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O CARRASCO DE PUSSYFOOT / Jack Snow
O CARRASCO DE PUSSYFOOT / Jack Snow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CARRASCO DE PUSSYFOOT

 

     Com sua aparência de mestiço, buscar trabalho na pequena e preconceituosa cidade de Pussyfoot não foi uma boa ideia de Jack Parker.

     Expulso da cidade pelo Xerife Roger Gorman, afamado por sua violência, Parker partiu pensando em nunca mais voltar a esse vilarejo.

     Mas, um incidente de grande importância e urgência o fez retornar à cidade, incitando novamente o ódio do representante da lei.

     Conseguiu fugir da perseguição implacável do Xerife, até que um acontecimento inesperado iria jogar luz sobre tudo aquilo, revertendo a situação.

     Sem contar que um rosto lindo, moldurado por longos cabelos ruivos...

    

     Descia a noite sobre a rua larga e empoeirada quando Jack Parker sofreou o baio diante de uma ferraria. Um tipo de nariz largo e pescoço grosso largou o que fazia mais ao fundo e veio até a porta.

     Fizera muito calor durante o dia e o ar abafado persistia mesmo com o cair da noite. Jack Parker vinha descendo o Wyoming, desde as Big Horn, atravessara o Platte do Norte e resolvera entrar naquela cidade, cujo nome estava gravado toscamente numa tabuleta fincada nos limites ao norte: Pussyfoot.

     — O que deseja? — perguntou o homem, relanceando o forasteiro — Eu já vou fechar. Se o serviço não é urgente...

     — Meu cavalo não precisa de coisa alguma — respondeu Parker, em tom firme. — Eu mesmo cuido dele. Sei ferrar e tratar de animais.

     — Ah, é mesmo? O sujeito, sem se voltar para dentro, gritou: — Ei! Eddie. Tem um engraçadinho novato na cidade.

     Um homem de bigode fino e preto saiu dos fundos da ferraria. Enxugava as mãos num pano encardido e sujo de fuligem.

     — O que ele está querendo? Não disse a ele que não pegamos mais serviço por hoje? O dia foi puxado, Matt.

     — Ele disse que não precisa de nosso serviço. Tem o cavalo na ponta dos cascos. E, veja bem, ele não mentiu. O baio está muito bem tratado.

     Enquanto Matt se aproximava para examinar o cavalo, Eddie Pryor jogou o pano ao acaso, em cima de uns alforjes jogados a um canto. E perguntou:

   — Se não precisa de nada, por que não desinfeta e deixa a luz da rua iluminar melhor a nossa porta?

     — Eu não disse que não precisava.

     — Não? Então, diabo, fale de uma vez!

     — Queria saber se há vaga para um auxiliar nesta ferraria ou em outra qualquer da cidade. Busco trabalho.

     — Hum... — fez Eddie. — Veio ao lugar errado. Forasteiros não são bem recebidos aqui, sobretudo... Eddie pegou um lampião de cima de uma mesa e aproximou-o do rosto de Parker. — É o que eu pensava. Um maldito mestiço. Venha olhar bem para ele, Matt.

     Matt largou a atenção do cavalo e observou Parker. Depois, balançou a cabeça e disse:

     — Não vai ter vida longa, ficando nesta cidade. De onde veio?

     — Mais do norte. Eu trabalhava num rancho.

     — E por que não volta para lá? — gritou Matt. — Aqui, não encontrará trabalho algum.

     Sem mais dar conversa aos dois ferreiros, Parker conduziu o cavalo até alcançar o Saloon Violeta, que deixava escapar a música animada de um piano como fundo da vozeria e risadas que explodiam lá de dentro.

     Eddie Fryor e Matt Freeman, que acompanhavam os movimentos de Parker, com olhos desconfiados, disseram quase ao mesmo tempo:

     — Bem que pode ser ele. Pela descrição feita pelo Steve...

     Jack Parker, indiferente ao que pudessem pensar dele, atou cuidadosamente o baio na barra. Estava acostumado a esse tipo de curiosidade que vinha acompanhada de um evidente menosprezo. Parou por instantes junto à janela. A vidraça refletia, embora não com muita nitidez, a sua figura até os quadris, onde repousava um par de Colts.

     Não era um mestiço. Mas do que adiantava explicar isto a cada pessoa que "não ia com a sua cara"? Tinha o rosto moreno, crestado pelo sol e o vento da pradaria. As feições duras, marcadas pelo tipo de vida que sempre levara. Os cabelos e olhos negros. Ombros largos, músculos desenvolvidos ao extremo e uma feia cicatriz junto à orelha esquerda que os cabelos compridos disfarçavam em parte.

     Foi direto ao balcão, onde pediu cerveja. A sua entrada fez com que a animação reinante se esfumasse. O barman passou apressadamente um pano ao longo do balcão, em forma de ferradura. Ele olhava para uma determinada mesa, à qual sentava-se um sujeito troncudo, de sobrancelhas cerradas e ar hostil voltado na direção de Parker.

     Ele levantou-se e chegou para perto do balcão. Foi seguido de outros homens, como o próprio dono do saloon.

     — Sou Dan Heffron, forasteiro. Sou dono do maior armazém da cidade. Este a meu lado — indicou um sujeito magro, de nariz fino — é o dono deste saloon, chama-se Sam Lester. Eu poderia apresentar a todos os outros em volta, mas levaria muito tempo e a verdade é que estamos todos curiosos a seu respeito.

     Falava com tamanho tom de deboche que as risadas estouraram ao redor. Jack Parker, entretanto, não se alterou. Relanceava aqueles homens, com seus olhos pretos, observadores e determinados. Dan Heffron foi mais além:

     — Se contar tudo direitinho para a gente, poderá tomar sua bebida em paz. Não é mesmo, Sam?

     — Claro, claro... — O Peter irá servir a melhor bebida da casa e com os meus cumprimentos.

     — O que vocês querem saber, por exemplo?

     — Seu nome, cretino — disse Alec Travis, estufando o peito e deixando em evidência os ombros largos. Tinha 50 anos de músculos bem treinados e gênio ácido. — Se não disser como se chama, cretino, ficaremos mesmo pensando que é assim que deseja ser chamado, de "cretino". Ouviu bem?

     Parker começava a sentir o sangue esquentar, o estômago dando voltas. Por suas andanças no Oeste, conhecendo tanta gente, era para ter se acostumado a engolir desaforos. Mas continuava a sentir o mesmo asco por tipos como aqueles.

     Contudo, manteve o sangue a bom nível de temperatura: — Sou Jack Parker. Vim das Big Horn e procuro trabalho num rancho ou em algum estábulo. Gosto de tratar de cavalos.

     — É o que pensei — falou um ruivo, de rosto largo e sardento. — Um desses vagabundos sempre à cata de emprego. Não para em lugar algum, hein, mestiço? Com certeza, só fica num emprego o tempo necessário para arrumar alguma encrenca e escafeder-se.

     — Que é isso — emendou Heffron, sempre com seu ar debochado. — Não devia falar assim, Mac. O forasteiro bem pode ser um homem de bem que ainda não encontrou a profissão à altura. Nem fica bem chamá-lo de mestiço. Vai ver ele adquiriu essa cor por ter ficado muito tempo exposto ao sol logo que nasceu. E a cicatriz junto da orelha foi de um tombo de cavalo.

     Heffron fez um gesto rápido e dois vaqueiros agarraram Parker e o imobilizaram repentinamente. O comerciante aproximou-se o bastante para quase enfiar o indicador no nariz do forasteiro.

     -— Escute bem, filho da mãe. Sabe o emprego que um mestiço vagabundo merece numa cidade de homens decentes?

     Afastando-se em seguida, Heffron fez outro sinal, ao mesmo tempo em que ordenava:

     — Joguem o sem-vergonha no chão. Ele gosta de cavalos, não? Pois que tal sentir-se como um deles?

     Os homens em volta fizeram a maior algazarra. Mais dois sujeitos fortões ajudaram os vaqueiros de Travis a sujeitar Parker de quatro, para levá-lo a trotar ridiculamente como um cavalo.

     Parker resistiu na mesma hora, mas eram muitos agora aqueles que o imobilizavam. E, quanto mais Parker forcejava movendo o rosto moreno de um lado para o outro, mais aquela gente gritava, incitando-o como se de fato houvesse uma cavalgadura no meio do saloon.

     — Não é que o danado sabe relinchar?! — berrou Heffron, sacudindo-se de tanto rir. — Ele bufa também como uma verdadeira cavalgadura e joga as crinas de um lado para o outro.

     Parker não falava. Não dizia coisa alguma. Apenas rilhava os dentes, com as feições alteradas pelo ódio e pelo esforço em livrar-se de seus captores.

     E, a certa altura, ele o conseguiu. Para surpresa geral e mais ainda do próprio Heffron, que iniciara toda a confusão. Por isso mesmo, toda a ira de Parker voltou-se contra o comerciante, saltando sobre o mesmo e jogando-o ao chão. Ao cair sobre o inimigo, Parker segurou-o firme pelo pescoço, fincando os joelhos no peito vigoroso do comerciante.

     — Sou um cavalo, não, desgraçado filho de camelo! — rosnou Parker, aproximando o rosto congestionado por um profundo sentimento de revolta. Falou com a boca junto à do outro: — Vamos ver agora quem é a cavalgadura, palhaço!

     A reação fora tão inesperada que deixou a todos atônitos. Viram Parker revirar facilmente o intimidado Heffron, até que este ficou de quatro e foi montado pelo próprio Parker.

     — Vamos! Comece a trotar, cavalinho! Enquanto assim gritava, Parker ia batendo com o salto das botas nos costados do seu prisioneiro como se estivesse esporeando uma montaria de verdade.

     — Maldito... — rosnou Heffron, espumando de raiva. — Vou acabar com você. Vou arrancar a sua maldita pele escura, miserável!

     Heffron tinha perdido o chapéu e os cabelos anelados balançavam ao compasso dos movimentos de sua cabeça, tais quais as crinas de um potro se agitando na hora da doma.

     — O que fazem palermas? — gritou a certa altura, erguendo os olhos para relancear os homens ao redor. — Tirem esse peso das minhas costas! Depressa!

     Travis, os vaqueiros Sam Lester e Mac O'Connor, enfim, todos ali presentes, estremeceram ao mesmo tempo como se só então tivessem despertado para a realidade.

     — Rapazes agarrem o maldito mestiço! — berrou Travis. — Não fiquem aí parados. O que deu em vocês?

     O que havia dado em todos eles? Foi o que cada qual pensou rapidamente. Talvez a novidade de ver um homem poderoso, dominador, como Heffron, submetido a tamanho vexame fosse a causa da inércia que momentaneamente tomara conta deles.

     No entanto, quando já iam retirar Parker das costas do comerciante, a porta do Saloon Violeta abriu-se e um homem altão e de peito estufado, o rosto largo muito vermelho, parou à entrada, colocando as mãos na cintura em atitude desafiante. A estrela de xerife rebrilhava no peito de sua camisa. Atrás deles entraram dois rapazes com as insígnias de comissário. Por fim, apareceram Eddie Pryor e Matt Fyeeman.

     Este último adentrou o saloon, dizendo: — Fomos chamar o xerife assim que vimos o mestiço entrar aqui.

     O xerife aproximou-se de Parker, que fora novamente imobilizado — e agora — pelos dois comissários.

     — Mas, que diabo andou acontecendo aqui? — O xerife mexia o nariz gordo como um cão feroz farejando novidades no ar. Olhava ora para Parker ora para Heffron, que se levantara e sacudia as roupas.

     — Vou matar esse desgraçado! — resmungou o comerciante, com uma expressão de assustadora ferocidade. Não tirava a atenção do homem que o levara a tamanho ridículo. — Segurem bem o maldito. Vou massacrá-lo com meus próprios punhos.

     — Um momento — atalhou o xerife. — Em Pussyfoot, a autoridade sou eu. Fiz esta cidade entrar nos eixos e não admitirei que ninguém comande as ações de punição por aqui.

     — Gorman, saia da frente! Se você fez esta cidade, foi com a nossa ajuda. A briga do mestiço foi comigo. Portanto, eu dito as ações neste caso.

     — A lei sou eu — insistiu o Xerife Roger Gorman, deixando em evidência o peito vigoroso e levando as mãos aos coldres. — Não me faça metê-lo na cadeia também.

     Heffron cerrou as sobrancelhas grossas. Tinha perdido em parte o furor que o dominara. Olhava fixamente para Gorman. E compreendeu que nada havia de bom na atitude do xerife.

     Em volta, todos pensavam da mesma forma. Conheciam Gorman e o que ele dissera no dia de sua posse como xerife:

     — Lembrem-se sempre de que Roger Gorman é a lei daqui por diante. Todos que estiverem comigo, terão proteção. Mas pior para aqueles que me desafiarem. Não terei contemplação. Dos assassinos, arrancarei o coração. Cortarei as mãos do ladrão. Não perdoarei delito algum. É assim que será de hoje em diante em Pussyfoot.

     Claro que ninguém esqueceria palavras tão contundentes. E a população submeteu-se, achando por vezes que era bastante cômodo viver sob as asas negras mas protetoras do Xerife Gorman.

     — O que o mestiço fez além de... — abriu o riso cínico, ao olhar para Heffron — cavalgar o nosso mais importante comerciante?

     Heffron fez menção de reagir ao que tomou — e era realmente uma afronta. O xerife não disfarçava sua hostilidade para com o comerciante. E tinha suas razões. Heffron era o único naquela cidade a ruminar protestos contra a excessiva autoridade do xerife. E este sabia que, ao menor descuido, colocaria o outro na direção da cidade.

