tarde. Vatutin compreendeu que não sabia nada sobre o homem. Como a maioria dos heróis de guerra, feitos realizados no breve espaço de alguns minutos expandiram-se para marcar a vida inteira. Mas nenhuma vida era assim tão simples. Vatutin começou a ler o arquivo.
Pouca coisa tinha relação com suas façanhas de guerra, embora essa época fosse inteiramente coberta, incluindo as citações por todas as suas medalhas. Como ajudante-de-ordens de três ministros da Defesa, Misha tinha passado por verificações rigorosas de segurança, algumas das quais Filitov tivera conhecimento, outras não. Aqueles Papéis também estavam em ordem, claro. Voltou sua atenção para a pasta seguinte.
Vatutin ficou surpreso ao saber que Filitov envolvera-se no caso do infame Penkovsky. Oleg Penkovsky fora um agente graduado na GRU, a agência soviética de Inteligência militar, recrutado pelos ingleses, depois "dirigido" conjuntamente pelo SIS e pela CIA, traíra seu país tão completamente quanto um homem poderia fazê-lo. Sua penúltima traição fora deixar vazar para o Ocidente o estado de alerta ¯ ou falta de preparo ¯ das Forças de Foguetes Estratégicos durante a Crise dos Mísseis em Cuba; essa informação permitira ao presidente americano Kennedy forçar Kruschev a retirar os mísseis que tão imprudentemente haviam sido baseados naquela maldita ilha. Mas a lealdade torcida de Penkovsky aos estrangeiros o forçou a assumir riscos em demasia para entregar aquelas informações, e um espião só pode assumir muitos riscos. Já estivera sob suspeita. Geralmente se pode prever quando o outro lado se torna esperto demais, porém... Filitov tinha sido o responsável pela primeira acusação real...
Filitov fora quem denunciara Penkovsky? Vatutin espantou-se. A investigação estava razoalmente adiantada naquela época. A vigilância contínua mostrou que Penkovsky andava fazendo algumas coisas fora do comum, incluindo pelo menos um dead-drop possível, mas... Vatutin sacudiu a cabeça. As coincidências que a gente encontra nesse negócio. O velho Misha fora ao oficial de segurança e denunciara uma curiosa conversa com seu conhecido da GRU, que talvez fosse inocente, dissera ele, mas que o colocara de antenas ligadas de uma forma estranha, tanto que se sentira compelido a falar sobre ela. Instruído pela KGB, ele continuara ouvindo, e a conversa seguinte já não fora assim tão inocente. Àquela altura o caso contra Penkovsky se firmara, e as provas adicionais não foram necessárias na verdade, embora fizessem com que todos os envolvidos se sentissem um pouco melhor...
Era uma estranha coincidência, pensou Vatutin, mas dificilmente lançava qualquer tipo de suspeita sobre o homem. A seção pessoal do relatório afirmava que ele era viúvo. Uma foto de sua esposa estava ali, e Vatutin admirou-a por algum tempo. Havia também uma fotografia do casamento, e o homem do Segundo Diretório sorriu quando viu que o velho combatente fora mesmo jovem um dia, e um tipo de fazer inveja! Na página seguinte havia informação sobre os dois filhos ¯ ambos mortos. Aquilo chamou sua atenção. Um nascera imediatamente antes da guerra, o outro assim que esta se iniciara. Mas não haviam morrido como resultado da guerra... O que então? Ele folheou o maço de páginas.
O mais velho morrera na Hungria, descobriu Vatutin. Em virtude de sua confiabilidade política, fora tirado da academia militar juntamente com um punhado de outros cadetes e enviado para reprimir a contra-revolução de 1956. Como um dos tripulantes de um tanque ¯ seguindo as pegadas do pai ¯, morreu quando seu veículo foi destruído. Bem, soldados corriam riscos. Certamente seu pai havia corrido. O segundo ¯ também tripulante de tanques, notou Vatutin ¯ morrera quando da explosão da culatra do canhão em seu T-
Que pena, Misha. Acho que você usou toda a boa sorte da família contra os alemães, e os outros três tiveram de pagar a conta... É triste que um homem que fez tanto deva...
Deva ter um motivo para trair a Rodina? Vatutin olhou para cima e para fora da janela do escritório. Podia divisar a praça do lado de fora, os carros passando ao redor da estátua de Félix Dzerzhinsky. "Félix de Ferro", fundador da Cheka. Polonês e judeu por nascimento, com sua barba curta de formato esquisito e seu intelecto impiedoso, Dzerzhinsky repelira os primeiros esforços do Ocidente para penetrar na União Soviética e subvertê-la. Estava de costas para o prédio, e os brincalhões diziam que Félix fora condenado ao isolamento perpétuo ali, como Svetlana Vaneyeva fora isolada...
Ah, Félix, o que me aconselharia nesse momento? Vatutin sabia muito bem a resposta. Félix mandaria prender e interrogar impiedosamente Misha Filitov. A mera possibilidade de suspeita teria sido o suficiente naqueles dias, e quem poderia saber quantos homens e mulheres inocentes foram subjugados e morreram inocentes? As coisas eram diferentes agora, e até mesmo a KGB tinha regras a seguir. Não se podia simplesmente apanhar as pessoas na rua e torturá-las até que dissessem o que se queria ouvir. Assim era melhor, pensou Vatutin. A KGB era uma organização profissional. Precisavam trabalhar mais agora, por isso treinava melhor os agentes e melhorava o desempenho... Seu telefone tocou.
¯ Coronel Vatutin.
¯ Suba até aqui. Vamos apresentar o assunto ao diretor-geral em dez minutos. ¯ A linha foi desligada.
O quartel-general da KGB era um construção antiga, erigida na virada do século para ser a sede da Companhia de Seguros Rossiya. As paredes exteriores eram de granito cor de ferrugem, e o interior era um reflexo da época em que fora erigido, com tetos elevados e portas imensas. Os corredores longos e acarpetados, entretanto, eram mal iluminados, desde que supostamente ninguém teria interesse em ver o rosto das pessoas que transitavam por eles. Havia muitos uniformes em evidência. Aqueles oficiais eram membros do Terceiro Diretório, que ficavam de olho nos serviços armados. Um detalhe que destacava o prédio era o silêncio. Aqueles que andavam por ali faziam-no de boca fechada e expressão séria, para que não deixassem escapar inadvertidamente um dos milhões de segredos que o edifício guardava.
O escritório do diretor também tinha vista para a praça, embora fosse uma visão muito melhor do que a sala de Vatutin. Um secretário levantou de sua escrivaninha e acompanhou os dois visitantes, passando pelos dois guardas de segurança que sempre permaneciam nos cantos da sala de recepção. Vatutin inspirou profundamente enquanto atravessava os umbrais da porta aberta.
Nikolay Gerasimov estava em seu quarto ano de chefia da Comissão para a Segurança do Estado, a KGB. Não era um espião de profissão, mas um militante que passara quinze anos imerso na burocracia do Partido Comunista da União Soviética antes de ser indicado para um dos postos de nível médio no Quinto Diretório, cuja missão era a supressão dos dissidentes internos. Sua habilidade em desincumbir-se dessa delicada missão conquistou-lhe promoções sucessivas e a indicação para primeiro subchefe anos depois. Lá aprendeu o ramo de informações internacionais do lado administrativo, atuando suficientemente bem para conquistar o respeito dos agentes de campo por seus instintos. Antes de mais nada, entretanto, ele era um homem do Partido, e isso explicava seu posto. Aos 53 anos, era razoavelmente jovem para seu trabalho, e parecia mais jovem ainda. Seu rosto jovial nunca fora marcado pela contemplação de derrotas, e seu olhar voltava-se confiante para a frente, antevendo mais promoções. Para um homem que tinha um lugar tanto no Politburo quanto no Ministério da Defesa, mais promoções significava que ele se considerava na disputa pelo posto mais alto de todos: secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Como o homem que brandia a ' 'espada e o escudo'' do Partido ¯ era esse na verdade o lema oficial da KGB ¯, sabia tudo o que havia para saber sobre os outros homens na disputa. Sua ambição, embora nunca expressa abertamente, era murmurada pelo prédio, e um bom número de jovens e brilhantes oficiais da KGB tentava ligar seus destinos ao daquela estrela em ascensão. Um homem encantador, pensou Vatutin. Naquele momento, o superior levantou-se da cadeira e indicou aos visitantes as cadeiras do outro lado da enorme escrivaninha de carvalho. Vatutin era um homem que controlava seus pensamentos e emoções; era também honesto para se deixar impressionar por pessoas encantadoras. Gerasimov segurava uma pasta.
¯ Coronel Vatutin, li o relatório de sua investigação em curso. Ótimo trabalho. Pode me colocar a par dos progressos atuais?
¯ Sim, camarada diretor. Estamos atualmente procurando por Eduard Vassilyevich Altunin. Ele á atendente nos Banhos Sandunovski. O interrogatório do homem da lavanderia nos revelou que esse era o próximo "elo" da corrente de mensageiros. Infelizmente ele desapareceu trinta e seis horas atrás, mas devemos apanhá-lo até o fim da semana.
¯ Eu mesmo vou aos banhos ¯ observou Gerasimov com ironia. Vatutin acrescentou seu comentário.
¯ Eu ainda vou, camarada diretor. E vi esse jovem. Reconheci sua fotografia no arquivo que estamos montando. Ele foi cabo numa companhia de artilharia no Afeganistão. Sua ficha do Exército mostra que fez objeções ao uso de certas armas usadas lá: aquelas que usamos para desencorajar os civis de ajudarem os bandidos. ¯ Vatutin referia-se às bombas disfarçadas como brinquedos e projetadas para serem apanhadas pelas crianças. ¯ O supervisor político de sua unidade nos enviou um relatório, mas a primeira repreensão verbal calou-o, e ele terminou seu serviço sem mais incidentes. O relatório foi o suficiente para lhe negarem um emprego nas fábricas, e ele foi de um emprego de criado para outro. Companheiros de trabalho o descreveram como um tipo comum, razoavelmente quieto. Exatamente como deveriam ser os espiões, é claro. Ele nunca se referiu ao seu "problema" no Afeganistão, mesmo quando bebia. Seu apartamento está sob vigilância, bem como os membros de sua família e seus amigos. Se não o apanharmos logo, saberemos que é um espião. Mas vamos apanhá-lo, e deverei falar com ele pessoalmente.
Gerasimov concordou pensativamente.
¯ Vi que usou a nova técnica com essa mulher, Vaneyeva. O que achou?
¯ Interessante. Certamente funcionou nesse caso, mas preciso dizer que tenho minhas dúvidas quanto a soltá-la novamente nas ruas.
¯ Essa decisão foi minha, no caso de ninguém ter-lhe dito ¯ afirmou Gerasimov desajeitadamente. ¯ Dada a natureza sensível deste caso, e a recomendação do médico, acho que essa jogada é uma que vale a pena no momento. Concorda que não devemos chamar muita atenção para o caso? As acusações contra ela permanecem em aberto.
Oh, e nesse caso se pode usá-la contra seu pai, não é? A desgraça dela também é a dele, e que pai desejaria ver sua única filha no GULAG? Nada como uma pequena chantagem, não é, camarada diretor?
¯ O caso é muito delicado, e pode ficar mais ¯ replicou Vatutin cuidadosamente.
¯ Continue.
¯ A única vez que vi esse rapaz, Altunin, ele estava ao lado do coronel Mikhail Semyonovich Filitov.
¯ Misha Filitov, o ajudante de Yazov?
¯ O mesmo, camarada diretor. Dei uma olhada no arquivo esta manhã.
¯ E então? ¯ esta pergunta veio do superior de Vatutin.
¯ Nada que eu possa apontar. Eu não estava a par de seu envolvimento no caso Penkovsky... ¯ Vatutin calou-se, e pela primeira vez seu rosto demonstrou algo.
¯ Alguma coisa o incomoda, coronel ¯ observou Gerasimov. ¯ O que é?
¯ O envolvimento de Filitov no caso Penkovsky logo depois da morte de seu segundo filho e da esposa. ¯ Vatutin encolheu os ombros depois de uma pausa. ¯ Uma estranha coincidência.
¯ Filitov não foi a primeira testemunha contra ele? ¯ perguntou o chefe do Segundo Diretório. Ele na verdade trabalhara à margem do caso.
Vatutin concordou.
¯ Foi, mas aconteceu depois que já tinham o espião sob vigilância. ¯ Ele fez uma pequena pausa. ¯ Como eu disse, apenas uma estranha coincidência. Estamos agora atrás de um mensageiro suspeito que transportava informações da Defesa. Eu o vi de pé ao lado de um oficial graduado do Ministério da Defesa que se envolveu em outro caso similar quase trinta anos atrás. Por outro lado, Filitov foi o primeiro a delatar Penkovsky, e é um famoso herói de guerra... que perdeu a família sob circunstâncias desafortunadas... ¯ Foi a primeira vez que reuniu todos os pensamentos.
¯ Houve alguma sombra de suspeita sobre Filitov? ¯ indagou o diretor-geral.
¯ Não. Dificilmente sua carreira poderia ser mais impressionante. Filitov foi o único ajudante que permaneceu com o finado ministro Ustinov através de sua carreira, e desde então ficou ali. Ele faz o papel de inspetor-geral para o ministro.
¯ Eu sei ¯ disse Gerasimov. ¯ Tenho aqui um pedido com a assinatura de Yazov para nosso arquivo sobre os progressos americanos em SDI. Quando telefonei para falar sobre o assunto, o ministro me disse que os coronéis Filitov e Bondarenko estavam reunindo dados para um relatório completo ao Politburo. O nome de código naquela fotografia que conseguiram recuperar era Estrela Brilhante, não era?
¯ Era, camarada diretor.
¯ Vatutin, temos agora três coincidências ¯ observou Gerasimov. ¯ O que recomenda?
Aquilo era fácil demais.
¯ Deveríamos colocar Filitov sob vigilância. Provavelmente esse Bondarenko também.
¯ Muito cuidadosamente, porém com todo o rigor. ¯ Gerasimov fechou a pasta. ¯ Esse foi um ótimo relatório, e parece que seus instintos de investigação encontram-se mais aguçados do que nunca, coronel. Você me manterá informado sobre esse caso. Espero vê-lo três vezes por semana até sua conclusão. General ¯• disse ele ao chefe do "Dois". ¯ Esse homem terá todo o apoio que precisar. Pode requisitar fundos de qualquer parte da Comissão. Se tiver algum empecilho, por favor venha a mim. Pode estar certo de que existe um vazamento de informações nos altos níveis do Ministério da Defesa. A seguir: este caso é restrito aos meus e aos seus olhos. Ninguém, e repito, ninguém deve saber sobre esses fatos. Quem sabe onde os americanos conseguiram colocar seus agentes? Vatutin, dirija bem esse caso e você terá suas estrelas de general por volta do verão. Mas... ¯ Ele levantou o indicador. ¯ Acho que deveria parar de beber até que acabasse esse caso. Precisamos de sua mente clara.
¯ Sim, camarada diretor.
O corredor estava praticamente vazio quando Vatutin e seu superior saíram.
¯ E quanto a Vaneyeva? ¯ perguntou o coronel, em voz baixa.
¯ E o pai dela, é claro. O secretário-geral Narmonov vai anunciar sua indicação para o Politburo na próxima semana ¯ respondeu o general numa voz neutra e baixa.
E não vai fazer mal algum ter mais um amigo da KGB na corte, pensou Vatutin. Talvez Gerasimov esteja preparando alguma jogada...
¯ Lembre-se do que ele disse sobre não beber ¯ disse o general a seu lado. ¯ Ouvi dizer que anda entornando as garrafas com vontade, ultimamente. Essa é uma área de concordância entre o diretor e o secretário-geral, caso ninguém lhe tenha dito.
¯ Sim, camarada general ¯ respondeu Vatutin. E claro, é provavelmente a única área de concordância. Como qualquer bom russo, Vatutin achava que vodca fazia parte da vida tanto quanto o ar. Ocorreu a ele que fora sua ressaca que o levara a tomar um banho de vapor naquela manhã e reparar na coincidência, mas refreou o impulso de mencionar a ironia envolvida. De volta à própria escrivaninha alguns minutos mais tarde, Vatutin apanhou um bloco e começou a planejar a vigilância sobre os dois coronéis do Exército soviético.
Gregory tomou vôos de rotas comerciais ao voltar para casa, mudando de avião em Kansas City, depois de uma espera de duas horas. Dormira durante a maior parte do trânsito e andava direto para o terminal, pois não possuía bagagem para cuidar. Sua noiva o aguardava.
¯ Como estavam as coisas em Washington? ¯ perguntou ela, depois do beijo habitual de boas-vindas.
¯ Nunca muda. Me mandaram de um lugar para outro por lá. Acho que pensam que os cientistas nunca dormem. ¯ Ele apanhou a mão dela na caminhada até o carro.
¯ Então, o que aconteceu? ¯ quis saber ela, assim que saíram.
¯ Os russos fizeram um grande teste. ¯ Ele parou, olhando ao redor. Aquela era uma violação técnica de segurança.... mas Candi fazia parte do grupo, não fazia? ¯ Eles acertaram um satélite com o laser baseado em Dushanbe. O que sobrou parecia um modelo de plástico que derreteu no forno.
¯ Isso é ruim ¯ comentou a dra. Long.
¯ Claro que é ¯ concordou Gregory. ¯ Mas eles tiveram problemas ópticos. Distorção térmica e balanço, os dois. Com certeza não têm por lá ninguém como você para construir espelhos. Se bem que deve ter gente boa na área do laser.
¯ Boa quanto?
¯ Boa o suficiente para que estejam fazendo algo que ainda não conseguimos. ¯ Al resmungou ao alcançar seu Chevy. ¯ Você dirige, estou um pouco dopado.
¯ Nós vamos conseguir? ¯ perguntou Candi, girando a chave na porta.
¯ Mais cedo ou mais tarde. ¯ Não podia ir mais longe do que isso, noiva ou não.
Candi entrou e esticou-se para puxar a trava da porta à direita. Assim que Al entrou e colocou o cinto, abriu o porta-luvas e tirou de lá um saquinho de jujubas. Sempre tinha um estoque delas. Estavam um pouco passadas, mas ele não se importou. Às vezes Candi se perguntava se o amor dele por ela não resultava do fato de que seu apelido significava, em inglês, confeitos ou balinhas.
