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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASAMENTO DE HESTER / Paula Marshall
O CASAMENTO DE HESTER / Paula Marshall

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                   PRÓLOGO

Case-se com uma dama, pensou Tom.

Bem, Hester Waring é uma dama, embora não vá muito longe, se cair na mais profunda miséria. Porém, dama alguma de primeira viagem iria querer se casar comigo. Ela é sensível, esperta também, a julgar pelo jeito engenhoso com o qual me responde quando a provoco. Quando a entrevistei, julguei que tinha capacidade. Sim, ela dará uma excelente dona de casa, e uma esposa que saberia para que serve cada coisa, o garfo certo a usar, o que dizer e fazer. E uma idéia!

Porém, pensar em ir para cama com qualquer homem, espe­cialmente comigo, faria com que saísse em disparada como uma lebre. Quase virou e fugiu quando me viu hoje, embora mostrasse um ar corajoso. Aquele seu pai tenebroso deve ter lhe enchido a cabeça de bobagens. A julgar pela maneira como se comporta, fica apavorada diante de qualquer homem que encontre pela frente.

Um lento sorriso apareceu em seus lábios. Bem, pensou Tom, conheço um truque ou dois, e um deles pode muito bem arrastar Hester Waring para um lugar que ela nunca imaginou!

 

 

 

 

                         CAPÍTULO I

Sídnei, Nova Gales do Sul, 1812

_Uma coisa é certa - disse Tom Dilhor­ne, com um sorriso divertido. - Se eu propuser que Hester Waring seja a nova professora do jardim­ de infância da Escola Governador Macquarie, ninguém irá me acu­sar de ter fins escusos em mente. Você a viu ultimamente? Mais parece um ratinho estropiado. Uma alma penada.

_Oh, todos conhecem seu gosto por louras exuberantes _ disse o dr. Alan Kerr _ , e Hester Waring está longe de ser assim.

Haviam acabado de jantar, como faziam habitualmente todo fim de semana, na esplêndida mansão dos Kerrs, com vista para o porto.

_O problema _ ele continuou _ é que, embora ela seja a única candidata, ninguém no Conselho realmente deseja indicá-la.

_Ninguém, a não ser você _ retrucou Sarah, estendendo a ele o mais novo cidadão de Sidnei, John Kerr Junior, para que o segurasse.

_Verdade _ murmurou Tom, tomando o pequeno menino no colo, com cuidado para não amassar seu belo casaco.

Finalmente, Tom Dilhorne fora aceito no rol das pessoas res­peitáveis. Não mais usava as roupas rústicas de um emancipista, como eram chamados os ex-condenados degredados da Inglaterra, que tinham vindo povoar a nova colônia e que tinham sido muito úteis, naquele tempo. Homens e mulheres livres que haviam apor­tado em Nova Gales do Sul, oficiais do governo, soldados, mari­nheiros ou outros emigrantes voluntários que habitavam a mais nova possessão inglesa, eram usualmente chamados de exclusivos.

Os exclusivos desprezavam e ignoravam os emancipistas e não os reconheciam corno parte da sociedade. O governador Macquarie vinha desenvolvendo esforços para demovê-los de tais preconceitos e trazer os emancipistas para a vida oficial da colônia. Tom podia ser o homem mais rico de Sidnei, mas permanecia à margem do convívio social, como um pária, a despeito de Macquarie tê-lo in­dicado para o Conselho da Escola. A divisão entre os dois grupos era profunda. Verdade fosse dita, o sucesso de Tom só fizera au­mentar essa barreira.

O assunto Hester Waring continuou a dominar a conversação.

_Ela realmente precisa do emprego _ disse Sarah, após um instante de reflexão. _ O pai, Fred, embora fosse um dos mais destacados exclusivos em razão de sua origem nobre, vivia jogando e se afundou na bebida até chegar ao fundo do poço e morrer. Não deixou nada para a filha, você sabia?

Nada, a não ser dividas _ retrucou Tom, com secura, pe­gando o lenço imaculado e limpando o leite que o afilhado regur­gitara sobre ele, com um suspiro de desgosto que provocou risos nos Kerrs.

_Oh, podem rir _ disse, também sorrindo_ , mas um homem talentoso deve ser capaz de sair-se bem de qualquer situação.. mesmo que tenha em suas mãos um bebê vazando _ emendou depressa. O pequeno John acabara de demarcar seu território, urinando na calça nova de Tom.

Seguiu-se um rebuliço, e Hester foi temporariamente esquecida. Somente depois de Sarah ter levado John para a cama, a conversa continuou. E, desta vez, o assunto derivou para um tema que, poucos anos atrás seria impossível de se abordar.

Tom havia acabado de limpar a calça molhada. Em um tom cínico, comentou:

_Uma das vantagens de minhas antigas roupas de bandido era não haver motivos para lamentar os pecados que fossem co­metidos com elas. Ou sobre elas.

_Pena, pois você estava muito elegante, hoje disse Alan.

_Estou praticando.

_Para quê?

_Agora que o governador me colocou no Conselho da Escola - disse Tom, pegando a taça de vinho que o amigo lhe oferecia - ,      está pensando em fazer de mim um magistrado. Você também - acrescentou. - Ele me pediu para que lhe falasse a respeito.

_Oh, que maravilha! _ exclamou Sarah. _ Você será o pri­meiro emancipista a fazer parte da Justiça de Sídnei.

_Aí é que está o problema. Existem aqueles que pensam que ex-condenados, como AIan e eu, não têm o direito de estar no Tribunal.

_Bem, se o governador quer que sejamos juizes, certamente o seremos, a longo prazo, se não puder ser em breve. _ Referia-se ao fato de que os poderes do governador eram praticamente ili­mitados, em razão da distância entre a Inglaterra e o governo. Na verdade, seus decretos poderiam ser revogados, mas somente depois de transcorridos meses.

_E cedo ainda para isso _ retrucou Tom. _ Tenho muito a fazer no Conselho da Escola. Deixe que eu me saia bem por lá e então passarei ao próximo desafio. Melhor que seja a longo prazo.

_ Fred Waring deve estar se revirando no túmulo com a idéia de você se tornar um magistrado! _ exclamou Sarah, caindo na gargalhada.

_Tem razão, e isso me faz lembrar de sua filha, de novo:

Confio em você, Sarah. Quero que me diga que qualidades eu deveria buscar em uma professora.

_Paciência _ disse Sarah, com um sorriso. _ A habilidade de ensinar o ABC, desenhar coisas simples, e passar a eles um pouco de História, que lhes mostre a velha Inglaterra.

_E, eu. também acho. Se ela tiver condições de fazer isso, então poderia ser a preceptora, isso se o Conselho for justo e lhe der ao menos uma chance. O problema é que Fred fez muitos inimigos.

_Não é culpa dela, pobre garota _ disseram, ao mesmo tempo, Alan e Sarah.

_A moça, com certeza, precisa desesperadamente de dinheiro _acrescentou Sarah. _ Por que eles não a querem, excluindo o problema com Fred?

_Acham que tem um ar estranho e é muito retraída. E não é forte o suficiente para o posto. Não quero condenar a pobre criatura sem mais nem menos, a despeito de Fred não gostar de mim.

Não gostar? Odiar seria a palavra correta, pensou Alan.

Tom pôs-se a caminhar de um lado para o outro, falando como se pensasse alto.

_Robert Jardine me disse, em confidência, que ela está bem pior do que parece, bem abaixo da linha de uma pobreza aceitável. Que mal pode pagar por uma refeição decente e é orgulhosa como o demônio, embora esteja vivendo no limite da Inanição e da penúria. Fred não lhe deixou nem um centavo sequer.

_A coisa é feia assim? _ Os Kerr se entreolharam. _ Então, você pretende se assegurar de que eles a indiquem para o emprego, é isso?

Tom concordou. E, não pela primeira vez, um pensamento cru­zou o pensamento de Alan. Seu amigo era uma criatura engana­dora. A despeito de sua aparência terna, quase bonita, com seus cabelos de um louro cor de areia e seus brilhantes olhos azuis, Tom era um dos mais perigosos homens que Alan já conhecera. E certamente o mais esperto e o mais maquiavélico.

_Há um outro problema, Tom. Acho que a srta. Waring ficará com medo quando souber que você faz parte do Conselho.

_Certamente que não! _ exclamou Tom, sua intuição o abandonando por um instante. Nunca guardava rancores. Não pagava a pena. E Fred não passara de um provocador.

_Temo que Fred tenha repetido inúmeras vezes a Hester que demônio você é, Tom _ disse Sarah. _ Você sabe os conceitos exagerados que ele tinha de si mesmo e, realmente, nascem de uma boa família. Pobre Hester! Foi educada como uma dama, ainda que, com a ruína de Fred, não tivesse dinheiro para sustentar tal papel. Espero realmente que você possa ajudá-la.

_Oh, sim, porém pode ser difícil. Depende um pouco de Hester também, você sabe. É diflcil querer fazer as coisas certas para aqueles que não querem ou não podem ajudar a si próprios. Con­tudo, não gosto de pensar na garota morrendo de fome.

E assim era de fato. Todos os três, depois de comerem bem, ro­deados de conforto, para não dizer de luxo, sentiam uma pontada de culpa em pensar na pobre Hester Waring, à beira da inanição. Com a esperança de que Tom pudesse fazer algo por ela antes que isso acontecesse, o que parecia inevitável, passaram a outro assunto.

 

Chegou o domingo seguinte, o único dia da semana em que Sidnei repousava em sossego. O sol de meados de outubro já co­meçava a trazer o calor do verão.

De uni dos lados da cidade ficava o mar sem fim. Por ali tinham chegado todos os habitantes de origem britânica dessa ilha-conti­nente, quer por livre vontade ou não. Do outro lado, quilômetros de vegetação, até onde a vista podia alcançar, a maior parte jamais cruzada ou explorada pelos brancos. Selvagem e inóspita, conti­nuava ainda a ser o lar dos aborígines, daqueles não haviam tro­cado o interior do pais para vir a Sidnei e viver nus nas ruas, a mendigar na terra que uma vez fora sua. Estes eram olhados apenas como objetos de passageiro interesse, tanto quanto os ani­mais selvagens, cangurus e outros marsupiais estranhos que va­gavam pela cidade.

Erguer os olhos era ver as Montanhas Azuis, indistintas a dis­tância, separando a colônia do resto do vasto continente. Dizia a lenda que a liberdade e a China ficavam além delas. Quanto à China, ninguém realmente tinha dúvidas. Porém, com respeito à liberdade, nenhum daqueles que escapara de Sidnei em direção à montanha havia retornado para contar se a liberdade, ou qual­quer outra coisa de valor, podia ser encontrada além dos maciços.

Hester Waring entrou na Igreja de São Felipe, para assistir aos ofícios religiosos da manhã.

Essa era uma das poucas vezes em que voltava a se reunir à sociedade da qual um dia fizera parte. Durante a missa, conseguia esquecer, por algum tempo, sua infeliz situação e a fome que a martirizava permanentemente.

Hoje, iria oferecer a Deus, ou qualquer mie fosse o poder que regulava este mundo cruel, uma pequena prece para que a carta que enviara a Robert Jardine, secretário da escola e de meia dúzia de outros Conselhos, pudesse trazer a ela algum alivio a seu sofrimento.

Ela o encontrara na rua York no dia anterior. Ele fora gentil, embora naquele seu jeito empertigado e formal, e lhe havia dado uma pequena esperança. Pequena, muito pequena. Mesmo assim, Hester se agarrara a ela com todas as suas forças, tentando não demonstrar quanto dependia disso. E se afastara, de cabeça er­guida, ainda que seu estômago roncasse de vazio.

Jardine não se deixara enganar pela atitude corajosa, ainda que patética, da moça. Era dolorosamente óbvio a penúria de Hester. Havia tentado influenciar Godfrey Burrell em seu fa­vor, mas não ousara pressioná-lo. Godfrey poderia simplesmen­te escapulir na direção oposta e mandar a garota para os diabos, definitivamente.

Também informara a Hester que Tom Dilhorne seria um dos membros do Conselho a entrevistá-la. Jardine não partilhava do ponto de vista de Fred Waring sobre Dilhorne e, para tranqüiliza-la, dissera que Tom, diferentemente dos outros, havia perdoado as dividas de Fred, quando este morrera, ao invés de cobrá-la da filha, que não tinha um vintém.

Hester o fitara friamente.

_ Homem detestável, esse _ havia dito. _ Fez tudo a seu alcance para ferir meu pai. Papai me contou que ninguém estava a salvo de suas maquinações, fosse homem, fosse mulher.

Jardine havia dado de ombros, antes de se afastar. Não havia porque contar a ela que estava errada quanto ao comportamento de Dilhorne com relação a seu pai ou quanto a mulheres. Ela não iria mesmo acreditar. Restava confiar que, para seu próprio bem, ela não arruinasse sua apresentação ante o Conselho.

Hester deixou a igreja, alimentando a esperança de que sua prece seria atendida. Lá fora, sob a luz brilhante do sol, caminhou silenciosa entre os fiéis que tagarelavam, cumprimentando-os li­geiramente. Percebeu os olhares estranhos que lhe dirigiam, pa­reciam surpresos que ela ainda estivesse viva.

Ao chegar ao portão da igreja, Lucy Wright, amiga de longa data, aproximou-se.

_ Olá, Hesterl _ aclamou. _ Senti sua falta no domingo passado. Você está bem? Não me parece _ ela emendou, em tom de dúvida.

Hester resistiu à tentação de dizer, honesta e cruamente, que não sentia bem e que qualquer idiota poderia perceber isso. Ao invés disso, retrucou com suavidade:

_ Tive uma febre na semana passada que me impediu de com­parecer à igreja.

_ Oh, sinto muito, Hester Está praticamente recuperada ago­ra, não é?

A aparência de Lucy era esplêndida, e suas roupas elegantes contribuíam para que Hester se sentisse ainda mais envergonhada e deprimida.

_ Sim, praticamente _ respondeu, não se permitindo talar de sua indisposição ou de suas condições de penúria. Tinha certeza de que Lucy, muito embora sua gentileza, não queria realmente ouvir nenhuma daquelas coisas óbvias. Também ti­nha plena consciência de que o marido de Lucy, o tenente Frank Wright, tirava o relógio do bolso do colete, olhando as horas ostensivamente, como a dizer à esposa que ela já falara tempo bastante com a amiga.

Bem, não seria ela, Hester, quem iria dar atenção a Frank.

Lucy raramente o fazia, sempre com suas maneiras extrovertidas, segura da admiração do marido, mesmo quando ocasionalmente o exasperava.

_ Como está o bebê, Lucy? _ perguntou. _ Espero que esteja com saúde. _ Seu interesse era genuíno. Adorava crianças.

A atenção de Lucy, sempre inclinada a se dispersar, voltou-se para ela. Seu rosto se iluminou. Começou a falar com excitação dos encantos da menina, de como estava avançada para a idade, nunca houvera um bebê como aquele. Ao mesmo tempo, evitava olhar de frente para Mester. Quanto mais a examinava, pior ela lhe parecia.

Por quê, em nome dos céus, ela estava usando aquele vestido preto fora de moda, que parecia ter sido feito, e de forma bastante amadora, de uma das roupas velhas da finada sra. Waring? Com certeza Hester possuía coisa mais adequada para comparecer à igreja! Já era ruim que ela houvesse se esquivado do convívio da sociedade desde a morte de seu pai. Um casamento razoável era tudo o que Hester precisava, mas quem fria querer desposar um tal espantalho?

Lucy pensou em dar alguns conselhos à amiga, como comprar um vestido melhor, por exemplo, ou um chapéu mais conveniente mas decidiu ficar calada. Quase podia sentir a impaciência de Frank só pelo fato de estar conversando com Hester. O marido não era um homem sem coração, mas não aprovava a amizade da esposa com a filha do falecido Fred Waring, que não tinha nem aparência, presença, nem mesmo dinheiro para recomenda-la.

Ao lado de Frank, o capitão Jack Cameron, que havia compa­recido à igreja apenas por dever para com seus homens do 73º Regimento, também começava a ficar impaciente. Certamente ti­nha coisas melhores a fazer do que ficar em pé, esperando, en­quanto Lucy Wright perdia tempo com Hester Waring. A moça, mesmo com a escassez de mulheres casadoiras na colônia, não tinha quaisquer atrativos aos olhos de Jack, ou aos de qualquer outro homem.

A paciência de Frank finalmente esgotou-se, logo quando Lucy estava a ponto de convidar Hester para o almoço. Aproximou-se e tomou a esposa pelo braço.

_ Venha, minha querida _ disse. _ O almoço vai esfriar, e Jack e eu temos um compromisso esta tarde. Vai nos desculpar, srta. Waring, tenho certeza. _ O ólhar que dirigiu à moça foi de uma indiferença tão gritante, que ela baixou timidamente os olhos, evitando encará-lo.

A Mester restou um único consolo. Felizmente o capitão Parker, subordinado de Frank, não estava ali para vê-la na presente con­dição aflitiva. Tinha um interesse pelo rapaz desde muito tempo.

Estendeu a mão para tocar Lucy por um momento antes de se afastar. Sentia-se grata até mesmo por poder esboçar esse simples gesto, pobre contato com a vida que uma vez havia conhecido. Por nada no mundo falaria à amiga de suas verdadeiras condições, de como precisava urgentemente de uma boa refeição, de como estava desesperada por companhia. Em sua pobreza, aflorara em seu íntimo um forte senso de orgulho que, em tempos mais felizes, não sabia que possuía.

_ Beije o bebê por mim _ disse, em sua voz baixa e educada, que não espelhava seus reais sentimentos _ Preciso ir, meu al­moço também está esfriando.

Que mentira! Deixar que Lucy soubesse a verdade que a es­perava era impossível. Mentir era inevitável.

Uma dolorosa emoção de abandono a tomou, ao ver Lucy e Frank se afastarem. E se tornou ainda mais aguda quando ouviu, trazido pela brisa leve da primavera, o comentário rude de Jack Cameron, ao se juntar a eles:

_ Pensei que não iriam conseguir se livrar daquela cria hor­rorosa do Fred Waring. Ah-ah-ah!

Cria horrorosa do Fred Waring! As orelhas de Hester ficaram em brasas. Seu orgulho, contudo, impediu-a de deixar as lágrimas rolarem. Melhor ficar sozinha do que exposta a tais insultos. Apres­sou o passo, disposta a afastar-se de todos. Tomou a direção oposta a sua residência como se assim pudesse evitar a piedade e o menosprezo das pessoas.

 

A casa da sra. Cooke, onde Hester morava, era uma construção de tijolos de dois andares, em um beco que saia da rua da Ponte. Seu pai havia alugado o andar superior da ara. Cooke, viúva de um oficial do exército que havia preferido permanecer na Nova Gales do Sul em vez de retomar à Inglaterra.

Assoberbada de dívidas após a morte do pai, Hester havia pe­dido para ocupar apenas um quarto e preparar as próprias refei­ções. Tinha pouquíssimo dinheiro vivo, a maior parte conseguida com a venda das últimas Jóias da mãe que haviam escapado dos dedos ávidos de Fred Waring. Ele pusera fora tudo que possuía

para continuar bebendo e jogando, na vã esperança de recuperar a fortuna perdida.

Hester continuou a pensar no pai enquanto subia os degraus da varanda. Abriu a porta da frente e sentiu no ambiente o cheiro gostoso de comida. Sua boca encheu-se de água que ela tentou conter, em vão.

_ Oh, aí está você, srta. Waring _ disse a sra. Cooke, saindo de sua pequena cozinha. _ Pensei mesmo tê-la ouvido. Havia muita gente na igreja, hoje?

_ Sim _ retrucou Hester, tirando o chapéu. _ A sra. Wright estava lá. Disse que seu bebê está ótimo. _ Encaminhou-se de­pressa para a escada, esperando que a ara. Cooke não a convidasse para o almoço. Com a fome que a consumia, não teria forças para recusar. Porém não aceitaria a caridade da sra. Cooke. Não, nunca!

Com um suspiro, a viúva observou-a desaparecer rapidamente para dentro do quarto. Já havia decidido oferecer a ela um pouco do ensopado. Afinal, Hester parecia extremamente abatida nos últimos dias. Não vinha se alimentando direito. Pena que seus refinados amigos nunca se lembrassem de convidá-la para as re­feições ou nem mesmo para um simples lanche.

Sentada na cama, em seu quarto, Mester ficou a imaginar o que diria a Lucy, se a amiga a houvesse convidado para o almoço. Julgara que, por um instante, Lucy estivera a um passo de fazê-lo. Frank, porém, logo havia posto um ponto fina] na intenção.

Bem, ela não a convidara. Hester havia aprendido a não perder tempo pensando em possibilidades remotas, principalmente aque­las que estavam fadadas a não acontecer. Sua refeição seria uma fatia de pão velho com um pouco de manteiga rançosa que com­prara barato. E um bocado de maçã. Para beber, água.

Havia terminado de passar a manteiga no pão quando a sra. Cooke meteu a cabeça no vão da poda.

_ Fiz um pouco de ensopado, hoje, srta. Waring. Fiquei pen­sando se você poderia me ajudar a acabar com ele.

_ Oh, que pena... _ Hester foi tão amável quanto conseguiu, escondendo o pão e a maçã debaixo de uma toalha velha. _ Acabei de comer, mas foi multa gentileza sua pensar em mim. Uma outra vez, quem sabe.

A sra. Cooke desceu a escada, aborrecida. Julgara que a moça não teria coragem de recusar um convite tão tentador. Sabia per­feitamente qual devia ser o almoço de Mester. Uma migalha! En­fim, tinha cumprido seu dever de boa cristã. Pena que nada que se fizesse conseguisse agradar a algumas pessoas.

Para Hester, entretanto, não havia outra alternativa. O que estava em jogo era mais do que orgulho. Uma vez aceita a oferta caridosa da ara. Cooke, onde isso iria parar? Mester não desejava defrontar-se com ressentimentos amargos, talvez até mesmo re­ceber um ultimato da ara. Cooper para deixar a casa.

Se era uma injustiça pensar assim, não queria saber e preferia não descobrir.

Acabou de comer e estirou-se na cama, cansada até os ossos. Tentou dormir, mas as lembranças do passado vieram assombrá-la. Normalmente, tentava esquecer. Não gostava de relembrar como e por quê os Warings haviam sido exilados da Inglaterra, até terminarem ali, sozinhos e sem um tostão, perdidos na fronteira do mais recente domínio do. império britânico.

Seu pai se arruinam na bebida, no jogo e fazendo investimentos insensatos. Tudo se fora: suas terras e a casa que a família havia possuído por cerca de trezentos anos.

Os parentes conseguiram para ele a oportunidade de iniciar uma nova vida. Despachado para uma colônia penal, distante de tudo que conhecia, seu único comentário para a mulher e a filha; o filho, Rowland, havia morrido na Guerra da Península, foi típico de seu inveterado otimismo.

_ Um novo começo, minhas queridas, em um novo país. Ainda faremos fortuna!

A dura realidade da Nova Gales do Sul, onde desembarcaram, foi chocante para todos. A sra. Waring morreu prematuramente de desgosto, logo depois de se estabelecerem em Sidnei. Depois que ela se foi, ninguém jamais soube do sofrimento de Hester durante os últimos anos de Fred. Escorregando lentamente para o túmulo, seu pai atirou-se de volta à bebida, sua constante companhia, até a morte. Em uma manhã, Mester o encontrou ao pé da escada, duro e frio, com uma garrafa vazia de uísque ainda presa entre seus dedos.

O pior, Hester recordou dolorosamente, era que até o último dia, ele ainda conservara o orgulho de sua origem nobre, a despeito de ter perdido tudo. Escrevente do escritório do governador, por indicação de parentes, fora demitido por incompetência. Aquele que um dia fora um senhor de terras nutria um ressentimento profundo para com os ricos e bem-sucedidos Emancipistas, que ostentavam a riqueza que ele julgava ser sua por direito.

Mais do que todos, Fred odiava Tom Dilhorne, que fizera uma fortuna incalculável. Um dia, indo a uma reunião de um pequeno clube do qual era sócio, surpreendeu-se ao encontrar Tom em meio à melhor sociedade.

_ O que aquele bandido está fazendo aqui? _ perguntou.

O    presidente, Godfrey Hurrell, do seleto grupo dos exclusivos, empresário de alguma riqueza, e com o desejo de tomar-se ainda mais rico, desviou o olhar diante do rosto vermelho de raiva de Waring, que estava, como de costume, pouco sóbrio. Tom acomo­dou-se na cadeira e encarou Fred diretamente nos olhos, com um misto de perplexidade e insolência.

_O sr. Dilhorne está aqui a convite da comissão _ disse Burrell, empertigado. _ É um homem de importância, amigo do governador Macquarie e, como tal, nós o convidamos para fazer parte do clube.

Ele, na verdade, deveria ter acrescentado que, naquele clube, todos estavam dispostos a tolerar Dilhorne, na esperança de po­derem partilhar de sua fortuna sempre crescente. Afinal, era uma pena desperdiçar a oportunidade de lucros.

Arrogante e tolo, Fred exclamou:

_Você convidou esse... condenado... para fazer parte do clube? Pode me dizer, por favor, por que não fui consultado? _ Fez-se um silêncio desagradável. _ Não gosto de me sentar com a escória trazida acorrentada para cá _ disse, por fim. _ Por mais rica que tenha conseguido ficar e por mais que alguns de vocês possam desejar arrancar dinheiro dela. Ou ele sai ou saio eu.

Tom afundou-se ainda mais na cadeira. Sempre fora insensível a insultos. Olhou para Burrell, então para Fred, e murmurou:

_ Não tenho a intenção de sair.

A resposta de Burrell foi encarar friamente o pobre Fred.

_ E eu não tenho a intenção de pedir ao sr. Dilhorne que saia e acredito que a comissão tenha a mesma opinião. Ele está aqui a nosso convite. Peço que mude de idéia, Waring, e seja educado com ele. De outra forma, é você quem deve sair.

Fred tornou-se lívido. Havia se colocado em uma posição para a qual não havia saída. Em seus primeiros anos na colônia, havia se tomado um grande amigo de Burrell e de vários outros membros do clube. Porém suas bebedeiras, as perdas no jogo, sua incapa­cidade de quitar as dívidas, associada a sua decadência física e moral e sua desabrida liberdade sexual, haviam feito com que perdesse a maioria dos amigos que um dia conquistara.

_ Eu disse que não me sentaria com Dilhorne _ retrucou _ , e pretendo manter minha palavra.

Saiu cambaleando da sala, indo terminar o dia no inferninho de madame Phoebe, uma casa noturna de jogos. Mais tarde, fora trazido, bêbado até a inconsciência, e jogado na soleira da porta da sra. Cooke. Mester o arrastara penosamente pela escada, lim­para-lhe as roupas emporcalhadas e, sabe-se lá como, colocara-o na cama.

Muito depois, ele lhe contou, em detalhes, como Dilhorne li­quidara com ele no clube, assim como nos negócios. Na verdade, havia perdido o cargo de escrevente por causa de sua falta de atenção para com seus deveres, mas escolheu culpar Tom ao invés de atribuir sua demissão à própria incompetência. Nunca mais entrou no clube: era seu último vínculo com a respeitabilidade. Sua própria tolice cortara aqueles laços.

Além disso, havia suas dívidas de jogo. Emprestara dinheiro de um amigo, que vendera as promissórias a Tom. Outros débitos tiveram o mesmo destino. Fred descobriu-se devendo urna consi­derável soma para o homem que mais detestava no mundo.

Mesmo antes de sua discussão com os membros do clube, em confidências à filha, inúmeras vezes Fred acusara Tom de ser o autor de sua desgraça. E em linguagem tão veemente que Mester estremecera de pavor. Na decadência que se seguiu, até a ruína, culpou-o injustamente por tudo que lhe acontecia. Via-o como o mentor de sua desgraça, e ensinou Mester a temê-lo como ao pró­prio demônio.

Hester levantou-se da cama e olhou pela janela. Suas recordações sempre lhe traziam à mente o pai como o homem em que se tomara na colônia. Dificilmente conseguia relembrar de como ele era, antes de chegar a Sidnei. De uma forma vaga, pareceu recordar-se de um sujeito grande e alegre, carinhoso para com ela, embora sua verda­deira afeição fosse sempre centrada em seu irmão.

E sua mãe? Parecia, de alguma forma, que nunca tivera mãe, de fato. Assim que haviam chegado a Sídnei, a sra. Waring entrara em um processo de depressão que terminou com sua morte prematura.

Para ser justa com a memória da falecida, a cidade na qual haviam desembarcado havia oito anos, depois de unia longa e miserável viagem por mar, era insignificante. A maior parte das casas era de troncos de madeira. Vir parar ali devia ter parecido à mãe como chegar a um ao inferno, povoado de bandidos, animais estranhos e selvagens, particularmente depois de viver na bela casa de campo, em Kent.

Mester havia escrito ao tio, sir John Saville, contando da morte da mãe e, depois, da do pai. Nunca recebera resposta. Era dolorosamente evidente que sir John havia lavado as mãos, esquecendo esse ramo da família. Tinha que encarar a realidade. Via-se presa a Sidnei pelo resto da vida. Porém, que tipo de vida? O que iria fazer quando acabassem as míseras moedas que guardava? E se não conseguisse o cargo de professora na nova escola?

A vista se lhe turvou. Tudo desapareceu. Mester fechou os olhos, estremecendo diante de tal possibilidade. Se não conseguisse aque­le emprego, sabia que havia apenas um destino a sua espera. O mesmo destino miserável das filhas dos menos favorecidos. As ruas, para vender a única coisa que ainda possuía, seu corpo.

Quanto alguém iria pagar por aquilo? Mester não tinha ilusões sobre si mesma. Uma pobre criatura como ela iria arrancar apenas centavos de soldados rasos, que aceitavam qualquer companhia, desde que fosse mulher e disponível. A menos que madame Phoebe julgasse que poderia fazer alguma coisa e a levasse para seu bordel.

Não devia pensar no passado. O bom senso dizia que era preciso pensar apenas no presente. Devia sentar-se e planejar o que dizer ao conselho da escola. Tinha de persuadir seus membros para que não dessem ouvidos a Tom Dilhorne. Assim, ele não poderia ar­ruiná-la, como havia arruinado a seu pai.

 

_ Dilhorne! Dilhorne, venha cá, seu maldito!

Tom Dilhorne caminhava sob o sol quente do meio-dia, pela calçada do quartel, a caminho das cocheiras. Ignorou os gritos atrás de si e continuou andando.

O homem que o chamava era Jack Cameron, o mesmo que recentemente atormentara Mester com seus comentários mordazes. Fazia parte de um grupo de oficiais do 73º Regimento, guarnição que fazia a proteção de Sídnei e dos distritos da redondeza, na Nova Gales do Sul.

O oficial adiantou-se e pegou Tom pelo ombro, tentando fazê-lo voltar-se. Tarefa difícil, pois era mais baixo e mais magro que Tom, um dos homens mais robustos da colônia.

_ Dilhorne. Não pode responder quando um cavalheiro fala com você?

_ Um cavalheiro, não me diga! Então, é isso que você é? _ resmungou Tom, livrando-se da mão que o segurava e baixando a cabeça para encarar, Jack do alto de sua estatura.

Sua mal disfarçada insolência não passou despercebida a .Jack, que não entendera as palavras exatas de Tom, mas captara seu sentido. Sua fisionomia fechada enfureceu-se ainda mais. Nenhum maldito ex-condenado iria falar com ele assim.

_ Maldito seja, seu condenado! Se já não fosse suficientemente ruim ser mandado para os confins da terra, ainda temos que agüen­tar a insolência dos velhacos que somos obrigados a proteger! _ Disfarçadamente, esquadrinhou Tom de alto a baixo, notando-lhe as roupas caras e elegantes e acrescentou: _ Mesmo querendo macaquear os ricos, Dilhorne, você ainda se parece com a escória à qual realmente pertence!

O semblante de Tom continuou impassível diante daqueles insultos.

_ Você queria falar comigo? _ perguntou, com uma voz pausada. Conseguia, sem nem sequer tentar, parecer vagamente ameaçador.

Jack disse, com rudeza:

_ Disseram-me que você tem um cavalo para vender. Quanto quer por ele? E não tente me enganar, veja lá.

_ Nem sonhe com isso _ murmurou Tom, os brilhantes olhos azuis fixou nos olhos negros de Jack. _ Que eu tinha, é certo. Apenas, não tenho mais. _ Com um ar quase distraído, limpou o ombro de seu elegante casaco azul escuro, por onde Jack o se­guram. Porém, a insinuação de perigo que o rodeava como uma aura estava em cada gesto, em tudo que ele fazia.

Era mentira, e o oficial sabia disso. Tom tinha um cavalo para vender, mas no momento em que Jack o interpelara a respeito, resolvera retirá-lo do mercado. Conhecia a reputação de Jack com a relação a cães, cavalos e mulheres. Não tinha a intenção de permitir que seu belo garanhão preto fosse maltratado por tal criatura. Melhor guardá-lo.

A raiva de Jack explodiu.

_ Você sabe muito bem que tem um cavalo à venda, Dilhorne. Ramsey me disse isso, não disse, Ramsey?

O capitão Patrick Ramsey, que não sabia a qual dos dois homens detestava mais, Jack por ser um cafajeste e, Dilhorne por estar abaixo da consideração de um cavalheiro, deu de ombros e falou, com despreocupação:

_ Pensei ter ouvido.

_ Aí está, veja só. Um boato _ retrucou Tom, em tom de caçoada. _ Sinto muito se você se deixou iludir por isso, capitão... Cameron, é esse seu nome?

_ Você sabe muito bem quem sou eu _ esbravejou Jack, tomado de fúria.

_ Parece que não fomos apresentados _ comentou Tom.

Sua audácia divertiu a todos os oficiais. Menos a Jack. A simples idéia de um oficial do Reino Unido, um cavalheiro, ser apresentado a um sujeito como Tom Dilhorne o deixava fora de si.

_ Se isso é tudo, Cameron, você vai me permitir, mas preciso ir embora. _ Suas maneiras agora eram de uma frieza educada, o que atiçou a fúria de Jack.

_ Sr. Cameron, é como deve me tratar, Dilhorne _ gritou.

_ Bom dia, capitão Cameron. Cavalheiros. _ Voltou-se e saiu andando, após um curto cumprimento de cabeça, na direção dele e de seus companheiros.

Jack pôs-se a segui-lo. Foi contido por Pat Ramsey.

_ Que droga, Jack, não faça isso! _ exclamou Ramsey. _ Por que lhe dar a oportunidade de ridicularizá-lo? Além do mais, ele é esperto como o demônio. Você já devia saber disso.

_ Tire suas mãos de cima de mim, Ramsey! _ esbravejou Jack. _ Você sabe muito bem que ele tem um cavalo para vender e que está insultando-me ao se recusar a negociar comigo.

_ O cavalo é dele, para fazer o que bem lhe aprouver _ disse Pat, com ponderação. _ Por que lhe dar o prazer que acabar com você na frente de todos?

_ Porque esses... esses emancipistas, e Dilhorne em parti­cular, estão ficando muito cheios de si, desde que Macquarie tomou-se governador. Quem haveria de pensar que ele, logo ele, haveria de se aproximar desses bandidos? Quer levá-los para cima, colocá-los em pé de igualdade com os cavalheiros. Vai nomeá-los magistrados ainda. Dilhorne e aquele sujeitinho, o Will French, você vai ver.

_ Não acredito nisso, Jack _ retrucou Pat, calmamente. _ Nem mesmo Macquarie teria coragem de transformar Dilhorne em um juiz.

Havia ocasiões em que Pat sentia um misto de admiração e inveja daquele proscrito. Até recentemente, Dilhorne ainda usava as roupas de um ex-condenado. Calça cinzenta ou de um preto

desbotado, chapéu amassado e caído, e um lenço vermelho e branco no pescoço, todo sujo e manchado. Quase um uniforme. Sem dúvida, era a ausência desses trajes que enfurecia Jack. O capitão devia res­sentir-se ao ver um bandido abandonar a marca registrada de sua aparência externa e tentar se passar por um cavalheiro, usando as roupas que distinguiam um exclusivo. Outro problema era que, diziam os rumores, Dilhorne havia feito de si o homem mais rico da colônia.

Pat deu de ombros. Era assunto de Dilhorne, não seu. Mas achava estupidez de Jack deixar o sujeito caçoar dele assim. Con­tudo, Jack sempre fora um tolo de cabeça quente, incapaz de con­trolar seu temperamento.

_ Que acha de um drinque? _ perguntou, com o intuito de aplacar a raiva do companheiro. _ Para esquecer que estamos aqui, metidos neste inferno. Imaginar que voltamos para casa.

_ Tem razão. Pelo menos, assim que chegarmos lá, não teremos que falar com essa escória. Meu sonho é ver aquele cão atrevido gemendo debaixo do chicote de novo, antes de deixarmos Sídnei.

_ Chamou os outros oficiais. _ Venham, vamos sair de debaixo desse sol maldito e fingir que estamos em qualquer outro lugar que não seja aqui, sendo insultados por bandidos!

 

Tom deixou o estábulo, montado em seu garanhão. Olhou de um lado e de outro da rua e notou que os soldados desapareciam na direção da caserna. Bem, pelo menos não estariam ali para ver a direção que ele tomava. Isso iria apenas servir para causar em Cameron um outro ataque de raiva. E tão violento que poderia beirar a apoplexia.

Riu consigo mesmo, bateu o chicote de leve no flanco do cavalo, e partiu em direção do Palácio do Governo, para visitar o gover­nador Macquarie.

No caminho, ao passar por um grupo de homens acorrentados, ergueu o chicote, em resposta ao grito de “Bom dia, Tom”, de um deles. Cumprimentou-os com mais cortesia do que tinha usado para com Jack Cameron.

Ele mesmo havia sido um trabalhador assim, um dia. E, se a sorte lhe sorrira e hoje era um homem rico, bem vestido, no lombo de um cavalo puro-sangue, não iria se permitir esquecer daquilo que fora

Inesperadamente, e sem nenhuma razão, percebeu-se pen­sando em Mester Waring e no Conselho da Escola, que se reu­niria no dia seguinte. Ficou a imaginar em como ela devia estar passando. O pensamento fugiu. O mundo dos negócios chamou por ele, de novo.

 

                                   CAPÍTULO II

A duras penas, Hester Waring tentava administrar os últimos tostões que lhe restavam. Ainda faltavam uns poucos dias antes que o Conselho da Escola se reu­nisse para decidir seu destino.

Engolira o orgulho e pedira a sua. Cooke para ajudá-la em seu pequeno negócio. Em troca, ganhava para pagar o aluguel e so­bravam alguns trocados. Ainda não era a ruína total.

A viúva suplementava a ínfima pensão que o marido lhe deixam fazendo camisas, roupas e peças íntimas para homens e mulheres e estava começando a receber mais encomendas do que podia dar conta. Assim que compreendera que Hester falava a sério, passara a ela o trabalho que exigia menos habilidade e também a orientam quanto às costuras mais elaboradas.

Estava começando a ficar preocupada com sua inquilina, que se recusava a aceitar qualquer forma de caridade. Ficaria ainda mais nervosa se soubesse o que estava acontecendo com Hester. Uma falsa euforia, resultado de um estado próximo à inanição, vinha mostrando seus sinais.

Desde que chegara a Sidnei, Hester passam a escutar uma voz interior que lhe dizia coisas horríveis e irreverentes. Também lhe contava os reais motivos que moviam as pessoas, muitas vezes bem diversos daquilo que falavam da boca para fora. Ultimamente, essa voz desenvolvem um hábito desagradável de usar uma lin­guagem bastante inadequada, que aparentemente aprendem com Fred Waring, quando ele estava bêbado, ou no bar de onde Hester freqüentemente o resgatava.

Ela mesma jamais ousara falar assim em voz alta. E nem tinha idéia de onde surgiam aquele modo cínico de enxergar os amigos. Entre divertida e abalada, escutava seu Mentor, como passara a chamar aquela voz, que a aconselhava com freqüência, indicando-lhe o que devia fazer A princípio, tentara expulsá-lo de sua cabeça. Aos poucos, porém, começara a entender que, longe de a estar levando à loucura, aquilo preservava sua sanidade.

Seu Mentor estava, agora mesmo, e de urna maneira desagra­dável, informando que se ela não conseguisse pagar o aluguel ou as contas, mesmo a bondade da si-a. Cooke teria seus limites. Não, sua única salvação era a reunião do conselho da Escola. Era nisso que deveria pensar e em nada mais.

Além disso, poderia não ser prudente chegar para a entrevista em um estado próximo ao colapso. Por isso, nesta tarde que an­tecedia ao compromisso, Hester aceitou o convite da sra. Cooke para o chá na tarde. Com alegria, devorou uma grande fatia de bolo de frutas, depois de a viúva ter comentado, superficialmente, que o fizera dias antes e que Hester lhe faria um favor se o comesse.

 

Hester acordou, no dia seguinte, sentindo febre. 9uebrou o je­jum com um pedaço de pão seco e um pouco da manteiga que a sra. Cooke lhe dera, com o pretexto de que estava sobrando e não deveria ser desperdiçada.

Ao se examinar no espelho quebrado, percebeu que mesmo seu melhor vestido estava bastante desbotado e dificilmente serviria para melhorar sua aparência já tão abatida. Mesmo assim, esfor­çou-se em adotar um ar de vivacidade com o qual pretendia im­pressionar os membros do Conselho.

Todos, cem exceção daquele bicho-papão monstruoso, Dilhorne! Nada que fizesse poderia impressioná-lo. O Mentor de Hester parecia ainda mais vulgar e falante que nunca, naquela manhã. Arrasara com ela e com sua aparência submissa e comportada. Dane-se!, pensou, saindo na gama fina de Sídnei com apenas um xale para protegê-la.

A chuva contribuiu para piorar sua aparência. Os cabelos gru­davam-se a seu rosto. Tentou secá-los com um lenço. Não adiantou em nada.

Ao vê-la, Jardine, o secretário do Conselho, ergueu os olhos para os céus quando ela cruzou a porta dos fundos, como lhe havia instruído. Ficou a imaginar por que motivo a moça não tivera um cuidado um pouquinho maior ao se arrumar para a entrevista. Além disso, não parecia ter condições para fazer qualquer coisa que exigisse energia. Até mesmo tomar conta de crianças pequenas parecia além de suas forças.

_Ah, srta. Waring, vejo que está adiantada. Ótimo, Ótimo, pontualidade é importante _ disse ele, suavemente, procurando esconder seu desgosto. Devia ter dado a ela alguns conselhos.

Jardine sabia que ela era pobre, mas nem mesmo ele poderia imaginar a profunda miséria em que Fred Waring deixara mer­gulhada a filha. E que seus conselhos seriam de pouco uso, pois Hester não teria meios de segui-los.

Com uni gesto cortês, ele a conduziu para unia ante-sala, as pa­redes revestidas com painéis de cedro. Os escritórios do Conselho faziam parte do edifício onde funcionavam os departamentos menos expressivos do Governo, e a ante-sala era bastante grande e bem equipada. Um lugar onde Hester poderia aguardar a reunião com conforto. Ela não viu os outros membros do Conselho, provavelmente devessem utilizar uma outra entrada. Talvez a porta com aquela enorme argola de latão do meio, que dava para a rua George.

A despeito do comentário de aprovação de Jardine, Hester logo percebeu que ter chegado adiantada tinha sido um erro. Assim que o homem se afastou, gentilmente lhe desejando sucesso na entrevista, ela descobriu que sobrava tempo, tempo demais para ficar ali, em agonia, imaginando o que estava por acontecer.

Chegou o momento em que pensou que não havia mais espe­ranças para seu pedido. Que era melhor voltar para casa e pou­par-se da humilhação de ser recusada. Nesse instante, Jardine colocou a cabeça no vão da porta, disse que o conselho estava reunido e que iria recebe-la.

Hester levantou-se e seguiu-o. Deu-se conta de que entrava em uma enorme sala, com uma mesa de carvalho de frente para a porta. Os membros do Conselho estavam sentados em imponentes cadeiras, do outro lado da mesa. Godfrey Burrell, como presidente, ocupava o centro. Havia apenas um único assento vazio. Olhando ao redor, Hester deduziu bem depressa que era o lugar do odioso Dilhorne. Ele não comparecera à reunião, afinal! Sentiu-se tão entontecida de alegria diante dessa ausência que mal conseguiu ouvir Jardine perguntar-lhe o nome.

Como se já não a conhecessem! Tinha plena consciência de que todos em Sídnei sabiam quem era a infeliz filha do bêbado Fred Waring.

Hester acabara de gaguejar o nome, que Jardine escreveu no livro de atas, quando uma porta se abriu, e um homem entrou. Ela não o reconheceu de pronto. O recém-chegado era o retrato da elegância. Não apenas pela roupa talhada com perfeição, mas pela forma esplêndida com que a vestia. Poucas vezes vira alguém tão magnificamente bem trajado. Botões de prata brilhavam em seu colete, em cada um deles um minúsculo diamante. Sim, diamantes, seus olhos fascinados lhe disseram. Tinha em uma das mãos um chapéu de pele de castor, no grito da moda, e, na outra, uma bengala de ébano encimada por um ídolo chinês esculpido em marfim.

_ Minhas escusas, srta. Waring, amigos membros do Conselho, sr. Jardine, mas o Governador me reteve. Pediu-me que lhes trans­mitisse suas desculpas, mas o assunto que tínhamos a discutir era urgente.

Somente quando ele a encarou com seus brilhantes olhos azuis, Hester percebeu que aquela estonteante visão, que também era amigo do Governador, era Tom Dilhorne!

Ficou tão chocada que perdeu o rumo e sentou-se, a imagem da confusão, de queixo caído. A razão pela qual nunca mais o vira pelas ruas de Sídnei, recentemente, não era porque ele desapare­cera, mas sim porque se tornara alguém inteiramente diferente do homem que conhecera.

Tom, do alto de sua cadeira, ao lado do presidente, foi tomado por uma intensa piedade. Se isso era a melhor maneira com que ela podia se apresentar para uma ocasião tão importante, então a moça devia estar bem pior do que Jardine o havia informado. Também sabia o motivo pelo qual ela se tornara violentamente rubra e depois pálida como uma morta quando ele entrara. Mal­disse intimamente o falecido Fred Waring, algo que viria a fazer com crescente freqüência nos meses que estavam por vir.

Consciente de que sua apresentação, nunca muito bri­lhante, estava deteriorando-se rapidamente e beirando à incoe­rência, Hester endireitou os ombros e tentou se recobrar. Godfrey Burrell lhe dirigia a palavra.

_ E, por favor, srta. Waring, quais são seus talentos como educadora, quero dizer, nas áreas mais sérias do ensino?

Um pensamento cruzou a cabeça de Hester: “como se eu fosse ensinar César e Lívia, os imperadores de Roma!». Sua resposta, entretanto, foi delicada.

_ Fui educada pelo tutor do meu irmão e tenho domínio bas­tante bom do Latim e um pouco do Grego.

Essa colocação, feita friamente, pareceu impressionar a todos do Conselho, a exceção do bicho-papão, que perguntou:

_Então, acha que o conhecimento dos clássicos seja útil para a juventude de Sidnei, srta. Waring?

_Essa é uma decisão do Conselho, não minha, sr. Dilhorne _ ela retrucou. _ Se desejarem que eu os introduza ao conheci­mento do amo, amas, assim será!

A demonstração de presença de espírito pareceu divertir o monstro.

_E a matemática, sra. Waring? Como se sai com os algarismos?

_Posso calcular uma porcentagem tão bem como qualquer um, ar. Dilhorne.

_Ah, então você seria uma aquisição muito útil para meu escritório de contabilidade, srta. Waring _ ele redargüiu suavemente. _ Alguns de meus escriturários parecem um pouco inse­guros com relação a porcentagens.

_Pensei que estava pleiteando um lugar para ensinar crianças pequenas, não um emprego em seu escritório _ foi a resposta incisiva e espirituosa de Hester para essa provocação.

_Realmente, mas a competência é sempre apreciada, onde quer que se a encontre, srta. Waring.

Essa troca de “gentilezas» teria ido em frente se Godfrey Burrell não os encarasse, aborrecido. Em um tom severo, perguntou:

_Quanto à educação de crianças, srta. Waring, espero que acredite no velho ditado: “é de pequeno que se torce o pepino”.

Antes que pudesse se conter, Hester, cujo rosto se tomara in­tensamente animado após a breve discussão, saiu-se como uma resposta que, imediatamente, percebeu ser a errada:

_Na verdade, não acredito em castigos, sr. Burrell. Sou de opinião que se obtém muito mais com afeição do que com severidade.

Por alguma razão que ela não conseguiu compreender, Dilhorne pareceu achar sua colocação divertida, se o sorriso que deu a ela fosse indicação de seus reais pensamentos. Que Deus o reduzisse a pó, pensou, praga favorita de seu pai. E suas roupas elegantes também, foi a reação de seu Mentor.

Em um esforço para remendar a situação, que parecia insus­tentável, se a expressão de Robert Jardine queria dizer alguma coisa, ela acrescentou:

_Mas, é claro, espero ser capaz de controlar as crianças, com ou sem o uso de punições físicas.

Tom gostaria de gritar “bravo!” para mais essa mostra de ra­ciocínio rápido; mas a etiqueta ordenava que se contivesse. Con­tudo, não pôde deixar de notar, no íntimo, que a srta. Waring tinha bem mais a mostrai do que aquela sua aparência exterior permitiria supor.

A entrevista prosseguiu. Hester sentiu que dificilmente poderia se sair bem. Novamente foi rude com Godfrey Burrell quando ele anunciou, em um tom machista, que ela não devia esperar que as meninas acompanhassem os passos doa meninos. A seguir, re­bateu Dilhorne quando este lhe fez uma pergunta bastante ra­zoável sobre métodos de ensino para um grupo de crianças de diferentes idades e níveis de instrução.

Estava dolorosamente consciente de que suas maneiras oscila­vam entre mostrar-se servil e sem entusiasmo e desagradavel­mente rude, esta última atitude sempre que notava os olhos sar­cásticos de Tom Dilhorne sobre si. Depois que fizera a infeliz co­locação sobre os castigos, estava claro que a maioria não parecia convencida de sua capacidade de controlar crianças, também.

O    bicho-papão havia inclinado a cabeça para trás e contemplava o teto. Esperava que fizesse bom proveito. Ele, de súbito, baixou o rosto, viu que ela o encarava e, por um aterrador momento, Hester pensou tê-lo visto mandar-lhe uma piscadela de olhos. Devia estar ficando louca! Juntou as mãos que tremiam. E ao fazê-lo, Tom deixou escapar uni suspiro. Notara o estado deplorável de seus dedos miados.

A reunião caminhava para um desfecho. Pela expressão de Jar­dine, pelo ar divertido de Tom Dilhorne, e a julgar pela reação do conselho a suas últimas respostas, Hester temia ter jogado fora sua última chance de evitar a ruína.

O    que era bem pior, se a entrevista não terminasse logo, tinha medo de acabar desmaiando diante de todos. As contorções da fome, cada vez mais e mais fortes, haviam começado a preocupá-la. Estavam se tomando insuportáveis.

Hester ficaria bastante surpresa se soubesse que havia um membro do conselho que tinha plena consciência do que se passava de errado com ela. E era o homem do qual guardava uni amargo ressentimento. Tom disfarçava a piedade, que instintivamente sa­bia que ela iria rejeitar, sob uma máscara de divertida indiferença.

Além disso, não poderia deixar que seus companheiros do Conselho soubessem de sua simpatia. Devia forçá-los gentilmente para que a contratassem. Não tinha dúvidas da competência da moça: isso trans­parecia, mesmo através de seu estado de fraqueza e miséria.

Finalmente, tudo acabou. Hester, o coração na boca, levantou-se e fez uma ligeira curvatura de cabeça, antes de deixar o Conselho entregue as suas deliberações.

Dilhorne guardou na mente apenas unia única lembrança, ao final da entrevista. Hester, sentada diante deles, desesperançada e aflita, cabeça baixa, as mãos avermelhadas no colo. Se nunca antes houvesse se deparado com o desespero silencioso, ele o tivera diante dos olhos. Percebeu que os companheiros conversavam entre si, deixando claro que não sabiam o que havia de errado com a moça.

Burrell comentou que achara suas maneiras muito desagradáveis.

_ Falta-lhe bom senso _ emendou Fitzgerald, com secura. _ Não tem condições de controlar nem mesmo crianças pequenas. E é bem feiosa, também.

Embora concordasse quanto à aparência de Hester, Tom não tinha certeza daquilo que os conselheiros esperavam de uma professora. Alguns, ele sabia, deviam considerar sua feiúra uma vantagem.

_ Ela está morrendo de fome _ anunciou, com aspereza. _ É por isso que parece tão feiosa e magra e tem aquela cor emaciada.

Todos os encararam. Tom, porém, havia visto a fome e suas con­seqüências em seus dias vividos em Londres e as reconhecera em Hester. Os braços finos, as faces encovadas, o pescoço comprido, os ossos saltando pela pele, o rosto que era só olhos, olhos embotados e findos, a compleição doentia, os cabelos sem brilho. Pela aparência, ela não desfrutava de uma boa refeição havia anos. Sua antipatia pelos companheiros, que sempre fora grande, aumentou. Bem ali­mentados, todos uns beberrões, não reconheceriam unia criatura mor­rendo de inanição mesmo que caísse morta diante deles.

Julgou que era hora de intervir, a favor da moça.

_ O dinheiro de Fred Waring, o pouco que tinha, ele o gastava consigo mesmo, com bebida. E agora que ele está morto, Deus sabe lá como ela está sobrevivendo, O que é mais importante, eu acho, é que ela poderia controlar as crianças, há presença de es­pírito dentro dela, e tem o conhecimento necessário para ensiná-los efetivamente. Discutiu comigo asperamente e, uma ou duas vezes, falando com você, Burrell, foi clara e incisiva.

Godfrey Burrell ponderou, com seu jeito pomposo:

_ Sinto que a opinião do conselho é contrária a sua, Dilhorne.

Tom sorriu.

_ Sim, claro, não seria a primeira vez, seria? Porém, se a quiserem descartar, pensem um pouco. O que pretendem fazer? Quem irá preencher o posto? Ela foi a única pretendente. Devemos

esperar que aporte um outro navio vindo da Inglaterra... e des­cobrir que não há ninguém adequado a bordo? Ou o quê, então?

_ E preciso levar isso em consideração _ concordou Burrell.

Viam-se diante de uma total falta de opções. Era evidente que nenhum deles queria Hester, todos pelos motivos errados. Logo, a maioria iria preferir postergar a abertura da escola ao invés de empregá-la, a despeito do desejo do Governador de que isso fosse feito com urgência.

O fantasma de Fred Waring havia se levantado de seu túmulo para assombrar sua infeliz filha. E a falta de imaginação dos con­selheiros também os levava a não compreender quais as conse­qüências para a moça, se não a indicassem para o cargo.

Tom não quis forçar mais a situação em favor de Hester. Poderia criar antagonismos. Com seu usual leque de possibilidades, en­xergou uma saída.

_ Deixem o compromisso pendente _ sugeriu. _ Coloquem-na em prova. Vejam como ela se sai. Se não servir, então está fora. Podemos encontrar alguém até lá.

Todos relutaram um pouco mas, como estava se tornando cada vez mais comum em suas reuniões, acabaram por aceitar a su­gestão. Dariam três meses à srta. Waring, a título de experiência, e ela que se sentisse feliz com isso.

Dilhorne recostou-se na cadeira, satisfeito por ter encontrado um jeito de fazer valer sua opinião; feliz porque o Conselho estava contratando uma professora competente, e contente também por­que a feiosa srta. Waring não teria que palmilhar as ruas a procura de sustento. Muito embora no estado em que a moça se encontrava, só um homem desesperado pagasse para levá-la para cama.

Hester, esperando na ante-sala, sentia que cada minuto que passava era um baque a mais em suas esperanças. Tinha certeza de que iria ser reprovada, e que Tom Dilhorne seria o responsável por seu fracasso. Se ele não fosse membro do Conselho, quem sabe ela houvesse se saído bem. Depois dos conflitos com seu pai, ele só poderia inclinar-se para o lado negativo, recusando-se a endossar qualquer pedido de uma Waring.

Não se preocupara com o jeito com que Dilhorne a fitara. Seu pai sempre lhe dissera que o sujeito era um mulherengo, embora não tenha sido com olhos cobiçosos que ele a observara. O bom senso e o espelho já tinham deixado bastante claro a ela a própria ausência de atrativos. Um homem tão rico e tão inescrupuloso como era Dilhorne tinha seu quinhão de mulheres, tanto as res­peitáveis quanto aquelas aos cuidados de Madame Phoebe.

A sra. Cooke uma vez lhe dissera, após a morte do pai, que Tom Dilhorne não caçava mulheres.

_ Casamento não faz seu gênero _ completara. _ Ele man­tém a viúva Mahoney, que foi minha amiga durante anos, e isso lhe basta.

Bem, disponível ou não ao casamento, ela nunca havia pensado que seu destino dependesse de um Conselho com Tom Dilhorne como membro. Estivesse o pai vivo, ele a teria arrancado da sala em uni instante, depois de haver se recobrado do choque de ver um ex-condenado entronizado como um cidadão de bem. Bem, tal­vez fosse melhor que ele não estivesse vivo.

Uma coisa tinha que reconhecer, contudo. O patife tinha uma aparência muito melhor do que ela esperava e era bem bonito, ainda que de uma forma estranha. Não a atraía, porém, não havia como não admitir que usava roupas muito elegantes. Particularmente seu colete, muito refinado.

Hester torceu as mãos no colo. Se o Conselho não voltasse logo com seu veredicto, tinha medo de desmaiar diante deles, em um misto de medo e de fome.

Levantou-se depressa.

Oh, não, pensou. Se me recusarem, eu não vou chorar ou ter um ataque histérico, embora só Deus saiba o que farei se não me indicarem para o posto. Sua cabeça começou a rodar e rodar até que se sentiu atordoada.

A porta se abriu. Jardine pediu que ela entrasse. Hester saltou da cadeira, branca como um defunto.

_ O Conselho vai lhe comunicar sua decisão agora, srta. Hester _ disse ele, segurando a porta para que ela passasse.

Ela caminhou para a sala, de cabeça erguida, um ligeiro rubor colorindo suas faces magras. Tentou manter as mãos firmes e postou-se de pé, esperando que o presidente falasse. Seu pai fora amigo de Godfrey Burrell antes que a bebida o destruísse. Uma vez, quando era apenas uma garotinha, o conselheiro lhe havia dado um pacote de doces, mas isso fora havia muito tempo.

Burrell começou a falar com seu usual estilo pomposo:

_ Srta. Waring, o Conselho decidiu oferecer a você o posto, com a condição que entenda que deve passar por um período de experiência de três meses para que a conveniência de sua contra­tação seja avaliada. Se, ao final desse período, seu desempenho não houver sido satisfatório, será demitida incontinenti. O ar. Jardine, o secretário, redigiu a minuta do contrato. Está me entendendo?

_ Perfeitamente _ disse Hester, secamente, fixando os olhos turvos em Tom, que se remexia com evidente desconforto em sua cadeira, diante da expressão aflita da moça.

Godfrey Burrell sentiu-se impelido a deixar clara a Hester a natureza precária do emprego.

_ Julgo-me obrigado a lhe dizer, srta. Waring, que o Conselho lhe faz esta proposta com alguma relutância. Há alguns dentre nós que temem que não .esteja à altura da tarefa. E se espera que a senhorita prove que estão enganados.

Eu estava certa, pensou Hester. Só podia ser Tom Dilhorne, ainda tentando dar o troco a papai. Bem, que ele se dane! Mostrarei que está errado. Tenho que fazer isso.

Era impossível a ela imaginar que apenas Tom tinha conseguido salvar seu emprego.

_ Darei o melhor de mim para que fiquem satisfeitos _ re­trucou, com firmeza.

_ Ótimo, ótimo _ cortou Burrell. Estava com pressa. Queria almoçar. Alguma coisa, em Hester, perturbava-o. Provavelmente Dilhorne estivesse com a razão novamente, droga. Olhando bem a moça, parecia possível que não ela estivesse alimentando-se decentemente.

Uma lembrança súbita o assaltou, da garotinha bonita que ela era quando os Warings haviam desembarcado em Sídnei. Reme­xeu-se na cadeira, tomado de desconforto. Bem, tinham dado a ela uma chance, o que era mais do que muitos haviam feito. Apon­tou para o secretário, parado ao lado da mesa, de cabeça baixa.

_ Jardine vai pô-la a par das particularidades de seu cargo e será o encarregado de sua remuneração. Ele lhe dará um pequeno adiantamento para suas despesas. Se desejar se comunicar com o Conselho, você deverá fazê-lo através dele. Como seu desempenho está em questão, estou propondo que o ar. Dilhorne seja encarre­gado de supervisioná-la pelos próximos três meses.

O quê? O que sabe esse homem sobre educação ou ensino, para assumir essa tarefa?, pensou o Mentor de Hester, irritado. Eu o verei e a todos vocês no inferno, antes de lhes dar a satisfação de me despedir.