   Ambos se fitaram daquele jeito que um animal encara um possível rival no controle de uma comunidade, e Heffron foi o primeiro a ceder. Ao desviar os olhos, ouviu Sam Lester dizer:

     — Na verdade, Gorman, o mestiço só fez pedir um copo de cerveja. Então, resolvemos brincar com ele e o cara azedou.

     — Muito bem — decidiu o xerife, mostrando para todos e, em especial para Heffron, quem dava as cartas sobre o assunto. — Se ele não roubou nem matou ninguém...

     — Vai deixar que ele continue na cidade, rindo de mim? — acabou explodindo Heffron, percebendo a jogada de Gorman.

     — Eu decido — retrucou o xerife, encarando Parker bem de perto. — Vá pegar seu cavalo lá fora e dê o fora, mestiço. Se daqui a três minutos ainda estiver por perto, garanto que corto você em pedacinhos e dou para os porcos do chiqueiro que o Kevin cuida mais ao sul dos arredores da cidade.

     — É isso! — bradou Heffron, animando-se — Por que não pensamos nisso antes? Podemos jogá-lo na pocilga.

     — Calma — disse o xerife, erguendo o braço, mas nem se dando ao trabalho de olhar para o comerciante. — Já dei minha ordem. E vou contar os minutos no meu relógio. — Dirigiu-se aos comissários: — Nick, você e o Donald levem o mestiço e montem ele naquele pangaré. Quero este idiota longe desta cidade o mais rápido possível

     Os dois comissários conduziram Parker para fora, enquanto Pryor seguia atrás empurrando as costas do prisioneiro. Isto aborreceu o Comissário Robards, um rapaz louro, de olhos claros e vivos.

     — Pare com isso, Pryor! O homem é responsabilidade nossa.

     — Ora, só estou deixando lembranças nossas nas costas dele. Que diabo, Donald! Se fraqueja assim com um mestiço safado, não serve para trabalhar com o Gorman e nem chegará a xerife!

     Donald Robards empurrou o ferreiro e logo ajudava o companheiro no bota-fora de Jack Parker.

     — Não volte mais — disse Robards. — É um aviso de amigo. O xerife não ameaçou em vão.

     — Chega — emendou o outro comissário, um pouco mais velho e mais robusto, chamado Nick Dawson. — Não devia dirigir-se desse modo a esse mestiço. Afinal, ele é indesejável nesta cidade.

     Parker tinha montado e afastou-se em direção aos limites da cidade de Pussyfoot. Nunca tivera pouso certo. E em todos os lugares onde passara a trabalhar, davam-lhe sempre os serviços mais pesados e alguns bem humilhantes. Ele se submetera, pensando assim que acabariam por acostumar-se com ele. Mas que esperança! Da última vez em que estivera num rancho ao norte do Wyoming, só faltaram matá-lo de pancada.

     Tudo ia bem até surgir um fato novo, alguém que resolvia implicar com ele. E Parker precisava pegar seus pertences e deixar o lugar para trás.

     Ele falava pouco. Era um homem que conhecia o peso de cada palavra. E sabia o quanto poderia lhe custar um gesto impensado.

     Cavalgou para as montanhas, onde pensava passar a noite. Pela manhã, pensaria no rumo a tomar. Escolheu um canto seguro e tratou de seu baio, dando-lhe comida depois de tirar a sela com os alforjes e o rifle. Ainda bem que o tinham deixado partir com as armas.

     Em certa ocasião, ele ficara apenas com um facão e custara a conseguir dinheiro com que adquirir um novo par de Colts e aquele rifle. Pensou, então, que não permitiria mais que roubassem suas armas. Nunca mais fariam isto com ele. Lutaria como um lobo esfomeado preso numa armadilha, mas não cederia de modo algum.

     Estendeu um cobertor no chão e cobriu-se com o outro, colocando a sela como travesseiro. Sentia fome e mastigou um pedaço de carne seca; tudo o que lhe sobrara como alimento nos alforjes.

     Estava habituado a passar fome, a sentir o estômago roncar de tão vazio estava. Não era uma situação nova para ele.

     Acabou dormindo. De onde estava, entretanto, podia a qualquer momento despertar e observar à distância, muitas milhas ao redor. E bastava o mais leve ruído, como o de uma folha seca tocando o solo, para arrancá-lo do sono o mais que depressa.

     Portanto, logo ao amanhecer, com o sol se erguendo ao longe, Parker acordou sobressaltado, ao som de uma cavalgada desenfreada na trilha que coitava a pradaria em direção aos pinheiros que recobriam as elevações rochosas, para sudoeste.

     Ele saltou do chão e enrolou os cobertores. Enquanto encilhava o baio, relanceava o caminho mais abaixo, onde alguém num cavalo negro era perseguido bem de perto por quatro homens.

     Se ele tivesse juízo, claro que não se meteria naquele assunto, que parecia ser bem problemático. Mas Parker colocava acima de qualquer atitude de cautela a sua extremada inclinação para aventuras. E meter-se em confusão era uma constante em sua vida.

     Quando ganhou a trilha para o bosque, tocou o baio mais rapidamente, conseguindo que o animal galopasse ao máximo possível. Assim, num instante, avistou as costas dos quatro perseguidores, tendo também uma perfeita visão de quem cavalgava em fuga. E tratava-se de uma mulher. Pelo jeito, muito nova. Seus cabelos ruivos batiam e esvoaçavam em suas costas, sob as abas largas do chapéu.

     De súbito, ao mesmo tempo em que os homens se davam conta de um elemento novo naquela caçada, a moça mais à frente soltava um grito, ao ser lançada ao chão com um fantástico corcoveio do animal, que relinchou desesperadamente antes de tombar para a direita, ficando a estrebuchar no solo.

     Era evidente que alguma coisa assustara o cavalo. E Parker não tardou a perceber as duas formas rastejantes que se afastavam e sumiam nas pedras ao lado do caminho.

     — Cobras! — gritou um dos perseguidores, sofreando a montaria.

     — E a moça, pelo jeito, foi atacada também! — berrou o outro.

     Os quatro voltaram as montarias seguidamente, dando com Parker, que vinha com o baio em desabalada carreira.

     — Matem o intrometido! — berrou um dos homens. — Fogo no safado! Não o deixem escapar.

     No mesmo instante, os homens ergueram os rifles, tocando os cavalos apenas com movimentos seguros de pernas, imprensando os joelhos nos costados dos mesmos.

     Os tiros ecoaram quando os pistoleiros estavam a poucos metros de distância de Parker

    

     Jack Parker tinha visto os homens se voltarem na garupa com uma habilidade que seria apreciável, se não fosse a situação. Mal os tiros ecoaram, entretanto, Parker deixou-se cair de lado e, cavalgando à moda índia, abriu fogo seguida e certeiramente.

     Não perdeu uma bala. A cada disparo ouvia-se um grito de agonia e um corpo estremecia na sela, tombando do cavalo. Em menos de um minuto, fora eliminado o perigo à sua frente. Apenas um dos perseguidores continuava gemendo no solo, ainda vivo.

     Parker voltara a sentar-se na sela e passou velozmente pelo inimigo estirado na beira do caminho. Trazia o rifle apontado e o cano vomitou chumbo, terminando por tirar a última chance do adversário de ainda disparar com o Colt que conseguira sacar.

     Sem se dar mais ao trabalho de verificar se deixara outro com vida para trás, Parker alcançou a moça que estava sentada no chão, apertando aflitivamente a perna direita.

     Desmontou com o baio em movimento.

     O animal relinchou forte e foi parar mais adiante, junto de uma árvore. Os cavalos dos perseguidores, livres de qualquer comando, galoparam em vertiginosa fuga para o bosque. Desapareceram por trás das primeiras árvores, deixando apenas no ar, por algum tempo, o som de seus cascos batucando ferozmente na terra.

     A moça assustou-se ao ver Parker aproximar-se. Chegou mesmo a ensaiar um gesto de sacar o revólver que trazia do lado direito do cinturão.

     — Calma — disse ele, erguendo as mãos, com o cano do rifle apontado para o céu. — Só vim ajudá-la, moça.

     Ele ajoelhou se ao lado e foi logo rasgando a perna da calça da jovem, que disse:

     — Eram duas cobras. . . Meu cavalo. . . Uma delas mordeu meu cavalo.

     Parker olhou para o lado, reparou na agonia do animal e falou, enquanto examinava o ferimento logo acima do tornozelo da moça:

     — Ele está perdido, moça. Vamos ver o que posso fazer por você. — Tinha deixado o rifle no chão e pegou o facão que levava metido no cós das calças. — Não se assuste. Confie em mim.

     Depois de dar um corte no local atingido pelas presas da cobra. Parker inclinou a cabeça e procedeu ao trabalho de sugar o veneno. Ele fazia a sucção e cuspia para o lado. Fez assim por várias vezes. Então, virou-se para a moça e disse:

     — Tudo certo agora — Reparou que os olhos verdes da ruiva ganhavam uma expressão distante. De súbito, as pálpebras cerraram-se e ela deixou pender o corpo. Amparando-a, ele falou: — Pobre garota... Fiz o que podia Mas ainda depende de continuar o tratamento de combate ao veneno.

     Deitou-a suavemente no chão e levantou-se. A montaria da ruiva sofria muito. Era doloroso assistir a tal agonia. Parker fez pontaria com um dos Colts. O tiro atingiu o animal na cabeça.

     — Pronto! Terminei com seu sofrimento. E não vou deixar que seu corpo fique descoberto, atraindo os abutres.

     Pouco depois, arrastando o cavalo, Parker jogou-o num vão profundo entre as rochas, cobrindo-o totalmente de pedras.

     Quando se afastava, montado no baio e tendo a moça amparada e sentada à sua frente, Parker não desperdiçou um pensamento de preocupação quanto ao destino dos quatro cadáveres largados pelo caminho. Seguia de volta a Pussyfoot. Em direção à cidade que o expulsara horas atrás. Não tinha alternativa. A moça precisava de cuidados médicos e aquela era a cidade mais próxima.

     Sentia o perfume que vinha dos cabelos ruivos da jovem, de todo o seu corpo macio e delicado. Passava a mão pela cintura dela e era como se estivesse abraçando alguém que lhe aplacava todo o seu anseio de obter alguma paz neste mundo.

     Aquela ruiva não era a moça mais bonita que Parker já vira. Mas as formas do seu corpo, o cabelo vermelho e o fogo de seus olhos verdes conquistaram-no por completo.

     Sabia que não poderia alimentar ilusões. Pelo cavalo que a moça montava, as roupas que usava e o trato de sua figura, tudo indicava que ela fazia parte de um segmento da sociedade que era vedado a um tipo como Parker, a quem todos chamavam de mestiço.

     No entanto, enquanto a mantinha estreitamente nos braços, era bom sonhar que nada neste mundo poderia separá-los.

     Mal imaginaria ele que seus sonhos seriam abortados muito em breve e da forma mais cruel possível.

    

     Eddie Pryor saía do estábulo ao lado de sua ferraria quando avistou o baio que entrava pela rua principal. Reconheceu a montaria ao mesmo tempo que ao homem que o montava. E mais, os cabelos ruivos da moça lhe eram bem familiares.

     Saltou para a calçada e gritou para dentro da ferraria: — Ei! Matt,venha só aqui fora ver o que estou vendo! Depressa!

     Largando o que fazia, Matt Freeman fungou o nariz largo com toda a força e deu uma espiada da porta.

     — Raios me partam! Não acredito no que estou vendo...

     — Mas é ele mesmo! O maldito mestiço e seu maldito baio. E a moça é a Susan! — emendou Pryor, afastando-se em seguida. — Vou avisar o O'Connor.

     Encaminhando-se para a mercearia na quadra adiante, Pryor ia gritando para todo mundo que passava nas calçadas ou estava à alguma porta:

     — O mestiço está de volta! E, pelo jeito, traz encrenca.

     A rua ficou agitada. Todos passaram a falar ao mesmo tempo, enquanto se voltavam para o ponto da rua onde vinha um baio conduzido a passo por seu dono. Uns e outros chamavam por aqueles que ainda não sabiam da novidade e encontravam-se dentro das residências ou das casas comerciais.

     — O'Connor! — berrou Pryor, entrando na mercearia e encontrando o dono da loja atendendo a uma freguesa. — Rápido, O'Connor! Você tem que ser o primeiro a ver... Quer dizer, agora não pode mais ser o primeiro... Todos já viram.

     — Mas de que diabo está falando, Eddie? Ficou maluco?

     Pryor agarrou o outro pelo braço e arrancou-o por detrás do balcão. O merceeiro ficou estonteado com a atitude do ferreiro.

     — Pare aí, O'Connor — disse Pryor, antes de dar uma chance ao merceeiro de olhar para fora. — Me responda primeiRO: Onde está a Susan?

     — Minha filha?

     — Claro, homem! Só pode ser ela. Ou você tem alguma outra filha escondida da gente?

     — Ora bolas! Ela saiu cedo como de costume. Foi cavalgar por aí. Mas, pelos raios, se ela não está atrasada...

     Pryor não o deixou terminar. Já fazia com que o merceeiro olhasse para a rua.

     — Raios! Demônios, se eu entendo isso! Num instante, Parker foi cercado por uma multidão ávida por saber as novidades e também admirada de ver o mestiço com coragem suficiente de voltar a Pussyfoot.

     — O que houve com minha filha? — berrou O'Connor, abrindo passagem em meio aos populares. Viu Parker desmontar e tirar a moça cuidadosamente da garupa do baio. — O que fez com minha filha, desgraçado?

     Com absoluta calma Parker voltou-se para o merceeiro e disse:

     — É sua filha? Leve-a ao médico. Uma cobra atacou-a no caminho para cá. — Omitiu o assunto dos perseguidores de Susan. — Onde fica a casa do médico? Há um nesta cidade, não?