¯ Como está indo o trabalho com o novo espelho? ¯ quis saber ele, depois de engolir metade do saquinho.
¯ Marv tem uma nova idéia que estamos tentando executar. Ele acha que deveríamos afinar a camada óptica em vez de engrossá-la. Vamos experimentá-la na semana que vem.
¯ Marv é um cara bem original para um coroa ¯ observou Al. O dr. Marv Greene tinha 42 anos.
Candi riu.
¯ A secretária dele acha que ele é bem original, também.
¯ Ele devia se comportar melhor do que ficar andando por aí com as colegas de trabalho ¯ disse Gregory sério. Um momento depois encolheu-se.
¯ Claro, querido. ¯ Ela voltou-se para olhar na direção dele, e os dois caíram na risada. ¯ Está muito cansado?
¯ Eu dormi no vôo.
¯ Ótimo.
Um pouco antes de abraçá-la, Gregory amassou a embalagem vazia de jujubas e atirou-a ao chão, onde foi juntar-se a quase trinta outras. Ele voara um bocado, mas Candi tinha um metódo seguro para curar enjôo.
¯ Bem, Jack? ¯ perguntou o almirante Greer.
¯ Estou preocupado ¯ admitiu Ryan. ¯ Foi por pura sorte que ficamos sabendo do teste. O horário foi muito bem escolhido. Todos os nossos satélites de reconhecimento estavam bem abaixo do horizonte óptico. Não deveríamos saber de nada... o que não é surpresa nenhuma, desde que o teste é uma violação técnica do Tratado ABM. Bem, provavelmente é. ¯ Jack deu de ombros. ¯ Tudo depende de como se lê o tratado. Agora vamos chegar ao ponto de discutir a interpretação "livre", ou "ao pé da letra". Se tentássemos fazer algo parecido, o Senado iria botar a boca no mundo.
¯ Eles não iriam gostar do teste que você viu. ¯ Muito poucas pessoas sabiam o que era Tea Clipper. O programa era "negro". E os programas "negros", mais sigilosos do que a classificação máxima de segurança, simplesmente não existiam.
¯ Talvez. Mas estávamos testando o sistema de mira, e não uma arma de verdade.
¯ E os soviéticos estavam testando um sistema para ver se... ¯ Greer sorriu e balançou a cabeça. ¯ É como falar sobre metafísica, não é? Quantos feixes de laser podem dançar sobre a cabeça de um alfinete?
¯ Tenho certeza de que Ernie Allen poderia nos dar uma opinião sobre isso. ¯ Jack sorriu. Ele não concordava com Allen, mas era obrigado a gostar do homem. ¯ Tenho esperança de que nosso amigo em Moscou consiga entregar suas informações.
Sucesso e Fracasso
Um dos problemas em manter qualquer indivíduo sob vigilância é que se precisa determinar como ele ou ela em geral passam o dia, antes de se poder estabelecer que recursos serão necessários para a operação. Quanto mais solitária a pessoa ou sua atividade, mais difícil é manter uma vigilância dissimulada. Por exemplo, os agentes da KGB que seguiam o coronel Bondarenko já o odiavam completamente. Sua rotina diária de corridas ao ar livre era uma atividade ideal para um espião, pensavam todos. Ele corria inteiramente só pelas ruas da cidade, em grande parte vazias ¯ vazias o suficiente para que todos fora de casa fossem com certeza conhecidos de vista e vazias o suficiente para que ele notasse imediatamente qualquer coisa fora do comum. Enquanto corria pelos quarteirões residenciais daquela parte de Moscou, os três agentes designados para segui-lo perderam contato visual por nada menos que cinco vezes. As árvores esparsas que poderiam ocultá-los estavam desfolhadas e os prédios de apartamentos jaziam isolados na terra plana e deserta como grandes lápides. Em qualquer uma daquelas cinco vezes, Bondarenko poderia ter parado para receber um contato dead-drop, ou ele mesmo poderia ter passado alguma informação. Era mais do que frustrante, e ainda havia o fato de que o coronel do Exército soviético possuía uma folha de serviços tão imaculada como um floco de neve recém-caído: exatamente a cobertura que qualquer espião idealizaria para si próprio, é claro.
Eles o localizaram outra vez ao dobrar a esquina de sua casa, movendo as pernas vigorosamente, o hálito condensando-se no ar atrás de si em pequenas nuvens de vapor. O homem encarregado daquela parte do caso decidira que seria necessária tão-somente meia dúzia de agentes do "Dois" para as corridas matinais do suspeito. E eles teriam de chegar uma hora antes do horário esperado para o início da corrida, suportando o frio seco e cortante das madrugadas de Moscou. Os agentes do Segundo Diretório nunca se considerariam suficientemente reconhecidos pelas agruras do trabalho.
A muitos quilômetros dali, outro grupo de três estava bem satisfeito com seu suspeito. Naquele caso haviam obtido um apartamento no oitavo andar, em frente ao prédio onde residia o suspeito ¯ o diplomata que morava ali estava no exterior. Um par de teleobjetivas foi focalizado nas janelas de Misha, e ele não era do tipo que se preocupasse em abaixar persianas, ou mesmo ajustá-las para diminuir a luz. Observaram-no realizando a rotina matinal de um homem que bebera em demasia na noite anterior, familiar aos homens do "Dois" que observavam do outro lado da rua, confortavelmente aquecidos.
Misha também era suficientemente importante no Ministério da Defesa para utilizar um carro com motorista. Fora fácil transferir o sargento e substituí-lo por um rosto jovem e desconhecido da escola de contra-inteligência da KGB. Um microfone no telefone gravou seu pedido para ser apanhado cedo.
Ed Foley saiu de seu apartamento mais cedo do que habitualmente. A esposa o levou ao trabalho, com as crianças no banco traseiro do carro. O arquivo soviético sobre Foley relatava com certa ironia o fato de que era ela que ficava com o carro na maioria dos dias, para levar as crianças e geralmente encontrar-se com as mulheres de outros diplomatas ocidentais. Um marido soviético ficaria com o carro para uso próprio. Pelo menos não estava fazendo com que ele usasse o metrô hoje, observaram eles; fora decente da parte dela. O miliciano à entrada do conjunto diplomático ¯ ele pertencia à KGB, como era do conhecimento de todos ¯ registrou a hora da partida, bem como os ocupantes do carro. Era um pouco fora do comum, e o guarda do portão olhou em volta para verificar se o agente da KGB que seguia Foley estava presente. Não estava. Os americanos "importantes" tinham vigilância mais assídua.
Ed Foley usava um gorro de peles em estilo russo e seu sobretudo era suficientemente usado para que não parecesse terrivelmente estrangeiro. Um cachecol de lã, que contrastava um pouco com o casaco, protegia-lhe o pescoço e escondia a gravata listrada. Os agentes de segurança russos que o conheciam de vista repararam que, a exemplo do que acontecia com a maioria dos estrangeiros, ele também fora influenciado pelo clima local, o grande nivelador. Quem quer que passe por um inverno russo, logo começa a vestir-se e agir como um russo, até o ponto de olhar levemente para baixo ao andar.
Em primeiro lugar, deixaram as crianças na escola. Mary Pat Foley dirigia normalmente, desviando o olhar da pista ao espelho retrovisor a cada três ou quatro segundos. Dirigir ali até que não era tão mau, comparado às cidades americanas. Embora os motoristas russos fizessem as coisas mais inesperadas, as ruas não eram muito movimentadas e, tendo aprendido a dirigir em Nova York, ela podia se arranjar em qualquer lugar. Como os agentes faziam no mundo todo, percorria um caminho cheio de atalhos, que evitava os piores pontos de engarrafamento, economizando alguns minutos à custa de 1 ou
Imediatamente após dobrar uma esquina, ela manobrou com habilidade junto à calçada e o marido desceu. O carro já estava em movimento quando ele bateu a porta e afastou-se, não muito rapidamente, em direção à entrada lateral de um prédio de apartamentos. Dessa vez, o coração de Ed Foley batia acelerado. Havia feito aquilo apenas uma vez anteriormente e não gostava nem um pouco. No interior do prédio, evitou os elevadores e dispôs-se a subir os oitos lances de escada, consultando o relógio.
Não sabia como a mulher fazia aquilo. Incomodava seu ego admitir que ela dirigia com muito mais precisão do que ele e podia ir de carro a qualquer lugar escolhido com uma precisão de cinco segundos a mais ou a menos. Tinha dois minutos para chegar ao oitavo andar. Foley conseguiu fazê-lo com alguns segundos de folga. Abriu a porta corta-fogo e procurou com olhos ansiosos o corredor. Maravilhosos os corredores, especialmente os que eram retos e vazios, nas construções antigas e altas. Com um conjunto de elevadores no centro e escadas de incêndio em ambas as extremidades, não havia lugar para se ocultarem câmeras de vigilância. O agente avançou além da área dos elevadores, dirigindo-se para a outra extremidade. Poderia medir o tempo com as batidas de seu coração agora. Vinte metros à frente, a porta de um dos apartamentos se abriu e um homem trajando uniforme saiu. Voltou-se para trancar a porta, depois apanhou sua valise e prosseguiu na direção de Foley. Um observador, se houvesse algum ali, teria achado estranho que nenhum dos dois homens se movesse para evitar o outro.
Durou apenas um instante. A mão de Foley tocou a do Cardeal, apanhando o magazine de filme e passando uma minúscula tira de papel.
Pensou ter visto uma ponta de irritação nos olhos do agente, e nada além disso, nem mesmo um "Desculpe, por favor, camarada", enquanto o oficial prosseguia em direção aos elevadores. Foley foi diretamente até as escadas de incêndio. Desceu devagar.
O coronel Filitov saiu do prédio na hora marcada. O sargento que segurava a porta do carro notou que ele mastigava alguma coisa, talvez uma migalha de pão entre os dentes.
¯ Bom dia, camarada coronel.
¯ Onde está Zhdanov? ¯ indagou Filitov entrando no veículo.
¯ Ficou doente. Eles acham que é o apêndice. ¯ Isso provocou um grunhido.
¯ Bem, vamos indo. Quero tomar um banho de vapor essa manhã.
Foley saiu pelos fundos do edifício alguns minutos depois e passou por mais dois prédios de apartamentos, encaminhando-se para a próxima rua. Estava chegando à esquina quando sua mulher apareceu, apanhando-o quase sem parar o carro. Ambos respiraram profundamente algumas vezes enquanto ela guiava em direção à embaixada.
¯ O que vai fazer hoje? ¯ perguntou ela, os olhos verificando o retrovisor.
¯ O de sempre ¯ foi a resposta resignada.
Misha já estava na sala de vapor. Notou a ausência do atendente e a presença de rostos não familiares. Aquilo explicava a transferência especial aquela manhã. Não deixou transparecer nada ao trocar palavras amigáveis com os freqüentadores. Era uma pena que a câmera tivesse ficado sem filme. Havia ainda a considerar o aviso de Foley. Se ele estivesse novamente sob vigilância ¯ bem, a cada ano ou dois algum oficial de segurança resolvia mostrar serviço e verificava novamente todo o pessoal do ministério. A CIA percebera e quebrara a cadeia de mensagens. Era divertido, ele pensou, ver o olhar no rosto do jovem no corredor. Sobraram tão poucas pessoas que sabiam o que era combater... As pessoas se assustavam facilmente. O combate ensina a um homem o que temer e o que ignorar, disse Filitov a si mesmo.
Do lado de fora da sala de vapor, um homem do "Dois" revistava as roupas de Filitov. No carro, sua valise também sofria uma verificação. Em cada caso, a tarefa foi realizada rápida e meticulosamente.
Vatutin em pessoa supervisionara a revista no apartamento de Filitov. Fora um trabalho realizado por peritos com luvas cirúrgicas de borracha, e eles passaram a maior parte do tempo procurando "pistas". Poderia ser um pedaço de papel, uma migalha, ou até mesmo um fio de cabelo humano deixado num local específico, cuja remoção alertaria o homem que morava no apartamento sobre o fato de que alguém estivera no local. Tiraram numerosas fotografias que levaram para revelar. O diário foi encontrado quase imediatamente. Vatutin inclinou-se para examinar o caderno de aparência comum que estava bem visível na gaveta da escrivaninha, a fim de certificar-se de que o local não possuía nenhuma marcação oculta. Ao cabo de um ou dois minutos, apanhou-o e começou a ler.
O coronel Vatutin estava irritado. Não dormira bem na noite anterior. Como todos os bebedores inveterados, ele precisava de álcool para adormecer, e a excitação do caso, aliada à falta do remédio apropriado, lhe proporcionara uma noite maldormida, debatendo-se de um lado para o outro; esse fato estava suficientemente aparente em seu rosto para que seu grupo permanecesse de boca fechada.
¯ Câmera ¯ ordenou ele secamente. Um homem avançou e começou a fotografar as páginas do diário enquanto Vatutin as virava.
¯ Alguém tentou arrombar a fechadura ¯ informou um major. ¯ Arranhões ao redor do buraco da chave. Se desmontarmos a fechadura, acredito que encontraremos arranhões nas lingüetas também. Provavelmente alguém esteve aqui.
¯ Tenho o que eles vieram procurar ¯ atalhou Vatutin de mau humor. Cabeças viraram-se pelo apartamento. O homem que examinara a geladeira retirou o painel frontal, verificou a parte de baixo do aparelho, depois recolocou o painel no lugar. ¯ Este homem escreve a porra de um diário! Será que ninguém lê mais os manuais de segurança?
Agora entendia. O coronel Filitov usava diários pessoais para esboçar relatórios oficiais. De alguma forma, alguém ficara sabendo e viera até o apartamento para fazer cópias...
Mas qual é a probabilidade de isso acontecer?, Vatutin perguntou a si mesmo. Tão provável quanto um homem que escreve suas lembranças dos documentos oficiais quando pode copiá-las em sua mesa no Ministério da Defesa.
A busca demorou duas horas, e os homens do grupo partiram aos pares ou sozinhos, depois de recolocarem tudo exatamente no local encontrado.
De volta ao escritório, Vatutin leu o diário fotografado na íntegra. No apartamento, apenas folheara o material. O fragmento do filme capturado combinava perfeitamente com uma das páginas do início do diário de Filitov. Gastou uma hora examinando as fotografias das páginas. Os dados em si já eram impressionantes. Filitov descrevia o projeto Estrela Brilhante com um nível considerável de detalhes. Na verdade, a explicação do velho coronel era ainda melhor do que o resumo que recebera como parte da investigação. No meio encontravam-se detalhes de observações do coronel Bondarenko sobre a segurança do local, e algumas queixas sobre a maneira como as prioridades eram distribuídas pelo ministério. Ficava evidente que ambos os coronéis eram entusiastas de Estrela Brilhante, e Vatutin já começava a concordar com eles. Mas o ministro Yazov, ele leu, não tinha tanta certeza. Queixava-se de problemas com os fundos ¯ bem, mas aquela era outra história, não era?
Ficou claro que Filitov violara as regras de segurança ao manter registros sobre material ultra-secreto em sua casa. Isso apenas seria motivo suficientemente sério para que qualquer burocrata iniciante ou de nível médio perdesse o emprego, mas Filitov era tão antigo quanto o próprio ministro, e Vatutin sabia muito bem que os veteranos encaravam as regras de segurança como inconvenientes a serem ignorados no Interesse do Estado, do qual se julgavam árbitros supremos. Imaginou se o mesmo seria verdadeiro em algum outro lugar. De uma coisa tinha certeza: antes que ele ou qualquer outro membro da KGB pudesse acusar Filitov de qualquer coisa, precisava de algo mais sólido do que isso. Mesmo que Misha fosse um agente estrangeiro ¯ Por que estou tentando negar isso?, perguntou Vatutin a si mesmo, um tanto surpreso. Transportou-se de volta ao apartamento do homem, recordando-se das fotografias nas paredes. Devia haver uma centena delas: Misha em pé sobre a torre de seu T-34, binóculos sobre os olhos; Misha com seus homens nas neves do lado dos arrabaldes de Stalingrado; Misha e a tripulação de seu tanque apontando os furos feitos na blindagem lateral de um tanque alemão... e Misha numa cama de hospital, com Stálin em pessoa prendendo sua terceira medalha de Herói da União Soviética ao travesseiro, com a mulher e ambos os filhos ao lado. Aquelas eram as recordações de uma patriota e herói.
Nos velhos dias isso não teria importância, lembrou Vatutin. Nos velhos dias suspeitávamos de todos.
Qualquer um poderia ter arranhado a fechadura. Assumiu que poderia ter sido o atendente dos banhos desaparecido. Sendo ex-técnico em material bélico, ele provavelmente sabia como fazê-lo. E se for uma coincidência?
Mas, se Misha fosse mesmo um espião, por que não fotografar ele mesmo os documentos oficiais? Na qualidade de ajudante do ministro da Defesa, podia solicitar quaisquer documentos que desejasse, e penetrar no ministério com uma câmera miniatura era brincadeira.
Se tivéssemos um filme com uma fotografia de tal documento, Misha já estaria no Presídio Lefortovo...
E se ele estiver bancando o espertinho? E se ele quiser que pensemos que alguém tem roubado material de seu diário? Posso levar tudo para o ministro agora, mas não podemos acusá-lo de nada além de violação das regras internas de segurança. Se ele responder que estava trabalhando em casa e admitir que quebrou a regra, e o ministro defender seu ajudante ¯ o ministro defenderia Filitov?
Sim. Vatutin tinha certeza disso. Por um lado, Misha era um ajudante de confiança e um destacado soldado profissional. Por outro, o Exército sempre cerrava fileiras para proteger um dos seus contra a KGB. Os putos nos odeiam mais do que odeiam os ocidentais. O Exército soviético nunca esqueceu o final da década de 30, quando Stálin usou a agência de segurança para matar quase todos os oficiais graduados, quase perdendo Moscou para o Exército alemão em conseqüência direta disso. Agora, se formos a eles apenas com esse material, vão rejeitar nossas provas e lançar a própria investigação através da GRU.
Quantas irregularidades vão aparecer neste caso?, perguntou-se o coronel Vatutin.