Hester procurou dissimular seus reais sentimentos. A única pessoa que conseguiu perceber a raiva latente oculta sob aquela expressão submissa foi o próprio Dilhorne. Enquanto Burrell fa­lava, Tom vira os olhos da moça luzirem estranhamente, e ele reconhecia a insolência muda quando se deparava com ela. Sua intuição, quase feminina, dizia-lhe que havia mais dentro dela, do que se poderia supor.

Há tempo bastante para descobrir, pensou. O encargo que lhe fora dado pelo Conselho possibilitaria a oportunidade de descobrir exatamente de que estofo a pobre e feiosa Hester era feita.

 

                                       CAPÍTULO III

Lachlan Macquarie pôs-se a ler o breve relatório que estava sobre a mesa. Era de Jardine. Infor­mava que o Conselho da Escola indicara Hester Waring para o posto de professora, a titulo de experiência. Ali havia o dedo ma­quiavélico de Tom Dilhorne, pensou. Nesse instante, o tenente Munro colocou a cabeça no vão da porta, dizendo que o coronel O’Connell, do 73º Regimento de Infantaria, tinha chegado e espe­rava para vê-lo.

Macquarie suspirou e colocou o relatório de lado. Ultimamente, as visitas de O’Connell não eram muito agradáveis. O militar não apreciava nem um pouco muitas das medidas que o governador vinha adotando. Via nelas uma maneira de agradar à população de ex-condenados. Macquarie ficou a imaginar do que O’Connell viria reclamar, desta vez.

_Mande-o entrar _ ordenou aborrecido.

O’Connell era um homem grandalhão, a obesidade ganhando terreno na paz da fronteira meridional das ilhas Britânicas.

_ Prazer em vê-lo _ disse o governador, depois das formali­dades cumpridas.

_ Não vai pensar assim depois de ouvir o que tenho a dizer.

_ Não? O que é desta vez, Jack?

_ Dilhorne _ retrucou O’Connell asperamente. _ Correm boatos por ai, não sei se há alguma verdade, veja bem, já que parece que começaram com Jack Cameron... e você sabe como ele não é confiável, de que você pretende nomear Tom Dilhorne como juiz. Logo esse sujeito! O homem chegou aqui acorrentado, é cheio de truques, apos­sou-se de tudo quanto a vista alcança... dizem que, sabe-se lá como, convenceu os ianques a deixá-lo entrar em seu gigantesco negócio.

Você sabe tão bem quanto eu que ele controla o ramo das olarias. Praguejo contra ele cada vez que o vento sopra vindo daquela direção e cobre tudo com uma poeira vermelha. Também tem o monopólio do transporte de carga, é provavelmente o homem por trás da fábrica de beneficiamento de lã do Dempster, está brigando com Wil French pelo controle da extração das pedreiras, e, acima de tudo, com certeza é o investidor na retaguarda do empreiteiro de obras que está mudando a cara de Sidnei para você... _ Ficou sem fôlego antes de terminar de enumerar os detalhes do império de Tom na colônia. _ Tudo isso _ continuou _ justificaria plenamente que eu fizesse de um homem de tal importância um magistrado, de preferência a qualquer outro.

_ Deus do céu! _ esbravejou O’Connell com violência. _ O homem é um celerado! E como foi que ele conseguiu um controle total de tudo, assim tão rápido, pode me dizer?

_ Cumpriu sua pena, e eu não tenho razões para acreditar que tenha agido de forma criminosa ao adquirir sua fortuna _ retrucou Macquarie, determinado a não ser deixar irritar. _ Ele é conhecido, na verdade, por ser um homem de palavra. Todos os fatos só fazem por torná-lo digno de crédito, se você pensar que o sujeito chegou aqui ainda muito jovem com absolutamente nada.

Creio que uma carreira tão bem-sucedida merece ser premiada, não punida. A colônia precisa de pessoas assim.

_ Precisa de pessoas assim? _ berrou O’Connell horrorizado.

_ Em nome de Deus, o que foi que aconteceu com você, Lachlan, desde que se tornou governador? Nunca pensei que, dentre todos, logo você fosse facilitar as coisas para essa escória criminosa.

_ Tom Dilhorne é um homem de talento _ retrucou Macquarie, com firmeza. _ E obrigado a ficar aqui, não pode mais retomar à Inglaterra, e a colônia precisa de pessoas de inteligência e visão cujo devotamento seja para Sidnei e à Nova Gales do Sul e não para um lar imaginário lá no Hemisfério Norte, há meses de dis­tância. Eu não tenho dúvidas de que ele dará um excelente juiz.

Se não por nada, porque entende a mentalidade do povo que será trazido à presença dele.

_ Droga! _ O’Connell estava incrédulo. _ É claro que ele os entenderá! E farinha do mesmo saco. Eu não acreditei em Jack Cameron quando ele profetizou uma coisa dessas, porém até aquele estúpido parece ter mais bom senso que você. Aonde isso vai parar, hein? Pode me dizer?

_Não concordo com você. Acho melhor lhe contar logo que

também pretendo nomear o dr. Alan Kerr como juiz. Não o con­vidarei, porém, até que Dilhorne concorde em aceitar o posto. Quero indicar os dois juntos.

_ Fazer de Kerr, um traidor e um amotinado, um magistrado? Esperar até que Dilhorne concorde? Não vai me dizer que ele teve o topete de recusar, vai? Ou será que o velhaco tem mais juízo que você?

_Dilhorne é um homem precavido, com o que, eu acho, até mesmo você concorda. E tão cuidadoso quanto eu no sentido de não nos precipitarmos. Já ocupa um cargo no Conselho da Escola e tem se mostrado muito útil lá.

_ Ora, indique-o para deputado e está feito _ retrucou O’Con­nell, em um tom desagradável. _ Realmente, Lachlan, sabe o que acho? Tudo isso se deve a sua idéia maluca de que este buraco do inferno, cercado de vegetação impenetrável, algum dia vai se tornar uma grande capital, rivalizando com aquelas da Europa! Imagine só, um lugar habitado por bandidos e mulheres de vida fácil, a ralé da Inglaterra! Levar o Dilhorne para os tribunais éa mesma coisa que colocar no Legislativo e no Judiciário todos esses cangurus, marsupiais e aborígines que pululam por aqui. E, quanto a Kerr... ele pode ter sido um cavalheiro, algum dia, mas é tão ruim quanto Dilhorne. Quer que a comida servida aos bandidos seja melhorada e exige melhores acomodações para os sentenciados. Qual a próxima exigência, posso lhe perguntar? _

O    coronel estava tão transtornado que foi obrigado a parar. Logo, porém, arrematou: _ Encare a realidade, Lachlan, este lugar não tem futuro a não ser como colônia penal e, por sua conduta, nem ao menos isso você está permitindo que seja.

O    corpo inteiro de Macquarie estava retesado de raiva. Mal conseguia controlar-se, ao responder:

_ Não posso concordar. Porém, posso entender porque pensa dessa maneira. Você vê as coisas apenas a curto prazo, o que não é surpresa para mim. Dê a Dilhorne o beneficio da dúvida. Alguns dos exclusivos, como Godfrey Burrell, já estão agindo assim.

_Antes, eu preferiria dar com a chibata nas costas dele _ retrucou O’Connell, levantando-se e enterrando o quepe na cabeça.

_ Inútil conversar com você, Lachlan. Mas, eu lhe aviso: meus homens estão muito perturbados com suas atitudes, tais como convidar gente como Dilhorne e Kerr para jantar no Palácio do

Governo, junto com oficiais, cavalheiros e damas de boa família. Você está arranjando encrenca para si mesmo.

_ Porém, isso não vai me impedir de cumprir com meu dever. E se eu julgar que meu dever é fazer de Dilhorne um magistrado, então é isso o que farei.

O’Connell abandonou a sala, O governador soltou um suspiro de desânimo. Descobria-se mais inclinado a simpatizar com um ex-condenado do que com seu velho amigo e companheiro de armas. No devido tempo, Dilhorne e homens como ele poderiam criar uma nova classe social na Nova Gales do Sul, e era isso que Mac­quarie gostaria de presenciar.

 

Tom Dilhorne percebeu-se mergulhado em pensamentos. Não eram pessoas como o governador Macquarie ou Hester Waring que lhe vinham à cabeça. Pensava, sim, em sua própria vida, que tomara rumos insuspeitos. E no efeito que isso causara em seu relacionamento de longa data com sua amante, Mary Mahoney.

Maiy sempre lhe dissera que não desejava desposá-lo. Recen­temente, porém, conforme se via mais velha, vinha mudando de idéia com relação ao casamento. Em conseqüência, Tom tivera de encarar a realidade. Se quisesse se casar, sabia, não seria com Mary Mahoney. Nem julgava que ela pudesse ser feliz com ele, como marido.

Apenas uma lealdade de anos e um senso de decência o man­tinham ao lado dela. Porém, não via jeito de romper a ligação de ambos sem magoá-la. Sentia-se atado.

E, de repente, a liberdade lhe chegam da maneira mais im­previsível. Riu, ao lembrar-se. E pensar que achava que era o único insatisfeito...

Ao lhe fazer a costumeira visita semanal, Mary lhe dissera, friamente, embora com um leve toque de pesar, que estava tudo acabado entre os dois.

_ Um bom homem quer se casar comigo, Tom, coisa que você nunca fará. Além do mais, não sou a esposa certa para você, agora. Você mudou, não é mais o homem que era. Há de querer uma mulher educada para esposa, alguém como Sarah Kerr, com quem você possa conversar, que vá morar em sua nova mansão, sentin­do-se à vontade como eu nunca poderia ou conseguiria. Nunca pude me entender com os nobres, nem quero.

Ele nada respondeu. E isso também, Mary compreendeu.

_ Sei que nosso relacionamento acabou para você faz algum tempo, porém, malgrado sua reputação, você é um homem correto e não me abandonaria depois de tantos anos. Não, não tente negar.

_ Você tem certeza de que é isso que quer, Mary?

_ Plena certeza, e é o que você quer também.

Ele não pôde negar.

_ Vou providenciar para que não lhe falte nada, Mary. Pede ficar com este chalé, e lhe darei uma pequena pensão.

Quando ela fez menção de recusar, ele insistiu:

_ Quem sabe o que você pode vir a precisar, no futuro?

Mary concordou, e os dois se separaram como amigos, sem qual­quer amargura.

_ Arranje uma esposa maravilhosa, meu amor, e que seja logo

_ela murmurou, dando-lhe um beijo de despedida.

 

Tom dissera que ficaria de olhos em Hester, e ele sempre cum­pria suas promessas. Em uma bela manhã de sol, não muito tempo depois que ele e Mary Mahoney haviam se separado, resolveu ir até a escola, que ocupava um cômodo de um armazém reformado na rua York, para verificar o trabalho da nova professora. Ao se aproximar, ouviu as risadas alegres que vinham da sala. Não quis espiar pela janela para descobrir o que se passava, pois sabia que não era de bom tom. Entrou no prédio pela porta da frente, que estava aberta, e ficou em um canto, onde não poderia ser visto.

Isso também não era muito bonito, porém não queria que Hester soubesse que ele estava ali. Sua presença iria perturbá-la, fazê-la perder a naturalidade. E, por alguma razão, ele queria descobrir como era ela quando não sabia estar sendo observada.

Ela estava sentada diante de um grupo de crianças, com uma garotinha sorridente no colo, lendo uni texto de um livro infantil, uma das poucas relíquias de sua antiga vida na Inglaterra. Atrás iela, meninos e meninas, curvados sobre suas lousas, copiavam ~om todo o capricho a lição do quadro-negro.

Hester tinha no rosto um brilho misterioso. Ainda conservava i aparência macilenta e encovada, as roupas continuavam esgarçadas e antigas, porém sua expressão e comportamento eram muito diferentes daqueles de que ele se recordava por ocasião da entrevista. Não havia dúvidas de que a moça tinha o pleno controle da classe. E que ela e os alunos também estavam contentes.

Tom escutou sua voz alegre e observou-a abraçar distraidamente a garotinha que tinha no colo. Ela não sofrera apenas de uma enorme carência de alimento, pensou, de súbito. Tinha fome de afeição. Terminara de ler a estória e, com alguma relutância, colocava a menina no chão.

Era hora de aparecer, pensou Tom. Fez barulho, fingindo chegar naquele momento. Não queria que ela soubesse que estava ali havia algum tempo. Entrou na sala de aula e percebeu que o rosto de Hester se fechava. A vivacidade desaparecera, e a antiga aparência de mal disfarçado medo estava lá de novo, assim que pusera os olhos nele.

Em nome de Deus, o que aquele idiota do Fred Warning dissera a ela para assustá-la assim? Ou isso acontecia diante de qualquer homem?

Hester fitou-o com uni ar atoleimado. O que ele estaria fazendo ali? Viera para atormentá-la? Estava tão feliz havia poucos minutos. Observou-o caminhar até o grupo dos mais novos, para quem ela estivera lendo estórias. Viu que ele levava a mão ao bolso.

_ Tenho um pacote de balas aqui, meus caros. Vocês acham que a professora vai deixar que vocês as dividam entre si?

Atônita, Hester o encarou. Então, para seu espanto, ouviu a própria voz dizendo, em um tom esganiçado:

_ Claro.

Dilhorne estendeu-lhe o pacote e ficou a observá-la, enquanto ela distribuía as guloseimas entre as crianças.

_ Eu havia prometido ao Conselho que iria verificar seu pro­gresso regularmente. Resolvi vir sem avisar _ disse ele. _ Era melhor para você e as crianças.

Maldito, pensou Hester, tristemente consciente de que a lin­guagem de seu Mentor descambava ainda mais que o usual na presença de Dilhorne. O que esse sujeito sabia que lhe dava o direito de inspecionar seu trabalho? Porém, de cabeça baixa e ar submisso, ela pôs-se a explicar o que vinha fazendo.

Seus modos contrastavam tão violentamente com a maneira alegre com que se ela comportava quando julgava estar sozinha, que Tom pensou ter imaginado a cena. Sorriu, inadvertidamente. Decidiu provocá-la. Queria ver se seu jeito humilde resistiria a uma pequena provocação.

_ E o latim, srta. Waring? Quando vai iniciar o latim?

Ela o encarou. Do quê ele estava falando?

_ O latim que você prometeu ao Conselho. Ou era grego? Amo, acho que foi o que disse. Pode me dizer o que significa?

_Amo, em latim, quer dizer “eu gosto muito” _ ela respondeu, antes que conseguisse se impedir. E seu Mentor gritou: “o homem é louco?”

_Amo... _ A expressão de Tom era tão séria como a de um padre. _ Quando vai começar a ensinar aos pequenos essa dis­ciplina tão importante?

_Não vou ensinar latim a eles _ rebateu Hester com impa­ciência. _ A simples idéia é ridícula!

_Se é você quem diz... _ retrucou Tom de forma duvidosa.

_ Afirmo!

_Então grego, quem sabe? _ A expressão de Tom era de quem quer ser útil.

Estaria o sujeito falando a sério? Não havia nem sombra de um sorriso em seu rosto.

_Não irei ensinar grego a eles, sr. Dilhorne. As estórias da Mamãe Gansa são mais que suficientes para crianças dessa idade.

_Como posso estar tendo uma conversa assim ridícula com um homem que, apesar de outros defeitos, é tido como inconvenien­temente esperto?, pensou ela.

_Você me deixa aliviado, srta. Waring. A simples idéia de uma sala cheia de pequenos prodígios estava começando a me preocupar.

Ainda mais loucura. Hester teve uma vontade louca de rir. E realmente, sua voz adquiriu um ligeiro tom de diversão, quando respondeu:

_Não tenho intenção de criar prodígios, sr. Dilhorne.

_Esplêndido, srta. Waring. Poesias de ninar e somas fáceis são o bastante. Fico com a cabeça descansada. O pensamento de crianças mentalmente perturbadas não irá me assombrar de noite.

Hester cerrou os dentes para evitar cair na risada.

_Pode ficar tranqüilo, sr. Dilhorne. Não tenho qualquer in­tenção de deixá-los estressados. Nem pretendo ensinar porcenta­gem a eles, nem mesmo os rudimentos do hebraico.

O    rosto dela, seu corpo, sua maneira de falar haviam mudado. Ela estava ali, diante dele, calorosa e viva, no lugar da figura fria e inanimada de poucos instantes antes. E o provocava com a lem­brança das perguntas tolas de Godfrey Burrell. A submissa srta.. Waring havia desaparecido, para dar espaço a uma jovem cheia de vivacidade, com um agudo e rápido raciocínio, e que não tinha medo de usá-lo para tentar desarmá-lo. Tom decidiu recompensá-la.

_ Excelente. Fico feliz em ouvir isso. E mais feliz ainda em relatar ao Conselho que achei seu desempenho muito satisfatório, srta. Waring.

_ Obrigada, sr. Dilhorne. Eu não gostaria que fosse assom­brado, nem por crianças perturbadas nem por qualquer outra coisa.

Bravo, srta. Waring, foi a resposta que Tom murmurou para si mesmo. Sua provocação trouxera cor ao rosto dela, um brilho a seus olhos e todo o corpo de Hester vibrava em uma combinação de di­vertimento e indignação. A julgar por sua expressão, a opinião que tinha do ar. Tom Dilhorne era digna de ser ouvida em voz alta.

Ele cumprimentou-a com uma curvatura de cabeça. Ela retri­buiu e mandou que os pequenos fizessem o mesmo, os meninos com uma reverência, as garotinhas com uma mesura.

_ Esplêndido, muito bem _ foi o comentário de Tom. _ E óbvio que está ensinando a eles como se comportar e tão bem quanto a Mamãe Gansa. Lamento ter de deixá-los, srta. Waring, mas tenho uma reunião. Quero que saiba que sou seu mais humilde e obediente criado. _ Ele curvou-se, em um salamaleque exagerado nas últimas palavras.

Você nunca foi meu criado e pode ir para o diabo, pelo que me diz respeito, pensou Hester, fulminando-o com seu sorriso mais dissimulado.

Ele, porém, percebeu o brilho em seu olhar e sabia que Hester Waring zombava internamente de Tom Dilhorne. De novo!

 

_ O que está fazendo aqui, Tom Dilhorne? _ perguntou Ma­dame Phoebe.

Na verdade, seu nome era Fanny Dawkins. Dirigia uma casa de jogos e um bordel em uma das mais novas ruas de Sídnei, bem parecidos com aqueles inferninhos de reputação duvidosa insta­lados em quarteirões do bairro das Pedras. Somente os ricos, os de aparência respeitável e os oficiais da guarnição freqüentavam a casa de Phoebe. Podia-se comer uma boa refeição lá, e Sídnei sempre fora carente de bons restaurantes. Melhor ainda, ela dirigia um local honesto e trabalhava com moças limpas e sadias. Assim, as autoridades se curvavam, fazendo vistas grossas a sua presença em um subúrbio residencial.

Tom nada respondeu. Raramente se explicava e não estava disposto a contar a Phoebe que ele e Mary haviam terminado tudo. Havia se trocado e vestira roupas de trabalho depois de deixar a escola. Estivera ajudando a descarregar carga nas docas. Nunca se recusava a dar duro, mesmo que fosse trabalho braçal, quando a necessidade obrigava. Essa era a razão pela qual aqueles que trabalhavam para ele lhe eram leais.

Em seus antigos dias de vida dura, havia sido uni cliente assíduo de Phoebe, em sua primeira casa, nos limites do bairro das Pedras. Não pelas garotas, mas pelo local, que usava para reuniões de negócios e para jogar cartas, pois nunca se arriscava nos dados.

O tédio o trouxera de volta, após uma longa ausência. Sabia que os oficiais da guarnição e os mais ricos exclusivos e emancipistas estariam ali e seria uma oportunidade de descobrir se suas velhas habilidades haviam enferrujado. Intuição e fria dissimulação haviam feito de Tom um formidável homem de negócios e eram igualmente memoráveis quando aplicadas nas cartas, motivo pelo qual nunca se envolvem com dados. Jogos de azar não o atraiam.

No passado, sua presença na mesa de jogos havia sido um es­torvo para alguns, porém um desafio para outros. Alguém dizer que havia derrotado Tom Dilhorne era quase uma proeza, embora que raramente acontecia.

_ E a memória dele que o faz imbatível, não é? _ perguntou o oficial da infantaria Osborne ao capitão Pat Rainsey, ao observar Tom, que bebia ao lado de Madame Phoebe. _ Parker diz que ele parece se lembrar de todas as cartas, as próprias e as dos adversários também. Sempre quis vê-lo em ação, mas faz tempo que ele não vinha aqui. O que será que o trouxe para cá esta noite, pode imaginar?

_ Sua memória? _ perguntou Pat, que havia perdido para Tom mais de uma vez. _ Duvido de que seja simples assim. Ele conhece os truques, conhece os homens, e isso é algo que não se pode ensinar a alguém. Eu não entraria em um jogo com ele, se fosse você, Osborne. Ele vai depená-lo.

_ Ele não poderia me depenar _ escarneceu Jack Cameron, que se aproximara enquanto Pat conversava.

_ Não? _ Pat deu de ombros. _ Você nunca jogou com ele, jogou? E por que ele é um emancipista?

_ Claro que não _ esbravejou Jack, jogando-se na cadeira. _ O       dinheiro dele é tão bom quanto o de qualquer outro, não é?

Não houve chance de me encontrar com ele nas mesas. Ele desistiu de vir aqui antes que eu chegasse para morar nesta terra maldita. Veremos se ele é bom mesmo, esta noite. Tenho planos para jogar com o a mestre”, como o chamam. _ Olhou ao redor, procurando parceiros para formar um grupo. _ Posso ver Parker, porém onde está o jovem Wright? Pensei que estaria aqui, hoje.

_ Oh, Frank... _ disse Pat, com um bocejo. _ Ele parece um cachorrinho desde que se casou com Lucy Middleton. Ela não o deixa jogar. Raramente aparece por aqui.

_ Maldição se eu deixar que algum rabo-de-saia, esposa ou não, afaste-me do jogo _ retrucou Jack, com agressividade. Girou na cadeira e berrou, na direção de Tom. _ Ei, Dilhorne, disse­ram-me que você é um “mestre». Por que não vem arriscar uma rodada e me deixar descobrir se é verdade? Será um prazer der­rotar um emancipista.

Tom lançou um olhar superficial para Cameron. Bebia seu uís­que com água e, como viera para jogar, seu copo continha uma boa porção de água e bem pouco de bebida. Enquanto alguns se entupiam de álcool, Tom apenas parecia beber.

_ Eu vou _ retrucou Tom, e abriu caminho até a mesa.

Tom conhecia bem a reputação suspeita de Jack Cameron como jogador, tanto nas mesas como em outros jogos de azar. Contudo, acusar um homem de trapacear com as cartas era algo pouco prudente.

Havia um código de honra quanto a isso, e as trapaças de Jack teriam que ser suficientemente desmascaradas para que se pu­desse dizer ou fazer algo a respeito. Uma falsa acusação, ou uma que não pudesse ser sustentada, iria arruinar o acusador, ao invés de o acusado. Aqueles que eram pegos trapaceando com cartas ou dados se tornavam párias. A honra exigia que renunciassem às Forças Armadas e ao convívio em sociedade.

Tom conhecia os códigos de honra, mas pouco se importava com eles. Tinham sido inventados por cavalheiros para passar o tempo. O único código com o qual se importava era o da sobrevivência. Para sobreviver faria qualquer coisa, empregaria qualquer truque, des­truiria inimigos, defenderia os amigos com toda a coragem, embora se tivesse juízo, não devesse ter muitos amigos. Manteria a palavra empenhada, porém somente se os outros mantivessem a sua, e evi­taria agir estupidamente, tal como trapacear com cartas.

Acima de tudo, ficaria de olho em suas costas. A honra era mantida com suas próprias regras, não com algumas delicadezas imaginárias que serviam meramente para perpetuar as diferenças sociais.

Assim, começou a jogar contra Jack, usando de sua excelente memória, como o jovem oficial havia dito, calculando as probabilidades e, finalmente, empregando sua intuição. Essa raramente falhava, tanto nas cartas como na vida.

Logo percebeu que Jack trapaceava e que a maioria dos outros jogadores era ingênua demais, ou estava muito embriagada para se importar. Bêbados a ponto de não notar que o uísque na garrafa diante de Tom, cujo nível baixava, não descia por sua garganta. Jack também não era o beberrão que aparentava ser e, lentamente, ele e Tom eram os únicos vencedores a se defrontar.

O sucesso de Tom, na vida, em parte era baseado em seu co­nhecimento de como ir em frente em qualquer empreendimento. De olhos fixos em Jack, rapidamente deduziu que perderia em qualquer jogo que disputasse contra um homem cujas habilidades eram quase iguais às suas, mas que tinha a vantagem de manusear as cartas com truques, estratagemas e dedos ligeiros. O baralho devia estar marcado. Para Tom, não interessava como Jack havia conseguido fazer isso.

Não tinha objeções em perder em um jogo limpo, porém não tinha intenção de deixar o vigarista ainda mais sorridente nem queria confusão. Se o denunciasse, sem provas, ou usasse suas próprias habilidades para derrotá-lo, poderia criar problemas para si mesmo.

Após um tempo, levantou-se. O que ganham havia desaparecido nas últimas rodadas. Fitou as fichas que lhe restavam, bocejou, e disse:

_ Já chega. Hora de dormir.

Jack reclinou-se na cadeira, com ar de zombaria.

_ Assustado, Dilhorne? Com medo de perder? Jogue outra mão. Vamos ver quem é o mestre.

_ Oh, é você, com certeza. Mas eu não gostaria de dizer do quê. _ Cambaleou, apanhou a garrafa de brandi, sorrindo para Jack no silêncio mortal que se seguiu a suas palavras.

Jack, o rosto agora cor de púrpura, encarou-o furioso.

_ O que quer dizer com isso, Dilhorne? Não vou permitir que um ex-condenado tente sujar minha reputação.

Tom gingou o corpo, amparou-se na mesa para se equilibrar, chacoalhou a garrafa de brandi e levou-a a boca, tomando um longo trago, de verdade, desta vez.

_ Sujar sua reputação? Eu estava apenas pensando no que você era melhor. No baralho ou nos dados, o que me diz?

Suas palavras saiam gaguejadas, porém seus olhos tinham um brilho de insolência. Os circunstantes, que variavam de oficiais, colonos endinheirados e até uns poucos que tinham vindo mais para se divertir que para jogar, podiam, assim como Jack, tomar aquelas palavras em seu sentido literal, ou sentir nelas uma acu­sação velada. Só Tom e Jack sabiam o que significavam realmente.

_ Desembuche ou cale a boca _ esbravejou Jack. _ E melhor esclarecer logo o que quer dizer com isso!

Tom desabou na cadeira, apertando a garrafa contra o peito.

_ O que quero dizer, Cameron, é que nunca mais jogarei com você de novo. Nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Você é muito hábil para um pobre ex-condenado.

Suas últimas palavras vieram em um murmúrio claro. Mal ti­nha acabado de falar, ele escorregou para debaixo da mesa, ainda agarrado à garrafa. Ficou lá deitado, imóvel, enquanto a bebida escorria pelo assoalho, ensopando-lhe a camisa e a calça.

Pat Ramsey, que, após perder, abandonara o jogo algum tempo atrás, começou a rir. Assim como vários de seus amigos oficiais, ele desde muito alimentava suspeitas contra .Jack. Nunca ousara dizê-las em voz alta ou parar de jogar com ele, o que seria o mesmo que uma acusação.

Porém, com poucas e bem escolhidas frases, o mestre da ma­landragem, que agora jazia deitado sob a mesa, havia dito aquilo que todos na sala pensavam, e não havia nada que Jack pudesse fazer a respeito. Continuar a insistir que Tom o acusara de trapaça seria fazer tempestade em copo de água. Se havia quem suspeitasse que a bebedeira de Tom era uma encenação magistral, ninguém parecia disposto a tentar desmascará-lo.

O que era pior, a acusação, embora velada, havia sido feita, e alguns usariam as palavras de Tom como desculpa para não jogar com Jack. Afinal, ele era um mestre. Seria tolice jogar dinheiro fora.

Deitado debaixo da mesa, olhos fechados, Tom ficou a rir inti­maxnente, divertido com a altercação que se seguiu. Jack berrava, deixando clara sua intenção de colocá-lo de pé e enfrentá-lo. Não estava disposto a fazer papel de tolo.

_ Quando um sujeito está incapacitado pela bebida _ res­mungou Pat Ransey, deliciado por ver Jack passado para trás pelo menos uma vez _ , você não pode atacá-lo sem motivo. _ Riu, diante do rosto enraivecido de Jack. _ Ele apenas lhe fez um elogio. O que há de errado com você, homem?

Havia muita coisa de errado com Jack. De alguma forma, iria dar cabo daquele maldito Dilhorne antes de sair daquele bendito buraco onde ele e o 73º Batalhão tinham sido confinados.

Estou bem instalado aqui, pensou Tom, e o assoalho não é tão desconfortável que eu não possa dormir. Foi o que fez, cansado pelo dia de trabalho duro. Sua última lembrança foi de Hester Waring caçoando dele, pela manhã.

Já era de madrugada quando Madame Phoebe aproximou-se, fitou os corpos largados pelo chão, e decidiu acordar Tom e levá-lo para seu quarto.

_ Não tente se fingir de bêbado para mim, Tom Dilhorne. Eu enxergo longe.

 

Hester ficou sabendo que Tom Dilhorne e Mary Mahoney ha­viam rompido, e foi tomada de uma alegria infantil com a notícia.

Agora o monstro sabia o que era sofrer um bocado, disse o Mentor de Hester, impiedoso. Ter uma amante infiel seria uma boa lição para ele, para ensiná-lo de que não podia dirigir a vida a seu bel-prazer, sempre.

A cidade inteira pensava que tinha sido Tom que abandonara Mary, particularmente quando a viúva e Jem Wilkinson começa­ram a mostrar sinais que tinham um caso e pretendiam casar-se. O fato teria provocado o ciúme de Tom. Ninguém conhecia a ver­dade, nem que Dilhorne havia dado dinheiro a Mary.

Heater pôs-se a cantar pela casa, para surpresa e alegria da sra. Cooke. Esta, entretanto, não estava nada feliz ao perceber que, a despeito de ter agora um salário, o padrão de vida de sua inquilina não tinha melhorado. O que não sabia era que Larkin, que havia arrematado todos os débitos remanescentes de Fred, havia aumentado os juros e, consequentemente, o valor das par­celas a serem pagas, depois que soubera que a moça arranjara um emprego. Hester se vira, assim, em condições idênticas às que antes de começar a ensinar na escola.

Porém, gostava de trabalhar lá, pensou. E isso, junto com as boas-novas a respeito de Tom Dilhorne e Mary Mahoney, deixava-a com os passes lépidos. Até mesmo aceitou o convite da sra. Cooke para o chá, junto com a vizinha, a sra. Smith, e a filha Kate.

Kate era uma criança encantadora, e ela e Hester se davam muito bem. Depois do chá, a ara. Jack, sabendo disso e querendo fofocar com a sra. Smith sobre assuntos não muito adequados aos ouvidos de uma moça solteira, sugeriu que Hester levasse Kate para o quintal, para mostrar à menina a nova ninhada de pintinhos.

As duas senhoras haviam principiado a conversar quando se ouviu uma batida na porta. Ao levantar-se e ver quem era o vi­sitante, a surpresa da sra. Cooke não poderia ser maior.

_Ora, sr. Dilhorne, o que será que o senhor pode querer comigo? Dilhorne estava tão elegante quanto de costume. Apenas dis­pensara a bengala e trazia um pequeno pacote com livros debaixo do braço. Cumprimentou-a com toda formalidade, como se ela fosse a esposa do governador.

_Não com a senhora, madame Cooke. Será que permitiria que eu entrasse para conversar com a srta. Waring?

_Entre, entre _ respondeu a senhora, alisando o avental, envergonhada com a aparência esplêndida do rapaz. Se soubesse da visita, teria colocado seu melhor vestido.

Tom entrou na pequena sala e curvou-se em um cumprimento à sra. Smith, também impressionada com sua elegância. Colocando o pacote sobre a mesa, ele olhou ao redor, procurando por Hester.

_ A srta. Waring está lá fora_ disse a si-a. Cooke.. _ Vou chamá-la.

_Não é preciso _ retrucou Tom. _ Se me permite, falarei com ela lá, não quero que interrompam seu chá. _ Atravessou a cozinha e parou na porta do quintal, observando.

Hester estava ajoelhada no chão, cercada de pintinhos. Sentada ao lado dela estava uma garotinha. Tom viu que Hester apanhava um dos pintinhos, que mais parecia uma bolinha amarela de plu­mas, com todo o cuidado, e o colocava nas mãos da menina. Então, levantou-se, tomou a criança nos braços e sentou-se em uma mu­reta de tijolos no fundo do quintal. Em um gesto cheio de carinho, beijou o rosto da garotinha.

Tom resolveu aproximar-se, e Hester, de súbito, percebeu sua pre­sença. Ficou imóvel, como um animal apavorado, prestes a fugir, e seus dedos, involuntariamente, apertaram-se nos braços da menina. A vivacidade que iluminava seu rosto, um momento atrás, desapa­receu, como havia acontecido quando ele a surpreendera na escola.

_Sr. Dilhorne? _ ela murmurou, surpresa, porém com uma voz controlada, quaisquer que fossem os seus medos internos.

Tom caminhava com cuidado, procurando não pisar as avezi­nhas, e Hester não pôde conter um sorriso ao ver um homem grandalhão e bem vestido andando na ponta dos pés.

_Pode rir_ sra Waring, mas não quero esmagar nenhum pintinho.

_Eu não estava rindo. sr. Dilhorne.

_Por favor, não diga uma coisa dessas. Estava prestes a cair na gargalhada. Ainda está com um sorriso nos lábios.

Hester fez uma cara seria.

_Não estou sorrindo agora, sr. Dilhorne. Eu o aconselho a ficar onde está. As galinhas estarão mais seguras.

_Excelente sugestão, srta. Waring. Percebo que indicá-la para professora foi uma atitude sábia. Você é capaz de dar aulas aos mais velhos, assim como às crianças.

_Tem algum motivo para ter vindo falar comigo, sr. Dilhorne?

_Além de fazer questão de me lembrar de que sou descuidado, você também sabe que minha presença no quintal da sra. Cooke só pode ser porque quero falar consigo e não para cuidar da nova ninhada de pintos. Muito perspicaz de sua parte, senhorita.

Hester não conseguiu se conter e caiu na risada.

_Tenho a impressão de que nunca poderemos conversar de maneira adequada, sr. Dilhorne.

_Não vejo nada inadequado na presente situação, srta. Wa­ring. Eu apenas vim trazer as cartilhas de leitura que Jardine me disse que você precisava.

Hester pensou, por um instante, porque o próprio Jardine não entregara o material a ela, e porque motivo o grande Tom Dilhorne se dispunha a fazer o papel de office boy. Decidiu não questioná-lo. Ele sempre conseguia confundi-la.

Tom pediu licença e sentou-se ao lado dela, no muro. Pôs-se a acariciar a garotinha e fez várias perguntas a Hester a respeito do trabalho com as crianças. A conversa parecia estar seguindo um padrão normal quando, de repente, Hester, distraidamente, estendeu-lhe a menina para que ele a pegasse no colo.

Coisas estranhas pareciam acontecer a uma percepção da rea­lidade, cada vez que Tom Dilhorne surgia em seu horizonte, pensou Hester. A mais estranha era que conversava com ele de forma espontânea e natural, logo ela que ficava tensa e gaguejante cada vez que os oficiais da guarnição tentavam travar uma conversa.

Tom recusou o convite para tomar uma xícara de chá, alegando outros compromissos, e despediu-se, afastando-se majestosamente. Hester, com toda a sinceridade, não pôde deixar de se impressionar com sua aparência soberba e as roupas extremamente elegantes.

_Bem! _ exclamou a sra. Cooke, depois que ele se fora e Hester examinava os livros que ele lhe trouxera. _ O que vem a ser isso, srta. Waring?

Mas a srta. Waring não poderia lhe dizer.

Tom, ainda com a lembrança de Hester ajoelhada entre os pintinhos, caminhou para casa bosque, a depois do que dissera, não tinha nenhum compromisso. Uma idéia começava a tomar forma em sua cabeça. Uma idéia nascida de sua separação de Mary e das noticiam que, naquele mesmo dia, sua governanta lhe contara.

De novo, ele vira Hester com uma criança no colo e recordava-se da evidente afeição que ela demonstrava para com os pequeninos, na escola. Lembrava-se também do brilho súbito em seus olhos quando se voltara para ele, no meio da conversa, conversa que ela obviamente apreciara muito mais do que ele. Tinha vontade de provocá-la, de fazê-la desabrochar para a vida, de ouvir suas respostas inteligentes às bobagens que ele, de forma séria, dizia-lhe. Somente seu rosto magro e encovado ainda o preocupava, pois certamente agora ela podia fazer uma boa alimentação.

 

Era isso! Tenho certeza, pensou, de que a pobre criatura ficaria até bonita se tivesse boa comida, um pouco de afeição e algumas roupas novas. Ela já começava a mostrar muito mais espírito desde que se tornara uma professora. Não é meu estilo, é claro, miúda e morena ao invés de exuberante e loura como Mary Mahoney e as outras. Porém, e dai? Não corro o risco de me apaixonar por ela.

O que Mary me disse antes de nos separarmos? Case-se com uma dama. Bem, Hester Waring é uma dama; embora não tenha boa aparência. Porém, dama alguma iria querer se casar comigo.

Ela é sensível, esperta também, a julgar polo jeito engenhoso com o qual me responde quando a provoco. Quando a entrevistei, julguei que tinha capacidade. Sim, ela dará uma excelente dona de casa, e uma esposa que saberia para que serve cada coisa, o garfo certo a usar, o que dizer e fazer. E uma idéia!

Porém, pensar em ir para cama com qualquer homem, espe­cialmente comigo, faria com que saísse em disparada como uma lebre. Quase fugiu quando me viu hoje, embora mostrasse um ar corajoso. Aquele seu pai tenebroso deve ter lhe cito muitas boba­gens. A julgar pela maneira como se comporta, fica apavorada diante de qualquer homem que encontre pela frente.

Um lento sorriso apareceu em seus lábios. Bem, pensou Tom, conheço um truque ou dois, e um deles pode muito bem arrastar Hester Waring para um lugar que ela nunca imaginou!

 

                                             CAPÍTULO IV

_Quero falar com você, Jardine.

Jardine levantou-se. Era um homem de idade indefinida, não um ex-condenado, que exercia vários pe­quenos cargos para o governo, o que o colocava em contato com muita gente em Sídnei. Tom sempre o procurava quando precisava de informações. O secretário ficou a imaginar qual seria a infor­mação que ele buscava, naquele momento.

_ É sobre Hester Warning _ disse Tom bruscamente. _ Seu salário está sendo pago em dia, não é?

_Claro! Por que está me perguntando?

_Porque a garota parece mais magra e esfaimada do que

nunca, O que será que tem feito com o dinheiro?

_Há uma explicação para o fato.

_Ah, é? _ perguntou Tom sarcástico. _ Eu gostaria de saber.

_Como você sabe, Jem Larkin tem um pequeno negócio e compra promissórias de devedores _ com ou Jardine. Interrom­peu-se quando Tom pôs-se diante dele.

_Por Deus, está me dizendo que Larkin está obrigando a executar as dívidas do pai e que ela é estúpida o bastante...

_Exatamente, e Larkin aumentou os juros desde que soube que ela conseguiu emprego.

_Por que não fiquei sabendo de nada? _ Tom sentiu uma onda de raiva que não conseguiu explicar.

_ Eu não tinha noção de que isso era de seu interesse.

_Tudo me interessa _ retrucou Tom com secura. _ Parti­cularmente esse assunto. Então, é essa a razão pela qual ela parece não ter nada para comer. Vamos tratar disso.

Robert Jardine teve a impressão de que Dilhorne estava demasiadamente interessado em Hester Waring. O que mais poderia explicar um comportamento tão atípico?

_ Na próxima semana, teremos a festa de Natal do Conselho, para todos os professores das diversas escolas. Você poderá veri­ficar por si mesmo se ela vai ter algo para comer lá _ comentou Jardine.

_ Farei isso.

Normalmente, não participaria de uma reunião assim, porém, desde que ficara sozinho, com a separação de Mary, realmente precisava cultivar outros interesses. E, quanto a Hester, provi­denciaria que se alimentasse. Poderia ainda tentar provocá-la e despertar aquela encantadora vivacidade que ela mostrara entre as crianças e os pintinhos amarelos. Havia ainda a idéia mons­truosa que lhe surgira. E que, a cada vez que pensava, ficava menos monstruosa.

Em primeiro lugar, iria comprar as dívidas de Fred em poder de Larkin. Pretendia destruí-las na frente do safado, para que aquele usurário não pensasse que ele, Tom Dilhorne, era um ex­plorador de viúvas e órfãos, particularmente de um ratinho quase morto de fome, como Hester Waring.

Jardine observou-o sair, com uma expressão divertida. Real­mente, o homem era imprevisível. Primeiro, convencera o Conselho a contratar a garota, depois se pusera a rondar a escola. Em se­guida, levara ele mesmo os livros até a casa dela, em vez de deixar isso a cargo do secretário. Agora, reclamava que a moça não tinha o bastante para comer. Nesse momento, devia estar indo pagar as dívidas de seu pai. E, depois de dizer que não iria à festa do Conselho, mudara de idéia, só para se certificar de que ela teria um lauto banquete à espera.

Se fosse outro, que não Tom Dilhorne, tido como um homem sem coração, ele diria que o sujeito estava interessado pela garota. O que, pensando bem, era improvável, uma total bobagem, a julgar pelo gosto de Tom por mulheres exuberantes e ao lembrar da aparência de Hester.

Ele, Jardine, bem que podia atiçar lenha à fogueira. A pobre srta. Waring merecia um pouco de excitação em sua vida miserável. Bastava a palavra certa em seus ouvidos, e tudo podia acontecer.

 

Festas eram um acontecimento raro na vida insípida de Hes­ter. E a perspectiva de comparecer à festa que o Conselho da Escola realizava a cada ano no Natal, não podia deixar de con­centrar toda sua atenção.

O dinheiro continuava curto. Por isso, ela pegou um dos velhos vestidos pretos de sua mãe, e foi até a casa de Lucy Wright pedir que esta lhe ajudasse a reformá-lo.

Lucy olhou Hester e avaliou o vestido. Torceu o nariz. Não havia muito que fazer com aqueles andrajos.

Seu marido entrou enquanto as duas estavam atarefadas, cos­turando, e dirigiu à pobre Hester um olhar fulminante. O capitão Parker estava com ele.

Ver o oficial normalmente deixava Hester ruborizada. Sempre se perturbara na presença do rapaz, de cabelos loiros e de corpo atlético e forte. Nesse dia, contudo, ela o achou bonito como sempre, porém jovem demais e um tanto desajeitado. Sua conversa lhe pareceu tola e desinteressante, e essa mudança de opinião a sur­preendeu. Desde a primeira vez que o encontrara, Parker tinha se tornado seu ideal masculino.

Talvez fosse porque conhecera outros homens mais velhos como... bem... como Tom Dilhorne. Não havia dúvida de que, diante dele, o capitão Parker parecia quase um garoto inexperiente.

Seu interesse pelo rapaz se foi. E ela se sentiu mais à vontade, até ligeiramente atrevida, quando ele perguntou, olhando para o horrível vestido que costuravam, o que elas faziam.

_ Oh, capitão Parker _ ela retrucou, encarando-o nos olhos _ , vou a uma festa muito importante, e Lucy está me ajudando a costurar este meu maravilhoso vestido.

_ Que festa é essa, Hester? _ O rapaz pareceu surpreso.

_ Ora, é para pessoas especiais _ disse ela, de maneira irreve­rente. _ E a que o Conselho da Escola oferece a todos os professores. Somente os grã-finos, como o sr. Tom Dilhorne, receberam convites.

_ Tem certeza de que deve ir, Hester? _ indagou Frank, com um ar de desagrado. _ Sei que trabalha para eles, mas, pelo que você disse, o pessoal que vai estar lá não é grande coisa.

_ Bem, Frank, tenho certeza de que, segundo sua maneira de ver, e a do capitão Parker também, eu mesma não sou grande coisa, hoje em dia. Dizem que a comida que oferecem é muito boa, e não quero perdê-la. Gente que é grande coisa não parece estar disposta a me oferecer nem ao menos um lanche!

Um silêncio espantado caiu na sala.

Qual o problema comigo?, pensou Hester, surpresa com a própria audácia. Dera agora para expor seus pensamentos em vez de guardá-los para si? Frank vai dizer a Lucy para não me receber mais, pensou. E por quê, em nome de Deus, estou fazendo pouco do capitão Parker? Ele é um rapaz gentil, bonito... Comum. Con­versar com Tom Dilhorne tem me feito ficar intratável. Parece que começo a pensar em coisas horríveis.

Com os pensamentos atropelando-se em sua cabeça, Hester des­pediu-se de Lucy, apanhou o vestido, acenou de maneira atrevida para Frank e o capitão, que a encaravam, atônitos, e saiu, porta afora.

Houve um silêncio momentâneo antes que os três falassem, ao mesmo tempo:

_ Ora, ora _ disse Lucy, abobalhada.

_ Que absurdo... _ murmurou o capitão Parker, que sempre se sentira lisonjeado com a tímida adoração de Hester, que hoje se desvanecera por completo.

_ Deus do céu! _ exclamou Frank. _ Ela está mais feiosa que nunca e cada vez mais desagradável e rude. Não quero essa moça aqui em casa de novo, Lucy.

_ Deixe disso, Frank. Ela é uma coitada. _ Interrompeu-se, pensativa. _ Você não acha que ela esteja realmente com fome, acha? Talvez seja esse o problema. Delírio de fome. Eu deveria ter oferecido a ela alguma coisa. Nunca parei para pensar como Hester está vivendo, agora que Fred está morto. Oh, meu Deus!

_ Não, Lucy, o problema são esses plebeus com os quais ela anda se misturando _ disse o capitão, em um tom lúgubre. _ Ela era uma coisinha suportável, ainda que feiosa. Agora, está mais feia do que nunca e um pouco agressiva também. _ Parker sentia-se aliviado. Felizmente, a piedade não o levara a dizer a Hester qualquer coisa que pudesse ser interpretada como um pe­dido de casamento.

 

Hester caminhou para casa com um sentimento estranho. Dei­xara a raiva falar mais alto. Por um instante, não sentiu remorso. Provavelmente, sentiria depois. Durante toda a vida, tinha sido uma criança tímida que mal ousava levantar a voz. Todos faziam questão de deixar claro que qualquer coisa que tivesse a dizer era de pouca ou nenhuma importância.

A mãe a ignorava. Fred, seu pai, tratava-a simplesmente como uma criada muito conveniente, já que mesmo uma criada não suportaria o tratamento que ele dispensava à própria filha.

Nesse dia, ela levantara a voz e fizera sua presença ser per­cebida também. Estava perplexa com a própria ousadia.

Ao virar a esquina, chocou-se com Tom Dilhorne.

Ele deu um passo atrás, algo surpreso e um pouco divertido ao perceber seu ar desafiador.

_ Boa tarde, srta. Waring.

_ Boa tarde, sr. Dilhorne.

_ Atarefada, srta. Waring? _ Ele olhou, com ar sério, para o horrível vestido que ela segurava contra o peito.

Novamente, Hester se viu tomada por uma onda de ira, igual a que a assaltara na casa de Lucy.

_ Sim, pode-se dizer que sim, sr. Dilhorne. Estava arrumando este vestido para a festa do Conselho.

_ Pretende comparecer, então _ disse ele, com um trejeito dos lábios.

No instante em que deixava transparecer o senso de humor, Hester se transformava. Ele estava certo. Havia alguma coisa, uma paixão ardente queimando sob aquele exterior sem graça.

_ Sim, pode-se dizer que honrarei a festa com minha presença.

_ Muito gratificante, srta. Waring. Vou esperar com ansiedade para vê-la por lá.

_ Realmente, sr. Dilhorne? O senhor me surpreende. Pensei que estava acostumado a reuniões menos, digamos assim, decorosas!

_ Ao contrário, srta. Waring _ retrucou ele, muito sério. _ Estarei lá amanhã, com o mais profundo interesse.

Ele a cumprimentou com um gesto de cabeça. Ela respondeu. Que se danasse, ele e seu cinismo! Olhara para seu vestido com um ar de crítica.

Tom conhecia o delírio do desespero e da inanição. Ficou a imaginar se ela tinha noção do como o fitara por uma ou duas vezes e também o que poderia tê-la deixado tão alvoroçada. Bem, iria descobrir no dia seguinte. Só que Hester nunca iria lhe con­fessar que a chama que a iluminava tinha sido atiçada por ele.

 

A festa do Conselho da escola não eram, como Hester poderia ter adivinhado, o mais excitante dos eventos. Sabia que, em uma sala repleta de homens e mulheres trajados com simplicidade, ela era a pior de todas. Mesmo os laçarotes de Lucy não tinham podido salvar seu vestido.

Por outro lado, havia muita comida, e sua boca encheu-se de água e o estômago vazio pôs-se a roncar. Teve que se esforçar para agir como uma moça educada e servir-se de apenas um pouco.

Tom estava na mesa-de-cabeceira. Vestira-se de forma extre­mamente elegante para a ocasião, colocando um colete com pavões delicadamente bordados, e uma pérola negra na gravata. Ao es­colher o traje, ele mesmo se perguntara a quem estaria tentando impressionar. De lá, observou, com piedade, os esforços de Hester para disfarçar a fome.

Hester estava com uma disposição de espírito muito diferente da do dia anterior. A comida a encantava, mas a euforia de sua visita a Lucy se desvanecera. Fora vencida pela vergonha diante da lembrança de seu comportamento, não apenas para com Lucy, mas também para com Tom Dilhorne.

O que ele haveria de pensar a respeito dela? Ao recordar do último comentário que lhe atirara na cara, sentiu-se queimar. Não podia imaginar por quê.

Se alguém lhe dissesse que ela estava começando a se sentir sexualmente atraída por Tom Dilhorne, Hester iria negar até o último suspiro. Mesmo a revelação que a atração pelo capitão Par­ker havia se desvanecido não tinham mostrado a verdade a ela. Nem seu fôlego curto e a excitação que a inundou, quando Tom se aproximou.

Imediatamente, Hester viu-se presa da mais estranha das sen­sações. Era como se não estivesse usando nada sobre a pele! Uma agitação esquisita tomou conta de seu estômago. Nada, em sua curta existência, preparara-a para tais sensações. Teve medo de estar acometida por uma febre. De repente, tinha consciência plena de seu próprio corpo. Pior, tinha consciência do corpo de Tom Dilhorne.

Tudo ao redor pareceu brilhar, ficar iluminado. Os cabelos toiros de Tom, com suas ondas suaves, seus olhos de um azul profundo, o estranho trejeito de sua boca que traia o humor sarcástico com que quase sempre falava com ela, a largura de seus ombros, a solidez de seu peito, o comprimento de suas pernas, sua altura... ele tinha que se curvar para conversar com ela.

Oh, não podia ficar tão ansiosa, de uma forma tão pouco ade­quada para unia dama, não podia. Lutou com dificuldade para respirar, morta de vergonha pelas sensações confusas que a in­vadiam E, de repente, começou a se comportar da forma estúpida. Voltara a ser a apavorada srta. Waring da entrevista.

_ Está se divertindo, srta. Waring?

_ Muito, porém temo que não seja graças a você _ respondeu ela, amarga. _ Se fosse por sua vontade, eu não teria conseguido o emprego.

O rosto de Tom se endureceu. Tinha consciência de que ela devia pensar assim, mas, estranhamente, para o homem frio e calculista que era, ouvi-la falar dessa maneira o feriu.

_ Apesar disso _ ele retrucou, continuando a tratá-la com delicadeza _ , é Natal, afinal de contas, srta. Waring. E quaisquer reservas que eu pudesse ter com relação a sua indicação desapa­receram diante de seu esplêndido desempenho.

Hester afastou-se para que ele não pudesse ver seus olhos se encherem de lágrimas. Reprovou-se intimamente pela falta de edu­cação. Ao voltar-se, viu Jardine, que ouvira a conversa, e que olhava para ambos com curiosidade.

Jardine cumprimentou-a com a deferência de sempre.

_Srta. Waring, gostaria de lhe dizer umas palavras.

_Decerto, sr. Jardine. _ Ela desviou o olhar. Nunca antes se sentira tão feiosa e mal vestida.

_ Srta. Waring, posso entender como se sente em relação ao sr. Dilhorne. Toda Sídnei sabe do ódio que seu pai nutria para com ele. Porém, eu lhe asseguro, a senhorita o julga mal. A verdade é outra. Longe de tentar impedir sua nomeação, foi por intervenção dele que você conseguiu o posto. O Conselho jamais a indicaria se não fosse a defesa que Dilhorne fez a seu favor.

Jardine pensou que Hester fosse desmaiar. O rosto da moça adquiriu uma desagradável tonalidade amarela-acinzentada, e ela oscilou sobre os pés. Tom, que estava conversando com Godfrey Burrell, mas que mantinha os olhos em Hester, percebeu o que estava acontecendo e correu para o lado dela.

_ Srta. Waring, está se sentindo mal? O que aconteceu, Jardine7

Jardine não tinha intenção de contar a verdade.

_ Acho que a srta. Waring está se ressentindo do calor.

_ Então, precisamos tirá-la daqui, homem.

Dilhorne tomou a moça semi-inconsciente no colo e carregou-a para uma ante-sala, longe dos olhos curiosos, acomodando-a gen­tilmente em uma poltrona.

_ Agora, Jardine. Imediatamente.

Jardine, vendo finalmente confirmadas todas suas suspeitas sobre Tom e seu interesse em Hester, saiu apressado.

_ Não estou inteiramente inconsciente, sr. Dilhorne _ Hester gaguejou, em um fio de voz. _ Estou me sentindo apenas um pouco fraca e muito envergonhada.

_ Sra. Waring, você pode não estar desmaiada, mas parece muito doente _ disse Dilhorne, em um tom preocupado, que jamais Hester ouvira de alguém em toda sua vida. Seus olhos se encheram de lágrimas.

_ Deve ser porque comi demais e porque tenho agido de forma terrível.

_ Não posso acreditar nisso, srta. Waring.

_ Ah, mas devia, sr. Dilhorne. Eu me comportei muito mal com você hoje. O que eu disse sobre a entrevista foi imperdoável. O sr. Jardine me contou o que fez por mim, naquele dia. Não brigue com ele por ter me dito isso. Ele tinha razão. Não podia deixar que eu o insultasse quando tinha sido tão generoso.

Olharam-se, em silêncio. Tom, pela primeira vez, via-se sem palavras.

_Gosto de seu colete _ disse Hester, inesperadamente.

_ Não se recrimine _ respondeu Dilhorne gentilmente. _ Diante das circunstâncias, era natural que você pensasse assim.

_ De forma alguma _ ela retrucou. _ Eu não devia ter chegado a conclusões tão erradas. Você sempre se mostrou muito gentil em suas visitas, levando-me os livros, os doces para as crianças.

_ De súbito, emendou, parecendo delirar: _ Lá em casa, tínhamos pavões no jardim...

_ Quando Jardine voltar com a água e você tiver bebido um pouco, eu a levarei para casa _ disse Tom. _ Está exausta e precisa descansar.

Os olhos de Hester se fecharam.

_ Como sabe que estou cansada? Acho que eu poderia dormir para sempre...

Dilhorne poderia ter dito a ela que a comida e a bebida as quais não estava acostumada e o choque com as palavras de Jar­dine eram os responsáveis por esse seu estado, assim como o fim de meses de sofrimento. Nada disse, porém. Apenas ajudou-a a beber a água. Até mesmo segurar o copo, Hester não conseguia.

Ao ver que ela se recostava de novo, os lábios lívidos, ele a tomou no colo e carregou-a pelo salão até o carro, diante dos olhos atônitos do Conselho e dos professores.

Pouco antes do Natal, Hester havia procurado Jem Larkin, pe­dindo a ele que lhe desse alguns dias para o pagamento da parcela da dívida de seu pai. Larkin havia dito que cobraria juros pelo tempo de atraso.

Hester havia engolido em seco, porém concordara. Precisava de algum dinheiro para comprar uni presente para a sra. Cooke e algumas guloseimas para as crianças da escola.

Logo depois disso, Tom aparecera na sala de aula com uni pacote de balas e um bolo de passas para ela e os alunos.

Deitada na cama, na noite da festa, ela se recordou, dolorosamente, de outras pequenas gentilezas que ela e as crianças haviam recebido por parte de Dilhorne durante semanas. Era como se o veneno que seu pai havia destilado em seus ouvidos por tantos anos houvessem feito com que não percebesse a forma gentil como ele a tratava. Bem, Dilhorne podia ser um homem perigoso nos negócios, porém com ela, não era assim.

Lembrou-se da festa e não pôde deixar de recordar do senti­mento cálido que havia experimentado quando ele a carregara pelo salão, chamando a sra. Cooke para ajudar a levá-la para casa. Aninhada em seus braços, Hester não sentira medo ou raiva, apenas uma sensação de conforto e segurança.

O semblante da era. Cooke se transformara em um imenso ponto de interrogação. Depois que Tom se fora, ela havia ajudado Hester a se despir. Descera a escada e voltara, ainda com a mesma expressão no rosto, trazendo um copo de licor de cho­colate quente na mão e alguns biscoitos deliciosos em um prato. Tudo aquilo, disse, havia chegado pelas mãos de um empregado de Tom Dilhorne.

_ É um enigma, esse Tom _ comentou a sra. Cooke. _ Mary Mahoney disse que nunca se sabe em que terreno se pisa, com ele. Eu, porém, não me importo em beber seu maravilhoso licor e em comer suas finas guloseimas.

Hester não podia fazer outra coisa, a não ser concordar. Sen­tadas na cama, as duas dividiram a comida e a bebida enquanto conversavam. Aqui e ali, a velha tentava arrancar dela o motivo pelo qual Tom a teria levado para casa e a presenteava com coisas deliciosas.

Hester não saberia dizer.

Gole a gole, logo as duas ficaram levemente embriagadas e caíram no sono. Dormiram juntas, a era. Cooke enrolada no xale

_ Não estou inteiramente inconsciente, sr. Dilhorne _ Hester gaguejou, em um fio de voz. _ Estou me sentindo apenas um pouco fraca e muito envergonhada.

_Sra. Waring, você pode não estar desmaiada, mas parece muito doente _ disse Dilhorne, em um tom preocupado, que jamais Hester ouvira de alguém em toda sua vida. Seus olhos se encheram de Lágrimas.

_Deve ser porque comi demais e porque tenho agido de forma terrível.

_Não posso acreditar nisso, srta. Waring.

_Ah, mas devia, sr. Dilhorne. Eu me comportei muito mal com você hoje. O que eu disse sobre a entrevista foi imperdoável. O sr. Jardine me contou o que fez por mim, naquele dia. Não brigue com ele por ter me dito isso. Ele tinha razão. Não podia deixar que eu o insultasse quando tinha sido tão generoso.

Olharam-se, em silêncio. Tom, pela primeira vez, via-se sem palavras.

_Gosto de seu colete _ disse Hester, inesperadamente.

_Não se recrimine _ respondeu Dilhorne gentilmente. _ Diante das circunstâncias, era natural que você pensasse assim.

_De forma alguma _ ela retrucou. _ Eu não devia ter chegado a conclusões tão erradas. Você sempre se mostrou muito gentil em suas visitas, levando-me os livros, os doces para as crianças.

_ De súbito, emendou, parecendo delirar: _ Lá em casa, tínhamos pavões no jardim...

_Quando Jardine voltar com a água e você tiver bebido um pouco, eu a levarei para casa _ disse Tom. _ Está exausta e precisa descansar.

Os olhos de Hester se fecharam.

_Como sabe que estou cansada? Acho que eu poderia dormir para sempre...

Dilhorne poderia ter dito a ela que a comida e a bebida as quais não estava acostumada e o choque com as palavras de Jar­dine eram os responsáveis por esse seu estado, assim como o fim de meses de sofrimento. Nada disse, porém. Apenas ajudou-a a beber a água. Até mesmo segurar o copo, Hester não conseguia.

Ao ver que ela se recostava de novo, os lábios lívidos, ele a tomou no colo e carregou-a pelo salão até o carro, diante dos olhos atônitos do Conselho e dos professores.

Pouco antes do Natal, Hester havia procurado Jem Larkin, pe­dindo a ele que lhe desse alguns dias para o pagamento da parcela da dívida de seu pai. Larkin havia dito que cobraria juros pelo tempo de atraso.

Hester havia engolido em seco, porém concordara. Precisava de algum dinheiro para comprar um presente para a sra. Cooke e algumas guloseimas para as crianças da escola.

Logo depois disso, Tom aparecera na sala de aula com um pacote de balas e um bolo de passas para ela e os alunos.

Deitada na cama, na noite da festa, ela se recordou, dolorosamente, de outras pequenas gentilezas que ela e as crianças haviam recebido por parte de Dilhorne durante semanas. Era como se o veneno que seu pai havia destilado em seus ouvidos por tantos anos houvessem feito com que não percebesse a forma gentil como ele a tratava. Bem, Dilhorne podia ser uni homem perigoso nos negócios, porém com ela, não era assim.