     Em volta, todos pareciam ter perdido a voz. O próprio O'Connor olhava atônito para a filha, via a perna de sua calça de montaria rasgada, os sinais de uma mordedura de algum animal. Não soube o que dizer, ou o que pensar.

     — Não há um médico por aqui? — insistiu Parker, impacientando-se, dado a gravidade do caso.

     Ouviu-se uma voz ríspida: — Quer dizer que você, mestiço safado, além de ignorar as ordens do xerife, voltou com a Susan neste estado?!

     Todo mundo se voltou para a calçada à direita, no alto da qual surgira a figura arrogante de Heffron, tendo ao lado Sam Lester e o rancheiro Travis. Este último emendou:

     — Alguém vá chamar o xerife. Avistou o Comissário Robbards, que se aproximava a passos largos. — Onde está o Gorman? Ele tem que ver isto de perto.

     Foi Lester quem respondeu: — Ele está certamente tomando café lá no hotel da Mary.

     Heffron, Travis e Lester desceram da calçada de tábuas e foram ao encontro de Parker, que seguia para o final da rua, depois que O'Connor indicara a clínica do Dr. Charming.

     — A Susan foi mordida por uma cobra — disse o merceeiro, voltando-se por instantes para Heffron. — Ele a trouxe para cá. Vamos levá-la ao doutor.

     — Mordida por cobra, hein? Vamos verificar isto muito bem.

     — Ela tem marcas de mordedura na perna — disse alguém atrás do armazeneiro. — Deve ser verdade.

     — Deixe que eu a carrego — berrou Heffron, passando à frente de Parker. — Se ela precisa de um médico, eu a levarei. Venha O'Connor.

     Tirou bruscamente a moça dos braços de Parker, sem que este esboçasse qualquer resistência em vista das circunstâncias, pois temia que o estado dela se agravasse.

     A multidão seguia atrás, enquanto Parker se deixou ficar ao lado do baio defronte ao Saloon Violeta. Insensivelmente, ele passou a língua pelos lábios, mas desistiu de qualquer iniciativa no sentido de entrar. Lester tinha se postado à porta, tendo ao lado Pryor e um grandalhão, o vaqueiro Higgins, que mais parecia um pistoleiro.

     Não ia criar mais caso, pensou Parker, fazendo o cavalo voltar para deixar a cidade. Nessa mesma hora, sendo assistida pelo Dr. Channing, um tipo franzino, de bigode grisalho e óculos de lentes grossas, Susan abriu os olhos e, ainda estonteada, balbuciou:

     — Me perseguiam... Fui perseguida... Queriam me matar.. .

   Repetiu tais palavras mais alto e O'Connor, assim como Heffron a seu lado, ouviram perfeitamente Não foi preciso mais para que o armazeneiro ganhasse a rua novamente e explodisse:

     — Ei! Pessoal! O mestiço não pode deixar a cidade. Segurem o bastardo! O cara é culpado. Ele tentou agarrar a Susan.

     A rua entrou em polvorosa. Todos se precipitaram em direção a Parker, fechando a passagem quando ele já montara o baio. Ele relanceou os rostos hostis em volta. Os berros que davam, todos erguendo os braços e alguns empunhando os Colts.

     — Parem com isso! — berrou o Xerife Gorman, empurrando a quem estivessem no caminho. Estava terminando a refeição no Hotel Princesa quando fora avisado da volta de Parker. Abandonara tudo às pressas e era agora com a mesma afoiteza que ele chegava perto do baio. Olhou para cima, encarando furiosamente Parker, ao ordenar: — Desça deste pangaré! Rápido! Agora, sou eu que não quero que você saia desta cidade, mestiço. Vamos ter a mais longa conversa de sua vida. E quando eu terminar vai implorar para abandonar isto aqui. Só que o mais certo é não ter mais como ir a parte alguma!

     Parker não desviou os olhos do rosto avermelhado do xerife. E trincou os dentes, disposto a não proferir mais uma palavra, a não emitir um som. De nada adiantariam explicações. De nada valeria falar sobre os homens que perseguiam Susan. Ninguém o escutaria e muito menos um xerife de olhos injetados pelo ódio, pelo desejo insano de ostentar autoridade.

     Arrastado para dentro da cadeia, imobilizado a um canto de uma das celas, Gorman ordenou:

     — Segure-o mais firme, Robards! Que diabo! Tem medo de machucar o safado?

     O jovem comissário olhava para o rosto congestionado do xerife, voltava-se para Parker, via o rosto deste também tenso, contendo toda a revolta que crescia em seu peito. E não sabia o que pensar. Trabalhava como auxiliar de Gorman há pouco tempo. Já tinha assistido a muitas de suas arbitrariedades, sabia como o xerife agia em determinadas situações, conhecia seus métodos de fazer valer a Lei, de um modo bem peculiar, violento. No entanto, Robards achava que naquele caso, em especial, algo não lhe soava tão tolerável de admitir.

     Na verdade, Parker o impressionara favoravelmente. Havia naquele homem um ar de decência que dificilmente poderia encontrar em outro ser humano.

     — Vai fazer o quê, xerife? — teve a ousadia de perguntar. — Não é melhor interrogá-lo para saber o que realmente aconteceu?

     O Xerife Gorman encarou seu mais novo comissário. Abriu um riso maldoso, mostrando os dentes grandes e acavalados. Viu que Parker estava bem seguro e, então, virou-se levemente de costas, enquanto dizia:

     — Ah! Interrogá-lo... Certo, Robards. Tornou a virar-se de frente para o prisioneiro, enfiando o punho fechado em seu peito. O soco foi demolidor. Gorman conhecia a própria força. E voltou a rir, vendo Parker encolher-se, de rosto afogueado pela dor. — Assim está bem, Robards? Acha que comecei o interrogatório dentro dos conformes?

     O Comissário Robards trocou um olhar com seu colega Dawson, notando que este também se mostrava intrigado com a violência gratuita do xerife. Este não deixou esfriar o punho e o arremeteu novamente, acertando desta vez um pouco mais abaixo, na boca do estômago do prisioneiro. Parker dobrou-se o mais que lhe permitiam seus captores, que o mantinham de braços imobilizados.

     — Mais outra pergunta, mestiço! — bradou o xerife, esmurrando-o no queixo. — E mais outra... e outra vez...

     Ia marcando cada golpe contundente com um tom ofegante de voz, como se contasse as badaladas de um relógio. Parker sentiu o sangue escorrer de um corte no lábio superior, o peito queimava como um caldeirão ao fogo e os ouvidos zumbiam de modo insuportável.

     E lá vinha um punho do xerife, seguindo-se outro e mais outro, como as batidas infernais das horas.

     Nesse momento, O'Connor apareceu na porta da cela, dizendo: — Pare de bater nele, Gorman! Falei com minha filha. ..

     O xerife voltou-se, o rosto parecendo um braseiro e os punhos fechados:

     — Quem o mandou entrar? Como é que invadiu a cadeia sem minha permissão?

     — Eu sabia que você estava castigando ele. Não faça mais isto. Susan me falou. Contou tudo.

     — Cai fora, O'Connor! Não me interessa o que a sua filha disse. A Susan pode falar o que quiser. Quem vai acreditar numa garota que está sempre aprontando das suas?

     Heffron e Travis surgiram no corredor.

     O primeiro gritou, mal espiou para dentro da cela:

     — Não o solte, Gorman. Não vá na conversa do O'Connor. A Susan está querendo que a gente tome o mestiço como um herói!

     — Claro que não vou ouvir o que uma maluquinha diz.

     O'Connor era magro. Estava longe da se sentir em condições de medir forças com qualquer um ali, principalmente com o xerife

     mas não pensou no assunto. Precipitou-se para Gorman, atracando-se com ele, enquanto bradava:

     — Não fale da Susan desse modo! Não admito que...

     Gorman riu debochadamente e só o que fez foi segurar o merceeiro pelo peito da camisa e suspendê-lo a alguns centímetros do chão.

     — Não brinque comigo, O'Connor! O mestiço tem a pele curtida, mas você é fraco, não suportaria um murro dos meus.

     Largou o merceeiro no chão e voltou-se para Parker: — Vou só terminar meu interrogatório por hoje. Depois, caiam fora, todos vocês!

     Vagamente, Parker viu o punho agigantar-se à sua frente. Se fosse atingido por aquele torpedo, talvez tão cedo não voltasse a si. Assim, mais rápido do que o deslocar do soquete que vinha em sua direção, Parker abriu os braços inesperadamente e soltou um rugido que retumbou como o de uma fera nos ouvidos de seus carcereiros.

     Os dois comissários foram lançados cada qual para um canto. Com Dawson batendo de cabeça na parede e perdendo os sentidos, enquanto Robards batia de costas e escorregava para o chão, olhando incrédulo para o que acontecia em volta.

     Parker continuava a rugir, usando os braços vigorosos para golpear aqueles que o cercavam, derrubando a todos, saltando pela porta aberta e ganhando o corredor.

     Tudo acontecera rapidamente. Parker assemelhara-se a um leão furioso irrompendo pela mata; a um meteoro, destruindo tudo que encontrava pela frente.

     — Maldito! Porco bastardo! — passou a gritar o xerife, quando recuperou a voz e o controle dos movimentos. Ficou de pé e saiu para o corredor, sacando os Colts. — Eu mato o desgraçado e é agora mesmo. Que o diabo o interrogue no inferno!

     Robards viu Heffron e Travis erguerem-se, estonteados e seguiram atrás do xerife.

     — Nick... Nick, acorde! — acudiu o companheiro comissário.

     Nick Dawson balançou a cabeça molemente, abriu os olhos e balbuciou:

     — Ele... O que é ele? Um furacão?

    — Vamos logo daí! O homem escapou, e agora é que o xerife não vai perdoar. Não descansará enquanto não puser as mãos no Parker. O Gorman vai matá-lo.

     — Se puder, Donald. Se puder... — emendou Dawson, ficando de pé e apanhando seu chapéu.

     Os dois saíram e encontraram a rua na maior confusão. Todos corriam e gritavam de um lado para outro. O xerife disparava para o alto, chamava por seus comissários, enquanto Heffron e Travis reuniam alguns vaqueiros e moradores da cidade junto ao estábulo.

     — Para onde o safado foi? Hein? Alguém me responda! — berrou Gorman. — Não é possível que ele tenha desaparecido.

     Pryor estava sentado no chão. Ele e mais dois homens. E cada qual apontou numa direção, respondendo:

     — Por ali, Gorman!

     O xerife olhou-os, bufando: — Como, por ali? Não podem entrar num acordo e apontar para o mesmo lado?

     — Olhem ele lá naquele telhado! — berrou um vaqueiro, indicando o mais alto telhado da cidade, do prédio do Banco.

     Gorman berrou: — Me deem um rifle. Vou acertar o safado nas costas! Mas não quero matá-lo. Vou apenas aleijá-lo! Quero o maldito vivo! Que ninguém atire para matar.

     Parker corria por cima do telhado, saltando suas saliências e alcançando uma das beiradas.

     — O danado não pode saltar dali! — disse Heffron. — O telhado seguinte fica a uns cinco metros de distância.

     Parker respirava de modo ofegante. As dores que sentia no corpo, no rosto, serviam naquele momento para lhe dar mais determinação. Via a cobertura do prédio vizinho, mais abaixo e bem distante. Era o seu único caminho de fuga. Não tinha escolha. Ergueu os braços como se fosse mergulhar de cabeça numa das corredeiras do Grand Canyon.

     — O cara é louco! — exclamou Pryor. — Vai saltar mesmo.

     Gorman preparou o rifle. Apontou-o na direção do corpo másculo e recortado pela luz do sol. Tinha certeza de que não erraria daquela distância, e abriu fogo.

    

     Uma única e longa exclamação brotou da garganta de todos os populares reunidos naquele trecho da rua. Viram o corpo de Parker fazer aquela curvatura em pleno espaço. Um salto espetacular que o fez mergulhar para o telhado do prédio seguinte. Após o mergulho, em meio ao silêncio reinante, esperaram por algum tempo até que Pryor falou:

     — Ele desapareceu do outro lado. O mestiço saltou e sumiu.

     — Deve estar morto — emendou Heffron. — Se a bala do Gorman não o atingiu, o maldito mergulhou para o inferno. A altura e a distância, juntas, não dariam condições...

     O Xerife Gorman não esperou a conclusão da frase. Já seguia a passos largos para o prédio do Banco. A multidão o acompanhou. Alcançaram a esquina que separava os dois telhados em questão.

     — Papagaio! — exclamou Robards, arregalando os olhos claros. — O homem não está aqui... Quero dizer, o corpo não caiu na rua, como supúnhamos.

     — E isto... O que significa? — perguntou Higgins, com ar atônito. — O cara não pode ter conseguido dar o pulo!

     Gorman voltou sua ira contra o vaqueiro: — Nesse caso, pode me responder, seu cretino, onde é que o mestiço foi parar?

     Higgins era um grandalhão peitudo, mas como todos os outros, recuava sempre quando era interpelado duramente pelo xerife.

     — Ele fugiu. O porco mestiço escapou — rosnou Gorman, voltando-se para seus auxiliares. — Quero meu cavalo! Ele deve ter tomado o caminho para as montanhas. Eu o caçarei como se caça um porco bravo! Quem vem comigo?

     Enquanto ocorriam os preparativos na cidade, Parker já se afastara a bom correr do centro de Pussyfoot. A manhã estava clara e uma estranha quietude baixara sobre o arvoredo que delimitava a saída sudoeste. Era como o prenúncio de um grande e feroz combate.

     Os olhos negros de Parker mantinham-se fixos na correnteza rebrilhante à sua frente. Devia alcançar o rio e chegar ao arvoredo. Não tinha muita escolha na luta que se avizinhava com um punhado de homens liderados por um irrascível xerife.

