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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASAMENTO / Dallas Schulze
O CASAMENTO / Dallas Schulze

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Não sei como alguém pode vi­ver aqui, cercado por tanto nada. — Sylvie Lassiter ajeitou-se no banco de couro creme do carro esportivo e franziu o cenho à pradaria de arbustos infinita através do pára-brisa. — Tudo é tão marrom... não cresce nada verde neste Estado?

— Não chove o bastante no Wyoming para haver verde. — Duncan tirou o olhar da faixa escura de asfalto só o bastante para sorrir à esposa. — Não estamos na Nova Inglaterra, sabe.

— Isso é perfeitamente óbvio. Impaciente, Sylvie inclinou-se para a frente e ligou o rádio. O chiado de ausência de ondas moduladas tomou conta do carro enquanto ten­tava sintonizar alguma estação. Detinha-se ao ouvir alguma voz, mas o sinal era fraco e im­preciso. Após algum tempo, desligou o aparelho e se recostou novamente.

— Não tem nem rádio! Não é preciso chuva para se ouvir música, é?

— Não, mas precisa de gente para ouvir e o Wyoming não é muito populoso.

— Entendo por que — resmungou ela. — Tudo é tão monótono, feio e tão... vazio. — Estremeceu, como se sentisse frio ante a vastidão da terra.

— Na verdade, é um bom lugar para se passar a infância — afirmou Duncan, lançando um olhar de repreensão à esposa. — Cavalgar, pes­car, todo este espaço aberto... Eu adorava isto aqui quando era menino.

— Oh. — Sylvie olhou por sobre o ombro para o ocupante do banco traseiro. — Não dê impor­tância ao que eu disse, Ryan. Seu pai tem razão. Este é mesmo um lugar maravilhoso para um menino de dez anos. Sei que vai adorar isto aqui!

— Sim. Claro. — O filho deu de ombros e manteve o olhar na paisagem.

— Vai se divertir muito passando o verão com seu avô na fazenda... — comentou Sylvie, sem reparar na indiferença do filho. — Ora, espero que seja já um caubói completo quando o virmos da próxima vez!

 

 

 

 

 

O marido riu, mas o filho nem a olhou. Ela franziu o cenho. Não estava acostumada a ser ignorada. Filha única, têmporã de pais idosos, crescera como o centro das atenções. Abençoada com uma beleza incomum e determinação im­placável camuflada por tato com as pessoas, Syl­vie geralmente conseguia tudo o que queria com um belo sorriso e uma palavra lisonjeira. Para completar, um beicinho e algumas lágrimas der­reteriam o coração mais sólido. Só raramente alguém notava a determinação ferrenha por trás do sorriso charmoso. Todo mundo adorava Sylvie Marie Winthrup Lassiter. Esse era seu trabalho.

Até pouco tempo atrás, ela gozara de devoção completa e irrestrita por parte do filho, o que sem­pre considerara a melhor coisa na maternidade. Mas algo mudara no último ano. Quando olhava para ela, agora, Ryan demonstrava um certo ci­nismo que a perturbava. Não importava o quanto o bajulasse, não conseguia romper a barreira fria que ele erguera. Era até irritante. Não gostava de sentir que o próprio filho a julgava e conside­rava insatisfatória de alguma forma.

— Seu pai era caubói quando o conheci, sabia? — comentou Sylvie, mas o menino não respondeu.

— Ele era tão alto e estava tão atraente com suas botas e chapéu de caubói... — Suspirou e lançou um olhar coquete a Duncan. — Ele me arrebatou!

— Literalmente. —Duncan riu. — Não estava olhando para onde ia e praticamente caí em cima de você.

— Eu cuidei para estar no seu caminho. — Já haviam contado a história de seu primeiro encon­tro tantas vezes que o diálogo mais parecia um jogral. — Reconheço uma coisa boa quando a vejo.

— Sorte minha. — Duncan sorriu, carinhoso, e tocou na perna da esposa.

— Minha também. — Sylvie capturou a mão do marido e levou-a ao rosto, mantendo-a ali por um segundo. Já sem sorrir, olhou de novo para o menino silencioso no banco de trás. — Sei que vai se divertir muito neste verão, Ryan.

Sempre olhando pela janela, Ryan deu de om­bros. Sylvie contraiu os lábios. Honestamente, não entendia o garoto. Fora um bebê tão encantador e uma criança doce e afável. Só nos últimos tem­pos, tomara-se difícil. Às vezes, agia como se não gostasse dela, o que era ridículo. Irritada, indagou:

— Não está animado em passar o verão na fazenda do seu avô?

Ryan a encarou, o olhar frio e muito mais maduro que sua idade.

— Isso importa?

— Claro que importa. — Sylvie respirou fundo e adotou um tom mais brando. — Claro que importa. Você sabe que seu pai e eu só queremos o melhor para você.

O menino deu de ombros mais uma vez e se voltou para a janela. Sylvie quase exigiu uma resposta, mas se deteve. Algo lhe dizia que não ia gostar da réplica, se o pressionasse. Aborre­cida, virou-se para a frente.

Realmente, ele estava impossível! Se queria ficar emburrado, que ficasse. Afinal, depois de todo o trabalho que ela tivera para combinar essa visita com o avô, Ryan podia, no mínimo, demonstrar algum entusiasmo. Talvez até um pouco de gratidão. Foram semanas tentando convencer Duncan a entrar em contato com o pai, pois os dois haviam brigado logo após o casamento e não se falavam desde então. Não fora nada fácil convencer o marido a romper uma década de silêncio.

Sylvie inconscientemente fez beicinho ao con­siderar o esforço empregado para arranjar aque­la visita. Podia simplesmente ter mandado o filho para um internato, a exemplo de muitas de suas amigas. Aliás, teria feito isso, se Duncan não tivesse observado que sairia muito caro manter o filho numa boa escola. Agora, lá estava ela, enfrentando uma estrada sem fim naquele Estado miserável, tudo por causa do filho, e ele ainda agia como se lhe infligissem algum mal. Bem, ela com certeza não gastaria mais saliva tentando animá-lo!

— Estamos rodando há horas — resmungou, inconformada. — Onde fica essa bendita fazenda?

— Não falta muito agora. — Duncan tentou afagar-lhe o braço, mas ela se esquivou, irritada. Não queria ser acalmada.

— Odeio este lugar! Não sei porque fazer todo este trajeto. Podíamos ter providenciado para que fossem buscar Ryan em Denver.

— Meu pai disse para levarmos Ryan pes­soalmente, lembra-se?

Lembrar-se? Claro que se lembrava. O sogro exigira que eles levassem o menino pessoalmen­te. Sylvie franziu o cenho ao considerar o des­propósito. Que direito o velho tinha de exigir seu precioso tempo?

— Podíamos já estar tomando sol no iate de Dick e Jilly — comentou, irritada.

— Vamos encontrá-los em Aruba em poucos dias — amenizou Duncan.

— Bem, não sei por que temos que desperdiçar todo este tempo. Mal posso esperar para voltar para a civilização. Não quero gastar nem um minuto a mais neste lugar esquecido. Assim que deixarmos Ryan, quero pegar a estrada de volta.

— Meu pai nos convidou para passar a noite lá — observou Duncan. — Você não quer voltar imediatamente a Denver, não é?

— Sim, quero. — Sylvie olhou raivosa para o marido. — Não é como se houvesse amor per­dido entre você e seu pai. Quero dizer, você não vai querer se sentar com ele e recordar os velhos tempos. Você praticamente me disse que o odeia.

— Eu nunca disse isso! — protestou Duncan. Olhou inquieto pelo retrovisor, ciente de que Ryan ouvia a conversa. — Nós não nos dávamos muito bem, mas não o odeio.

— Que seja. — Sylvie procurou o pó compacto na bolsa, abriu o estojo e se mirou no espelho diminuto. Satisfeita por parecer impecável, apesar das dificuldades enfrentadas, fechou o estojo, sus­pirou e sorriu sedutora para o marido. — De qual­quer forma, quero voltar ao mundo real o mais rápido possível. É tão aborrecido saber que Dick e Jill tiveram que começar a viagem sem nós...

— Querida, estamos bem longe de...

Ryan desligou-se da conversa. Já sabia como acabaria. A mãe conseguiria o que queria. Sem­pre conseguia. O pai argumentaria um pouco, mas acabaria desistindo e fazendo a vontade dela. Era sempre assim.

Contemplando a vasta pradaria, mantinha o rosto inexpressivo. Não importava o quanto a mãe lhe dissesse que seria fantástico passar o verão numa fazenda de verdade, sabia que es­tavam os dois ansiosos para se livrar dele e se juntar aos amigos em Aruba. Desta vez, em­purravam-no para o avô, quando nas outras fi­cara com amigos ou parentes, desde que se co­nhecia por gente. Seis meses com a prima de Sylvie em Milwaukee, três semanas com outra prima que morava na Flórida, dois meses vendo televisão com um casal de tios idosos em Phoenix, quase quatro meses com uma ex-colega de universidade que ameaçara entregá-lo ao servi­ço social se os pais não voltassem da Europa para pegá-lo. Mal se lembrava de todos os nomes e rostos que se sucederam ao longo dos anos.

Cinicamente, imaginou se esse avô desconheci­do teria idéia da encrenca em que se metia. Sylvie e Duncan podiam resolver ir para Paris no outono, esquecidos de resgatar o filho no Wyoming. Dali a algumas semanas, receberia ma telefonema da mãe, fingindo choro, dizendo que sentiam sua fal­ta, mas que lhes surgira uma oportunidade fabu­losa, como um passeio pelas ilhas gregas no iate de um amigo, ou uma temporada de esqui em Saint Moritz, ou uma viagem para o sul da França. A desculpa mudava, mas o significado era o mes­mo, não voltariam na data prometida e o infeliz que se prontificara a acolhê-lo teria que agüentar mais alguns dias ou semanas.

Percebeu o punho cerrado e tentou relaxar. Pro­metera-se havia muito a não se importar mais com os pais. Eles não o queriam... percebera isso anos antes. Não sabia por que não o amavam como os outros pais amavam os filhos. Mas não ligava. Não deixaria que isso afetasse sua vida.

— Esta é a estrada que leva à fazenda — anunciou Duncan, por fim.

O carro esportivo diminuiu a velocidade na via estreita, os pneus quase encostando-se à cerca que confinava o gado, levantando poeira.

Além da cerca de arame farpado que ladeava a estrada, o gado de cabeça branca se espalhava pela pradaria. Alguns animais pastavam, outros deitavam-se, uns poucos se voltavam para ob­servar o automóvel luxuoso, mas sem muito in­teresse. Ao longe, um peão tomava conta dos animais, montado em seu cavalo. Embora já houvesse admirado a cena em inúmeros filmes de faroeste pela televisão; Ryan sentiu curiosi­dade. A terra empoeirada que parecia vazia para a mãe parecia bela e estranhamente familiar para ele. Gostaria de abrir a janela para sentir o ar, mas Sylvie com certeza se irritaria com o vento desarrumando seus cabelos. Contentou-se em olhar, tentando absorver o máximo de ima­gens através do vidro fumê.

Sentia uma esperança nascer dentro do peito. Talvez pertencesse àquele lugar. Talvez ali en­contrasse sua casa.

— Faz tempo. — A porta de tela se fechou e Sara McIntyre pôs-se ao lado do patrão, junto ao corrimão da varanda.

— Dez anos — lembrou-se Nathan Lassiter, atento à nuvem de poeira que se erguia ao longe na estrada principal.

Era um homem alto, magro e de ombros lar­gos, um caubói típico. Aos cinqüenta e dois anos, apresentava alguns fios prateados entre os ca­belos pretos, mas os olhos azuis continuavam claros e penetrantes. Representava a quarta ge­ração da família Lassiter na fazenda SL e Sara sabia o quanto se abalara quando o filho se re­cusara a seguir a tradição, de modo que não deveria depositar muita esperança no neto ain­da por conhecer.

— Desde o enterro de Mary Beth — especi­ficou ela, fitando o mesmo ponto na estrada.

Nathan sentiu um aperto no peito ao ouvir o nome da esposa. Após todos aqueles anos, às vezes, a dor da perda ainda ressurgia forte. Fechou o punho no corrimão de madeira. Pensara muito em Mary Beth desde o telefonema de Duncan.

Os dois haviam brigado poucas horas após o enterro. E não fora a primeira vez... Enfrenta­vam-se desde que Duncan aprendera a falar, contudo, sem Mary Beth para apartá-los, tro­caram palavras ásperas demais para esquecer. Duncan partira naquela noite mesmo e nunca mais se falaram, até a semana anterior. Duncan voltava para casa, finalmente, trazendo o filho.

Meu neto, pensou Nathan. Nosso neto. Uma segunda chance. Uma parte do futuro.

— Vocês dois nunca se deram bem — comen­tou Sara, talvez pensando no mesmo.

— Ele é um cabeça-dura.

— E você é tão fácil de se conviver... — iro­nizou ela.

A esposa do capataz conhecia o patrão tempo suficiente para dizer o que bem entendia. Assu­mira as tarefas domésticas quando após a morte da mulher dele, primeiro como um favor, depois, devidamente empregada, porém, tendo conhecido os Lassiter dez anos antes da morte de Mary Beth, sabia que a culpa não era só de Duncan.

— Talvez não, mas pelo menos nunca fiquei rodando o mundo feito cigano. Não é possível criar um filho assim.

— Algumas pessoas gostam de viajar — lem­brou Sara, condescendente.

— O tempo todo? Quero saber da criação do meu neto. Um menino precisa de raízes. Precisa pertencer a um lugar. De uma casa. Que refe­rência tem esse menino se nunca ficam num mesmo lugar por mais de alguns meses?

Nathan acompanhara os movimentos de Dun­can ao longo dos anos, principalmente após o nascimento de Ryan.

— Alguns dizem que o lar é um estado de espírito.

— Talvez, mas aposto que é mais fácil se sin­tonizar se você pára num lugar.

O carro desacelerou ao chegar ao pátio da fa­zenda. Nathan fez carranca ao ver o automóvel luxuoso aproximando-se pela trilha batida.

— Veículo inútil...

— Mas é bonito. — Sara estreitou o olhar quando o carro empoeirado parou a poucos me­tros da casa. — Com certeza, não foi feito para transportar feno, nem serviria para socorrer um animal doente, mas é muito bonito.

— Inútil — repetiu Nathan, e Sara imaginou se o patrão ainda se referia ao automóvel, ou à dondoca que saltava naquele instante.

À primeira vista, Sylvie Lassiter dava a im­pressão de ser uma mulher pequena. Magra, parecia tão frágil quanto uma peça de porcelana, mas tinha um metro e oitenta de altura. Esguia como um salgueiro, exibia cintura fina, seios pe­quenos e pernas muito, muito longas.

Duncan a desposara em Las Vegas uma se­mana antes da morte de Mary Beth. Sara lem­brava-se bem de Sylvie no funeral, de cabelos loi­ros, feições delicadas e conjuntinho de seda preto singular, de alta-costura, com saia de comprimen­to só até o meio da coxa. Era difícil esquecer-se de Sylvie, ainda mais após ela ter reclamado, ao lado da sepultura, que sua roupa nova ficara en­lameada. Os demais parentes, desconhecendo o nome do estilista, concluíram que ela se referia aos sapatos de salto de dez centímetros.

Desta vez, ela trajava calça jeans preta en­fiada em botas de couro preto de salto bem alto e blusa de seda azul-turquesa com botões dou­rados. Sara imaginou se essa seria a concepção de Sylvie de moda Country, duvidando de que alguém conseguiria montar num cavalo com aquela calça justa.

— Olá! — Sylvie sorriu e acenou ao vê-los.

Nathan emitiu um som grave qualquer e le­vantou um canto da boca. Sara acenou de volta com mais entusiasmo do que sentia.

— Podia ao menos tentar ser civilizada — repreendeu Sara, baixinho.

Mas Nathan nem ouvia, concentrado no me­nino que saía do carro. Era alto para a idade e magricela, mas já apresentava ombros largos, sugerindo que seria um homem forte em poucos anos. Os cabelos eram tão escuros quanto os da mãe eram claros. Castanho-escuros, com refle­xos avermelhados onde o sol incidia... Cor de mogno, diria Mary Beth.

Sentindo-se observado, Ryan voltou-se para a casa da fazenda e ergueu o queixo, defensivo e desafiador ao mesmo tempo. Seu rosto ainda apresentava a suavidade da infância, mas já com uma leve mostra do adulto que seria. Tra­tava-se de um rosto familiar, que Nathan co­nhecera muito tempo atrás.

Suspirou ao relembrar o passado. Por alguns segundos, viu um outro menino parado ali, de queixo erguido e olhar atento.

O som da porta do carro se fechando trouxe-o de volta ao presente. Com esforço, desviou o olhar do neto e encarou o filho. Encontrou mais um pouco de atitude defensiva e desafiadora. Sentiu um pouco de arrependimento e um certo cansaço. As coisas nunca mudariam?

Mas o passado já se fora e era tarde demais para lamentar. Os velhos conflitos com Duncan não importavam mais. Interessava-se pelo fu­turo. A esperança no futuro motivou-o a descer da varanda e saudar o filho.

Com a ponta do dedo, Ryan empurrava uma migalha de biscoito pela borda do prato, olhando de soslaio para a mulher que fatiava legumes junto ao balcão. Desviou o olhar quando ela se moveu. Sara McIntyre, cozinheira e lavadeira, devia ser a caseira do avô. Alguns amigos de seus pais tinham caseiras, mas nenhuma delas se parecia com aquela mulher. Era quase tão alta quanto sua mãe, mas tinha formas mais generosas. Prendia os cabelos pretos numa tran­ça que ia quase até sua cintura. A pele apre­sentava um tom acobreado, porém não devido a horas de exposição ao sol numa espreguiça­deira à beira da piscina. Usava calça jeans e camisa xadrez azul.

— Quer outro refrigerante? — indagou ela, sorrindo.

— Não, obrigado. — A verdade era que os dois biscoitos que comera não lhe fizeram muito bem.

— Se quiser, tem biscoitos de aveia naquele pote, no balcão.

— Prefiro os de chocolate, obrigado, só que não estou com fome.

Sara também tinha um filho de dez anos, e, pelo que sabia, Tucker nunca relacionara bis­coitos de chocolate a fome, mas não comentou nada. Podia apostar que a falta de interesse de Ryan tinha mais a ver com nervosismo do que com qualquer outra coisa.

— Eles estão conversando sobre o que vão fazer comigo, não estão? — O menino moveu a cabeça na direção do escritório, aonde Nathan conduzira seus pais logo após a chegada.

— Estão conversando sobre a sua estada aqui — confirmou Sara, vendo o menino tenso, em­bora tentasse disfarçar. — Seu avô quer que você fique aqui.

— Será? — Era uma indagação, mas de tom cínico, devido a um descrédito evidente.

Sara imaginou o que se passaria pela cabeça infantil, mas era cedo demais para extrair res­postas. Seu próprio filho, Tucker, era um livro aberto, tranqüilo e simples. Ryan apresentava uma couraça bem espessa.

Ryan levantou-se e foi até a porta dos fundos, olhando através da porta de tela. O horizonte se preenchia todo com o volume recortado das mon­tanhas Rochosas. Sentiu vontade de abrir a porta e correr naquela direção. Se pudesse correr rápido e longe o bastante, deixaria para trás a incerteza que lhe irritava o estômago. Não teria mais que imaginar por que os pais não o queriam, nem se preocupar com seu destino quando chegasse o momento em que eles não encontrariam mais ninguém disposto a hospedá-lo.

Paralisado por uma dor no peito, limitou-se a contemplar as montanhas. Estava tão cansado de ficar sozinho...

— Vou sentir tanto a sua falta, meu bem. — Sylvie ajoelhou-se e abraçou, ignorando a rigidez do corpinho de dez anos.

Despediam-se no pátio diante da casa da fa­zenda, Duncan, Sylvie e Ryan. Nathan obser­vava afastado, aumentando a distância antes mesmo que o casal fosse embora. Haviam che­gado menos de uma hora antes, mas não la­mentava a partida. Chegara a acalentar uma esperança de que o tempo tivesse diminuído as diferenças entre ele e seu filho, mas logo perdera a ilusão. Qualquer afinidade que houvesse exis­tido entre pai e filho desaparecera por completo. Não conhecia o homem no qual Duncan se trans­formara e achava que, mesmo se conhecesse, não gostaria dele.

Convidara-os a pernoitar na fazenda apenas por cortesia e, ante a recusa, não insistira. Era tarde demais... anos de atraso... para reconstruir as pontes que ele e Duncan haviam demolido, porém, conseguira o que queria. Fechara um acordo com o filho. Ryan poderia ficar na fa­zenda permanentemente, desde que se adaptas­se à vida no campo. Impusera a condição, pois não forçaria o menino a ficar. Aquela lição, já aprendera: não se podia obrigar ninguém a amar a terra.

Sylvie protestara, afirmando não poder abrir mão do filho. Nathan chegou a pensar que jul­gara a fútil nora erroneamente, mas sua dúvida se dissipou ante a origem da preocupação dela. O que as pessoas vão dizer?, questionara, a testa franzida de preocupação. Duncan ao menos enrubescera, baixando o olhar, antes de persuadir a esposa a concordar com o arranjo. Nathan quis acreditar que Duncan considerava o que seria melhor para o filho.

Observando-os agora, imaginava por que o fi­lho escolhera se casar com Sylvie. Era uma mu­lher bonita. Não podia negar. Só que não tinha força interior, não tinha coração. Passava a vida encenando, sem nada no íntimo que a tomasse verdadeira. Viu a nora pressionar um beijo no rosto do menino, muito tenso, mas ela não pa­recia notar ou, simplesmente, não se importava.

— Não suporto ter que deixá-lo — declarou Syl­vie, afastando-se, os belos olhos azuis marejados.

Ryan desvencilhou-se e recuou um passo. De­testava quando a mãe fingia se importar com ele, como se quisesse ficar com ele e não pudesse, Queria gritar para ela que não estaria partindo para outra viagem estúpida, se realmente se importasse com o filho. Mas não disse nada. Quando pequeno, costumara implorar para que não o deixassem, mas isso nunca fez a menor diferença. Até que, um dia, prometeu a si mesmo que nunca mais pediria aos pais que ficassem. Não sabia por que não o queriam, mas decidiu que não os queria também.

— Vai sentir minha falta? — indagou Sylvie, enternecida. Como o menino não respondia, fez o lábio inferior tremer, seu jeito infalível de ob­ter o que queria. — Não vai sentir minha falta?

Olhando para o chão, Ryan deu de ombros.

— Sim. Claro.

— Diga para a mamãe que vai sentir falta — pressionou ela, uma rainha exigindo home­nagens dos súditos.

Ryan forçou os lábios, retendo a resposta. En­fiou as mãos nos bolso e olhou para além da figura ajoelhada da mãe, para um grande cavalo cinza no curral que parecia observá-los. Sentiu um aperto no peito. Queria estar montado na­quele cavalo, galopando para bem longe dali.

— Ryan... — Havia irritação na voz de Sylvie.

— Ele não vai ter tempo de sentir nossa falta. — Duncan pousou a mão no ombro da esposa e ela se levantou. Olhou para o pai e depois para o filho. O sorriso saiu um pouco largo de­mais e a voz, emotiva demais. — Há tanto a fazer aqui que nem vai perceber que já fomos.

Ryan ergueu o olhar e encarou o pai.

— Vocês sempre vão, qual é a diferença? — questionou, friamente.

Seguiu-se um momento de silêncio constran­gedor. Duncan enrubesceu, algo próximo à dor brilhou em seu olhar. Ao mesmo tempo, o rosto bonito de Sylvie deformava-se de raiva. Ela quis falar, o marido lhe apertou o braço, detendo-a.

Nathan imaginou se Duncan queria proteger a esposa ou o filho. De qualquer forma, estava na hora de interromper a cena. Aproximando-se, pousou a mão no ombro de Ryan e imediata­mente sentiu a tensão dos músculos.

— É melhor pegarem a estrada se pretendem chegar a Cheyenne à noite. É um bom percurso.

— Sim, tem razão. — Duncan parecia grato com a intervenção, mas não havia gratidão na expressão de Sylvie.

— Vamos embora — decidiu ela. — Mal posso esperar para sair desse lugar perdido no mapa! — A passos largos, seguiu para o carro sem olhar para o filho a quem "não suportava deixar" para trás.

Duncan hesitou um pouco mais, a expressão insegura diante do menino. Ryan aguardava im­passível. Sylvie fechou a porta do carro com tanta força que o som ecoou entre as montanhas que assomavam atrás da casa da fazenda. Foi como um sinal para Duncan Se ele tinha dúvidas, co­locou-as de lado. Sorriu para o filho sem vê-lo realmente, pois já pensava em outras coisas.

— Juízo e divirta-se! — Com um aceno, seguiu para o carro.

Ryan não disse nada enquanto o pai mano­brava o carro esportivo, transpondo o portão. Tenso, permanecia imóvel, a expressão despro­vida de qualquer emoção. Só se mexeu quando a poeira subiu, engolfando o automóvel. Afas­tando-se um passo do avô, encarou-o, o queixo erguido de forma desafiadora.

— Eles não vão voltar na data em que pro­meteram — informou, desafiando Nathan a dis­cordar. — Eles nunca voltam.

— Não? — O avô deu de ombros. — Então, acho que terá que ficar aqui por mais tempo.

— Não vão lhe mandar dinheiro, tampouco. — Ryan despejava as palavras como um duelista lançando a luva. — Mesmo que tenham prome­tido. Eles nunca pagam às pessoas que tomam conta de mim.

— Eu não quero dinheiro — replicou Nathan, calmamente. Ante a expressão confusa do neto, de­cidiu jogar as cartas na mesa. Não planejara revelar a verdade tão cedo, aguardando que o menino se acostumasse à vida na fazenda. Mas talvez fosse melhor assim. Que recebesse a notícia e, então, fosse ruminar seus pensamentos sozinho. Encarou o neto. — Quero que fique aqui comigo por quanto tempo quiser. Permanentemente, se gostar daqui.

— Permanentemente? — Ryan abandonou a atitude indiferente. — Quer dizer... morar aqui para sempre?

— Por quanto tempo quiser. — O menino pa­recia incrédulo e desconfiado, mas Nathan sabia que não adiantava tentar convencê-lo. Imaginava que o menino não dava muito valor a promessas.

— Por quê?

Pareceu a Nathan que havia uma vida de res­sentimentos na pergunta rude. Engoliu em seco para desfazer o nó na garganta.

— Você é meu neto. Esta é a sua casa, se quiser que seja.

Ryan encarou-o confuso. Algo nele queria acreditar naquele homem, ao mesmo tempo que rechaçava a idéia. A experiência lhe ensinara que os adultos eram melhores em fazer promes­sas do que em cumpri-las. Era fácil para o avô dizer que o queria na fazenda para sempre, mas ele mudaria de idéia após algum tempo. Logo, estaria pensando numa maneira de se livrar do hóspede incômodo. Logo estaria contando os dias para que Duncan e Sylvie voltasse para buscar o filho. Era sempre assim.

Ryan desviou o olhar e deu de ombros, achan­do tudo irrelevante.

— Que seja.      

Nathan percebeu que o neto erguia muros a seu redor, mas não se desencorajou. Por um mi­nuto, estiveram próximos. Com o tempo, espe­rava que a amizade se consolidasse. Não se ga­nhava a confiança de uma pessoa num instante. Daria espaço ao menino e deixaria que o tempo lhe provasse que dizia a verdade. A terra... e a vida... falavam por si mesmas, àqueles dispostos a escutar.

 

                           Vinte anos depois

— Então, eu disse a Davis que, se não quisesse quebrar a cara, era melhor ele pensar rápido e se desculpar porque eu não ia ficar ali ouvindo-o falar mal de uma moça como Belinda. Aí, Davis me disse...

Ryan remexeu-se no banco, tentando encontrar uma posição confortável. Vã esperança, conside­rando as más condições da caminhonete. Com uma tipóia no braço e costelas enfaixadas, só podia ten­tar encontrar uma posição que minimizasse as dores. Baixou o chapéu Stetson cinza, fechou os olhos e tentou se visualizar numa ilha deserta, somente o som de vai-e-vem das ondas para que­brar o silêncio. Uma lata de cerveja geladinha, um bom livro, nada além de sol, areia e...

—...e quando nos soltaram da cadeia, Davis me pagou o melhor café da manhã que tive em anos, e nós... Talvez a velha cabana no vale entre as montanhas que marcava o limite oeste da fazenda do avô servisse. Estavam no meio do inverno e, após a tempestade de neve, a calmaria era tanta que quase se podia ouvir o ar entre as asas de uma águia planando acima deles. Uma xícara de café preto bem quente e...

—...claro, Davis não é um camarada esperto. O brilho no olhar provavelmente é o sol batendo na cabeça por trás, mas ele...

Ou talvez um oásis escondido em meio a quilô­metros de areia escaldante. Nenhum som além do vento por entre as palmeiras. Um copo gelado de...

—...cérebro não é tudo, mas Davis... ele não sabe nem socar areia numa toca de rato, e eu...

— Doug, acho que a sua língua é cortada, por isso, você fala por dois. — Ryan sentou-se di­reito, ignorando a pontada nas costelas, fitando o teto da cabine da caminhonete. — Você não parou de falar nos últimos duzentos quilôme­tros. Não precisa parar para respirar?

— Tento programar a fala, assim respiro entre as sentenças. — Rindo, o amigo o olhou. — Como aqueles cantores de ópera da elite, que aprendem a respirar nos intervalinhos. Nem todo mundo tem jeito para a coisa — acrescentou, orgulhoso.

Ryan teve que rir.

— Eu devia ter arranjado outra carona para casa. — Desistindo de cochilar, endireitou-se no banco, movendo-se para evitar uma mola que­brada, e apoiou o braço numa posição mais con­fortável junto ao estômago.

— Quantas pessoas você acha que dariam ca­rona a um caubói arrebentado e àquela ração de pulgas do seu cavalo? — Doug indicou a car­reta de transporte de animais que rebocavam.

— Teria que ir a pé até o Wyoming.

— Talvez, mas, pelo menos, não teria que ou­vir essa matraca por dois longos dias — res­mungou Ryan.

— Você anda de mau humor desde que levou aquele pequeno tombo.

— Pequeno tombo? — Ryan ergueu o sobrolho. Devia seu estado precário a um animal chamado Temporada de Sorte, que expressara toda a sua irritação com os rodeios atirando longe todos os peões em menos de seis segundos, sendo que a ele ainda fizera questão de esmagar na areia. — Aquele garanhão dançou a polca em cima de mim, depois de me lançar ao chão com o maior coice!

— Pareceu mais um tango — opinou Doug, ir­ritante. — Tinha um bom ritmo, pensando bem...

— Acho que estava ocupado demais supor­tando a prensa para apreciar as sutilezas da performance — disse Ryan, amuado.

— Já lhe contei sobre a vez em que peguei umas aulas de dança com Fred MacMurray?

— Fred MacMurray? — Ryan ergueu o cenho.

— Quer dizer, Arthur Murray?

— Pode ser. — Doug deu de ombros. — Não importa. Era algum Murray e eles davam aulas de dança. Eu não queria, mas estava saindo com uma garota que adorava esse negócio de dança de salão, então, achei que se...

Ryan já ouvira a história antes e sabia o final, por isso passou a ouvir o amigo apenas parcial­mente e deixou os pensamentos vagarem.

A paisagem era familiar. Em uma hora mais ou menos, estaria em casa. Após quatro anos, pensou. Fazia quatro anos que estivera na fa­zenda SL pela última vez, mesmo assim, por poucos dias, Muito tempo longe de casa.

Distraído, passou o polegar esquerdo na base do dedo anular, procurando a aliança que não estava mais lá. Surpreso, ergueu a mão aberta por um instante e então a relaxou. Nada de olhar para trás, prometera a si mesmo, deitado na cama do hospital, esperando o médico con­sertar seu pulso. Naquele instante, percebera que estava cansado... cansado até os ossos da­quela vida na estrada.

Não tinha certeza do que provocara a decisão repentina de voltar para casa. Já fora amassado por garanhões antes e tinha cicatrizes para pro­var, duas clavículas e uma perna quebradas e mais pontos do que podia se lembrar. Ferimen­tos faziam parte do circo dos rodeios, um tombo do cavalo, um touro irado. Bolas, conhecia um peão que escorregara numa poça de refrigeran­te, caíra da arquibancada, quebrara os dois bra­ços e voltara aos rodeios assim que tirara o gesso. A menos que se tratasse de um ferimento mortal, dificilmente valia a pena se preocupar.

Não, não decidira pendurar as esporas por causa dos acidentes. Nem porque, desde o início da temporada, só montara garanhões ruins e tivera azar. Isso era parte do jogo também. Num ano, um peão podia estar montado no dinheiro, no outro, disputando o último lugar. Ganhara o bastante para cobrir as despesas, o que era mais do que muitos peões conseguiam.

Não sabia por que queria parar, apenas decidira de uma hora para outra. Deitado numa maca na sala de emergência, olhando para um pôster que reforçava a importância dos exames regulares de câncer de mama, ouvindo o alvoroço metódico da equipe médica cuidando do paciente ao lado atrás de uma cortina, de repente, perguntara-se o que estava fazendo ali... não no hospital, mas ali, a milhares de quilômetros da tranqüila SL. A mi­lhares de quilômetros de casa.

Sempre soubera que voltaria um dia. Não im­portava aonde fosse ou quanto tempo ficasse lon­ge, a fazenda sempre estaria ali, atraindo-o, cha­mando-o como uma amante sussurrando ao ou­vido. Sentado num bar enfumaçado em Abilene, só precisava fechar os olhos para sentir o cheiro dos arbustos e ouvir o suspiro incansável do ven­to. Preso num engarrafamento de trânsito na área de Denver, bastava olhar para as monta­nhas e recordar o cheiro selvagem dos pinheiros, a textura da neve sob as patas do cavalo.

Deitado na cama de hospital, com o pulso latejando ao ritmo dos gemidos do ocupante des­conhecido na cama ao lado, respirando o ar im­pregnado de anti-sépticos e medo, cercado de gente de branco, decidira voltar para casa. Não apenas para esperar o pulso sarar, mas para ficar. Era hora. Fugia do passado havia muito. Precisara de quatro anos, mas, finalmente, des­cobria que não podiam apagar as lembranças.

Agora, a poucos quilômetros da fazenda, Ryan imaginava o que o velho avô diria ao revê-lo. Nathan nunca escondera sua opinião sobre a profissão do neto, aliás, motivo da discussão en­tre os dois em sua última visita, no Natal.

— É um jeito estúpido de ganhar a vida — desdenhara Nathan, ao ver a fivela de ouro e prata que Ryan ganhara na final do campeonato nacio­nal em Las Vegas menos de duas semanas antes. Se sentia algum orgulho pelo neto ter atingido o lugar mais alto da categoria, não o demonstrou.

— Um desperdício de tempo e dinheiro.

— É o meu tempo e o meu dinheiro — res­pondera Ryan, orgulhoso.

— Não pode competir para sempre — advertira Nathan, ignorando seu olhar de advertência. Na verdade, tinha medo... medo de que o menino se matasse tentando se esconder de sua própria dor.

— Quebrar o pescoço ao cair do cavalo na frente de cinco mil pessoas não trará Sally de volta.

— Não tem nada a ver com Sally — afirmara Ryan, sem saber se era verdade ou mentira. — Sou um bom peão. Talvez um dos melhores do país. Ganhei muitos prêmios este ano.

— E gastou a maior parte para continuar nes­sa roda-viva — rebatera o velho senhor. Ima­ginava quanto custava aos caubóis manter-se no circuito das competições. Entre gastos com viagens e inscrições, a maioria tinha sorte se empatasse as contas.

— É meu tempo e meu dinheiro — repetira Ryan, dando de ombros.

Desejando que o avô deixasse o assunto mor­rer, ergueu o cálice com licor de ovos e saboreou a bebida. Era a mistura especial de Sara: creme, ovos, uma pitada de noz-moscada e conhaque o bastante para derrubar uma mula. Tinha doze anos ao experimentar um golinho e dezessete quando o avô lhe oferecera uma dose normal de adulto. Após tantos anos, o licor de Sara ain­da tinha gosto de pecado.

Havia pouco mais de uma semana, sob o ba­rulho ensurdecedor do público em Las Vegas, resolvera voltar para casa nos feriados, mas não para ter mais uma discussão inútil com o avô. Tentou mudar de assunto.

— E o gado? Como está este ano? Nathan remexeu o maxilar, frustrado. Não era a primeira vez que se desentendiam por cau­sa do estilo de vida de Ryan. Ou melhor, que quase se desentendiam, uma vez Ryan acabava sempre com uma atitude brincalhona ou mu­dando de assunto.

— Por que o interesse? — rebatera o velho. — Ninguém ganha fivelas de ouro cuidando de gado. Não o criei para ser imitação de peão! É hora de voltar para casa.

Ryan pousou o cálice na mesa de centro de madeira, levantou-se e encarou o avô.

— Não sou mais criança...

— Não tenho certeza, considerando sua atitude — interrompera Nathan, levantando-se também.

Avô e neto olhavam-se detidamente, cada um defendendo sua vontade. Naquele momento, em­bora não houvesse mais ninguém na sala para constatar, assemelhavam-se de maneira incrível. Não havia traço de submissão em Ryan e a frus­tração fez com que Nathan falasse primeiro:

— Não vou deixar a SL para nenhum caubói do asfalto, colecionador de fivelas de ouro. Se quiser este lugar, vai ter que provar, administrando-o.

Ryan enrubescera de raiva, empalidecendo a seguir, apesar do bronzeado, os olhos azuis cus­pindo fogo.

— Não me chantageie, vovô — advertira. Fora longe demais, sabia, mas não cederia nem um centímetro.

— Só estou colocando os fatos. Minha vida inteira está aqui. Quero ter certeza de que vou deixar a fazenda em boas mãos.

— Não ligo a mínima para o que pretende fazer com este lugar — mentira Ryan. — Só não tente usar isso para me obrigar a fazer a sua vontade.

A chegada dos McIntyre encerrara a discus­são, felizmente. Pelo rumo que tomava, só podia piorar. Quando Ryan partira, antes do, Ano-Novo, a atmosfera entre ele e o avô ainda estava ruim. Agora, endireitando-se no banco da cami­nhonete, inquietava-se ao recordar o evento, me­ses depois. Não era assim que vislumbrava seu retomo... machucado e mais ou menos sem di­nheiro. Houve época em que nem pensaria no assunto, nunca sentira necessidade de provar o que quer que fosse ao avô. Mas tudo mudara nos úl­timos anos. Distraído, esfregou o polegar esquerdo na base do dedo anular. Muita coisa mudara.

— Parece que temos uma donzela em apuros — anunciou Doug, arrancando Ryan dos pensamentos.

Um carro compacto azul estava no acostamen­to, de capô erguido e pisca-alerta ligado. Doug já estacionava a caminhonete. Claro que deviam parar. Numa região como aquela, por onde pas­savam poucos veículos, simplesmente não se dei­xava para trás um motorista em dificuldade.

Ryan reprimiu um gemido de dor ao pisar no solo. Já fazia três semanas que beijara a areia da arena, mas era como se tivesse acontecido no dia anterior. Mais um sinal de que estava na hora de abandonar o jogo... Simplesmente estava ficando velho demais para aquilo.

— Ora, isso é o que eu chamo de donzela! — murmurou Doug, quando se encontraram na frente da caminhonete.

Ryan acompanhou o olhar do amigo até a mu­lher junto ao carro parado. Não era alta, devia ter entre um metro e cinqüenta e cinco ou cin­qüenta e oito, mas era um bom pedaço de mau caminho, concluiu, admirando a curva dos seios e dos quadris sob a calça jeans e a camiseta larga, Muito graciosa. Os cabelos compridos eram loiros, cor de mel, e brilhavam como ouro ao sol, apesar de um pouco embaraçados. Como se acabasse de acordar. Provavelmente, gastara meia lata de spray de cabelo para obter aquele visual, pensou, cínico. Como se lesse seus pen­samentos, ela ergueu a mão e afastou o excesso de cabelo do rosto. O gesto descuidado deixou óbvio que o visual desgrenhado era natural, o que a tomava ainda mais sexy.

Animou-se. Se ia socorrer uma donzela em apuros, não faria mal se a donzela fosse bonita.

Maggie Drummond vacilou ao ver a caminho­nete velha e amassada parar no acostamento, o primeiro sinal de vida naquelas paragens em trinta minutos, desconsiderando-se dois coelhos que atravessaram a estrada correndo e meia dúzia de antílopes que avistara ao longe, que não demonstraram o menor interesse por seu apuro. Já considerava uma caminhada de quin­ze quilômetros até a cidade, pela estrada sem iluminação, pois a alternativa, passar a noite den­tro do carro, também não era muito atraente.

Ver a caminhonete fora um alívio. Agora, po­rém, diante dos dois homens se aproximando, de repente se conscientizava de que estavam no meio do nada, apenas o céu e o vento como testemunhas. Não que houvesse algo a temer, convenceu-se. Com certeza, esperava não ter de sair em disparada, pensou, inquieta, reparando nas pernas longas dos dois rapazes. Mesmo assim, recuou para o carro, calculando mentalmente quanto tempo levaria para abrir a porta e entrar.

— Como vai, moça? — saudou o mais baixo, em­purrando o chapéu para trás. Tinha cabelos cor de palha, semblante amigável e olhos castanhos sim­páticos. — Parece que está com problemas.

Maggie relaxou um pouco. Podia parecer iló­gico, mas não sentia medo de um homem que lembrava um cachorro basset.

— Estava começando a achar que teria de andar até a cidade — replicou, devolvendo o sorriso.

— É um bom trecho — disse o outro homem, a voz suave como a escuridão da meia-noite.

Espantada, Maggie logo considerou os adjeti­vos alto, moreno e bonito, mas os termos batidos não faziam justiça àquele deus. Ele era mesmo alto, tinha um metro e oitenta e cinco ou oitenta e oito, seus cabelos eram de um rico tom castanho-escuro, mas a palavra bonito não o des­crevia bem. Apresentava feições um pouco abruptas, o queixo muito determinado e o nariz definido demais, valendo-se de termos genéricos. Não obstante, era... impressionante, concluiu. O tipo de homem para o qual se olhava duas vezes cruzando-se com ele na ma. Ombros lar­gos, quadris estreitos, parecia a epítome do cau­bói, o típico galã de comercial de cigarro. E a tipóia no braço esquerdo não lhe arranhava nem um pouco a imagem.

— Doug Tennent — apresentou-se o rapaz de cabelos cor de palha. — E este aqui é Ryan Lassiter.

Com custo, Maggie desviou o olhar do bonitão.

— Maggie Drummond — disse, mas não es­tendeu a mão.

Sabia que os homens do Oeste costumavam não apertar a mão de mulheres. Só não desco­brira ainda se era chauvinismo ou algum tipo de cortesia, ou um pouco dos dois.

— Prazer em conhecê-la — respondeu Doug, sorrindo.

Era um sorriso que enfatizava seu caráter ami­gável, e Maggie sentiu o último traço de apreensão desaparecer. Se aquele camarada era perigoso, ela era uma estrela de cinema. Muitos anos vivendo na cidade grande, pensou. Ficara paranóica.

— Posso dar uma olhada no carro — ofere­ceu-se Doug. — Talvez descubra qual é o pro­blema. Pode ter sido a correia do ventilador

— Não é a correia do ventilador — afirmou Maggie. — Eu sempre tenho uma correia de reserva. Na verdade, tenho quase certeza de que é a transmissão. Só levantei o capô para o carro ficar mais visível.

— Mesmo assim, posso dar uma olhada... — Doug parecia solícito, mas não ansioso em levar a tarefa adiante.

— Só se lhe disser onde fica a transmissão — provocou Ryan.

— Eu sei onde fica a transmissão — defen­deu-se Doug. — Sei até como é a peça. Uma dessas praticamente caiu da minha caminhonete há uns cinco anos. Era outro carro, claro. Estava no meio do deserto, a caminho do rodeio de Santa Fé. Ouvi um barulhão e então a caminhonete pa­rou. Não havia nada num raio de quilômetros, exceto cactos e cobras, mais eu e minha caminho­nete quebrada. Ainda bem que tinha bastante cer­veja na caixa de isopor, senão, teria morrido de desidratação antes que alguém aparecesse e...

— Não quero saber como sobreviveu no de­serto — interrompeu Ryan, rude. Por experiên­cia, sabia que era melhor interromper Doug an­tes que ele se empolgasse. — E tenho certeza de que a moça também não quer.

— Como sabe? Talvez ela esteja achando interessante...

— Sei porque já ouvi essa história antes e é maçante. Nem sua mãe se prontificaria a ouvir.

— E as cobras? — indagou Doug, indignado. — Tinham a espessura do meu braço, e os olhos mais perversos que já vi, presas tão grandes quanto facas...

— Elas só atravessaram a estrada. Agora, se elas tivessem picado você, isso seria interessante.

Maggie sentiu-se como uma espectadora de uma partida de tênis, olhando de um interlo­cutor para o outro. Levou algum tempo para perceber que não discutiam de verdade. Pelo tom, não era a primeira vez que conversavam sobre aquele episódio ou daquele jeito.

— Você quer ouvir sobre a cobra, não quer, moça? — indagou Doug, puxando-a para a con­versa inesperadamente.

— Bem, eu...

— Ela quer sair daqui com o carro, só que nem eu nem você podemos ajudá-la. — Ryan avançou um passo e ergueu o chapéu, revelando os olhos azuis. Maggie ficou sem fôlego. — A verdade é que, a menos que seu problema seja só pneu furado ou correia do ventilador, não poderemos ajudar.

— Somos caubóis — disse Doug, como se isso explicasse tudo. — Podemos consertar proble­mas elétricos também, mas acho que transmis­são exige um mecânico especializado.

— Caubóis não podem ser mecânicos também? — indagou Maggie, confusa com aquela conver­sa inconseqüente com dois estranhos.

— Não há nada contra isso no manual — disse Ryan. — Mas é a regra...

Maggie ergueu o sobrolho.

— Mas existe um manual do caubói?

— Existe, sim, senhora. — Doug fez uma ex­pressão muito séria. — Lá tem tudo, inclusive o juramento e o aperto de mão secreto.

— É, e se enviar três códigos de barra e um dólar, ganhará o anel decodificador de segredo que brilha no escuro — acrescentou Ryan, sério.

Maggie sorriu, revelando um dos dentes da frente ligeiramente torto. Era uma imperfeição charmosa, pensou Ryan. Sentiu alívio ao ver o medo desaparecer daqueles olhos muito bonitos, de um cinza enfumaçado, afetuosos e mutáveis, que refletiam suas emoções como um espelho.

Percebera a apreensão dela quando se apro­ximava com Doug, e não a culpava. Apesar das lendas, mesmo no velho Oeste, uma mulher nem sempre estava a salvo, já que o crime não re­cuava às fronteiras do Wyoming. Aos poucos, porém, ela relaxara, em especial ao ver o sorriso de Doug. Já notara a descontração que o amigo provocava nas mulheres, talvez por causa do nariz quebrado ou do sorriso faltando um dente. Não devia passar pela cabeça de Maggie que Doug Tennent não era tão inofensivo quanto seu exterior de cachorrinho doméstico fazia crer. Ao longo dos anos, transformara-se na sensação entre as mocinhas que ladeavam as rampas de acesso à arena. Não havia explicação, mas havia algo naquele sorriso um tanto pateta que atraía as mulheres.

E, pelo jeito, funcionava também com donzelas em apuros, concluiu Ryan.

— Podemos lhe dar uma carona até a cidade, se quiser — ofereceu Doug, e a srta. Maggie Drummond, que pouco antes os olhara com des­confiança, aceitou sem hesitar.

O mundo não era feito para pessoas com pouco mais de um metro e meio de altura, pensou Mag­gie, quando Ryan abriu a porta da caminhonete e recuou um passo para que ela entrasse pri­meiro. As calças eram compridas demais, os bal­cões de cozinha, altos demais, as prateleiras fica­vam fora do alcance e não existia maneira graciosa de subir muna caminhonete. Normalmente, esca­laria os degraus até chegar ao assento, sem se preocupar com a graciosidade dos movimentos, mas no momento perturbava-se com o olhar de Ryan. Que tolice. Como se aquele bonitão fosse reparar numa baixinha entrando numa caminho­nete. Como se ele a notasse, pensou, severa.

— Eu ajudo. — Ryan colocou a mão sob seu cotovelo quando ela alcançou o apoio de braço para se equilibrar. O toque inesperado a sur­preendeu e a fez se voltar. — É um degrau e tanto — comentou, sorrindo.

— Obrigada — murmurou Maggie, atônita com o som fraco da própria voz.

Normalmente não ficava sem fôlego só porque um homem atraente lhe oferecia ajuda, educado. Devia estar aliviada com a certeza de que não passaria a integrar aquela paisagem árida. Tal­vez, por isso mesmo, reagisse desproporcional-mente a Ryan Lassiter. Não lera em algum lu­gar que pessoas resgatadas de uma situação de perigo extremo às vezes desenvolviam um apego exagerado pelo salvador? Claro, não correra pe­rigo extremo, não propriamente. Na pior das hipóteses, teria sofrido bastante desconforto. Mesmo assim, era um alívio conseguir carona para a cidade. Talvez fosse essa a causa de sua agitação. Não havia um termo médico para esse comportamento? Síndrome de Estocolmo? Não, essa síndrome acometia reféns. E por que Sín­drome de Estocolmo, afinal? Tinha havido mui­tos seqüestres em Estocolmo? Os países euro­peus pareciam organizados demais para permi­tir a ação de seqüestradores. Estocolmo era a capital de qual deles, mesmo? Oh, geografia nunca fora sua melhor matéria...

— Algum problema?

Cessando os devaneios, Maggie percebeu que estava parada junto à porta aberta, como uma estátua. Sem jeito, disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

— Só estava tentando me lembrar de onde fica Estocolmo...

Ryan ergueu o sobrolho, surpreso.

— Na Suécia, pelo menos na última vez que vi o mapa.

— Tem certeza?

— Absoluta. — Ele a olhou curioso. — Isso é importante?

— Não... Só estava imaginando. — Brilhante, Maggie. Acaba de convencê-lo de que é uma lu­nática. Suspirando conformada, subiu na cami­nhonete e instalou-se no banco do meio.

O interior do veículo espelhava os anos de uso. O painel estava rachado pelo sol. Um velho cobertor do Exército cobria o assento, mas ainda se percebia uma protuberância, apesar das ca­madas de lã. A manivela da janela do lado do passageiro estava quebrada, ou alguém detes­tava ar fresco, pois uma fita adesiva impedia que fosse acionada. No assoalho, entulhavam-se embalagens vazias de lanches rápidos e refri­gerantes. Sutilmente, afastou uma sacola de lanchonete que lhe arranhava o calcanhar.

Sem nenhuma cerimônia, Ryan empurrou com o pé a sacola para baixo do assento.

— Doug sozinho sustenta metade das lancho­netes do país.

— Não fui eu que comi dois hambúrgueres no café da manhã — denunciou Doug, ligando o motor.

— A fome leva um homem a cometer desatinos — justificou Ryan.

— Sim, como pedir uma porção extra de ba­tata frita. — Doug automaticamente olhou pelo retrovisor antes de retomar a estrada.

Ryan percebeu o olhar preocupado de Maggie quando ultrapassaram o carro pifado.

— Ele vai ficar bem aqui. Ninguém vai aparecer.

— Eu sei. Aqui não é como Detroit, onde po­deria voltar em poucas horas e vê-lo depenado. Só gostaria de saber se vou precisar de uma transmissão nova.

— Se precisa de um bom mecânico, procure Frank Luddy na zona norte da cidade — acon­selhou Ryan.

— Obrigada, mas vou deixar Luke dar uma olhada antes. Ele entende bastante de carros.

Luke. Um namorado? Marido? Ryan olhou para as mãos dela. Não usava aliança, mas isso não significava nada. De qualquer forma, a idéia de que ela podia ser comprometida o deixava sem ação. Fazia muito tempo que não se inte­ressava por mulher alguma e preferia que as coisas continuassem assim, por enquanto. A úl­tima coisa de que precisava era envolver-se com o sexo oposto. Tinha outros problemas, lembrou-se, passando o polegar na base do dedo anular.

— Detroit? — indagou Doug. — Você vem de lá?

— Nascida e criada lá, embora às vezes eu mesma ache difícil acreditar. Após três anos aqui, Michigan parece um país estrangeiro...

— Nunca passei muito tempo em Michigan, pelo que me lembro. Não devem promover mui­tos rodeios em Detroit.

— Não que eu me lembre — concordou Mag­gie, risonha. — Você é peão de rodeio?

