Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Série Pine Creek Highlander
Volume 3
O CASAMENTO DO HIGHLANDER
Libby Hart é uma cirurgiã de sucesso, mas as circunstâncias a obrigaram a escapar para salvar sua vida. Durante a fuga perde o controle de seu carro e cai em um lago, de onde a resgata Michael MacBain, um guerreiro medieval apanhado na época atual por um feitiço.
Michael foi rejeitado por uma mulher moderna e jurou não voltar a relacionar-se com nenhuma, mas a paixão que desperta Libby é muito forte. O orgulhoso guerreiro deverá fazer frente não só a seus instintos, mas também ao segredo que guarda Libby, um segredo que ameaça mudar suas vidas para sempre.
Vine Creek, Maine, 22 de Outubro
Um grito o despertou justo quando atravessava dando voltas no terrível vazio, recuando e arranhando em busca de algo sólido ao que agarrar-se. Mas não havia nada; só uma segadora luz branca e o horror de saber que não tinha controle sobre seu destino.
Michael MacBain abriu os olhos, manteve-se absolutamente quieto e escutou o silêncio, quebrado tão somente pelo ofego de sua própria respiração. Devagar, levantou-se e esfregou a face para limpar o suor; depois desenrolou o lençol das pernas, jogou para um lado a roupa de cama e se levantou. Foi até a janela, abaixou o vidro de cima, com baforadas lentas e medidas, inspirou o fresco ar de outubro e deixou que alagasse os trêmulos músculos.
Ao cabo de uns bons dois minutos, por fim o coração tranquilizou e limpou a cabeça. Depois de lançar um suspiro na noite, cravou o olhar na escuridão e decidiu que tudo ia bem. As montanhas, banhadas com a luz da lua, seguiam jogando sua sombra sobre a fazenda; as estrelas continuavam brilhando firmemente, sua casa estava tranquila… Seu filho, Robbie, estava seguro na cama, e John dormia no piso de baixo.
Michael voltou a esfregar a face com cansada impaciência. Os sonhos se voltavam cada vez mais detalhados… E muito mais frequentes.
Sempre começavam com Maura, com seu funeral. No sonho via a si mesmo agachado na ladeira da colina, escondido dos MacKeage, olhando como enterravam a sua mulher do outro lado da cerca que separava os pecadores das pessoas decentes.
Ian MacKeage depositava a sua filha em terra sem consagrar. E enquanto cobriam Maura com terra impura o sonho avançava, Michael revivia a cólera e a absoluta impotência que havia sentido naquele dia.
Ela não se matou: desviou-se por engano do caminho até meter-se no gelo quebradiço do lago por culpa da tempestade de neve. Ia buscá-lo; fugia de seu clã para casar-se, para que o filho de ambos nascesse com a bênção da Igreja.
Nesse momento o sonho saltava até seu enfrentamento com o Ian MacKeage aquele fatídico dia fazia oito séculos. As duras palavras de Ian tinham acentuado o sentimento de dor de Michael, que, incapaz de raciocinar com o pai de Maura, afastou-se dali.
Sim; foi então quando decidiu entrar em guerra.
O sonho trocava rapidamente, e desta vez se encontrava em um vale situado não longe da torre dos MacKeage. Com aspecto satisfeito, Greylen, Ian, Morgan e Callum MacKeage retornavam a casa depois de negociar com êxito a ajuda do clã dos MacDonald em sua luta contra os MacBain.
Era exatamente nesse momento quando Michael e seus cinco homens atacavam… E quando o sonho se transformava em um pesadelo tão infernal para gelar o sangue de um guerreiro.
A tempestade se abatia sobre eles sem avisar, e de repente, os sons do combate se transformavam em um torvelinho de guerreiros que gritavam, cavalos que relinchavam espavoridos e trovões ensurdecedores. Primeiro um vento terrível baixava com estrondo dos céus, arrancando árvores e levantando uma poeirada que secava a garganta. Os relâmpagos cruzavam crepitando o ar, e de repente se desencadeava uma chuva que os açoitava sem piedade. A ultima coisa que Michael recordava ter visto era um homem pequeno e velho, no penhasco que se elevava por cima deles, olhando-os com expressão de horror.
Se tinha sorte, às vezes despertava nesse mesmo instante. Seu alarido de terror bastava para tirá-lo do pesadelo; encontrava-se em sua cama, no século XXI, a salvo… Mas, da mesma forma, incapaz de compreender como dez homens e seus cavalos de combate tinham sido jogados através do tempo até adiantar oito séculos.
E, como então, apesar de levar doze anos vivendo naquele mundo moderno, também era incapaz de compreender o porquê.
Embora às vezes não despertasse, e o pesadelo prosseguia; voltava a instalá-lo em um sonho menos violento, mas igualmente inquietante, no que se via no topo da montanha TarStone ao amanhecer do solstício do verão, oito anos atrás.
Nesse sonho Michael lançava ao ar as cinzas de Mary Sutter, a mãe de Robbie, e via como a suave brisa a levava. Tinha nos braços seu filho de fraldas, e o rodeavam outras pessoas: os guerreiros MacKeage, que compartilhavam de sua sina; Grace, a irmã da Mary, e os seis meio irmãos das duas. O sacerdote, Daar, também estava ali; era o mesmo homem que tinha visto no penhasco, na metade da tempestade, fazia oito séculos.
Michael esfregou o peito, já seco, e olhou para a montanha TarStone. Em realidade, Daar era um drùidh[1] chamado Pendaär que agora vivia no meio da montanha, oculto atrás de sua batina de sacerdote e seu amável sorriso.
Os quatro guerreiros MacKeage também eram vizinhos deles; a necessidade de sobreviver naquela época moderna tinha substituído a sua antiga guerra e, além disso, agora os uniam com laços de sangue, encarnados no menino de oito anos que dormia no outro lado do corredor. A esposa de Greylen, Grace Sutter MacKeage, era a tia de Robbie. E para todos sem exceção, incluído o velho drùidh, a felicidade de Robbie era primeiro.
Michael seguiu olhando pela janela, mas de repente sua atenção se centrou em uns suaves passos que entravam no quarto; sem voltar-se, esperou até que Robbie esteve a ponto de saltar para dizer em voz baixa:
—Espero que venha bem armado, filho… E que esteja preparado para sofrer as consequências.
Os passos se detiveram.
Michael olhou por cima do ombro e sorriu ao menino que estava a três passos de distância, com as mãos postas nos nus quadris e o cenho franzido em seu jovem rosto. Era evidente que se sentia insultado.
—Um nobre guerreiro não usa uma arma contra um homem desarmado —Replicou; de repente, seu cenho se transformou em um diabólico sorriso enquanto elevava as mãos e meneava os dedos — O que planejava era um ataque de cócegas.
Michael fechou a janela, pegou as calças e os pôs. Depois, enquanto colocava a camisa, olhou a seu filho.
—E se, em vez disso — Sugeriu — Se veste e subimos já à cúpula?
—Já? —Repetiu Robbie; voltou a baixar as mãos aos quadris e olhou o relógio que havia ao lado da cama — Mas se são só duas da madrugada!
Michael alargou a mão até a gaveta de acima da cômoda e agarrou umas meias três-quartos.
—Talvez chegaríamos ao amanhecer — Disse.
Robbie, que não necessitava desculpas para empreender uma aventura, bateu palmas.
—Podemos levar as espadas? — Perguntou.
—Sim — Concordou Michael enquanto se sentava na cama para colocar as meias três-quartos — Abrigue-se e pega as mochilas quando descer. Prepararei algo de comer para levar e deixarei uma nota ao John.
Antes que terminasse de falar, Robbie já tinha saído e corria pelo corredor. Michael se levantou e voltou a jogar o lençol sobre o colchão, ainda úmido de suor.
Seu grito devia ter despertado o menino; era muito preparado para sua idade e, como soube que seu pai estava sonhando de novo, tinha decidido ir distraí-lo com um ataque de cócegas.
Michael cravou o olhar na desordenada cama. Era a terceira vez que tinha aquele sonho em seis semanas; até então, só revivia aquele horror de vez em quando.
Não lhe preocupava o sonho em si, mas sim sua crescente frequência. Então voltou a aproximar-se à janela, apoiou os braços no marco superior e olhou fixamente o TarStone. Pressagiavam algo aqueles sonhos?
Os pesadelos voltavam a lhe contar seu passado, não seu futuro…
Seria possivelmente que outra visão estava a ponto de acrescentar-se à sequencia?
E o que era mais importante, teria capacidade para controlar o resultado desta vez? Construiu uma vida ali e agora tinha um filho ao que educar para convertê-lo em um homem. Nada devia interpor-se entre ele e Robbie: nem um ancião mago nem, certamente, a magia.
—Vamos, papai. Já estou vestido, e você nem sequer preparou nada ainda —Disse o menino da porta — Quero estar no topo ao amanhecer.
Michael recolheu seu pulôver do respaldo de uma cadeira e saiu ao corredor; depois empurrou com suavidade seu filho diante dele e lhe perguntou:
—Vamos a cavalo ou a pé?
—A pé — Se apressou a responder Robbie; foi descendo a saltos os degraus enquanto as mochilas vazias davam golpes contra o corrimão — Pisador é muito velho para despertar tão cedo, e Pluma é muito preguiçoso.
Deteve-se no pé da escada, elevou a vista para Michael e em voz baixa, para não despertar John, disse:
—Não penso brigar com esse pônei teimoso esta manhã. Além disso, não gosta de minha espada; acredito que o crava quando cavalgo.
—E o quad? — Perguntou Michael, baixando a voz também.
Robbie meneou a cabeça.
—Faz muito ruído, e não veremos nenhum animal noturno.
Michael lhe deu um empurrãozinho para a cozinha.
—Escreve você a nota para o John e encha as mochilas. Eu irei pegar nossas espadas.
—Posso usar a espada do Robert? — Perguntou Robbie.
Michael elevou uma sobrancelha.
—De modo que está muito cansado para brigar com Pluma mas está disposto a subir o topo do TarStone carregando a espada do Robert?
O menino pensou bem e depois negou devagar com a cabeça.
—Não, pesa muito — De repente se animou — Mas você pode levar as duas.
Depois de lhe dar outro empurrãozinho para que fosse para a cozinha, Michael deu a volta e se dirigiu à biblioteca.
—Não, filho; um guerreiro leva sua própria arma — Disse por cima do ombro.
Entrou na biblioteca, deteve-se diante da lareira e observou com atenção as três espadas que penduravam sobre o suporte. Duas eram tão largas como o próprio suporte e flanqueavam outra menor, pensada para uma mão muito mais jovem. Alargou a mão e desceu a arma de Robbie para sopesar seu equilíbrio enquanto passava um dedo pela suave longitude da folha.
Tinha mandado fazê-la especialmente para seu filho e o tinha presenteado no seu quarto aniversário. Grace, a tia de Robbie, ficou horrorizada… E os MacKeage ficaram impressionados. Bom, salvo Greylen. O senhor MacKeage adotou uma expressão ofegante, quase dolorida, ao agarrar a pequena arma e olhar a suas três filhas pequenas.
Imediatamente Robbie chamou a sua espada Tronadora, tradução livre do nome que Michael dava à sua, e saiu correndo da casa para lutar contra os arbustos. Após, com tanto assombro como orgulho, Michael lhe ensinava as habilidades de um guerreiro.
Aprender o manejo de uma espada supunha só uma pequena parte das lições, mas era a parte que ao Robbie divertia mais. O menino tinha umas aptidões extraordinárias e não só controlava sua jovem mente, mas também seus músculos, que cresciam com rapidez. Com a segurança em si mesmo própria da juventude e uma inteligência excepcionalmente aguda, estava no caminho de transformar-se logo em um adulto singular.
Entretanto, Michael não estava disposto a relaxar-se quando se tratava de seu filho. E tampouco acabava de confiar-se daquela vida e aquela terra nova; nem sequer ao cabo de doze anos, pois sabia por experiência própria quão rápido podiam mudar as coisas. E por isso, enquanto educava seu filho até fazer dele um homem, também se controlava.
Não se metia onde não o chamavam, levava sua fazenda de árvores de Natal com mão enérgica e atenta, e mantinha relações amistosas, mas precavidas com a comunidade de Pene Creek. Também cuidava de John Bigelow, o proprietário anterior da fazenda, e tentava aliviar a dor do ancião depois da perda de sua esposa, com quem tinha estado casado cinquenta e sete anos.
Todos sentiam falta de Ellen, em particular Robbie. Tinha sido como uma avó para ele, e desde sua morte, fazia dois meses, aos três resultava difícil confrontar a vida de solteiros. Michael supunha que ao final teria que render-se e contratar uma governanta antes que toda a comida queimada que se alimentavam acabasse lhes destroçando o estômago.
Alargou a mão para pegar sua espada Tàirneanaiche, empunhou-a e a tirou da parede. Ao sentir o peso familiar da arma fechou os olhos e suspirou; quase por toda a vida tinha sido uma extensão de seu braço direito. Durante os últimos doze anos havia se sentido nu sem ela rodeando nas costas, e agora passava o tempo lhe limpando o pó em vez do sangue de seus inimigos.
Então voltou a elevar o olhar para o suporte da lareira, para a espada de Robert MacBain. O velho guerreiro não se acostumou ao século XXI e ficou a perseguir tempestades com a esperança de retornar a casa.
Agarrou mais forte a Tàirneanaiche ao recordar a morte de seu velho amigo, dez anos atrás, nas terras altas do norte da Nova Escócia; afligidos e desesperados, daquela primeira partida de combate composta por seis homens só ficavam eles dois. Robert morreu instantaneamente: o raio desceu por sua espada e entrou em seu corpo. Não conseguiu voltar para casa, e Michael só esperava que o velho guerreiro tivesse encontrado ao fim a paz.
—Está preocupado esta manhã, papai — Disse Robbie da porta — A tia Grace diz que se algo me preocupar, devo falar; que falando melhoram as coisas.
Entrou na biblioteca com a mochila, já cheia, pendurada sobre os ombros, e elevou a vista para cravar em Michael seus preocupados olhos, de uma intensa cor cinza.
—Se me contar seu sonho, talvez isso ajude.
Michael pôs Tàirneanaiche sobre a amaciada poltrona, colocou a espada de Robbie na capa que este tinha costurado à mochila e se assegurou de que o punho não lhe dificultasse os movimentos. Depois alisou o cabelo, levantou-lhe a face para que o olhasse e sorriu.
—sonhei que estava no TarStone contigo nos braços, quando nos despedimos de sua mãe faz oito anos — Disse; uma verdade pela metade era melhor que uma mentira completa — Deve ser que esta excursão que tínhamos planejado me fez sonhar com a Mary.
Robbie lhe rodeou a cintura com seus jovens braços e o abraçou forte.
—Não temos por que ir, papai.
Michael lhe devolveu o abraço.
—Sim que temos — Disse em voz baixa — Nos dois precisamos visitar o lugar favorito de Mary.
Robbie se tornou atrás para olhá-lo.
—Não, papai — Disse — O lugar favorito de mamãe eram seus braços.
Michael sentiu como se um soco acabasse de lhe golpear o peito e voltou a abraçar o menino contra seu corpo para que não visse como o tinham impressionado suas palavras.
—Sabe guardar um segredo, papai? — Disse Robbie em sua camisa.
—Sim.
—Tenho um mascote novo.
—Que espécie de mascote?
—Uma coruja nevada[2].
Michael baixou a vista para seu filho e elevou uma sobrancelha.
—E quanto tempo faz que tem esse perigoso mascote?
—Ela veio para mim em meu aniversário, em janeiro passado.
—Ela?
Alheio por completo a sua preocupação, Robbie assentiu.
—Pus-lhe o nome Mary — Sussurrou.
O soco voltou a golpear, e desta vez quase o fez dobrar-se.
—Mary? Pos a seu mascote o nome de sua mãe?
—Sim —Disse Robbie, assentindo — O dia de meu aniversário desejei com todas minhas forças que viesse mamãe, mas em vez disso consegui uma coruja… Assim que lhe pus Mary.
Michael se afastou para recolher sua espada e assimilou a notícia pouco a pouco, enquanto pensava na imaginação de um menino de oito anos e em quão disposto estaria uma coruja a sentir-se atraída por ele.
—Por que não vi essa coruja? — Perguntou, olhando outra vez ao Robbie—. Onde se encontra com seu mascote?
Robbie assinalou a janela que dava ao leste.
—Ali, no TarStone. A Mary gosta de me seguir quando monto meu pônei.
Agora que seu segredo estava descoberto, apressou-se a contar tudo.
—Desliza-se pelo bosque como se fosse o vento, papai, sem fazer nada de ruído com as asas. E além disso é boa caçadora: agarra coelhos e os compartilha comigo. —Enrugou a face — Embora depois, quando os asso, não quer comer.
Michael deu um passo atrás, mais impressionado que preocupado. Desde que Grace pôs seu filho em seus braços fazia oito anos e meio, ele e Robbie tinham caminhado juntos por aqueles bosques, tinham acampado, pescado, caçado e cozinhado suas comidas em uma fogueira. Entretanto, não sabia que seu filho tivesse o costume de cozinhar sozinho.
Nem que tivesse transformado a uma coruja nevada em sua mascote.
Fez-o dar a volta e o empurrou para a cozinha. Decidiu esperar até que estivessem subindo o TarStone para investigar o tema do mascote com mais em detalhe.
—Leva a faca? — Perguntou.
Seu filho meteu a mão no bolso, tirou uma navalha pregada e a levantou para que a visse.
—Quando terei uma grande como a sua? — Perguntou.
—Quando eu disser que pode ter.
—Teria a folha reta, e o guardaria na bota, como você.
—Não; uma navalha é o mais seguro — Disse Michael, ao tempo que colocava a mão no bolso e tirava sua própria faca — A de minha bota é uma arma, Robbie, e as facas que levamos nos bolsos são ferramentas…
—E um guerreiro nem sequer necessita faca para sobreviver no monte… — Disse Robbie de carreirinha, como se já o tivesse ouvido muitas vezes; voltou a meter a navalha no bolso enquanto se dirigiam à cozinha e saíam ao alpendre — Papai, você morrerá?
Ao sair, com a mão um pouco tremula, Michael fechou a porta com suavidade, procurando que não lhe notasse o muito que o desconcertava aquela inocente pergunta. Depois pendurou a mochila às costas, ajustou-se ao Tàirneanaiche para que o punho ficasse justo sobre o ombro esquerdo e desceu os degraus. A pergunta não o pegara de surpresa; do falecimento de Ellen, o menino lhe perguntava muito sobre a morte, e a maioria das vezes as via e as desejava para lhe responder.
—Sim, morrerei — Disse ao fim, sem alterar o tom de voz — Mas hoje não, nem amanhã tampouco. Sou um guerreiro, Robbie, e meu dever é viver o suficiente para te educar até que seja um homem.
—E eu serei um guerreiro quando for maior?
Com passo enérgico, Michael se encaminhou para o campo acima.
—Sim e não — Respondeu, sincero — Terá o conhecimento e a destreza de um guerreiro e o coração de um homem das Terras Altas escocesas, mas viverá aqui e me ajudará a levar nossa fazenda de árvores de Natal quando eu seja muito velho para fazê-lo sozinho.
Robbie ajustou o passo ao de seu pai e repôs:
—Os filhos do avô não ficaram para ajudá-lo, mas eu não te deixarei — Prometeu; tomou a mão ao tempo que elevava seus francos olhos cinzas — E não morrerei antes que você.
Michael fez um gesto afirmativo.
—Exato; não morrerá antes de mim — Conveio com voz emocionada.
—Talvez… Talvez devesse conseguir ter uns quantos filhos mais… — Sussurrou Robbie; soltou-lhe a mão para ajustar as correias da mochila e elevou a vista —Só se por acaso morro.
—Isso não vai acontecer — Grunhiu Michael, ao tempo que se detinha e lhe dava a volta para que o olhasse — E, além disso, os meninos pequeninos não se tiram de um nada. Necessitaria uma esposa para ter esses filhos.
—Me teve sem esposa.
Michael franziu o cenho. Como tinha passado a conversa da morte ao sexo?
—Eu tentei me casar com sua mãe — Explicou — E se Mary tivesse vivido, provavelmente teríamos tido mais filhos. Mas as coisas nem sempre saem da maneira que queremos, Robbie. Às vezes a vida se intromete em nossos planos.
—E, então, por que não busca outra mulher para se casar?
Michael começou a caminhar de novo e avançou em zigue-zague por entre as fileiras de árvores de Natal até que chegaram ao bosque.
—Um homem não decide que quer casar-se e depois escolhe sem motivo à primeira garota disponível. Um homem e uma mulher têm que amar-se primeiro.
—Como a tia Grace e o tio Greylen.
—Sim — Disse Michael em voz baixa — Como Grace e Greylen. E como Callum e Charlotte, e como Morgan e Sadie. Primeiro tem que formar um vínculo, e o amor deve crescer a partir daí.
—Mas, papai, não se pode formar um vínculo com uma mulher se nunca tentar. — Robbie elevou o olhar, e seus olhos brilharam à luz da lua com a picardia de um menino que tem uma missão — E como a avó Ellen já não está, meu dever é falar em nome dela. E ela diz que tem que sair com alguém.
—E eu te respondo o mesmo que respondi a Ellen durante oito anos: não quero uma esposa.
—Porque tem o coração quebrado, papai; mas a avó Ellen sempre dizia que a mulher adequada lhe arrumaria isso. — Robbie passou por cima de um tronco caído no caminho, voltou-se e caminhou de costas enquanto continuava falando — E eu te ajudarei.
—Como? — Perguntou Michael.
Ia perdendo a paciência e se adiantou a seu filho para ficar à cabeça.
Pelo visto aquela discussão recorrente não tinha terminado com a morte de Ellen Bigelow; ao parecer, agora era seu filho que assumia a causa… Junto com Grace MacKeage. O que acontecia com as mulheres, que não suportavam ver que um homem permanecesse solteiro?
—Já comecei, papai.
—Como? — Repetiu Michael; sua paciência se converteu em receio — Tem alguma coisa a ver com todo o tempo que passou este último mês em Gu Bràth com a Grace?
—Sim — Disse Robbie — A tia Grace me ajudou a pôr um anúncio na Internet.
Michael se deteve.
—Que espécie de anúncio? —perguntou.
Cravou a vista no bosque iluminado pela lua que tinham diante temendo que seu filho e Grace tivessem posto o anúncio em uma daquelas páginas destinadas a solteiros solitários.
—Um anúncio pedindo inquilino — Esclareceu Robbie — Vou alugar minha casa.
Michael não soube se ria de alívio ou gritaria de surpresa.
—Quer alugar a casa de sua mãe? — Perguntou em voz baixa, olhando a seu filho — Por quê?
—Porque não deveria estar vazia. Um lar tem que estar habitado, tem que estar vivo.
Ao Michael pareceu ouvir as palavras de Grace nos lábios de Robbie.
—E haverá gente que viva nele — Espetou, zangado — Quando você crescer e se casar.
—Mas para isso falta muito; a casa tem que estar viva já. Quando passo por ali, está caladíssima, papai, e solitária. Quer que a queiram.
Michael se voltou e começou a andar de novo com largos passos, de modo que Robbie teve que dar uma carreirinha para não ficar atrás.
—É uma casa, filho, feita de madeira, vidro e pedra; não tem sentimentos.
Robbie lhe puxou a mochila para que afrouxasse o ritmo.
—Pois sim que os tem, papai. Sinto a solidão quando lhe faço uma visita.
Michael olhou o atalho com os olhos entrecerrados.
—Me explique o que tem a ver alugar a casa de sua mãe me buscando uma esposa.
—Porque vou alugar a uma mulher especial. E ela te arrumará o coração quebrado, irão se casar, e eu terei uma mamãe nova e uns irmãozinhos.
Michael voltou a deter-se; então agarrou o menino pelos ombros e ficou de joelhos até que os dois estiveram cara a cara.
—Não se procura esposa na Internet — Disse em voz baixa — Nem mãe. Quando voltarmos esta noite, você e eu iremos ver Grace e lhe diremos que apague o anúncio. Não necessita que uns estranhos vivam na casa de sua mãe.
—Não, papai! É muito tarde: já escolhi a três mulheres.
Desta vez Michael não gritou: rugiu. Depois se endireitou, deu a volta e começou a caminhar de retorno a casa. Maldição! Tia ou não, Grace MacKeage passou da medida… Outra vez.
Robbie correu para alcançá-lo, mas topou com as costas de seu pai quando de repente este se agachou para não se chocar com um branco borrão de plumas. A silenciosa chegada da coruja se transformou em um irado assobio quando o animal levantou uma asa e se voltou de novo para eles.
Imediatamente Michael agarrou Robbie e se jogou com ele no chão enquanto rodava para colocá-lo debaixo de seu corpo. A coruja posou em um tronco caído, ha apenas um metro de distância, e Michael se encontrou cravando o olhar nos olhos amarelo-dourados de uma ave de rapina.
Um punho lhe golpeou as costelas quando seu filho se retorceu para soltar-se.
—Mary! — Gritou Robbie, ao tempo que se levantava como podia e se ajoelhava entre a coruja e Michael — Não tenha medo, papai; Mary não nos fará mal.
Fazia quase nove anos que Michael tinha perdido à mulher que amava, e ouvir seu nome ainda lhe oprimia o peito. Sentou-se, puxou Robbie até colocá-lo no colo, longe da ave, e olhou fixamente a coruja.