     Sem armas, sem o cavalo, só o que ele pensava naquele momento era aumentar o máximo possível a distância que o separava de seus inimigos.

     Ainda sentia nos ouvidos o sibilar do projétil que quase o atingiu na cabeça. O Xerife Gorman tinha excelente pontaria e mesmo a presteza, aliada à boa sorte, tinha favorecido a fuga de Parker.

     Na margem do rio ele livrou-se das botas e da camisa, que estava toda rasgada devido aos incidentes sofridos. Apenas com suas velhas calças de vaqueiro, ele subiu numa pedra e atirou-se nas águas revoltas daquele trecho do rio. A margem não era muito larga, mas ele precisava nadar. E sem o entrave das botas, tudo se tomou mais fácil.

     Ao sair na outra margem, a água escorria por seu peito moreno coberto de cicatrizes, assim como as costas. Cicatrizes que davam uma medida dos métodos cruéis a que fora submetido no passado.

     Arfante, recostou-se pouco depois numa árvore. Via o sol lançar reflexos na superfície ondulante das águas e o rumorejo da correnteza, espumando à certa altura, reconfortou em parte o angustiado Parker. A própria umidade deixada pelo rio em sua pele morena amenizou-lhe as dores deixadas pelos murros recebidos na cadeia.

     Contudo, muito pouco fora suavizado dos sentimentos de revolta que faziam seu peito arfar mais do que devido, pelo esforço na fuga empreendida.

     Os cabelos lisos e compridos batiam-lhe na testa, dificultando-lhe a visão. Apanhou um lenço do bolso, torceu-o rapidamente e passou-o como uma tira pela cabeça, amarrando-o na parte de trás.

     Pouco depois, subia numa pedra enorme, podendo divisar o caminho em meio às copas das árvores até onde o rio descarregava suas vagas espumantes na descida para as montanhas.

     Não tardou a avistar o grupo de homens a cavalo se aproximando da outra margem do rio. Tinham parado e certamente estudavam a melhor possibilidade de atravessá-lo.

     Parker desviou a vista mais para cima da correnteza, onde as águas recolhiam-se num remanso. Por ali, era possível um homem passar para o outro lado com a água batendo na barriga das cavalgaduras.

     E logo os cavalos dos perseguidores subiam realmente pela margem e entravam no remanso. As patas dos cavalos faziam a água respingar ruidosamente. Gorman e seus homens estavam decididos a não deixar o tempo estender-se mais do que o necessário.

     — Vou pegar o verme maldito! E trazê-lo arrastado por este mesmo rio. Se, no final, ele sobreviver ao afogamento, garanto que pagará por tudo em minhas mãos.

     Mal alcançaram o outro lado, Gorman ordenou que os homens se espalhassem.

     — Ele não deve ter ido muito longe. Veio a pé enquanto nós montamos animais velozes.

     — Tenha calma, Gorman — disse O'Connor. — Já contei a você o que a Susan disse.

     — O que acha que devo fazer com o tratante? — berrou Gorman, desmontando mais adiante, enquanto os outros homens faziam o mesmo, formando um leque que abrangia uma larga área do bosque.

     — Interrogue-o, Gorman — disse O'Connor, logo se arrependendo do que dissera, pois conhecia bem os métodos de interrogatório do xerife. — Não o castigue antes de ouvi-lo. Bolas! Não deve agir impensadamente! Mande-o embora da cidade e acabou-se!

     O xerife parou por instantes: Acabou-se... hein? Você viu o que o sacana fez depois que o enxotei de Pussyfoot! Voltou para me desafiar.

     O'Connor compreendeu que o xerife não o ouviria. Parou, arriando os braços, em total desânimo, vendo que Gorman tomava pela trilha que ia dar numas rochas.

     As veias saltavam no rosto largo de Gorman. Os olhos acastanhados tinham aquela expressão do touro que se abalança na direção de sua vítima. E ele mantinha as mãos junto aos Colts. Possuía boa pontaria. Não sabia mesmo como Parker conseguira escapar daquele telhado. Assim que o encontrasse novamente, iria apenas feri-lo. Nas pernas, se possível. Então, o veria arrastar-se como um verme realmente.

     Os homens seguiam em grupo. Aos pares, em grupo de três. Gorman só trazia Robards a seu lado. Quando avistou as grandes pedras em meio ao arvoredo, disse para o comissário:

     — Pela direita, Robards. Contorne os pinheiros por aquele lado. Eu sigo pela esquerda. Vamos apanhá-lo agora.

     — Acha que ele internou-se naquela fissura?

     — Sem dúvida alguma. É o que uma fera acuada faria numa hora dessas. É o que eu faria, se tivesse um bando de homens em meu encalço.

     Seguiram cada qual por um caminho. Parker os observara das pedras. Então, ele foi saltando os obstáculos nas rochas, em movimentos hábeis e harmoniosos como os de uma pantera em meio à mata. Por fim, deixou-se cair suavemente na relva e, abaixado, voltou a se insinuar em meio a arbustos e árvores até situar-se no caminho por onde Robards devia passar.

     Não esperou muito. Avistou os ombros largos do rapaz, o chapéu com as abas sombreando seu rosto, o brilho da insígnia.

     Quando Robards deu por si, já estava com Parker saltando-lhe em cima. O comissário teve a impressão de que era, na realidade, uma fera que realizara aquele salto macio, silencioso e incisivo. Viu-se deitado no chão, de costas, com o rosto feroz de Parker rugindo a poucos centímetros de distância.

     Olharam-se por instantes, mantendo ambos um silêncio revelador do sentimento que se apossara diferentemente de cada qual.

     Robards não pôde evitar uma expressão de intenso pavor. Tudo em Parker o assustava terrivelmente. Se antes, quando o vira na cidade, impressionara-se com a força que emanava daquele homem, agora a sua ferocidade, acirrada ao extremo, deixava o jovem comissário em estado de completa perturbação.

     Parker afrouxou a pressão no pescoço de Robards. Mas enquanto o mantinha imobilizado, mais pelo pânico, apossou-se do rifle e do facão que o comissário trazia preso no cinturão.

     Com um salto, Parker ficou de pé. Robards o viu contorcer o rosto e erguer o rifle com o cano para cima, ao mesmo tempo em que a mão direita empunhava o facão como se estivesse prestes a enterrar no peito do primeiro que o desafiasse.

     Foi ao ouvir passos à direita que Parker virou-se e, ainda com movimentos felinos, afastou-se em direção ao arvoredo, descendo a noroeste.

     O Xerife Gorman apareceu correndo e berrando: — Que diabo está fazendo deitado aí no chão, Robards? O que houve?

     Sentando-se no chão, sacudindo a cabeça como para espantar um mau sonho, o comissário gaguejou:

     — Ele esteve aqui. .. Saltou sobre mim. Levantou-se subitamente animado: — Ele nao me matou, xerife. Poderia ter feito isso facilmente. Mas limitou-se a...

     — O quê? Está me dizendo que o bastardo passou por você? E você o deixou escapar? Imbecil! Estou cercado de imbecis!

     — Mas, xerife... Se estou dizendo que ele poderia ter me matado! O homem virou uma fera. Não se deixará apanhar. Não, estando com vida!

     — É o que veremos! E agora, pode indicar para onde ele foi? O xerife começou a chamar todos os homens, ao ver que o comissário apontava numa direção do arvoredo. — Então, ele foi para lá! Será mais fácil apanhá-lo.

     Nesse momento, quando alguns dos homens apareciam, ouviu-se um grito terrível.

     — É ele! — berrou Heffron. — Com certeza, foi apanhado em alguma das armadilhas que deixamos do outro lado.

     — Mas se ele foi para lá — insistiu o comissário.

     — Raios! — esbravejou o xerife. — A essa altura, ele pode estar em qualquer lugar! Em todos os lugares deste maldito bosque! E o grito não fica muito distante do ponto para onde você o viu correr.

     Com o xerife à frente, todos se precipitaram para uma clareira. Pryor tinha trazido uma armadilha para pegar urso e era de lá que provinham os berros eletrizantes.

     — Diabos! — berrou Freeman, ao lado de Travis. — É o Russel! Ele ficou preso pela perna!

     Os homens cercaram a vítima da armadilha. Freeman ajudou seu sócio a soltar a perna de Russel. Todos estavam atentos a seu caso. Todos, menos o xerife. Este dera as costas para a clareira e seus olhos espicaçados pelo ódio relanceavam o caminho que descia a oeste.

     — O desgraçado estava a poucos metros de mim! — berrou Russel, sentado no chão e esfregando a perna. — Corri atrás dele. O miserável do mestiço corria como um antílope. Saltou por essa armadilha. Vim logo atrás, nem me lembrei de que Pryor a armara pouco antes. Preparei o tiro. E foi quando pisei em cheio e larguei a arma. O safado ainda voltou e carregou com minha arma.

     — Raios os partam! A todos vocês! — berrou o xerife. — Ele agora tem duas armas. Dois rifles. Munição bastante para matar alguns de nós.

     — Ele só matará em caso extremo — disse Robards de imediato, num impulso que causou estranheza a ele próprio.

     — O que pretende insinuar? — perguntou o xerife.

     — Não sei... — Robards ficou na defensiva. — Mas está claro que ele teve oportunidade de matar a dois de nós e só não o fez porque não quis.

     Russell foi levado amparado por dois vaqueiros. E Heffron disse, semicerrando os olhos à luz forte do sol:

     — O que faremos agora, Gorman? Para que lado seguimos?

     — Em frente. Sei para onde ele vai. Quer tentar chegar às Rochosas. Mas antes disto já o terei nas mãos. Sei que o pessoal de Forte Laramie — parte da guarnição — está acampada junto ao Platte. Robards quero que vá até ele e peça ajuda. Ande depressa!

     Um vaqueiro veio correndo para avisar: — O Russell disse que o mestiço estava levando explosivos. Ele viu bem quando estava preso na armadilha.

     — Essa agora! — berrou o xerife. — E onde, diabos, o filho da mãe ia conseguir a dinamite?

     Heffron trocou um olhar com Travis, antes de responder: — Trouxemos algumas bananas em dois feixes.

     — Um dos vaqueiros enterrou no caminho por onde o mestiço deveria passar. Fizemos um rastilho de pólvora — contou Travis — e íamos acender quando ouvimos os berros de Russell e saímos todos correndo.

     — Mas, de quantos imprestáveis estou cercado! — bradou o xerife. — Então, vocês preparam a dinamite e largam tudo para trás, à vontade, para que o maldito porco a encontrasse?

     — Não sei como ele poderia adivinhar — disse Higgins. — Só se estava espiando a gente.

     — Grande descoberta! — voltou a berrar o xerife. — E o grande patife tem mais esses explosivos contra nós.

     — Ainda sobrou mais um feixe de bananas de dinamite — emendou Higgins, tirando os explosivos de dentro da camisa. — Podemos usá-los contra o mestiço.

     O Xerife Gorman já não escutava aqueles homens. Fez sinal para que o seguissem. Assim que deixaram o bosque, o sol incidiu com toda a força sobre eles. Continuaram andando tão depressa quanto o xerife lhes exigia.

     Mais adiante da trilha recoberta pela areia, Gorman encontrou sinais da passagem de um homem. De Jack Parker. Os pés nus deixavam contornos perfeitos no solo.

     — Ele não está longe — disse Gorman, um breve sorriso preso no canto da boca, mastigado como a um pedaço de charuto.

     — Sinto que ele está perto. O mestiço caiu numa armadilha. Não poderá dar mais um passo sem que a gente o veja.

     Mal acabara de falar e algo se moveu ao fundo da trilha arenosa. Um vulto surgiu no alto de um penhasco. Nuvens de poeira levantadas pelo vento quente chocavam-se contra as pedras e a figura erguida, altiva de Parker.

     — O maldito está rindo de todos nós — resmungou Heffron. — Vamos logo, rapazes! O que está esperando, Gorman?

     — Eu dou as ordens. Não se esqueça disso, Heffron! — Fez uma pausa, fulminando o outro com o olhar. — Peguem os rifles, mas só atirem quando eu mandar.

     Os homens esperaram que o xerife desse a ordem. Viram-no erguer o braço e baixá-lo com rapidez. Então, todos avançaram às carreiras e disparando para o alto do penhasco. O vulto do homem erguido como uma estátua desapareceu como num passe de mágica.

     — Nós o pegamos — gritava raivosamente o xerife. — Ele caiu pelo outro lado. E agora, nem me importa que esteja morto.

     As botas arrancavam estalidos da areia, quando enfim alcançaram os blocos de pedras. Já a essa altura, um novo ruído abafou o provocado pelas pisadas no solo. Pryor abriu o berro:

   — A dinamite! O maldito tocou fogo ali... Vai explodir!

     Os homens só tiveram tempo de se jogarem ao chão, protegendo a cabeça com as mãos cruzadas no alto. O tempo de espera foi curto. E quando ocorreu a explosão, pedaços de rocha saltaram em todas as direções. Junto com as pedras, vieram também montes de areia e terra.

     Não demorou muito. Logo, os homens erguiam a cabeça e relanceavam o penhasco. Uma densa poeirada o encobria. Alguns soltaram exclamações de protesto. E Freeman gemeu forte!

    — Uma pedra pegou na minha testa. Vejam! Estou sangrando.

     — Ora, isso não é nada! — disse Pryor, examinando o amigo.

     — Pode não ser, mas meu caminho termina aqui. Vou voltar e cuidar do ferimento. Você vem, Pryor?

     O ferreiro olhou para Heffron e os outros. Houve murmúrios em volta. E Lester, que ficara sempre mais atrás, falou:

     — Para mim, chega também. Volto com o Freeman e mais quem for.

     — Epa! — bradou Travis. — O que deu em vocês, hein? Quem está ferido que volte. Eu entendo. Mas os outros devem continuar.