— Com certeza. Estou nos rodeios desde ga­roto. Meu pai tem uma fazendinha na Dakota do Norte e eu e meus irmãos crescemos laçando bezerros e montando cavalos xucros e touros. Como não havia espaço para nós todos, achei melhor pegar a estrada e ganhar algum dinheiro para comprar um lugar só meu.

Ryan ouvia a conversa parcialmente. Já co­nhecia a história de Doug. Noventa por cento dos caubóis que participavam do circuito pre­tendiam ganhar o bastante para "comprar um lugar" só para eles. Doug era um dos poucos que estava quase conseguindo. Havia muito mais em Doug Tennent do que ele geralmente mostrava. Crescera numa fazenda e era um dos melhores peões de montaria em touro, mas tam­bém se formara em Economia pela Universidade de Washington e conhecia o mercado de ações como ninguém. Seu material de leitura incluía tanto o Wall Street Journal quanto o Vida de Peão, porém, cultivava uma imagem popular, assim como algumas pessoas cultivavam o corpo.

Maggie riu de algo que Doug disse e Ryan sorriu. Era um riso caloroso e amigável o dela, contagiante. Doug contava uma de suas histó­rias, quando enfrentara um touro mal-humora­do, anos antes. Montara no animal várias vezes e em todas acabara comendo areia.

— Vocês dois montam em touros? — indagou Maggie, olhando para Ryan.

— Não, senhora — respondeu Doug, por ambos.

— Ryan, aqui, não gosta de serviço leve. Ele monta em cavalos xucros. É como cavalgar num animal que balança. Arranjou esse braço engessado quan­do foi dormir na sela e acabou caindo.

Ryan captou o olhar incerto de Maggie e sorriu.

— Ele não consegue parar de mentir, moça. Caiu de cabeça muitas vezes, parece que afetou um pouco o cérebro.

— Não sou eu que estou engessado — obser­vou Doug. — Uma coisa que precisa aprender, camarada, é não bancar o tapete para um cavalo de quatrocentos quilos.

— Aí você tem razão — concedeu Ryan, rindo.

— Tentarei me lembrar disso.

— Falando de tapete, já lhe contei sobre o tapete de pele de urso da casa do meu pai? Tom, meu irmão mais velho, e eu saímos para pescar um dia quando ouvimos um som na mata. Achamos...

Maggie conhecia Doug havia minutos, mas adivinhou que ele iniciava outra história inter­minável. Instintivamente, olhou para Ryan, bem-humorado e resignado. Seguiu-se um ins­tante de comunicação perfeita e ela não pôde deixar de lamentar o fato de não ser loira, alta e magra, o tipo de mulher à qual os homens não deixavam de olhar duas vezes.

Afastando os devaneios, prestou atenção na história de Doug, que enfrentara com o irmão um urso pardo de três metros e meio munidos de varas de pescar e uma pedra. Parecia im­provável, mas não mais improvável que um ho­mem como Ryan Lassiter se sentir atraído por uma mulher baixa e rechonchuda, sem beleza extraordinária. Mas, afinal, não estava mesmo procurando relacionamento com o sexo oposto. Já tinha preocupações suficientes...

O que mais agradava Maggie em Willow Flat era sua falta de pretensão. Não havia placa de boas-vindas na entrada da cidade, nem lojas com visual de velho Oeste "autêntico". Até o nome era simples. Na terra plana, graças a uma fonte de água rara, cresciam salgueiros. Daí, Willow Flat, um nome prático e sem pompa, como o próprio lugarejo.

Típica cidade de fronteira, sua principal função era prover serviços para as fazendas da região e, cento e vinte anos após a fundação, nada mudara. Algumas ruas foram pavimentadas e a boiada não passava mais pelo centro. A mercearia agora tinha uma prateleira com fitas de vídeo para alugar e outra com calças jeans cuidadosamente dobradas. Lucille Devlin, proprietária da churrascaria Lucüle, instalara uma máquina de capuccino havia um ano, mais ou menos, e, considerando que a cidade ainda não contava muitos adeptos de café descafeinado, a novidade aumentara o movimento e a renda do estabelecimento, o saldo extra era suficiente para pagar o investimento.

Considerando tudo, Maggie concluiu que os fundadores ainda poderiam se sentir em casa se atravessassem um túnel do tempo e fossem parar no meio de Willow Flat. Proveniente de uma metrópole, onde bairros inteiros podiam surgir ou desaparecer da noite para o dia, um lugar estável como aquele representava uma mudança bem-vinda. Sua irmã, Noreen, tachava aquela estabilidade de estagnação, desprezando a cidade na mesma medida em que Maggie a apreciava. Noreen falava sempre em tirar o pó do Wyoming dos sapatos e ir para um lugar onde houvesse vida de verdade, como Los An­geles ou San Francisco, ou talvez até Nova York. Mas, como gastava mais do que ganhava, não parecia provável que se mudasse logo.

— Este lugar nunca muda — comentou Ryan, quando entraram na cidade.

O tom dele era neutro, mas Maggie respondeu entusiasmada:

— É disso que eu mais gosto em Willow Flat — revelou, notando a arquitetura medíocre dos prédios ao redor. — É interessante saber que a cidade era assim há dez anos, não é?

— Na verdade, está do mesmo jeito há vinte anos — observou Ryan.

Willow Flat não era um lugar que inspirava agitação. Tratava-se de um típico vilarejo empoeirada do Oeste, mais funcional do que bonito. Pelo que se lembrava, a cidade sempre fora as­sim. Nunca considerara essa característica mo­tivo para comemoração ou lamentação. Simples­mente era o que era.

— Vire aqui — indicou Maggie, e Doug dobrou à direita.

O comércio em Willow Flat agrupava-se numa seqüência única na rua principal. Nos arredores, distribuíam-se a esmo as áreas residenciais. Nunca houvera um empreendimento planejando fileiras de casas em alamedas arborizadas. As casas foram surgindo conforme a necessidade, tendo como prioridade a praticidade. Não havia coesão nos estilos, na verdade, não se reconhecia estilo nenhum. Não havia os bangalôs, as casas de fazenda nem as construções pseudo-espanholas tão freqüentes nos Estados do Sul e do ex­tremo Oeste. Eram casas comuns. Os lotes eram grandes e não delimitados, na maioria, contando apenas com portões para manter cachorros e crianças longe da rua. Os quintais costumavam abrigar um pequeno estábulo, um galinheiro, ou uma edícula. A vizinhança estava no meio-termo entre cidade e campo, muito dispersa e muito organizada para atender a cada fim.

A alguns quilômetros da rua principal, não havia mais pavimentação e a caminhonete pas­sou a rodar sobre uma mistura de cascalho e areia. Um cachorro latiu preguiçoso quando pas­saram e então deitou-se novamente. Maggie in­dicou uma casa próxima ao fim da rua. Era um pouco mais recuada do que as outras casas, pre­cisava de pintura e o telhado talvez não supor­tasse outro inverno de neve. O terreno era are­noso, embora houvesse trechos com grama, su­gerindo que um dia houve um gramado consis­tente. Contrastando com a aparência desleixa­da, havia dois canteiros de flores bem cuidados, um de cada lado da varanda discreta. Como es­tavam no começo do ano, os canteiros só sina­lizavam o colorido que viria, mas o solo era rico e escuro e as folhas verdes estavam viçosas. Ryan podia apostar que, em poucas semanas, os canteiros seriam uma profusão de cores. Apostaria também que Maggie cuidaria para que isso acontecesse, embora não soubesse dizer por que pensava assim. Pelo que sabia, "Luke" era um jardineiro de mão cheia.

— Muito obrigada pela carona — agradeceu Maggie a Doug. — Provavelmente, ainda estaria lá, sentada no meio do nada, se você não tivesse aparecido.

— Foi um prazer, senhora. — Doug tocou no chapéu e sorriu, mostrando a banguela. — Salvar moças bonitas é quase um passatempo para mim.

— Bem, você é bom nisso — retrucou ela. — Boa sorte no próximo rodeio.

— Não é questão de sorte — observou Doug, solene, trocando um olhar conhecedor com Ryan. — É pura habilidade. Alguns têm mais do que outros...

— Sim, e alguns são mais convencidos do que outros — disse Ryan, saltando da caminhonete com dor nas costelas.

Ofereceu a mão a Maggie quando ela alcançou a ponta do assento. Ela pareceu hesitar uma fração de segundo antes de aceitar a ajuda. Ape­sar da delicadeza, tinha o toque firme. Embora fosse baixinha, não havia nada de delicado ou frágil em Maggie Drummond. Era, de certa for­ma, robusta. De qualquer forma, duvidava de que houvesse mulher viva que apreciasse tal descrição de si mesma.

— Muito obrigada — disse ela, recolhendo a mão assim que chegou ao solo. — Foram muito gentis.

— Não me agradeça. Não sou muito bom em socorrer donzelas em apuros engessado assim.

— Ele ergueu o braço para enfatizar e sorriu, sem jeito. Já escolhera uma frase feita para a despedida, à qual se seguiria um toque no cha­péu, mas surpreendeu a si mesmo comentando:

— Vou ficar na casa do meu avô. Será que vamos nos encontrar na cidade?

Não era exatamente uma proposta de casa­mento. Não era nem um pedido de encontro, mas era muito mais do que planejara dizer e, a julgar pelos olhos cinza arregalados de Mag­gie, também era mais do que ela esperara ouvir.

— Seria ótimo — retrucou, após uma pausa imperceptível. Hesitou mais um pouco, sorriu sem jeito e se encaminhou à casa.

Com esforço, Ryan não permaneceu ali plantado vendo Maggie se afastar. Já fizera mais do que pretendera e já assumira mudanças demais em sua vida. Mudanças como desistir do circuito de rodeios, voltar para casa. Tudo isso o deixava con­fuso. Não pensava seriamente em procurar Mag­gie Drummond e convidá-la para sair. Entrou na caminhonete e fechou a porta com energia. Longe dos olhos, longe da cabeça, convenceu-se.

— Ela é mesmo bonita — disse Doug, braço apoiado no volante, acompanhando-a com o olhar pela calçada.

— É.

— Parece uma garota muito legal.

— É.

Quase sem querer, Ryan olhou na mesma di­reção que o amigo. Maggie era pequena, mas muito bem-feitinha, pensou, admirando as cur­vas femininas de seu corpo.

— Uma garota como essa faz um homem ter saudade de comida caseira — completou Doug, nostálgico. — Cercas de madeira, cortinas flo­ridas nas janelas, talvez fogo na lareira...

— Você descreve bem uma cena doméstica — avaliou Ryan, indiferente. — Talvez devesse procurar um bom emprego na cidade e pedir Maggie Drummond em namoro. Os idiotas estão em falta na região e você pode se qualificar. O salário é irrisório e não há muitos benefícios, mas sempre se pode viver de amor.

— Acontece que ela não estava olhando para mim — concluiu Doug, imune ao sarcasmo do amigo. Maggie se voltou para acenar ao chegar à varanda e Doug retribuiu antes de engatar a marcha. Riu, perspicaz. — Pense nisso, não era para mim que ela estava olhando.

— Ninguém estava olhando para ninguém — completou Ryan, mal-humorado. Só gostaria de ter certeza disso. Não que importasse, porque seu caminho e o de Maggie Drummond não coin­cidiriam novamente.

 

Junto à porta de tela, Maggie viu a caminhonete enferrujada se afastar. Doug fora manobrar no fim da rua. Se perma­necesse ali, veria a caminhonete passar nova­mente, mas eles não a veriam. Claro, já passara da idade de fazer algo tão imaturo. Além disso, Ryan estaria do outro lado do veículo, de qual­quer forma. Não que quisesse rever especial­mente a ele. E, se aquela não era a conversa mais estúpida que já tivera consigo mesma, não sabia o que era. Mas permaneceu onde estava, escondida atrás da porta de tela.

— Quem era?

Maggie sobressaltou-se e ficou de costas para a porta. Sua irmã Noreen espionava por sobre seu ombro através da tela.

— Meu carro quebrou a alguns quilômetros da cidade. Dois rapazes me deram uma carona para casa.

— Alguém conhecido?

Maggie sabia que a irmã não perguntava por se preocupar com sua segurança, mas interes­sada em arranjar namorado. Uma das principais queixas de Noreen quanto a morar em Willow Flat era a escassez de homens disponíveis. Cla­ro, a maioria das mulheres não precisaria de uma grande quantidade, considerou Maggie, es­pantada com o pensamento libertino. Decidira havia muito não se abalar com o estilo de vida da irmã. Ao menos, imaginara ter decidido.

— Nunca os vi na cidade — declarou.

— Nunca viu quem na cidade? — Era a mãe delas, só com a cabeça para fora da sala.

— Dois rapazes pegaram Maggie na estrada e lhe deram uma carona até aqui — disse No­reen, o olhar cintilante de malícia.

— Não precisa insinuar que fizemos uma or­gia na cabine — protestou Maggie.

Ouviu a caminhonete passar na rua, mas não se voltou. Afastou-se da porta e foi para a co­zinha. Eram quase seis da tarde, mas sabia que ninguém nem pensara em preparar o jantar.

— Nunca a acusei de fazer orgia — disse No­reen, seguindo-a. — Você vai acabar sendo a virgem mais velha do mundo.

Maggie pendurou a bolsa na cadeira e fechou os olhos por um instante, controlando-se. Precisou de mais força de vontade que o normal para en­golir as várias respostas desagradáveis, e verda­deiras, que lhe ocorreram. Discutir com Noreen era perda de tempo. Aprendera isso muito cedo.

— Todo mundo tem que ter um objetivo na vida — replicou, superficial, satisfeita ao ver que conseguira irritar a irmã muito mais do que com uma provocação.

— Claro, não é como se estivesse recusando con­vites para sair — rebateu Noreen, despeitada.

— Não briguem, meninas — ordenou Lídia Drummond, adentrando a cozinha em seguida à filha primogênita. — Não sei por que vocês duas não se entendem.

Esticou o gasto suéter cor-de-rosa sobre a cal­ça cinza de tecido elástico. Usava por baixo uma velha camisa de flanela. Tendo aplicado blush rosa brilhante no rosto e lápis ao redor dos olhos, parecia um guaxinim assustado. Fitando a mãe, Maggie mal acreditava que um dia a considerara a mulher mais linda do mundo. A idade pesava em Lídia Drummond.

— Então, quem a deixou aqui, Maggie? — indagou a mãe.

— Meu carro quebrou — explicou Maggie, mais uma vez. — Tive sorte em arranjar uma carona para a cidade com dois caubóis.

— Caubóis. — O tom de Noreen não era nada elogioso. — Todo homem neste maldito Estado é caubói ou pretende ser. Juro que, se não tivesse que ver mais nenhum par de botas com ponteira e ne­nhum daqueles chapéus, seria uma mulher feliz.

— Esta é uma região de fazendas — lembrou Maggie, abrindo a geladeira e sortindo ingre­dientes para uma caçarola. — Mocassins e suéteres de jacquard não ficariam muito bem.

Noreen apoiou-se no balcão e observou Maggie cortar cebolas com eficiência. Não lhe ocorreu oferecer ajuda, nem a Maggie, pedir.

— Então, esses caubóis que a socorreram têm nome?

— Doug Tennent e Ryan Lassiter — informou Maggie, meio relutante.

Não porque tivesse algo a esconder, mas por­que o pouco tempo que passara com Doug e Ryan fora agradável. Não queria que Noreen dene­grisse o episódio com a interpretação maldosa que costumava fazer de tudo.

— Lassiter— repetiu Lídia, pensativa. — Não é o mesmo nome do velho dono daquela fazenda grande a oeste daqui... a SL?

Maggie viu as orelhas da irmã sintonizando.

— Esse Lassiter era um daqueles Lassiter? — inquiriu Noreen.

— Acho que sim — respondeu Maggie, indife­rente. — Ele comentou que ficaria na casa do avô.

— A SL é imensa, já ouvi uns peões comen­tando lá no Dew Drop. — Noreen era garçonete no Dew Drop Inn, um bar afastado da cidade.

— Esse deve ser o Lassiter que andou no circuito de rodeios nos últimos anos. Ouvi alguns co­mentários. Eles têm muita terra e milhares de cabeças de gado. São ricos. Pelo que sei, é o único neto, assim, imagino que tudo vai ficar para ele quando o velho morrer e acho que ele já tem idade. Provavelmente, não vai durar muito.

Maggie agarrou o pé de alface com força ao ouvir o tom ganancioso de Noreen. Havia mo­mentos, a maioria deles, em que achava impos­sível que fossem irmãs.

— Posso ajudar em alguma coisa? — indagou Lídia, com um pé já fora da cozinha.

A televisão estava ligada na sala e ela detestava perder o programa "Roda da Fortuna". Gostava de ver a roupa de Vanna, a moça que virava o painel.

— Não precisa, obrigada — disse Maggie, ciente que falava para a nuca da mãe.

Não que se importasse. Não obstante, viu-se tomada pela mágoa, pois tinha de preparar o jantar, limpar a casa, pagar quase todas as con­tas e fazer as compras. Era assim havia tanto tempo que nem pensava mais nisso, embora às vezes questionasse a própria sanidade por per­mitir que tal situação perdurasse. Simplesmen­te, parecia mais fácil do que tentar convencer a mãe ou a irmã a assumir alguma tarefa. E se não tomar cuidado, vai virar capacho, Maggie.

— Ele é bonito? — indagou Noreen, apoian­do-se mais confortável no balcão.

— Quem? — perguntou Maggie, deliberada-mente obtusa.

— Esse Ryan Lassiter — esclareceu a irmã, impaciente. — Ele é bonito?

Maggie pensou nos olhos muito azuis de Ryan, na covinha que surgia quando ele sorria e nos cabelos castanho-escuros. Dois fatos a espanta­vam. Bonito não era a descrição mais adequada a Ryan Lassiter, e não sabia se era bom lem­brar-se dele tão claramente.

— É bonito, sim — confirmou, a contragosto.

— Atraente e rico. — Noreen sorriu, malicio­sa. — Meu tipo de homem favorito.

— Não sabia que tinha preferência — alfine­tou Maggie, abrindo a torneira da pia.

— Que pena que foi o seu carro que quebrou — lamentou Noreen, irritada, ignorando a ironia. — Eu teria aproveitado uma chance dessas.

— Aposto que sim. — Maggie fechou a torneira.

— O que você disse? — Noreen estreitou o olhar, desconfiada.

— Eu disse que tenho certeza de que você teria aproveitado uma oportunidade de ouro como essa. — Maggie sorriu para a irmã. — Nem toda mulher sabe o que fazer com uma transmissão quebrada a vários quilômetros da cidade e com dois estranhos, mas tenho certeza de que você saberia.

Noreen franziu o cenho e Maggie praticamen­te viu as engrenagens de seu cérebro funcio­nando. A irmã detectara um insulto, com cer­teza, porém, como expressava inocência e falara em tom tão sincero... Bem, não dissera nada desagradável. Após um segundo, Noreen deu de ombros, aparentemente optando por não inter­pretar mal a insinuação.

— Se eu me decidir, consigo arranjar um en­contro com esse rapaz — afirmou, passando a mão na curva do quadril.

Maggie tinha certeza de que a irmã era mes­mo capaz daquilo e não gostava nada da idéia.

Os homens costumavam deter-se na figura esguia de Noreen, em suas pernas longas e lábios carnudos, desatentos a seu olhar calculista. Não havia motivo para pensar que Ryan Lassiter era diferente. Não que fosse problema seu, con­venceu-se. Não era como se tivesse algum direito sobre ele. Ou mesmo que quisesse adquirir.

Resistiu ao desejo de ficar vesga e constatar se seu nariz crescera. Pensar numa mentira fa­zia o nariz crescer?

— Ele não disse quanto tempo ficaria na ci­dade — acrescentou Maggie, tentando desani­mar a irmã.

— Bem, imagino que acabarei topando com ele mais cedo ou mais tarde. — Noreen se afas­tou do balcão e sorriu, felina. Maggie teve von­tade de atirar a saladeira em sua cabeça. — Nada como um encontro casual bem planejado... — Com isso, retirou-se da cozinha.

Maggie não sabia o que a irritava mais, se Noreen ser uma interesseira ou o fato de se aborrecer com isso. A atitude da irmã não era nenhuma surpresa. Não era como se não a co­nhecesse. Ou à mãe. Simplesmente, não devia se aborrecer por causa delas.

Sentiu uma dor de cabeça crescer nas têmpo­ras e fechou os olhos para controlar o incômodo. É sua escolha, lembrou-se. Não precisava ficar. Não era mais criança, obrigada a obedecer aos adultos que controlavam seu destino. Podia ir embora. No entanto, mesmo sabendo disso, não partiria, movida por um senso de dever ou talvez por estupidez. Ao menos, não imediatamente...

Suspirando, abriu os olhos. Detestava se la­mentar. Já ouvia lamentações demais da mãe. E, mesmo se sentindo culpada, não havia como mudar a verdade. Fizera suas escolhas e, se a vida não era como planejara, não podia culpar ninguém a não ser a si mesma.

Havia uma janela sobre a pia e, se ficasse na ponta dos pés e se inclinasse para a esquerda, veria, além do trailer do vizinho, as montanhas. Às vezes, fantasiava que se perdia nos vales verdejantes e nunca mais voltava.

Suspirando, Maggie voltou à posição normal e trocou as montanhas pela pintura gasta da prateleira. Sem querer, pensou em Ryan Las­siter, em seu sorriso. Imaginou o que ele quisera dizer ao falar em se encontrarem na cidade. Se­ria exagero achar que ele parecera esperançoso em vê-la novamente? Por outro lado, numa ci­dade do tamanho de Willow Flat, acabava-se vendo todo mundo, cedo ou tarde. Talvez ele estivesse apenas dizendo o óbvio.

Maggie suspirou e pegou uma frigideira. Se aprendera algo em seus quase vinte e quatro anos, era que as expectativas levavam quase sempre a decepções. Uma mulher prática colo­caria Ryan Lassiter, seus olhos azuis e covinhas, fora de seus pensamentos. Pôs uma colher de manteiga na frigideira e observou-a derreter.

Ser prática era muito desgastante.

 

Em 1865, cansado da guerra com o Leste, Quintin Lassiter partira para o Oeste à procura de um novo lugar para construir seu lar, um lugar sem o ranço de velhas desavenças. Esta­belecera-se numa faixa de terra junto ao rio Wind, no selvagem território do Wyoming. Era um lugar solitário e isolado, longe de qualquer coisa que pudesse ser chamada de civilização. Contudo, enquanto a maioria das pessoas não via nada além de antílopes, coelhos e índios hos­tis, Quintin vislumbrava uma criação de gado, um lugar para construir seu lar e uma família.

Ao final do primeiro ano, já tinha uma pe­quena cabana, construída com toras que tirara das montanhas à força dos cavalos e um rebanho pequeno, mas as cabeças de gado engordavam nos pastos verdes. De volta à Virgínia, convidou a esposa para se juntar a ele. Marilee Lassiter era uma mulher pequena, loira e de uma beleza tão delicada que pareceria deslocada na vastidão da nova terra, mas a aparência frágil escondia vontade e determinação comparável à do mari­do. Não deixaram nada para trás. No Wyoming, construiriam sua nova vida.

Menos de um ano após a chegada de Marilee, numa ocasião em que Quintin se ausentara da fazenda, um grupo de índios Kiowa, cavalgando mais ao norte que de costume, deparou com a pequena fazenda e atacou sem avisar, ferindo o único empregado dos Lassiter. Marilee, então grávida de sete meses, pegou a espingarda e começou a atirar pelas frestas da cabana, matando um guerreiro e dois cavalos, até que os índios remanescentes decidiram ir embora Quintin che­gou em casa e encontrou o empregado delirando de febre e a esposa, outrora dama da sociedade da Virgínia, desdobrando-se entre os cuidados com o ferido e o rescaldo das construções incendiadas para que começassem logo a reconstrução.

O empregado, quando se recuperou, disse ao patrão que se considerava um homem de sorte por ter contado com Marilee Lassiter na hora do ataque indígena, uma mulher muito brava quando se via acuada. Orgulhoso, Quintin decidiu batizar a fazenda de Sorte dos Lassiter, ou SL.

Distraído, Nathan Lassiter contemplava re­trato de Quintin e Marilee Lassiter sobre a la­reira em seu escritório. Eles haviam enfrentado índios, posseiros e a terra em si para fundar as bases da prosperidade para seus descendentes. Depois deles, cada geração construiu mais e mais sobre aquelas fundações. Numa época em que as fazendas familiares sucumbiam devido à combinação de impostos altos, empreendimen­tos imobiliários e obsessão dos americanos por baixos teores de gordura, a SL seguia solidamente ancorada. Nathan passara boa parte da vida trabalhando para que assim fosse, embora, por algum tempo, imaginasse representar a úl­tima geração de Lassiters ali.

Mas isso fora antes de Duncan e Sylvie lhe trazerem Ryan. O menino adaptara-se à vida na fazenda como um patinho à água. Interes­sara-se por tudo, queria aprender tudo. Decep­cionado com o desinteresse do filho, Nathan es­pantara-se com o entusiasmo do neto por tudo o que se relacionava à fazenda. Enquanto Dun­can se sentia preso na fazenda, Ryan adorava a liberdade dos espaços amplos que ela oferecia. Duncan era um cavaleiro mediano, Ryan parecia ter nascido sobre a sela. Duncan se irritava com o silvo constante do vento, Ryan adorava a mis­tura de aromas de pinheiros e arbustos que im­pregnava o ar da SL.

Nathan se acalmara um pouco quanto ao fu­turo da fazenda. O amor do neto pela SL era tão forte e profundo quanto o seu. Ao desposar Sally McIntyre, Ryan parecia estar dando mais um passo em direção ao futuro. John McIntyre era capataz da SL havia um quarto de século, tendo substituído o pai na função. Os McIntyre eram tão parte da SL quanto os próprios Las­siter. O filho, Tucker, era o melhor amigo de Ryan e, quando Ryan se apaixonou pela caçula, tudo pareceu perfeito.

Talvez perfeito demais, pensou Nathan, lembrando-se dos meses de enfermidade de Sally e da desolação de Ryan durante o enterro da esposa.

Voltou-se e foi até a janela. Ryan e o amigo aproximavam-se da casa. Quando a caminhone­te chegara, vira Seth Balkins sair do alojamento para ajudá-los a descarregar a égua antes de desatrelar a carreta. Outro projeto de salvamento de Ryan, sem dúvida. O menino tinha fraco por pássaros feridos, cachorros aleijados, cavalos que mais ninguém queria Uma atitude estúpida para um fazendeiro, pensou Nathan, meneando a ca­beça desanimado. Em uma fazenda, cada um ti­nha que andar com as próprias pernas, incluindo os animais. Sorriu ao pensar nas criaturas inúteis que passaram pela SL nos últimos vinte anos.

Ryan riu de algo que Doug disse e Nathan se animou um pouco. Não vira Ryan rir nos últimos anos. Ele se abalara demais com a morte de Sally. Todos se abalaram. Ela era tão jovem e cheia de vida. Ninguém dissera a Ryan que ele não devia lamentar, porém, já fazia quatro anos e o menino ainda vivia como se não hou­vesse amanhã, passando o tempo atrás de five­las extravagantes, como se quisesse ser arre­messado do lombo de um cavalo xucro para que­brar o pescoço. Se continuasse assim, acabaria conseguindo, cedo ou tarde.

Mas Ryan estava de volta. E machucado. Não era a primeira vez que voltava para se recuperar de ferimentos. Nathan não perdia a esperança de que o menino percebesse que era hora de abandonar os rodeios, esquecer o passado. No entanto, Ryan retomava ao circuito, assim que seus ossos se colavam. Qualquer dia desses, não voltaria mais para casa.

Nathan fechou o punho sobre o espaldar da poltrona de couro e remexeu o maxilar, determinado. Havia trinta anos, perdera o filho, por teimosia. Não perderia o neto. Não se pudesse fazer algo para evitar.

— O que aconteceu desta vez? — Sara Mclntyre meneou a cabeça, desanimada ao ver o gesso no braço de Ryan.

— O nome do cavalo era Temporada de Sorte — contou ele, como se isso explicasse tudo.

— Devia ter tido o juízo de não montar um cavalo com esse nome. Temporada de Sorte não para o peão, claro.

— Está coberta de razão. — Ele pousou o bra­ço bom sobre os ombros de Sara, estreitando-a. — Voltei para você cuidar de mim.

— Se acha que vou ser seus braços e pernas após ter sido estúpido o bastante para montar num cavalo xucro, pode desistir — avisou Sara, brava. — É mais provável que o coloque para trabalhar. A despeito das palavras duras, Sara franziu o cenho, preocupada ao sentir a rigidez das ata­duras ao redor das costelas dele. Imaginou se ha­via mais ferimentos, mas não ousou perguntar. Desde que ele se movimentasse com cuidado, não demonstraria preocupação. Não conhecia ninguém mais alérgico a paranóias do que ele.

— Lembra-se de Doug. — O tom não era nem interrogativo, nem afirmativo.

— Claro. — Sara sorriu amigável. — Passou o dia de Ação de Graças conosco há dois anos. Como vai?

— Não posso reclamar. — Doug sorriu. — Ain­da mais agora que estou me livrando deste cau­bói desconjuntado. Ele não parou de falar nesses dois dias de viagem.

— Ele sempre foi tagarela. — Sara alargou o sorriso. Lembrava-se de Doug e apostava que, se alguém falara pelos cotovelos, não fora Ryan. — Mas não vamos ficar aqui parados no saguão — ralhou, abrindo caminho para a sala. — Entrem. Já vamos preparar um quarto para você, Doug.

— Aprecio o convite, mas vou pegar a estrada — recusou o rapaz. — Tenho um encontro com um touro em Montana depois de amanhã, e devo percorrer mais duzentos ou trezentos quilôme­tros hoje.

— Acho que o touro não espera, não é? — indagou Sara, sabendo a resposta.

— Não, senhora. Touros não têm muita pa­ciência. — Doug meneou a cabeça, solene. — A espera parece deixá-los mais nervosos e difíceis de lidar, então, é melhor eu pegar a estrada.

— Não antes de eu preparar uns sanduíches para você levar — insistiu Sara. — Enquanto isso, você toma uma sopa. Sobrou um pouco do jantar de ontem e acho que está mais gostosa agora.

— Bem, acho que uns minutos não farão di­ferença — disse Doug, cedendo à tentação.

— Claro que não. — Sara parecia satisfeita por ter vencido. — Também vai querer, Ryan?

Ele meneou a cabeça.

— Vou esperar o jantar. Só vou levar minha bagagem lá para cima.

— Acho que não adianta dizer que não devia carregar peso, não é? — repreendeu Sara, sem­pre maternal.

— Não, não adianta — confirmou ele, com um sorriso.

— Ryan não está tão mal quanto parece — garantiu Doug. Tendo colocado o chapéu no aparador do saguão, passou a mão pelos cabelos cor de areia, tentando organizar os fios. — Sei que ele parece magro, mas não o paparique, pois é capaz de se fingir de doente para não traba­lhar. Sabe como são esses peões de cavalo xucro, fazem um escândalo por qualquer coisinha...

— Por que não vai comer antes que eu decida tirar alguns dos seus dentes? — ameaçou Ryan, divertido.

Doug riu e pousou o braço nos ombros de Sara.

— A verdade é que não se deve jogar pérolas aos porcos, sra. McIntyre, referindo-me a seu talento culinário. Ele não sabe apreciar. Agora, eu não faço uma refeição caseira há meses. A última vez foi quando estive em casa e mamãe preparou ostras à la montanhas Rochosas. Sabe, isso me lembra a vez em que tio Leonard nos visitou. Ele morava lá para os lados do Novo México e só comia pratos bem apimentados. Ele trouxe pimenta e mamãe teve um chilique quan­do ele pediu para ela caprichar na...

Ryan meneou a cabeça enquanto a voz de Doug sumia pelo corredor. Nunca vira ocasião em que ele ficasse sem uma história para contar.

Voltou-se e pegou a bolsa de roupas, prague­jando baixinho quando as costelas acusaram ex­cesso de peso. Das outras vezes, não doera tanto. Talvez fosse a idade dando seus sinais.

— Qual foi a gravidade desta vez?

Sobressaltado, Ryan aprumou-se rápido de­mais, mas ignorou a dor que tomou conta de todo seu tórax ao voltar-se para o avô. Parado à porta de seu gabinete, Nathan tinha a ex­pressão impassível.

Algo em sua posição, meio na sombra, meio à luz, tirava-lhe a familiaridade, tomando-o um estranho. Por um instante, Ryan recuou vinte anos no tempo. Contava dez anos novamente, acabava de conhecer o avô, não tinha certeza de ser bem-vindo e imaginava se haveria lugar para ele ali. O sentimento desapareceu tão rá­pido quanto surgiu. Não tinham se despedido direito da última vez.

— Braço quebrado, três costelas quebradas — respondeu, objetivo. Forçou um sorriso. — De acor­do com Doug, o cavalo dançou tango sobre mim.

Nathan assentiu sem sorrir.

— Foi bom não ter sido em cima da sua cabeça.

— Também achei.

— Vi você descarregando uma égua. — Na­than aproximou-se enquanto falava. — Outra de suas caridades?

— Ela está com alguns problemas, mas tem pedigree. Pode dar um pouco de trabalho, mas acho que dará uma boa montaria de apartação. — Ryan segurou a bolsa de roupa com mais força. Estava cansado e machucado. A égua escoiceara quando a descarregaram, empurrando-o para a lateral do trailer, despertando-lhe cada ponto de dor que tentava esquecer.

Nathan desdenhou.

— Em outras palavras, ela estava a caminho das latas quando a comprou.

Ryan deu de ombros. Não podia negar. Nem podia explicar o que o levara a comprar a égua que todo mundo achava incurável. Algo no olhar dela o tocara e não pudera ficar parado, vendo-a ser vendida para as fábricas.

— Posso trabalhar com ela — justificou.

— Por quanto tempo? — Nathan apontou para o gesso. — Até tirar isso e voltar para o circuito? Ryan, aqui não é casa de repouso para vaga­bundos de rodeio e rejeitos de fábricas de cola.

Ryan ficou tenso, o olhar muito frio.

— Posso ir a outro lugar, se preferir.

O temperamento dizia a Nathan para man­dá-lo, mas uma voz fraca o deteve. Encarando o neto, soube que, se fosse embora agora, ele não voltaria mais. Como era exatamente isso que queria evitar, controlou a raiva.

— Esta é a sua casa — lembrou, tenso. — Mesmo que não se lembre disso com freqüência.

Ryan absteve-se de uma resposta áspera. Es­tava cansado das discussões. Podia acabar com elas informando ao avô que voltara de vez, mas o orgulho o impediu. Não permitiria que o velho senhor achasse que podia controlar sua vida.

— Obrigado — murmurou, esforçando-se para manter a voz impassível.

— Esta é sua casa — repetiu Nathan.

O silêncio pairou entre eles, juntamente com a sensação de raiva, frustração, palavras não ditas, orgulho e teimosia. No barracão, um cavalo re-linchou e o som serviu para quebrar a tensão.

— Vou desfazer a bagagem — disse Ryan.

— Vai descer para o jantar?

— Claro. — Ele hesitou um momento, que­rendo dizer algo mais, querendo diminuir a dis­tância que os separava, mas não encontrou as palavras. Talvez não houvesse palavras, pensou, cansado. Sem falar nada, passou pelo avô e su­biu a escada. Imaginava se cometera um erro voltando para casa.

Ainda no saguão de entrada, Nathan observou o neto subir a escada. Ryan tentava disfarçar, porém movimentava-se lento e rígido. Emagre­cera desde o Natal. Algumas semanas saborean­do a comida de Sara e a carne voltaria a envolver seus ossos. No entanto, seria preciso mais que boa comida para lhe tirar a sombra dos olhos. Estava na hora de Ryan voltar para casa. Mais do que na hora. E faria tudo para que ele en­xergasse esse fato.

— Se quer que ele vá embora de novo, começou bem—repreendeu Sara, a suas costas, assustando-o.

Nathan voltou-se de cenho franzido.

— Eu sei como lidar com ele.

Ela desdenhou, sem se amedrontar com a ex­pressão do patrão. Deixara Doug tomando a sopa na cozinha e chegara a tempo de ouvir o final da conversa entre Nathan e Ryan.

— Se lidasse com o gado do jeito que lida com seu neto, estaríamos falidos há anos. Você o pressiona demais. Ele não é mais criança.

— Está na hora de Ryan voltar para casa. Não o criei por vinte anos para que passasse o tempo entretendo um punhado de caubóis do asfalto, deixando-se arremessar de um cavalo xucro — desabafou, frustrado.

— Não o criou para obedecer a ordens, tam­pouco — observou ela.

— O menino é teimoso como uma mula — replicou Nathan, amuado.

— Ora, ele é muito parecido com você. — Sara encarou-o intrépida. — Dê um pouco de corda a ele, Nathan, ou vai acabar se arrependendo.

— Mais do que já dei? Parece até que está tentando se enforcar com ela! — Nathan encer­rou a conversa voltando ao gabinete.

Sara fitou a porta fechada por alguns instantes, os olhos cintilantes de irritação. Faria o que pu­desse para incutir juízo na cabeça daqueles dois.

 

Na semana seguinte ao enguiço do carro, Maggie debateu-se com vá­rios dilemas. Para começar, analisou se seria menos dispendioso mandar consertar o carro ou trocá-lo por um outro com menos quilometra­gem. Cogitava também ir morar sozinha, o que significava desistir da idéia de se aproximar da mãe. Além disso, perturbava-se com sua falta de ambição, acomodada naquele emprego de garçonete no Bar do Bill havia três anos já. Ima­ginou até se o próximo presidente seria demo­crata ou republicano, porém, como faltava al­gum tempo para as próximas eleições, descartou esse tema.

Só não se permitiu pensar num assunto: Ryan Lassiter.

Já tivera, ao longo de seus quase vinte e qua­tro anos, sua porção de sonhos. Quando era pe­quena, fantasiava que o pai, que abandonara a família quando ela contava poucos meses, fora seqüestrado por uma seita misteriosa e ainda não conseguira voltar para casa. Na adolescên­cia, a fantasia ganhara tons realistas e nela o pai comparecia a sua formatura de segundo grau, trazendo presentes e pedindo perdão pelos erros que cometera. Naturalmente, ela seria a epítome da graciosidade, aceitando tanto os pre­sentes quanto o pedido de perdão.

Acalentara outros sonhos, como o de ser bai­larina, de se tomar uma fotógrafa mundialmen­te famosa, de ser contratada como chefe de co­zinha da Casa Branca, de acordar quinze cen­tímetros mais alta e dez quilos mais magra.

Acabou desistindo do pai, aceitando que baila­rinas baixas e robustas não tinham muita chance de sucesso e que Washington, D.C., era muito úmi­da, terrível para quem tinha que passar o dia inteiro na cozinha. Mas ainda fotografava de for­ma amadora e, embora ainda não tivesse ganho nenhum prêmio, recebera cartas de recusa muito atenciosas de revistas especializadas em natureza e vida selvagem. Só não perdera ainda a esperança de crescer dez centímetros e emagrecer dez quilos da noite para o dia, mas encarava filosoficamente a improbabilidade de isso acontecer.

Entendia que os sonhos faziam a vida valer a pena. A concretização não era tão importante quanto os sonhos em si. No entanto, precisava ser cuidadosa. Se colocasse muita fé nos sonhos, podia acabar decepcionada. Era mais seguro fan­tasiar sobre o improvável ou o categoricamente impossível. O problema era quando sonhava com coisas que estavam quase a seu alcance.

Ryan Lassiter representava um sonho de alto risco. Vamos nos encontrar na cidade? Maggie meneou a cabeça enquanto passava um pano úmido sobre a mesa, removendo sal e manchas de catchup. Era compreensível que sua vida so­cial fosse aquela pobreza, já que perdia tempo pensando numa frase sem significado como aquela. Talvez, se tivesse vida social, não gas­tasse horas divagando sobre um par de olhos azuis e um sorriso bonito e malicioso.

— Ei, Maggie, que tal mais uma rodada?

— Que tal você ir para casa, Virgil? Aliviada com a distração, Maggie guardou o pano no bolso do avental e voltou-se para o in­terlocutor. Virgil Mortenson vinha sempre ao Bar do Bill. Aparecia à tarde, duas ou três vezes por semana. Sentava-se na mesma mesa e não conversava com outros freqüentadores. Nunca se embebedava demais, nem se tomava incon­veniente, suas mãos não tremiam e era sempre educado, não importava quanto uísque tivesse tomado.

Naqueles três anos de trabalho ali, Maggie aprendera a distinguir vários tipos de consumi­dores. Alguns bebiam socialmente, até três do­ses, quando estavam no bar. Outros bebiam por­que adoravam o sabor da bebida, sentindo o líquido descer pela garganta, a exemplo dos apre­ciadores de vinho. Entretanto, achava que a maioria das pessoas bebia em excesso porque assim tinham uma desculpa para fracassar. Não importava o que fizessem, na manhã seguinte, culpavam a bebida.

Virgil era um caso único, pelo que sabia. Ele simplesmente se sentava, sozinho, e bebia sem parar. Parecia saber exatamente quanto podia beber sem se exceder. Quando chegava no limi­te, pagava a conta, saía cambaleante e cami­nhava duas quadras até seu quarto alugado em cima da mercearia. Sabia porque o seguira al­gumas vezes, temerosa de que não conseguisse chegar em casa.

O Bar do Bill não era o tipo de estabeleci­mento que incentivava a bebedeira, mas Virgil não era o único caso de excesso por ali. De em quando, vez alguém superestimava sua capaci­dade e exagerava na bebida, mas Maggie nunca sentira a mesma preocupação que tinha para com Virgil.

Bill contou-lhe que Virgil fora um fazendeiro com fama de domar cavalos difíceis. Seis anos antes, a esposa e dois filhos voltavam para casa vindo de Cheyenne quando foram surpreendidos por uma tempestade de neve tardia, num ponto bastante ermo da estrada. Levaram dias para encontrar os corpos.

Em pouco tempo, Virgil perdia a fazenda, por azar ou má administração, dependendo de quem contasse a história. Bill dizia que o coração dele não era mais o mesmo. Na cidade, alugara aque­le quarto em cima da mercearia e sobrevivia executando trabalhos esporádicos ou temporá­rios, gastando quase tudo o que ganhava com bebida. Freqüentava o Bar do Bill havia alguns meses, mas Maggie tinha informação de que ele bebia pesadamente havia uns dois anos.

— Vá para casa, Virgil — aconselhou, nova­mente, a voz suavizada pela compaixão.

— Não há nada em casa — respondeu ele.

Não havia autopiedade nas palavras. Era ape­nas um fato. Ele esboçou um sorriso que a dei­xou desolada. Por um segundo, ele externou um pouco de bom humor no olhar, dando uma leve indicação do homem que um dia fora.

— Além disso, eu lhe digo, não é bom beber sozinho.

— Bem, pelo menos coma alguma coisa, então — sugeriu Maggie, certa de ele já atingira seu limite de álcool naquele dia. — Vou lhe trazer um hambúrguer.

— Não estou com fome — declarou Virgil, pa­recendo surpreso. — Só preciso de outra bebida...

— Bem, não vai ter outra bebida enquanto não colocar algo sólido no estômago. E não me diga que não pode pagar pela refeição — ad­vertiu Maggie, prevendo o argumento. —Temos uma promoção hoje. Mais cinqüenta centavos e leva uma porção de batata frita e um copo de leite. Como gosta do hambúrguer... mal-passado, normal ou bem passado?

— Mal-passado — informou ele, parecendo inconformado.

— Ótimo. Já volto com seu leite.

— Mas, eu...

Maggie afastou-se, ignorando a fraca tentati­va de protesto. Quando voltou com o copo de leite, Virgil ainda parecia confuso. Pousando a bebida na mesa, afastou-se sem lhe dar chance de argumentar.

— Que história é essa de promoção? — Bill Martin ergueu a sobrancelha espessa quando Maggie passou perto. Era meio da tarde num dia útil e o bar estava quase vazio, de modo que ouvira a conversa entre ela e Virgil.

— Parece que ele não faz uma refeição decente há semanas — explicou ela. — Eu pago a diferença.

— Não se preocupe com isso — relevou o patrão. — Virgil costumava ser um bom camarada. É bom ver que alguém se importa com ele. — Sorriu quando o cliente estranhou o copo de leite, ima­ginando como fora parar na sua frente. — Só es­pero que o choque não acabe com ele de vez.

— Ele precisa de ajuda — opinou Maggie, compadecida.

— Precisa — concordou Bill. — Mas ninguém pode forçá-lo a aceitar ajuda.

— Acho que não. — Maggie suspirou. Sabia que Bill tinha razão. Ninguém podia ajudar Virgil, a não ser que ele quisesse. — Bem, pelo menos, saberei que ele fez uma refeição decente hoje.

— Você tem um bom coração, Maggie — disse Bill. — Vai acabar despedaçado um dia desses.

— Meu coração é mais forte do que você pensa. Maggie voltou-se sorrindo, mas ficou séria quando, sem motivo algum, a imagem de Ryan Lassiter surgiu em seus pensamentos. Falando em despedaçar o coração... Soltou um suspiro. Ora, Maggie Drummond não corria esse risco. Não teria o coração despedaçado por um homem como aque­le, mas alguma mulher, em algum lugar, se ma­chucaria, ou veria seus sonhos realizados.

Ryan visitou o Bar do Bill pela primeira vez algumas semanas depois que os pais o deixaram na casa do avô. Começando a acreditar que Na­than queria mesmo que ele ficasse, tentara ab­sorver tudo sobre a fazenda de uma vez só. Fora à cidade comprar suprimentos na companhia de Lou Kleinman, funcionário da SL desde o tempo do pai de Nathan. O velho caubói respondera a todas as suas perguntas ao ser deixado na fazenda pelos pais, aos dez anos, sem nunca perder a paciência, nem sem se cansar de contar detalhes sobre a vida e o trabalho dos vaqueiros. Naquele verão, tomara-se a sombra de Lou.

Antes de pegarem a estrada de volta, Lou su­geriu uma cerveja no Bar do Bill, só para molhar a garganta. O amplo salão era a epítome do bar do Oeste aos olhos inexperientes de Ryan. Vinte anos depois, continuava igualzinho, pensou, ao empurrar a porta. Teto baixo, Iluminação fraca, exceto pelas luminárias quadradas sobre as me­sas de jogos, os balcões e mesas de madeira es­cura com assentos de vinil cor de vinho já bem gastos. Quando garoto, adorava sentar-se num dos bancos altos do bar, os pés mal alcançando o apoio. Bill lhe servia refrigerante com três cerejas ao marasquino, ou um Roy Rogers, mis­tura de açúcar e colorante comestível, perfeito para estragar os dentes das crianças em tempo recorde. Saboreando o refresco, ouvia os homens se informando sobre o preço da arroba de boi, o resultado dos jogos, os cavalos, sempre recla­mando de esposas que não os entendiam e ainda mais das que entendiam.

Durante aquelas visitas vespertinas, Ryan descobriu o que significava ser um verdadeiro homem do Oeste, orgulhoso da convivência com a terra, longe da civilização, independente por temperamento e necessidade, convencido de que a palavra existia para ser cumprida, consciente de que a mulher merecia o respeito e a proteção do homem. À medida que amadurecia, dava-se conta de que os moradores do Oeste não hon­ravam os compromissos mais do que os habi­tantes de outras partes do país, mas continuou com aqueles ideais, satisfeito em se guiar por aqueles preceitos.

— Ouvi dizer que voltou para casa — comen­tou Bill, quando Ryan se aproximou do bar e colocou o chapéu sobre um banco vazio. — Con­tavam também que estava ferido, mas ainda capaz de andar. — Indicou o gesso. — Só não conseguia imaginar, pois diziam que tinha quebrado as duas pernas, os dois braços e a clavícula, estando encerrado numa placa única de gesso. E outros diziam que tinha quebrado só um dedo...

— É bom saber que as fofocas continuam a todo o vapor — ironizou Ryan. — Esclareço que quebrei o pulso e três costelas.

— Ora, não admira terem aumentado a his­tória. Placa única de gesso é muito mais inte­ressante. O de sempre?

— Por que não coloca uma cereja a mais? Sin­to-me como se vivesse perigosamente.

Rindo, Bill colocou gelo num copo, girou a ca­deira de rodas com um toque firme de pulso e pegou refrigerante na máquina. Após acrescen­tar as quatro cerejas, lançou o copo deslizando pelo balcão, de modo que parasse bem diante de Ryan.

— Mais clientes como você e acabarei falido — resmungou, brincando.

— Que fazer, se as outras bebidas não têm graça nenhuma?

— Não é patriótico — opinou Bill, virando a cadeira de rodas para atender outro cliente.

Ryan tomou um gole de refrigerante e se dei­xou envolver pela atmosfera. Na vitrola, Alan Jackson lamentava o fato de tudo o que amava estar acabando com ele. Dois homens mais ve­lhos jogavam sinuca na sala dos fundos. O cheiro de cigarro, uísque e batatas fritas lhe trazia lem­branças do passado.

Como o resto da cidade, o Bar do Bill não mudara nada desde que era criança. Bill tam­bém continuava o mesmo. Os cabelos estavam mais grisalhos e o rosto, mais marcado de rugas, mas eram mudanças mínimas.

Bill fora campeão de montaria em touro na juventude, mas uma queda de mau jeito o dei­xara paraplégico. Não era do tipo que lamentava o que não podia ser mudado. Com o dinheiro que economizara para um dia ter sua própria fazenda, comprara um bar decadente e um res­taurante e encomendara todas as adaptações para que pudesse trabalhar de cadeira de rodas. Já fazia trinta anos e os moradores quase não se lembravam da época em que o Bar do Bill não estava lá.

— Como vão as coisas? — indagou Ryan, quando Bill retomou.

— Não posso reclamar. Os negócios vão bem. Bem demais, em alguns casos...

O banco rangeu quando Ryan olhou por sobre o ombro na direção apontada.

— Virgil ainda está tentando se matar de tanto beber? — murmurou, voltando-se para a frente.

— Está empenhado. — Bill passou um pano úmido sobre uma mancha invisível na superfície do balcão. — É mesmo uma pena.

— Alguém tentou falar com ele ultimamente? — Distraído, Ryan passou o polegar esquerdo sobre a base do anular.

— Bobby Rayczek tentou há alguns meses. Ofereceu-lhe um emprego na Rocking D.

— E?

Bill meneou a cabeça.

— Virgil não aceitou. Não deu motivo. Apenas disse que não estava interessado.

— Não se pode ajudá-lo, se ele não quiser.

— Foi o que eu disse a Maggie agora há pouco.

— Maggie? — Ryan encarou-o, surpreso. — Maggie Drummond?

— Você a conhece? — Bill mostrou-se apenas levemente curioso. Numa cidade do tamanho de Willow Flat, a maioria das pessoas acabava se encontrando, cedo ou tarde.

— Doug Tennent e eu demos uma carona a ela quando seu carro quebrou na estrada, se­mana passada. — Desde então, vinha pensando em Maggie mais do que esperara, ou queria.

— Muito boa moça. Coração do tamanho do Texas. — Bill indicou de novo Virgil. — Disse a ele que não lhe serviria mais bebida se não comesse alguma coisa. Não é que ele cedeu?

Ryan tentou imaginar a loirinha bonita de sorriso amigável intimidando alguém, mas não conseguiu. Entretanto, a imagem de Maggie Drummond em si era bem clara. Franziu o cenho. Com certeza, já se esquecera de mulheres mais bonitas, mas algo em Maggie o perturbava, o sorriso sincero, os grandes olhos cinza... Talvez o instante de alerta que ela deixara transpare­cer quando lhe oferecera apoio para descer da caminhonete. Era preocupante, mas não podia negar que a moça não lhe saía da cabeça.

Olhou para a porta que levava à cozinha e Maggie surgiu com uma cestinha de plástico ver­melha contendo um hambúrguer e uma porção de batata frita. Usava calça jeans e uma blusa de algodão de mangas curtas azul-claro, os ca­belos presos num rabo-de-cavalo. Tinha ainda um avental branco simples amarrado à cintura, não do tipo com babadinhos, mas um que pa­recia de carpinteiro, com vários bolsos.

Ela não o viu. Pela expressão, parecia con­centrada em Virgil Mortenson. Continuava com o queixo determinado e devia ser mesmo capaz de intimidar.

— Lá vai ela — sussurrou Bill, apreensivo. Ryan já acompanhava a progressão de Maggie pelo salão.

Apreensivo, Virgil ergueu o olhar quando ela se aproximou.

— Maggie, aprecio o que está fazendo, mas não quero...

— Coma. E beba o leite também. — Ela pou­sou o lanche diante dele, desafiadora.

— Não entendo por que se dá ao trabalho... — protestou, o tom um meio-termo entre recla­mação e lamentação.

— Ora, por que quero! — decretou Maggie, irredutível.

— Eu não preciso vir aqui — ameaçou ele, inseguro. — Posso ir a outros estabelecimentos.