A coruja lhe devolveu o olhar com seus enormes olhos, imperturbáveis à luz da lua, enquanto com o bico um pouco aberto tagarelava em um agudo matraqueio. Suas garras, de quase três centímetros de comprimento, agarravam-se ao tronco coberto de musgo. A ave tinha mais de meio metro de altura e, como se quisesse que Michael terminasse de revistá-la, deu um passo de lado e abriu as asas até desdobrar sua impressionante envergadura de quase um metro e meio.
Era uma ave de rapina muito letal e muito eficaz.
A mascote de seu filho.
A que Robbie tinha posto o nome de sua mãe.
—Mary, já está bem! — Disse o menino, como se a repreendesse — Este é meu pai.
A coruja nevada pregou as asas, agachou a cabeça e trocou seu matraqueio por um suave falatório.
—Não é a mais bonita que já viu alguma vez, papai?
—Sim — Concordou Michael em voz baixa.
E sim que o era. A borda das lustrosas plumas brancas era de um negro intenso, e o conjunto dava a impressão de ser uma renda disposta sobre todo seu corpo. Sua cara era um disco arredondado de um branco absoluto, com uns grandes e limpos olhos amarelos rodeados por grossas linhas negras, que pareciam desenhadas com um risco de lápis. Suas fortes patas acabavam em largos dedos cobertos por completo de branca penugem, que terminava onde começavam as fortes e afiadas garras.
Uma ave de rapina magnificamente apresentada.
—Não acontece nada, papai; é que Mary te ouviu rugir e acreditava que eu estava em perigo. Olhe, já está mais tranquila — Disse Robbie, ao tempo que estendia a mão para a ave.
Michael lhe agarrou a mão e a manteve bem preza ao ventre do menino.
—Você tocou-a, Robbie? Quando se veem, aproxima-se da… Da Mary?
—Sim, papai. Gosta de ficar em meu ombro quando vou montado no pônei. Eu assobio e ela vem para mim.
—E alguma vez te arranhou?
—Não; tem muito cuidado. — Robbie se levantou, procurou sua mochila e voltou a colocar sobre os ombros — Vamos, papai. Mary quer vir conosco de excursão ao topo; ajudará-nos a decidir.
—A decidir o que?
—A que mulher alugo a casa.
Michael esfregou a face com as mãos; outra vez estava com a ideia de lhe buscar uma esposa… Fruto evidente daquela mãe que não tinha conhecido, o menino era capaz de dar aulas de teimosia a uma mula. Agora que tinha escolhido uma tática, não pararia.
Michael se levantou e, uma vez mais, dirigiu-se para a cúpula da montanha TarStone.
—Então seguiremos nossa viagem — Concordou — E passaremos o dia falando dessa necessidade de alugar sua casa a uma desconhecida.
A coruja elevou o voo e, em silêncio, deslizou-se pelo bosque diante deles, como se soubesse para onde iam. Michael aspirou ao aroma do bosque noturno enquanto as folhas caídas rangiam sob seus pés. Aproximava-se do final de outubro, e a terra se preparava para outro inverno… E ele devia fazer o mesmo logo. A repentina morte de Ellen Bigelow, ocorrida tranquilamente de noite, enquanto dormia, faria ainda mais difíceis os Natais.
Ellen era a força motriz da fazenda da Árvore de Natal. Inclusive no ano anterior, à idade de oitenta e três anos, sua energia tinha envergonhado mais de uma vez aos próprios homens. Era capaz de pôr fantásticas comidas na mesa três vezes ao dia, fazer grinaldas de adorno, repartir serras para que os clientes cortassem suas árvores, vender os adornos, despachar suco de maçã e donuts, que preparava todas as manhãs… E ainda ficava tempo para estar à corrente das fofocas do povoado.
Durante os dez últimos anos, desde que chegou a Pene Creek e comprou a fazenda dos Bigelow, Michael tinha admirado muitíssimo a aquela mulher.
—Papai, você ficou bravo que coloquei o nome de Mary a meu mascote?
—Não, filho. Mary é um bom nome para um mascote tão formoso.
—Mas te incomoda que queira alugar minha casa.
—Não é tanto porque deseje ver a casa com vida — Esclareceu Michael — É pelo fato de que tenha posto suas esperanças em procurar uma mulher especial para que a alugue. O que acontece se tiver uma decepção?
—Não terei — Disse Robbie com toda a segurança de um menino de oito anos — Terei muito cuidado de escolhê-la. A tia Grace está me ajudando a lhes escrever cartas por correio eletrônico.
Michael soltou um bufado para lhe indicar o que pensava da contribuição de Grace a seu desatinado plano.
—E, exatamente, quem vai ser o caseiro de seu inquilino? — Perguntou — Quando se rompa o aquecedor da água ou se danifique a caldeira, você que vai fazer as reparações?
—Não, papai; você o fará.
—Já entendo. Certamente que isso também foi ideia de sua tia.
—Não, foi minha ideia.
—Bom, pois se chamam as duas da madrugada para que vá à casa, saiba que vou te despertar e te levar comigo. Se quer ser caseiro, jovenzinho, terá que assumir essa responsabilidade.
—Então, isso quer dizer que posso alugar a casa de mamãe?
—Não preferiria procurar uma família para que viva nela? Assim, de todo este entusiasmo, tiraria um novo companheiro de jogos.
—Nem de longe necessito um companheiro de jogos tanto como você necessita uma esposa, papai. — Robbie se deteve e voltou a elevar o olhar até os olhos do Michael — Ela te fará sorrir.
Michael lhe revolveu o cabelo e depois lhe deu um suave empurrão para frente para que seguisse caminhando.
—Me fale das três mulheres que encontrou.
—Não; depois, no café da manhã. Mas te darei uma pista sobre uma delas: Carla é viúva e tem três filhos. — Voltou-se e meneou as sobrancelhas — Deve ser boa se um homem a amou o bastante para casar-se com ela. E com a Carla nos dois ganharíamos algo: você uma esposa, e eu, novos companheiros de jogo.
—E de onde é essa Carla?
—Da Florida.
Michael voltou a soltar um bufado.
—Não se preocupa que não goste de nossos invernos?
—Sim que tenho essa preocupação, papai.
Robbie ficou calado vários minutos enquanto avançava dando passos longos.
—Talvez devesse riscar a Carla da lista — Disse sem voltar-se.
—Pois isso deixa só a duas. O que tem elas?
—Mas é que talvez haja mais… — Respondeu Robbie — Faz dois dias que não reviso meu correio.
Correio eletrônico… Anúncios por Internet… Escolher inquilino antes de conhecê-la… Que distinto era o mundo onde crescia seu filho comparado com a infância do Michael, fazia oito séculos.
—Quer ir a Gu Bràth comigo manhã para revisar meu correio? — Perguntou o menino enquanto se agachava por debaixo de um jovem e torcido bordo[3].
—Não, Robbie. Deixarei esta insensatez em suas mãos e nas de Grace. Tenho que começar a me preparar para a temporada de Natal e para a chegada da neve, que não demorará para vir. E também tenho que manter ocupado o John para distraí-lo de sua perda.
—O vôzinho não se irá ao Hawái viver com seu filho, não é? — Perguntou Robbie.
Estava a ponto de responder quando, de repente, Michael voltou a sentir uma opressão no peito. Um calafrio lhe subiu pela coluna vertebral e lhe arrepiou o pelo da nuca.
A mascote de Robbie, aquela coruja que seu filho chamava Mary, acabava de passá-los, deslizando-se outra vez através do bosque; a coruja posou em um ramo diante deles, e o ar que o rodeava não brilhava com o calor de uma suave luz azul.
A mesma luz azul que às vezes Michael via no quarto de seu filho quando ia vê-lo antes de deitar-se.
A mesma luz azul que tinha visto na colina do West Shoulder fazia oito anos, quando a magia do drùidh salvou Grace MacKeage.
Exatamente o mesmo azul dos formosos olhos da Mary Sutter.
Los Angeles, California, 22 de Outubro
Elizabeth Hart abriu a porta de sua casa, entrou e deixou que a maleta lhe escorregasse da mão sem preocupar-se por seu conteúdo. Fechou a porta com o quadril, sacudiu os pés para tirar os sapatos e abandonou o impermeável no chão do corredor enquanto se dirigia à cozinha.
Onde tinha posto aquela garrafa de uísque escocês?
Procurou por vários armários e por fim encontrou a garrafa sem abrir na parte de trás da despensa. Então agarrou um copo da pia, abriu a geladeira e encheu o copo de gelo; com mão tremula, verteu o escuro licor ambarino quase até chegar a borda. Tomou um gole, tossiu para recuperar o fôlego, e depois levou o copo e a garrafa ao salão.
Orientando-se pelo resplendor das luzes que entrava pelas janelas, Elizabeth se dirigiu para o sofá e se sentou. Pôs a garrafa de uísque sobre a mesinha auxiliar e agarrou o controle a distância.
Enquanto se reclinava no respaldo tomou outro gole, pulsou o controle a distância e viu como brotavam chamas entre as lenhas de cerâmica perfeitamente disposta. Umas brasas falsas começaram a brilhar na base das lenhas, e Elizabeth se esforçou por ouvir… Mas não ouviu nada.
Além de um ligeiro suspiro ao acender-se, aquele fogo era silencioso. E inodoro. E muito, muito limpo.
Tinha comprado a casa fazia cinco anos, e não porque estivesse perto do trabalho nem por seu estilo arquitetônico; nem sequer pelo seleto do bairro. Comprou-a porque tinha lareira.
Só que então a lareira estava construída para queimar lenha.
Mas todos se aliaram contra ela: sua mãe, seu pai e o cara com o que saía; por mais que o tentava, não recordava se era Paul ou Greg. Todos lhe disseram que os fogos de lenha eram sujos, trabalhosos e fedorentos. O gás natural se ajustava muitíssimo melhor a seu estilo de vida.
A avó B foi quão única a respaldou, mas vivia a uma hora de caminho em carro, lá nas montanhas; muito longe para ajudar a compensar a pressão que exercia o fronte unido de seus pais e seu noivo… E as lenhas de gás se instalaram antes que Elizabeth se mudasse à casa.
Havia algo essencial, primário, no fato de ocupar-se de um fogo de lenha. Durante suas férias invernais da universidade e depois quando cursava a especialidade, Elizabeth passava semanas escondida nas montanhas com a avó B. afeiçoou-se com os rituais diários de acrescentar lenha miúda ao papel, ouvir o chiado da lenha ardendo e limpar as cinzas.
Um fogo de lenha significava calor físico e emocional; precisava paciência para prepará-lo e cuidados para mantê-lo, e criava um ritmo que humanizava o dia.
Pulsou o comando a distância e a chama da lareira desapareceu; voltou a pulsar e de novo a chama se animou com um suspiro.
Elizabeth tomou outro gole, desta vez mais longo, de uísque e saboreou o fogo que lhe chegou à base da garganta. O estômago esquentou, e sentiu nos músculos o formigamento que acompanhava ao alívio da tensão.
O descarrilamento tinha ocorrido só a cinco quilômetros ao norte da cidade. Havia quarenta e três passageiros feridos, seis deles graves.
Elizabeth se encarregou de três dos mais graves.
Dois eram casos quase rotineiros, se é que podia dizer-se algo assim dos traumatismos, e Elizabeth trabalhou com sua habitual e eficaz destreza. O jovem do baço destroçado e o homem das costelas quebradas e um pulmão perfurado viveriam, curariam-se e voltariam para suas vidas, que o destino tinha interrompido de forma tão brusca.
O uísque era pelo paciente número três.
Não ia esquecer na vida Esther Brown e seu marido, Caleb, um casal de anciões que viajava a Seattle para visitar sua filha e a seus netos.
Caleb teve sorte; saiu dos restos do trem só com uns quantos cortes, várias costelas machucadas e um joelho torcido. Mas Esther tinha sofrido feridas que talvez resultassem mortais em uma mulher de setenta e oito anos: uma perna destroçada, um pulso quebrado e uma hemorragia interna.
Mas antes que Elizabeth a levasse a sala de cirurgia, Caleb insistiu em rezar com sua esposa.
E insistiu em que rezasse com eles.
Como tinha crescido à sombra da avó B, para Elizabeth a oração não era estranha. Era muito consciente de seu poder, e rezar com Esther e Caleb não significava que se implicasse sentimentalmente; só indicava que era uma cirurgiã disposta a empregar todos os meios possíveis para ajudar a seu paciente a confrontar o trauma de uma intervenção cirúrgica.
Assim ficou junto ao Caleb, colocou sua mão no braço de Esther e acrescentou sua vontade de que aquela mulher vivesse.
E então ocorreu algo.
Algo inexplicável.
O corpo da Elizabeth começou a esquentar-se. A pele lhe esticou, seus batimentos se fizeram mais lentos, e pouco a pouco a sala de traumatologia desapareceu de sua vista até que só ficou a luz.
Então se viu rodeada de uma série de cores em sua forma mais pura. Um arco íris cruzou girando sobre sua cabeça em uma luminosa gama de nítidos raios, parecidos com o laser. E Esther Brown estava ali com ela.
Só que Elizabeth não a via: transformou-se nela. Sentia o sangue correr veloz pelas veias de Esther, o batimento de seu coração, respirava com o Esther… E sentia a vontade de viver daquela mulher.
Elizabeth elevou uma tremula mão à luz da lareira e observou com atenção sua silhueta; seguia sentindo o formigamento daquele calor que não se desvanecia.
E, além disso, sabia que a avó B estava lá encima, no céu, desmanchando-se em risada.
Elizabeth não se limitava a amar à avó B; adorava-a. Enquanto seus pais estavam fora, de férias em algum lugar ou assistindo a intermináveis congressos, sentia-se feliz por desfrutar da atenção de sua avó.
A única vez que a avó B esteve de acordo com os pais de Elizabeth foi quando Katherine e Barnaby Hart disseram que sua filha se transformaria em médica. A profecia se pronunciou ao nascer Elizabeth, e durante trinta e um anos todos, incluída B (e, mais tarde, incluída também a própria Elizabeth), trabalharam para procurar que se cumprisse.
Só houve um conflito quando seu pai proclamou que sua filha estudaria cirurgia. Então B elevou a voz (com bastante energia, por certo) para afirmar que sim, que sua neta estava destinada a ser curadora, mas que em vez de cirurgia devia estudar medicina geral.
Alegou que a cirurgia era uma disciplina muito limitada, que se concentrava muito nas partes do corpo e não no paciente como um todo; depois afirmou que Elizabeth tinha nascido com o dom da cura, irradiado por linha materna, e que seu destino era dedicar-se à medicina geral.
Curadora? Como nessas histórias de magia?
B insistia em que a mecha de um branco puro que Elizabeth tinha no cabelo era um sinal de seu dom, embora ela se limitava a atribuí-la simplesmente a uma anomalia genética. Nem sequer era algo tão insólito.
Ela não era uma curadora; isso não era possível…
Ou isso pensava até este dia.
Quando colocaram Esther Brown no sala de cirurgia e Elizabeth estava preparada para a operação, a mudança já se realizou.
Ao princípio Elizabeth estava muito concentrada no procedimento que devia realizar para emprestar muita atenção aos cochichos. A equipe de cirurgia sempre cochichava enquanto se anestesiava aos pacientes, e tinha aprendido a afastar sua mente daquele bate-papo.
Tinha já o bisturi sobre Esther Brown quando uma das enfermeiras a deteve. Então elevou o olhar e viu muito olhos dilatados pelo pânico, cravados nela por cima das máscaras.
De repente todo mundo ficou a falar com mesmo tempo. As constantes vitais da paciente eram normais; não havia rastro de perna quebrada nem de pulso, e seu estômago, antes inchado, agora estava liso.
Elizabeth lhe arrebatou o gráfico de um ajudante de olhos desencaixados, enquanto amaldiçoava a toda a equipe de traumatologia por anestesiar a paciente equivocada.
Maldição…! Tinha estado a ponto de abrir a uma mulher absolutamente sã!
Durante mais de meia hora revisaram todas as telas e fizeram várias radiografias novas. Teve conferido o departamento de admissão, e o bracelete de identificação de Esther e leu, voltou a ler e se passou pelo exploratório várias vezes. Por fim Elizabeth arrancou à mulher o gorro cirúrgico e a máscara de oxigênio, e observou com atenção seu rosto.
Era ela. Tinha o cabelo um pouco mais branco e suas feições já não estavam abatidas pela dor, mas a mulher que estava na mesa de operações era a mesma pela que tinha rezado fazia menos de uma hora.
Então Elizabeth só pôde cravar os olhos em sua silenciosa equipe. Algo tinha saído muito, mas que muito mal…
Ou maravilhosamente bem para Esther Brown.
Claro que sim; seguro que a avó B estava desmanchando de risada e lhes contando a todos do céu aquele milagre… E, como se fosse uma torre de naipes frente a uma tempestade, Elizabeth viu como sua carreira de cirurgiã se vinha abaixo, espalhada ao vento.
Saiu da sala de cirurgia sem dizer uma palavra a ninguém. Depois se dispôs a sair do hospital, mas no elevador, em vez de pulsar o botão que a levaria abaixo, ao vestíbulo, algo a obrigou a pulsar o botão de subir. A porta do elevador se abriu na ala infantil, e se encontrou caminhando para a habitação do jovem Jamie García.
Jamie tinha chegado aquela manhã com uma ferida na cabeça; sua bicicleta se cruzou diante de um carro. Estava em coma e tinha um mau prognóstico.
Elizabeth se sentou junto a ele, tomou sua jovem mão entre as suas e, em silêncio, desejou que despertasse. E de novo o corpo lhe esquentou, lhe esticou a pele e o pulso diminuiu. O arco íris de luminosas cores voltou a aparecer.
E Jamie García abriu os olhos e lhe sorriu.
Desta vez Elizabeth não partiu caminhando: pôs-se a correr.
Voltou a encher de uísque o copo e o levou consigo enquanto se aproximava, nervosa, à janela. Olhou o perfil da cidade e procurou o Centro Médico Cedars-Sinai. Mal divisava a unidade de cirurgia, onde sempre se sentia tão cômoda, tão imprescindível e tão segura; segura de si mesma e de qualquer situação a que tivesse que enfrentar-se.
Até aquele dia.
Porque em um instante cegador, enquanto estava ali, olhando a sua equipe de traumatologia por cima do corpo anestesiado de Esther Brown, deu-se conta de que não controlava nada absolutamente.
Enquanto fugia da habitação de Jamie, e durante todo o caminho de descida até o vestíbulo, conteve as vontades de correr por todo o hospital para rezar pelos pacientes. Sentia uma necessidade de curar tão entristecedora que lhe pareceu que ia explodir. O único mundo que tinha conhecido durante trinta e um anos se desfazia a seu redor em um torvelinho de cores formando redemoinhos que não paravam de puxá-la, até que lhe pareceu que o caos a consumia.
Sim, nesse instante estava absolutamente descontrolada.
Precisava entender o que estava acontecendo. A avó B sempre lhe tinha falado das mulheres de sua família que, em teoria, tinham tido aquele dom. A última foi a tia avó Sylvia, que tinha morrido fazia quase vinte anos. Todas as mulheres que possuíam aquele dom tinham algum tipo de raridade ou de anomalia física. Conforme diziam, a tataravó de Elizabeth tinha um olho de cada cor; quanto à tia avó Sylvia, ao nascer o cabelo lhe chegava à cintura e toda sua vida seguiu lhe crescendo a uma velocidade extraordinária. Elizabeth recordava que quando só tinha onze ou doze anos a tinham levado a funeral da Sylvia; o cabelo trançado de sua tia avó quase enchia o caixão.
Elizabeth puxou de sua branca mecha para frente e elevou o olhar; logo, com um suspiro, voltou a pô-la em seu lugar. De pequena ria das histórias da avó B e não os fazia caso; pareciam-lhe contos que só pretendiam acrescentar emoção à vida de uma menina solitária.
Bom, pois já não ria.
Não podia voltar para hospital, e menos com todas aquelas pessoas doentes e feridas que a puxavam. Não podia voltar se queria conservar a prudência.
No silêncio da casa o toque do telefone soou com estrépito. Sobressaltada, Elizabeth derramou a bebida na mão ao voltar-se para olhar o telefone que estava na mesinha, junto ao sofá.
Não queria falar com ninguém.
O timbre soou cinco angustiosas vezes antes que a secretária eletrônica respondesse por fim. Escutou sua própria voz dizer a quem chamava que deixasse uma mensagem, e mal conteve o fôlego quando de repente a voz de James Kessler encheu o salão.
—Elizabeth, está aí? Pega o telefone, Elizabeth; quero falar contigo.
Passaram dez segundos de silêncio.
—Elizabeth! Pega o telefone e me diga o que ocorreu ao Jamie García! Sei que estiveste em sua habitação esta tarde. Seus monitores se apagaram, e quando Sally Pritchard acudiu correndo a ver o que acontecia, viu-te sair.
Outros dez segundos de silêncio.
—Elizabeth, pega o telefone!
Deu um passo para frente, mas se deteve. James Kessler era neurologista e amigo da família, e Jamie García era seu paciente. Queria uma explicação, mas o que ia dizer lhe? Que tinha posto as mãos sobre o menino e o tinha curado por arte de magia?
—Maldição, Elizabeth! Me ligue assim que chegue a casa!
A secretária eletrônica deu um assobio, e quando James desligou, o piloto vermelho que indicava que havia uma mensagem começou a piscar. Elizabeth tomou outro gole de uísque.
Tinha que ir-se dali… Diabos, tinha que ir-se da Califórnia! Era impossível enfrenta James, a seus colegas e inclusive de Esther Brown. Como lhes explicar o que não se podia explicar nem a si mesma?
Necessitava tempo para pensar… E um pouco de distância tampouco lhe viria mau. Até que desse com uma explicação que não acabasse internando-a em um sanatório, tinha que evitar a todo mundo.
Mas incluía isso a sua mãe? Katherine conhecia a história familiar e, ao igual a Elizabeth, preferia acreditar que suas antepassadas eram umas excêntricas a que possuíam um dom. O cabelo que crescia muito, os olhos de diferentes cor ou uma mecha branca não eram elementos condenatórios; eram… Bom, eram a essência das lendas familiares.
Certamente, durante sua infância Elizabeth lhe contou mais de uma vez a sua mãe as histórias da avó B. Katherine se apressava a tachar as de meras ilusões e dizia que B sempre tinha estado ciumenta de tia Sylvia, quem assegurava ser a única em possuir a bênção do dom. B se considerava a si mesma uma espécie de Mãe Terra: cultivava mudas, recolhia-as e com elas elaborava produtos que vendia em sua pequena fazenda das montanhas. E como sua única filha, Katherine, não mostrava nenhum “sinal” de ser especial, limitava-se a projetar o dom em sua neta.
A aquilo Elizabeth parecia lógico.
Ou, mas bem, o pareceu em seu momento.
Embora, certamente, isso não explicava o ocorrido. Inclusive agora seu corpo seguia tremendo com uma estranha energia. Parecia-lhe ter a cabeça cheia de algodão, e o salão, envolto em sombras, parecia pulsar brandamente com uma luz que não era normal e que estava mais em sua imaginação que em sua vista.
Voltou a sentar-se no sofá e cravou o olhar no fogo. Todos aqueles anos a avó B se esforçou muitíssimo por lhe fazer entrever algo que estava além da cirurgia. Até sua morte, fazia só dois meses, B se tinha empenhado em lhe ensinar os rudimentos do mundo natural… Ou bem de um mundo muito pouco natural.
Aquilo tinha tirado de gonzo ao Barnaby Hart até o dia em que morreu, quatro anos antes. Seu pai sempre se queixava de que demorava duas semanas em pôr firme a Elizabeth quando voltava de uma visita à fazenda de sua avó. Retornava a casa com uma mala cheia de ervas medicinais, tinturas e bálsamos, que tinha que esconder para que seu pai não os atirasse.
Como não demorou para deduzir que o melhor era esconder as coisas à vista de todos, punha-os com os artigos de penteadeira de sua mãe. Ao ser filha de B, Katherine conhecia o valor das ervas e as utilizava sempre que sentia a ameaça de um resfriado ou quando uma ruga se atrevia a aparecer a seu formoso rosto.
O telefone soou de novo, e Elizabeth se sobressaltou pela segunda vez. Conteve o fôlego durante os cinco toques, escutou sua voz dizer a quem chamava que deixasse uma mensagem e logo só ouviu o silêncio.
—Elizabeth… — Disse sua mãe por fim — Por favor, se estiver em casa, pega o telefone. James acaba de ligar perguntando por você. Há… Bom, ele disse que algo raro aconteceu no hospital. Algo sobre que as pessoas…As pessoas se curarem de forma misteriosa.
Um tom de exigência imprimiu força à voz de Katherine.
—Pega o telefone, Elizabeth.
Em silêncio, Elizabeth elevou o telefone e o pôs na orelha.
—Devo estar louca, mamãe, porque é verdade: curei a duas pessoas só as tocando.
Passaram seus bons trinta segundos de silêncio.
—Mamãe?
—Alguém te viu? — Perguntou Katherine em voz baixa.
Elizabeth deixou a taça na mesa e agarrou o telefone com as duas mãos.
—Não acredito — Sussurrou — Minha equipe de sala de cirurgia estava preparando-se enquanto eu rezava com essa senhora. Seu… Seu marido estava ali, mas por fora não aconteceu nada; todo o caos estava dentro de minha cabeça. Depois saí da habitação sem mais e fui lavar-me para a operação. Mamãe, nem sequer soube o que tinha ocorrido até que a senhora estava na sala de cirurgia. Todo mundo acredita que houve um engano, porque chegavam muitíssimos pacientes do descarrilamento.
Outros quantos segundos de silêncio.