Lembrou-se da festa e não pôde deixar de recordar do senti­mento cálido que havia experimentado quando ele a carregara pelo salão, chamando a era. Cooke para ajudar a levá-la para casa. Aninhada em seus braços, Hester não sentira medo ou raiva, apenas uma sensação de conforto e segurança.

O semblante da era. Cooke se transformara em um imenso ponto de interrogação. Depois que Tom se fora, ela havia ajudado Hester a se despir. Descera a escada e voltara, ainda com a mesma expressão no rosto, trazendo um copo de licor de cho­colate quente na mão e alguns biscoitos deliciosos em um prato. Tudo aquilo, havia chegado pelas mãos de um empregado de Tom Dilhorne.

_ E um enigma, esse Tom _ comentou a era. Cooke. _ Mary Mahoney disse que nunca se sabe em que terreno se pisa, com ele. Eu, porém, não me importo em beber seu maravilhoso licor e em comer suas finas guloseimas.

Hester não podia fazer outra coisa, a não ser concordar. Sen­tadas na cama, as duas dividiram a comida e a bebida enquanto conversavam. Aqui e ali, a velha tentava arrancar dela o motivo pelo qual Tom a teria levado para casa e a presenteava com coisas deliciosas.

Hester não saberia dizer.

Gole a gole, logo as duas ficaram levemente embriagadas e caíram no sono. Dormiram juntas, a era. Cooke enrolada no xale por cima da cama, e Hester entre os lençóis. A manhã de Natal encontrou-as com as cabecinhas ligeiramente pesadas de ressaca.

 

Hester deu seu presente de Natal à era. Cooke, que a convidou para o jantar de comemoração. Ambas estavam ocupadas com o molho, quando o mensageiro de Tom apareceu. Trazia uma carta para Hester, uma garrafa de vinho do Porto e um enorme pudim de ameixas para ambas.

Hester abriu a carta em frente à senhoria, que queimava de curiosidade. A letra, no envelope, era de uma caligrafia elegante e clássica, e Hester ficou a pensar, por um instante, se fora o secretário de Tom que a subscrevera. Dentro, porém, a letra era a mesma e, sem dúvida, era dele. Perguntava se ela se sentia melhor, pedia que aceitasse a garrafa de Porto e o pudim como um presente de Natal, e desejava poder vê-la bem, e de volta à escola, depois da passagem do ano.

Levantou os olhos e deparou-se com o ar de interrogação da era. Cooke. Esquivou-se de dizer qualquer coisa. Não tinha a menor idéia do motivo que levava Tom Dilhorne a enchê-la de gentilezas.

No jantar, Hester descobriu-se contando à sra. Cooke sobre o colete de Tom, todo bordado com pavões, e da pérola negra que usava na gravata.

_ Que extravagância! _ foi o comentário da senhora. _ Eu me lembro dele, percorrendo as ruas de Sldnei logo quando chegou aqui, um rapazola atrevido de pernas compridas, se bem me recordo. Quem iria pensar em vê-lo assim elegante e falando tão bem?

Hester fixou os olhos turvos na companheira: o vinho já fizera seu efeito.

_ Elegante não é bem a palavra _ ela corrigiu, com a voz arrastada. _ Alguém poderia pensar que ele usou roupas assim durante toda sua vida. _ Sorriu, diante de uma súbita recordação.

_ Quando eu era menina, nós tínhamos pavões em casa. Bichos barulhentos. Gritavam e abriam a cauda. Lindos! Mamãe não gos­tava deles. Enfim, ela não gostava de muita coisa. Exceto de Row­land _ emendou.

Depois do jantar, as duas deixaram-se cair no sofá, para um cochilo prazeroso. Mais tarde, degustaram um chá excelente, que aliviou os vapores do álcool. O chá, evidentemente, viera das mãos de Tom Dilhorne.

As festas de fim de ano ficaram para trás, e as preocupações de Hester voltaram. Larkin havia dado a ela até o dia cinco de janeiro para pagar os juros. Assim, depois das aulas, ela contou o dinheiro, colocou-o na bolsa e rumou para o pequeno estabele­cimento de crédito. Tinha plena consciência de que a quantia que estava prestes a entregar ao agiota poderia alimentá-la e vesti-la pelo resto do mês.

O escriturário olhou-a com insolência e apontou para a sala de Larkin, quando ela pediu para vê-lo. Ela já se acostumara com essa falta de educação.

_ Boa tarde, sr. Larkin _ disse ela, abrindo a bolsa e come­çando a contar o dinheiro. _ Vim pagar o que lhe devo.

Larkin fitou-a com estranheza.

_ Não é preciso, srta. Waring, não é preciso.

_ Como, sr. Larkin? Não estou entendendo...

_ As dívidas de seu pai foram compradas por um colega de negócios, que queimou as promissórias em minha frente. O débito não existe mais. Pode guardar seu dinheiro.

_ Comprou as dívidas de meu pai e cancelou-as, foi o que disse, sr. Larkin?

_ Na verdade, srta. Waring, foi isso.

_ Mas, quem? _ ela indagou. _ Pode, por favor, me informar, sr. Larkin?

_ Não, srta. Waring. Ele deu ordens expressas que seu nome não fosse revelado.

Só Deus sabia como ela estava feliz por não ter mais essa pedra em seu caminho. Porém, a transação toda a deixava com um es­tranho sentimento de indignação.

_ Foi o sr. Dilhorne, não foi, sr. Larkin?

_ Não tenho liberdade para dizer.

_ Não há necessidade de dizer mais nada, sr. Larkin. Sei que foi o sr. Dilhorne. Quem mais poderia ser? O que ele pensa estar fazendo, comprando as dívidas de meu pai sem falar comigo?

_ Não posso acrescentar mais nada, srta. Waring. Se posso lhe dar um conselho, escute: você deveria ficar agradecida à pessoa que me pagou e poupou-a desse encargo.

Poupou-me desse encargo?, pensou Hester, indignada. Garrafas de vinho, biscoitos, licor de chocolate, pudim de ameixas, votos de felicidade pelo Natal! O homem estava louco?

Saiu apressada em direção ao escritório de Tom, determinada a enfrentá-lo. Sim, enfrentá-lo. Porém, quanto mais perto estava do prédio, mais compreendia tudo o que ele havia feito, desde o dia em que ela chegara às portas de cedro da rua George, entrada para o Conselho da Escola. Toda a raiva se esvaiu. Não sabia o que dizer a ele. Alguma coisa, porém, precisava ser dita.

Se Joseph Smith, o escriturário de Tom, ficou surpreso ao vê-la, nada demonstrou.

_ Senhor _ disse Hester circunspecta _ , desejo falar com o sr. Dilhorne. Por favor, diga-me se ele está e se posso vê-lo.

_ Certamente _ retrucou Smith, todo cortês, com uma ligeira inclinação de cabeça. _ Srta. Waring, não é?

O homem sumiu dentro do escritório. Logo depois, retornava.

_ O sr. Dilhorne está e pode recebê-la. Por favor, por aqui.

O escritório de Tom Dilhorne era enorme, com duas janelas envidraçadas, instalado em um dos primeiros edifícios da cidade, resultado do desejo do governador Macquarie de tornar Sídneí uma bela cidade, nos moldes das capitais européias.

Tom deu a volta à escrivaninha de madeira maciça, indicando a ela uma cadeira. Estava imaculadamente vestido, e seu efeito sobre Hester foi tão forte quanto tinha sido na festa de Natal.

Tomada de uma estranha excitação, ela encarou-o sem medo. Pagar pelos débitos de meu pai, realmente!, pensou. Quem o autorizara a isso?

_ Boa tarde, srta. Waring. A que devo a honra de sua visita?

_ Vim conversar com o senhor.

Ele endereçou a ela seu sorriso enviesado e encantador. E, em seu estado de perturbação, Hester registrou na mente a maneira com a boca de Tom se curvava no canto e uma sobrancelha se arqueava, dando a ele um ar de pirata, que, longe de assustá-la, como sempre fizera, deixava-a desarmada. Mas não se deixaria levar por essas sensações, de jeito nenhum!

_ Sim, eu percebi, srta. Waring. O que posso fazer por você?

_ Não é o que o senhor pode fazer por mim, sr. Dilhorne, mas o que já fez.

Ele simplesmente sorriu, com uma expressão de curiosidade.

_ Ora, não estou acompanhando seu raciocínio.

_ Como se não fosse bastante ter cumulado de presentes a era. Cooke e a mim, com comida, bebida, e pudim de ameixa, você também comprou e destruiu as promissórias de meu pai. Por favor, tenha a bondade de se explicar.

_ Pensei que você e a sra. Cooke iriam apreciar a comida e a bebida que mandei. O que há de errado?

_ Não há nada de errado, sr. Dilhorne. Claro que apreciamos. Gostamos tanto que ficamos satisfeitas por dois dias. Não é essa a questão. A questão é que comprou todas as dívidas restantes de meu pai e destruiu os documentos. Com que direito fez isso e qual a razão?

Ele puxou uma cadeira em frente a ela, sentou-se e inclinou-se para frente, com um trejeito nos lábios.

_ Bem, eu pensei que você gostaria de comprar seu próprio vinho do Porto e seu pudim de ameixa, no futuro.

Ele estava tão próximo que Hester podia ver as linhas de ex­pressão em seu rosto, a força de suas mãos que repousavam no colo, e sentir seu cheiro de homem asseado, tão diferente do cheiro azedo do finado Fred, em seus últimos dias. A indignação começou a ceder. O senso de humor e do ridículo, longamente escondidos sob a opressão, a escravidão e a negligência, emergiram ante a uma conversa tão cheia de entrelinhas.

_ Você sabe perfeitamente bem a que estou me referindo, ar. Dilhorne. Por quê, ora essa, vem falar de pudins de ameixa?

_ Acho que foi você que tocou no assunto, srta. Waring.

_ Oh, por que não pode falar sério? _ Ela gemeu.

_ Porque você tem levado a vida muito a sério, por tempo demais. Um momento, srta. Waring.

Ele levantou-se da cadeira e atravessou a sala até um esplêndido aparador de carvalho, onde havia várias garrafas de bebida. Abriu uma garrafa de vinho tinto. Encheu dois cálices e voltou a sen­tar-se. Estendeu-lhe um dos copos. Boquiaberta, ela notou que a taça era de qualidade insuperável, como tudo, aliás, no aposento.

_ Agora, está agradando-me com vinho, novamente, ar. Dilhorne.

_ E o costume, srta. Waring. Homens e mulheres, quando concluem um negócio e partem para outro, partilham de uma taça de vinho.

Atônita com o comentário, Hester tomou o vinho de um só gole, sem pensar.

_ Outra taça, srta. Waring?

_ Certamente que não, sr. Dilhorne. Está tentando me embebedar?

_ Não hoje, srta. Waring. Outra hora, quem sabe.

_ O senhor falou em negócios, sr. Dilhorne. Que negócios? E como posso estar envolvida com eles?

_ Bem, o primeiro é a compra que fiz dos débitos de seu pai. Estamos celebrando o fato de que eu queimei os papéis para que você possa comprar seu próprio Porto e pudins. O segundo, direi assim que se sinta um pouco mais tranqüila.

_ Estou perfeitamente tranqüila, sr. Dilhorne _ ela retrucou, na voz mais firme e gelada que conseguiu. Tarefa impossível.

_Eu disse mais tranqüila, srta. Waring. Por ora, vou chamar meu secretário para que ele traga alguma coisa de comer. E meu hábito, a essa hora. Espero que compartilhe de minha refeição. Quan­do terminarmos, poderemos ter uma pequena conversa sobre assuntos de mútuo interesse. Espero que possamos chegar a um acordo.

_ Não imagino que tipo de negócio o senhor pode propor a mim, sr. Dilhorne. Aceito, porém, compartilhar de seu lanche _ acrescentou, com a boca cheia de água ao pensar na comida. A julgar por tudo que dizia respeito a ele, deveria ser espetacular. Ele levantou-se, tocou uma sineta que havia sobre a escriva­ninha, e logo Smith entrava na sala.

_ O de costume. Não, melhor, Joseph, e para dois. Tão depressa quanto possível, por favor.

Tom voltou-se para Hester. Ela se acomodara na poltrona, de olhos alertas como um gato caçador.

_ Vejamos, srta. Waring, sobre o que iremos conversar? Em nossa situação, creio que manda a educação que falemos sobre amenidades.

_ Podemos conversar sobre as notícias de casa, quem sabe...

Ele sorriu de novo, aqdele seu sorriso torto.

_ Se pensarmos que decorre quase um ano antes que cheguem até nós, concordo com você. Certamente, não querem dizer nada.

Hester não conseguiu evitar que uma risadinha lhe escapasse. E Tom fitou-a com aprovação.

_ Excelente, srta. Waring. Creio que vamos nos entender muito bem.

Seguiu-se uma batalha verbal cheia de meios sentidos. Hester nunca se sentira tão solta em sua vida. Uma conversa inconse­qüente era novidade para ela e também a facilidade com que se descobria respondendo às provocações de Tom Dilhorne a surpreen­dia. A excitação a dominava.

O secretário retornou, carregando uma cesta.

Smith caminhou até o aparador, apanhou pratos de porcelana, talheres de prata, mais copos, algumas colheres de diversos tamanhos e facas para frutas com delicados cabos entalhados em marfim. Puxando uma pequena mesa redonda, arrumou-a diante de Tom e de Hester, estendendo finalmente, a cada um, guarda­napos de linho adamascado.

Isso feito, curvou-se em um cumprimento e saiu. Tom começou a tirar da cesta pão, manteiga, queijo, carne fatiada e frutas.

_ Recomendo que prove de tudo, srta. Waring, incluindo desse vinho. _ Tirou uma garrafa da cesta e pôs-se a abri-la. Serviu-a de vinho em uma taça ainda mais fina.

Desta vez, ela pôs-se a beber aos golinhos, de maneira educada. E não tentou esconder a fome diante da bela refeição. Mal tocara em comida desde as festas de fim de ano. Tom observou-a com satisfação.

Por fim, tirou da cesta um grande abacaxi, que dividiu entre os dois. Comeram os pedaços com as mãos, entre risos, o líquido escorrendo entre seus dedos. Hester, agora em sua terceira taça de vinho, nunca havia comido abacaxi antes e achou a fruta deliciosa.

_ Uma delícia, porém faz um pouco de bagunça, não é? Diga, não há uma maneira mais elegante de comer uma especialidade como esta?

Smith entrou, trazendo uma pequena bacia e um jarro de prata, e toalhas para que pudessem lavar as mãos. Outro empregado entrou, recolhendo pratos, talheres e a cesta, deixando apenas a garrafa e os copos.

Sozinhos de novo, Tom serviu Hester de mais vinho. A terceira ou quarta taça?, ela perguntou-se, com a mente turva. Era evidente que ele estava tentando corrompê-la pelo estômago. Porém, que deliciosa sensação de bem-estar uma boa comida trazia! Só por isso, poderia perdoá-lo por qualquer coisa.

Ele sentou-se frente a ela, novamente, agora com a fisionomia muito séria.

_ Srta. Waring, tenho uma proposta a lhe fazer. Por favor, não a descarte sem pensar. Ouça cuidadosamente o que vou dizer. Sua felicidade futura pode depender disso. _ Ele fez uma pausa.

Minha felicidade futura? Devo estar ouvindo coisas. Foi o vinho, pensou Hester, tomando outro gole.

_ Como deve saber, ou talvez não saiba, srta. Waring, em breve perderei minha governanta, que vai se casar e morar em Paramatta. Não preciso dizer que desastre isso é para um homem que gosta de uma vida ordenada. Ora, você, srta. Waring, seria

uma excelente pessoa para dirigir minha casa. É perspicaz e seria urna excelente companhia com a qual eu poderia conversar.

Hester ficou a ouvir boquiaberta. Tentou imaginar-se conver­sando com ele. Tomou o resto do vinho, sentindo a cabeça ainda mais confusa, e ele apressou-se em encher a taça novamente.

_ Porém, temos um problema, srta. Waring. Por mais que eu queira empregá-la e por mais que você queira o emprego, não há como uma senhorita, encantadora e jovem como você, aceitar viver na casa de um homem como eu, que tem uma certa reputação... Você está me entendendo, tenho certeza. Pense nas fofocas que surgiriam por aí. _ Ele fez uma pausa, para depois continuar.

_ Ora, eu também preciso de uma esposa. Uma dama, que saiba tudo de etiqueta e as coisas certas a fazer. E você seria uma excelente esposa, srta. Waring. Porém, temo que não deseje, na verdade, casar-se comigo no sentido literal. Estou certo, não estou?

Hester limitou-se a concordar com a cabeça, incapaz de falar. Não tinha certeza se era o vinho ou o choque com o que ouvira. Estava paralisada. Muda.

Ele continuou.

_ Sendo assim, já que concorda comigo, o que diria se eu pedisse que se casasse comigo, nominalmente, é claro, de forma que eu tivesse uma esposa e uma governanta, e você pudesse ter segu­rança, respeitabilidade e uma boa casa? _ Tom recostou-se na cadeira, sorrindo para ela, os olhos azuis faiscando, o sorriso torto mais torto que nunca. Insistiu: _ O que diria, srta. Waring?

Hester engoliu em seco, incapaz de acreditar no que estava ouvindo.

_ Penso que ficou louco, sr. Dilhorne, embora me pareça em sua plena sanidade mental, o que, tenho de admitir, deixa-me um pouco confusa. Está falando a sério?

_ Sim, estou falando realmente a sério.

_ Nominalmente, foi o que disse? _ Hester sentiu que seria muito indelicado dizer simplesmente: Não vamos dormir juntos?, ou, Você não vai exigir seus direitos de marido? Estava realmente tendo uma conversa inacreditável com ele ou era tudo um sonho? Estava bêbada?

_ Sim, nominalmente, srta. Waring. Pode me entender, tenho certeza.

_ Como vou saber se, uma vez casados, você vai manter sua palavra?

_ Sempre mantenho minha palavra. É a alma de meus negó­cios. Talvez fosse melhor que Joseph Smith redigisse um contrato para que assinássemos. Que acha, srta. Waring? Um de meus escriturários pode servir de testemunha.

Um riso nervoso escapou dos lábios de Hester.

_ Acho que não, sr. Dilhorne, não iria ficar bem. Diga-me, existem muitos homens de negócio como você?

_ Felizmente não, srta. Waring, ou eu não seria tão rico.

Cada vez mais atordoada, Hester resmungou:

_ O senhor quer... ah... uma resposta... imediatamente, sr. Di­lhorne? _ Estava ficando difícil falar. Sua língua parecia estar in­chada, e a cabeça rodava. Precisava descansar. Oh, como precisava!

_ Não, srta. Waring. Pode me dar a resposta quando quiser. Espero que não demore muito. Nenhum de nós está ficando mais jovem a cada dia que passa.

_ Sem dúvida, sr. Dilhorne. _ Uni sono incontrolável a do­minava. _ Sem demora, então.

O que era isso? Cada vez que se encontrava com ele ficava com sono? E essa proposta absurda? Uma parte de si desejava respon­der sim, imediatamente. Outra parte, influenciada pela criação dos pais, dizia que ela estava louca em confiar nesse rufião, não importava a forma magnífica com que hoje ele se vestia e falava.

Seu Mentor, de súbito, emergiu. Devia ter ficado adormecido, enquanto Tom Dilhorne a enchia de vinho para dobrá-la a sua vontade, e murmurou, provocador: Pense no conforto, na comida boa, na conversa, você gosta de conversar com ele, você sabe que gosta... E você estará a salvo dos Larkins da vida e de seus fun­cionários atrevidos.

Hester bocejou e entregou os pontos.

_ Eu lhe darei uma resposta em uma semana, sr. Dilhorne.

Colocando cuidadosamente o copo ao lado da garrafa praticamente vazia, ela acomodou-se na poltrona e mergulhou no sono.

Com um misto de divertimento e ternura, uma expressão que teria deixado atônito qualquer um que o conhecesse, Tom Dilhorne fitou-a e, levado por um impulso que não conseguiu identificar, inclinou-se e beijou-a na testa.

Ergueu-se, caminhou para a escrivaninha e retomou o trabalho interrompido, não sem antes olhar para o rosto de Hester, sereno no sono. Murmurou, para si mesmo:

_ E se eu não levá-la por sua livre vontade para minha cama em poucas semanas depois do casamento, não me chamo Tom Dilhorne!

 

Hester acordou com uma sensação de bem-estar e um desejo imperioso de usar o banheiro.

Tom pareceu compreender. Apontou para uma porta atrás de si, dizendo:

_ Por ali, srta. Waring.

Hester saiu pela porta e para o quintal, até a edícula onde ficava o banheiro, antes que tivesse tempo para ficar ruborizada ou enver­gonhada com os pequenos detalhes da vida. Necessidades satisfeitas, ficou a pensar na natureza estranha de seu improvável benfeitor. E na curiosa intimidade a que haviam chegado, em que não precisavam de palavras para tratar as coisas com racionalidade.

Depois disso, foi para casa, como uma dama, no coche que ele providenciou, com a promessa de lhe dar uma resposta em breve. O empregado deixou-a na porta, para êxtase da sra. Cooke.

 

                                       CAPÍTULO V

Hester não precisou de uma semana para se decidir. Soubera, desde o momento em que ele lhe fizera a proposta, que iria aceitá-la. Entre escandalizada e chocada, perce­bera que estava disposta a vender a própria alma em troca de se­gurança. Não teria concordado se fosse uni casamento de verdade, porém, ser esposa, governanta e anfitriã sem ter de partilhar a cama com ele parecia um bom negócio. Tom dissera que honraria o com­promisso assumido, tinha que acreditar que assim seria.

Estaria bem instalada, e sua vida não seria insípida, se as conversas que haviam trocado pudessem ser alguma indicação. Nessas ocasiões, seu pavoroso Mentor constantemente a provocava, levando-a a fazer os mais impróprios comentários. O que faria quando ela estivesse a sós e a portas fechadas com Tom?

Hester afastou para longe as preocupações e concentrou-se fir­memente nas partes mais impessoais do acordo. Nada havia a temer, tinha certeza. Depois de Mary Mahoney, disse-lhe seu Men­tor, sem qualquer delicadeza, por que ele haveria de querer levá-la para a cama? Talvez por piedade, quem sabe...

Ela levou a mão ao rosto em chamas e gritou à horrível voz para que parasse. Não era nada disso. Só não queria ser s~ia esposa de verdade. Tinha medo dele, apenas.

Não tanto quanto já teve, a voz do Mentor insistiu, e quando o conhecer melhor, seus medos serão menores ainda.

Em meio a suas aflições, o mensageiro de Dilhorne apareceu, mais uma vez, com uma cesta de frutas e algumas flores.

_ Se eu não conhecesse bem a ambos, eu diria que você tem um admirador, srta. Waring _ foi o comentário espantado da sra. Cooke, enquanto se deleitava com uma das frutas.

Ao encontrar com Hester na rua, no dia seguinte, Tom incli­nou-se gentilmente e murmurou um cumprimento em tom suave. Por suas maneiras, ela percebeu que ele estava começando uma brincadeira que seu Mentor teria qualificado como o “jogo do gato e o rato».

_Ainda não tenho uma resposta para você _ disse Hester, em um tom irritado. _ A semana não terminou, e você não precisa insistir no assunto, bombardeando-me com frutas.

_Ah, você e a sra. Cooke não gostam de frutas? Que pena! Posso lhe mandar vinho, então? Sei que disso você gosta. _ Seus olhos sorridentes caçoavam dela, embora seu rosto continuasse sério.

_Não deve me mandar coisa alguma até que eu tenha me decidido, ar. Dilhorne. Ou vou pensar que está tentando influenciar minha resposta.

_E você não acha que seria sábio de minha parte, srta. Waring? Tal conduta normalmente é considerada útil nos negócios.

_Isso, porém, não é um negócio, ar. Dilhorne _ retrucou Hes­ter, impulsivamente. Logo percebeu que o comentário a deixava exposta aos ataques de Tom, novamente.

_Não é? Eu tinha a impressão de que sim. Corrija-me, se estou enganado. Se bem me lembro, até falamos de um contrato por escrito.

_Você falou em um contrato escrito, ar. Dilhorne _ respondeu Hester. Era fácil para ele desarmá-la, fazendo-a ter vontade de cair na risada. _ Creio que falei bem pouco.

_Muito prudente e bastante recomendável de sua parte, srta. Waring. Quanto menos alguém fala, menos se compromete.

_Por que enveredamos sempre para uma conversa tão ridícula, sr. Dilhorne?

Ele a observou, muito sério.

_Se aceitasse meus presentes com a intenção com os quais são enviados, srta. Waring, poderíamos, quem sabe, travar uma discussão mais substancial e profunda. A natureza da Santíssima Trindade, por exemplo.

_Oh, você é impossível! _ Hester exclamou, em uma garga­lhada. _ Eu lhe darei minha resposta na terça-feira, e você vai me prometer portar-se com seriedade, ou não posso responder por mim mesma.

 

Na terça-feira, ao sair da escola depois de um dia atarefado de trabalho, Hester encontrou Tom esperando por ela, do lado de fora. Ele estava impecavelmente vestido, como de costume. Puse­ram-se a caminhar, lado a lado. Tom estava determinado a manter a seriedade, nessa ocasião tão importante, e Hester ficou surpresa ao perceber que lamentava um pouco tal fato.

_Teve um bom dia, srta. Waring? _ perguntou ele, em um tom tão solene, que Hester precisou conter uma risada.

_Na verdade, sim, sr. Dilhorne. _ Ela se esforçou por res­ponder. _ E você?

_Tolerável, srta. Waring, tolerável.

Calaram-se e continuaram caminhando em direção à casa da ara. Cooke, despertando olhares curiosos por onde passavam. O que estaria a srta. Waring, uma moça tão compenetrada, fazendo na companhia de um safado, como Dilhorne?

Assim que chegaram, Tom perguntou:

_Pode me dar a honra de me fazer saber a decisão a que chegou a respeito de minha proposta, srta. Waring?

Hester percebeu que tremia. Agora, que chegara o momento da verdade, estava com medo de não ter condições de dizer aquilo que precisava.

Tinha pensado e pensado acerca da proposta de Tom. Ao final, concluíra que a única pessoa a quem precisava agradar, no mundo, era a si mesma. Ele oferecia muito a ela em troca de pouco, e o único pagamento solicitado era que se apresentasse aos olhos do mundo como a esposa de Dilhorne. Todos os que estariam prontos a criticá-la pela decisão encontravam-se confortavelmente estabe­lecidos e não tinham nem sequer idéia de quais as alternativas que restavam a ela.

_Na verdade, sr. Dilhorne, ficarei feliz em aceitar sua proposta de casamento nos termos combinados. E me casarei quanto você achar conveniente.

Ele inclinou-se e, em uma atitude respeitosa, levou a mão de Hester até os lábios, surpreendendo não só a ela como a uma velha senhora que atravessava a rua. Estavam se tornando o alvo de fofocas em Sídnei, pensou Hester, sufocando uma risada.

_Então, srta. Waring, acho que é meu dever dizer-lhe que, agora que me deu sua resposta, e estou realmente honrado com ela, você deve visitar minha casa, tão logo quanto possível, já que será sua também, para que possa fazer as mudanças que julgar convenientes.

_Ficarei feliz em fazer isso, ar. Dilhorne, e em tomar chá com você, se eu puder. Porém, julgo mais apropriado levar comigo uma companhia feminina. Você não tem uma senhora em casa para me receber.

_Ah, srta. Waring, você sempre sabe as coisas certas. Quem poderia acompanhá-la?

_Pensei na sra. Wright.

_Mas, o que iria dizer o tenente Wright?

_Bem, eu me permito dizer que Frank sempre faz o que Lucy quer, e, além disso... _ Ela ergueu timidamente os olhos, tentando adivinhar como poderia provocá-lo, desta vez _ . .acha que Lucy adoraria ver com os próprios olhos a casa que todos em Sidnei chamam de bárbara, não concorda?

_Você nunca pára de me surpreender, srta. Waring. _ E, nesse comentário divertido, havia sinceridade. _ Quando posso esperá-la, e a que horas?

_Na próxima sexta-feira, se lhe convém, às quatro horas da tarde. Nesse horário, uma xícara de chá seria bem-vinda.

Ele inclinou-se, em um cumprimento. Hester pensou, com uma certa ironia, que somente o ar. Tom Dilhorne poderia ter aceitado receber uma resposta no meio da rua. E, ao fazer isso, havia pou­pado a ela o embaraço de ter de convidá-lo a entrar, expondo a ambos à curiosidade da sra. Cooke. Tudo que ele fazia parecia ter um propósito, concluiu.

_Tenho certeza de que não irá lamentar nosso acordo, srta. Waring.

Ele deixou-a, em passos lépidos. Estava contente com a vida e consigo mesmo. Quanto a Hester, esta não estava certa do que sentia.

 

Hester colocou seu melhor vestido, o que não queria dizer grande coisa, pensou, com tristeza, e foi visitar Lucy Wright. A amiga a recebeu calorosamente, reclamando do longo tempo que se passara desde sua última e desastrada visita.

Quando tentara convidá-la para a festa de Natal, Frank, pela primeira vez, havia feito pé firme, e dissera que não a queria em sua casa. Lucy desistira. Agora, ao cumprimentar a amiga, recor­dou-se que Sarah Kerr havia comentado que Hester parecia não ter nada para comer, tal sua magreza. Observando-a melhor, via que seu vestido era tão velho quanto aquele que trouxera para reformar para o Natal. Bem, quanto a isso, nada podia fazer.

Porém, alguma coisa para comer, isso poderia providenciar. Tocou a sineta, pediu chá, pão e manteiga e algumas fatias de bolo de passas.

Hester tentou tomar o chá sem parecer gulosa. Uma tarefa difícil. O salário agora dava para comprar um pouco mais de co­mida, ainda não o bastante para satisfazê-la. Torceu as mãos, aflita: ia ser mais dificil do que pensara pedir o favor a Lucy.

_Lucy, preciso pedir a você _ murmurou de súbito.

_Você sabe que estou sempre pronta a fazer algo para ajudá-la _ retrucou Lucy solicita. Gostava de se julgar uma pessoa generosa.

_Vou me casar com Tom Dilhorne em breve. _ Lançando essa bomba em plena sala de Lucy, Hester calou-se.

_Casar-se! Com Tom Dilhorne? Oh, Hester, acha que isso é uma atitude prudente? Tem certeza de que quer uma coisa dessas? Não há outro pretendente? Com certeza você sabe que ele é um ex-condenado! Chegou aqui acorrentado, dizem. Além do mais, você é uma dama!

_Não, não há outro _ disse Hester dolorosamente. _ Nem haverá. Nunca. Eu gostava do capitão Parker, porém você sabe que ele nunca me proporia casamento. Não tenho dinheiro e não sou nem mesmo bonita. E óbvio, na verdade, que a maioria das pessoas me acha feiosa. Sei que outros oficiais me julgam uma piada. _ Disse isso com uma voz impassível, porém, no íntimo, havia a amarga lembrança de Jack Cameron e a maneira com que se referira a ela: “a cria horrorosa de Fred Waring”.

_Oh, não, Hester _ gemeu Lucy penalizada. _ Você não pode crer em uma coisa dessas... _ Porém, um olhar para o rosto de Hester lhe disse que a amiga devia, sim, acreditar. _ Mas... Tom Dilhorne , logo ele? Por quê? Eu nem sabia que você tinha alguma familiaridade com ele.

_Eu o conheci desde que entrei na escola. Tem sido muito gentil comigo. Pensei que ele não queria que eu fosse professora ~ por causa de papai, mas foi ele quem fez com que eu fosse indicada.

_ Interrompeu-se e decidiu contar a Lucy um pouco, um pouquinho só da verdade. _ Além disso, acho que Tom precisa de uma go­vernanta tanto quanto de uma esposa, agora que a sra. Jones está de partida.

Se isso era motivo para alguém se casar, pensou Lucy, com tristeza, era a razão mais infeliz de que já ouvira falar, na vida. Não disse nada, porém. Decidiu também não impedir Hester de levar adiante a idéia, por mais inconveniente que aquele homem

fosse para marido da afta. Waring, da Casa de Essendene e Light­horne. Olhando para ela, era óbvio que, como solteira, o futuro de Hester era sem esperanças. Porém, casar-se com Tom Dilhorne? E por quê, pelos céus, aquele sujeito haveria de querer desposá-la?

_Na realidade, sei pouco sobre ele _ disse, finalmente, a voz cheia de dúvidas. _ Nunca conversamos, é claro. _ Recordou-se, de súbito, daquilo que Sarah Kerr havia dito quando a criticara pela amizade com aquele “safado do Dilhorne”: que ela e Alan preferiam perder todos os outros amigos a romper com Tom. Sentiu um certo alívio. _ Sei que Sarah e Alan Kerr entendem-se muito bem com ele, e que deve haver algo de bom a seu favor.

_Sim _ retrucou Hester. Não tinha intenção de discutir com Lucy sobre seu casamento com Tom. _ Você ficaria muito aborrecida se eu lhe pedisse para ir comigo tomar chá na casa de Tom, na sexta-feira? Ele acha que devo conhecer a residência antes da ceri­mônia, e sua presença tornaria as coisas mais apropriadas. Frank se importaria? _ perguntou, com uma ingenuidade aparente.

_Importar-se?! _ exclamou Lucy enfática. _ E melhor ele nem pensar! Estarei apenas ajudando minha melhor amiga, acompanhan­do-a em uma visita ao futuro marido. O que há de errado nisso? Além disso, estou morrendo de curiosidade para conhecer aquela casa por dentro. Dizem os boatos que é simplesmente “bárbara». Mal posso esperar! Certamente irei, e devemos ir juntas em minha car­ruagem. Não quero que você vá caminhando até lá. Seria totalmente inapropriado que eu fosse de condução e você a pé.

 

Sexta-feira chegou, e Lucy, maravilhosa em seu novo vestido de musselina creme, feito de acordo com o mais novo figurino proveniente de Londres, parou em frente à casa da ara. Cooke para apanhar Hester.

Assim que a amiga tomou seu lugar, Lucy instruiu o espantado cocheiro para que rumasse para a mansão de Dilhorne.

_O patrão sabe? _ perguntou o homem, com um certo atrevimento.

_Não preciso de permissão de meu marido para minhas ações

_retrucou ela com altivez. _ Dirija, vamos.

Externamente, a casa, erguida em um terreno com uma vista surpreendente para a baía de Sidneí, era uma mansão clássica de belas proporções. Por dentro, contudo, era totalmente inusitada. O vasto hall de entrada continha apenas dois vasos chineses, imen­sos, em azul e branco, e uma gigantesca urna de bronze apoiada sobre uma base de madeira.

A urna era coberta com um intrincado entalhe e, em torno dela, se enrodilhava um dragão, sua cauda desaparecendo na base e a cabeça erguendo-se para rugir aos visitantes. O chão, de pedra polida, era recoberto por um imenso tapete chinês de um desenho delicado e em lindas cores.

A ara. Jones conduziu-as até a um salão onde Tom as esperava. Para os olhos da maioria dos ingleses, acostumados à elegância georgiana, a sala era ainda mais extravagante.

Havia mais tapetes chineses sobre o chão de pedra, mais vasos de porcelana em cada canto imaginável, mais bronzes, assim como peças laqueadas e uma pintura japonesa que ocupava todo o comprimento do salão. Um tigre perambulava pelo quadro, os olhos fixos nos espectadores. Lembrava seu dono, pensou Hester, que as observava com um sorriso enigmático na face. Diante do quadro havia uma longa mesa, a superfície esculpida em um único bloco de madeira negra polida.

Atrás de Tom, ficava uma gigantesca lareira em pedra bruta, sobre a qual havia pendurada uma espada de Samurai. Ao lado, uma armadura completa de um guerreiro japonês. Três ou quatro cadeiras e várias mesinhas laqueadas, um jogo de xícaras sem asas, e vários pequenos e delicados bolos em meio a mais pratos de rara porcelana esperavam pelas convidadas.

Os olhos de Lucy pareciam discos, de tão arregalados. Hester sentou-se, determinava a examinar tudo sem comentários. A pedido de Tom, pôs-se a servir o chá e a agir como anfitriã, depois que as apresentações e as regras de educação haviam sido cumpridas.

_Bem, ara. Wright _ disse Tom _ , gostaria de conhecer o restante de minha casa após o chá?

_Oh, sim, por favor... E... é... inacreditável.

_De fato _ retrucou ele, com um ar impenetrável. _ E você, srta. Waring, o que pensa?

_É bonita _ ela respondeu com convicção.

_Eu também acho. Porém, você sabe que, se não gostar de algo, é só dizer, e eu mandarei mudar imediatamente. Lembre-se disso.

Lucy ouviu aquilo com alguma surpresa. Não sabia o quê es­perar desse homem, mas, olhando para ele, recostado em sua ex­travagante cadeira japonesa, e escutando a maneira gentil com que falava com Hester, pensou que talvez a amiga não tivesse feito uma escolha tão ruim.

O    restante da mansão, quando Tom mostrou os demais apo­sentos, seguia a mesma decoração. Nos quartos, havia sedas be­líssimas penduradas, grandes divãs com longos travesseiros roliços e almofadas enormes recobertas de tecidos maravilhosos. Nada de camas antiquadas e escuras. Pinturas em finíssimo papel de arroz com pássaros exóticos e flores, penduradas por todas as pa­redes. Do lado de fora do quarto principal, dois ídolos chineses de estômagos proeminentes ladeavam as portas de bronze. A impres­são de beleza selvagem predominava.

Depois disso, encontrar uma cozinha moderna e uma biblioteca sisuda com suas prateleiras cheias de livros e papéis, foi até sur­preendente. Hester haveria de tomar posse de uma casa cheia de tesouros, pensou Lucy.

Tom observou as duas moças com um ar divertido. Hester acer­tara ao dizer que a curiosidade iria trazer Lucy Wright até ali, se qualquer outro argumento falhasse. E ele bem podia imaginar Frank e seus colegas oficiais sendo regalados com detalhes de como vivia um emancipista.

Também estava plenamente consciente de que Lucy havia su­cumbido a seus encantos pessoais, embora ele não tivesse feito qualquer esforço para isso. Não o surpreenderia que ela já houvesse decidido que ele era um homem fascinante e que a sociedade de Sídnei estava errada em ignorá-lo.

O    que o agradava mais que tudo, pensou, era que, por sua expressão e comentários, Hester não iria transformar sua resi­dência em uma imitação de uma casa de campo ao estilo inglês. Viviam no Pacífico, afinal de contas, e a mansão refletia isso. No que lhe dizia respeito, nunca pensara na Inglaterra como um lar, era penas um lugar com o qual fazia negócios, e até mesmo o comércio era mais freqüente com os portos e os centros do longínquo Oriente. A Nova Gales do Sul tinha dado fortuna rápida a ele, fortuna que pretendia tornar ainda maior.

Também lhe trazia uma esposa, uma dama. Óbvio que o aceitara em virtude de sua triste situação, ele, um ex-condenado, um ho­mem a quem, em circunstâncias normais, ela se recusaria a co­nhecer. Porém, depois de subir na vida e deixar para trás o terrível começo, Tom estava agora determinado a fazer com que a dama que seria sua esposa jamais lamentasse a barganha.

E se o amor e as emoções mais doces não tivessem quase nenhuma parcela ou importância nas considerações que haviam por detrás de sua escolha por Hester, ora, era uma vantagem, também. Pois amar alguém era se tornar refém da sorte, e Tom Dilhorne não tinha a menor intenção em se deixar ser magoado, de novo. Casara-se com seus negócios e não mentira a Hester quando lhe fizera a proposta.

Havia ainda um outro fator: queria desafiar as convenções. Fi­nanceiramente bem-sucedido, um ex-condenado poderia até mesmo casar-se com uma dama de impecável linhagem. E, para tanto, a feiosa e pobre Hester Waring era um troféu.

Quando, finalmente, conduzisse as coisas para torná-la sua es­posa de verdade, como tinha intenção de fazer, para que pudesse ter unia mãe para seus filhos, isso, também, disse Tom a si mesmo com firmeza, seria apenas outra decisão de negócios.

 

_Não, você deve estar brincando, Lucy. Hester Waring vai se casar com Tom Dilhorne? Ridículo! Ela não pode oferecer a ele nem beleza nem dinheiro. E, além do mais, casar-se com um eman­cipista! Lembre-se do que o pai dela pensava deles... e de Dilhorne, em particular.

A reação da mãe de Lucy foi a mesma de todos, assim que a novidade espalhou-se por Sídnei como um rastilho de pólvora. A sociedade que se reunia em Hyde Park não falava em outra coisa. As fofocas eram o combustível daquele mundo restrito, e aquela, em especial, era mais extraordinária até mesmo da mais recente loucura do governador. Loucura que também envolvia Tom Di­lhorne, a quem Mcquarie pretendia nomear juiz, assim como a seu amigo íntimo, o dr. Kerr.

_Dilhorne perdeu o juízo, para se casar com aquela mulher feiosa e sem um centavo, filha de Fred Waring _ caçoou Jack Cameron, dirigindo-se a seus companheiros de caserna. Ele era sempre veemente em criticar Hester. Por alguma razão, o total desamparo da moça o incomodava.

Julgava o fato uma piada, a união do inominável com o infor­túnio. Como tantos outros, Jack achava que o senso de oportuni­dade e o faro para um bom negócio tinham abandonado Dilhorne. Que tipo de barganha poderia esperar de Hester Waring? A menos, é claro, que a desposasse porque ela era uma dama de linhagem nobre. E isso vinha mostrar a que desespero um safado emancipista podia chegar em sua luta pela respeitabilidade.

Mesmo o governador, quando sua esposa lhe contou a novidade surpreendente, ergueu as sobrancelhas, com ar de espanto. Não fez, contudo, qualquer comentário. Sabia que tudo o que Dilhorne fazia era cuidadosamente pensado.

Não eram apenas os exclusivos que se entretinham com as fofocas. A última jogada de Tom Dilhorne era celebrada com risos nos bares de Sidnei, reduzidos agora a bem poucos por decreto do governador, que mandara fechar a maioria deles, outro ponto negativo nos registros contra ele. O ricaço Tom Dilhorne, que po­deria ter qualquer mulher ou quase todas, tinha escolhido a pro­fessorinha, o arremedo pavoroso de gente que era a filha de Fred Waring. Peso dos anos ou desespero, era o veredicto geral.

Se nada disso chegou aos ouvidos de Hester diretamente, ela não pôde deixar de perceber o furor que seu casamento com Tom havia despertado. Cabeças que se voltavam, olhares significativos, e quase sempre os parabéns com ar de zombaria, de gente que dificilmente lhe dirigira a palavra por anos.

Longe de enfraquecer sua decisão, as críticas a fortaleceram. E os comentários de seu Mentor, em resposta aos comentários, eram ainda mais duros e impublicáveis que o normal. Afinal de contas, poucos dos que a criticavam tinham dado a ela mais do que um pedaço de pão duro. Apenas a ara. Cooke a ajudara, antes que Tom entrasse em sua vida.

Mesmo a senhoria estava tão surpresa quanto o resto da cidade. Hester era muito diferente de Mary Mahoney. E mesmo a antiga amante, que o conhecia bem, ficou a imaginar a razão que o movia. Com Tom, havia sempre mais do que as aparências sugeriam.

 

Os preparativos para o mais estranho casamento que Sídnei já presenciara avançavam rapidamente. Nem Tom nem Hester queriam nada espalhafatoso. Haviam concordado que, corridos os proclamas, postar-se-iam diante de um pastor na igreja. A presença de outras pessoas era dispensável. Contudo, havia alguns que, ambos julgavam, deveriam estar presentes.

Havia outros problemas a resolver. Hester estava preocupada que o casamento pudesse significar que teria que deixar a escola. As crianças ficariam sem professora. Confidenciou a Tom sua afli­ção e, conhecendo o leque de recursos do noivo, não ficou surpresa quando, poucos dias mais tarde, ele lhe contou que achara a solução para o caso.

_Por sorte, falei com o capitão Ramsey sobre nosso desejo de não deixar as crianças sem professora. Ele trocou umas palavras com o sargento Fenton, cuja esposa dirige uma escola dominical para os filhos dos oficiais da guarnição. Ela ficaria muito feliz em tomar seu lugar, desde que você a ajude no início, já que foi tão bem-sucedida. O que lhe parece?

_Oh, é claro _ respondeu Hester alvoroçada. _ Eu gostaria de continuar a ensinar por algum tempo, o que quer que aconteça, porém, no futuro minha principal responsabilidade será você.

E assim ficou combinado.

Em um sábado, Hester dispôs-se a acompanhar o noivo à casa dos Kerrs. Na verdade, não tinha vontade alguma de visitá-los, porém não ousara dizer ao noivo que não o acompanharia. Ainda sentia um pouco de medo de Tom, pois, lá em seu íntimo, ele continuava o mesmo Tom Dilhorne que seus pais haviam odiado tanto. Algumas vezes, ao espiá-lo quando estava de rosto fechado, ficava a imaginar com quem estaria se casando.

Sua aparência física a atraía e amedrontava, ao mesmo tempo. E se, depois do casamento, ele insistisse em seus direitos de ma­rido? Poderia confiar em sua palavra? Conhecia sua reputação. Sabia, também, que existiam estórias tenebrosas com respeito à forma com que conseguira sua fortuna, fortuna surpreendente para quem chegara à colônia acorrentado. Havia rumores de que tinha sido um ladrão muito bem-sucedido no submundo de Londres.

Dilhorne queria contar ele mesmo aos amigos de sua intenção de casar-se com Hester, mas uma série de circunstâncias o impe­dira. Conseguira falar brevemente com Alan, em uma ma­nhã em que o encontrou cumprindo sua rotina de médico.

Alan ficou tão boquiaberto quanto o resto de Sidnei. Hester Waring! Não conseguia pensar em ninguém menos adequado para ser a esposa de Tom e senhora de sua magnífica casa. A reação de Sarah foi idêntica.

_Hester Waring! Você deve estar brincando, Alan!

_Sei como está se sentindo. Não, não estou brincando. Foi o próprio Tom que me contou.

_Mas, por que Hester? Sempre imaginei que Tom se casaria com alguém formidável, unia mulher bonita e inteligente, que pu­desse ficar em pé de igualdade com ele. O que ele pode ter em mente? Para ser mais exata, o que ela deve tem em mente? Ele vai devorá-la!

_Talvez ela queira ser devorada. Ou talvez.., queira simples­mente comer... _ sugeriu Alan, em um tom estranho.

_Pobre ratinha morta de fome... Que casamento vai ser esse? Só sei que todos vão querer ver com os próprios olhos.

_Os proclamas estão correndo. E eu convidei a ambos para jantar no sábado.

_Isso explica porque Tom não tem vindo nos visitar ultima­mente! _ exclamou Sarah. _ Cachorro! Está namorando. Fico feliz que tenha feito o convite. Não importa o que eu pense a respeito desse casamento, farei o melhor para ajudá-los.

_O que vai diverti-la ainda mais _ continuou Alan _ , é saber que Hester levou Lucy Wright como acompanhante, quando foi tomar chá na casa de Tom. Lucy foi sem o consentimento de Frank, que só ficou sabendo quando Pat Ramsey o interpelou a respeito, na caserna.

_Ora, como descobriu isso? _ perguntou Sarah surpresa.

_Depois que conversei com Tom, Pat apareceu e me contou que Frank tentou repreender Lucy pela visita. Lucy respondeu, ofendida, que Hester precisava de seu apoio, que Tom Dilhorne era um homem a quem julgavam erroneamente, e mandou que Frank voltasse ao trabalho sem lhe servir o almoço!

Sarah explodiu na gargalhada.

_E bem próprio de Lucy. Cada dia que passa está mais pa­recida com a mãe.

_E verdade. Pat disse que Lucy está fazendo um relato que é um verdadeiro guia de turismo pela mansão de Tom, a seu ver uma mistura entre o Palácio Imperial de Pequim e o Museu Bri­tânico. Todos que se recusavam a conhecê-lo vão estar disputando um convite para o jantar de casamento, mortos de curiosidade.

Sarah enxugou os olhos, marejados de tanto nr.

_Ora, a Villa Dilhorne _ era o apelido que dera à casa de Tom _ é maravilhosa. Mas, não há perigo que Hester venha a transformá-la em algo aconchegante e comum?

_Não, de acordo com Pat. Lucy contou que Hester, aparen­temente, achou tudo de bom grado.

_Que fofoqueiros são vocês, os homens... _ disse Sarah.

_Sarah, precisamos dar apoio a Tom. Hester é a esposa que ele escolheu. Ele tem sido um bom amigo e precisamos ajudar a moça. Ela não tem ninguém no mundo.

_Mas fisgou o homem mais rico de Sídnei. Sim, sim, eu sei.

_Serei boazinha e não vou dizer ou pensar bobagens. Ela, porém, nunca gostou muito de mim.

_Acho que você a assusta.

_Eu? Assustar alguém! Que bobagem!

Sarah recebeu Tom e Hester para o jantar com todo o carinho de seu bom coração. Tomou Hester pela mão, quando esta entrou, beijou-a na face, e disse:

_A esposa de Tom será sempre bem-vinda em minha casa. - Intimamente, estava chocada. Achou que Hester parecia doente. E não tinha certeza, mas a moça parecia ter medo de Tom.

Hester falou pouco durante o jantar, exceto uma vez, quando Tom inclinou-se e perguntou-lhe a opinião sobre o pudim que, para evitar parecer gulosa, ela comia com absurda lentidão. Seu autocontrole às refeições ainda era um tanto frágil.

_Está excelente, sr. Dilhorne. O manjar dos deuses.

_E o que é exatamente isso, srta. Waring? _ perguntou Tom, com um trejeito nos lábios.

_Bem, algumas vezes é pudim de ameixas, e outras, é algo que realmente gosto quando saboreio. Ambrosia, o néctar dos deu­ses do Olimpo, ar. Dilhorne.

Sarah percebeu que havia mais nesse intercâmbio de pala­vras do que os olhos ou os ouvidos podiam apreender. A ex­pressão enlevada de Hester e o sorriso irônico de Tom não ha­viam escapado a ela.

Mais tarde, quando Tom conversava, falando de alguns acordos com Sandy Jameson e de como o escriturário de Jameson tentara enganá-lo, Hester comentou:

_Tentou enganá-lo, ar. Dilhorne? Teria que ser alguém corajoso para fazê-lo...

_Ora, ora, srta. Waring, devo considerar suas palavras como um elogio?

_Se quiser, ar. Dilhorne, se quiser. Agora, se estivesse vestindo aquele colete com os pavões bordados, ele não teria nem sequer tentado.

_Da próxima yez que fizer negócios com Jameson, vou me lembrar disso. Mesmo assim...

Ele fez uma pausa, de forma provocante, até que Sarah per­guntou, impaciente:

_Mesmo assim...?

_Mesmo assim, eu o peguei pelo nariz, torci-o, disse a ele o que achava de suas maneiras, joguei-o no chão, gentilmente, sem rudeza, e, então, passei por cima dele e fui direto ao escritório de Jameson.

_E o que foi que Jameson disse? Tendo em vista que Macquarie quer torná-lo um magistrado, e você acabara de agredir o escriturário?

_Nada. Eu é que disse que me lembrava do tempo em que ele não tinha um gato para puxar pelo rabo; e que, se permitisse que o escriturário me insultasse de novo, seria seu nariz que eu torceria. E que eu estava pensando em cobrar o dinheiro que ele me devia relativo à pedreira. Isso o deixou vermelho como um pimentão e fez com que ficasse anormalmente gentil, posso assegurar.

_Fico feliz que você não tenha feito negócios assim comigo _ comentou Hester, muito séria.

_Ah, você sempre foi extremamente gentil comigo, srta. Wa­ring. Pessoas gentis ganham vinho e pudim de ameixas. Eu deveria ter dito isso ao Jameson.

Alan caiu na risada.

_Você daria um esplêndido juiz, obediente à lei, Tom. Pensei que tivesse deixado para trás esse jeito rude de ser.

_Bem, em grande parte. Mas nunca é demais lembrar às pessoas que você ainda pode ter certas recaídas. Tome aquele escriturário, por exemplo, é tão educado quando o vejo agora, que poderia até dar lições à srta. Waring, embora você não precise disso, não é, srta. Waring?

_Temo que precise, às vezes, sr. Dilhorne. Porém, se eu merecer um corretivo, espero que me puxar pelo nariz esteja fora de questão!

_Dependendo do que fosse, srta. Waring, eu poderia achar uma punição mais adequada...

Mais tarde, o assunto do casamento veio à tona. Alan seria o padrinho. Tom anunciou que gostaria que Robert Jardine condu­zisse a noiva.

_Pois _ justificou _ , se não fosse por Jardine, eu não teria o prazer de desposar a afta. Waring.

Para surpresa de Alan e Sarah, Hester corou. Antes que pudesse se conter, Sarah perguntou:

_Logo Jardine, Tom? Por quê?

_Ele, gentilmente, deu referências sobre o meu caráter, quando a afta. Wanng expôs algumas dúvidas a meu respeito. Assim, se a srta. Waring consentir, Jardine a levará ao altar. Se você não tem outra pessoa em mente _ acrescentou, voltando-se para Hester.

Hester respondeu que não, com sinceridade; não havia, em toda Sidnei, um homem a quem pudesse pedir uma tal coisa.

_A menos, é claro _ murmurou Tom, maldosamente _ , que o capitão Parker pudesse prestar essa ajuda.

Para satisfação de Sarah, Hester deu um tapinha gentil em Tom, dizendo:

_Não, obrigada, sr. Dilhorne. O sr. Jardine fará o papel melhor que ninguém.

_Queremos um casamento tranqüilo _ continuou Tom. _ Porém, tenho interesses comerciais que requerem atenção, se a srta. Waring não se importar.

_Como aqueles com o escriturário de Jameson _ murmurou Hester, baixinho. E logo tentou fingir que não dissera nada. Nem sempre, como agora, era possível silenciar seu Mentor. _ Gostaria de convidar Lucy Wright _ acrescentou_ , e isso significa convidar Frank. Não sei como ele irá se sentir, comparecendo ao casamento de um emancipista.

_Ah, ele irá _ disse Tom, com um sorriso. _ Como o resto de Sídnei, ele vai querer se divertir no dia de meu casamento. E o capitão Parker, Hester? Certamente, vai querer convidá-lo, não é?

_Por que deveria? _ foi a resposta de Hester à provocação. Não tinha idéia de como Tom havia descoberto seu interesse pelo rapaz.

_Ah, Sarah... _ continuou Dilhorne _ , iremos precisar de sua ajuda para conseguir uma governanta, quando a sra. Jones partir. Hester vai se encarregar de tudo, mas precisaremos de alguém para supervisionar a cozinha. A única disponível é a sra. Hackett e não posso dizer que gostaria de empregá-la.

_Farei o melhor que puder _ respondeu Sarah _ , mas não tenho muita esperança. Você sabe que há falta de mulheres na colônia, incluindo criadas.

Depois que os convidados saíram, Sarah e Alan se entreolharam.

_Ainda não acredito _ disse Sarah. _ Ela é um pedaço de gente esfaimado. Porém, creio que ele gosta dela. Talvez até mais do que saiba. Nunca pensei ver unia coisa dessas. E, o que ésurpreendente, os dois se entendem. Eu avisaria a alguém que desse valor à própria segurança para não dizer nada contra Hester, na presença ou não de Tom.

Alan concordou.

_Ele ainda é perigoso. As pessoas se esquecem disso porque ele adquiriu maneiras perfeitas e roupas elegantes. Para coroar, vai se casar com unia dama. Verdadeiramente unia dama, apesar de sua terrível estória. Só Deus sabe a que alturas ele irá chegar, a esse preço. Porém, no fundo, continua o mesmo homem. E não se torce o rabo dos tigres, embora possam parecer ter se trans­formado em tímidos gatos.

_Será que ela gosta dele, Alan?

_Eu usaria suas palavras.., mais do que ela tem idéia. E a moça tem senso de humor, Sarah. Você não estava errada quanto a isso.

_Concordo com você _ retrucou Sarah. _ Mas, surpreende-me Tom agindo assim, saindo com ela, fazendo-a falar... Fico a ima­ginar o que era tudo aquilo sobre pudins de ameixa. Gostaria muito de saber.

_Acha que vai dar certo, então? _ Alan estava sério. Havia entre Tom e ele um elo muito forte, desde que haviam se encontrado no navio que os trouxera para Nova Gales do Sul. Então, ficara sobre a proteção do amigo, embora fosse o mais velho dos dois. Era um ingênuo frente ao mundo perigoso em que Tom Dilhorne circulava com desenvoltura. Agora, queria que ele fosse feliz.

_Oh, sim, certamente que sim, meu amor.

 

Para surpresa geral, a srta. Hester Waring, solteira, vinte e um anos de idade, dama sem nenhum tostão, de uma família que ostentava uma linhagem que remontava aos conquistadores, ca­sou-se com o sr. Tom Dilhorne, solteiro e ex-condenado, filho só Deus sabe de quem, provavelmente ilegítimo, de idade desconhe­cida até de si mesmo, embora se julgasse por volta dos trinta anos, e que, por seus próprios esforços, tornara-se o homem mais rico da Nova Gales do Sul.

A cerimônia realizou-se na Villa Dilhorne, e foi simples e restrita como Tom havia dito que seria. Presentes apenas Alan e Sarah Kerr, Robert Jardine, Will French, Joseph Smith,os Wiights, a sra. Cooke, a menina Kate e os pais, senhor e ara. Smith. Os últimos, por causa das galinhas, dissera Tom, em um tom sério, fazendo Sarah imaginar o que ele queria dizer com aquilo.

Hester, é claro, entendera a insinuação. Aliás, já aprendera a prestar atenção a tudo que Tom dizia e a captar o significado oculto que freqüentemente jazia sob seus comentários aparente­mente descuidados.

Tom, sendo quem era, resolvera levar a sério a brincadeira de Sarah, e mandara gravar o nome Villa Dilhorne em um bloco de granito à entrada da casa, para que os convidados não se perdessem pelo caminho.

O    governador Macquarie enviara a Hester um belo buquê de flores de seu próprio jardim, e Tom comprara a ela um vestido novo, passando por cima de seus protestos de que isso não era apropriado para um noivo.

_Não quero que use um daqueles vestidos pretos no dia de seu casamento _ retrucara, com razão. _ Não é adequado.

Olhando para si mesma, diante do espelho, na manhã do ca­samento, Hester percebeu que não tinha adiantado muita coisa ter uma roupa nova para usar. Continuava magra demais e feiosa, mesmo depois dos esforços de Tom para que se alimentasse melhor, durante as poucas semanas que faltavam para a cerimônia. Seria o único casamento em que a aparência do noivo ofuscaria com­pletamente a da noiva.

Comentou tal fato com Sarah Kerr, que escolhera como madri­nha. Sarah não conseguiu dizer nada que pudesse levantar-lhe o ânimo. A preocupação e os temores de Hester eram tão evidentes que só faltava ela abrir um buraco no chão e enfiar-se dentro dele, diante dos olhos dos poucos convidados.

O    noivo, entretanto, ostentava uma expressão que podia bem ser comparada a um gato extremamente satisfeito, que se fartara de leite. Fato que, ao olhar para a noiva, os convidados acharam um pouco estranho.

Depois da cerimônia, foi servido o banquete de casamento, um sortimento de comida sem igual, só Deus sabe vindo de onde, já que em Sídnei não havia variedade de suprimentos. Todos se far­taram. Menos a noiva. Pela primeira vez, Hester sentiu-se enjoada diante de tantos pratos.

Ao se despedir, Sarah pensou que nunca vira alguma coisa tão miseravelmente aflita como Hester Dilhorne, em sua esplêndida casa nova, na noite de seu casamento.

Marido e mulher finalmente estavam sozinhos na imensa man­são. E, surpreendentemente, Hester sentiu um enorme e inexpli­cável ressentimento, quando Tom a conduziu escada acima, bei­jou-lhe a mão e disse: “Boa-noite, sra. Dilhorne”, na porta do quar­to, antes de se dirigir a seus aposentos.

Claro, não queria realmente que ele entrasse, pensou. A simples idéia a deixava ofegante. Seu coração disparou. Um calor percor­reu-a dos pés à cabeça. Sentiu-se tão excitada e esquisita, que precisou tomar uni grande copo de água e lavar o rosto para re­cuperar o domínio de si mesma.

Tal não passou despercebido ao noivo. Boa alimentação, afeição e conforto fariam com que selassem uma união de verdade, algu­mas noites mais tarde. Tinha certeza.

 

                                           CAPÍTULO VI

O casamento de Tom Dilhorne foi o assunto da se­mana. Mesmo depois de passado o alvoroço inicial, sempre havia quem estivesse falando do acontecimento e imaginando como estariam se divertindo os recém-casados. A sociedade de Sídnei mal podia se conter, esperando sempre um fato que viesse alimentar sua curiosidade e manter suas línguas ocupadas.

Nos primeiros dias, quando Tom saia em seu coche, com Hester ao lado, logo fervilhavam os comentários maldosos. Todos notavam a maneira solícita com que ele a tratava, ajudando-a a descer, carregando-lhe a bolsa, e, quando estava quente, abrindo a som­brinha para protegê-la do sol.

_Parece um homem com um novo brinquedo _ disse um engraçadinho. _ Quem haveria de pensar uma tal coisa partindo do velho Tom? _ Parecia referir-se a ele como a um homem de sessenta anos.