Foley perguntava-se algo parecido em seu cubículo a alguns quilômetros dali. Revelara o filme e estava lendo o conteúdo. Notou com irritação que o Cardeal ficara sem filme e não fora capaz de reproduzir o documento inteiro. A parte que tinha perante si, entretanto, afirmava que a KGB possuía um agente no interior de um projeto americano chamado Tea Clipper. Evidentemente Filitov considerava isso de maior interesse imediato para os americanos, em detrimento do que seus compatriotas pretendiam fazer, e ao ler os dados Foley estava inclinado a concordar. Pois bem. Ele arranjaria para o Cardeal mais alguns magazines de filme, obteria o restante do documento, depois passaria a mensagem dizendo que já era tempo de se aposentar. A fuga estava marcada para dali a dez dias ou mais. Bastante tempo, disse a si mesmo, a despeito de um sentimento incômodo na nuca, que afirmava outra coisa.
Qual o próximo truque? Como passaremos o filme novo para o Cardeal? Com a corrente de mensageiros destruída, levaria várias semanas para estabelecer uma nova, e ele não queria arriscar-se novamente a um contato direto.
Ele sabia que aquilo teria de acontecer, eventualmente. Claro, tudo havia corrido tão suavemente durante todo o tempo em que dirigira aquele agente, porém mais cedo ou mais tarde alguma coisa acontecera. Foi o acaso, disse a si mesmo. Eventualmente os dados rolaram para o lado errado. Quando fora designado para o posto pela primeira vez e ficara sabendo da história do Cardeal, maravilhara-se com o fato de que o homem durara tanto tempo e que rejeitara três ofertas de fuga. Até quando se podia forçar a própria sorte? O velho bastardo devia pensar que era invencível. Aqueles a quem os deuses destruiriam, primeiro os fariam orgulhosos, pensou Foley.
Deixou o pensamento de lado e continuou com as tarefas do dia. Por volta do fim da tarde, o mensageiro se dirigia para Oeste com um novo relatório do Cardeal.
¯ Está a caminho ¯ disse Ritter ao diretor-geral da CIA.
¯ Graças a Deus ¯ sorriu o juiz Moore. ¯ Agora vamos nos concentrar em tirá-lo de lá.
¯ Clark já foi notificado. Ele vai de avião para a Inglaterra amanhã e encontra o submarino um dia depois disso.
¯ Esse é outro que já abusou da sorte ¯ observou o juiz.
¯ É o melhor que temos ¯ respondeu Ritter.
¯ Não é o suficiente para que possamos fazer alguma coisa ¯ afirmou Vatutin ao chefe da KGB depois de expor os resultados da vigilância e busca. ¯ Estou designando mais pessoal para a operação. Também colocamos aparelhos de escuta no apartamento de Filitov...
¯ E esse outro coronel?
¯ Bondarenko? Não conseguimos entrar lá. Sua mulher não trabalha e fica em casa o dia inteiro. Hoje descobrimos que o coronel corre alguns quilômetros todas as manhãs, e mais alguns homens foram designados para esse caso. A única informação que temos atualmente é uma ficha limpa, na verdade é exemplar, e uma porção saudável de ambição. Ele agora é representante oficial do projeto Estrela Brilhante junto ao ministro e, como deve ter notado pelas páginas do diário, um admirador entusiasta do projeto.
¯ Suas impressões sobre o homem? ¯ As perguntas do diretor-geral eram feitas de modo abrupto, mas não ameaçador. Era uma pessoa ocupada, que valorizava seu tempo.
¯ Até agora, nada que nos levasse a suspeitar de coisa alguma. Foi condecorado por serviços prestados no Afeganistão: liderou um comando especial Spetznaz que sofreu uma emboscada e rechaçou um ataque perigoso dos bandidos. Enquanto esteve em Estrela Brilhante, censurou a guarda da KGB por displicência, mas seu relatório formal ao ministro explica os motivos, e é difícil rejeitar suas razões.
¯ Alguma coisa já foi feita a respeito disso? ¯ quis saber Gerasimov.
¯ O oficial enviado para resolver esse assunto morreu num desastre aéreo no Afeganistão. Um outro será mandado brevemente, foi o que me informaram.
¯ O atendente dos banhos?
¯ Ainda estão procurando por ele. Sem resultado ainda. Estamos vigiando tudo: aeroportos, estações de trem, tudo enfim. Se surgir algum sinal dele, mandarei avisá-lo imediatamente.
¯ Muito bem. Dispensado, coronel. ¯ Gerasimov voltou aos papéis em sua mesa.
O diretor-geral da Comissão para a Segurança do Estado permitiu-se um sorriso depois que Vatutin saiu. Ficou espantado ao saber como tudo corria bem. O golpe de mestre era o caso Vaneyeva. Não era comum descobrir uma rede de espiões em Moscou, e, quando aquilo acontecia, as congratulações sempre vinham acompanhadas da pergunta: Por que demorou tanto? Dessa vez isso não aconteceria. Não, não com o pai de Vaneyeva a ponto de ser indicado para o Politburo. E o secretário Narmonov achava que ele seria leal ao homem que arranjara a promoção. Narmonov, com todos os seus sonhos de reduzir os armamentos, de relaxar o aperto que o Partido mantinha sobre a nação, de "liberalizar" o que fora legado ao Partido... Gerasimov pretendia mudar tudo isso.
Não seria fácil, claro. Gerasimov possuía apenas três aliados poderosos no Politburo, mas entre eles incluía-se Alexandrov, o idealista a quem o secretário não fora capaz de aposentar depois que ele mudara sua fidelidade. E agora tinha um outro, completamente desconhecido do camarada secretário-geral. Por outro lado, Narmonov tinha o apoio do Exército.
Esse era um legado de Mathias Rust, o jovem alemão que pousara seu Cessna alugado na Praça Vermelha. Narmonov era um político sagaz. Rust penetrara no espaço aéreo da União Soviética no Dia do Guarda de Fronteira, uma coincidência que ele não soubera explicar ¯ e Narmonov negara à KGB a oportunidade de interrogar adequadamente o delinqüente! O jovem encenara seu vôo no único dia do ano em que se podia ter certeza de que enorme força de guardas de fronteira da KGB estaria gloriosamente bêbada. Isso permitira que passasse sem ser notado através do golfo da Finlândia. Depois, a Defesa Aérea falhara em detectá-lo, e o rapaz aterrissara bem em frente à Catedral de São Basílio.
O secretário-geral Narmonov agira rapidamente depois disso: exonerara o comandante da Defesa Aérea e o ministro da Defesa Sokolov depois de uma agitada reunião do Politburo, onde Gerasimov fora incapaz de levantar objeções, para não colocar em perigo sua posição. O novo ministro da Defesa, D. T. Yazov, era um homem do secretário, um joão-ninguém em posição inferior na lista de oficiais superiores; um homem que, tendo falhado em merecer seu posto, dependia do secretário para permanecer nele. Isso havia coberto o flanco mais vulnerável de Narmonov. A complicação adicional que o fato trazia era que Yazov estava ainda aprendendo, e dependia de veteranos como Filitov para ensiná-lo.
E Vatutin pensa que esse é simplesmente um caso de contra-espionagem, resmungou Gerasimov para si mesmo.
Os procedimentos de segurança que envolviam os dados do Cardeal impediam Foley de enviar qualquer informação pelas vias normais. Mesmo códigos de despistamento, teoricamente impenetráveis, pareciam-lhe arriscados. Sendo assim, a folha da capa de seu último relatório alertaria a fraternidade Delta de que as informações despachadas não eram exatamente o esperado.
Tal constatação obrigou Bob Ritter a se levantar de sua cadeira. Fez suas fotocópias e destruiu os originais antes de dirigir-se à sala do juiz Moore. Greer e Ryan já estavam lá quando chegou.
¯ Ele ficou sem filme ¯ informou o diretor de Operações, tão logo fechou a porta.
¯ O quê? ¯ espantou-se Moore.
¯ Surgiu uma nova informação. Parece que nossos colegas da KGB possuem um agente infiltrado em Tea Clipper que acabou de conseguir a maior parte do projeto sobre esse novo e miraculoso espelho, e o Cardeal decidiu que esse dado era mais importante. Não tinha filme para fotografar tudo, por isso decidiu-se por relatar as intenções da KGB. Temos apenas metade dos planos do laser.
¯ Metade pode ser suficiente ¯ observou Ryan.
Ritter fechou a cara. Não estava nem um pouco satisfeito com o fato de que Ryan agora tivesse acesso a informações Delta.
¯ Ele discute os efeitos da mudança no projeto, mas não há nada sobre a alteração em si.
¯ Podemos identificar a fonte do vazamento de informações em nosso lado? ¯ indagou o almirante Greer.
¯ Talvez. E alguém que entende muito de espelhos. Parks precisa providenciar isso bem rápido. Ryan, você esteve lá em pessoa. O que acha?
¯ O teste a que assisti validou o desempenho do espelho e do programa de computador que o controla. Se os russos puderem duplicá-lo... Bem, sabemos que eles têm a parte do laser completamente resolvida, certo? ¯ Ele parou por um momento. ¯ Cavalheiros, isso tudo é assustador. Se os russos chegarem lá primeiro, isso acaba com todos os critérios de controles de armas e nos deixa com uma situação estratégica em deterioração. Quero dizer, levaria vários anos antes que o problema em si aparecesse, mas...
¯ Bem, se nosso homem conseguir outro maldito filme ¯ disse o diretor de Operações ¯, podemos trabalhar nisso nós mesmos. As boas novas são que esse sujeito, Bondarenko, que Misha escolheu para dirigir o setor de laser no ministério, vai manter nosso homem informado sobre o que está acontecendo. As más notícias...
¯ Bem, não precisamos discutir isso agora ¯ disse o juiz Moore. Ryan não precisava saber de nada sobre esse assunto, diziam seus olhos a Ritter, que imediatamente concordou. ¯ Jack, disse que tinha mais alguma coisa?
¯ Vai haver uma nova indicação para o Politburo na segunda-feira: Ilya Arkadyevich Vaneyev. Idade: 63, viúvo. Tem apenas uma filha, Svetlana, que trabalha no Gosplan; ela é divorciada e tem uma filha. Vaneyev é uma pessoa bem direta, honesto pelos padrões deles, não muito metido com a roupa suja que conhecemos. Ele está sendo promovido de uma vaga no Comitê Central. Foi ele o cara que assumiu o cargo na Agricultura que Narmonov ocupou com um sucesso razoável. A idéia corrente é que ele seja um homem de Narmonov. Isso daria quatro membros com direito a voto a favor de Narmonov, e...
¯ Ele parou quando viu o olhar doloroso no rosto dos outros três.
¯ Algo errado?
¯ Essa filha dele ¯ observou o juiz Moore. ¯ Ela está na folha de pagamentos de Sir Basil.
¯ Cancelem o contrato ¯ disse Ryan. ¯ Seria ótimo conservar esse tipo de fonte de informação, mas um escândalo agora poderia ameaçar Narmonov. É melhor aposentá-la. Podem reativá-la dentro de alguns anos, mas no momento desativem-na.
¯ Talvez não seja assim tão fácil ¯ comentou Ritter, deixando o assunto nesse ponto. ¯ Como vai o relatório?
¯ Terminei ontem.
¯ É apenas para o presidente e mais uns poucos. Esse vai ser bastante restrito.
¯ É justo. Posso imprimi-lo esta tarde. Se isso é tudo...
Era. Ryan deixou a sala. Moore aguardou a porta se fechar e falou:
¯ Ainda não contei a ninguém, mas o presidente Ernie Allen anda preocupado com a posição política de Narmonov outra vez. Ele teme que a última mudança de posição dos soviéticos indique enfraquecimento de apoio interno, e convenceu o patrão de que agora não é um bom momento para impor certos itens. A implicação disto, se trouxermos agora o Cardeal, bem, talvez provoque um efeito político indesejável.
¯ Se Misha for apanhado, teremos os mesmos efeitos políticos ¯ ressaltou Ritter. ¯ Sem mencionar o efeito pernicioso que teria sobre nosso homem. Arthur, estão atrás dele. Talvez tenham chegado até a filha de Vaneyev...
¯ Ela está de volta ao trabalho no Gosplan ¯ afirmou o diretor-geral.
¯ Claro, e o homem da lavanderia desaparecido. Eles chegaram até ela e a fizeram falar ¯ insistiu o diretor de Operações. ¯ Precisamos tirá-lo de lá de uma vez por todas. Não podemos deixá-lo exposto à sorte, Arthur. Devemos a esse homem.
¯ Não posso autorizar a remoção dele sem aprovação do presidente. Ritter quase explodiu.
¯ Então arrume! Foda-se a política... nesse caso, foda-se a política. Existe um lado prático em tudo isso, Arthur. Se deixarmos um homem como ele ser apanhado e não levantarmos um dedo para protegê-lo... Que diabos, os russos vão fazer uma minissérie de televisão sobre o assunto! Vai nos custar muito a longo prazo do que esse lixo político temporário.
¯ Espere um pouco ¯ pediu Greer. ¯ Se eles fizeram falar a filha do cara do Partido, como é que ela voltou ao trabalho?
¯ Política? ¯ ponderou Moore. ¯ Acha que a KGB é incapaz de magoar a família do sujeito?
¯ Certo! ¯ atalhou o diretor de Operações. ¯ Gerasimov está na facção oposta, e ele deixaria passar uma oportunidade para negar um lugar no Politburo a um homem de Narmonov? Isso me cheira a política, sim, mas não desse tipo. É mais provável que Alexandrov tenha o rapaz no bolso do colete e Narmonov não saiba de nada sobre isso.
¯ Então acha que ela falou, mas a deixaram ir e a estão usando para fazer pressão contra o pai? ¯ indagou Moore. ¯ Faz sentido. Mas não há provas.
¯ Alexandrov está muito velho para ocupar o cargo ele mesmo, e de qualquer maneira o idealista parece nunca querer atingir o lugar mais alto... é mais divertido brincar de criador de reis. Gerasimov era seu preferido, entretanto, e sabemos que possui ambição suficiente para fazer-se coroar Nicolau III.
¯ Bob, você acaba de dar outra ótima razão para não balançar o barco agora. ¯ Greer saboreou um gole de café por um instante. ¯ Também não gosto da idéia de deixar Filitov onde está. Quais são as chances de que ele possa ficar abaixado? Quero dizer, da maneira que as coisas estão, ele talvez consiga se livrar das acusações que possam levantar contra ele.
¯ Não, James. ¯ Ritter sacudiu enfaticamente a cabeça. ¯ Não podemos deixar que ele "fique abaixado", porque precisamos do resto desse relatório, certo? Se ele corre o risco de enviar o material apesar da atenção que anda despertando, não podemos deixá-lo entregue à própria sorte. Não é justo. Lembre-se do que esse homem fez ao longo dos anos. ¯ Ritter argumentou por vários minutos, demonstrando a feroz lealdade ao seu pessoal que aprendera como jovem agente controlador. Embora os agentes precisassem ser tratados como crianças, encorajados, apoiados e disciplinados, eles se tornavam como suas crianças, e qualquer perigo que os ameaçasse precisava ser combatido.
O juiz Moore terminou a discussão.
¯ Seus argumentos estão bem estabelecidos, Bob, mas mesmo assim preciso falar com o presidente. Isso não é mais uma operação de campo.
Ritter fez pé firme.
¯ Vamos deixar tudo preparado.
¯ Certo, mas não vai ser colocado em prática até que obtenhamos aprovação.
O tempo em Faslane estava péssimo, mas naquela época do ano geralmente era assim. Um vento de quase
As vagas eram de cerca de
Em uma hora estavam em águas abrigadas, fazendo a curva em "S" para o interior da base que abrigava submarinos nucleares ingleses e americanos. Uma vez lá, o vento mudou para melhor, facilitando a entrada da grande massa cinzenta do submarino no ancoradouro. As pessoas que os aguardavam lá permaneciam abrigadas em alguns carros, enquanto os cabos eram jogados e amarrados pela tripulação de convés do submarino. Logo que as amarras foram passadas, Mancuso desceu para sua cabine.
Seu primeiro visitante foi um comandante. Esperava um oficial de submarino, mas esse não trazia nenhum tipo de divisas. Aquilo o denunciava como alguém da Inteligência.
¯ Como foi a travessia, capitão? ¯ perguntou o homem.
¯ Sossegada. ¯ Vamos logo com isso!
¯ Você zarpa em três horas. Aqui estão suas ordens de missão. Ele entregou um envelope de papel manilha com lacres e uma nota
na frente que instruía Mancuso sobre a hora em que poderia abri-lo. Embora fosse coisa freqüente em filmes, era a primeira vez que isso acontecia a ele como comandante. Geralmente se podiam discutir as missões com as pessoas que as ordenavam. Mas não dessa vez. Mancuso assinou o recibo pelas ordens, trancou-as no cofre sob o olhar atento do indivíduo e dispensou-o.
¯ Merda! ¯ desabafou o capitão para si mesmo. Agora os convidados podiam subir a bordo.
Eles eram dois, ambos em roupas civis. O primeiro desceu pela escotilha de carregamento de torpedos com a agilidade de marinheiro profissional. Mancuso logo viu por quê.
¯ Oi, capitão!
¯ Jones, que demônios está fazendo aqui?
¯ O almirante Williamson me deu uma escolha: ou ser chamado novamente para um serviço ativo temporário, ou vir a bordo como "técnico civil". Paga melhor. ¯ Jones abaixou a voz. ¯ Este aqui é o senhor Clark. Ele não fala muito.
E não falou. Mancuso designou-lhe o beliche de reserva no camarote do engenheiro. Depois que seu equipamento desceu pela escotilha, o sr. Clark entrou no quarto, fechou a porta atrás de si e foi tudo.
¯ Onde quer que eu coloque minhas coisas? ¯ perguntou Jones.
¯ Há um beliche sobressalente na despensa, mas ela fede ¯ respondeu Mancuso.
¯ Ótimo. Sempre se pode comer melhor, de qualquer jeito.
¯ Como vai a escola?
¯ Mais um semestre até o meu mestrado. Já estou recebendo proposta de alguns fornecedores. E fiquei noivo. ¯ Jones puxou a carteira e mostrou uma fotografia ao capitão. ¯ O nome dela é Kim, e trabalha numa biblioteca.
¯ Parabéns, senhor Jones.
¯ Obrigado, capitão. O almirante me disse que o senhor precisava mesmo de mim. Kim compreende. O pai dela é do Exército. Então, o que aconteceu? Aparece algum tipo de operação especial e você não conseguiu ficar sem mim, certo? ¯ "Operações especiais" era um eufemismo que cobria todo tipo de atividade, a maior parte delas perigosa.