— Sim, pode. — Maggie não parecia acreditar nessa possibilidade. Parada com as mãos nos quadris, aguardou.

Virgil olhou para o lanche e, então, para ela. Vai me trazer outra bebida?

— Quando acabar de comer tudo — prometeu Maggie, sem suavizar o olhar.

— Não tomo leite desde que era menino... — Relutante, Virgil pegou uma batata frita.

— Negócio fechado? — pressionou Maggie, mais branda.

Ryan conteve o riso. O coitado do Virgil pa­recia não entender o que o atingira.

— Posso ir a outro lugar — resmungou Virgil, pegando o hambúrguer. Desta vez, parecia mais reassegurar-se do que ameaçar.

— Este é um país livre — concordou Maggie, deixando-o.

— Quero minha bebida quando acabar com isto! — advertiu Virgil.

— Eu trago.

— Está tentando espantar os fregueses? — ralhou Bill, quando Maggie se aproximou do bar.

O patrão sorriu e Maggie soube que ele estava só brincando. Também espantava-se com a pró­pria atitude. Pensando bem, talvez Virgil esti­vesse certo, talvez não fosse de sua conta o fato de ele se embebedar dia sim, dia não.

— Talvez não devesse ter dito nada — mur­murou, sentindo-se culpada.

— Claro que devia — opinou o freguês ao bal­cão. — Fará bem a Virgil ter alguém que o anime um pouco.

Só então Maggie reparou no homem que Bill atendia. Ele estava de calça jeans desbotada, camisa de cambraia azul que refletia a cor de seus olhos e os cabelos castanho-escuros meio desgrenhados, como se ele tivesse passado a mão para acertar os fios. Ryan Lassiter parecia ainda mais bonito do que se lembrava e sentiu o co­ração bater forte quando seus olhares se encon­traram. Sentindo-se afogueada, desejou que a iluminação enfraquecesse para não revelar o rubor em seu rosto.

Apesar dos esforços, pensara muito nele na última semana, imaginando se o veria novamen­te. Talvez na mercearia, talvez na rua, quando ele passasse de carro junto à calçada pela qual estivesse caminhando. Vagamente, nutria a esperança de que ele aparecesse em sua casa. Tal perspectiva causava-lhe ansiedade, pois, se ele a procurasse, significaria que não somente ela sentira atração. E se por azar Noreen estivesse em casa? Nunca imaginara que ele pudesse apa­recer no Bar do Bill, embora a probabilidade fosse muito maior. Praticamente todo mundo na cidade passava pelo Bar do Bill, com maior ou menor freqüência.

— Maggie? — chamou Bill.

Maggie deu-se conta de que olhava para Ryan havia um bom tempo sem dizer nada.

— É... não esperava ver você aqui — comen­tou, meio gaga, disfarçando que estivera em transe. Ryan parecia surpreso com sua agitação. — Quero dizer... não esperava vê-lo mais. Em particular, quero dizer... Ou em lugar algum em particular... Ou vê-lo mais, para dizer a verdade. Não especificamente, quero dizer...

Maggie decidiu se calar, ciente das frases des­conexas. Bill olhava-a curioso, talvez imaginan­do que ela enlouquecera. Não que o culpasse. Receosa de fitá-lo novamente, sentia as faces ardendo como se fossem entrar em combustão espontânea e lamentou ter a pele tão clara. De­via estar parecendo um sinal de "pare", pensou, desesperada. Por que um raio não a atingia na­quele instante, acabando com sua agonia?

— Conheço Bill desde menino — contou Ryan, decidindo-se por uma resposta descontraída. — Mas passei os últimos anos fora e fazia tempo que não tomava meu drinque favorito, que só meu amigão aqui sabe preparar.

— Oh, entendo... — Maggie forçou-se a olhar para ele. Ainda estava em tempo de se recuperar, pois Ryan não parecia considerá-la louca, ainda. Tentou sorrir. — Mas como não vi você entrar?

— Você estava na cozinha pegando um lanche para enfiar goela abaixo do pobre Virgil.

— Eu não enfiei goela abaixo — protestou Maggie, olhando pesarosa para Virgil, que con­sumia o hambúrguer de má vontade.

— Mas teria, se ele não cedesse — apostou Ryan. — Eu tremi na base.

Ryan deu seu sorriso irresistível e Maggie alargou o dela.

— Só não podia ficar mais uma tarde vendo-o ali sentado, bebendo até não poder mais, e não fazer nada.

— Outras pessoas já tentaram ajudar Virgil — lembrou Bill. — Mas não sei de ninguém obrigando-o a se alimentar.

Maggie enrubesceu de novo, mas ergueu o queixo.

— Na verdade, ele precisa de refeições com­pletas e regulares, mas esse lanche já é melhor do que nada...

— Muito melhor — apoiou Ryan.

— Perder a família daquele jeito foi terrível, mas não significa que ele deva jogar a vida fora assim. A gente não pode se enterrar junto quan­do perde alguém que ama...

Houve uma pausa, breve, mas não o bastante para passar despercebida. Maggie notou o jeito como Bill olhou para Ryan, que parecia fitar um ponto perdido. Que lembranças estaria ten­do, para ficar assim?

— Não, a gente não deve se enterrar junto — concordou Ryan, tom um sorriso que não com­binava com os olhos tristes. Ganhou tempo sor­vendo um bom gole do refrigerante. Parecendo recuperado, olhou para Maggie. — Consertou seu carro?

Ryan já não tinha a expressão sombria, mas ela sabia que vislumbrara algo, só por um ins­tante. Aceitou a mudança de assunto.

— Precisa mesmo de uma transmissão nova, por isso, lembrando-me de sua sugestão, procu­rei Frank Luddy.

— Seu amigo, Luke, não podia fazer o serviço? — indagou Ryan, casual. Mas talvez não casual o bastante, pensou, ao captar o olhar interro­gativo de Bill.

—Era complicado demais para ele — disse Mag­gie. — Concordou que era melhor levar a Luddy.

— Que bom que deu tudo certo — concluiu Ryan, tentando não demonstrar todo o entusias­mo que sentia por ter reencontrado Maggie, po­rém, o brilho no olhar de Bill indicava que não se saía tão bem.

— Não sabia que Luke Brakman continuava trabalhando — disse Bill, enfatizando o nome. — Lembra-se do velho Luke, não é, Ryan? Ele é vizinho de Maggie, o antigo dono da oficina de Luddy, certo?

— Foi o que ele disse. — Maggie sorriu, sem perceber a conversa velada que os dois homens entabulavam com o olhar. — Há anos troco ro-cambole de canela por serviços mecânicos, mas Luke disse que não haveria rocamboles suficien­tes para trocar pela transmissão. Além disso, não tinha mais as ferramentas e estava velho demais para fazer o serviço.

— Luke tem idade, sim. Setenta e cinco, cal­culo. Não é isso, Ryan?

— Mais ou menos.

Pessoas que o conheciam muito bem eram uma praga, pensou Ryan. Principalmente aquelas que o conheciam tão bem que interpretavam em sua voz intenções que nem ele mesmo admitia.

O telefone tocou e Ryan aliviou-se com a interrupção, já que o aparelho estava na outra ponta do balcão. Bill pediu licença, virou a ca­deira de rodas e foi atender, deixando Ryan so­zinho com Maggie.

Olhando para ela, Ryan ainda não via motivo óbvio para não ser capaz de esquecê-la. Era bo­nita, mas de um jeito sereno, não o tipo de mu­lher que chamava a atenção nas ruas. De qual­quer forma, quando olhava para ela, sentia algo... Não sabia dizer exatamente o quê, mas lembrava-se de cada detalhe. Havia aquele den­te da frente ligeiramente torto e a curva da boca. O nariz era pequeno e reto, porém não extraor­dinário. Deviam ser os olhos, concluiu. Grandes, ornados por cílios grossos e cintilantes, sempre arregalados, como se ela achasse o mundo muito interessante. Naquele momento, estavam mais azuis que cinza, combinando com a blusa que ela usava por dentro da calça, e ele não deixou de notar as curvas sedutoras de seu corpo, apesar do avental. Sempre achara que calças jeans caíam me­lhor em mulheres de pernas longas, mas percebia agora sua ignorância. A calça justa realçava ma­ravilhosamente as curvas femininas de Maggie.

— Quer outra bebida? — indagou Maggie, indo para trás do balcão.

Ryan disfarçou a decepção por não poder mais apreciá-la.

— Não vai me fazer comer alguma coisa antes? Maggie enrubesceu.

— Acho que já está bem alimentado com as cerejas.

Aquele contraste entre os lábios contraídos de constrangimento e os olhos cintilantes de diver­timento era mais que tentador. Ryan conteve o ímpeto de se inclinar sobre o balcão e tentar extrair o sorriso que ela negava.

— Não sabia que havia propriedades nutriti­vas nas cerejas ao marasquino — comentou, afastando o copo. — Refrigerante puro — pediu.

— Cerejas são frutas — lembrou Maggie, pe­gando o copo.

— Sim, mas, com tanto açúcar, corante e conservantes, são cerejas só no nome.

— Só no nome? — Ela colocou no balcão o copo novamente cheio. — Parece coisa de novela...

— Como "Coração Selvagem"? — sugeriu Ryan, contente ao vê-la rir. Aliás, andava muito alegre, ultimamente.

Fora uma semana longa e difícil aquela. O braço engessado o impedia de executar a maio­ria dos trabalhos diários da fazenda, o que o fazia sentir-se mais como um hóspede do que como parte dela. E, a julgar pela atitude do avô, já não sabia nem se era um hóspede bem-vindo. O fato de poder acabar a tensão contando ao avô que voltara para ficar não aliviava. Talvez fosse teimosia sua, mas não deixaria Nathan pensar que ganhara o duelo de vontades entre eles. Se permanecesse na SL, queria deixar claro que fora sua escolha e não uma concessão ao avô.

— Como está Doug? — indagou Maggie. Ryan apreciou a interrupção dos devaneios.

Já perdera tempo demais ruminando sobre as diferenças com Nathan.

— Ele estava a caminho de Montana quando me deixou aqui. E depois ia para o Oregon e a Califórnia.

— Oh, que viagem!

— Quando você segue o circuito, passa mais tempo ao volante do que no lombo do cavalo... ou touro, no caso de Doug. Alguns caubóis fazem mais de cem mil quilômetros por ano.

— Montaria em touro. — Maggie meneou a cabeça. — Não imagino por que alguém faria isso...

— Nem eu — disse Ryan, dando de ombros. Maggie atentou ao braço engessado.

— Não acredito que montar em cavalo xucro seja mais seguro.

— Cavalos não têm chifres — explicou Ryan, solene. — É disso que não gosto nos touros. Se não tivessem chifres, até que gostaria deles.

— Mas eles não ficariam engraçados assim? — questionou ela.

— Nunca pensei nisso, mas acho que ficariam, sim. — Ele riu, imaginando um desenho de tou­ro sem chifres. — Como o Super-Homem sem aquela camiseta...

A risada de Maggie era irresistível.

— Acho que vai ter que ficar com os cavalos gentis mesmo — concluiu ela.

— Não tão gentis. — Ele ergueu o gesso para enfatizar. Meneou a cabeça e deixou de sorrir.

— Na verdade, acho que para mim, chega. Estou abandonando o circuito. — Era estranho afirmar a decisão em voz alta. Mais estranho ainda era estar participando primeiramente a Maggie.

— Por quanto tempo participou do circuito?

— Entrei e saí várias vezes após me formar no segundo grau. Nos últimos quatro anos, foi em tempo integral. E não diga na frente de meu avô que isso é trabalho — avisou Ryan, amuado. — Ele acha que é um jeito estúpido de um adulto ganhar a vida.

— Talvez se preocupe com os acidentes — considerou ela.

— Talvez. — Ryan inquietava-se toda vez que se lembrava de Nathan. Acabou o refrigerante e pousou o copo no balcão. — Preciso ir.

Ryan desceu do banco e tirou dinheiro do bol­so, mas hesitou após colocar as notas diante de Maggie. Não estava particularmente ansioso em voltar para casa. Não havia nada lá, a não ser um velho teimoso e uma égua que o tratava sem a menor consideração. Contudo, pareceria idiota pedir outro refrigerante, até porque já matara a sede. O que queria mesmo era per­guntar a Maggie dos olhos cinza enormes se podia vê-la novamente.

— Foi bom encontrar você outra vez — de­clarou ela, com um sorriso tímido.

— Você, também...

Virgil resmungou do outro lado do bar:

— Estou pronto para aquele trago, Maggie! Sobressaltado, Ryan olhou por sobre o ombro.

Conhecia Virgil Mortenson havia muito tempo, desde quando ele ainda tinha olhos límpidos, ca­belos bem penteados e pele num tom bronzeado sadio, antes que a família lhe fosse arrancada e sua vida começasse a degringolar, até que já não parecesse nem a sombra do homem que fora. Era o que a perda podia fazer a um homem. Assus­tava-se, pois sabia que não faltara muito para que ele mesmo sucumbisse ao desespero.

Sentindo-se frio por dentro, voltou-se para Maggie e sorriu sem vê-la de fato.

— Diga a Bill que qualquer dia vamos jogar pôquer.

— Direi.

Ryan pegou o chapéu e despediu-se, o olhar distante.

— Nós nos vemos por aí.

— Claro.      

A meio caminho da porta, Ryan abruptamente mudou de direção.

— Olá, Virgil!

Virgil ergueu o rosto quando ele se aproximou da mesa.

— Ryan! Ouvi dizer que se machucou...

— Só uma asa quebrada. — Ryan ergueu o gesso para enfatizar. — Como vai você?

— Vou levando... — Virgil desviou o olhar, afastando a cestinha do lanche.

Ryan já se arrependia de ter abordado Virgil.

Assim como à maioria das pessoas da cidade, conhecia Virgil para dizer olá, para bater um papo tomando cerveja. Eram mais conhecidos que amigos. Só o fato de terem ambos en­viuvado criara uma espécie de ligação entre eles. Miséria compartilhada, pensou Ryan, triste. Não fizera as mesmas escolhas de Virgil, porém, entendia a dor que dominava o outro homem.

— Comprei uma égua quando estava no Texas — contou.

— Ouvi dizer que há muitos cavalos por lá — replicou Virgil, sem disfarçar a ansiedade por um trago de aguardente.

— Ela não gosta muito de gente no momento — prosseguia Ryan. — Pelas cicatrizes, diria que não tem motivo para confiar.

De cabeça baixa, Virgil concentrava-se em do­brar um guardanapo em quadrados cada vez me­nores. Era quase como se Ryan falasse sozinho.

— Imaginei se você não poderia dar uma olha­da na égua, talvez trabalhar um pouco com ela. Nunca vi ninguém melhor do que você para do­mar cavalos teimosos.

Virgil sobressaltou-se, como se tivesse levado um golpe. Encarou Ryan e, então, desviou o olhar.

— Isso foi há muito tempo — lembrou, deso­lado. — Eu não faço mais isso...

Ryan hesitou, dividido entre a vontade de aju­dar e o desejo de se afastar ao máximo de tudo o que Virgil representava. Virgil arregalou os olhos, Maggie devia estar lhe trazendo a bebida.

Não queria vê-la novamente. Ela lhe provocava pensamentos indesejáveis, sentimentos que pre­feria banir. Endireitou-se.

— Bem, se mudar de idéia, apreciaria muito se desse uma olhada na égua — declarou, mes­mo sabendo que era inútil. Mal esperou o outro homem assentir e afastou-se.

Maggie convenceu-se a não ficar decepcionada por Ryan não ter esperado para se despedir dela mais uma vez. Claro que ele não manifestaria o desejo de vê-la novamente. Só se decepcionava quem nutria expectativas e, com certeza, não ti­nha nenhuma no que se referia a Ryan Lassiter.

Recusou-se a acompanhar com o olhar a figura esguia de Ryan. Não obstante, percebeu o mo­mento exato em que a porta se fechou, o que não era bom sinal, concluiu, suspirando com a própria idiotice.

Virgil esboçou um sorriso quando Maggie lhe serviu a bebida.

— Estava gostoso o lanche — disse ele.

— O melhor hambúrguer do Estado. — Ela recolheu a cestinha, satisfeita por ele ter comido tudo. Talvez comida não resolvesse todos os seus problemas, nem mesmo ajudasse, mas uma re­feição decente nunca fazia mal a ninguém.

— Acho que estava mesmo com fome...

— Um homem não vive só de uísque, você sabe.

— Acho que não. — Virgil agarrou o copo de vidro, mas não bebeu imediatamente. — Vira hábito, acho.

— Hábitos podem ser mudados, se há interesse.

Maggie sentia-se inadequada dando conse­lhos. Não era psicóloga e o que sabia sobre al­coolismo podia ser escrito na cabeça de um al­finete. Virgil precisava de ajuda profissional, não de amadores com boa vontade.

— Não é assim tão fácil — resmungou ele, parecendo retroceder à concha.

— Às vezes, o melhor a fazer é o mais difícil. Virgil deu de ombros e ergueu o copo. Maggie sabia que a porta de comunicação estava encer­rada. Voltou-se antes que ele tomasse o primeiro gole. Como Bill dissera, ninguém podia forçar Vir­gil a aceitar ajuda. Ele tinha que querer ajuda.

— Não se pode esperar que um hambúrguer mude a vida de um homem — comentou Bill, verificando o estoque e anotando os produtos que precisava encomendar.

— Não era mesmo a minha intenção — res­pondeu Maggie, sorrindo ante o olhar descon­fiado do patrão.

— Você se importa demais — disse ele, repe­tindo a advertência feita anteriormente. — As pessoas fazem escolhas ruins na vida. Você não pode consertar tudo.

— Eu sei, mas seria bom consertar uma ou outra coisa — considerou Maggie, melancólica.

Olhou ao redor para ver se algum cliente a chamava, mas o bar estava praticamente vazio. Tomando um banco, sentou-se e apoiou os co­tovelos no balcão. Uma das primeiras coisas que aprendera como garçonete era sentar-se sempre que podia. Alguns minutos de descanso aqui e ali durante o dia representavam um grande alí­vio para os pés.

— Você tem um coração grande demais, Mag­gie. — Bill verificou uma garrafa de uísque caro e a devolveu ao lugar, com mais força que o necessário.

— Fala como se fosse uma doença — repli­cou ela.

— Pode se tomar, se for muito machucado.

— Não vou ficar magoada por causa de Virgil. Só gostaria que ele aceitasse ajuda profissional. — Ela exercitou os dedos dos pés, tentando re­laxar da longa jornada em pé.

— Não estava pensando em Virgil. — Bill a en­carou, perspicaz. — Tinha Ryan Lassiter em mente.

— Ryan? — Ela conseguiu parecer surpresa, mas sentiu que corava. Deu de ombros. — Mal o conheço.

— Só porque minhas pernas não funcionam, não significa que sou cego, surdo e mudo — ironizou Bill. — Pois precisaria ser, para não ver a chama entre vocês.

— Você está imaginando coisas.

Uma chama entre ela e Ryan? Então, talvez não tivesse imaginado que Ryan também sentia alguma atração? Começava a interpretar de ou­tra maneira a saída abrupta dele...

— Acho que não — teimou Bill. Largando a garrafa de uísque, pousou os braços musculosos nas laterais da cadeira de rodas. — Ouça, acho que não é da minha conta, mas conheço Ryan desde que ele veio morar com o avô, ainda menino. Conhecia o pai dele também. Duncan não era um sujeito ruim, mas não tinha juízo. Mesmo assim, teria se arranjado se não tivesse se casado com uma mulher com cérebro do tamanho de um amendoim. Eles deixaram Ryan na SL quando ele tinha dez anos e partiram para uma vida de luxo e viagens. Pelo que sei, abandonar Ryan foi a melhor atitude que podiam ter tomado.

Ocorreu-lhe que Ryan podia não gostar que ele contasse sua história a Maggie, mas suas intenções eram nobres.

— John McIntyre é o capataz da SL — pros­seguiu. — Você provavelmente o viu aqui uma ou duas vezes.

Maggie assentiu, lembrando-se do homem ro­busto de cabelos loiros meio grisalhos e olhos castanho-escuros. Não vinha à cidade com fre­qüência, não falava muito, mas tinha um belo sorriso e sempre deixava uma gorjeta generosa.

— Bem, Ryan cresceu com as crianças Mclntyre — continuou Bill. — Três moças e um ra­paz, Tucker. Ele e Ryan têm praticamente a mesma idade. Eram como irmãos e acho que as meninas também consideravam Ryan como um irmão. Pelo menos, as duas mais velhas e talvez, Sally também, até ficar mocinha.

O olhar de Bill era distante, como se visua­lizasse o passado.

— Eu conhecia todas as crianças McIntyre. Eles apareciam aqui de vez em quando para almoçar no sábado à tarde. Tucker gabava-se de ser o mestre do bilhar, mas Annie, a mais velha, podia ganhar dele seis vezes seguidas. Ela deixava Tucker e Ryan loucos. Casou-se com um fazendeiro do Idaho. Lorraine era a do meio. Era muito quieta. Foi para a universidade em Denver e se tornou professora.

— Sally era a caçula, sempre envolvida em algum tipo de travessura. Caia de cavalos que não deveria estar montando, subia nos cata-ven­tos e depois precisava de ajuda para descer, es­tava sempre aprontando. Sempre foi alta para a idade e magrinha. Era só braços, pernas, ca­belos pretos compridos e olhos grandes. Quando era criança, não parecia que ia ficar bonita, mas a natureza prega peças. Nunca entendi o que aconteceu, mas um dia ela era a menina ma­gricela e então, quando fez dezesseis anos, ficou uma moça de tirar, o fôlego.

Ele fez uma pausa, aparentemente perdido nas lembranças. Maggie ajeitou-se no banco. Sentia que não apreciaria o resto da história, em especial o destino da bela Sally McIntyre, mas estava entretida demais para interromper. Bill retomou a narrativa com a voz mais vigorosa: — Ryan estava na universidade e não a viu durante todo o ano, mas, quando voltou naquele verão e a viu, não teve dúvida. Queria se casar com Sally, mas os pais dela disseram que ela deveria primeiro completar o segundo grau. Acho que Sally teria fugido para se casar, se ele tivesse concordado. Namoraram por dois anos e não havia dúvida de que acabariam jun­tos. Ela era mesmo muito bonita. Casaram-se duas semanas após a formatura. Parecia que o Estado todo compareceu à cerimônia e nunca ninguém tinha visto casal mais apaixonado.

Maggie deu-se conta de que seus pés já não doíam, mas, em contrapartida, sentiu uma pon­tada no coração. Aliás, não estaria algum cliente precisando de alguma coisa? Olhou ao redor, esperançosa, mas aparentemente ninguém que­ria nada e a porta permanecia fechada.

— Tinham tudo a favor — continuava Bill. — Sally crescera na SL e amava aquilo tanto quanto Ryan. E ela adorava os rodeios também. Por uns dois anos, ela o acompanhou no circuito. Sally competia na prova dos três tambores, ga­nhou algumas fivelas, e podia ser campeã, mas os dois queriam mesmo era ficar na fazenda. Pareciam tão felizes que a gente se sentia bem só de ficar perto deles.

— O que aconteceu? — indagou Maggie, sem ter certeza se queria saber a resposta.

— Ela morreu.

O susto foi tão grande que Maggie levou al­guns instantes para absorver o sentido. Espe­rara ouvir que a perfeita Sally fugira com um vendedor de seguros de Des Moines, ou que tro­cara o cavalo por uma prancha de surfe e fora morar no Havaí, ou mesmo que se apaixonara por um palhaço de rodeio e se juntara a ele. Não se preparara para ouvir que Sally morrera. Por algum motivo, o fato a abalava mais do que seria compreensível.

— Mas... morreu como?

— De leucemia — informou Bill. — Quando foi diagnosticada, Ryan a levou para Denver para ficarem perto dos médicos. Tentaram todos os tratamentos possíveis, mas nada deu certo. Após alguns meses, era óbvio que não podiam fazer mais nada e decidiram trazê-la para casa. Os médicos advertiram sobre a distância, mas ela disse que queria morrer onde pudesse ver o céu azul e ouvir o vento. Dessa forma, Ryan a trouxe para a fazenda. Ela morreu algumas semanas depois, aos vinte e quatro anos.

— Que horror... — Parecia inadequado, mas ante tal tragédia era comum não se encontrar palavras.

— Foi duro — reiterou Bill, do jeito lacônico usado no Oeste que, em outras circunstâncias, soaria engraçado. Pegou uma garrafa de uísque, avaliou a quantidade e devolveu ao lugar. — Ryan não fica aqui por mais que uma semana ou duas desde que enterrou Sally.

— Muitas lembranças — murmurou Maggie, recordando o comentário de Ryan sobre deixar o circuito. Teria concluído que era hora de en­frentar os temores?

— Acho que sim. — Bill indicou a mesa de Virgil. — Ryan não se atirou na cova com Sally, nem tentou se afogar na bebida, mas tem um passado. Qualquer mulher que se envolva com ele precisa saber em que está se metendo.

— Eu não estou envolvida com ele. — Maggie tentou rir, descontraída, mas sentia um nó na garganta.

— Qualquer mulher que pense em se envolver com ele — corrigiu Bill.

— Eu não... — Sob o olhar de advertência de Bill, ela não poderia continuar dissimulando. Deu de ombros e mirou a superfície lustrosa do balcão. — Mal o conheço. Talvez nem nos vejamos mais. — Seu tom era de menosprezo por si mesma. — Além disso, dois têm que querer para haver en­volvimento. Talvez ele não esteja interessado...

Bill conhecia Ryan tempo bastante para apos­tar que ele estava interessado. Se tomaria ou não uma atitude era outra história. Pelo que sabia, Ryan evitara qualquer envolvimento ro­mântico desde a morte de Sally. Agora, porém, conhecendo Maggie, dificilmente encontraria um motivo mais doce para esquecer o passado.

Ela se importava com as pessoas, não apenas com gente como Virgil, que tinha problemas, mas com todo mundo que encontrava. Costu­mava observá-la atendendo os clientes. Ela se lembrava de como cada um preferia o hambúr­guer, de qual série escolar cada criança freqüen­tava e das senhoras que estavam grávidas. As pessoas gostavam dela, jovens e velhos, homens e mulheres. Resumindo, do ponto de vista prático, Maggie incrementava os negócios no bar. A nível pessoal, Bill se afeiçoara a ela ao longo daqueles três últimos anos.

— Só não quero que se machuque —justificou, amuado.

— Sou mais durona do que pareço. — Sor­rindo, Maggie desceu do banco para atender a um dos fregueses junto à mesa de bilhar.

Bill observou-a se afastar, o rabo-de-cavalo ba­lançando graciosamente. Ela saudou os freqüen­tadores pelo nome, perguntou como estava o jogo e ouviu com interesse quando Ernie Lamott des­creveu um lance no qual enterrara a bola oito. Ela arregalou os olhos, impressionada, enchen­do Ernie de orgulho, tanto que Walter Sinclair fez questão de recordar uma jogada na qual ele levara a melhor. Maggie ouvia sem sinal de im­paciência ou incredulidade, o que não era fácil, considerando que a jogada de Walter envolveria pelo menos treze colisões com as bordas antes de eliminar a bola oito.

Sorrindo, Bill concentrou-se de novo em seu inventário. No dia em que Walter Sinclair fi­zesse um lance como aquele, o sol nasceria no oeste e o termo desagradável se aplicaria a Mag­gie Drummond.

 

Assim que chegou em casa, Maggie descalçou os sapatos e as meias, suspirando de prazer ao sentir os pés descalços no tapete gasto do vestíbulo. Frank Luddy pro­metera seu carro para dali a dois dias, coinci­dindo com seu dia do pagamento. Então, não teria mais de voltar para casa andando. Após oito horas em pé, aquele adicional de quinze minutos era pura tortura.

— Olá, Max. — Sorriu quando o enorme gato cor de caramelo com três patinhas brancas veio da cozinha e miou agudo. inclinou-se e o pegou no colo, apesar de seus quase sete quilos. — Sentiu a minha falta? — indagou, roçando o rosto na pelagem macia.

Quando ele ronronou e apoiou as patas contra seu braço, ela interpretou como uma resposta afirmativa. Max pertencera a um casal que mo­rava do outro lado da rua e se mudara para Cheyenne, deixando-o para trás. No dia seguin­te, sozinho, aguardara-a voltar do trabalho e fora adotado. Agora, a seguia pela casa como se sempre tivesse morado lá. Ela se enternecia com a confiança do gato. Noreen dizia que o bicho reconhecia uma boboca quando via uma. De qualquer forma, Max tomara-se um membro da família.

Na sala, a televisão estava ligada, como sem­pre. A mãe a ligava logo cedo e só desligava na hora de se recolher. Assistia a todos os noticiá­rios, programas de entrevistas, novelas, repri­ses, programas de auditório e seriados. Não era difícil agradá-la. Algumas pessoas deixavam a televisão ligada enquanto conduziam outras ati­vidades, mas não Lídia. Ela assistia a tudo como se lhe fossem revelar o segredo da vida somente se assistisse tudo por muito tempo. Todos os dias, o tempo todo. Sentada, tomando café e fu­mando, acompanhava a vida das outras pessoas pela televisão.

Maggie vivia lhe sugerindo que saísse, porém, Lídia dizia que em Willow Flat não acontecia nada que pudesse entretê-la tanto quanto os programas de televisão. As paisagens e a vida selvagem, que Maggie achava tão interessantes, não atraíam sua mãe. Evidentemente, entrete­nimento, para Lídia, eram clubes noturnos, res­taurantes e bares onde uma mulher usando ves­tido de paetês e perfume francês poderia, com sorte, encontrar um homem interessante. O Dew Drop Inn, com a vitrola tocando música Country a todo o vapor, as quadrilhas e as brigas costumeiras, nem merecia comentário.

Ao ouvir as risadas débeis de mais um programa de auditório, Maggie considerou passar pela sala na ponta dos pés e ir direto para o quarto, porém conteve-se. Podia ser uma ingênua incorrigível, mas ainda nutria a esperança de estabelecer com a mãe aquele laço de proximidade que mães e filhas deveriam compartilhar.

— Oi, mãe! — cumprimentou, animada, fa-lando bem alto para se sobressair ao som da televisão. Ainda com Max no colo, desanimou-se ao entrar na sala.

Na televisão, Vanna sorria largo ao virar as letras do painel e um dos competidores dava gritinhos de expectativa e euforia. Maggie não gostou nada de ver caixas abertas e papéis de embrulho jogados no chão.

— Maggie! — Lídia voltou-se de olhos arrega­lados, como uma criança flagrada fazendo algo proibido. — Não a esperava em casa tão cedo...

— Saí no horário normal. — Maggie olhou para a pulseira grossa no pulso da mãe, bri­lhante, com pedras coloridas, banhado a ouro. Um colar fazia conjunto, espalhando cor sobre o suéter cinza.

— Acho que perdi a noção do tempo. — Lídia ergueu a mão para ajeitar os cabelos e a pulseira tilintou.

— Acho que sim.

Maggie olhou em tomo para a sala desarrumada. Ainda havia duas caixas fechadas. Um aparelho estranho na mesinha lateral deixava pender o cabo com plugue cor-de-rosa. Algum milagre de beleza, sem dúvida, que removia ru­gas ou devolvia a firmeza do busto. Uma roupa de seda cor fúcsia jazia sobre o braço do sofá. Era uma cor horrível para a mãe, pois lhe rou­bava cor da pele já pálida e fazia seus cabelos parecerem ainda mais ruivos.

— Mãe...

— Não comece, Maggie. — Lídia ergueu o queixo, culpada e desafiadora ao mesmo tempo. — Só comprei algumas coisinhas, porque esta­vam em oferta. — Levou a mão ao colar. — Não imagina quanto paguei por este conjunto, e vem com brincos!

Qualquer que tenha sido o preço, foi caro, pen­sou Maggie. Max remexeu-se e o pousou no chão. Ele se aproximou da blusa fúcsia e começou a farejá-la.

— Não o deixe colocar as patas na blusa!

Ao berro de Lídia, o gato voltou-se, sobressal­tado. Se tivesse lábio superior, o teria contraído, desgostoso. Só para provocar, cheirou a roupa novamente e, então, movendo a cauda, deixou a sala.

— Ele podia ter destruído a blusa! — Lídia avançou e agarrou a peça, estendendo-a para ver se houvera dano.

Maggie piscou ao ver a estampa. Sobre o fundo fúcsia, flores roxas e azul-turquesa e folhas ver­des disputavam a atenção. Tentou imaginar a mãe usando aquela roupa e, como não conse­guiu, tentou imaginar alguém, fora artistas de circo, envergando a peça. Aliviada, viu Lídia do­brar a peça e pendurá-la no braço.

— Esse gato é uma ameaça! — avisou, zan­gada. — Isto é seda pura.

— Ele nem tocou na blusa.

— Mas teria tocado, se eu não tivesse impedido. Intimamente, Maggie acreditava que Max não teria tocado naquilo nem com o incentivo de uma lata de atum. Ele tinha lá seus padrões.

— Mãe, pensei que tinha decidido não assistir mais aos canais de televendas. — Maggie olhou para as caixas e imaginou quanto Lídia teria gasto.

— Você decidiu, quer dizer. — Lídia fez bei­cinho e teria ficado linda se fosse uma garotinha. — Gosto de ter coisas bonitas ao meu redor. Não faz tanta diferença quando se é comum, como você, mas mulheres bonitas devem usar coisas bonitas — justificou, repetindo o elogio de um admirador vinte anos antes.

— Não quero que fique sem coisas bonitas — replicou Maggie, ignorando o comentário pouco elogioso sem se perturbar.

A mãe mudava de opinião sobre sua beleza, criticando-a quando estava irritada ou bajulando-a quando queria convencê-la a fazer alguma coisa. No último caso, Lídia afirmava que ela ficaria realmente bonita se emagrecesse um pouco de peso e arrumasse os cabelos. Pois não dava a menor importância nem à bajulação, nem às críticas.

— Pensei que tivéssemos concordado em pou par um pouco para podermos reformar o telhado neste verão.

— O telhado. — Lídia torceu o nariz. — Isso é tão maçante...

— Mas necessário — completou Maggie, cul­tivando mais paciência.

— Necessário — repetiu Lídia, como se de­testasse a palavra. Ajeitou a pulseira. No pro­grama, Vanna bateu palmas, o sorriso deslum­brante e imutável, sob os aplausos e gritos da platéia. — Você passa muito tempo pensando em necessidades.

— Alguém tem que fazer isso — replicou Maggie.

— Alguém tem que fazer o quê? — indagou Noreen, entrando na sala.

De robe curto de seda azul, os cabelos loiros caídos sobre os ombros, era evidente que aca­bara de acordar. Trabalhava à noite no Dew Drop e, com freqüência, saía de lá acompanhada de um dos caubóis que iam lá beber. Maggie jamais entendeu essa atitude, mas parara de questionar as escolhas da irmã havia muito.

— Maggie está zangada comigo porque com­prei umas coisinhas. — Sabendo que teria uma aliada em Noreen, Lídia adotou um tom quei­xoso. — E voltou a falar da reforma do telhado.

— Você sabe o que Craig Chapman disse após avaliar o telhado... — começou Maggie.

— Sei que estava tão ocupado admirando as pernas de sua irmã que nem olhou direito — rebateu Lídia. — Tenho certeza de que disse que precisávamos de um novo telhado só para ter uma desculpa para voltar aqui e ver se conseguia algo mais.

— Craig é bem casado e tem três filhos — lembrou Maggie, indignada.

— Não deve ser assim tão bem casado, se fica olhando as pernas de outras mulheres — replicou Noreen.

Sentando-se no braço da poltrona, estendeu as longas pernas, admirando-lhes o comprimen­to. Com isso, seu robe se abriu parcialmente, expondo o quadril e um pouco dos pêlos pubianos. Ciente de que a falta de modéstia era pro­posital para constrangê-la, Maggie concentrou-se no rosto da irmã.

— Craig é um homem honesto. Se ele disse que o telhado não vai suportar outro inverno, eu acredito.

— Privilégio seu. — Noreen deu de ombros e o robe se abriu mais um pouco, revelando a cur­va dos seios. — Pessoalmente, acho que mamãe devia vender este barraco e se mudar para al­gum lugar com mais vida. Talvez Los Angeles ou Las Vegas. Esta cidade é tão tediosa que não me espanta ela ficar assistindo aos canais de televendas. A alternativa seria sentar-se e ver o capim crescer.

— Os imóveis aqui têm preço baixo — rebateu Maggie, mal disfarçando a irritação. — Mesmo que encontrássemos algum interessado, não levantaríamos dinheiro suficiente para comprar um imóvel noutro lugar.

— É? — Noreen procurou cigarros no bolso do robe. — Quem disse que mamãe tem que comprar? Ela podia pegar o dinheiro e alugar um pequeno apartamento em outro lugar, mon­tar um guarda-roupa decente e arrumar os ca­belos. Podia até fazer um cruzeiro. Ouvi dizer que esses cruzeiros são como supermercados de solteiros de certa idade à procura de compa­nheiras. Mamãe poderia achar um camarada rico que só se preocupasse em mantê-la cercada de peles e diamantes.

Atenta à primogênita, Lídia juntou as mãos, os olhos brilhantes como os de uma criança acre­ditando numa promessa.

— Um cruzeiro! Oh, seria tão divertido...

— E do que ela vai viver quando não tiver mais dinheiro e não tiver achado nenhum ca­marada rico? — indagou Maggie.

— Ela tem a pensão por invalidez — lembrou Noreen, acendendo um cigarro.

— Isso mesmo, tenho minha pensão por invalidez — repetiu Lídia, desafiando Maggie com o olhar.

— Sabe que não é o suficiente para ela se man­ter — lembrou Maggie à irmã, percebendo que a mãe já embarcara na fantasia de estar num navio de luxo, cortejada por bonitões ricos. — Foi por isso que nos mudamos para cá, quando tia Margaret morreu e deixou a casa para mamãe, porque já estava paga e sobraria mais dinheiro.

— Tia Margaret devia ter deixado uma grande fazenda para mamãe — protestou Noreen, frus­trada. — A M Voadora! — Soltou uma baforada. — Como podíamos adivinhar que alguém daria um nome desses a um pedaço de nada?

Maggie comovia-se com o fato de a velha tia-avó ter dado à casa modesta um nome tão gran­dioso. Não podia negar que ficara tão surpresa quanto a mãe e a irmã ao chegarem a Willow Flat e descobrirem que a fazenda, na verdade, era um terreno de dois mil metros quadrados com arbustos e árvores quase secas cujo conjunto de animais somava o cachorro do vizinho, que gostava de dormir sob a árvore que sombreava a garagem, e Max, o gato do outro vizinho.

Apesar de tudo, Maggie gostava dali. A casa não era muito grande, porém, mais confortável do que o apartamento alugado que ocupavam em Detroit. A pensão por invalidez que Lídia recebia desde que se ferira nas costas após uma queda no ambiente de trabalho era suficiente para seu sustento, mas não para pagar aquela quantidade de produtos comprados pelo telefone e entregues pelo correio.

Maggie bufou ao olhar para as caixas espalhadas.

— Pode não ser muito, mas é um teto e nos dá segurança.

— Algumas pessoas querem mais do que ape­nas segurança nesta vida — retrucou Noreen, desdenhosa. — Alguns de nós querem realmente viver, não apenas existir. Mamãe ainda é rela­tivamente jovem. Detesto vê-la aqui enterrada neste fim de mundo quando podia ter uma vida em algum outro lugar. Gostaria de vê-la feliz.

— E você acha que eu não?

— Não sei. Talvez você precise revisar seus motivos...

Quando Noreen se levantou, seu robe se abriu de vez, expondo seu corpo. Sem pressa, ela se inclinou para pegar o cinto, mas nem se inco­modou em atá-lo, deixando o robe semi-aberto, uma moldura sedosa para seu corpo perfeito. Maggie sabia que era deliberado, mas sentiu o rosto queimar. Noreen a observava através da nuvem de fumaça, os olhos azuis translúcidos cintilantes de malícia. Maggie desviou o olhar, odiando-se por corar tão facilmente. Lídia pa­recia nem notar a nudez da filha mais velha, o que aborrecia Maggie ainda mais por sentir-se envergonhada.

— Não quero vê-la falida — continuou Maggie, mantendo a voz calma.

— E eu não quero vê-la acabar velha e solitária. Se você está satisfeita em servir mesas o dia todo e voltar para casa para dormir com um gato, ótimo, mas talvez mamãe queira algo mais da vida.

— Claro que quero! — Lídia olhou para Maggie, revoltada por ter que renunciar a todos os prazeres por uma vida de privações e trabalho servil.

Maggie quase respondeu, mas desistiu. De que adiantava? Sabia perfeitamente que a irmã não pensava no bem-estar da mãe, mas, prin­cipalmente, no seu.

Se Lídia vendesse a casa, Noreen abocanharia boa parte do dinheiro. Aliás, somente por isso fora ao Wyoming ao saber que Lídia herdara algo. Imaginara uma fazenda espetacular, como nos filmes. Dinheiro e caubóis bonitões caindo a seus pés. Ante a realidade amarga, vivia pres­sionando Lídia para vender a casa. Somente a realista Maggie impedia esse desatino.

Diante das caixas de papelão e embalagens de amendoim jogadas pelo chão, Maggie cogitou por que se desgastava. Quanto ao que estava diante de seus olhos, não havia mais nada a fazer. Lídia gastara todo o seu dinheiro em com­pras e, como a irmã observara, o dinheiro era dela. Se o telhado cedesse, bem, as duas sabiam que podiam contar com a boa e velha Maggie para arranjar o dinheiro para o conserto. Não dava um jeito sempre?

— Façam o que quiserem — concluiu, cansada de discutir.

— Farei, com certeza — declarou Lídia, em tom indignado.

Maggie quase esperou a frase típica: "Você não manda em mim."

A irmã escolheu o momento em que ela pas­sava por perto saindo da sala para ajeitar o robe antes de atar o cinto. Nunca entendera por que Noreen sentia tanto prazer em cons­trangê-la, mas era assim desde que se lembrava.

Faria sentido se fosse ciumenta, mas a idéia de Noreen com ciúme dela era tão absurda que parecia até engraçada.

Maggie suspirou ao fechar a porta do quarto. Acomodado no meio da cama, Max segurava a ponta da cauda com as patas dianteiras, os olhos verdes transbordantes de simpatia. Sentou-se na beirada do colchão e o gato roçou a cabeça contra seu braço.

— Bem, pelo menos alguém está feliz em me ver. — Ela acariciou a cabeça peluda entre as orelhas e foi recompensada com um ronronar.

Ao brincar com Max, sentiu a tensão nos om­bros diminuir e a dor de cabeça que ameaçava irromper desapareceu.

— Você é melhor do que uma massagem te­rapêutica — elogiou.

Max respondeu ronronando e rolou para ficar de costas, mostrando a barriguinha para ela co­çar. Maggie atendeu e sorriu quando o gato lhe agarrou a mão com as patinhas dianteiras, em­bora, no fundo, continuasse inquieta. Noreen conseguira atingi-la ao questionar se pretendia passar o resto da vida servindo mesas, para voltar para casa e dormir com o gato. Havia tempos, preocupava-se com aquela falta de perspectiva.

— O tempo está passando, Max, e estou pa­rada. Se não tomar cuidado, vou acabar exata­mente como ela descreveu, velha e sozinha, ex­ceto pela companhia de um gato. Não que você não seja uma companhia agradável — assegu­rou, acariciando-lhe o queixo. — Mas, se não se importa que eu diga, sua capacidade de conversa é um pouco limitada. Não estou criticando, veja bem, mas você não lê nada mais complexo que um rótulo de lata de atum, que não é nada difícil de interpretar.

Enjoado dos carinhos, Max desvencilhou-se e ficou de pé. Instalando-se junto ao travesseiro, começou a se lamber. Maggie o observava, mas tinha os pensamentos longe. Aos vinte e três anos, via o futuro pela frente, mas não precisava ser gênio para saber que o tempo passava rá­pido. Parecia impossível, mas trabalhava no Bar do Bill havia três anos já. Era assustador pensar que os próximos três anos também transcorre­riam num piscar de olhos.

Deitando-se de costas, contemplou a rachadura e a mancha amarelada no teto. Ninguém so­nha em se tornar garçonete quando crescer pen­sou. Nas aulas de orientação vocacional, essa profissão nunca era citada. Nenhum pai visitava a classe do filho para contar como se orgulhava de vê-lo servindo mesas no restaurante local. Não existiam cursos para se ensinar as pessoas a servir hambúrgueres com um sorriso no rosto, mesmo quando um cliente indeciso mudava o pedido três vezes seguidas. No horário nobre da televisão, nunca se viam ofertas de emprego na promissora carreira de garçonete.

Não havia nada de mal em ser garçonete, des­de que a pessoa estivesse se preparando para ser outra coisa, como atriz de cinema, artista plástica ou, ainda, enquanto escrevesse o pró­ximo romance campeão de vendas. Nesse caso, o trabalho temporário como garçonete era até tradicional. Aparentemente, toda celebridade passara algum tempo servindo mesas antes de alcançar o sucesso.

Mas e quando não se tinha mais nada em men­te? E se a pessoa não tinha maiores ambições? E se o único objetivo, meio vago, fosse encontrar alguém especial com quem compartilhar a vida, a casa, ter filhos e cultivar hobbies como fotografia e montagem de álbuns de fotos. Nada espetacular, nada que já não tivessem feito antes; apenas uma nova visão da beleza da natureza.

Que fazer, quando nem sonhos tão pequenos uma pessoa tinha idéia de como realizar?

— Tucker chegou ontem à noite — comentou Nathan, acrescentando manteiga a uma pilha de panquecas.

Sorvendo café, Ryan levou um susto tão gran­de ao ouvir a voz do avô que derramou parte doa bebida na mesa. Uma das primeiras lições que aprendera ao se instalar na SL, vinte anos antes, era que não devia conversar com o velho de manhã antes que ele tomasse a terceira ou a quarta xícara de café, pelo menos. Conside­rando que voltara para casa havia duas semanas e que o clima entre os dois não estava muito bom, sem mencionar que Nathan ainda sabo­reava sua segunda xícara de café, só podia mes­mo ter levado um choque.

— Parece que ouvi alguma movimentação on­tem. — Ryan pousou o bule e se estendeu para pegar o açucareiro, mas o avô empurrou o pote em sua direção, advertindo:

— Vai estragar os dentes.

Ryan hesitou antes de despejar açúcar na xí­cara. Talvez fosse um sonho estarem na cozinha, fazendo o desjejum juntos. Mas, se fosse sonho, teria sentido a queimadura da gordura fervente do bacon ao pular em sua mão? E, se fosse sonho, não estaria sem o gesso no braço?

— Pensei que Tucker só voltaria na semana que vem — declarou Ryan.

— Ele conseguiu fechar negócio logo. Parece que assinou um bom contrato para reprodução de bezerros.

— Ótimo. — Ryan despejou geléia sobre as panquecas e imaginou o que provocara no avô aquela repentina demonstração de civilidade.

— Parece que ele encontrou Shelly Taylor em Los Angeles — comentou Nathan, servindo-se da terceira xícara de café. — Voltaram juntos. Sabia que Leland Taylor morreu há alguns meses?

Ryan assentiu.

— Fiquei triste ao saber. Era um bom homem e sei que vocês eram amigos há muito tempo.

— Mais de cinqüenta anos — murmurou Nat­han, fitando o prato. — Foram mais que cinqüenta anos de amizade. Tinha uns vinte anos quando o pai de Leland comprara a fazenda vizinha. Conheceram-se num baile e, antes que a noite acabasse, já es­tavam brigando por causa da moça mais bonita. Leland lhe quebrara o nariz, mas saíra de olho roxo. Sorriu ao recordar. Nem se lembrava do nome da garota. Alice? Betty? A família dela se mudara alguns anos depois, esqueceram-se dela, mas os dois briguentos tomaram-se amigos.

Leland casara-se tarde e perdera a esposa quando a única filha ainda nem andava. Como nunca mais se casou, transformou Shelly no cen­tro de seu universo. Sua fazenda, Pico Nevado, era um legado a ela, assim como Nathan tinha na SL seu legado para Ryan.

Chegaram a imaginar as duas fazendas uni­das, o que seria possível se o neto de Nathan e a filha de Leland se apaixonassem. Claro que não firmaram compromisso algum, pois não es­tavam na Idade Média, onde a regra eram ca­samentos arranjados. Mas gostavam de sonhar com a possibilidade. E houve uma época, quando Ryan e Sally estavam no segundo grau, em que o sonho quase virou realidade. Os dois eram jovens, bonitos, podiam se apaixonar como qual­quer pessoa. Então, Shelly colocou na cabeça que queria ser estrela de cinema e Ryan foi para a universidade. Mesmo assim, Nathan acalen­tou a esperança de que os dois, mais maduros...

Mas Ryan se apaixonou por Sally McIntyre e Nathan não pôde lamentar a escolha. Mesmo que não a conhecesse desde o nascimento, amando-a como se fosse da família, ele a teria aceito só pela felicidade que proporcionava ao neto. Mas Sally não estava mais lá e era hora de Ryan continuar a vida, estabelecer-se, olhar para o futuro... ter filhos, raios.

Nathan afastou as lembranças e olhou para o neto.

— Shelly herdou a fazenda, claro.

— Não posso imaginar Leland deixando-a para mais ninguém — disse Ryan, partindo as panquecas com o garfo. Ficaria contente quando tirasse o gesso e pudesse usar o garfo e a faca. Era péssimo ter de se servir usando só uma das mãos, feito criança desajeitada.

— Ray Wellman está administrando a fazenda para ela.

— Ele é o capataz lá desde que me lembro — retrucou Ryan. — Vai dar conta.

— Parece que Shelly vai voltar para ficar, agora que o pai morreu — comentou Nathan.

— Pelo que sei, não causou sensação em Hol­lywood e já não é mais garota. Provavelmente, já pensa em se estabelecer, talvez formar uma família, até porque Ray já tem idade. O filho está no Idaho, tem algum gado e cavalos e tem insistido para que o pai se mude e o ajude por lá. Não ficaria surpreso se Ray partisse qualquer dia desses. Aí, Shelly vai precisar de ajuda para tocar a fazenda.

Agora, Ryan entendia por que o velho amanhecera tão tagarela. Pousou a xícara de café sobre a mesa com cuidado e o encarou.

— Não.

Nathan expressou confusão.

— Não o quê?

Ryan não estava com humor para jogos.

— Não comece com suas idéias sobre fundar uma dinastia — esclareceu. — Isso não vai acontecer.

— Não sei do que está falando. — Nathan serviu-se de mais café e afastou o prato vazio. — Só estamos conversando...

Era melhor cortar o mal pela raiz, concluiu Ryan. Já tinha problemas suficientes sem ter que lidar com o avô casamenteiro.

— Não vou me casar com Shelly.

— Mas quem falou em casamento? — protes­tou Nathan. Esquecido de que acabara de des­pejar café na xícara, queimou a língua ao sor­vê-lo. — Maldição! — Pousando a xícara abrup­tamente, esparramou um pouco da bebida sobre a toalha de mesa.

Ryan observou impassível o avô enxugar o líquido com um guardanapo.

— Sei que você e Leland acalentavam a idéia de que eu e Shelly poderíamos nos apaixonar, unindo a SL e a Pico Nevado em sagrado ma­trimônio, mas isso não vai acontecer.

— Como você sabe? Não a vê há anos... — Brando, Nathan partia para a persuasão. — Vo­cês chegaram a namorar quando estavam no segundo grau.

— Brigávamos feito cão e gato e rompemos. Não é evidente que não podemos viver juntos?

— As pessoas mudam...

— Não muito.

Nathan levantou-se, os pés da cadeira arra­nhando o assoalho. Pegou o prato vazio e levou à pia. Jogou água na louça e largou-a no aparador antes de se voltar para Ryan.

— Eu a convidei para jantar amanhã. Ryan manteve o nervosismo sob controle.

— E eu com isso?

— Espero que esteja presente. — Prevendo uma recusa, Nathan partiu para a argumenta­ção: — Ela é amiga da família e perdeu o pai há pouco tempo. O que custa dizer olá e apre­sentar suas condolências?

Ryan cerrou os dentes. Como desdenhar re­gras básicas de educação?

— Estarei aqui.

— Ótimo.

Esperto, Nathan não expressou a mínima pre­sunção. Sabia que ainda não convencera o neto de nada, mas o encontro entre um homem e uma mulher bonitos era sempre uma caixa de surpresas. Nunca esperara ver Ryan empolgado à perspectiva de rever a ex-namorada e o pouco que conseguira já o satisfazia bastante. Pegando o chapéu do aparador junto à porta, saiu para a inspeção rotineira.

Sozinho na cozinha, Ryan apreciava seu des­jejum consumido pela metade. Perdera o apetite.