—E James? — Perguntou Katherine — Diz que foi à habitação de seu paciente, que de repente o menino despertou de um coma… E que não devia tê-lo feito. Que estava a ponto de que o declarassem em morte cerebral.
Por isso tentava localizá-la James. Conheciam-se sempre, já que os pais de ambos levavam um consultório juntos. E como tinha crescido com a Elizabeth, escutando as histórias da avó B, agora desconfiava dela.
—O curei, mamãe — Sussurrou Elizabeth.
Quando o impacto de dizê-lo ressoou pelo silencioso salão, fechou os olhos para dominar o ardor das lágrimas.
—Não o curou, Elizabeth; não podia curá-lo.
—Senti que o curava, mamãe. Senti aos dois, a Esther Brown e a Jamie García. Entrei em seu interior e… E os curei.
Produziu-se um absoluto silêncio ao outro extremo da linha Telefônica.
Elizabeth enxugou a lágrima que lhe corria pela bochecha.
—O que faço? — Sussurrou — O que vai acontecer agora?
—Que vai mentir — Disse Katherine concisamente — Elizabeth, não pode deixar que isto saía a luz: sua vida ficará destruida, se acabará sua carreira e os meios de comunicação o converterão em um circo.
—Tenho que partir — Disse Elizabeth — Não posso ficar aqui. Não posso…
Inspirou um tremulo fôlego.
—Não posso voltar para hospital, mamãe. Acreditei que ficaria louca. Senti às pessoas me puxando, rogando que os curasse…
—Ai, neném! — Exclamou Katherine com ternura — O sinto muitíssimo. Tem razão, deve partir… Mas só por pouco tempo, até que tudo isto se acalme. James não tem nada concreto em que apoiar-se, de maneira que terá que deixá-lo estar.
Elizabeth apertou mais forte o telefone.
—Não, não o deixará estar, e menos agora que os dois somos candidatos para essa promoção. Utilizará-o em meu contrário — Suspirou — Em realidade, já me dá igual, mamãe. Tenho que abandonar o da promoção; embora conseguisse manter isto em segredo, já não posso trabalhar em um hospital.
Um ofego entrecortado soou ao outro extremo do telefone.
—É cirurgiã, Elizabeth Hart — Disse sua mãe sem alterar o tom — Não pode ir assim, pelas bordas.
—Mas é que não posso voltar. Não o entende, mamãe? Foi entristecedor.
—Dou-me conta, carinho; quer dizer, não entendo nada disto, mas imagino que deve que ser difícil. Mas, Elizabeth, agora mesmo não pensa com claridade. Não sabe se sua carreira acabou. Tome um pouco de tempo. Tem razão, provavelmente deva partir, mas não faça nada do que possa se arrepender.
—Por que ocorreu isto, mamãe? Por que agora, sem avisar?
—Não sei, céu. Eu estou tão desconcertada como você.
—Como é possível?
—É que não é — Assegurou Katherine com firmeza — Não importa o que B quisesse que acreditasse: não se cura a uma pessoa só com a vontade. Não deixe que suas histórias a afetem assim, Elizabeth. Tem que haver uma explicação para o que passou. E estou segura de que, quando puser certa distância com o hospital, será capaz de raciociná-lo.
—Aonde devo ir?
Depois de um hesitação e um profundo suspiro, por fim Katherine disse:
—Não pode ir à fazenda. James a conhece e será o primeiro lugar onde te busque.
Elizabeth decidiu que já resolveria mais tarde seu lugar do destino.
—Esta noite escreverei uma carta ao cirurgião chefe para que a entreguem amanhã — Disse — Vou dizer-lhe que tenho uma urgência familiar e que necessito permissão para me ausentar. Insinuarei que é pelo lado de papai para que não ache estranho que você siga aqui.
—Eu vou com você.
Elizabeth vacilou.
—Não, mamãe — Disse com suavidade — Preciso ir para meditar isto a fundo. Chamarei-te assim que encontre um lugar onde ficar.
—Elizabeth, estará bem? — Perguntou Katherine em voz baixa — Me preocupa que parta assim, sozinha, sem nenhum plano e sem lugar do destino sequer.
—Já sou grandinha, mamãe — Disse ela em tom alegre, tentando parecer mais segura do que sentia — Prometo; chamarei-te assim que encontre um lugar onde ficar.
—Eu não gosto disso — Disse Katherine suspirando — Mas acredito que é o melhor, tendo em conta as alternativas que há. Agora mesmo, simplesmente, não pode ficar aqui; ao menos até que isto se acalme e dê com uma explicação razoável.
Fosse o que fosse, pensou Elizabeth.
—Tenho que ir já, mamãe. Quero recolher minhas coisas e sair daqui antes de que James resolva vir me procurar; há muito dinheiro e prestígio em jogo como para que ele deixe escapar.
—Amo-te, Elizabeth.
—Já sei, mamãe; eu também te amo. Por favor, não se preocupe por mim; sei muito bem cuidar de mim mesma.
—De todas as formas, me chame assim que esteja instalada. E, enquanto isso, eu me encarregarei do James; ainda posso mover uns quantos fios no hospital.
Elizabeth sorriu no telefone.
—Então move-os, mamãe. Tenho que ir já; manteremos contato, e você me conta o que ocorre aqui.
—Te… Amo — Repetiu isso Katherine.
—Eu também te amo. Adeus.
Com suavidade, Elizabeth voltou a colocar o telefone no suporte e olhou fixamente o fogo. Tinha que procurar algum lugar aonde ir, e tinha que ir-se já. Então se levantou, e uma súbita sensação de urgência a empurrou para o quarto.
Procurou na parte de trás do armário, tirou a mala, abriu-a e a jogou na cama. Em uma de suas viagens da cômoda, com os braços carregados de roupa, deteve-se o passar por diante do computador e o conectou. Enquanto arrancava, seguiu com sua tarefa, mas de repente lançou sua roupa interior à mala e, virtualmente, entrou correndo na cozinha.
Foi ao interfone e apertou o botão da portaria; em seguida ouviu a voz do Stanley no auricular.
—Doutora Hart? Que deseja?
—Stanley, se vier alguém perguntando por mim, dirá-lhe, por favor, que não estou em casa? Não quero que me incomodem durante o resto da noite.
—Não há problema, doutora Hart — Assegurou Stanley em tom jovial — Para isso que me pagam: para procurar que não incomodem a ninguém que não queira ser incomodado.
—Obrigado, Stan. Ah, e vou estar uns dias fora da cidade. Minha mãe deverá regar as plantas e isso; cuide-a bem por mim, ok?
—Não se preocupe, doutora. Que tenha boa viagem.
—Isso espero, Stan, obrigado.
Quando voltava para quarto, Elizabeth se deteve diante do computador e entrou na Internet. Enquanto o modem marcava, foi ao armário e ficou olhando sua roupa.
O que devia levar? Maldição, tinha que saber aonde ia. Se por acaso ao James lhe ocorria ir vê-la, tinha ganho um pouco de tempo com o Stanley; agora que seu porteiro sabia que não queria que a incomodassem, por ali não passaria nem a Guarda Nacional.
Retornou ao computador e ficou a navegar pela Internet procurando casas de aluguel nos anúncios de bens imóveis; de repente decidiu que a costa atlântica talvez estava o bastante longe.
Nova Inglaterra tinha boa pinta: tranquila, pitoresca e do mais autêntica. Um lugar nas montanhas onde sentir-se bem agasalhada pela terra.
Enquanto o Caçador recolhia entradas nos estados de Maine, New Hampshire e Vermont, Elizabeth se dirigiu outra vez ao armário e tirou roupa e casaco. Depois voltou para computador e encontrou oitocentas e quarenta e seis entradas de casas em aluguel.
Reduziu-as seguindo um critério de população: pediu um povoado pequeno, e isso produziu um total de trezentas e vinte. Então recortou mais a lista limitando a busca a casas de aluguel com lareira que funcionasse.
Ao fim, dando um suspiro de cansaço, sentou-se à mesa; tinha que ler cento e seis anúncios. Iria criar uma nova vida ali, e pretendia fazê-lo bem.
Ao cabo de uma hora, Elizabeth se espreguiçou na cadeira e piscou com os olhos empanados enquanto olhava a entrada de Pene Creek, no estado de Maine. Era uma fazenda com um século de antiguidade e sessenta e quatro acres de terreno, que contava com lareira, uma grande cozinhasalão e garagem para dois veículos. Além disso tinha dependências para animais e vistas ao lago Pene do alpendre, todo isso protegido pela montanha TarStone. O aluguel eram quatrocentos dólares ao mês mais gastos de eletricidade e água.
Mas não foi o preço tão escandalosamente baixo do aluguel, e sim as fotografias o que lhe chamou a atenção. Ao anúncio o acompanhavam quatro fotos, e imediatamente se apaixonou pela casa, de Pene Creek e do menino que, em atitude orgulhosa, aparecia sentado em um pônei diante um campo de árvores de Natal.
A primeira foto era da casa: uma majestosa fazenda de Nova Inglaterra feita de madeira, pintada de branco e de quatro andares, com telhado de quadro-negro, duas lareiras e um alpendre que a rodeava por três lados. A segunda fotografia estava tomada a certa distância e fazia ressaltar bem o entorno; a casa estava longe da estrada e ao casaco de uns bordos de vivas cores, que contrastavam com as escuras árvores de folha perene que subiam pela levantada ladeira da montanha TarStone.
Elizabeth supôs que a terceira foto se teria tomado do alpendre da casa. Mostrava uma incrível panorâmica outonal de mais montanhas que rodeavam uma grande extensão de água, que devia ser o lago Pene.
Mas foi a quarta fotografia a que lhe roubou o coração. Um menino de uns onze ou doze anos, sentado sobre seu pônei, sorria à câmara inchando o peito; o vento lhe metia nos olhos o cabelo, de uma intensa cor castanha, e na face tinha um meio sorriso mais arrogante que doce.
Orgulhoso… Bonito… E, pelo visto, segundo o texto anexo, desejoso de alugar a casa de sua mãe; conforme dizia, levava vazia quase oito anos.
Lhe devolveria a vida à antiga casa. Caraca, se até contava com um modo de ganhar a vida em Pene Creek!
Dos doze anos Elizabeth mantinha em segredo com a avó B a afeição que compartilhavam as duas, só porque o fato de fabricar joias não supunha uma atividade distinguida aos olhos de seu pai. Além disso, embora o tivesse sabido e aprovado…Bom, lhe teria dado a lata para inteirar-se de por que, já que desejava jogar a ser artesã, não as fazia de prata ou de ouro. Não, Barnaby Hart não teria compreendido que criar joias de vidro era exatamente da mesma forma estimulante, e de gratificante, que usar materiais mais caros.
Decidiu que abriria um estúdio, com uma tenda para vender suas criações. Pene Creek estava nas montanhas, e o estado de Maine era famoso por suas estupendas estações de esqui.
Seguro que havia um povoado turístico a uma distância razoável para ir e vir de carro e onde pôr uma barraca.
Seu material de trabalho estava em casa de B, nas montanhas, de modo que teria que ir ali esta noite, recolhê-lo e enviá-lo a Pene Creek. Calculou que tinha dois dias, talvez três, antes que James se impacientasse tanto como para subir a procurá-la.
Então bateu no botão de resposta que havia na parte inferior do anúncio do Robbie MacBain e escreveu:
Estimado senhor MacBain:
Causou-me muito boa impressão o anúncio que pôs para alugar sua casa, e desejaria que considerasse a possibilidade de me alugá-la. Agora vivo na Califórnia, mas pretendo me mudar a Nova Inglaterra. Não há neve no lugar onde vivo, mas passei muito tempo nas montanhas e eu adoro a neve.
Também eu gosto de sua casa. Espero me mudar a Pene Creek e me fazer com uns quantos gatos e algumas galinhas. Também gostei de seu pônei, e acredito que talvez queira ter meu próprio cavalo para cavalgar por seus preciosos bosques.
Eu gosto das plantas e eu adoraria plantar uma horta de ervas aromática. Mas, sobre tudo, deve saber que é a casa em si o que me atrai de Pene Creek; sua mãe vivia em uma casa preciosa, Robbie; parece bem construída e muito acolhedora. Eu gosto em particular que tenha lareira.
Além disso, acredito que tem você razão: uma casa só é um lar quando se vive nela. Me alegro de que deseje alugá-la, e espero que me alugue. Trabalho fabricando joias, e eu gostaria de montar um estúdio no povoado ou em um povoado próximo. Faço joias de vidro inspiradas na natureza: pássaros, flores, borboletas, folhas e animais. Lamento não lhe enviar meu número de telefone para que falemos em pessoa, mas vou a casa de minha avó antes de viajar a Maine… E a Pene Creek, espero, se me aceitar. Revisarei meu correio eletrônico com regularidade; estou desejando ter notícias suas.
Atentamente,
Elizabeth Hart
Elizabeth voltou a ler a carta. Depois de pensar durante um momento, fez clique sobre seu nome, escrito ao final, e rapidamente trocou “Elizabeth” pelo “Libby”. A avó B sempre a chamava Libby, e se ia criar se uma nova vida, um modo estupendo de começar era fazer-se com um nome novo. Assim Elizabeth ou, melhor dizendo, Libby pôs o ponteiro do mouse sobre o botão de resposta, inspirou fundo e mandou sua carta rodando pelo cyber espaço ao jovem: Robbie MacBain. Vai. Já parecia.
Pine Creek, Maine, 28 de Outubro
Certamente a Libby teria resultado mais fácil a tarefa de conduzir se não tivesse afastado a vista da estrada. E a viagem não teria durado tanto se não tivesse tido que parar-se cada meia hora para sair a contemplar a paisagem.
Mas é que aquela terra era preciosa: abrupta e irresistível.
Um imenso manto de árvores, em tons vermelhos, amarelos e laranjas fluorescentes, cobria as montanhas, quebrado tão somente pelo intenso verde dos pinheiros, as píceas[4] e as cicutas[5]. Por entre as vivas cores surgiam escarpados de granito maciço: uma amostra dos sólidos alicerces em que se assentava o bosque.
Desde que alugou o pequeno carro no aeroporto de Bangor e se dirigiu para o noroeste pela estrada 15, Libby não havia feito mais que subir e subir pelas montanhas até que estas a rodearam por completo. Pouco a pouco seu corpo foi soltando a tensão da semana, e a palavra “lar” se transformou em uma espécie de mantra que seu coração ia repetindo em sussurros a cada pulsar.
Tinha demorado quase três horas em percorrer os cento e vinte quilômetros que havia desde Bangor e, ao coroar uma colina mais, Libby mal alcançou a dar uma freada. A vista do lago Pene, com suas águas imensas que só continha a pura força das montanhas, deixou-a sem fôlego. Então levou o carro até a borda, desligou o motor e olhou pelo para-brisa.
Várias ilhas, algumas tão pequenas como casas e outras com vários acres de extensão, salpicavam a grande superfície do lago, que entrava como um dedo até o povoado encravado na borda. As montanhas se elevavam ao bordo da água como guardiães vigilantes, e algumas cúpulas estavam envoltas em nuvens baixas que foram desfilando até perder-se ao longe.
Ao contemplar aquela grandiosa realidade, a vida que tinha levado até então lhe pareceu só um sonho. Os milagres viviam ali; aquele era um reino cheio de possibilidades que sussurrava a sua alma quebrada a promessa de um refúgio.
Sua fuga da Califórnia tinha terminado. Uma presença reitora a tinha atraído, ou melhor dizendo, empurrado, até aquele lugar mágico; uma presença que só se apoiava em uma coisa: aquilo era o correto. Não importava o que ocorresse a seguir, o como ou o porquê; simplesmente, Libby sabia que este era seu lugar.
E o caso era que nunca parou muito para pensar nas forças místicas… Ao menos até fazia uma semana, quando se viu com essa mesma força nas mãos: uma cirurgiã que, de repente, curava às pessoas sem bisturi.
Afastou por fim a vista do lago, pegou o montão de cópias impressas do anúncio de Internet de Robbie MacBain e revolveu entre os papéis até encontrar as fotografias que o acompanhavam. Cravou o olhar no menino, sentado em seu pônei diante um campo de árvores de Natal, e tentou decidir o que tinha para fazer que ela fosse até ali.
Certamente a casa da mãe do menino era muito bonita… E as montanhas também possuíam seu encanto, embora só fosse pela esperança de segurança que ofereciam.
Mas o fator decisivo tinha sido Robbie MacBain. Tinha algo, algo que parecia quase de outro mundo; era um menino com um olhar de alma antiga. Tinha uma presença especial sentado ali, tão orgulhoso em seu pônei, olhando diretamente à câmara com um sutil sorriso nos lábios que parecia dizer “sei um segredo”, e o brilho de uma promessa de magia em seus jovens olhos cor cinza estanho.
Libby voltou a revolver os papéis e encontrou o último correio que Robbie lhe tinha enviado, onde dizia: “Vá o nordeste saindo de Pene Creek, e segue até que veja um grande campo de árvores de Natal à direita. Acredito que está a uns sete quilômetros e meio do povoado. Sei que o ônibus escolar não demora muito, assim não deveria demorar muito em encontrar minha casa.”
Libby ajustou o espelho retrovisor para ver-se, afastou um cacho extraviado da face e, com gesto rápido, tocou o curto e ondulado cabelo. Depois piscou ao olhar seus enormes olhos castanhos enquanto se estudava com atenção; confiou em que o leve toque de maquiagem não fosse excessivo e sorriu para comprovar que não tivesse pego aos dentes uma parte de alface do sanduíche que comeu em Bangor. Queria parecer apresentável ao menos quando conhecesse seu jovem caseiro para que não notasse que tinha alugado a casa de sua mãe a uma mulher desesperada, carregada de segredos.
Depois, satisfeita com sua aparência de judiciosa e sensata fabricante de joias de trinta e um anos, pôs o carro em movimento, esperou que uma caminhonete a adiantasse e voltou a meter-se na estrada de dois sulcos.
Atravessou devagar o diminuto povoado de Pene Creek e observou com interesse as escassas lojas e as três dúzias de pessoas, mais ou menos, que se ocupavam de suas coisas. Também observou que seu carro ficava diminuído por uma multidão de caminhonetes e por enormes caminhões madeireiros. Além do dele, só viu outro carrinho, encaixado entre duas caminhonetes poeirentas, diante do Arsenal de Doam.
Deteve-se no cruzamento do centro do povoado e tentou decidir para que lado girar. Não tinha bússola, mas só havia três caminhos de saída de Pene Creek, de modo que escolheu a estrada, com piso de cascalho e claramente usadíssima, que deixava o sol à esquerda, calculando que iria ao nordeste.
Como ao cabo de nove quilômetros seguia sem ver nem uma árvore de Natal, Libby agarrou o mapa de Maine e o Dicionário geográfico que tinha comprado no aeroporto, mas sua atenção voltou de repente para a estrada quando um raio branco passou em picado por diante da frente do carro. Imediatamente deu uma freada e uma brusca virada para a esquerda para esquivar da grande ave.
Como ia muito rápido, o carro patinou para a borda. Libby voltou a dar outra virada à direita e de novo patinou sobre o cascalho gelado até meter-se rodando em uma curva fechada que de repente surgiu diante ela.
Talvez teria conseguido controlar se aquele maldito pássaro suicida não houvesse tornado a passar voando por diante do para-brisa. Desta vez girou com força o volante à direita, só para patinar em um atoleiro de gelo que havia na borda da estrada. E então o carro chegou à beirada, subiu disparado o aterro e de repente se elevou pelo ar.
Libby tampou a face com as mãos enquanto atravessava como uma flecha um grupo de árvores; seu grito de surpresa se deteve em seco ao ver que ao outro lado havia um lago gelado… E que o carro se lançava contra ele. Imediatamente os dois airbags se abriram, golpeando-a no peito e na face com a força de um disparo de canhão.
No interior do carro se levantou uma nuvem de polvilho branco, e, sem parar de tossir, Libby afastou a tapas o airbag que ia desinchando-se devagar. Uma cascata de água e gelo caiu sobre o capô e começou a penetrar pelas fendas do para-brisa, e para ouvir o vaio do motor e o gorgojeio da água, o susto de Libby se transformou em pânico.
O carro se afundou mais no lago.
Libby brigou com o fechamento do cinto de segurança enquanto a água gelada cobria o chão do carro. Por fim se soltou, mas não pôde abrir a porta: o seguro estava jogado, e não dava com o botão de abertura do carro de aluguel, que era um modelo novo. Tratou de baixar os vidros com a manivela, mas eram elétricas e tampouco funcionavam, de modo que subiu molhados pés até o assento e começou a dar chutes no vidro lateral do condutor. De repente, quando já tinha dado vários enérgicos chutes, deu-se conta de que um homem se aproximava caminhando pela água; depois de seguir com um feroz olhar de aço o rumo que tinha tomado o carro, seus penetrantes olhos, duros como o bronze de canhão, posaram-se nela.
O carro se afundou mais no lago.
Valente imbecil… Por que não corria para ajudá-la a sair antes que se afogasse? Libby deu um chute mais forte no vidro e, a gritos, disse-lhe que fizesse algo.
Mas o homem se limitou a seguir lhe lançando um olhar assassino.
Ao fim, muito devagar, tentou abrir a porta e descobriu que estava trancada. Com um gesto assinalou a alavanca de mudanças e depois fez gestos para que pusesse o carro em ponto morto.
Libby se endireitou e empurrou a alavanca até deixá-la em ponto morto; nesse momento ouviu o inconfundível som dos quatro seguros que se abriam com um estalo. Imediatamente elevou o ponteiro de relógio da porta e tentou abri-la, mas continuava sem querer ceder.
E o carro seguiu afundando-se mais no lago.
Libby começou a bater no vidro de novo.
O homem quebrou mais gelo que o rodeava, apoiou um pé, metido em uma bota, à direita da porta e agarrou o trinco. Então, de um forte puxão, abriu-a de repente, e imediatamente litros de água entraram em fervuras no carro e empurraram Libby até o assento do passageiro, que deu um cabeçada no vidro e soltou um palavrão.
Mas não demorou para fechar o bico quando seu descortês salvador, que continuava lhe jogando um olhar feroz, agachou a cabeça e entrou também. Aquele sujeito era enorme; era o homem de aspecto mais feroz que já tinha visto.
E estava lhe devolvendo o palavrão.
E além disso dizia algo sobre assassinar a suas árvores de Natal de primeira categoria.
Ou é que queria assassinar a ela?
—Pequena idiota! — Resmungou o homem enquanto alargava uma mão — Não vai afogar-se. Este lago não é fundo.
Mais desconcertado ainda por sua atitude que por seu tamanho, Libby decidiu que queria escapar dele tanto como do carro que se afundava, de modo que elevou os joelhos, plantou os pés no peito e lhe deu um empurrão.
Sua ação foi tão repentina que o gigante se incorporou, deu com a cabeça no teto e saiu rodando para trás até cair no lago, ao tempo que soltava outro pitoresco palavrão. Como pôde, Libby passou por cima do assento, saiu pela porta antes que ele reagisse… E descobriu que as pernas se negavam a sustentá-la.
E então caiu em cima do gigante.
Uns fortes braços a rodearam, e desta vez os dois se afundaram sob a superfície. Libby engoliu meio lago enquanto lutava para soltar-se, mas a força desse homem anulou seus esforços e, com um braço lhe rodeando a cintura e outra mão sustentando o traseiro, simplesmente ficou de pé.
Imediatamente Libby ficou quieta; encontrava-se diante uns olhos de um cinza intenso que já não a olhavam com expressão assassina.
Estavam rindo.
E a mão que o gigante tinha posta em seu traseiro parecia estar acariciando-a mais que a segurando.
Isso de primeiras impressões. Ela era um empapado desastre que não parava de tiritar e que, além disso, nem sequer sabia manter o carro na estrada; e ele, uma montanha de homem, muito bonito até cair de costas, que não controlava seus hormônios nem o tempo suficiente para tirá-la de um lago sem lhe colocar a mão… Mas antes que Libby pudesse lhe dizer o que pensava daquele resgate absolutamente heroico, o susto do choque se impôs por fim, e em questão de um segundo desabou e, de forma muito discreta embora do mais imprudente, desmaiou.
Despertou com um sussurro.
E as pontadas na têmpora fizeram dar um gemido. Imediatamente os sussurros se calaram; Libby abriu os olhos e soltou um grito de surpresa que a fez levantar-se e agarrar a cabeça. Duas fortes mãos foram sustentá-la pelos ombros e impediram que perdesse o equilíbrio. A cabeça lhe dava voltas e isso a enjoava, de modo que se agarrou aos braços que a sustentavam… E se encontrou olhando os olhos cinza como o estanho mais intensos e mais escuros que já tinha visto.
Uns olhos que bailavam de regozijo.
—Desmaiei — Disse ela sem convicção.
—A fé minha que sim.
Libby piscou. A minha fé?
—A minha fé? — Repetiu em voz alta.
O gigante assentiu com a cabeça.
Libby sentiu o calor do rubor que lhe subia pelo pescoço até as bochechas… E também sentiu um bater de asas na boca do estômago.
—Papai, não vê quão enorme tem os olhos? Está assustando Libby.
Libby se voltou para o menino que tinha falado. Estava sentado junto a seu pai na mesinha auxiliar que havia diante do sofá e lhe sorria amplamente; em seguida o reconheceu pela fotografia do anúncio de Internet. O menino lhe deu um tapinha no joelho.
—Está tudo bem, Libby — Disse — Meu papai só tem medo de que vá desmaiar outra vez.