Na verdade, Dilhorne era visto na cidade como uma verdadeira instituição. Era difícil lembrar do tempo em que ele não dominava a vida econômica e social de Sidnei, mesmo não fazendo parte do restrito grupo social dos exclusivos. A casa do governador, entre­tanto, sempre tinha as portas abertas para recebê-lo.

Hester não tinha idéia do que a esperava, em seu casamento com Dilhorne. Qualquer tentativa em imaginar seu futuro com ele tinha se chocado com a falta de conhecimento de como um homem assim viveria. E do que ele poderia esperar dela na es­tranha barganha que tinham firmado.

A vida agora, era-lhe tranqüila. Seu dia começava no café da manhã, um ritual despreocupado, peculiar às maneiras de Tom. Ele aproveitava para ler papéis e a correspondência, enquanto comia e bebia em um ritmo lento, dirigindo a ela um ou outro comentário. Também tomava notas em pequenos pedaços de papel que punha no bolso, e esquecia.

Algumas vezes, dava a ela uma carta ou um dos papéis, pe­dindo-lhe a opinião. A princípio, Hester se intimidara. Procurara dizer algo sem grandes pretensões, com a esperança que Tom não voltasse a agir dessa forma. Uma tática sem sucesso. Logo percebeu que a única maneira de satisfazê-lo era fazer comentários proce­dentes, ainda que ligeiros.

Era óbvio que ele percebia o desagrado de Hester em compro­meter-se. Mas também era igualmente óbvio que Tom estava de­terminado a fazer com que ela se empenhasse em partilhar de seus negócios.

Em uma dessas manhãs, ele mostrou a Hester a carta de uni concorrente que lhe fazia uma oferta, à primeira vista, atraente. Havia alguma coisa duvidosa por sob a aparência de bom negócio. A carta deixava transparecer pouco que pudesse dar suporte a isso. Apenas sua intuição o guiava, como sempre.

Hester leu a carta cuidadosamente e, depois, colocou-a de lado com um suspiro.

_E então, sra. Dilhorne?

Era assim que Tom a chamava agora, talvez para deixar claro que, a despeito de tudo, ela era sua esposa. Ou talvez para não a chamar pelo nome de batismo, Hester não tinha certeza. Fitou-o. Ele estava à vontade, relaxado como um grande gato. Seu rosto, impas­sível, imóvel. Apenas seus olhos azuis, duros e frios, observavam-na.

_Não gosto disso _ ela começou, em um tom lento e hesitante.

_Não sei por quê, mas há algo errado aqui.

_Exato, sra. Dilhorne. E eu também não sei dizer o que é.

_Apanhou a carta. _ Não podemos fazer negócio com ele, pelo menos não com base nesta oferta.

Hester respirou aliviada. Tinha dito a coisa certa. Percebeu que Tom ainda a observava, enquanto reunia os papéis e prepa­rava-se para sair para o escritório.

_E se eu tivesse aprovado? _ ela perguntou.

Ele a brindou com um sorriso, aquele que deixava claro a amigos e inimigos que Tom Dilhorne enxergava longe.

_ Ora, eu sabia que, se me desse uma opinião, seria essa.

_ Seria esta? _ ela comentou, da forma breve como sempre fazia.

_ Exatamente esta, sra. Dilhorne. _ O sorriso ampliou-se._ -Você tem perspicácia, certamente cultivada.

_Você me deixa encabulada, senhor.

_Simplesmente lhe faço um elogio. E meu nome é Tom. Ou, se preferir, Dilhorne. Nada de senhor para minha esposa, ou qual­quer outra pessoa, dentro desta casa.

Gato e rato, pensou Hester furiosa. Esse era o jogo que Tom em­pregava com as pessoas. Disse a si mesma que não o deixaria de­vorá-la, e o sorriso que devolveu a ele foi tão amistoso quanto pôde imprimir no rosto. A resposta dele foi um beijo em seus dedos, que lhe arrepiou a carne, não só da mão como do corpo inteiro, de um jeito estranho, deixando-a insatisfeita pelo resto do dia.

 

Sou seu ratinho de estimação, ela pensou encolerizada e ainda tremendo, quando se dirigiu à cozinha para supervisionar os trabalhos. Ele não vai nem mesmo me devorar. Ah, não ele. Vai me manipular com patas macias, só para me mostrar quem manda aqui.

_Mas você gosta disso, você sabe que gosta _ disse-lhe a voz de seu horrível Mentor _ , e não quer que o gato faça algo mais além de brincar com você sem a ferir. Ou quer? O que acha de uma brincadeira mais adulta?

Oh, fique quieto, ela pensou, apavorada. De onde vinham essas idéias horríveis?

 

Então, surgiu o problema com as roupas.

Hester havia trazido um exíguo número de vestidos velhos. Trajes puídos e fora de moda, que tinham visto melhores dias, e a maioria dos quais tinham sido feitos dos restos deixados por sua mãe. Nenhum deles próprios para sua compleição e seu tipo. Todos pretos. A sra. Waring guardara um luto perpétuo pela perda de Rowland.

Durante o café, em uma das manhãs, Hester sentiu o olhar de desaprovação do marido.

A princípio, pensou que era pela opinião que tinha emitido. Logo, as palavras de Tom vieram desfazer o engano.

_Roupas, sra. Dilhorne _ disse ele, secamente.

_Roupas? _ ela murmurou, em um tom irônico.

_As suas são pouco estimulantes, sra. Dilhorne.

_Minhas roupas não precisam ser estimulantes, sr. Dilhorne. São as de uma dama.

_ Sim, são. Vá falar com a sra. Herhert, no Emporium, e mande fazer alguma coisa menos séria e mais atraente. Minha esposa não deve se parecer com unia freira. As costureiras saberão o que fazer.

Por alguma razão, Hester já entendem as maneiras de Tom. Sabia até aonde podia ir. Sabia também que ele preferia presença de espírito a submissão.

_Não deve, ar. Dilhorne?

_Não deve, sra. Dilhorne. _ Os olhos azuis mostravam que ele aprovava seu tom de desafio. _ Vamos jantar com o governador no sábado. Entre outras coisas, sou um rico comerciante, e minha esposa deve se parecer com a esposa de um homem rico.

_Porém... ainda assim uma dama, eu espero. O que usarei como dinheiro, sr. Dilhorne?

_Ora, nada, sra. Dilhorne. Use meu nome. Ficará estarrecida com o que isso fará por você, em Sídnei.

_Oh, não, isso não me causará espanto _ retrucou ela, rindo.

_Eu já sei.

Hester saiu e comprou algo menos ostensivo do que aquilo que achou que Tom escolheria, embora o houvesse julgado de forma errada, como mais tarde viria a descobrir, mas suficientemente fino e elegante, capaz de fazer o capitão Parker erguer as sobran­celhas, com ar de espanto, ao vê-la no Palácio do Governador, no sábado.

 

Depois, foi a vez da comida.

Durante a vida toda, desde que chegara à Nova Gales do Sul, Hester havia passado fome. Como esposa de Tom, de repente podia entregar-se aos prazeres da gula. Ajudava a cozinheira e a sra. Hackett na cozinha e saboreava os resultados do trabalho conjunto com uma espécie de frenética delicadeza.

Uma tarde, enquanto jantava, com uru ar de apreciação ainda mais evidente que o comum, ela ergueu os olhos e deparou com Tom, sorrindo. Era aquele seu sorriso de gato siamês, que dava a entender que se divertia com algo que os outros não podiam ver. O que, pelos céus, poderia ter provocado isso?, pensou Hester, irritada.

_Apreciando o jantar, ara. Dilhorne?

_Realmente, esta carne de carneiro está excelente.

_Também acho. Cumprimente a cozinheira por mim.

_Você deve endereçar seus cumprimentos a mim, ar. Dilhorne.

_Então, vou duplicá-los, minha querida. Habilidade e beleza ficam bem em minha esposa.

_Ora, agora você está brincando, ar. Dilhorne. Sua esposa não é bonita.

Tom encarou-a. Várias semanas de boa alimentação e tratamento afetuoso haviam dado mais brilho aos frágeis cabelos de Hester, que começavam a crescer fortes e ondulados. Sua compleição física agora já dava mostras de saúde. Ela começava a ganhar curvas onde antes nada existia. O divertimento dele aumentou ao observar a avidez elegante com que ela devorava a refeição.

_Você nunca se olha no espelho, ara. Dilhorne?

_Com freqüência, ou de que outra forma eu me pentearia?

_De que outra forma, não é mesmo?

Era claro que Hester não tinha idéia do quanto havia mudado e ainda continuava mudando.

_Achei que o capitão Parker foi um tanto atencioso demais com você, no último sábado, considerando que você é minha esposa.

_Bobagem, ar. Dilhorne. O capitão Parker sempre foi gentil. Mesmo quando eu não tinha amigos e era pobre. Ele agiu como sempre, no sábado.

_Gentil, é como você chama a isso... _ murmurou Tom, ig­norando a verdade da última parte da frase, e o fato que Hester ainda não mudara o bastante para atrair um jovem bonito. _ Onde eu cresci tínhamos um outro nome para tal. Espero que ele se lembre de que você, agora, é minha esposa.

Hester agora já o conhecia bem, para saber quando ele a estava provocando. O jeito lento de falar, os olhos ligeiramente cerrados, a maneira de observar como o ratinho reagia. E ainda assim, ainda assim, desta vez ela não tinha certeza.

_Sempre achei o capitão Parker muito bonito _ ela murmu­rou, com um ar falsamente distraído, derramando uma generosa porção de creme de leite batido sobre os pêssegos. _ É de se esperar que ele encontre para si uma linda mulher que o agrade

_Cuidado com o creme, ara. Dilhorne _ foi a resposta de Tom a esse inesperado revide. _ Não podemos nos arriscar a que você fique gorda. Sei, por fontes seguras, que o capitão Parker gosta das magras.

Era quase impossível vencê-lo, pensou Hester, enfezada, e, para irritá-lo, colocou mais duas colheradas de creme.

_Gosto de creme _ disse desafiadora _ , e comer é um dos benefícios deste casamento.

_Um dos benefícios, ara. Dilhorne? Quais são os outros?

Hester agitou a colher em um gesto pouco educado, respingando o creme sobre a toalha. Tom causava nela esse tipo de reação.

Seu Mentor lhe disse que ele a estava corrompendo. Então, gosto de ser corrompida, pensou ela, em retorno, feliz em dar o troco ao Mentor, pelo menos por uma vez.

_Além de saborear creme, há quartos confortáveis, o fato de eu não ter que me preocupar se posso pagar por um novo par de meias ou um vestido... _ e, antes que pudesse se conter, acres­centou: _ . . .e alguém com quem conversar.

Seu atrevimento tinha, sem que tivesse intenção, descido a um anticlímax. Ficou a imaginar o que Tom pensaria de urna lista tão absurda.

A expressão de Dilhorne continuou impassível. Ele não iria se permitir deixar transparecer a piedade que o invadira diante dessa relação de coisas comuns, simples confortos da vida, como mostra dos benefícios que Hester julgava que o casamento lhe dera. Nem era a primeira vez que praguejava contra o egoísmo lamentável de Fred Waring, que privara a filha do mínimo necessário. Nunca a deixaria perceber sua piedade. Ela poderia não acreditar nele, ou se ressentir com isso, furiosamente.

_E eu, sra. Dilhorne? Sou um dos benefícios de nosso casamento?

A colher foi colocada sobre a mesa com cuidado. O que diria a isso? A verdade, é claro. O rato podia não escapar das patas do gato, mas podia evitar ser maltratado.

_Realmente é, sr. Dilhorne, como eu disse, O prazer de sua conversa compensa em muito as desvantagens da situação em que nos encontramos.

_Sempre podemos achar um remédio para isso, ara. Dilhorne.

A reação de Hester, à sugestão velada de acabarem com um casamento de mentira, foi imediata. Ela levou a mão à boca, e seus olhos se arregalaram assustados.

Tom encarou-a com um ar arrependido. Por trás das maneiras sedutoras e o aparente espírito de bravata, ela ainda não estava preparada para ser a esposa de Tom Dilhorne mais do que nomi­nalmente. Tudo não passava de um jogo no qual ela podia brincar com ele, segura de que não haveria conseqüências.

Bem, isso iria passar. Por ora, devia tranqüilizá-la. Daria tempo ao tempo. Bocejou e não se esforçou mais em conversar. Poderia provocá-la a dizer algo mais que ela pudesse vir a lamentar. Se ficasse quieto, Hester pensaria que o havia confundido. Homens e mulheres tinham um grande poder de autodecepção, como ele bem sabia pelos próprios e freqüentes lucros.

Enquanto isso, devia tentar fazê-la ver que, lentamente estava se transformando em uma mulher atraente. Quando sorria e o desafiava, ficava mais do que sedutora. Ele estava apenas parcialmente brin­cando quando a provocara, falando sobre o jovem Parker. Afinal, o rapaz tinha mais ou menos a idade dela e era de boa aparência, louro e vigoroso. E isso o deixava estranhamente irritado.

De sua parte, Hester, como Tom deduzira, concluiu que conse­guira confundi-lo. O gato não tinha intenções de se atirar sobre a presa. A sra. Dilhorne podia ir, em segurança, para sua cama vazia.

 

Ter empregado a sra. Hackett porque Sarah não fora capaz de encontrar ninguém mais, foi um erro ainda maior do que Tom havia pensado. Para começar, a mulher detestava Hester. E de­testava por não gostar de todas as mulheres mais jovens que ela; além disso, Hester era feia demais e, para piorar, filha do velho beberrão Fred Waring, e não havia como entender como conseguira casar com a fortuna, mesmo a fortuna de um emancipista. Quanto a Dilhorne, ela o odiava porque ele sempre a assustara, desde o tempo em que era esposa do cabo Hackett, e Tom era um recém-chegado levado até a Nova Gales do Sul à força.

A empregada não era tola e logo percebeu que seus patrães eram marido e mulher apenas no papel e dormiam em quartos separados. Pôs-se a espioná-los, observando-os furtivamente para certificar-se de que suas suspeitas eram fundadas. E, então, de posse dessa diveliidâ fofoca, boa demais para não ser partilhada, passou a espalhá-la por todos os cantos de Sídnei.

O que viria a seguir? Era inacreditável! O esperto Tom Dilhorne perdera mesmo o bom senso. Além de se casar com um espantalho, ainda arranjara uma esposa que não o deixava partilhar de seu leito! Até que enfim, os boateiros tinham algo de sólido em que enterrar os dentes. Madame Phoebe estava chocada com a novi­dade; a guarnição vibrava de alegria. Jack Cameron abriu um caderno, anotando apostas: Tom Dilhorne iria levar a esposa para a cama? Quanto tempo isso levaria? O casamento se manteria?

Em uma tarde, Pat Ramsey contou a Lucy e Frank a espantosa notícia, depois de ter ouvido as fofocas no bar de Phoebe, na noite anterior. O casal se entreolhou e caiu na risada. Mesmo Lucy não se conteve e mal conseguiu encontrar um motivo para recriminar o marido, quando este, enxugando os olhos, disse:

_Nunca pensei que aquele pedaço de coisa feia tivesse essa coragem. O grande Tom Dilhorne enganado por uma mulher. Ah-ah-ah! E tão cheio de boas maneiras, agora, que não se impõe a ela sem permissão. Desculpe-me, Lucy, mais isso é demais!

Outros boatos eram ainda mais indelicados. Correndo por toda a Sídnei, as conversas entraram até mesmo no Palácio do Gover­nador e chegaram aos ouvidos de Lachlan Macquarie.

_O que estará aquele demônio maquiavélico aprontando ago­ra? _ ele comentou com sua esposa. Conhecia Tom melhor do que a maioria e não podia acreditar que fosse passado para trás por Hester Waring.

Outros, contudo, gostariam de acreditar que ele fora derrotado em sua pretensão. Até mesmo Mary Mahoney, agora sra. Wilkin­sou, sentiu pena dele.

Os últimos a saber foram os Kerrs. Muitos tinham medo de contar a novidade a eles.

Em uma tarde, porém, ao visitar Lucy Wright, Sai-ah ouviu os comentários envolvendo Tom e Hester, entre gargalhadas maldosas.

_O que é isso, ara. Middleton? Você está falando de meus amigos! Que tipo de difamação é essa?

Antes que sua mãe pudesse responder, Lucy, temendo uma explosão, em público, se Sarah tomasse conhecimento da fofoca, fez um sinal à amiga e levou-a para outra sala. E contou-lhe o que toda Sídnei já sabia.

_Não acredito! _ retrucou Sarah, com dureza, e, então, ca­lou-se. Tudo que havia imaginado acerca daquele casamento, a maneira com que o casal se comportava, de repente, encaixava-se.

Lucy observou o rosto de Sarah mudar e deduziu que tudo era verdade, então. Os boatos são verdadeiros. Sarah sabe. Mesmo ostentando ares de grande senhora, Lucy era jovem e irrefletida. E divertiu-se com aquela piada!

_Acha que é verdade, Alan? _ Sarah perguntou ao marido, a última pessoa de Sídnei a saber. _ Pobre Tom. E se é verdade, o que pode significar isso? Aonde ele pretende chegar agora?

_Creio que é verdade. Eu vinha suspeitando disso há algum tempo. Hester não se parece nem age como uma mulher casada. Seu aspecto está mais saudável do que antes, mas isso é resultado de ter finalmente o que comer. Contudo, Sarah, você conhece Tom quase tão bem quanto eu. Acredite, deve haver ai muito mais do que a cidade toda pensa. Confie em Tom, como eu confio.

 

Consciente ou não dos comentários sobre seu casamento, e seria estranho que não soubesse disso, pois Dilhorne sempre tomava conhecimento de tudo o que acontecia em Sídnei, Tom continuou a orientar a esposa pelos meandros de seu mundo.

A princípio, insistiu para que se inteirasse de seus negócios.

Vira muitas viúvas de homens bem-sucedidos desbaratarem a for­tuna que os maridos haviam lhes deixado e estava determinado a não permitir que Hester ficasse desprotegida.

Dar-lhe as cartas para ler no café da manhã era apenas parte de seu método de instrução. Nas tardes, ia além. Uma semana após o casamento, chamou-a até o escritório, depois do jantar.

_ Este aposento é para seu uso, tanto quanto meu _ disse-lhe. Hester olhou ao redor, um pouco aparvalhada. Tom mostrou-lhe os livros de contabilidade, seus registros particulares e a ordem em que documentos e papéis ficavam nas prateleiras.

Lentamente, Hester aprendeu os mistérios da escrituração, dos descontos, dos empréstimos de dinheiro, do funcionamento do Em­porium e seus armazéns, da construção e manutenção de navios, g fabricação de coches, reboque de mercadorias, gerenciamento das pedreiras e das olarias, e até mesmo os segredos da arte de leiloar, da qual Tom era mestre.

Muitas dessas coisas, ela achou tediosas, outras a interessaram e até mesmo despertaram um grande entusiasmo. Aprendia de­pressa, tinha a mente aguda, e impressionou-o pela rápida compreensão dos negócios e a maneira objetiva com que aceitou o que poderia parecer a ela um estranho aprendizado para uma dama.

Certo dia, intrigada, perguntou:

_Por que tudo isso, Tom, por quê?

Agora, quando estavam a sós, tratavam-se por Tom e Hester, deixando o senhor e sra. Dilhorne para as batalhas verbais que adoravam travar às refeições.

_ Quero que saiba de tudo que faço, Hester. Você é a única pessoa em quem confio e não quero outra. E minha esposa, ainda que apenas no papel. Acompanha o que lhe explico com habilidade invejável. Se eu morresse de repente, ou fosse morto, já que este lugar ainda é perigoso, não gostaria que fosse espoliada por alguém. Ao ouvir a menção de morte, Hester estremeceu. E, sem pensar, abraçou-se a ele. Instintivamente, queria ser tranqüilizada, sentir a força de Tom, saber que ele estava ali, que podia contar com a ajuda dele. De repente, a idéia de perdê-lo foi tão terrível que ela não pôde suportar. Aprendera a confiar totalmente no marido. Com a convivência, o medo tinha sido substituido pelo bem-querer, bem mais que bem-querer, na verdade.

Ela mal podia esperar para que Tom chegasse em casa, para estar com ele. Quando saíam juntos e, por alguma razão, afasta­vam-se um do outro, ela o vigiava de longe. Os estranhos senti­mentos que a presença de Tom despertavam nela estavam ficando cada dia mais e mais fortes.

Queria... oh, Deus, queria o quê?

Você sabe perfeitamente bem o que quer, disse-lhe seu Mentor. E ele poderia lhe dar isso que deseja. Você está começando a lamentar sua barganha. Suponha que ele a beije agora. Apaixo­nadamente. Iria gostar? Claro que sim. Beijá-lo, em retribuição, entre todas as coisas, seria a mais deliciosa... E, depois...

Tom pousou a mão, com um ar distante, na cabeça de Hester e acariciou-lhe os cabelos, procurando transmitir-lhe conforto. Sen­tiu que ela estremecia.

_ Isso me parece tão estranho _ ela murmurou, por fim. _ Você é a última pessoa que eu imaginaria, ensinando os meandros dos negócios a uma mulher.

_ Ora, sra. Dilhorne _ ele retrucou, em um tom de zombaria _ , você sabe que o primeiro dever de uma esposa é agradar a seu marido. E você me agrada muito fazendo isso.

_ Então, tentarei entender tudo, com o maior empenho, sr. Dilhorne. _ Apontou para a escrivaninha e para as paredes re­pletas de livros e papéis. _ Porém, confio que não espere que eu seja o leiloeiro no próximo pregão!

 

No final da semana, Tom chegou a casa mais cedo e convidou Hester para ir até o jardim. Tinha uma surpresa para ela.

Pondo de lado a camisa de seda em que bordava um monograma para ele, Hester se enrolou no xale e saiu. O jardim era grande, com topiarias ao estilo inglês e um gramado. Em um dos cantos ficava um pagode japonês com uma mesa de madeira e cadeiras, pintadas de branco, colocadas uma em frente à outra, onde cos­tumavam tomar chá.

Tom levou consigo uma caixa de mogno. Abriu-a e colocou sobre a mesa um coldre com uma pistola, uma cornucópia com pólvora, balas, e uma bucha para carregar a arma. A distância, enfiara na terra fofa um pedaço de madeira, cortado toscamente com a forma de um homem.

_Deus do céu, sr. Dilhorne, o que vai fazer agora?

_Não é o que eu vou fazer, sra. Dilhorne, mas o que você vai fazer. _ Carregava a pistola enquanto falava. _ Preste muita aten­ção, Hester_ continuou. _ Depois, vou querer que você a recarregue.

_Oh, não, Tom, não vou mexer com essas coisas horríveis!

_Oh, sim, Hester. Nova Gales do Sul é um lugar perigoso e mesmo as mulheres deveriam ser capazes de se defender. Quero que aprenda a carregar e manejar uma pistola sem hesitar, como se realmente tivesse de matar um homem.

Era inútil protestar. Ele sempre vencia.

_Você quer dizer que deseja que eu atire com uma dessas coisas?

_Exatamente. Deixe-me mostrar-lhe.

Com paciência e cuidado, Tom pôs-se a ensiná-la a atirar. Hester não era forte o suficiente para empunhar a pistola na posição tradicional dos duelos, braço esquerdo para trás, braço direito es­tendido, porém nem ele pretendia isso. Orientou-a para que se­gurasse a arma com ambas as mãos, para ter firmeza.

_Você não vai enfrentar um duelo, Hester, então não há porque aprender um monte de regras. E ninguém vai ficar esperando que você atire. Atire primeiro, um tiro mortal.

Ela o fitou, apavorada.

_Só um idiota espera que o outro atire primeiro, e você não é idiota.

Não havia nada a fazer, a não ser obedecer a ele. Tom se man­tinha inflexível, e Hester, aos poucos, acostumou-se com o barulho e o coice da arma.

_Não estamos brincando de lordes e cavalheiros, em Londres _ disse ele, secamente, enquanto a ensinava a atirar em um ponto ao longe. _ Nem vamos brincar de atirar _ continuou, fazendo-a mirar a forma recortada na madeira. _ Você estaria atirando em um homem, Hester, não em um círculo de papel. Sempre mire o peito e nunca a cabeça. O tórax é um alvo maior, e você certamente o machucará se o atingir. Nenhuma pistola é eficiente além de uma distância curta, de qualquer maneira.

Hester logo compreendeu que, embora ele fizesse de tudo para que aquilo parecesse um jogo, não era jogo, era sério. Tentou agra­

dá-lo, procurando perder o medo e tornar-se mais hábil. Era a única maneira com a qual podia agradecê-lo por salvá-la da pe­núria. E pela paciência quanto às restrições ao contato físico desse estranho casamento.

Nas primeiras lições, inevitavelmente ficavam muitos próximos, quando Tom se postava atrás dela e a ajudava a firmar a pistola. E essa proximidade, para Hester, era excitante. Seu coração batia mais rápido,, sua respiração mudava. E não só percebeu que não queria que ele se afastasse, como se ressentia quando isso acontecia.

Tom tinha escrúpulos. Não procurava tirar vantagem desses contatos, mas Hester começou a desejar que ele demonstrasse al­gum sinal de afeição. Descobriu-se ansiando por beijá-lo no rosto cada vez que estava perto dela, e o desejo foi crescendo e ficando mais forte a cada dia que praticavam. Estava despertando para o mundo das sensações que lhe havia sido negado durante toda a vida pela indiferença dos pais e rezava para que Tom não notasse suas estranhas reações.

Ele, contudo, estava atento a tudo. Sabia o que significavam, mas também sabia que devia ser paciente, não forçar nada, ou ela poderia se retrair, de novo.

 

Assim que Hester aprendeu a manejar a pistola com destreza, Tom fez com que ela praticasse todos os dias.

Embora orgulhosa de seu desempenho, a outra conseqüência dessa intimidade continuada era perturbadora, para Hester. As noites, após os treinos, eram insones. Ficava acordada, debatendo-se na cama, imaginando o que poderia estar acontecendo consigo.

Tom poderia ter contado a ela o que havia de errado. Percebia como ela corava quando a tocava, para corrigir a pontaria ou a postura. Via também que Hester se apoiava nele sem necessidade. Ela teria ficado surpresa em saber como ele ansiava por tomá-la nos braços e começar a ensiná-la a arte do amor para a qual estava quase pronta.

Ele, também, não conseguia dormir. E por mais motivos, já que estava determinado a não buscar alívio em casa de Madame Phoebe. Sua paciência seria recompensada, tinha certeza. A hora se aproximava, a cada mudança no corpo e no espírito de Hester, e ela o receberia de braços abertos, sem pensar em repeli-lo. E se tomariam marido e mulher de fato, não apenas no papel.

Em camas separadas, cada um deles encontrava conforto de maneiras diferentes. Tom se fixava em seu próximo negócio, e sonhava com maravilhas, não das mulheres, porém das porcelanas e sedas.

E Hester?

Hester fazia o que sempre fizera, desde que chegara a Sídnei. Imaginava-se de volta ao jardim de sua casa, na Inglaterra. Apenas com uma diferença. Quando mergulhava no sono e a porta, na muralha, abria-se, era Tom que entrava para cumprimentá-la, e não seu irmão, Rowland, que morrera.

Tom não estava surpreso com a inteligência de Hester para os negócios, ou com sua crescente habilidade com uma pistola. Tinha uma visão pragmática da vida. Anteriormente, notara que Madame Phoebe tinha um cérebro muito melhor para negócios que muitos homens. E a coragem de sua própria mãe, de quem se lembrava vagamente da longínqua infância, sempre lhe parecera uma ati­tude exemplar. Hester também havia demonstrado uma excepcio­nal fortaleza de caráter, antes e depois da morte de seu pai. Na verdade, tinha sido por isso que a notara, a princípio.

Ele não julgava que homens e mulheres eram iguais. Em seu mundo, não havia coisas tais como igualdade. Porém, achava que muitas mulheres que conhecia eram tolas, triviais e incompetentes, por, causa da vida que viviam e a que eram submetidas pelos homens. Não que fossem mais tolas que a maioria dos cavalheiros. Apenas tinham menos oportunidade de serem diferentes.

Sua compreensão da motivação humana e a habilidade para manipular as pessoas advinham do fato de não ter teorias de vida. Trabalhava unicamente com base na observação, aliada à intuição que emergia dessa mesma capacidade e que lhe permitia enxergar além dos fatos. Fora assim que descobrira as qualidades inatas de Hester Waringl

A imagem da esposa, dia-a-dia ganhando confiança e começando a desfrutar de suas habilidades recém-descobertas, surgiu-lhe à mente. E mais determinado que nunca, ele decidiu que faria dela sua mulher e a mãe de seus filhos.

 

                                           CAPÍTULO VII

Hester postou-se diante da janela de seu quarto, olhando para o imenso oceano que a Primeira Es­quadra Naval havia singrado até chegar a Botany Bay, em 2 de janeiro de 1788. 0 dia da chegada da Primeira Esquadra normalmente era comemorado em grande estilo. Era decretado feriado e até mesmo os condenados participavam dos festejos. Era distribuído rum entre a guarnição, e o governador promovia um grande banquete para o qual eram convidadas todas as pessoas relevantes da colônia.

Este ano, as cerimônias oficiais tinham sido transferidas de dia, porque o governador ficara retido em Paramatta e somente agora, no final de fevereiro, MacQuarie promoveria o disputado banquete.

Os Dilhornes haviam sido convidados, embora, como emanci­pista, Tom pudesse ser ignorado por todos os demais que estives­sem presentes, a não ser o próprio governador e os Kerrs. Hester estava curiosa para descobrir como seus velhos amigos do regi­mento iriam tratá-la. Será que tratariam Tom com menosprezo?

Seus pensamentos foram interrompidos por uma batida na por­ta. Era Tom, ela sabia. O marido era sempre cheio de escrúpulos e nunca entrava em seu quarto sem se anunciar. Quando ela disse: “entre”, ele abriu a porta, hesitante por um momento, e avançou, estendendo a ela a gravata de seda amarrotada, com um sorriso infeliz no rosto.

_ Desculpe, sra. Dilhorne, mas nunca vou aprender a amarrar essa coisa. Acho que você pode dar um jeito nisso.

Hester fitou-o, muito séria. Não acreditava em uma palavra do que ele estava dizendo. Tinha notado que, ultimamente, Tom vinha pedindo a ela que o ajudasse a terminar de se vestir.

_ A necessidade obriga, sra. Dilhorne _ era a desculpa habitual.

Aonde isso iria parar? Ela gostaria de saber. A algo que você haveria de gostar, murmurou seu Mentor, em um tom irônico.

_ Eu costumava fazer isso para papai _ ela retrucou_ , depois que ele não podia mais pagar por um criado.

Ela sabia que Tom não tinha um valete de quarto e mantinha poucos empregados na casa, além da sra. Hackett, que tinha um quarto pró~amo da cozinha. As outras dependências dos serviçais eram afastadas da casa, perto das cocheiras.

Hester puxou uma banqueta e ajeitou a gravata sobre ela, co­meçando a arrumar as pregas e o nó.

_ Este laço é chamado de queda de água _ disse. _ Era o predileto de Rowland. Acho que o que papai gostava era mais adequado para um homem de mais idade.

_Então, você não me considera um velho _ murmurou Tom.

_Que pena. Acho que agora que sou, não apenas seu marido, mas um dos mais eminentes cidadãos de Sídnei, eu devia parecer, a seus olhos, alguém sério e compenetrado, a ser respeitado. Até mesmo Macquarie deve me julgar com idade bastante ou não iria anunciar a minha indicação, e a de Alan, para a magistratura, hoje, durante o banquete, para desgosto dos exclusivos, eu suponho.

_Se seriedade e compenetração são próprias de um velho _ retrucou Hester, levantando-se e estendendo-lhe a gravata, admiran­do seu trabalho _ , então duvido de que o sr. Tom Dilhorne algum dia venha a ter tais qualidades, mesmo quando chegar aos noventa.

_Certamente nunca conseguirei, com uma esposa tão atrevida _murmurou ele, inclinando a cabeça e beijando os dedos de Hes­ter, quando esta lhe entregou a gravata. _ Diga-me, sra. D., o que aconteceu à criatura meiga e doce que indicamos para ser a professora, no ano passado? Parece que ela desapareceu. Mais um comentário desses, e você vai parecer uma mula escoiceadora.

Seu tom era divertido, não de reprovação, e Hester dirigiu a ele um olhar enviesado, por debaixo dos cílios. Gostava de provo­cá-lo, de volta.

_ Ora, senhor, um certo Tom Dilhorne apareceu na vida dela. Agora, vamos ver esses cabelos, sr. Dilhorne, esses cabelos...

Tom olhou-se no espelho.

_Meus cabelos? Pensei que tinha dado um bom jeito neles, capaz de rivalizar com todos aqueles jovens oficiais cheios de vida de quem minha esposa gosta. Você gosta de oficiais jovens, não é, sra. Dilhorne?

Hester o ignorou.

_ Do jeito que está, você pode se rivalizar com os vigaristas da rua das Pedras _ ela retrucou, com fingida severidade. _ Por favor, sente-se e deixe-me arrumá-los.

_E uma mula escoiceadora, mesmo _ disse ele. _ Suponho que tudo isso é porque você teve de desistir da escola e não tem mais as crianças para mandar. _ Contudo, sentou-se e deixou que ela escovasse os rebeldes fios cor de areia.

_Agora _ murmurou Hester, espiando a imagem dos dois no espelho _ , por favor, diga-me porque não quer ser um juiz. Tenho certeza de que tem consciência de que todos os exclusivos de Sídnei pensam que você está ardendo de vontade de conseguir essa honra, e mal pode esperar que o governador marque a data.

_E cedo demais. Macquarie foi muito longe. Nunca serei aceito em uma sociedade tal como a de Sídnei. Alan, pode ser. Ele era um cavalheiro antes de ser deportado, enquanto eu... _ Fez um ar de desgosto _ . . .era a escória de Yorkshire e, depois, de Londres. Nem mesmo sei quem foi meu pai. A sombra de minha origem e da cadeia sempre vai estar sobre mim, por mais rico e poderoso que eu me torne.

Seu rosto transformou-se subitamente. O ar divertido e de zom­baria, normalmente visível, praticamente desapareceu enquanto ele se olhava no espelho.

_Cá entre nós, minha esposa, nós criamos uma bela fraude, não é mesmo? Sob sua orientação e travestido nestas roupas, fa­lando como falo, e não como costumava fazer, eu pareço e me expresso como um perfeito cavalheiro. Não, na verdade, não tenho vontade de ser um juiz. Creio que talvez eu deseje apenas provar que Tom Dilhorne, ladrão, bandido, e comerciante, ainda é Tom Dilhorne e pode rir na cara daqueles que se consideram melhores.

_Oh, mas você já faz isso sem necessidade de ser um juiz _ disse Hester, com ironia.

Ele se levantou, ergueu-a do chão e a chacoalhou no ar, gen­tilmente, dizendo:

_Agora eu sei por que me casei com você, sra. D. Pensarei nisso quando nos sentarmos, de rostos sérios, entre aquela gente respeitável, hoje à tarde. Que não estou mais sozinho, e que tenho alguém com quem partilhar meus pensamentos secretos, mesmo que você não partilhe a minha cama. _ Colocou-a no chão. _ Estamos prontos para encará-los em todos os sentidos, minha querida. Miller vai trazer a carruagem para que possamos chegar ao Palácio do Governo em alto estilo.

 

Hester, é claro, estava certa ao pensar que Tom seria tratado com menosprezo. Ele sentou-se à mesa do lado oposto a ela, na bela sala do Palácio do Governo. Todos comiam sob a luz dos candelabros e ao som da banda do Regimento. Nem uma alma, além do governador, dirigiu a palavra a ele.

Ao final do banquete, os brindes começaram. Até então, as se­nhoras e os cavalheiros haviam brindado entre si, fazendo tinir as taças e trocando gentilezas. Pat havia feito um brinde a Hester, porém ninguém brindara com Tom, cujo vinho continuava intocado, a sua frente.

A banda começou a tocar, suavemente desta vez, e com grande sentimento, a marcha do Regimento, “Meu amor é uma rosa ver­melha, muito vermelha”, para acompanhar o brinde oficial. O cria­do de libré que coordenava a saudação pediu aos convidados que erguessem suas taças. O barulho dos convidados ao se levantarem foi seguido pelo som de um súbito tumulto na ponta da mesa, distante dos Dilhornes.

Um jovem tenente, que havia bebido mais do que era conve­niente, levantou-se, antes que a ordem fosse dada, e começou a gritar para o Governador.

_Não! _ ele bradou. _ Não erguerei uni brinde nem jurarei lealdade a Sua Majestade, o rei George III, na companhia de bandidos e da escória que deveria estar trabalhando sob correntes! Você pode ser o governador aqui, senhor, mas abusa de minha integridade moral se quer que eu partilhe do Brinde da Lealdade com ele. _ Apontou para Tom e, erguendo a taça ao alto, pôs-se a despejar o brilhante liquido vermelho sobre a toalha da mesa, em uma cascata. O rumor cresceu.

O coronel O’Connell, o rosto tão avermelhado como o vinho esparramado, deu uni murro na mesa.

_Cale a boca, seu idiota! Perdeu o juízo?

Outros oficiais, sentados perto dele, embaraçados que o jovem embriagado houvesse dito aquilo que todos pensavam no íntimo, procuraram fazer o rapaz sentar-se. Este, porém, não pretendia silenciar, e gritou novamente, antes que o major Menzies lhe ta­passe a boca com a mão:

_É ele que está louco _ berrou, indicando Macquarie, que se sentou, imóvel, o rosto transformado em pedra, enquanto o tumulto continuava. _ Pedir a oficiais e cavalheiros que se sentem à mesa e confraternizem com um sujeito como Dilhorne, pensar em fazer dele um magistrado... E vocês todos que aqui estão são uns hipócritas, que... _ O resto da frase se perdeu por trás da palma larga da mão de Menzies.

Cabeças se viraram. Homens riam à socapa. Mulheres tremiam. A única pessoa impassível na sala, além de Macquarie, era o pró­prio Tom.

Ele sorriu, pegou sua taça, e ficou a observar o jovem ser ar­rastado, esperneando, para fora da sala pelos constrangidos ofi­ciais. Os protestos sufocados continuaram até que, finalmente, ele sumiu através das portas duplas do salão.

A expressão, no rosto de Tom, era imperscrutável. Ele se voltou para a esposa do major Middleton, sentada a sua direita, que havia demonstrado seu desprazer por sua presença, não lhe diri­gindo uma única palavra durante o banquete, e disse:

_Vamos, madame, brindemos ao único homem honesto nesta sala. Ele, e somente ele, teve a coragem de dizer aquilo que vocês todos estão pensando. Merece vivas por isso, certamente vocês o invejam.

A ara. Middleton encarou-o e retrucou, em um tom gélido:

_ Sendo assim, sr. Dilhorne, fica-se a imaginar porque você escolheu passar por isso.

Tom continuou a segurar a taça no alto, a boca torcida em um sorriso.

_ Ora, madame, eu vim aqui porque o governador me convidou, como fez com a senhora. Não queria que eu o insultasse, recusando o convite, não é verdade?

Hester observava a tudo fascinada. Ah, conhecia aquela ex­pressão e aquela voz. Percebeu que Pat Ramsey continha o fôlego, viu que o rosto da sra. Middleton tornava-se tão vermelho como uni peru.

_O governador devia ter mais bom senso... _ a mulher co­meçou e, então, percebeu o que Tom havia feito. Ele a obrigara a dirigir-lhe a palavra, não uma vez, mas duas, embora ela hou­vesse jurado intimamente, assim que soubera quem ficaria a seu lado na mesa, que jamais aquele homem ouviria uma palavra de sua boca. Pior, ele a levara a defender-se, quando era quem deveria estar se defendendo!

_Algumas pessoas _ ela se dirigiu a todos, à mesa _ sabem seu lugar e se mantêm nele!

Tom bebeu seu vinho, esvaziando a taça antes de responder:

_Concordo com a senhora, madame. _ Seu sorriso era mor­talmente perigoso. _ E, hoje, meu lugar é aqui, nesta mesa, a seu lado. _ Olhou para o copo. _ Veja só, sra. Middleton, a esposa do major, não é mesmo?, creio que bebi todo meu vinho e não sobrou nada para o Brinde da Lealdade. Afinal, não terá que brindar comigo...

Pat Ramsey começou a rir, não conseguindo se conter, lem­brando-se do conselho que havia dado a Jack Cameron, de nunca travar batalhas verbais com Tom Dilhorne, pois estaria perdido.

_Seu marido arranca minha admiração _ disse a Hester. _ Apenas, eu...

_Não precisa dizer mais nada _ pediu Hester, cortando-lhe a palavra. _ Sei exatamente aquilo que está pensando, capitão Ramsey, e é o mesmo que aquele pobre tenente. Você sabe, tanto quanto eu, que Tom está certo. O rapaz é a única pessoa nesta mesa a dizer a verdade, e vai ser punido por isso.

_Ele vai estar com a cabeça pesada pela manhã e com tempo para pensar em sua tolice _ respondeu Pat. _ Agora, precisamos fazer o Brinde, da Lealdade, você e eu. _ Ergueu a taça.

Tom levantou o copo vazio e fez uma reverência, primeiro para a sra. Middleton e, então, para Hester.

_Ao ar. Dilhorne e a mim _ disse Hester, em tom de desafio.

Ao que Pat retrucou, divertido:

_Bravo, minha cara Hester. Espero que sua lealdade a ele mereça uma recompeRsa digna de sua coragem.

Por um instante, Hester pensou que o capitão estava brincando. Porém, talvez não estivesse. Ela estava começando a descobrir que Pat Ramsey tinha qualidades ocultas.

Depois do brinde, todos os convidados dirigiram-se ao jardim. Em grupos fechados, discutiam com grande animação, entre di­vertidos e zangados, tudo que havia se passado.

A opinião geral era que Macquarie havia merecido um tal susto por ousar forçar o inaceitável dentro do Palácio do Governo, onde se supunha que tais desclassificados, como Dilhorne, nunca fossem recebidos.

Hester, seguida por olhos curiosos e reprovadores, recusou o convite de Pat Ramsey para acompanhá-la e saiu, à procura de Tom. Este estava impassível como sempre, conversando com o governador, que fizera questão de aproximar-se dele no momento em que o jantar terminara. Tomara-o pelo braço e caminhara a seu lado para o jardim, em uma clara demonstração de seu des­prazer com o comportamento dos oficiais de seu antigo Regimento.

Vendo que Hester se aproximava com unia expressão de desafio no rosto, Tom desculpou-se junto ao governador, tomou o braço dela e afastou-a dos convidados, levando-a até uma pequena ala­meda de pinheiros através dos quais, lá embaixo, o oceano distante podia ser visto, desmanchando-se em ondas.

Sentiu que ela tremia e murmurou, com doçura:

_Ora, vamos, ara. Dilhorne. Você foi uma moça corajosa lá dentro. Não lhes dê a satisfação de mostrar-se aborrecida.

_Aborrecida?! _ exclamou Hester, elevando a voz. _ Eles é que deveriam mostrar-se aborrecidos...

_Psiu... _ ele a interrompeu, em um tom gentil. _ O que aconteceu não é nem mais nem menos do que aquilo que eu es­perava. Talvez Macquarie agora perceba que minhas advertências têm fundamento. Tenho que confessar que, em primeiro lugar, sua conduta em nos convidar, insistindo para que aceitássemos e, depois, fazendo questão de me honrar com sua atenção após o tumulto, ainda que pessoalmente seja gratificante para nós, não foi uma atitude nem sábia nem sensata. Alan me ensinou um ditado, em latim, um sobre o qual o governador deveria ponderar. Festina lente, ou traduzindo em linguagem vulgar, Vá devagar! _ Ele sorriu com sarcasmo. _ Você deve compreender o ressen­timento deles, Hester, e aprender a viver com isso. Agora, me dê um sorriso. Estamos nos divertindo, não é mesmo? Logo, vão es­pocar os fogos de artificio. Você vai gostar de ver, eu sei. E a banda está prestes a começar a tocar, o que, pelo que todos be­beram, será uma aventura, por si só.

Subitamente, Hester percebeu que ele procurava tranquiliza-la, que nada do que tinha sido dito ou feito contra ele tinha o poder de feri-lo, e que ele estava tentando fazê-la reagir da mesma maneira.

Como se pudesse ler-lhe os pensamentos, Tom continuou, suavemente:

_Eles querem vê-la aborrecida. Sorria e pareça feliz, isso irá irritá-los ainda mais. É o que fazem os japoneses. Há uma luta, chamada judô, na qual usam a força do oponente para derrubá-lo.

A despeito de tudo, Hester esboçou um sorriso. Era bem próprio de Tom ouvir um insulto e usá-lo para tirar alguma estranha lição de vida, em vez de permitir que isso o perturbasse. Ele per­cebeu sua expressão e apertou-lhe a mão carinhosamente.

Will French, um dos amigos e rival de Tom em negócios, aproximou-se.

_Sra. Dilhorne _ disse ele, com seu jeito franco e rude _ , está com ótimo aspecto. Corada, na verdade.

_ Oh, é apenas efeito de uma crise temperamental, sr. French _ retrucou Hester espirituosamente.

_ Ah, é claro _ concordou French. _ Ouvi dizer que um dos jovens oficiais se encrencou.

_Mesmo para Sídnei, essa fofoca andou rápido _ emendou Tom, realmente divertido.

French fitou-o com dureza; não conseguia compreender Dilhorne.

_Bem, não foi sobre isso que vim conversar. Importa-se que tratemos de negócios, senhora?

Antes que Hester pudesse responder, Tom interveio:

_ Se tem alguma coisa a dizer, French, pode fazer isso na frente de minha esposa sempre que quiser.

_ Pois bem... Você tem sido um bom amigo e sempre jogou limpo comigo. Achei que gostaria de saber que há um mercado clandestino de bebida e mercadorias do governo, ultimamente. Pen­sei que havia um acordo com O’Connell de que o que estava aqui, em compromisso, seria distribuído por seu intermédio, e o suborno pago aos militares.

Isso era novidade para Hester.

Tom sabia o que ela estava pensando.

_ E hora de você saber como essas coisas são organizadas, Hester _ disse a ela. _ Então, French, alguém, um oficial, ou oficiais, quem sabe, está roubando, por baixo do pano, é lógico, em vez de às dares, e o material está sendo vendido por toda a Sídnei?

French concordou.

_E isso está sendo feito sem o conhecimento de O’Connell?

Novamente, French concordou.

_Meus agradecimentos _ disse Tom, muito sério. _ Vou ficar atento. Ninguém pode sair por ai com a parte do leão e passando a perna em seus colegas oficiais, sem dizer nada a Tom Dilhorne.

Hester não pôde se conter. Deixou escapar uma risada. Tom fitou-a com fingida severidade.

_ Acha graça, não é, querida? Acha graça que alguém esteja fazendo Dilhorne e a sócia de trouxas?

_ Sócia? _ perguntou French, um tanto espantado.

_ Sócia _ repetiu Tom, apontando para Hester.

Era sua recompensa, ela sabia, por trabalhar duro e tentar se comportar como ele o faria. Tom começara, agora, a dizer ao mundo que os dois eram mais que um simples casal de marido e mulher. Não podia agradecê-lo no momento, não em frente de Will French e dos espectadores hostis.

Ao invés disso, ela ficou a observar alguns dos soldados parti­culares do 73~ Regimento caminharem pelo gramado, trazendo to­chas nas mãos, para acender os galhos cortados dos grandes pi­nheiros que apontavam para o céu. Outros acendiam lanternas entre o arvoredo para iluminar a penumbra crescente. Os primeiros fogos de artificio começaram a espocar. A banda tocou uma versão de Fireworks’ Music, de Handel, distorcida pelo efeito do álcool, para acompanhar o espetáculo.

De semblante deslumbrado, Hester admirou o show de luzes e cores, esquecida dos insultos ao marido e dos ladrões que surru­piavam mercadores. Tom, ao contrário, ficou a observá-la e não aos fogos. Aquele ar inocente e deliciado, inesperadamente, pene­trou em sua alma empedernida e amargurada.

French, ao fitá-lo, ficou surpreso. Então, Dilhorne tinha um ponto fraco, afinal, e era a esposa feiosa, entre todas as pessoas. Quem haveria de imaginar unia coisa dessas? Essa mesma cons­tatação faziam muitos outros, com um sorriso cruel.

 

No início, Tom até fizera descaso das fofocas desagradáveis que circulavam por trás de suas costas. Seu casamento fora uma de­cisão tomada a sangre frio, e Hester, uni troféu, a melhor parte do jogo. E, se nisso tudo, seduzi-la e levá-la para a cama era apenas mais uma jogada, estava se tornando, surpreendentemente, bem mais que isso.

Não era apenas o fato de viver em íntima proximidade com Hester o que o levava a desejá-la. Possuí-la inteiramente não era simplesmente um ímpeto da carne, era a própria Hester que o compelia a fazê-lo. Sentia-se tomado por unia emoção que o homem duro em que se tornara jamais sentira por qualquer mulher, por mais que tivesse gostado de suas amantes, e era algo absoluta­mente distanciado de sexo, apenas.

Tinha experimentado um tal sentimento somente uma vez an­tes, quando se encontrara inesperadamente com Alan Kerr, confuso e perdido no navio, abandonado entre lobos humanos que viam nele uma presa sexual, todas as certezas de sua antiga vida des­truídas, e sem entender a brutal realidade da nova situação.

O    ímpeto de proteger alguém tão desamparado como Alan, em sua miséria, havia desabado sobre Tom, na ocasião. E o levara a lhe oferecer sua amizade, o que permitiu a Alan sobreviver, e o resultado havia sido um relacionamento duradouro.

Em Hester, ele encontrara alguém mais que precisava dele. O mesmo impulso que o levara a salvar Alan assaltara-o desde a primeira vez que a vira, desde a entrevista até o dia em que a desposara. Para a própria surpresa, ele estava começando a se apaixonar por ela, no sentido mais completo e verdadeiro.

A alegria inocente com a qual ela abraçara a nova vida, sua cabeça equilibrada, suas feições e o corpo gradualmente florescen­tes, e sua força e inacreditável lealdade a ele durante o banquete, tudo começava a causar seus efeitos.

Descobria-se pensando nela o tempo todo. Se fazia ou via alguma coisa interessante quando estava longe dela, lembrava a si mesmo de contar a ela, quando chegasse em casa. Um novo par de luvas, um leque bonito, que via ao entrar no Emporium, era logo apa­nhado como um presente a Hester, na certeza de que faria seu rosto reluzir de prazer.

Qualquer lembrancinha, por insignificante que fosse, a quem, como Hester, nunca recebera nada, causava uma imensa alegria. No dia anterior, ele fora supervisionar o desembarque de uma carga de seda chinesa. Chamara a sra. Herbert e ordenara que mandasse fazer um vestido para Hester.

_ E surpresa, lembre-se _ disse a ela. _ Você tem as medidas dela, e quero que seja um modelo da moda, porém simples, sem muitos enfeites. Use um dos moldes que chegaram de Londres, e cuide que ela não saiba de nada. E evite olhares significativos ou coisas assim.

A asa. Herbert sempre respeitara o gosto de seu patrão quanto aos trajes femininos, vestira Mary Mahoney, um gosto que julgava incongruente para um homem forte e sensual tal como ele.

Os outros empregados riram quando ele se foi.

_ Cheio de doçuras com ela, não acham? Olhem o que já levou para casa esta semana. Não é por vontade própria que vai para a cama sozinho, posso apostar. A madame acha que é boa demais para ele _ foi o comentário geral.

Se Tom sabia o que estava sendo dito às suas costas, tudo lhe era indiferente. O jogo que jogava com a vida ditava que soubesse e compreendesse o que as pessoas pensavam, diziam e faziam e, então, usava isso contra elas mesmas. Somente um tolo dava im­portância à opinião de tolos e, aos olhos frios de Tom Dilhorne, a grande maioria das pessoas era tola.

 

Estavam casados havia quase dois meses quando, uma certa tarde, Tom chegou em casa mais cedo e contou a Hester que, quando descia a King Street, um dos aborígines o havia parado e dito a ele que estava para desabar uma violenta tempestade naquela noite.

Muitos europeus poderiam rir diante de tal profecia. Tom, po­rém, aprendera em sua vida dura que nada devia ser ignorado. Os aborígines já o haviam alertado antes, sobre coisas assim e, usualmente, estavam certos. Por isso, dera uma moeda ao homem. Este arreganhara os dentes e murmurara alguma coisa em sua estranha linguagem, que Tom esperava fosse algum tipo de agra­decimento, mas que julgara fosse algo mais parecido com “coitado de você, pobre homem branco”.

_ Caso ele esteja com a razão _ Tom disse a Hester _ , vamos sair para um piquenique e observar a tempestade em campo aberto. Já presenciou uma tempestade, Hester?

Hester confessou que nunca vira.

_ Bem, então não há nada a perder e, se não houver tempes­tade, teremos passado uma tarde agradável ao ar livre.

Miller, o empregado, arreou os cavalos da carruagem, e Tom trouxe comida da cidade para o piquenique. Partiram pela cam­pina até chegar a uma clareira, distante de Sídnei, em um pro­montório do qual se via o mar, de um lado, e as montanhas distantes, de outro.

A princípio, como dissera Hester, tudo não passara de um ru­mor. Nada de tempestade. Comeram a comida e beberam o vinho que, premeditadamente, Tom colocara na cesta.

_ Mais vinho! _ exclamou Hester. _ Você está me transfor­mando em unia beberrona, ar. Dilhorne.

_ Mas você se comporta bem melhor, agora _ disse Tom, que nunca se cansava de mimá-la, ultimamente. Colocou o xale em suas costas, deixando que os dedos se demorassem em seu pescoço. Sentiu que ela estremecia a seu toque e perguntou, ansioso: _ Está com frio?

Em resposta, Hester corou e murmurou:

_Não. _ E inclinou-se ligeiramente, recostando-se contra ele.

Se a proximidade afetava Tom, afetava Hester ainda mais. Seu medo dos homens havia começado a desaparecer, e o que começara a sentir por Tom estava muito distante de temor.

Tom gostava de comer ao ar livre e desfrutar de um piquenique no campo, o que freqüentemente faziam. Isso incluía dar de comer a Hester na boca, com ela lambendo-lhe os dedos, como se fosse um bichinho de estimação, Hester pensava, divertida.

O    Dilhorne bicho-papão havia, há muito, desaparecido de seus monólogos interiores, para ser substituído por Tom, que lhe trazia presentes e descobria coisas interessantes e divertidas para fazer.

Ele havia prometido a ela que iriam nadar um dia e acrescen­tara, com um ar malicioso:

_Porém, visto não sermos realmente casados, sra. Dilhorne, é dificil resolver o problema do quê vestir.

Hester caíra direitinho na armadilha.

_Como, ar. Dilhorne?

_Bem, nadar só vale a pena quando não se está preso pelas roupas.

Pela primeira vez, Tom percebeu que ela não ficava ruborizada ao ouvir uma insinuação ousada. Pareceu ponderar sobre o assunto.

_Não tenho experiência, ar. Dilhorne, com roupa ou sem ela, e não posso afirmar que tenha razão.

Naquela tarde, deixaram que o piquenique se estendesse, e Hester foi tomada de atrevimento. Descascou uma laranja, colocou os gomos de laranja na palma da mão, levando-os aos lábios do marido, dizendo:

_Sua vez de bancar o bicho de estimação, sr. Dilhorne. Tom, em resposta, lambeu-lhe a mão, como se fosse um gara­nhão ávido por abocanhá-la até o cotovelo.

Depois de beberem o vinho, estenderam-se na grama. E Tom exigiu como prêmio o chapéu de Hester, se ela fosse incapaz de responder qual a taxa corrente dos Bônus do Tesouro, em Sídnei.

_Que utilidade terá meu chapéu para você, se ganhar? _ perguntou ela, que acabara de descobrir que sua taça de vinho, infelizmente, estava vazia.

Tom fitou-a, reclinada a seu lado. Hester usava aia vestido de musselina suíssa, um xale finíssimo, qual teia de aranha, e um chapéu de palha com uma fita azul em torno da copa, cujas pontas amarrara sob o queixo. Sua aparência havia melhorado tanto que era quase inacreditável. Sua tez estava mais clara, com um rosado delicado, seus cabelos haviam ganhado volume e brilho. A expres­são, ultimamente, era de um inocente mistério.

_ Seu chapéu é tão atraente, querida, que talvez usá-lo melhore minha aparência também.

Essa provocação sutil, para os padrões de Tom, confundiu-a. Ela o avaliou com os olhos, admirando-o em sua calça de seda negra, a camisa da mesma cor, um cinto escarlate em torno da cintura, e disse-lhe que não tinha resposta para uma colocação tão fora de propósito.

Aonde isso iria terminar, Tom não sabia. Hester estava tão descontraída que qualquer coisa parecia possível, mesmo ali, ao ar livre. A tempestade, então, resolveu fazer parte do jogo, e os acontecimentos tomaram um rumo inesperado.

Justamente no momento em que Tom disse a Hester que a gola de seu vestido estava torta, o ribombar de um trovão anunciou que a prometida tormenta se aproximava.

_ Pode arrumar, por favor? Meus dedos estão desajeitados com o vinho, sr. Dilhorne _ justificou-se ela.

Surpreso, Tom começou a abrir-lhe a gola, com uma total falta de habilidade, roçando os dedos no pescoço de Hester, provocando arrepios que a percorreram de alto a baixo, uma sensação real­mente deliciosa que ela jamais havia experimentado antes.

Hester saltou ao violento estrondo de um trovão, e Tom resig­nou-se diante do fato: o primeiro assalto não fora repelido, porém não surtira efeito.

O comportamento de Hester, contudo, era tal que ele apostava consigo mesmo que ela poderia se descobrir uma mulher casada de verdade pela manhã.

Ficaram a observar a tempestade distante, por longo tempo, empenhados naquele jogo de provocações, até que Hester deu um grito de susto quando um raio iluminou o céu, e um trovão ri­bombou. Era a oportunidade que Tom queria. Envolveu-a nos bra­ços, oferecendo proteção, e abrigou-a de encontro ao peito.

Nova experiência estranha, para ela, logo posta de lado ao per­ceber que a chuva se aproximava rapidamente.

Ao se afastarem um do outro, era tarde demais. A carruagem estava longe e, agora, viam-se literalmente ensopados. Estranhamen­te, caíram na risada. Diversão ainda maior foi resgatar o tapete do chão, as coisas do piquenique, a sombrinha de Hester e o casaco de seda de Tom, tudo encharcado pela chuva torrencial. Longe de ex­tinguir a excitação, ambos prestes a romper com os termos do acordo, isso adicionou um toque a mais de tempero. Se Hester ainda não havia compreendido totalmente para onde a situação rapidamente se conduzia, Tom não tinha quaisquer dúvidas quanto a isso.

Ainda rindo, os dois correram para a carruagem. Tom pratica­mente lançou Hester para dentro, e, açoitando os cavalos, dirigiu para casa tão depressa quanto pôde. Para Hester, que sempre tivera medo de tempestades, tudo parecia fantástico. Agarrou-se a Tom, enquanto a carruagem cruzava a tarde escura, os trovões e os raios espocando sobre suas cabeças.

_ Segure-se em mim, ara. Dilhorne, logo chegaremos em casa, sãos e salvos.

A resposta dela foi uma risada. O aguaceiro era implacável. A água escorria pelos cabelos de Hester, e suas roupas estavam en­charcadas. Tom voltou-se para ela, e seus olhos luziram quando um raio cruzou o céu.

_ Não está assustada, sra. Dilhorne? _ gritou, para ser ouvido acima dos trovões.

_ Não!

E era verdade. Estando ao lado dele, não tinha medo. Eram apenas os dois em meio ao mundo selvagem. Hester quase desejou que aquela corrida maluca nunca terminasse. Agarrou-se ao braço de Tom, e ele v~ltwi-se, de novo, para tranqüilizá-la. Viu, porém, que não havia necessidade. A satisfação que o dominava tomara conta de Hester também. Tinham se unido na alegria de estarem juntos e de enfrentarem o mundo inteiro. Os poucos meses de casamento os levara a esse momento de prazer compartilhado.

Toda a decepção, toda a amargura, tinha se esvaído do coração de Tom. Se havia desposado Hester em parte para desafiar o mun­do ao qual ela pertencia, iria fazer dela sua esposa de verdade, e só porque ela era Hester, e ele era Tom. Se pertenciam aos exclusivos ou aos emancipistas, isso era irrelevante.

Para Hester, o que estava acontecendo era quase como algum sonho impossível. A felicidade que as ultimas semanas haviam trazido a ela, a perda gradual de seus medos do estranho marido, e a substituição desse sentimento pela afeição, que rapidamente se transformava em um amor apaixonado que ela ainda não sabia como expressar, tudo era algo que nunca pensara experimentar.

Dissera a ele que não estava com medo, e era verdade. Tivera, unia vez, porém fora antes de conhecê-lo. O bom senso poderia dizer que ela devia temê-lo, mas o que quer que ele fosse perante os outros, ele era o homem que a libertara da prisão na qual vivera por mais de vinte anos. Abandonada, ignorada, desprezada, deixada a morrer de inanição ou condenada a se prostituir, os fatores externos de seu mundo não tinham qualquer significado em face daquilo que estava começando a sentir por ele.