Ante aquele surto de civilidade de Nathan logo pela manhã, devia ter saído correndo para se sal­var. Incrível a capacidade de seu avô de lhe infernizar a vida, sempre tentando impor suas von­tades. O que lhe faltava em sutileza, sobrava em tenacidade. Convicto de que ele e Shelly formavam um casal perfeito, faria de tudo para juntá-los.

Com sorte, Shelly já estaria comprometida com alguém, o que destruiria de vez a ilusão de Nathan de inaugurar uma dinastia. Ao me­nos, tinha certeza de que Shelly não era mais receptiva à idéia do que ele. Se não se enganava, haviam rompido o namoro trocando palavras ca­rinhosas do tipo verme rastejante, e ela até ameaçara contratar um pistoleiro se ele se atre­vesse a olhar na direção dela.

Ryan riu com a lembrança. Claro, já fazia quinze anos. Pelo que sabia, Shelly não o queria nem pintado de ouro. Nas poucas vezes que se encon­traram ao longo dos anos, ela não demonstrara hostilidade. A última fora no enterro de Sally, lembrou-se, apagando o sorriso. Esfregou o pole­gar esquerdo na base do anular, o olhar distante.

Meneou a cabeça como se assim pudesse apa­gar as lembranças. Não se desgastaria mais ante os esquemas casamenteiros do avô. Cedo ou tarde, o velho senhor acabaria desistindo. Bateu o braço engessado na borda da mesa ao afastar a cadeira para se levantar. Não fosse um cavalo chamado Temporada de Sorte, pode­ria estar a quilômetros dali, caindo de cabeça areia. No momento, os rodeios lhe pareciam menos arriscados do que ficar naquela casa.

Agora, a égua já não corria para o outro lado do curral quando Ryan se aproximava. Faziam progresso, embora ela ainda se mostrasse relu­tante ao vê-lo. Ele apoiou o braço engessado na cerca e o pé na viga inferior. Do meio do curral, a égua o olhava desconfiada. Não podia culpá-la.

Pelo que sabia, ela não conhecera muita gen­tileza por parte dos humanos em toda sua vida. Mas tinha sangue bom. O pai era um cavalo de apartação campeão e alguns dos irmãos e irmãs tinham sido vendidos por milhares de dólares. Ela, entretanto, resistia a qualquer tentativa de domá-la. O proprietário anterior tentara ven­dê-la para provas de sela americana, mas ela não escoiceava quando tinha de escoicear. Um animal que não servia de montaria nem arre­messava peões para fora da sela não valia mais que alguns centavos o quilo. Se não a tivesse comprado, ela teria acabado num matadouro.

— Ouvi dizer que está pensando em criar uma nova linha de cavalos.

Sorrindo, Ryan se voltou para Tucker Mclntyre, seu melhor amigo desde que fora morar na SL. Alto e de ombros largos, cabelos pretos e olhos castanho-escuros, mostrava mais sinais da herança indígena que qualquer das irmãs, com exceção de Sally, mas somente agora o fato lhe saltava à vista.

— Você me conhece, sempre gostei de inovar — retrucou, estendendo a mão.

— Entre outras coisas. — Tucker indicou o gesso no braço.

— Entre outras coisas — concordou Ryan. — Como estão as coisas?

— Vamos levando. E você?

— Não posso reclamar. Até poderia... — Ryan ergueu o braço engessado. — Mas não me faria bem. Meu avô disse que você esteve em Los Angeles. Imaginei que voltaria com uma pran­cha de surfe e camisa florida.

— Se tivesse ido ao Havaí... E bem mais a oeste. Los Angeles é a terra das estrelas de ci­nema, esqueceu?

— Ouvi dizer que trouxe uma a tiracolo... — Ryan franziu o cenho ao se lembrar dos planos casamenteiros do avô.

— Shelly também vinha para cá — explicou Tucker, recostando-se na cerca. Apoiando um pé na viga inferior, tirou um cigarro do bolso. — Não tinha como não lhe oferecer carona.

Ainda contemplando o curral, Ryan estendeu o braço sobre a cerca. A égua os olhava com atenção e ainda não fugira para o lado oposto. Bom sinal, alegrou-se.

— Ela planeja ficar por aqui?

— Desconfio que sim. — Tucker riscou um fósforo na sola da bota e acendeu o cigarro.

O sol brilhava no céu limpo e azul. O vento, sempre presente, sussurrava nos limites da consciência, suave como a carícia de uma amante, mas carregando a ameaça de um poder contido. Tucker ergueu o rosto e apagou o fósforo.

— Acho que Shelly não conseguiu conquistar Hollywood. Foram só uns dois filmes para te­levisão, um que foi direto para as vídeo-locadoras e alguns comerciais. Melhor que a maioria, pro­vavelmente, mas não chegou a dar entrevistas, nem carimbou a mão na calçada da fama.

— Ela sempre sonhou alto — recordou Ryan. Lembrou-se também de uma das brigas que tiveram na época em que namoraram. Shelly tinha certeza de que conquistaria Hollywood e não gostou quando ele a aconselhou a arranjar um meio de ganhar a vida enquanto aguardava o estrelato.

— Não adianta sonhar pequeno — comentou Tucker.

— Acho que não. — Ryan olhou para o amigo. — Acha que Shelly vai tentar tocar a Pico Ne­vado sozinha?

— Talvez. Ela não falou muito sobre isso, mas, pelo que disse, acho que planeja ficar por aqui. Parece provável, de qualquer forma. — Tucker deu de ombros. — O pai não andou bem de saúde nos últimos dois anos. Ray Wellman é que tocou o negócio. Imagino que vá continuar, mas Ray não gosta de muita responsabilidade. Ele vai querer alguém que avalize as decisões.

Ryan assentiu. Tinha a mesma impressão do capataz da Pico Nevado. Ray era um bom homem, mas não se sentia bem administrando o negócio para um proprietário ausente.

— Segundo meu avô, talvez que Ray se mude para o Idaho, ajudar o filho na fazenda lá.

Tucker franziu o cenho, analisando a infor­mação. Acabou assentindo.

— Faz sentido. Ouvi dizer que Andy está indo bem. Tem dois filhos. Ray ficaria perto dos ne­tos. — Tragou o cigarro e estreitou o olhar ao soltar a fumaça. — Se ele for, Shelly vai ter problemas. Ela é mais inteligente do que de­monstra, mas está há mais de dez anos fora da fazenda. Vai passar um mal bocado adminis­trando tudo sozinha.

— Meu avô quer que eu me case com ela e administre as duas fazendas — revelou Ryan, em tom de mofa.

Espantado, Tucker tragou errado e teve um acesso de tosse.

— Dá para repetir? — pediu, ao recobrar o fôlego.

Ryan voltou-se para o amigo, apoiando o qua­dril na cerca.

— Meu avô cismou que Shelly e eu formamos o par perfeito. Ele e Leland tinham a esperança absurda de unir as duas fazendas. Com a volta de Shelly, deve estar achando que é uma nova oportunidade que surge. Já disse que isso não vai acontecer, mas ele não escuta. Sabe como ele fica quando coloca algo na cabeça. É como conversar com uma porta. Ele a convidou para jantar amanhã, certo de que vamos nos apai­xonar assim que nos virmos.

Tucker estudou a ponta do cigarro, a expressão indecifrável.

— Ela ainda é um colírio para os olhos.

— É um purgante para todo o resto. — Ryan meneou a cabeça. — Nunca estive tão perto de assassinar alguém em minha vida. E ela se sen­tia da mesma forma. Bolas, deixou meu olho roxo na festa de formatura!

— Já tinha me esquecido. — Tucker riu com a lembrança. — Disse a todo mundo que um coelho atravessou a estrada e você bateu a ca­beça no volante ao brecar.

— Bem, com certeza não ia contar que minha namorada tinha me dado um soco.

— Talvez, se contar a seu avô que tem medo dela, ele desista — sugeriu Tucker, irônico.

— Conheço alguém que pode ficar com medo de mim — advertiu Ryan, sombrio. — Acho que não está levando tão a sério quanto deveria.

— Desculpe-me — murmurou Tucker, sincero. — Só não consigo apagar a imagem de Shelly chutando-o no traseiro.

— Ela não me chutou no traseiro! — negou Ryan, bufando. — Eu trombei com uma cadeira antes de cair... — Reprimiu um sorriso quando Tucker explodiu numa gargalhada. — Ei, ela é mais forte do que parece, e me pegou de surpresa!

— E pegou no olho também. Admita, Ryan, você apanhou de uma garota.

— É, foi mal — conformou-se Ryan, rindo. — Poderia ter danificado permanentemente meu frágil ego masculino. Só não fujo como um coelho porque sei que Shelly odeia essa idéia de fundar uma dinastia tanto quanto eu.

— Pode ser. — Tucker apagou o cigarro no chão com o bico da bota. — Por outro lado, você é um bom partido. Agora, com a cabeça mais assentada, talvez goste da idéia do seu avô de construir um império.

Ryan ergueu o sobrolho.

— Com um sujeito que ela espancou na escola? — Expressou ceticismo. — Eu duvido...

Independentemente da opinião de Shelly, aquele jantar desagradável lhe atravancava a agenda. Não podia inventar uma desculpa, mas talvez conseguisse amenizar a situação. Olhou para Tucker.

— O que você vai fazer amanhã à noite? —Acha que vai precisar de ajuda caso Shelly resolva ir à forra novamente?

— Não estou em condições de lutar. — Ryan ergueu o gesso, enfatizando. — É que talvez a presença de outro convidado iniba os esforços casamenteiros de meu avô.

— Nunca vi nada amenizar Nathan Lassiter quando ele decide alguma coisa. — Tucker pe­gou mais um cigarro do bolso e passou a mascar fumo. — Vou me divertir vendo você tentando se desvencilhar.

— É bom saber que posso contar com você — resmungou Ryan, amuado.

— Ei, para que servem os amigos? — retrucou Tucker, risonho. Voltou-se para a égua no cur­ral, sempre a observá-los. — E essa coisa fofa que arranjou? Fale-me dela...

 

O sino sobre a porta tilintou alegre-mente quando Ryan entrou na mercearia. De acordo com a velha placa branca com letras vermelhas na fachada, tratava-se do Armazém Geral e de Miudezas Goodman. Nin­guém mais se lembrava de Goodman e a maioria das pessoas não saberia dizer o que seriam as miudezas, de modo que agora o estabelecimento era conhecido como mercearia, simplesmente. Tinha de tudo, de artigos de papelaria a botas de caubói. Podiam-se comprar vinte quilos de farinha ou um ioiô, um jantar ou uma espin­garda. Tinha até uma vitrine com jóias de pe­dras retiradas das minas da região.

Quando menino, sua mãe, Sylvie, uma vez o levou à mais famosa loja de brinquedos de Nova York, mas lembrava-se de não ter ficado tão impressionado quanto com a mercearia de Willow Flat. Fora lá pela primeira vez com o avô, para comprar botas de caubói que substituiriam as de enfeite que a mãe colocara em sua baga­gem. Encantara-se com a variedade de produtos e continuava se surpreendendo toda vez que ia. Deteve-se diante do armário em forma de índio que guardava cigarros junto à porta de entrada.

— Ryan, como vai? — A mulher ruiva, robus­ta, atrás do balcão, colocou de lado o livro bro­chura que estava lendo e sorriu, amigável.

— Não estou mal, Bonnie. E você? Bonnie Rayczek era um ano mais nova do que ele. O irmão dela, Bobby, alguns anos mais ve­lho, quebrara-lhe o nariz uma vez quando dei­xara Bonnie às cinco da manhã após um en­contro. Ele pedira desculpas ao confirmar que sua caminhonete realmente enguiçara, obrigando-os a passar a noite na estrada, até alguém passar e lhes dar carona até a cidade.

Aquilo tudo acontecera muito tempo atrás. Uma vida, pensou Ryan. Bonnie estava casada com Jack Dillard, tinha quatro filhos, de cinco a doze anos e trabalhava meio período para os pais, donos da mercearia. Costumava gabar-se de que o marido era a maior celebridade de Willow Flat, pois escrevia histórias de mistério so­bre um especialista em computação hábil com armas e que costumava topar com cadáveres. Ryan lera uns dois livros de Dillard, ignorando o jargão de informática e duvidando de que um camarada que passava o dia diante do compu­tador pudesse ter músculos de lutador de boxe e ainda ser rápido no gatilho.

— Em poucas horas, estarei melhor — res­pondeu Bonnie, com seu sorriso fácil e conta­giante. — Minha mãe vai ficar com as crianças nos próximos dois dias e Jack prometeu me levar a Cheyenne para comemorarmos nosso aniver­sário de casamento. Duas noites num hotel ma­ravilhoso, um ramalhete de rosas, boa comida e nada de louça para lavar nem narizes escor­rendo para limpar. É capaz de nunca mais vol­tarmos para casa!

— Como convenceu Jack a se afastar do com­putador? — questionou Ryan.

Sabia-se que Dillard entretinha-se de tal ma­neira com os enredos de seus livros que se es­quecia de coisas menores, como fazer as refei­ções e buscar os filhos na escola.

— Eu ameacei pedir o divórcio, deixando para ele a custódia das crianças.

Ryan riu.

— Acertou em cheio!

— Sempre acerto.

— O que é aquela nova aquisição? — indagou Ryan, indicando o índio de madeira.

Bonnie torceu o nariz.

— Meu pai comprou. Não sei o que ele pensa que vai fazer com isso. Pesa mais de duzentos quilos. Acho que ele quer colocar do lado de fora para criar uma atmosfera...

— Bem, ao menos ninguém tentará roubá-lo, creio...

— Eu até ajudaria o ladrão, se ele fizesse a fineza de estacionar um caminhão bem aí na frente.

— Eu roubo para você. — Ele ergueu o braço imobilizado. — Mas vai ter que esperar eu tirar o gesso, na semana que vem.

— Vou cobrar! — brincou Bonnie, ajeitando-se na banqueta. No meio de um dia útil, os negócios na mercearia eram mais parados do que o livro que estava lendo. Apreciava ter alguém com quem conversar. — Vai voltar ao circuito quando o médico lhe der carta branca?

— Ainda não decidi o que fazer — esquivou-se Ryan. Considerando sua falta de entendimento com o avô, começava a revisar sua decisão de per­manecer na fazenda. Conduziu a conversa noutra direção. — Ouvi dizer que sua filha mais velha fez bonito no rodeio fraldinha no verão passado.

— Ela fez bonito — confirmou Bonnie, incha­da de orgulho. — Marisue ficou em primeiro lugar. Diz que quer ser amazona de rodeio e já estamos de olho em algum cavalo para ela trei­nar a prova dos três tambores.

— Se eu souber de algum cavalo, aviso — prometeu Ryan.

— Obrigada.

O sino tocou novamente e os dois se voltaram para a porta. Ryan sentiu um choque de prazer ao ver Maggie Drummond entrar. Durante a última semana, torturara-se de arrependimento por não a ter convidado para sair, ao mesmo tempo que se aliviava por conseguir manter dis­tância. Era difícil resistir àquele sorriso temo.

— Oi, Maggie — cumprimentou Bonnie. — Como vai?      

— Ótima. E você?

— Convenci minha mãe a ficar com as crian­ças por uns dias. Jack e eu vamos a Cheyenne fazer a maior farra.

— Não se esqueça de esconder o microcom­putador portátil dele — avisou Maggie, também ciente do fraco de Jack por seu trabalho.

— Vou guardar bem guardado. Se ele mencionar assassinato, nem que seja um artigo de jornal, vou deixar o caçula solto no escritório dele. Timmy é um geninho em mecânica, consegue desmontar qualquer coisa. Não consegue remontar, claro, mas faz um excelente serviço desmontando. Acho que ele consegue reduzir o computador do pai a sucata em dez minutos. Com mais dez, acaba tam­bém com o fax e a impressora.

— Você é terrível — admirou-se Maggie. Ryan riu.

— Foi o que eu disse a ela.

— Vocês dois se conhecem? — indagou Bon­nie, olhando interrogativa para ambos.

— Ryan me deu carona até a cidade quando meu carro quebrou há umas duas semanas — contou Maggie.

Ryan reparou no dentinho torto dela outra vez, que lhe chamava a atenção sempre que se encon­travam. A pequena imperfeição, a tomava ainda mais bonita, por mais incrível que parecesse.

— E o carro? — perguntou ele.

— Está bem melhor agora, com a transmissão funcionando — replicou Maggie.

— É mesmo? De fato, a transmissão deve ser essencial num carro...

Maggie sorriu novamente ante a brincadeira. Céus, era mesmo bonita! Doug comentara que ela fazia um homem pensar em comida caseira e cer­cas brancas, e havia alguma verdade nisso, mas nele Maggie despertava fantasias de acordar ri­sonho sob as cobertas em manhãs frias, deliciando-se com aquele sorriso maravilhoso ao acordar...

— Mas em que posso servi-lo? — indagou Bon­nie a Ryan.

Ele percebeu que estava ali parado, sorrindo para Maggie feito um colegial diante do primeiro amor. Ao ouvir Bonnie, voltou-se e lembrou-se de que ela era uma grande fofoqueira. Ela não fazia nada por mal, simplesmente não resistia à curiosidade de saber da vida de todos e di­vulgar a informação o mais rápido possível.    

— Sara me pediu para retirar uma encomenda aqui — declarou, disfarçando o desejo de levar Maggie Drummond para a cama.

— A transportadora deve chegar em poucos mi­nutos trazendo alguns itens do pedido de Sara. Pode esperar um pouco? Assim que o caminhão chegar, arrumo o pedido dela num minuto.

— Não estou com pressa. — Ryan sorriu, tris­te. — No momento, não há muita coisa que possa fazer para ajudar na fazenda. Vou matar o tempo na cidade e voltar depois.

— Não há muito com que se distrair por aqui — avisou Bonnie, olhando para Maggie, que se afastara para pegar produtos refrigerados. Pode ir ao Bar do Bill e jogar uma partida de bilhar. Ou algo assim. Você vai trabalhar hoje, Maggie?

— É meu dia de folga. — De volta, Maggie colocou um sanduíche embrulhado em plástico e um refrigerante sobre o balcão. — Vou fazer um piquenique no parque.

Parque? Ryan levou alguns segundos para se lembrar dos dois quarteirões de grama e árvores entre a sede do jornal local e o Motel Blue Bell, onde costumavam se hospedar turistas adeptos de caminhadas e acampamento nas montanhas Wind River. Num lugar com espaços tão amplos eram a regra, nunca prestara muita atenção ao pequeno parque.

— Há uma família de esquilos lá — continuou Maggie. — Quero fotografá-los.

Só então Ryan notou a bolsa de equipamento fotográfico que Maggie levava ao ombro.

— As crianças adoraram as fotos que tirou delas com os cavalos quando foi lá em casa — comentou Bonnie. — Maggie é uma profissional com a câmera.

— Aspirante a profissional — corrigiu Maggie, resignada. — Tenho uma bela coleção de cartas rejeitando minhas ofertas de trabalho para provar.

— Mas é uma boa fotógrafa — incentivou Ryan. Perspicaz, Bonnie resolveu dar um empurrãozinho naqueles dois que pareciam tão atraídos um pelo outro e tão indecisos também.

— Ei, por que vocês não almoçam juntos? — sugeriu. Atônitos, ambos a encararam. Passan­do o cartucho de papel pardo com o lanche de Maggie, digitou os valores na máquina regis­tradora. — Disse que queria matar tempo, Ryan. Por que não faz companhia a Maggie no parque?

Ryan quase gemeu ante o brilho maroto no olhar de Bonnie. Por que as pessoas se sentiam compelidas a lhe arranjar um par? Primeiro, o avô com seus planos de casá-lo com Shelly, ago­ra, Bonnie empurrando-o na direção de Maggie. Outros homens conseguiam ficar solteiros sem que o mundo se achasse no direito de dar palpite em suas vidas afetivas. Começava a se sentir como um bezerro teimoso cercado por dois cães tentando colocá-lo na linha com o resto do re­banho. Não precisava de ajuda para organizar sua vida, pensou, indignado. Era perfeitamente capaz de convidar Maggie para sair, se e quando decidisse que era isso que queria.

— Você é bem-vindo, se quiser — disse Maggie, sorrindo tímida, como se esperasse uma negativa.

Ryan acabou com a hesitação. Queria almoçar com Maggie, sim, bolas! Seria estúpido recusar só para dar uma lição em Bonnie.

— Se tem certeza de que os esquilos não vão se importar — retrucou, sem jeito.

Maggie alargou o sorriso.

Ryan deixou a caminhonete estacionada diante da mercearia e Bonnie prometeu carregar a encomenda de Sara assim que o caminhão da transportadora chegasse, completando:

— Vou guardar os itens refrigerados na ge­ladeira até a hora de você voltar. Não precisa se apressar. Ficarei aqui até as cinco.

— Obrigado, Bonnie.

Ryan e Maggie saíram. Ao passarem diante da enorme vitrine, ele viu Bonnie lá dentro cor­rer para o telefone.

— Ela é boa pessoa, mas adora uma fofoca — comentou Maggie.

Ryan olhou-a, dando-se conta de que ela tam­bém vira Bonnie louca para telefonar e estava apreensiva com as possíveis conseqüências.

— Está sendo injusta — ralhou ele, de brin­cadeira. — Bonnie é uma fofoqueira de primeira classe e merecia um prêmio por isso.

Maggie riu, meneando a cabeça.

— Ela não faz por maldade.

— Não. Só não consegue resistir à tentação de meter o nariz nos assuntos de todo mundo. Já era assim quando estávamos na escola. Se quisesse saber qualquer coisa sobre alguém, bastava perguntar a Bonnie. Imaginei que qua­tro crianças bastariam para mantê-la ocupada, mas parece que nem diminuiu o ritmo.

— Dizem que as pessoas sempre arranjam tempo para aquilo que realmente amam — lem­brou Maggie.

— Deve ser verdade no caso de Bonnie! Ryan cumprimentou Lee Hardeman, editor do jornal semanal Mensageiro de Willow Flat, que toda tarde sentava-se numa cadeira na calçada diante da redação para tomar sol e apreciar o movimento da rua.

— Olá, Ry.

— Como está Abby? — indagou Ryan, diminuindo um pouco o passo.

— Ela está bem. — Lee sorriu, satisfeito. — Vou dizer a ela que você perguntou.

— Faça isso.

— É a esposa dele? — perguntou Maggie, quan­do se afastaram rumo ao lado norte do parque.

— É a mula dele.

— Como? — Maggie tropeçou numa protube­rância da calçada e Ryan a amparou para que não caísse. — Abby é uma mula?

— Isso mesmo — confirmou ele, divertido. Apreciando o contato com a pele sedosa, manteve a mão onde estava. — Lee gosta muito dela.

— Espero que Abby aprecie a sua preocupação também.

— Tenho certeza de que apreciará. Para uma mula, Abby tem um senso de etiquetar muito refinado.

— Para uma mula — repetiu Maggie, rindo. Era um riso suave e juvenil, mistura de diverti­mento e travessura. — Não posso imaginar o que seja senso de etiqueta refinado para uma mula.

— Essa é uma pergunta que vai ficar sem resposta — disse Ryan.

— Que pena...

Maggie passou da calçada à grama do parque. Suspirou quando Ryan deixou de tocá-la. Sentira algo agradável com a intimidade despretensiosa, Se fosse inclinada a fantasias perigosas, já estaria imaginando intimidades mais objetivas.

Mas aquele toque fora casual mesmo, lamen­tou, tirando um cobertor velho da bolsa, o qual estendeu sobre a grama raquítica.

Após sentar-se de pernas cruzadas, convidou Ryan a tomar lugar.

— Acomode-se. É um almoço informal. Risonho, ele caiu sentado no cobertor, cruzan­do as pernas também.

— É um alívio. Acho que meu smoking está na lavanderia.

Maggie pegou a bolsa, tirou os sanduíches e tentou não notar que os olhos de Ryan eram mais azuis que o céu do Wyoming.

Uma parede de pedra delimitava o parque junto ao motel. Na verdade, não era uma parede de verdade, pois, não se utilizara argamassa e o esforço para construí-la fora mínimo. Trata­va-se de uma pilha de pedras amontoadas de maneira ordenada, retiradas do solo ali mesmo durante a construção do motel.

Com altura variando de cinqüenta a noventa centímetros, as pedras davam movimento ao vi­sual. Em momentos mais fantasiosos, Maggie imaginava uma serpente marinha saindo do gramado. Ao longo dos anos, o vento sempre presente depositara partículas de solo entre as pedras e pequenas plantas acabaram brotando aqui e ali. No verão, lagartos grudavam-se à parede tomando sol, dividindo espaço com os esquilos, que haviam montado seus lares entre as pedras.

Maggie encantava-se com o minúsculo ecos­sistema. Já passara horas fotografando a parede e seus habitantes, as delicadas flores que se abriam somente por alguns minutos no verão, os lagartos com olhos projetados escondendo-se entre as pedras pouco antes das tempestades. Mas seu tema favorito eram os esquilos. Nunca se cansava de ver as carinhas com listras junto aos olhos, a movimentação incessante.

Aquela hora, havia poucos esquilos, porém Maggie não se decepcionou. Para compensar, um grupo de abelhas sobrevoava um canteiro de flores mal cuidado que algum cidadão plan­tara anos antes. O inverno rigoroso do Wyoming castigara as plantas, mas algumas sobreviven­tes recuperavam-se bravamente. Não ganha­riam prêmios, mas Maggie apreciava as cores e ainda mais a resistência por trás da beleza delicada das flores. Eram sobreviventes. E me­reciam admiração por isso.

Desviou a atenção da parede, por fim. Esten­dido sobre o cobertor, Ryan apoiava-se num co­tovelo. A camiseta branca simples marcava-lhe os músculos do corpo. A calça jeans estava quase branca de tão gasta, com a barra se desfiando.

Parecia ter sido feita sob medida, moldando-se perfeitamente nos quadris estreitos e ao longo das pernas esguias. As botas pretas mostravam sinal de uso também.

Maggie não teve dificuldade em reconhecer a ponta de desejo que sentiu no estômago. Ryan exalava algo intensamente masculino, um calor, quase um aroma, que a excitava de uma forma totalmente inusitada. Acompanhando o desejo feminino, vinha outra necessidade já conhecida sua: enquadrá-lo em sua lente fotográfica. Em preto e branco, decidiu, imaginando o efeito. Uma tomada em preto e branco destacaria soberbamente aquele maxilar definido, a curva alta das maçãs do rosto... Por outro lado, uma tomada em preto e branco não mostraria o azul cristalino dos olhos, nem os reflexos avermelha­dos do sol nos cabelos. De qualquer forma, tra­tava-se de um tema maravilhoso.

Imaginou se Ryan apreciaria ser fotografado. A seguir, considerou se seria sensata tal inicia­tiva. Era comum ligar-se fortemente aos objetos retratados, como se as lentes pudessem apurar e descrever suas emoções. Encantada com Ryan Lassiter, já desperdiçara muito tempo pensando nele. Não precisava de mais incentivo para so­nhar acordada.

Ante a expressão mutante de Maggie, Ryan imaginou no que ela estaria pensando. Conhe­cera-a havia pouco, porém, já reconhecia seu olhar ligeiramente fora de foco que indicava es­tar viajando nos pensamentos. Era mais bonita do que percebera a princípio, inclinando a ca­beça para vê-la melhor. Ou talvez, ela crescera dentro dele. A boca macia e beijável, o queixo com um leve toque de determinação, aqueles olhos cinza enormes que pareciam refletir seus pensamentos.

Além de bonita, Maggie era boa ouvinte, qua­lidade rara. Com ela, nunca se tinha a sensação de que deveria concluir logo o raciocínio para que o interlocutor pudesse replicar. E ela não ouvia apenas por educação, mas com atenção.

Perigo de armadilha, preveniu-se Ryan, toman­do um gole de refrigerante. Diante de uma boa ouvinte, um homem tendia a falar muito, mais do que pretendia. Viu-se contando sobre a égua, sobre sua esperança em tomá-la prenhe e, quem sabe, desenvolver uma boa linhagem de cavalos de apartação. Maggie indagou qual era a tarefa de um cavalo de apartação e como era treinado.

Algumas mulheres que acompanhavam o cir­cuito de rodeios acreditavam que a maneira mais rápida de se chegar à cama de um caubói era fazer-se de tola e perguntar detalhes sobre os equipamentos ou as regras do evento. Apa­rentemente, a tática funcionava com muitos peões e cavaleiros, mas Ryan nunca entendera realmente o objetivo da jogada. Que diferença em relação a Maggie, com seu interesse genuíno. Não podia negar que era agradável ter uma mu­lher atenta a cada palavra sua.

A certa altura da explanação, sorriu, modesto. Hormônios e ego, pensou, os homens eram escravos da dupla. E Maggie Drummond afetava ambos.

— Um centavo por seus pensamentos — de­clarou, de repente, cansado da própria fala.

Sobressaltada, Maggie o olhou hesitante, pro­curando uma resposta. Não podia revelar que se sentia atraída por ele. Voltou-se para a pa­rede e disse a primeira coisa que lhe ocorreu.

— Como se chama um grupo de esquilos? Ryan franziu o cenho.

— O quê?

— Você sabe, há nomes para os coletivos. Re­voada de pássaros, matilha de cães...

— Rebanho de ovelhas — completou Ryan, orgulhoso.

— Esse não conta, porque todo mundo sabe.

— Desculpe-me.

Ryan fingiu embaraço, quando na verdade não poderia estar mais satisfeito, tendo saboreado um bom sanduíche de presunto, a sobremesa a imagem de Maggie com os cabelos acobreados pelo sol.

— Alcatéia de lobos — prosseguia ela. Ryan imaginou o que ela faria se ele alisasse seu cenho franzido.

— Cardume de peixes, manada de elefantes — contribuiu ele, esforçando-se mais um pouco.

— Muito fáceis — censurou ela, divertindo-se em rebaixá-lo.

— Pardalada de pardais — inventou Ryan, só para provocar.

—Não vale inventar! — protestou Maggie, rindo.

— Não estou inventando. — Ele fingiu mágoa. É um termo que os fazendeiros usam.

— Fazendeiros não criam pardais.

— Mas temos problemas com eles nas grandes plantações — afirmou Ryan, cônscio de que o maior problema dos plantadores eram os pombos.

Maggie horrorizou-se à idéia de abater pardais.

— Pardalada de pardais — repetiu, pouco convencida.

— Não é mais muito usado — admitiu ele.

— Vejo por quê.

— Quadrilha de ladrões — continuou Ryan. Maggie esbravejou:

— Não vale.

— Não vejo por que não — protestou ele.

— Levantei uma questão fútil séria e você só está brincando. — Ela contraiu os lábios, falsa­mente amuada.

— Não há uma contradição aí? Como se pode ter uma questão fútil séria?

— Uma questão lingüística séria — corrigiu Maggie, olhando-o repreensiva. —Talvez seja um desafio grande demais para você?

— Penca de bananas — provocou Ryan, rabugento.

— Nem vou comentar.

— Está é com inveja da minha criatividade. Vamos, ponha essa cabeça para funcionar. Deve haver um termo que designe um grupo de esquilos.

Ryan refletiu por alguns segundos.

— É "sofelo" de esquilos.

— "Sofelo" de esquilos? — Maggie riu, os olhos brilhando de prazer. — Você ganhou. Se esse não for o termo, deveria ser.

Ryan aceitou a honra com uma mesura.

— Obrigado.

— Mas ainda não acredito que exista algo como pardalada de pardais — declarou Maggie, olhando-o desconfiada.

— Não é mencionado em muitos dicionários — admitiu ele, cauteloso.

Com muito riso, os dois encerraram a discus­são sobre coletivos.

Com seu olhar fotográfico, Maggie reparou que uma árvore próxima lançava sombras no rosto de Ryan, suavizando e enfatizando o ma­xilar e as maçãs do rosto, bem como seus olhos brilhantes. Ele ficava ainda mais lindo sob aque­le ângulo. Tinha que fotografá-lo naquele ins­tante, em cores mesmo.

— Se importa se eu tirar algumas fotos suas? — indagou, abrindo a bolsa da máquina.

— Deve estar mesmo desesperada — retrucou ele, sem protestar quando ela voltou a lente em sua direção.

Aquela era uma faceta nova de Maggie Drum­mond, pensou Ryan, observando-a ajustar a câmera com os dedos delicados, verificando a luz e as lentes. Seus movimentos era confiantes, tranqüilos, sem hesitação ou incerteza. Trabalhava rápido, mas sem pressa. Concentrando-se, ela encaixou a ponta da língua entre os dentes. Ante aquele símbolo de lascívia, Ryan sentiu o desejo se apoderar de seu corpo, no exato ins­tante em que ela disparava a objetiva. Ele ima­ginou como sairia a foto. Ficaria evidente que imaginava um beijo ardente? Antes que enlou­quecesse, tratou de desviar os pensamentos para outra direção.

— De Detroit para Willow Flat é uma mu­dança e tanto — comentou, mal disfarçando o constrangimento. — Como vieram parar aqui?

— Minha mãe herdou uma casa. — Maggie ergueu a câmera e tirou outra foto. — A tia dela morreu e viemos conhecer a propriedade que deixou. Como a vida estava difícil em De­troit, decidimos nos mudar. Eu trabalhava num escritório e não foi como se interrompesse uma bela carreira.

Ela acionou a câmera mais uma vez e deu-se por satisfeita. Entreolharam-se por alguns segundos.

— Na verdade, pensamos que tia Margaret tinha deixado uma fazenda — prosseguiu Mag­gie, sem jeito. — Foi... uma decepção quando vimos a casa. Minha mãe ainda não se adaptou.

Sentindo uma certa apreensão, Ryan imagi­nou que seria bom para Maggie desabafar.

— Você mora com ela? — indagou.

Ela assentiu e levantou a câmera novamente, escondendo o rosto.

— Com ela e minha irmã mais velha. Eu gosto daqui.

— Mas elas, não? — adivinhou Ryan, lendo nas entrelinhas.

Maggie ajustou as lentes e tirou outra foto. De cabeça baixa, tateava nervosa o estojo gasto do equipamento.

— Nenhuma das duas morre de amores pela região — confessou, dando a entender que a rejeição era bem maior.

— Então, por que elas não vão embora?

— Não têm dinheiro. — Maggie enroscou a tampa da lente e deu de ombros. — Minha mãe trabalhava num armazém, fazendo serviço de escritório. Um dos elevadores tinha um vaza­mento de óleo, ela escorregou e caiu. Hoje, re­cebe pensão por invalidez, mas não é nenhuma fortuna. O custo de vida aqui é mais baixo do que numa cidade grande e, aqui, não temos que pagar aluguel.

— E a sua irmã?

Ryan não sabia por que especulava sobre a família de Maggie, pois não combinava com sua decisão de se manter afastado. Percebia que, aos poucos, mudava aquela decisão. Talvez, se Maggie fosse uma loira falsa com seios silico-nados, reforçasse a convicção de não se envolver. Mas tratava-se de uma moça simples, despre­tensiosa, que lhe despertava mais que desejo carnal. Interessava-se por ela. Bolas.

— Acho que Noreen não se muda por falta de dinheiro, também — opinou Maggie. — Tra­balha como garçonete no Dew Drop e não ganha muito bem. É difícil economizar...

Baixando o rosto, ajeitou a bolsa de náilon para guardar a câmera. Na verdade, não sabia por que Noreen continuava em Willow Flat. Mesmo incapaz de juntar economias, poderia convencer um dos namorados a lhe emprestar. Alguns provavelmente até a levariam para onde ela quisesse. Não obstante, ela permanecia. De­via ter lá seus motivos. Sempre tinha.

— As famílias nunca são tão simples quanto nos contos de fadas — comentou Ryan, captando mais na expressão de Maggie do que ela gostaria.

—Não. — Ela tateava uma parte gasta do estojo da câmera. Duvidava de que existisse uma família tão diferente daquelas nos contos de fada.

— E o seu pai?

— Ele nos abandonou quando eu tinha meses. — Maggie sorriu, mas o olhar era triste. — Pa­rece que eu chorava muito e ele não suportou o barulho.

Quem a fizera se sentir assim culpada?, ima­ginou Ryan. A mãe?

— Duvido de que ele tenha partido só por isso.

— Não. Provavelmente, não.

— Mas você se sente culpada, de qualquer forma — adivinhou Ryan, perspicaz.

— Racionalmente, não. — Ela o encarou e sor­riu, conformada. — Seria ridículo me sentir cul­pada por algo que aconteceu quando era criança.

— Absurdo — corrigiu ele. Maggie meneou a cabeça.

— Se considerar uma mudança de carreira, não seja psicanalista. Acho que não é bom dizer aos pacientes que suas culpas são absurdas.

— Eu só disse que é absurdo sentir-se cul­pado por algo que aconteceu quando era bebê. Os homens não largam a família porque bebês choram demais. Eles largam a família porque são cafajestes.

Maggie arregalou os olhos.

— É um diagnóstico oficial?

— Deveria ser...

Ryan pensou no próprio pai, algo raro. Duncan não o abandonara, não oficialmente, porém, na prática, era como se tivesse abandonado mesmo. Visitara-o poucas vezes ao longo doa anos, mo­vido pela culpa, telefonara apressado do exte­rior, desejando-lhe feliz aniversário ou feliz Na­tal. Sua vida não fora muito diferente da de Maggie, afinal. Ele até que tivera sorte, o avô o acolhera. Ela ficara sem preencher a figura paterna. Restaram-lhe a mãe e a irmã, com quem evidentemente não se entendia.

Ao pensar no avô, lembrou-se de que deveria retirar a encomenda de Sara na mercearia. Al­guns itens seriam necessários para o jantar em que Nathan planejava oferecer sua cabeça em bandeja de prata a Shelly Taylor. Ou talvez Shelly lhe fosse oferecida. De qualquer forma, tinha que se mexer.

— Preciso ver se Bonnie já preparou o pedido — disse, relutante.

Maggie disfarçou a tristeza. Não podia esperar que aquela tarde durasse para sempre, embora não tivesse nada importante a fazer.

— Desculpe-me se espantei os esquilos — pe­diu Ryan, com agilidade e graça masculinas.

Maggie não se lamentava. Regozijara-se com aquele pequeno período na companhia dele, mais do que deveria.

— Talvez eles não estejam com vontade de ser fotografados hoje — sugeriu, resignada.

— Timidez? — Ryan deu um sorriso maroto que quase a fez sacar a câmera novamente. — Nada pior que um roedor recatado.

Ele se espreguiçou, aliviando a tensão, e Maggie permitiu-se admirar os ombros musculosos. A fi­vela prata e dourada no cinto devia ser prêmio de rodeio, porém, esqueceu-se dela ao prosseguir a vistoria pelas longas pernas do caubói. Ao re­fazer o caminho erguendo o olhar. Notou a sombra escura dos pêlos do tórax contra a camiseta branca e mexeu os dedos, como se sentisse a maciez, bem como o calor que deviam emanar.

Tratava-se realmente um belo espécime mas­culino, concluiu. Observá-lo ativava um calor in-terno, de natureza sexual, de homem para mulher.

Só então Maggie deu-se conta de que Ryan parara de se espreguiçar e, imóvel, observava-a também. Vermelha como um tomate, inclinou-se para recolher o cobertor. Ora, nada como ser flagrada comendo um homem com o olhar. Tal­vez ele a surpreendesse babando, em seguida.

Ryan observou Maggie espanar o cobertor com vigor desnecessário, mas ainda se lembrava do olhar dela pouco antes de perceber que ele a observava. A chama do desejo era inconfundível. Não era a primeira vez que uma mulher o olhava assim. As garotas que acompanhavam o circuito não ocultavam suas intenções. Já fora abordado tantas vezes que mal se lembrava de todas as situações. As mais ousadas abriam mão das pa­lavras em favor de símbolos mais persuasivos. Num bar em Abilene, uma mulher lhe pagara uma bebida e enviara o sutiã junto. Em Santa Fé, uma ruiva se aproximara e colocara a mão entre suas pernas, deixando claro o que preten­dia para as próximas horas.

Tais convites não inspiravam nada além de dissabor e, no caso da ruiva, constrangimento. Diante dos grandes olhos cinza de Maggie, po­rém, a excitação voltava firme e forte. Uma coisa era manter distância quando só ele estava in­teressado, tentando se convencer de que não es­tava, mas outra era ver Maggie olhando-o da­quele jeito.

— Acho que já está bom — opinou, pois Mag­gie continuava agitando o cobertor como se sua vida dependesse de livrar-se de cada migalha.

Sem pensar, ele segurou uma das pontas do cobertor e o puxou, junto com Maggie. Ela o fitou insegura. Podia ter largado o cobertor. Po­dia ter se voltado e encerrado o momento antes mesmo que começasse. Mas Ryan sabia que ela não faria isso.

Era loucura, pensou, trazendo-a para mais perto. Decidira não se envolver com ela... aliás, com ninguém, e a conhecia o bastante para sa­ber que um beijo, para ela, significava envolvi­mento. Podia parar ali, convenceu-se. Antes que fosse longe demais, antes que fizessem algo que lamentariam depois. Podia dizer algo engraçado, fazer uma brincadeira. Ela sorriria e a tensão se dissiparia tão rápido quanto se formara. O erro foi pensar no sorriso, porque o induziu a fitar a boca carnuda, louco para prová-la.

Maggie levou um susto quando Ryan de repente a abraçou, estreitando-a contra si. O cobertor caiu e foi esquecido. Fitou-o detidamente, apoiada con­tra o tórax musculoso. Ele passou a mão por seus cabelos, apreciando a textura, fazendo-a inclinar a cabeça para trás. Loucura, pensou ele, mais uma vez, quando os olhos dela se obscureceram. Lou­cura, pensou, ao tomar-lhe a boca.

Maggie sonhara com aquele beijo desde que se conheceram. Apesar do desejo intenso, dizia a si mesma que não queria. Mas os ensaios nos sonhos não a prepararam para a onda de calor que sentiu, enfraquecendo-lhe os joelhos, dei­xando-a tonta. Já fora beijada antes, mas não daquele jeito. Nunca assim.

O sol, as abelhas zunindo de leve, um caminhão passando na rua... tudo ficou em outro plano. Só havia os dois no mundo. Ryan a fez inclinar a cabeça ainda mais para trás, apro­fundando o beijo. Ela entreabriu os lábios, que­rendo prová-lo da mesma forma que ele.

Ao passar a língua pelo lábio inferior de Mag­gie, Ryan sentiu o gosto adocicado do refrige­rante de laranja que ela tomara no lanche e o achou incrivelmente erótico. Parecia bobagem, mas não havia muito em Maggie Drummond que não achasse erótico. As curvas suaves de seu corpo, o perfume, uma mistura de xampu e sabonete, o jeito como se agarrava a sua ca­miseta, como se ele fosse a única matéria sólida no universo.

Maggie sentia o braço engessado dele junto às costas, apertando-a deliciosamente. Ansiosa, mol­dou o corpo contra o dele, tal qual salgueiro. Nunca esteve tão ciente das diferenças entre homem e mulher. Ele era sólido, musculoso e denso. Queria se aproximar mais, sentir os braços fortes do cau­bói isolando-os do resto do mundo.

Os gemidos de Maggie o excitavam. Aquilo que começara como curiosidade transformava-se em algo muito maior. Ela era tão pequenina, devia se sentir desajeitado abraçando-a. Mas gostava de senti-la bem junto, de seus corpos pressionados. Gostava demais, pensou, ciente da ereção. Não era hora, nem lugar. Estavam num parque público, bolas. Nem por isso se deteve. Entregue às sensações, aprofundou ainda mais o beijo.

Fazia muito tempo desde que desejara uma mulher assim, esquecendo-se de tudo, exceto a necessidade de se perder no beijo dela. Foram anos esmagando aquela vontade, aquela neces­sidade. Anos, recordou, confuso.

Anos.

Tal percepção o conscientizou de onde estava, do que estava fazendo e de quem era aquela mulher em seus braços.

E de quem ela não era.

Maggie reprimiu um gemido de protesto quan­do Ryan a soltou. Já fora beijada antes, ou pen­sava ter sido, mas nunca desse jeito. Nunca se sentira lânguida, quase tonta com a força do próprio desejo. Foi só um beijo, afirmou a si mesma, com Ryan soltando-lhe a cabeleira, afas­tando o rosto. Só um beijo, repetiu, mais deter­minada, afrouxando a mão sobre a camiseta dele.

E o Titanic apenas protagonizou um naufrágio.

Maggie sentiu os cílios pesados ao abrir os olhos e fitar o rosto de Ryan. Uma onda de sa­tisfação envolveu-lhe o ego feminino ante o olhar confuso do caubói. Era bom saber que não fora a única a se abalar com aquele momento.

Assim que a liberou, Ryan desejou tomá-la novamente. A força da necessidade o fez recuar um passo. Não estava pronto para aquilo. Se­quer sabia o que era aquilo. De qualquer forma, era intenso demais, cedo demais. Ainda tentava organizar a vida, não acrescentar-lhe mais com­plicações. Muito menos uma complicação de be­los olhos cinza e boca tentadora.

Pegando o cobertor no chão, agitou-o um pouco antes de devolvê-lo a Maggie. Devia dizer algo casual. Bolas, acabara de beijá-la. E daí? Não era monge, e ela não era a primeira mulher que beijava em quatro anos. Mas tratava-se da primeira que o abalava. Tal idéia o inquietava. Pigarreando, desviou o olhar. Não podia conti­nuar fitando aquela boca.

— Preciso voltar à mercearia, ver se o pedido de Sara está pronto.

Embora ele não se movesse, Maggie sentia que ele se afastava. Não que o culpasse, pensou, dobrando o cobertor. Fincou um joelho na grama para guardá-lo na bolsa, aliviada por poder des­viar o olhar. Também era capaz de se distanciar, quando queria.

Por nada nesse mundo permitiria que Ryan visse seu nervosismo e o quanto estava abalada. Quando se levantou, já tinha um sorriso nos lábios e olhos límpidos.

— Meu carro está estacionado na frente da mercearia. Vou voltar com você.

 

Não conversaram muito no caminho de volta. Maggie comentou que o clima estava agradável, quente para aquela época do ano. Ryan concordou que o tempo estava bom. Não encontraram mais assunto depois disso.

Lee Hardeman continuava sentado na cadeira à calçada. Ryan o cumprimentou novamente, desta vez, sem mencionar Abby, a mula. Maggie achou estranho aquele senhor ainda estar ali, consultou o relógio e calculou que fazia menos de uma hora que haviam passado por ali a ca­minho do parque. Parecia mais tempo, já que tanta coisa acontecera. Ora, um beijo não era um evento cataclísmico, embora já não tivesse tanta certeza, considerando seus efeitos.

Ryan diminuiu o passo ao se aproximarem da mercearia. O carro de Maggie estava esta­cionado perto da caminhonete. Era o mesmo car­ro que ela deixara na estrada ao aceitar a carona para a cidade. Fazia duas semanas, recordou, espantado. Por algum motivo, parecia que co­nhecia Maggie havia mais tempo.

Aguardou na calçada enquanto ela abria a porta do veículo e alojava a bolsa no banco. Então, ela se voltou sorridente. Ryan preferia que ela não sorrisse, pois assim era obrigado a fitar-lhe os lábios, lembrando-se de seu gosto e maciez. Sentiu vontade de beijá-la outra vez, justamente o que não podia se permitir, embora custasse a recordar o motivo.

— Foi muito bom — comentou Maggie, enrubescendo em seguida. Temia que Ryan inter­pretasse mal seu comentário. — O piquenique, quero dizer. O piquenique foi muito bom.

— Foi um bom piquenique — concordou Ryan, solene. E completou.— Mas o resto foi ainda melhor

Ele fizera o comentário apenas pelo prazer de vê-la corar mais, e não se decepcionou. Ela desviou o olhar, concentrando-se na altura da clavícula dele.

— Para mim, também — confessou, em ago­nia. — Quero dizer, também penso assim.

Queria vê-la novamente, decidiu Ryan, de re­pente. Podia não ser a atitude mais inteligente, porém, se fosse inteligente todo o tempo, a vida não teria a menor sem graça. Passara os últimos quatro anos arriscando a vida apenas para ga­nhar o suficiente para chegar à arena seguinte. Agora, só enfrentava mais um risco, só que de outra natureza.

— Espero que as encomendas tenham chegado — declarou Maggie, um pouco animada demais, e ele percebeu que deixara o silêncio se prolongar.

— Maggie...

Ryan chegou a estender a mão para tocar na dela, mas conteve-se. Se Bonnie Dillard os visse de mãos dadas em plena luz do dia, na frente de todos, à noite metade do Estado apostaria como estavam noivos, enquanto a outra metade diria que estavam só tendo um romance tórrido.

Ótimo, Lassiter. Beije-a em plena luz do dia, num local público onde todo mundo possa vê-lo, mas não pegue na mão dela. Era mesmo muito inteligente.

Assim, ancorou os polegares nos bolsos, ciente do peso do gesso. E o gesso não era a única coisa que incomodava, pensou, ao encarar Mag­gie. Curiosa, ela aguardava que ele dissesse algo além de seu nome. Sem nada na cabeça, Ryan apenas fitou-a. Fazia muito tempo desde que convidara uma mulher para sair. Não sabia mais como fazer.

— Maggie, eu...

— Maggie! Mas não é muita coincidência? A voz era de contralto, rouca, grave, limpa e muito feminina. Maggie olhou por sobre o ombro de Ryan. Ele captou algo no olhar, mas não sou­be interpretar.

— Noreen — cumprimentou ela, indiferente, sem emoção, sem animação.

— Em carne e osso — confirmou a irmã. Ryan voltou-se e arregalou os olhos ao ver a moça que vinha em sua direção. Era alta, com cerca de um metro e setenta e cinco, e usava sandálias de tiras vermelhas de salto alto e fino, o que a deixava com quase um metro e oitenta. Era magra, mas com curvas nos lugares certos. Usava calça justa vermelha e frente-única branca que deixava pouco para a imaginação, percebeu Ryan, reparando na sombra dos mamilos através do tecido fino.

Usava os cabelos loiros soltos, jogados sobre os ombros, compondo o tipo de mulher fatal que induzia os homens a pensar em sexo quente. Como se lesse seus pensamentos, ela levou a mão esguia à nuca e afagou a cabeleira, de modo a projetar os seios quase expostos para a frente. Com esforço, Ryan desviou o olhar daquela exi­bição desavergonhada. Pela expressão, a moça quisera mesmo chamar a atenção estava satis­feita com o efeito causado.

— Pensei que estivesse trabalhando hoje — disse Maggie. Odiava a forma como Noreen olha­va para Ryan. Odiava ainda mais o fato de ele estar correspondendo ao olhar. — Não tinha que substituir Coleen, que estava doente?

— Ela melhorou e foi trabalhar. Eu estava indo para casa, mas, já que está de carro, acho que vou pegar uma carona.

— O que aconteceu com seu carro? — Embora difícil, mas Maggie conseguiu manter o tom cal­mo. Não queria que Noreen percebesse o quanto se perturbara com sua aparição repentina. Nun­ca era bom colocar uma arma na mão de Noreen, não importava quão inofensiva parecesse.

— Fiquei sem gasolina. — Noreen olhou ma­liciosa para Ryan, passando a mão na cabeleira novamente. — Sei que é clássico, loiras burras sempre fazem dessas, mas simplesmente não estava prestando atenção ao marcador...

— Pode acontecer a qualquer um — replicou ele, indiferente, concentrado no rosto da moça. Por algum motivo, não acreditava que houvesse um único osso burro naquele corpo bem-feito.

— Ainda me sinto tola. — Ela franziu os lá­bios, fingindo desolação, mas com isso chamou a atenção para a boca carnuda colorida no mes­mo tom berrante da calça. Então, deu um belo sorriso. — Já que Maggie não parece inclinada a nos apresentar, eu farei as honras. Noreen, irmã mais velha de Maggie, mas só alguns ani­nhos — acrescentou, rindo.

Maggie conteve o ímpeto de esclarecer que na verdade, eram sete anos e meio de diferença. A experiência lhe ensinara que não podia competir com Noreen quando se tratava de vulgaridade, mesmo que quisesse.

— Este é Ryan Lassiter — disse Maggie, com­pletando as apresentações que Noreen iniciara.

Noreen sorriu e estendeu a mão.

— Queria muito conhecê-lo. Sei que socorreu Maggie quando o carro dela quebrou há algumas semanas. Pensei que seria bom se alguém da família lhe agradecesse...

— Maggie já agradeceu — disse Ryan, sen­tindo a pressão dos dedos quando tentou recu­perar a mão. Essa era a irmã de Maggie?

— Cedo ou tarde, acabaríamos nos encontrando na cidade — afirmou Noreen. Estreitando o olhar, como se o sol a incomodasse, mudou de posição para aliviar o desconforto. Coincidência ou não, ficou de costas para Maggie, excluindo-a da conversa. — Gostaria de lhe pagar uma be­bida. Uma maneira de agradecer— acrescentou, quando Ryan franziu o cenho.