O mais provável era que seu papai estivesse preparando-se para lhe colocar a mão outra vez, pensou ela. Voltou-se para o pai de Robbie MacBain e lhe lançou um olhar assassino para lhe dar a entender o que opinava de seu cavalheirismo. Não demorou para decidir que preferia tratar com o MacBain mais jovem quando o papai de Robbie se limitou a lhe responder com um sorriso.
—Sabe quem sou? — Perguntou ao menino.
Ele assentiu, mas baixou o olhar.
—Soube que era Libby Hart assim que te vi, mas papai olhou em sua bolsa para assegurar-se.
Libby lançou outro olhar assassino ao homem, que por fim lhe soltou os ombros, afastou-se e cruzou seus braços, enquanto seus profundos olhos cinza seguiam bailando cheios de regozijo.
O primeiro que ocorreu a Libby foi a palavra “gigantesco”, mas por alguma razão incluso essa etiqueta parecia insuficiente; talvez “Goliath” o fosse melhor. Imaginava que o bíblico Goliath devia ter o mesmo aspecto ameaçador.
O gigante em questão vestia uma camisa de flanela que se pregava a um peito extraordinariamente largo e a uns braços fortes e musculosos, e levava a pescoço uma toalha que estava claro que se tinha passado pelo ainda úmido cabelo para secar a água. Uma sombra de barba cobria sua angulosa mandíbula, e suas altas maçãs do rosto estavam tingidas de vermelho, como prova de que seu corpo trabalhava para repor o calor que tinha perdido no lago.
Libby não sabia dizer se era bonito ao estilo “duro” ou só impressionante em um sentido muito masculino. Sim que o fazia acelerar o pulso, mas vamos, aquilo talvez não fosse mais que seu corpo tratando de entrar em calor.
Decidiu concentrar-se em Robbie. Mas o menino estava olhando a seu pai.
—Vê, papai? Já te faz sorrir. E no lago te sorriu.
Libby voltou a olhar ao gigante que, elevando uma sobrancelha, olhava a seu filho.
—Sim, sim que me fez rir — Concordou; lançou um amplo sorriso a Libby — É o peixe menor que tiramos desse lago em todo o ano.
De repente, Libby baixou a vista até seu colo e alisou a molhada roupa enquanto sentia como o calor voltava a subir à face. Mas que homem tão desagradável, rir de seu tamanho!
—Acredita que deveríamos voltar a jogá-la na água para deixar que cresça um pouco mais? — Prosseguiu o MacBain mais velho sublinhando cada palavra com humorístico sibilo.
—Não, papai. Quero ficar com ela.
Libby subiu a mão para meter atrás da orelha um de seus curtos e molhados cachos.
—Bom, papai, posso ficar com ela? — Perguntou Robbie.
—Você fabrica joias? — Perguntou o MacBain mais velho.
Libby despachou a resposta com uma distraída inclinação de cabeça e se dirigiu ao Robbie com uma pergunta própria.
—Seu papai tem nome?
Robbie lhe lançou um amplo sorriso.
—Sim, Michael.
Libby se apressou a olhar Michael MacBain; seguro que aquele homem não tinha nada em comum com o grande anjo… Embora, por outra parte, sim que talvez Michael fosse um nome adequado. O arcanjo que lhe dava nome devia ser grande, forte e de aspecto feroz se era o que defendia o céu.
Certamente, Michael MacBain parecia bastante capaz de fazê-lo.
Nesse momento Robbie perguntou:
—O que aconteceu com seu cabelo? Passou um susto tremendo quando era pequena e por isso ficou branca em uma parte?
Libby elevou a mão para tocar a branca mecha que lhe caía sobre a testa e sorriu.
—Não, não passei um susto; nasci com ele assim.
Advertiu que Robbie se inclinava para frente com interesse e que Michael MacBain recuava com… Bom, com desconfiança. Ambas as reações lhe pareceram grosseiras, mas se absteve de dizê-lo.
Libby baixou a mão e a posou em um galo que tinha no lado esquerdo da testa; parecia tão grande como um ovo de ganso, e a cabeça lhe dava ferroadas ao tocá-lo.
—Pode me dizer se machucou em outra parte? —Perguntou Michael com um sorriso que lhe dava um aspecto mais diabólico que angélico; em seguida baixou o olhar por suas úmidas calças até onde uma perna da calça pegava ao evidentemente joelho inchado — Parece que tem o joelho inchado.
Sim que a Libby parecia que estava inchado; e além lhe doeu ao tentar dobrá-lo. Devia ter golpeado contra o painel quando o carro caiu à água. Também lhe dava a impressão de que tinha o ombro esquerdo machucados e o peito, quase seguro por culpa do cinto de segurança. Mas, além de uns quantos galos e o martelar da dor de cabeça, sentia-se relativamente intacta.
—Quanto tempo estive inconsciente? — Perguntou, ao tempo que se expor se teria uma comoção cerebral.
—Talvez dez minutos — Disse Michael.
Libby se obrigou a olhar a seu salvador.
—Obrigado por me tirar do lago — Murmurou em tom nada cortês; recordou a maldita tranquilidade com que o tinha feito e lhe dedicou um sorriso muito pouco cordial — Me alegro de que por fim se desse conta de que não ia crescer mais e decidiu me tirar.
Michael ficou de pé.
—E agora devo ir tirar seu carro — Disse, lhe dirigindo um sorriso igual de forçado — E ver o que ficou de minhas árvores de Natal.
Inclinou-se, colocou uma mão na parte de atrás do sofá e lhe pôs a face incomodamente perto.
—Seu pequeno acidente me acabou com o primeiro posto na feira estatal do ano que vem, senhora — Sussurrou — E tenho a intenção de que me indenize.
Com aquela advertência (embora possivelmente fosse uma ameaça), Michael MacBain se endireitou e saiu da sala. Imediatamente Robbie se aproximou até ficar sentado junto a ela e lhe passou a mão pelo braço.
—Não se preocupe por ele, Libby; a papai gosta de grunhir muito, mas depois não faz nada — De repente deixou ver um amplo sorriso e lhe estendeu a mão — Olá. Sou Robbie MacBain.
Libby aceitou o oferecimento do jovem e lhe estreitou a mão.
—Me alegro de te conhecer por fim, Robbie MacBain —Disse.
Tentou não fixar-se em que o menino tinha uma mão quase tão grande como a sua… Nem em que, provavelmente, devia pesar só uns dez quilogramas menos que ela.
Não sabia dizer quantos anos teria. Falava e agia como se fosse muito mais novo do que indicava seu aspecto, e tinha um aura de impaciente inocência. Os meninos de onze ou doze anos seguiam chamando de “papai” a seus pais?
—Que idade tem, Robbie?
O menino inchou o peito.
—Oito anos — Disse — Mas faço nove em janeiro.
Libby não acreditou. Era quase tão alto como ela e, apesar de toda a inocência que via em seu olhar, transparecia uma sabedoria mais própria de uma pessoa adulta.
—Oito anos? —Repetiu — Está seguro?
Ele a olhou franzindo o cenho.
—Claro que estou seguro — Disse, como se fosse uma simplória — Nasci no ano da tempestade de gelo.
Libby não tinha ouvido falar de nenhuma tempestade de gelo, mas assentiu com um gesto. Ao melhor só era grande para sua idade, em particular tendo em conta o tamanho de seu pai. Michael MacBain devia medir quase dois metros de altura.
Ela media um e cinquenta e sete com saltos.
Ainda lhe parecia mentira que tivesse agredido a aquele homem no lago. Devia ser uma loucura passageira produzida pelo medo a afogar-se… Ou talvez foi que a água fria lhe congelou o cérebro por um momento.
—Ouça, Robbie, acredita que poderá me encontrar algo seco para vestir?
Ele o pensou e disse:
—A roupa da vózinha Ellen segue aqui, mas acredito que não deve usá-la; ao melhor o vôzinho se desgostaria se te vê com ela posta.
—O vôzinho?
Robbie assentiu com a cabeça.
—O vôzinho John. Não é meu vôzinho de verdade, mas gosta que o diga. Agora mesmo não está aqui, mas vive com papai e comigo porque antes era o dono desta fazenda, mas a vendeu a papai antes que eu nascesse.
—E sua avó Ellen? Onde está?
—Morreu — Disse ele, baixando o olhar — Papai e Paul a enterraram no cemitério de lá trás faz dois meses.
—Nossa, lamento, Robbie — Disse ela com sinceridade — Quem é Paul?
—O filho do vôzinho. Mas já voltou para o Havaí.
—Compreendi. Então possivelmente tenha razão; não devo tomar emprestada a roupa de sua avó Ellen. E algo seu?
Ele se levantou.
—Vou trazer uma de minhas camisas.
Jogou-lhe uma olhada de cima abaixo, enquanto continuava deitada no sofá.
—Tenho umas calças de moletom que lhe servirão bem — Acrescentou, ao tempo que se dirigia para a porta—. Te trarei meias três - quartos também.
Depois que desapareceu escada acima, Libby se levantou e passou os pés pela borda do sofá, levantou a perna da calça e olhou o joelho. Sim que estava inchado e vermelho. Flexionou-o várias vezes, ficou de pé e se apoiou um pouco nele.
Doía-lhe embora ainda funcionava bastante bem. Ficou direita, levou uma mão à base das costas e se inclinou para trás para flexionar os músculos. Doía-lhe tudo, embora suspeitou que aquilo não era nada comparado com o que sentiria o dia seguinte.
Tinha sorte; suas feridas podiam ter sido muito piores, tendo em conta que provavelmente tinha destruído o carro.
Deu uma olhada ao enorme salão onde se encontrava e não demorou para se dar conta de que aquilo era uma casa de solteiros desde que a avó Ellen morrera dois meses atrás. Havia tanto pó nos móveis que se viam os rastros de Robbie e de Michael na mesinha auxiliar.
Em uma de suas mensagens por correio eletrônico o menino contava que sua mãe tinha morrido quando ele era pequeno e, pelo visto, ali não havia nenhuma nova “senhora do Michael MacBain”; ou, se a havia, não tinha muitos dotes como dona-de-casa.
Aproximou-se coxeando a uma janela e, ao aparecer, deu um grito afogado de surpresa.
Estava colocada bem no meio do Natal.
A neve que tinha ameaçado todo o dia durante a viagem tinha chegado por fim. Uns enormes e gordos flocos de algodão desciam flutuando pela paisagem e se pegavam a tudo o que tocavam… E, além disso, até onde alcançava sua vista, o campo estava coberto de inumeráveis fileiras de árvores de Natal. Tinha viajado ao País das Maravilhas.
Um movimento lhe chamou a atenção e então viu que Michael MacBain levava um trator até a borda do lago devorador de carros; depois desceu e se meteu caminhando na água até que lhe chegou ao peito.
O homem nem se alterou sequer, e muito menos vacilou na hora de entrar no lago gelado. Como o fazia? Libby estremeceu em sua roupa úmida só ao pensar no frio que devia ter; caramba, sabia por experiência própria.
Fascinada, e inclusive com um pouco de assombro reverencial, observou como Michael tirava um cabo da parte dianteira do trator e mergulhava sob o para-choque traseiro do carro para amarrá-lo. Libby conteve a respiração e não a soltou até que o homem voltou a sair à superfície.
Aquele sujeito era assombroso… Ou tinha tendências suicidas. Era consciente sequer de que podia sofrer uma hipotermia, ou cairia na conta quando já era muito tarde?
E, além disso, por que fazia aquela tarefa tão desagradável e perigosa? Em particular, tendo em conta quão furioso estava com ela.
Tinha-lhe quebrado algumas de suas magníficas árvores de Natal, dos que cultivava para um concurso estatal. Qualquer um em sua situação teria se limitado a lhe passar o telefone e teria dito que chamasse um reboque, mas Michael estava ali, metido na água gelada e esforçando-se por arrumar o desastre que ela tinha feito. Isso a fez sentir-se culpada.
Devia muitíssimo ao Michael MacBain.
E aquilo a preocupava. Não estava acostumada a estar em dívida com ninguém… E menos com homens altos e bonitos ao estilo “duro” que só olhando-a convertiam as tripas em papa mornas e aguadas… Libby se abraçou ao recordar a sensação das mãos de Michael nos ombros. Para falar a verdade, ficou aturdida como uma tola. Maldição… Ia ter que vigiar-se se queria ter êxito ali. Não podia embevecer-se com o primeiro homem bonito daquelas montanhas que conhecia.
Nem afeiçoar-se muito com seu filho.
Tinha acudido ali a construir uma nova vida sozinha, e não podia arriscar-se a cercar uma relação sentimental com seus caseiros, porque, por cima de tudo, devia proteger seu horrível segredo.
Michael saiu à superfície do lago e jogou atrás a cabeça para tirar a água da face. Foi até o lado do condutor e empurrou a porta até que esta se fechou com um estalo; depois olhou o assento de trás do quase submerso carrinho e meneou a cabeça. Todas os pertences de Libby estavam ensopados, incluído o que parecia um computador, que flutuava pelo carro metido em uma maleta negra.
Aquela mulher tinha uma sorte tremenda de estar viva. Se ele e Robbie não tivessem estado em casa, ou se tivessem estado no campo dos doze acres, teria morrido congelada antes de poder sair.
Soltou um bufo e meneou a cabeça de novo. “Mulher?”, pensou. Libby Hart parecia mais um menino que uma mulher, com seu cabelo curto e encaracolado, seu diminuto corpo e seus infantis e grandes olhos castanhos. O único grande que tinha era o mau gênio.
Michael se surpreendeu sorrindo outra vez. Aquela mulher se enfureceu muitíssimo com ele que saiu do carro lhe dizendo palavrões… E meter contra um homem que tinha o dobro de seu tamanho indicava que sua coragem era maior que ela.
Isso também lhe fez pensar que Libby Hart era imprudente.
Onde os tinha metido seu filho? Robbie levava quatro dias tão nervoso com a chegada dessa mulher que mal tinha podido contê-lo para que não ricocheteasse pelas paredes.
Assim pôs o menino para trabalhar preparando a casa da Mary para sua nova inquilina. E além tirou as cores a Grace MacKeage para que o fiscalizasse, já que tinha desempenhado um papel tão importante naquela sutil conjura destinada para lhe buscar esposa.
Bom, diabos… Alguém deveria ter pedido uma foto de Libby Hart; se aquela mulher apenas lhe chegava ao peito…
Embora tinha que reconhecer que era toda uma mulher. Recordou a sensação de seu bonito e pequeno traseiro ao tirá-la nos braços do lago. Também se tinha fixado em sua cútis perfeita e no pescoço esbelto e elegante que aparecia de sua blusa meio aberta quando a levou para casa; teve que voltar a lhe abotoar a blusa depois de mandar Robbie por uma toalha, quando bem que teria preferido tirá-la maldição... Não aguentava mulheres pequenas e imprudentes.
Michael sentiu que o sangue começava a agitar-se o e se deu conta de que tinha adormecido o corpo da cintura para baixo. Então recuou até sair da água gelada, subiu ao trator e colocou uma marcha. Devagar, foi soltando a embreagem para tirar suavemente o carro do lago, mas a lembrança do corpo de Libby o distraiu. Pisou na embreagem de repente, e o trator deu uma sacudida para trás, lhe dando também um brusco puxão ao carro, até que por fim Michael e os dois veículos saíram à estrada.
E mesmo assim a imagem de Libby não desapareceu.
Maldição… Não aguentava às mulheres pequenas e imprudentes.
Sim, Libby Hart ia ser um problema.
Com os cotovelos sobre a mesa da cozinha e o queixo apoiado nas palmas das mãos, Robbie estava sentado na casa recém alugada de Libby, olhando-a desfazer a ensopada mala. Observava com atenção cada objeto que tirava e depois proclamava com candura se acreditava que estava danificada ou não.
O montão de roupa danificada ia fazendo-se bastante grande.
Ao final Libby renunciou a tentar salvar seus pertences e, depois de voltar a colocar muitas coisas dentro, aproximou a mala da porta da cozinha e a soltou no chão.
—Que dia recolhem o lixo? — Perguntou a seu salvador, ao tempo que punha o computador na mesa.
—Recolhem? — Repetiu Robbie com um olhar zombador.
—O caminhão do lixo. Que dia da semana passa por aqui?
—Não temos um caminhão que recolha nosso lixo. Terá que levá-la ao esgoto.
Libby olhou a seu caseiro piscando.
—Tenho que levá-la eu mesma?
Robbie assentiu.
—Sim. O esgoto está aberto os sábados.
—Não acredito que se inclua no recibo do aluguel o que me levem o lixo ao esgoto, não é?
Enquanto Robbie o pensava e baixava as sobrancelhas até franzir muito o cenho, Libby riu e fez um gesto com a mão.
—Não importa. Veem comigo na sábado que vem e me ensina onde está; se for viver aqui, mais vale que acostume a como são as coisas.
Abriu o estojo do computador, mas teve que dar um passo atrás quando meio litro de água saiu e se derramou pela mesa até cair no chão. Robbie se afastou como pôde do desastre e deu um assobio.
—Não acredito que seu computador tenha sobrevivido, Libby. A tia Grace diz que os componentes eletrônicos não podem se molhar.
—A tia Grace?
Robbie voltou a aproximar-se à mesa e olhou o alagado computador. Depois elevou a vista para ela.
—É a irmã de minha mamãe — Disse — Cresceram juntas nesta casa.
Libby se deteve justo quando alargava a mão para o computador.
—E o que opina sua tia de que eu viva na casa de sua família?
Robbie lhe dedicou um enorme sorriso.
—foi ideia dela que a alugasse — Esclareceu — Foi minha ideia alugar para você.
—E lhe agradeço — Disse isso Libby, sorrindo também.
Jogou uma olhada pela enorme e antiga cozinha.
—Já me apaixonei por esta casa. Parece… — Voltou a olhar ao menino — Parece acolhedora. Vou gostar muito de viver aqui. E obrigado por me empilhar a lenha na garagem; estou desejando utilizar essa formosa lareira.
De repente Robbie ficou sério.
—Procurei-te uns gatinhos, mas o tio Ian diz que ainda demorarão uns quantos dias em estar preparados para deixar a sua mamãe. Um dia na próxima semana lhe trarei isso depois do colégio, se for bem.
—Ah, estupendo. O tio Ian é irmão de sua mamãe?
—Não, não é meu tio, só gosta que o diga; em realidade, é o primo do tio Grei.
—O tio Grei?
Robbie soltou um suspiro de exasperação e assinalou a janela da cozinha.
—O marido da tia Grace. Há quatro MacKeage — Explicou — : Grei, Ian, Callum e Morgan. São os donos do complexo turístico da montanha TarStone, que está do outro lado dessa colina. Grei está casado com a tia Grace, Morgan está casado com Sadie, e Callum está casado com Charlotte.
Pelo visto, sentia-se obrigado a passar revista a seu clã familiar.
—Ian não está casado com ninguém; diz que é muito casca grossa para casar-se com uma mulher — Terminou.
Já que lhe dava tantos dados, Libby decidiu farejar um pouco mais; queria saber coisas sobre seus novos vizinhos.
—Tem irmãos seu pai?
—Não, só somos ele e eu. E John. Mas já te falei do vôzinho.
—E tem primos do lado MacKeage?
Robbie voltou a sorrir amplamente e, de repente, enrugou a face.
—A tia Grace só tem garotas: seis. E está grávida outra vez e diz que esta também vai ser uma garota… — Voltou a animar-se — A tia Sadie e o tio Morgan têm três meninos e uma garota, mas têm que crescer um pouco mais até que eu possa brincar de verdade com eles. E, além disso, já não confiam em me deixar só com a Jennifer, e menos desde que quase a matei. Mas a tia Charlotte e o tio Callum têm um menino, e brinco muito com ele.
Libby elevou a vista, surpreendida.
—Quase matou a uma menina?
Robbie assentiu com um gesto, mas depois se apressou a menear a cabeça.
—Não. Papai me disse que só o disseram, pois estavam assustados. Não se davam conta de que eu agarrava muito forte a Jennifer. Se não teria caído.
—Caído de onde? — Perguntou Libby em voz baixa.
—De meu pônei. Jennifer queria dar uma volta por seu aniversário.
—E quantos anos tem Jennifer?
—Dois. Ou os tinha. Agora tem dois anos e meio.
Com muito cuidado para que não lhe notasse o horror na face, Libby se sentou, mas deu um pulo ao sentar-se em um atoleiro de água.
—Ah, e sobre isso de que quer um cavalo… — Disse Robbie, alheio por completo a seus apuros.
—O que acontece com o do cavalo? — Perguntou ela, ao tempo que separava de sua cabeça a imagem de Robbie montado no pônei com uma pequena no colo.
—Estive pensando que não tem que comprar um cavalo, Libby. Tinha planejado que montasse o de papai, mas me disse que, depois de vê-la, mais vale que monte você meu pônei e que eu monte ao Pisador.
Decidida a ignorar o novo insulto de Michael a sua estatura, Libby perguntou:
—E exatamente como é de grande Pisador para que seu papai ache que mais vale que eu não o monte?
—Ah, Pisador é um cavalo de guerra, mas está acostumado a mim e quase sempre se comporta bem. É só quando o monta papai quando fica um pouco louco.
—Um cavalo de guerra? — Sussurrou Libby.
Não sabia de que raça era um cavalo de guerra, mas parecia que devia ser grande… E mau.
Robbie tentou consolá-la lhe dando uns tapinhas no joelho.
—Pisador é muito velho e já não é um cavalo de guerra, mas papai não deixa que atrele o trenó de Natal; diz que isso seria uma humilhação para ele.
O menino era uma fonte de informação… Parte da qual o fazia sentir calafrios nas costas.
Nesse momento alguém bateu na porta do alpendre e Libby se levantou, mas como se deteve para separar as calças molhadas do traseiro, Robbie chegou antes.
Uma mulher, formosa e muito grávida, entrou levando uma bolsa de comestíveis.
—Há mais na caminhonete, Robbie — Disse, enquanto punha a bolsa na bancada; voltou-se e estendeu a mão — Olá. Sou Grace MacKeage, a tia de Robbie.
Libby tomou a mão que lhe oferecia e a estreitou.
—Me alegro de conhecê-la, Grace. Sou Libby, e pelo Robbie já conheço toda sua história.
Grace soltou um bufado.
—Com certeza que sim.
Devia ter uns quarenta e tantos anos. Levou as mãos à costas para descansar seu inchado estômago enquanto jogava uma olhada pela cozinha.
—Bom, o que lhe parece o velho lar? Está à altura?
Libby fez um gesto afirmativo e se apressou a afastar uma cadeira da mesa. Olhou para assegurar-se de que estivesse seca e depois, com um gesto, indicou a sua nova vizinha que se aproximasse.
—Por favor, sente-se. Ainda não tenho chá para lhe oferecer, mas ao menos conversaremos um momento.
Com um gesto de agradecimento, Grace foi ondeando até a cadeira e se sentou dando um suspiro de alívio.
—Obrigado. — Deu uns tapinhas no ventre com as duas mãos — Lhe juro que a pequena está jogando futebol aqui dentro.
Libby assinalou o estômago do Grace com um movimento de cabeça.
—A sétima me disse Robbie, não?
—Sim. Outra menina sã e feliz que o está passando em grande a minha costa.
—Para quando espera o bebê?
Grace inclinou a cabeça e lhe dedicou um amplo sorriso.
—Este ano, para em vinte de dezembro.
—Este ano?
Grace levantou quatro dedos.
—Quatro gravidez, sem contar esta, e seis meninas. Todas nascidas em vinte ou vinte e um de dezembro, segundo quando cai esse ano o solstício de inverno. —Fez um gesto com a mão — Já não me fixo na data, só no dia.
Libby perguntou:
—Todas suas filhas nasceram no solstício de inverno? —Assinalou-lhe o ventre—. E espera a esta o mesmo dia?
Grace soltou uma risadinha.
—Por que não? Resulta prático dar todas as festas de aniversário de uma vez.
—Mas não esperará que todas suas filhas nasçam o mesmo dia… — Repetiu Libby com descortesia — Isso é improvável.
Grace assentiu devagar e a olhou diretamente, ao tempo que, em voz baixa, dizia:
—Disse a médica à matemática.
Libby conteve um grito; por um instante lhe pareceu que sua nova vida se vinha abaixo.
—Mas… Como…? Como o soube?
—Que você é Elizabeth Hart, famosa cirurgiã traumatóloga do hospital Cedars-Sinai? — Perguntou Grace, elevando uma sobrancelha — Acreditava que ia deixar que meu sobrinho alugasse esta casa a uma absoluta desconhecida procurada pela Internet?
Libby lhe devolveu o mesmo olhar direto.
—Quem mais sabe além de você? Michael? Robbie?
Grace meneou a cabeça.
—Não. Só meu marido.
Lançou-lhe um olhar próprio de um conspirador.
—Como não o mencionava em suas mensagens, supus que não queria que se soubesse. —Deu de ombros — Não sei por que veio aqui, mas a verdade é que me dá igual, Libby. Enquanto siga sendo a mulher sensata e inteligente que minhas fontes dizem que é, não tenho nada contra que deseje esconder-se aqui. Pene Creek é um refúgio para mais de uma alma perdida.
—Não estou me escondendo… — Se defendeu Libby em voz baixa — Salvo, possivelmente, de mim mesma.
Depois de reconhecê-lo, sorriu a sua nova amiga; tinha decidido em um segundo que podia confiar em Grace.
—Antes talvez acreditasse ser uma dessas almas perdidas que diz, mas se tinha dúvidas sobre o que estava fazendo, já não as tenho. Hoje mesmo, quanto mais me aproximava de Pene Creek, mais alto ouvia a voz que soava em minha cabeça e me dizia que, por fim, estava em meu lugar.