A viagem estava perto do fim. A villa surgiu diante deles, branca em meio à escuridão.

 

                                   CAPÍTULO VIII

Um ultimo estrondo de trovão saudou-os, na che­gada. Tom ajudou Hester a descer e, então, to­mou-a no colo, chamando pelo empregado, para que levasse os cavalos e a carruagem para as cocheiras.

O rapaz correu a atendê-lo, de boca aberta e de olhos fixos no casal, observou o patrão caminhar para casa com Hester nos braços.

Tom subiu a escada com pressa, a água escorrendo por suas roupas. A sra. Hackett, a quem não tinham visto, entreabriu a porta e espiou pela fresta. Ao ver que ele carregava Hester para o quarto, beijando-a a cada degrau da escada, o rosto da empregada contraiu-se de desgosto.

De súbito, Tom surgiu, correndo para o próprio quarto, para reaparecer quase imediatamente, com uma garrafa de brandi na mão e toalhas sobre o ombro.

Bateu à porta do quarto de Hester e entrou. Encontrou-a tentando secar os cabelos ensopados. Ela o fitou. A água escorria pelo rosto dele, dos cabelos encharcados, e, como as dela, suas feições irradiavam um brilho misterioso. Ele caminhou até a penteadeira e colocou uma dose generosa de brandi no copo, oferecendo-o a ela.

_ Beba isto, ara. Dilhorne, vai lhe fazer bem.

Hester sentiu como se alguma invisível mão, que a segurara pelas costas durante toda sua vida, houvesse sido removida. Tomou o copo e, recordando-se do pai, engoliu a bebida de um só gole. Imediatamente, engasgou e pôs-se a tossir, o álcool queimando-lhe a garganta e escorrendo como um fluxo quente em direção a seu estômago. De olhos lacrimejantes, voltou-se para ao marido, que ria da expressão de seu rosto.

_ Muito corajoso de sua parte, ara. Dilhorne! _ Avançou para ela, segurando uma das toalhas. _ Deixe-me ajudá-la a secar-se.

Ela poderia ter recusado, afastando-se, lembrando-o do acordo. Hester, porém, descobriu que unia estranha excitação a tomava. Longe de se sair com um cerimonioso: “Oh, não, sr. Dilhorne, posso fazer isso sozinha”, tinha mais é vontade de sentir as mãos de Tom em contato com seu corpo.

Pior, ou seria melhor?, a proximidade entre os dois, que deveria fazê-la encolher-se de desgosto, provocava um ataque de risinhos, na verdade. E Tom parecia não apenas disposto a enxugá-la, mas a tirar-lhe as roupas, e, o mais estranho, tirar as dele também!

_ Estão muito encharcadas, sra. Dilhorne, não vamos arriscar a provocar uma febre.

Longe de assustar Hester como antes poderia ter acontecido, isso provocou nela uma sensação inusitada. Estavam quase nus, enrolados em uma das toalhas gigantes que tinha trazido.

_ Você vai pegar uma gripe, sra. Dilhorne, se continuar a tremer assim. Deixe que eu a ajude a trocar de roupa.

E ajudá-la a vestir-se significava tocá-la por todo o corpo. Na verdade, ele o fazia muito suavemente. Porém, agora, o tremor não era de frio. Hester estremecia pelo efeito que aquelas mãos lhe causavam.

A princípio, os toques eram quase casuais e inocentes. Lentamente, porém, ele se pôs a massagea-la nas costas e ombros e, logo, corria as mãos por seus quadris e os selos. Os polegares fechavam-se sobre seus mamilos retesados e os apertaram de um jeito estranho. O prazer que a invadiu fez com que Hester não apenas gritasse, mas se apertasse contra ele, o que serviu apenas para dar a Tom novas oportunidades de acariciá-la e tocá-la, tudo isso em meio a murmúrios, dizendo que, logo, ela estaria aquecida outra vez, ele poderia assegurar!

A sensação de algo se derretendo em seu ventre tomava-se cada vez mais forte. As mãos atrevidas a percorriam e, quando abandonaram seus selos, Hester quase se ressentiu, para descobrir, no entanto, que elas haviam se transferido para a parte interna de suas coxas e, lá, buscavam um lugar ainda mais secreto, apalpando e acariciando.

Tom estava em silêncio e, ao invés de murmurar-lhe palavras doces, ele a beijava no rosto, no pescoço, nos ombros e, finalmente, nos seios desnudos. E ela descobriu que aquela boca cheia de sur­presas, comprimindo-lhe os mamilos, dava-lhe um prazer ainda maior que aquelas mãos.

As carícias provocavam uma sensação tão poderosa dentro de Hester, que ela pensou que iria, literalmente, queimar em chamas. Todo o senso de vergonha, de modéstia, tinha desaparecido. Per­cebeu que se apertava contra ele, e só o que conseguiu dizer, foi:

_ Oh, por favor, Tom, por favor...

O que mais ela queria que ele fizesse, não sabia explicar, mas, de alguma forma, sabia que havia outras coisas ainda por vir, e queria experimentar. Para aumentar ainda mais a falta de compostura, ela parecia ter perdido o controle de si mesma, a ponto de, quando não estava pedindo que continuasse, ela o apalpava e acariciava, também!

Hester não estava inteiramente segura do que fazer para agra­dá-lo como ele a agradava, mas percebia que a respiração de Tom estava se tomando ofegante, como a sua. Devia estar fazendo a coisa certa, o que era um alívio.

As mãos de Tom, de repente, mergulharam nos cabelos molha­dos de Hester, e a boca sugou-lhe o seio, a língua percorrendo o contorno do mamilo, e ela se contorceu toda, esfregando-se contra ele. Estava esquecida de tudo, do decoro, da modéstia própria de uma dama, do acordo firmado antes do casamento, dos códigos de conduta entre exclusivos e emancipistas.

Sabia apenas que todo seu corpo vibrava por ser invadido, e que o homem cujo membro ereto ela podia sentir contra seu ventre desnudo, era a única pessoa no mundo a quem desejava se entregar.

A boca de Tom abandonou-lhe o seio. Então, ele a beijou, pri­meiro em seu ventre, no ponto onde as contrações eram mais fortes, e ela gritou de prazer, e, subindo, ele mordiscou-lhe a orelha, sussurrando, a voz pesada de desejo:

_ Mais quente agora, ara. Dilhorne? Ainda quer que continue­mos com nosso acordo?

Ela deveria tê-lo empurrado para longe, chocada. Porém, ao invés disso, suas mãos agarraram-se a ele com uma tal fúria que suas unhas enterraram-se nas costas de Tom.

_ Com mais gentileza, sra. Dilhorne, com mais gentileza _ ele murmurou, e carregou-a para a cama, os dois ainda meio en­rolados na toalha.

O medo faiscou por um instante nos olhos de Hester, ao sentir as costas na cama e o peso do corpo de Tom sobre o seu. Imedia­tamente, consciente da reação, ele rolou para o lado. Lançou-lhe um olhar malicioso, e ela soltou um risinho involuntário. Então, os lábios dele novamente a percorreram, a começar da orelha, descendo pelo pescoço, até mais abaixo, pelo ventre, deixando um rastro de fogo.

_ Alguém já lhe disse como você cheira gostoso, sra. Dilhorne? O capitão Parker, por exemplo?

Hester não conseguiu reprimir uma risada. A vontade de re­tribuir com paixão a todas as carícias voltou, e ela respondeu a cada toque, cada beijo, até que Tom a beijou nos lábios, sua língua penetrando-lhe a boca, provocando-a, excitando-a, cada vez mais. E ela devolveu a provocação.

Sentia-se prestes a derreter. O brandi, a fúria da tempestade, a excitação de ambos, a toalha que os enrolava, e, agora, as aten­ções inconfundíveis com que Tom a cumulava, começaram a fazer seus efeitos.

Seu último pensamento, quanto ele arrancou a toalha que os separava e preparou-se para possuí-la, foi: “Será verdade que isto está acontecendo comigo?”

_ Não fique com medo _ ele murmurou. _ Posso machucá-la um pouquinho no começo, mas depois, ora... Depois, prometo que vai gostar e chegaremos ao êxtase, juntos.

Ele tinha razão de novo, descobriu Hester. Depois da primeira investida, a sensação de dor era quase nenhuma. O contrato fir­mado no casamento tinha sido quebrado, mas ela não se importava, de jeito nenhum. Corpos unidos, ela com dedos enterrados nas costas de Tom, ele agarrado a seus quadris, a sensação de preen­chimento e prazer era indescritível. Gritou de alegria, uma alegria que nunca sentira em seus vinte anos, estranha, completa, total.

Depois, mergulhou no sono da exaustão, nos braços do amado, amado que era seu marido, o homem que a desposara por brincadeira e que agora descobria que a brincadeira voltara-se contra ele.

 

Hester acordou na manhã seguinte, recordando-se que, em al­gum momento, durante a noite, tinham feito amor de novo, dessa vez lentamente, tão lenta e perturbadoramente, que o prazer fora ainda mais longo, tão extraordinário que seus gritos e os de Tom haviam se fundido em um só, ao alcançarem o êxtase. Depois, exausta, ela havia se aninhado em seu braço direito, a cabeça apoiada em seu peito.

Olhou para cima e descobriu que ele já estava acordado. Vendo que ela se espreguiçava, Tom deu-lhe um beijo nos cabelos. Depois

de tudo o que havia acontecido à noite, e a resposta apaixonada que dera a ele, em retribuição, Hester sentiu-se um pouco envergonhada. Porém, o conforto de seu corpo quente, a confiança com que ele a prendia no braço forte, e sua aceitação franca da situação, fizeram com que quaisquer reservas que ela pudesse ter parecessem absurdas.

Deixou-se mergulhar em um cochilo prazeroso. Um pouco mais tarde, Tom esgueirou-se da cama e deixou-a, e Hester ficou a imaginar se havia sonhado. O corpo lhe disse um enfático não! Ficou a imaginar se ele iria voltar. A cama parecia estranhamente vazia, sem ele. Dormiu de novo, acordando apenas quando a porta se abriu, e Tom entrou.

Vestia um traje de estilo militar, enfeitado com botões banhados a ouro, muitos cordões e galões nos ombros. Suas feições eram estranhamente incompatíveis com o traje. Hester sorriu.

Ele se aproximou e sentou-se na cama.

_ Por que está sorrindo, sra. Dilhorne?

_ Você parece um membro do clube dos mais elegantes.

_ Quando me visto assim, mulher, você precisa saber, eu sou do clube dos mais elegantes!

Sem pensar, ela ergueu os braços e puxou-lhe a cabeça para baixo.

Um tanto desequilibrado e surpreso, ele ajeitou-se e, contor­cendo-se, segurou-lhe a cabeça com a mão esquerda, enfiou a direita sob o corpo de Hester e soergueu-a. Sua boca procurou-lhe o seio, em uma carícia prolongada.

A respiração de Hester, já ofegante, foi entrecortada por es­pasmos, enquanto ele explorou, ávido, outras partes de seu corpo. Ela se pôs a gri~ar-1he o nome, em um crescendo.

Motivo de outra explosão de prazer, Tom penetrou-a lenta e deliciosamente, antes de desabar sobre ela, o rosto no travesseiro. Hester afagou-lhe os cabelos, exausta e satisfeita, até que dormiu.

Ao acordar, encontrou-o na cama.

_ O que aconteceu com seus trajes, sr. Dilhorne?

_ Estão perdidos por aí, sra. D., mas eu os encontrarei de novo.

_ Não logo, ar. D., posso afirmar.

Em resposta, Tom tomou-a nos braços, murmurando em seu ouvido:

_ Você é uma amante maravilhosa, ara. Dilhorne. Aprende depressa.

_ Fui ensinada por um mestre, ar. Dilhorne.

_ Ótimo. Você demonstra ter por mim o respeito que mereço.

Caíram na risada e trocaram carícias até que ela experimentou um sono ligeiro, novamente, imaginando como dormir se tomara fácil, tão fácil como ficar acordada. A consciência voltou aos poucos. Ele ainda estava a seu lado, afagando-lhe os cabelos e beijando-lhe suavemente a face.

_ Feliz, sra. Dilhorne? Divertindo-se?

_ Estou com fome! _ ela exclamou, fitando-o muito séria. _ Morrendo de fome.

_ Foi o esforço, amor. Bem, podemos dar um jeito nisso. _ Levantou-se da cama em um movimento suave, e começou a se vestir. _ Espere aqui. Não vá embora.

Ora, aonde poderia ela ir?, pensou Hester, sonolenta. Com nada sobre o corpo e amada até a exaustão, aonde poderia ir? Sem dúvida, o amor era muito mais delicioso do que alguém poderia fazê-la acreditar. E divertido, também. A alegria enfeitou-lhe o rosto, e os cantos de sua boca curvaram-se em um sorriso de fe­licidade. E foi assim que Tom a encontrou, ao voltar. Trazia uma bandeja nas mãos, com uma tigela de porcelana chinesa sobre ela, uma colher, e um enorme guardanapo.

_ Sente-se, ara. Dilhorne.

Hester bocejou, sentou-se e deixou que ele amarrasse o guar­danapo em torno de seu pescoço. A tigela continha pão quente e leite, e algo mais, de aroma bastante agradável, que ela não soube identificar. Tom sentou-se na cama, a seu lado e, envolvendo-a com um dos braços, começou a dar-lhe colheradas do mingau na boca, como se ela fosse uma criança, de novo. Hester nunca se sentira mais amada e mimada em toda sua vida.

_ Delicioso, sr. Dilhorne. O que é?

_ Pão e leite, meu amor.

Ela deu-lhe um tapa carinhoso na mão.

_ Sei disso. Que mais?

_ Bem, eu não ousaria dizer que não há um pouco de rum aí. É para manter suas forças.

Hester lambeu a colher e engoliu mais um bocado, antes de provocá-lo, com doçura:

_ Ora, o que você poderia dizer, ar. Dilhorne, a não ser isso?

_ Que se você olhar para mim assim, mais uma vez, não res­ponderei pelas conseqüências. A propósito, eu disse à ara. Hackett que você não está muito bem, e que vai passar o dia na cama.

_ E você, sr. Dilhorne? O que vai fazer?

_ Passar o dia com você, sra. Dilhorne. A menos que queira que eu mande buscar o capitão Parker. E, neste caso, será meu dever abatê-lo com um tiro, antes de castigá-la como você merece.

Ela terminara o mingau. Tom colocou a tigela no criado-mudo, ao lado.

_ E o que eu mereço, ar. Dilhorne? _ ela o provocou.

_ Isto.

Desta vez, foi uma pequena batalha de carinhos, beijos, abraços, e uma brincadeira de empurra-empurra. Depois, ele deitou-se a seu lado, observando-a, corada e com uma expressão de plenitude, parecendo muito menos a pobre e esfaimada Hester Waring, e muito mais alguma ninfa rosada das pinturas de Boucher.

_ Como se sente sendo a ara. Dilhorne? _ ele lhe perguntou.

Hester refletiu por um instante.

_ Feliz, ainda que um pouco exausta em alguns momentos. Estou aliviada de não ter de me levantar hoje. E você _ ela o interrogou, os olhos brilhando _ , quando vai para o trabalho, ar. Dilhorne?

_ Amanhã, sra. Dilhorne, amanhã. Depois de amanhã, se você tiver sorte.

 

_ Tom _ disse Hester, séria.

Tom percebeu que, pela forma de tratá-lo, ela não o estava provocando; mas precisava de uma resposta franca e direta. Es­tavam deitados, quietos, no conforto da cama, na manhã seguinte, observando o nascer do dia. Tom detestava cortinas, embora o aposento estivesse decorado com um belo par, de brocado da China.

_ Sim, Hester.

_ Há uma coisa que me preocupa um pouco.

_ O que é?

_ Bem, pelo que mamãe disse, e não foi muita coisa, eu deduzi que ir para a cama com um homem era uma cruz que as mulheres tinham que suportar. Não era agradável, ela disse, mas tinha que ser feito se uma moça quisesse se casar e ter uma família. Ela me assustou tanto com isso que, antes de conhecê-lo, eu não con­seguia olhar um homem nos olhos. Nem mesmo o capitão Parker, a quem costumava achar atraente, como você sabe, já que vive provocando-me sobre ele. Contudo... _ sua voz falhou. _ Agora

_ela começou, de novo _ , agora, porém...

_ Agora... Hester?

_ Bem... Há alguma coisa errada comigo, por que eu gostei muito do que fizemos.

A gargalhada de Tom disfarçou a raiva oculta contra a finada ara. Waring, por ter enchido a cabeça da filha de bobagens.

_ Claro que não. E a coisa mais natural do mundo. Não haveria bebês, Hester, se nós não nos divertíssemos juntos, e você não gostasse disso.

_ Tem certeza? _ ela perguntou, ainda em dúvida, escondendo o rosto em seu peito largo.

Ele tomou-a pelo queixo e ergueu-lhe o rosto.

_ Olhe para mim, Hester. Você foi feita para desfrutar a vida, assim como eu. Somente pessoas tolas e, desculpe-me, mulheres idio­tas, pensam de maneira diferente. Por que deveríamos nos atormentar com aquilo que aconteceu tão naturalmente? Apenas quando depre­ciamos a nós mesmos, ou um ao outro, é que está errado.

_ Oh, Tom, você me conforta. Eu estava começando a pensar que era tão desviada quanto as mulheres do bordel de Madame Phoebe.

_ As mulheres de Madame Phoebe não sentem prazer em seus atos, meu amor _ ele lhe disse, suavemente. _ Por essa razão, nunca dormi com elas. Você foge da alegria e satisfação honestas quando paga por isso, ou faz isso por dinheiro. O que inclui maridos e esposas que usam um ao outro. As garotas de Phoebe não são desvirtuadas, Hester, ganham a vida, pobres criaturas, do único jeito que podem.

Hester retesou-se nos braços do marido. Se ele não a houvesse resgatado daquela vida miserável, ela poderia ser uma dessas in­felizes, se tudo o mais lhe faltasse. Ela a salvara daquilo... Es­tremeceu e voltou-se, procurando por segurança.

_ Você sabe tanta coisa, Tom, e eu tão pouco. Diga-me, todos os homens são como você?

_ Deus me livre, não! _ ele respondeu, em um ímpeto, com súbita violência e extremamente sério. _ A única coisa boa que você pode dizer de mim, Hester, é que não gosto de ver as mulheres sofrerem.

_ A única... _ ela murmurou, suavemente, para si mesma, quando ele finalmente dormiu, ao lado dela. _ Mas é uma grande coisa, Tom.

Grudada contra a porta do quarto dos patrões, os ouvidos aten­tos, a expressão ávida e cruel, havia alguém que não apreciava em nada aquela paixão e aquela felicidade recém-descoberta. A única coisa que desejava era espalhar a fofoca por toda a Sidnei.

_ Ora, ora, ele finalmente se apossou daquela madame arro­gante na noite da tempestade _ cacarejou a ara. Hackett a seus amigos e a quem mais quisesse ouvir. _ Carregou-a para a cama e ficou lá, com ela, por dois dias inteiros! Só saiu de lá, e foi ele que levantou, para ir até minha cozinha, usando uma roupa de dormir. Minha esposa está doente _ me disse, na maior tranqüilidade _ e não vai se levantar, hoje. Vou levar a comida para ela. _ Explodiu em uma horrível gargalhada. _ Doente! Olhem só para ela! Dois dias inteiros fazendo aquilo! Fico a imaginar como não os ouviram, em toda a Sídnei!

A novidade se espalhou, chegando aos ouvidos da guarnição. E o livro de apostas de Jack Cameron o ameaçava com a falência. Quando a fofoca atingiu os portões do Palácio do Governo, Lachlan Macquarie sorriu, e pensou consigo mesmo: “Aquela raposa esper­ta... Qual será seu jogo, desta vez?”.

Alan Kerr ouviu Pat Ramsey comentando com o jovem cabo Osborne sobre a última investida de Tom Dilhorne, entre garga­lhadas, e levou a boa-nova para casa. Quando contou a Sarah, ela o beijou.

_ Eu disse a você que confiasse em Tom _ murmurou ele.

 

                                           CAPÍTULO IX

Fazia uma quinzena que Tom e Hester eram ma­rido e mulher de verdade e ainda desfrutavam das delicias da lua-de-mel, quando receberam um convite de Lach­lan Macquarie para um baile.

Um baile! Hester nunca fora a um baile. Havia lido a respeito, porém nunca esperara poder fazer parte da seleta lista de convidados do Palácio do Governo. Por outro lado, nem poderia jamais imaginar o que aconteceria a ela, desde que se casara com Tom Dilhorne.

Cada dia lhe trazia urna nova experiência, ou quem sabe fosse melhor dizer duas, pois eram as noites que mais a enchiam de prazer. Devia estar agradando a Tom, também, pois, ao contar a ela sobre o baile, ele dissera:

_ Por ser uma esposa tão maravilhosa na cama, sra. Dilhorne, você vai ganhar um vestido novo para o baile, e será a dama mais elegante da festa.

Tom, como sempre, era fiel a sua palavra e voltara para casa com um esplêndido traje de noite da mais fina seda cor de ametista. Também lhe dera um colar e um anel de ametista.

Naquela noite, ele a fez usar todas aquelas preciosidades, como se fosse para o baile, ajudou-a a prender o cabelo no alto da cabeça e pediu que calçasse delicadas sapatilhas. Então, muito devagar, desnudou-a com um carinho demorado, que a fez gemer de frus­tração. Tirou tudo, porém o colar de ametista ficou em seu pescoço durante a longa noite de amor que se seguiu.

Hester ainda não havia adquirido a aparência que Tom tinha certeza de que ela haveria de apresentar quando seu desabrochar fosse completo, mas era agora bem mais bonita do que a moça com quem ele tinha se casado.

Sentia-se orgulhoso de levá-la pelo braço, senhor e ara. Dilhorne de direito e de fato, para atormentar Sidnei com seu sucesso e a emergente beleza da esposa, assim como para desafiar os fofoqueiros que vinham devorando os boatos sobre seu casamento como abutres.

Antes de sairem, Hester perguntou, envergonhada:

_ Estou bem, Tom?

Ele fitou-a, correu a mão delicadamente por seu pescoço, e mur­murou a seu ouvido:

_ Muito bem, Hester, embora eu a prefira usando apenas as ametistas, mas isso não seria próprio para o baile... para mais tarde, quem sabe.

Ruborizada e sorrindo, pois Tom passara todo o trajeto provo­cando-a com as delícias que os esperavam, quando voltassem para casa, Hester chegou ao Palácio do Governo segura de si mesma como jamais se sentira. O que veio apenas mostrar, ela concluiu mais tarde, que pobre profetiza era ela.

Estava feliz! Só o fato de estar presente a um acontecimento tão importante a enchia de alegria. Lachlan Macquarie tratou-a com gentileza, quando chegou. Porém, depois de algum tempo, Hester percebeu que ela e Tom eram objeto de mais do que um simples interesse, e que, pela expressão, era algo de desagradável.

Tom notou também, e seu rosto se endureceu. Nada disse, po­rém, a Hester. Deu de ombros, afastando o desconforto e concen­trou-se em tentar assegurar que ela se divertisse. Hester procurou ignorar os sussurros, os cochichos, os olhares. Viver com Tom criara nela uma armadura.

Depois de desfrutarem de uma leve refeição servida em tira bufê em uma das pontas do enorme salão, ela manifestou o desejo de sentar-se longe do calor. Tom imediatamente levou-a a um canto da sala, próximo ao jardim de inverno recém-construído, onde era agradavelmente fresco, e não havia outros convidados.

Sentaram-se por algum tempo, observando a movimentação, até que Tom sugeriu a Hester que tomasse algo refrescante. Diante da concordância dela, ele levantou-se para buscar o drinque, dei­xando-a sozinha, a ouvir a banda e admirando os dançarmos. Tom raramente dançava.

_ Não faz parte de minha educação _ havia explicado.

Hester por diversas vezes se perguntara em que consistira essa educação e como tivera acesso a ela. Ele, porém, nunca falava de sua vida passada.

Dois oficiais, um deles Jack Cameron, pela voz, e o outro a quem ela não conhecia, entraram no jardim de inverno, para fumar, longe do salão onde isso era visto com desagrado. Pararam diante da porta aberta e pareciam despercebidos da presença de Hester, ali perto. Ela podia ouvi-los, rindo e conversando.

A conversa e a fumaça a perturbavam. Estava a ponto de afas­tar-se e tentar encontrar Tom quando ouviu seu nome e o dele, repetidos.

_ Então ele levou aquela coisa feia para a cama, afinal _ disse o oficial desconhecido, em um tom de caçoada. _ Ouvi dizer que foi há uma quinzena e parecem estar se divertindo à beça: dois dias trancados no quarto, é o comentário. Todas as apostas precisam ser pagas, Jack. Quando posso pegar meu dinheiro?

_ Não sei, velho amigo. Ele a levou para a cama, é verdade, mas irá mantê-la lá? Tom Dilhorne sabe como manipular as coisas, porém quem poderá ter certeza de que ela deseja continuar a ter relações com um bruto como aquele? Não, vamos esperar para ver o que acontece, antes de eu pagar a ele, ou a qualquer outro.

_ Você é tão ardiloso como um demônio, tanto quanto ele, Cameron _ reclamou o outro oficial. _ Eu gostaria de ver a cor de meu dinheiro.

_ Bem, levou dois meses para que ele conseguisse dobrá-la, pode não levar tanto tempo para cair do cavalo. Ninguém pode ganhar todas as vezes, nem mesmo Dilhorne.

_ Você a viu hoje, Cameron?

_ Não posso dizer que tive o prazer _ caçoou Jack. _ Se alguém pode chamar isso de prazer!

_ Bem, devo admitir que não está tão feia quanto era. E aquele maldito Dilhorne colocou sua marca registrada nela. Ela está com uma fortuna em ametistas em tomo daquele pescoço esquelético.

_ Pensei que Dilhorne era apaixonado por Sarah Kerr. Aquela Waring é um pouco mais que um bagulho, ouso dizer. Porém, se ele quer enrolá-la em ametistas, é culpa de seu mau gosto. Acho que ele investe seus lucros em pedras preciosas e quer exibi-las.

Afastaram-se, e Hester não ouviu mais nada. Estava como que paralisada, incapaz de se mover, enquanto a verdade tenebrosa se apresentava diante dela. Tom havia quebrado o acordo, não porque a amava, mas para ganhar uma aposta. E o casamento, será que não passara de uma brincadeira planejada por um homem que amava outra mulher? Mulher que era Sarah Kerr?

Jack Cameron apagou o cigarro descuidadamente em um dos vasos de Elizabeth Macquarie, antes de se afastar. Havia chegado tarde ao baile e vira Tom deixar Hester sozinha. Manobrara a situação para conduzir Menzies a um ponto do salão onde tinha certeza de que Hester poderia ouvir cada uma de suas palavras cruéis e pérfidas.

Se ela deduzisse que o marido a fizera objeto de apostas vulgares e piadas ainda mais vulgares, não era culpa de Jack Cameron. E se essa insinuação não empanasse o brilho do casamento do mestre Tom, então nada poderia fazer com que isso acontecesse.

Melhor ainda, se houvesse assegurado que o casamento des­moronasse, ele poderia salvar-se da ruína financeira que o esprei­tava. E também ensinaria Dilhorne a não humilhar um oficial e cavalheiro, na casa de Madame Phoebe.

Hester estava rígida. O colar de ametistas parecia queimar-lhe o pescoço. Então, afinal, o acordo com Tom não era secreto, como Tom havia dito. Pior, ele apostara que a levaria para a cama. Todos sabiam de tudo, a julgar pelos olhares e ares de caçoada pelo salão. De que outra forma Jack Cameron saberia o que ela e Tom haviam feito, se o próprio Tom não houvesse contado? Aquelas palavras não podiam ter outro significado. Arrepios a percorreram, frio e calor se alter­nando. O brilho, em seu rosto, desapareceu.

O que mais ele contara? Por que havia confiado nele? Seu pai e sua mãe tinham razão a respeito daquele homem. Ele havia se vingado de seu pai, tornando-a sua esposa e, então, humilhando-a pu­blicamente. Pensou nas noites de amor e na alegria que haviam trazido a ela, e sentiu que fosse desmaiar. Aquele bruto, aquele bruto odioso! Ele a trata como uma vagabunda, e ela ainda o consideram tão gentil, tão atencioso... A sala girou diante de seus olhos.

Tom voltou com os drinques e percebeu, imediatamente, que algo havia acontecido. O semblante de Hester havia se transfor­mado e estava pálido como cera. Estava mais parecido com o as­pecto macilento de antes; mesmo seus olhos haviam se encovado, e sua aparência era de um fantasma.

_ Hester! O que houve? _ ele indagou, pondo as taças em unia mesa, ao lado da cadeira. Fez menção de tomar-lhe a mão, mas uma expressão de horror perpassou pelo rosto dela.

_ Não me toque, proibo que me toque. Leve-me para casa. _ Ela fez um gesto, procurando afastá-lo, mas sua voz falhou ao dizer a palavra casa. Não tinha casa...

Tom endireitou-se, o semblante consternado.

_ Por quê, Hester, por quê?

_ Eu ouvi _ ela murmurou. _ Eu os ouvi falando. Estavam rindo da coisa feia que Tom Dilhorne levou para cama, para ganhar uma aposta.

Ele ficou imóvel, o rosto impassível.

_ Hester, você não pode acreditar em uma coisa dessas.

_ Oh, mas eu acredito, acredito mesmo. Eles sabiam de tudo. Sabiam exatamente quando aconteceu. Que ficamos dois dias juntos na cama. Como nos divertimos... _ Sua voz fraquejou. _ Pensei que era um segredo nosso, e é a piada que corre por toda a Sídnei.

_ Levantou-se e pôs as mãos trêmulas no pescoço, soltou o colar de ametistas e entregou-o a Tom. _ Não vou usar sua marca registrada, Tom Dilhorne. Foi isso que disseram que era. Sua marca registrada. Agora, leve-me para... casa... _ Começou a tremer.

Tom levou a mão para tomar-lhe o braço, mas ela o rejeitou.

_ Está proibido de me tocar.

_ Hester, por favor. _ O rosto de Tom estava sombrio. Era a primeira vez que ele implorava algo a ela, ou a qualquer um, homem ou mulher. Olhou para o colar, em sua mão. _ Por favor, ponha o colar de novo. Se já não souberem que você está me rejeitando, irão saber quando virem que você não o está usando. E acredite-me, Hester, eu a amo. Pelo meu bem, ponha de volta. Por Tom, Hester, por Tom.

Ali, finalmente, ele dissera o que nunca havia dito a ela, dire­tamente, enquanto faziam amor. Aquilo que nunca pensara que haveria de dizer a alguém: eu a amo.

_ Pelo seu bem? Por que eu deveria? Eles parecem saber tudo sobre nós, então quero que saibam que eu o rejeitei, assim você perderá sua maldita aposta, e Jack Cameron pode ficar com os lucros.

_ Jack Cameron? Foi Jack Cameron a quem você escutou? Como pode acreditar em um crápula como aquele e não acreditar em mim?

_ Porque você é um crápula ainda pior que ele, e toda a Sídnei sabe disso. Sim, foi ele. Os dois sabiam. A propósito, acho que todas essas pessoas que estavam me olhando sabiam. _ Sua voz tremeu, em um soluço. _ Sabiam o que havíamos feito ,e que você apostara que iria me possuir. Você contou a eles no dia se­guinte? Oh, por favor, leve-me para casa. Não agüento mais ser olhada dessa forma.

Tom, pela primeira vez, sentiu-se derrotado. Hester começou a afastar-se, cabeça erguida, e ele caminhou atrás dela, sem a tocar. Cruzaram o salão de baile, sem olhar para nada e para ninguém, o rosto dela tão impassível como o dele: a sra. Dilhorne tinha sido bem treinada pelo ar. Dilhorne.

Mais de uma pessoa notou que ela não usava mais o colar de ametista, entre elas um sorridente Jack Cameron.

Era, porém, o rosto de Tom que prendia a maioria dos olhares. Estava tão sério e pesaroso como se estivesse se encaminhando para o cadafalso.

 

Durante todo o caminho para casa, Hester manteve-se afastada de Tom. Ele dirigiu com um cuidado incomum e, quando chegaram à villa e estavam finalmente lá dentro, ela o deixou sem uma palavra, subindo a escada para o quarto.

A porta, ela se voltou, os lábios tremendo.

_ Você pode recolher suas coisas e ir para seus antigos apo­sentos, Tom Dilhorne! O acordo original entre nós continua em pé, isso é tudo!

Ele ignorou-lhe as palavras e caminhou em sua direção.

_ Hester, você precisa me ouvir.

_ Por que eu deveria? Você me enganou desde o princípio. Posso ver isso agora. Tudo não passou de uma grande piada para você, casar-se com uma dama, e ainda levar uma boa governanta na barganha.

_ Eu poderia ter contratado uma governante _ ele retrucou _ sem precisar me casar com ela. A própria sra. Hackett serviria, e nem posso pensar em mim, casando-me com ela.

_ Por que será meu comigo? Por que quer uma dama como esposa? Disseram que você amava Sarah Kerr. E que eu era um bagulho.

Ele fechou os olhos. As batalhas verbais que enfrentara com Hester desde o dia da entrevista não cabiam ali. Na verdade, ela estava certa. Ele começara a persegui-la de uma maneira cínica e friamente premeditada. Manipulara a situação para que se ca­sasse com ele, e também usara de ardis para levá-la para cama. Mesmo que Hester o quisesse tanto quanto ele mesmo a queria, no final, ainda assim tudo não passara de manipulação.

Seu casamento havia começado, em princípio, como um dos jogos que ele jogava com a vida, uma de suas piadas sarcásticas. Se fosse honesto, podia dizer que tinha sido um jeito canhestro de se vingar daquele porco desagradável, o pai dela, levar a filha dele para a cama e fazer dessa filha sua parceira.

Mas, em determinado ponto, o jogo havia mudado, e tudo o mais então. Conforme a conhecia, começara a gostar dela. A mu­dança havia sido lenta, e era difícil saber quando aquilo que era uma diversão inconseqüente havia se transformado em amor. Im­possível precisar o momento em que seu frio coração começara a se derreter. Se ele a transformara, de uma criatura frígida em uma mulher cheia de paixão e fogo, ela o transformara também, irrevogavelmente, e ele não conseguia nem sequer lembrar quando essa constatação o atingira.

Certa manhã, contra o costume, Hester saira da cama antes dele, totalmente nua, pois não tinha falsos pudores, embora con­tinuasse modesta e envergonhada em público, e começara a se pentear diante do espelho.

Deitado, apoiado em um dos braços, observando-a, ele vira, não pela primeira vez, que embora franzino, o corpo dela era bonito, perfeitamente proporcionado e de belos contornos, agora que a boa alimentação e a felicidade o faziam desabrochar. Quando ela erguera os braços e se voltara, as linhas adoráveis haviam se revelado em toda a sua beleza.

A promessa que vira nela, quando a observara, distraída, na sala de aula, havia se concretizado: tinha uma mulher graciosa diante dos olhos, e ainda não era, certamente, tudo que ainda seria. As duas Hesters, aquela no espelho e aquela real, haviam se movido, e o reflexo o fitara nos olhos. Ela sorrira, a boca er­guendo-se no canto, de um jeito encantador.

Um sentimento estranho, que Tom Dilhorne jamais havia ex­perimentado, inundou-o. Soube, pela primeira vez, que o que sentia por Hester não era simplesmente orgulho de sua propriedade ou desejo pelas delícias de seu corpo, mas era amor, amor por ela, por algo além de si mesmo, amor pela essência de Hester. Ela não era apenas querida por que era dele, uma extensão de suas coisas, mas porque era ela mesma, era Hester.

Jack Cameron havia esmagado o amor e a confiança que haviam começado a crescer entre os dois com musa poucas e pérfidas palavras. Tinha certeza de que haviam sido ditas deliberadamente, e Cameron, ele jurou a si mesmo, iria pagar por isso. Dolorosamente.

Julgava que sabia quem poderia ter espalhado a fofoca por toda a Sidnei, fofoca que permitira a Cameron destilar seu veneno.

Alguma coisa precisava ser feita a respeito, também. Culpou a si mesmo por ter ignorado os fatos, por achar que ninguém ousaria desafiar Tom Dilhorne ou sua esposa, por temor do que ele poderia fazer. Não havia pensado que aquela fofoca odiosa fosse destruir o casamento que Hester e ele estavam construindo, baseado na confiança e na alegria.

Precisava, a todo custo, trazer Hester de volta. Não podia per­dê-la, agora que a encontrara, e encontrara a si mesmo, através dela. Os últimos meses haviam lhe mostrado como era o verdadeiro amor, e o sofrimento que começara a sentir era imenso. O Tom Dilhorne que Mary Mahoney havia conhecido desaparecera de den­tro dele sem deixar rastros. Hester Waring, a filha feiosa do velho bêbado Fred, o havia destruído.

Ele reconhecia que Hester era ainda insegura, ainda emocio­nalmente vulnerável em virtude dos anos de sofrimento e negli­gência, mas ela não deveria cair vítima tão facilmente das mentiras de Jack Cameron.

Ela continuava de costas para ele, negando-se a encará-lo. Tom fez um último apelo.

_ Hester, por favor, acredite, Jack Cameron estava mentindo com a intenção de magoá-la e para fazê-la voltar-se contra mim. Eu nunca contei a ninguém o que estávamos compartilhando, nem mesmo fiz alguma aposta desgraçada, envolvendo nós dois. Jamais apostei algo em uma mulher em toda minha vida. Isso não é comportamento dos que se dizem cavalheiros. Não tenho dúvidas de que, de alguma forma, nossa vida em comum se tornou do conhecimento público, eu próprio ouvi comentários, e que Cameron apostou no fracasso do nosso relacionamento. Mas, não fui eu que espalhei essa fofoca.

Hester ainda se recusava a encará-lo. Ele podia ver-lhe o corpo tremendo e balançando, mas, quando ela falou, sua voz era firme e cheia de desdém. Oh, ele a transformara, sem duvida, e agora ela era forte o bastante para encará-lo, em pé de igualdade. Quem tinha sido dobrada por ele, iria, desta vez, dar-lhe o troco.

_ Oh, você precisa ser honesto comigo, Tom Dilhorne. _ Ela cuspiu o nome dele como se fosse algo nojento. _ Sei exatamente o que ouvi, e de quem mais eles teriam sabido, a não ser através de você?

Ela estava coberta de razão. Pior, levaria tempo para mostrar a Hester quem estava por trás da fofoca. Naquele momento, im­plorar não funcionaria. Ela se fortalecera. Até que ponto? Ironi­camente, ele a fizera forte, e, pela primeira vez, ela usava essa força, e contra ele.

Tom sempre apreciara as ironias da vida, mesmo quando se voltavam diretamente contra si. Essa, porém, não podia apreciar. Pela primeira vez, estava disposto a usar toda sua fortaleza moral e intelectual contra ela. Nada menos serviria, pois não era ela, agora, a ara. Dilhorne, sua parceira de direito e de fato?

De rosto conturbado, contra-atacou. Não tinha nada a perder. Seu modo lacônico de falar desapareceu. O jeito clássico e ele­gante que usara no escritório para convencê-la a aceitar a barganha se foi. Pela primeira vez, palavras impensadas sairam de sua boca em enxurrada. Era o maquiavélico Tom Dilhorne que se expres­sava, com o coração partido. O coração que ninguém, incluindo a ele mesmo, acreditava que ele possuía.

_ Honesto! Oh, sejamos honestos, com efeito. E verdade que sempre quis levá-la para minha cama desde que nos casamos. Claro, eu não tinha a intenção de manter nosso acordo. Sempre desejei possui-la, desde que a vi na sala de aula, ou sentada entre os pintinhos com Kate Smith, e mesmo quando a encontrei car­regando aquele abominável vestido. Você me olhou como se pudesse me comer, e nem mesmo sabia que estava agindo assim! Seja honesta também, Hester. Desde o começo, sim, desde o começo, você me quis tanto quanto eu a quis. Eu podia ver a paixão in­candescente que a rodeava, sob a aparência fria e o jeito emproado, tão palpável que eu podia liberá-la, quebrar o gelo.

Hester balançou a cabeça e levou as duas mãos ao rosto ver­melho que, finalmente, voltara para ele.

_ Oh, não negue, sra. Dilhorne _ ele continuou. _ E a verdade, e você sabe disso. Você me desejava tanto quanto eu a desejava, apenas não sabia disso. A pior coisa que Fred Waring fez, e também sua esposa, não foi submetê-la à inanição, negligenciá-la ou es­pancá-la, por horrível que isso fosse, mas transformá-la em uma pessoa assustada, pronta para se esconder cada vez que um homem a fitasse.

Ela o fitou e nada disse.

_ Você se divertiu muito comigo nessas últimas semanas e mostrou um raro talento para o amor, também. Sei que se lhe houvesse proposto um casamento de verdade, no princípio, você iria fugir como uma égua assustada em quem eu quisesse pôr uma sela. _ Ele não parou para respirar, mas continuou falando, estendendo as mãos fortes para agarrar as dela, para segurá-la, mesmo que ela lutasse para se desvencilhar. _ Sim, é verdade que um dia eu pensei que amava Sarah Kerr e teria me casado com ela, se ela me quisesse. Isso, porém, acabou faz tempo. E você que amo agora. Meu Deus, me ajude! E será uma idiota se deixar que essa fofoca se interponha entre nós. Não, eu não contei os segredos de nosso casamento por toda a Sídnei, embora possa adivinhar quem fez isso. Nem apostei que a levaria para a cama, embora haja alguns que julgam que agi assim. Não há segredos nesta cidade; é tudo um mal-entendido.

Ela permanecia distante, indiferente. Teria tampado os ouvidos, recusando-se a ouvir? Não importava. O homem que nunca justi­ficara seus atos antes, não conseguia parar de se explicar.

_ Sim, Hester, é tudo um mal-entendido. O que quer que houvesse de decepcionante em nosso casamento, há muito se desvaneceu. Acima de tudo, eu a amo de verdade, como nunca amei alguém antes, nem nunca pensei que fosse capaz de amar. Não a amo como um troféu, nem simplesmente como alguém para ser a mãe de meus filhos. Eu a amo, somente a você, porque você é Hester. Nunca senti algo assim por alguém, nem mesmo por Sarah Kerr. Não deixe que destruam o que há entre nós, Hester, não deixe.

Aquele amontoado de palavras, saídas do coração, tão incomuns para a maneira sempre cuidadosa com que Tom se expressava e que deveriam mostrar a ela quanto ele estava ferido, o quão pro­fundo eram seus sentimentos para com ela, caíram no vazio. Não tinham efeito sobre Hester. Ela fora desconsiderada por toda sua vida, e o amor de ambos fora curto demais para que pudesse acreditar em si mesma, ou nele, no momento em que o mundo pusera seus dedos sujos em seus assuntos íntimos.

_ Não acredito em você. Meu pai estava certo. Você não presta. Eu nunca deveria ter me casado com você. Não fale em nossas horas de intimidade. Estremeço só em pensar como me comportei, nem um pouco melhor do que as prostitutas de Madame Phoebe.

_ Porém, não tão cheia de criatividade _ ele emendou, brutalmente, já que era evidente que ela não desejava poupá-lo. Sua força estava retrocedendo para voltar a se confrontar com a dela, pois agora eram iguais, e, infelizmente, no desespero também, que nunca havia sido igual antes. _ Não se gabe, ara. Dilhorne, você tem muito a aprender ainda, antes de poder se estabelecer na Rua das Pedras.

_ Oh, você é intratável _ ela gritou, desesperada. _ Cada palavra que diz só confirma a opinião de meu pai sobre você.

Hester pôs-se a torcer as mãos; um gesto antigo que o tocou, apesar da raiva e da dor de se sentir rejeitado.

Culpou-se por tê-la deixado sozinha. Por fim, culpou os homens que ela escutara conversando. Ele tinha ido ao baile tomado de orgulho, levando, finalmente, a esposa de fato pelo braço, prote­gidos pela felicidade mútua.

_ Você precisa me escutar _ gritou, roucamente, percebendo-se em uma situação nunca antes enfrentada. Tom Dilhorne havia jurado, muito tempo atrás, que se bastava a si mesmo, e que ninguém iria penetrar seu coração. Tinha negado, a si e ao mundo, até mesmo que possuía um coração.

Na cama, com Hester, ele se entregara a ela de corpo e alma, e a rejeição que sentia tornava tudo mais amargo.

Hester recusava-se a chorar, não daria a ele esse prazer, mas o choque e a vergonha que ainda a sufocavam fizeram-na desabar na cadeira do quarto, no quarto onde se dera a Tom e onde tinham vivido horas de amor e paixão. Lamentou as lembranças.

Tom lançou-se de joelhos, diante dela.

_ Venha, meu amor, venha para mim. Vamos esquecer tudo isso. Precisamos confiar um no outro. Eu não a magoaria, nem com palavras nem com atos. Você já deveria saber disso.

Hester afastou o braço com que ele tentava enlaçá-la. A ex­pressão alheada de seu rosto, que ele julgara banida para sempre, havia retornado.

_ Não confio em você. Não quero. Eu deveria ter compreendido melhor as coisas. Quem haveria de querer a feiosa Hester Waring, a não ser como um troféu? Alguém para ser exibido entre outras taças de conquistas na mesa de uni bar. Desde que tenha se casado com a filha de um exclusivo, urna dama, não importa que ela seja feia e pobre, ela era tudo que você queria para atingir seus objetivos.

Se a situação não fosse tão séria, Tom teria rido desse retrato de si mesmo. Ele, o mais reservado dos homens, jactando-se de sua vida? Mesmo assim, havia alguma verdade: ele a desposara porque Hester era uma dama.

Levantou-se. Era inútil insistir. Serviria apenas para criar maia antagonismos, e ele era suficientemente perspicaz para saber que somente a paciência teria o condão de remendar as coisas. Preci­sava tentar mostrar a ela que Jack Cameron havia mentido, e que a ara. Hackett, de quem suspeitava, tinha espalhado a fofoca pela cidade. Então, quem sabe, o problema pudesse ser resolvido, se pudesse ser resolvido.

Afinal, pensou carrancudo, que não era totalmente inocente e que ela estava certa quanto a isso. Ele a enganara. Pensou em seu rosto risonho quando ela o provocara, na noite anterior, até que o levara quase à loucura. Depois, rendera-se com um ar de desamparo. E ele havia jurado que sempre iria velar por ela. Por Deus, tudo mudara em menos de vinte e quatro horas.

_ Vou para meu antigo quarto, então _ ele disse, lentamente, alimentando ainda uma pequena esperança de que ela pudesse mudar de idéia e permitir que ele ficasse.

_Você pode ir para o inferno, pelo que me diz respeito, Tom Dilhorne.

Bem, pelo menos ela ainda tinha presença de espírito, pensou ele, frustrado. Era uma ratinha que se transformara, pelas mãos dele, em urna tigresa.

Na porta, voltou-se para dizer boa noite, apenas para ver que ela lhe virava o rosto, escondendo-o nas costas da cadeira, para não vê-lo.

Mas, ao deitar-se em sua cama vazia, ele disse a si mesmo com toda aquela fria ferocidade que o haviam transformado, de um condenado sem vintém, no magnata mais rico da colônia:

_ Sra. Dilhorne, eu a terei em minha casa de novo, e escolha como, se preferir!

 

                                         CAPÍTULO X

Passada a tempestade de raiva e desespero, Hester mergulhou em uni mar de sofrimento.

Sentada do lado oposto a Tom, à mesa do café, na manhã se­guinte, dois desejos contraditórios a sacudiam. O primeiro era nun­ca mais vê-lo ou falar de novo com o homem que a traíra tão vergonhosamente, O segundo tinha a ver com o fato que corpo e mente ansiavam por ele, implorando para que ele a levasse para a cama e a possuísse com toda a paixão que, sabia, ele era capaz. Ou, ainda, que a segurasse, quieta, praticamente imóvel, aninhada em seus braços, como sempre fazia por um longo tempo, depois de saciados. Ela não podia conceber urna vida em que isso nunca mais pudesse acontecer, outra vez.

Tom sentado do lado oposto a ela, observando-lhe o semblante infeliz, o mesmo rosto que Hester Waring tivera um dia, foi avas­salado por um simples desejo. Levá-la para cama e possui-la, para que ela pudesse corresponder com toda a paixão que, sabia, ela era capaz. Ou, ainda, segurá-la, aninhada entre seus braços, o corpo quente contra o dele, dormindo ou acordada, como faziam sempre quando saciados. Ele não podia conceber uma vida em que isso nunca mais pudesse acontecer, outra vez.

 

Tom tinha absoluta certeza de que fora a sra. Hackett que os traira, mas precisava de uma evidência definitiva. Simplesmente confrontá-la sem essa evidência seria inútil. Ela era perfeitamente capaz de negar com toda a veemência. Por alguns instantes, de­dicou-se a estudar o assunto, até chegar a uma possível solução.

Como sempre, a empregada os espionara. Na noite do baile, vira que Tom voltara a seus antigos aposentos com seus pertences e não tivera dúvidas do que havia acontecido. Ardia de vontade de passar adiante o ultimo capítulo do escândalo e mal podia esperar que o meio-dia chegasse. Iria visitar um velho amigo que certamente adoraria escutar o que ela ansiava por contar.

Enquanto Hester, sozinha em casa, pregava um botão solto de uma das camisas de Tom, a sra. Hackett, entre goles de chá, anunciava, com um estranho prazer, a seus camaradas:

_ Madame não o quer mais, e o belo Mestre Tom foi posto para fora de sua cama, de novo!

A fofoca, como um rastilho de pólvora, espalhou-lhe pela cidade. A caminho de casa, a sra. Hackett foi interceptada por Jack Ca­meron, que lhe perguntou se ela conseguira saber alguma novidade sobre os Dilhornes. Se assim fosse, haveria uma recompensa.

Oh, sim, claro que sabia. E contou-lhe a última fofoca. Chegou em casa leve, bem-humorada, e com mais dinheiro no bolso!

Tom descia a rua da Ponte, à tarde, quando viu o cabo Osborne entrando em um bar, freqüentado pelos jovens oficiais.

O instinto o fez seguir o rapaz, que lhe devia um favor. Em um jogo pesado, por falta de juízo, Osborne perdera um bocado de dinheiro, e se. vira sem condições de pagar no ato, assinando uma promissória. O papel fora trocado entre os comerciantes e acabara nas mãos de Dilhorne.

Tom raramente demonstrava simpatia para com os tolos, mas a exploração da ingenuidade de Osborne e o fato de saber que o jovem era de uma família pobre e que a maior parte de seu salário era mandado para casa, para sua mãe, fizeram com que sentisse piedade pelo pobre idiota.

Acertara o débito por menos da metade de seu valor e dissera a Osborne que mantivesse a boca fechada: ele não poderia financiar a guarnição inteira. Também o aconselhara a não jogar cartas novamente com espertalhões como Jack Cameron.

A gratidão de Osborne fora patética, gratidão que poderia bem servir aos interesses de Tom, nesse momento.

Ele entrou no bar, fazendo um ar de surpresa ao ver o oficial.

_ Importa-se se eu me sentar com você, rapaz? Estou sozinho, também.

Osborne, não sem motivos, apreciava Tom e, freqüentemente, defendia-o perante os outros oficiais. Mais que depressa, concordou com a sugestão.

_ Garçom, traga brandi para mim e para meu amigo _ pediu Tom.

Puseram-se a beber, despreocupados, bebida paga, naturalmen­te, por Dilhorne.

_ Digam o que quiserem, Dilhorne _ disse Osborne, depois de alguns tragos _ , mas você é uni bom amigo, mesmo que tenha sido um bandido. Não dê importância ao que Jack e o resto das pessoas pensam.

_ Você não está apostando de novo nas cartas contra Jack, eu espero.

_ De jeito nenhum! Nem coloquei meu nome no livro que ele abriu para você e Hester. _ A bebida fizera com que Osborne se esquecesse da discrição. Ficou vermelho, e emendou: _ Eu não deveria ter dito isso, Dilhorne.

_ Não se preocupe, garoto _ retrucou Tom, alegremente _ , somos todos homens vividos. Indecente, não acha, apostar no ca­samento de um homem?

_ Foi o que disse a ele _ respondeu Osborne, em um tom sombrio. _ Ele riu de mim. Disse que sou tolo, e que criminosos não merecem bons casamentos. Desculpe de novo, Dilhorne. Acho que ele está chateado porque vai perder um monte de dinheiro se você e Hester continuarem juntos. E é coisa séria o que ele anda dizendo de Hester por aí, subornando sua governanta para tagarelar sobre vocês, e rindo de sua esposa por ser feia. Eu disse a ele que não é culpa dela ser feia.

Agora, Osborne estava perdido. Viu que o rosto de Dilhorne se alterava quando falou dos comentários de Jack sobre Hester. Fi­tou-o, encabulado.

_ Ele não presta. Gostaria de lhe dizer isso, mas não sou homem o bastante. Até mesmo Pat Ramaey, que é o melhor homem no regimento com a espada e as pistolas, não quer briga com Jack. Não sou páreo para ele. Uma pena. Ele precisava de uma lição, achar um homem que lhe desse um corretivo. _ Bocejou, engoliu o último gole, e murmurou: _ Coisa estranha. Estou can­sado como o diabo esta tarde, Dilhorne... _ Pousou a cabeça na mesa e começou a ressonar.

_ Desculpe-me por isso, rapaz _ disse Tom, apanhando urna toalha das mãos do garçom e colocando-a sob a cabeça do oficial._ Mas eu tinha que descobrir, e agora tenho a informação que precisava.

Pediu ao garçom que mandasse um de seus ajudantes levar Osborne de volta ao quartel, quando o rapaz se recobrasse.

Foi para casa. Seus pensamentos quanto a Cameron eram permeados de sangue. Saber que o nome de Hester andava na boca daquele homem e de toda a Sidnei era o pior e o mais degradante insulto. A aposta e o suborno já eram suficientemente indecentes, mas o abuso contra Hester era intolerável.

_ Diabos _ disse a si mesmo _ , me dê metade de uma chance de cair sobre você, Jack, meu camarada, e você vai desejar nunca ter nascido.

Agora, ia acertar as contas com a sra. Hackett.

Já em casa, encontrou a empregada na cozinha. Ela o encarou, mal-humorada. Um dia, tivera medo dele, mas a familiaridade havia embotado essa sensação, substituída pelo desprezo. Se fosse homem de verdade insistiria em seus direitos sobre Hester.

Ele foi categórico:

_ Dentro de cinco minutos, apresente-se em meu escritório.

Nunca um “por favor’ ou “muito obrigado”, pensou ela, ressen­tida. Mas, cinco minutos mais tarde, batia na porta.

Tom estava de costas. E assim continuou. Ignorou-a por vários minutos, tempo em que pôde sentir a agitação da mulher crescendo, atrás de si. Subitamente, voltou-se e inspecionou-a, de alto a baixo, os olhos tão duros como pedras.

_ Divertindo-se, não é mesmo? _ perguntou com cinismo.

_ Não sei o que quer dizer, mestre Dilhorne.

_ Senhor, para você, Hackett. Senhor! _ Insistir em ser cha­mado assim era um sinal de sua profunda irritação. Desejava humilhá-la, como ela havia humilhado Hester. _ Pode pensar em uma simples razão para que eu não a expulse daqui, sem paga­mento e sem carta de recomendação, com a certeza absoluta de que ninguém, em Sidnei, jamais a empregará de novo?

A mulher ficou lívida e, em seguida, pavorosamente arroxeada.

_ O senhor.., não faria isso...

A expressão de Tom alterou-se, e ela começou a tremer. O medo, que um dia tivera dele, voltou, em um só ímpeto.

_ Não faria? Tenho em mente fazer isso agora, exatamente agora. Neste minuto! E se eu o fizer, quem irá empregá-la, para espalhar seus boatos por aí? Se me contar tudo o que vem dizendo e fazendo contra mim e minha esposa, eu poderei pensar em man­tê-la aqui. Porém, fique aí e finja que não sabe do que estou falando, e eu a jogarei porta afora, neste exato minuto. Agora, raciocine. Ele não erguera a voz nem por um instante, e isso era pior e mais mortal do que se houvesse gritado com ela.

_ Eu posso ter contado alguma coisa para uns poucos amigos, senhor... _ a mulher começou. Seu medo era tanto que não con­seguia mentir para ele.

_ E dinheiro? _ ele perguntou, observando que a fisionomia dela se transtornava, diante dessas palavras. _ Alguém lhe pagou para dar com a língua nos dentes?

Como ele soubera? Hackett julgava que o assunto era um se­gredo entre ela e Cameron. Gostaria de negar, mas em face da ira reprimida de Dilhorne, não ousou.

_ Aquele oficial _ ela murmurou em desespero. _ Cameron. Logo depois que vocês casaram, ele me parou na rua. Disse que me pagaria por qualquer informação sobre o senhor e a sra. Di­lhorne. Eu nunca peguei dinheiro antes... foi a primeira vez, Deus é minha testemunha. _ De repente, ela se lançou de joelhos, diante dele. _ Oh, por Deus, ar. Dilhorne, por favor, não me expulse. Não tenho para onde ir, se o senhor se voltar contra mim. Ninguém irá me querer, vão ficar com medo de me dar emprego. Vou morrer de fome. _ Ela deixou escapar um soluço e agarrou-se em seus tornozelos.

Tom olhou para baixo, para a mulher amontoada a seus pés, e a raiva esvaiu-se de dentro de seu peito. Era apenas uma pobre velha, afinal, que não tivera bom senso de ver que desfrutava de uma cama macia ali, e que Heater era uma boa patroa. Acima de tudo, ele não podia condená-la ao destino do qual resgatara Hester.

_ Levante-se, levante-se _ disse bruscamente. _ Quanto ele lhe pagou?

_ Ele me deu outro guinéu hoje, quando lhe contei sobre ontem à noite. Juro por Deus que é verdade, senhor, foi tudo.

Tom fechou os olhos. Então os fatos da noite anterior também já eram motivo de comentários pela cidade. Graças aos céus, Hester não ficaria sabendo. Acertaria as contas com a velha megera e resolveria o assunto com Cameron.

_ Dê-me o guinéu, e estamos quites. Primeira condição: há um quarto de despejo sobre as cocheiras, perto de onde vivem os outros empregados. Não é tão grande nem tão bonito como o que você ocupa, mas Miller vai arrumá-lo e, quando estiver em ordem, leve seus pertences para lá. Não quero mais empregados espio­nando-me em minha própria casa.

Empurrou-a, e a mulher começou a soluçar seus agradecimen­tos, remexendo os bolsos à procura do guinéu, que colocou nas mãos que ele estendia.

_ Fique quieta, mulher, está me pondo doente. Agora, a se­gunda condição. Se eu descobrir que está contando coisas de novo, além daquelas que eu queira que você conte, eu a jogarei nas ruas. Preste atenção no que digo, e agradeça por não lhe ter acon­tecido coisa pior. Agora, saia daqui!

O que fazer agora? Contar a Hester? Sobre a sra. Hackett, sim. Sobre Cameron, não. Antes, precisava acertar as contas com o capitão.

Apanhou os papéis da escrivaninha. Madame Phoebe queria falar com ele com urgência sobre um assunto de negócios. Sorriu para si mesmo, com um ar de lobo. Iria vê-la nessa nesta noite, sem falta, na casa de jogos. Os oficiais do 73º regimento deveriam estar lá, Cameron entre eles, e quem sabe então o que Tom Di­lhorne iria resolver fazer?

Apanhou o guinéu do bolso, jogou-o no ar, girando, pegou-o, fé-lo desaparecer, e depois o sacou do centro da flor de um dos vasos que Hester colocara no escritório. Então, tendo aparentemente colocado a moeda no bolso direito da camisa, esticou as mãos para mostrar que nada tinha nelas, e retirou-o do bolso esquerdo.

O bandido Tom Dilhorne não havia perdido suas habilidades, nem o homem de negócios que hoje ele era. Qual dos dois iria dar uma lição em Jack Cameron, ele não sabia.

 

No caminho para a casa de Madame Phoebe, Tom sentia-se estimulado. Contara a Hester, durante o jantar, que a sra. Hackett fora a informante e que havia confessado. Também lhe contara sobre o guinéu que um oficial a subornara. Não dissera o nome de Cameron.

Hester, sentada do Lado oposto, a fisionomia fria e reservada, ouvira-o sem o interromper. Porém, mesmo que não tivesse dito nada, vislumbrara um brilho em seus olhos, que lhe dissera que ela desejava acreditar que não fora ele quem espalhara os detalhes da intimidade de ambos por toda a Sidnei. Hester estava detes­tando aquele rompimento tanto quanto ele.

De súbito, ela perguntara:

_ Mas, e a aposta, ar. Dilhorne? Não me explicou sobre a aposta.

Ótimo! Ela o tratava de sr. Dilhorne, novamente. Antes que ela pudesse impedi-lo, inclinara-se e a beijara, na face.

_ Isso será explicado também _ prometera. _ Agora, tenho negócios a tratar e preciso sair. Não espere que eu volte logo para casa, hoje.

Sua ultima lembrança era a fisionomia de Hester, que traía seu desapontamento porque ele saíra.