— Não é necessário — declarou ele. Não pôde deixar de pensar que Lucrécia Bórgia devia ter o mesmo olhar ao convidar suas vítimas a tomar um cálice de vinho.

— Talvez não, mas me sentiria bem melhor. — Noreen passou a mão no decote da frente-única, chamando a atenção aos seios, bastante evidentes. — Trabalho no Dew Drop, geralmen­te à noite. Passe por lá um dia. — Fitou a boca de Ryan, umedeceu o lábio inferior e concluiu quase ronronando: — Qualquer dia...

— Vamos ver —, esquivou-se Ryan, sem se comprometer.

Impossível negar que Noreen era bonita e não podia culpá-la por ter consciência disso. Impos­sível ter aquela aparência e não saber que era atraente. Maçãs do rosto altas, sobrancelhas de­licadamente arqueadas, lábio inferior carnudo que provocava a imaginação dos homens. Olhos azuis translúcidos, adornados por cílios escuros e grossos. Vira fotos de icebergs bastante seme­lhantes e igualmente gélidos.

Noreen lhe trazia a lembrança também um acampamento que ele e Tucker fizeram quando adolescentes. Ao atravessar uma ravina, vira-se cara a cara com uma serpente que tomava sol sobre uma saliência na rocha. A víbora estava longe o suficiente para não preocupar, mas perto o bastante para assustar. Ele e Tucker trocaram olhares antes de retomar a caminhada, bem mais atentos daí por diante. Havia certa semelhante entre Noreen Drummond e a serpente da ravina.

Ryan procurou Maggie. Ela olhava para uma falha na calçada como que fascinada pelas li­nhas irregulares marcando o concreto antigo. Com certeza, não podia convidá-la para sair, não com Noreen ali, toda oferecida e disponível. Con­versaria com Maggie outra hora, decidiu, ao mesmo tempo aliviado e aborrecido com o adia­mento, o que significava que era ou covarde, ou idiota... podia escolher.

— Se não levar a encomenda para casa, Sara vai me escalpelar vivo — lembrou-se, à guisa de despedida, ansioso por encerrar a cena constrangedora.

Noreen aproximou-se e lambeu o lábio inferior.

— Tem certeza de que não posso lhe oferecer aquela bebida agora?

Mais uma vez, Ryan se lembrou da serpente mostrando a língua partida, sibilante, como se avaliasse se ele era comestível ou não.

— Outro dia. — Por educação, esforçou-se para soar desolado.

— Vou cobrar — ronronou Noreen.

Fingindo não reparar na investida, Ryan olhou para Maggie, que continuava distraída com a calçada. Como ela não erguia o olhar, despediu-se das duas superficialmente e, covar­de, refugiou-se na mercearia.

— Oh, que sorte! — exclamou Noreen, quando a porta da mercearia se fechou, abafando o ti­lintar do sino lá dentro. — Estava louca para topar com o ricaço...

Maggie ergueu o rosto, cuidando para não olhar para a mercearia. Odiaria flagrar Ryan espiando pela vitrine, comendo Noreen com os olhos.

Percebeu que segurava as chaves do carro com força, o metal marcando-lhe a pele. Afrouxou o toque. Os homens deviam ser mesmo suscetíveis a mulheres de bumbum empinado, peitos gran­des e perfume envolvente. Devia estar nos ge­nes, pensou, indignada, lembrando-se de como Ryan arregalara os olhos ante os seios perfeitos de Noreen. Não que o culpasse, já que a desa­vergonhada praticamente esfregara o peito no nariz dele.

— Vai querer carona para casa? — questionou Maggie, fria, capaz de disfarças todas as emo­ções, após anos de prática.

— Vou. — A careta de Noreen era muito me­nos atraente do que seu beicinho ensaiado. — Sabe, o motor do meu carro está com um ruído estranho. Não quero dirigir, caso seja algo sério. Dave Lufton disse que daria uma olhada nele para mim no fim de semana.

Dave Lufton era um dos namorados mais re­gulares de Noreen, alguns anos mais novo que ela, empregado na loja de rações. Tinha um me­tro e noventa e cinco de altura, ombros bem largos e expressão agradável, embora lembrasse um pouco um boi. Como se comesse os grãos em vez de transportá-los. Resumindo, era edu­cado, mas não muito inteligente. Como não era rico, nem parente de alguém que fosse, era es­tranho que Noreen saísse com ele, até que soube, numa confidência da irmã, que Dave era extre­mamente bem dotado e muito bom de cama. Depois disso, não conseguiu mais olhar para ele sem ficar com vontade de ver o zíper...

— Acho que impressionei Ryan — declarou Noreen, ajeitando-se no lugar do passageiro.

— Tenho certeza. — Maggie ligou o carro e deu ré, iniciando as manobras para sair da vaga. Pelo que sabia, Noreen nunca falhara em im­pressionar seres masculinos. Soltou a embreagem de repente e o carro deu um tranco para a frente.

— Por que não me disse que ele era tão bonito? — questionou a irmã.

— Eu disse que ele era atraente.

— Uma descrição muito vaga. — Noreen lam­beu os lábios, a expressão lasciva. — Ele é um bonitão, e a família tem muito dinheiro. Não se encontra uma combinação dessas todo dia.

Maggie pisou no freio para que um velhinho atravessasse a rua bem lentamente, como se desembarcasse de um navio com seu apoio de rodinhas. Olhou para a irmã.

— Muitos fazendeiros são ricos em terras, mas não têm dinheiro, sabia?

— Terras podem ser vendidas — argumentou Noreen, interesseira. — Uma fazenda do tama­nho da SL deve valer uma fortuna. Basta trans­formar estrume em ouro. Imagine só transfor­mar todos aqueles bois em diamantes e viagens de primeira classe.

Aviltada, Maggie teve vontade de esmurrar aquela boca pintada quando Noreen riu malé­vola. Contentou em apertar as mãos no volante, imaginando que fosse o pescoço da irmã. Feliz­mente, nenhum dos dez mandamentos obrigava a honrar os irmãos. Por Noreen, nutria apenas um profundo desgosto.

— A fazenda está na família há gerações — lembrou Maggie. — Duvido de que Ryan a venda um dia.

— Um homem faz o que a mulher quer, desde que ela saiba que botões apertar — ensinou No­reen, cínica. Lançou um olhar astuto a Maggie. — Ou quais abrir. Sei que pode ser um choque, irmãzinha, mas o caminho para o coração de um homem não passa realmente pelo estômago. De­finitivamente, passa pelo zíper. A maioria dos ho­mens não descobriu ainda que têm duas cabeças e só uma delas fica acima da cintura. Controle a que fica abaixo do cinto e conseguirá o que quiser.

— Sexo não é a solução para todos os proble­mas. E não fume no meu carro! — advertiu, quando Noreen pegou um cigarro da bolsa.

— Sexo é a causa ou a solução para tudo o que ocorre entre homem e mulher. — Noreen devolveu o cigarro à bolsa e voltou-se para ver Maggie, o olhar brilhante de curiosidade. — Pa­rece até que está levando isso a nível pessoal...

— Na verdade, não. — Maggie deu de ombros, concentrando-se na via.

— Não está de olho em Ryan Lassiter, está? — Noreen sorriu, maliciosa. — Seria um grande erro. Mesmo que eu não o cerque, e cercarei se me decidir, você não é o tipo que interessaria a um homem como ele.

Maggie cerrou o maxilar, contendo o ímpeto de revelar à irmã que Ryan se interessara o suficiente para beijá-la. Adoraria arrancar do rosto dela aquele sorriso presunçoso. Mas a sa­tisfação passageira não valia o preço, e Noreen sempre exigia um preço.

— Não tenho interesse particular nele — men­tiu Maggie, calmamente, estacionando o veículo na rua de cascalho diante de casa. — Só acho que sua visão do mundo é um pouco estreita. Há mais na vida que apenas sexo.

— Com certeza. — Noreen sorriu maldosa. — Há dinheiro. — Abriu a porta do carro e saltou. Maggie fez o mesmo e se encararam por sobre a capota do carro. — Vou lhe dar um conselho. — Encaixando um cigarro entre os lábios rubros, acendeu-o com um isqueiro prateado, presente de algum amante havia muito esquecido. Quan­do reergueu o olhar, estava mais calculista do que antes. — Não dê em cima de Ryan Lassiter.

— Está me prevenindo?

— Para o seu próprio bem, irmãzinha. — No­reen exalou uma nuvem de fumaça. Sorriu, mas os olhos eram blocos de gelo. — Mesmo que eu decida não fisgá-lo, você vai fazer papel de boba se tentar conquistá-lo. Um homem como aquele quer muito mais de uma mulher do que você é capaz de dar. — Sem esperar resposta, seguiu para casa.

Maggie se agarrou à maçaneta da porta, fu­megante de raiva. A calça vermelha de Noreen se destacava no cenário árido como uma pro­messa de primavera.

— Ryan não é um peixe — murmurou, vendo a irmã entrar em casa e fechar a porta. — Nin­guém vai fisgá-lo.

Recuperando o controle, soltou a maçaneta e foi retirar do porta-malas a bolsa com a câmera fotográfica e o cobertor que tinham usado no pi­quenique. Tinha uma expressão tão determinada que até a irmã ficaria surpresa. Ryan não beijara Noreen. Beijara a ela. E, se dependesse dela, vol­tariam a se beijar. Então, não haveria nada que Noreen pudesse fazer com seu bumbum empina­do, suas blusas transparentes e seu beicinho.

Bateu a porta do porta-malas para enfatizar a determinação.

 

Ryan conheceu Shelly Taylor pouco depois que seus pais o deixaram na SL para morar com o avô. Da mesma idade que ele e Tucker, essa era a única característica que os três partilha­vam, porque Shelly era uma garota com G maiúsculo. Nascera e fora criada numa fazenda, era amazona hábil, mas sua apreciação pela vida rústica parava aí. Enquanto a maioria das crianças do campo passava noventa por cento do tempo de calça jeans, Shelly usava vestidos. Ves­tidos cor-de-rosa, com babados, vestidos brancos simples com fitas cor-de-rosa, vestidos azuis com saias rodadas e laços grandes às costas. Os cabelos castanho-claros estavam sempre cacheados, a pele de pêssego, sempre limpa, e os sapatos, sempre brilhando. Até seus tênis tinham florzinhas.

Ryan detestou-a à primeira vista e o senti­mento foi mútuo.

Como moravam em fazendas vizinhas, geral­mente iam à escola juntos, ou com Sara, ou com a empregada contratada para cuidar de Shelly. Várias horas de convivência forçada semanalmen­te não mudaram suas opiniões um do outro. Ele a achava uma pedante. Ela o achava um porco.

Poucas semanas após o início das aulas, o an­tagonismo entre os dois tornou-se público. Ele estava indo, Shelly vinha vindo e uma poça de lama resplandecia no meio do caminho. Ora, que menino de dez anos normal resistiria? Ao passar por ela, "tropeçou" e derrubou a menina engo­mada em vestido amarelo no mar de lama.

Se tivesse sido astuto e sustentado a farsa de que fora um acidente, a história acabaria ali mesmo, com Shelly engolindo o desaforo. Mas ela estava tão engraçada, sentada ali, imunda, que ele não conseguiu conter o riso.

Ao empurrá-la "sem querer", Ryan não pen­sara na reação dela, mas meninas, durante um vexame, costumavam chorar, ou ter um acesso de raiva. Shelly enrubesceu feito pimentão, mas não verteu uma lágrima. Levantando-se, pisou em terra firme com as meias enlameadas frou­xas sobre os sapatos pretos antes tão lustrosos.

Não parecia tão arrumadinha agora, pensara ele, contente. A lama lhe empastava o rosto ro­sado e os cabelos castanhos, sedosos. Estava li­teralmente coberta de lama da cabeça aos pés. Rindo sem parar, ele a observou aproximar-se.

Shelly torceu o excesso de água da saia, pas­sou a mão suja nos cabelos, ergueu a cabeça e o olhou com ódio.

— Você fez de propósito!

— Eu tropecei — afirmou, ciente de que a des­culpa não convenceria nenhum dos professores. Nem o avô. O pai de Shelly era um bom amigo do avô, lembrou-se. Mas era tarde demais para recuar. Sua única saída era manter sua história. — Tropecei — repetiu. — Foi um acidente.

Shelly tinha os lábios contraídos e os olhos faiscantes.

— Você fez de propósito!

Com certeza, apresentaria queixa a alguma professora, concluiu Ryan. Era mesmo uma chorona. Todas as garotas eram. Faria questão de espezinhá-la ainda mais quando ela começasse a chorar. Mas Shelly não chorou. Em vez disso, cerrou o punho delicado e lhe deu um murro no estômago com toda força.

De lado o desdém, Ryan dobrara-se em dois, tomado de surpresa e dor. Sem fôlego, viu es­trelas. Por um instante, o mundo pareceu rodar.

— Isso é para você aprender — declarou Shelly.

Ryan sentiu as mãos dela em suas costas, mas não teve tempo de reagir. Num segundo, mer­gulhava na lama, de cabeça. Cuspindo e pra­guejando, rolou para o lado e sentou-se, tirando a lama dos olhos. Ao contrário do que esperara, Shelly não tripudiou. Já ia embora, enlameada, porém vingada.

Nos anos seguintes, mantiveram distância. Então, no último ano do segundo grau, ele de repente notou que Shelly ainda usava vestidos, mas agora tinha o par de pernas mais bonito da escola. Ao mesmo tempo, ela reparava que ele preenchia as camisas muito bem. E todas as garotas concordavam que ele tinha os olhos mais lindos. Na flor dos dezessete anos, ambos consideravam aquelas constatações motivo su­ficiente para colocar as hostilidades de lado.

Namoraram durante aquele ano. E brigaram durante quase todo aquele ano também. Só se mantinham juntos por pura pressão. Todas as amigas de Shelly achavam que ele era bonitão e todos os amigos de Ryan o invejavam por ele estar saindo com a garota mais linda da escola. Formariam o par perfeito... se se entendessem.

Após a festa de formatura que quase acabara em briga, tomaram caminhos diferentes, sem ressentimentos. Ryan foi para a universidade e Shelly, para Hollywood. Viram-se umas poucas vezes, desde então. A comunidade de fazendas era grande em extensão, mas pobre em popu­lação, tomando inevitável que se encontrassem aqui e ali, por conta da amizade entre o avô de Ryan e o pai de Shelly. Viram-se pela última vez no enterro de Sally. Shelly era uma das melhores amigas da irmã mais velha de Sally e conhecia a caçula desde sempre. Ryan tentara se esquecer daquele dia, mas lembrava-se va­gamente de ver Shelly, com lágrimas nos olhos, dizendo o quanto lamentava e que todos senti­riam muito a falta de Sally.

Decidira comparecer ao jantar mais pela lem­brança de sua dor sincera do que por exigência do avô. Somente por isso, tomou banho, vestiu uma camisa limpa e apresentou-se na sala. Shel- ly era uma velha amiga, afinal. Diante do es- pelho, Ryan franziu a testa, lembrando-se do olho roxo e do soco no estômago que ela lhe dera. Sim, era uma grande amiga. Deu de om- bros. Bem, gostava do pai dela, ao menos.    

Acabou de abotoar a camisa preta ao estilo do Oeste, enfiou as fraldas na calça jeans. Só esperava que o avô não desse uma de casamen­teiro ao passar a travessa de batatas. Se bem que seria até divertido, se o velho tentasse. O temperamento de Shelly não devia ter mudado e a noite poderia terminar de forma mais espetacular do que Nathan imaginava.

Alegre com a imagem de Shelly dando um soco no olho de seu avô, Ryan acabou de se pen­tear e deixou o quarto. Ora, se a moça enfren­tasse Nathan, até consideraria desposá-la. Des­ceu a escada assobiando.

Quando a campainha tocou, era Ryan quem estava mais perto da porta. Ao ver o brilho nos olhos do avô ao se levantar, suspirou. Sabia que Nathan esperava que ele e Shelly se apaixonas­sem... ou se excitassem, imediatamente. Ao ve­lho não importaria o motivo da união, desde que resultasse na fusão das duas fazendas.

Ao abrir a porta, teve que admitir que o velho avô era um bom estrategista. A garota bonita tomara-se uma bela mulher, capaz de inspirar desejo à primeira vista. Em seu rosto, o tempo apagara a suavidade da juventude, salientando as maçãs do rosto e a linha do maxilar. Os olhos cor de amêndoa ganharam lentes de contato ver­des e os cabelos castanho-claros, reflexos aloirados que lhe adornavam o rosto com graça.

Ainda gostava de mostrar as pernas, mas a saia de tricô preta, bem justa, não lembrava em nada os vestidos de babados que usara na escola. E os saltos altos não se pareciam, tampouco, com os sapatinhos pretos comportados daquela época.

— Ryan. — Shelly estendeu a mão, exibindo unhas impecáveis. — Há quanto tempo... Você está ótimo.

— Você, também — retribuiu ele, sincero.

Apertou-lhe a mão de dedos longos e elegan­tes, a pele macia como seda. A mão de Maggie, embora menor, não tinha aquele toque frágil. Havia força na mão pequena, demonstrando ca­ráter, e ela odiaria a observação. Com esforço, concentrou-se na mulher à sua frente.

— Fiquei muito triste quando soube de seu pai. Era um bom homem.

— Obrigada. — Shelly diminuiu o sorriso por um segundo. — Ele sempre gostou de você.

— Mesmo os melhores homens têm mau gosto às vezes — replicou Tucker, surgindo às costas de Shelly. Como mandava a tradição entre caubóis, viera socorrer o amigo.

Shelly não disfarçou a surpresa, nem uma emo­ção no olhar, que Ryan não soube identificar.

— Tucker — murmurou ela.

— Prazer em revê-la, Shelly. — Tucker sorria largo e amistoso. — Já faz algum tempo.

— Dois dias — disse ela, o tom frio destoando das faces afogueadas.

— Só o bastante para sentir falta do seu sorriso... Considerando que Shelly parecia incapaz de sorrir, Ryan concluiu que Tucker estava só lisonjeando. Olhando de um para outro, não adi­vinhava nada a partir da expressão simpática de Tucker, nem da seriedade de Shelly.

— Algum motivo para estarem todos parados aí na entrada? — questionou Nathan, mal-hu­morado, da sala de estar.

— Motivo algum. — Shelly foi cumprimentar o anfitrião, parecendo grata com a interrupção.

Mais atrasados, Ryan olhava para Tucker de um jeito interrogativo. O amigo tinha agora um sorriso enigmático. Ryan o conhecia o bastante para saber que não lhe arrancaria nenhuma ex­plicação para aquela óbvia tensão entre ele e Shelly. Tucker sempre fora um túmulo quanto a assuntos íntimos, próprios e alheios. Se tivesse um segredo, podia confiá-lo cegamente a Tucker Mclntyre. Como admirava sua discrição! Nesta ocasião, porém, gostaria que ele abrisse exceção e lhe contasse o que estava acontecendo...

Ora, já estava se parecendo com Bonnie Dillard, bisbilhotando. Passou a mão no rosto. Pre­cisava tirar logo o gesso e voltar ao trabalho em tempo integral. Caso contrário, logo estaria no balcão da mercearia, trocando figurinhas com Bonnie, especulando sobre a vida conjugai dos outros e trocando receitas de bolo.

— Você está criando raízes aí? — ralhou Na­than, rabugento.

Não se conformava em ver o neto parado ali no canto, fitando o vazio feito um idiota, en­quanto Tucker despejava num copo a água mineral importada caríssima que Sara comprara especialmente para a ocasião. E que gosto ruim. De qualquer forma, era Ryan quem devia estar servindo à convidada e entabulando conversa Só um cego não notaria a beleza de Shelly. Não era como se lhe pedissem que se casasse com uma solteirona cheia de pés-de-galinha. Na sala, Shelly riu de uma brincadeira de Tucker, au­mentando sua irritação.

— Ficou surdo? — rosnou Nathan, quase em cima do neto.

— O quê? — Ryan piscou, confuso. — Des­culpe-me. Estava pensando em outra coisa...

— Que tal dar um pouco mais de atenção às visitas? — resmungou o velho, em voz baixa. — Trata-se de uma linda moça e de um velho amigo de família.

— Linda e proprietária da fazenda que você quer incorporar — murmurou Ryan.

Nathan o encarou bufando, frustrado. Não era a fazenda vizinha que desejava, raios, mas a felicidade do neto e paz de espírito. Aonde Ryan pararia se continuasse fugindo do passado? Ele e Shelly conheciam-se desde sempre. Não havia motivo para não se apaixonarem, pondo de lado as reticências.

Sara preparou o jantar e deixou sobre o fogão para que todos se servissem. Considerando que Shelly era uma velha amiga da família, não vira necessidade de revirar livros de culinária para preparar pratos sofisticados. O trabalho na fa­zenda era árduo. Os homens passavam o dia atrás de bezerros desgarrados e consertando cer­cas, o que consumia energia e demandava re­feições substanciosas. Optara por costelinhas co­zidas lentamente, batatas assadas, dois tipos de legumes e uma travessa com bolinhos. A salada, atraente numa tigela grande de madeira, era a única concessão à convidada.

Shelly arregalou os olhos ante a quantidade de comida.

— Não é exatamente a cozinha californiana — comentou Tucker, oferecendo-lhe a travessa de bolinhos.

— Não, mas está cheirando muito bem — elo­giou ela.

— E nenhum pedaço de arugula à vista — comentou Ryan, sentando-se à mesa.

— Não acho que arugula venha aos pedaços — corrigiu Tucker. — Não é um tipo de castanha?

— Vem em pedaços — teimou Ryan, forçando o sotaque. — Vi um pacote numa mercearia.

— É uma castanha — insistiu Tucker, teimo­so. —Na Califórnia, eles espalham isso em tudo, de ovos mexidos a sorvete. — Olhou para Shelly buscando confirmação.

— Na verdade, é um tipo de folha — esclareceu ela, delicada. — E acho que nunca vi ao natural.

— Não me interessa o que seja, desde que Sara não coloque na mesa — resmungou Nathan, en­cerrando a discussão de forma pragmática.

— Acho que está seguro, vô. Não existe aru­gula nem em castanha, nem em pedaço, nem folha nesta cidade.

— Ótimo, passe os bolinhos, por favor. Ryan olhou para Shelly e surpreendeu-se ao ver que se divertia. Ela não tinha muito senso de humor antes. Claro, isso fora havia quinze anos... uma vida. As pessoas podiam mudar muito nesse tempo. Ele mesmo mudara. Fora tolice pensar que Shelly continuava a mesma.

— Devia ser um filme tipo Robin Hood encontra o Garanhão Negro, locado no Peru, no século de­zenove — contava Shelly. — Meu papel era o da empregada Marian, mas, definitivamente, era a coadjuvante para o cavalo. — Sorriu tristonha.

— Por que no Peru? — indagou Tucker

— O diretor imaginava a ação transcorrendo nos pampas — explicou Shelly, aceitando a xí­cara de café das mãos de Tucker. — Ele achava que daria uma grande abertura para o filme.

Nathan franziu o cenho, confuso.

— Pensei que os pampas ficassem na Argentina.

— E ficam. — Shelly riu. — Freddy ficou fu­rioso ao descobrir que estava no país errado. Custou a acreditar que não tinham transferido os pampas do Peru só para aborrecê-lo.

— E mudaram o roteiro?—perguntou Tucker, servindo-se de conhaque.

— Está brincando? — Shelly arregalou os olhos, espantada com a pergunta. — Aquilo era Hollywood. Se queriam os pampas no Peru, seria no Peru. Além disso, o orçamento não permitia filmagem no local. O mais perto que chegamos da América do Sul foi Lancaster, a uma hora de carro de Los Angeles, ao norte.

— Ouvi dizer que Lancaster é bem parecido com os pampas peruanos — declarou Tucker, solene.

— Parecido o bastante, acho. — Shelly con­traiu os lábios. — Freddy estava convencido de realizar o próximo Dança com Lobos. Se ele se empenhasse em fazer o filme tanto quanto em redigir seu discurso de agradecimento ao Oscar, talvez até conseguisse um roteiro coerente. A verdade é que ninguém, nem ele mesmo, entendeu a história. Foi direto para as videolocadoras e já era mais do que merecia.

— Deve ter sido frustrante. — Tucker apoiou.

Findo o jantar, os quatro haviam se instalado na sala de estar. Até então, a noite transcorrera sem surpresas, aliviou-se Ryan, afundado na poltrona de couro. Estava até agradável. Shelly tinha um bom estoque de histórias de sua breve carreira artística e não hesitava em fazer troça de si mesma... outra mudança notável. A Shelly de antes jamais riria de si mesma.

Ryan pegou a xícara de café e abafou um bo­cejo. A lareira acesa contribuía mais para a ambientação do que com calor. As luminárias lan­çavam tons dourados pela sala, refletindo-se na madeira antiga, expondo áreas gastas nos estofamento de couro. Não devia ter se servido da segunda fatia de torta, pensou, ciente da letar­gia tomando conta do corpo. Ryan o ombro contra a lareira e a luz fogo através de seu cálice tomava o conhaque dourado.

— A primeira coisa que um ator desenvolve é a alta tolerância à frustração — revelou Shel­ly, conformada. — Passamos a maior parte do tempo aguardando nossa vez de filmar, fazendo a maquiagem, experimentando o guarda-roupa, a preparação do cenário, as trocas de cenário. Não é um trabalho tão glamouroso quanto as pessoas imaginam.

Ela imaginara mesmo?, pensou Ryan. Era evi­dente que Shelly não alcançara seu objetivo em Hollywood, que sua vida não tomara o rumo planejado. Seria possível planejar a vida? Dis­traído, esfregou o polegar esquerdo na base do dedo anular, onde um dia tivera uma aliança. Não havia um ditado segundo o qual a vida acontecia enquanto você fazia outros planos?

— Então, o que planeja fazer agora? — espe­culou Nathan, de chofre, manifestando-se pela primeira vez em longos minutos.

A voz do avô arrancou Ryan da letargia. O jantar fora tão tranqüilo que quase se esquecera das aspirações dinásticas de Nathan.

— Não tenho certeza. — Shelly deu de ombros novamente. — No jargão cinematográfico, estou entre papéis, o que é melhor do que dizer que estou sem trabalho. — Tomou um gole de café e foi como se quisesse revelar logo uma decisão, antes que se arrependesse. — Na verdade, estou decidida a voltar para casa. — Riu constrangida.

— Acho que estou ficando velha para os esque­mas de Hollywood. Além disso, a Pico Nevado não pode ficar sozinha...

Ryan estremeceu ante a expressão satisfeita do avô. Shelly nem imaginava a bomba que aca­bara de lançar no meio da sala.

— O capataz Ray sempre fez um bom trabalho comentou, perspicaz.

— Com certeza — Shelly suspirou e pousou a xícara de café. Ao cruzar as pernas com elegância, sua saia subiu alguns centímetros, mas Ryan nem notou. — Quando meu pai morreu, achei que Ray ia cuidar de tudo para mim, mas ele está pensando em se aposentar, talvez se mudar para o Idaho. Andy está com uma fazenda lá, sabem, e Ray quer ficar perto dos netos, acho.

Ryan ignorou o olhar triunfante do avô.

— Tenho certeza de que ele vai continuar até você achar outro capataz — afirmou, enviando mensagem tanto para Shelly quanto para Nathan.

— Espero que sim. — Shelly suspirou. — A verdade é que Ray não está animado em tra­balhar para uma mulher, ainda mais uma a quem ajudou montar no primeiro pônei. É difícil para ele me ver como a patroa.

— Você devia se casar — opinou Nathan, fran­co, pois a sutileza nunca fora sua característica. — É difícil para uma mulher administrar uma fazenda sozinha. É difícil para qualquer um — acrescentou, lembrando-se de ser politicamente correto. — Não estou dizendo que é impossível, só que é difícil. Precisa olhar ao redor e encon­trar um bom homem que conheça o trabalho na fazenda. — Apontou para o neto e os cubos de gelo tilintaram em seu copo. — Aqui está Ryan dando sopa, por exemplo.

Ryan fechou os olhos, tomado de raiva, ver­gonha e vontade de rir. Precisava admitir, o ve­lho sabia como chegar ao ponto.

A antiga Shelly teria reagido à impertinência com sua famosa arrogância. Agora, porém, pa­recia mais espantada do que zangada. Sorriu ao ver Ryan todo envergonhado e constrangido.

— Na hora de procurar um marido, eu me lembrarei — respondeu ela, graciosa.

A fim de aliviar o clima, Tucker perguntou sobre um ator com quem Shelly contracenara, antes que Nathan dissesse mais alguma imper­tinência. Aliviado, Ryan recordou por que eram amigos havia tanto tempo. Pouco depois, Shelly pousou a xícara vazia na mesinha e disse que já era sua hora. Ryan mal disfarçou a alegria. Se fosse esperta, ela manteria distância da SL, dando um tempo para Nathan se recuperar da insanidade temporária.

— Quase tinha me esquecido de como o dia começa cedo aqui — comentou Shelly, sorriden­te. — Ray quer que eu cavalgue com ele pela manhã e dê uma olhada no gado que ele quer separar para um tipo de programa de reprodu­ção. Só espero que não me faça selecionar, afi­nal, acabo de chegar após uma longa ausência.

— Ele só quer alguém que ouça enquanto ele fala — opinou Tucker, folgazão. — Ray sempre gostou do som da própria voz. Estou voltando para o alojamento e a acompanho até o carro.

Nathan olhou feio para o neto, quase ordenando-lhe que escoltasse a moça, mas Ryan o ignorou. Shelly despediu-se e saiu com Tucker.

— Você podia ter conversado mais — censurou

Nathan, assim que ficaram sozinhos.

— Sobre o quê?

— Sobre qualquer assunto. Mal dirigiu a pa­lavra a ela!

Ryan começou a recolher os copos e xícaras.

— Acho que não tinha nada a dizer.

— Shelly é muito bonita.

— Concordo.

— E? — Nathan mal continha a impaciência.

Ryan encarou o avô. Estava cansado, sentia uma dor de cabeça se aproximando e uma coceira o atormentava por baixo do gesso. Tantos incô­modos juntos formavam uma tortura exasperadora. Por um instante, temeu perder o autocontrole. Conteve-se tendo em mente que as interferências de Nathan não eram motivo de preocupação.

— Não estamos na Idade Média — lembrou, contido. — Não pode sair por aí arranjando casamentos.

— Não precisa pedi-la em casamento já — amenizou Nathan, estratégico. — Podia convidá-la para sair, pelo menos. Não está mesmo namorando ninguém...

— Porque não estou interessado em ninguém. Ryan sabia que estava mentindo. Não parava de pensar em Maggie e se repreendia por não ter dito que queria vê-la novamente. Nunca vacilara antes de convidar uma mulher para sair... talvez por não dar tanta importância à resposta. Com Maggie, importava-se. E era isso que o dei­xava apreensivo.

— Vou levar a louça para a cozinha e, depois, direto para a cama — declarou Ryan, encerran­do a discussão. — Boa noite.

Aquele jantar podia ter tido um desfecho bem pior, pensou Ryan, subindo a escada. Podia ter sido envenenado.

— Não precisa me acompanhar até o carro — disse Shelly, assim que a porta se fechou e se viram na varanda.

— O alojamento fica no caminho.

Tucker tirou um cigarro do bolso. Shelly aguardou que ele o acendesse, o luar empres­tando um brilho prateado a seus cabelos loiros, embora seus olhos permanecessem obscuros, misteriosos. De salto alto, ela ficava só um pouco mais baixa do que ele, na altura perfeita para um beijo. Se ele quisesse.

De olhos baixos, ele apagou o fósforo num vaso. Em toda a vida, nunca vira plantas naqueles va­sos. Sua mãe, Sara, contava que a sra. Lassiter tinha mão para jardinagem e tomava a casa um show de verde na primavera e no verão.

— Vai me acompanhar até o carro ou conti­nuar aí parado fumando? — questionou Shelly, impaciente.

— Achei que podia fazer um pouco dos dois — replicou Tucker.

Irritada, Shelly desceu os degraus, sem se des­pedir. Tucker riu e foi atrás dela, alcançando-a em poucos passos.

Ela usava um perfume de essência quente, seco, com um toque de almíscar. Pensando em sexo, Tu­cker deu-se conta de que o objetivo da fragrância era esse mesmo. Amuado por se deixar controlar pelos sentidos, desviou o olhar da saia curta e justa que ela usava, pois lhe dava vontade de deslizar as mãos por aquelas pernas bem-feitas e...

— Oh! — Shelly tropeçou no piso irregular, desequilibrando-se.

Tucker a segurou pela cintura, apertando-a contra o corpo sólido. Ficaram como que colados, do peito às coxas. Shelly estava toda em seus braços, pele macia e coração palpitante. Cap­tando um brilho nos olhos dela, imaginou o que significaria. Sentia seu calor emanando através da blusa fina e da saia de tricô. Shelly parecia sem fôlego, derretendo-se com aquela proximi­dade. Então, ela pousou as mãos no peito dele, pedindo para se desvencilhar. Recuou um passo assim que ele a liberou.

— Obrigada — murmurou.

— Foi um prazer — disse ele, malicioso, sa­bendo que ela odiaria a insinuação.

Caminharam os últimos metros até o carro em silêncio e Shelly tirou a chave da bolsa.

— Obrigada por me acompanhar — declarou educada.

— Parece que Nathan tem planos para você e Ryan — comentou Tucker.

— Não sei o que quer dizer — respondeu Shel­ly, tensa.

— Claro que sabe. — Desistindo do cigarro ainda pela metade, Tucker esmagou-lhe a ponta incandescente com a ponta da bota. — Ele não foi nada sutil ao sugerir que vocês dois deviam ficar juntos.

— O que isso tem a ver com você? — Ela abriu a porta e usou-a como escudo contra Tucker.

— Não muito, acho — admitiu Tucker, con­vencido de que a discussão era em benefício de Ryan. — Só me espantei com sua condescen­dência, pois, em outros tempos, não teria hesi­tado em dizer a Nathan o que fazer com aquela sugestão.

— Ryan e eu só tivemos um namorico — de­clarou ela.

— Antes ou depois de você o deixar de olho roxo? Vendo-a bufar por entre os dentes cerrados, Tucker preparou-se para recuar, caso ela ten­tasse revidar com violência. Mas Shelly contro­lava-se melhor agora do que na adolescência e até conseguiu retrucar em tom indiferente:

— Não esperava que você entendesse.

— E Ryan entenderia?

— Não sei por que me desgasto tentando con­versar com você — desabafou Shelly, irritada. — É o homem mais detestável que já conheci!

— É bom saber que sou o melhor em alguma coisa — replicou Tucker, rindo.

Shelly acomodou-se atrás do volante e fechou a porta com força. Quando ligou o motor, Tucker se afastou, como se temesse que ela o atrope­lasse. Mas a maturidade a tornara mais pru­dente, ou não queria estragar o carro, pois não tentou nada. Simplesmente manobrou e saiu pelo pátio sem olhar para trás.

Tucker pegou outro cigarro enquanto contem­plava as luzes das lanternas se afastando. Ris­cou um fósforo e abrigou a chama do vento. A primeira tragada, voltou a acompanhar as luzes vermelhas até desaparecerem, quando Shelly al­cançou a estrada principal.

Ora, se Ryan contava com a ajuda de Shelly para tirar da cabeça do avô aquela idéia de ca­samento e fusão de fazenda, não a conseguiria tão facilmente.

 

Havia dias em que era melhor nem sair da cama. Quando Maggie acordou e viu um rato morto sobre o travesseiro, cortesia de um Max orgulhoso e ronronante, de­via ter adivinhado que amanhecia um daqueles dias. Claro, como pulou da cama ante a visão do rato morto, não pôde evitar que o dia seguisse seu curso.

Ainda havia a opção de permanecer em casa, após derrubar o secador de cabelos na pia ala­gada do banheiro, mas optou por desconectar o plugue, pescar o aparelho do meio da água e jogá-lo no lixo, convencida de que fora sorte o mesmo não estar ligado na hora do acidente, quando poderia ter morrido eletrocutada.

Podia ainda ter entregado os pontos ao cons­tatar que o leite estava azedo após despejá-lo sobre os cereais. Nem era preciso ser vidente para saber que os astros não estavam favoráveis às pessoas nascidas sob seu signo. Contudo, era vez de rastejar de volta para a cama, agora sem rato morto, e se cobrir até a cabeça, Maggie descartou o desjejum, pegou uma maçã e saiu para trabalhar. Foi um erro.

Não era como se algo estivesse muito errado. Era mais como se nada parecesse certo. Os sá­bados costumavam ser movimentados e aquele não seria exceção. Bill abriu para o café da ma­nhã às sete horas. Quinze minutos depois, a colega que cobria aquele turno com Maggie te­lefonou avisando que o filho caçula estava mal do estômago e não poderia deixá-lo para ir tra­balhar. Às oito horas, Maggie já percorrera o trajeto até a cozinha umas mil vezes, levando as comandas, trazendo os lanches.

Trabalhadores locais misturavam-se a cami­nhoneiros que iam para o norte, Montana e Ida­ho, ou para o sul, Colorado, além de turistas que pretendiam alcançar as montanhas a pé. Todos tinham um destino e queriam o café da manhã o mais rápido possível para poder pegar a estrada.

Ao mesmo tempo que servia café com creme e açúcar, Maggie anotava os pedidos: ovos quase duros, bacon crocante, torrada com bastante manteiga, ou ovos mexidos, lingüiça e batata frita, ou ovos duros, uma fatia de presunto, uma porção de batata com a pimenta que Bill man­tinha escondida. Sempre sorrindo, retribuía a todos os cumprimentos, atenta a quem pedira o quê, e servia mais café.

Ficaram sem açúcar no meio da manhã. Após uma conversa cáustica entre Bill e o cozinheiro que por acaso também era seu irmão, sobre a importância de manter os estoques sob controle um dos clientes se ofereceu para ir à mercearia pegar um saco de açúcar. Assim que a pequena crise foi solucionada, Maggie derrubou um bule de café. Considerando o andamento do dia, foi um espanto a bebida não estar escaldante e ape­nas ficou com os pés e calcanhares lambuzados de café momo. Claro, cortou um dedo ao recolher os cacos de vidro.

A manhã continuou no mesmo padrão. Não houve desastre maior, mas uma série de peque­nos aborrecimentos. Café derramado, um saleiro desatarraxado por alguma criança resultando em bacon e ovos atolados em sal, a caixa regis­tradora emperrada. Era apenas um daqueles dias em que nada parecia ocorrer como deveria. Passava da uma hora da tarde quando Maggie conseguiu sentar-se. Quase não controlou o sus­piro de alívio ao se instalar no banco alto. Bill estava no bar, falando ao telefone. Walter e Ernie jogavam bilhar. Ninguém estava pedindo café, nem sobremesa, nem a conta Havia duas mesas que precisavam ser limpas, mas podiam esperar.

Maggie flexionou os dedos dos pés dentro das sapatilhas meladas de café e, ao ouvir uma mú­sica em que a intérprete se dizia com sorte, de­sejou poder sentir o mesmo. No momento, só se sentia exausta.

— Um caminhão de entregas quebrou lá pelos dos de Casper — contou Bill, aproximando-se com a cadeira de rodas. — Disseram que não podem mandar outro caminhão para cá antes de segunda-feira. Acha que teremos tumulto se ficarmos sem cerveja?

— Considerando os acontecimentos de hoje, espero um tumulto mesmo se não ficarmos sem cerveja. — Maggie aceitou o refrigerante que Bill colocou à sua frente. Tomou um bom gole e sentiu as bolhas de gás descendo pela gar­ganta. Quando pousou o copo, fitou Bill com um olhar sério. — Acredita em presságios?

Bill ergueu o sobrolho.

— Acho que nunca pensei muito nisso. Por quê?

— Max deixou um rato morto no meu traves­seiro hoje cedo — explicou Maggie, sombria. — Acho que era um sinal. O que se pode esperar de um dia que começa assim?

— Não foi um bom começo para o rato também — considerou Bill, rindo.

Maggie riu também, e meneou a cabeça.

— Acho que não. — Tomou outro gole de re­frigerante e sentiu um pouco da tensão nos om­bros diminuir. Havia a ameaça de dor de cabeça, mas não era insistente o bastante para fazê-la tomar uma aspirina.

Bill acendeu um cigarro, um dos cinco que se permitia por dia. Na vitrola, a intérprete cedeu lugar a um ídolo Country cantando que era tão solitário que podia chorar. Ele devia se hospedar com Walter, pensou Bill, recordan­do que o freguês conhecera o cantor pessoal­mente e nunca mais poupara ninguém de sua história, contada vezes sem conta, sobre esse encontro lendário.

Bill olhou para Maggie, refletiu bem, mas de­cidiu falar. Defendia a política de não interferir na vida das outras pessoas, pois sabia, por ex­periência, que apesar das boas intenções aca­bavam-se criando mais problemas do que solu­ções. No entanto, gostando tanto de Maggie, não queria que ela se magoasse.

Soltou uma baforada e falou como quem não queria nada:

— Burt Miller veio aqui ontem.

— Como está a artrite dele? — indagou Mag­gie. — Ele se queixou um pouco quando esteve aqui na ultima vez.

— Parece que está melhor. — Bill sacudiu a cinza do cigarro. — Disse que as caminhadas que você recomendou estão ajudando.

— Li um artigo a respeito numa revista. — Maggie flexionou os dedos dos pés e sonhou que podia tirar os sapatos.

— Pois bem, Burt estava andando pela ci­dade outro dia e viu você e Ryan Lassiter no parque.

Maggie cessou imediatamente o movimento nos dedos dos pés. Pelo tom de Bill, era óbvio que Burt não os vira apenas sentados sobre o cobertor comendo sanduíches.

— Ele viu? — Sentiu o calor e a cor subindo ao rosto, denunciando a culpa, apesar do tom descontraído.

Bill já se arrependia de ter tocado no assunto. Não era mesmo de sua conta. Só que havia algo tão... vulnerável em Maggie. Ela se preocupava tanto com os outros que parecia não lhe ocorrer que podia pensar um pouco em si mesma.

— Sei que não é da minha conta... Maggie pousou a mão sobre a dele.

— Você só quer o meu bem.

— Só não quero que se machuque — esclareceu Bill. — Como eu já disse, Ryan é um bom homem, mas tem uma história triste. Qualquer mulher que se envolva com ele precisa saber disso.

— Não estamos envolvidos. — Ante o ceticis­mo do patrão, Maggie ruborizou. — Bem... ape­nas nos encontramos por acaso na mercearia. Foi só isso.

— Pelo que Burt disse, encontraram-se no par­que também — replicou Bill, erguendo a mão antes que ela falasse. — Não é da minha conta. Você não me deve, nem a ninguém, nenhuma explicação. Como disse, só não quero que se machuque.

— Eu aprecio sua preocupação... — Chamada por um cliente, Maggie olhou por sobre o ombro. Ele queria mais café. Reprimindo um gemido, saltou do banco. — De volta às minas de sal — murmurou.

Até que a interrupção fora bem-vinda, pensou, circulando com o bule de café entre as poucas mesas ocupadas. Não adiantava discutir seu re­lacionamento com Ryan, principalmente quando não tinha certeza se havia algum relacionamento. Já fazia mais de uma semana desde o piquenique e não soubera mais dele. Recusou-se a ficar ma­goada com o silêncio. Pelo menos, tinha certeza que ele não procurara Noreen. A irmã teria tido grande prazer em comunicar-lhe tal fato.

Maggie viu a porta se abrir e sentiu uma leve decepção quando Virgil Mortenson entrou. Não o via havia vários dias e desejou que ele tivesse se convencido de que era idiotice afogar as má­goas na bebida. Burra. Idiotice era esperar que um problema tão sério quanto o de Virgil se resolvesse num estalar de dedos. Suspirando, foi até a mesa cativa dele.

— Virgil, há quanto tempo.

— Oi, Maggie. — Ele a fitou por um segundo e baixou o rosto. — Estive fora por uns dias. Fui visitar minha irmã em Casper.

— Não sabia que tinha família em Casper.

— Só uma irmã. — Virgil remexia nervoso uma lasca de fórmica solta na borda da mesa. — Ela é bem mais velha que eu. Ela me criou, acho.

— Vocês dois são chegados? Virgil deu de ombros.

— Já fomos. Ficamos bastante tempo sem nos ver...

— Deve ter sido bom visitá-la. — Aquela era a conversa mais longa que já tivera com Virgil e sentia que progrediam, só não sabia para onde.

— Ela diz que sou um idiota — desabafou Virgil, atormentado. — Diz que não valho nada. Maggie piscou. O que deveria dizer agora? Duvido que ela esteja falando sério — opinou, cautelosa. — Acho que só está preocupada com você.

— Não sei por quê... — Ante a expressão de­solada de Maggie, corou e deu de ombros. — Tenho um emprego e um lugar para morar, não tenho?

— Talvez sua irmã ache que há mais na vida do que apenas isso.

— Talvez... — A lasca de fórmica acabou se desprendendo e Virgil constrangeu-se. — Des­culpe-me — murmurou.

Ela estendeu a mão espalmada para recolher a lasca.

— Posso lhe servir algo ou veio só para des­truir nossos móveis?

— Quero um hambúrguer — disse ele. Maggie alargou o sorriso.

— Malpassado com uma porção de fritas? E para beber?

— Água.

— Não prefere leite?

Virgil enrubesceu mais um pouco e riu, dando uma vaga idéia do homem que fora.

— Água está bom.

Maggie foi levar a comanda sorridente. Não era tola a ponto de acreditar que Virgil estava miraculosamente curado, mas ele parecia estar quase admitindo que tinha um problema. Era um grande avanço.

O cascalho pulou sob os pneus quando Maggie estacionou. Ainda era fim de tarde e teria dois dias de folga. Desligando o motor, recostou a cabeça no banco e saboreou o silêncio. Se nunca mais ouvisse alguém pedir café, se nunca mais tivesse que limpar uma mesa ou carregar uma pilha de pratos, morreria feliz.

Suspirou profundamente e abriu os olhos. A luz do sol filtrava-se pelas nuvens que se tinham formado nas montanhas. A chuva era certa, mas esperava que só caísse à noite. Prometera a si mesma uma tarde com a câmera e Bill lhe falara de uma estrada pelo sopé das montanhas de onde se vislumbrava uma rica vida selvagem. Algo maior que esquilos, com sorte. Franziu o cenho. Pensar nos esquilos lhe trazia Ryan à lembrança, despertando mais emoções do que podia enfrentar naquele momento.

Desencostando-se, abriu a porta. Não pensa­ria mais em Ryan, nem em Virgil, nem nos pés doloridos. Só o que queria naquele instante era relaxar e tirar algumas fotos. A luz estava ma­ravilhosa. Se a chuva esperasse um pouco, até ela pegar a câmera e chegar ao local sugerido por Bill, aquele dia que começara tão mal po­deria se encerrar de forma decente.

Em casa, adentrava o saguão quando perce­beu o silêncio. O som da televisão era tão cons­tante que sua ausência era notável. Lídia dei­xava a televisão ligada mesmo nas raras ocasiões em que saía, porque não gostava de chegar numa casa totalmente silenciosa. Só desligava o aparelho na hora de dormir, mesmo assim, porque tinha um aparelho portátil no quarto.

Curiosa, mudou de direção e foi para a sala, ouvindo a risada da mãe. Lídia estava no sofá, inclinada para a frente, vendo algo sobre a me­sinha de centro. Noreen refestelava-se na espreguiçadeira, fumando.

— Ouça, aqui diz que há bailes todas as noites sob as estrelas! — comentou Lídia, excitada. — Adoro dançar...

— Devia comprar um vestido com saia rodada, daquelas que envolvem as pernas dos rapazes na hora da dança — aconselhou Noreen. — Eles ficam bobos com isso.

Lídia riu.

— Um vestido cor-de-rosa. Adoro cor-de-rosa.

— Que seja. — Noreen viu Maggie e seus olhos azuis brilharam gélidos. — Veja quem chegou.

— Maggie! — Olhos arregalados, Lídia levan­tou-se num pulo protegendo a mesinha, como se escondesse algo. — Quando foi que chegou?

— Agora. — Maggie viu os folhetos coloridos sobre a mesa e sorriu. — O que está acontecendo?

— Mamãe tem boas notícias — respondeu No-reen, entortando a boca para soltar uma baforada.

Lídia volveu os olhos ao teto, como se suplicasse uma saída.

— Eu... Bem, eu pensei... Quero dizer, nós duas...

— Mamãe colocou a casa à venda — revelou Noreen, acabando com a agonia da mãe. Esti-cando-se, apagou o cigarro no cinzeiro sobre a mesinha. — Com o dinheiro, pretende ir para Los Angeles, alugar um apartamento, comprar roupas novas e fazer um cruzeiro para agarrar algum bonitão cheio do dinheiro que possa sus­tentá-la com estilo.

— Isso mesmo — confirmou Lídia, novamente confiante ao recapitular o plano. Parecia deci­dida a enfrentar a filha caçula. — É isso o que vou fazer.

— E se ela não achar um ricaço bonitão? — questionou Maggie, não à mãe, mas à irmã. — O que ela vai fazer, então?

Noreen deu de ombros.

— Quem não arrisca não petisca. Além disso, tenho certeza de que mamãe consegue laçar um velho rico sem esforço.

— Não muito velho — protestou Lídia, rindo.

— Não muito velho. — Noreen alargou o sor­riso. — Com um novo corte de cabelo e algumas roupas bonitas, ela vai ter homens suspirando a seus pés.

Maggie não disfarçou o desgosto.

— E você, enquanto ajuda mamãe a escolher esse novo guarda-roupa, aproveita para comprar umas pecinhas novas também, além de rechear sua conta bancária, não é?

Noreen arregalou os olhos, inocente.

— Se mamãe quiser me dar alguma coisinha, não vou recusar.

— Claro que vou dar algo a ela — confirmou Lídia, soando ofendida. — Por que não daria? Ela é minha filha.

Eu também, pensou Maggie. Mas não disse nada. De que adiantava? Quanto lhe doía ser colocada em segundo lugar pela mãe, sempre. Surpreendentemente, não sentia nada no mo­mento. Não restava... nada.

Atônita, diante da mãe e da irmã, era como se algo tivesse mudado dentro dela. Parecia que as observava do lado oposto de uma da cerca. Na verdade, sempre fora assim. Desde que se lembrava, tinham sido Lídia e Noreen de um lado, ela, do outro. Parada no meio da sala hu­milde, dava-se conta de que era a única inte­ressada em abrir uma passagem naquela cerca.

— É minha casa — lembrou Lídia, desafia­dora. Agarrou os folhetos de cruzeiros marítimos e os agitou como se brandisse uma arma, pronta para rebater qualquer argumento de Maggie. — Posso fazer com ela o que quiser.

Maggie via a sua frente uma mulher que já fora bela e agora aparentava mais que seus cin­qüenta anos. Os cabelos tingidos deixavam en­trever as raízes escuras e a maquiagem parecia borrada, com excesso de cor nas maçãs do rosto e os cílios finos empastados com rimei. O traço de lápis ao redor dos olhos fazia com que pare­cessem menores. Para completar, um beicinho mostrava seu descontentamento. Atrás da mãe, Noreen sorria desdenhosa com seus lábios car­nudos, o olhar malicioso.

Estava cansada das duas, percebeu Maggie, de repente. Cansada da natureza frívola da irmã, cansada da recusa da mãe em comportar-se como adulta, cansada de fingir que não tinha nada a dizer a elas. Uma família não se fazia apenas por laços de sangue. Quanto alívio lhe trazia essa con­clusão. Não precisava mais tentar, não tinha que imaginar o que havia de errado consigo mesma. Não tinha que se preocupar.

— Tem razão — concordou Maggie. Olhava para Lídia e não sentia nada. Nem raiva. Nem culpa. Simplesmente, nada. — É a sua casa e pode fazer o que quiser com ela. Eu vou procurar outro lugar para morar.

Satisfeita, viu Noreen apagar o sorriso com o choque. Mas nem ligou. Simplesmente, não era importante. Deu meia-volta e seguiu para o quarto sem dizer mais nada.

Tentou não pensar em nada ao preparar a bolsa de equipamento fotográfico. Precisava re­fletir, sim, para tomar decisões, mas, por en­quanto, só queria sair daquela casa.

Ao passar novamente pela sala, ouviu a voz de Lídia mencionando seu nome. Ela parecia preocupada, como se a resignação da filha caçula ante seus planos mirabolantes a tivesse afetado mais do que uma discussão teria feito.

Maggie passou pela mãe e pela irmã sem olhá-las e sem diminuir o passo. Então, saiu.

Ligou o carro, mas não engatou a marcha imediatamente. Com as mãos sobre o volante, contemplou o perfil azulado das montanhas. Não via nada em particular, mas tinha a cabeça cheia de idéias. Sentia um vazio por dentro, como se um capítulo de sua vida se encerrasse. para onde iria, dali?