Grace colocou uma mão no joelho, colocou a outra no respaldo da cadeira e, com estupidez, levantou-se como pôde. Depois se aproximou de Libby e a envolveu em um quente abraço de irmã.
—Isso é bom — Sussurrou — Pois a este povoado não virá mal uma mulher com seu talento.
Libby se tornou um pouco atrás.
—Eu eu… Terminei com a medicina.
Ao tempo que se afastava, Grace lhe piscou um olho.
—Não estava pensando em seu talento com o bisturi — Disse em voz baixa.
Nesse instante Robbie entrou pela porta com os braços carregados de bolsas de papel, e enquanto Libby se apressava a ajudá-lo, perguntou-se o que quereria dizer sua nova amiga com aquele comentário.
Depois se voltou para repreender a sua visitante.
—Não devia fazer isto por mim, Grace — Disse — É uma tarefa cansada para alguém em seu estado.
Grace soltou um bufo.
—É menos cansado que manter distraídas a seis meninas. Logo terei que resgatar a meu marido, que ficou com elas, mas me dá tempo de tomar um chá.
Colocou a mão em uma bolsa e tirou uma caixa de chá.
—comprou água? — Perguntou Libby, olhando pelas demais bolsas.
Grace riu, e Robbie dedicou a Libby um olhar zombador.
—A água não compra na loja — Disse — Se abre a torneira.
—É água de poço — Esclareceu Grace — E a mais doce do condado.
Libby sentiu que o rubor lhe subia pelas bochechas.
—Não sou tão urbana para ser irrecuperável — Disse sem muita convicção — É que me deu uma cãibra cerebral passageira.
Grace lhe deu um tapinha no braço enquanto passava por diante com o bule.
—Eu demorei meses em voltar a me aclimar — Assegurou.
Pôs água a ferver e depois se aproximou da mesa e pegou o ensopado computador.
—Não tem boa pinta. — Voltou-se a olhá-la — O que aconteceu?
Mas antes que Libby pudesse responder, fez-o Robbie.
—Decidiu dar um banho a seu carro em nosso lago — Disse, rindo de sua própria piada — Se lembra? Já te contei que papai teve que tirá-la.
Lançou um travesso olhar ao Libby.
—Embora pensemos se voltar a jogá-la na água outra vez para que crescesse um pouco mais.
Grace lhe revolveu o cabelo enquanto o repreendia.
—O senso de humor de seu pai não é algo que terei que emular, Robbie. —Viu que este franzia o cenho com expressão de curiosidade — Vá buscar no dicionário do salão.
Depois que o menino se foi correndo, Grace se concentrou no olhar de curiosidade do Libby.
—Quando não age como o menino de oito anos que é em realidade, é muito preparado; e frequentemente dá bastante medo.
—Em que curso está, no segundo de primário? — Perguntou Libby.
Grace assentiu.
—Lê como se estivesse na oitava graças a Michael. E em compreensão matemática ainda está mais adiantado, gentileza de seus genes Sutter — Acrescentou com um orgulhoso sorriso.
—Parece que tem bastante mais idade — Disse Libby, ainda duvidosa.
—Isso também o deve a Michael. Embora já conheceu seu pai. — Um brilho animou os olhos de Grace — Me contaram que esteve a ponto de lhe dar um murro.
—Só consegui lhe fazer rir.
Grace lhe deu uns tapinhas no braço; depois abriu um armário da cozinha e pegou duas xícaras.
—Mas como, Libby Hart, é um milagre — Disse; assentiu enquanto sorria com gesto de aprovação — Desde que o conheço me parece que só o vi rir duas vezes, e as duas vezes foi a custa de outra pessoa; uma vez, de mim.
—Uma maravilha de homem, pelo visto — Disse Libby.
De repente Grace MacKeage ficou séria.
—Sim que é uma maravilha — Assegurou com toda a lealdade de uma cunhada— Já não se fazem homens como Michael MacBain.
—Quer dizer grandes e de aspecto feroz? — Perguntou Libby, decidida a lhe tirar gravidade à conversa.
Mas Grace assentiu com um gesto de cabeça.
—Sim; se lhe deixa, Michael resulta avassalador. — Olhou de cima abaixo o pequeno corpo de Libby e de repente voltou a sorrir — Talvez tem que subir a uma cadeira, mas acredito que você sabe devolver tanto como recebe.
Libby não disse que não. E também decidiu que, em teoria, embora estivessem na casa familiar de Grace, ali a anfitriã era ela. Encarregou-se da tarefa de fazer o chá e com um gesto lhe indicou que retornasse a seu assento.
Justo então Robbie entrou outra vez na cozinha.
—Mas é que sim que tenho que emular a meu papai — Disse — Significa tratar de ser igual ou melhor que outro, e eu quero ser igualzinho a ele.
Libby levou as xícaras de chá à mesa e se sentou, divertida com seu novo caseiro.
—Pode crescer como seu papai — Concordou Grace, puxando Robbie contra seu ventre para abraçá-lo — E inclusive pode emular seu viril e arrogante passo…
Tomou pelo queixo e o obrigou a olhá-la.
—Mas quando se trate de mulheres, Robert MacBain, será mais civilizado.
—Papai sabe ser civilizado — Replicou ele enquanto olhava a sua tia com um amplo sorriso — Abotoou a camisa de Libby para que eu não lhe visse os seios. Isso foi civilizado, não acredita?
Libby acabava de tomar um gole de chá, mas em vez de engoli-lo, soltou-o pela mesa. Depois levou depressa as mãos às acesas bochechas e cravou a vista em Grace com expressão horrorizada.
Grace elevou uma sobrancelha e lhe sorriu; depois, assentindo, voltou a olhar ao Robbie.
—O que fez Michael foi uma coisa muito civilizada — Concordou; soltou o menino e lhe deu um tapinha no traseiro — Por que não vai preparar um pouco de papel e lenha miúda na lareira? Estou segura de que esta noite Libby quererá acender um fogo para contemplá-lo enquanto pensa em onde se colocou exatamente ao vir aqui.
Robbie voltou correndo ao salão, impaciente por realizar tão importante tarefa, e Grace dirigiu seus risonhos olhos para Libby, que seguiu olhando-a fixamente, muda de horror.
—Dá-me pânico a ideia de lhe contar quão parecidas são nossas chegadas a Pene Creek. — Grace meneou a cabeça — Temo que dê a volta e retorne correndo a Califórnia.
Aquele misterioso comentário tirou o Libby de seu estupor.
—Quão parecidas? — Perguntou.
Pestanejando, olhou ao arredondado ventre de Grace e se perguntou quão parecidas seguiriam sendo suas vidas.
Grace assinalou com um gesto de cabeça a porta da cozinha, onde estava a mala danificada do Libby.
—Eu também tive um acidente ao chegar aqui, e me danificou tudo o que trazia.
Sorriu ao dizê-lo, e Libby se sentiu intrigada.
—Que espécie de acidente?
—Meu avião caiu — Disse Grace, lhe tirando importância com um gesto da mão; depois moveu a cabeça para assinalar o computador — Até me danificou o computador, como você; mas não lhe conto por isso. Eu também desmaiei nos braços de um homem muito grande e muito avassalador.
Deu um tapinha no ventre.
—Foi faz oito anos e faz quase sete meninas.
Libby ficou horrorizada de novo.
Grace se pôs a rir e se levantou com estupidez.
—chegou a um bom lugar, Elizabeth Hart. Esta casa te manterá abrigada e cômoda, esta terra te recarregará as pilhas e as pessoas te receberão bem. — Foi ao salão ver como Robbie dispunha os preparativos do fogo e depois se voltou de novo para ela; um ardente sorriso lhe animava o olhar — E, além disso, Michael MacBain vai te deixar louca, embora isso não impedirá que se apaixone por ele de todas as formas.
Libby passou a primeira noite em sua nova casa dando voltas na cama enquanto por sua mente cruzavam sonhos inquietantes. Em sua imaginação viu uma enorme ave branca que batia as asas contra o teto, por cima de sua cabeça, enquanto o bater de suas asas enchia o ar com o batimento de uma luz azul. Depois foi um grande cavalo que, descontrolado e soprando, cruzava rapidamente o bosque com ela obstinada ao lombo, dando gritos de pânico e pedindo ajuda a gritos; e, por fim, um gigante, com mãos como o aço forjado e olhos tão profundos e escuros como o granito das montanhas, gritava por cima do rugir do vento.
Libby abriu os olhos e gritou a pleno pulmão.
Uma grande mão lhe tampou a boca.
—Santo Deus, mulher, sim que gosta de gritar! — Sussurrou Michael MacBain, com a face só a uns centímetros da sua.
O calor de sua mão, o contato de seu quente fôlego lhe roçando as bochechas e o peso de seu grande e masculino corpo lhe empurrando a fez sentir um formigamento de alerta em todos os nervos de sua pele. Seguia ouvindo o rugir do vento que bramava em seus sonhos, e a chuva que açoitava as janelas do quarto não fazia mais que aumentar o caos e a vertigem de suas emoções.
—Vou tirar a mão — Disse Michael.
Em seus olhos se refletia o que parecia ser a luz de uma lanterna que estava sobre a cama, junto a eles.
—E se voltar a gritar — Prosseguiu ele em voz baixa — desta vez faço que feche o bico lhe dando um beijo. Compreendeu, Libby?
Ela assentiu com frenesi.
Que diabos fazia ele ali, em metade da noite? E o que era mais importante: por que não estava assustada?
O lógico era que estivesse morta de medo depois de despertar e encontrar em seu quarto um homem que tinha conhecido no dia anterior. Mas, para falar a verdade, naquele momento tinha mais medo de si mesma; fazia muito que não sentia aquela energia que fazia saltar faíscas entre eles. Então foi quando se deu conta de por que ele estava ali.
Michael MacBain também sentia a energia, e o assustava tanto como a ela. E antes que aquela energia causasse aos dois um grande problema, colocou-se em seu quarto a altas horas da noite confiando em pô-la tão nervosa como para que se voltasse correndo a Califórnia. Nossa... Quase estava tentada de deixá-lo em evidência. De repente, como se lesse o pensamento dela, ele se levantou.
Libby se incorporou na cama e apertou as mantas contra o peito.
Michael recuou um pouco e passou a mão pelo cabelo.
—Maldição, mulher, por que não me dá uma bofetada?
Libby não pôde evitar sorrir enquanto alisava também o cabelo com mão tremula.
—Para essas coisas sou caprichosa — Disse — Quando acredito que uma pessoa tem segundas intenções, a maioria das vezes só me entram vontades de testá-lo.
—Santo Deus! —Disse ele em voz baixa — Sim que é você imprudente.
—Não lhe tenho medo, Michael.
—Pois deveria ter — Grunhiu ele, avançando um passo para a cama — Não se dá conta do que esteve a ponto de ocorrer entre nós?
—Não teria ocorrido nada, de modo que deixe de fazer teatro. Em realidade, não veio aqui a me revolver os lençóis.
Ele a olhou boquiaberto; estava claro que ficou sem palavras. Depois se esfregou a face com as mãos, soltou um grunhido do fundo do peito e de repente esteve outra vez em cima dela… Só que nesta ocasião não sentado, e sim estendido a seu lado, apanhando-a sob as mantas.
Com uma mão lhe rodeou os ombros, com a outra agarrou o quadril e puxou com força para aproximar-lhe Libby se encontrou com o nariz pego ao gigante e a vista cravada em seus tempestuosos olhos cinza.
Provavelmente tinha chegado o momento de deixar-se levar pelo pânico. Estava muito claro que Michael MacBain não estava acostumado a que o deixassem em evidência. E, para falar a verdade, Libby tampouco estava acostumada a que a sacudissem homens grandes e zangados.
—Não me confunda com um de seus civilizados californianos — Disse ele com suavidade, contradizendo seus atos — Para chegar aqui, Libby Hart, você percorreu algo mais que uma simples distancia. Nestas montanhas os homens têm tendência a terminar o que começamos, e não permitimos a ninguém, em particular a uma coisinha como você, que nos teste.
—Que se propõe?
—Maldição, Libby. Se dá conta sequer de por que se viu atraída até aqui?
Ela não deveria ter sorrido; mas, simplesmente, não pôde evitá-lo.
—Seu filho procura uma mamãe nova — Disse—. E, pelo visto, acredita que talvez seja uma boa candidata.
Ele se tornou para trás e lhe lançou um olhar assassino.
—De modo que reconhece que está procurando marido?
O sorriso dela se converteu em risada.
—Eu não procuro marido.
Foi evidente que ele não acreditava quando suas mãos lhe apertaram o traseiro. Libby deixou de sorrir e lhe devolveu a pergunta
—De modo que reconhece que veio aqui esta noite para me assustar?
—Vim porque me preocupava como estaria com esta tempestade.
—Que tempestade?
Ele soltou um suspiro tão forte que lhe moveu o cabelo. Depois, com crescente impaciência, explicou:
—A neve se transformou em uma chuva torrencial, e cortou a eletricidade.
—Veio até aqui, invadiu minha casa e me despertou para me dizer que não há luz? Mas que amável por sua parte.
Ele se apoiou mais nela.
—Sempre é assim de imprudente quando tem um homem de cem quilo afundando-a no colchão, senhora, ou é que só tem vontade de morrer?
—Faz muitíssimo tempo que não estou em um colchão com um homem de cem quilos — Respondeu ela, removendo-se um pouco para respirar melhor — Vai se levantar?
—Ainda não decidi — Espetou ele zangado, ao tempo que voltava a mover-se contra ela.
Afastou-lhe um cacho da face, mas se deteve ao acariciar algo que Libby sabia que era sua mecha branca. Depois de observá-lo com atenção, olhou com igual parada a cara.
—Por que veio aqui?
Supôs que Michael tinha decidido falar em vez de levantar-se… E não soube se sentiria-se aliviada ou alarmada.
—Vou começar uma nova vida.
—O que tinha de mau sua vida antiga?
—Já não ia. De repente vi que me faltava o ar… Igual agora.
Ele se elevou, embora só um pouco, enquanto seguia observando-a. E, pouco a pouco, o alívio de Libby se converteu em alarme. Começava a acalorar-se e não porque tivesse muitas mantas.
Michael tinha os olhos mais bonitos que tinha visto… E, além disso, aquele leve bater as asas na boca de seu estômago ia voltando uma tormenta interna que imitava ao que rugia no exterior.
—Vai me contar no que trabalhava em sua vida anterior?
—Não.
—Mas diz que não está aqui para procurar um marido e uma família pronta.
—Essa é a versão que penso manter.
—Não permitirei que rompa o coração do meu filho, Libby.
—Não o farei, Michael.
Ele ficou calado um momento, enquanto seu dedo voltava a brincar com o cabelo dela. Então esboçou um meio sorriso.
—Pois isso nos deixa duas alternativas: ou te ensino como funciona o gerador, ou… Como disse antes, dessa forma tão delicada…? Ou revolvemos seus lençóis.
Ai, como gostaria Libby…! Porque o mais provável era que fazer amor com Michael MacBain fosse uma experiência única na vida.
—Sempre quis saber como funciona um gerador — Disse.
Em honra ao Michael, Libby reconheceu que não deu sinais de estar decepcionado. Seu sorriso se torceu um pouco, mas sua resposta pareceu lhe agradar. Ou foi o alívio o que viu que relaxava seu severo rosto?
Pela primeira vez desde que despertou, respirou bem quando por fim Michael se afastou e ficou de pé. Depois ele pegou a lanterna e a dirigiu para ela, afastando a luz de seus olhos.
—Se abrigue — Disse — Faz várias horas que se cortou a luz, e a casa se esfriou.
Lançou a lanterna sobre a cama e se afastou, mas na porta se deteve e se voltou a olhá-la.
—E, Libby…
—Sim?
—Contra o que espera meu filho, não tenho intenção de me casar. Mas deve saber que sim, pretendo te fazer minha. E só por esse motivo deveria me ter medo, moça. Seja prudente, e tenha medo de mim.
Era meio-dia, e, sentada em seu novo salão, Libby contemplava o fogo de lenha, maravilhosamente pestilento e sujo, que chispava em sua nova lareira. Acomodou melhor a compressa de gelo sobre o joelho e deu um suspiro de satisfação.
A tormenta se acalmou, e a eletricidade havia retornado apenas vinte minutos depois de que Michael partisse sem ensinar como mexer no gerador. Depois de lhe advertir suas intenções, simplesmente, foi.
Sim, o céu se limpou, mas, pelo visto, a tempestade elétrica que havia entre eles não havia feito mais que começar.
Libby não sabia o que pensar. Tinha sido sincera ao dizer a Michael que não ia ali procurando marido nem uma família pronta. Tentava construir uma nova vida… E, certamente, tinha começado muito bem. Não só caído em um lago, mas também tinha se chocado contra uma montanha de testosterona… Muito grande e muito sexy. Uma montanha que tinha intenção de deitar-se com ela.
Libby não recordava a última vez que um homem lhe havia dito que a desejava. Além disso, nunca o haviam dito com tanta franqueza…
Por isso não tinha medo de Michael MacBain. Não terei que temer os homens sinceros, nem sequer os que consideravam a si mesmos pouco civilizados. Eram uma volta atrás, a uma época mais nobre… Algo que nestes tempos ia fazendo-se muito pouco frequente, mas cujo trato, sem dúvida, era muito interessante.
Se isso era o que Michael queria, saberia tratar com ele; caramba, estaria louca se não aceitasse sua oferta. Além disso, que perigo havia em revolver os lençóis com ele? Era uma mulher de caráter, e seu coração saberia dirigir uma ardente aventura amorosa sempre que ela soubesse desde o começo que isso não levaria a nada estável.
Abriu a compressa que tinha sobre o joelho e tirou um cubinho de gelo quase se derretendo. O meteu na boca e o mastigou, ao tempo que se perguntava se estava descontrolando o fogo ou se era a simples ideia de despir-se em companhia do Michael MacBain o que a acalorava.
Nesse momento alguém bateu na porta da cozinha, e Libby, que ia meter outro cubinho de gelo na boca, ficou quieta. Ai, Senhor, mais valia que não fosse ele! Não estava pronta para enfrentar o Michael tão cedo… E menos quando provavelmente tivesse escrito na cara o que pensava sobre ter uma aventura amorosa com ele.
De repente se ouviu outro golpe, desta vez mais forte, acompanhado de um grito ensurdecedor:
—Oh da casa!
—Já vou! — Respondeu Libby com um berro.
Levantou-se da poltrona e se dirigiu coxeando à cozinha. Ao passar atirou a compressa de gelo na pia, mas antes de abrir a porta se deteve jogar uma olhada por detrás do visor.
No alpendre havia um homem muito grande, de cabelo revolto entre castanho e grisalho, e com uma barba tão entupida que poderiam aninhar pássaros nela. Estava lançando um olhar assassino à janela enquanto voltava a bater, fazendo que toda a porta vibrasse em suas dobradiças.
Libby afastou do visor com um sorriso.
—Que deseja? — Perguntou.
Imediatamente o olhar assassino do visitante desapareceu junto com suas sobrancelhas, que se refugiaram no nascimento do cabelo, quando se deu conta de que tinha que baixar a vista para olhá-la.
Em seguida tentou suavizar a severidade de sua cara com um sorriso.
—Meu nome é Ian MacKeage, senhorita Hart — Disse com um rouco sotaque escocês apenas compreensível — Lhe trago as galinhas que pediu o jovem Robbie.
Libby reconheceu o nome e abriu a porta. Quando ele recuou um passo, saiu ao alpendre.
—Que galinhas? — Perguntou.
O queixo do homem caiu até o peito, e suas sobrancelhas voltaram a perder-se de vista enquanto se limitava a ficar ali, com a vista cravada nela.
—Onde está o resto de você? — Perguntou; em seguida fechou de repente a boca e agachou a cabeça, que de repente tinha avermelhada — Eu… Lamento dizê-lo, moça, mas é você uma coisinha diminuta, e eu… Eu…
Voltou a fechar a boca de repente e esfregou a face com uma mão enorme, como se queria apagar suas palavras a esfregões.
Libby começou a pensar que possivelmente se mudou à terra dos gigantes. Apesar de sua idade, Ian MacKeage era uma autêntica força da natureza. Mediria uns trinta centímetros mais que ela, mas quase toda sua estatura era feita de largos ombros, sólidos braços e um peito extraordinariamente forte e grosso.
—Lamento — Disse ele outra vez — É só que esperava alguém um pouquinho…, Bom…
Sorriu e meneou a cabeça.
—Já a viu Michael?
Libby sabia apreciar uma boa piada, embora fosse a custa dela.
—Quis me jogar outra vez no lago para que crescesse mais — Respondeu, ao tempo que desfrutava de sua expressão de espanto.
Ian se apressou a defendê-lo.
—Michael jamais faria algo assim, senhorita Hart. O rapaz tem muito boas maneiras para fazer semelhante coisa.
Rapaz? Ian considerava o Michael um rapaz?
—De que galinhas você está falando? — Perguntou-lhe então.
Ian demorou um momento em dar-se conta de que tinha trocado de tema.
—Ah, as galinhas que Robbie queria para você — Fez um gesto para sua caminhonete — Insistiu em que fossem frangas, mas só tinha oito, assim joguei umas quantas mais velhas para completar a dúzia.
—E uma franga é…? — Perguntou Libby.
—Uma galinha jovem. Incubaram-se esta primavera, e já começaram a pôr.
—Uma dúzia? — Repetiu Libby em voz baixa; acabava de dar-se conta do que significava possuir tantas galinhas — O que vou fazer com uma dúzia de ovos cada dia?
Ian a olhou com expressão de estranheza.
—usá-los para assar, mulher. Fazem-se bolachas, bolos e isso… — Voltou a elevar as sobrancelhas quando ela não se apressou a assentir—. Quer dizer que não sabe assar? Sabe o jovem Robbie?
Libby também começava a perguntar se teria ido até ali para começar uma nova vida, se a teriam enrolado para que fosse a mãe postiça de Robbie e o entretenimento sexual de Michael MacBain. É que estavam todos os de Pene Creek metidos naquela pequena conspiração?
Diabos, se inclusive Grace o tinha mencionado no dia anterior…
Então, sem saber do todo por que reconhecia semelhante coisa, disse:
—Eu… Sim sei assar. É que não entendo o de usar uma dúzia de ovos ao dia. Quem vai comer essa quantidade de comida?
Em realidade, ao perguntar já sabia o que Ian ia dizer… Embora não queria ouvi-lo.
De todos os modos, ele o disse.
—Michael e Robbie. E John. Agora não têm quem lhes asse. — Meneou a cabeça — MacBain não sabe um pingo de cozinhar, isso não há quem o negue. Ao moço ao melhor que lhe dá bem é em uma fogueira no campo, mas uma boca do fogão ganha dele. Ultimamente o jovem Robbie come muitas vezes no Gu Bràth.
—Gu Bràth?
—É nossa casa— Assinalou por volta da mesma colina que Robbie lhe tinha indicado o dia antes — Grace, Grei, as diabas e eu vivemos ali.
—As diabas?
Ian deixou ver um amplo sorriso.
—As meninas de Grace… As moças — Explicou ao ver sua expressão zombadora— Heather tem quase oito anos; Sarah e Camry têm quase seis; Chelsea e Megan vão fazer quatro, e Elizabeth fará três em dezembro.
Inclinou-se mais perto e converteu a voz em um sussurro.
—Mas não as chame diabas diante de Grace… — Acrescentou com uma piscada conspiradora — Embora a ela também a ouvi as chamar assim umas quantas vezes.
Voltou a endireitar-se e inchou seu já impressionante peito.
—São boas meninas para ser fêmeas, embora falem tanto que são capazes de deixar surdo um homem se não se esconder o bastante rápido.
—Conheci Grace ontem — Disse Libby, assentindo.
—Sim, disse que já estava tranquila… — Comentou Ian — Mas, pelo visto, esqueceu dizer que uma boa rajada de vento levaria você voando.
Libby ia fartando-se de que sua estatura fosse um assunto de tanta importância, de modo que inchou seu próprio (e nada chamativo) peito e lançou um olhar assassino ao Ian MacKeage.
—Não se deixe enganar pelo pacote — Disse — Sou muito mais dura do que parece.
Ele elevou ambas as mãos em um gesto de súplica, com um sorriso o bastante grande para que lhe visse entre a barba.
—Vamos, moça, não pretendo ferir seus sentimentos; só lhe tirar o sarro um pouquinho. Venha — Disse enquanto se voltava para a caminhonete — A ver quão dura é você quando se trata de lutar com uma dúzia de galinhas que não param de bater as asas.
Meia hora depois Libby estava segura de que tinha sido aprovada no exame de Ian. As doze galinhas estavam já escondendo como loucas no galinheiro, e só tinha oito ou dez marcas de bicadas como recompensa por seus esforços.
—Sabe onde posso comprar uma caminhonete por aqui? — Perguntou — Parecida com a sua, embora não tão grande.
Lutou para fechar a porta traseira sem que desse a impressão de que estava a ponto de desabar sob seu peso.
Ian devia dar-se conta de que corria o perigo de ser esmagada e subiu de repente a porta com um rápido gesto de pulso.
—Acredito que Callum tem uma caminhonete que quer vender, embora não tem a parte de atrás descoberta, como a minha. É uma compacta.
—Ah, isso será ainda melhor: assim levarei meus produtos às feiras de artesanato sem medo a que se molhe nada. Como posso me pôr em contato com o Callum?
—Direi-lhe que passe por aqui com a caminhonete esta noite — Disse Ian; inclinou a cabeça e a olhou com curiosidade — Não é uma caminhonete muito velha, moça; ao melhor custa um pouco mais do que pensava gastar.