¯ Não sei. Ainda não me disseram.
¯ Bem, mais uma viagem "para o norte", até que não seria ruim ¯ observou Jones. ¯ Para ser honesto, até que eu senti falta disso.
Mancuso não acreditava que fossem para lá, mas refreou seu impulso de dizê-lo em voz alta. Jones foi a vante para arrumar suas coisas. Mancuso foi até o camarote do engenheiro.
¯ Senhor Clark?
¯ Sim, senhor. ¯ Ele pendurou a jaqueta, revelando que usava uma camiseta de manga curta. O homem tinha pouco mais de 40, avaliou Mancuso.
A primeira vista, ele não parecia assim tão especial, pouco mais de 1,
¯ Conheci um cara com uma tatuagem como essa. Um agente. Está com o Grupo-Seis agora.
¯ São histórias, capitão. Não tenho permissão para falar sobre isso, senhor.
¯ Do que se trata, afinal?
¯ Senhor, suas ordens vão...
¯ Sem essa. ¯ Mancuso sorriu. ¯ Eles levam tudo ao pé da letra.
¯ Envolve fazer um pick-up.
Meu Deus! Mancuso acenou, impassível.
¯ Vai precisar de mais algum apoio?
¯ Não, senhor. Tiro solitário. Só eu e meu equipamento.
¯ Certo. Podemos estudar os detalhes depois de zarparmos. Você vai comer na copa. Descendo a escada aí do lado de fora, depois uns metros a ré, a estibordo. Mais uma coisa: o tempo é problema?
¯ Não, a menos que se importe de esperar. Parte desse assunto ainda está no ar... e é só isso que posso dizer agora, capitão. Desculpe, mas também tenho minhas ordens.
¯ É justo. Você fica na cama de cima. Durma um pouco se precisar.
¯ Obrigado, senhor. ¯ Clark observou o capitão saindo, mas não sorriu até a porta se fechar.
Ele nunca subira a bordo de um submarino classe Los Angeles. A maior parte das missões eram realizadas pelos menores e mais ágeis Sturgeon. Ele sempre dormia no mesmo lugar, sempre no beliche superior do camarote do engenheiro, a única cama sobressalente na embarcação. Teve o problema de sempre ao acondicionar seu equipamento, mas "Clark" já fizera aquilo muitas vezes e conhecia todos os truques. Estava cansado do vôo e precisava descansar algumas horas. A cama era sempre a mesma, presa ao casco do submarino. Era como dormir num caixão com a tampa meio aberta.
¯ A gente precisa admirar os americanos pela sua esperteza ¯ disse Morozov.
Tinham sido algumas semanas bem ocupadas em Dushanbe. Imediatamente após o teste ¯ mais precisamente, logo após a partida do representante de Moscou ¯, dois dos seis geradores de laser foram desativados e desmontados para reparos, e descobriu-se que as partes ópticas estavam bastante chamuscadas. Então ainda havia um problema com a camada óptica, afinal de contas. Provavelmente controle de qualidade, observara o chefe de sua seção, despachando o problema para outro grupo de engenheiros. O que tinham agora era muito mais excitante. Ali estava o projeto do espelho americano do qual tinham ouvido falar durante anos.
¯ A idéia veio de um astrônomo. Ele queria uma forma de obter fotografias estelares que não sofressem "cintilações". Ninguém se incomodou em dizer-lhe que isso era impossível, portanto ele foi em frente e conseguiu. Eu conhecia a idéia básica, mas não os detalhes. Você tem razão, meu jovem. Isso é muito engenhoso. Engenhoso demais para nós. ¯ O homem resmungou enquanto folheava as páginas que continham a especificação dos computadores. ¯ Não temos nada que possa obter esse desempenho. Só para construir esses atuadores... Nem sei se conseguimos fazer isso.
¯ Os americanos esta construindo o telescópio...
¯ Eu sei, no Havaí. Mas esse do Havaí fica muito aquém deste, tecnicamente falando. Os americanos fizeram um avanço que ainda não penetrou na comunidade científica em geral. Observe a data no diagrama. Eles podem estar operando com esse agora mesmo. ¯ Ele balançou a cabeça. ¯ Estão à nossa frente.
¯ Você precisa partir.
¯ Certo. Obrigado por me proteger por tanto tempo. ¯ A gratidão de Eduard Vassilyevich Altunin era sincera. Ele tivera um canto onde dormir e várias refeições quentes que o sustentaram enquanto fazia seus planos.
Ou tentou. Não tentou nem mesmo apreciar as condições desvantajosas sob as quais trabalhava. No Ocidente ele poderia ter arranjado facilmente novas roupas, uma peruca para disfarçar o cabelo, e até mesmo um conjunto de maquilagem teatral que vinha com instruções sobre como alterar a aparência. No Ocidente ele poderia ter-se escondido no banco traseiro de um carro e ser transportado
Ofereceram a ele um tipo de casaco diferente, mas não serviu, e ele não desejava comprometer aquela gente mais do que já estavam. Tinha sua história pronta: escondera-se com um grupo de criminosos a algumas quadras de distância. Um fato pouco conhecido a respeito de Moscou no Ocidente era a situação do crime, que era ruim, e piorava cada vez mais. Embora Moscou ainda não se equiparasse às cidades americanas do mesmo tamanho^ havia regiões onde não era muito prudente andar sozinho à noite. Mas, uma vez que os estrangeiros não as visitavam freqüentemente, e já que os criminosos de rua raramente importunavam estrangeiros ¯ fazê-lo provocaria uma resposta rosa e imediata da Milícia de Moscou ¯, o conhecimento da situação se espalhava devagar.
Ele saiu de Trofimovo, uma via pública encardida perto do rio. Altunin maravilhou-se com o tamanho de sua estupidez. Sempre dissera a si mesmo que, se precisasse escapar da cidade, ele o faria numa barcaça de carga. Seu pai trabalhara numa delas a vida inteira, e Eduard sabia de esconderijos que ninguém encontraria ¯ mas o rio congelara-se, o tráfego das barcaças estava paralisado e ele não havia pensado nisso! Altunin enraivecia-se consigo mesmo.
Não faz muito sentido preocupar-me com isso no momento, disse a si mesmo. Tem de haver outra maneira. Ele sabia que a fábrica de automóveis Moskvich, por onde os trens passavam o ano todo, ficava a apenas
Mas não podia parar agora. Havia começado no Afeganistão e imaginou se iria parar algum dia.
No começo conseguira controlar-se. Como cabo numa companhia de artefatos militares, trabalhava com o que os soviéticos chamavam eufemisticamente de "dispositivos antiterroristas". Eram distribuídos pelo ar ou com mais freqüência pelos soldados soviéticos completando uma "varredura" numa vila. Alguns eram bonecas típicas russas, as matryoshka, uma figura de traseiro volumoso enrolada em lenços coloridos; um caminhãozinho; ou uma caneta-tinteiro. Os adultos aprendiam rápido, mas as crianças eram tão amaldiçoadas com a curiosidade quanto com a incapacidade de aprender com o erro dos outros. Logo se verificou que as crianças apanhavam qualquer coisa, e o número de bonecas-bombas distribuído diminuiu. Uma coisa, porém, permaneceu constante: quando apanhados os objetos,
Altunin não pensara muito nisso, a princípio. Era seu trabalho, e as ordens para fazê-lo vinham lá do alto; os russos não são, por temperamento ou por condicionamento na educação, inclinados a questionar ordens superiores. Além do mais, tratava-se de um trabalho seguro e fácil. Ele não precisava andar carregando um rifle naquele país de bandidos. Os únicos momentos de perigo para ele foram nos bazares de Kabul, e ele sempre fora cuidadoso para andar em grupos de cinco ou mais. Mas numa daquelas excursões ele vira uma criança ¯ menino ou menina, ele não sabia ¯ cuja mão direita era agora um coto, e cuja mãe olhara para ele e seus companheiros de uma forma que jamais conseguiria esquecer. Ele ouvira histórias sobre como os bandidos afegães tinham um prazer especial em esfolar vivos os pilotos soviéticos capturados, e de como as mulheres costumavam cuidar completamente do assunto. Ele achava que essa era uma clara evidência do barbarismo desses povos primitivos ¯ mas uma criança não era primitiva. O marxismo afirmava isso. Tome qualquer criança, forneça escola e liderança adequadas, e terá um comunista por toda a vida. Mas não aquela criança. Ele lembrava tudo sobre aquele dia quente de novembro, dois anos atrás. A ferida estava completamente curada, e a criança na verdade sorria, muito jovem para entender que seu defeito duraria a vida inteira. Mas a mãe sabia, e sabia como e por que sua criança seria punida por ter... nascido. E depois disso o trabalho seguro e fácil não fora mais o mesmo. Cada vez que parafusava a parte dos explosivos, via uma pequena e rechonchuda mão infantil. Começou a vê-las em seus sonhos. A bebida e até uma experiência com haxixe não conseguiram fazer com que as imagens desaparecessem. Conversar com seus amigos técnicos também não ajudara ¯ embora tivesse atraído a ira do zampolit, o supervisor político de sua companhia. Era uma coisa difícil de fazer, o supervisor explicara, mas necessária para evitar uma perda maior de vidas, compreende? Reclamar sobre isso não iria mudar nada, a menos que o cabo Altunin quisesse transferência para uma companhia de combate, a fim de verificar por si mesmo por que tais medidas eram necessárias.
Ele sabia agora que deveria ter aceitado aquela oferta e odiou-se pela covardia que o impedira. Serviço numa companhia na linha de frente poderia ter ajudado a restaurar sua auto-imagem, poderia ¯ poderia ter feito muitas coisas, disse Altunin a si mesmo, só que não fizera a escolha, e não fizera diferença nenhuma. No final, tudo o que conseguira para si fora uma carta do zampolit, que viajaria com ele o resto de sua vida.
Agora tentava expiar o mal que fizera. Disse a si mesmo que talvez já o tivesse expiado ¯ e agora, com muita sorte, poderia desaparecer, e talvez pudesse esquecer os brinquedos que preparara para sua missão maldosa. Esse era o único pensamento positivo para o qual havia espaço em sua mente, nessa noite fria e encoberta.
Andou em direção ao norte, mantendo-se afastado das calçadas sujas, permanecendo nas sombras, longe da luz da rua. Trabalhadores de um dos turnos, voltando para casa vindo da fábrica Moskvich, tornavam as ruas agradavelmente apinhadas, mas quando chegou ao pátio de manobras ao lado de fora da fábrica o movimento cessara. Começou a nevar fortemente, reduzindo a visibilidade para
Ficou surpreso ao verificar que havia pessoas no interior do vagão. Três indivíduos. Dois seguravam caixas dp autopeças As mãos do terceiro estavam vazias, até que enfiou uma delas no bolso e voltou empunhando uma faca.
Altunin começou a dizer alguma coisa. Não se importava se eles estavam ou não roubando peças para vender no mercado negro. Não estava nem um pouco preocupado, mas, antes que pudesse falar, o terceiro homem pulou sobre ele. Altunin ficou tonto quando sua cabeça bateu num trilho de aço. Estava consciente, porém não conseguiu mover-se por um segundo, surpreso demais para estar com medo. O homem voltou-se e disse alguma coisa. Altunin não conseguiu entender, mas o tom era agudo e urgente. Ainda tentava entender o que estava acontecendo quando seu atacante voltou-se e cortou sua garganta. Não chegou nem mesmo a sentir dor. Quis explicar que não estava... interessado... não se importava... só queria... Um deles ficou sobre ele, com duas caixas nos braços, claramente amedrontado. Altunin achou isso muito estranho, desde que era ele quem estava morrendo...
Duas horas depois, uma locomotiva de manobras não pôde parar a tempo quando seu maquinista notou uma forma estranha nos trilhos, coberta de neve. Ao ver o que havia passado, chamou o manobrista.
Conferências
¯ Belo trabalho ¯ comentou Vatutin. ¯ Os filhos da puta. ¯ Quebraram as regras, disse para si mesmo. As regras não estavam escritas, mas eram bem reais: a CIA não mata soviéticos na União Soviética; a KGB não mata americanos, ou mesmo fugitivos soviéticos nos Estados Unidos. Tanto quanto Vatutin sabia, a regra nunca fora quebrada por nenhum dos dois lados ¯ pelo menos não tão obviamente. A regra fazia sentido: o trabalho das agências de Inteligência era reunir informações; se os agentes da CIA e da KGB gastassem o tempo matando pessoas ¯ com a inevitável retaliação e contra-retaliação ¯, o trabalho principal não seria feito. Portanto, o negócio de Inteligência era civilizado e previsível. Nos países do Terceiro Mundo aplicavam-se regras diferentes, claro, mas nos Estados Unidos e na União Soviética as regras eram seguidas ao pé da letra.
Quer dizer, até agora ¯ a menos que eu esteja disposto a acreditar que esse pobre coitado tenha sido assassinado por ladrões de peças! Vatutin imaginou se a CIA havia contratado os serviços de um bando de criminosos ¯ ele suspeitava 4e que os americanos usavam criminosos soviéticos para assuntos sensíveis demais para as próprias mãos imaculadas. Isso não seria uma violação técnica das regras, seria? Perguntou-se se os homens do Primeiro Diretório nunca se utilizaram de uma manobra similar...
Tudo o que sabia no momento era que o próximo passo na cadeia de "elos" da corrente de mensageiros estava morto a seus pés, e com ele a única esperança de fazer a ligação entre o microfilme e o espião americano no Ministério da Defesa. Vatutin corrigiu-se: também sabia que precisava informar o diretor-geral dentro de aproximadamente seis horas. Precisava de uma bebida. Vatutin sacudiu a cabeça e olhou para baixo, na direção do que restava de seu suspeito. A neve caía tão rapidamente que não se podia mais ver o sangue.
¯ . Sabe, se eles tivessem sido um pouquinho mais espertos quando colocaram o corpo nos trilhos, talvez tivéssemos catalogado como acidente ¯ observou outro agente da KGB. Apesar do horrendo trabalho executado no corpo pelas rodas da locomotiva, ficava patente que a garganta fora habilmente cortada com uma faca de lâmina estreita. A morte, segundo o relatório do médico designado, não demorara mais do que um minuto. Não havia sinal de luta. As mãos da vítima ¯ do traidor! ¯ não estavam cortadas ou machucadas. Ele não reagira contra quem quer que o tivesse matado. Conclusão: o assassino era provavelmente conhecido da vítima. Poderia ter sido um americano?
¯ Primeira coisa ¯ disse Vatutin. ¯ Quero saber se algum americano estava ausente da residência entre 18 e 23 horas. ¯ Ele se voltou. ¯ Doutor!
¯ Sim, coronel?
¯ Qual foi mesmo a hora da morte?
¯ A julgar pela temperatura dos pedaços maiores, entre 9 horas da noite e meia-noite. Mais perto das 9, eu acho, mas o frio e a neve dificultam muito. ¯ Sem mencionar o estado dos restos, pensou ele.
Vatutin voltou-se para seu assistente principal.
¯ Qualquer um que não estivesse em casa nesse horário, quero saber quem, onde, quando e por quê.
¯ Aumentamos a vigilância sobre todos os estrangeiros? ¯ pensou em voz alta o homem.
¯ Precisarei ir ao diretor-geral para isso, mas estou pensando em fazê-lo. Quero que você fale com o chefe dos investigadores da Milícia. Isso deve ser classificado como ultra-secreto. Não precisamos de uma multidão de policiais desajeitados atrapalhando esse assunto.
¯ Entendido, camarada coronel. Eles só estão interessados em recuperar as peças roubadas, de qualquer jeito ¯ observou acidamente o homem. Esse negócio de perestroika está transformando todo mundo em capitalista!
Vatutin foi até o maquinista.
¯ Está frio, não?
A mensagem foi recebida.
¯ Sim, camarada. Talvez gostasse de alguma coisa para espantar o frio?
¯ Seria muita bondade sua, camarada engenheiro.
¯ O prazer é todo meu, camarada coronel. ¯ O maquinista exibiu imediatamente uma pequena garrafa. Logo percebeu que o homem era um coronel da KGB e pensou que estivesse perdido. Mas o homem parecia bastante decente. Seus colegas tinham a aparência de negociantes, as perguntas que faziam pareciam razoáveis e o homem parecia quase à vontade, até que percebeu que poderia ser punido por manter uma garrafa no trabalho. Observou o homem dar um longo gole, depois devolver a garrafa.
¯ Spasibo ¯ agradeceu o homem da KGB e afastou-se na neve.
Vatutin estava aguardando na antecâmara da sala do diretor-geral quando ele chegou. Ouvira que Gerasimov era um trabalhador dedicado, sempre à sua mesa às 7h30. As histórias se confirmaram. Ele passou pela porta às 7h25 e acenou para que o homem do "Dois" o seguisse para o interior do escritório.
¯ Bem?
¯ Altunin foi assassinado na noite passada, no pátio de manobras exterior da fábrica de automóveis Moskvich. A garganta foi cortada e o corpo foi colocado nos trilhos, onde foi atropelado por uma locomotiva de manobras.
¯ Tem certeza de que era ele? ¯ perguntou Gerasimov com um franzir de sobrancelhas.
¯ Sim, ele foi identificado positivamente. Eu mesmo reconheci seu rosto. Ele foi encontrado próximo a um vagão ostensivamente arrombado, em que algumas peças estavam faltando.
¯ Oh, quer dizer que ele tropeçou numa súcia de bandidos do mercado negro, e eles convenientemente o mataram?
¯ E o que está parecendo, camarada diretor-geral ¯ concordou Vatutin. ¯ Achei a coincidência inconsistente, mas não há nenhuma prova física para contradizê-la. Nossas investigações continuam. Agora estamos verificando o endereço dos companheiros do serviço militar de Altunin, para saber se algum mora na área, mas não tenho muita esperança de conseguir alguma coisa por esse lado.
Gerasimov apertou o botão para mandar vir o chá. O secretário apareceu num instante, e Vatutin compreendeu que aquilo deveria fazer parte de uma rotina matinal estabelecida. O diretor-geral aceitava as coisas mais facilmente do que o coronel pensara. Homem do Partido ou não, ele agia como um profissional.