À entrada do Bar do Bill, Ryan deteve-se, es­perando a visão se ajustar à pouca claridade lá dentro. Fora, o sol do entardecer escondia-se em meio a nuvens pesadas, lançando uma luz estra­nha sobre as vastas áreas ao sopé das montanhas.

— Oi, Ryan! — Saindo da cozinha, Bill im­pulsionava a cadeira de rodas com uma bandeja com copos limpos no colo.

— Olá, Bill. — Ryan sentou-se numa banque­ta. — Como vão as coisas?

— Vamos levando. Hoje foi um daqueles dias. — Bill exercitou a cabeça de um lado a outro, aliviando a tensão no pescoço. — Ei, quando foi que tirou o gesso? — indagou, indicando o braço de Ryan.

— Hoje cedo. — Ryan flexionou os músculos, sentiu a fraqueza e irritou-se. Levaria mais tempo do que esperava para voltar ao normal.

— Que tal uma queda de braço? — desafiou o amigo.

Ryan riu.

— Ainda não. Acho que perco até de uma menina de cinco anos.

Bill pousou um copo de refrigerante à sua frente.

— Vai voltar para o circuito, agora que está em forma? — Bill começou a transferir os copos da bandeja para o balcão, o tilintar do vidro fazendo contraponto com a melodia na vitrola.

— Não sei... — Ryan passava os dedos pela lateral do copo, molhando-os com o ar condensado na superfície. — Tinha decidido, mas, agora, não sei mais. — Como eram amigos, podia questionar Bill sem magoá-lo. — Você sente falta?

— Eu? — Bill ergueu o sobrolho, interrom­pendo a tarefa. — Não. Agora, não mais. Sentia muita falta logo depois do acidente. — Deu um golpe na cadeira de rodas. — Sei que é loucura, mas sentia tanta falta dos touros quanto de ca­minhar. — Forçou um sorriso. — Só me sentia vivo quando estava no lombo daqueles animais.

— Peões de touro são todos loucos — concluiu Ryan, sorrindo melancólico. Entendia o que Bill queria dizer. Aqueles oito segundos sob os re­fletores não se comparavam a nada no mundo. Só existiam peão e animal. Mas a vida não era só um rodeio. Tivera sua parcela na arena e queria outra coisa agora. — Não se lamenta?

— Por isto? — Bill bateu de novo na cadeira. — Não o bastante para deixar de viver. É a mente que derruba o homem. Nunca o corpo. Tinha uma boa vida antes disso. Tenho uma boa vida agora. Não podia ficar no circuito para sempre.

— Não, acho que não...

Ryan olhou taciturno para as fileiras de gar­rafas alinhadas no fundo do bar. Tudo parecera muito mais simples na sala de emergência, en­quanto aguardava que lhe consertassem o braço. Voltaria para casa, para a SL, de vez. Apenas esquecera-se de Nathan. Haviam se estranhado desde o primeiro instante após sua chegada e, agora, o avô vinha com aquela idéia maluca de casá-lo com Shelly Taylor. E a égua teimosa que comprara continuava desconfiada de tudo e de todos.

Podia comprar um pedaço de terra, pensou. Tinha um bom dinheiro no banco, soma dos de­pósitos efetuados por seus pais nos últimos vinte anos. Nunca usara nem um centavo, não sabia exatamente quanto havia, mas, com certeza, da­ria para comprar uma fazendinha. Talvez em Montana. Havia lugares muito bonitos por lá.

O problema era que não queria morar em Mon­tana. E não queria um lugar só seu. A SL era o seu lar, raios. Era ali que queria ficar, onde gos­taria de criar cavalos, onde, um dia, seus filhos cresceriam. O avô tinha razão num aspecto, devia deixar o passado para trás, mas isso não signifi­cava que deixaria Nathan dirigir sua vida.

— Maggie está de folga — informou Bill, quando Ryan olhou esperançoso para a porta da cozinha, mesmo não tendo visto o carro dela no estacionamento.

— O que o faz pensar que vim procurar Mag­gie? — questionou Ryan, irritado por ter os pen­samentos lidos com tanta facilidade.

Bill ergueu a sobrancelha espessa.

— Achei natural, considerando como estavam entretidos no parque outro dia...

— Não estávamos entretidos. Eu a beijei. — Ryan franziu o cenho. — As pessoas desta cidade não têm nada melhor para fazer do que bisbilhotar a vida dos outros?

— Você estava num parque público, em pleno dia, beijando uma garota, e alguém viu — recapitulou Bill, calmo.

Ryan não tinha contra-argumento, mas não aplaudiria, tampouco. Tomou mais um gole do refrigerante, carrancudo. Bill colocou a bandeja de lado e acendeu um cigarro, saboreando o aro­ma ao mesmo tempo que analisava Ryan através de uma cortina de fumaça.

— Tem algum plano em relação a Maggie? Ryan lançou-lhe um olhar assassino.

— É meu amigo, Bill, mas não lhe devo satisfações.      

— Eu sei — reconheceu Bill. — Acontece que sou amigo de Maggie também e gosto muito dela. Preocupa-me sua tendência a cuidar dos outros, esquecendo-se de si mesma, sem men­cionar que a família não vale nada.

— Conheci a irmã dela — comentou Ryan, recordando com repulsa os olhos azuis frios e as roupas vulgares de Noreen.

Bill fez careta.

— Essa trabalhou aqui também, mas não pas­sou no período de experiência. Parece que é con­tra a monogamia. Namorado novo quase toda noite. Como não quero esse tipo de encrenca no meu estabelecimento, dispensei o bumbum empinado. — Meneou a cabeça. — Mas lhe digo uma coisa: Noreen é puro gelo por baixo daquele vulcão. Conheço mais de um caubói que acabou lhe passando um cheque. Se fosse honesta, ela instalaria um luminoso e anunciaria nos clas­sificados. — Ao agitar a mão com o cigarro, um pouco da cinza caiu sobre o balcão. — Quanto à mãe, quase não sai de casa, pelo que sei. Eu a vi uma vez ou duas, lembrou-me Bette Davis num dos últimos filmes, cabelos crespos tingi­dos, maquiagem pesada e calça justa. Difícil acreditar que tenha gerado Maggie, doce como mel e tão honesta quanto o dia é longo. Ainda não vi defeito nela.

— É difícil entender as famílias, às vezes — comentou Ryan, o olhar fixo no copo meio vazio. — E, respondendo à sua pergunta impertinente, não tenho nada planejado em relação a Maggie Drummond. Não que seja da sua conta.

— Claro que não é — concordou Bill. — Mas não quero vê-la magoada. Maggie não é do tipo que se presta a divertimentos. Mesmo correndo o risco de ser linchado por algum grupo de femi­nistas, eu digo: Maggie é para casar. É do tipo que precisa de uma casa com cerca branca e...

— Cortinas floridas e um fogo na lareira — completou Ryan, irritado, lembrando-se das pa­lavras de Doug quando conheceram Maggie.

Bill não se perturbou com o tom áspero do amigo

— Isso mesmo.

Ryan acabou de tomar o refrigerante e pousou o copo no balcão com força.

— Entendi a mensagem.

— Foi só uma observação — desculpou-se Bill.— E esse refrigerante fica por conta da casa. Recusou o pagamento. — É justo. Em troca, você não dá um soco no meu nariz quando eu me meto onde não devo.

Ryan riu e saltou da banqueta.

— Está brincando? Era você quem estava qua­se me pegando pelo colarinho.

— Pelo bem de Maggie, sou capaz de tudo — reconheceu Bill. — Sabe, hoje contei a ela sobre aquela trilha perto do riacho Bartleson e talvez ela vá fotografar lá esta tarde. — Tragou e expeliu a fumaça devagar. — Só para você saber...

— Obrigado pela dica! — exclamou Ryan, apressando-se à saída.

Enquanto estava no bar, as nuvens se fecha­ram nas montanhas, encobrindo completamente o sol. Ventava muito, o que significava que a chuva não tardaria. Já trovejava ao longe. Na­quela época do ano, as tempestades eram fre­qüentes. As vezes, despejando água, em outras, apenas escurecendo o céu a ponto de o dia pa­recer noite, mas sem deixar cair uma gota. Aquelas nuvens, porém, pareciam carregar bas­tante umidade. Ryan colocou a chave na ignição e ligou o mo­tor. Maggie podia ter saído de casa desprevenida quanto a uma tempestade, pensou, manobrando para fora do estacionamento. Morando em Willow Flat havia apenas três anos, ela com certeza ainda não se acostumara às bruscas viradas climáticas do Wyoming. Ondas de cheias surgiam epente, rios secos viravam mar em questão de minutos. Às vezes, as estradas ficavam in­terditadas e uma nuvem de gafanhotos podia descer e envolver um carro...

Meneou a cabeça, divertido e irritado com a ten­tativa patética de tapear a si mesmo. Por que simplesmente não admitia que queria ver Maggie?

Quando saiu da estrada principal e pegou a trilha estreita ao longo do limite sul da fazenda dos Rayczek, já chovia forte e Ryan se sentia um idiota. Relâmpagos cortavam o céu, seguidos pelos trovões. Sem dúvida, Maggie vira a tem­pestade chegando e voltara para casa. Até um californiano tomaria a atitude mais sensata. Ar­riscava-se por nada, pensou, quando a caminho­nete quase encostou na cerca. Só lhe faltava ser surpreendido por uma onda de cheia ou se atolar na lama, o que o obrigaria a voltar a pé para a cidade, debaixo do temporal. Assim que encon­trasse espaço para manobrar, daria meia-volta. Era impossível Maggie ainda estar por ali.

No topo de uma pequena colina, avistou o carrinho azul já conhecido no meio do declive além. Sem saber se sentia alívio ou desgosto, estacio­nou ao lado, bloqueando a estrada. Dois veículos eram mais tráfego que aquela trilha normal­mente recebia em um mês.

Afligiu-se quando não viu Maggie ao volante. À menos que ela tivesse uma câmera subaquá­tica, não parecia provável que ela estivesse fo­tografando com aquele tempo. Com o olhar, rea­lizou uma vistoria breve no carro e notou um pneu furado. Onde estaria Maggie? Por fim, localizou-a, à beira da estrada, sentada numa ro­cha, ensopada.

Automaticamente, acendeu o pisca-alerta e saltou da caminhonete. A chuva caía aos bor­botões e o encharcou num instante. Maggie o observava aproximando-se, mas nem se mexia.

— O que foi? — Ele se ajoelhou e passou as mãos pelos braços dela, expostos sob as man­gas curtas, procurando ferimentos. — Você se machucou?

— O pneu furou.— Ela piscou, os cílios co­lados com a água da chuva.

E de lágrimas?, imaginou Ryan, percebendo solidão e desolação no olhar.

— Eu vi, mas por que está aqui sentada?

— Não consegui tirar as porcas. — Ela soluçou, confirmando que estivera chorando. — Eu sei tro­car pneu, mas não consegui afrouxar as porcas.

— Vamos entrar no carro — disse ele, colo­cando o em seus ombros, incentivando-a a se levantar.

— Fiquei trancada fora do carro —, explicou Maggie, permitindo que ele a conduzisse pela estrada. — Não consegui trocar o pneu e fiquei trancada fora do carro. Aí, começou a chover... — desabafou, abalada.

Não podia culpá-la, pensou Ryan, disfarçando o divertimento, embora fosse solidário. Um pneu furado, porcas apertadas, carro trancado e, en­tão, chuva. Qualquer um choraria de raiva.

— Vamos para um lugar seco. Depois, cuida­mos do seu carro. — Ele a segurou pelo cotovelo e impulsionou para a cabine da caminhonete.

Maggie subiu ao banco apoiando-se no volante.

— Estou molhando o estofamento — avisou ela, assim Ryan entrou fechando a porta.

Ele tirou o chapéu e largou no painel atrás do volante.

— Isso seca. — Virando o corpo para detrás, tirou de trás do banco uma toalha razoavelmen­te limpa. — Tome. Enxugue-se um pouco.

Vasculhou mais um pouco e encontrou uma camisa de flanela azul muito amarrotada. Chei­rou a peça. Parecia empoeirada, mas até que estava em boas condições, descontando o cola­rinho gasto e a falta de um punho. Naquela situação, o importante era que estava seca.

Maggie enxugou os braços e depois retirou o excesso de água dos cabelos, aproveitando para se acalmar enquanto mantinha a cabeça baixa.

Não sabia direito como acabara sentada na pedra à beira da estrada, com água da chuva e lágrimas rolando pelo rosto. Lembrava-se de ver, do lado de fora da janela fechada, a chave na ignição do carro, quando a chuva começou. Nem ficara surpresa. Na verdade, era a coroação perfeita para aquele dia desastroso, que come­çara apresentando-lhe um rato morto sobre o travesseiro, passando pela constatação de que sua mãe e sua irmã eram pessoas inescrupulosas a quem preferia não conhecer?

A vontade de chorar voltou com força e tentou se controlar. Ryan já devia pensar que era uma idiota sem que fosse chorar no ombro dele. Es­fregando a toalha na cabeça com mais vigor, fechou os olhos, contendo as lágrimas.

— Vai acabar careca, se continuar assim. — Ryan segurou-lhe as mãos, impedindo o movi­mento, e tomou a toalha.

Maggie ainda hesitou, mas acabou cedendo. Ryan colocou a toalha no assento entre eles, estendeu a mão, ignorando sua resistência, to­cou-a no queixo e a fez erguer o rosto.

Maggie pensou em manter os olhos fechados na esperança infantil de que, se não pudesse vê-lo, ele também não poderia vê-la, mas não conseguiu convencer nem a si mesma de tama­nha bobagem. Com um suspiro entrecortado, abriu os olhos e o fitou.

A tempestade rugia lá fora, banhando a ca­minhonete com uma luz cinzenta que destacava o azul dos olhos de Ryan. Ele tinha o rosto sombreado pela barba por fazer. Maggie desejou aca­riciar aquela aspereza masculina, bem como afastar-lhe a mecha de cabelos escuros colada em sua testa. Tratava-se de um homem quase bonito, pensou. Quanto a ela, devia parecer gata escaldada, com a maquiagem borra­da, os olhos avermelhados e os cabelos molha­dos e desgrenhados.

— Foi um daqueles dias? — indagou Ryan.

Maggie emocionou-se com a simpatia na voz dele.

— Começou com um rato morto no meu tra­vesseiro e foi piorando — contou, tentando sorrir.

Ryan espantou-se.

— Um rato morto?

— Então, derrubei o secador na pia cheia de água, o leite que joguei sobre os cereais estava azedo, Michelle telefonou dizendo que não ia trabalhar, deixei cair o bule de café, cortei o dedo ao recolher os cacos, todo mundo queria café, e ovos mais cozidos, ou toicinho malpassado... — Parecendo em choque, Maggie parecia incapaz de interromper a narrativa dramática: — E Virgil apareceu e... disse que foi visitar a irmã... e ele na verdade... conversou comigo, e eu pensei... que ele estava melhorando, mas, então, ele pediu um... um uísque. Sei que ele não é responsabilidade minha, mas eu só... de­testo vê-lo desperdiçando a vida dessa manei­ra... — Aceitou o lenço que Ryan lhe ofereceu e enxugou os olhos. — Quando cheguei em casa, soube que minha mãe... colocou a casa à venda para fazer... um cruzeiro. Ela acha que vai... fisgar um ricaço e viver feliz... para sempre. E Noreen a encoraja... mas ela só quer... o dinheiro. E Lídia vai ficar sem... nada. E... ela não me ama. — Apesar dos soluços, as palavras con­tinuavam saindo aos borbotões: — Passei todos esses anos tentando fazê-la me amar, mas ela não me quer e eu... eu não me importo mais. Avisei que ia me mudar... — Sabia que iria se odiar mais tarde por aquele desabafo, mas nada impediria a enxurrada de palavras: — Estou com vinte e três anos e... não tenho nenhuma ambição, mas não... quero ser garçonete o resto da vida. — Encerrou com um gritinho, tomada pela emoção. Soluçando, escondeu o rosto no lenço.

Meio confuso após tantas revelações, Ryan li­mitou-se a olhá-la, sem pensar em nada.

— Será que vendem armadilhas para ricaços na loja de ração? — questionou, brincalhão. Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

Ainda soluçando, Maggie conseguiu rir

— Mais importante, será que vendem iscas? — Respirou fundo e mostrou-se sem graça. — Desculpe-me por fazê-lo ouvir tudo isso. É que hoje foi um daqueles dias...

— Realmente, devia ter previsto ao encontrar um rato morto no travesseiro.

Maggie sorriu, menos trêmula desta vez, sen­tindo que as lágrimas diminuíam.

— Devia mesmo.

— Se não se importa que eu pergunte, como um rato morto foi parar no seu travesseiro? Ele faleceu lá?

— Foi um presente de Max... meu gato — explicou, antes que ele pensasse que fosse um namorado.

— Café da manhã na cama para todos? — brincou Ryan, satisfeito ao vê-la rir.

Felizmente, ela parara de chorar. Era clichê, mas preferia enfrentar um touro de rodeio às lágrimas de mulher. Sua mãe costumava usá-las como arma para conseguir o que queria e, ao descobrir isso, ainda menino, tomara-se imune à chantagem. Sally não era de chorar, afável. Suas crises eram breves e logo caíam no esquecimento. Maggie lutava contra as lágrimas como se fossem um inimigo a ser banido, como se não suportasse a idéia de se render a elas, parecendo fraca.

Ela enxugava os olhos com o lenço na vã ten­tativa de reparar o dano que a chuva e as lá­grimas haviam causado em sua maquiagem.

— Devo estar parecendo um guaxinim — mur­murou, desolada.

Ele aproximou o rosto do dela.

— Há uma ligeira semelhança — confirmou. Maggie riu ante a honestidade.

— Vista isso — sugeriu Ryan, sacudindo a velha camisa de flanela.

Maggie espirrou devido ao pó, enquanto ele enrolava as mangas para encurtá-las, medida pouco eficaz, considerando que a peça tinha qua­se o dobro do tamanho dela. Ela a vestiu por cima das roupas molhadas. Ele a contemplou e Sorriu. Estava linda, mesmo com os cabelos mo­lhados e embaraçados emoldurando o rosto, as manchas escuras sob os olhos e a camisa grande demais, que a fazia parecer uma órfã de filme mudo. Só faltava um vilão torcendo o bigode e rindo de forma diabólica.

Ele lhe tomou o lenço e encostou no canto da boca.

— Umedeça um pouco.

Maggie obedeceu e, quieta, deixou-o esfregar o tecido sob seus olhos.

— Você tirou o gesso! — exclamou, dando-se conta do que havia de diferente em Ryan. — Quando foi?

— Hoje cedo. — Ele recuou um pouco para avaliar o resultado. — Assim está melhor.

— Obrigada. — Maggie tocou no braço dele.

— Como se sente?

— Fracote. — Ele sorriu ante a preocupação.

— Leva algum tempo para se recuperar a força. Já passei por isso antes.

— Deve ser bom tirar o gesso...

— Não vou sentir falta dele.

Maggie sorriu. Então, exausta com a tensão emocional, Maggie recostou-se no banco e se dis­traiu com o barulho da chuva caindo sobre a cabine. Os relâmpagos eram mais freqüentes agora, sempre seguidos dos trovões.

— A tempestade se aproxima — murmurou, quase para si mesma.

Dali a pouco, baixaria a vergonha por ter de­sabafado feito uma desequilibrada. Como pude­ra perder o controle daquele jeito? Se um dia tivera a mínima chance de namorar Ryan, aca­bava de perdê-la. Mas deixaria as lamentações para o dia seguinte. Agora, cabia apenas agra­decer a gentileza, pois estava cansada demais para pensar em qualquer outra coisa senão seu futuro incerto.

— O que está fazendo aqui? — indagou, dan­do-se conta de que uma coincidência seria in­crível demais.

— Bill comentou que você talvez viesse tirar fotos.

Então, Ryan fora atrás dela. Por quê? Melhor não imaginar, pois só lhe daria mais um motivo para se lamentar no dia seguinte.

—Vi um antílope com um filhote — comentou, meio sonolenta. — Acho que tirei boas fotos.

Ryan buscou sua mão e brincou com os dedos, distraído.

— Você gosta daqui, não é? Do Wyoming, que­ro dizer.

— Muito. — Maggie apreciava a sensação da­quele toque, também. — Não consigo me ver morando numa cidade grande novamente.

Ele entrelaçou seus dedos, admirando o efeito e, então, apertou-lhe a mão. Ela voltou o rosto, fitan­do-o. Ryan ainda olhava para suas mãos unidas, cenho franzido. Adoraria saber em que ele pensava, porém, não perguntaria, temerosa da resposta.

Ele ergueu o rosto de repente, ao que ela recuou.

— Gosta de jogar, Maggie?

Ela arregalou os olhos, confusa. Estaria se referindo a jogos de baralho?

— Nunca fui muito de jogos — confessou. — Joguei pôquer uma vez, más nunca me lembro de qual combinação vence qual.

— Não estou falando de pôquer. — Ele lhe apertou de novo a mão, sorrindo ao sentir que seu pulso se acelerava. — O que acha de Vegas?

— Nunca estive lá — respondeu Maggie, con­fusa como se participasse de um filme sem roteiro.

— Que tal irmos a Vegas? — sugeriu Ryan. — Agora. Esta noite.

— Agora? — Ela o encarou. — Por quê?

— O que as pessoas geralmente fazem em Vegas?

— Vêem shows?

Ryan riu e a puxou pela mão, aproximando seus rostos.

— Elas se casam. As pessoas vão a Las Vegas para se casar.

—Ah, ouvi dizer—concordou Maggie, cautelosa Teriam ministrado alguma droga a Ryan quando lhe tiraram o gesso?

— Vamos, então? — insistiu ele, com um bri­lho estranho no olhar.

— Fazer o quê? — indagou ela, confusa.

— Casar. — Antes os olhos dela arregalados de espanto, Ryan sorriu fulgurante. — Estou pe­dindo você em casamento, Maggie Drummond.

 

Estresse, pensou Maggie. Era isso. Estou tendo uma alucinação indu­zida por estresse. Ou talvez, fora atingida por um raio e vivia algum tipo de experiência de vida após a morte.

Cenho franzido, olhou-se com a camisa de fla­nela empoeirada que mais parecia um vestido. Não devia estar usando um robe longo branco? Como podia ter uma experiência mística vestida feito lenhadora?

— Maggie? — Ryan acariciou-lhe a mão. Ela se esforçava para ordenar os pensamen­tos. Ao menos, tratava-se de uma alucinação agradável. Pior seria estar sendo entrevistada ou, então, participando de uma comédia televi­siva. Ser pedida em casamento por Ryan era sem dúvida melhor do que passar ridículo diante das câmeras. — Sei que parece um tanto louco — dizia Ryan.

— Um tanto louco? — Maggie riu meio histérica. Desvencilhou a mão e ajeitou os cabelos molhado, deixando as mechas ainda mais des­grenhadas. — Eu diria insano, maluco, biruta. — Encarou-o. O coração disparou quando percebeu o significado da proposta. — Está falando sério, não está?

O sorriso de Ryan era triste, mas o olhar, firme. Não parecia um homem que perdera a cabeça.

— Sim, estou.

— Mas eu não... nós nem... é... — Incapaz de conter a gagueira, Maggie parou e respirou fun­do. Com a mão no peito, tentava acalmar o co­ração disparado. — Por quê?

Boa pergunta, pensou Ryan. Seria bom se ti­vesse uma resposta lógica, racional. Nem sabia de onde tirara aquela idéia. De repente, surgira e, inexplicavelmente, fazia sentido. Guiava-se ape­nas pelo instinto... e talvez, um pouco de insani­dade, admitiu. Para ganhar tempo, buscou a mão dela e brincou com os dedos. Aguardava inspiração e, como não vinha, rebateu a pergunta:

— Por que não?

— Por que não? — Maggie estava incrédula. — Porque mal nos conhecemos. Porque é lou­cura. Porque pessoas normais não vão a Vegas se casar por impulso.

— Acontece o tempo todo — afirmou Ryan.

— E vão para Reno seis semanas depois para se divorciar.

Maggie pensou em desvencilhar a mão. Não devia ficar de mãos dadas com um homem quan­do recusava sua proposta de casamento. Mas a dele era tão quente e forte, exatamente o oposto do que sentia por dentro, frio e fraqueza. O frio, podia atribuir à chuva que ainda caía sobre a caminhonete, mas a fraqueza vinha do coração.

Ryan Lassiter a pedira em casamento, para que se tomasse sua esposa. E continuava ali, diante dela, com seus olhos azuis e corpo de atleta. E ela pensava em recusar a proposta?

— Nunca saímos juntos — argumentou, fracamente.

Ryan pareceu reconsiderar.

— Eu a convidei para ir a Vegas, não convidei? Podíamos jantar primeiro, assistir a um filme, se quiser...

Maggie deu uma risada nervosa.

— Jantar, cinema e casamento. Com certeza é um primeiro encontro inusitado.

— Provavelmente, não tão inusitado quanto pensa. — Ryan observou a mão dela na dele, es­pantado com a delicadeza. — Nem todo casamento de Las Vegas termina em divórcio, Maggie.

— Nem todo mundo que é exposto à catapora fica doente, mas a exceção não está a seu favor, de qualquer forma — respondeu ela.

Ryan riu da comparação.

— Está sugerindo que casamento é uma enfermidade?

— Não. — Maggie meneou a cabeça, tentando raciocinar, mas era difícil, com Ryan acariciando sua mão. — Não sou contra o casamento. Quero me casar, ter filhos, uma casa...

— Com cortinas floridas e cerca branca — completou Ryan.

— Mais ou menos. — Maggie deu de ombros — Não é politicamente correto, acho. Eu devia estar planejando viagens à Bósnia para ganhar prêmio por fotografias de destruição, mas a ver­dade é que gosto de fotografar coisas bonitas e não me importo que meu trabalho não mude o mundo. — Riu, conformada. — Não me importo nem que não sejam publicadas. Simples­mente, não sou tão ambiciosa.

— Mas não há nada de errado nisso — opinou ele. — Não há nada de errado em querer ter um lar e uma família. — De repente, percebia que queria as mesmas coisas.

O avô estava certo, concluiu. Passara os úl­timos quatro anos fugindo. Raios, o velho senhor acertara até quanto ao momento de ele se casar novamente.

Mas não se comprometeria com Shelly Taylor, Mesmo que ela quisesse, não estava interessado. Diante de Shelly, com suas pernas longas e rosto quase perfeito, permanecia frio. Vendo Maggie, com seus cabelos revoltos em camadas de cachos dourados, o nariz vermelho de tanto chorar e o dente da frente meio tortinho, sentia algo na boca do estômago, uma fome, uma necessidade. Algo que não podia... descrever. Não ainda, pelo menos. De qualquer forma, queria dar uma chance àquele sentimento. Só precisava conven­cer Maggie a se arriscar também. Passou o dedo sobre o pulso dela e sentiu as batidas aceleradas do coração.

— Há uma pequena casa desocupada lá na SL — contou. — Já tem cerca e, depois que nos casarmos, você poderá pendurar cortinas flori­das em todas as janelas. E pode transformar um dos banheiros em quarto escuro.

Maggie recorreu ao que lhe restava de bom sen­so. Não podia ceder à tentação de dizer sim. Podia?

— Ryan, não posso acreditar que esteja fa­lando sério — confessou, finalmente. — Você não me deu um único motivo para querer... por que está sugerindo que nós...

— Nos casemos — completou Ryan, perceben­do sua dificuldade em pronunciar aquelas as palavras.

— Não é como se estivéssemos apaixonados um pelo outro — observou Maggie, cuidando para não imprimir um tom interrogativo.

— Mas há algo entre nós — afirmou Ryan. — Já é um começo.

E pensar que fantasiara sobre a possibilidade de ele estar perdidamente apaixonado por ela, pensou Maggie, triste. Oh, como era difícil racio­cinar com ele acariciando seu pulso com o polegar. Tentou desvencilhar a mão, mas ele a segurou.

— Isso não basta para um homem e uma mulher se casarem.

— Não?

Com a mão livre, Ryan lhe acariciou os cabelos e a segurou pela nuca, aproximando o rosto do dela. Não que fosse a algum lugar, pensou Maggie, fechando os olhos enquanto ele lhe roçava os lábios com a boca. Desde o dia no parque, desejara que isso acontecesse novamente.

Ryan beijou-a uma vez e, então, outra. E ou­tra. Com rápidos toques tentadores da língua, prometia e provocava. Oh, como desejara repetir o beijo do parque. Maggie continuava exatamen­te como se lembrava dela, envolta nos aromas suaves de seu xampu e sabonete, que combina­vam com ela mais do que qualquer perfume. Andara evitando-a, admitia agora. Porque não queria desejá-la daquele jeito. Não queria sentir aquela ânsia, aquela necessidade... indescritível.

Mas o desejo estava lá, e a necessidade era como fogo em suas entranhas. Não questionaria, nem analisaria os porquês. Não havia lógica, não havia explicação. Simplesmente, queria Maggie, não apenas naquele momento, mas como parte de sua vida. Casar-se com ela nessas bases era insano. Era loucura. Uma receita para o desastre.

Mas faria qualquer coisa para fazê-la dizer sim.

No beijo seguinte, não se limitou a provocar. Tomou-lhe a boca como um conquistador cla­mando seus tributos, exigindo uma resposta, uma rendição. Maggie não o decepcionou. Er­guendo os braços, agarrou-lhe a camisa e deixou a cabeça pender para trás, oferecendo mais a boca, exigindo mais do beijo. Ele lhe mordiscou o lábio inferior e passou a explorar com a língua, provando. Tomando.

Maggie era só sensação, vagamente ciente dos relâmpagos diante das pálpebras fechadas. Ouvia os trovões que se seguiam, mas os sons da natureza não competiam com o pulsar do pró­prio coração em seus ouvidos.

Já fora beijada antes. Tinha quase certeza. Mas nunca daquele jeito. Ninguém nunca a bei­jara como se ela fosse o único sabor no mundo, o qual tinha de experimentar. Tateando, enla­çou-o pelo pescoço enquanto se entregava à ma­gia poderosa.

Ryan sentia que a rendição traduzia-se dire­tamente em excitação. Esqueceu-se de que só tentava persuadir Maggie. Esqueceu-se de tudo, exceto o sabor dela e a necessidade de ter mais. Mais. Não conseguia se satisfazer. Encaixando as mãos nos seios dela, acariciou-os. Maggie es­tremeceu e gemeu baixinho. Ryan lastimou a presença das camadas de tecido, a camisa velha, a blusa, o sutiã. Queria tocá-la, queria experi­mentá-la. Com um movimento ágil, colocou o corpo por cima do dela, pressionando-a contra o banco da caminhonete.

Ao bater o cotovelo no volante, tentou outra posição, mas então foi o joelho que se chocou contra o câmbio. Sentiu frustração, mas até que era engraçado. Fazia muito tempo desde que seduzira uma garota na cabine da caminhonete.

Dezessete anos antes, a missão não lhe parecera tão difícil.

Com esforço, reuniu o pouco autocontrole res­tante e afastou-se de Maggie. Colando a testa à dela, deu uma risada rouca.

— Se continuarmos assim, vou acabar enges­sado de novo.

Parecendo inconformada, ela o agarrou pelos ombros e puxou contra si novamente. Ryan qua­se se rendeu ao desejo. No entanto, queria mais que aquilo, ponderou. Muito mais. Precisou de muita força de vontade, mas afastou-se e a fitou no rosto confuso.

— Aceite o jogo, Maggie — pediu. — Não ana­lise. Não pense no assunto. Apenas me acom­panhe até Vegas.

Abalada com a intensidade do desejo que ain­da dominava seu corpo, Maggie esforçou-se para pensar com clareza. Desviou o olhar, mas não adiantou. A chuva caía aos cântaros do lado de fora, tomando o ambiente da cabine muito ín­timo, como se os dois estivessem num mundo particular.

— Mal nos conhecemos — sussurrou, tentan­do se convencer de que isso importava.

— Podemos nos conhecer depois que nos ca­sarmos. — Ryan afastou-lhe uma mecha de ca­belos do rosto, tocando a pele sensível atrás da orelha. — Vamos, Maggie, arrisque-se.

Ela estremeceu, inclinando a cabeça à carícia suave. Precisava pensar. Ryan não declarara que a amava, não lhe prometera felicidade eter­na. Mencionara apenas uma casa com cerca branca na qual poderia montar um pequeno es­túdio fotográfico. Tais incentivos bastariam para convencer uma mulher a jogar para o alto uma vida inteira de bom senso?

A quem queria enganar? O verdadeiro incen­tivo estava ali, diante dela. Apaixonara-se por ele. No pouco tempo em que se conheciam, Ryan passara a integrar seus sonhos. Agora, ali es­tava ele, propondo transformar aqueles sonhos em realidade. Só que, em seus sonhos, Ryan lhe oferecia amor e devoção eterna, não apenas uma casa com cerca e estúdio fotográfico.

— Vamos arriscar, Maggie. — Ryan lhe aca­riciava o ombro e o braço por baixo da camisa de flanela. — O que temos a perder?

Quando Maggie era pequena, sua mãe vivera uma breve fase religiosa, por estar flertando com um vendedor de tintas muito devotado à igreja. Aos domingos, num porão que cheirava a bolor, ouviam um rapaz alto falar sobre as conseqüên­cias do pecado. Embora criança, saía daquelas sessões com a vaga impressão de que o pecado pagava algum tipo de salário.

Alguns meses depois, o vendedor de tintas vol­tou para a esposa e os quatro filhos na Geórgia e Lídia concluiu que a religião não era algo as­sim tão bom, embora o culto lhe desse a opor­tunidade de se vestir bem uma vez por semana. Maggie tinha novamente só para si as manhãs de domingo.

Quase vinte anos depois e bem longe da igrejinha em Detroit, Maggie de repente lembrava­-se do jovem pastor alertando um grupo de crianças inquietas e amuadas que o mal raramente se apresentava com suas cores verdadeiras. Podia surgir de mansinho e sussurrar agradável mente ao pé de ouvidos incautos.

Fechou os olhos para apagar a imagem de Ryan com chifres e rabo.

— Não podemos simplesmente fugir para Vegas.

— Por que não?

Havia um milhão de motivos, mas algo no sor­riso de Ryan a fez citar o mais frívolo de todos:

— Roupas. Precisaríamos de uma muda de roupas.

— Compraremos o que for preciso quando che­garmos lá. — Levando a mão dela à boca, Ryan lhe sugou o nó dos dedos.

Maggie engasgou, sentindo que perdia a sanidade,

— Meu carro... Não posso ir embora e deixar meu carro aqui.

— Eu telefono para a fazenda e peço que al­guém venha pegá-lo.

— As chaves estão dentro. — Ao sentir os dentes dele junto à pele macia do pulso, arre­piou-se toda. — Eles não vão conseguir entrar...

— Um dos peões da SL já foi ladrão de carros. Tenho certeza que ele consegue entrar no seu.

— Oh. — Maggie fechou os olhos novamente quando Ryan começou a beijar a palma de sua mão. Imaginou, confusa, se um ladrão de carro interino era sinal de que devia mandar a cautela aos ares. — É loucura... — opinou, tentando, sem sucesso, soar firme.

— E daí? A loucura pode ser muito divertida.

— Mas não está falando de divertimento, es­tamos falando de casamento. — Maggie abriu os olhos e desejou não tê-lo feito. Ryan estava próximo demais. Sentia-se tragada por aqueles olhos azuis.

— O casamento pode ser divertido — declarou Ryan, roçando os dedos delicadamente sobre a pele macia de seu rosto. — Vamos, Maggie. Arrisque-se.

Não, ela não faria isso, nem que ele derretesse cada osso de seu corpo com aquelas carícias enlouquecedoras. A idéia toda era loucura. Podia não ser bonita, nem talentosa, nem excepcio­nalmente inteligente, mas tinha bastante bom senso. Não iria a Las Vegas para se casar com um homem que mal conhecia, por mais que a tentação sussurrasse em seu ouvido.

Duvall Avery administrava a Capela da Fe­licidade Eterna, um pequeno estabelecimento próximo à famosa avenida principal de Las Ve­gas. Realizar casamentos garantia a comida em sua mesa, mas sua paixão, e grande talento, era imitar o rei do rock. Não se tratava do único pastor capaz disso, porém, segundo ele mesmo, era o melhor. Jurava que sua interpretação de "Love me Tender" enganaria a própria mãe de Elvis e que sua versão para "In the Ghetto" fazia a platéia se ajoelhar.

Considerando que Duvall tinha um metro e sessenta e cinco de altura e quase o mesmo de largura, Maggie achava difícil imaginá-lo pulando no palco de macacão e capa de brocados.

— Todo idiota com um microfone e um toca-fitas acredita que pode imitar o rei — dizia ele abrindo a porta da capela e acendendo as luzes. — Acham que basta pintar o cabelo e curvar os lábios. Uns poucos conseguem imitar a voz, mas, se quiser captar a essência do homem, tem de fazer mais do que rebolar os quadris e en­xugar o suor com um lenço de seda. É preciso entender a alma do rei e capturar um pouco de sua magia.

No altar, voltou-se e os avaliou, esperançoso.

— Algumas pessoas gostam de ter a cerimônia celebrada pelo rei. É o pacote de luxo. Claro, custa um pouco mais, e levarei alguns minutos para incorporar a essência do rei, mas alguns casais acham isso muito romântico. Conheço um camarada que escolheu esse pacote em todos os seus três casamentos.

Ryan olhou para Maggie, mas ela parecia hip­notizada pela luz de néon púrpura com o perfil de Elvis pendente à esquerda do altar e não acompanhara a conversa. Na parede da direita, havia uma reprodução quase em tamanho real do rei, olhando diretamente para a frente, de macacão branco rebordado. Ryan podia apostar que o retrato fora pintado sobre veludo negro. Aliviou-se ao ver atrás dó altar apenas um arranjo de flores de seda empoeirado. Não sabia se suportaria outro ícone de Elvis.

Obviamente, fora um erro deixar que o mo­torista de táxi onde iriam se casar. Ou o homem ganhava comissão por indicação, ou era parente de Duvall, ou realmente tinha péssimo gosto.

Olhou para Maggie novamente, imaginando se ela preferia ir a outro lugar. De olhar fixo no retrato, ela parecia fascinada e horrorizada ao mesmo tempo, como se esperasse que o rei atirasse o lenço suado em sua direção.

— Acho que vamos dispensar o pacote de luxo — decidiu Ryan, por ambos. — Nós preferimos música country — acrescentou, antes que o pas­tor insistisse na cerimônia enaltecendo Elvis.

Não fazia idéia de qual era o gosto musical de Maggie. Uma das muitas coisas que não sabia sobre ela, pensou, mas certo de que essa falta de intimidade não era importante.

Duvall deu de ombros, conformado.

— Bem, até o rei gravou uma ou duas músicas country...

Sorrindo débil, Ryan pegou a mão de Maggie. Sentindo-a fria, acariciou-a, para dar confiança, antes de assentir a Duvall.

— Se pudermos dar início à cerimônia...

— Claro. — Duvall esfregou as mãos rechonchudas, já de lado a decepção por não poder realizar a cerimônia personalizando o rei. — Que tipo de música você gosta? Tenho tudo que o rei gravou, claro. "Love me Tender" é a favorita de muitos casais, embora um cavalheiro tenha pedido "Jailhouse Rock", um certo sr. John Smith. Aparentemente, esse sr. Smith acabara de sair da prisão, Leavenworth, creio eu, e essa música tinha um significado especial para ele Admito que estranhei o nome dele, podia ser falso, mas suponho que haja pessoas chamadas John Smith, não é?

Ryan sentiu a mão trêmula de Maggie e fi­tou-a, temeroso de não estivesse suportando o estresse. Ela vertia lágrimas, sim, mas de riso contido. Sorrindo, apertou-lhe a mão.

— "Love me Tender" está bem — decidiu Ryan Duvall revirava uma pilha de CDs.

— É uma linda canção — opinou, aprovando.

— Eu mesmo gosto mais das primeiras versões. Se me permite... — Como os noivos não tinham preferência, introduziu o CD no aparelho e voltou ao altar. Olhou-os questionador. — Estão prontos?

Prontos? Meia hora depois, na calçada junto de Ryan, Maggie imaginou se já era tarde de­mais para dizer que não estava pronta. Prova­velmente, sim, pois a certidão de casamento já se encontrava no bolso do temo de Ryan, com­prado às pressas. Além disso, tinha uma aliança no dedo. Definitivamente, estava casada.

— Devíamos ter adivinhado ao ver a estátua — comentou Ryan, contemplando a construção cor-de-rosa.

Maggie olhou de novo para a estátua de Elvis de um metro junto à janela, indiferente aos tran­seuntes, com o sorriso sempre no lugar.

— Acho que nunca mais sentirei o mesmo ao ouvir aquela música — confessou Ryan.

Maggie não precisou perguntar qual música. "Love me Tender" embalara toda a cerimônia de casamento deles. Sempre que a música aca­bava, Duvall acionava o controle remoto para que recomeçasse, sem perder uma palavra de seu discurso. Em outra situação, morreria de rir ante a cena absurda. Naquela, receara mor­rer de puro terror.

— Acho que Duvall pensa que sou pão-duro porque não quis o pacote de luxo — lamentou Ryan, aliviado ao ver Maggie sorrir. Ela estava tão séria durante a cerimônia que achou que diria "não". — Podia ter me redimido pedindo-lhe para tocar "In the Ghetto".

Maggie alargou o sorriso.

— Ele iria pensar que você é fã do Elvis.

— Ora. — Ryan estremeceu. — Só faltava ele vestir um macacão rebordado e curvar os lábios para nós.

Ela riu.

— Acha mesmo que ele se veste a caráter?

— Não faria justiça ao rei, caso contrário — opinou Ryan. — Está com fome? Sou capaz de devorar um urso.

Ele lhe tomou a mão de forma tão casual que ela até aplacou o nervosismo.

— Um pouco — respondeu, e era verdade. Não comia nada desde o sanduíche sem gosto que serviram no avião.

— Vamos até a avenida principal procurar um restaurante.

Seguiram de mãos dadas e Maggie gostou dis­so. Agora que estavam casados, sentia uma es­pécie de torpor. Nada lhe parecia real. O morno ar noturno, as luzes piscantes na avenida prin­cipal de Las Vegas, seu ombro roçando no de Ryan ao caminharem, tudo parecia um sonho. Puxando-a para a realidade, somente os sapatos novos machucando seus pés. O que a lembrava...

— Obrigada pelo vestido — agradeceu, alisando a saia.

A pequena galeria comercial no hotel em que se hospedaram tinha uma loja bem abastecida de vestidos de noiva. Ela recusara todos com corpetes rebordados de pérolas e caudas se ar­rastando pelo chão. O vestido de comprimento até o joelho, de seda marfim, saia rodada, corpete justo e decote delicado fazia mais seu gosto. A saia ficara um pouco mais comprida do que deveria e desejou não estar parecendo uma criança. Aproveitando a cortesia do hotel, ma­quiara-se e penteara-se no salão de beleza.

— Está linda! — exclamara Ryan ao vê-la, corrigindo-se: — Você é linda.

— Obrigada.

Maggie parecia não acreditar, mas ele deci­diu não pressionar. Teria tempo para conven­cê-la de que era uma bela mulher. Toda uma vida, pensou, surpreso por se sentir confortável a idéia.

— Estive aqui em dezembro para a final na­cional — comentou Ryan, bombardeados pelas luzes e pelo barulho da avenida principal. — Havia tanta gente, que parecia que alguém ti­nha atiçado um formigueiro.

— A final nacional de quê? Ryan olhou-a estupefato.

— A final nacional de rodeios, claro.

— Oh, desculpe-me...

Maggie falara tão meiga que ele sorriu.

— Vou deixar passar desta vez. — Ficou sério, então. — Mas vou lhe dar umas aulas. Há certas coisas que a esposa de um caubói simplesmente tem que saber. — Ignorando o espanto dela ante a palavra esposa, conduziu-a para o interior de um cassino. — Podemos jantar aqui e depois brincar nos caça-níqueis. Sinto que estou com sorte hoje...

Confusa com a idéia de ser esposa de alguém, Maggie seguiu Ryan pelo ambiente iluminado e barulhento.

— Eu ganhei! Ainda não acredito que ganhei de verdade!

— Sim, você ganhou. — Risonho, Ryan con­duzia Maggie ao elevador. Era, no mínimo, a décima quinta vez que repetia mais ou menos a mesma frase na última meia hora.

— Quinhentos dólares... — Ela ergueu o olhar, buscando confirmação.

— Quinhentos e uns quebrados — confirmou ele, pressionando o botão correspondente ao andar de sua suíte. A porta se fechou e o elevador subiu.

— Nunca tinha ganhado nada na minha vida.

— Ganhou desta vez. — Deliciado com aquele espanto, ele lhe afastou do rosto uma mecha de cabelo rebelde. — Pena que quis parar. Se con­tinuasse, poderia ter o cassino a seus pés pela manhã.

— Pode caçoar o quanto quiser — retrucou Maggie, digna. — Mas não me lembro de você ganhando nada.

— Tripudiar dos outros não é uma qualidade desejável.

— A inveja também não — rebateu ela, astuta O elevador parou e dois casais vestidos a rigor entraram. Ryan aproximou-se de Maggie para dar mais espaço. Um dos homens apertou o bo­tão do terraço e alguém comentou sobre pedir um filé mignon ao molho de cogumelos, deixando claro que iam jantar.

Maggie não sabia exatamente que horas eram, mas devia ser quase meia-noite. Parecia meio tarde para jantar, mas estavam em Las Vegas, onde dia e noite se fundiam pelas luzes de néon e o barulho dos caça-níqueis. Onde mais pessoas sãs passavam horas diante de máquinas na es­perança de alinhar três desenhos de frutas iguais ou jogando vinte-e-um?

Onde mais mulheres práticas e racionais se casavam com homens que mal conheciam?

O elevador parou suavemente ao chegarem a seu andar. As portas se abriram e Ryan tocou nas costas de Maggie para saírem ao corredor ricamente acarpetado.

Divertira-se muito, pensou Maggie, surpresa. Ryan mantivera a conversa leve e fácil durante o jantar. Sem perceber, ela liquidara o coquetel de camarão e boa parte do peixe até se lembrar de que estava nervosa demais para sentir fome.

Após a refeição, foram ao cassino, onde ela entrou em contato com a razão de ser daquela cidade. Como nunca estivera em Vegas, foi ins­tantâneo seu fascínio pelo caos ordenado. Má­quinas caça-níqueis espalhavam-se pelo salão como uma floresta sobre carpete vinho e cinza. Havia gente por toda parte. Casais em trajes a rigor, mulheres de meia-idade de bermuda, ve­lhos com bonés de beisebol e calças largas, todos diante das máquinas, sem olhar para os lados, introduziam as moedas mecanicamente, concen­trados no mostrador.

— Parece até que estão oferecendo sacrifícios a alguma entidade — comentara ela.

Ryan riu.

— A entidade é a sorte. — Puxou-a pela mão rumo ao salão. — Vamos lá, sacrificar algumas moedas.

— Não sou boa nisso — protestara. — Nunca ganhei nem um pirulito. Simplesmente não tenho sorte.

— Sorte é um estado de espírito. Além disso, não pode vir a Vegas e não alimentar uma caça-níqueis — declarou Ryan, tirando moedas do bolso. — Acho que é uma lei em vigor...

Maggie sorriu com a lembrança. Não achava que viraria uma jogadora compulsiva, mas não podia negar que havia uma fascinação estranha hipnótica em jogar numa máquina caça-níqueis. Após algum tempo, já não se pensava em ga­nhar. Colocar as moedas e ver as rodas girando tomava-se um fim em si mesmo.

Mas ganhar também era bom, pensou, lem­brando-se do dinheiro guardado em sua pequena bolsa de seda marfim ao ombro. Quinhentos dó­lares não eram nenhuma fortuna, mas também não era nenhum trocadinho. Podia acrescentá-los ao fundo destinado à reforma do telhado. Ora, não tinha mais que se preocupar com isso. A casa humilde em Willow Flat não era mais problema seu. Não morava mais lá.

Por umas poucas horas, deixara a realidade de lado, talvez deixando-se levar por Ryan. De qualquer forma, passara a noite sob uma neblina de esquecimento. Mas a neblina dissipava-se... já desaparecera completamente quando Ryan tirou do bolso a chave da suíte. A suíte.

Não importava que era uma suíte bem espa­çosa. Não importava que já a tivessem compar­tilhado antes, rapidamente, ao se preparar para o casamento. Na ocasião, outros problemas a atormentavam, tais como: se tinha ou não um cérebro, por que concordara com aquela loucura, por que simplesmente não dizia a Ryan que mu­dara de idéia...

Agora, tarde demais, o conjunto de dois quar­tos e sala parecia pequeno e íntimo.

— Odeio estas chaves modernas — resmungou Ryan, passando o cartão magnético pela leitora. Acendeu-se a luz verde. — Prefiro as tradicionais.

Maggie tinha esperança de que o cartão não funcionasse e tivessem que ficar ali no corredor, mas a porta se abriu a seguir. O abajur da sala estava aceso, um brilho dourado na mesinha sobre o tapete grosso, junto ao sofá forrado de tecido fino.

Naquele momento, nem um buraco negro lhe pareceria mais temerário.

— Maggie? — Ryan estranhou o sobressalto dela. — Algum problema?

— Não, nenhum...

Ela forçou-se a entrar, ciente da presença de Ryan logo atrás. O som da porta se fechando pareceu um tiro de canhão.

Estavam sozinhos.

Pela primeira vez, desde que embarcaram no vôo para Vegas, estavam sozinhos. Não era um pensamento reconfortante.

Ryan deixou o cartão sobre a mesinha e olhou para Maggie parada perto do sofá. A luz do aba­jur dourava-lhe os cabelos, refletindo o brilho da seda do vestido. Era dela, pensou, surpreso com o grau de pura satisfação masculina que aquela idéia lhe proporcionava. Para o inferno com as atitudes politicamente corretas. Maggie lhe pertencia. Ela também parecia assombrada.

— Podemos chamar o serviço de quarto, se estiver com fome — comentou ele.

— Não, obrigada. Não estou com fome. Maggie duvidava de que conseguisse engolir al­guma coisa com aquele nó na garganta.

— Sempre detestei isto! — resmungou Ryan, afrouxando o nó da gravata. — Não sei como alguns homens podem passar o dia todo com esta tortura...

— Acho que a gente se acostuma com tudo — retrucou Maggie.

Exceto com aquilo. Nunca se acostumaria à idéia de que estavam casados de verdade.

Ryan largou o paletó sobre o braço da cadeira e a gravata por cima. Quando desabotoou a ca­misa, Maggie reteve o fôlego. De repente, dolo­rosamente, conscientizava-se do isolamento em que se achavam. Ryan podia fazer o que quisesse com ela, sem ninguém para detê-lo.

Calma, Maggie. Percebendo que entrava em pânico, respirou fundo e relaxou o a mão sobre a bolsa. Aquele era Ryan. Não era preciso uma longa convivência para se conhecer bem uma pessoa. Ryan jamais a machucaria, muito menos fisicamente, nunca intencionalmente. Só o tem­po diria se despedaçaria seu coração.

— Você está linda — sussurrou ele, encantado.

Maggie baixou o rosto ao detectar o desejo nos olhos dele.

— Obrigada. — Sentindo um aperto no estômago, nervosa, procurou uma distração. — É uma linda suíte, não é? — Passou a mão no tecido floral em relevo do sofá. — Adoro a forma como mesclam o azul e o cinza... Não é maçante, como os quartos de hotéis mais baratos. É um hotel mais sofisticado e eles cuidam da decora­ção. E olhe a vista...

Como estava mais próxima das cortinas do que Ryan, ela mesma as puxou e admirou as luzes da cidade, tentando reconhecer as ruas que haviam percorrido.

— É difícil acreditar que estamos no meio do deserto, não é — prosseguia, tagarela. — Não que tudo seja luxo e verde, mas é que há tantas pessoas... Não sabia que Las Vegas era tão gran­de. Qual é a população, você sabe?

— Posso ligar para a recepção e pedir um almanaque, se quiser — ofereceu-se Ryan.

Maggie fechou os olhos e apoiou a testa contra o vidro frio.

— Devo parecer uma idiota.

— Lembra mais uma daquelas guias de tu­rismo sempre animadas — opinou ele.

Olhando pela janela, ela parecia não ver nada.

— Não posso fazer isso — confessou, arrasada. — Não posso dormir com você esta noite.

Ele não fingiu desentendimento.

— Você não tem que fazer nada que não queira.

— Eu sei que deveria — continuou Maggie como se nem o ouvisse. — É nossa noite de núpcias, e é isso que os casais fazem em sua noite de núpcias, mas, simplesmente, não posso.