—Acredito que posso reunir o dinheiro — Disse ela.
—Grace disse que você faz joias.
Libby assentiu.
—Trabalho com vidro, e espero encontrar no povoado uma loja em aluguel para montar um estúdio. Sabe de algum lugar que esteja disponível?
—Há um par de lojas vazias que ao melhor vêm bem. Pergunte aos irmãos Doam; compraram o Arsenal do Hellman, mas agora se chama Arsenal de Doam, e acredito que são donos de todo o edifício. Há um lugar vazio em um extremo.
Enquanto falava, rodeou a caminhonete e abriu a porta.
Libby esperou até que entrasse para lhe dizer:
—Obrigado pela informação e por me trazer as galinhas. Quanto lhe devo por elas?
—Já estão pagas. — Piscou um olho — Robbie as incubou e a semana passada me disse que eram parte do aluguel.
Fechou a porta, pôs a caminhonete em marcha e desceu o vidro.
—Fique a resguardo do vento, moça, para que não tenhamos que persegui-la até o condado do lado! — Soltou como sarcasmo de despedida.
Enquanto se afastava, sua risada seguiu flutuando depois da nuvem de terra que levantava com as rodas.
Ela esperou até estar segura de que se perdeu de vista e depois lançou ao Ian MacKeage um gesto muito pouco próprio de uma dama.
De repente uma voz profunda e risonha disse de trás:
—E eu acreditava que era pouco civilizado…
Surpreendida, Libby deu a volta a toda pressa; depois soltou um grito afogado e recuou vários passos. Acabava de dar-se conta do que era exatamente um cavalo de guerra: um elefante de pescoço comprido e cauda peluda, ao que só lhe faltava a tromba.
E Michael MacBain estava sentado em cima daquele monstro.
Ele tendeu a mão.
Libby recuou outro passo.
O sorriso de Michael se alargou.
—Vamos, Libby — A chamou — Veem dar um passeio comigo enquanto comprovo como está o ancião que vive na montanha.
Libby esfregou nas coxas as palmas cheias de bicadas de galinha e cravou a vista na mão estendida do Michael. Maldito fosse… Depois de dizer o que havia dito aquela madrugada, não podia chegar ali cavalgando e esperar que ela saltasse, sem mais, para ir-se com ele.
—Eu… Não tenho capacete de equitação — Sussurrou, sabendo de que ele a ouvia—. E não se deve montar a cavalo sem ela.
Sem dizer nada, ele se limitou a estender a mão.
—Tenho um milhão de coisas que fazer.
Ele seguiu sem dizer nada.
—E não… Nem sequer leva cadeira nesse monstro.
Uma vez mais, ele se manteve em silêncio, com a mão tão firme e paciente como seu penetrante olhar cinza.
—Maldição, Michael, não posso ir contigo ainda! Quero dizer… Agora. Não posso ir contigo agora mesmo.
Sem que o cavaleiro fizesse nada que ela visse, o elefante avançou e se deteve seu lado. Libby se negou a perder mais terreno e de repente viu a mão estendida de Michael a só uns centímetros de distância.
—Veem comigo — Sussurrou ele; o profundo eco de sua voz fez que lhe arrepiassem os finos cabelos da nuca — Não tem nada que temer de mim, Libby; ao menos, hoje.
Com vontade própria, sua mão esquerda se elevou e se colocou na de Michael. Então ele corrigiu seu puxão para tomá-la com firmeza pelo braço, justo por cima do cotovelo, e com um amplo movimento a subiu ao cavalo atrás dele, tão rápida e suavemente que Libby mal teve tempo de soltar um grito.
Com as unhas cravadas no estômago de Michael, fechou os olhos assim que o monstruoso animal começou a mover-se. Ele pôs bem as mãos em torno da cintura para que deixasse de lhe cravar as unhas e ela descobriu então que abraçá-lo era como abraçar uma grande árvore. Certamente, aquele homem era igual de firme, só que muito mais quente que uma árvore… E também cheirava melhor.
E com os olhos fechados, o corpo encravado no de Michael como se sua vida dependesse disso e a montanha TarStone elevando-se diante, Libby rezou para que lhe tivesse crédulo sua alma a um arcanjo… E não ao diabo em pessoa.
Deus o livrasse de mulheres imprudentes.
Michael não podia acreditar que Libby foi com ele. Talvez não tinha compreendido o daquela madrugada, embora lhe parecia que isso era impossível. E aquilo significava que ou estava pensando na sua oferta… Ou que a aquela mulher teria que encerrá-la por sua própria segurança.
—Então esse é Pisador — Disse ela.
Soltou uma mão da presa com que lhe atendia a cintura e deu uns tapinhas ao flanco do cavalo.
Pisador acreditou que tinha uma mosca em cima e deu uma violenta rabada, ao tempo que soltava um coice com uma pata traseira para matar ao inseto. Com um grito afogado, Libby voltou a fincar as unhas no estômago do Michael.
—Qui… Quem vive na montanha? — Perguntou.
Ele ouviu o tom preocupado de sua voz, mas não soube se era porque o cavalo a punha nervosa
Ou porque, por fim, deu-se conta da perigosa situação em que se pôs, agora que se afastavam rapidamente da civilização.
—Um padre conhecido como Daar — Disse; fazendo alavanca, voltou a tirar as unhas da barriga e, com um tapinha, estendeu-lhe as mãos — Tem uma cabana na metade da ladeira do TarStone.
—Vive sozinho? Acreditava que os sacerdotes viviam em uma casa junto a sua igreja.
—É um sacerdote ancião e não tem igreja — Explicou Michael.
Tratou de ignorar a pressão dos suaves seios de sua passageira nas costas. Aquela mulher se agarrava tão forte que parecia que tratava de fundir-se com sua pele.
Nossa, era uma ideia exasperante.
Maldição. No que o tinha metido Robbie? Ou, melhor dizendo, em que se colocou ele mesmo ao permitir que seu filho alugasse a casa da Mary?
Não queria sentir-se atraído por Libby. Era muito pequena; muito franca; muito… Maldição, era muito imprudente.
Soube que lhe traria problemas assim que lhe pôs os pés no peito e o atirou ao lago de um empurrão.
E, se por acaso não bastasse com isso, naquela madrugada o tinha ameaçado testá-lo quando foi a sua casa com a firme intenção de afugentá-la.
De modo o que fazia levando-a consigo essa tarde?
Nossa, diabos… Assim que ele também tinha uma nervura imprudente que estava resultando ser igualmente perigosa que a da Libby… Ou isso, ou levava muito tempo sem estar com uma mulher.
O mais provável é que fosse uma combinação das duas coisas.
Embora, sobre tudo, Michael a tinha convidado a acompanhá-lo por uma razão: porque sabia que, mais cedo que tarde, o ancião sacerdote desceria passeando pela montanha e penetraria no jardim de Libby.
Daar sentia curiosidade pela nova inquilina de Robbie, e às vezes era do mais indiscreto e colocava o nariz em lugares que não eram de sua incumbência.
Por isso queria estar em seu primeiro encontro, para controlar a conversa. Tinha que assegurar-se de que Libby compreendesse que o ancião estava um pouco gaga e que não devia acreditar tudo o que dissesse.
Nesse preciso instante, a causa da má noite que tinha passado disse a suas costas:
—Todos têm sotaque escocês. Mal entendi uma palavra do que dizia Ian, e até o Robbie tem um ligeiro sotaque. Levam muito tempo vivendo aqui?
—Faz dez anos que eu vivo aqui — Respondeu ele — Ian e outros MacKeage levam aqui quase doze anos.
—O que aconteceu com a mãe de Robbie?
—Mary teve um acidente de carro quando estava grávida de oito meses. Operaram-na para tirar o Robbie, e morreu no dia seguinte.
—Lamento — Disse Libby em voz baixa contra suas costas — Então Robbie não conheceu a sua mãe.
—Sim que a conhece; todos nos encarregamos disso.
Michael voltou a olhar para frente e decidiu que já era hora de reorientar as perguntas.
—E o que fez que você se mudasse da Califórnia a Maine?
Ela vacilou um instante antes de falar.
—Davam-me medo os terremotos — Murmurou ao fim.
Michael voltou a cabeça e se encontrou um diminuto queixo elevado em atitude de desafio, que o desafiava a fazer algum comentário.
Algo que, é obvio, não pôde evitar.
—Então em vez disso prefere as tempestades de neve? Não, eu acredito que do que foge é de um homem.
—Não — Disse ela, e lhe deu um empurrão para que se desse a volta e olhasse de novo para frente, mas o que passou foi que perdeu o equilíbrio e esteve a ponto de cair do cavalo. Soltou um grito e esperneou para evitar acabar no chão… E, diante semelhante conduta, Pisador protestou saindo ao galope como uma exalação.
Michael teve que optar entre voltar a ficar no controle de seu ainda poderoso, embora velho, cavalo de guerra, ou acompanhar Libby em sua viagem até o chão. De modo que se retorceu para abraçar a aquela mulher que não parava de agitar os braços e de dar gritos, e se assegurou de que ela ficasse em cima dele na aterrissagem.
Provavelmente, o fato de que não parasse de rir enquanto caíam foi o que a pôs mais furiosa. Michael lhe agarrou as mãos quando tentou afastar-se de um empurrão, e antes de que o deixasse sem virilidade de um joelhada, deu a volta com ela e a colocou debaixo dele com cuidado.
—Idiota! — Disse Libby em tom crispado, sem deixar de retorcer-se para soltar-se — Por isso se leva um capacete!
—Não parece que tenha quebrado nenhum osso — Comentou ele, subindo as mãos por cima da cabeça e segurando-lhe para que deixasse de empurrar.
—Eu volto andando!
—Sim — Concordou ele, assentindo — Me parece que nos dois voltaremos andando, a julgar por como se afasta meu cavalo.
—Não vai deixar que seu filho monte esse monstro!— Disse-lhe ela — E, além disso, deveria levar um capacete quando cavalgar em seu pônei!
Rapidamente, Michael ficou sério.
—Sei cuidar de meu filho, mulher. Não necessito que me diga o que é o melhor para ele.
Como se não tivesse falado, Libby prosseguiu:
—Robbie poderia cair e matar-se… Ou acabar em uma cadeira de rodas para toda a vida.
Michael lhe aproximou mais a cara e disse em voz baixa:
—Quando necessitar um sermão sobre como ser um bom pai, já acudirei a Grace.
Entretanto, ela não recuou.
—Está pondo-o em perigo.
—O garoto tem que ser forte para que seja um homem. Robbie não crescerá para converter-se em um de seus fracos modernos, que têm mais medo de morrer que de viver.
Libby fechou a boca de repente e deu uma olhada feroz. Então Michael se afastou e a viu levantar-se com trabalho. Não soube se sentir-se regozijado ou insultado quando ela teve o descaramento de assinalá-lo com o dedo e prosseguir seu sermão.
—Robbie nem sequer será um homem se matar em um acidente estúpido e evitável.
Deu um ameaçador passo para ele.
—Não se atreva a me sorrir assim, Michael! — Gritou, fez tão forte que todos os pássaros do bosque a ouviram — Não posso acreditar que seja tão insensível com a segurança de seu filho!
Ele a enganchou por trás da perna com a ponteira da bota e a fez cair para frente, com o que acabou escancarada sobre ele. Então rodou de novo e voltou a segurá-la debaixo.
Quando ela tentou protestar, grunhiu:
—E eu não posso acreditar que seja tão insensível com sua própria segurança, Libby. Está no meio do bosque com um completo desconhecido… Que tem duas vezes seu tamanho e que já te advertiu de suas intenções.
Quando ela tentou falar, tampou-lhe a boca com a mão.
—E esta discussão se acabou. Tem coisas mais graves pelas que preocupar-se que o bem-estar de meu filho.
—Que coisas? — Murmurou ela sob sua mão.
—Eu — Sussurrou ele, ao tempo que substituía seus dedos com a boca.
Não estava rompendo sua promessa de que ela estava a salvo aquele dia; só queria lhe fechar o bico…
Mas ela rompeu a promessa por ele ao lhe devolver o beijo. Correspondeu a sua paixão com um desejo tão intenso que Michael começou a preocupar-se; se alguém devia ter medo, era ele.
Ao fim, Libby interrompeu o beijo e elevou a vista para olhá-lo com olhos enormes e indecisos.
—Tenho… Tenho que te confessar uma coisa — Disse em voz baixa — Em realidade, sim que me dá medo.
—Sei, moça — Concordou enquanto tirava com suavidade uma folha do cabelo — Mas não tem a menor intenção de deixar que isso te detenha, verdade?
Os olhos do Libby se voltaram maiores e mais escuros; assentiu devagar.
Então ele não pôde evitar perguntar:
—Por que? Se seu instinto te disser que não, por que o ignora?
Ela o observou atentamente ao tempo que sopesava a resposta. Inspirou fundo, com uma tremula respiração.
—O que atrai uma mariposa para uma chama? É que tem… Tem um não sei o que, Michael MacBain, que me faz querer fechar os olhos e me atirar de cabeça.
Ele se tornou para trás.
—Nem sequer me conhece.
—Conheço-te o suficiente. — Acariciou a bochecha — Não peço muito: só uma simples aventura, sem exigências nem expectativas; sem ataduras.
—Só duas pessoas que revolvem os lençóis? — Perguntou ele.
Ela assentiu.
—Com discrição, pelo Robbie.
Bom, maldição, pelo visto, seu desejo se tornou em seu contrário. Estava perdido se o fazia… E louco se não o fazia.
—Sei que você o sente também, Michael. Por isso veio a minha casa esta madrugada. Você o sentiu, você não gostou e achou que poderia me afugentar para não ter que te enfrentar…
—Me enfrentar a que, mulher? — Espetou ele, zangado.
Ficou à defensiva ao ver que ela o tinha compreendido tão facilmente.
Ou é que ela também sentia o que sentia ele?
Libby soltou o fôlego com um bufo de impaciência
—A energia — Disse — Ou chama-a química, se quiser, dá igual. Mas não se atreva a negá-lo, Michael MacBain.
De repente tentou afasta-lo de um empurrão.
—Não importa — Murmurou — É um grande engano.
Mas Michael não estava disposto a deixá-la levantar-se. Com uma só mão ele segurou as suas, e a outra a pôs no queixo para que seguisse olhando-o.
—Engano ou não, isso não muda o fato de que te desejo.
Nesse instante uma voz familiar e inoportuna soou por cima deles.
—Homem, nossa, que dia tão bom para jogar uma soneca no bosque, não é?
Libby ficou rígida.
Michael fechou os olhos e disse:
—Maldição, ancião…! Brinca com a vida ao aproximar-se a mim tão sigilosamente!
Elevou a vista e dirigiu um olhar assassino a Daar.
Sem preocupar-se absolutamente por sua vida, o sacerdote respondeu com um amplo sorriso.
—MacBain, é um mau sinal que um velho aleijado possa pegá-lo de surpresa a um guerreiro na flor da vida. E quem é sua amiga?
Michael baixou a vista para Libby, que, em uma tentativa por esconder-se, removia-se para meter-se mais debaixo dele até que de repente voltou a ficar quieta.
—Ela? — Perguntou ao sacerdote, assinalando-a com a cabeça — É Libby Hart, sua nova vizinha. Precisamente subíamos a sua cabana para que o conhecesse.
—Sim, já me parecia que iam a algum lado… — Concordou Daar.
Um bicudo dedo cravou Michael nas costelas, bastante forte por certo, e o homenzão ficou de pé, com o que deixou ao descoberto a sua envergonhada amiga.
Com a face tão vermelha que devia doer, Libby se levantou, jogou um rápido olhar para baixo para assegurar-se de que tinha todos os botões fechados e depois tomou seu tempo em sacudir as folhas de cima.
Michael a observou em silêncio enquanto ela reunia coragem para olhar Daar. Quando o conseguiu, demorou menos de um segundo em levantar-se como pôde e começar a falar.
—Tivemos um acidente, padre — Se apressou a explicar — Nos caímos do cavalo de Michael.
Daar assentiu.
—Já vi o Pisador. Ia empenhado em voltar para casa e cruzou comigo faz mais de vinte minutos. — Assinalou-a com sua bengala — É a mulher que Robbie trouxe para que viva na casa de Mary?
Ao Michael não agradou ver que o ancião drùidh assinalava Libby com o bastão, e se interpôs entre eles.
—Vive na casa da Mary — Confirmou ao sacerdote — E se espera obter mantimentos assados por ela, deve saber que não sabe cozinhar.
Ouviu um pequeno grito afogado a suas costas, mas fez caso omisso e seguiu dirigindo-se ao sacerdote.
—Embora talvez o abasteça de ovos, se você começar a comportar-se de um modo civilizado.
Daar se tornou a um lado para ver melhor Libby; de repente deu um passo atrás e voltou a levantar o bastão, desta vez em atitude ameaçadora, com os olhos exagerados da impressão.
—O cabelo! — Gritou — Tem a marca!
Libby deu um grito afogado, e nesse momento Michael decidiu que já era suficiente. Deu meia volta, tomou pelos ombros e a orientou para o caminho de decida.
—Vai andando — Disse — Te alcançarei dentro de um momento.
ficou muito surpreso quando ela o obedeceu, e aliviado quando ao fim se perdeu de vista. Então subiu o montículo a grandes passos e só se deteve quando seu peito entrou em contato com o bastão de Daar.
—Deixe-a em paz, ancião — Advertiu.
O sacerdote afastou a vista do lugar por onde Libby tinha desaparecido e cravou o olhar no Michael.
—Não viu a marca, MacBain? Ela possui o poder!
—Que espécie de poder? Está dizendo que Libby é uma bruxa?
Daar negou com frenesi.
—Não, uma bruxa não. Não sinto nada parecido.
—Então o que? — Perguntou Michael cada vez mais impaciente — Se não é uma bruxa, por que está tão nervoso?
Daar acariciou a barba com o punho da bengala e voltou a cravar a vista no atalho que Libby tinha tomado.
—Não sei exatamente — Disse; voltou a olhá-lo surpreso — Isso é tudo. Talvez… possivelmente não deveria seguir vendo-a até que descubra suas intenções… E Robbie tampouco.
Mas a Michael lhe tinha ocorrido outra ideia.
—Não — Repôs — É você quem se afastará dela. Libby não é uma ameaça para nós, mas talvez o seja para você.
Olhou nos olhos do drùidh.
—Já se intrometeu o suficiente em minha vida faz doze anos. Agora não volte a fazê-lo.
—Aquilo foi um engano, MacBain; já te pedi perdão.
—E agora está cometendo outro engano. É uma mecha branca, nada mais.
—É um sinal. E além disso senti a energia dessa mulher.
—E a energia era boa ou má?
—Má não… — Disse Daar meneando a cabeça.
Michael se aproximou um passo ao responsável por que tivesse viajado oito séculos no tempo.
—Então procure andar com pés de chumbo, drùidh. Essa mulher está sob minha proteção.
Daar elevou o olhar entrecerrando os olhos.
—Assim por aí vão os tiros, não?
—Não. Mas meu filho a trouxe aqui, e isso me converte em responsável por ela. Quero que a trate com amabilidade e que se desculpe por havê-la assustado hoje. E além se guardará muito bem de falar de suas magias quando ela esteja presente.
A julgar pelo olhar assassino que lançou ao Michael, ao ancião sacerdote não gostava que dessem sermões.
—Exatamente, quando deixou de me ter medo? — Perguntou.
O guerreiro não pôde ocultar um sorriso.
—Quando me dei conta de que nem sequer tem poder para curar-se seus próprios problemas. Não caminharia como uma anciã se pudesse evitá-lo.
—Ainda posso transformar um homem em um besouro.
O sorriso de Michael se acentuou mais.
—Não se esse homem se deve a um alto encargo… E ter um menino menor de quatorze anos conta.
—Suponho que isso o tem lido em um dos livros blasfemos que tem nessa habitação lotada que chama biblioteca.
Michael assentiu.
—É incrível o que oito séculos de livros ensinam a uma pessoa; tenho toda uma prateleira dedicada à feitiçaria.
—E o que dizem seus livros sobre uma mulher com uma mecha branca, MacBain?
—Que é forte, valente e temerária, e que tem o poder de transformar os magos em besouros— Disse Michael ao tempo que dava a volta e se afastava — Então seja amável com ela, ancião… Ou aprenda a dormir com um olho aberto.
—Maldição, MacBain! Um dia destes recuperarei todos meus Poderes, e então veremos se segue sendo tão presunçoso!
Sem olhar atrás, Michael lhe disse adeus com a mão e começou a correr na direção que Libby tinha tomado. Queria alcançá-la antes que chegasse a sua casa, e antes que Robbie voltasse do colégio.
Tinham que terminar aquela conversa, e tinha decidido que não ia parar até que terminasse a seu favor.
Libby passou os primeiros dez minutos de seu passeio montanha abaixo se arrependendo inclusive de ter subido ali. Fazia um ridículo espantoso: enfureceu-se com o Michael, tinha-lhe gritado e o tinha beijado.
E ao melhor até teria feito amor ali mesmo, no chão, se aquele condenado padre louco não tivesse chegado para envergonhá-la dessa forma.
Não pensava assar nada ao Daar nem pensava lhe dar de presente ovos. E, além disso, não pensava ter uma aventura com Michael MacBain nem pensava deixar que Robbie ganhasse seu coração.
E não pensava voltar a subir a um cavalo nunca mais.
Se alguma vez pegasse Robbie montado em seu pônei sem usar sela… Bom, dava-lhe igual o que pensasse Michael: desceria o menino de um puxão e afugentaria o animal.
Pelo visto, os malditos insetos sabiam voltar para casa.
Por isso tinha que descer a condenada montanha com aquela dor de joelho. Quase seguro que à manhã seguinte o teria inchado como um globo.
É que deixou o cérebro na Califórnia?
O que a fez pensar que fugiria sem mais, que começaria uma vida nova e que assim, de boa na primeira, voltaria a recuperar o controle que tinha perdido na sala de cirurgia?
De repente deixou de andar, conteve o fôlego e ficou absolutamente quieta. O cabelo da nuca arrepiou, e também lhe arrepiou toda a pele ao dar-se conta de que estavam observando-a.
Devagar, voltou a cabeça e olhou a suas costas para ver se Michael estava ali. Não estava. Então jogou uma olhada ao bosque que a rodeava e seguiu sem ver nada… Até que elevou a vista.
Uns enormes e imperturbáveis olhos amarelos se cravavam nela do ramo de uma árvore, sobre sua cabeça, a menos de cinquenta passos de distância. A Libby teria encantado ver um ave tão magnífica a não ser pelo inquietante sonho da noite anterior.
Estava olhando a mesma coruja branca que tinha visto em seu quarto durante o pesadelo. Então a aterrorizou… E agora também a aterrorizava. A coruja inclinou a cabeça e abriu as asas em uma exibição de silenciosa força. Contendo a respiração, Libby deu um rápido e prudente passo atrás.
—Fica aquieta.
A voz de Michael soou bem atrás dela.
A Libby afrouxaram os joelhos, mas começou a respirar de novo assim que as mãos lhe rodearam com firmeza os ombros.
—Olha-a nos olhos, moça — Disse ele em voz baixa — Quer te conhecer.
—“O que… A olhe”?
—Sim. É uma nevada fêmea, que vem de muito longe para nos visitar durante um tempo. Levanta a vista e deixa que te veja os olhos. Não tenha medo; Mary não te fará mal.
Libby não deixou de respirar; desta vez deixou de lhe pulsar o coração.
—MA… Mary? Chama a essa ave Mary?
—Sim. É a mascote de Robbie; foi a ele em seu aniversário, em janeiro passado.
—Lhe pôs o nome de Mary? — Repetiu ela, incapaz de passar dali.
Estava de pé na metade do bosque, sustentada por um homem que apresentava a uma ave que se chamava como a falecida mãe de seu filho… E esperava que ela olhasse nos olhos desse animal? Ela, que acabava de derrubar-se no bosque com ele, tentando começar uma aventura amorosa.
Não. Parecia que não ia olhá-la.
Ele apertou os ombros.
—Não te fará mal, Libby. Levanta a vista.
—Tentou me matar ontem à noite — Respondeu ela em tom crispado.
—Como?
—Estava em meu quarto… Ou isso acredito. Ao melhor o sonhei, mas eu já vi esta ave. Não gosta. Está… Está ciumenta, ou algo parecido.
Devagar, Michael lhe deu a volta para que ficasse frente a ele. Por fim Libby elevou a vista… E viu uns assombrosos olhos cinza.
—Me diga — Disse ele; olhou a coruja e depois voltou a olhá-la — O que viu? O que estava fazendo Mary?
—Só plainava em cima de minha cama, batendo as asas contra o teto.
—Que mais? Havia luz?
—Sim, uma luz azul. Toda a habitação pulsava de luz azul.
Concentrado outra vez na ave, Michael ficou pensando no que lhe havia dito. Ao fim baixou o olhar para ela.
—Libby, pretende me dizer que te dá medo esta coruja porque acredita que talvez seja a mãe de Robbie?
—Sim. Não… Não sei, Michael. Faz uma semana teria rido em sua cara, mas agora… — Baixou o olhar até o peito dele — Já não sei o que é verdade e o que não.
Ele levantou o queixo com o dedo.
—O que aconteceu faz uma semana?
—Uma coisa que não posso explicar. Algo do que não posso falar; ainda não estou preparada.
—Então não falaremos disso — Sussurrou ele sorrindo com ternura — Mas agora mesmo vamos dissipar sua preocupação respeito desta nevada; porque se não vai continuar aparecendo em seus sonhos até que esteja convencida.