¯ Portanto, até agora temos três mensageiros de documentos secretos que confessaram e mais um identificado positivamente, só que infelizmente assassinado. O que morreu foi visto nas proximidades do ajudante de confiança do ministro da Defesa, e um dos vivos identificou seu contato como sendo estrangeiro, mas não pôde identificar positivamente o rosto. Em pouco tempo teremos o meio dessa corrente, mas nenhuma das pontas.
¯ Exatamente, camarada diretor-geral. A vigilância sobre os dois coronéis do ministério continua. Proponho que intensifiquemos a vigilância sobre a comunidade da embaixada americana.
Gerasimov acenou positivamente.
¯ Aprovado. Está na hora da minha reunião matinal. Continue pressionando para encontrar uma brecha no caso. Está com aparência melhor agora que parou de beber, Vatutin.
¯ Sinto-me melhor, camarada diretor-geral ¯ admitiu ele.
¯ Ótimo. ¯ Gerasimov levantou-se, e seu visitante fez o mesmo. ¯ Acha mesmo que nossos colegas da CIA mataram o próprio agente?
¯ A morte de Altunin foi conveniente demais para eles. Compreendo que isto seria uma violação do nosso... nosso acordo nesse campo, mas...
¯ Mas estamos lidando com um espião altamente colocado, e sem dúvida eles têm o maior interesse em protegê-lo. Sim, eu entendo isso. Continue pressionando, Vatutin ¯ repetiu Gerasimov.
Foley também já se encontrava no escritório. Sobre sua mesa estavam três magazines de filmes para o Cardeal. O próximo problema era entregar as malditas coisas. O negócio da espionagem era uma massa interligada de contradições. Algumas partes eram diabolicamente difíceis. Algumas situações carregavam o tipo de perigo que o fazia desejar não ter saído do New York Times. Outras, porém, eram tão simples que poderia confiá-las a um de seus filhos. Isso lhe ocorrera várias vezes ¯ não que tivesse levado a sério a possibilidade, mas, nos momentos em que sua mente estava afetada por alguns copos a mais, imaginava que Eddie poderia apanhar um pedaço de giz e fazer uma certa marca num certo lugar. De tempos em tempos, o pessoal da embaixada andava por Moscou fazendo coisas levemente fora do normal. Durante o verão usavam flores nas lapelas e as removiam sem nenhum motivo aparente ¯ os agentes da KGB que os observavam procuravam ansiosamente pelas calçadas pela pessoa a quem o "sinal" era dirigido. Por todo o ano alguns vagavam, tirando fotografias de cenas comuns nas ruas. Na verdade, nem lhes era preciso pedir. Alguns dos membros da embaixada só precisavam liberar o lado excêntrico de sua personalidade americana para deixar os russos loucos da vida. Para um agente de contra-espionagem, qualquer coisa poderia ser um sinal secreto: um protetor solar abaixado num carro estacionado, um pacote deixado no banco da frente, a direção em que as rodas ficavam. O efeito de rede de todas essas medidas, algumas deliberadas, outras meramente ao acaso, mantinha os homens do "Dois" vasculhando a cidade à procura de coisas que simplesmente não existiam. Era uma missão que os americanos desempenhavam melhor do que os russos, que eram muito organizados para agir verdadeiramente ao acaso, e que tornava a vida miserável para os homens do Segundo Diretório.
Mas havia milhares deles, e apenas setecentos americanos ¯ contando os dependentes ¯ designados para a embaixada.
E Foley ainda tinha o filme a entregar. Perguntou-se por que o Cardeal sempre se recusara a usar os dead-drops. Seria o expediente perfeito no caso. O dead-drop era tipicamente um objeto que poderia parecer uma pedra comum, ou qualquer outra coisa corriqueira e inocente, tornada oca para conter o objeto que se queria transferir. Tijolos eram preferidos em Moscou, pois a cidade possuía essencialmente casas de tijolos, e muitos deles estavam soltos, devido à má qualidade da mão-de-obra local, porém a variedade de tais dispositivos era infindável.
Por outro lado, a variedade de maneiras para fazer uma entrega sub-reptícia era limitada e dependia do tipo de sorte envolvido num jogo de cara-ou-coroa. Bem, a Agência não lhe dera aquele emprego por ser fácil. Não podia arriscar-se novamente. Talvez sua mulher pudesse fazer a transferência...
¯ Então, onde é o vazamento? ¯ perguntou Parks a seu chefe de segurança.
¯ Poderia ser qualquer um dentre cem pessoas, mais ou menos ¯ respondeu o homem.
¯ Boas notícias ¯ comentou secamente Pete Wexton. Ele era inspetor no departamento de contra-espionagem do FBI. ¯ Só uma centena.
¯ Pode ser alguém do nosso pessoal científico, ou a secretária de um deles, ou alguém no setor de orçamento... isso só no interior do programa. Existem outras vinte e poucas pessoas que sabem o suficiente sobre Tea Clipper para ter visto esse material, mas são todos veteranos. ¯ O chefe.de segurança da Organização da Iniciativa de Defesa Estratégica era um capitão da Marinha que geralmente usava trajes civis. ¯ Mais provavelmente, a pessoa que procuramos está no Ocidente mesmo.
¯ E são quase todos do tipo erudito, com menos de 40 anos. ¯ Wexton fechou os olhos. Que vivem no meio de computadores e pensam que o mundo não passa de um grande videogame. O problema com os cientistas, principalmente com os mais jovens, era simplesmente que eles viviam num mundo diferente do que aquele entendido e apreciado pela comunidade de segurança. Para eles, o progresso dependia da transferência livre de informações e idéias. Eram as pessoas que ficavam excitadas com as coisas novas, e falavam entre si sobre elas, inconscientemente buscando o sinergismo que espalhava as idéias como sementes no jardim desordenado do laboratório. Para um agente de segurança, o mundo ideal seria aquele em que ninguém falasse com ninguém. O problema com isso, claro, é que tal mundo nunca produziria nada que valesse a pena proteger em primeiro lugar. O equilíbrio seria praticamente impossível de atingir, e o pessoal da segurança sempre seria apanhado exatamente no meio, odiado por todos.
¯ E quanto ã segurança interna dos documentos do projeto? ¯ indagou Wexton.
¯ Está se referindo a "arapucas de canário"?
¯ Que diabos é isso? ¯ perguntou Parks.
¯ Todos esses papéis são processados em editores de texto. Usa-se a máquina para fazer sutis alterações em cada cópia dos papéis importantes. Dessa forma, pode-se seguir cada um e identificar precisamente qual foi passada para o outro lado ¯ explicou o capitão. ¯ Não temos feito muito disso, ultimamente. Consome muito tempo.
¯ A CIA tem uma sub-rotina no computador que faz isso automaticamente. Eles a chamam de Spookscribe, ou algo parecido. É um segredo muito bem guardado, mas se você perguntar pode chegar a operá-la.
¯ Como são bonzinhos em nos contar ¯ resmungou Parks. ¯ Faria alguma diferença neste caso?
¯ No momento, não, mas é preciso jogar todas as cartas ¯ observou o capitão ao seu superior. ¯ Já ouvi falar sobre o programa. Não pode ser usado em documentos científicos. A maneira como usam a linguagem é muito precisa. Qualquer coisa a mais do que uma vírgula... bem, pode mudar completamente a porra do significado.
¯ Presumindo, em primeiro lugar, que alguém possa entendê-lo ¯ disse Wexton, balançando a cabeça pesarosamente. ¯ Bem, com certeza os russos podem. ¯ Ele já estava pensando sobre os recursos que aquele caso exigiria... possivelmente centenas de agentes. Seriam muito evidentes. A comunidade em questão era muito pequena para absorver um influxo tão grande de pessoas sem que alguém reparasse.
A outra coisa óbvia a fazer seria restringir o acesso às informações nas experiências com os espelhos, mas tal atitude traria o risco de alertar o espião. Wexton perguntou-se por que não tinha ficado com missões simples como seqüestras e combate à Máfia. Porém recebera as primeiras informações sobre Tea Clipper do próprio Parks. Era um trabalho importante, e ele era o melhor homem para fazê-lo. Weston tinha certeza: o diretor Jacobs em pessoa o dissera.
Bondarenko reparou primeiro. Experimentara um sentimento estranho alguns dias antes, enquanto fazia o exercício matinal. Era um sentimento que sempre o habitara, mas aqueles três meses no Afeganistão haviam transformado um sexto sentido latente num outro, completamente desenvolvido. Havia olhos voltados para ele. De quem?, perguntou-se.
Eles eram bons. Disso ele tinha certeza. Também suspeitava de que havia cinco ou mais homens. Isso os tornava russos... provavelmente. Não com certeza. O cel. Bondarenko já correra
Girou a cabeça, olhando para os reflexos nas janelas. Um homem estava a
Trinta minutos mais tarde, em casa, depois de banhado e vestido, ele lia seu jornal matinal ¯ para ele era o Krasnaya Zvesda (Estrela Vermelha), o diário militar soviético ¯, enquanto saboreava uma xícara de chá. O rádio tocava, enquanto sua mulher preparava as crianças para a escola. Bondarenko não prestava atenção, e seus olhos meramente passeavam pelo jornal com a mente agitada. Quem são eles? Por que estão me observando? Estou sob suspeita? Se for assim, suspeita de quê?
¯ Bom dia, Gennady Iosifovich ¯ cumprimentou Misha entrando em seu escritório.
¯ Bom dia, camarada coronel ¯ respondeu Bondarenko. Filitov sorriu.
¯ Me chame de Misha. Da maneira que as coisas vão, logo vai ultrapassar o posto dessa velha carcaça. O que foi?
¯ Estou sendo vigiado. Algumas pessoas me seguiram esta manhã quando fiz minha corrida.
¯ Ah, é? ¯ Misha voltou-se. ¯ Tem certeza?
¯ Você sabe como é quando nós estamos sendo vigiados... ¯ observou o jovem coronel. ¯ Tenho certeza de que você sabe, Misha!
Mas ele estava errado. Filitov não tinha notado nada de anormal, nada que despertasse seus instintos até aquele momento. Então lembrou-se do fato de que o atendente dos banhos ainda não retornara. E se o sinal significasse alguma coisa a mais do que uma simples verificação de rotina? O rosto de Filitov mudou por um instante antes que ele conseguisse recuperar o controle.
¯ Você notou alguma coisa também, então? ¯ perguntou Bondarenko.
¯ Ah! ¯ Um aceno da mão e um olhar irônico. ¯ Deixe que eles olhem à vontade; vão achar esse velho mais maçante do que a vida sexual de Alexandrov. ¯ A referência ao chefe idealista do Politburo estava ficando popular no Ministério da Defesa. Um sinal, perguntou-se Misha, de que o secretário-geral Narmonov planejava dar-lhe trégua?
Eles comiam à maneira afegã, todos servindo-se com as mãos de um prato em comum. Ortiz servira um verdadeiro banquete como almoço. O Arqueiro ocupava o lugar de honra, com Ortiz à sua direita para fazer o papel de tradutor. Quatro homens altamente graduados da CIA estavam presentes também. Ele pensou que estavam exagerando, mas, por outro lado, o lugar que lançara a luz para o céu devia ser muito importante. Ortiz iniciou a conversa com as frases cerimoniais costumeiras.
¯ Vocês me honram em demasia ¯ respondeu o Arqueiro.
¯ Nem tanto ¯ disse o visitante mais graduado por intermédio de Ortiz. ¯ Sua habilidade e sua coragem nos são bem conhecidas, mesmo entre nossos soldados. Estamos envergonhados por só poder conceder a pobre ajuda que nosso governo nos permite.
¯ É a nossa terra que lutamos para recuperar ¯ afirmou o Arqueiro com dignidade. ¯ Com a ajuda de Alá, ela será nossa outra vez. É bom que os crentes se unam contra os sem-Deus, mas essa tarefa é do meu povo, não do seu.
Ele não sabe, pensou Ortiz. Ele não sabe que está sendo usado.
¯ Então? ¯ prosseguiu o Arqueiro. ¯ Por que viajaram até o outro lado do mundo para falar com esse humilde guerreiro?
¯ Queremos falar com você a respeito da luz que viu no céu. O rosto do Arqueiro mudou. Ele ficou surpreso com isso. Esperava
que lhe perguntassem sobre o desempenho dos mísseis.
¯ Foi uma luz... sim, uma estranha luz. Como um meteoro, só que parecia subir em vez de descer. ¯ Ele descreveu com detalhes o que vira, dando o tempo, o local, a direção da luz e a maneira como ela cortara o céu.
¯ Você viu o que ela atingiu? Viu mais alguma coisa no céu?
¯ Atingiu? Não estou entendendo. Era apenas uma luz. Outro dos visitantes falou.
¯ Me disseram que já foi professor de matemática. Sabe o que é um laser?
O rosto dele mudou com o novo pensamento.
¯ Sim, li sobre eles quando estava na universidade. Eu... ¯ O Arqueiro deu um gole em seu copo de suco. ¯ Eu sei pouco sobre laser. Projetam um feixe de luz e são usados para medições e vigilância. Nunca vi um, só li sobre eles.
¯ O que você viu foi o teste de uma arma laser.
¯ Qual a finalidade?
¯ Nós não sabemos. O teste que você viu usou o sistema laser para destruir um satélite em órbita. Isso significa...
¯ Eu sei o que são satélites. Um laser pode ser usado com essa finalidade?
¯ Nosso país está trabalhando num projeto similar, mas parece que os russos estão à nossa frente.
O Arqueiro ficou surpreso. Então a América não era a líder mundial em tecnologia? O Stinger não era prova disso? Por que aqueles homens haviam voado quase
¯ Vocês temem esse laser?
¯ Temos grande interesse nele ¯ respondeu o mais graduado. ¯ Alguns dos documentos que encontrou nos deram informações que não tínhamos sobre o local, e por esse motivo estamos em débito com você.
¯ Agora eu também tenho interesse. Você tem os documentos?
¯ Emílio? ¯ O homem gesticulou a Ortiz, que apresentou um mapa e um diagrama.
¯ Este local está em construção desde 1983. Estamos surpresos de que os russos tenham construído instalações importantes tão perto da fronteira do Afeganistão.
¯ Em 1983 eles ainda pensavam que iriam ganhar ¯ observou sombriamente o Arqueiro.
A idéia de que eles tivessem acreditado naquilo era tomada como um insulto. Ele notou a posição no mapa, o pico de montanha quase cercado por uma curva do rio Vakhsh. Imediatamente percebeu por que estava ali. A represa hidrelétrica de Nurek ficava apenas a alguns quilômetros. O Arqueiro sabia mais do que dissera. Sabia o que era laser, e um pouco sobre a forma como funcionava. Sabia que a luz deles era perigosa, que podia cegar...
Destruíra um satélite? Centenas de quilômetros acima no espaço, muito mais alto do que voavam os aviões... o que faria com as pessoas no chão?... talvez tivessem construído tão perto de seu país por outro motivo...
¯ Então você simplesmente viu a luz? Não ouviu histórias sobre tal lugar, nenhuma história sobre luzes estranhas no céu?
O Arqueiro balançou a cabeça sobriamente.
¯ Não, foi apenas essa vez. ¯ Viu os visitantes trocarem olhares de desapontamento.
¯ Bem, isso não importa. Estou autorizado a lhe oferecer os agradecimentos do meu governo. Três caminhões de armas estão sendo enviados para seu grupo. Se existe mais alguma coisa de que precise, tentaremos conseguir para você.
O Arqueiro concordou com sobriedade. Ele esperara uma grande recompensa pela entrega do oficial soviético, depois ficara desapontado com sua morte. Mas os homens não tinham vindo até ele por aquele motivo. Era tudo sobre os documentos e a luz ¯ seria aquele lugar tão importante que a morte de um russo fosse julgada trivial? Os americanos estariam mesmo com medo?
E, se os americanos estavam com medo, como devia ele sentir-se?
¯ Não, Arthur, não gosto disso ¯ afirmou o presidente, tentando resistir.
O juiz Moore pressionou novamente.
¯ Senhor presidente, estamos a par das dificuldades políticas de Narmonov. O desaparecimento de nosso agente não terá tanto efeito como sua prisão pela KGB, possivelmente menos. Afinal de contas, a KGB não pode cantar vitória se o deixarem escorregar entre os dedos ¯ afirmou o diretor-geral.
¯ Mesmo assim é um risco muito grande ¯ disse Jeffrey Pelt. ¯ Temos uma oportunidade histórica com Narmonov. Ele realmente pretende fazer mudanças no sistema deles... que diabos, vocês mesmos fizeram a avaliação.
Tivemos a chance e a desperdiçamos, durante a administração Kennedy, pensou Moore. Mas Kruschev caiu e tivemos vinte anos de picaretas do Partido. Agora talvez haja outra chance. Você tem medo de que nunca consigamos outra oportunidade tão boa como esta. Bem, é uma maneira de se ver o problema, admitiu para si mesmo.
¯ Jeff, sua posição não será mais afetada se retirarmos nosso homem do que pela sua captura...
¯ Se estão atrás dele, por que ainda não o agarraram? ¯ indagou Pelt. ¯ E se estivermos exagerando?
¯ Esse homem tem trabalhado para nós há trinta anos... trinta anos! Sabe dos riscos que correu por nós, das informações que obtivemos dele? Pode imaginar a frustração que sentiu das vezes que ignoramos seus conselhos? Consegue imaginar como é conviver com uma sentença de morte por trinta anos? Se abandonarmos esse homem, onde ficam as coisas que defendemos nesse país? ¯ disse Moore com calma determinação. O presidente era um homem que sempre podia ser convencido por argumentos baseados em princípios.
¯ E se derrubarmos Narmonov nesse processo? ¯ indagou Pelt. ¯ E se o grupo de Alexandrov tomar o poder e voltarmos outra vez aos velhos dias... mais tensões, mais corridas armamentistas? Como vamos explicar ao povo americano que sacrificamos essa oportunidade pela vida de um homem?
¯ Por um lado, eles nunca saberão, a menos que alguém deixasse passar a informação ¯ retrucou friamente o diretor-geral. ¯ Os russos não deixam que os fatos venham a público, e você sabe disso. Por outro lado, como vamos explicar o fato de jogarmos fora esse homem, como um lenço descartável?
¯ Eles também não saberiam disso, a menos que alguém deixasse a informação vazar ¯ respondeu Pelt numa voz igualmente fria.