     — Até que todos sejam atingidos e, desta vez, pra valer? — disse Lester.

     — Que conversa é essa? — irritou-se Gorman. — Por que não se explica melhor, Lester?

     — Estou pensando no que o Robards disse. O tal mestiço não quis matar a nenhum de nós. A ocasião não lhe faltou, todos nós sabemos. Mas isto pode cansar o cara. Ou então, algum acidente pode nos ferir de morte.

     — Chega, Lester! — berrou o Xerife Gorman, olhando-o atravessado. — Está dando sinal de fraqueza e isto pega. Dê o fora! Você está é com medo. E tudo por causa de um homem apenas.

     — Não é medo, Gorman. Você sabe que sempre estive a seu lado. Mas tem hora em que é melhor cada qual pensar por si mesmo. O mestiço provou que não é um assassino. Por que, então, não o deixamos ir embora?

     — Para que ele volte como já fez hoje? — Não acredito que volte mais a Pussyfoot. Em todo caso, estaremos prevenidos. Se ele entrar uma terceira vez na cidade, nós o pegamos e damos cabo dele. O que acham, hein?

     — Covarde! — gritou Gorman, atirando-se sobre Lester e jogando-o ao chão. O dono do Saloon Violeta não era forte. E é claro que logo sucumbiria aos golpes do xerife. — Vou dar uma lição em você para aprender a ser homem!

     Travis e Heffron precipitaram-se para os dois homens embolados no chão. O rancheiro chamou por seus vaqueiros e, jun-

     — 48 —vertir o dono (sem sentido). É isso! Eles farejaram a aproximação de alguém. Do mestiço! O filho de cadela está para aquele lado. A cabana do Lennon é seu chiqueiro.

     O xerife relanceou os homens ao redor. Seus olhos brilhavam de tamanha satisfação que era como se já tivesse posto as mãos em Jack Parker. Sua voz saiu carregada de emoção, tão tensa como se fosse explodir as palavras: — Vamos pegá-lo na casa do negro. Aproveitamos e liquidamos o assunto com aquela cabana junto ao rio.

     — Temos que andar depressa, então — emendou Pryor. — Ou os cães fazem o serviço por nós.

    

     Assim que Parker atravessou o rio, a nado, retirou os rifles de dentro do envoltório de lona, o mesmo que encontrara pelo caminho e que devia ter servido para acondicionar a dinamite. Desse modo, as armas não se molharam.

     Tinha ouvido latidos ao longe, mas prosseguiu em meio à mata das margens do rio. Alguns metros adiante avistou uma fumaça espiralada que subia do telhado de uma cabana. Os latidos vinham dali e haviam se tornado mais ferozes e fortes.

     Parker calculou uns quatro cães e logo os contava vindos do lado de um grande chiqueiro. Os grunhidos dos porcos eram perceptíveis àquela distância.

     Não queria atirar nos animais. Havia preparado uma lança com uma pedra pontuda amarrada na ponta de uma vara usando uma espécie de cipó. Além disso, tinha o facão. Se disparasse, atrairia a atenção de seus perseguidores.

     Estirou-se no alto de uma pedra lisa e esperou pelos animais. Estes chegaram ofegantes, com as presas arreganhadas, deitando saliva pelas bocarras. Três deles eram negros. O quarto tinha o pelo marrom-escuro e era maior, de ferocidade mais evidente.

     Preparado para matar o primeiro que subisse à pedra, Parker empunhou a lança e fez pontaria. Já estava mesmo a ponto de atirá-la no mais afoito dos cães quando ouviu gritos e assobios.

     Por trás dos arbustos à direita, surgiu a figura de um negro de mais de dois metros de altura. Era forte. O homem mais forte que Parker já tinha visto. Sua camisa grosseira mal continha os músculos dos braços e do peito, à medida que ele gesticulava e falava com os cães. Não trazia chapéu e sua cabeça raspada mostrava altivez e determinação.

     Chamou pelos cães: — Feroz, Fogoso, Feiticeira, Furacão... Quietos! Parem com isso!

     Demonstrando como eram bem treinados, os cães cessaram de imediato com os latidos. Seu dono aproximou-se e acalmou-os com umas batidinhas na cabeça de cada qual. Os cães sentaram-se e ficaram com as línguas de fora, ofegantes como se acabassem de fazer uma longa corrida.

     — Você os treinou bem, amigo — disse Parker.

     — Pode descer daí. Os cachorros não lhe farão mais nada.

     — Quer dizer que eles me teriam estraçalhado?

     — Como se fosse um boneco de palha. Sou Kevin Lennon e moro aqui perto.

     — Eu sei. Tem uma criação de porcos. Certo?

     — Ouviu falar de mim na cidade? — Viu que um dos cães se levantara e cheirava as pernas de Parker, e emendou: — Pare com essa confiança, Feiticeira. Quietinha, hein?

     — Vejo que deu a eles nomes bem sugestivos. E todos começam com a letra "F". Parker abaixou-se ligeiramente e fez festa na cabeça da cadela, a única a diferir em cor dos outros cães.

     — Ela é a mais braba. Muito mais que os cães. Mas parece que gostou de você.

     Pelo menos, jamais deixou que outra pessoa, além de mim, tocasse nela.

     — Sou Jack Parker. Não sei se vai querer continuar conversando comigo depois de saber...

     — Que está sendo perseguido pelo Xerife Gorman, o Sr. Heffron e outros de Pussyfoot?

     — Sabia disso? Mas como, se eu e eles estamos vindo para esses lados agora?

     — E existe algum forasteiro acuado por outro que não sejam as pestes daquela cidade? O que você fez?

     — Nada. Eles simplesmente me mandaram embora e eu voltei.

     Kevin Lennon riu. Olhou na direção do rio: — Então, você os desafiou, voltando... Assinou a sua sentença de morte, rapaz

     — Tenho que ir para mais longe. Alcançarei as Rochosas e. ..

     — Hum... Vai ser difícil alcançá-las com aqueles diabos nos calcanhares. Além do mais, há soldados do outro lado, além da minha cabana. Estão acampados e o prenderão para entregá-lo ao xerife de Pussyfoot. Sim, é isso mesmo o que fazem.

     — Mesmo sabendo que aquele xerife me matará sem que eu vá a julgamento?

     — Mesmo assim, Sr. Parker. Se soubesse o que já foi feito dentro daquela cidade, nem acreditaria...

     — Não me chame de senhor. Apenas Jack.

     Kevin olhou-o por instantes, enquanto dizia: — Certo, vamos até minha casa. — Enquanto caminhavam, Kevin prosseguiu:

     — Não é um mestiço como faz parecer a princípio, hein, Jack?

     — Não, não sou.

     Diante da cabana, Kevin abriu a porta:

     — Entre. Você precisa de boa comida e de descanso.

     — Se me ajudar, sabe que se dará mal com, aquela gente.

     — E quando foi que me dei bem? Vamos, entre. A casa é modesta, mas asseada e você encontrará um canto para descansar os ossos, O xerife e seus homens demorarão um pouco a chegar aqui. Teremos duas horas pelo menos até que eles resolvam como passar por meus cães.

     Parker não queria que um homem bom como Kevin se arriscasse. Mas a verdade é que não comia nada decente desde a véspera e precisava mesmo de uma hora de sono antes de prosseguir na fuga.

     Pouco depois, experimentando uma grata satisfação pelo alimento consumido — uma boa fatia de carne de porco com batatas — Parker deitou-se num catre. Deixou os dois rifles ao lado e ficou olhando as costas imensas de Kevin saindo da cabana, enquanto ouvia o crepitar das chamas do fogão de pedras...

     Não soube precisar quanto dormira, mas a cabana caíra na penumbra, com o fogo quase apagado ao fundo do único compartimento, quando Kevin tocara de leve no ombro de Parker, dizendo:

     — É melhor levantar-se, Jack. Mas não se afobe. Os homens do xerife já sabem que você está aqui. Os cães deram sinal, mas os fiz calar-se.

     Parker levantou-se e foi até a janela, espiando para fora. Entardecia e muitas sombras já recobriam arbustos, a mata e as rochas. Tinha dormido muitas horas.

     — Devia ter me acordado antes. Não tarda a anoitecer. Por que será que não se aproximaram mais?

     — O Xerife Gorman é um tipo sádico. Tem a certeza de que você não escapará desta cabana. Mas há uma saída por trás que eles ainda não ocuparam. Fuja, rapaz.

     — E quanto a você? Irão vingar-se.

     — Sei como lidar com aquela gente. Escondi os cães atrás do chiqueiro. Não quero que sejam mortos. É assim que sempre faço quando o xerife vem aqui falar comigo. Eles compram meus porcos. Eu os mato e levo depois a carne para negociar na cidade. O Sr. Heffron a revende em seu armazém. Cobrando muito mais do que paga a mim, é claro.

     Parker colocou um dos rifles com a correia atravessada em seu peito. O outro foi empunhado. A lança ficou presa às costas e Kevin lhe entregou uma sacola com água e suprimentos.

     Antes de afastar-se, Parker falou: — Vou voltar, Kevin. Um dia, voltaremos a nos encontrar.

     Assim espero, Jack. Em algum lugar deste mundo a gente se torna a ver. Acredito nisso.

     Parker esgueirou-se em meio à parede da cabana e o chiqueiro. Ia confiante de que nada fariam a Kevin. Mas não podia evitar uma certa apreensão. Sua esperança, no momento, era conseguir entrar em contato com determinada pessoa que servia no Forte Laramie. Era por isso que dava toda aquela volta, atravessando o Platte naquele ponto para cruzar a pradaria em direção ao forte.

     Ouviu o relincho de um cavalo e parou, intrigado. Mas logo entendia tudo. Ali estava a sua montaria. Um potro meio arisco devidamente encilhado por Kevin e deixado atrás da cabana para Parker.

     Este montou e olhou para trás. Em meio às sombras ao lado da cabana, avistou a figura hercúlea de Kevin, que lançou um adeus breve. Parker ergueu o braço e, subitamente, estremeceu. Teve a nítida impressão de que via Kevin pela última vez. Para uma amizade de algumas horas, isto não devia valer tanto, se não fosse o caso de Parker medir a extensão exata de um sentimento não pelo tempo de vivência, mas pela força com que o mesmo se instalava no coração.

     Tocou o cavalo para longe. Não conhecia os soldados que acampavam nas proximidades. Por tal motivo, não chegaria até eles sem antes ter a certeza de que teria a sua chance de falar com o comandante do Forte.

     Parker guiava o cavalo com muito cuidado pelo terreno acidentado. Quando dava para ir mais depressa, fazia o animal correr. Num ponto entre umas árvores, encontrou marcas de cavalos. Examinou o solo. Eram montarias do exército. Ele as conhecia muito bem. Foi seguindo para sudeste, então.

     Quando surgiram as primeiras estrelas, Parker achava-se no alto de um monte e tinha uma visão abrangente não só do rio como do lugar onde ficava a cabana de Kevin. Não tinha condições de vê-la em meio à noite, mas logo soltava uma maldição.

     Soavam tiros para aquele lado e não tardou para que clarões surgissem como se brotando da própria terra. No momento que distinguiu a fumaça espessa subindo em rolos, Parker já não tinha mais dúvidas de que voltaria bem mais cedo do que prometera a Kevin. Tocou o cavalo pela trilha a baixo. Quando alcançou o sopé do monte, guiou-se pelos tiros e o evoluir da fumaceira e clarões.

     — Os cães estão presos num puxado atrás do chiqueiro, Gorman — disse Pryor. — Fui lá falar com o Kevin, como você mandou. Atirei para o alto, avisando de minha chegada para que ele prendesse os cachorros. Era um risco, pois o mestiço poderia me matar de dentro da cabana, como a gente pensa que ele está.

     — Continue — impacientou-se o xerife.

     — Falei com o Kevin. Entrei na cabana, dei uma espiada no puxado onde estão os cães e olhei até no chiqueiro. Não descobri o fugitivo. Mas ele continua por lá ou já deu o pinote. Vi marcas da passagem dele. Pés descalços gravados no chão, sinais na mesa da cabana de que o negro recebeu visita. E o catre guarda ainda o calor de um corpo. Não pode ser o Kevin. Nós o vimos trabalhando na horta e cuidando do chiqueiro. Ele não entrou para dormir.

     — E o que foi que o negro disse? — perguntou Heffron.

     — Quando perguntei a ele se tinha visto alguém passando por lá, ele veio com aquelas evasivas dele. Vocês sabem... Fica fazendo umas considerações tolas, quando bem sabemos que de tolo ele não tem nada.

     O xerife decidiu: — Vamos até lá. Entraremos de sola. Vamos pegar o negro antes que ele solte os cães. Ou que o mestiço tenha chance de escapar.

     — Por mim, ele já escapou — falou Travis.

     — Nesse caso, acabaremos com a pocilga do negro — disse Gorman. — Atravéssaremos o rio mais adiante.

     Dois vaqueiros tinham ido apanhar os cavalos no bosque e, pouco depois, o grupo entrava pela parte mais estreita do rio. A água batia nas botas dos homens e não houve dificuldade em alcançar a outra margem. Tinham saído a poucos metros da cabana de Kevin, onde três homens montavam guarda.

     — Kevin, seu negro safado, apareça! — berrou o xerife, desmontando junto com seu grupo. — Sei que já nos viu!

     Kevin surgiu de um lado do chiqueiro. Trazia uma foice na mão direita e abria um riso tolo, olhando de lado para o xerife. Este prosseguiu:

     — Vamos logo, negro! Onde está aquele mestiço ordinário.

     — Não vi mestiço algum. Há muito tempo que não vejo senão homens brancos como vocês.

     — Não quero perder tempo. Pryor, você e o Spencer... Segurem o negro!