Tom entrou na casa de Madame Phoebe com desenvoltura. Ma­dame Phoebe recebeu-o carinhosamente.

_ Pensei que não mais viria aqui, Tom, depois de se casar com a nobreza.

_ Você me conhece, Phoebe. Além do mais, a ara. D. não vai se importar que eu venha aqui, já que é minha sócia nos negócios. A sra. D. é esperta nesses assuntos.

Madame Phoebe sorriu. Tempos atrás, Tom havia emprestado a ela o capital para instalar sua casa, em Sidnei. Nunca quisera nenhuma participação, embora ela sempre o procurasse quando precisava de dinheiro ou conselhos.

A última fofoca da sra. Hackett sobre Tom e Hester já chegara a seus ouvidos, por intermédio de Jack Cameron , ela sabia que Tom havia sido banido da cama da esposa, de novo. Sorridente, ela ofereceu a ele não apenas a costumeira garrafa de vinho para partilhar enquanto conversavam, mas, discretamente, sugeriu que estava disponível.

_ Não é que eu desaprove, porém tenho uma esposa, agora, e um futuro no qual pensar. Porém, sempre estarei disposto a ajudá-la _ ele emendou.

Phoebe era uma mulher sensata e aceitou tudo sem ofensa.

_ Ofereço um serviço necessário _ disse, simplesmente, e ficou a imaginar por quanto tempo Tom ficaria sem satisfazer seus instintos, se a esposa se mostrasse obstinada, e agora que Mary Ma­honey era uma respeitável mulher casada.

A casa estava lotada. Tom, com uma só intenção em mente, abriu caminho até a sala de jogos. Olhou ao redor e encontrou o homem que procurava. Sentado na grande mesa principal, no meio de seus companheiros, lá estava Jack Cameron. Caminhou até ele, com todos os olhares sobre si.

Acima do ruído reinante, ouviu o próprio nome, e, então, o de Hester, seguidos por uma gargalhada estrepitosa. Logo a seguir, a voz do capitão Parker

_ Vá com calma, Jack, a dama é minha amiga.

Tom estacou. O grupo de oficiais fez silêncio, ao vê-lo. Delibe­radamente, não se barbeara e ainda usava as roupas de trabalho: havia visitado as olarias, naquela tarde.

Jack não estava nem um pouco abalado com a chegada de Dilhorne. Levantou o copo e provocou:

_ Ao nosso homem, em carne e osso. _ Fez um cínico brinde a Tom. Parker, em pé ao lado dele, segurou-o pelo braço. Jack desvencilhou-se.

Tom ignorou a caçoada e o brinde.

_ Capitão Jack Cameron, eu creio.

_ Como você sabe muito bem, Dilhorne. Ora, o que posso fazer por você?

_ Pode me contar o que anda dizendo sobre minha esposa, Jack.

_ Capitão Cameron, senhor, para os bandidos como você, Di­lhorne, e o que digo sobre sua esposa é assunto meu, não seu.

Esvaziou o copo, e serviu-se de outra dose de bebida. Parker, novamente, segurou-o pelo braço. E, de novo, Jack o repeliu.

Seguiu-se um silêncio impressionante. Então, Tom exclamou:

_ Oh, mas é assunto meu, Jack. Vou perguntar de novo: o que anda dizendo sobre minha esposa?

_ Ignore-o, Dilhorne, ele está bêbado _ pediu Parker, o sem­blante preocupado.

Tom não lhe deu ouvidos. A atenção da sala inteira estava agora centrada em Jack e nele mesmo, como se fossem um par de gladiadores prestes a se matarem.

Em um bordel, os problemas resolviam-se por regras peculiares. Muitos dos presentes achavam que, desde que Dilhorne era um ex-condenado e não um cavalheiro, Jack poderia dizer qualquer coisa que quisesse a Tom, fosse sobre ele ou sobre a esposa, afinal, esta ultrapassara os limites, casando-se com uni bandido.

Sabendo disso, Tom colocou a mão no bolso, puxou o guinéu da ara. Hackett e jogou-o sobre a mesa, ela frente a Cameron.

_ Se eu lhe der o dinheiro de volta, Jade, vai me contar, ou devo arrancar isso de você?

A resposta de Cameron foi uma gargalhada. Seu rosto tornou-se rubro. Ignorou a moeda.

_ Por Deus, Dilhorne, vai ter o que quer. Eu estava dizendo que sujeito especial é você. Tão especial que até mesmo aquela coisa feia de sua esposa, e, diabos, não existe coisa mais feia, que devia estar desesperada para trepar, não quer deixar um ex-condenado como você deitar em sua cama, de novo. O que me diz disso, Dilhorne?

Sua risada de bêbado ressoou no silêncio opressivo.

Tom havia conseguido o que queria. Provocara Jack e o fizera dizer algo que mesmo os oficiais mais ciosos de sua classe achariam difícil de engolir. E, ao fazê-lo, destruíra seu próprio círculo de proteção.

Dilhorne era indiferente aos insultos dirigidos contra sua pes­soa. Sabia que tinha sido um ladrão e um renegado: era um fato, não uma ofensa. O que não suportava era que Hester fosse mal-falada. Ouvi-la ser escarnecida por uni bêbado em um bordel, dian­te da metade dos oficiais da guarnição de Sidnei, era demais.

_ Isto! _ ele respondeu, e se lançou por cima da mesa, sobre Jack.

Copos, garrafas, vinho, fichas de jogo, promissórias, cartas de baralho, voaram em todas as direções. Antes que alguém pudesse impedi-lo, Dilhorne agarrou Jack pelas orelhas e, com uma força espantosa, esmagou-lhe o rosto contra a madeira dura da mesa.

Ergueu a cabeça de Cameron, agora ensangüentada, para re­petir a ação, mas os homens ao redor, a princípio estatelados pela rapidez e ferocidade do ataque, agarraram-no, obrigando-o a soltar a vitima. Cameron caiu, semi-inconsciente, o sangue jorrando da face destroçada, misturando-se ao vinho esparramado.

O silêncio mortal foi seguido por um tumulto. Um grupo se amontoou em torno de Jack e outro empurrou Tom duramente contra a parede. Ele não fez menção de resistir.

_ Por Deus _ gritou o oficial cujo braço prendia o peito de Tom, para impedi-lo de atacar Jack novamente _ , você não é mesmo um cavalheiro, Dilhorne.

_ E você chama aquilo de cavalheiro? _ foi a resposta incisiva de Tom. _ Solte-me, e ele nunca mais vai insultar uma dama outra vez. Meu trabalho está apenas pela metade.

Sua voz era o que mais impressionava a todos, tal sua frieza e indiferença.

_ Quando se recobrar, Jack vai querer satisfações _ disse o jovem oficial que segurava Tom pelo ombro direito.

Tom o fitou friamente.

_ Então, ele vai querer me espetar com sua espada, eu suponho. Conheço um truque que vale dois desses. Ele não vai insultar ou dizer mentiras sobre minha esposa de novo, se eu lhe cortar a língua e silenciá-lo para sempre.

O jovem oficial se encolheu apavorado.

O grupo, em torno de Jack, afastou-se, subitamente ofendido. Parker, com o semblante fechado, caminhou para perto de Tom, e disse:

_ Ele não devia ter dito o que disse a respeito de Hester, Dilhorne, garanto, porém você o marcou para o resto da vida. O nariz dele está quebrado, e os dentes, perdidos.

_ Será que estão por aqui? _ caçoou Tom, ainda mais provo­cativo. _ Acha que isso irá ensiná-lo a tomar cuidado com o que diz sobre minha esposa, no futuro?

_ Bem, ele estava bêbado... _ disse Parker, em dúvida. _ Você deveria ter esperado para resolver isso quando ele estivesse em seu estado normal, e não lhe cair em cima, sem aviso. Do jeito que aconteceu, ele tem direito a satisfações quando se recobrar.

_ E o que está acontecendo? Ele quer satisfações de mim? Eu diria que ele já conseguiu. Não vou entrar nesse jogo idiota, Parker.

_ Se ele não der satisfações a Jack _ disse o oficial que con­tinuava prendendo Tom pelo ombro _ , eu proponho que nós o levemos à justiça para ser indiciado por assalto.

Antes que Parker pudesse responder, Pat Ramsey decidiu intervir. Até então, permanecera encostado contra a parede, observando o tumulto com o divertido cinismo de um homem que não tomara par­tido a favor de nenhuma das partes. Dirigiu-se ao oficial:

_ Seu tolo, idiota, o que isso iria trazer de bom? Quer que esse problema se tome mais público do que certamente se tomará? Uma briga em um bordel? A sala inteira ouviu Jack insultar Dilhorne e, o que é pior, a esposa de Dilhorne. Hester Dilhorne é urna dama. Por ter defendido a esposa de um insulto tão grosseiro como o que Jack lhe dirigiu, o tribunal absolveria Dilhorne. Você quer desgraçar o Regimento? O que Cameron disse e fez já não foi o bastante?

Essas verdades evidentes silenciaram o tumulto dos que que­riam o sangue de Dilhorne. Estavam em um beco-sem-saída. Ram­sey baixou o tom autoritário que vinha usando e, apanhando o guinéu da mesa onde ainda permanecia, surpreendentemente in­cólume ao caos que Tom havia provocado, perguntou:

_ Ora, tudo isso por causa de um guinéu? _ Olhou para Jack, que estava sendo carregado da sala. A bebida e a pancada final­mente haviam feito com que perdesse os sentidos. _ Acha que Jack poderia nos contar? Isto é, se pudesse falar?

Osborne, sentado a um canto, curtindo a cabeça pesada e ob­servando a confusão, de repente resolveu dar uni aparte:

_ Era tempo de Jack Guinéu levar a sua, você sabe, e Dilhorne foi homem para isso. Ele não deveria ter falado aquilo da pobre Hester.

A vingança de Tom estava completa. Jack Guinéu era, de agora em diante, o apelido depreciativo de Cameron.

Os homens ainda estavam relutantes em soltar Dilhorne. Quem poderia saber se ele não iria seguir Jack e terminar o que havia começado, como prometera?

A chegada de Madame Phoebe, a quem o tumulto fizera descer a escada e que observara tudo, em silêncio, desde o princípio, resolveu o impasse.

Ela havia esperado pelo momento adequado para intervir, e percebendo que o pior havia passado, impôs sua autoridade.

_ Que diabos vocês pensam que estão fazendo? Soltem Tom, imediatamente! E assim que oficiais e cavalheiros se comportam quando tomam uma garrafa de vinho? Digam ao capitão Cameron que ele não é mais bem-vindo aqui, por mencionar o nome de uma mulher decente em uma casa de prostituição. Vá para casa, Tom Dilhorne, deixá-lo solto entre cavalheiros é como colocar um tigre entre gatinhos.

Tom riu das expressões ofendidas dos militares e se dirigiu à mesa destroçada.

_ Por Deus, Tom Dilhorne, não pode resolver seus assuntos particulares sem arruinar os negócios de uma pobre mulher? Vou querer ressarcimento disso tudo, lembre-se.

Tom, subitamente, sentiu-se infinitamente feliz. A lembrança do rosto mutilado de Jack Cameron encheu-o de um selvagem prazer. E a sutileza de Madame Phoebe ao embaraçar os cava­lheiros ali reunidos vinha somar-se a isso.

_ Minha querida, você será ressarcida. _ Apanhou do chão o quepe de Cameron e jogou-o para Parker. _ Passe o chapéu como um bom camarada, capitão Parker, e pague a Madame Phoebe pela diversão.

 

Toda a Sidnei fervilhava de comentários. Como em toda sociedade fronteiriça, todos sabiam de tudo acerca dos assuntos alheios. E a estaria era boa demais para não ser contada. Que excitante, o elegante Tom Dilhorne havia voltado a suas origens primitivas e destruído, não apenas o rosto de Jack Cameron, mas o inferno de jogatina de Madame Phoebe. Quem conta um conto aumenta um ponto.

O mais surpreendente era que, no final, Dilhorne havia feito, de alguma forma, com que os oficiais do 73º Regimento pagassem pelos danos. Quando o chapéu chegara até ele, dissera que, con­siderando que fora quem proporcionara a diversão, não via porque haveria de pagar por isso, também!

A única pessoa, em Sidnei, que nada sabia, era Hester. Ela havia ouvido Tom chegar em casa de madrugada, subir a escada correndo, e, mais tarde, escutara-o assobiando enquanto se pre­parava para dormir. O que o tinha tomado assim tão feliz? Na manhã seguinte, no café, ele se sentara, sorrindo com uma ex­pressão que, fosse em outro homem, ela chamaria de estúpida.

Tom decidira provocá-la um pouco. A deduzir de seu compor­tamento, Hester parecia disposta a esquecer tudo, sem explicações. Rira sozinho diante da curiosidade que queimava a esposa e de sua determinação em não se deixar trair. “Oh, iremos celebrar esta noite, sra. Dilhorne, pensou, ora, se não vamos!”

Quando a deixara para ir a Sídnei, ele a beijara no topo da cabeça, murmurando: “Eu lhe contarei tudo esta tarde, ara. Di­lhorne”, o que a provocara mais ainda. Não obstante, enquanto o observava afastar-se, seu rosto já se suavizara, e a infeliz e mal­tratada Hester Waring havia desaparecido em um limbo do qual jamais haveria de retornar.

Hester decidiu ir até a cidade para fazer algumas compras. Imediatamente percebeu que algo estranho havia ocorrido. Algo envolvendo Tom e ela mesma, pensou, ao se dar conta da reação das pessoas, seus olhares e seus sorrisos.

Entrou no Emporium. Todas as cabeças voltaram-se em sua direção. As conversas pararam, para logo recomeçar. Ela podia ouvir seu nome e o dele sendo sussurrado, o que não era no­vidade, exceto que, desta vez, sua presença provocava ainda mais excitação.

Quando voltou para casa, o cocheiro que a levara à cidade, em um súbito atrevimento, pensando que ela sabia dos fatos, insinuou que o patrão fizera bem em defender-lhe o bom nome diante da guarnição. Isso a fez perceber que, de alguma forma, Tom, os militares e ela estavam envolvidos em algum incidente de conhe­cimento público. Bem, se os militares estavam no meio daquela estória, então, iria procurar Lucy Wright.

Colocou um vestido novo, que Tom havia escolhido para ela em sua loja, e pôs na cabeça um novo chapéu. Escolheu uma bela sombrinha e resolveu usar o colar e o anel de granadas que ele lhe dera. Então, pronta para a guerra, ordenou que o cocheiro a levasse até a casa de Lucy.

A amiga ficou encantada de vê-la de novo, depois de uma longa ausência.

_ Oh, Hester, você está esplêndida! Foi Tom que escolheu tudo isso para você? Para um homem, ele tem um gosto notável no que se refere a roupas femininas. Pena que não atende mais na loja.

_ Sim _ retrucou Hester, secamente. Não tinha vindo falar de Tom. Precisava descobrir qual era a fofoca que corria de boca em boca. Havia aprendido a ser paciente na dura escola da vida, e somente depois de mostrar sua admiração pelo bebê, tomar chá e apreciar o novo trabalho de agulha que Lucy estava fazendo, é que tocou no assunto que causara sua visita.

Olhou, um tanto encabulada para a amiga e perguntou:

_ Frank disse alguma coisa a você sobre algum problema en­volvendo Tom e os militares?

Lucy colocou de lado o bordado, com um suspiro.

_ Oh, Hester, você não sabe o que aconteceu? Tom não lhe disse nada?

_ Você o conhece.

_ Claro... Bem, talvez seja melhor que você saiba. Não posso lhe contar em todos os detalhes, porque Frank julgou que não eram dignos de meus ouvidos. Devo, como uma mulher virtuosa, ignorar que o bordel de Madame Phoebe existe. Pergunto a você, como eu poderia desconhecer uma tal coisa? Porém, ele me contou o bastante. Seu marido foi, ontem à noite, àquele lugar, quando todos os oficiais da guarnição estavam lá, e teve alguma espécie de desentendimento com Jack Cameron. E Jack levou a pior, Frank viu tudo. Aparentemente, Tom destruiu o lugar, também. E a maior piada é que, segundo Frank, Tom fez os oficiais pagarem pelos prejuízos, e foi embora sem arcar com nada. Típico de Tom, não é? _ Riu, e não entrou em detalhes sobre os motivos do desentendimento.

Hester queria saber mais e insistiu:

_ Sobre o quê foi a discussão, Lucy?

Lucy hesitou e, então, decidiu contar a Hester o que sabia, embora fosse pouco.

_ Tem alguma coisa a ver com você e Tom. O capitão Canieron estava bêbado e dirigiu-lhe palavras insultuosas. Frank acha que ele tem espalhado mentiras sobre você e seu marido.

_Você quer dizer que Tom o atacou por minha causa?

_Sim. Frank diz que ele fez um estrago no rosto de Jack. Não quis me contar como. Se Frank fosse tão corajoso como Tom, eu ficaria feliz, caso fosse eu a insultada em um inferninho de jogatina ou em qualquer outro lugar.

_E por que Tom haveria de destruir tudo?

_Bem, não foi bem assim. Só a mesa de jogo e o que estava sobre a mesma, quando ele caiu sobre Jack.

Ambas tentaram visualizar a cena descrita por Lucy. Sabiam tão pouco dos lugares que os homens e “aquelas mulheres» fre­qüentavam, que era difícil imaginar exatamente como tudo havia se passado.

Hester apenas compreendia que Tom, sem dúvida, havia punido Jack por aquilo que o oficial dissera no baile, por subornar a sra. Hackett, e por outro qualquer insulto dito na casa de Madame Phoebe.

_Frank diz que Jack quer satisfação de Tom, quer desafiá-lo para um duelo, mas há um problema quanto a isso. Frank acha que ninguém pode decidir quem é a parte desafiante, Tom ou Jack. O caso foge a todas as regras normais entre cavalheiros.

_Mas, o que importa quem desafia quem? _ perguntou Hester, confusa com as tolices que regiam o código de honra.

_Oh, importa sim _ retrucou Lucy vivamente. _ Veja você, o homem desafiado tem o direito de decidir quais as armas a usar, e ninguém sabe quem desafiou quem. Foi Tom que atacou Jack? Ou foi Jack que desafiou Tom? _ De repente, ela caiu na risada.

_Parece uma estupidez, não acha?

_Tom diria que sim _ concordou Hester.

De súbito, ela se sentiu lisonjeada. Tom havia atacado Cameron por causa dela. De repente, entendeu tudo. Percebeu quem havia contado estarias a Jack Cameron e que a tal aposta envolvendo Tom nunca havia existido.

Com o pensamento, veio a lembrança do rosto de Tom, quando ele implorara que o escutasse na noite do baile. Ela se voltou e começou a recolher suas coisas. O marido não merecia sua raiva estúpida, não merecia.

_Você precisa ir embora logo? _ perguntou Lucy. _ Eu não lhe contei sobre o guinéu.

Hester fitou a amiga. O guinéu da sra. Hackett.

_A moeda começou a briga _ murmurou.

_Sim. Como soube disso, Hester?

_ Eu não sabia. Adivinhei. _ Precisava ir para casa e esclarecer tudo. _ Desculpe-me, preciso ir, Lucy. _ Sorriu, um sorriso des­lumbrante, e pareceu mais bonita do que quando fora ao baile.

Lucy observou-a caminhar em passos firmes até o coche. Ora, o que havia dito para fazê-la sair com tanta pressa? Frank dissera que ela e Tom estavam separados. Lucy duvidou aquilo ao lem­brar-se do sorriso de Hester cada vez que dizia o nome do marido.

 

Naquela tarde, Jack Cameron se apresentou com os dois olhos pretos, o nariz quebrado, a boca arrebentada e os dentes perdidos, na sala do coronel O’Connell, no alojamento. Anteriormente, não deixara o quartel, exceto para consultar o dr. Kerr, que lhe dissera que, tirando o nariz quebrado, para o qual não havia conserto, poderia dar um jeito em tudo o mais, incluindo os dentes, era só uma questão de tempo.

Suas palavras iniciais foram categóricas:

_ Quero aquele bastardo do Dilhorne preso, acorrentado, acu­sado de assalto qualificado.

O’Connell fitou-o com visível desgosto.

_ Você sabe que não posso fazer isso, Jack. Por mais que eu queira ver Dilhorne em uma gaiola, não posso fazer qualquer coisa contra ele, diante disso.

Jack apontou para o rosto deformado.

_ O bruto quase me matou na noite passada. Não é suficiente?

_ Você sabe que não. Se tivesse se limitado a insultá-lo, tudo bem, eu já o teria colocado atrás das grades. Mas você insultou sua esposa, e não importa o que ele seja, ela é uma dama. E mais, nunca houve um único escândalo que a envolvesse. Fora, é claro, o fato de ter se casado com Dilhorne. Porém, aquele asno do Fred Waring deixou-a em uma situação tão miserável que casar com ele foi uma alternativa melhor que morrer de fome ou parar na casa de Madame Phoebe.

Jack começou a bufar.

_ Você está mal informado. Quem lhe contou os fatos?

_ Parker me fez um relatório completo do acontecido na noite passada.

_ Parker! _ O sarcasmo de Jack era contundente. _ Aquele sujeitinho inexperiente! Eu só poderia esperar isso dele.

_ Mesmo você, Jack, não pode chamar Pat Raxnsey de inexperiente _ disse O’Connell, em um tom cansado _ , e seu relatório bate com o de Parker.

_ Então Dilhorne se safou dessa, e não terá que me dar satisfações...

_ Ora, cale a boca, Jack. Você deveria aprender a controlar a bebida.

A expressão de Cameron era a de um assassino.

_ Pensar naquele porco caminhando por Sídnei como se a ci­dade lhe pertencesse, é o que eu não posso suportar.

_ Vamos lá, Jack. Ele é o dono de Sídnei, ou quase isso _ resmungou O’Connell. _ Ora, arque com os prejuízos e certifi­que-se de atingir um alvo mais fácil, da próxima vez. Se não sabia que Dilhorne era perigoso, agora já sabe.

Jack afastou-se, revoltado, mas voltou ao ouvir o comentário de O’Connell.

_ Feia, foi como você se referiu a ela. Você não a tem visto ultimamente, Jack. Ao contrário, devo lhe dizer, desde que se casou com Dilhorne, aquela garota está transformada. Está se tornando uma belezinha.

Aquilo o irritou. Uma belezinha?, pensou Jack furioso. Se é O’Connell quem diz, deve haver alguma coisa ai, ele é mulherengo. E ficou a imaginar como poderia dar o troco àquele animal, se através de sua esposa ou de seus negócios. O que poderia ser mais fácil? Melhor mesmo seria poder destrui-lo, vê-lo morto!

 

Tom sentou-se para jantar, ainda exaltado pela satisfação que sentira por ter atacado Jack Cameron. Havia encontrado com Alan Kerr pela manhã, e o amigo se mostrara assombrado com o que ele fizera.

_ Eu havia me esquecido o brigão que você é, Tom. Você trilhou uni longo caminho desde que desembarcamos em Nova Gales do Sul.

_ Ele insultou Hester _ explicou, simplesmente.

_ Eu sei. Não preciso Lhe dizer que essa história corre de boca em boca. Você destruiu a casa de Madame Phoebe também?

Tom explodiu em uma gargalhada.

_ E o que andam dizendo? Mas apenas quebrei a mesa na qual melhorei a aparência de Cameron. Tenho para com os oficiais, amigos dele, uma dívida de gratidão. Eles me impediram de matá-­lo, o que poderia ter sido o meu fim. _ Fez uma pausa. _ Você sabe, pensei que isso tudo tinha passado. Que eu era um homem civilizado. Quando ele disse aquilo sobre Hester, somado a outras coisas, eu me senti com dezoito anos novamente, pronto para matar se fosse confrontado. _ Deu de ombros. _ E tinia lição, preciso aprender a controlar meu temperamento. Engraçado, se ele tivesse me insultado, eu teria rido em sua cara. Mas ele falou de Hester... eu poderia tê-lo matado por isso.

Agora, sentado do lado oposto a ela, Tom ficou a imaginar o que poderia ter causado aquele ligeiro rubor no rosto de Hester, e por que ela escolhera usar as granadas que havia dado a ela, e o vestido combinando, cujo tom avermelhado iluminava-lhe as feições. Ela costumava vestir-se assim quando estavam sozinhos. A aparência de abandono e desamparo, que havia retomado na noite do baile, desaparecem de seu rosto, e ela comia a sopa com avidez. Ia perguntar por quê, quando ela ergueu os olhos e lhe disse, no tom de brincadeira que costumavam usar, antes da briga.

_ O que andou fazendo na casa de Madame Phoebe na noite passada, sr. Dilhorne?

_ O que os homens costumam fazer lá, sra. Dilhorne.

Ela apertou os lábios, em um gesto cômico.

_ Não me atrevo a falar em uma coisa dessas, ar. Dilhorne.

_ Bem.., eu não estava fazendo aquilo.

_ Então, estava fazendo o quê?

_ Pensei que comparecia a um encontro de negócios, ara. Dilhorne, mas então descobri que tinha me metido em uma confusão com um dos oficiais de O’Connell. Acho que posso ter melhorado as maneiras de Cameron, mas não creio que fiz o mesmo com seu rosto.

_ Oh, ar. Dilhorne, em Sídnei não se fala de outra coisa! Conte-me, estou ansiosa por saber, por que quebrou a casa de Madame Phoebe?

O rosto de Tom era tão cômico como o Hester, instantes atrás.

_ Quantas vezes tenho de dizer que não quebrei a casa de Madame Phoebe? Será que vou receber uma conta por causa disso?

_ Bem, se não o fez, ar. Dilhorne e, é claro, eu aceito sua palavra, o que foi que os oficiais pagaram?

_ Uma mesa arrebentada, ara. Dilhorne, e algumas garrafas de vinho, tudo por uma boa causa.

_ Por mim, Tom? _ A voz de Hester era doce. _ Por causa daquilo que Cameron disse no baile? E na casa de Madame Phoebe?

Ele aquiesceu.

_ Por você, Hester. Apenas e tão somente por você.

Fitaram-se longamente.

Hester colocou os talheres sobre a mesa e levantou-se, caminhando para ele. Tom ajoelhou-se, aos pés dela, tomou-lhe a mão e beijou-a.

_ Estou perdoado, então?

_ Não havia nada a perdoar. É você quem deveria perdoar-me. Você tinha razão. A ara. Hackett andou contando histórias, e Jack Cameron estava mentindo. Não sei por que não acreditei em você.

_ Porque ficou magoada com o que ouviu.

_ Fui tão grosseira quanto naquela festa de Natal. E, nova­mente, estava errada.

_ Não importa, agora _ ele murmurou, gentilmente, beijan­do-lhe a mão, novamente.

_ Oh, mas importa, sim. Eu fui cruel. Em parte, creio que foi porque eu não podia acreditar que podia ser feliz, e, em parte, por causa de tudo aquilo que minha mãe e meu pai sempre dis­seram de você. Quando Lucy me contou, esta tarde, o que você tinha feito por mim, senti-me culpada, de novo.

_ Lucy lhe contou, então... _ Ele parecia sinceramente divertido.

_ Bem; nem tudo. Apenas a fofoca e um pouco do que Frank disse. Eu estou usando as granadas, ar. Dilhornel

_ Estou vendo. Acho melhor tirá-las. Tenho vontade de fazer coisas terríveis com você, ara. Dilhorne... ou, pensando melhor, fique com as jóias.

Ela se recostou contra ele, roçando os lábios em seu rosto.

_ Faça tudo que você quiser, tudo que gostar.

_ E disto que eu gosto. _ Ele a ergueu do chão e jogou-a por sobre o ombro, com se fosse um saco de carvão.

Hester ficou suspensa, rindo.

_ Oh, ar. Dilhorne, o que vai fazer, agora?

_ Isto _ Refletiu, e saiu pela porta. Ao pé da escada, en­controu a ara. Hackett, seguida pela criada, trazendo a carne as­sada. _ Ah, sra. Hackett _ disse ele, girando o corpo para que o rosto de Hester ficasse oculto dos olhos dela. _ Não vamos querer jantar esta noite. Podem se servir. _ Riu, diante do ar abobalhado da empregada. _ E você tem minha inteira permis­são... Não, é uma ordem!, . ..para contar à cidade inteira que Tom Dilhorne está levando sua esposa para a cama, hoje!

Deixando a ara. Hackett engasgada atrás de si, Tom subiu a escada correndo, e, passando pelas portas de bronze, colocou seu doce fardo sobre a cama. Em um frenesi de paixão, pôs-se a fazer amor com Hester, sem nem mesmo esperar que tirassem as roupas. Por fim, caíram exaustos, rindo saciados, juntos de novo, e desta vez, para sempre.

 

                                     CAPÍTULO XI

Aqueles primeiros meses após a reconciliação foram, ara Hester, um período em que tudo era novo e excitante. Ela e Tom eram tão selvagens e irresponsáveis no ato do amor como os tigres que, algumas vezes, ela imaginava que eram.

Na manhã seguinte ao reencontro, ela estava deitada, cochilando, quando seu Mentor, que permanecem calado desde que Tom fizera amor com ela, pela primeira vez, subitamenÏe se pôs a falar:

_ Adeus, Hester _ disse.

Antes, a voz sempre fora baixa. Agora, era tão clara que ela imaginou que Tom, que estava barbeando-se diante do espelho, poderia ouvi-la.

Por que estava dizendo adeus? No instante em que o pensa­mento lhe ocorreu, a voz retrucou, com tristeza:

_ Você não precisa mais de mim, Hester. Não é mais uma ratinha indefesa. E a parceira de Tom, sua tigresa. Irão caçar juntos, vai ver.

_ Vou sentir saudade suas.

_ Não, eu não sou mais querido. Mas sempre que precisar, eu estarei de volta. Adeus, Hester.

Silêncio. Ele se fora.

Por um instante, ela ficou desolada com a idéia. Mas depois sentiu-se feliz por não ser mais a assustada Hester Waring e por saber que poderia falar em voz alta tudo o que pensava.

Para aumentar sua confiança, Tom continuara a educá-la nos meandros da vida, e isso, agora, envolvia desvendar-lhe os mistérios e a arte do amor. Sua criatividade, em termos de prazer, ia muito além do ato físico em si. Ele parecia capaz de encontrar algo novo para fazerem a cada ocasião, quer no trabalho ou no lazer.

Ele a cumulava de presentes: leques, roupas, comidas exóticas

e vinho. Comprara-lhe um cavalo, para cavalgarem juntos, mandam fazer calças de montaria para que ela pudesse sentar-se na sela confortavelmente. Ensinara-lhe a nadar e fazia amor com ela na água. Aliás, fazia amor em qualquer lugar onde Lhe desse vontade.

A felicidade a tomara por inteiro.

A transformação, na aparência de Hester, era tão marcante, que Tom ficou atônito ao perceber que ela não se dava conta disso.

_ Minha Vênus _ disse-lhe uma vez, quando estavam nus, entre os arbustos, rodeados de flores e perfumes. _ Minha rara miniatura da deusa do amor. _ Ela se tornara a bela mulher que ele sempre acreditara que seria, mesmo quando todos em Sidnei viam nela apenas a pobre e feiosa Hester Waring.

Era óbvio, contudo, que ela julgava que eram os olhos apaixo­nados do amado que a viam assim e que tal comentário não fosse a verdade. Hester não conseguia esquecer que fora pela intervenção de Tom que se salvara da ruína, de cair na cova que esperava aqueles que tinham sido varridos do banquete da vida.

Nas reuniões de negócios, Tom sempre a levava consigo e a maneira com que a tratava com deferência e pedia freqüentemente sua opinião, era notada com um divertimento irônico. Tal atitude teria mudado se soubessem quantas vezes Hester, na verdade, aconselhava-o e como seu discernimento era agudo.

Complementavam-se, um ao outro. Se Tom, por vezes, era muito duro, Hester estava lá, para amansá-lo. Se ela, por sua parte, era suave demais, ele estava lá, para enrijecê-la. Mesmo assim, ela ainda permanecia inconsciente de que Hester Dilhorne havia se transformado em uma linda mulher, segura do amor de seu marido.

 

Naquela tarde, Jack Cameron entrou no salão de baile do Pa­lácio do Governo, determinado a avaliar Hester Dilhorne. Durante os meses transcorridos desde que caíra nas mãos daquele bastardo do Dilhorne, ele andara procurando por ela por toda a Sídnei e, de alguma forma, nunca parecia encontrá-la.

_ Ela se tornou de uma beleza singular _ disse-lhe Ramsey, um dia, parafraseando O’Connell.

_ Os porcos podem voar _ ele caçoou, bufando de ódio.

Hester Waring, uma beleza! Sempre que a vira antes, o que não fora freqüente, graças a Deus, era uma mocinha desajeitada e feiosa que ficava pavorosamente vermelha ao ser encarada. Aque­le asno, Frank Wright, também tinha dito que ela estava muito melhor, mas, que diabos, quando ele entendera de alguma coisa?

O’Connell o aconselhara a cortar a bebida e, assim, ele estava sóbrio quando correu os olhos pelo salão. Seu rosto ainda exibia as marcas das mãos daquele bandido. Seu nariz nunca mais seria o mesmo.

Onde estava Hester Dilhorne? Queria olhá-la com atenção, mas a madame não estava à vista. Não importava. Tanto quanto dar uma boa risada na cara dela, ele precisava de um pouco de alivio com uma bonita mulher, antes de partir para o cumprimento do dever. Um camarada tão maltratado como ele não merecia menos que isso.

Logo encontrou seu alivio.

No meio do salão, sentada praticamente sozinha, estava urna cria­tura deliciosa que ele não conseguia se lembrar de ter visto antes. Usava uru elegante vestido de seda de um verde-limão muito pálido e um cordão de pérolas de excepcional qualidade prendia seus bri­lhantes cabelos negros. Em torno de seus ombros acetinados, uma echarpe primorosa, chinesa, bordada com flores de lótus. No colo, uni leque entreaberto, também da China, notável pela beleza pura de sua decoração em porcelana. Nos pés pequenos, usava sapatilhas cor de creme, bordadas com pérolas, como as damas chinesas.

Fascinado, Jack se perguntou como uma tal beleza, de imensa delicadeza, poderia ter escapado de sua atenção? A moça devia ter chegado no navio que atracara nas docas, na semana anterior. Decidiu tirar vantagem da liberdade que o salão de baile propor­cionava e apresentar-se a ela. Caminhou resolutamente, cruzando o salão, tudo o mais esquecido.

Estava absolutamente inconsciente de que, quando seu destino se tornou óbvio, uma centena de pares de olhos o seguia, antecipando um outro delicioso escândalo. Perto dela, viu seus belos olhos escuros se arregalarem e um rubor tingir-lhe as faces cor de marfim.

Inadvertidamente, tomou isso como um tributo a seu próprio atrevimento. Cumprimentou-a, com uma profunda reverência.

_ Nunca gostei de ver a beleza negligenciada, madame. Posso me apresentar? Sou o capitão Jack Cameron, a seu serviço.

A bela mulher deixou escapar um leve suspiro. Seu rubor se acentuou, e ela abriu o leque para encobrir o rosto.

De súbito, o entendimento o atingiu.

_ Ora, mal posso acreditar... _ Jack gaguejou. _ Não pode ser! Será que estou me dirigindo à srta. Hester Waring?

Hester balançou a cabeça, orgulhosa, até um tanto divertida com a confusão evidente.

_ Meu nome é Hester Dilhorne, senhor, como bem sabe. Não creio que devesse estar dirigindo a palavra a mim. E pouco prudente.

Ela havia abaixado o leque para encará-lo, de maneira firme. Sua frieza e sua pose eram duplamente surpreendentes para Jack, quando se recordava de suas maneiras antigas. O’Connell e todos tinham razão. Ela estava mudada. Havia se transformado em uma mulher elegante, de uma beleza extraordinária.

A raiva o inundou. O que tinha feito aquele maldito Dilhorne para merecer uma pérola de tamanho preço?

_ Sra. Dilhorne, então. _ Ele cumprimentou-a, de novo. _ Estou encantado de tê-la encontrado. Quero me desculpar por qualquer mágoa que possa ter-lhe causado no passado, e dizer-lhe de minha admiração, esta noite. A senhora é a beleza em pessoa, madame.

Jack não estava mentindo. Diante dele estava a mulher que pedira ao destino, mas nunca procurara encontrar. Hester, con­tudo, não o deixou ir avante.

_ Não há necessidade, senhor. Não desejo conversar com o senhor, nem receber suas desculpas. Por favor, retire-se. Deve ter consciência de que se dirige a mim por sua conta e risco.

Inútil falar com ele assim. Jack estava fascinado. Indiferente ao perigo, insistiu. Seus olhos não conseguiam se afastar daquele rosto maravilhoso. Não havia quem se comparasse a ela no salão. A beleza e o comportamento orgulhoso a destacavam, de forma singular, de todas as outras.

Hester olhou ao redor, procurando por Tom, que estava em pé, longe dali, conversando com Wil French. Não poderia responder pelas conseqüências, se o marido a visse sendo importunada. Não podia acreditar que a admiração de Jack era genuína.

Tarde demais! Jack não fez qualquer menção de se afastar, e Tom, aborrecido com a tagarelice sem fim de Will, procurou Hester com os olhos, para descobrir que ela estava sendo molestada por Cameron. Era claro, por seu comportamento, que ela queria que ele se fosse.

_ Minha esposa precisa de mim _ disse a Will, abruptamente, e atravessou o salão, os olhos fascinados de todos sobre si, até onde Jack ainda se desfazia em atenções para com Hester.

Tom segurou-o pelo ombro e obrigou-o a voltar-se, feliz em ver que o rosto de Jack empalidecia diante de sua presença.

_ Eu agradeceria que não perturbasse minha esposa, Cameron.

_ Eu estava apenas tentando me desculpar, Dilhorne.

_ De um porco como você, um insulto não se apaga com um pedido de desculpas.

_ Eu estava somente tentando comportar-me com decência, Dilhorne.

_ Você não saberia como, Cameron.

Jack decidiu que recuar, diante do salão inteiro, que observava avidamente a troca de palavras, seria sua última desgraça. Co­meçou a esbravejar.

_ Ora, veja bem, Dilhorne...

A raiva assassina, que tomara conta de Tom quando vira Jack falando com Hester, aumentou ainda mais. Tinha dificuldade em se autocontrolar. Sua mão se fechou cruelmente no ombro de Jack. E lhe perguntou, em urna voz gelada:

_ Tenho que ensiná-lo a se comportar, mais uma vez? Vou avisá-lo das conseqüências, Cameron, se testar minha paciência. Fique longe de minha esposa!

O salão inteiro tinha os olhos presos na cena. Hester encarou o marido e viu que sua expressão era perigosa. Mal podia reco­nhecê-lo. Algo tinha que ser feito para evitar que Tom matasse Jack Cameron, ali mesmo, na sala.

Ergueu-se, em um gesto gracioso, pôs a mão esquerda no braço livre de Tom e, ao mesmo tempo, fechou o Leque com o toque desafiador que Tom lhe dissera que as japonesas utilizavam.

_ Sr. Dilhorne, meu amor, eu me sinto um pouco tonta. Quero dar uma volta, lá fora. Estou certa de que o capitão Cameron não pensaria em nos reter.

Tom fitou-a. Não havia o menor sinal de que ela estava tonta ou tinha qualquer outra indisposição. Falara com ele com a voz que usava para provocá-lo. E o inclinar de cabeça, para Jack, era uma forma de dispensá-lo, elegantemente. A raiva o abandonou e foi substituída pela admiração. Hester tinha sangue frio. Não pela primeira vez, ela usava sua suposta fraqueza feminina para se sair de situações difíceis.

Relutante, ele soltou o ombro de Cameron. Tomou o braço da esposa e, sem olhar para trás, a cabeça inclinada de maneira so­lícita para ela, caminhou para as portas de vidro, abertas para o jardim. O salão, atrás dos dois, deixou de segurar o fôlego. Jack Cameron foi deixado sozinho, como um tolo, à parte.

Metade dos observadores estavam desapontados, lamentavam

que o famoso acontecimento em casa de Madame Phoebe não se re­petira, desta vez com conseqüências ainda mais sérias. A outra metade, que gostava de Tom e começava a admirar Hester, estava aliviada.

Lucy Wright, que estivera sentada perto dela, disse a Frank:

_ Você estava certo quando disse que, se o deixassem, Tom teria matado Jack naquela noite, em casa de Madame Phoebe. Por um instante, pensei que ele fosse matá-lo aqui, publicamente, diante de nós.

_ Jack é um idiota _ exclamou Frank _ , e alguém deveria dizer isso a ele! Será que realmente não a reconheceu?

_ Tenho certeza de que não _ declarou Lucy.

Pat Ramsey, que se divertira observando o desconforto de Jack Guinéu nas mãos de ambos os Dilhornes, voltou-se para os cama­radas do 735 Regimento e saiu-se com essa:

_ Ora, ora, eu gostaria muito de descobrir como aquele demônio maquiavélico sabia que, se alimentasse e tratasse bem dela, na cama, aquela coisinha insignificante se tornaria de urna beleza assim tão exuberante e tão sagaz quanto ele! Esse tipo de conhecimento não está à venda, meus rapazes, senão teríamos todos a mesma sorte!

 

Lá fora, no jardim, Tom conduziu Hester até um banco rústico, pintado de branco, entre algumas acácias.

Nenhum dos dois falou, por alguns instantes, até que Hester disse, bastante determinada:

_ Meu querido, você não deveria ter ficado tão transtornado ao ver o capitão Cameron falando comigo. Sei que não gosta dele, mas parece um tanto agressivo, de sua parte, querer matá-lo por isso.

A expressão severa de Tom suavizou-se, e ainda mais, quando ela continuou.

_ Foi, realmente, uma coisa bastante estranha. Tem certeza de que não abalou o cérebro do capitão naquele dia, na casa de Madame Phoebe? Ele veio se desmanchando sobre mim como se eu fosse a Rainha de Sabá, fez-me uma série de elogios extrava­gantes com a expressão mais absurda na cara e, então, tentou fingir que não me reconhecera!

Tom murmurou, com cuidado:

_ Acho que, talvez, ele realmente não a tenha reconhecido, sra. Dilhorne.

_ Bobagem! _ Hester retrucou áspera. _ Acho que são estas roupas que estou usando.

Era inútil dizer a ela quanto havia mudado. Tom sorriu e disse, simplesmente:

_Não obstante isso, você não está se sentindo tonta, não é verdade, sra. Dilhorne?

_Não, realmente, não. Porém, eu tinha de afastá-lo de Jack, de alguma forma. Não estava errada, estava?

_Não de todo. Você tinha razão. Seria unia pena arriscar minha liberdade por causa de um asno como ele. Ele é sua própria punição. Pena que não tenha visto sua expressão, quando a reconheceu.

Hester levantou-se.

_Acho que podemos voltar ao salão. Demos tempo suficiente para que falassem de nós, e creio que já devem ter achado um novo assunto.

Ele sorriu.

_Ora, eu duvido. Porém, vamos voltar, sim. Preciso aplacar os ânimos de Will French, deixei-o falando sozinho.

O retorno de ambos ao salão era ansiosamente aguardado. Tom deixou Hester junto a Lucy Wright e seus amigos.

_Senhoras, senhores _ inclinou-se, cumprimentando o grupo.

_Imagino, sra. Wright, que a senhora possa velar por minha esposa enquanto eu me desculpo com o sr. French por minha con­duta, um tanto grosseira. Ela não está se sentindo muito bem.

Todas as cabeças se voltaram para examinar Hester. Se ela não estava se sentindo bem, então essa era uma condição que todas as mulheres deveriam almejar. Nunca parecera mais char­mosa e elegante.

Os oficiais que a haviam evitado quando ela era a pobre Hester Waring mostravam-se quase servis, na tentativa de agradá-la, a ponto de ela se mostrar embaraçada.

Disse, envergonhada, para Lucy:

_Acho que todos ficaram loucos, esta noite. Primeiro, foi Jack Cameron e suas bobagens, e depois o capitão Parker, que não pára de me dirigir galanteios extravagantes, falando de ninfas belíssimas. Até mesmo Frank se juntou a esse grupo.

Lucy fitou-a, com dureza. Será que Hester realmente não sabia o quanto mudara? Tom não lhe dissera?

_Você nunca se olha no espelho, Hester? _ perguntou, in­conscientemente repetindo a frase de Tom. _ É possível que não tenha consciência da notável melhora em sua aparência? E tão grande que você se tornou o assunto do baile.

Ela teria continuado se o governador Macquarie e a esposa não houvessem se aproximado.

_ Queria que seu marido estivesse aqui, com você, sra. Dilhorne, para que pudesse cumprimentá-lo pela esposa. Se realizássemos aque­le antigo concurso, A Rainha da Beleza, em nos bailes, não haveria dúvidas de quem seria a vencedora que levaria a coroa, hoje. Tom Dilhorne conseguiu a mulher mais bonita de Sidnei para esposa.

O chão se abriu perante Hester. Jack Cameron não a conven­cera, mas o governador, sim. Fazendo coro com as observações de Lucy, ele finalmente a fizera compreender que Tom não a elogiava por amor, mas lhe fazia cumprimentos, no sentido literal da pa­lavra. Precisava examinar-se no espelho, quando chegasse em casa.

O governador beijou-lhe a mão, antes de se afastar. O salão inteiro observou-o prestar a homenagem à sra. Dilhorne. Tom, que se aproximara do pequeno grupo depois de deixar Will French, era um espectador deleitado com a cena.

Na carruagem para casa, que cortava a estrada escura ilumi­nada por urna enorme lua cheia, Hester murmurou:

_ Você tinha razão, sr. Dilhorne.

_ Eu sempre tenho razão, sra. D. Em particular, a que se refere, desta vez?

_ Minha aparência. Tenho que aceitar que passei por uma grande mudança e não apenas por causa das roupas maravilhosas e os presentes que você escolhe para mim.

_ Oh, sim, sra. D., claro que eu estava com a razão quanto a isso.

_ Mas, por quê? _ ela indagou. _ E como? O que aconteceu para que eu me transformasse tanto assim, a ponto de não me reconhecerem?

_ Boa alimentação, Hester, meu amor, vinho e diversão na cama. Especialmente, diversão na cama. Vamos para casa depres­sa, quero deixá-la ainda mais adorável!

 

Por mais feliz que Tom fosse, Jack precisava ser neutralizado, o sujeito era uni canhão pronto para disparar. Tom se pôs em ação, rapidamente. Ouvira falar, em uma vinha secreta que existia em Síd­nei, que Jack estava determinado a se vingar dos insultos que Tom lhe dirigira, malgrado seu nariz quebrado e a aparência arruinada.

_ Ele é um cão danado, Tom _ seu informante, Natty Jemson, disse-lhe. _ Eu tomaria cuidado, se fosse você, camarada. Pede lhe fazer mal. Melhor cuidar de suas costas.

Sim, cão danado era uma boa descrição para um homem que rondava a rua das Pedras, meio ignorado, permitindo que seu ódio por Tom e seu desejo por Restei- se tornasse de conhecimento público.

Enquanto havia aqueles, nas Pedras, que poderiam gostar de ver Tom Dilhorne em maus lençóis, havia outros que o temiam, tanto por sua paciência ou pelo que ele havia feito no passado longínquo, quando era ainda o jovem ladrão de Londres em uma cidade de fronteira, pronto para fazer dali seu próprio território.

Tom dirigiu o coche para seu escritório, desviando-se do tráfego crescente, pensando sobre o que Jemson lhe dissera, e ponderando em como cortar as garras de Cameron. Tratar com um cão danado era diflcil: eram os mais perigosos de todos, porque eram irracionais.

Acima de tudo, Hester não podia ficar sabendo das ameaças. Não queria que nada turvasse a felicidade de ambos, e, por isso, Jack devia ser neutralizado com rapidez. Era escolher a melhor oportuni­dade. Entrou no escritório, dizendo, abruptamente para Joseph Smith:

_ Quero que percorra Sídnei e resgate os débitos do capitão Cameron, o máximo que puder.

Smith sorriu.

_ Não é necessário. Larkin me procurou há menos de uma hora e me ofereceu uni lote.., e ficou feliz de livrar-se das promis­sórias. Eu relutei um pouco, embora soubesse que você fosse ficar satisfeito em tê-las. Estava certo?

_ Certíssimo. Pague a Larkin tão pouco quanto possa barga­nhar, são inúteis, exceto para mim.

Tom sentou-se diante da escrivaninha, rindo, dizendo para si mes­mo: compre as dividas de uni homem e poderá controla-lo, eis aí como cortar as garras de Mestre Jack. Escreveu-lhe uma carta in­formando-o para comparecer ao escritório da Dilhorne & Co., no prazo de uma semana, para discutir assuntos de negócios relativos a seus débitos. Isso deveria forçá-lo duplamente a aparecer, refletiu Tom, estendendo a correspondência para que o mensageiro a entregasse.

Estava particularmente alegre durante o jantar, naquela noite. Hester comentou, sorrindo:

_Se eu não o conhecesse muito bem, sr. Dilhorne, pensaria que andou bebendo.

_Uma boa idéia essa, minha querida _ retrucou ele, com uma risada. _ Ultimamente, temos negligenciado o prazer de um bom vinho.

Levantou-se e caminhou até o grande aparador laqueado e vol­tou com uma garrafa de vinho tinto, que abriu. Encheu uma taça.

Ao invés de entregá-la à esposa, levou-a aos lábios de Hester, dizendo:

_Beba em homenagem a Tom, meu amor. Fiz um excelente negócio, hoje. Não, não direi do que se trata, desta vez. Deixarei a coisa ficar madura.

Riu da própria sagacidade enquanto ela, obediente, bebia o vinho.

Mais tarde, ele haveria de olhar para trás e conclui- que a felicidade o havia tornado descuidado e orgulhoso em excesso, algo que o sofrimento nunca fizera. Por ora, no entanto, celebrava.

O vinho foi terminado na cama.

Durante a noite, ele acordou e procurou-a, de novo, queimando de intenso desejo. Chegaram ao êxtase, rindo de felicidade.

Tom ergueu-se nos cotovelos, sobre ela, fitando-a, cheio de amor.

E Hester, acariciando-lhe o rosto, entre suspiros e gargalhadas, murmurou:

_Oh, você é meu lindo menino, Tom! Meu lindo menino! _ Frase incongruente para dizer, diante da força e tamanho daquele homem.

Ele a encarou, com uma expressão estranha. Sua risada se calou. Sem uma palavra, desabou ao lado dela, na cama, tremendo violentamente.

A princípio Hester pensou que ele estava tendo um acesso de riso.

Porém, quando ele se encolheu como um novelo, as mãos protegendo a cabeça, ela subitamente percebeu que Tom estava chorando. Soluços intensos sacudiam o corpo de um homem que nunca mais chorara, desde que era um garotinho: um homem que demonstrava pouca piedade para com os outros e nenhuma para consigo mesmo.

Hester ficou apavorada. Tom havia se tornado sua rocha, sua pedra fundamental. Ele a resgatara da penuria e da ruína. Vê-lo assim, alquebrado, angustiado, abalava os alicerces de seu mundo.

O que havia dito ou feito para provocar tamanha reação?

Nada importava, a não ser que precisava confortá-lo, tal como ele a confortava, freqüentemente. Sentou-se e dobrou-se para prendê-lo de encontro ao peito, como se ele fosse uma criança. Ninou-o e afagou-o, murmurando-lhe o nome, evitando qualquer adjetivo, já que o último que usara se mostrara tão desastroso.

Lentamente, ele foi se aquietando. Depois de um instante imó­vel, segurou-lhe o rosto com as mãos espalmadas.

_Hester. Eu a assustei. Desculpe-me:

_ Fiquei assustada, sim, um pouco _ ela respondeu, afagando-lhe a mão. _ Mas, isso não importa. Você me tornou mais corajosa do que eu era.

Ele deixou escapar uma risada meio engasgada.

_ Bem, talvez, afinal, eu tenha feito alguma coisa boa. _ Calou-se.

_ Se ajudar _ ela murmurou gentilmente _ , você poderia me contar o que foi que eu fiz ou falei que o aborreceu tanto. Mas, não diga nada, se isso o machucar demais.

Por alguns instantes, Tom não respondeu.

_ Oh, Restei- _ ele disse, por fim _ , você despertou uma lembrança de minha infância. Algo que eu tinha varrido de meus pensamentos e esquecido. Durante anos, eu agi como se minha vida tivesse começado quando eu cheguei a Londres. Destruí mi­nhas recordações mais antigas de forma deliberada, porque não podia suportar relembrá-las. Era como se nunca houvessem exis­tido. Poder-se-ia até dizer que nasci como o Tom Dilhorne que sou, quando conheci Alan Kerr no transporte que nos trouxe a Botany Bay. Minha vida mudou completamente.

Tom caiu em silêncio de novo e, quando, por fim, falou, foi com uma voz sem inflexão, diferente das muitas maneiras de expres­sar que ela já ouvira dele, antes.

_ Meu lindo menino, você disse. Minha mãe costumava me chamar assim, quando eu era um garotinho. Eu me esqueci disso também, até que você disse, com amor, o que ela me dizia, também com amor. Quando a ouvi, de repente me senti uma criança de novo, e tudo aquilo que eu havia deliberadamente esquecido, vol­tou, em uma avalanche e, junto, todas as coisas que fiz, desde então. Deus me perdoe por tudo que sou e por tudo que tenho feito. _ Novamente, ele ficou em silêncio.

Dizer alguma coisa poderia ser desastroso. Fazer perguntas ou apressá-lo poderia pôr tudo a perder. Ele precisava apenas saber que ela estava ali e que o amava.

_ Você me contou espontaneamente toda sua vida, e eu nunca lhe falei nada da minha. Eu estava errado, não deveria haver segredos entre nós. Vou lhe contar o que jamais disse a alguém. Nem mesmo Alan sabe quem eu fui e de onde vim, embora suspeite como deve ter sido minha vida, pelas palavras que deixei escapar.

_ Minha mãe era filha de um fazendeiro, instalado bastante decentemente nos vales de Yorkshire. Dizia que sua família tinha uma vida confortável e era costume mandar as filhas para o castelo, para adquirirem educação e experiência. _ Riu ligeiramente. _ Experiência! Bem, ela conseguiu, pobre garota. Rico o bastante, o filho do dono do castelo fez dela sua amante. Ela dizia que era um amor verdadeiro. Falou-me algumas bobagens sobre um ca­samento às escondidas; disse que, antes disso, nunca tinha deitado com ele. O castelo era perto dos pântanos, mas um tio do rapaz os casou, secretamente, em urna pequena igreja bem distante.

Hester o ouvia com atenção e curiosidade.

_Qualquer que seja a verdade, ela se viu esperando um filho. Um dos outros criados ficou sabendo e disse ao pai de seu amante que ela estava carregando o filho ilegítimo de seu primogênito. O senhor do castelo era um tirano, temido por todos, e a conseqüência disso foi que o jovem cavalheiro abandonou minha mãe. Ela nunca mais o viu de novo, depois que o pai dele descobriu a gravidez. Hester assentiu, encorajando-o a continuar.

_Hart... ela o chamava assim. Meu amado Hart. Minha mãe nunca acreditou que ele a houvesse abandonado, realmente. Dizia a si mesma que o pai dele o impedia de vê-la. Ele nunca a trairia. Qualquer que fosse a verdade, ela foi mandada como empregada para todo o serviço em uma fazenda longe dali, afastada tanto do castelo como de sua própria casa e de sua gente. Nunca mais viu nenhum deles, de novo. Sua família a deserdou, ela os desgraçara. Tinha que ser tratada como uma prostituta banida. E teve o seu bastardo, eu.

A voz de Tom era triste, quase um suspiro.

_Cresci na fazenda. Lembro que não tínhamos urna vida ruim, a princípio. Porém, a esposa do fazendeiro ficou velha e doente. Minha mãe era urna moça bonita, e o fazendeiro arrastou-a para a cama, contra a sua vontade. Eu me lembro da noite em que isso aconteceu. Eu a vi se debater e lutar com ele... Sua esposa contou aos irmãos o que o marido havia feito. Eles chegaram à fazenda, deram uma surra nele e nos expulsaram, a mim e minha mãe.

Hester o ouvia e entendia seu sofrimento.

_Você pode compreender por que eu quero esquecer meu pas­sado, Hester . É uma estória feia. Minha mãe havia sido estuprada, mas foi punida tão severamente como se houvesse consentido. Não me lembro qual minha idade, então. Ainda não sei quantos anos tenho, na verdade. Outro fazendeiro nos acolheu. Era um bruto que não conseguia manter criados. Ele passou a abusar de minha mãe e a me surrar. Logo, ela já não tinha mais a aparência bonita.

O coração de Hester estava amargurado. Ela tentava ocultar sua dor ao pensar no sofrimento do amado.

_ Ele começou a bater em minha mãe. Batia por prazer, para satisfazer sua crueldade, e é por isso que não posso suportar ver uma mulher maltratada. Eu me lembro claramente agora de tudo aquilo que me obriguei a esquecer, e de como tudo terminou. Acho que tinha uns doze, treze anos, e era grande para minha idade. Minha mãe dizia que eu estava ficando parecido com meu pai. Ela me alfabetizara e me fazia ler e escrever. Na casa, havia uma Bíblia, o Livro dos Martírios, de Foxe, e alguns libretos religiosos. Um dia, ele chegou e nos encontrou lendo juntos. Por alguma razão, isso o enfureceu. Começou a espancar minha mãe, cruelmente. Antes, eu sempre tivera medo, embora tivesse prometido a mim mesmo que daria cabo dele, um dia, quando crescesse. Achei que ele fosse matá-la. Havia uma faca sobre a mesa. Posso enxergá-la, agora mesmo. Lembro que a peguei e a enterrei em seu peito. Nunca fiquei sabendo se o matei ou não...

Hester levou a mão à boca.

_ Ele caiu, sangrando, sobre minha mãe. Ela chorava e gemia:

“Vão enforcá-lo por isso, Tom”.

Tom acomodou-se melhor, estava visivelmente perturbado pelas lembranças.

_ Nunca _ eu respondi. Era jovem e estúpido e fiquei aturdido de orgulho com minha coragem. Nós o deixamos lá, deitado em um mar de sangue e fugimos para Londres.

Tom deu uru suspiro profundo. O fluxo de recordações não po­deria ser contido.

_ Londres! Ela não tinha idéia, nem eu, da distância em que ficava. Era apenas um nome para nós. Caminhamos sem descanso, e isso foi sua morte. Ela havia começado a cuspir sangue na fa­zenda. Nós dormíamos em celeiros e debaixo do feno. E eu não era tão pequeno que não soubesse que ela se vendia para ter comida e nos manter vivos. Chegamos a Londres, não sei como. Lembro que ter pensado que havíamos chegado ao inferno. Sabia alguma coisa do inferno através do Livro dos Martírios. Minha mãe estava morrendo quando chegamos e não demorou muito para que isso acontecesse. Em seus últimos suspiros, balbuciava, falando de si e de Hart nos pântanos, quando eu ainda não havia nascido.

Hester o abraçou. O amor que sentia por aquele homem se intensificou ainda mais.

_ Fiquei sozinho. Não tinha ninguém, nem nada, nem família, nem meios para sobreviver, nem uma roupa decente para me dar respeitabilidade, nem trabalho e nem mesmo um teto. Dormia nas ruas, debaixo das pontes, nos jardins, mendigando por migalhas.

Tom parecia disposto a contar tudo, e Hester o ouvia, ávida.

_Logo percebi que um garoto de treze anos pode ser enganado, mas descobri também maneiras de evitar isso. Trabalhei para uni mágico durante algum tempo e aprendi uma porção de truques úteis. Ele, porém, queria me levar para a cama, e eu fugi. Por fim, tornei-me uni ladrão, não podia ser outra coisa. Era grande, forte e esperto, e logo me tornei um líder, entre garotos que conheci. Tornara-me um criminoso antes da adolescência. Oh, eu era ina­creditavelmente ladino, posso lhe assegurar.

Restei- não o censurava, aceitava-o.

_Na época em que tinha uns dezoito anos, eu poderia dizer que era rico. Tinha um colchão só meu e uma linda amante. Às vezes, ficava a imaginar o que aconteceria com ela se os guardas me pren­dessem, se eu me aventurasse a pegar mais do que poderia carregar. Eu achava que poderia superar os mestres de meu mundo.

Sua risada, desta vez, foi mais amarga.

_Isso me ensinou a prestar a atenção às minhas costas, Hester , tarde demais, no entanto, para me beneficiar, então. Os mais ve­lhos perceberam que eu ameaçava seus ganhos e me traíram, en­tregaram-me para os policiais. Oh, sim, eu era uma ameaça real, sempre soubera como manipular as pessoas e tomava conta dos garotos que eu chefiava. Eu não os explorava simplesmente, como os outros faziam. Fui denunciado à polícia e pego em flagrante.

O rosto de Tom se contorceu diante das lembranças, e Hester não soube o que dizer ou fazer.

_Eu cometera crimes capitais. Um velho, com um camisolão e uma capa preta, sentenciou-me à morte. Suponho que é o fim usual de um criminoso bastardo. Eu não podia acreditar. O esperto Tom Dilhorne tinha sido preso. Minha pouca idade não era levada em consideração. O velho disse, quando me sentenciou, que eu era um exemplo terrível dos vícios da juventude e que faria um favor ao mundo, mandando-me para o inferno. Eu me lembro de que fiquei prostrado, em Newgate, tomado de estupor. Não acre­ditava poder escapar, desta vez. Recordo-me de jurar que, se hou­vesse alguma chance de eu não ser enforcado, seria mais esperto. Meu melhor amigo me delatara, nunca confiaria em ninguém, no­vamente, e nunca mais me colocaria em uma posição em que pu­desse ser traído por alguém.