O presidente hesitou. Seu primeiro impulso fora o de deixar a operação de extradição aguardando. Como poderia explicar isso? Por ação ou omissão, estavam discutindo a melhor maneira de evitar que um acontecimento desfavorável sucedesse ao principal inimigo dos Estados Unidos. Mas não se pode dizer isso em público, refletiu o presidente. Se dissermos em voz alta que os russos são nossos inimigos, os jornais fariam um escândalo. Os soviéticos possuem milhares de ogivas nucleares apontadas para nós, mas não podemos correr o risco deferir a sensibilidade deles...
Lembrou-se de seus dois encontros frente a frente com o homem, Andrey Ilych Narmonov, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Mais novo do que ele, lembrou o presidente. As conversações iniciais haviam sido cautelosas, cada homem sentindo o outro, procurando, tanto por fraquezas como por pontos em comum, vantagens e compromissos. Um homem com uma missão, um homem que provavelmente queria mesmo mudar as coisas, pensou o presidente...
Mas seria uma boa coisa? E se ele conseguisse descentralizar a economia, introduzir forças de mercado, dar um pouco de liberdade ¯ não muito, claro, mas o suficiente para manter as coisas andando? Várias pessoas o estavam alertando contra essa possibilidade: imagine um país, com a vontade política dos soviéticos, apoiado por uma economia que poderia entregar bens de consumo tanto no setor civil quanto no militar. Isso faria o povo russo acreditar novamente em seu sistema; iria reviver o senso de missão que tiveram nos anos 30? Poderemos nos ver enfrentando um inimigo muito mais perigoso do que antes.
Por outro lado, haviam lhe dito que não existe algo como apenas um pouco de liberdade... Poder-se-ia questionar Duvalier no Haiti, Marcos nas Filipinas, ou o fantasma do xá Mohammed Reza Pahlavi. O impulso dos acontecimentos poderia trazer a União Soviética de uma era de trevas para o interior do moderno pensamento político no século 20. Poderia demorar uma geração, talvez duas, mas e se o país resolvesse se envolver em alguma coisa que se aproximasse de um Estado liberal? Havia outra lição de história a ser aprendida: democracias liberais não fazem guerras umas às outras.
Que escolha tenho eu?, pensou o presidente. Posso ser lembrado como o idiota retrógrado que trouxe de volta a Guerra Fria, com toda a sua triste majestade ¯ ou como Pollyanna, que esperou o leopardo mudar suas pintas, apenas para descobrir que ele ficou maior e com as presas mais afiadas. Meu Deus, disse ele a si mesmo enquanto encarava seus dois interlocutores, não estou pensando nem um pouco sobre sucesso, só nas conseqüências da derrota.
E nessa área que América e Rússia têm histórias paralelas ¯ nossos govemos no pós-guerra nunca sobreviveram às expectativas de nossos povos. Eu sou o presidente, deveria saber qual é a Coisa Certa. Foi por isso que as pessoas me elegeram. É para isso que me pagam. Meu Deus, se eles soubessem em que fraudes estamos todos metidos.... Não estamos discutindo aqui como vencer. Estamos discutindo quem vai deixar escapar o motivo do fracasso da política. Bem aqui, no Salão Oval, estamos discutindo sobre quem vai levar a culpa se alguma coisa sobre a qual ainda não resolvemos der errado.
¯ Quem mais sabe sobre isso? O juiz Moore estendeu as mãos.
¯ O almirante Greer, Bob Ritter, e eu, na CIA. Alguns entre o pessoal de campo sabem sobre as operações propostas... Tivemos de mandar um sinal de alerta, mas eles não sabem dos aspectos políticos e nunca saberão. Não precisam saber. À parte isso, somente nós três na Agência temos o quadro inteiro. Acrescente o senhor, e o doutor Pelt, e perfazem cinco.
¯ E já estamos falando em vazamento de informações! Mas que merda! ¯ xingou o presidente com entusiasmo surpreendente. ¯ Como é que fomos ficar tão fodidos assim?
Todos ficaram mais sóbrios. Não havia nada como uma explosão presidencial para acalmar as pessoas. Ele olhou para Moore e Pelt, o principal conselheiro de Inteligência, e o conselheiro de Segurança Nacional. Um pedia pela vida de um homem que servira fielmente aos Estados Unidos, com perigo de vida; o outro observava distante e friamente a realpolitik e encontrava uma oportunidade histórica mais importante do que qualquer vida humana.
¯ Arthur, está dizendo que esse agente... e eu não quero nem saber o nome dele... nos tem fornecido dados crucialmente importantes nos últimos trinta anos, incluindo esse projeto laser que os russos vêm operando; você diz que ele provavelmente está em perigo, e é hora de correr o risco de tirá-lo de lá, e que temos a obrigação moral de fazê-lo.
¯ Sim, senhor presidente.
¯ E você, Jeff, diz que a hora é ruim, e a revelação de um vazamento de informações tão elevado no governo poderia colocar Narmonov em perigo político, poderia retirá-lo da liderança e substituí-lo por um governo menos atrativo a nós.
¯ Sim, senhor presidente.
¯ E se esse homem morrer porque não o ajudamos?
¯ Perderíamos informações importantes ¯ disse Moore. ¯ Poderia não fazer nenhuma diferença apreciável de efeito em Narmonov.
E estaríamos traindo a confiança de um homem que nos serviu bem e fielmente durante trinta anos.
¯ Jeff, você consegue viver com isso? ¯ perguntou o presidente ao seu conselheiro de Segurança Nacional.
¯ Sim, senhor, consigo viver com isso. Não gosto, mas consigo viver com isso. Com Narmonov já possuímos um acordo sobre armas nucleares intermediárias, e temos a chance de conseguir um sobre forças estratégicas.
E como ser um juiz. Tenho aqui dois advogados que acreditam firmemente em suas posições. Imagino se os princípios deles seriam tão firmes se estivessem em minha cadeira, se precisassem tomar a decisão.
Mas eles não haviam se candidatado à Presidência.
Esse agente vem servindo aos Estados Unidos desde que eu era promotor público iniciante, acusando prostitutas em tribunais noturnos.
Narmonov pode ser a melhor chance que já tivemos de garantir a paz no mundo desde Deus sabe quando.
O presidente levantou-se e andou até as janelas atrás de sua escrivaninha. Elas eram bastante grossas, para protegê-lo de pessoas armadas. Não poderiam protegê-lo contra os deveres de seu cargo. Olhou para o gramado ao sul, mas não encontrou respostas. Voltou-se novamente.
¯ Não sei. Arthur, deixe tudo preparado, mas quero sua palavra de que nada acontecerá sem minha autorização. Sem erros, sem iniciativas, sem ações até que eu determine. Vou precisar de tempo para essa decisão. Temos tempo, não temos?
¯ Sim, senhor. Vai levar mais alguns dias até que encaixemos todas as peças no lugar.
¯ Comunico a vocês quando tomar minha decisão. ¯ Ele apertou as mãos dos dois homens e observou-os partindo.
O presidente ainda tinha cinco minutos antes da sua próxima entrevista e usou o tempo para ir até o banheiro anexo ao escritório. Imaginou se haveria algum simbolismo oculto no ato de lavar as mãos, ou era apenas uma desculpa para poder observar a própria imagem no espelho. E você é supostamente o homem que precisa dar cada porra de resposta!, a imagem disse a ele. Você nem mesmo sabe por que veio ao banheiro! O presidente sorriu. Aquilo era engraçado. Engraçado de uma maneira que poucos homens entenderiam.
¯ Então o que digo a Foley? ¯ sibilou Ritter vinte minutos depois.
¯ Calma, Bob ¯ avisou Moore. ¯ Ele está pensando sobre o assunto. Não necessitamos de uma decisão imediata, e um "talvez" é bem melhor do que um "não".
¯ Desculpe, Arthur. É só que... merda, já tentamos tirá-lo de lá antes. Não podemos deixá-lo ser apanhado.
¯ Tenho certeza de que ele não vai tomar uma decisão final até que eu tenha uma chance de falar novamente com ele. Por enquanto, diga
Foley que continue com a missão. E quero uma nova apreciação da vulnerabilidade política de Narmonov. Tenho a impressão de que Alexandrov está de saída... ele está muito velho para assumir o posto; o Politburo não apoiaria a substituição de um homem relativamente jovem por um muito idoso, não depois do cortejo fúnebre que tiveram alguns anos atrás. Quem ocuparia o lugar?
¯ Gerasimov ¯ respondeu imediatamente Ritter. ¯ Dois outros poderiam estar no páreo, mas ele é o mais ambicioso. Impiedoso, mas muito suave. A burocracia do Partido o aprecia porque fez um belo trabalho com os dissidentes. Se ele quiser se mexer, terá de ser logo. Se o tratado sobre armamentos for aprovado, Narmonov ganhará muito prestígio e a força política que sempre acompanha essas vitórias. Se Alexandrov não tomar cuidado, vai perder o barco de uma vez, ser aposentado, e Narmonov ficará belo e seguro em sua cadeira por muitos anos.
¯ Isso vai demorar quase cinco anos para acontecer ¯ observou o almirante Greer, falando pela primeira vez. ¯ Pode ser que ele não dure cinco anos. Temos mesmo indicações de que Alexandrov pode estar saindo. Se isso é mais do que um rumor, ele pode forçar a mão.
O juiz Moore olhou para o teto.
¯ Com certeza seria mais fácil lidar com esses putos se eles tivessem uma maneira previsível de dirigir as coisas. ¯ E claro que nós temos, e eles não conseguem predizer o que fazemos.
¯ Anime-se, Arthur ¯ disse Greer. ¯ Se o mundo fizesse algum sentido, todos teríamos de procurar trabalho honesto.
Mudanças
A passagem pelo estreito de Kattegat, entre a Jutlândia e a Suécia, é sempre difícil para um submarino, e duplamente quando precisa manter-se oculto. A água é rasa, rasa demais para navegar submerso. Os canais podem ser traiçoeiros, mesmo à luz do dia. São muito piores à noite, e ainda piores sem um piloto. Como a passagem do Dallas era supostamente secreta, um piloto estava fora de questão.
Mancuso ocupava o passadiço. Abaixo, seu navegador suava à mesa de cartas náuticas, enquanto o contramestre-chefe manobrava o periscópio e gritava as posições dos vários pontos de referência em terra. Não podiam usar o radar para auxiliar na navegação, porém o periscópio possuía um amplificador de luz, que não transformava exatamente a noite em dia, mas pelo menos fazia a escuridão sem estrelas parecer um crepúsculo. O tempo era ideal, quase um presente, com nuvens baixas e nevoeiro, que reduzia a visibilidade o suficiente para que a forma baixa e escura do submarino classe 688 fosse difícil de ser avistada da terra firme. A Marinha dinamarquesa sabia sobre a passagem do submarino e mantinha algumas embarcações pequenas para afastar possíveis bisbilhoteiros ¯ não havia nenhum ¯, porém, à parte isso, o Dallas estava por conta própria.
¯ Navio pela proa, a bombordo ¯ avisou um vigia.
¯ Já achei ¯ respondeu Mancuso imediatamente. Ele segurava um visor amplificador de luz que parecia uma pistola, e via através dele o navio cargueiro de porte médio. As chances eram de que pertencesse ao Bloco Oriental. No período de um minuto, o curso do navio que se aproximava estava traçado com um CPA ¯ ponto de aproximação máxima ¯ de
O Dallas estava com as luzes de navegação acesas ¯ os dinamarqueses haviam insistido nesse ponto. A luz giratória âmbar acima da luz no topo do mastro identificava positivamente um submarino. A ré um marinheiro arriava a bandeira americana e a substituía por uma dinamarquesa.
¯ Todo mundo parecendo escandinavo ¯ ironizou Mancuso.
¯ Ia-Ia, capiton ¯ brincou um jovem oficial na escuridão. Seria difícil para ele parecer escandinavo. Ele era negro. ¯ Pequena mudança no curso do nosso amigo. Não acho que esteja desviando, senhor. Veja...
¯ É, estou vendo. ¯ Duas das embarcações dinamarquesas avançavam de maneira a ficar entre o navio de carga e o Dallas. Mancuso achou que isso ajudaria. A noite todos os gatos são pardos e um submarino na superfície parece... com um submarino na superfície, uma forma negra com a torre vertical.
¯ Acho que é polonês ¯ observou o tenente. ¯ Estou vendo a chaminé agora. Maersk Line.
As duas embarcações se aproximavam a uma razão de
Navegavam no mar Báltico praticamente uma hora depois, em curso zero-seis-cinco, utilizando-se das águas mais profundas que pudessem encontrar, enquanto o Dallas abria caminho para o leste. Mancuso levou o navegador ao seu camarote e juntos elaboraram a melhor rota de aproximação e o lugar mais seguro na costa da União Soviética. Quando terminaram, o sr. Clark juntou-se a eles e os três discutiram a parte delicada da missão.
Num mundo ideal, pensou Vatutin amargamente, eles levariam suas preocupações ao ministro da Defesa, e ele cooperaria totalmente com a investigação da KGB. Mas o mundo não era ideal. Além das esperadas rivalidades institucionais, Yazov permanecia sob o controle do secretário-geral e estava a par das divergências entre Gerasimov e Narmonov. Não, o ministro da Defesa ou assumiria toda a investigação através do seu próprio órgão de segurança, ou usaria seu poder político para encerrar completamente o caso, para que a KGB não desgraçasse Yazov com o fato de possuir um traidor como ajudante, ameaçando assim Narmonov.
Se Narmonov caísse, na melhor das hipóteses o ministro da Defesa voltaria a ser o chefe de pessoal do Exército soviético; mais provavelmente seria aposentado em silenciosa humilhação após a remoção de seu protetor. Mesmo se o secretário-geral sobrevivesse a essa crise, Yazov seria o boi de piranha, como Sokolov fora recentemente. Que escolha tinha Yazov?
O ministro da Defesa também era um homem com uma missão. Sob a cobertura da iniciativa de "reestruturação" do secretário-geral, Yazov esperava utilizar seu conhecimento do corpo de oficiais para reconstruir o Exército soviético ¯ supostamente na esperança de profissionalizar toda a comunidade militar. Narmonov dissera que pretendia salvar a economia soviética, porém uma autoridade como Alexandrov, o alto sacerdote do marxismo-leninismo, afirmava que ele estava destruindo a própria pureza do Partido. Yazov gostaria de reconstruir completamente a organização militar, partindo do zero. Também teria o efeito, pensou Vatutin, de tomar o Exército pessoalmente leal a Narmonov.
Aquilo preocupava Vatutin. Historicamente, o Partido usara a KGB para manter os militares sob controle. Afinal de contas, os militares possuíam todas as armas, e se se dessem conta de seu poderio e sentissem o controle do Partido afrouxando... era uma idéia muito dolorosa para se considerar. Um Exército leal exclusivamente ao secretário-geral em vez de ao Partido em si era ainda mais penoso para Vatutin, já que alteraria a relação entre a KGB e a sociedade soviética como um todo. Então não haveria mais nenhum controle sobre o secretário-geral. Com o apoio dos militares, ele poderia curvar a KGB a sua vontade e usá-los para "reestruturar" o Partido todo. Ele poderia ter o poder de um outro Stálin.
Como fui enveredar por esse lado?, perguntou-se Vatutin. Sou um agente de contra-informação, não um teórico do Partido. Durante sua vida inteira, o coronel Vatutin nunca se intrometera nas Grandes Questões de seu país. Confiara em seus superiores para lidar com as decisões de grande porte, permitindo a si próprio resolver os pequenos detalhes. Não mais. Ter sido incluído na confiança do diretor-geral Gerasimov tornara-o inextricavelmente aliado do homem. Havia acontecido com tanta facilidade! Virtualmente da noite para o dia ¯ é preciso ser notado para obter estrelas de general, pensou ele com um riso sardônico. Você sempre quis ser notado. Pois agora, Klementi Vladimirovich, você com certeza foi notado. Veja agora onde se meteu.
Bem no meio de uma briga pelo poder entre o diretor-geral da KGB e o secretário-geral em pessoa.
Na verdade era engraçado, disse a si mesmo. Sabia que seria muito menos se Gerasimov errasse o cálculo ¯ a ironia suprema em tudo aquilo era que, se o diretor-geral da KGB caísse, as influências liberais já colocadas em prática por Narmonov atuariam em proteção de Vatutin, que estava em última análise apenas cumprindo as tarefas estupidamente ordenadas pelos seus superiores. Não acreditava que fosse aprisionado, e muito menos fuzilado, como já acontecera no passado. Sua ascensão profissional terminaria. Seria transferido, para dirigir o escritório regional da KGB em Omsk, ou a tarefa menos agradável que pudessem encontrar, desde que nunca mais voltasse à Central de Moscou.
Até que não seria assim tão ruim. Por outro lado, se Gerasimov obtivesse sucesso... chefe do "Dois", talvez? E isso não seria mesmo nada mau.
E você acreditava mesmo que poderia progredir em sua carreira sem tomar-se "político". Só que essa não seria mais uma das opções. Se tentasse sair, estaria liquidado. Vatutin estava numa armadilha e sabia disso. A única escapatória seria fazer o seu trabalho com o melhor de sua habilidade.
O devaneio terminou quando ele voltou a seus relatórios. O coronel Bondarenko estava completamente limpo, ele pensou. Sua ficha fora examinada e reexaminada, e não havia nada que sugerisse que ele fosse menos do que um patriota e um oficial acima da média. É Filitov, pensou Vatutin. Tão absurdo quanto pudesse soar à primeira vista, esse herói de guerra condecorado era um traidor.
Mas como diabos provamos isso? Como fazemos para conduzir uma investigação adequada sem a cooperação do ministro da Defesa? Esse era outro aspecto. Se falhasse em sua investigação, então Gerasimov não veria. com bons olhos suas promoções; mas a investigação esbarrava nas restrições impostas pelo diretor-geral. Vatutin lembrava-se da época em que sua promoção a major quase passara do prazo, e já lamentava a sorte quando o quadro de promoções o fizera mudar de idéia.
Estranhamente, não se deu conta de que todos os seus problemas resultavam do fato de possuir um diretor-geral da KGB que tinha ambicões políticas. Vatutin reuniu seus oficiais subordinados. Eles chegaram em alguns minutos.
¯ Algum progresso com Filitov? ¯ indagou ele.