     Pryor e um vaqueiro fortão prenderam Kevin pelos braços, sem que este esboçasse o menor sinal de reação. Gorman, Heffron e os outros estavam a poucos passos. O xerife arrancou a foice das mãos de Kevin e fez como se examinasse o corte.

     — Bem afiada, hein? O que andou cortando? É com isto que mata seus porcos. Hein, negro? Responda.

     — Não, Xerife Gorman. É com um facão.

     — Hum... Quer dizer que não mete a foice no pescoço deles. E por quê? Posso saber?

     — Com o facão, eles morrem mais depressa. Não sofrem tanto.

     O xerife abriu um riso perverso. Olhou para a cabana, de onde dois vaqueiros saíam. Um deles confirmou que estava vazia.

     — Com a foice, os bichos sofrem mais! Não me diga! E como você os agarra, negro? — O xerife fez sinal. Pryor e o outro fizeram Kevin ajoelhar-se. — Vamos ver se é assim... Você os obriga a baixar o cangote. Certo? Assim mesmo como o Pryor e o Spencer estão fazendo. Não precisa responder. Sei como se mata um porco. Só que ainda não matei um tão negro como você,

     O xerife ergueu a foice a uma certa altura do pescoço de Kevin. Os outros homens olhavam, intrigados. Não que não estivessem acostumados a matar um homem. Mas o xerife estava indo longe demais em seus métodos cruéis.

     — Mate-o com um tiro, Gorman — disse Travis. — Meus homens atiram bem. Deixe que eles se divirtam com este alvo.

     — Qual a diferença entre matá-lo a tiros ou com uma foice? Mas... Está certo, Travis. Diga a seus homens que caprichem na pontaria. O coração fica para o fim. | Primeiro as pernas.

     O xerife afastou-se. Mandou que soltassem Kevin. Quando viu que este não se mexia, Gorman falou:

     — Por que não corre, negro? Meus amigos vão atirar em você. Corra para junto de seus porcos. Se conseguir saltar o cercado e encharcar-se naquela sujeira toda, suspendo o fuzilamento. Vamos, pule o cercado! Os porcos não o comerão. São seus amigos. E fedem do mesmo jeito!

     Kevin ergueu o queixo. Seu nariz grande e lustroso ficou visível ao clarão da lua. Tinha cruzado os braços e fincado os pés na terra. Era como uma gigantesca árvore que só cairia a golpes de machado.

     — Não vai correr, hein, negro? — disse Gorman, salivando de ódio. — Você me desafia, então! É isso, maldito negro?

     — Não vou correr — respondeu calmamente Kevin. — O senhor sabe que não correrei, nem me atirarei no chiqueiro.

     Houve um momento de suspense. O xerife parecia enrolado nas próprias palavras. Na verdade, não esperava que Kevin o desafiasse daquele jeito.

     — Meus homens podem atirar agora? — perguntou Travis. — Vai deixar que um negro fale assim com você?

     — Atirem, homens! — berrou Heffron.

     Contudo, antes que os pistoleiros abrissem fogo, o xerife gritava, erguendo a foice bem alto:

     — Não, não atirem! O negro safado provocou e vai receber o que merece!

     Gorman deu um salto e logo estava junto de Kevin. Olharam-se intensamente por instantes. Então, Gorman desceu a afiada foice e cortou ao meio a cabeça de Kevin.

     Em volta, todos viras as duas partes separadas do crânio liso, que logo tingiu-se de sangue misturado a uma massa espessa. Kevin desabou sem um gemido.

     — Toquem fogo em tudo! — ordenou Gorman, fora de si. — Queimem a cabana, o chiqueiro, os porcos, os cães. Queimem tudo!

     O xerife gritava, correndo de um lado para o outro, como se ainda acreditasse que Parker pudesse estar escondido em algum canto por ali e aparecesse.

     — Maldito mestiço! Por que não aparece? É por sua causa que o negro morreu. — Viu as chamas crescerem na cabana, tomarem conta do chiqueiro, em meio a grunhido dos porcos e latidos desesperados dos cães.

     Em breve não sobrou nada, além do cheiro de fuligem e da carne tostada dos animais.

     — Foi uma pena perder a carne saborosa dos suínos — disse alguém, depois que todos voltaram a montar.

     — Vamos voltar agora — insistiu Lester. — Durante a noite será inútil prosseguir na caçada. Já vimos que o homem escorrega por nossas mãos.

     — Concordo — disse Heffron. — Além disso... Acho que ainda o veremos e mais cedo do que se imagina.

     — Por que pensa desse modo? — perguntou Travis.

     — Conheço tipos como ele. Não há dúvida que esteve na cabana do Kevin e foi ajudado. Os cães não o deixariam passar, se o negro não quisesse.

     — E daí! — gritou o xerife. — O mestiço foi ajudado pelo negro. Que conclusão vamos tirar de uma coisa tão evidente... a de que o mestiço escapou? Ou esperam que ele venha nos pedir contas pelo que fizemos ao negro? É o que está pensando, Heffron?

     — É, exatamente, isso que estou pensando. Ele vai voltar. E nem precisamos de outro chamariz melhor do que o que fizemos ao Kevin.

    

     As chamas já não crepitavam. Os escombros a que foram reduzidos o chiqueiro e a cabana deixavam escapar fiapos de fumaça e o vento atirava as brasas, espalhando as cinzas. Não se ouvia qualquer ruído além de breves estalos nos rescaldos.

     Parker conduziu o cavalo ao centro das ruínas do que fora até horas atras o abrigo de um ser humano. Largou as rédeas e agachou-se ao lado do cadáver de Kevin Lennon.

   Com o rosto tenso, fechou os olhos por instantes. Já tinha participado de batalhas, sobretudo entre os índios, mas não pôde deixar de comparar a morte de Kevin como a mais cruel e covarde a que já assistira.

     — Acho que você tinha razão quando nos despedíamos há pouco. Se houver um segundo encontro entre nós. não será aqui na terra. Contudo, uma coisa eu garanto. Aqueles que o mataram não terão vida longa.

     Parker ficou de pé, erguendo os braços e soltando um brado tal qual um pele-vermelha o faria ante um juramento, tendo apenas a natureza como testemunha.

     Levou todo o dia seguinte, desde o amanhecer, preparando o túmulo para Kevin e apagando os rescaldos do incêndio. Os restos calcinados dos animais foram jogados numa única cova. Deu por terminado tudo no dia seguinte. Então, lavou-se no rio, comeu qualquer coisa e ficou sentado numa rocha, refletindo, enquanto o cavalo pastava perto da margem do Platte.

     A noite do segundo dia pegou-o ainda no alto das pedras. Com i surgimento das estrelas e da lua, cortada exatamente ao meio, ele considerou que tinha chegado a hora de iniciar a cobrança com os matadores de Kevin.

     — Já se passou mais um dia — disse Gorman — e onde está o vingador, Heffron? Você falou com muita certeza de que ele viria nos pegar.

     — Não se apresse — disse o armazeneiro à porta de sua importante casa comercial. A maior de Pussyfoot. — O mestiço virá.

     Travis atravessou a rua. Vinha acompanhado de Higgins e de Freeman; este estava com um curativo na testa e seu olho esquerdo inchara.

     — Não soube ainda nada do Robards? — perguntou o rancheiro ao xerife. — Ele já devia ter voltado com os soldados.

     Gorman cuspiu o cigarro no chão. A demora de seu mais jovem comissário também o deixava preocupado.

     — Acha que o mestiço pode ter dado cabo do Robards? — insistiu Travis. — Nesse caso, nada de soldados. Só podemos mesmo contar com a gente.

     — E quando foi que contamos com outros além de nós? — rebateu o xerife. — Olhem! Lá vem o James. Deve ter novidades, pois vem às carreiras.

     — Sem dúvida, o nosso telegrafista está com muita pressa de lhe dar algum recado, Gorman — falou Heffron. Esperou que James Norris, um tipo magrela, de colete preto e viseira, diminuísse os passos assim que subiu para a calçada: — O que houve? Não me diga que o Presidente mandou avisar de sua próxima visita.

     Todos riram, mas o xerife cortou a diversão: — O que é agora? Da última vez que eu o vi agitado assim, tinham cortado os fios telegráficos.

     — Pois foi isso mesmo que aconteceu — retrucou James, parando e tentando normalizar a respiração.

     — Epa! Que negócio é esse? Como é que cortaram os fios?

     — Como, não posso saber, xerife. Só sei que eu recebia uma mensagem de Forte Laramie quando tudo caiu em silêncio.

     — Calma, James — disse o xerife, segurando o telegrafista pelos braços magros.

     — Fale com calma. Diga exatamente o que aconteceu. Que história de mensagem do Forte é essa?

     — Passava das sete... Ainda há pouco. Mal havia escurecido. Coisa de meia hora... Bem, recebi um comunicado do Forte Laramie. O próprio comandante... O Coronel Morgan está vindo para cá, junto com o Robards e alguns soldados.

     — Com o Robards? — gritou espantado Heffron. — Mas que diabo o seu comissário foi fazer no Forte, Gorman?

     O xerife fez um gesto impaciente para o armazeneiro, dizendo:

     — Entendi, James. O comandante do Laramie vem para cá. E o que mais?

     — É isso que não entendi. Havia uma ordem em relação àquele mestiço. Parece que o comandante vem especialmente para falar com ele. Depois, a transmissão caiu... Cortaram os fios. Sei lá!

     Os homens se entreolharam, atônitos. Gorman foi o primeiro a sair de sua estupefação:

   — Essa teve graça! O Comandante Morgan sair do Forte Laramie para entrevistar-se com o maldito mestiço. Droga! Se não me explicarem isso, nunca que vou entender!

     Gritos no final da rua atraíram a atenção deles. Correram todos para ver o que acontecia. Todas as casas comerciais estavam fechadas, inclusive o armazém de Heffron. Apenas as luzes dos saloons e das casas residenciais clareavam as calçadas, além dos lampiões no alto dos postes.

     Não demorou para que muita gente, homens, mulheres e crianças saíssem também para a rua. Mas foi Freeman quem primeiro percebeu o que se passava, passando a berrar:

     — A ferraria! Tocaram fogo na minha ferraria!

     Dois homens vieram correndo ao encontro do grupo liderado pelo xerife.

     — Foi o maldito mestiço. Eu vi quando ele saía pelos fundos do estábulo ao lado da ferraria. Freeman, onde está o Pryor?

     No mesmo instante, vários homens saíram às carreiras do Saloon Violeta. Pryor era o mais agitado. Levou as mãos ao rosto para livrar-se dos efeitos da bebida, pois estivera jogando e tomando uísque.

     — Demônios! A ferraria, o estábulo... Quem foi o desgraçado que incendiou tudo aquilo?

     O xerife não demorou a distribuir os homens e a dar ordens no sentido de que combatessem o fogo. Viu Pryor e Freeman olhando abismados para as línguas de fogo que irrompiam pelos vãos cavados pelas próprias chamas. As labaredas se desenvolviam com rapidez.

     — O cara é louco! — berrou Travis, que acompanhava de perto o trabalho de seus vaqueiros. — Mas como é que o incêndio alastrou-se tão depressa sem que alguém desse conta?

     — Entraram e tocaram fogo em tudo lá dentro antes que pudéssemos perceber — falou um vaqueiro.

     — Bem, isso não interessa — rosnou o xerife. — O que importa é saber se ele continua por perto. Quero homens espalhados pela cidade caçando o maldito coiote!

     Pryor virou-se raivosamente para o xerife: — Essa é que não, Gorman! Primeiro, vamos atacar o incêndio.

     — E para quê? O que pensa salvar das chamas, Pryor? Tudo o que era de você e do Freeman está perdido!

     — Mesmo assim — falou uma mulher alta e loura. Tinha a voz esganiçada e vestia-se com espalhafato. — Temos que combater o fogo antes que ele se espalhe para outros prédios.

     — Volte para casa, Mary! — gritou o xerife.

     — Não, não vou sair daqui, Roger! Meu hotel fica quase ao lado. Ajudando a apagar este incêndio, estou protegendo minha propriedade.

     O'Connor veio correndo de sua casa, que ficava no alto da mercearia do qual era dono. E também passou a ajudar a todos.

     — Os cavalos — disse Travis. — Nenhum está relinchando. É como se o estábulo estivesse vazio...

     — Ao diabo os animais! — berrou Freeman. — Eles não me pertenciam. Eu quero o que era meu!

     Os homens jogavam baldes d'água e terra trazida num carroção. Enquanto o fogo não destruíra o telhado, ainda conseguiam controlá-lo.

     De súbito, o som de um galope juntou-se ao crepitar das chamas. E alguém berrou:

     — Vem daquele lado! Da curva do fim da rua!

     — São os cavalos em fuga! — berrou Heffron, que estava em cima de uma carroça, comandando também os trabalhos. — O filho de cadela soltou os cavalos! Fez tudo nas nossas barbas, o miserável!

     O xerife passou a gritar em todas as direções. Queria reunir um grupo para ir atrás do incendiário, mas ninguém o ouvia. Apenas o Comissário Daiwson ficou a seu lado.

     — Vamos nós dois — resolveu Gorman. — Pegaremos o patife.

     Mas quando já se dispunham a pegar suas montarias defronte à cadeia, depararam com algo surpreendente. Paralizados, o xerife e seu comissário viram o clarão que escapava da janela do xerifado.

     — Diabo! — berrou Gorman, saindo de seu estupor. — A minha cadeia, não! O demónio não queimará a cadeia!

     — Espere, xerife! — gritou Dawson. — Ele pode ainda estar lá dentro.

     — Melhor ainda! Eu o matarei e farei seu corpo arder no meio da rua! O xerife abriu a porta. Haviam jogado uma tocha sobre a mesa, e junto da mesma, uma foice manchada de sangue coagulado fora deixada como uma mensagem de autoria inconfundível.