— Que tal se você fechasse os olhos na hora e pensasse nas eleições presidenciais? — brin­cou Ryan.

Ela se voltou, atônita.

— O quê?

— Não demoraria — explicou ele. — Eu posso ser rápido.

— Você pode... — Ela olhou bem para Ryan. — Você pode ser rápido? — repetiu, confusa.

— É o mínimo que posso fazer — explicou ele, magnânimo. — Considerando todo o seu sacrifício.

— Eu não estou... — Maggie deteve-se e fitou-o. — Eu... você está brincando, não está?

— Não pareço sério? — indagou ele, com uma piscadela.

Maggie começou a rir. Ryan gostou de vê-la descontraída. Não era tão bom quanto vê-la caindo a seus pés, tomada de desejo, mas qual­quer coisa era melhor do que a conversa nervosa que estavam tendo.

— Você quase me enganou—disse ela, divertida. Ainda não acreditava que conseguira rir, porém sentia-se melhor. Ryan já não lhe parecia grande e assustador, nem ela se sentia mais tão desolada. Com um suspirou, passou a mão pelos cabelos, desarrumando um pouco os cachos.

— Eu lamento tanto, Ryan. Sei que parece estúpido, mas é que...aconteceu tanta coisa. Sinto como se tivesse saído de uma montanha-russa, com a cabeça ainda rodando...

— Eu entendo e está tudo bem — declarou ele, disfarçando a frustração.

Na verdade, queria Maggie. Ardentemente. Naquele instante.

Instintivamente, sabia que podia convencê-la. Lembrou-se de como ela se agarrara a ele du­rante seus beijos. Duvidava de que fosse preciso muita persuasão. No entanto, ela continuava tensa, pálida. A razão venceu, mas não sem ba­talha. Solene, beijou a esposa na testa.

— Durma bem.

— Obrigada por ser tão compreensivo. Maggie intrigava-se com a leve sensação de desapontamento que sentia. Não que esperasse um assédio forte, mas Ryan não poderia ter tentado persuadi-la um pouco? A menos que não quisesse mais. Por isso estava sendo tão com-preensivo? Por que não fazia questão? Talvez já estivesse arrependido do casamento.

Ou talvez ela estivesse dando asas à imagi­nação. Estava cansada. Disse boa-noite e foi para o quarto. Antes de fechar a porta, sorriu.

— Até amanhã de manhã — despediu-se Ryan. Ele desfez o sorriso assim que a porta se fechou, gemendo baixinho. Nunca percebera o quanto uma atitude nobre podia ser dolorosa. Havia uma linda mulher no quarto ao lado, tema e gentil, como todo homem sonhava. Por acaso, também era sua esposa e viviam sua noite de núpcias. Mas o que o aguardava era só um banho frio.

 

Willow Flat cochilava ao sol do meio-dia. Com exceção de duas caminho­netes estacionadas no Dew Drop, à saída da ci­dade, e uma variedade de carros em frente a lojas ao longo da avenida principal, parecia exatamente o que era, uma sonolenta cidade do Oeste.

— Tudo parece tão normal — comentou Maggie, falando mais para si mesma do que para Ryan.

Ele ergueu o sobrolho.

— Alguma razão para não estar?

— Na verdade, não. — Ela deu de ombros. — É que tanta coisa aconteceu, parece estranho ver tudo exatamente igual ao que era quando parti.

— Não esteve fora por tanto tempo — obser­vou ele.

— Eu sei. — Ficava tonta em pensar no pouco tempo que levara para virar sua vida de ponta-cabeça.

Lee Hardeman estava na calçada em frente à redação de seu jornal aproveitando o sol. Ace­nou-lhes quando passaram e Ryan, sem tirar a mão do volante, o cumprimentou erguendo os dedos. Uma perua branca caindo aos pedaços ocu-pava a frente da mercearia. Bonnie Dillard varria a calçada, ergueu o olhar e acenou também.

— Acha que já sabem? — indagou Maggie, inquieta, recordando o maior talento de Bonnie, a fofoca.

— Acho que a placa "recém-casados" no pára-choque sugere alguma coisa — replicou Ryan. Então, riu de sua expressão horrorizada. — Não pus placa nenhuma, Maggie. A menos que Duvall seja repórter do jornal local, é pouco pro­vável que alguém saiba da novidade. Mas logo saberão. Nunca pretendi manter em segredo.

— Não, claro que não. — Maggie desejou soar mais segura do que se sentia. Não era como se quisesse guardar. Não exatamente. Apenas não queria que ninguém soubesse. Pelo menos, não até ela mesma se adaptar à idéia... em digamos, cinco ou dez anos. — Sinto-me... em evidência — murmurou, com vontade de se abaixar para que ninguém a visse.

— Deve ser esse M vermelho bordado na sua camiseta.

Maggie sorriu, relutante. Provavelmente, não parecia coerente, mas também, nada do que fi­zera nos últimos dias fazia sentido. Ao menos, havia alguma consistência em sua insanidade.

Ryan saiu da avenida principal e seguiu para a casa da mãe de Maggie. Não é mais minha casa, pensou Maggie, girando a aliança no dedo. tomara a decisão de se mudar, mesmo antes de se deixar levar àquele casamento. Não obs­tante, sentia-se estranha diante da casa modes­ta que não era mais sua.

— Não precisa entrar comigo — comentou quando Ryan estacionou.

O cachorro do vizinho quase se levantou e latiu uma vez. Então, pousou a cabeça, satisfeito por tê-los assustado suficientemente.

— Maggie, acabamos de nos casar. Eu gosta­ria de conhecer minha sogra. — Ryan desligou o motor, apoiou o braço no volante e a fitou. — Acha que ela e sua irmã vão reagir mal? Por isso está tentando me convencer a não entrar?

Reagir mal? Maggie pensou na provável rea­ção de Noreen à notícia de que a irmãzinha gor­ducha, chata e sem graça se casara com Ryan Lassiter. Provavelmente, ficaria histérica. Ti­nha menos certeza ainda quanto à reação da mãe, mas não conseguia imaginá-la chorando de alegria pelo matrimônio da filha caçula.

— Reagir mal não seria bem a expressão...

Primeiro, pareceriam atônitas. Depois, zan­gadas. A seguir, histéricas. Depois, agressivas. E, finalmente, homicidas. Com certeza, reagi­riam muito mal.

— Vamos entrar e enfrentar — decidiu Ryan. — Enquanto converso com sua mãe, você arru­ma suas coisas e seguimos para a fazenda. Pa­rece que seu carro está são e salvo — comentou, indicando o carrinho azul na garagem. — Tucker disse que faria o que fosse necessário.

— Tucker é o ladrão de carros? — indagou Maggie.

— Não, Reggie é o ex-ladrão de carros — cor­rigiu Ryan, com um sorriso.

Reggie? Nome estranho para ex-ladrão de car­ros e para um vaqueiro, também. Ainda pensava nessa tolice quando Ryan, tendo já contornado a caminhonete, lhe abriu a porta.

— Vamos — incentivou ele, estendendo a mão. — Hora de enfrentarmos as feras.

Maggie preferia enfrentar um pelotão de fu­zilamento, mas não externou esse pensamento e aceitou a ajuda para descer da caminhonete. Era assim que os prisioneiros deviam se sentir a caminho do cadafalso, pensou, enquanto ca­minhavam pela calçada. Gostaria de fazer al­gum comentário, algo casual, simpático, mas sua mente permanecia um branco total.

Aliviou-se ao constatar a ausência do carro de Noreen. Provavelmente, já saíra para cum­prir seu turno no Dew Drop e não voltaria para casa. Devia dar graças. A menos que... Sentiu um aperto no estômago. A menos que Ryan qui­sesse ver Noreen. A menos que ela fosse o motivo de sua insistência em entrar.

— Noreen não está — informou, seca. — O carro não está aí, provavelmente foi trabalhar.

— Noreen eu já conheci — replicou Ryan, tranqüilo.

Maggie assentiu, disfarçando a ansiedade. A lógica impunha que se casar com ela era uma rota improvável para o coração, ou a cama, de Noreen, contudo, a lógica não vinha norteando seu comportamento ultimamente. Caso contrá­rio, não estaria ali, entrando em casa para anun­ciar que se casara com Ryan.

Ouviu a televisão assim que abriu a porta. No programa de auditório, gritos da platéia mis­turavam-se à voz animada do apresentador que parabenizava o vencedor da disputa naquela tarde. Mesmo que já não tivesse decidido se mu­dar, valeria a pena se casar só para ficar longe da tagarelice dos programas a que a mãe as­sistia. Talvez não tivessem sido a casa com cerca branca e os olhos azuis de Ryan a convencê-la, afinal, mas a perspectiva de nunca mais ter de ouvir a voz dos apresentadores de televisão.

— Minha mãe passa o dia diante da telinha — comentou, em tom de quem se desculpa.

— É uma opção — retrucou Ryan, compreen­sivo, imaginando a causa da tensão de Maggie.

Talvez não devesse ter insistido em conhecer sua mãe naquele momento, mas pareceu-lhe a coisa certa a fazer. Considerando os atalhos que haviam pegado nos últimos dias, podia ser um pouco tarde para observar as convenções, mas uma apresentação entre sogra e genro não apre­sentava maiores dificuldades e achara que po­deriam fazer pelo menos isso. Entretanto, lá es­tava Maggie, como se a empurrassem pela pran­cha para cair no mar, os olhos arregalados e obscuros de ansiedade.

Por outro lado, a reação dela era compreen­sível, pensou Ryan. Também não estava ansioso em dar a notícia do casamento ao avô.

Sem saber que seus sentimentos eram tão transparentes, Maggie deu uma olhada na sala. Sentada no sofá, Lídia tinha uma lata de refri­gerante na mesa próxima e o olhar nas imagens brilhantes retratando a vida de outras pessoas. Tentou imaginar como ela receberia a notícia. Provavelmente, com espanto e incredulidade, não apenas com a atitude inesperada da filha caçula, mas também por estar envolvido um ho­mem rico e bonito.

Maggie mal conteve o ímpeto de pedir a Ryan que se retirasse. Sozinha, poderia entrar sem fazer barulho, arrumar seus pertences e ir em­bora antes que Lídia percebesse sua presença. Saboreou a fantasia por um segundo antes de descartá-la. Entrar de mansinho na casa como uma ladra não era uma atitude madura.

Além disso, não sabia onde estavam as chaves de seu carro.

Suspirando sonoramente, entrou na sala acom­panhada de Ryan. As cortinas estavam fechadas, como sempre, deixando o ambiente em penumbra, destacando o brilho da televisão. Na borda do sofá agora, Lídia contagiava-se pelo entusiasmo da loi-ra falsa e seios de silicone que apresentava o programa de auditório. Era preciso mesmo talento para manter a atenção de milhões de pessoas vol­tada para uma tela iluminada.

— Mãe? — Como Lídia nem se mexeu, Maggie teve que chamar mais alto: — Mãe!

Lídia sobressaltou-se um pouco, como se acordasse de um sonho, mas não desviou o olhar da tela.

— Maggie?

— Eu queria...

— Foi muita falta de consideração deixar a cidade, gravando na secretária eletrônica que ficaria fora um dia ou dois — reclamou Lídia áspera, sem perder um segundo do programa televisivo. — Podia ter dito aonde ia e deixado um número de telefone para contato.

— Não achei que precisaria de mim para nada — justificou Maggie, um pouco surpresa com o fato de a mãe ter notado sua ausência. Não era característica de Lídia.

O programa de jogos foi interrompido para exi­bição dos comerciais. O primeiro, de um remédio, começava com uma série de espirros, após o que um locutor indagava ao telespectador se você era um dos milhões de pessoas que sofria de alergia.

— Noreen conversou com Bob Hesslewhite so­bre a venda da casa — informou Lídia, pegando o controle remoto para baixar o volume. Final­mente, voltou-se para ver Maggie, o olhar es­treito tentando se adaptar à fraca luminosidade.

— Ele disse que não há muita procura por casas aqui e que devíamos fazer alguns reparos para conseguir um preço melhor...

Ao ver um homem um pouco atrás de Maggie, ela se calou e arregalou os olhos, surpresa.

— Oh, não percebi que tinha alguém com você...

— Mãe, este é Ryan Lassiter. Ryan, esta é Lídia Drummond, minha mãe. — A própria Maggie constrangeu-se com a formalidade da apresentação, mas foi o melhor que conseguiu, considerando seu nó na garganta.

— Lassiter? — repetiu Lídia, levantando-se. Maggie podia ver as engrenagens no cérebro dela trabalhando. — Da fazenda SL?

— Isso mesmo. — Ryan sorriu, amistoso. —Prazer em conhecê-la, sra. Drummond.

— Oh. — Lídia ergueu a mão para ajeitar os cabelos crespos e, a seguir, agarrou as abas do cardigã de tricô, fechando-o. — Não esperava visitas. Devo estar horrível — afligiu-se, ajei­tando os cabelos novamente, tentando recordar se fizera a maquiagem pela manhã. Sim, estava quase certa de que sim, mas... Lançou um olhar a Maggie. — Você podia ter me avisado antes de trazer seu amigo, Maggie.

— Desculpe-me. É que...

— A senhora está ótima, sra. Drummond — declarou Ryan, com um sorriso que teria derretido gelo no inverno. — Fui eu que convenci Maggie a me deixar entrar. Eu queria conhecê-la.

Sem nunca resistir a um elogio de um bonitão, Lídia sorriu.

— Obrigada. — Inclinando a cabeça de ma­neira coquete, bateu os cílios com rimei em ex­cesso. — Quer dizer que queria me conhecer?

— Isso mesmo.

Ryan ficou sem graça quando a senhora de meia-idade riu e passou a mão no quadril, insinuante. Lembrou-se de Bill descrevendo a mãe de Maggie como Bette Davis em seus últimos papéis. Via a semelhança, embora a maquiagem estivesse mais para cantora de rock estilo gótico.

— Mãe, tenho novidades...

— Noreen não está — comentou Lídia, como se nem a ouvisse, concentrada em Ryan.

Tendo analisado os possíveis motivos para a presença dele ali, concluíra que estava interes­sado em Noreen. Os homens viviam atrás de sua filha mais velha, lembrou-se, orgulhosa e invejosa ao mesmo tempo. Já haviam corrido muito atrás dela também, recordou, lamentando a passagem do tempo.

— Eu sei que Noreen não está — disse Ryan. — Eu não...

— Ela está no Dew Drop, se quiser vê-la. Ryan impacientou-se, desejando ter ouvido Maggie quando ela tentara convencê-lo a não entrar. Não imaginava que Lídia fosse tão fria e calculista quanto a filha primogênita e as duas, tão diferentes da doce Maggie.

— Na verdade, eu...

— Mãe, Ryan e eu nos casamos em Las Vegas ontem — disparou Maggie, à queima-roupa, deci­dida e encerrar aquela cena antes que a mãe con­vencesse Ryan de que ele fora ali para ver Noreen

Lídia levou algum tempo para registrar as palavras. Quando finalmente compreendeu, ar­regalou os olhos azul-claros e ficou boquiaberta.

— O... o quê? — gaguejou, confusa.

— Nós nos casamos — repetiu Maggie, imagi-nando em quanto tempo se daria o ataque histérico.

— Mas... pensei... pensei que se conhecessem há pouco tempo — replicou a mãe, num tom de quase protesto, olhando de um para outro.

— Às vezes, não é preciso muito tempo. — Ryan deslizou a mão pela cintura de Maggie e a estreitou contra si. — A gente simplesmente sabe que encontrou a pessoa certa.

Maggie encantou-se com o tom confiante dele, era como se não tivesse mergulhado cegamente naquele casamento.

— Bem, eu... eu acho que sim. — Lídia olhou ao redor pela sala parecendo meio tonta. — Eu... bem, gostaria de tomar alguma coisa? — Inclinando-se, pegou a lata de refrigerante que es­tivera tomando e a levou ao peito, como se ti­rasse conforto do objeto. — Temos refrigerante, leite e suco de laranja. Não, acho que o suco acabou— corrigiu-se, após grande concentração.

— Obrigado, não estou com sede—declarou Ryan.

Começava a pensar que a sogra não era cem por cento normal. Não se tratava de nenhuma demente, claro, pois nos dez minutos em que es­tava ali não a vira subir nos móveis, nem se dependurar nas cortinas. Lídia não falava palavrões, tampouco, nem conversava com um amigo invi­sível. No entanto, apresentava um comportamento peculiar. Olhava para ele, para Maggie, e então passava um bom tempo concentrada na televisão.

Quando lhe dirigiam a palavra, seguia-se uma pausa constrangedora e só então, com bastante esforço, ela desviava o olhar da telinha.

Ryan esperara um bombardeio de perguntas por parte da mãe desavisada. Por que tinham ido se casar em Vegas? Onde iam morar? Quais eram seus planos, embora pudesse presumir que ele herdaria a fazenda do avô. Mas ela não perguntou nada. Simplesmente, nada.

Só disse que estava surpresa. Três vezes. De­pois, contou que, certa vez, ganhara dois mil dólares jogando vinte-e-um em Las Vegas e que, havia muito tempo, estivera em Atlantic City, cidade que, segundo comentários, estava muito mais bonita agora. A certa altura, perguntou-lhe se assistia à "Roda da Fortuna". Quando admi­tiu que nunca vira, ela se animou a explicar como era o jogo, sem disfarçar a admiração pela apresentadora Vanna.

— Mesmo grávida, estava sempre bonita! — afirmou Lídia, remexendo a barra do cardigã, ner­vosamente. — Nem toda mulher fica bem grávida — acrescentou, dando a entender que a mulher que não ficava bem grávida não devia ter filhos. — Eu tive sorte. Engordei bem pouco com Noreen e um pouco mais com Maggie. — Franziu o cenho para a filha, como se a culpasse. Então, arregalou os olhos, como se tivesse compreendido tudo. — Você está grávida! — exclamou.

Ryan viu Maggie sobressaltar-se e enrubescer. Também se surpreendera com o equívoco de Lídia porém, ao mesmo tempo, dava-se conta de que a idéia de Maggie esperando um filho seu o agradava muito.

— Não estou grávida. — Maggie sofreu humilhação completa quando a mãe demonstrou desa­lento. Então, Lídia não imaginava outro motivo para Ryan querer se casar com sua filha caçula tão sem graça. Não conseguia encarar o marido, temerosa de que ele também questionasse por que a desposara. — É melhor eu subir e arrumar as minhas coisas — decidiu, levantando-se.

Ryan também se ergueu do braço da poltrona.

— Quer que ajude a carregar o carro? Maggie dispensou.

— Não há nada muito pesado. — E, mesmo que houvesse, não o queria na sala. Mais alguns minutos com Lídia e ele pediria o divórcio.

Ryan não insistiu. Queria chegar à fazenda antes de Maggie, para contar a novidade ao avô. Não que a reação de Nathan fosse se comparar à de Lídia, mas só queria cuidar para que o velho senhor não dissesse nada ofensivo àquela que era agora sua esposa.

— Até mais tarde, então — declarou, inclinando-se para beijá-la.

Aproveitou para sentir a maciez dos lábios, bem como o calor da resposta de Maggie. A es­sência do xampu que haviam usado no hotel os envolveu. Era ridículo, mas excitava-se com a idéia de terem partilhado o mesmo produto. Era isso o que acontecia quando o marido passava a noite de núpcias assistindo a filmes na televisão madrugada adentro com uma Bíblia do lado.

Interrompeu o beijo com relutância. Quando se aprumou, ante a suavidade no olhar de Maggie lamentou não estarem sozinhos. Olhou ao redor, quase desejando que Lídia tivesse desaparecido, mas ela continuava ali, fitando-os confusa.

— Foi um prazer conhecê-la, sra. Drummond — declarou, com mais sinceridade do que sentia.

— Sim... — murmurou Lídia.

Maluca, pensou Ryan. A mulher era totalmente maluca.

Nathan afastou a pilha de papéis sobre a mesa, irritado. Detestava aquilo. Listas inter­mináveis, bilhetes e formulários. Registros dos nascimentos. Impostos. Ordens de pagamento. Odiava cada papel. Na sua visão, o inferno con­sistia numa mesa com uma quantidade infinita de formulários e lápis. Quando Mary Beth era viva, ela mesma cuidava da papelada relacio­nada à administração da fazenda. Naqueles trinta e tantos anos desde sua morte, arranja­ra-se, mas jamais apreciara a tarefa.

Quando estava na universidade, seu neto to­mara conta da papelada por um tempo. Após a morte de Sally, quando resolveu participar do circuito, passou a se dedicar cada vez menos à tarefa, até que teve que assumi-la novamente.

Com o passar dos anos, aumentavam sua ir­ritação e preocupação cresciam, mas era por pura teimosia que continuava a lidar com a papelada sozinho. Se seu neto sem juízo insistia em correr atrás de fivelas de ouro, também podia ficar longe dos negócios da fazenda, já que não a considerava seu lar.

Olhou para o microcomputador esquecido no canto da mesa. Maldita engenhoca, ocupava me­tade da mesa e, pelo que sabia, era tão útil quanto uma âncora. Ryan o convencera a com­prar a máquina no outono, pouco antes de re­tomar ao circuito. Ora, só concordara com aque­la despesa na esperança de que Ryan se ani­masse a voltar para casa! — Nada como um velho tolo — resmungou. Ryan oferecera-se para ensiná-lo a usar o mi­crocomputador, mas recusara. Agora, o monstrengo jazia no canto da mesa, feio e inútil.

Nathan afastou a cadeira e se levantou. Es­friara um pouco, iria chover novamente. Sentia dor nos ossos com o tempo úmido. Flexionou os dedos e, então, fechou o punho, testando o nível de dor. Não estava rejuvenescendo. A dor nas juntas era um alerta para que colocasse a casa em ordem, tomasse providências para o futuro.

Franziu o cenho diante do retrato de Quintin e Marilee Lassiter sobre a lareira, recordando o que tinham enfrentado para conquistar aque­las terras. O que haviam construído perdurara por gerações. Não deixaria tudo ir por água abai­xo justamente na sua vez, não sem lutar. Era hora de Ryan se estabelecer, assumir suas responsabilidades. O menino não gostara da su­gestão para que se casasse com Shelly Taylor mas acabaria se acostumando com a idéia. Shelly era uma mulher bonita e, agora que parecia ter desistido do estrelato em Hollywood, estava pronta para criar família. Se acreditasse em des­tino, diria que o braço quebrado de Ryan era um sinal para que reatasse com Shelly.

Carrancudo, Nathan considerou a última estri­pulia do neto. Ryan viajara para destino ignorado sem avisar com antecedência. Nem voltara para casa. Só telefonara para Tucker dizendo que vol­taria em um dia ou dois e pedindo-lhe que fosse resgatar o carro de uma moça lá pelos lados dos Rayczek, sem explicar mais nada. Podia até ter explicado, mas Tucker mantivera a boca bem fe­chada, numa lealdade sempre admirável.

Absorto em pensamentos, assustou-se com a leve batida na porta. Irritado por não ouvir a aproximação, outro sinal de que estava ficando velho, voltou-se e franziu o cenho.

— O que é? — grunhiu. Não demonstrou sa­tisfação quando Ryan abriu a porta. Não ouvira a caminhonete dele chegar.

— Tem um minuto?

— Ah, já voltou? — O tom de Nathan era mais de acusação que de boas-vindas.

— Sim, estou de volta. — Ryan entrou no escritório e fechou a porta, irritado com aquele nervosismo adolescente, como se fosse confessar que batera o carro. — Quero conversar com você.

— É uma coincidência, porque eu também quero conversar com você.

Se Nathan se aliviava por ver o neto em casa, tendo receado que ele nem fosse voltar, não ad­mitiria nem a si mesmo. Estava cansado da­quele jogo. Era hora de virar a mesa. Ou Ryan era parte da fazenda, ou não era. Ele tinha que tomar uma decisão. Sem muita lógica, focou a raiva no aspecto menos importante da questão:

— Isto aqui não é uma pensão de cavalos. Não pode ir e vir à vontade, deixando aquela égua sua dando despesa enquanto não faz nada para mantê-la. Esta é uma fazenda que se sus­tenta. Pode ter se esquecido do que isso significa, mas, por aqui, cada um tem que ganhar o pró­prio sustento. Você não pode...

— Eu me casei ontem — anunciou Ryan, in­terrompendo a bronca do avô como faca quente na manteiga.

Nathan esforçou-se para reordenar os pensa­mentos de modo a acomodar aquela informação surpreendente. Perguntas surgiam aos borbo­tões, mas não conseguia formular uma sequer.

— Você... o quê?

Era infantilidade se deliciar com o fato de ter silenciado o avô de forma tão eficaz, mas Ryan estaria mentindo a si mesmo se não reconhe­cesse a ponta de satisfação ante a expressão incrédula do avô.

— Quer repetir? — pediu Nathan, apoiando-se à borda da mesa.

— Eu me casei ontem — confirmou Ryan. Em Vegas.

Nathan assentiu.

— Foi isso que pensei ter ouvido. Alguém que eu conheça? — Já se recuperara do choque inicial e agora pensava com clareza. — Sei que não é Shelly, porque conversei com ela hoje, convidei-a para jantar amanhã. Acho que ela teria dito algo se vocês tivessem se casado. De quem se trata?

Ryan franziu o cenho à menção de Shelly.

— Chama-se Maggie Drummond. Veio de Detroit e mora na cidade há uns três anos.

— Então, já a conhece há algum tempo? — questionou Nathan.

Deixar essa conclusão prevalecer lhe daria menos trabalho, pensou Ryan, ao menos em curto prazo. Mas a verdade surgiria cedo ou tarde e não era mais criança para mentir encobrindo o que fizera.

— Doug e eu demos carona a ela no dia em que cheguei de braço quebrado — contou, rijo. Enganchando os polegares no cós da calça, aguardou a explosão.

Nathan já estava vermelho feito pimentão.

— Você foi para Las Vegas e se casou com uma mulher que só conhece há poucas semanas?!

— Isso mesmo. — Ryan não ofereceu expli­cação, não poderia nem que quisesse.

— Fez isso para me enfrentar?

— Claro que não. Acha que sou burro?

— É isso o que estou tentando descobrir replicou Nathan, sarcástico. —Acaba de me con­tar que se casou com uma mulher que mal co­nhece. Isso não diz muito sobre sua inteligência.

— Eu não disse que não a conhecia.

— Oh, certo. — Nathan não disfarçava o dissabor. — Você a conhece há algumas semanas. Tempo bastante para saber que quer passar o resto da vida com ela.

— Nem sempre leva tempo para se conhecer alguém.

— Fez isso porque o pressionei a se casar com Shelly? — questionou o avô, agarrado à borda da mesa com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos. — Para me convencer de que está pronto para arruinar a fazenda?

Tenso, Ryan caminhou até a janela e contem­plou a paisagem. O céu estava nublado, amea­çando chuva. Mas a luz que conseguia ultra­passar a camada de nuvens era estranhamente clara. De onde estava, podia ver a maioria dos anexos espalhados ao redor da casa principal. Celeiros, currais, garagens de máquinas e fer­ramentas... a SL tinha mais construções do que muitas cidades pelas quais passara.

À esquerda, pouco visível, ficava a casa do capataz, onde os McIntyre viviam. Não via dali, mas a cabana original ficava nos fundos da casa, de toras já esbranquiçadas e assoalho gasto com os passos das gerações.

Aquilo tudo era seu, raios! Seu lar. Sua his­tória. Faria qualquer coisa para mantê-la. Mas esse não era o motivo de ter se casado com Mag­gie. Ele mesmo ainda não sabia exatamente por quê. Ou talvez ainda não estivesse pronto para admitir por quê. De qualquer forma, o casamen­to com Maggie não tinha nada a ver com a fa­zenda e não podia surpreender ninguém mais do que a ele mesmo. Voltou-se e olhou para o avô.

— Eu me casei com Maggie porque quis. Não para me livrar de você com relação a Shelly, nem para convencê-lo de nada. Eu quis me casar com ela.

Ryan não disse que a amava, observou Na­than. Mais tarde, pensaria no significado da­quilo. Naquele instante, tinha outros problemas. Passou a mão pelos cabelos grisalhos, de repente sentindo o peso de seus setenta e três anos. Casado. O menino mergulhara de cabeça num casamento sem sequer um sinal de alerta. E a garota também, portanto. Que tipo de mulher fazia algo assim?

— Drummond — murmurou Nathan, vascu­lhando a memória. — Não há uma moça cha­mada Drummond trabalhando no Dew Drop?

— É a irmã de Maggie — disse Ryan, apreen­sivo ao considerar o que o avô sabia sobre Noreen... o que ele devia saber dela. — Maggie trabalha com Bill Martin.

— Miudinha, cabelos loiros e olhos grandes? — indagou Nathan, lembrando-se dela. Franziu o cenho quando Ryan assentiu. — Não sei nada sobre ela, mas ouvi muito sobre a irmã. Se ela...

— Maggie não é como a irmã — interrompeu Ryan, surpreso com a raiva que sentiu à compa­ração. Afastou os pés inconscientemente, em ati­tude de desafio. — Se tiver algo a dizer sobre isso, fale comigo. Mas se disser algo que aborreça Mag­gie, eu e ela vamos embora no mesmo instante.

Nathan ergueu o sobrolho, surpreso com a ad­vertência do neto. O menino estava pronto para enfrentá-lo. Fazia muito tempo que não o via mostrar tanta emoção por qualquer coisa. Era algo para se pensar.

— Estamos entendidos sobre esse assunto? — indagou Ryan. Nathan assentiu.

— Estamos. — Só não entendia ainda o que estava acontecendo.

— Ótimo.

Ryan relaxou um pouco. O pior já passara. A notícia fora dada e o velho senhor aceitara a realidade com mais calma do que ele mesmo teria aceitado. Nathan podia não estar estou­rando champanhe, mas não ordenara que o jo­gassem em um tanque de óleo fervente, tam­pouco, um sinal positivo, afinal. Passou a mão por entre os cabelos, tentando ordenar as idéias. Precisava tomar algumas providências.

— Maggie está vindo da cidade — informou. — Pensei em nos instalarmos na cabana de tia Grace.

— Pretendem morar lá? — Outra surpresa, pensou Nathan. Ryan e Sally haviam se insta­lado na casa principal ao se casar.

A cabana da tia Grace não era bem uma ca­bana e tia Grace já falecera havia quase meio século. O pai de Nathan construíra a casa para uma irmã que nunca se casou. Ela morou ali por mais de quarenta anos, cultivando um pe queno jardim de rosas e uma horta de legumes. Escrevia cartas para amigos em todo o país. Na­than lembrava-se dela como uma senhora ativa com saúde, língua ferina e risada escandalosa.

Com sua morte, a horta de legumes caíra no abandono e a maioria das roseiras sucumbiu ao inverno rigoroso ou à falta de chuva nos verões, mas a pequena casa permanecia bem conservada, servindo de casa de hóspedes quando precisavam.

— A cabana está fechada há algum tempo — comentou Ryan, certo de que a pequena habitação proporcionaria a ele e Maggie a privacidade ne­cessária, ao menos enquanto o casamento não des-lanchasse, o que esperava que acontecesse logo. Mas não faria mal justificar: — Maggie é fotógrafa e há um banheiro que pode ser transformado em quarto escuro sem grandes dificuldades.

Nathan assentiu, sem comentar que qualquer um dos quatro banheiros da casa principal tam­bém poderia se transformar em estúdio fotográ­fico. Ryan devia estar mesmo solidamente com­prometido com a verdadeira razão daquele ca­samento. Ora, era macaco velho e não acreditara nem por um minuto ter ouvido a história toda. Estava curioso quanto a essa Maggie Drum­mond. E mais curioso ainda para vê-los juntos.

Uma moça capaz de arrancar seu neto do iso­lamento emocional em que vivera por tantos anos era alguém que queria conhecer.

 

Sentada à mesa, fazia um bom tempo que Maggie contemplava o retângulo mais claro no papel de parede da cozinha, diante de uma fumegante xícara de chá. A chuva batia contra a janela acima da pia, isolando o pequeno ambiente do resto do mundo.

Devia haver um quadro ali, pensou Maggie, imaginando a origem daquele retângulo mais cla­ro no de parede. Mas que quadro ornaria a cozinha de uma senhora solteirona que gostava de jardinagem e de escrever cartas? Talvez uma natureza morta com uma abóbora e um tinteiro. Ou um misto de rosas, cenouras e caneta-tinteiro.

Oh, talvez tivesse perdido o pouco de sanidade que restava.

Fechou os olhos, mas abriu-os imediatamente quando a cozinha pareceu girar. Não eram nove horas ainda, pensou, consultando o relógio sobre a porta dos fundos. Considerando todos os acon­tecimentos, não parecia impossível que havia doze horas estivesse acordando numa suíte de hotel em Las Vegas.

O dia fora tão atarefado que mal tivera tempo para respirar. Tão logo chegara de Vegas com Ryan, fora em casa buscar seus pertences, os quais couberam com folga em seu carrinho azul, fechando assim um capítulo de sua vida. Então, durante o trajeto até a fazenda, tivera algum tempo para refletir sobre a loucura do passo que estava dando... dos passos que já dera.

Ao passar pelo imponente portão de madeira da SL, já estava meio convencida de que a única atitude inteligente a tomar era não sair do carro, devolver a aliança a Ryan e dizer-lhe que la­mentava não poder se casar com ele.

Ao adentrar o pátio, porém, Ryan fora rece­bê-la. Diante daquele corpo esguio de caubói, do sorriso e dos olhos azuis, entendera que não iria a lugar algum. Bolas, se entrara no jogo, agora que jogasse!

Então, conhecera avô de Ryan. Ainda estre­mecia ao se lembrar do primeiro contato com o velho senhor alto e de penetrantes olhos azuis. Ficara tão nervosa e calada que Nathan devia ter concluído que o neto desposara uma surda-muda, ou uma idiota, possivelmente ambas.

Nathan fora educado, tinha de reconhecer. Sua recepção não fora das mais calorosas, mas sentia que Nathan não falava demais em ne­nhuma circunstância. E, se seu olhar denunciara curiosidade, não podia culpá-lo. Como todo mundo, incluindo ela mesma, devia imaginar por que Ryan a escolhera como esposa.

Ao menos, Nathan não lhe perguntara se es­tava grávida. Ainda se revoltava ao recordar a ofensa da mãe. Lídia ainda lhe repetira a per­gunta mais duas vezes, no quarto, enquanto ela arrumava as malas. Como se fosse impossível Ryan Lassiter ter se casado com ela só por que­rer. Por outro lado, se estivesse grávida, ele teria se sentido obrigado a desposá-la e ampará-la, o que seria muito mais fácil de entender. Quan­do a mãe insistira no tema gravidez pela terceira vez, perdera a paciência:

— Por quem me toma?

Lídia piscara incrédula ante a aspereza da filha caçula.

— Não quis ofender... — Girava um botão do casaco nervosamente. — É só que... tudo foi tão repentino... vocês dois indo a Las Vegas e tudo o mais. Ainda mais depois... bem, sei que ele conheceu Noreen e...

— E, depois de conhecer Noreen, ele não po­deria continuar gostando de mim? — completou Maggie, aproveitando para desabafar antes de sair de vez daquela casa.

— Ora, eu não disse isso. — A voz de Lídia era queixosa. — Mas ela disse que ele parecia interessado e...

— Pois estava enganada — concluiu Maggie, para silenciar suas dúvidas e as da mãe tam­bém. A incredulidade de Lídia não a animava nem um pouco.

Não devia magoar a mãe, tampouco, pensou.

Não era como se o pobre conceito de Lídia a seu respeito a surpreendesse. A vida toda fora assim, sempre soubera, pelo olhar da mãe, que nunca se equipararia a Noreen. Mas a sua mágoa persistia. Horas depois, ainda sentia a dor no peito, a dor de saber que nunca seria bastante inteligente, bastante bonita, bastante esperta para ter o amor da mãe.

Estava tão cansada daquilo que, só de pensar, sentiu lágrimas nos olhos. Tentou se controlar. Não era hora de chorar. Não agora. Ao sair da­quela casa pouco antes, abrira mão de uma par­te de sua vida sem pesares. Ou, ao menos, sem nenhum com o qual não pudesse conviver.

Tantos acontecimentos em dois dias... ou se­riam três? Não surpreendia sua cabeça girar. Com um suspiro, pegou a caneca e levou à boca. De olhos fechados, quase gemeu de prazer sa­boreando o chá doce e quente.

Foi assim que Ryan a viu ao entrar na cozinha, de olhos quase fechados, com um quase sorriso sensual. Deteve-se, tomado de desejo. A expressão dela era de quem recordava ou ante­cipava um momento de sexo prazeroso. Quem lhe dera que fosse a segunda alternativa! En­tretanto, desconfiava de que, no momento, não seria capaz de lhe proporcionar metade do pra­zer que aquela xícara de chá estava lhe dando.

Os olhos ainda fechados, Maggie ergueu a ca­neca e pressionou a porcelana quente contra a testa, deixando que o calor amenizasse a leve dor que se alojara ali horas antes.

Quando ela entreabriu os lábios e emitiu um suspiro de prazer, Ryan sentiu a boca seca e a calça apertada. Não entendia o que havia em Maggie que sempre o excitava tanto. De qual­quer forma, era ridículo sentir ciúme de uma caneca de chá, raciocinou, frustrado.

Mesmo assim, não negaria que daria metade da fazenda para fazer amor com Maggie como se fosse aquela caneca, admitiu, triste.

Não aconteceria naquela noite. Só o mais in­sensível dos homens tentaria seduzir uma mu­lher tão exausta, mental e fisicamente. Pensou nas épocas mais felizes em que as palavras sen­sível e homem nunca apareciam na mesma fra­se. Bem, estavam casados, comprometidos para a vida toda, lembrou-se. Um ou dois dias de atraso não fariam diferença.

Manter uma atitude nobre tornava-se um há­bito inconveniente.

— Maggie?

Ele falara baixo, mas ela se sobressaltou, ar­regalando os olhos. Sentindo a tensão tomando conta dela, ele cogitou quanto tempo levaria para se acostumar com sua presença.

— Ryan. — Maggie sentiu-se culpada. Tinha tantas tarefas aguardando, desencaixotar, arrumar, limpar. Talvez devesse procurar o cére­bro também. — Eu só estava...

— Isto é chá? — indagou ele, interrompendo a explicação apressada e provavelmente incoe-rente que ela daria.

— Sim, é.

— Tem mais?

— Há mais saquinhos e posso ferver mais água.. Antes que ela se levantasse, Ryan foi para o fogão.

— Pode deixar — avisou, apertando-lhe o om­bro ao passar por trás de sua cadeira a caminho da pia. — Não sou nenhum chefe de cozinha, mas sei colocar água para ferver.

Ele colocou água na chaleira e levou-a ao fogão. A chama se acendeu suavemente e as gotas de água na parte externa do utensílio ferveram e eva­poraram. Fora, a chuva caía constante, molhando a janela. Maggie acalmou-se com a cena doméstica

— Não sabia que caubóis tomavam chá — comentou, vendo Ryan colocar um saquinho de erva triturada numa caneca de porcelana azul.

— E não tomam — esclareceu ele, apoiando-se contra o balcão. — Só bebemos café preto bem forte. Acontece que passei alguns meses viajando com um inglês, também peão de touro, que me apresentou o chá. Não tomo chá sempre, nem vou admitir que tomo se alguém descobrir, de modo que esse será nosso pequeno segredo, está bem?

— Seu segredo está a salvo comigo. — Maggie fez uma cruz sobre o peito solenemente.

Ryan riu.

— Minha vida está em suas mãos. Se a in­formação vazar, serei banido do CNC, Clube Na­cional de Caubóis.    

— É o clube do manual e do aperto de mão secreto? — indagou ela, sorrindo ao se lembrar do dia em que ele e Doug lhe deram uma carona.

— Esse mesmo. — A água começou a ferver. Ryan pegou a chaleira pela alça de madeira e encheu a caneca, que levou até a mesa.

Maggie o observou acrescentar três colheres de açúcar à infusão.

— Não gostaria de um pouco de chá com o açúcar? — ironizou.

— O açúcar salienta o sabor do chá.

— Açúcar em excesso faz mal — advertiu Maggie, segura.

Ele ergueu o sobrolho.

— E chá é um supernutritivo, por acaso?

— Você venceu. — Maggie escondeu o sorriso com a caneca, sentindo a tensão se dissipar. Em meio ao turbilhão de acontecimentos, esquecia-se de que amava o homem com quem se casara.

Ryan aliviou-se ao vê-la sorrir. E se sentiu o próprio Barba Azul ao ver os grandes olhos cinza com expressão inquieta. Desconfiaria ela de que ele tinha uma dúzia de esposas enterradas no po­rão? Franziu o cenho e se ajeitou na cadeira. Podia não ter esposas enterradas no porão, mas ainda não lhe contara sobre Sally. Tentara, várias vezes. A caminho de Vegas. A caminho da capela. Durante o jantar após a cerimônia. Naquele dia mesmo, pouco antes de deixá-la na casa da mãe. Simples­mente, nenhum momento lhe parecia adequado.

Não era como se a revelação fosse tão rele­vante para os dois, convenceu-se. Também não se tratava de um segredo. Se tivessem chegado àquele casamento do jeito normal, após algum tempo de namoro e noivado, sem dúvida teria contado a Maggie sobre Sally bem antes de dizerem o sim diante do pastor. Mas não tinham namorado nem noivado, ele não contara e agora se sentia constrangido. Não seria fácil abordar o assunto.

Ryan abriu a boca para começar a falar, mas deteve-se quando Maggie se alegrou olhando por sobre seu ombro,

— Max! — O tom dela era afetuoso, e Ryan lembrou-se de que ainda não descera ao nível de sentir ciúme de um gato. — Parece que ele já está se acostumando com a casa nova.

— Devo esperar um roedor morto sobre o tra­vesseiro pela manhã? — perguntou Ryan, olhan­do desconfiado para o gato.

Max sentou-se abanando a cauda e olhou para Ryan com a clássica indiferença felina.

— Duvido que vá caçar hoje — opinou Maggie, levantando-se para retirar uma lata de comida para gatos de uma das caixas de mudança. — Sabe que nem reclamou muito na viagem de carro?

Nem por isso viajaram tranqüilos. Max miara o tempo todo, parecendo enjoado. Maggie temeu acabar surda ou louca.

— Por que ele está me olhando assim? — in­dagou Ryan.

Maggie despejava a comida para gatos da lata para um pratinho.

— Só está curioso.

— Ah, ele nunca ouviu dizer que a curiosidade matou o gato? — resmungou Ryan. Era ridículo sentir-se intimidado, mas algo no olhar felino o deixava nervoso.

— Max, pare de atormentar Ryan e venha jantar — ordenou Maggie, colocando o pratinho no chão.

O gato olhou para Ryan mais um pouco. En­tão, levantou-se, espreguiçou-se e foi jantar.

Maggie pegou sua caneca e levou-a à pia para lavar. A chuva continuava lá fora, constante, envolvente. Chovia quando Ryan a pediu em casamento, lembrou-se Maggie. Na ocasião, ti­vera a mesma sensação de estarem isolados do resto do mundo, separados de tudo e de todos.

Às suas costas, Ryan ajeitou-se na cadeira. De repente, conscientizava-se de que estavam sozi­nhos naquela casa, a qual, com sorte, seria um lar para os dois, um lugar onde construiriam o futuro juntos. Estavam sozinhos, e aquela seria, para todos os efeitos, sua noite de núpcias. Na noite anterior, Ryan lhe parecera um estranho. Agora, recordando o olhar e o sorriso dele, sentiu um aperto no estômago, de expectativa e medo.

Agitada, levou a mão aos cabelos, que pren­dera num coque descuidado no alto da cabeça. Fora conveniente para transportar a mudança, mas não era um penteado romântico. E calça e camisa jeans não provocavam desejo, tampouco.

Talvez devesse tomar um banho, lavar os ca­belos, passar perfume, vestir uma camisola sen­sual... Quase teve uma síncope ao rememorar os itens no guarda-roupa. Para dormir, tinha uma coleção de pijamas de algodão, curtos para o verão e compridos para o inverno. Nenhuma camisola sedosa e brilhante, nada feminino nem enfeitado. Franziu o cenho enquanto enxaguava a caneca sob a torneira. Que tipo de noiva vestia para a noite de núpcias um pijama listrado azul e branco? Pior do que isso, só um pijama de flanela fechado às costas.

— Acho que já está bem limpo — observou Ryan.

Absorta em seus pensamentos, Maggie não percebeu que Ryan se aproximara. Surpresa ao vê-lo a seu lado, sobressaltou-se e deu um gritinho de susto.

— Desculpe-me, não quis assustar — mur­murou ele.

— Não foi nada — mentiu ela. — Eu só não sabia que estava aí... — Rindo nervosa, levou a mão ao peito. — Quero dizer, sabia que você estava na cozinha, mas não que estava aqui. Bem aqui e não à mesa, quero dizer...

Ryan aproximara-se com a desculpar de lavar a xícara que usara. Se esperava um sinal de que Maggie desejava secretamente abraçá-lo, estava sem sorte. Mal se aproximara, ela pulara como se tivesse levado um choque elétrico. E ele que fantasiara soltar os grampos daquele coque e ver os cachos caírem sobre seus ombros...

— Maggie? — Ryan aguardou que ela erguesse o olhar. — Não precisa se preocupar— disse, gentil.

— Não? — Maggie franziu o cenho, interro­gativa, imaginando se devia se preocupar por não saber com o que devia se preocupar.

— Eu lhe disse ontem à noite, não precisamos nos apressar com nada. Posso ficar no quarto de hóspedes, por enquanto. — E aprender a gos­tar de banhos frios, pensou, amuado.

Maggie o encarava hesitante, tentando se ha­bituar à nova situação. Seu primeiro impulso foi dizer a Ryan que não precisava dormir no outro quarto, mas então encheu-se de dúvidas. E se ele preferisse dormir no outro quarto? E se ele percebesse, vinte e quatro horas após o casamento, que não a queria? E se ele já lamentasse o casa­mento e pensasse em anulação? Mais alguém além do Papa concedia anulações? E quando o casal não era católico? O que se fazia, então?

Com esforço, Maggie prosseguiu com a escalada de indagações. E se Ryan cumprisse a palavra, ou seja, levasse em consideração os sentimentos dela? Se fosse outro tipo de mulher, mais expe­riente e confiante, descobriria um jeito de avisar o marido de que, embora apreciasse aquela atitude nobre, não era totalmente contra a idéia de ser seduzida. Mas ela era apenas Maggie Drummond. Simplória, ligeiramente gorda e pouco experiente. Ou melhor, agora era Maggie Lassiter.

— Não sei qual é o meu nome... — murmurou.

Ryan prolongava a própria tortura, deixando a imaginação correr por áreas proibidas. Fan­tasiou como seria passar a mão por baixo da blusa, sentir a pele macia. Talvez ela suspirasse e se derretesse. Então, ele a tomaria e... O tom desalentado de Maggie chamou-lhe a atenção.

— O quê?

— Meu nome. — Distraída, ela afastou do rosto uma mecha de cabelo desprendida do co­que. — Não sei mais qual é o meu nome.

— Maggie? — sugeriu Ryan, cauteloso, imaginando se ela sucumbira ao estresse.

— Não esse nome. — Maggie sorriu ante a expressão preocupada dele. — Meu sobrenome. É Lassiter ou Drummond? Não conversamos se eu ia ou não mudar meu nome. — Com um suspiro, afastou a mecha rebelde novamente. Estava cansada e quase satisfeita por Ryan adiar a noite de núpcias. — Acho que não con­versamos sobre muitos assuntos...

— Alguns. — Ryan pensou em seu primeiro casamento. No dia seguinte, prometeu-se. Já era tarde para iniciar o que poderia ser uma longa conversa.

— O que você quer fazer quanto ao nome? — perguntou ele, refreando a opinião de que gos­taria de que sua esposa usasse seu nome. Raspando-se o verniz do século vinte de qualquer homem, ainda se encontrava a necessidade más­cula básica de marcar tudo o que era seu.

— Não sei. — Maggie afastou a mecha de cabelo mais uma vez. Então, desistindo, retirou os dois grampos estratégicos que sustentavam o coque.

Os cabelos derramaram-se em seus ombros, uma massa de cachos dourados, e Ryan sentiu a boca seca. Às favas com a atitude nobre, pen­sou, selvagem, louco para enterrar as mãos na cabeleira sedosa.

— Não sei nada agora... — repetiu Maggie, fatigada.

Com as mãos a meio caminho do destino, Ryan as levou à própria cabeça, disfarçando. Notava sombras em torno dos olhos de Maggie, a palidez em seu rosto. Ela parecia muito frágil. Havia tempo, lembrou-se. Tinham muito tempo.

Maggie se sentiria melhor se soubesse o quan­to esteve perto de ser amada sobre a mesa da cozinha. Dizendo boa-noite, foi dormir achando que Ryan, sem deixar de ser gentil, poderia ao menos fingir que queria compartilhar sua cama.

Paciência, lembrou-se Ryan, acompanhando-a com o olhar. Paciência e atitude nobre eram vir­tudes. Pensou nisso por um momento, olhando para Max, que limpava o focinho com a patinha. A virtude devia ser um prêmio em si, mas não se sentia recompensado. Sentia-se... inquieto.

Um som de água ecoou pela tubulação quando Maggie ligou o chuveiro no andar superior e Ryan fechou os olhos, gemendo. Foi um erro, pois, de olhos fechados, a imagem de Maggie no chuveiro, nua, a pele brilhante e molhada, parecia muito real.

Um dia ou dois, pensou, abrindo os olhos para banir as imagens. Não era mais um adolescente. Podia muito bem esperar mais um ou dois dias para consumar aquele casamento.

Não que gostasse da idéia.

— Então, como vai a vida de casada? — indagou Bonnie, quando Maggie estacionou o carrinho junto ao balcão e começou a descarregar as compras.

— Até agora, bem.

Maggie pousou uma lata de molho de tomate e cogitou se valeria a pena dirigir mais uma hora para fazer compras na próxima cidade, só para evitar a bisbilhotice de Bonnie. Era a ter­ceira vez que aparecia na mercearia desde o casamento e, toda vez, ela disparava a mesma bateria de perguntas.

— Quanto faz? Umas duas semanas? — Bon­nie teclava o preço dos mantimentos com uma das mãos e separava os itens com a outra.

— Mais ou menos. — Duas semanas, três dias e doze horas, mais ou menos, pensou Maggie. Mas quem estava contando?

— Fiquei pasma quando soube que você e Ryan tinham fugido para Vegas. — Com um meneio de cabeça, Bonnie acrescentou a penca de bananas e as três latas de sopa.

— Acho que surpreendemos todo mundo. — Incluindo a nós mesmos.

— Não que vocês não fiquem bem juntos, e qualquer um podia ver que Ryan estava atraído. Eu desconfiei naquele dia em que você e ele se encontraram aqui, lembra-se?

— Sim — balbuciou Maggie, e sorriu, sabendo que Bonnie só queria essa resposta mesmo.

Jamais se esqueceria daquele dia. Foi quando Ryan a beijara pela primeira vez. E também pela última vez, pensou, destratando o pacote de ma­çãs, o que garantiria marcas de batida nas frutas.

— Mesmo assim, vocês dois esconderam o jogo. Ninguém desconfiava de que estavam se encon­trando. Nem mesmo eu, e é muito difícil esconder algo de mim — afirmou Bonnie, orgulhosa.

— Nós não queríamos muito alvoroço — disse Maggie, imaginando quantas vezes dissera aquela frase ou uma variação dela nas últimas duas semanas.

Todo mundo num raio de cem quilômetros já tivera a oportunidade de expressar sua surpre­sa. Alguns chegaram a passar pelo Bar do Bill só para lhe dizer como estavam espantados com seu casamento e com o fato de terem conseguido manter o namoro em segredo. Ficariam surpre­sos se soubessem que não houvera namoro e que o casamento ainda não se consumara? Tal­vez devesse usar uma camiseta com os dizeres: Sim, Ryan Lassiter se casou comigo e eu também não sei por quê. Pousou um pacote de toicinho defumado no balcão.

— Bem, você conseguiu! — festejou Bonnie. — Estou surpresa por ainda estar trabalhando no Bill. Pensei que fosse deixar o emprego e, talvez, passar mais tempo com a câmera. Não é como se precisasse de duas fontes de renda. Os Lassiter sempre souberam fazer o dinheiro render.

— É importante para a mulher trabalhar hoje em dia — respondeu Maggie. Aquele emprego era a única coisa realmente sólida em sua vida e agarrava-se a ele como a uma corda de segurança.

— É verdade. Só não entendo por quê. A menos que seja uma carreira do coração mesmo, como você e sua fotografia. Se quer meu conselho, rea­lize seu sonho agora, enquanto pode. Depois que tiver filhos, não vai conseguir nem respirar, eu lhe garanto. — Bonnie deu uma boa olhada em Maggie. — Você e Ryan planejam ter filhos logo?