¯ Nossos melhores homens o estão acompanhando ¯ respondeu um oficial de nível médio. ¯ Seis deles, vinte e quatro horas por dia. Estamos alternando os turnos para que ele não veja os mesmos rostos freqüentemente, se os vir. Agora temos completa vigilância com circuito fechado de televisão em todos os pontos do quarteirão de seu edifício, e meia dúzia de pessoas verificam as fitas todas as noites. Intensificamos a vigilância sobre as atividades de espiões americanos e ingleses, e também da comunidade diplomática em geral. Estamos cansando os homens e arriscando sermos percebidos, mas não há maneira de evitar isso. A única coisa que tenho a relatar é que Filitov fala dormindo de vez em quando... parece que falou com um camarada chamado Romanov. As palavras estão muito distorcidas para entender, mas tenho um fonoaudiólogo trabalhando no assunto, e talvez obtenhamos algum resultado. De qualquer forma, ele não pode nem peidar sem que saibamos disso. A única coisa que não posso fazer é manter contato visual contínuo sem aproximar demais nosso pessoal. Todos os dias, virando uma esquina ou entrando numa loja, ele fica fora de visão por um tempo de cinco a quinze segundos... o suficiente para fazer uma entrega pessoal ou um dead-drop. Não há nada que possamos fazer quanto a isso, a menos que se queira correr o risco de alertá-lo.
Vatutin concordou. Mesmo a melhor vigilância tinha suas limitações.
¯ Bem, há uma coisa estranha ¯ disse o major. ¯ Fiquei sabendo ontem. Por volta de uma vez por semana, Filitov leva a sacola de incineração para o incinerador pessoalmente. Está tão integrado à rotina que o homem na sala de incineração esqueceu de mencionar o fato até a noite passada. É um jovem, e veio até nós para falar... depois do expediente, em roupas civis. Rapaz brilhante aquele. Descobrimos que Filitov cuidou da instalação do sistema há muitos anos. Examinei pessoalmente os planos, nada de suspeito. Instalações completamente normais, como as que temos aqui. E isso é tudo. Para todos os propósitos práticos, a única coisa de anormal com Filitov é que ele já devia ter-se aposentado a essa altura.
¯ E quanto à investigação sobre Altunin? ¯ indagou Vatutin a seguir.
Outro oficial abriu seu livro de anotações.
¯ Não temos idéia onde ele estava antes de ser assassinado. Talvez estivesse escondido sozinho em algum lugar, talvez tenha sido protegido por amigos que não conseguimos identificar. Não estabelecemos nenhuma correlação entre sua morte e o movimento dos estrangeiros. Não carregava nada que o comprometesse ou incriminasse, com exceção de alguns documentos falsos que parecem um trabalho amador, mas bom o suficiente para as repúblicas afastadas. Se é que ele foi assassinado pela CIA, foi um trabalho surpreendentemente perfeito. Sem nenhuma ponta solta. Nenhuma.
¯ Sua opinião?
¯ O caso Altunin é um beco sem saída ¯ respondeu o major. ¯ Existe ainda meia dúzia de coisas para verificar, mas nenhuma delas parece muito promissora. ¯ Ele fez uma pausa. ¯ Camarada...
¯ Continue.
¯ Acredito que isso foi uma coincidência. Acho que Altunin foi vítima de um assassinato simples, ao tentar subir a bordo do vagão errado na hora errada. Não tenho nenhuma prova disso, mas é o que me parece.
Vatutin levou aquilo em consideração. Era preciso um bocado de coragem moral para um oficial do Segundo Diretório dizer que o caso não era de contra-espionagem.
¯ Qual seu grau de certeza?
¯ Acho que nunca saberemos ao certo, camarada coronel, mas, se a CIA tivesse feito o trabalho, eles não tentariam se livrar do corpo... ou se estavam tentando usar essa morte para proteger um espião altamente colocado, por que não deixar provas que o implicassem num caso totalmente diferente? Não havia nenhuma pista falsa, embora parecesse a ocasião exata para fazer isso.
¯ É verdade, nós teríamos feito isso. Bom argumento. Mas mesmo assim vá atrás de suas pistas.
¯ E claro, camarada coronel. Calculo uma demora de quatro a seis dias.
¯ Mais alguma coisa? ¯ perguntou Vatutin. Cabeças se agitaram negativamente. ¯ Muito bem, de volta aos seus departamentos, camaradas.
Faria a transferência durante o jogo de hóquei, pensou Mary Pat Foley. O Cardeal estaria lá, alertado por uma chamada telefônica pretensamente para um número errado, feita de uma cabine pública. Ela mesma faria a transferência. Tinha três magazines de filme na bolsa, e um simples aperto de mão seria o suficiente. Seu filho jogava no time da liga juvenil, como o sobrinho-neto de Filitov, e ela comparecia a todos os jogos. Seria fora do comum que ela não fosse, e os russos contavam com que as pessoas continuassem suas rotinas. Estava sendo seguida e sabia disso. Evidentemente os russos haviam intensificado a vigilância, mas o homem que a seguia não era tão bom assim ¯ ou pelo menos estavam usando a mesma "sombra", e Mary Pat sabia quando via um rosto mais de uma vez no mesmo dia.
Maria Patrícia Kaminsky possuía ancestrais que eram produto da típica miscigenação americana, e alguns aspectos disso estavam registrados em seus documentos. Seu avô fora cavalariço na casa dos Romanov e havia ensinado o príncipe Aleksey a cavalgar ¯ não fora uma tarefa sem importância, já que o jovem tragicamente sofria de hemofilia e necessitava de cuidados supremos para não se ferir. Aquele fora o ponto alto de uma vida sem outras distinções. Ele fora um fracasso como oficial do Exército, embora amigos na corte tivessem assegurado sua ascensão até o posto de coronel. Tudo o que conseguira fora a destruição total de seu regimento nas florestas de Tannenberg e sua captura pelos alemães ¯ e a sobrevivência além de 1920. Depois de saber que sua mulher morrera no tumulto revolucionário que se seguira à Primeira Guerra Mundial, ele nunca retornara à Rússia ¯ ele sempre a chamara Rússia ¯ e eventualmente viera ter aos Estados Unidos, onde se estabelecera nos subúrbios de Nova York, casando-se depois de montar um pequeno negócio. Vivera até a avançada idade de 97 anos, sobrevivendo a uma mulher vinte anos mais nova do que ele, e Mary Pat nunca esquecera suas histórias mirabolantes. Quando entrara para a faculdade e interessara-se por História, ela entendera, claro. Aprendera que os Romanov eram irrecuperavelmente incapazes, e sua corte irremediavelmente corrupta. Um detalhe, porém, que ela nunca esquecia era a maneira como seu avô chorava quando chegava à parte sobre como Aleksey, um jovem corajoso e determinado, fora fuzilado como um cachorro, juntamente com a família, pelos bolcheviques. Essa história, repetida cem vezes a ela, dera a Mary Pat uma visão da União Soviética que nenhum período de estudos, instrução acadêmica ou realismo político poderia jamais apagar. Seus sentimentos para com o governo que dominava a terra de seu avô eram completamente delineados pela cena do assassinato de Nicolau II, a esposa e os cincos filhos. Intelecto, dizia ela a si mesma nos momentos de reflexão, tinha muito pouco a ver com a maneira que as pessoas sentiam.
Trabalhar em Moscou, trabalhar contra o mesmo governo,. era o maior desafio de sua vida. Gostava daquilo ainda mais do que o marido, a quem tinha encontrado enquanto era estudante em Colúmbia. Ed juntara-se à CIA porque ela decidira desde cedo ingressar na CIA.
Seu marido era bom, Mary sabia disso ¯ com instintos brilhantes e habilidade administrativa ¯, mas a ele faltava a paixão que ela dedicava ao trabalho. A ele também faltavam os genes. Ela aprendera a língua russa nos joelhos do avô ¯ o russo mais elegante e mais rico que os soviéticos transformaram na algaravia correntemente em uso ¯, porém o mais importante era que ela entendia as pessoas de uma forma que muitos livros não poderiam relatar. Ela entendia a tristeza racial que permeava o caráter russo, e a contraditória expansividade em particular, a total exposição da personalidade e da alma reservada apenas aos amigos mais próximos e negada a um transeunte moscovita. Como resultado desse talento, Mary Pat recrutara cinco agentes bem colocados, apenas um evitando o serviço em tempo integral. No Diretório de Operações da CIA, ela era conhecida ocasionalmente como Supergirl, um termo com o qual não se importava em absoluto. Afinal de contas, Mary Pat era mãe de dois filhos, com as marcas dos pontos para prová-lo. Sorriu para si mesma no espelho. Você conseguiu, garota. Seu avô ficaria orgulhoso.
A melhor parte: ninguém tinha a menor suspeita do que ela era realmente. Fez um ajuste final na roupa. Mulheres ocidentais em Moscou precisavam estar mais atentas ao trajar do que os homens do Ocidente. Suas roupas eram sempre um pouco exageradas. A imagem que projetava era cuidadosamente concebida e meticulosamente executada. Educada mas frívola, bonita mas superficial, uma boa mãe e pouco mais do que isso, rápida nas demonstrações ocidentais de suas emoções, mas não era levada muito a sério. Flanando como ela fazia, ocasionalmente substituindo alguma professora na escola dos garotos, comparecendo a várias funções sociais e vagando interminavelmente como uma eterna turista, ela se encaixava perfeitamente na preconcebida noção soviética da mulher americana de cabeça oca. Mais um sorriso ao espelho: Se os bastardos soubessem...
Timmy aguardava com impaciência, o taco de hóquei balançando para cima e para baixo no carpete da sala de estar. Ed estava com a televisão ligada. Deu um beijo de despedida na mulher, disse a Timmy para chutar alguns traseiros ¯ o Foley mais velho fora fã dos Rangers antes mesmo que aprendesse a ler.
Era um pouco triste, pensou Mary Pat no elevador. Eddie tinha feito bons amigos ali, mas era um erro agir amigavelmente com as pessoas em Moscou. Podia-se esquecer de que constituíam o inimigo. Ela sentia que Eddie estava recebendo o mesmo tipo de doutrinação que sofrerá, só que do lado errado. Bem, isso será facilmente remediado, disse a si mesma. No depósito em casa tinha a fotografia do czaréviche Aleksey, autografada para seu professor favorito. Tudo o que tinha a fazer era explicar como ele morrera.
Dirigir até o estádio foi um ato de rotina, a excitação de Eddie aumentando à medida que se aproximavam do horário do jogo. Ele estava cotado como o terceiro artilheiro da liga, apenas seis pontos atrás do centroavante do time contra o qual jogariam naquela noite, que era o primeiro, e Eddie queria mostrar a Ivã Quem-quer-que-fosse que os americanos podiam vencer os russos no próprio jogo.
Era surpreendente como o estacionamento estava lotado, mas por outro lado não era um estacionamento muito grande, e hóquei no gelo era a coisa mais próxima de uma religião na União Soviética. O jogo daquela noite iria decidir os padrões de desempate para o campeonato da liga, e muitas pessoas tinham vindo assistir a ele. Tudo bem com Mary Pat. Ela mal tinha acabado de puxar o breque de mão quando Eddie empurrou a porta, apanhou a sacola de equipamento e esperou impacientemente que a mãe trancasse o carro. Conseguiu controlar-se e andar devagar o suficiente para que a mãe o acompanhasse, depois disparou para o vestiário enquanto ela se dirigia ao rinque.
Seu lugar estava reservado, claro. Embora relutante em ficar tão próxima a estrangeiros, num jogo de hóquei as regras eram diferentes. Alguns pais a cumprimentaram, e ela acenou de volta, o sorriso apenas um pouco exagerado. Verificou o relógio.
¯ Não vejo um jogo da liga juvenil há dois anos ¯ declarou Yazov enquanto saíam do carro oficial.
¯ Também não venho muito, mas minha cunhada disse que esse é muito importante, e o pequeno Misha exigiu minha presença ¯ sorriu Filitov. ¯ Eles acham que eu dou boa sorte... talvez o senhor também, camarada marechal.
¯ É bom fazer alguma coisa diferente ¯ concedeu Yazov fingindo seriedade. ¯ A droga do escritório vai estar lá amanhã do mesmo jeito. Eu joguei hóquei quando era garoto, sabia?
¯ Não, não sabia. Era bom nisso?
¯ Eu jogava na defesa, e as outras crianças se queixavam que eu entrava muito duro. ¯ O ministro da Defesa riu e acenou para que seu pessoal da segurança avançasse.
¯ Não tínhamos rinque onde eu cresci... e a verdade é que eu era muito desajeitado quando criança. Os tanques foram perfeitos para mim... servem para destruir as coisas. ¯ Misha riu.
¯ Esse time é bom?
¯ Eu prefiro os times juvenis aos oficiais ¯ respondeu o coronel Filitov. ¯ São mais... combativos. Acho que apenas gosto de ver as crianças se divertindo.
¯ É verdade.
Não havia muitas poltronas ao redor do rinque ¯ além disso, qual o verdadeiro fã de hóquei que queria ficar sentado? O coronel Filitov e Yazov encontraram um lugar conveniente ao lado de alguns dos pais. Os sobretudos do Exército soviético com as brilhantes divisas nos ombros garantiram a eles uma boa visão do campo e espaço para respirar. Os quatro oficiais de segurança espalharam-se, tentando não olhar muito acintosamente para a quadra. Não estavam muito preocupados, desde que a ida ao jogo fora uma decisão de última hora da parte do ministro.
O jogo foi excitante desde o começo. O centroavante do outro time movia-se como uma doninha, controlando o disco de borracha com passes habilidosos e patinação impecável. O time local ¯ no qual jogavam o americano e o sobrinho-neto de Misha ¯ foi pressionado em seu campo de defesa durante a maior parte do primeiro tempo, mas o pequeno Misha era um defensor bastante agressivo, e o rapaz americano interceptou um passe, avançando até o outro lado do rinque, onde foi desarmado por uma defesa impressionante, que provocou murmúrios de admiração dos torcedores de ambos os lados. Embora sejam um povo insolente como qualquer outro, os russos possuem um grande senso de esportividade. O primeiro tempo terminou empatado, sem abertura de contagem.
¯ Que pena ¯ comentou Misha, enquanto as pessoas se dirigiam para as salas de descanso.
¯ Um belo ataque, mas a defesa foi maravilhosa ¯ disse Yazov. ¯ Preciso do nome desse rapaz para o Exército da Região Central. Misha, obrigado por me convidar. Tinha esquecido como pode ser excitante um jogo escolar.
¯ Sobre o que acha que estão conversando? ¯ perguntou o agente mais velho da KGB. Ele e outros dois homens estavam na parte superior, escondidos acima das luzes que iluminavam o rinque.
¯ Talvez sejam apenas fãs de hóquei ¯ retrucou o homem com a câmera. ¯ Porra, parece que estamos perdendo um belo jogo. Veja só aqueles guardas de segurança... Os putos estão olhando o gelo. Se eu quisesse matar Yazov...
¯ Ouvi dizer que não seria má idéia ¯ observou o terceiro homem. ¯ O diretor-geral...
¯ Esse assunto não diz respeito a nós ¯ cortou o agente mais velho, terminando a conversa.
¯ Vamos lá, Eddiiie! ¯ gritou Mary Pat, logo que começou o segundo tempo.
O filho olhou para cima, embaraçado. Sua mãe sempre ficava excitada demais naqueles jogos, pensou ele.
¯ Quem era aquela? ¯ quis saber Misha, a
¯ Aquela magrinha ali... nós a encontramos outro dia, está lembrado? ¯ disse Yazov.
¯ Bem, ela é uma fã ¯ notou Filitov, enquanto observava o jogo se deslocando para o outro campo. Por favor, camarada ministro, peça você... Teve seu desejo satisfeito.
¯ Vamos lá cumprimentá-la. ¯ A multidão se abriu para dar passagem aos dois, e Yazov aproximou-se pelo lado esquerdo dela.
¯ Senhora Foley, eu presumo?
Ela se voltou rapidamente e deu um sorriso a Yazov antes de voltar-se outra vez para o jogo.
¯ Olá, general...
¯ Na verdade meu posto é de marechal. Seu filho é o número doze?
¯ Sim. O senhor viu como o goleiro roubou a bola dele?
¯ Foi uma bela defesa ¯ comentou Yazov.
¯ Então que ele defenda de algum outro! ¯ disse ela, enquanto o outro time avançava para o lado de Eddie.
¯ Todos os americanos são tão entusiasmados como a senhora? ¯ indagou Misha.
Ela se voltou novamente, e sua voz demonstrava um pouco de embaraço.
¯ É terrível, não é? Os pais deveriam agir como...
¯ Como pais? ¯ riu Yazov.
¯ Estou me transformando numa típica mãe de liga juvenil ¯ admitiu Mary Pat. Depois precisou explicar o que queria dizer com isso.
¯ Já é suficiente que tenhamos ensinado seu filho a ser um bom ponta de hóquei.
¯ E, talvez ele esteja nos Jogos Olímpicos daqui a alguns anos ¯ retrucou ela, com um sorriso maldoso, embora brincalhão. Yazov riu. Aquilo a surpreendeu. Yazov deveria ser um sério e fechado filho de uma puta.
¯ Quem é a mulher?
¯ Americana. Seu marido é adido à Imprensa. O filho dela está no time. Temos os dados sobre ambos. Nada de especial.
¯ Você acha que ele está querendo recrutá-la? ¯ sugeriu o fotógrafo.
¯ Eu não me importaria com isso.
O jogo inesperadamente se acomodara numa luta pelo domínio do centro do rinque. As crianças ainda não possuíam o refinamento necessário para a precisão de passes que marcava o hóquei soviético, e ambos os times haviam sido instruídos para não jogar duro demais. Mesmo com o equipamento de proteção, ainda eram crianças cujos ossos em crescimento não podiam sofrer em demasia. Aquela era uma lição que os russos podiam ensinar aos americanos, pensou Mary Pat. Os russos sempre protegiam muito mais suas crianças. A vida dos adultos já era difícil o suficiente, daí eles tentarem poupar os filhos.
Finalmente, no terceiro tempo, as coisas começaram a acontecer. Um tiro a gol foi rebatido pelo goleiro. O centroavante apanhou o disco e disparou para o gol oposto, com Eddie deslizando
¯ Centra! ¯ gritou a mãe.
Ele não a escutou, mas não foi necessário. O centroavante agora estava bem localizado, e Eddie impulsionou o disco em sua direção. O jovem centroavante aparou-a com o patim, deu um passo atrás e enviou um petardo entre as pernas 4o goleiro adversário. A luz atrás das traves acendeu, e os tacos foram alegremente atirados ao ar.