     O xerife apanhou um pano de cima de uma mesa de canto e bateu sobre a tocha, apagando pouco depois o fogo. Respirando aos sorvos, ele voltou-se para Dawson:

     — O patife... Aquele patife ousou me desafiar em meu próprio território. Apanhou a foice. O cabo estava quente devido ao fogo que se alastrara pelos papéis em cima dá mesa. — Ele não me escapa mais. E será com esta mesma coisa que dividirei também a sua cabeça.

     Impressionado com a expressão irada do xerife, seu rosto congestionado, as pupilas dilatadas, Dawson balbuciou:

     — Então, deve encontrá-lo antes da chegada do comandante de Forte Laramie. O James esteve no escritório e me deu antes o recado.

     — Que me importa o comandante?! Nem que fosse o próprio Presidente, ninguém irá tirar o prazer de minha revanche!

     — Robards, não o mandei ir ao Forte Laramie, mas sim chamar os soldados acampados aqui perto — bradou o xerife, mal viu seu auxiliar desmontar junto ao xerifado.

     — Não o recrimine, Xerife Gorman — disse um homem espadaúdo e cabelos grisalhos, com a divisa de coronel. — Sou o comandante do Forte Laramie. Vamos conversar em seu escritório.

     Junto com o Coronel Lawrence Morgan vinham o Tenente James Craig e três soldados.

   — Espere aqui fora, Robards — disse o xerife, entrando à frente do coronel. Estava tão irritado que nem fazia as honras à visitante tão importante. — Como o senhor já sabe, Coronel Morgan, estamos com o telegrafo mudo. Recebemos a mensagem do Forte na hora em que aquele maluco cortava os fios. E o senhor já viu como a cidade ficou depois que o maldito mestiço tocou fogo numa ferraria, num estábulo e quase destrói com este escritório.

     — Um momento, xerife. Creio que há, pelo menos num ponto, um grave erro de sua parte. Jack Parker não é um mestiço!

     — Ah! é mesmo? Ele tem um nome. Parece que ele disse chamar-se assim mesmo. Mas nem prestei atenção. Um sujeito que age como um selvagem, que incendeia, destrói, mata...

     — Ele matou alguém? Quem foi a vítima do Parker.

     — Bem, na verdade, esse mestiço não chegou a matar. Muito embora tivesse tentado isto muitas vezes.

     O coronel encaminhou-se para a janela. Sacudiu a cabeça e falou, olhando para fora:

     — Não acredito que ele tivesse tentado.

     — O que disse, coronel?

     Morgan voltou-se para o xerife, encarou-o: — Se o Parker quisesse, ele não teria ficado só na tentativa. Ele teria liquidado com a metade desta cidade. E o senhor nem estaria agora conversando comigo. O Comissário Robards me contou que uma patrulha foi no encalço dele. Pode me falar sobre o assunto?

     O Xerife Gorman fez um relato das últimas ocorrências, carregando nas tintas quanto à atuação de Parker. Depois, o coronel ficou pensativo, olhando a rua tomada pela luz do entardecer.

     — Permite uma pergunta pessoal, Xerife Gorman? — enfim, falou o coronel. E sem esperar resposta, emendou: — Costuma tratar a todos os forasteiros como fez com o Parker?

     — Quando eles se identificam devidamente e agem dentro da lei, dou permissão para que permaneçam na cidade o tempo que quiserem. Mas esse... Parker agiu estranhamente. Desacatou uma autoridade. Dei-lhe voz de prisão... E o que ele fez, hein?

     — Seu comissário me contou algo que o senhor omitiu. O Parker voltou depois de ter salvo uma jovem das mãos de um bando de assaltantes.

     — Isso é o que ele disse! Assim como falou com o Pryor que queria cuidar de cavalos.

     — Mas se foi o próprio pai da moça quem afirmou que Parker a salvara. E quanto a cuidar de cavalos, é realmente isto o que o Parker mais gosta de fazer. Era o que ele fazia no Forte Randall, quando servi lá. E garanto que todos o estimavam muito.

     O xerife guardou silêncio por instantes. Então, disse como se mastigasse as palavras:

     — Jack Parker... Quer dizer que o maldito tem mesmo um nome! Desculpe, Coronel Morgan, mas ele não nos causou boa impressão. E se o tivesse visto como anda agora... Sem camisa, descalço e com aquelas terríveis cicatrizes no peito... Parece mesmo um selvagem.

     — Não me admira. Jack Parker viveu num acampamento comanche desde os 14 anos, quando foi levado pelo Chefe Cão Amarelo, depois que seus guerreiros destruíram com um acampamento militar junto ao Missouri. Seu pai era o Coronel Robert Parker e morreu junto com seus comandados. Jack foi poupado. Os índios o levaram.

     — Ah! Isto explica suas atitudes. É um perfeito selvagem! E o senhor me diz que ele não é um mestiço... Um tipo que viveu no meio dos comanches torna-se igual a eles. Ficam com o mesmo cheiro, cometem a mesma crueldade.

     — Não ele! O Jack foi resgatado por mim. Eu mesmo o encontrei entre os guerreiros de Cão Amarelo. Ele havia completado 22 anos. Levei-o para o Forte Randall. Foi difícil a recuperação. A influência dos peles-vermelhas fora decisiva em seu período de formação. Levou oito anos na companhia deles. Aprendera seus hábitos, submetera-se a seus costumes, falava seus dialetos e assumira seu ódio ao homem branco.

     — Está vendo, coronel? O senhor mesmo admite. Parker é um cão danado que deve ser destruído antes que acabe com todos nós.

     — Não é verdade. Já faz seis anos que ele veio para o nosso convívio. No princípio, repito, foi difícil. Mas a esmerada educação que recebera até inícios da adolescência serviu como base para seu retorno à civilização... dos brancos.

     — Dos brancos? Mas existe outra além da nossa?

     — Existe, Xerife Gorman. Há muita coisa que aprendi com os peles-vermelhas. E existe tanta noção de dignidade entre muitos deles tanto quanto pode haver em igual número entre nós. E Jack, com o tempo, falou muitas vezes a respeito comigo. Ele viu de perto o comportamento índio e também o nosso.

     — O que quer dizer com isso, coronel?

   — É simples. O Jack não ficou convencido de que sempre nos submetemos a princípios de honra.

     — Não me faça rir, coronel. Está me dizendo que um selvagem tem honra? E qual seria? O Parker pode não ser um mestiço, mas ficou ruim da cabeça. Cão Amarelo e seu bando de esfarrapados mataram um grupo de militares, entre os quais se achava o próprio Coronel Parker, pai desse maldito Jack. E ele ainda faz distinções entre nós e os selvagens que o levaram? Foram os comanches que fizeram aquilo tudo no peito e nas costas do Parker, não é mesmo?

     — Jack foi submetido a provas para ser aceito na tribo. Era o único meio que havia para que não fosse tratado com humilhações, servindo de chacota para os índios e de escravo para as mulheres. Ele passou pelos testes mais difíceis. Depois lutou com os melhores guerreiros, os mais fortes. Participou de combates os mais aguerridos... Jack Parker tornou-se o mais vigoroso entre eles. Lutava de mãos limpas, usava arco e flecha com uma perícia incrível, feriu e foi ferido muitas vezes com machadinhas e balas de rifles, revólveres inimigos...

     — Acho que chega, coronel. O senhor está me contando tudo isto para quê? Só faz piorar minha opinião sobre ele. Como posso entender que tenha amizade pelo Jack? Se eu soubesse que ele havia adquirido os malditos costumes dos selvagens...

     — Não se precipite em julgamentos. Jack viveu dentro das normas dos comanches. Da lei observada por eles. Mas eu o ajudei, trouxe-o de volta para nós. Jack teve treinamento militar no Forte Randall. É um exímio atirador. Aprendeu a usar os punhos como um autêntico pugilista. Tornou-se imbatível. É um rastreador inigualável. Passou a confiar em mim, embora tivesse suas dúvidas quanto ao que fazíamos. Foi duro para ele, tanto uma experiência quanto a outra. Jack ficou dividido. Não se sentia um branco de verdade como jamais se aceitou por inteiro na pele de um comanche.

     — Pois eu acho que está enganado, Coronel Morgan. O Parker é um selvagem, um verdadeiro bicho, um animal que só pensa em destruir a todos nós.

     Robards entrou nessa hora. Tinha as feições alteradas, os olhos vermelhos, e era contido inutilmente por Dawson. Este falou:

     — Desculpe, xerife... Mas o Robards quer falar...

     — Falar... Falar o quê? — berrou o xerife, que já estava irritado com o que julgava uma conversa fiada do coronel.

     — Eu soube do que houve — disse Robards, com a voz saindo aos rompantes. — Soube do que fizeram na casa do Kevin! O senhor não tinha o direito... O senhor não podia ter...

     Mais que depressa, o xerife soltou um berro: — Cale-se, imbecil! E saia imediatamente de meu escritório. Depois que o coronel se for, a gente conversa.

     — Não! Não quero mais conversa com o senhor. Robards arrancou raivosamente a insígnia de comissário e atirou-a sobre a mesa. — O Kevin era meu amigo.

     — Era um negro!— emendou o xerife, com igual fúria, aproximando-se de Robards. — Está me ouvindo, idiota? O Kevin era um negro! E tinha ajudado o Parker a se safar!

     O coronel ouvia tudo com atenção, mas quando viu que o xerife ia sacar a arma contra o comissário, resolveu intervir:

     — Vamos ter calma, Xerife Gorman! Se sacar o revólver, terei de impedir. Respeite essa estrela em seu peito.

     O xerife, com a mão direita no cabo da arma, voltou-se para o Coronel Morgan:

     — Fique fora disso, coronel! O senhor manda lá no Forte, mas não dá ordens a um civil. Nesta cidade, mando eu. Em Pussyfoot, sou a lei!

     — Engana-se quando pensa que não posso intervir neste caso. Sou o Comandante de Forte Laramie e tenho poderes de decisão num assunto como este. Quem é Kevin? Responda, comissário.

     — Kevin Lennon — disse Robards — era o homem que vendia porcos para esta cidade. Vivia do outro lado do rio. E vinha aqui toda vez que queriam negociar com ele.

     — Era? Quer me dizer que o homem está morto?

     A essa altura, o Xerife Gorman sentiu que ia escorregar e não vacilou:

     — Kevin Lennon era um negro que ficou no caminho de Parker. Foi um acidente. Nós pedimos que o negro saísse da frente — mentia descaradamente, enquanto Daíwson o olhava espantado, mas sem se atrever a desmenti-lo. — Gritamos várias vezes, mas o negro não nos atendeu. O Parker atirava como um danado e não tivemos escolha, atiramos também. Depois, o maldito fugiu, deixando o negro agonizante a seus pés.

     O coronel balançou a cabeça: — Não me parece coisa do Jack. Ele não atiraria em vão, ainda mais arriscando a vida de outro homem que o ajudava.

     Gritaram da rua: — Xerife Gorman! Xerife... Venha logo! O mestiço entrou de novo na cidade. Está aqui.

     Era o vaqueiro Higgins quem gritara, tendo ao lado Travis e os militares acompanhantes do coronel.

     — O miserável veio ao encontro de sua própria sepultura! — berrou Gorman, apanhando o rifle de cima da mesa.

     Contudo, antes que saísse do escritório, foi contido pela mão férrea do coronel, que disse:

     — Deixe que eu fale com o Jack Parker. Ele confia em mim e me ouvirá.

     O xerife ficou indeciso, enquanto seus comissários ganhavam a rua. Por fim, Gorman concordou:

     — Certo, coronel. Tome a dianteira. Mas, no fim, quero o Parker em minha cadeia.

     O Coronel Morgan não respondeu. Seria perda de tempo discutir o assunto naquela hora. Quando chegaram à rua, ele deu ordens para o Tenente Craig manter a ordem na cidade, seguindo com o xerife para a direção onde diziam que Parker fora visto.

     — Bem no telhado do Hotel Princesa, ao lado da ferraria destruída pelo fogo — esclareceu Heffron ao coronel, caminhando ao lado deste. — O homem é louco! Deviam ter trazido um canhão para liquidar com esse mestiço!

    

     — Pai, o que está havendo agora na rua? — perguntou Susan, espiando pela janela do quarto. — O xerife não pode matar aquele homem.

     — Gorman é terrível! O pior é que ninguém nesta cidade quer ver isto? O que ele fez com o Kevin... O que ele não fará com esse homem que o desafia de tal modo!

     — Jack Parker... É esse o nome dele, não? — Susan ajeitou-se na cadeira onde se sentava com a perna direita ainda inchada devido à mordedura da cobra. — O Dr. Channing disse que se não fosse pelo Parker, eu teria morrido. Ou nas mãos dos assaltantes ou pelo veneno destilado na minha perna.

     — Eu sei, filha — falou O'Connor, inclinando-se e beijando-a na testa. — Sou grato a ele e se todos nesta cidade pensassem melhor, não tratariam esse Parker como um inimigo. Vou sair e ver o que há. Cuidado! Nao fique tão junto da janela. Vou arrastar a sua cadeira para cá.

     O'Connor deixou aberta a porta do quarto, enquanto Susan ficava com a atenção presa no alçapão que havia no teto do corredor. De sua cadeira podia ouvir vagamente o ruído feito no forro da casa. Antes mesmo de seu pai deixá-la sozinha, ela notara o barulho, mas ficara quieta, pois percebera do que se tratava.

     E não se enganara. O alçapão abriu-se vagarosamente. Primeiro, surgiram os pés descalços e morenos..As barras das calças estavam esfiapadas, rasgadas. As pernas ficaram balançando no ar por instantes.

     — Pode saltar — disse Susan. — Estou sozinha. Vamos, venha para cá, Jack, para que eu possa vê-lo.