Maggie imaginou se aquela era a forma sutil de Bonnie de perguntar se estava grávida, o que certamente explicaria aquele casamento entre o melhor partido da cidade e a moça mais sem graça num raio de quilômetros. Fitando Bonnie, não en­controu nada além de interesse amigável em sua expressão. Ora, fora alertada de que o casamento deixava qualquer uma paranóica. Resistiu à von­tade de responder mal e sorriu.

— Ainda não decidimos.

— Jack e eu não decidimos ter filhos até com­pletarmos três anos de casados — contou Bonnie, rindo. — Às vezes, a natureza decide por você.

Só se a natureza fosse capaz de milagres, pen­sou Maggie, separando o dinheiro. Pelo que sa­bia, para conceber um filho era preciso ter re­lações sexuais e estas não estavam acontecendo em seu casamento.

— Acho que é uma decisão que Ryan e eu devemos tomar sozinhos — concluiu, tentando não imaginar como seria ter um filho, um filho de Ryan. O mais urgente agora era mudar de assunto. — Por acaso não tem uma boa receita de torta de maçã aí, tem? Bonnie riu.

— Da última vez que fiz uma torta, até os gansos se recusaram a comer, e olha que comem até latas. Quando eu e Jack nos casamos, ele me fez prometer que nunca cozinharia.

— Não pode ser tão ruim — opinou Maggie.

— Não, é pior. — Bonnie abriu outro cartucho de papel pardo para acomodar mais produtos.

— Até minhas crianças pedem para eu não fazer biscoitos. — Meneou a cabeça. — Se quer uma receita de torta, veio ao lugar errado. Mas sei saborear — avisou, batendo no amplo quadril.

— Só não me dou com o fogão. Está planejando fazer uma torta para seduzir Ryan? — Riu. — Ouvi dizer que o caminho para o coração de um homem é pelo estômago. Claro, você já tem o coração, mas também pode tentar o estômago.

— Ouvi dizer também, mas não é para ele.

Se achasse que havia uma chance de seduzi-lo tão facilmente, Maggie teria se atirado ao fogão havia muito.

— Vamos jantar com o avô dele esta noite e eu disse a Sara que levaria a so­bremesa. Uma amiga da família virá, Shirley Taylor. Estava combinado há tempos, mas nosso casamento adiou o compromisso.

— Shelly — corrigiu Bonnie. — É Shelly Tay­lor. O pai dela e o avô de Ryan eram muito amigos. Ela foi para Hollywood logo após ter­minar o segundo grau e todos achávamos que ficaria por lá. Fiquei surpresa quando ela voltou depois da morte do pai.

— Ela é atriz?

Ryan não lhe contara nada sobre a convidada do avô, tanto que imaginara uma velhinha, talvez com­pondo um relacionamento romântico com Nathan.

— Acho que sim, embora nunca a tenha visto em nenhum filme. Claro, não vou ao cinema faz muito tempo e não assisto à televisão com freqüên­cia, de modo que sou suspeita para falar. — Bonnie acabou de empacotar as compras de Maggie e in­clinou-se sobre o balcão, pensativa. — Não a vi ainda, mas me disseram que continua bonitona. Era a garota mais bonita da escola, sem dúvida.

— Ela estava na sua turma? — Maggie mal conseguiu absorver a nova informação. Em sua mente, a imagem de uma fazendeira idosa, acos­tumada à vida no campo, foi substituída pela de uma atriz jovem e bonita.

Bonnie negou.

— É um ano mais velha. Ela era da turma de Ryan. Para dizer a verdade, os dois formavam um belo casal... — Bonnie deteve-se ao perceber com quem estava falando, corando apesar da pele bronzeada. — Claro, isso foi há muito tempo.

— Imagino que Ryan tenha tido muitas namoradas no segundo grau — replicou Maggie, fingindo descontração.

— Com certeza. — Bonnie parecia aliviada por Maggie não ter levado a mal.

— Ele e Shelly namoraram durante quase todo o último ano, mas, pensando bem, acho que era mais por pressão. Você sabe... um herdeiro e uma herdeira, ambos bonitos. Eram meio forçados a ficar juntos. Forçados?

Satisfeita por ter uma desculpa para fofocar, e aquilo nem era fofoca, porque acontecera de verdade, Bonnie sentou-se na banqueta e apoiou os cotovelos no balcão. Não havia mais ninguém na mercearia, nem tarefa urgente a cumprir. Maggie era boa ouvinte e não fazia mal deixá-la a par da história.

— Nathan Lassiter e Leland Taylor. Como eu disse, eram muito amigos. Leland se casou tarde e Shelly era sua única filha, assim, quando ele morreu, ela herdou a fazenda Fico Nevado e a criação de gado. Faz limite com a SL, sabe...

Não, não sabia, pensou Maggie. Aparente­mente, ignorava fatos importantíssimos.

— Quando Ryan voltou desta última vez, de bra­ço quebrado, Nathan enfiou na cabeça que o neto devia se casar com Shelly. Nunca fiquei sabendo se as partes tinham algum interesse real em firmar essa união. Como eu disse, namoraram no tempo do colégio, mas não deu em nada. Shelly...

O telefone tocou. Bonnie olhou raivosa para o aparelho. - Bolas, não tocou o dia inteiro.

— Tudo bem. Eu preciso mesmo ir — disse Maggie, aliviada com a interrupção.

Não tinha certeza se queria ouvir mais sobre os relacionamentos antigos de Ryan. Era deprimente, considerando o péssimo andamento seu casamento.

— Boa sorte com a torta de maçã — desejou Bonnie, passando-lhe os dois pacotes de compras para Maggie. Então, foi atender ao telefone tocava sem parar.

Precisava parar de comprar comida, pensou Maggie, alojando os pacotes no banco do carro. Simplesmente, não suportaria outra rodada de conversa com Bonnie. Claro, se isso era proble­ma, teria que desistir também do trabalho e evitar qualquer contato pessoal, pois não encon­trara ninguém nas duas últimas semanas que não comentasse sobre seu casamento.

— Sinto-me como a mulher barbada — res­mungou Maggie, acomodando-se atrás do volan­te. Somente Bill não se espantara com o evento, como se tivesse previsto.

Sentia uma dor de cabeça se aproximando na região dos olhos, mal constante nos últimos tem­pos. Desejou fechar os olhos, recostar a cabeça no volante e só sair dali quando o mundo tivesse voltado ao normal. Mas aquele não era o lugar próprio para ter um ataque nervoso. Suspiran­do, introduziu a chave na ignição.

Em duas semanas, acostumara-se o bastante com o trajeto até a SL para poder divagar enquanto dirigia. Invariavelmente, divagava sobre seu casa­mento. Ou sobre o que deveria ser um casamento.

Duas semanas e meia, e Ryan só a beijara uma vez. A princípio, pensou que ele estivesse tendo consideração e apreciara o gesto, ainda que considerasse desnecessário. Entretanto, passaram-se dias e noites sem que alterassem o esque­ma da hora de dormir, tanto que começava a achar que Ryan não estava mais interessado.

Mas ele a quisera. Sabia. Não era algo que um homem podia esconder e, naquele dia chu­voso, dentro da caminhonete, quando a pedira em casamento, ele a desejara. E teria consegui­do, pensou, enrubescendo à lembrança. Refletindo, sabia que não teria protestado se ele a tomasse ali, na cabine da caminhonete, com a chuva isolando-os do resto do mundo.

Infelizmente, ele não fora adiante, detendo-se quando era óbvio que ela estava ansiosa por se entregar. Não sabia por que ele a pedira em casamento... obrigara-a a se casar. E, agora que estavam casados, não sabia por que viviam como colegas de quarto, com amizade e educação.

Maggie sempre fora uma pessoa matutina, mas a vida na fazenda começava antes de o sol nascer e, naquela primeira manhã, acordara sentindo um aroma de café. Vestida, descera para enfrentar o marido, mais pronta do que nunca, mas Ryan já tomara o desjejum. Se estava preocupada com o constrangimento da primeira manhã juntos, Ryan a tranqüilizou indagando como preferia os ovos. Finda a refeição, quase acreditou que o casamento uma coisa simples. E, se ficou decepcionada por ele não a beijar ao sair, logo superou. Precisavam de mais tem po, pensou. Todo casamento requeria um perío do de ajuste e, considerando que haviam queimado muitas etapas importantes num relacio­namento, era possível que esse período se prolongasse entre eles.

Mas o período de ajuste não corria conforme o esperado, pensou Maggie, ao sair da estrada principal e rumar para a fazenda. Ryan saía todos os dias antes de ela acordar. Jantavam juntos, mas a conversa era tensa e pontuada de longos períodos de silêncio. Imediatamente após a refeição, Ryan trancava-se no pequeno quarto que transformaram em escritório ou saía novamente, para verificar umas "coisas".

Era óbvio que ele a evitava. Só não imaginava por quê. Estaria arrependido de ter se casado com ela? Ou pensava que ela estava arrepen­dida? Talvez ele esperasse que ela tomasse a iniciativa, desse o primeiro passo. Riu da idéia, mais nervosa do que bem-humorada. Se Ryan fantasiava com uma mulher versada na arte da sedução, escolhera a garota errada.

Talvez devesse comprar uma camisola e um perfume que exalasse sexo. O problema era que mu­lheres não muito altas e não muito magras não ficavam bem em lingerie sensual. Para completar, a maioria dos perfumes lhe provocava espirros. Imaginou-se numa camisola diáfana, lembrando uma salsicha enrolada em seda, com o nariz e os olhos vermelhos de tanto espirrar. Só rindo.

Não, a idéia estava totalmente fora de cogitação. Passando pelo pátio defronte à casa principal da fazenda, foi direto para a cabana que ocupava com Ryan, mais além. A saída era convidar o ma­rido para uma conversa franca, convenceu-se. Per­guntaria o que ele esperava do casamento. Eram adultos, certo? Podiam discutir e analisar o pro­blema sem constrangimento, certo?

Certo. Já se via frente a frente com Ryan, perguntando-lhe por que não dormiam juntos. Claro, podia fazer isso depois de tentar a cami­sola e o perfume. Podia também abrir os braços e sair voando...

Deixou o câmbio no ponto morto e saiu do carro. Contornando o veículo pela frente, retirou as compras do banco de passageiro. Sua tarefa mais premente era fazer uma torta de maçã.

Com os dois braços ocupados carregando os cartuchos da mercearia, fechou o carro empur­rando a porta com o pé. Depois de fazer a torta, tomaria um bom banho e se vestiria para jantar com a atriz que devia ser bonita, alta e elegante e que por acaso já fora namorada do marido. Como se isso já não bastasse para acabar com seu dia, existia a probabilidade de Shelly Taylor já ter dormido com Ryan, o que era mais do que ela, sua esposa, podia dizer.

Não podiam continuar assim, decidiu, ao transpor o portão no meio da cerca branca. Apoiando um dos pacotes no quadril, abriu a porta de casa e entrou. Sentiu o humor melhorar quando Max apareceu, vindo da sala, saudan. do-a com miados, interrogativo.

— Sim, comprei sua comida — respondeu Maggie, sorrindo.

O gato ronronou e se enroscou entre suas pernas enquanto ela seguia para a cozinha. Uma qualidade dos gatos era que não escondiam seus sen­timentos, não tinham segundas intenções. Não precisava se preocupar com os pensamentos de Max. Enquanto o alimentasse, provesse um lugar confortável para ele dormir e se dispusesse a co-çar-lhe a barriguinha de vez em quando, ele a idolatraria. Pena que os relacionamentos huma­nos não pudessem ser tão simples e objetivos.

— Algo precisa mudar, Max. — Maggie pou­sou os pacotes na mesa da cozinha e começou a retirar as compras. O gato miava, pedindo uma lata de comida, mas ela preferia acreditar que a apoiava. — Simplesmente não posso dei­xar que essa situação se prolongue para sempre.

Quando Maggie pegou um pratinho no armá­rio, Max arrepiou-se.

— Não deve ser tão difícil — prosseguia, pe­gando o abridor de latas. — Só preciso conversar com Ryan, com calma, e perguntar o que ele espera deste casamento. E, se ele não me quiser...

Com a lata meio aberta, deteve-se e fitou o vazio, imaginando como se sentiria quando Ryan lhe dissesse que não a queria mais. Max aguardou educadamente por trinta segundos e então, miou, ansioso. Escapando ao devaneio,

Maggie despejou a comida no prato e pousou-o chão, para alívio do gato. Então, observou o bichano se refestelar, ima­ginou se não seria melhor deixar tudo como es­tava, só mais um pouco.

Ryan queria jantar com o avô e Shelly tanto quanto um tratamento de canal sem anestesia. Se pensasse numa maneira de evitar o compro­misso, não hesitaria em lançar mão. Mas o con­vite já fora postergado devido ao casamento re­pentino e o avô não o deixava se esquecer disso. Shelly era vizinha, velha amiga da família e passava por uma fase dolorosa, repetia Nathan. Sim, o velho senhor estava coberto de razão, mas nem por isso se resignaria!

A desobrigação de cultivar relações sociais era um dos maiores atrativos da vida na estrada. Cada caubói pagava sua parte na despesa da lanchonete e dirigia, revezando com o companheiro para poder dormir entre uma cidade e outra. Mas um jantar maçante não era motivo para que retomasse ao circuito, reconhecia, passando a mão pelos cabelos meio molhados. Não, quando tudo o que queria estava ali, na SL. A terra, bons amigos, a única família que tinha... e Maggie.

Apagando o sorriso, franziu o cenho ao pensar nela. Aí estava a parte que não se encaixava. E não sabia dizer exatamente por que não se encaixava. Raios, até seu avô parecia estar amolecendo! A tensão que perdurara anos entre eles diminuía. Dias antes, quando se oferecera para ligar o microcomputador e começar a armazenar os dados, Nathan concordara sem resmungar.

Seu casamento com Maggie podia não estar avançando, porém servira para tranqüilizar o avô convencido de que dessa vez ele permaneceria. Ao mesmo tempo, contribuía para que enlouquecesse.

Ryan sentou-se na beirada da cama e calçou as meias. Casar-se com Maggie lhe parecera cer­to, ainda lhe parecia. O único problema era que se afastavam, em vez de se tomar mais íntimos.

Não sabia que expectativas tivera. Bolas, ti­nham se casado tão rápido que nem houvera tempo para expectativas. Mas sabia que não pla­nejara dormir sozinho por mais de duas sema­nas após o casamento. Duas semanas e ele ainda dormia numa cama estreita e curta demais, en­quanto sua esposa, sua esposa, raios, dormia do outro lado do corredor. Sozinha.

Escolheu uma camisa no guarda-roupa. O ca­bide escorregou e caiu no chão. Nem se preo­cupou em pegá-lo. Era culpa sua. Sabia que era. Convencera Maggie a se casar, mas agora dava espaço à bendita consciência, sempre aconse­lhando a dar mais tempo, que devia isso a ela etc. Bem, talvez devesse, realmente.

Mas quanto tempo seria preciso? Talvez até que criasse coragem e contasse a ela sobre Sally? Simplesmente, ainda não encontrara o momento certo para contar... Ora, se aquela não era a desculpa mais patética que já ouvira. Vestiu a camisa e mirou-se no espelho carrancudo. O pro­blema não era encontrar o momento certo, mas as palavras certas. Como contar à esposa que ela não era sua primeira esposa? Se tivessem namorado, Maggie teria sabido de Sally bem an­tes do casamento. Mas não tinham namorado, não tinham cumprido nenhuma etapa de um relacionamento normal.

Lá estavam, casados havia duas semanas e meia, e ele ainda não contara a Maggie sobre Sally. E ainda dormia sozinho. Duas semanas e meia vendo-a sair do banho, a pele corada e úmida, os cabelos em cachos ao redor do rosto. Duas semanas e meia sabendo que ela estava do outro lado do corredor. Duas semanas e meia imaginando o que ela vestia na cama e quanto tempo levaria para deixá-la nua. Duas semanas e meia de desejo e se frustração, com seu au-tocontrole chegando ao limite.

— Somos casados — resmungou consigo mes­mo, abotoando a camisa.

Se ao menos Maggie não parecesse tão feliz com a situação do jeito que estava. Se ela mos­trasse algum sinal de que compartilhava a frustração dele, não hesitaria em afastar seus te­mores com beijos. Mas ela não dava a menor mostra de que se sentia infeliz. Quando estavam juntos, o que se tornava cada vez mais raro, ela era amigável, agradável, tinha uma boa con­versa. Se estivesse procurando uma colega de quarto, ela seria perfeita.

Mas queria uma esposa. Franziu o cenho ao próprio reflexo no pequeno espelho sobre a cô­moda. Queria Maggie.

Precisavam conversar, decidiu. Não era assim que os casais resolviam suas diferenças? Uma conversa calma e racional resolveria os conflitos.

E, então, fariam amor.

 

Shelly Taylor era tudo o que Maggie temia e mais. Alta, magra, bonita e muito simpática. Vestia calça cinza de corte impecável e uma blusa de seda verde que pa­recia sofisticada e, ao mesmo tempo, casual. A voz era baixa e modulada. Shelly a fazia sen­tir-se como Minnie, a namorada do Mickey. Até seus dentes eram perfeitos, constatou, quando ela Shelly riu de uma brincadeira de Nathan.

Olhou para Ryan. Ele sorria para Shelly. Es­taria notando as mesmas perfeições, fazendo as mesmas comparações? Por que ele se casara com ela se podia ficar com aquela mulher estontean­te? A menos que Shelly houvesse recusado. A idéia não chegava a consolador, pois, que mu­lher, em sã consciência, rejeitaria um bonitão rico como Ryan Lassiter? Ele não era só bonito, mas inteligente, gentil e tinha senso de humor. Era gentil até com os animais!

Mas, mesmo considerando a hipótese de Shel­ly ter recusado Ryan, em que posição isso a deixava? Na de prêmio de consolação que oferecia pouco consolo? Sabia que Ryan não a amava quando se casaram. Mas uma coisa era saber que ele não a amava, outra, era achar que ele amava outra pessoa!

Fitando o próprio prato, cuidou para não deixar a imaginação correr solta. Não sabia se Ryan amava Shelly. Só sabia que não a amava, nem parecia querê-la mais.

Participando da conversa à mesa, Ryan pres­tava atenção em Maggie, muito quieta e cabisbaixa. Ela não dissera mais que duas frases du­rante toda a noite. Saíra de casa para o jantar antes dele, para ajudar Sara, dizia o bilhete. Ou para evitá-lo, pensou.

Partindo um pedacinho de bife, levou à boca, mastigando sem sentir o sabor. Precisavam con­versar. Apenas isso. Não era do tipo que ana­lisava longamente um relacionamento. Costu­mava deixar que os problemas se resolvessem sozinhos. Mas a tática não estava funcionando e ambos começavam a perder algo importante.

Não era apenas sexo, embora, para ser ho­nesto, sendo homem, admitia que isso importa­va muito. Mas também sentia falta de vê-la sor­rindo, de ver seu narizinho franzido quando ela ria e do brilho em seus olhos quando se entu­siasmava com alguma coisa. Não queria apenas fazer amor com ela. Queria dormir abraçado com ela e vê-la ao acordar pela manhã.

Tudo o que um casamento podia ser, tudo o que podiam ter... era isso o que queria.

Mastigando metodicamente um pedaço de bife, Nathan ouvia Shelly contar alguma história sobre um filme de faroeste protagonizado por um amigo. Pelo que sabia, não havia alma em Hollywood com juízo suficiente para amarrar os sapatos, o que tomava ainda mais espantoso o fato de ga­nharem rios de dinheiro por lá. De soslaio, vigiava o neto, ora de cenho franzido, e Maggie, que pa­recia sentir-se miserável. Os dois disfarçavam bem, mas era evidente o clima pesado entre eles.

O que mais apreciava em si mesmo era que, não importava o quanto envelhecesse, nunca fi­cava idiota. Esse casamento do neto, por exem­plo. Na fachada, parecia tudo bem. Jovens apai­xonavam-se e se casavam. Acontecia todos os dias. Nas últimas duas semanas, porém, Ryan andava irritadiço como um cavalo no cio e Mag­gie parecia ter perdido a melhor amiga e o ca­chorro no mesmo dia.

No fundo, gostava de Maggie. Mais que isso, gostava de ver Ryan animado com algo novamen­te. A frustração era preferível àquela atitude cal­ma e indiferente que o menino adotara nos últimos anos. Maggie representava um avanço para Ryan, e seria muito bom se conseguissem resolver seu problema, qualquer que fosse.

Quando todos riram com o final de sua história, Shelly lhes deu crédito por serem melhores atores do que muitos com quem trabalhara. Duvidava de que alguém se lembrasse do que acabara de contar. Bem, nem sempre o público acompanhava...

Fatiou o bife e tentou se convencer de que estava chocada com a quantidade de carne ver­melha, sem mencionar as batatas cozidas com bastante manteiga e creme de leite. Mas a verdade era que, após mais de dez anos de dieta à base de alface e arroz integral, estava ado­rando aquela comida mais pesada. Com sorte não engordaria, pois agora percorria a fazenda diariamente com o capataz, queimando não pou­cas calorias. O homem era pior que um personal trainer, tirando-a da cama às seis e fazendo-a andar e cavalgar por quilômetros todos os dias.

Por mais que tentasse, não conseguia vê-lo como empregado. Jamais se esqueceria de que fora ele a ajudá-la a montar em seu primeiro pônei, além de acudi-la na primeira queda, logo em seguida. Nem que lhe dera uma surra ao surpreendê-la com o filho dele, Andy, ambos fu­mando atrás do celeiro. Não apanharam por es­tar fumando, mas por estar fumando perto do feno. Nunca se era realmente patroa de um ho­mem que já assentara a mão em seu traseiro.

A conversa centrou-se, inevitavelmente, em temas ligados à fazenda, e Shelly se esforçava para absorver todas as informações. Tinha tanto a aprender e pouco tempo para isso, a julgar pelos avisos diários de Ray de que em breve partiria. Chegara a considerar a possibilidade de fazer a vontade de Nathan. Mas Ryan estava casado e tal possibilidade já não existia.

Tentou lamentar, mas não conseguiu. Apesar do que dissera a Tucker McIntyre, o sentimento mais forte que ela e Ryan haviam partilhado fora a cólera. O ideal seria que se apaixonassem ou, ao menos, criassem alguma afeição um pelo outro.

— Hoje em dia, as fazendas têm que diversi­ficar para sobreviver — dizia Nathan. — Ou isso, ou inventam uma vaca com baixa gordura. — Sorrindo, recostou-se na cadeira e lançou um olhar enigmático ao neto antes de voltar a aten­ção a Shelly. — Na verdade, estamos pensando numa nova empreitada...

— Verdade? — interessou-se Shelly. Ray, o capataz, já a alertara sobre a importância da diversificação, estratégia que seu pai ignorara solenemente.

— Cavalos — revelou Nathan. — Ryan acha que pode criar cavalos aqui. — Indiferente à expressão atônita do neto, completou: — Ele trouxe uma égua, para começar. Não é muito dócil, mas tem sangue bom. Shelly sorriu para Ryan.

— De cavalos você deve entender.

— Já caí de muitos...

Podia saber muito sobre cavalos, mas era ób­vio que não entendia as pessoas, pensou Ryan. Era a primeira vez que o avô se mostrava re­ceptivo à idéia de expandir os negócios da SL na direção da criação de cavalos.

— Conversei com Ben Rayczek há alguns dias sobre um garanhão que pode ser exatamente o que nós estamos procurando — disse Nathan, afastando o prato, provocando uma reação do neto com o olhar.

Nós? Ryan limitou-se a comentar:

— Conheço o cavalo. Muito bom pedigree. Mas Ben não vai vender por pouco...

— Se vamos entrar no negócio de criação de cavalos, temos que fazer direito — opinou Na­than, firme.

Lá estava ele falando no plural de novo. Ryan conteve a irritação, mas não conseguia esquecer a questão do garanhão de Rayczek. Pensara em passar alguns anos apenas negociando cavalos, antes de pensar em adquirir um garanhão da­quela qualidade. De qualquer forma, era um alí­vio saber que aparentemente não teria que bri­gar com o avô a cada estágio do negócio. O sonho era seu, e o conquistaria de qualquer forma, mas preferia a concordância do avô.

— Sim, seria bom começarmos com o pé direito — replicou, enfatizando sutilmente o plural.

Nathan parecia satisfeito.

— Não podia ser de outra forma.

Shelly retirou-se assim que as boas maneiras permitiram. A verdade era que o jantar a dei­xara deprimida. Ryan e Nathan só a lembrava de que seu pai estava morto, enquanto que ver Ryan casado a lembrava de que já estava com trinta anos, sozinha, com a carreira de atriz pra­ticamente encerrada.

Detendo-se na varanda, imaginou se cometera um erro voltando para o Wyoming. Talvez de­vesse voltar a Los Angeles. Podia não ter mais chance de se tornar uma estrela milionária, mas conseguia ganhar a vida. Considerando a ins­tabilidade da carreira, talvez pudesse lecionar arte dramática ou, mesmo tomar-se agente, o destino final de muitos atores.

Sentiu o cheiro do cigarro antes de vê-lo, pa­rado num canto da varanda, uma sombra em meio às sombras.

— Olá, Tucker. — Desceu os degraus ao en­contro dele, tornando-se uma sombra também.

— Shel — murmurou ele. Era o único que a chamava assim. Ela detestara o apelido quando criança, mas agora lhe parecia quase... reconfortante. — Como foi o jantar?

— Delicioso. Sua mãe continua ótima cozinheira.

— Continua.

Ficaram em silêncio por alguns segundos. Ou­tra qualidade de Tucker, pensou Shelly. A ca­pacidade de deixar o silêncio se prolongar sem se tomar constrangedor. Em todos os seus anos em Los Angeles, nunca conhecera ninguém que tolerasse o silêncio.

— Está fazendo hora? — indagou ele, por fim.

— Estou. — Ela sabia no que ele pensava: se o casamento de Ryan mudara seus planos. Algo naquela escuridão ou na calmaria da noite tor­nava a honestidade possível. — Não tenho para onde ir. — Suspirou. — A verdade é que sou uma atriz bem medíocre e a beleza só não leva longe. A minha me levou até onde era possível.

— Vai ser uma grande mudança voltar para cá.

Tucker nem se dera ao trabalho de enaltecer sua beleza e talento, mesmo que só por educa­ção, e imaginou se devia ficar ofendida.

— Sinto a mudança. — Ela enfiou as mãos nos bolsos do blazer elegante e encolheu os om bros contra o ar frio. Ou, talvez, o frio viesse de dentro. — Mesmo antes de papai morrer, pensava em mudar minha vida. Agora, aqui es­tou, com uma fazenda nas mãos, sem saber como administrá-la, um capataz que quer ir embora... Na verdade, gostaria de... — Conteve-se, teme­rosa de pronunciar as palavras.

— Gostaria de quê? — insistiu Tucker.

Ele era apenas uma voz na escuridão, o que lhe deu coragem para admitir algo que até então nem cogitara.

— Gostaria de ter filhos — revelou. Então, riu. — Parece loucura, não é? Eu, com filhos. Quem acreditaria?

Shelly olhou para o alojamento. Por uma das janelas, via-se o brilho dourado de um abajur. Suspirou, arrependida.

— Ryan e eu dificilmente nos apaixonaríamos, mas pensei que podíamos nos gostar o bastante para construir algo de valor. Isso deve soar ter­rível e calculista...

— Só um pouco.

Ela se enfureceu.

— Quem pediu sua opinião?

— Você. — Tucker jogou o cigarro no chão e pisou na brasa. — Em resumo, está procurando um capataz que goste de crianças?

Shelly bufou.

— Eu devia saber que não podia contar com a sua compreensão.

— E a paixão? E o desejo?

Antes que ela se desse conta, ele estava bem a sua frente, os ombros largos bloqueando a luz das estrelas, limitando o mundo. Com o coração aos pulos, permitiu que ele lhe afagasse o rosto, a linha do queixo. Estremeceu, apreensiva.

— Paixão e desejo não bastam para sedimentar um relacionamento — afirmou, pouco convicta.

— E gostar bastante? — questionou ele. Shelly captou um brilho de humor no olhar dele antes que inclinasse o rosto.

— Tucker, não... —Pare, pensou, quando seus lábios se colaram, gerando enorme prazer. Não, não pare...

Ele não se apressou, experimentando sua in­segurança, sentindo que a resposta aumentava. Quando interrompeu o beijo, Shelly já estava agarrada a ele, com os braços ao redor de seu pescoço, o corpo esguio pressionado contra o seu, do peito aos joelhos. Com esforço, ela abriu os olhos e o fitou.

— Eu levo você para casa — decidiu Tucker, selando seus lábios com o polegar.

Shelly sabia qual era o objetivo do caubói. Uma mulher cautelosa recusaria, preferindo ir sozinha. Ora, se fosse cautelosa, não teria es­colhido a profissão de atriz. Porque mulheres cautelosas dificilmente tinham vidas excitantes.

De mãos dadas, seguiram para o carro dela.

— Fez uma boa escolha — comentou Nathan, erguendo o cálice de bebida num meio brinde. — Eu gosto de Maggie.

Ryan estava de pé junto à lareira, contem­plando o fogo, com uma xícara de café no apa-rador próximo. Shelly já fora. Maggie recusara ajuda para tirar a mesa, liberando-os para uma conversa no gabinete. Ele não hesitava diante de tarefas domésticas, imaginando que um peão de cavalos xucros era capaz de arrumar uma cozinha, mas o tom afável de Maggie em con­traste com a infelicidade em seu olhar era mais do que podia suportar.

Precisavam conversar. Imediatamente. Aque­la noite. Só não sabia ainda o que dizer a ela.

Voltou-se ante o comentário do avô.

— Fico contente, mas não me casei com Mag­gie para satisfazê-lo.

— Eu sei. — Nathan agitou o cálice de conhaque e olhou para o neto. — Por um instante, pensei que tivesse se casado só para me provocar.

— Meus motivos para me casar com Maggie não tinham nada a ver com você — afirmou Ryan, surpreso ao constatar que era verdade. Talvez a pressão do avô colocasse o tema em sua pauta de preocupações, mas não se casara com Maggie por querer.

— Eu percebi. — Nathan assentiu, satisfeito. Tomou um gole de conhaque, o cenho um pouco franzido. Quando falou novamente, a voz saiu gra­ve, como se as palavras arranhassem a garganta.

— Errei ao pressionar você e Shelly, mas se isso o fez se aproximar de Maggie, não lamento.

Ryan engasgou com o café.

— Acaba de admitir que errou?

— Não tripudie — advertiu o avô, sensível. — Sempre quis admitir que estava errado.

— É a primeira vez que ouço você dizer isso em vinte e três anos!

— Talvez só agora tenha sido necessário — retrucou Nathan, áspero. Sorriu relutante quan­do Ryan deu uma gargalhada. — Você nunca teve respeito pelos mais velhos e experientes.

— Mostre-me alguém que tenha as duas qualidades e eu mostrarei respeito. — Na verdade, Ryan estava feliz. Havia agora uma ponte sobre o abismo que sempre os separara. — Estava falando sério sobre comprar o garanhão de Ben Rayczek?

— Se você gostou do animal... — Nathan girou o conhaque no cálice, sorvendo o aroma. — Re­conheço que era muito preso às minhas manias. É o medo de perder as rédeas.

— Medo justificável — opinou Ryan.

— Esta fazenda será sua um dia. Devo levar em conta suas idéias.

Ryan não queria pensar no dia em que a SL seria sua.

— Vai demorar muito ainda — afirmou, de­sejando acertar na previsão.

Ficaram em silêncio por um bom tempo, cien­tes de que estavam perto de demonstrar os sen­timentos. Nathan pigarreou.

— Quando vai acertar o que está errado entre você e sua esposa?

— Quando vai parar de se meter na minha vida? — rebateu Ryan, irritado.

— Quando você aprender a gerenciá-la melhor — respondeu Nathan.

Encaram-se, aliviados por voltarem ao normal.

Quando Maggie entrou no gabinete, pouco de­pois, estavam discutindo qual seria o preço justo para o garanhão de Ben Rayczek. Detendo-se à porta, observou-os e sorriu. Eles tinham tanta certeza da afeição mútua que nem receavam le­vantar a voz um para o outro.

— Ben não é tolo, não vai vender o cavalo por ninharia — dizia Ryan. — Você tem o que se paga e...

Interrompeu-se ao ver Maggie, a expressão passando de combativa a serena num segundo. Maggie sentiu um aperto no coração ao se ver alvo daquele olhar, mas manteve a calma.

— Sei que não é tão tarde, mas estou cansada. Acho que vou voltar para casa. Obrigada pelo jantar maravilhoso, sr. Lassiter. Ryan, você não precisa vir comigo — protestou, quando ele pou­sou a xícara e se levantou. Riu, só para mostrar o quanto era feliz. — Acho que não vou me per­der nesse trecho.

— Estou pronto para ir — afirmou ele. Não lhe daria a chance de ir para casa e se trancar no quarto antes de conversarem. Decidido como estava, seria capaz de arrombar a porta e, nes­se caso, eliminaria qualquer possibilidade de entendimento.

O ar noturno estava ligeiramente frio e Mag­gie desejou ter levado um suéter. Ou talvez, o frio fosse interno, pensou.

— Precisamos conversar— declarou Ryan, as­sim que saíram à varanda.

Seguiram para a cabana. Estava escuro e isso deu coragem a Maggie para se manifestar.

— Eu sei. Cometemos um erro. — Queria rir um pouco, só para mostrar que não era o fim do mundo, mas não tinha certeza se conseguiria man­ter o riso, estando com vontade de chorar, por isso, apenas deu de ombros. — Sabíamos que era um risco, mergulhar assim de cabeça num com­promisso tão sério. É claro que não vai dar certo. Portanto, sem ressentimentos, nós...

Ryan a segurou pelo braço e só então ela per cebeu que andava muito rápido, quase correndo. Fitaram-se. O luar se refletia nos olhos de ambos.

— Eu ficaria muito ressentido. Maggie não acreditou. Tinha certeza de que ele ficaria aliviado, de que não perderia a opor­tunidade de terminar o casamento sem culpa.

— Não acho que cometemos um erro ao nos casar — opinou ele. — Acho que, a partir daí, é que complicamos. Ou eu me compliquei.

Ainda a segurava pelo pulso, porque queria mantê-la perto e porque precisava do contato.

Precisava, percebeu ele. Não queria usar essa palavra. Precisava dela, e isso o assustava.

— Não lhe contei tantas coisas — murmurou quase para si mesmo. Respirou fundo e decidiu que era melhor ir direto ao assunto. — Eu já fui casado, Maggie. Devia ter lhe contado, mas...

— Mas eu sabia — declarou ela, calmamente.

— Sabia? — Ryan a fitou. Não lhe ocorreu que ela já soubesse sobre Sally, embora devesse des­confiar. Não havia muitos segredos em Willow Flat.

— Bill me contou sobre ela. Deve ter sido ter­rível para você.

— Foi... sim. — Engraçado como a empatia dela o emocionava, era difícil até falar. — Eu devia ter lhe contato sobre Sally, só que... pa­receu inadequado.

Inadequado contar à esposa que não amava sobre a esposa amada?, imaginou Maggie. Não, não seguiria aquela linha de raciocínio.

— Não importa. Sei que nosso casamento foi um erro e...

— Pare de dizei isso. — Ele a sacudiu pelos ombros. — Não foi um erro.

O tom angustiado quase fez Maggie ter espe­rança novamente.

— Nós nos precipitamos...

— Não é esse o problema. O erro foi ficarmos cautelosos, de repente. — Ele a aproximou, ten­tando ler sua expressão ao luar. — Por que se casou comigo, Maggie?

Ela tentou se desvencilhar, mas Ryan recu­sou-se a soltá-la.

— Quer que eu diga primeiro por que me casei com você?

— Por impulso! — adivinhou Maggie. — Você não precisa explicar. Eu sei que foi um...

— Se disser que foi um erro mais uma vez, vou agitá-la até seus dentes baterem como castanholas! — ameaçou ele.

Ela se deteve, fitando-o com os grandes olhos cinza. Ryan desejou que houvesse mais luz, para ver mais claramente, mas talvez assim fosse me­lhor, mais fácil, ali na escuridão.

— Eu me casei com você porque não conseguia me imaginar sem você. Foi um impulso e nos pre­cipitamos, mas não foi um erro. — Com os polegares, massageava-lhe os ombros delicados. — Após a morte de Sally, achei que não teria outra oportunidade, que nunca amaria novamente.

— Eu entendo...

— Cale-se. — Ele reforçou a ordem beijando-a sem gentileza.

Findo o beijo, Maggie apenas o encarou, con­fusa, sentindo os joelhos fracos.

— Mas...

— Não me ouviu?

— Ouvi. — Ela não discutiria com ele. Sentia o coração disparado e os pensamentos desorde­nados. — Só não entendi.

Ryan riu.

— É assim que eu gosto, uma esposa submissa. Com o braço sobre os ombros dela, Ryan retomou a caminhada rumo à cabana. Ele deixara a luz da varanda acesa e tinham nela sua estrela-guia.

— Estou tentando dizer que a amo — sussurrou ele, apertando-lhe os ombros. — Devia ter dito antes, mas só agora estou me dando conta.

—Ama?—Maggie imaginou se era possível mor­rer de felicidade. Sentiu uma pressão no peito, in­tensa, quente e pensou que seu coração explodiria.

Na varanda da cabana, ficaram de frente um para o outro. Os olhos de Maggie brilhavam mais que a lua, cheios de um amor tão puro que Ryan imaginou como pudera ser estúpido a ponto de não o perceber. Compreendeu que era um felizardo por encontrar aquele sentimen­to pela segunda vez na vida.

Tomou o rosto amado nas mãos.

— Nosso casamento não foi um erro, ainda que tenhamos feito da maneira mais louca pos­sível. Loucura maior, só quando eu tinha de­zesseis anos e, bêbado, deixei Tucker me con­vencer a montar num touro à meia-noite.

Maggie riu.

— Não sei se devo ficar prosa ou considerar isso um insulto — ponderou.

— Era um touro muito grande — acrescentou Ryan, só pelo simples prazer de ouvi-la rir.

Quando roçou o polegar em seu lábio, ela apa­gou o sorriso e surgiu a ansiedade em seu olhar.

— O que diria se eu lhe oferecesse uma noite de núpcias, sra. Lassiter?

Maggie enrubesceu, mas sustentou o olhar.

— Eu diria sim. — Entrelaçou as mãos nas dele. — Vamos entrar.

 

                       Seis meses depois

— Acho que ela está começando gostar de mim. — Ryan apoiou a bota na viga inferior da cerca e olhou para a égua dentro do curral.

— O que o faz pensar assim? — Virgil Mortenson acariciava o nariz da égua.

— Ela já não desdenha tanto quando olha para mim. — Ryan mantinha as mãos nos bolsos. A égua já tolerava sua presença, mas não a ponto de se deixar tocar. Além disso, já estavam em novembro e era provável que nevasse à noite.

— Não sei se já vi um animal desdenhar — replicou Virgil, olhando-o de viés.

— Você não estava prestando atenção. Quando Virgil voltou o rosto para encará-lo, apoiando o ombro contra a cerca, a égua revirou os olhos e desdenhou. Ryan expressou desgosto.

— Ela me olha como se eu comesse carne de cavalo grelhada.

— Isso seria um bom motivo — concordou Virgil, rindo.

— Felizmente, ela aceitou você para treiná-la Virgil. Senão, provavelmente já a teria mandado para uma fábrica de cola. — Era uma ameaça vazia. Sabia. Assim como Virgil. Raios, a égua também devia saber!

— Eu não tinha concordado em trabalhar com ela — corrigiu Virgil. — A sua esposa me avisou que eu ia trabalhar com ela.

Ryan deu uma risada.

— Ela é pequena, mas durona.

— Se é.

Instalou-se um silêncio confortável. No aloja­mento, alguém cantava um sucesso recente, tema de filme, acompanhado por um coro de gatos.

— Jim Duggan — identificou Ryan, sorrindo.

— Não consegue chegar ao fim da música.

— Ele tenta. Devia ouvir quando ele canta outras... — Virgil mandou a égua trotar. Ela desdenhou de Ryan, desconfiada, antes de se afastar pelo curral. Virgil mantinha as mãos na cerca e o olhar no animal. — Poucas pessoas me empregariam depois dos últimos anos... — Olhou para Ryan e, então, novamente à frente.

— Queria agradecer a confiança.

— Ora, pouca gente entende mais de cavalos do que você, Virgil — justificou Ryan.

— Houve uma época... — Virgil se interrom­peu e meneou um pouco a cabeça. — Faz muito tempo. Não sabia se conseguiria lidar com os cavalos novamente. Eu tinha certeza.

Ryan deu uma boa olhada no amigo. Apresen­tava uma tez saudável e os olhos límpidos, segu­ros. Fazia seis meses que Virgil não bebia. A ba­talha não estava ganha, talvez nunca teria fim, mas Ryan apostava que ele espantaria seus te­mores. E tudo graças a Maggie. Havia quatro me­ses, quando Virgil voltara à cidade, sóbrio pela primeira vez em anos, Maggie afirmara que se tratava da pessoa certa para trabalhar no projeto com cavalos que iniciavam na SL. Ryan concor­dara de imediato, mas Virgil, por orgulho ou in­segurança, declinara o convite. Ryan não insistira, não se podia forçar um homem a aceitar um em­prego. Mas Maggie, inconformada, procurara Vir­gil em seu humilde quarto alugado em cima da mercearia. Ninguém imaginava o que ela dissera, mas o fato era que voltara à fazenda com Virgil, meio confuso, a bem da verdade, como se não ti­vesse certeza do que estava fazendo ali. Ryan não tinha motivo para se arrepender da contratação.

Ao recordar o episódio, Ryan riu.

— Bolas, mesmo que não quisesse contratá-lo, ficaria com medo de contar a Maggie. Não há como detê-la quando mete uma coisa na cabeça.

— Ela o intimida, hein? — caçoou Virgil.

— Intimidar é apelido...

Ao pensar em Maggie, Ryan sentiu necessidade de estar com ela. Controlou a vontade olhando para a casinha que compartilhavam. Maggie devia estar preparando o jantar, a menos que estivesse no quarto escuro, sem noção do tempo. Distraí-do, não ouvira Virgil. Algo sobre a égua? Olhou para o animal, uma sombra ao entardecer.

— Você está realizando um ótimo trabalho com ela.

Virgil não se deixou enganar. Fazia tempo, mas se lembrava de como era ter alguém que completava sua vida, sentir-se bem só na com­panhia desse alguém.

— Já está na minha hora — improvisou Ryan, sem graça quando o amigo conteve o riso ante a desculpa esfarrapada. — Maggie deve estar quase servindo o jantar.

Virgil observou Ryan se afastar num passo apertado. Também já tivera uma esposa, uma família para a qual voltar, um motivo para pôr fé no futuro. Apagando o sorriso, massageou o peito como se tentasse amenizar uma dor.

Maggie mordiscou o lábio inferior, concentra­da em manobrar o cone com creme de cobertura colorida. A linha fluída serpenteava sobre a co­bertura branca formando as palavras "Feliz Ani­versário". O pingo no "i", o acento no "a" e pron-to! Com um suspiro aliviado, analisou criticamente o resultado.

Não está mal, concluiu. Não é nenhuma obra de arte, mas não está nada mal.

Afastou do rosto uma mecha dos cabelos re­beldes e suspirou. Ryan não julgaria suas habilidades de confeiteira, mas, mesmo assim, que­ria que ficasse bonito. Era uma ocasião especial, afinal. Sentiu um aperto no estômago de nervosis­mo e inclinou-se para acrescentar a palavra final.

A comemoração oficial do aniversário de Ryan seria na noite seguinte. Jantariam na casa prin­cipal, Nathan, os McIntyre, Tucker e Shelly. Só a família, dissera Nathan, e Maggie sentiu ter­nura. Pela primeira vez na vida, fazia realmente parte de uma família. Não importava que não fossem parentes de sangue. Eles eram sua família e ela não estava do lado oposto da cerca.

Durante toda a vida, acreditara ter algum de­feito, alguma falha que tornava impossível para a mãe amá-la. Precisara se casar com Ryan para entender que o problema não estava nela, afinal. Lídia e Noreen tinham partido para Los Angeles com o dinheiro resultante da venda da casa. Aceitando o fato de que talvez jamais as visse novamente, descobriu também que lamentaria muito pouco, se isso acontecesse.

Completou a decoração do bolo com um arabesco e endireitou-se a coluna. Avaliou o trabalho mais uma vez e assentiu, satisfeita. Ainda não estava pronta para dar aulas em programa de televisão, mas saíra-se bem naquela primeira tentativa. Co­memorariam em família na noite seguinte, mas aquela, dali a pouco, seria só para os dois, para comemorar o aniversário e... outras novidades.

Ciente do nervosismo, foi lavar o cone de confeiteiro na pia. Ryan ficaria contente com a no­vidade. Sabia que ele ficaria. Era tolice aquele nervosismo todo.

O barulho da água corrente abafou o som dos passos de Ryan. Maggie só percebeu sua che­gada quando ele a abraçou pela cintura. Assus­tada, deu um grito e largou o cone, espalhando água para todo lado.

— É disso que gosto... uma mulher que fica excitada ao me ver.

— Você me assustou — censurou ela, sem fôlego, encolhendo-se arrepiada quando ele en­terrou o rosto em seu ao pescoço.

— Mas você está gelado!

— Está frio lá fora. Parece que vai nevar. — Ryan a fez se voltar e a prensou de costas contra a pia. — Pense nisso, Maggie. Podemos ficar isolados por dias a fio... O vento soprando lá fora... Só nós dois aqui... Sem mais ninguém por perto... — Insinuante, ergueu o cenho várias vezes. — Precisaremos encontrar uma distração. Alguma sugestão?

— Você vai gastar muito tempo tirando a neve com a pá — replicou Maggie, enérgica.

Ele se desanimou.

— Que tal strip pôquer? — sugeriu, esperançoso.

— Não parece lógico jogar strip pôquer com um vento gelado soprando.

— Sua lógica me decepciona — resmungou ele. Então, olhou para a bancada. — Ei, aquilo é um bolo?

— Não. — Maggie se desvencilhou e ficou en­tre ele e a mesa. Bolas. Planejara esconder o bolo até após o jantar, quando então o apresentaria com velinhas faiscantes. — Quero dizer, sim, é um bolo, mas é para mais tarde.

— Meu aniversário é amanhã. Não posso comer uma fatia antes do jantar... como comemoração antecipada?

Ryan esticou o pescoço para ver o bolo. Não estava tão ansioso por um pedaço, embora Maggie fosse uma cozinheira de talento. Gostava de pro­vocá-la. Estava irresistível com aquela mecha de cabelos rebeldes quase cobrindo-lhe os olhos.

— Nada de bolo antes do jantar! — Maggie pôs-se na ponta dos pés para bloquear a visão dele. — Por que não vai tomar banho ou fazer algo útil?

— Já lavei as mãos e estou com fome. — Ele lançou um olhar que aperfeiçoara quando me­nino, que nunca falhara em arrancar mais bis­coitos de Sara. — Só um pedacinho...

Maggie suspirou, resignada. Não planejara as­sim. Devia estar vestindo algo mais feminino do que calça jeans e suéter velho. Imaginara velas e porcelana fina, nada de luzes fluorescentes e mesa coberta de farinha. Contudo, já guardara o segredo o dia todo e não agüentava mais. Ryan olhou para o bolo e, então, para ela. — Dois dias de festa pelo meu aniversário — resumiu, aprovando. — Sou ou não sou um ho-mem de sorte?

— Acho que sim. Quero dizer, espero que ache que é sorte — replicou Maggie, agitada. — Por­que eu acho que é.

Ryan ergueu o sobrolho, os olhos azuis bri­lhando de divertimento e afeição.

— Quer repetir? Acho que não entendi muito bem.

Maggie corou e saiu da frente do bolo.

— Eu mesma fiz a decoração.

— Sim, eu vi. Você escreveu "Feliz Aniversá­rio..." — Ryan interrompeu-se e leu de novo o que estava escrito. — "Feliz Aniversário, papai!"? — Olhou-a boquiaberto.

Maggie viu a felicidade no rosto de Ryan e suas dúvidas sobre como ele reagiria se dissiparam.

— Maggie? — Ryan tomou-lhe as mãos, tenso. Ela apenas assentiu e sorriu, sem fala. — Quando?

— Peguei o resultado hoje cedo. Seremos pais em sete meses, mais ou menos...

Se alguém perguntasse, Ryan diria que era impossível se sentir mais feliz. Nos últimos me­ses, Maggie dissipara as sombras em sua alma, enchera sua vida de luz e sorrisos. Era mais do que um dia esperara conseguir. Com certeza, era mais do que merecia. — Faz muito tempo que não digo o quanto a amo?—indagou ele, tomando o rosto dela nas mãos.

— Acho que mencionou hoje cedo. — Ela o enlaçou pela cintura, os olhos cintilantes de amor. — Mas ouvi dizer que ações falam mais alto que palavras — completou, pousando a mão sobre o coração de Ryan.

Ele riu malicioso e a ergueu nos braços.

— Se é ação o que quer, veio ao lugar certo, pequena — replicou, com sotaque caipira exagerado.

— Não tão pequena em alguns meses — lem­brou Maggie, de repente carente de afirmação.

— Estará duas vezes mais linda do que é ago­ra — garantiu Ryan, beijando-a.

Maggie queria protestar, dizendo que não era bonita, mas quem precisava de beleza quando tinha tanta sorte? Agarrou-se ao pescoço do ma­rido enquanto ele a carregava escada acima.

 

 

                                                                         Dallas Schulze

 

 

 

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Havia uma mulher que morava numa casinha pintada de cor-de-rosa. Era uma jovem de coração bondoso e espírito acolhedor, com os cabelos da cor do mel e olhos azuis como o céu do entardecer. Olhos que, na maioria das vezes, continham uma expressão que sugeria segredos inocentes e sonhos bem guardados.

Ela havia passado a vida toda na cidadezinha em que nascera, abrigada e protegida pela sua família muito além do que seria normal, pois a maldade certa vez estendera sua mão sombria sobre eles, e viviam com o temor de seu retorno.

Por amor, eles a mantinham presa pelos laços do medo e da culpa.

Por amor, ela aceitava estes ternos laços, embora se tornassem mais apertados a cada ano que passava.

Ela permanecia segura entre as paredes da casinha cor-de-rosa, sonhando com lugares distantes, terras exóticas que jamais veria, aventuras que nunca teria. E se, apenas de vez em quando, sonhasse com um homem que tivesse um espírito forte o bastante para romper os laços amorosos que envolviam-na, este era um segredo que estaria melhor guardado entre ela e seu coração.

Afinal, aquela era a vida real, e ninguém mais do que ela sabia que a vida não era um conto de fadas.

 

 

 

 

Neill Devlin nunca acreditara no inferno, pelo menos não naquele inferno representado pelo fogo eterno, enxofre, lavas quentes e almas penadas. Esta era uma metáfora, a moral de uma historia, e ele não acreditava nisso da mesma forma que não acreditava em bruxas montadas em cabos de vassoura, fadas dançando em pétalas de flores ou finais felizes. Continuava mantendo-se firme acerca destes últimos três, mas era óbvio que enganara-se a respeito do inferno. Ele existia, certamente, e não era algum tipo de reino dos mortos, repleto de lava derretida e rochas pontiagudas.

O inferno era ali, no meio de Indiana, no meio do verão, no meio do que pareciam ser quilômetros infindáveis de plantações de milho cortadas por uma estrada de terra que ligava nada a lugar algum, com o sol escaldante de agosto reluzindo num céu claro e sem nuvens, tendo como única companhia o peso morto da sua motocicleta de quase setenta anos de idade.

— Na próxima vez em que você tiver uma ideia brilhante para as férias, Devlin ― resmungou enquanto começava a empurrar a moto pela estrada ―, poupe-se do trabalho e limite-se a se internar no asilo para idiotas terminais mais próximo.

Sob as atuais circunstâncias, era difícil lembrar-se de por que aquela viagem lhe parecera ser uma ideia tão boa, quando a iniciara. Nos últimos oito anos, ele havia escrito três bem-sucedidos livros sobre crimes reais. Um mês atrás, terminara o quarto livro e tanto seu editor como seu empresário asseguraram-lhe que o último fora o seu melhor trabalho até aquele momento, certamente destinado a ir direto para a lista dos mais vendidos do jornal New York Times. Ele gostaria de poder compartilhar o entusiasmo de ambos, mas depois de passar dois anos aprofundando-se na loucura que levara uma mulher a matar os próprios filhos em nome do Senhor, não se sentia particularmente bem sobre o que fazia para ganhar a vida. Na verdade, não estava sentindo-se particularmente bem sobre...

 

                                                                               Dallas Schuze 

 

 

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