Hester sentiu um arrepio de horror.

_ Um dia antes de meu enforcamento, o carcereiro veio até minha cela. Eu estava estendido no catre, cochilando.

_ Levante-se, garoto _ ele berrou.

_ Pensei que meu dia chegara mais cedo, ou que eu havia perdido a conta. Não tinha mais a noção de tampo. Ele me fez pensar que a árvore me esperava. Levaram-me para fora e me acorrentaram a outros três pobres diabos e nos conduziram em uma carroça para um navio velho. Falaram que nossas sentenças haviam sido comu­tadas para a deportação e, de fato, foi o que aconteceu.

Ele deu um grande suspiro antes de começar a falar de novo. Hester percebeu que, de alguma forma, aquilo era urna espécie de purgação. Ele precisava contar toda aquela triste estória.

_ Encontrei Alan no transporte. Ele começava a sair de seu estupor. Seu caso era pior que o meu, pois ele era um cavalheiro e verde como o capim entre os lobos que o rodeavam, eu mesmo, inclusive. Ele fora um cirurgião em um navio de carreira, senten­ciado por traição, por ter expressado, inadvertidamente, simpatia pelos ideais da Revolução Francesa, algo que seu capitão resolveu ver como um motim. Tivera sorte de não ser enforcado. Ao invés disso, fora deportado.

Hester sorriu docemente.

_ Senti pena de alguém que era tão inexperiente quanto eu fora, um dia. Não sei por quê. Ninguém nunca tivera pena de mim. Penso, agora, que precisava de alguém para tomar conta, proteger como eu não pudera proteger minha pobre mãe. Eu me tornei amigo dele, cuidei dele, salvei-o de assaltos e de coisas piores. Foi a melhor coisa que jamais fizera.

Restei- sabia que seu amado era um ser humano que tinha um coração, embora ele mesmo quisesse, às vezes, parecer de pedra e insensível.

_ Ele era educado, hábil, e um professor nato. E eu queria aprender. Como eu queria aprender! Achei que, se soubesse mais, não teria sido pego tão facilmente, não desceria à condição de um ladrão. Queria sair do poço onde mergulham. Então, quando ele disse que queria me pagar por tê-lo salvo, pedi que me ensinasse tudo que sabia. Nos longos dias e noites no transporte e, depois, nas Ilhas Norfolk, ele cuidou de minha educação, até chegarmos à Nova Gales do Sul.

Ao pensar no amigo, a expressão de Tom Dilhorne se suavizou.

_ Eu sabia ler um pouco e rabiscar alguma coisa que passava por uma escrita e era, naturalmente, habilidoso com figuras, mas falava como o marginal que eu era. Ele me ensinou a ler direito e a escrever com urna letra elegante, a caligrafia que surpreende a muitos quando a vêem. Imagino que tenha surpreendido a você...

Hester concordou, e ele riu, com amargura.

_ Ele me ensinou a falar como um cavalheiro. Eu sempre fora um bom mímico e aprendia depressa. Dominei o latim, também, isso ajudava a passar o longo tempo da viagem e a manter nossa sanidade. Eis porque eu sabia perfeitamente bem o que estava fazendo quando a provoquei, perguntando se iria ensinar os pe­queninos a aprender latim. Sabia muito bem o que significava amo, mas queria ver sua expressão quando me respondesse.

Ela sorriu com amargura ao lembrar de como se sentira sendo questionado por ele, naquele instante no passado.

_ Estávamos no Cabo da Boa Esperança quando ele começou a me ensinar um pouco de grego, era tudo o que ele sabia. Mau disse que eu tinha a melhor memória que ele já vira em alguém. Nunca esqueci nada que tivesse lido, escrito, ouvido, ou experimentado; e é por isso que me intriga o fato de ter esquecido minha infância tão completamente.

Tom levantou-se, caminhou até a janela e voltou a sentar-se. Restei- o observava com atenção e pôde perceber que seus músculos estavam retesados.

_ Por que eu me lembrava de tanta coisa, mas me esquecera daquilo? A menos, é dai-o, que houvesse me obrigado a varrer da memória todos aqueles fatos. Eu me recordava vagamente de que minha mãe era coruja e adorável, mas era tudo. E, então, tudo isso voltou de repente, quando você falou, agora a pouco. E um mistério.

Querendo esquecer aquilo, ele continuou a contar sua vida. Hes­ter respeitava suas confidências, evitava fazer perguntas. Ouviria somente aquilo que o marido lhe permitisse saber.

_ Mau também me ensinou medicina e me fez seu assistente, no transporte. Disse que poderia ser um bom doutor ou, melhor ainda, até mesmo um professor. Eis aí uma coisa para você pensar! O selvagem Tom Dilhorne, um professor! Então, quando eu a entrevistei para o cargo, eu provavelmente sabia mais que o resto do Conselho todo, porque eu lera muito, desde então. Um velho escriturário, deportado por furto, ensinou-me contabilidade e ou­tras matérias lidadas aos negócios, em retribuição por ajudá-lo, assim como ajudam a Mau. Ambos me passaram tantos ensinamentes que eu me salvei de ser incapaz de ganhar uma vida ho­nesta. Nunca revelei o que havia aprendido. Quando chegamos a Sídnei, Mau e eu nos separamos para seguir cada um seu caminho. Deixei que pensassem que Tom Dilhorne era um homem selvagem e ignorante. Isso me ajudou a tornar-me rico, posso afirmar. Muitas foram as vezes que meus rivais ou os exclusivos falaram, em minha presença, com seu jeito pedante, sem saber que eu entendia exa­tamente o que diziam. Citavam seus parcos conhecimentos de um latim vulgar e falavam francês na frente de um estúpido conde­nado, certos de que pareciam superiores.

Hester riu-se enlevada, aquele homem era esperto e era seu marido. Amava-o.

_ Eu não lhe contei tudo, meu amor, nem tudo o que fiz. Não é para seus ouvidos. Mesmo Mau não conhece toda a verdade, mas o pobre bastardo perdido sobreviveu, a que preço!

Tom havia terminado.

Hester prendeu-lhe a cabeça contra os seios, como se ele fosse seu bebê e embalou-o.

_ Meu pobre amor, oh, meu pobre amor.

A história do garoto perdido e de sua mãe traída a comovera, muito além das palavras. E pensar que ela julgava ter sofrido, mal sabia o que era o sofrimento.

A falta de autopiedade de Tom, a maneira crua como havia falado, haviam-na chocado ainda mais. Tinha lhe contado sua his­tória em urna voz neutra, como se falasse de outra pessoa. O que quer que pensasse acerca de seu passado, ela nunca poderia ima­ginar aquilo que ele lhe contara.

De sua parte, Tom jazia quieto, aninhado contra ela, quando ela o beijou e afagou gentilmente. Mostrava-se passivo, o amado, o receptador, e não o amante ao mesmo tempo feroz e carinhoso que a iniciara no prazer.

Ele deixam seu passado para trás, tornara-se Tom Dilhorne, rico e poderoso, que regia e controlava seu mundo de forma ab­soluta. Recordar era tornar-se um garoto indefeso de novo, ser controlado, não controlar. Havia conquistado seu lugar ao sol, po­rém a um preço terrível.

Contar a Hester, ambos sabiam, era, de urna forma estranha, dar o maior presente que podia a ela. Havia se rendido, entregue as profundezas da alma a outrem, embora, em Newgate, houvesse jurado nunca mais confiar em alguém.

Castigado, purificado, ele finalmente dormiu. Hester, apertando-o de encontro ao coração, ficou acordada até que o dia miou para trazê-los de volta ao presente. Ela não era mais o brinquedinho de Tom, era sua parceira de verdade, como seu Mentor havia prometido.

O que ele lhe contara explicava o que o impulsionara tão frene­ticamente em direção ao sucesso em tudo o que tocava. Acima de tudo, explicava a energia que lhe permitira encontrá-la, compreen­dê-la, transformar sua existência inteira, sem, ao mesmo tempo, es­quecer-se de qualquer detalhe de sua vida agitada. Ninguém, que o observasse, poderia adivinhar que esse homem se libertara do mundo do qual proviera. Nem imaginar quanto ele sofrem.

Ela, jamais, iria contar a alguém os segredos dele.

 

                                          CAPÍTULO XII

Tom estava em sua sala, na casa bancária, na ma­nhã do dia em que pedira a Jack Cameron que comparecesse aos escritórios, quando uma agitação, nos corredores, tirou-o de sua concentração no trabalho.

Mal teve tempo de se levantar quando a porta se abriu. Jack Cameron surgiu, com a carta de cobrança em unia das mãos, e, com a outra, arrastava Joseph Smith pela orelha.

_ Vou dar uma lição a esse seu lacaio insolente, Dilhorne.

_ Eu simplesmente pedi a ele que esperasse até que eu veri­ficasse se o senhor estava livre para atendê-lo, mestre Dilhorne.

_ Ex-condenados estão sempre livres para me receber, quando eu preciso vê-los _ debochou Cameron.

_ Está enganado _ retrucou Tom suavemente. _ Sou eu que preciso vê-lo. _ Estava perfeitamente controlado agora, já que Hester não estava envolvida no problema. _ Se não soltar o si-. Smith ime­diatamente, temo que eu tenha que lhe ensinar como se comportar. Parece até que se esqueceu da ultima lição que lhe dei.

Jack libertou Smith com um safanão.

_ Ora, muito bem, Dilhorne, vou deixar esse seu miserável criado continuar com sua escrita, novamente.

_ Eu creio _ continuou Dilhorne, com uma voz mais macia que a seda _ que você acaba de acrescentar mais dois por cento de juros na taxa que vou exigir para o pagamento de seus débitos. O valor servirá para compensar o sr. Smith por ter sido maltratado desta forma.

_ Dois por cento, é? _ caçoou Jack, observando Smith afas­tar-se. _ Que significa isso? E o que é esta intimação que me enviou? Devo dizer que estou atônito que você saiba escrever. _ Jogou a carta de Tom sobre a mesa.

_ Temos alguns assuntos de negócio a resolver _ retrucou Di­lhorne, ignorando a insolência de Jack, mas notando, com um certo desprezo, que o oficial evitava entrar em confrontação física com ele.

_ Eu não tinha idéia que pudesse haver quaisquer assuntos de negócios entre mim e você, Dilhorne. Sempre fui cuidadoso em evitar contatos com condenados, na medida do possível.

_ Ex-condenado é o termo correto, Jack _ foi a resposta seca de Tom _ , e se imagina que não tem negócios comigo, está tão enganado como quando resolveu difamar minha esposa.

A raiva de Jack cresceu, a essas palavras. Contudo, refreou-se, cauteloso, ao se confrontar com o oponente.

_ Capitão Cameron para a escória como você, Dilhorne.

_ Certo, capitão Cameron _ concordou Tom, em seu sotaque exasperadamente educado. _ Muito bem, capitão Cameron, devo lhe dizer que comprei todas suas dividas. Estão na escrivaninha, aqui em sua frente, capitão. E eu pediria ao capitão Cameron que concorde com três condições, se puder fazer a gentileza de escutá-las.

_ Maldito, pare de repetir meu nome, seu biltre! _ rosnou Jack.

_ Tive a impressão de que você me ordenou que usasse seu nome, capitão Cameron, mas, se me pede tão educadamente que não o faça, então ficarei muito feliz em atendê-lo.

_ Que condições são essas, Dilhorne? Como ousa falar em con­dições, seu maldito renegado?

_ Irei acrescentar mais um por cento por abuso _ disse Tom, calmamente _ , e você irá conversar comigo a respeito das condi­ções porque, se não o fizer, chamarei a polícia e informarei ao coronel O’Connel1 da transação.

Jack estava a ponto de espumar de ódio.

_ Vamos direto ao ponto _ concordou, finalmente, com um suspiro de raiva.

_ Temo que tenha se enganado, de novo. Há três pontos que deve considerar. Primeiro, eu comprei suas dívidas e, agora, tenho era mãos todas as promissórias que você andou espalhando por Sídnei. Segundo, cobrarei uma porcentagem a ser paga no primeiro dia de cada trimestre, cujo valor Smith irá informá-lo, daqui a pouco, e você não irá atacá-lo novamente, ou todos os papéis serão imediatamente enviados a O’Connell. Terceiro, qualquer inadimplência de sua parte, ou interferência dirigida a mim e aos meus, e, novamente, mandarei chamar a polícia. _ Fez uma pausa significativa. _ Está tudo per­feitamente claro, capitão Cameron... senhor?

A palavra “senhor» foi dita com tal estudada insolência que era, em si, um insulto, não um tratamento respeitoso.

Jack afundou na poltrona do lado oposto à mesa de Tom e fitou, mudo, o rosto sorridente do homem a sua frente. Então, com a voz pesada de ódio, esbravejou:

_Por Deus, seu maldito condenado, eu vou pegá-lo, espere para ver.

_Faça isso, por favor. Aqui e agora, se quiser. Devo escolher as luxas de boxe já, ou mais tarde? Fique certo de que eu nunca darei motivos para um duelo, embora me sinta tentado a matá-lo, e, assim, por suas regras ridículas, a escolha será minha, sempre minha.

_Por Deus, Dilhorne _ gritou Jack desesperado. _ Nunca pensei que me veria arruinado, em um buraco do inferno como Sídnei, por um bandido como você!

_Não mesmo? Então, você deveria ter administrado melhor seus negócios. Mas... você não me perguntou...

_Que outra resposta posso lhe dar, que não seja sim? Você me pegou pelo pescoço. Porém, ainda vou aprontar uma para você, Dilhorne, ah... se vou.

Tom fitou-o com um sorriso mortal no rosto. Hester mal o re­conheceria, nesse momento.

_Acho-o um sujeito extremamente aborrecido, Cameron _ disse, por fim. _ Seu vocabulário é limitado. Tem o encanto de uma prostituta de quinze anos, e sua falta de coragem faz a des­graça da Armada que jurou servir. Não tem estômago para me desafiar para um duelo, por mais que eu o insulte. Se não fosse pelo lucro que sua falta de habilidade nos negócios pode me pro­porcionar, eu não iria me incomodar em chamá-lo.

_Por Deus, Dilhorne, vou fazer você pagar por isso.

_Engano seu. E você quem vai me pagar. Agora, retire-se daqui. Tenho trabalho a fazer. _ Sentou-se, apanhou a caneta de pena de sobre a mesa e pôs-se a escrever.

Jack encarou-o, a cor do rosto mudando alternadamente de lívida a escarlate, a boca se remordendo. Baixou os olhos para os pés e levantou-se, saindo da sala e batendo a porta com violêi~cia.

_Ora, acho que passei da conta _ murmurou Tom para si mesmo. _ Mas o idiota é um alvo fácil. _ Deu de ombros e tocou a sineta, chamando por Smith.

 

Vários dias se passaram. Tom e Hester conversavam, progra­mando um passeio, na noite em que, não sabiam, era a última de felicidade sem sombras.

Como sempre, falavam de uni piquenique. Ultimamente, torna­ra-se inseguro sair pelos campos. Recentemente, em Sídnei, houvera uma fuga em massa de condenados, e um grupo de bandidos vinha atacando quem quer que se aventurasse a ir para perto da mata.

Tom, naturalmente, pensou em uma variação de suas costu­meiras excursões. Decidiu que o bosque em sua propriedade era seguro o bastante para que ele e Hester acampassem ali, com comida e bebida, tapetes, travesseiros.., e pistolas.

Assim fizeram. Hester colocou as roupas masculinas que usava para cavalgar: uma camisa de seda de gola aberta, calças pretas e um boné. Tom, igualmente, vestiu um traje de montaria, sem, contudo, colocar o boné. Instalaram-se em uma clareira e, depois de comerem até se fartar, decidiram atirar em alvos, em uma competição imaginada por Tom. O vencedor teria que tomar dois drinques e o perdedor um, ao final de cada rodada. Era mais divertido que simplesmente beber o vinho com a refeição. Ele não teve que se esforçar para deixar que Hester ganhasse algumas vezes. A pontaria dela era quase tão boa quanto a dele.

As risadas de ambos ecoavam pela noite enluarada, e acertar os disparos era cada vez mais difícil, conforme o jogo prosseguia, até que Tom observou que continuar poderia se tornar perigoso, mais para eles mesmos que para o alvo.

_Além disso, duvido que eu queira fazer amor com um garoto _ comentou, olhando para a calça de Hester, quando a deitou no tapete sob as árvores.

_Posso perceber, sr. Dilhorne, que isso talvez possa lhe dar algum problema. Suponha que eu as tire, será que ajudaria?

_Não se incomode, sra. Dilhorne, deixe que eu faço isso.

_Nesse caso, insisto em fazer o mesmo com a sua.

Amaram-se com paixão e volúpia e adormeceram nos braços um do outro, sem que Hester soubesse que os empregados de Tom patrulhavam os limites da Villa, para que o patrão e a esposa pudessem desfrutar de seu prazer em segurança.

Uma precaução mais sábia do que poderia imaginar, pois Tom havia arranjado um inimigo cujo ódio era implacável. O terrível sentimento que se apossara de Jack Cameron era mais amargo que o fel.

Ele havia sido humilhado, em público e em particular, por Dilhorne, e tinha sido brutalmente machucado depois de uma discussão que provocam risos por toda a Sídnei A mais grave de todas as humilhações era o apelido de Jack Guinéu, por causa da moeda que Tom lhe jogam, na casa de jogos de Madame Phoebe, e o nome pegara.

Ao reclamar com Pat Ramsey sobre isso, um oficial que detes­tava Jack por julgar que ele era a desonra do Regimento, o militar o fitara com frieza, dizendo, secamente:

_ Você deveria ficar feliz de não ser chamado de coisa pior.

Jack começara a xingar e fazer ameaças tais que Pat, antes de se afastar, exclamara:

_ Nunca mais vou jogar nem brigar com você, Jack, é minha palavra final.

Era tudo culpa de Dilhorne, e a entrevista que tivera com ele, acerca das dívidas, tinha sido a gota de água. Na verdade, não, pois a verdadeira gota de água tinha sido Hester Dilhorne, e o impacto que produzira nele no baile.

Tom tinha razão ao julgar que passara dos limites na entrevista com Jack, pois a maneira com que o tratara, somada à obsessão que passara a nutrir por Hester, tinha se apossado do capitão de uma forma próxima à insanidade. Felizmente para ele, Tom ainda não se dera conta da paixão que a esposa despertara em um homem já bastante abalado com outros problemas.

Antes de tê-la visto no baile do governador, Jack havia se gabado de que todos os rabos-de-saia eram iguais.

_ Não há nada de diferente no vão das pernas _ confidenciara, com grosseria, aos camaradas. _ E tudo a mesma coisa, no escuro, tanto faz!

Havia caçoado de Frank Wright por mimar Lucy demais e ali estava ele, como um bobo quer a lua, desejando uma mulher que não podia ter. E, para tornar as coisas ainda piores, aquela mulher era a esposa de Dilhorne.

Jack não conseguia tirar da cabeça, por mais que tentasse, a lembrança do rosto de Hester, quando ela o fitara por sobre o leque, a graciosidade com que se afastara dele e colocara a mão delicada no braço musculoso daquele bandido.

Seguia os rastros de Tom, pela cidade, ardendo por vingança, mas também andava sorrateiramente atrás de Hester, queimando de uma vontade que não sabia bem qual era, pois ela lhe parecia inacessível. A idéia de levá-la para a cama era, para ele, um sacrilégio. E pensar nela, nos braços daquele bruto do Dilhorne, fazia-o sentir vertigens.

Essas emoções eram tão novas, que ele mal sabia como agir. O ciúme sempre fora, para ele, uma piada. Agora, consumia-se de ciúme de qualquer um, mesmo que apenas falasse com ela, pois nem isso podia fazer.

Um dia, quando Hester saía da carruagem e caminhava pela rua, depois de visitar amigos, ele a viu.

Jack prendeu o fôlego. Emparelhou o passo com ela. Nada iria impedi-lo de abordá-la. Talvez isso suavizasse a estranha dor que sentia, sempre que pensava nela, o que, para a própria surpresa, era tão freqüente.

Cumprimentou-a, com uma profunda reverência.

_Sra. Dilhorne, estou a seus serviços, agora e sempre.

Hester encarou-o. Não tinha nada, nada mesmo, a tratar com ele.

_Por favor, capitão Cameron, deixe-me passar _ foi tudo que conseguiu dizer.

_Não, até que tenha lhe apresentado minhas mais humildes desculpas.

_Acredito que tenha lhe deixado claro, antes, que se dirige a mim por sua conta e risco.

_Mas eu desejo realmente retirar tudo que eu possa ter dito de você, no passado. Você é incomparável, Hester, se é que posso chamá-la assim. Não há ninguém como você.

_Dispenso seus elogios, senhor, não vou agradecê-lo por isso.

_Será que o homem enlouquecera?, pensou.

Jack estava desesperado por tocá-la. Estendeu a mão. Ela recuou.

_Devia envergonhar-se, senhor, por tentar me deter. De novo, eu peço, deixe-me passar.

Ele não iria resistir.

_Queria ter olhado você mais de perto, antes que tivesse se casado com aquele bandido.

_Você olhou, capitão Cameron, mas não gostou do que viu. Se não deixar que eu passe, vou ter que informar meu marido desse seu comportamento inadmissível. Vai arcar com as conse­qüências, se eu o fizer.

O    rosto de Jack contorceu-se de desgosto.

_Como posso convencê-la de que lamento meu comportamento anterior, como persuadi-la a conversar gentilmente comigo, nem que seja por um instante?

Hester encarou-o com firmeza.

_Se me permitir continuar meu caminho, talvez eu possa

enxergá-lo de forma mais gentil. Pare de me importunar com suas atenções indesejadas. Por favor, conscientize-se de que, mesmo que eu desejasse conversar com você, o que não quero, meu marido nunca o permitiria. Ele iria fazer tudo para castigá-lo.

Jack deu um passo atrás.

_ Não vou mais detê-la, porém, acredite-me, minha admiração por sua pessoa e seu espírito não conhece limites.

Hester fechou os olhos, preferindo não vê-lo. Não podia imaginar o que Tom faria ou diria, se soubesse daquele encontro.

Jack ficou a observá-la até que ela desapareceu, virando a esquina. Quando se livrasse de Dilhorne, ela iria ouvi-lo, tinha certeza disso.

 

Uma manhã, ao acordar, ao invés de se levantar alegre para saudar o novo dia, Hester sentou-se na cama com uma sensação estranha de mal-estar. Sentia-se doente. Quando, finalmente, conseguiu ficar de pé, foi tomada de náuseas. A princípio, pensou que comera algum alimento estragado, algo muito comum em Sídnei, mas a sensação persistiu. Com o decorrer da semana, percebeu que o mal-estar a atacava todas as manhãs, até que culminou em vômitos incontroláveis.

Não disse nada a Tom, que invariavelmente se levantava antes dela. Um dia, porém, quando se sentia horrivelmente doente, ele a encarou com uma atenção cuidadosa. Observou-a comer pouquíssimo, mas nada comentou. Na manhã seguinte, depois de sair, ele voltou e subiu correndo a escada. Encontrou-a na cama, o rosto empapado de suor.

Ele molhou uma toalha, sentou-se ao lado dela e pôs-se a re­frescar-lhe a testa, gentilmente.

_ Há quanto tempo isso está acontecendo?

_ Todas as manhãs, já faz uma semana. Parece que passa, durante o dia _ disse Hester, em uma voz fraca. _ Eu esperava melhorar e achei que não devia preocupá-lo.

_ Tem idéia do que se passa com você, Hester?

_ Um problema no estômago, eu acho.

_ Pode-se dizer que sim. _ Tom estava sorrindo. _ Mas eu acho que você está grávida. Há algum outro indício que possa ser isso?

Ela sentou-se, agitada.

_ Oh, sim. Minha menstruação está atrasada, mas já atrasou muitas outras vezes, antes, como você sabe, e não era por causa disso.

_ Mas então, você estava se recuperando de uma grave des­nutrição, que sempre afeta a menstruação de uma mulher. E,

antes, você nunca amanheceu adoentada. Se isso continuar e as regras não voltarem, precisamos consultar Alan. Porém, não tenho dúvidas de que você está esperando um bebê.

Hester fitou-o ansiosa.

_ Você acha, Tom?

Ele a abraçou contra o peito.

_ Oh, Hester, eu nunca lhe disse, mas esse era meu mais fervoroso desejo, que nós tivéssemos um filho. Espero que sinta o mesmo, mas, ao me lembrar de como você se comportava com o filhinho de Sarah e as crianças da escola, nem é preciso perguntar.

Ela sorriu, tomada de felicidade.

_ E meu maior desejo também, e espero que você tenha razão. Que estranho... Como você poderia saber, e eu não?

_ Bem, em alguns assuntos, sua vida .foi muito reservada. Enquanto a minha... _ Ele sorriu, malicioso. _ Há muito pouco que eu não saiba sobre homens e mulheres. Alan, com certeza, deu-me mais conhecimentos enquanto eu o ajudava, no transporte.

_ Há alguma coisa que eu possa tomar para melhorar o mal-estar?

_ Eu me recordo de que Alan prescrevia sopa de aveia e uma dieta leve, pela manhã, antes de a paciente se levantar, e, de agora em diante, é isso que vamos fazer.

 

O doutor Kerr confirmou que Hester estava grávida, e a atitude de Tom, diante disso, foi a que se esperava. Tornou-se superpro­tetor e, ao mesmo tempo, ríspido. Disse a Hester, abruptamente, que embora se sentisse adoentada, ela devia levar uma vida ativa, na medida do possível, não era uma inválida.

Foi encorajado a isso por Alan, defensor de tratamentos dife­renciados na gravidez e no parto, insistindo em uma dieta saudável para evitar complicações.

Hester fez apenas uma exigência aos dois. Quando o nenê nas­cesse, queria ter certeza de que Tom estaria por perto.

_ Vai me prometer isso, não vai, sr. Dilhorne? E seu filho, tanto quanto meu.

_ Prometo, sra. D., farei tudo que a torne feliz. Isso a deixará contente?

Para grande alívio de Tom, logo os mal-estares de Hester diminuíram, e sua energia voltou. Longe de prejudicar-lhe a aparência, a gravidez deixou-a ainda mais esplêndida, conferindo-lhe uma nova radiância que mais de uma pessoa de seu circulo de amizade notou.

Uma noite, deitada na cama, sem conseguir dormir, pois a gravidez lhe tornam difícil conciliar o sono, Hester ficou a pensar na delicadeza de Tom e na consideração com que a tratava. Oh, ele ainda era o homem duro e maquiavélico que toda Sidnei conhecia, e ela não tinha ilusões quanto a isso. O que importava era o Tom que somente ela conhecia: uni homem complexo, multífacetado, que a manipulam para levá-la ao casamento, pelo que ela só tinha a agradecer.

Também o compreendia cada vez mais. Ultimamente, tinha certeza, alguma coisa o vinha preocupando. Ao contrário de sua prática usual, ele não lhe contara o que era. Agora, estava come­çando a ficar preocupada.

Tom mexeu-se na cama e rolou para o lado dela, abrindo os olhos. Puxou-a para perto.

_ Ainda acordada, mulher? Precisa dormir. Há algo errado?

_ Não _ disse Hester, sem disposição para questioná-lo sobre possíveis problemas. _ E estranho, quando eu o conheci e, depois, quando me casei com você, parecia que precisava dormir bastante. Agora, não consigo.

_ Não é estranho _ ele murmurou, recusando-se a levar adian­te a conversa. Rodeou-a com o braço e aconchegou-a junto ao peito. Ela se aninhou e, logo, adormeceu.

 

Jack Cameron vagava por Sídnei, carregando o ódio no peito. Tinha avançado pouco em seus planos para vingar-se de Dilhorne. A raiva o consumia, crescendo mais forte a cada dia, alimentada pelo fato de estar mais difícil pagar àquele condenado os juros da dívida.

Depois do encontro que tivera com Hester, encontrar-se com Di­lhorne caminhando ou de carruagem, com ela a seu lado, ouvir os comentários de seus sucessos nos negócios, saber que um de seus cavalos vinha vencendo as corridas com regularidade, e que ele mar­cara uni gol em seu acordo com os baleeiros ianques, tudo servia para inflamá-lo ainda mais. A noticia de que o governador estava prestes a nomeá-lo juiz foi o bastante para deixá-lo enlouquecido.

Para coroar tudo, estivera em casa de Lucy Wright, unia tarde, e ouvira algo que acabara por destruir seus últimos vestígios de sanidade. Ter ido até lá mostrava quanto ele havia caído. O jovem Wright, apiedado do cão desprezado em que ele se tornara, con­vidara-o para tomar um chá, um convite que o antigo Cameron teria desprezado veementemente. O homem marginalizado em que ele se transformara aceitara o oferecimento com sofreguidão.

Conversas fúteis rolavam, envolvendo pessoas menores que Jack normalmente evitava. Estava a ponto de ir embora quando Lucy, vendo que ele estava deslocado e sozinho, estendeu-lhe uma xícara de chá. Mal tocara na xícara quando uma mulher, ao lado, disse, em voz alta o bastante para ser ouvida por todos:

_ Já souberam da ultima? Hester Dilhorne está grávida.

Antes que alguém pudesse fazer qualquer comentário, Jack sol­tou um grito estrangulado. Esmagou a xícara nas mãos, escaldan­do-se com o chá e derrubando o liquido fervente e os pedaços da preciosa porcelana de Lucy no caro tapete. Foi uma comoção gemi.

Seguiu-se uma correria para estancar o corte profundo na mão de Jack, passar ungüento nas queimaduras, envolvê-las em ata­duras, chamar a criada para recolher os pedaços da porcelana, secar o tapete. O comportamento de Cameron era inusitado. Ape­nas um espectador sarcástico, Pat Ranisey, o último convidado a chegar e a presenciar o espetáculo proporcionado por Jack Guinéu no chá da tarde, ergueu as sobrancelhas, e disse: “Ora, ora!”, para ninguém em particular. Deduzira tudo.

Jack sentou-se atordoado, com todas as mulheres falando ao mesmo tempo em torno dele. Era objeto de mais simpatia do que já recebera durante anos. Todos presumiram que Lucy havia der­ramado o chá em sua mão e que Jack sofrera um acidente. Nin­guém, além de Pat Ramsey, poderia adivinhar o que realmente acontecera. Ao saber da gravidez de Hester, Jack sofrera um abalo mortal que o empurrara para a loucura completa.

Grávida! Daquele homem nojento! Jack voltou para o quartel, acalentando a mão enfaixada e o ódio, recordando-se de algo que sentira e que fazia da simples idéia de Hester grávida algo ainda mais obsceno. Acontecera algumas semanas antes, quando seu inferno particular tinha se tornado insuportável.

Naquele dia, não sabia o que havia de errado com ele. Na noite anterior, quando fora para a cama com uma das garotas de Ma­dame Phoebe, tentando esquecer que era um infeliz, o rosto de Hester havia se erguido diante dele e arruinara seu prazer. Mesmo Ramsey, aquele vira-casacas que surpreendera várias vezes con­versando com Dilhorne, havia tentado ser gentil com ele, porém um cavalheiro devia fazer coisa melhor do que se relacionar com uni bandido.

A desolação o acompanhou enquanto selava o cavalo e saía cavalgando, sozinho, em direção do bosque. Tentou não pensar, concentrar-se no caminho, mas o sol e a paisagem não significavam nada para ele, e sua mente ficou a remoer as ruínas de sua vida.

Chegou a uma grande fieira de árvores e a um pasto verdejante e sombreado, e penetrou no bosque para escapar do sol que bri­lhava, indiferente a seu estado de espírito. Apeou e sentou-se lá, por algum tempo, escondido da vista, até que, de repente, percebeu que tinha companhia.

A pouca distância dali, para além de uma larga abertura entre os arbustos, dois cavaleiros emergiram de outro bosque. Um deles era o grosseirão inominável, Dilhorne, vestido de um jeito estranho, camisa de seda branca, calça larga de seda negra enfiada em belas botas de cavalgar.

O outro cavaleiro, e o coração de Jack saltou com uma alegria selvagem, era um garoto! Um garoto usando uma roupa de mon­taria em preto e branco e um quepe branco que ocultava seu rosto.

Que história para contar a Sídnei! Tom Dilhorne, sozinho no bosque, na companhia de um garoto!

Fascinado, Jack observou-os desmontar. Dilhorne primeiro, que, então, ajudou o garoto a descer do cavalo. Ficaram, por um ins­tante, muito próximos, conversando, mas não ele conseguia ouvir o que diziam, estavam muito longe. A atitude era estranha, para Jack, afetuosa demais. Então, Dilhorne gostava de garotos. Isso seria uma forma de desmoralizá-lo, perante a sociedade.

Dilhorne enfiou a mão na bolsa da sela, pegou alguma coisa e, depois, ele e o garoto caminharam em direção a unia clareira. Jack viu que era uma bola que estavam jogando, a curta distância, enquanto caminhavam.

Tom tinha levado a bela para casa alguns dias antes, depois de ter visto um jogo de críquete entre os oficiais do Regimento e outros homens, escolhidos entre os funcionários do Governo e quem mais quisesse jogar.

Quando o par chegou ao centro da clareira, os dois ficaram frente a frente e começaram a jogar a bola um para o outro. Se a bola cala, cruzavam a distância, apanhavam-na e atiravam de novo.

Havia algo estranho na maneira de o garoto apanhar e jogar a bola, embora fosse habilidoso. A princípio, Dilhorne jogava de forma que fosse fácil para o garoto pegar e, então, de repente, os arremessos tornaram-se mais fortes e mais difíceis, até que atirou uma bola baixa, ligeiramente desviada para o lado.

O garoto mergulhou para apanhá-la e, quando conseguiu, er­gueu o punho, triunfante para o ar. Seu boné caiu, e Jack percebeu que não poderia dizer nada em Sídnei. O garoto era Hester Dilhorne!

As risadas e gritos invadiam seu esconderijo, de onde observava o jogo, contorcendo-se nas agonias do ciúme. E a brincadeira acabou quando Hester chegou ao limite de suas forças. Dilhorne jogou a bola acima de sua cabeça e, tentando apanhá-la, ela caiu de costas no meio dos arbustos.

Dilhorne correu e ergueu-a, abraçando-a e beijando-a. Feliz­mente, para a sanidade de Jack, o jogo acabara.

Os dois ficaram enlaçados por alguns instantes. Então, Dilhorne levou-a até o cavalo, ajudou-a a montar, e ela lhe beijou a mão, agradecendo. Afastaram-se, cavalgando, passando perto de onde Jack estava escondido, e a última coisa que ele ouviu foi a voz de Hester, gritando:

_ Vamos apostar uma corrida até em casa!

Jack nunca soube por quanto tempo ficou ali, sentado. Estava lavado de suor e experimentava emoções que nunca sentira. Por que um demônio como aquele tinha um tesouro assim? Como podia ser tão descuidado com ela? O bandido rira quando a pobre cria­turinha caíra nos arbustos. Ele, Jack, cuidaria dela muito melhor. Onde estava Deus, que o deixara quase arruinado e permitia que Tom exibisse sua fortuna por Sídnei, cavalgando cavalos de raça e proclamando seu preço?

Os sentimentos para com Hester, que haviam sido despertados na noite do baile, mostravam-se ainda mais fortes. Suas lembran­ças fixaram-se na graça com que ela corria e pulava para agarrar a bola. Aquele m~ld4o deveria ter mais cuidado, não a deixar arriscar-se assim.

Jack sabia que estava sendo irracional. Não conseguia distinguir se desejava Hester por si mesma ou porque ela era a esposa de Dilhorne. Sabia apenas que, desde a noite do baile, não podia descansar em paz.

Agora, aquela mulher graciosa estava com a barriga pesada por causa dos instintos animalescos de Dilhorne. Não podia su­portar. Daria um fim àquele maldito e mataria dois coelhos com uma só cajadada: vingar-se-ia do homem que o humilhara, e sa­tisfaria o desejo de ter Hester para si. Certamente, com Dilhorne fora do caminho, ela iria olhar com mais gentileza para alguém que a amava com tanto carinho.

Consumido pelo ódio, Jack cavalgara de volta a Sidnei e se pusera a observar cada movimento do inimigo, a partir daquele dia.

Descobriu que sua presa costumava ir às pedreiras toda semana, à mesma hora da tarde. Na volta para casa, passava por um bom lugar, próprio para uma emboscada.

Pegou seu cavalo, o mosquete e a pistola. Percorreu a trilha, desmontou, e se postou na sombra de uma moita. Ali, quieto, esperando por sua vítima, seu tormento aumentou. Isolado, na­quele lugar ermo e desconhecido, viu que perseguia um homem que, na Inglaterra, dificilmente teria conhecido, um homem que se tornara, um símbolo da ruína na qual sua vida se tornara.

A aparição de Dilhorne trouxe a Jack uni alívio quase sensual, em sua intensidade. Ele ergueu o mosquete, mirou cuidadosamente e desferiu o tiro. Acabaria com o atrevido de unia vez por todas.

O chapéu de Tom voou de sua cabeça. O cavalo empinou com o estampido do tiro. Com o instinto que raramente o abandonava, Dilhorne pulou do flanco do animal e caiu entre os arbustos, ficando imóvel na esperança de enganar seu atacante. Com sorte, ele po­deria sair de cena, pensando que o alvo estava morto, ou poderia se aproximar para terminar o que havia começado, dando a Tom a oportunidade de pegá-lo.

No silêncio que se seguiu, Jack levantou-se, empunhou sua pistola, e ficou em dúvida. Iria embora ou acabaria de vez com a vítima? Mesmo com a loucura crescente, a precaução aconselhou-o a se afastar.

Não, pensou, é melhor deixá-lo lá. Se está morto, bem-feito, se não está, é tolice me envolver com um sujeito cheio de artimanhas, que certamente anda armado e pode estar esperando por mim. Se não o matei, fica para outro dia.

Não podia confessar a verdade a si mesmo de que seu medo de Dilhorne era quase tão grande quanto seu ódio.

Tom, deitado de costas, o braço direito estendido, havia apa­nhado a pistola do cinto assim que caíra e estava pronto para enfrentar o inimigo, como Jack havia suspeitado. Ouviu o bater de cascos se afastando e esperou algum tempo, antes de se levantar.

De rosto pensativo, foi em busca do cavalo que se metera em meio aos arbustos e agora pastava sossegadamente. Tom não tinha dúvidas de quem havia desferido o tiro e que não se tratava de acidente. Só podia ser Jack Cameron. Também não tinha dúvidas de que precisava cuidar da retaguarda. Cameron com certeza iria atacá-lo novamente, assim que descobrisse que sua primeira tentativa havia falhado.

Acima de tudo, Hester não devia descobrir o que estava acon­tecendo por uma nova razão, razão essa que começava a preocu­pá-lo. Sua saúde e energia, que haviam retornado depois que os enjôos matinais haviam cessado, haviam desaparecido de novo, e ele não queria que nada a perturbasse.

Ao chegar em casa, não havia nada em seu comportamento que traísse que ele fora alvo de um ataque assassino, exceto que Hester, sensível a tudo que dizia respeito a ele, percebeu que algo estava errado. O quê, não sabia. Sabiamente, calou-se.

 

Jack logo descobriu que não avançara muito em sua vingança e tentou afogar o desapontamento na bebida. Devia haver, quem sabe, maneiras mais seguras de acabar com Dilhorne do que matá-­lo com as próprias mãos. Arruiná-lo poderia ser um bom ponto de partida. Tinha amigos nas Pedras, que poderiam fazer-lhe um favor, particularmente se ele perguntasse se queriam ajudá-lo a pilhar os estoques de bebida do Regimento, de novo. Dificilmente usaria o dinheiro que o saque poderia trazer. De um jeito ou de outro, ele iria parar nas mãos daquele infeliz.

 

                                         CAPÍTULO XIII

Hester sabia que algo estava aborrecendo Tom.

Tinham estado jogando xadrez, as atividades físicas haviam sido interrompidas, agora que a gravidez de Hester estava adiantada. Seu ventre estava bastante grande, e o peso do bebê parecia ser demais para ela carregar. Mesmo andar se tornam difícil.

Nada de folias ao ar livre, nem excursões a lugares estranhos, nem cavalgar até as pedreiras, ou ir de carruagem até os escritórios em Sidnei, onde a visão da delicada ara. Dilhorne seguindo pelas mãos do marido tinha se tomado lugar comum. Hester nunca reclamava de sua vida reclusa, o estoicismo que aprendem durante a pobreza ainda a sustinha.

Tom voltara sua criatividade para desenvolver jogos que não exigiam esforço físico. Jogavam cartas, ele lhe mostrava os truques das mágicas e explicava que tudo dependia de se desviar o foco de atenção. Durante a noite, ela lia para ele. Tom continuava a consultá-la em assuntos de negócios, mesmo quando ela não podia mais acompanhá-lo às reuniões.

_ Você amadureceu, sra. Dilhorne _ dissera a ela uma tarde.

_ Não quero que se restrinja ao papel de esposa. E minha sócia, agora, e precisa lidar com os negócios. Pode cuidar de nosso filho, mas isso não pode ser o foco de sua vida, pois dia virá que a criança estará crescida e, pense, o que faremos, então?

Só Tom, pensou Hester, divertida, poderia contemplar a esposa, que nem mesmo dera à luz ainda, e decidir com firmeza o que ele, ela, e o filho ainda não nascido, fariam, vinte anos depois.

Recentemente, suas lições sobre negócios pareciam ter se tor­nado mais urgentes. Certa vez, ela o ouvira dizendo a Joseph Smith:

_ Por Deus, homem, se algo acontecer a mim, não quero que ela se torne presa de gente sem escrúpulos, como tantas viúvas ignorantes que conheço.

Seria a possibilidade de uma morte prematura que o preocu­pava? E se assim fosse, por quê? Muitas vezes, enquanto bordava, pois suas mãos eram tão habilidosas como sua mente, ela o ob­servava sentado a sua frente e se vira tentada a perguntar o que o aborrecia. O que a impedira era que ele, provavelmente, con­tar-lhe-ia, no tempo certo. Sempre agira assim, anteriormente.

Seu silêncio fez com que ele a encarasse.

_Cansada, sra. Dilhorne?

_ Não mais que o usual.

A intuição de Tom não o enganava. Ele tinha certeza de que Hester havia detectado uma mudança em seu comportamento des­de que Jack se transformara em uma ameaça, mas não queria sobrecarregá-la com aquele problema.

Ao invés disso, murmurou:

_Hora de mais um pouco de Gibbon?

Hester sorriu e apanhou o pesado livro que estava sobre a mesa. Começam a ler para ele O Declínio e Queda do Império Romano, e Tom descobrira que o cinismo de Gibbon combinava com o seu próprio. Estavam se enfronhando no mundo dos Antoninos, onde outros ho­mens e mulheres, como Dilhorne e ela, haviam vivido em fronteiras para que outros pudessem viver no conforto.

 

Mesmo que Tom estivesse esperando por um outro ataque, foi surpreendido quando aconteceu. Somente seus refinados instintos o salvaram. Custa livrar-se do falante Will French naquela noite e dirigia-se apressado para casa. Sentia-se cada vez menos inclinado a deixar Hester sozinha, embora tivesse postado um empregado armado, Miller, no hail da Villa, para ficar como cão de guarda durante sua ausência.

Estava escuro nas ruas sem pavimentação que se afastavam do centro de Sídnei, e, à noite, ele sempre andava com cuidado. Foi somente no ultimo instante que pressentiu seus atacantes. Nunca soube quantos eram, possivelmente dois ou três, e apenas por imensa sorte ele evitou um golpe de cassetete que poderia ser fatal, se o atingisse em cheio, na cabeça. Mesmo assim, sentiu a pancada. Outro soco fez com que cambaleasse. Mais outro, e sentir tudo rodar.

Meio atordoado, mas com a determinação instintiva de sobre­viver, ele esquivou-se de outro ataque como o brigador de rua que um dia fora, e usou alguns dos golpes que havia aprendido com os japoneses que viviam em Sídnei.

Com o lado da mão espalmada, ele golpeou no pescoço o homem que empunhava o cassetete, de forma tão dura que o sujeito caiu, incapaz de gritar, inconsciente, no chão. Então, com a ponta da bota, aplicou aia chute no sexo do segundo atacante, com tamanha força, que o bandido soltou aia berro de agonia e caiu amontoado.

Tom, quase inconsciente, caiu de costas contra a parede de uma casa atrás de si e deixou-se escorregar até ficar sentado, no solo. O terceiro homem, se é que havia um terceiro, havia sumido ao ouvir o barulho de alguns noctívagos aproximando-se. A nata do 730 Regimento voltava da casa de Madame Phoebe, para o quartel, encharcada de vinho e cantando.

Um dos oficiais o viu, recostado contra a parede e parecendo desmaiado.

_ Por Deus, é Dilhorne! _ exclamou o jovem Parker. _ Acha que está bêbado?

_ Seria um espanto _ retrucou Pat Ramsey, inclinando-se e encontrando o olhar irônico de Tom.

_ Bêbado não, fui atacado _ resmungou Tom. _ Ajude-me a levantar, Ramsey.

_ Minha nossa, há outro aqui _ disse o major Menzies, apon­tando o dedo para o bandido cuja laringe Tom havia praticamente arrebentado.

_ Deviam ser dois, pelo menos _ murmurou Tom, cambaleando entre os braços de Ramsey.

_ Dois! _ berrou Pat. _ Onde está o outro?

Osborne encontrou o segundó homem, e Menzies examinou-o, detidamente.

_ Ele quase matou os dois _ rosnou Menzies, levantando-se.

_ Há um ali que vai demorar a falar de novo e, pelo jeito, o outro terá sorte se conseguir dar prazer a alguma garota. Com o que os atingiu, Dilhorne? Com uma pedra?

Parker havia encontrado o cassetete, e Pat havia carregado Tom até sentá-lo em um muro baixo.

_ Eles machucaram sua cabeça e seu ombro esquerdo _ afir­mou, depois de examiná-lo. _ Aqui, Osborne, venha segurá-lo para mim. Quero ver exatamente o que Dilhorne fez com eles.

Sob o olhar curioso dos oficiais mais novos, Pat examinou as vítimas de Tom, antes de voltar e perguntar:

_ Só para satisfazer minha curiosidade, Dilhorne, com o quê, exatamente, você os a tingiu?

Tom olhou para Pat, ainda com a vista turvada. Tinha uma ligeira concussão, um dos olhos estava se fechando, e os hematomas começavam a arroxear seu rosto.

_ Com a mão... quase a quebrei _ resmungou. _ E com o pé. _ Apontou para a bota.

Osborne sugeriu, cheio de cuidados.

_ Vamos levá-lo para a casa de Madame Phoebe.

_ Não! _ exclamou Tom, a voz quase no tom normal. _ Quero ir para casa. Hester vai ficar preocupada. O coche está na esquina, vou dirigindo.

_ Ela ficaria preocupada se você dirigisse nesse estado, meu amigo _ disse Pat, secamente, pensando que essa era uma ótima oportu­nidade para conhecer o interior da Vila. _ Parker e eu vamos levá-lo.

_ Eu vou também _ ofereceu-se Osborne ansioso.

_ Não, rapaz, não há lugar _ disse Pat. _ Mas nós lhe con­taremos tudo, mais tarde.

Particularmente, seu respeito por Dilhorne, já alto, havia au­mentado depois de ver o que ele havia feito, semiconsciente, aos assaltantes. Aquele estúpido Jack Cameron podia se considerar com sorte que Dilhorne não tivesse lutado com ele.

Já eram duas da madrugada quando chegaram à Vila Dilhorne. Tom deu as chaves a Pat. O oficial abriu a porta, e Miller, pistola da mão, os recebeu. Hester, preocupada, apareceu, carregando um lampião. Os dois oficiais ajudaram Tom, ainda sob o efeito da dor e da pancada, a entrar no hall.

_ Tom, o que aconteceu? _ perguntou Hester aflita. Seus olhos voltaram-se para Parker e Pat.

Tom ergueu a cabeça.

_ Estou ferido _ esforçou-se em dizer. Mal conseguia parar em pé. Soltou o peso todo do corpo sobre Ramsey. _ Fui atacado. Os bons amigos aqui me trouxeram para casa.

Os olhos fascinados de Parker estavam sobre Hester. Seu corpo, avolumado pela gravidez, estava envolto em um robe de seda chinesa, de um rosa pálido, decorado com íris em tons de creme e amarelo. Era preso por uma faixa mole, de um malva suave. Sua pele parecia translúcida, resultado de sua crescente fragilidade. Sua extrema be­leza era cheia de delicadeza, e o rosto mostrava toda sua preocupação.

Quando o primeiro susto passou, ela colocou o lampião sobre a mesa e rapidamente começou a organizar as coisas. Miler foi mandado para buscar socorro. Pat Ranisey e Parker foram incum­bidos de levar Tom ao quarto. Ambos estavam ansiosos para des­cobrir como eram os aposentos íntimos no homem mais rico de Sídnei, agora que haviam visto o esplendor estonteante do salão.

Ficaram particularmente impressionados com a imensa pintura do tigre, correndo.

O jovem Parker não conseguia deixar de se lamentar pelo fato de ter rejeitado, estupidamente, o raro espécime de mulher em que Hester se tornara. Ela poderia ter sido sua, era apenas uma questão de pedir. Ficou a imaginar, como Pat Ramsey também fazia, como o pirata brutal que ajudavam a carregar, e cuja obra com as mãos deixara os assaltantes largados na poeira, tinha con­seguido fazer desabrochar um tesouro tão raro.

Seguiram pela escadaria suntuosa, passaram pelos ídolos chineses e cruzaram as portas de bronze. Hester começou a acender as nu­merosas velas azuis e brancas, incrustadas em seus preciosos castiçais de porcelana que estavam espalhados pelo quarto magnífico.

Hester ficou divertida em perceber que os olhos dos dois oficiais percorriam tudo, depois de estenderem Tom na cama enorme. Ela entrou no quarto de vestir e saiu carregando uma bacia chinesa, de preço incalculável. Os dois homens recuaram para que ela lim­passe as faces do marido, um dos lados já bastante arroxeado.

A chegada de Miller, depois de recolher o cavalo e a carruagem, deixou-os livres para ir embora, de olhos cheios com o que haviam visto. Hester levou-os até a ante-sala onde o tigre ocupava toda a parede, imponente. Uma criada trouxe sanduíches. Hester apa­nhou uma garrafa de brandi e serviu a eles uma dose, em sofis­ticados copos de cristal.

Ela os interrogou, com uma voz fria:

_ Agora, preciso saber exatamente o que aconteceu, antes e depois de vocês o terem encontrado.

O tom autoritário em sua voz foi tão incisivo que Pat nada pôde fazer, a não ser obedecer. Quando ele terminou o relato, ela insistiu:

_ Você tem alguma idéia de quem são os atacantes, ou por que ele foi atacado?

Particularmente, Hester era de opinião que aquele ataque sujo tinha algo a ver com as mudanças recentes no comportamento de Tom, mas não estava disposta a dizer isso a Pat.

Ele balançou a cabeça.

_ Não, não posso dizer nada quanto a isso. A suposição mais provável é que os bandidos viram uma oportunidade excelente de roubá-lo. Era tarde da noite. Os atacantes foram tão severamente surrados que eu duvido de que possam dizer alguma coisa, também.

_ Ele não iria agir com gentileza _ ela murmurou, com firmeza.

_ Vocês tiveram tanta consideração com meu marido como eu esperava. Nunca poderemos agradecê-los o bastante.

Os oficiais partiram. Se fora a casa ou Hester que os impres­sionara mais, nenhum dos dois saberia dizer.

 

Na cantina do quartel, no dia seguinte, eles contaram sua his­tória e como era a casa onde tinham entrado.

_ Vocês deveriam ter visto o quarto! _ exclamou Pat. _ Lucy Wright não exagerou, nem mesmo contou tudo. E cheio de tesouros: deuses de marfim, vasos chineses, sedas, mobília laqueada... E a cama? Vocês nunca viram nada como aquilo. Sem cortinados, só travesseiros e almofadas para todo o lado. E é tão grande como um salão de baile. Juro por Deus que Dilhorne poderia reunir ali todas as garotas de Madame Phoebe, se lhe desse na cabeça.

 

Tom recobrou-se rapidamente dos ferimentos. Disse a Hester que devia ter sido vitima de unia tentativa de roubo. Ambos os bandidos eram condenados que haviam fugido, viviam escondidos nas matas próximas a Sídnei e eram conhecidos por serem pequenos Ladrões. O homem que podia falar contou aos juizes que estavam atrás do dinheiro de Tom e de coisas valiosas. Tom e Hester, por diferentes razões, duvidavam disso. Tom tinha certeza de que Cameron estava por trás do ataque, mas não tinha como provar.

Outras coisas o preocupavam.

Os carroções do comboio que operavam entre Sidnei, Paramatta e outros assentamentos distantes, vinham sendo constantemente vitimas de ataques, cada vez piores. Os homens que trabalhavam no transporte não andavam armados, mas os bandidos sim, e o mais recente assalto deixara um empregado bastante ferido.

De novo, a suspeita recaiu nos condenados fugitivos.

_ Alguma idéia de quem pode estar por trás de tudo isso? _ Tom perguntou a O’Neill, o chefe dos transportes, que encontrara no cais do porto.

_ Nenhuma, exceto que... _ O homem hesitou. _ Ninguém mais tem sido alvo, a não ser nós.

_ Correto. Se nos atacarem na próxima viagem, eu os acom­panharei pessoalmente, depois disso. Estarei armado, e meia dúzia de rufiões estará às nossas costas, armados também. Não podemos permitir que nos peguem de surpresa.

Não disse mais nada. Só o tempo diria se os assaltos aos carroções eram simples coincidências ou aia sinal de que Jack havia mudado sua tática. Infelizmente, mais uma coisa a esconder de Hester.

 

O governador Macquarie convidara os Dilhornes para um jantar íntimo, talvez um dos últimos compromissos a que Hester pudesse comparecer, antes de o bebê nascer. A razão do convite restrito era que o governador desejava discutir alguns assuntos com Tom, extra-oficialmente.

Com sua usual gentileza, Macquarie preocupou-se em agradar seus convidados. Sabia que toda Sídnei estava certa quando comen­tava o cuidado amoroso de Tom Dilhorne, antes tido com sem coração, para com a esposa, em estado de gravidez avançada. Não podia deixar de perceber como ele a cercava de atenções, a presteza com que se movimentava para proporcionar-lhe conforto ou aliviar-lhe o descon­forto, nem a maneira como se fitavam, um ao outro.

Depois do jantar, a esposa do governador conduziu Hester para a agradável sala de estar enquanto o marido acompanhou Tom até o jardim de inverno, oferecendo-lhe cigarros e brandi. Tom aceitou a bebida e recusou o cigarro. Estava imaginando qual era a finalidade de tudo aquilo. Era hora de assumir seu papel de homem de negócios. Durante o jantar, havia se comportado como um cavalheiro inglês de maneiras refinadas.

_ O problema _ começou Macquarie, depois de conversarem amenidades e discutirem a possibilidade de explorar e estabelecer assentamentos no interior, ao invés de se limitarem a permanecer no litoral do vasto continente _ é que você sabe como tenho me empenhado em nomeá-lo juiz. _ Fez uma pausa.

Tom concordou, emendando, em uma entonação irônica:

_ Mas...

Macquarie pareceu surpreso. Dilhorne decidiu explicar-se.

_ Eu aprendi _ disse _ que quando alguém se mostra tão veemente como você, e, então, faz uma colocação nesse tom de voz, há sempre um “mas” por trás da conversa!

_ Bem... _ continuou o governador, dando uma risada _ é que, enquanto eu quero tomá-lo um magistrado, pois sei que você será um bom juiz, justo e equânime, sei também que juizes não andam por aí, deformando as feições dos oficiais da Armada, em casa de Madame Phoebe! Eu estava preparado para esquecer esse fato, mas há um outro motivo. Isto é, tenho a impressão de que, até recentemente, você vinha se preparando para ser um magis­trado, mas algo mudou sua atitude. Sem entrar em detalhes, acre­dito que sei e compreendo por que tal aconteceu.

Tom sorriu.

_ Há uma porção de mas, e sei que compreende porque desejo que a nomeação seja protelada, por enquanto.

O governador concordou, antes de murmurar, aparentemente de forma inconseqüente:

_ Vejo que se recobrou do ataque, mas adivinho que está tendo outros problemas, ou assim dizem os boatos.

_ Verdade, e por isso mesmo vai entender que não posso comprometer minha Liberdade de ação, no momento.

_ Entendido. Quero que, quando esse assunto se resolver de forma satisfatória, você me dê sua palavra de honra de que concordará em ser nomeado para o posto. Sei que você honrará o compromisso e não vou permitir que venha a usar de seus truques maquiavélicos para se safar. É o governador falando, sr. Dilhorne, e não seu amigo Macquarie. Do contrário, não lhe darei liberdade de ação. Espero que resolva seu problema da forma mais discreta possível.

Tom tocou sua taça na dele, em ata brinde, e cedeu à insistência do governador. Não podia fazer por menos. Macquarie sabia, Deus era testemunha, de que Jack Camemn estava por trás dos ataques e lhe dera permissão para resolver a questão como lhe agradasse. Ao mesmo tempo, usava do problema para chantageá-lo a aceitar o cargo de magistrado, algo que ele, particularmente, havia jurado nunca ser.

Gostasse ou não, a respeitabilidade o chamava para seu seio!

_ Claro! _ respondeu, e, pela primeira vez, bebeu tudo de um só gole.

Depois disso, os acontecimentos se sucederam de forma rápida.

A semana em que conversara com O’Neill passou e, nesse período, os carroções e carretas de Dilhorne foram novamente atacados.

O’Neill, preocupado, chegou a Villa com as notícias.

_ Foi coisa feia, mestre Dilhorne. Um carroção carregado foi saqueado, no caminho de Paramatta, e dois ficaram homens gra­vemente feridos.

_ Então, está decidido _ disse Tom. _ Estarei no próximo embarque, como prometi. Ninguém deve saber que viajarei com vocês. Mande avisar quando tudo estiver pronto.

_ Dois ou três dias, o mais tardar.

Tom coçou a barba, refletindo.

_ Quatro ou cinco dias. Estou com a aparência ainda muito respeitável.

Quando O’NeilL se foi, ele retomou à sala onde Hester estava reclinada em um sofá, com um livro nas mãos.

_ Estive pensando... _ disse a ela. _ Preciso passar uns dias em Paramatta, os negócios me obrigam a ir até lá, e n~o gostaria de deixá-la sozinha. Você poderia passar algum tempo com Alan e Sarah enquanto estou fora. Alan disse-me, ontem, que quer exa­miná-la, e você teria a ele e Sarah, para não citar o pequeno John, como companhia.

Hester ergueu os olhos para o marido. Percebeu, de imediato, que havia ali um problema.

_ Se isso o deixa feliz, claro que irei _ respondeu. _ Gosto muito dos Kerrs.

_ Então, está combinado _ ele retrucou, beijando-a.

Tom saiu assobiando, para apanhar o cavalo. Pelo menos, não teria que somar suas preocupações com Hester, vulnerável e abandonada, ao resto de seus problemas. As coisas iriam se resolver por si mesmas.

 

Tom chegou a Paramatta com O’Neil, três carretas de bois, dois carroções puxados por cavalos e a meia dúzia de rufiões, como prometera, anteriormente.

Não se conseguia distingui-lo entre os homens. Não se barbeara e nem tomara banho depois que deixara Hester com os Kerrs e usava as roupas rústicas de seus dias pregressos, ao chegar a Sídnei. Cruzara com Pat Ramsey, na estrada, e o olhar do oficial o examinara superficialmente, sem reconhecê-lo, avaliando suas botas desgastadas, suas roupas e faces imundas, e seu chapéu rasgado enterrado nos cabelos ensebados.

Em Paramatta, descarregaram as mercadorias vindas de Sídnei e carregaram os produtos agrícolas, artefatos de madeira e metros de tecido rústico que as camponesas teciam. Esperaram pela tarde, antes de empreender a viagem de volta. Três dos rufiões estavam escondidos sob as traves das carretas maiores, os outros três aju­davam com a carga, as armas escondidas.

Tom dirigia o primeiro carroção. Resolvera seguir para casa à noite. O’Neill tinha certeza de que estavam sendo observados a distância e que os assaltantes poderiam julgar que uni ataque noturno seria mais fácil do que durante o dia. Tom instruíra seus homens a esconderem as armas e a agirem como se estivessem ligeiramente bêbados.

Estavam cantando, parecendo descuidados, quando o ataque ocorreu, próximo a umas cabanas abandonadas onde os bandidos haviam se escondido, depois de seguir o comboio desde Sídnei.

O ataque foi repentino. Meia dúzia de homens apareceu a cavalo e ordenou que descessem e abandonassem a carga. Dispararam uma bala de advertência pouco acima da cabeça de Tom e pareciam dispostos, desta vez, a cometer um assassinato.