     Ele saltou, segurando um rifle. O outro vinha agarrado nas costas, assim como um carcás com flechas e o arco montado no ombro direito. Susan observou-o à luz que entrava pela janela. Não pudera evitar uma expressão de susto, ao reparar na figura alta e selvática de Parker. O peito másculo coberto de cicatrizes, a faixa passada na testa, os músculos retesados dos braços e os olhos de animal acuado.

     Parker aproximou-se da cadeira e disse: — Não tem medo que eu a mate?

     — Por que iria me matar depois de ter-se arriscado tanto para salvar a minha vida?

     Aos poucos, a expressão cruel dos olhos negros de Parker se abrandou. A beleza de Susan lhe fez bem. Tudo naquela moça agia de modo a deixá-lo em paz consigo mesmo.

     Aproximou-se da janela justo na hora em que uma multidão chegava ao meio da rua principal. O Coronel Morgan empunhava um megafone e gritava:

     — Jack... Jack Parker, sei que está na cidade e pode me ouvir. Você já causou estragos demais em Pussyfoot e deve entregar-se. Entendeu? É uma ordem minha! Já reconheceu a minha voz, não é mesmo? Sou o coronel Morgan, de Forte Laramie.

     O coronel andava de um lado a outro da rua, com a multidão atenta distribuída pelas calçadas e a própria rua. O xerife parava vez por outra e relanceava Heffron, Travis e os outros a seu lado. Não gostara que o coronel tomasse a iniciativa naquele caso. Sentia-se desprestigiado. E isto o perturbava bastante.

     O coronel voltou a gritar: — Jack, responda! É uma ordem de seu coronel. Você me deve uma resposta ao menos.

     — Não adianta — esbravejou o xerife.

     — Ele não vai responder nunca. Sabe que seria fuzilado, caso desse as caras aqui. E se ainda continua na cidade, ficará escondido.

     — Mas, onde? — perguntou Heffron, que também não continha sua irritação.

     Dentro do quarto de Susan, esta falou:

     — O homem que está chamando por você. Conhece esse coronel muito bem, não é mesmo?

     — Sim, conheço! Era amigo de meu pai. E matou Cão Amarelo, o mesmo chefe comanche que me raptou depois de eliminar todo um acampamento militar, inclusive tirando a vida de meu próprio pai.

     Susan o observava enquanto Parker, levado por um impulso irresistível, contava tudo à moça. Por fim, ele falou:

     — Entende agora? Eu tinha 14 anos e visitava o Forte Randall. Meu pai levou-me com os soldados numa batida de rotina nas proximidades do Missouri.

     — Você tem muitas dúvidas, não é verdade? Teve que conviver com Cão Amarelo, o assassino de seu pai. Submeter-se a seu comando... E quando Cão Amarelo foi morto também...

     — Cão Amarelo me ensinou a matar. O coronel me submeteu ao mesmo aprendizado. É só o que eu sabia fazer... acho que é só o que me resta fazer até que eu mesmo morra.

     — Não fale assim, Jack. Você se libertou dos índios. Libertou-se da disciplina rígida de um Forte militar...

     — Sim, fui cuidar de cavalos, mas sempre surgia um problema e me expulsavam de onde eu estivesse. De um rancho, de uma cidade...

     O Coronel Morgan gritou novamente: — Jack... Responda rápido ou terei que acreditar que você só quer mesmo a destruição desta cidade. Atenda à minha ordem, Jack. Garanto que o protegerei. Você terá um julgamento justo. Ficará sob a proteção do exército!

     — Responda a ele, Jack — disse suavemente Susan. — Nem toda a cidade de Pussyfoot é sua inimiga. Tem pelo menos dois de nós a seu lado. Eu e meu pai.

     Parker fitou-a intensamente. Ao virar-se para a janela, a luz de fora deixou visível parte da cicatriz que quase cortava a sua orelha esquerda. Esperou um pouco antes de decidir-se:

     — Coronel Morgan! Estou aqui. Ouvi tudo o que disse.

     A atenção da multidão voltou-se para a casa de O'Connor, no alto de sua mercearia. O coronel apertou o passo até situar-se sob a janela do quarto de Susan.

     — Ele está na casa do O'Connor! — berrou Heffron. — Escondeu-se por lá.

     — O'Connor, seu maldito irlandês! — bradou o xerife. — Você o protege depois do que ele fez?

     — Silêncio! — ordenou o coronel, fazendo sinal ao Tenente Craig, que logo tratou de dispor seus três comandados de modo a disciplinar todo o pessoal ali na rua.

     O'Connor, entretanto, não ficou calado:

     — Eu não sabia que ele tinha entrado em minha casa. Vou para junto de minha filha!

     — Fique onde está! — voltou a ordenar o coronel. Em seguida, dirigiu-se a Parker:

     — Jack, a moça está aí ao seu lado? Tem uma moça com você, não é mesmo?

     Dentro do quarto, Susan fez um gesto para Parker, e ela mesma respondeu, depois que sua cadeira foi arrastada para perto da janela:

     — Estou bern, coronel! Sou Susan O'Connor e nada tenho a temer do homem que me salvou a vida, arriscando-se a morrer por mim!

     — Filha! — bradou O'Connor, muito aflito. — Você está mesmo bem?

     — Estou, pai. Fique descansado.

     O Coronel Morgan voltou a gritar: — Jack, saia já dessa casa e apresente-se a mim. Tem minha palavra de que ficará sob minha custódia.

     Susan virou-se para Jack Parker: — Vamos descer juntos. Não posso andar ainda por causa de minha perna. Me leve no colo, Jack.

     Ele custou a decidir-se. Então, pegou a moça nos braços como se tivesse carregando algo leve como um travesseiro de plumas.

     Na rua, Gorman impacientou-se: — Ele não vai descer! O maldito não está satisfeito com o que fez. Quer arrasar com a cidade. Liquidar com todos nós!

     — Não com todos nós — emendou O'Connor. — Acho que ele ficaria satisfeito em matá-lo, Gorman.

     O xerife saltou para cima de O'Connor, agarrando-o ferozmente pelo pescoço:

     — Repita isso, desgraçado! O que está insinuando, hein?

     Sem perda de tempo, o coronel esticou o braço e arrancou o xerife de cima do merceeiro.

     — Fiquem quietos! Mais um distúrbio desses e eu mesmo os levo presos para o Forte. — O coronel era um homem muito forte e não teve dificuldade em segurar o xerife. Além do que, seu tom vigoroso de voz impunha respeito.

     — Olhem! — gritou Pryor. —- Ele vem vindo... carregando a Susan.

     O'Connor num instante superou o sufoco que enfrentara nas mãos do xerife e precipitou-se para o alpendre da mercearia.

     — Filha! Você está bem, Susan?

     — Calma, pai. Deixe o Jack me sentar naquela cadeira. Não se preocupe comigo. Estou muito bem.

     O'Connor afastou-se ligeiramente para que Parker acomodasse a moça numa cadeira de palha junto à entrada da mercearia. A figura daquele homem causava profunda impressão. Seu silêncio expressando forte dignidade, seu olhar altivo e toda a força que emanava dos menores gestos.

     A multidão aproximou-se do alpendre. Todos olhavam fixamente para Parker, quando este se voltou e encarou o coronel.

     — Estou à sua disposição, meu coronel.

     Os dois homens se entreolharam com inegável simpatia. Em meio a um silêncio expectante, ouviu-se a voz do xerife:

     — O bastardo irá para a cadeia. A minha cadeia! Ele me deve isto por tudo o que fez nesta cidade.

     — Ele não lhe deve nada — emendou o Coronel Morgan, em tom firme. — Se tiver alguma queixa, leve-a a meu comando no Forte Laramie.

     — Queixa? Se eu tenho queixas? Droga! Todo mundo em Pussyfoot tem alguma coisa contra esse mestiço. — O xerife voltou-se para a multidão. Chamou por alguns nomes: — Heffron, Travis, Pryor, Freeman... Por que ficaram, calados? Falem também. Digam alguma coisa contra, o filho da mãe! Ele queimou a ferraria de vocês...

     Fryor fez um gesto com os ombros, atalhando: — Ora, deixe para lá, Gorman. O Coronel Morgan se encarregará de julgá-lo.

     — Não é possível que esteja falando assim... Você, Pryor, se acovardando desse jeito! Fale você, Freeman! Vai deixar tudo no prejuízo? O mestiço não pode sair daqui. É nosso prisioneiro.

     Heffron interveio: — Ninguém aqui está se acovardando, Gorman. Apenas consideramos justos os argumentos do coronel.

     Sem se deixar convencer, o xerife mentiu desesperadamente: — Mas o Parker matou o Kevin. Ele invadiu a cabana do negro e acabou por matá-lo.

     — Não — voltou a atalhar Heffron. — Ele não matou o negro. Não foi ele.

     Gorman recuou, olhando apalermado para o armazeneiro: — Nesse caso, quem matou o negro?

     — Você sabe — disse Lester. — E chegou a hora de esclarecermos alguns pontos. Não podemos ficar mais dependentes de suas ordens absurdas, Gorman. Claro que também somos culpados. Eu, o Heffron, o Travis... Alguns de nós erramos igualmente. Erramos por abusos enquanto a maioria da cidade se omitia.

     Travis e Freeman aproximaram-se do xerife. O rancheiro falou:

     — Sabe que somos amigos de longa data. Deixe que o coronel leve o prisioneiro. Acho que chegou a hora de enfrentarmos a verdade. Que o mestiço seja conduzido para o Forte Laramie.

     — E assim será — disse o coronel. — É bom que tomem juízo. E, para começar, não chamem mais o Parker de mestiço. Ele tem nome.

     O coronel fez sinal para o Tenente Craig e os três soldados logo se colocavam ao lado de Morgan, conduzindo suas montarias pelas rédeas.

     A multidão abriu caminho para que os militares passassem depois que alguém trouxe a montaria de Parker. Todos em volta agiam respeitosamente.

     — Jack Parker será julgado como deve, mas a cidade também terá de responder por crime de responsabilidade em nome de alguns de seus cidadãos, sobretudo na figura de sua autoridade maior, que é o Xerife Gorman.

     Foi nessa hora que todos se deram conta da ausência do representante da lei de Pussyfoot. E foi Susan quem deu o alarma:

     — O xerife... O xerife vai tentar matá-lo, Jack! Cuidado!

     Todos se voltaram na direção da cadeia municipal. Foi quando viram que Gorman aproximava-se empunhando uma foice, o rosto completamente transtornado pelo ódio e a frustração de ver um prisioneiro como Parker escorregar-lhe das mãos.

     Em meio a uma gritaria tremenda, correria para todos os lados, a multidão dispersou-se. No meio da rua ficaram apenas os militares e Parker, pois até Heffron e Travis tinham se afastado, impressionados pela atitude do xerife.

     — Vou matar você, mestiço — rosnou Gorman. — Vou abrir seu maldito crânio como fiz com o de Kevin!

     O coronel interveio: — Pare onde está, xerife! Pare ou mandarei meus homens atirarem.

     A ameaça não surtiu efeito. O xerife continuou avançando na direção de Parker, que fez um gesto para Morgan, dizendo:

     — Deixe-o comigo. Tudo tinha mesmo que acabar assim. Entre mim e esse assassino!

     Subitamente, o xerife soltou um berro, erguendo bem alto a foice, com as duas mãos, e lançando-se para cima de Parker. Ouviu-se um grito aflito do alpendre. Era Susan, que tentara levantar-se e fora contida por seu pai.

     Então, ante uma assistência temerosa, mantida à distância, Parker só fez desviar o corpo e deixar que o xerife se projetasse mais à frente, com a foice em punho. Levado pelo impulso, sem ter onde apoiar-se, o xerife foi ao chão espalhafatosamente.

     Antes que ele se recuperasse, já Parker saltava em cima dele e o imobilizava, usando apenas a mão esquerda enquanto que a direita apropriava-se da foice.

     — Quer fazer comigo o que fez com o Kevin? Pois vou mostrar qual será o crânio que ficará aberto com esta foice.

    Exclamações se sucederam pela rua. O coronel gritou: — Pare com isso, Parker! É uma ordem! Faça uma coisa dessas e eu mesmo apertarei o laço em volta de seu pescoço!

     Por instantes, Parker voltou o rosto irado, desfigurado, na direção do militar. Contudo, não era a figura de Morgan que Parker estava vendo. O olhar foi mais longe. Fixou-se no alto do alpendre, onde Susan, agora de pé e apoiada a seu pai, olhava aturdida para o que se passava no meio da rua.

     Quando se concentrou em Parker, ela levou as mãos à boca, abafando um grito. Em seguida,com as lágrimas escorrendo pelas faces pálidas, ela falou em tom emocionado:

     — Não, Jack, não faça isso! Não o mate! Você não é um assassino! Deixe que o coronel julgue o Xerife Gorman.

     Por segundos, quando sobreveio o mais profundo silêncio, Parker mostrou-se indeciso. Aos poucos, entretanto, ele foi se recompondo. As feições se distenderam. Parker acalmou-se. Largou a foice de lado.

     A uma ordem do Coronel Morgan, o Xerife Gorman foi conduzido para uma cela. Dawson, por ser o auxiliar mais velho e experiente tomou interinamente o lugar de xerife, enquanto Robards tornava a espetar sua estrela de comissário no peito.

     Os militares eram apenas um ponto de referência na estrada, formado pelas nuvens de poeira levantadas pelos cascos de suas montarias, mas Susan permanecia no alpendre, acompanhando tudo com um olhar saudoso. Em seus ouvidos soavam ainda as últimas palavras do coronel:

     — Srta. O'Connor, isto não é o fim. Fique boa da perna para quando o Jack voltar.

 

                                                                                Jack Snow  

 

                      

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