—Convencida do que? Do que conseguiu me assustar?
Ele assentiu.
—Sim. Ou de que é digna de ficar e ser amiga do Robbie; pelo visto, é uma coruja protetora.
—E possessiva?
—Não. Agora seu coração só é de Robbie.
Tirou-lhe o dedo do queixo para tampar os lábios quando ela tentou falar de novo; depois deu a volta, e devagar, muito devagar, Libby elevou a vista.
A coruja tinha as asas pregadas outra vez os flancos enquanto se elevava, alta e atenta, com um olhar direto e penetrante… Que lhe buscava a alma.
De repente a coruja soltou um curto e claro assobio de uma só nota que fez que Libby desse um pulo e que Michael lhe apertasse as mãos nos ombros. Depois a ave abriu as asas e se moveu de lado pelo ramo enquanto agachava a cabeça com um movimento circular de atenção, cheia de curiosidade.
Libby tentou recuar um passo, mas Michael não a deixou mover-se.
—Se levantar voo, mantenha-se firme — Sussurrou; seu fôlego lhe roçou com suavidade a cabeça — Mostre que tem a coragem de ser amiga do Robbie.
—Mas é que não tenho.
—Sim tem — A contradisse ele em voz baixa, lhe dando um empurrão.
De repente suas mãos lhe soltaram os ombros, e deu um passo atrás para deixar que ela se sustentara sozinha.
—Levanta o braço, moça. Dá um assobio agudo como ela acaba de fazer, e veja se vem a você.
Aquele homem era um demente.
Ou o era ela… Maldição, tratava-se de um pássaro; não era um demônio de nenhum pesadelo, nem sequer a mãe morta de Robbie. Era uma coruja. Uma preciosa e majestosa coruja nevada. Libby elevou o braço, levou o polegar e o anular aos lábios e assobiou.
A coruja piscou, desdobrou as asas e desceu de seu ramo. Em silêncio, deslizou-se através do claro do bosque e aterrissou no braço de Libby, coberto pela manga.
Era assombrosamente leve para seu tamanho e, tendo em conta que tinha garras de quase três centímetros de comprimento, comportava-se com uma suavidade extraordinária. A coruja se agarrou sem lhe machucar e abriu o bico para soltar uma série de doces sons, como se tagarelasse.
—fechará as asas se deixar de tremer — Disse Michael, que estava a uns vinte passos de distância — Está tentando equilibrar-se.
Sim. Bom. E ela estava tentando acostumar-se à ideia de que tinha uma ave letal no braço. Uma ave cujos olhos estavam agora justo à altura dos seus.
—Alarga a mão e lhe acaricie o peito — Ordenou Michael — Fale com ela, Libby.
Ela elevou a mão direita e devagar, com muito cuidado, passou-a pelo peito da ave.
Mary (oxalá Libby se acostumasse a esse nome) acalmou-se e fechou as asas. Seu bate-papo cessou, e seu olhar pareceu suavizar-se. As duas se olharam durante vários segundos, e Libby se tranquilizou.
—Não farei nenhum mal a seu filho — Sussurrou, o bastante baixinho para que Michael não o ouvisse — E a verdade é que sei fazer bolachas e bolos.
Mary piscou e soltou um suave e grave tinido.
—Comprarei-lhe um capacete para que o ponha quando montar no pônei —prosseguiu, animada pela reação de ave — E irei à função de Natal de seu colégio, se é que a fazem. Me deixe ser sua amiga, Mary, e te prometo que não lhe romperei o coração.
A coruja ficou calada e voltou apenas a cabeça para olhar o Michael. Ficou olhando-o fixamente vários segundos e depois voltou a olhar Libby.
Esta compreendeu e sorriu.
—Tampouco romperei o coração de Michael — Sussurrou — Lhe prometo isso.
A coruja a observou com atenção vários segundos mais e depois, de repente, abriu as asas, tomou impulso e, com suavidade, elevou o voo. Com asas silenciosas, Mary desapareceu no bosque deixando atrás de si só o eco de sua chamada de uma só nota e o tênue halo de uma luz azul que se apagava.
Os joelhos de Libby se dobraram, e Michael a pegou nos braços antes que desabasse no chão. Depois a abraçou contra seu peito e ficou a dar voltas enquanto sua risada a sacudia como um terremoto.
—Não volte a dizer que tem medo — Disse sem deixar de girar até ela ficar tonta — É uma mulher valente, moça; mais valente que quase todos os homens que conheço.
Libby se agarrou a seus ombros para manter o equilíbrio e se maravilhou daquela nova faceta de Michael: estava brincando.
Ou é que se sentia aliviado de ver que esse animal não a tinha feito migalhas?
—Desça-me. Vou vomitar — Suplicou ela, tentando que deixasse de lhe dar voltas a cabeça.
Ele se deteve e, devagar, deixou-a escorregar por seu corpo até que as faces dos dois ficaram à mesma altura… Com os pés de Libby pendurando a uns trinta centímetros do chão.
—Perdão — Disse; seus brilhantes olhos cinza não mostravam nem rastro de arrependimento — Mas é que me surpreende muitíssimo que o tenha feito.
—Surpreende-se? Surpreende-se? —Repetiu ela um pouco mais forte; deu-lhe um soco no ombro — Se você me disse que o fizesse!
Ele assentiu, enquanto seus olhos se rendiam nas comissuras.
—Sim. E notei quão bem faz o que te diz. — Ficou sério — Obrigado por te afastar de Daar sem montar uma cena.
—É um velho louco.
—Sim, mas fundamentalmente inofensivo.
—Vai me descer logo?
—Ainda não decidi. Vamos terminar nossa conversa?
—Já o temos feito.
—Não — Replicou ele meneando devagar a cabeça — Acredito que eu acabava de dizer que te desejava.
—Eu também te desejo, Michael. Mas… Tenho medo.
—Quer dizer então que sua resposta é “não”?
Ai, mas é típico de um homem ver as coisas só em branco ou negro…!
—Quero dizer… Eu… Ai, maldição! Não, Michael, digo sim.
Para ser um homem que devia sentir-se muito contente consigo mesmo, Michael se manteve estranhamente calado enquanto prosseguiram seu passeio descendo a montanha. Claro que, por outra parte, Libby tampouco tinha muito que dizer.
Uma coisa a preocupava; em realidade, duas, que não tinha nada haver com o fato de que acabasse de comprometer-se a ter uma aventura amorosa: sentia curiosidade por algo que Michael lhe havia dito antes e por algo que disse o sacerdote quando os encontrou juntos.
—A que se referia quando me disse que não deixaria que Robbie crescesse até transformar-se em um… Como era, em “um de seus fracos modernos”? O que quer dizer com isso de “um moderno”?
Ele lançou uma olhada de relance e depois voltou a centrar-se no atalho que tinham diante.
—Michael?
—Alguma vez se fixou em quão suaves se tornaram os homens da sociedade moderna? Em como as guerras se lutam, mas em realidade não ganham? E em como as pessoas renunciaram ao seu direito de proteger-se para deixá-lo em mãos de um sistema que não está acostumado a acudir até que é muito tarde?
—Então é um filósofo? — Perguntou ela; agarrou-o por braço para fazer que se detivesse a olhá-la—. Vive nestas montanhas, mas observa o mundo a distância e emite julgamentos sobre a sociedade…
—Não, mulher; não julgo a ninguém, salvo a mim mesmo e a meu filho. Robbie crescerá para ser forte e competente, e viverá segundo as leis da natureza, não as leis do homem.
—Mas, viva onde viva, segue sendo um membro da sociedade. E essas regras são a base de nossa civilização. Sem elas viveríamos no caos.
—Agora há um montões mais de regras que faz oito séculos.
—Porque há muitíssimas mais pessoas — Replicou Libby, fascinada por aquela faceta de Michael.
Fascinada, embora não surpreendida.
Não era precisamente isso o que a tinha atraído dele? Não tinha percebido aquela tranquila energia?
—Sim. Há muitas mais pessoas — Concordou ele — Por isso vivo aqui.
Olhou-a elevando uma sobrancelha.
—E por isso também veio você.
Bom, isso era indiscutível.
—O pai Daar te chamou “guerreiro”. Antes foi soldado?
—Sim. Fui faz doze anos.
—Em que corpo do exército?
—No corpo que combate. —Dedicou-lhe um meio sorriso — Aonde quer ir parar com estas perguntas, Libby?
Ela deu de ombros e começou a caminhar outra vez.
—A nenhum lugar. Só era curiosidade. Então diz que Robbie não deveria levar capacete quando monta seu pônei porque isso o fará fraco?
Desta vez Michael a fez deter a ela.
—Leva a lombos de um cavalo desde que nasceu, Libby. Meu filho sabe como terá que cavalgar, como cair e como não se machucar.
—Eu sei conduzir um carro e tive um acidente.
Ele afastou um cacho da bochecha e o colocou atrás da orelha.
—Saber como se faz algo e saber como se faz bem são coisas diferentes, moça. Você é má condutora.
—Não sou — Libby recordou seu acidente e de repente ficou rígida — Foi Mary, ou seja, essa ave. Essa ave voou diante de meu carro e me fez chocar.
A face de Michael se animou com um sorriso.
—Devia saber aonde se dirigia e não sabia muito bem se queria que chegasse. Agora me diga, dói-te muito o joelho? Posso te levar nos braços.
Libby soltou um bufado e começou a andar de novo. Mas desta vez Robbie a alcançou primeiro.
Aquele menino de oito anos conduzia um quad. E não tinha posto nenhum capacete.
Nossa, frescura a de Michael, chamá-la imprudente!
Robbie parou o quad junto a ela, olhou-a e disse:
—Olá, Libby! — Olhou a seu pai e sorriu satisfeito, como um gato que acabasse de ver uma terrina cheia de leite — O que fazem os dois aqui acima?
—Quase nos matou — Espetou ela, zangada — Onde está seu capacete?
—Já chega — Grunhiu Michael.
Levantou-a do chão e a pôs no quad, atrás de Robbie; depois tomou pelo queixo para que olhasse diretamente a seus ferozes olhos.
—Vamos deixá-lo — Sussurrou — Nós não temos intenção de nos sentar no alpendre a ver a vida passar sem tomar parte nela.
Libby lhe devolveu o olhar assassino e tentou soltar o queixo. Mas, pelo visto, ele não tinha acabado de falar.
—Cede este assalto, mulher. Se acontecer algo, eu aceitarei as consequências.
Esse era o problema dos filósofos se passam muito tempo pensando e não dedicam suficiente tempo a ver as consequências de um mundo com frequência insensato.
—Pois não se atreva a ir para mim quando acontecer algo. Não penso arrumar suas consequências quebradas.
Ele soltou o queixo, ficou direito e lhe dirigiu um olhar de estranheza.
—Por que ia pensar em ir a você? — Perguntou — Se acontecer algo irei a um médico.
Dando-se conta de seu engano, Libby deu de ombros e se voltou para abraçar o Robbie pela cintura. — Só é uma advertência. Claro que irá a um médico se acontecer algo. Vamos, Robbie, tenho que pôr gelo no joelho.
—Adiante, filho. —Com um gesto, Michael lhe indicou ao menino que ficasse em marcha enquanto ele seguia olhando-a, pensativo — E vá devagar. É provável que seja a primeira vez que se monta em um quad.
Embora Libby não demorou para decidir que não queria que fosse a última. Aquele rápido e pequeno veículo partia com surpreendente suavidade. O motor ronronava baixinho, e Robbie parecia controlá-lo sem problema.
Decidiu que assim que chegasse a casa ia fazer uma lista de todas as coisas que tinha que ter, comprar e realizar para começar sua nova vida. E o primeiro da lista ia ser um quad.
O segundo seria um capacete. Melhor dizendo, dois capacetes. Não tinha intenção de ceder nenhum assalto ao Michael, e menos em algo tão importante. Ia comprar um capacete para Robbie e, se fazia falta, subornaria-o para que o pusesse, porque havia feito uma promessa a uma coruja nevada e pensava cumpri-la.
Aquela noite Michael estava sentado em sua poltrona favorita na única habitação da casa onde passava quase todo o tempo. Tinha um livro no colo e, embora levasse uma hora tentando ler, não era capaz de concentrar-se.
Uma fada de olhos castanhos, veemente e teimosa, lhe impedia de concentrar-se. A lembrança da sensação de Libby debaixo dele não deixava de lhe acender o sangue. Seu sabor, seu aroma, sua coragem e seu medo; Libby dava voltas por seus sentidos e despertava a urgência de um desejo.
Por isso mesmo estava ali, em vez de onde devia estar. No trato que haviam feito não havia lugar para o desejo… E tampouco em sua própria vida. Estava bem desejar uma mulher, mas não podia permitir-se necessitar só a uma em particular.
E menos depois de ter amado a outras duas e as haver perdido a ambas.
—Papai, pode levar amanhã esta caixa a Libby? — Perguntou Robbie enquanto entrava na biblioteca com uma caixinha de madeira.
—O que é? — Perguntou Michael.
—É um segredo — Explicou o menino; pôs a caixa no tamborete que havia junto aos pés de seu pai — E quero que me prometa que não olhará dentro. Só necessito que leve isto a Libby para que me faça um favor.
Michael elevou uma sobrancelha com expressão de dúvida.
—E ela se ofereceu a fazer esse favor?
—Não, papai — Reconheceu Robbie — Mas lhe escreverei uma nota e o pedirei. Não é um favor grande, só uma coisa com a que necessito ajuda.
Dedicou-lhe um sorriso reflexivo.
—Ao Libby deve dar-se o bem trabalhar com as mãos se fizer joias.
Michael fechou os olhos ao pensar que Libby ao melhor lhe dava bem trabalhar com as mãos.
—Por favor, papai, pode levar.
—Por que não a leva você?
—Amanhã tenho treinamento depois do colégio e não voltarei para casa até a hora de jantar — De repente se animou ao ocorrer-se o uma nova ideia — Talvez deveríamos convidar a Libby para jantar. Isso seria de bons vizinhos.
Michael riu em voz alta.
—Quer te fazer amigo dessa mulher ou matá-la? — Perguntou — Ou é que você gosta do que comemos esta noite?
Sem querer, Robbie estremeceu, e Michael esteve a ponto de fazer o mesmo. O frango queimado tinha um sabor persistente e, por desgraça, já ia acostumando-se a ele.
O menino se aproximou da grande mesa de escritório que estava perto da parede de frente.
—Vou escrever uma nota e acredito que lhe oferecerei pagar. Assim não lhe parecerá que estou me aproveitando dela e ganhará dinheiro enquanto monta seu estúdio novo.
Era um bom plano do ponto de vista de um menino de oito anos, e Michael não teve coragem para dizer que Libby não carecia de dinheiro.
Tinha falado com Grace quando soube que se encontrou novo inquilino para a casa da Mary, mas a mulher manteve a boca fechada em relação ao que tinha descoberto sobre Libby Hart. Só lhe disse que não se preocupasse com suas finanças, que não tinha ido ali a procurar um marido rico.
Não. Tinha ido ali para atormentá-lo, para lhe acender o sangue e para despertar sentimentos que era melhor deixar dormidos.
—Me diga como se escreve “compensar”, papai — Pediu Robbie ao tempo que elevava a vista da tela do computador.
—As notas se escrevem à mão — Disse Michael — Não se pede um favor por correio eletrônico.
—Não vou fazê-lo. Vou escrever a nota no computador, mas a imprimirei para que a leve também.
—Não. Escreve-a à mão, Robbie, ou não peça nada. Quando se faz um pedido, faz-se em pessoa. E um computador não é pessoal.
O menino revirou os olhos, mas desligou o computador e pegou um lápis. Depois ficou calado vários minutos, concentrado em formar aquelas letras que lhe saíam muito mais facilmente no teclado.
Talvez tivesse um nível alto de leitura, mas não o fazia muita graça escrever. Michael sabia que o menino estava crescido para sua idade; tinha ido o suficiente ao colégio para ver seus companheiros de curso. Sim, o menino era forte, inteligente, competente… E muito sagaz para ser tão pequeno.
Quase sempre… Embora de vez em quando (mais frequentemente ultimamente), Robbie fazia algo que lhe recordava que seguia sendo só um menino. Um pesadelo, uma insegurança, certa desconfiança em si mesmo na hora de tomar uma decisão, ou quando necessitava o consolo de um bom abraço, um empurrão ou, às vezes, só uma piscada pormenorizada.
—Cravei-me em “compensar”, papai.
— C-O-M-P-E-N-S-A-R. Robbie voltou para o trabalho; na habitação só se ouviam seus suspiros de impaciência e o raspar do lápis. Michael observou a caixa que tinha aos pés. A levaria a Libby aquela mesma noite, quando Robbie já estivesse bem metidinho na cama. John ficava ali para vigiar.
Embora não… Mais valia que não. Talvez ela dissesse que sim aquela tarde, mas sua resposta estava cheia de dúvidas. Provavelmente Libby nem sequer se dava conta, mas Michael sabia que não estava preparada.
Embora estaria. Já procuraria ele uma forma que o estivesse.
—Já acabei — Disse Robbie; rodeou a mesa enquanto dobrava a nota e depois a pôs em cima da caixa, elevou o olhar para Michael e deixou ver um amplo sorriso—. Tenho sua palavra de que não dará nem uma olhadinha?
—Sim.
—Então vou me deitar— Disse.
Bocejou e se espreguiçou para desentorpecer seus músculos em crescimento.
—Quero me levantar cedo para trabalhar na outra parte de minha surpresa antes de ir ao colégio. — Dirigiu a seu pai um severo olhar — Não foi à oficina do vôzinho, não é?
—Não — Assegurou Michael — Vou deixar que a intriga me deixe com cabeça como pudim.
Robbie afastou o livro do colo e subiu como pôde para ocupar seu lugar. Depois deu a volta até aconchegar-se contra o peito de Michael e puxou seus braços para que o rodeassem.
—Me diga o que achou dela, papai — Disse, exigente.
Michael lhe deu um forte abraço.
—Acredito que este inverno vamos ter que pôr uma bandeirola em cima dessa mulher para encontrá-la na neve.
—A tia Grace diz que as coisas boas vêm em vasilhas pequenas.
—Sim. E algumas vasilhas são menores que outras… E o que achou você? — Perguntou Michael, lhe devolvendo a pergunta.
Robbie inclinou a cabeça para sorrir.
—Parece-me que se parece bonita.
—Não sei — Murmurou seu pai, elevando a vista ao teto enquanto tentava decidir-se — Tem o cabelo curto. Não me faz muita graça o cabelo curto em uma mulher.
—O cabelo cresce.
—E não é que tenha muitas curvas — Prosseguiu Michael, ainda olhando para cima — Em realidade, não estou seguro de que tenha curvas absolutamente.
—Mas tem seios “bagunceiros”.
Michael baixou a cabeça de repente.
—Como diz?
—Não são bagunceiros os seios de Libby?
Michael apertou a seu filho um pouco mais forte esta vez.
—Onde ouviu essa palavra?
—No colégio. Frankie Boggs diz que os homens gostam dos seios bagunceiros.
—Os cavalheiros não falam da anatomia das mulheres.
—Eu vou ser guerreiro, não cavalheiro.
—Pode ser as duas coisas.
—Você é um cavalheiro?
—Não. Sim… — Se esfregou a cara com uma mão — O tento, Robbie. E, além disso, não falo da anatomia das mulheres com outros homens.
—Só fala disso com as mulheres?
Michael soltou um suspiro que removeu o cabelo de seu filho.
—Verá, do corpo de uma mulher não se fala. Nunca.
—Nem se olha?
Michael afastou bruscamente a vista e olhou à lareira. Ali dentro ia fazendo um calor do diabo.
Voltou a olhar a Robbie.
—Aprecia-se — Disse com cautela; era consciente de que era ele quem tinha começado aquela conversa ao referir-se à ausência de curvas de Libby — Os homens não podem evitar olhar.
Antes que o menino falasse, acrescentou:
—Inclusive os cavalheiros. Mas não comunicam seus pensamentos a ninguém.
—Acredita que Libby sabe cozinhar?
Michael deixou escapar um suspiro de alívio ao encontrar-se ao fim em um terreno mais seguro.
—Se sabe ferver água, já sabe mais que nós.
—Acredita… Que ficará, papai?
Michael se levantou e, depois de deixar a seu filho no chão, dirigiu-se com ele para o corredor e subiu a escada.
—Talvez — Disse com sinceridade — Mas não deveria contar com isso. As coisas mudam na vida das pessoas, Robbie. E se Libby tiver que ir-se, deverá aceitar sua decisão e se alegrar de que tenha passado por sua vida, embora seja por pouco tempo.
—Você quer que fique, não é?
Michael o pôs diante do lavabo e passou a escova de dentes.
—Sim. Não me importaria que Libby decidisse ficar.
Robbie elevou a vista com um amplo sorriso.
—Então está bem — Disse assentindo — Pois vai ficar.
—E por que está tão seguro?
—Mary me disse.
Justo quando ia pôr lhe pasta de dente na escova, Michael ficou quieto.
—Quando lhe disse isso?
—Esta tarde, ao voltar do colégio. Mary estava esperando quando desci do ônibus. Também me disse onde encontraria você e Libby e que era melhor que fosse a por vocês.
Michael se sentou na borda da banheira.
—Me explique como te disse seu mascote semelhante coisa. Essa coruja fala, filho.
Robbie deu de ombros.
—Pois me disse isso. Estava me olhando, e de repente soube, sem mais. — Seus jovens e inseguros olhos se elevaram piscando para ele — Eu… Falamos todo o momento.
Suas palavras soavam a confissão.
Michael deixou o tubo de pasta de dente na bancada e passou as mãos pela cansada face em uma tentativa de dissipar a névoa que cobria seu cérebro.
Ao dia seguinte subiria outra vez a montanha e teria um bate-papo com o drùidh. Durante os últimos oito anos Daar tinha insinuado mais de uma vez que Robbie era especial. O ancião sacerdote não tinha concretizado, embora uma ou duas vezes Michael o tinha ouvido murmurar a palavra “guardião”. Mas quando lhe perguntavam, Daar se negava a dar mais detalhes; só dizia que já se saberia em seu momento.
Bom, pois o momento tinha chegado.
—Está bravo porque falo com a Mary?
Robbie olhou a seu pai com o olhar frágil de um menino que necessita muitíssimo a sua mãe.
—Não — Assegurou — Me alegro de que tenha uma boa amizade com a Mary. E agora Libby também é sua amiga; hoje Mary lhe posou no braço.
O menino deu um grito afogado.
—Sim? De verdade? — Perguntou, surpreso — Se Mary nem sequer vai a você… De repente lhe lançou um amplo e presunçoso sorriso.
—Isso deve significar que gosta de Libby.
—E que não gosta de mim?
—Não, papai. — Robbie bateu no ombro com a escova de dentes — Mary teme aproximar-se de você porque talvez tentasse segurá-la para sempre.
Nossa, diabos! “Os meninos e os loucos dizem a verdade”… Durante mais de uma semana tinha preocupado que a coruja não fosse a ele. Que aquele mascote que seu filho chamava Mary virtualmente o ignorasse.
E agora entendia o porquê.
Ela estava obrigando-o a soltá-la; mantinha as distâncias para libertá-lo. E hoje, no TarStone, tinha aceito que Libby Hart entrasse na vida de seu filho.
Mas aceitava que entrasse na sua?
Mary tinha aparecido de propósito; quase seguro que era porque ele estava com Libby. Quis que ele visse como se relacionavam, e que soubesse que dava sua aprovação à mulher que tinha alugado a casa familiar.
Michael o compreendia porque, durante os doze anos transcorridos desde que o jogaram através do tempo, encarregou-se de compreender todos os aspectos (visíveis e invisíveis) do mundo que o rodeava. Tinha aprendido a abrir a mente, assim como o coração, à existência da magia.
Por isso já não o surpreendia nada.
Nem sequer um filho que dizia que falava com uma coruja.
Michael abraçou forte o Robbie.
—Escove os dentes e se coloque na cama, jovenzinho. Despertarei às cinco para que trabalhe em sua surpresa; e, mesmo assim, é provável que o vôzinho John esteja no abrigo antes que você.
—Ontem cortou o polegar — Disse o menino, contrito, como se, por alguma razão, fosse culpa dele; depois acrescentou uma informação em sua defesa — E eu o enfaixei.
Contente de ter realizado o que esperava obter aquela noite (convencer a seu pai de que levasse a caixa a Libby e descarregar seu jovem peito do fato de que falava com uma coruja), Robbie estava mais que disposto a deitar-se. Lavou os dentes, despiu-se enquanto corria para seu quarto e depois se meteu sob as mantas.
—A tia Grace me trouxe outro pijama. — A última palavra estava envolta em um tom de aversão — Está empenhada em que tenho que ser civilizado, papai. Pode conseguir que deixe de fazê-lo?
Michael se inclinou e lhe deu um beijo de boa noite.
—Precisaria de uma intervenção divina para que deixasse de fazê-lo.
—Então esta noite rezarei por isso; para que a tia Grace deixe de comprar pijamas.
Michael foi para a porta e apagou a luz do quarto, mas ao chegar ao corredor se deteve e assentiu.
—Sim. E inclua a mim: tenho seis pijamas no roupeiro.
Depois de deixar acesa a luz do corredor, voltou a descer a escada e retornou à biblioteca. Não se sentou na poltrona, mas sim ficou de pé no meio da habitação, com a vista cravada na caixa que tinha a nota em cima.
Aproximou-se dela e pegou o envelope, mas viu que estava fechado. Sem querer estragar a surpresa de Robbie, e esperando que Libby pensasse igual, agarrou a caixa e ficou ali, olhando-a fixamente.