_ Vão para o inferno _ gritou Dilhorne, e assobiou. Era o sinal para os homens escondidos nas carretas.

Os ladrões não esperavam resistência. Com a vantagem da sur­presa, o grupo de Tom não teve grande trabalho em dominar seus atacantes. O líder, um emancipista de nome Kaye, notório marginal de Sídnei, foi apartado dos demais, depois de ser capturado.

Tom deixou que O’Neil reorganizasse os carroções e carretas, cuja carga havia se espalhado com o ataque, e foi até uma das cabanas, dando ordens para que Kaye fosse levado para lá, dentro de quinze minutos. Essa demora era deliberada, queria inquietá-lo ainda mais do que o fracasso do assalto havia conseguido.

O miserável foi jogado dentro do cômodo parcamente iluminado. Ao lado de uma mesa rústica, no meio da sala, ele viu Tom Di­lhorne, uma cigarrilha presa entre os dentes e uma pistola na mão. Dilhorne não parecia o homem respeitável que caminhava, elegante, por Sídnei. Tinha, agora, uma aparência vulgar e suja e usava roupas rasgadas, como um bandido.

Kaye não o reconheceu, a princípio, tão diferente ele lhe parecia. E seu coração disparou: havia esquecido como Dilhorne era perigoso.

Tom encarou-o fixamente, fumando a cigarrilha devagar, fa­zendo-o esperar pelo pior. Kaye tinha os nervos em frangalhos. Finalmente, ele apagou o cigarro na mesa e apontou para o as­saltante, com a pistola.

_ O que propõe que eu faça com você, Kaye? _ Seus olhos eram tão duros e cruéis como Kaye jamais vira em alguém.

_ Não me entregue aos militares, mestre Dilhorne. Eu seria pendurado na corda, desta vez.

_ Seria mesmo. Mas o que o faz pensar que eu gostaria disso?

_ Fez um gesto com a pistola. _ Um tiro só, e eu iria me livrar de uni problema e poupar Sídnei do custo de um julgamento.

_Não faça isso, mestre Dilhorne. Poderíamos fazer um bom acor­do: sua vida pela minha. _ Sua voz demorou-se na ultima palavra.

Tom não baixou a pistola.

_Poderíamos, é mesmo? Ora, o que o leva a dizer isso?

_Abaixe essa coisa, e eu Lhe contarei.

_Você vai me contar com essa coisa apontada para seus miolos, ou não vai poder mais falar nada com ninguém!

_E que poderia disparar, por acidente...

_Não, não poderia. Eu nunca deixo que nada aconteça por acidente, Kaye. Não teste minha paciência. Mal consigo me con­trolar, no momento.

Kaye pensou que nunca vira alguém mais controlado que Tom Dilhorne, sentado ali, ameaçando mandá-lo para o inferno.

_Está certo, vou falar. Há um homem que quer acabar com você, Dilhorne, e quer muito. Tanto que pagou a turma do Fitz­patrick para o atacar, semanas atrás. O pobre Fitz acabou em uma estrepada e não vai ser capaz de falar, de novo. Então, o homem me contratou para saquear seus carroções, para prejudi­cá-lo. Ele o mataria se pudesse, Deus sabe disso.

Tom abaixou a pistola e encarou o miserável. Suas suspeitas se confirmavam. Nada havia de acidental no ataque de rua, sem falar no tiro que lhe perfurara o chapéu, anteriormente.

_Continue _ ordenou. _ Esse homem deve ter um nome. Diga-me, estou curioso. Como foi que lhe pagou? O homem em que estou pensando não tem dinheiro.

_Continua não tendo, mestre Dilhorne, mas tem acesso aos estoques de bebida da guarnição, e isso é melhor que dinheiro.

_Ah... então é isso. Mas, e o nome? Se não me disser, eu o matarei aí, onde está.

_O senhor sabe o nome dele, não sabe, mestre Dilhorne? E o capitão Cameron, cujo rosto bonito o senhor arrebentou.

Tom ergueu a pistola e apontou-a para Kaye, que deixou escapar um berro de desespero, e disparou um tiro no ombro do miserável. Kaye caiu no chão, apertando o ferimento.

_Eu contei o que o senhor queria, mestre Dilhorne. Uma vida pela outra, você concordou, e quebrou sua palavra.

Tom jogou a arma fumegante sobre a mesa e olhou para a porta que se abria. O’Neill entrou e sorriu, ao se deparar com Kaye, retorcendo-se de dor.

_Não, não quebrei minha palavra _ retrucou Dilhorne com frieza.

_ Estou Lhe deixando com vida, não falei nada sobre seu ombro. _ Voltou-se para o empregado. _ O’Neill, providencie para que ele seja levado ao dr. Kerr. Isso é para você aprender a não interferir em meus negócios, Kaye. _ Enfiou a mão no bolso, pegou uni guinéu e entregou-o a O’Neill. _ Pague o doutor e dê o troco a Kaye.

O’Neil arrastou Kaye para fora, comentando que, em sua opi­nião, o mestre Dilhorne tinha se tornado mole, ultimamente. Se fosse ele, O’Neill, teria dado o fígado de Kaye para os abutres, pelo trabalho sujo daquela noite e das outras.

Tom recarregou a pistola. Sua expressão era terrível. Então, sua suposição era correta. Jack estava agindo como um louco, tentando matá-lo e arruiná-lo. Agora, tinha várias pistas para usar contra ele. Para começar, O’Connell gostaria de saber quem era o responsável pelos saques aos estoques do Regimento. A ques­tão era, como poderia fazer para que O’Connell soubesse o que Cameron andava aprontando, sem que tomasse conhecimento de quem era o informante?

Tom caiu na gargalhada. A malícia iria achar um jeito, sempre achava.

 

Tom voltou de Paramatta e levou Hester para casa. O medo dela, de que ele estivesse escondendo algo, era cada vez mais forte. Desta vez, o marido contara pouco sobre a viagem, falando superficialmente sobre a renovação de contrato com os locais, ex­plicação que, ela pensou, dificilmente convenceria uma criança.

Tom Dilhorne gastara uma semana, renegociando contratos insig­nificantes, os quais Joseph Smith poderia muito bem resolver em unia tarde? Não disse nada, porém. Era um jogo a ser disputado a dois. Cedo ou tarde, ela iria descobrir o quê, exatamente, estava acontecendo.

Descansava no sofá, e Tom havia se sentado a seu lado, no chão. Acariciou-lhe os cabelos. Resolveu provocá-lo.

_Espero que seus negócios em Paramatta tenham sido bas­tante bem-sucedidos para justificarem sua viagem até lá.

Ele fitou-a, atentamente, mas o rosto de Hester não a denunciou, nem ela parou de acariciá-lo. A Senhora da Dissimulação, pensou ele, divertido, entendendo que ela se comportava como ele próprio costumava se comportar.

_Mais ou menos, querida, mais ou menos. Tenho que manter O’Neill e seus companheiros de bom humor. Não gostariam de pensar que perdi o interesse neles. E um problema ter muito ferro na brasa.

_Oh, realmente, sr. Dilhorne.

O tom de Hester era ligeiramente irônico, ou ele estava imaginando coisas? Tom pensou em contar-lhe tudo. Alan, porém, havia-o adver­tido de que ela estava fragilizada e precisava de cuidados.

Levantou-se e atravessou a sala para servir-se de um copo de brandi.

_Água, minha querida? _ perguntou. Alan o avisam para evitar que ela tomasse bebidas alcoólicas, pois podiam prejudicar o bebê.

Hester observou-o, de pé, contra a luz do candelabro. Seus ca­belos cor-de-areia estavam revoltos, desalinhados por suas carícias, e, quando ele se voltou, ela conteve o fôlego. A paixão que sentia por ele era ainda mais forte, por causa da abstinência forçada.

_Você parece feliz, sra. Dilhorne.

_Oh, eu sou!

Ele também parecia feliz. Suas feições estavam relaxadas, e a boca, ultimamente tão contraída, mostrava um leve sorriso.

Ele lhe trouxe a água.

_Prenda a respiração enquanto bebe, sra. Dilhorne. Não quero que fique bêbada _ brincou, com um sorriso. _ Vai ser difícil se acostumar a beber alguma coisa mais forte que um vinho, depois que o mestre Dilhorne nascer.

_Você tem certeza de que é um menino _ ela murmurou, divertida. _ Mas, e se for uma menina?

_Então, eu prometo amar a srta. Dilhorne tanto quanto o irmãozinho que ainda está para nascer.

Hester ficou em silêncio. E por tanto tempo, que Tom se preocupou.

_O que a está aborrecendo, Hester?

_Deve ser diflcil para você também, que eu me sinta tão fraca ultimamente... Faz tempo que não somos marido e mulher...

Ele a interrompeu.

_Nunca fomos tão marido e mulher quanto agora, que você carrega o meu filho!

_Oh, sr. Dilhorne! _ Hester, de repente, sentia-se feliz de novo. _ Você sempre me confunde com esse seu modo de falar.

Ele se aproximou e tomou-lhe a mão, beijando-a.

_Meu amor, eu entendi o que está tentando me dizer.

_Deve ser difícil para você, um homem, ter de se refrear.

_Difícil para mim?! _ Ele beijou-lhe a mão, de novo, e fitou-a, com paixão. _ Quando você está assim, indefesa...? Oh, Hester, o que são meus desejos passageiros comparados à condição que lhe dei?

O    rosto de Hester iluminou-se.

_Ora, pensei que tinha contribuído mais do que um pouquinho para meu estado atual, sr. Dilhorne.

_E contribui, sra. Dilhorne. Mas é você quem tem de arcar com as conseqüências, não eu. O mínimo que posso fazer por você é su­portar com paciência, como você suporta, em respeito a nosso filho.

Ele soltou-lhe a mão e colocou a sua gentilmente no ventre da esposa. Sentiu a criança se mexer.

_É ativo o camaradinha, não é?

Hester caiu na risada.

_Ele, ou ela, chuta tanto que quase me machuca, às vezes. É grande como um filhote de elefante, mas muito mais irrequieto. _ O rosto de Hester se contraiu, conforme a criança se agitava, e seu estômago se deslocou como uma onda sob a mão de Tom.

Não podia faltar muito tempo agora, pensou Tom, até a criança nascer. Alan dissera que seria logo.

_Tente fazer com que ela se exercite um pouquinho _ acon­selhara o médico. _ Será difícil, se ela ficar deitada a maior parte do tempo.

_Hora de passear _ murmurou Tom. Ajudou-a a sentar-se e atravessou com ela o salão, fazendo-a repetir o trajeto duas vezes. Não podia levá-la a Sídnei, o balanço da carruagem a in­comodava. Andar também se tomara um problema.

Principalmente, ela precisava de sua proteção mais do que nun­ca, e não devia ficar sabendo das vilanias de Cameron.

 

                                                     CAPÍTULO XIV

Tom investiu contra Jack Cameron com toda a fria determinação, rapidez e esperteza que conseguiu reunir para a tarefa. Quanto mais cedo se livrasse dele, mais cedo poderia descansar. Assim que a ameaça a sua vida houvesse sido afastada, ele poderia concentrar-se em cuidar de Hester, e não teria mais que a enganar.

Agiu da forma mais sigilosa que pôde, enquanto colocava em ação as engrenagens que iriam enrodilhar Jack na armadilha, e que não deviam deixar traços de seu próprio envolvimento. Vol­tando de unia dessas empreitadas, encontrou-se com o tenente Wright, com Lucy pelo braço, descendo a rua Macquarie.

Tom foi cauteloso em não dividir com eles suas preocupações acerca da saúde de Hester. Ficou particularmente feliz com a forma calorosa com que ambos o tratavam, um contraste marcante frente ao comportamento de um ano atrás. Disse-lhes que, embora ca­seira, Hester estava sempre disposta a receber os amigos.

_ Então, iremos visitá-la, uma hora dessas! _ exclamou Lucy, que, diante da transformação notável de Hester, depois de seu casamento com Tom, sentia-se envergonhada que a elite de Sídnei tivesse feito tão pouco pela moça, depois da morte de Fred.

A participação de Frank, na conversa, foi mais comedida.

_ Suponho que ainda não saiba das noticias esplêndidas sobre Pat Ramsey _ comentou _ já que ele mesmo as recebeu somente ontem, quando o ultimo navio atracou. Ele herdou o título da família e, mais importante, seus grandes domínios. Teremos que chamá-lo de sir Pat, agora, embora por pouco tempo. Ele é esperado em casa e, sem dúvida, vai renunciar à carreira militar e cuidar de suas terras.

Então, a Roda da Fortuna girara, favorecendo Pat. Tom espe­rava que não acontecesse o mesmo com Jack, que já devia ter sabido, a essa altura dos acontecimentos, que sua ultima investida havia falhado.

 

Jack, realmente, estava plenamente consciente de que algo ocor­rera. Kaye nunca mais aparecera para pegar seu pagamento em espécie, nem fizera qualquer tentativa de entrar em contato para explicar o que havia dado errado. Os dias passavam, e sua impa­ciência crescia. Investigações discretas revelaram que Kaye estava escondidos nas Pedras, com o braço direito na tipóia.

_Um acidente _ dissera a todos.

Jack, finalmente, aventurou-se a ir até as Pedras por si próprio, e deparou-se com Kaye.

_Eu o conheço, senhor? _ esquivou-se Kaye quando Jack começou a pressioná-lo.

_Maldito seja _ grunhiu Jack, cujo vocabulário era composto de palavrões. _ Você estava fazendo um serviço para mim, contra Dilhorne.

_Dilhorne, é? _ O rosto de Kaye, de repente, empalideceu.

_ Eu nunca me meto em encrencas com Dilhorne. Homem peri­goso, aquele. Se eu fosse o senhor, tomaria cuidado em qualquer negócio que tenha a resolver com ele, capitão.

Era imaginação de Jack ou o olhar de Kaye recaíra sobre seu nariz quebrado? Saiu dali, tomado de fúria. Inútil insistir no assunto, e perigoso também. Dilhorne havia vencido aquela parada e assustam Kaye, tirando-o do caminho. Como assustara todos os demais, também.

Pior ainda, Jack acabara de voltar ao quartel quando descobriu que tinha mais com que se preocupar do que com atingir Dilhorne. Ramsey, agora um baronete, maldito fosse, disse-lhe que O’Connell queria vê-lo o mais depressa possível.

_Ora, um garoto de recados, você virou agora... sir Pat _ caçoou.

Impossível tirar Pat do sério, qualquer insinuação era como água escorrendo das penas de um pato. Nunca o atingia. Ele deu de ombros, girou nos calcanhares e afastou-se, deixando Jack sol­tando fumaça pelas ventas.

Cameron dirigiu-se à sala de O’Connell, onde o encontrou esperando por ele, com Menzies a seu lado. Malditos fossem, esses hipócritas!

_Podemos tornar as coisas bem duras _ começou O’Connell, sem preâmbulos _ ou mais suaves, depende de você, Cameron.

_Se eu souber do que estão falando...

_Não se faça de tolo _ O’Connell esbravejou. _ Tenho provas concretas de que você vem roubando os estoques de bebida, entre outras coisas. A bebida da guarnição está sendo esparramada por toda a cidade, e você é o responsável.

_Suponho que tenha sido aquele maldito Dilhome, que disse isso a você.

_Dilhorne? O que Dilhorne tem a ver com isso? Não, o mestre da intendência que você subornou foi pego com a boca na botija, ontem, vendendo sua parte em Sídnei. Ele confessou, e você foi implicado, juntamente com outros, embora você seja o único oficial envolvido, graças a Deus. Tudo se ajusta, Jack, inclusive o fato de você estar cheio de dinheiro ultimamente.

O    rosto de Jack se retorceu.

_O que me diz dos estoques do governo que você desviou para Dilhorne e outros tantos? Você vai responder por aquilo, também?

_Aquilo que o Regimento disponibiliza para os comerciantes é tudo anotado, como você bem sabe.

_Incluindo as propinas que recebe de Dilhorne e dos outros, eu suponho. Então, ele o envenenou contra mim!

_Você cismou com o homem, Jack. Ele não tem nada a ver com isso. Não o vejo há meses. E que propinas? Que provas você tem para fazer essa acusação? Ora, temos testemunhas que o acusam de culpa, e evidências suficientes para acabar com você. Porém, não vou fazer isso, se for compreensivo. Vai mostrar-se compreensivo, Jack?

_Depende do que isso signifique... senhor.

_Vou-lhe explicar. _ O tom de O’Conneil era cansado. _ Estou rebaixando o mestre da intendência de posto, alegando insubordina­ção, não roubo. Assim, não haverá escândalo. Ele deve ficar agradecido por não levar umas chibatadas e ser expulso da corporação. Quanto a você, pode assinar os papéis e ir para casa no próximo navio. Não o quero mais andando como uni cão perdido por Sídnei.

_Pedir demissão, é o que você quer dizer?

_Que seja. Pode tornar as coisas mais duras e ser levado àcorte marcial. E com você, não me importa.

_Que escolha é essa? _ perguntou Jack, o rosto retorcido.

_É aquele maldito Dilhorne o responsável por isso. Sei que é. O’Connell suspirou, pesadamente.

_Você não nega as acusações, não é, Cameron? Deixe-me dar­lhe um conselho. Desde que brigou com Dilhorne, seu juízo, nunca muito racional, parece ter ficado completamente distorcido.

_ Briguei com ele? _ Jack quase berrou. _ Nunca briguei com ele. O maldito me atacou brutalmente e sem avisar, quando eu estava bêbado e incapaz de me defender. Sei que ele está por trás de tudo isso.

De rosto fechado, O’Connell levantou-se.

_Ninguém está por trás desse problema. Você se enredou em sua própria estupidez e arruinou outro homem, na barganha. Ago­ra, dê o fora de minhas vistas e, se não trouxer os papéis assinados amanhã de manhã, será preso e submetido à corte marcial. E mesmo que se demita, vai ficar confinado no quartel até que o próximo navio parta para casa, com você lá dentro, é claro.

Mergulhado em desespero, Jack tinha absoluta consciência de quem o arruinara, e quem haveria de pagar por isso, antes que deixasse Sídnei, nem que isso fosse a última coisa a fazer. Ne­nhuma ordem de O’Connell o impediria de atingir seus fins.

 

Tom descobriu que suas maquinações haviam sido bem-sucedidas quando encontrou-se com Pat Ramsey na rua George, na tarde se­guinte. A saudação calorosa de Pat foi a medida de como tudo mudara.

_Ah, deixe-me dizer-lhe uma palavrinha, Dilhorne. Tenho a impressão de que não ficará surpreso em saber que Jack Cameron foi obrigado a assinar sua demissão e está indo para casa. Parece que se encheu de Sídnei, pelo menos, essa é a versão oficial.

Tom ergueu as sobrancelhas, em um gesto de indiferença.

_Será, capitão Ramsey? Ou melhor, devo chamá-lo de sir Pa­trick, agora?

_Oh, pare com isso, Dilhorne, Ramsey basta. Devo partir em breve, e a única coisa de que sentirei falta é o prazer de sua companhia, que aprendi a apreciar recentemente. Pena que você não possa me acompanhar.

_ Uma pena, realmente _ retrucou Tom suavemente. _ Quan­to a Cameron, Sídnei ficará feliz em vê-lo pelas costas.

E você também, pensou Pat, observando Dilhorne se afastar, em largas passadas. Parabéns a você, por tê-lo enredado nessa trama. O Regimento ficará melhor sem ele.

O    melhor de tudo isso, pensou Tom, é que poderia procurar Hester sem esse peso nas costas e sem a necessidade de enganá-la mais. Poderia se concentrar em cuidar dela, apenas.

 

Hester haveria de se lembrar, mais tarde, como aquele dia, em particular, fora agitado. Tom acabara de dizer que havia contratado uma enfermeira para cuidar dela até que o bebê nascesse. Iria chegar naquele fim-de-semana.

Ele a fitou, sentada do lado oposto, à mesa do café. Hester estava alegre, porém mais pálida do que nunca. Seus olhos estavam fundos, e as olheiras escureciam sua face abatida.

_Decidi ficar em casa até que a enfermeira chegue. Não quero que fique sozinha _ disse Tom, de repente, o medo apertando-lhe o coração.

Devia ter esperado que ela fosse recusar.

_Oh, não, Tom, sei que está muito ocupado, hoje. Está resol­vendo os negócios da fábrica de farinha, não está?

Ele concordou.

_O problema, minha querida, é que há um jantar também, e um coquetel, mais tarde, de modo que tenho medo de chegar tarde em casa. Acho que não devo ficar fora durante muitas horas, até que o bebê nasça.

Seu assunto com Cameron podia ter sido superado, mas ele não iria descansar em paz até que Hester estivesse em segurança.

_Não seja por isso _ ela continuou. _ Não irei ficar sozinha. As senhoras do Círculo de Costura vão se reunir aqui, pela manhã, e Lucy vai trazer Frank, Stephen Parker, Pat Ramsey e todos os amigos do Regimento, esta tarde. Finalmente, veja só, fomos acei­tos pelos exclusivos.

Tom abriu a boca para argumentar e, então, recordando-se da demonstração de amizade que lhe dera Pat Ramsey no dia anterior, recuou.

_Eu desisto _ disse levantando-se e beijando-lhe o rosto _ , mas não se canse.

O    fato de Hester ter usado a palavra “nós”, ao se referir a sua aceitação no círculo restrito da elite de Sídnei, deixava-o profun­damente feliz. Havia ocasiões em que temia que o amor de Hester, por ele, fosse simplesmente gratidão por tê-la salvado da miséria e não uma paixão verdadeira pelo homem, Tom Dilhorne.

_Eu ainda gostaria que a enfermeira já estivesse aqui. Não gosto que fique sozinha.

_Não se preocupe com isso, tenho Miler para me proteger. Diante disso, Tom não insistiu. O dia inteiro, porém, seus pen­samentos ficaram presos à lembrança dela, agora fechada aos li­mites da casa, tão diferente da Hester que um dia havia sido. A

Hester que atirava com pontaria certeira em alvos, corria e saltava enquanto jogavam bola no jardim e na grama. Tinha medo de que nunca mais pudesse reencontrar aquela Hester.

Hester estava certa quando dissera a Tom que não ficaria so­zinha, principalmente quando Lucy e seus amigos chegaram. Ela não pôde deixar de se recordar, enquanto riam e conversavam, como sua vida tinha sido diferente, um ano atrás, quando era uma solitária e negligenciada inquilina da sra. Cooke. E essa trans­formação tão grande era obra de um só homem, e esse homem era Tom Dilhorne, o bicho-papão de seu pai.

Pat Ramsey beijou-lhe a mão, antes de partir.

_Foi uni prazer visitá-la, porém temo que tenhamos dado muito trabalho a você.

_Não, de forma alguma _ retrucou Hester. _ Foi um prazer para mim também, particularmente depois que Tom me contou que o Regimento logo receberá ordens de mandá-lo para casa, e, então, nós o perderemos de uma vez por todas.

A casa pareceu estranhamente silenciosa depois que todos se foram. Hester, contudo, não se sentia triste por estar sozinha, depois da agitação do dia. Recostou-se, pensando na admiração que os oficiais haviam demonstrado a ela, a despeito de sua con­dição, e ficou a imaginar o que teria sido sua vida se Parker a houvesse olhado assim, antes que se casasse com Tom.

O    que era um pensamento estúpido, concluiu. Tom era o res­ponsável por sua transformação. E, pela primeira vez, pensou no pai e na mãe sem rancor ou lástima pelo tratamento que recebera deles. Se tivesse cuiidado dela, Hester jamais o encontraria.

Nunca teria conhecido a excitação e a paixão de viver ao lado de um homem difícil, exigente e complexo, que lhe pedia apenas, apenas!, que fizesse par com ele e o tratasse em condições de igualdade. Ainda que, ao mesmo tempo, quando estava abatida, como agora, cuidasse dela sem egoísmo. Tom teria ficado ali, se não o mandasse tratar de seus negócios.

A tarde caiu e, então, veio a noite. Miller assumiu seu posto, no hall. Percorreu o interior da casa para ver se tudo estava bem, antes de se postar na entrada. Hester cochilou por algum tempo, e foi acordada por um ruído.

Tom, era Tom, voltando.

Um sorriso de prazer curvou-lhe o canto da boca. Saiu da so­nolência e dirigiu-se a uma mesinha lateral para colocar um dedo de brandi em um cálice, para ele, e serviu-se de um copo de água. Estava com o cálice de bebida na mão quando a porta se abriu.

O    homem que entrou não era Tom.

Diante da surpresa, ela deixou cair o cálice. A bebida esparra­mou-se, manchando o delicado tapete chinês.

_Que pena, minha cara _ disse Jack Cameron, uma pistola no cinto, outra na mão, apontada para ela. _ Sente-se, querida _ continuou. _ E se cair na tentação de chamar aquele seu cão de guarda para ajudá-la, eu não irei machucá-la, mas atirarei nele como faria a um animal.

Depositou a pistola na mesinha diante da lareira e puxou uma cadeira para que Hester se sentasse, fazendo-lhe uma reverência com um respeito que, a princípio, ela pensou que fosse uma ca­çoada, até que suas maneiras e seu olhar a convenceram que tudo era terrivelmente sincero.

Ele se afundou em uma outra poltrona do lado oposto e tirou a pistola do cinto, colocando-a sobre a mesa, enquanto segurava a outra, pendente, da mão. Apontou-a para a porta.

Hester o encarou. Estava surpresa com o próprio autocontrole. Até mesmo sua voz era firme, quando perguntou:

_O que está fazendo aqui, capitão Cameron?

_Oh, gosto disso! _ ele exclamou, abrindo um largo sorriso. _ É o que poderia esperar de uma verdadeira dama, como você. Nada de Jack Guinéu, nem a maneira irônica com que aquele seu maldito marido fala comigo. _ Ele fez uma pausa, o rosto retorcido. _ Vim para matá-lo. De preferência, na sua frente. _ Mal con­seguia olhar para o ventre intumescido de Hester.

Era o que Hester queria saber desde o momento em que vira que ele estava armado. Por essa razão estava tão calma. O homem pretendia matar Tom, e ela precisava evitar que isso acontecesse. Descubra como, era o que Tom diria. Recordou-se de que ele, certa vez, mostrara-lhe alguns truques de mágica e falara sobre a im­portância de desviar o foco da ação. Pois bem, tentaria desviar a atenção de Jack, se pudesse.

_Como entrou aqui?

_Gosto disso, também. Você é fria, minha querida. Muitas mulheres teriam um ataque histérico, a essas alturas. O desqua­lificado de seu marido não merece um tesouro como você, Hester.

Ela soube, então, que ele não usava de ironia, que sua admiração era real, não uma farsa. Tremeu, diante dos olhos que a acariciavam.

_Como entrou, passando por Miller e os guardas, lá fora?

_ Eu não passei _ ele retrucou, com um leve sorriso, encantado com a própria esperteza. _ Estou aqui dentro desde o meio-dia. Ninguém estava preocupado com quem entrava ou saía, então, e a casa é grande. Estava à espreita e observei aquele maldito ba­julador, Ramsey, chegar com seus acompanhantes, e vi quando foram embora. Oh, tenho sido paciente, tudo por uma boa causa.

_Por que deseja matar Tom? Ele o machucou, eu sei, mas você disse coisas horríveis sobre nós. Você devia ter esperado que ele agisse assim.

_ Oh, meu amor_ disse ele, com a voz alterada _ ,se ele não tivesse se casado com você, eu poderia até deixá-lo viver, mesmo tendo me humilhado além dos limites e provocado a minha ruína. Mas, não posso, se ele a tem. Não suporto pensar que aquele bruto partilha de sua cama.

_Não pode sentir-se assim, capitão Cameron. Você sempre me julgou uma “coisa feia” e fez de tudo para que eu soubesse que me via dessa forma.

_Oh, por Deus, como eu pude ser tão tolo e não ver que pérola, que tesouro você era. Você tem me assombrado desde o baile. Tem sido um calvário vê-la com ele. E agora, olhando para voce assim... indefesa... e doente... Ele merece morrer pelo que lhe fez.

_Está enganado, capitão Cameron. Ele não fez nada a mim. Quero meu bebê tanto quanto ele. Deve me matar também, se deseja tirar a vida de Tom por causa na criança.

O    rosto de Jack se retorceu, de novo.

_Oh, Hester, certamente que a matarei, mas não a magoaria jamais. Ele a corrompeu, eu sei, mas isso vai passar. Ele me ar­ruinou, pois tenho certeza de que foi ele que informou O’Connell sobre mim. Aquele idiota do O’Connell disse que não foi ele, mas eu sei que foi. Ele pegou Kaye em Paramatta, e Kaye deu com a língua entre os dentes.

Então era isso. Jack Cameron era o problema que atormentava Tom, todo o tempo. Ela estava certa quanto a Paramatta, também. Oh, Tom, por que não me contou? Por que carregar todo esse fardo, sozinho? Seu olhar, porém, sobre Jack, permaneceu firme e nada deixou transparecer.

Ele não estava tão fora de si que não percebesse que o que havia dito a tocara. Balançou a cabeça, como para aclarar os pensamentos.

_Dizem que ele conta tudo a você. Boa piada, essa. O esper­talhão do Dilhorne partilhando suas falcatruas com a jovem esposa, ora essa... Vejo que não é bem assim, que não lhe contou sobre mim.

_ Não, ele não me contou. Tem certeza de que quer acrescentar o assassinato à lista de seus outros crimes? Isso, certamente, não vai ajudá-lo.

_ Não, não vai, mas me sentirei melhor quando atirar nele e livrá-la daquele sujeito. Se não posso tê-la para mim, Dilhorne também não a terá. Então, poderei dormir em paz.

Faça-o continuar falando, disse o Mentor de Hester, subita­mente retornando à vida, depois de uma longa ausência e falando com o tom de voz de Dilhorne. Mudança de foco, lembre-se, sempre funciona. Ele não sabe que você é uma esplêndida atiradora. Vai pensar que você tem medo de armas.

Hester quase meneou a cabeça, concordando, enquanto a voz continuava: se você se apossar da pistola sobre a mesa, lembre-se de apontar para o peito e não para a cabeça, se quiser matá-lo.

Sim, ela respondeu mentalmente, com firmeza, quando a voz se calou. Eu vou matá-lo, se com isso puder salvar Tom. Porém, tenho que apanhar a pistola, primeiro.

A arma estava diante dela, sobre a mesa. Era inacessível, no momento, os olhos de Jack estavam continuamente sobre ela. Era óbvio que o capitão estava no limite da sanidade e poderia até mesmo disparar se pensasse que ela pretendia ajudar Tom.

Hester fechou os olhos. Sua vida não valeria nada, se Cameron matasse Tom, mas tinha o bebê a considerar. Se não fosse pelo filho, poderia se arriscar.

_Pensando, Hester, minha querida?

_Sim. Estava imaginando como você pôde descer a esse ponto. Deve ter sido, realmente, por minha causa.

_Oh, Hester, eu estava cego, cego! Se eu, pelo menos, soubesse como era você, na verdade, eu teria feito de tudo para que se interessasse por mim, não por ele. Jamais você teria se casado com aquele porco.

Era inútil tentar usar da razão para com ele. Jack estava trans­tornado. Sua louca adoração por ela poderia ser até divertida, quando comparada a ojeriza anterior, se não fosse tão perigosa. Os deuses deviam estar rindo de uma tal reviravolta, se é que não a tinham planejado para se divertirem.

O silêncio de Hester deixou Jack irritado.

_ Fale comigo, Hester, pois Dilhorne não deve demorar, agora. Implore por ele, embora nada do que diga possa salvá-lo.

_ Não _ ela respondeu, calmamente. _ Não o farei.

_ Não? Então, sirva-me um drinque, querida, como estava ser­vindo para ele quando eu cheguei. Esperar dá sede. Se você fosse minha esposa, eu não a deixaria sozinha, à noite.

_ Mas eu não sou sua esposa, capitão Cameron. E nunca serei, e matar Tom não vai mudar isso. _ Ela se levantou e caminhou para o aparador.

Ele ergueu a pistola, acompanhando o trajeto desengonçado de Hester, e mirou nela, enquanto ela colocava o brandi em dois copos. Um barulho, lá fora, alertou-o.

_ Está ouvindo o porco, chegando?

As mãos de Hester, servindo a bebida, continuaram firmes, e seu rosto, ao voltar, era calmo e sereno como se estivesse oferecendo um chá ao visitante.

Ela não fez menção de responder. Colocou o copo na mesa, diante de Cameron. Ficou a observá-lo beber, em um só gole de­sesperado, o que despertou nela a triste recordação do rosto de seu pai.

_ Outro? _ ela estendeu o outro copo e, sorrateiramente, mo­veu a pistola para mais perto. Jack, com os olhos fixos nela, não percebeu a manobra disfarçada.

_ Não, é você quem deve beber _ disse, empurrando o copo de volta.

Agora, a voz de Tom ecoava no hall, dispensando Miler do trabalho e mandando-o de volta a seus aposentos.

Hester suspirou. Esperava poder agir quando Jack fosse dis­traído pela chegada de Tom, mas o louco ainda a observava de perto. Pior, o corpo pesado a impedia de tentar um movimento súbito para apanhar a pistola. Fixou os olhos no inimigo, quando a porta se abriu e Tom entrou.

A princípio, não se deu conta da presença de Jack, pois a sala estava em sombras.

_Ora, meu amor _ ele falou. _ Ainda acordada, e no escuro? Não devia ter ficado esperando por mim... _ Então, de súbito, todos os seus piores temores se confirmaram, e ele viu Jack, com um sorriso horrível no rosto, a pistola agora apontada para Hester.

_O que está fazendo aqui, Cameron?

Não avançou, ficando imóvel, no mesmo lugar.

_ Entretendo sua esposa e esperando por você, Dilhorne. _ Balançou a pistola. _ Como vê, vim matá-lo.

_Não é muito esperto de sua parte, Jack. Será enforcado, se o fizer. Conversa fiada, não é?

Sem tirar os olhos de Jack, Tom começou a se mover, contra a parede, para perto de onde Hester servira as bebidas.

_Fique parado, Dilhorne. Quero olhar bem para a sua cara antes de acabar com você. Não devia ter se casado com Hester. Eu poderia deixá-lo viver se não houvesse feito isso.

Tom percebeu claramente que Jack estava na linha divisória que separa a sanidade e a loucura. Se era uma condição temporária, ou permanente, não podia dizer. Olhou para Hester, que estava de costas, os olhos focalizados, ainda que Tom não soubesse, na pistola em frente a ela, tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.

Ela não pretendia agir sem a certeza de que nada precipitaria a ação de Jack contra Tom. Meu Deus, pensou, dê-me uma chance, e eu saberei aproveitar.

_ Você não está ferida, está, Hester? _ perguntou Tom, ig­norando o maluco.

_ Não, só assustada. _ A voz de Hester era fria e controlada.

_Ela é corajosa, Dilhorne _ disse Jack, com admiração. _ Você não a merece.

_ Sei disso _ retrucou Tom, falando em tom natural, para não provocar Jack. _ Você não a machucaria, não é verdade?

_ Eu? Não! Eu não a deixaria cair no meio do mato...

Tom começou a deslizar lentamente em direção ao aparador. Se conseguisse ficar por baixo dele.. - Na verdade, marido e mulher calculavam os prós e contras para neutralizar Jack, enquanto o mantinham preso à conversa e cego a seus propósitos.

Como se tivesse pressentido esse jogo de gato e rato, Jack er­gueu a pistola, apontou-a para Tom e disparou. Dilhorne, adivi­nhando a intenção pelo braço estendido, lançou-se para debaixo do aparador, a bala atingindo-o quando desapareceu da vista.

Hester, enquanto isso, aproveitara a oportunidade, quando Jack se voltara, afastando a atenção tanto dela quanto da arma sobre a mesa. Apossou-se da pistola no momento em que ouviu o es­tampido do tiro e o barulho da queda.

Soltou um grito desesperado de angústia e desespero.

_Você o matou, você o matou!

Jack deixou caiu o braço e virou-se, sorrindo:

_Com prazer, Hester, com prazer.

Jogou a pistola fumegante sobre a mesa.

Hester, as mãos escondendo a arma que havia apanhado, le­vantou-se, empurrou a cadeira atrás de si com o pé e, antes que Jack entendesse o que estava acontecendo, deu dois passos para trás, firmando-se como Tom havia lhe ensinado e como fizera tan­tas vezes, nos exercícios de tiro.

Usando ambas as mãos, ergueu a pistola e apontou-a para o peito de Jack.

Cameron, que se deleitava com uma alegria selvagem ao ver Dilhorne caldo, subitamente se deu conta de que a morte o espiava pelo cano de sua própria pistola, e de um ângulo fatal.

De semblante pálido, olhos faiscando, Hester o encarou, as in­tenções claras em seu rosto.

_Você matou Tom, e vou matá-lo por isso.

As mãos de Jack se levantaram, em um gesto involuntário. Deu uni passo em direção a ela. Era óbvio que ela pretendia fazer o que dizia. A posição de tiro dizia a ele que Hester tinha o co­nhecimento e a habilidade para atirar.

_Não, por favor, não! _ gritou roucamente.

Os dedos de Hester fecharam-se sobre o gatilho. Armou o cão. Tom, ferido, mas não morto, levantou-se por detrás do aparador e gritou:

_Não, Hester, não! Não atire.

Hester disparou.

 

                                                 CAPÍTULO XV

O ecoar do tiro permaneceu no ar por alguns ins­tantes. E, então, fez-se o silêncio.

Cameron baixou as mãos, tateando o corpo, desorientado. Não estava ferido nem morto. No derradeiro momento, ao ouvir a voz de Tom, Hester atiram por cima da cabeça de Jack, atingindo o painel de cedro.

Ainda segurando a pistola, a fumaça esvaindo-se de seu cano, de rosto pálido como a cera, ela caiu na poltrona, seus olhos fixos em Tom, que caminhava do aparador até onde ela estava. Tinham olhos apenas um para o outro. Jack Cameron fora quase esquecido.

À visão dos dois, juntos, o ódio e o desejo de vingança, que aos poucos haviam arrastado Jack à loucura, esvaíram-se, e com eles, sua obsessão por Hester. Oh, podia admirar sua coragem e sua beleza, mas não permitir que isso o desencaminhasse para os ex­cessos da ira e da insanidade. Sentiu apenas um amargo ressen­timento por estar vivo. Sabia que somente o comando de Dilhorne havia feito com que Hester se desviasse do alvo e o tiro não o atingisse no peito, lançando-o ao chão.

O pior, muito pior, era dever a vida à piedade de um membro da escória emancipista.

Exausto, esgotado, Jack foi invadido por uma súbita e terrível constatação: não havia ninguém, no mundo inteiro, que gostasse dele o bastante para matar por ele, mesmo para protegê-lo, ou por vingança, como marido e mulher haviam acabado de mostrar que estavam preparados para fazer, um pelo outro.

Tom lançou-se de joelhos, perante Hester, sem se importar que o sangue de seu ombro ferido manchasse seu vestido. Abraçou-a, com o outro braço são.

Hester começou a chorar. Soluços a sacudiam e, entre eles, repetia o nome de Tom, incessantemente.

_ Pensei que ele o tivesse matado _ murmurou, por fim.

_ Eis aí, a minha garota corajosa _ Tom falou com doçura. _ Psiu... estamos salvos agora. _ Pôs-se a embalá-la, como uma criança.

_ Eu o teria matado _ ela continuou _ , por você.

Gradualmente os soluços cessaram, e ela recostou-se contra o peito do marido, exausta.

Jack Cameron deu alguns passos e afundou na cadeira, a mesma que ocupara antes. Seu rosto também estava pálido. A pistola descarregada jazia a sua frente, mas ele era incapaz de recarregá-la ou, na verdade, de fazer qualquer gesto.

Em confusão, imaginava o que estaria fazendo ali, naquela sala estranha, nos limites do mundo que conhecia, observando um homem e uma mulher que não se davam conta de sua presença. Olhou va­gamente para Tom que, agora que se assegurara que Hester estava calma, tomara a pistola da mão da esposa e a colocara sobre a mesa.

_ Saia _ ele disse a Jack, sua voz quase indiferente. _ Re­tire-se daqui.

_ Não _ gritou Hester, reagindo. _ Não, Tom! Ele tentou matá-lo. Ele o feriu. Você não pode deixá-lo ir.

Ele tentou sossegá-la.

_ Meu amor, precisamos ser sensatos. Nenhum de nós deseja ir à corte para punir este salafrário. Ele já foi suficientemente punido. Não me matou e deve sua vida a mim, pois, se eu não houvesse gritado, você o teria atingido e não ao teto, e ele estaria, agora, morto aqui no chão.

Hester mostrou-se inflexível, como uma tigresa, defendendo o companheiro e q, cr~a ainda não nascida.

_ Ele deveria ser enforcado. Eu quero que seja enforcado. Ele pensou que o havia matado. Ficou feliz. Disse isso.

Tom acariciou-lhe o rosto.

_ Calma, minha querida. Foi minha culpa também. Meu or­gulho por minha esperteza provocou essa reação. Estava tentando protegê-la, e o amor transtornou meu julgamento. Você não deve incorrer no mesmo erro. _ Encarou Jack de novo, o semblante fechado. _ Vá embora, antes que eu mude de idéia. Vou enviar-lhe as promissórias pela manhã, e você poderá queimá-las. Não quero nada de você. Sua carreira terminou porque eu o pressionei demais. Meu ombro ferido é pagamento suficiente.

As pernas de Jack amoleceram. Lutou para equilibrar-se, apoiando-se na mesa.

_ Você quer que eu o agradeça por me salvar? _ O sarcasmo era débil, mas, mesmo assim, estava lá.

_Não. Não quero nada de você, nem qualquer gesto de gen­tileza. Saia e fique longe de mim e dos meus no futuro. Não contarei nada do que aconteceu aqui a ninguém. Não quero vingança. Volte ao quartel antes que dêem por sua falta.

Jack era um homem derrotado, pensou Tom. Voltou-se, dando-lhe as costas e beijando Hester nos cabelos. Ela ainda estava em choque, vítima de forte reação por tudo o que passara.

O    amargo ressentimento que, pouco antes, havia invadido Jack Cameron, envolveu-o de novo. Sua carreira militar estava acabada, seu futuro era negro, e ele fora esbulhado por um ex-condenado que, sabia-se lá como, tivera a sorte de obter um amor que a maioria dos homens apenas sonhava em ter.

Que mulher mataria por ele?

Nem Tom nem Hester o viram sair.

Hester tremia violentamente.

_ Acabou! _ exclamou Tom. _ Ele é um homem derrotado. Até deixou para trás suas pistolas. Vou providenciar para que sejam devolvidas, sem que O’Connell descubra o que ele tentou fazer.

Gradualmente, ela se acalmou sob as mãos suaves e carinhosas do marido. O coração de Tom estava cheio de amor por ela. Es­tranhamente agradecido. Não apenas por ter sido salvo da morte, mas porque a atitude de Hester havia revelado a força de seus sentimentos para com ele.

_Diga-me, meu amor, você realmente o teria matado? Gosta tanto assim de mim? Há momentos em que temo que tudo o que sinta seja gratidão, que eu me engane ao pensar que pode me amar, um bruto como eu.

_Oh, sim _ disse Hester, e não poderia haver dúvidas quanto à sinceridade de sua voz. _ Eu o amei desde que entrou na sala do Conselho, para me entrevistar. Quando brigamos, depois do baile, você me disse isso e tinha razão. Eu não sabia, então, mas tenho pensado nisso desde essa ocasião. Eu não sabia o que era amar alguém ou ser amada. Foi somente depois que nos tomamos marido e mulher de verdade que comecei a entender o que eu queria de você, desde o primeiro momento em que o vi naquele belo colete com os pavões. Pensei, a princípio, que era medo o que eu sentia, mas, então, subitamente, percebi que era amor, que você se tomara meu mundo. _ Ela o abraçou. _ Sim, eu o teria matado. Por você, apenas e tão somente por você.

Tom ficou em silêncio. Hester repetira a frase que dissera a ela, na discussão. Cabeça baixa, as palavras saíram de sua boca, e ele disse a Hester aquilo que jamais pensara em dizer a alguém:

_Eu não a mereço, ou o seu amor, Hester. Sou um homem mau, ardiloso, duro e cruel. Cameron tem razão em me odiar. Eu atirei no pobre Kaye no ombro, quando estava em pé, indefeso, diante de mim. Fiz outras coisas, ainda piores, terríveis.

_ Sei disso _ ela retrucou simplesmente. _ E não importa. Eu o amo, é tudo que sei e que me interessa. O resto é nada! Sei que você foi gentil comigo, a princípio, porque isso o divertia. Ape­nas a princípio. Mais tarde, percebi que também me amava, como eu o amava. Você me transformou, e, então, transformou-se tam­bém. _ Ela afagou-lhe os cabelos. _ Por que estamos falando sobre isso, enquanto esse pobre braço precisa de cuidados? O fe­rimento não foi sério, mas tem que ser curado imediatamente.

_Você continua prática como sempre, amor _ ele respondeu, beijando-a. _ Eu lhe direi o que fazer por meu ombro e, depois, mandaremos buscar Alan para examiná-lo. Ele não vai falar ou fazer perguntas.

Hester foi buscar água e ataduras, para limpar e envolver o ferimento. A bala não se alojara no ombro, tendo, por sorte, des­viado-se do osso. Pouco depois, Tom recostava-se no sofá, sabo­reando o brandi que ela lhe trouxera.

Por alguns instantes, ele deixou de ser o observador atento que sempre fora. Fechou os olhos. A dor e o susto o desviaram do fato de que Hester também estava sofrendo, e que o sofrimento, em vez de desaparecer, aumentava. O esforço para empurrar para trás a pesada poltrona, e levantar-se tão subitamente para con­frontar Jack com a pistola, tinha provocado uma dor aguda e pe­netrante em suas costas. Não havia pensado em nada naquele instante, atribuindo isso ao movimento violento e ao peso do corpo.

Mais tarde, quando trouxera a bacia com água para limpar o sangue do ferimento, do chão e da parede, a dor voltara de novo, desta vez mais forte. Ela precisou apoiar-se na mesa, para supor­tá-la. Se não fosse nas costas, ela teria sabido que o bebê estava prestes a nascer. Contudo, supôs que fosse mais um dos desagra­dáveis sintomas de sua difícil gravidez.

Até que, caminhando até onde estava Tom, para verificar se estava confortável, foi tomada de uma dor tão forte que a obrigou a se agarrar ao braço da cadeira. Deixou escapar um gripo estrangulado.

Tom arregalou os olhos e agarrou-lhe o pulso com a mão boa.

_ Hester? O que houve?

_ Minhas costas _ ela murmurou, com uma voz abafada. _ É unia dor horrível.

_ Quando começou? Diga depressa, querida _ pediu ele, levantando-se.

Ela o fitou, assustada.

_Eu me machuquei quando pulei para pegar a pistola de Jack e empurrei a cadeira para trás, com força. Mas, não pode ser o bebê. A dor é nas costas, e o bebê ainda não está pronto para... oh!

Ela quase caiu sobre ele, dobrada por uma pontada ainda mais forte.

_ Meu Deus, mas é o bebê, Hester! Depressa, precisamos levá-la para cama, e Alan tem que vir até aqui, imediatamente. Se eu não estivesse ferido, poderíamos nos arranjar sem ele. Fiz o parto de mais de uma criança no transporte. Mas isso! Oh, Deus! Não temos nem mesmo uma enfermeira!

Hester nunca vira Tom tão descontrolado. A dor no ombro ferido e sua preocupação para com ela o estavam deixando desarvorado. Tentou pegá-la no colo para subir a escada, mas ela o impediu.

_ Oh, não, por favor, você pode me deixar cair. Posso andar sem sua ajuda. Não tente fazer mais do que pode, Tom. Pense em seu braço.

_ Dane-se meu braço!

Ele insistiu em ajudá-la a subir a escada, segurando-a cada vez que a dor a invadia, o que acontecia a intervalos cada vez mais curtos.

Mesmo no auge da agonia, Hester não podia deixar de pensar que par ridículo os dois faziam: um homem ferido e uma mulher grávida, com unia barriga enorme, arrastando-se escada acima. Fi­nalmente, Tom conseguiu levá-la até o quarto e deitou-a na cama.

_ Fique ai _ disse _ como se ela pudesse ir a alguma outra parte! _ Vou acordar Miler e mandá-lo buscar Alan. Deus ajude que ele chegue a tempo.

Ela o ouviu descer a escada correndo, chamando por Miller, pela sra. Hackett, pela criadinha. Por que não a cozinheira? Hester pensou, em meio à vertigem, e, então, todos seus pensamentos se dissolveram em uma dor ainda mais intensa. Agarrou-se aos len­çóis e mordeu o travesseiro.

Não vou gritar! Não vou!, o estoicismo de anos estava de volta.

Quando Tom retomou, tinha posto um casaco para proteger a bandagem do ombro, e carregava toalhas e lençóis limpos.

_ A sra. Hackett está colocando água para ferver. Acha que chegou a hora. Sente-se, precisamos tirar sua roupa, meu amor. Você disse que queria que eu estivesse com você quando o bebê nascesse, e sua vontade será feita.

Ele a ajudou a vestir uma camisola, sem saber que seu rosto e o dela, estavam lívidos com o esforço. Torceu um lençol, arrastou uma poltrona para perto e amarrou uma das pontas em torno de um dos braços. Deu a outra ponta a ela.

_ Puxe quando as dores vierem, querida. Vai ajudar a suportá-las.

Hester fitou-o, olhos arregalados, e murmurou, em uma voz quase inaudível, antes que nova onda de sofrimento a assolasse:

_ Existe alguma coisa que não possa fazer, sr. Dilhorne?

Ele tomou-lhe a mão e beijou-a.

_ Não posso sofrer a dor em seu lugar, meu amor, ou faria isso. E nosso primeiro filho. Alan sempre me disse que demoram mais a nascer, de modo que ele deve chegar a tempo. Agora, beba isso, sra. Dilhorne. Vai ajudá-la a se sentir melhor.

Estendeu-lhe um copo de brandi puro, que ela bebeu, obediente. No fundo da memória, lembrou-se do brandi que tinham bebido juntos, em sua primeira noite de amor.

De novo, um espasmo violento sacudiu-a. Sob o efeito da dor e da bebida, passado e presente se confundiram, e ela se viu so­zinha, na sala da sra. Cooke e, logo depois, estava com ele, nas longas noite de amor que desfrutavam.

O tempo se arrastava.

Tom fitou-a, enxugando-lhe o rosto molhado de suor, embora ela mal se apercebesse de sua presença. Finalmente, ela relaxou, pegou-lhe a mão e disse, em uma voz sumida:

_ Você nunca vai saber quanto me fez feliz, Tom.

Havia algo, em seu modo de falar, que soava como se Hester estivesse se despedindo. Tom estremeceu, ao pensamento. Filho nenhum valia a perda de sua amada esposa e, pela primeira vez, ele viu, diante de si, uma vida vazia e sem finalidade, se a perdesse.

Agarrou-lhe a mão, e deitou o rosto sofrido sobre a palma. A sra. Hackett entrou, com a água quente. A piedade assomou a sua face, endurecida pelos anos. Não havia dúvidas de que ele estava sofrendo com a agonia da esposa. Logo depois, ela voltou, com toalhas secas e velas novas, e disse a ele que descansasse um pouco, enquanto ela cuidava de Hester.

As dores vinham, agora, em ondas mais violentas e a intervalos

cada vez mais breves, sinal de que a criança estava prestes a nascer. Porém, quando Tom a ajeitou sobre os travesseiros e chamou a sra. Hackett para ajudá-lo no parto, nada aconteceu, embora Hester coo­perasse, fazendo força. Ele já havia visto isso ocorrer antes, e não era nada bom. A esperança ameaçava abandoná-lo, quando ouviu o barulho de uma carruagem parar na entrada da casa. Alan!

Atordoado, quase prestes a perder a consciência, Tom correu escada abaixo para saudar o amigo, que tinha Sarah a seu lado, ela que sempre atuava como enfermeira nos partas.

_ Por Deus, Alan _ gritou, antes de levá-lo ao quarto. _ Algo está errado, se não estou enganado.

_ Todos os pais pensam assim _ foi a resposta calma de Alan.

_Deixe-me examiná-la.

Alan foi minucioso em seu exame. Seu semblante denotava preo­cupação. Mais tarde, quando a criança ainda não dava mostras de querer nascer, começou a ficar aflito. Tinha visto que Tom estava com o braço ferido e, deixando Hester com Sarah, levou-o para outro aposento. Examinou-lhe o ombro e disse ao amigo para que tentasse descansar.

_ Não, não posso deixá-la.

_ Você não pode ajudá-la, mesmo que fique a seu lado _ disse Alan, com tranqüilidade. _ Não vou esconder o fato de que ela está muito fraca e temo por ambos, por ela e pelo bebê. Se houver uma emergência, a quem devo salvar, a mãe ou a criança?

Tom afastou-se, com violência, de perto do amigo.

_ Por Deus, Alan, que pergunta! A mãe, é claro. Não posso perder Hester. Você não pode imaginar o que ela estava disposta a fazer por mim, esta noite.

_ Posso adivinhar _ murmurou Alan, que ouvira os delírios de Hester. _ Vou fazer o melhor que puder para os dois, e para você. Mas, o problema está fora do alcance de minhas mãos. Em um parto, Deus põe e dispõe. Se a situação ficar desesperadora, prometo que mando chamá-lo.

Banido do lado de sua Hester, seu amor, sua estrela e razão de seu viver, Tom percebeu que sua vida não teria mais sentido se ela morresse, e tudo que conquistara se transformaria em cinzas. Desabou sobre a cadeira, o rosto entre as mãos.

Tinha se casado com ela quase como uma brincadeira, julgando que ela era apenas uma coisa a mais que adquirira em seu caminho rumo ao poder e a dominação. Agora, era ela quem o possuía.

Eram almas gêmeas que o destino havia unido, e, se Hester mor­resse, o que seria de Tom Dilhorne?

Dentro do quarto, Alan e Sarah uniam esforços para salvar pelo menos Hester, se não fosse possível salvar o bebê. Era o que parecia prestes a acontecer, Alan percebeu, com tristeza. Sarah saiu do quarto e deparou-se com Tom, no corredor, o ombro são apoiado contra a parede. Seu rosto era inconsolável.

_Oh, Tom, pelo menos, sente-se _ disse ela, apavorada com sua aparência. _ Está se deixando abater sem motivo. Nada está consumado.

_Não, não enquanto Hester sofre essa brutal agonia. Oh, meu Deus, oh, Sarah, eu sou um bruto egoísta, e ela é tão frágil. Ela sabia quanto eu queria um filho. Nunca, nesses meses todos de sofrimento, reclamou.

_Não perca a esperança _ Sarah insistiu. _ Alan acha que pode salvar os dois. O parto nunca é fácil, na maioria das vezes.

_Mas, trata-se de Hester! Nunca me importei tanto com al­guém, antes, e não há nada que eu possa fazer para ajudá-la, nada! Se eu pudesse, suportaria todas as penas, mas não posso... Meu coração vai se partir se eu perdê-la.

Começou a soluçar, o rosto escondido entre as mãos, o corpo tremendo sob a violência de sua dor.

Sarah nunca havia pensado em ver Tom Dilhorne, o homem duro e frio, assim, tão acabado. Engoliu em seco.

_ Não é próprio de você, Tom, que eu tenha que lhe dizer que seja corajoso.

_Não, como pode ver, estou arrasado. _ Agarrou-a pelos punhos com tamanha força que ela quase gritou. _ Tem de me prometer que, se algo sair errado vai me deixar entrar. Preciso estar ao lado dela.

_ Claro. Precisa confiar em nós, Tom. Precisa confiar em Deus. Se acontecer o pior, nós o mandaremos chamar imediatamente.

A noite avançou. Lentamente, Hester começou a definhar. O so­frimento a consumira por tão longo tempo que estava fraca e debi­litada a ponto de resvalar para a inconsciência. Uma onda de paz a inundou, nem a dor, nem a alegria, nem qualquer sensação a tocava.

Seu Mentor, despertado pelas ameaças de Jack Cameron, ha­via-a ajudado no princípio, mas silenciara diante da prolongada agonia. Os clamores da força de vontade e do ego haviam silenciado, também. Alan, baixando os olhos para ela, viu um semblante re­signado e de aceitação pacífica, que já presenciara anteriormente. Percebeu que ele a estava perdendo para a morte.

Sarah, do outro lado da cama, também percebeu. Seu rosto transformou-se em uma máscara de pesar. Perguntou ao marido:

_Devo trazer Tom?

_Não! _ exclamou Alan, com violência. _ Ainda não. Não vou falhar com eles. Pelo menos, tentarei salvar Hester.

Ao ouvir o nome do marido, Hester abrira os olhos, para fe­chá-los, logo em seguida.

Alan, inclinando-se, colocou as mãos sob o corpo de Hester, ergueu-a para uma posição sentada na cama, e apoiou-lhe a cur­vatura da coluna com uma almofada.

_Hester! _ chamou imperioso. _ Olhe para mim.

Ela abriu os olhos. Ele não queria que se fechassem outra vez.

_Faça o que eu mando. Por Tom e pelo bebê.

Tom e o bebê, murmurou seu Mentor, ganhando novamente a vida. Pense em Tom e no bebê. Não durma. Dormir é morrer. Lembre-se, Hester, Tom e o bebê. Você quer ver o bebê, e ver Tom com o bebê, não quer?

A princípio, Hester quis ignorar a voz incisiva. Acordar, voltar à vida, significava sofrimento e dor. Tudo o que queria era paz, libertar-se do sofrimento. Tom não gostaria que ela sofresse.

A voz insistiu, novamente, mais alta e mais forte. Pense em Tom e no bebê. Você não quer deixar seu marido sozinho, quer? Lembre-se de quanto o ama.

_ Sim _ ela respondeu, com uma voz tão fraca, que Alan mal a conseguiu ouvir _ , eu me lembro. Quero ver Tom outra vez, e o bebê.

_ Segure as mãos de Sarah _ disse Alan, encontrando os olhos dela que agora pareciam reconhecer que ele estava ali, a seu lado _ e, então, quando a dor voltar, não a reprima, não a ignore. Grite, Hester, grite tão alto quanto puder. Aceite a dor, associe-se a ela e, só assim, eu posso ajudá-la.

Enquanto ele falava, a dor veio de novo, tão violenta que parecia emergir das profundezas de seu próprio ser. Tão poderosa que Hester pensou que sé partiria em duas. Um primeiro grito escapou, o grito continha a mesma angústia daquele que soltara quando pensara que Jack Cameron havia matado Tom. Como Alan disse mais tarde, era seu estoicismo que a estava destruindo.

Lá fora, Tom enterrou o rosto entre as mãos horrorizado.

Lá dentro, Sarah caiu sobre Hester, com a força com que esta a agarrou.

Alan berrou, vendo que um novo espasmo a sacudia:

_Vamos, força! Ótimo! De novo! Você quase conseguiu. Em­purre, Hester, empurre com todas as forças!

Desta vez, ela empurrou, mas não gritou. Sentiu um terrível alívio, uma sensação incrivelmente estranha, que Alan partilhou com ela de uma forma diferente. Uma cabeça pequena, coberta de cabelos negros, saltou para fora. Logo, o corpo acomodou-se na cama, entre as pernas de Hester, berrando desafiadoramente.

Alan tomou a criança e entregou-a a Sarah. Voltou-se para cuidar de Hester. Deu um grito, de espanto:

_Por Deus! São dois!

Uma cabeça coberta com cabelos cor-de-areia aparecia, a razão do tamanho de Hester, sua fraqueza e o prolongado trabalho de parto.

A segunda criança nasceu sem dificuldade. Sarah enxugou o rosto de Hester, empapado de suor, e colocou o primeiro bebê em seu braço direito. Alan ergueu o outro, ainda molhado, também berrando desesperadamente, e colocou-o no esquerdo.

_Dois _ murmurou Hester deslumbrada. A alegria da mater­nidade, depois de tanto sofrimento, tomou-a por inteiro. Seu pobre corpo dolorido e a fraqueza terrível recebiam uma bela recompensa.

_Dois, sua garota esperta _ disse Alan _ , e ambos meninos.

_Não era de admirar que eu estivesse do tamanho de um elefante _ suspirou Hester, com a voz fraca. _ Os dois mestre­zinhos Dilhorne. Ele já sabe? Oh, quero mostrá-los a Tom.

_Alan vai chamá-lo, Hester.

_E não deve contar que são dois _ disse Hester, com um toque travesso na voz.

Alan, Sarah e Hester diriam depois que a única ocasião em que tinham visto Tom Dilhorne desorientado foi quando Hester mostrou-lhe os gêmeos, dizendo:

_Tom e Alan.

Ele encarou os dois bebês zangados, berrando de fúria por terem deixado o ninho quente do corpo da mãe. Mas, sendo Tom Dilhorne recobrou-se rapidamente, como sempre.

_Juros compostos, Hester, minha querida. Você disse que sabia tudo sobre porcentagens, da primeira vez que nos encontramos.

Finalmente, quando Alan e Sarah lhe entregaram os dois ga­rotos, aos berros, para que os segurasse, ele exclamou, orgulhoso:

_Dilhorne & Filhos! Hester, Dilhorne & Filhos. Nome perfeito para uma família de sucesso. 

 

                                                                                Paula Marshall 

 

 

                                         

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