¯ Um belo passe ¯ observou Yazov com genuína admiração. Continuou em tom conspiratório. ¯ Compreende que agora seu filho está de posse de segredos de Estado e não podemos permitir que ele saia do país? ¯ Os olhos de Mary Pat arregalaram-se momentaneamente, persuadindo Yazov de que ela era uma cabeça oca tipicamente ocidental, embora provavelmente fosse boa de cama. Pena que nunca saberei.
¯ Está brincando? ¯ perguntou ela em voz baixa. Os dois militares caíram na gargalhada.
¯ O camarada ministro certamente está brincando ¯ assegurou Misha, depois de um momento.
¯ Foi o que pensei! ¯ disse ela sem muita convicção antes de voltar a atenção para o jogo. ¯ Muito bem, vamos fazer mais um!
Algumas cabeças se voltaram, achando aquilo tudo divertido. Ter aquela americana nos jogos era sempre bom para rir um pouco. Os russos achavam muito interessante a exuberância dos americanos.
¯ Se ela for uma espiã, eu como essa câmera.
¯ Pense bem no que disse, camarada ¯ sussurrou o agente encarregado. Seu tom de voz alegre desapareceu num instante. Pense no que ele acabou de dizer, disse o homem a si mesmo. O marido, Edward Foley, é encarado pela imprensa americana como um bobalhão, que não é esperto o suficiente para ser um bom repórter, certamente sem capacidade para pertencer ao quadro do New York Times. O problema é que, enquanto aquele era o tipo de cobertura sonhado por todos os verdadeiros agentes de Inteligência, era também compartilhado naturalmente por todos os bobalhões do serviço governamental no mundo inteiro. Ele mesmo sabia que seu primo era um cretino, que trabalhava para o Ministério das Relações Exteriores.
¯ Tem certeza de que temos filme suficiente?
Eddie teve sua chance quando faltavam quarenta segundos. Um defensor aparou uma jogada vinda da ponta, e o disco deslizou para o meio do campo. O centroavante passou para a direita quando o jogo mudou. O time adversário estava pressionando para marcar, e o goleiro encontrava-se muito avançado e fora de colocação quando Eddie apanhou o passe e driblou pela esquerda. Edward Foley II virou-se rapidamente e disparou pelas costas do goleiro. O disco bateu na trave e passou lentamente pela linha.
¯ Goool! ¯ gritou Mary Pat, pulando para cima e para baixo como uma líder de torcida.
Atirou os braços em volta do pescoço de Yazov, para a consternação de seus guardas de segurança. O divertimento do ministro foi contrabalançado pela lembrança de que teria de escrever um relatório de contato sobre aquilo no dia seguinte. Bem, ele tinha Misha como testemunha de que não conversaram nada de impróprio. A seguir ela agarrou Filitov.
¯ Eu disse que você dava sorte!
¯ Meu Deus, todos os americanos fãs de hóquei são assim? ¯ perguntou Misha, desvencilhando-se.
A mão dela tocara a dele por uma quase imaginária fração de segundo, e os três diminutos magazines de filme estavam no interior da luva. Ele os sentiu ali e ficou surpreso que o passe se tivesse realizado com tanta habilidade. Será que ela era mágica profissional?
¯ Por que vocês, russos, são tão sérios o tempo todo... Não sabem como se divertir?
¯ Talvez devêssemos ter mais americanos por perto ¯ concedeu Yazov. Puxa, gostaria que minha mulher fosse tão viva quanto esta. ¯ Você tem um ótimo filho e, se ele jogar contra nós nas Olimpíadas, eu o perdôo. ¯ Foi recompensado com um sorriso encantador.
¯ Foi muita gentileza dizer isso. ¯ Espero que ele chute suas bundas comunistas todo o caminho de volta até Moscou. Se havia algo que ela não suportava era ser apadrinhada. ¯ Eddie conseguiu mais dois pontos esta noite e aquele Ivã Qualquer coisa não fez nenhum!
¯ É sempre tão competitiva, mesmo em jogos de crianças? ¯ indagou Yazov.
Mary Pat teve um deslize, só por um instante, tão rápido que o cérebro não pôde impedir a resposta automática:
¯ Me mostre um bom perdedor e eu lhe mostrarei um perdedor. ¯ Ela fez uma pausa e corrigiu o erro. ¯ Vince Lombardi, um famoso treinador americano, disse isso. Desculpe, deve pensar que sou nekulturny. Você tem razão, é apenas um jogo de crianças. ¯ Ela deu um amplo sorriso. No seu rabo!
¯ Viu alguma coisa?
¯ Uma mulher tola que ficou muito excitada ¯ respondeu o fotógrafo.
¯ Em quanto tempo pode revelar o filme?
¯ Em duas horas.
¯ Então pode começar ¯ disse o homem mais graduado.
¯ Você viu alguma coisa? ¯ indagou o terceiro agente ao superior.
¯ Não, acho que não. Nós a observamos por quase duas horas, e ela age como uma típica mãe americana que se excita demais numa partida esportiva e acidentalmente atraiu a atenção do ministro da Defesa e do principal suspeito num caso de traição. Acredito que isso seja o suficiente, camarada, não acha? ¯ Que grande jogo, esse...
Duas horas depois, cerca de mil fotografias em preto-e-branco estavam sobre a escrivaninha do agente. A câmera usada era japonesa, uma dessas que registra uma referência de tempo no canto inferior, e o fotógrafo da KGB era tão bom quanto qualquer profissional de jornal. Ele fotografara quase que continuamente, parando apenas para trocar os magazines da câmera motorizada. No início, o agente quisera utilizar uma câmera portátil de televisão, mas o fotógrafo o dissuadira. A defnição não era tão boa, nem a velocidade tão rápida. Uma máquina totográfica ainda era a melhor forma de apanhar alguma coisa pequena e rápida, embora não se pudesse fazer leitura labial, como na fita de vídeo.
Cada exposição era examinada pelo agente durante alguns segundos, que utilizava uma lupa para verificar os detalhes que lhe interessavam. Quando a sra. Foley entrou na seqüência de imagens, ele precisou de alguns segundos a mais. Examinou-lhe a roupa e as jóias com algum cuidado, e também o rosto. Seu sorriso era particularmente despido de personalidade, como num comercial da televisão ocidental, e ele se lembrava dos gritos dela acima do ruído da multidão. Por que será que os americanos eram tão barulhentos?
Mas se veste muito bem, admitiu para si mesmo. Como a maioria das mulheres americanas em Moscou, ela se destacava como um faisão num galinheiro... resmungou aborrecido com o pensamento. E daí que os americanos gastassem mais dinheiro em roupas? O que importavam as roupas para alguém? Através dos binóculos ela parecia ter cérebro de passarinho... mas nas fotografias não... por quê?
Eram os olhos, pensou ele. Nas fotografias, os olhos brilhavam de uma forma diferente do que ele observara pessoalmente. Por que isso?
Nas fotografias, os olhos ¯ ele lembrava que eram azuis ¯ sempre estavam focalizados em algum ponto. O rosto, ele reparou, tinha inalares vagamente eslavos. Sabia que Foley era um nome irlandês e presumira que os ancestrais dela fossem irlandeses também. Que a América fosse um país de imigrantes, e que os imigrantes se mesclassem nos casamentos eram conceitos estranhos aos russos. Mais alguns quilos, mudando o cabelo e a roupa, e ela poderia ser qualquer rosto encontrado numa rua de Moscou... ou Leningrado. Mais provavelmente a última, pensou ele. Ela se parecia mais com alguém proveniente de Leningrado. O rosto tinha aquela leve arrogância afetada pelas pessoas de lá. Gostaria muito de saber sua verdadeira linhagem.
Continuou examinando as fotografias e lembrou-se de que os Foley nunca tinham sofrido aquele tipo de investigação. O arquivo sobre eles era relativamente magro. Eram encarados pelos "Dois" como "não identidades". Algo lhe disse que aquilo era um erro, mas a voz no fundo de sua mente ainda não falava suficientemente alto. Aproximava-se do final da pilha de fotografias e consultou o relógio. Três horas da maldita madrugada!, resmungou para si mesmo e serviu-se de mais uma xícara de chá.
Bem, esse deve ter sido o segundo gol. Ela saltava como uma gazela. Belas pernas, viu ele pela primeira vez. Como seus colegas haviam observado lá de cima, ela provavelmente era muito boa na cama. Só faltavam mais algumas fotos para chegar ao final do jogo, e... sim, lá estava ela abraçando Yazov ¯ aquele velho sátiro! ¯ depois abraçando o coronel Filitov...
Ele ficou paralisado. A fotografia captara uma coisa que não tinha visto com os binóculos. Enquanto abraçava Filitov, ela olhava fixamente para um dos quatro guardas de segurança, o que não estava assistindo A mão esquerda não estava absolutamente envolvendo Filitov mas abaixada ao lado da mão direita dele, fora da vista. Ele voltou algumas fotografias. Imediatamente antes do abraço sua mão estivera no casaco. Em volta do ministro da Defesa, fechava-se em punho. Depois de abraçar Filitov, estava aberta de novo, e os olhos ainda estavam fixos no guarda de segurança, um sorriso que parecia de fato tipicamente russo e que ficava apenas nos lábios ¯ mas na fotografia seguinte ela voltara ao normal, um pouco aérea e dispersiva. Nesse momento ele teve certeza.
¯ Filha de uma puta ¯ sussurrou ele de si para si.
Há quanto tempo os Foley estavam aqui? Procurou na memória fatigada, mas não conseguiu lembrar. Pelo menos dois anos ¯ e não sabíamos, nem mesmo suspeitávamos... e se for só ela? Era uma idéia a considerar ¯ e se ela fosse espiã e o marido não soubesse? Ele rejeitou o pensamento, e estava certo, mas pelo motivo errado. Estendeu a mão para o telefone e ligou para a casa de Vatutin.
¯ Sim ¯ respondeu uma voz na metade do primeiro toque.
¯ Tenho alguma coisa interessante ¯ declarou com simplicidade o agente.
¯ Mande um carro.
Vatutin chegou vinte e cinco minutos depois, sem se barbear e visivelmente irritado. O major simplesmente dispôs a série crucial de fotografias.
¯ Nunca suspeitamos dela ¯ disse ele enquanto o coronel examinava as imagens com a lupa.
¯ Um belo disfarce ¯ observou Vatutin com azedume.
Ele dormia há apenas uma hora quando o telefone tocara. Ainda estava aprendendo a adormecer sem os costumeiros copos de bebida forte ¯ tentando aprender, corrigiu a si mesmo. O coronel olhou para cima.
¯ Pode acreditar numa coisa dessas? Bem na frente do ministro da Defesa e quatro guardas de segurança! A coragem que tem essa mulher! Quem a segue regularmente?
O major meramente entregou uma pasta de arquivo. Vatutin a folheou até encontrar a parte que procurava.
¯ Aquele velho bode! Ele não poderia seguir uma criança até a escola sem ser preso como pervertido. Veja isso... um tenente por vinte e três anos!
¯ Existem setecentos americanos adidos à embaixada, camarada coronel ¯ observou o major. ¯ Nós temos tão poucos homens realmente bons...
¯ E todos vigiando as pessoas erradas. ¯ Vatutin foi até a janela. ¯ Agora chega! O marido também ¯ acrescentou ele.
¯ Essa seria minha recomendação, camarada coronel. Parece certo que os dois trabalham para a CIA.
¯ Ela passou alguma coisa para ele.
¯ Provavelmente... uma mensagem, talvez algo mais. Vatutin sentou-se e esfregou os olhos vermelhos.
¯ Bom trabalho, camarada major.
Estava amanhecendo na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. O Arqueiro preparava-se para voltar à sua guerra. Seus homens haviam empacotado as novas armas, enquanto seu líder ¯ essa era uma nova idéia, disse consigo o Arqueiro ¯ revia os planos para as semanas seguintes. Entre os objetos que recebera de Ortiz estava um jogo completo de mapas táticos. Estes eram feitos de fotografias de satélites e estavam atualizados para mostrar fortalezas soviéticas e áreas muito patrulhadas. Ele possuía agora um rádio de longo alcance, com o qual podiam sintonizar as previsões do tempo ¯ incluindo as russas. A jornada começaria apenas ao anoitecer.
Ele olhou em volta. Alguns de seus homens haviam chamado a família para aquele lugar seguro. O campo de refugiados estava cheio e barulhento, mas era um lugar melhor do que as vilas desertas e cidades arrasadas pelos bombardeios russos. Havia crianças ali, o Arqueiro percebeu, e as crianças estavam felizes em qualquer lugar onde estivessem os pais, comida e amigos. Os meninos já estavam brincando com armas de brinquedo ¯ e com os mais velhos não eram de brinquedo. Ele aceitava aquilo com um grau de arrependimento que diminuía a cada viagem. As perdas entre os mudjahidin precisavam de reposições, e os mais jovens eram os mais bravos. A liberdade requeria seus mortos ¯ bem, suas mortes vinham por uma causa sagrada, e Alá era benevolente com os que morriam por Ele. O mundo era sem dúvida um lugar triste, mas pelo menos ali um homem podia encontrar um pouco de tempo para se divertir e o resto. Observou um de seus atiradores ajudando seu primogênito a andar. O bebê não conseguia fazê-lo sozinho, mas a cada passo ele olhava para cima em direção ao rosto sorridente e barbado de um pai que só vira duas vezes desde que nascera. O novo líder do bando lembrou de ter feito a mesma coisa por seu filho... agora sendo ensinado a andar por uma trilha bem diferente...
O Arqueiro retornou ao próprio trabalho. Não podia mais ser um lançador de mísseis, porém treinara muito bem Abdul. Agora o Arqueiro lideraria seus homens. Era um direito que merecera, e o que era ainda melhor: seus homens achavam que ele tinha sorte. Seria bom para o moral. Embora nunca na vida tivesse lido livros sobre teoria militar, o Arqueiro sentia que aprendera bem suas lições.
Não houvera aviso... nenhum tipo de aviso. O Arqueiro virará a cabeça com rapidez quando ouvira o ruído dos projéteis explosivos dos canhões, depois viu as silhuetas escuras dos Fencer a pouco mais de
Ele ficou aturdido e surdo pela explosão e sentiu-se cambaleante quando se pôs de pé. Parecia estranho ver e sentir o ruído, mas não ouvi-lo. Apenas o instinto moveu a trava de segurança de seu fuzil enquanto ele olhava em volta à procura do próximo avião. Lá estava! O fuzil apontou e disparou como por vontade própria, mas não fez diferença. O Fencer seguinte largou sua carga algumas centenas de metros mais longe e sumiu ã frente dos rolos negros de fumaça. Não houve mais nada.
Os sons chegaram lentamente, e pareciam distantes, como os. ruídos de um sonho. Mas aquilo não era um sonho. No lugar onde o homem e a criança tinham estado agora havia uma cratera no chão. Nem sinal do guerreiro da liberdade e seu filho, e mesmo a certeza de que agora ambos estariam como justos perante seu Deus não diminuiu a raiva cega que percorreu seu corpo. Lembrou-se de ter demonstrado piedade ao russo, sentindo certo arrependimento por sua morte. Chega! Nunca mais demonstraria piedade novamente para com um infiel. Suas mãos estavam lívidas em volta do fuzil.
Tardiamente um caça paquistanês riscou o céu, mas os russos já se encontravam além da fronteira, e um minuto depois o F-16 circulou ao redor do acampamento por duas vezes antes de voltar à base.
¯ Você está bem? ¯ Era Ortiz. Seu rosto fora cortado por estilhaços ou coisa parecida, e a voz parecia muito distante.
Não houve resposta verbal. O Arqueiro gesticulou com sua arma enquanto observava uma viuva recente gritando por sua. família. Juntos, os dois homens procuraram por feridos que podiam ser salvos. Felizmente, a parte médica do acampamento ficara incólume. O Arqueiro e o agente da CIA carregaram para lá cerca de uma dúzia de pessoas, para ver um médico francês xingando com a fluência de quem estava acostumado, com as mãos já sujas de sangue.
Encontraram Abdul na busca seguinte. O jovem tinha um Stinger montado no lançador e apontado para cima. Chorava ao confessar que estivera dormindo. O Arqueiro bateu em seu ombro e disse que não fora culpa dele. Supostamente havia um acordo entre os soviéticos e paquistaneses que proibia incursões do outro lado da fronteira. Os acordos não tinham valor. Uma equipe de noticiário da televisão ¯ francesa ¯ apareceu e Ortiz levou o Arqueiro para um local onde ninguém poderia vê-los.
¯ Seis ¯ disse o Arqueiro. Não mencionou as perdas de não combatentes.
¯ E um sinal de fraqueza que eles façam isso, meu amigo ¯ observou Ortiz.
¯ Atacar um lugar de mulheres e crianças é uma abominação perante Deus!
¯ Perdeu suprimentos? ¯ Para os russos, aquele era um campo de guerrilheiros, é claro, mas Ortiz não se importava em falar de acordo com sua visão das coisas. Ele estivera ali por muito tempo para ser objetivo nesses assuntos.
¯ Só alguns fuzis. O resto já está fora do acampamento.
Ortiz não tinha mais nada a dizer. Não tinha nada reconfortante a dizer. Seu pesadelo era que aquela operação para ajudar os afegães estava tendo o mesmo efeito que tentativas anteriores de auxiliar os Hmong do Laos. Eles lutaram bravamente contra os inimigos vietnamitas apenas para ser virtualmente exterminados a despeito de toda a ajuda ocidental. O agente da CIA disse a si mesmo que a presente situação era diferente e objetivamente ele achava que isso era verdadeiro. Mas dilacerava o que restava de sua alma observar aquelas pessoas deixando o acampamento, armadas até os dentes, e depois contar os que retornavam. Será que os Estados Unidos realmente ajudavam os afegães a recuperar sua própria terra, ou os estavam meramente encorajando a matar tantos russos quanto o possível antes que eles mesmos fossem dizimados?
Qual é a política certa?, perguntou a si mesmo. Ortiz admitiu que não sabia.
Nem sabia que o Arqueiro tomara uma decisão política própria. O rosto velho-jovem voltou-se para o oeste, depois para o norte, em seguida disse a si mesmo que a vontade de Alá não seria mais restrita pelas fronteiras do que pela vontade de Seus inimigos.
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