Depois voltou a deixar a caixa e a nota no tamborete e se sentou na poltrona. Procurou seu livro, abriu-o onde estava marcado e demorou dois minutos em dar-se conta de que o estava olhando de cabeça para baixo. Então o atirou ao chão e cravou a vista na caixa. —Que diabos…! — Grunhiu, dirigindo-se à vazia sala.
Rapidamente, agarrou a caixa e a carta e foi à cozinha dando passos longos.
Nesse momento John estava colocando a cabeça na geladeira; quase com toda segurança esperava que algo comestível tivesse aparecido ali do jantar por arte de magia.
—Vou sair um momento — Disse Michael — Robbie já se deitou.
John se endireitou, olhou sua face, e depois olhou a caixa que levava na mão e sorriu.
—Tome seu tempo — Disse — Dormirei com a porta aberta, se por acaso Robbie me necessita.
Michael assentiu, mas não se moveu.
O ancião voltou a explorar o conteúdo da geladeira e sua voz ressoou na vazia caverna.
—Faz boa noite para passear — Disse — Talvez a nova inquilina de Robbie queira ir contigo dar uma olhada às estrelas.
Depois elevou a cabeça por cima da porta da geladeira e sorriu de novo.
—E não se sinta na obrigação de voltar logo. Eu me encarrego de controlá-lo.
Michael se esforçou por encontrar um pouco de controle para si mesmo, mas perdeu a batalha. Agarrou o casaco e saiu; depois ficou no alpendre e tomou várias baforadas do frio ar noturno. Por fim colocou o casaco e partiu pelo mesmo atalho que tinha tomado durante a tempestade da noite anterior.
Só que desta vez o percorreria por outro motivo.
Libby acomodou melhor a compressa de gelo no joelho e revolveu os papéis que tinha no colo até dar com a página das coisas por comprar. Riscou da lista a caminhonete e revolveu os papéis outra vez até que encontrou a página das coisas por fazer. Apontou que tinha que dar alta a sua caminhonete nova e recuou de novo até a lista das compras; depois de observá-la com atenção, ficou a pensar e riscou o computador.
Tinha que estabelecer prioridades, e naquele preciso momento um computador não era importante. Um quad, sim. Dois capacetes, sim. Roupa, roupa e casaco para o inverno… E anticoncepcionais.
Deu-se uns leves golpes com o lápis nos lábios e cravou a vista no fogo, ao tempo que se perguntava se haveria um médico em Pene Creek. Levava sem tomar a pílula desde que cursava a especialidade. E tinha que procurar algo logo, se é que tinha interpretado bem o olhar de Michael aquela tarde, quando tinha concordado ter uma aventura com ele.
Franziu o cenho; não imaginava usando um preservativo. Não porque fosse insensível ou despreocupado, mas sim porque possivelmente os preservativos não encaixassem com seu conceito de viver segundo as leis da natureza. Além disso, tinha tido um filho sem casar-se, de modo que Libby decidiu fazer-se responsável pelos anticoncepcionais pelos dois.
Voltou a olhar sua lista de coisas por fazer. Agora já tinha uma caminhonete, assim que o primeiro que faria ao dia seguinte seria ir à agência de correios a recolher o material para fazer joias que enviou a si mesma. E já que estava no povoado, seguiria o conselho de Ian e perguntaria aos Doam se alugavam aquela loja.
Sorriu para si pensando na sorte que tinha ao contar com uma estação de esqui como vizinha. Poderia ir bem ali: calculou que no verão acudiriam tantos turistas ao formoso lago Pene como no inverno a montanha TarStone.
Possivelmente devia aprender a esquiar. Certamente, que era pra provar a si mesma que poderá guiar uma moto de neve. No caminho desde Bangor tinha visto várias lojas de artigos esportivos e estava desejando provar um daqueles veículos de aspecto potente, linhas puras e cores vivas.
Parte de seu novo plano de vida era viver de forma um pouquinho mais temerária… Embora não estúpida. Usaria capacete, receberia as aulas adequadas, conduziria com prudência e não sairia dos atalhos indicados. Mas já era hora de ampliar seu mundo para abranger algumas das coisas mais emocionantes da vida.
Como, por exemplo, ter uma aventura amorosa com um sexy homem das montanhas…? Caramba, a Libby não lhe ocorria nada mais emocionante que revolver os lençóis com Michael MacBain.
Jogou atrás a cabeça, apoiou-a no respaldo do sofá e fechou os olhos dando um suspiro. Tinha-lhe ido bem manter-se ocupada aqueles últimos dias, o evitar pensar em seu problema…
Embora, para ser justa, mas bem era Michael MacBain o que tinha evitado que ela recordasse o ocorrido na sala de cirurgia, fazia toda uma vida.
Antes de partir da Califórnia havia dito a sua mãe que perguntasse discretamente por seus pacientes. Esther Brown e Jamie García tinham saído do hospital aquele mesmo dia, e a nenhum dos dois lhe notavam os efeitos de sua terrível experiência. Não, era ela quem tinha saído ferida.
Não de forma mortal, embora, certamente, sim traumática.
Elevou a cabeça e baixou o olhar até a compressa de gelo que tinha sobre o joelho. Se era verdade, se de verdade curava às pessoas só com a vontade, poderia curar-se a si mesma?
E se podia, devia fazê-lo? Não era… Pouco ético ou algo assim? Haveria um código não escrito para pessoas como ela, que dizia que não exercessem consigo mesmas?
Então, ao tempo que agitava a mão sobre o joelho como se fosse uma varinha mágica, disse em voz alta:
—“Médica, cure a si mesma.”
—Então, pelo visto, deveria te chamar “doutora Hart”…
Libby saltou como um raio do sofá, e sua surpresa explodiu em um grito enquanto dava a volta para o intruso.
Michael deu um pulo, mas não se moveu.
—Maldição! —Gritou ela, ao tempo que lhe lançava a compressa de gelo.
Ele se agachou a um lado e, depois de bater na parede, a compressa deixou escapar os gelo, que se espalharam pela sala como vidro feito pedacinhos.
Ele se endireitou com expressão resignada.
—Vou trocar a fechadura da porta!
—Isso não me deterá.
—Deu-me um susto de morte, Michael!
—Acreditei que como um grito sara o soluço: que um bom susto te curasse — Suas feições se endureceram de repente — Mas, pelo visto, já tentava se curar sozinha, doutora Libby Hart.
Ela se apressou a desviar o olhar para o terceiro botão da camisa de Michael e esfregou as mãos nas coxas tratando de acalmar seu acelerado coração. Por fim, e com respiração tremula, tomou uma decisão e elevou a vista para olhá-lo aos olhos.
—Na realidade, é “doutora Elizabeth Hart”.
Ele não trocou de postura… Mas sim de olhar: seus olhos se escureceram, entreabriram-se e a atravessaram como o fio de um bisturi.
—Que espécie de doutora?
—Cirurgiã de traumatologia.
—Isso explica muitas coisas.
—Ah, sim?
—Explica tudo — Replicou ele, ainda sem mover-se e prendendo-a com seu escuro olhar de aço — Como por que dá tanta importância aos capacetes.
Ela tentou falar, mas ele prosseguiu, com mais energia:
—E por que age com tanta decisão e segurança. Um cirurgião de traumatologia está acostumado a tomar decisões rápidas e instintivas. Me diga se me equivocar, Elizabeth, ao pensar que exige controlar qualquer situação em que te encontra.
—Claro que sim. É o que faz um cirurgião.
—Sim. Agora entendo… Transformou sua autoridade em uma blindagem protetora, que criou para te manter isolada de seus pacientes… E a salvo do resto do mundo.
—Não sou uma mulher fria e desumana.
—Não — Concordou ele em voz baixa — é puro fogo, Elizabeth. E isso te assusta muitíssimo, porque, faz uma semana, na Califórnia ocorreu algo que fez pedaços seu controle.
—Já não sou médica. E agora sou Libby, não Elizabeth.
Michael se moveu por fim. Rodeou o sofá e se deteve diante dela; por sua parte, Libby estirou o pescoço, negando-se a desfazer o contato visual.
Então, antes que pudesse reagir, ele alargou a mão e a agarrou. Depois a subiu ao degrau da lareira para que estivesse à altura de seus olhos, afastou-se e uniu as mãos às costas.
—Não se passa uma vida toda estudando a carreira de cirurgião e depois dá meia volta sem mais nem menos. O que aconteceu faz uma semana, Libby?
—Uma… Uma coisa que não sei explicar.
—Tente — Pediu ele com suavidade.
—Não posso — Sussurrou ela — Eu… Não posso dizê-lo em voz alta, Michael.
Ele separou as mãos e lhe tomou a face; com os polegares afastou as lágrimas que ela nem sequer se deu conta de que lhe corriam pelas bochechas.
—Está bem, moça. Seu temor encontrará sua própria voz quando estiver preparada — Assegurou em voz baixa, enquanto aproximava sua boca da dela.
Libby recebeu com ânsia seu beijo, rodeou-lhe os ombros com os braços e se agarrou a ele com o desespero de uma folha que confronta a tormenta. Abriu a boca e o saboreou, sentiu sua vitalidade, e a força de sua resposta a consumiu.
Cheirava a fumaça de lenha, a ar de montanha e à fria e limpa noite outonal que tinha atravessado para chegar ali. Aquele homem era granito maciço sob a flanela de sua camisa, e Libby fincou os dedos nos ombros enquanto inclinava a cabeça para fazer mais intenso o beijo. Ele a envolveu por completo, e pouco a pouco, tranquilamente, o desespero de Libby foi transformando-se em paixão.
Com sua língua Michael explorou sua boca enquanto com as mãos procurava a curva de suas costas, fazendo sentir calafrios de prazer por onde a tocava. Libby se apertou mais contra seu corpo e gemeu quando ele a elevou deslizando-a sobre ele e passou devagar os lábios pelo queixo, até a base da garganta, deleitando-se no calor, no aroma e no sabor de sua pele.
Ela tinha a sensação de que flutuava, e demorou um minuto em dar-se conta de que Michael se sentou no sofá. Encontrou-se sentada escarranchada sobre seu colo e não pôde evitar mover-se contra ele. Aquele íntimo contato fez que uma onda de calor a atravessasse como um raio e se instalasse no fundo da boca do estômago. Tremendo de urgência, desabotoou-lhe a camisa.
Michael a deteve pondo as mãos sobre as suas.
Libby elevou a vista até uns olhos de um cinza tempestuoso, que brilhavam como um fogo feito de puro desejo… Embora era um desejo controlado por uma surpreendente resolução.Ela segurou sua face entre as mãos e o beijou em plena boca; depois se tornou para trás só o suficiente para que ele visse seu sorriso.
—Não se atreva a se pôr nobre comigo, Michael. Isto é algo que desejamos os dois.
Ele voltou a lhe agarrar as mãos e as imobilizou contra seu peito. Seus olhos reluziam de humor
—Só me perguntava quem está no comando, em teoria — Disse com ironia.
Libby piscou.
—Podemos trabalhar em equipe.
Ele elevou uma sobrancelha em um gesto que não indicava precisamente conformidade.
—Ah, sim? Não me sinto parte de uma equipe. Em realidade, nem sequer sinto que tenha que participar, só me fazer notar.
Libby se tornou para trás.
—É um desses caras Neandertal que tem que estar no comando para poder funcionar?
Michael elevou os quadris contra ela.
—Não acredito que funcionar seja o problema, moça — Disse — E estou um pouquinho mais evoluído que um cavernícola.
—Então, qual é o problema?
Tomou a face entre as mãos com expressão séria.
—Esta noite não vim aqui para fazer amor com você, Libby.
De repente ela notou que lhe ardiam as bochechas e tentou descer de seu colo, mas ele não deixou que se movesse.
—Isto não é uma rejeição, mulher; é uma chamada à razão. É muito cedo para você. E para mim.
—Então, por que veio?
Ele esboçou uma careta de auto humilhação.
—Só pretendia te colocar a mão um pouco… Para me pôr quente, me chatear e me frustrar bem.
—Mas por que?
Olhou-a inclinando a cabeça, com os olhos acesos de regozijo.
—Acredito que se chama “preliminares”.
Libby lhe deu um murro no ombro ao tempo que se soltava e se separava dele; não se arrependeu absolutamente quando Michael deu um grunhido de surpresa e teve que proteger-se para que não danificasse sua virilidade de uma joelhada.
Depois, com gesto resolvido, foi à lareira, ajoelhou-se e se entregou à tarefa de pôr lenha no fogo enquanto se esforçava por controlar seu gênio.
Não, seu gênio não; seus hormônios enraivecidos.
Amaldiçoou em silêncio… Aquele homem era idiota! Virtualmente, tinha se entregado em bandeja de prata, e disse às claras que não, embora depois tentou suavizar a rejeição afirmando que era por seu bem.
Bom, maldição…! Pois já estava farta de tanta nobreza!
—Vai provocar um incêndio na lareira se puser mais lenha — Avisou ele.
—É meu corpo, não é? — Disse ela em tom acusador.
Seguiu mexendo nas lenhas e decidiu que era o fogo, não a vergonha, o que lhe acendia a face.
—Como diz?
—Que pareço um menino.
Ele não fez nenhum comentário, e Libby mexeu nas lenhas com mais energia. À idade de dezessete anos, quando por fim se deu conta de que não ia crescer nem um centímetro mais e nunca teria curvas femininas, tinha decidido que, de todas formas, provavelmente o sexo estava super valorizado.
Sim. Bom… Pois agora queria aquelas curvas. E vinte centímetros mais de estatura, já que estava. Maldição, se ele tinha tido que pô-la no degrau só para lhe ver a face…!
Libby deu um pulo quando Michael a rodeou com os braços, enquanto com uma grande mão lhe tirava o atiçador e com a outra a estreitava contra seu peito.
—Não parece um menino — Sussurrou ao ouvido, fazendo que um formigamento de alerta a atravessasse como um raio — Parece fogo em minhas mãos, moça, quando te toco.
E então sim que a tocou: elevou a mão até lhe cobrir os seios e a apertou mais contra ele, mais intimamente entre a abertura de suas coxas ajoelhadas. E a prova do que aparecia no seu corpo lhe abrasou as costas.
Libby inspirou, trêmula, e os seios endureceram dentro da palma de sua mão enquanto ele a estreitava com ternura e passava o polegar sobre o mamilo. Depois abriu a outra mão sobre seu estômago e deslizou os dedos mais abaixo até tocar suavemente o centro de sua feminilidade.
A reação de Libby foi instantânea, e o calor se transformou em um batimento que a atravessou toda. A umidade se concentrou. E o mamilo que ele acariciava empurrou pelo sutiã e a camisa, procurando mais carícias.
Tentou voltar-se para vê-lo de frente, para lhe rodear o pescoço com os braços e afogar seu gemido no ombro, mas ele a manteve quieta e seguiu acariciando-a, levando-a para um furacão de violento desejo.
A mão que tinha sobre seu seio foi aos botões da camisa e, com meticulosa lentidão, desabotoou-os um por um. Libby se agarrou a borda do degrau da lareira e fechou os olhos enquanto o calor crescia em seu interior e a umidade seguia acumulando-se contra a mão dele, entre suas coxas.
Uma vez desabotoada por fim a blusa, ele a desceu pelos braços e com os lábios procurou a base de sua garganta.
Libby gemeu, jogou atrás a cabeça e sussurrou um palavrão.
Michael soltou uma risadinha, um som profundo e quente, enquanto baixava as alças do sutiã e, com a boca, seguia fazendo amor a seu pescoço.
Então subiu ambas as mãos até seus já nus seios, cobrindo-os, amassando-os, incendiando-a…
E depois mudou-as ao botão de suas calças.
Para então Libby mal conservava um pouco de prudência. A boca dele estava levando-a ao frenesi enquanto passava, muito devagar, por cada centímetro de pele que ficava ao descoberto. E nesse momento abriu o zíper da calça, deslizou os dedos dentro de suas calcinhas e a acariciou intimamente.
Libby lançou um grito e se retorceu, tentando olhá-lo de frente, mas ele se negou de novo a deixá-la mover-se. Simplesmente, seguiu fazendo magia com a mão, inflamando seu desejo com os dedos, fazendo-a desejar mais…
—Deixe vir, moça — Sussurrou em seu cabelo — Exploda em uma formosa chama.
Ela não queria, não sabia como fazê-lo.
Estava assustada. Desconcertada. Insegura…
—Eu estou aqui mesmo para te agarrar, Libby — Acrescentou ele, com voz rouca de emoção.
Seus lábios roçavam a orelha; seu fôlego acariciava os sentidos e suas mãos seguiam com sua magia.
—Não te deixarei que saia voando, moça. Deixe vir — Animou, ao tempo que afundava um dedo em seu interior.
E Libby obedeceu em meio de um vendaval inconsciente que explodiu no mais profundo dela, saiu girando e escapou de sua garganta em um grito de puro prazer. Então se contraiu em torno dele, e Michael se inclinou sobre ela, atraiu sua boca para a dele e capturou seu grito.
Aquela maravilha durou uma eternidade, e Libby se agarrou com desespero a sua mão enquanto uma sucessão de sensuais batimentos de prazer lhe percorriam o corpo.
—Às vezes o grito de uma mulher soa como música… — Sussurrou Michael enquanto a beijava, acalmava-a com ternas carícias e, pouco a pouco, ia devolvendo-a à realidade.
Libby se fundiu contra ele com um trêmulo suspiro, desejando que seu palpitante coração reduzisse a marcha. Por fim abriu os olhos, olhou piscando ao fogo e ruborizou toda, até as meias três - quartos.
Michael riu e a elevou com ele pra ficar de pé. Antes que ela pudesse recuperar o fôlego, pegou-a nos braços, sentou-se no sofá e a embalou em seu colo com ternura. Libby tentou fechar a blusa, mas ele a deteve, e em vez disso lhe cobriu os seios com sua larga e cálida palma e seus fortes e masculinos dedos.
O rubor de Libby se fez mais intenso.
O sorriso dele se voltou presunçosa.
—Foi sua primeira vez — Disse com manifesta satisfação masculina.
Sem saber muito bem como responder a aquela afirmação, e enquanto seguia tentando voltar a pôr em ordem suas ideias, ela permaneceu muda.
Com gesto descuidado, lhe acariciou um lado do seio.
—Mas como, moça, responde algumas de minhas perguntas… Mas me faz pensar em umas quantas mais.
Libby seguia sem recuperar a voz. Talvez fosse porque seu coração ainda ia a mil por hora, ou porque estava escancarada em cima de Michael como um verdadeiro pendão… Ou possivelmente é que temia que, se agora abrisse a boca, voltaria a gritar… E desta vez não soaria a música.
—Como é que uma mulher de sua idade não tinha experimentado orgasmo?
Ela deu um pulo diante a franqueza de sua pergunta e por fim recuperou a voz.
—Acredito que as preliminares acabaram.
Ele assentiu e sorriu pela metade.
—Por agora sim — Disse com ironia — Assim que me dei conta de que é virgem, me senti como um menino de dez anos pego em falta.
—Não sou virgem, Michael. Tive muitos namorados.
Ele assentiu com um gesto, mais lento desta vez, e a corrigiu:
—Mas é, moça. Ou o foi — Se apressou a continuar — Talvez não em um sentido técnico, embora sim sentimental. Em realidade, não se fala de sexo até que os dois interessados estão completamente satisfeitos.
—Então, o que é o outro… Na realidade?
Ele deu de ombros.
—Uso — Esclareceu — Ou abuso, mais provavelmente, quando a pessoa fica satisfeito e o outro fica… esperando.
Havia tornado Michael o filósofo.
Libby decidiu que preferia ao deus do sexo.
De novo tentou fechar a blusa, e desta vez Michael a ajudou e puxou o tecido sobre seus ombros. Libby ficou de pé, abotoou os botões só e depois abotoou as calças.
Então ficou ali, sem mais, com a vista cravada no fogo.
Em teoria, o que tinha que fazer agora? O que dizia uma mulher a um homem que acabava de lhe fazer sentir a verdadeira paixão pela primeira vez em sua vida?
Obrigado? Espero que o façamos logo outra vez?
Agora mesmo, ao melhor? Só que desta vez, despimo-nos os dois, por favor, e inclusive… O fazemos?
Voltou-se ao ouvir ruído de papéis e viu que Michael estava lendo suas listas. O calor lhe subiu à face quando se deu conta da página em que se deteve.
Ele olhou a mesinha auxiliar, pegou o lápis e começou a escrever. Libby se inclinou para ver, mas ele se apressou a revolver as páginas e começou a escrever outra vez.
Sem colocar os sapatos, Libby girou sobre seus calcanhares e, com as pernas frouxas, foi à cozinha. Abriu a geladeira, tirou a garrafa de vinho que a considerada Grace MacKeage tinha acrescentado aos comestíveis e depois começou a mexer nas gavetas procurando um saca-rolha. Encontrou um, mas a maldita coisa se negou a funcionar como Deus manda. Assim voltou a mexer pelas gavetas procurando algo para tirar a tampa da garrafa à força ou acabar de afundá-lo dentro.
De repente a garrafa de vinho desapareceu de sua mão e em seu lugar apareceram as páginas das listas. Michael se apoiou na bancada, cruzou as pernas à altura dos tornozelos e, devagar, fez girar o saca-rolha subitamente obediente, até tirá-lo na garrafa.
Deteve-se um instante para dar um golpezinho com um dedo na primeira página que ela tinha na mão e depois voltou a encarregar do vinho.
—Quando for comprar roupa nova, compra uma jaqueta cor laranja — Disse — E com o dinheiro que sobrar compra umas botas impermeáveis; nada congela mais rápido a uma pessoa que ter os pés molhados.
Libby olhou sua lista e viu que “anticoncepcionais” estava riscado e que, com pulcras letras escuras, acrescentou “jaqueta cor laranja” e “botas impermeáveis”. Também estava riscado “quad” e a seu lado se escrito a palavra “moto de neve”.
—Amanhã começa a temporada do rifle — Disse Michael ao tempo que se voltava para abrir um armário — Assim não saia de casa sem ir vestida de laranja.
Agarrou dois copos, pô-los na mesa e os encheu de vinho.
—Ponha a jaqueta laranja embora só vá à varanda. A cor laranja é obrigatório desde princípios de novembro até meados de dezembro.
Libby voltou a baixar o olhar para a lista, mas o dedo do Michael lhe subiu o queixo para recuperar sua atenção.
—E se alguma vez te pegar fora sem ir vestida de laranja, moça, encarregarei-me em pessoa de que se arrependa de ter partido da Califórnia — Disse em voz muito baixa.
Seus olhos eram muitíssimo mais ameaçadores que suas palavras.
Mas a ela não a assustavam, mas bem sentia curiosidade.
—O que quer dizer com isso da “temporada do rifle”?
—A caça do cervo.
—Ah.
Sim que ia comprar um montão de roupa laranja; até meias três-quartos.
Então decidiu que já era hora de pô-lo nervoso e perguntou:
—Por que riscou “anticoncepcionais” da lista? Tenta dar um irmão ou uma irmã a Robbie?
Aquele homem agia como se o que acabava de acontecer no salão fosse algo cotidiano.
Santo Deus, acabava de ter seu primeiro orgasmo!
Mas não deu a impressão de que sua pergunta desconcertasse o Michael; só parecia regozijado.
—Eu me encarregarei dos anticoncepcionais — Disse.
Libby meneou a cabeça.
—Como quem teria que assumir as consequências sou eu, prefiro ser eu quem o faça.
Deu a impressão de que ele ia discutir, mas em seu lugar passou um copo de vinho. Depois fez entrechocar os copos e assentiu.
—Então daremos por começada a aventura amorosa — Disse.
Em seus olhos brilhava algo que Libby só pôde qualificar de atitude possessiva.
E isso a assustou; quase tanto como a capacidade que tinha para fazer reagir seu corpo de formas que ela nem sequer imaginava. Tinha trinta e um anos de idade e se sentia como se tivesse dezesseis: como uma temerária e tremula adolescente enamorada que experimentava pela primeira vez. Tomou um bom gole de vinho, tossiu durante um minuto mais ou menos e por fim, com os olhos turvos, baixou o olhar para a lista.
—Por que…? — Voltou a tossir e, depois de decidir mudar a um terreno mais seguro, começou de novo — Por que riscou “quad” e acrescentou “moto de neve”? Eu quero um quad.
Ele meneou a cabeça.
—No melhor dos casos, só fica uma semana para usá-lo. Os quads não servem para a neve, e não está permitido usá-los nos atalhos de moto de neve.
—Você tem uma moto de neve?
—Sim. E Robbie também.
Libby quis perguntar se o menino colocava o capacete quando montava nela, mas antes de que reunisse coragem para fazê-lo, ele disse:
—E os dois usamos capacete — Deixou ver um amplo sorriso de cumplicidade—. Só um idiota com tendências suicidas conduziria sem ele. E, além disso, mantêm-nos abrigados.
Ela tomou outro gole de vinho, desta vez mais devagar.
—Vejo que tem a caminhonete de Callum — Disse Michael ao tempo que assinalava com uma inclinação de cabeça para a garagem encostada à casa — Este inverno agradecerá a tração nas quatro rodas… E o tamanho. Esta é a estrada principal que sai do mais fundo do bosque, e de segunda-feira à sexta-feira te encontrará caminhões carregados de madeiras. Assim mantenha alerta e nunca volte a dar um desvio por um animal; sua vida vale mais que a dele.
Libby lançou as listas na bancada e, de um gole, bebeu-se o resto do vinho.
—É porque tenho mais ou menos a estatura de seu filho pelo que sente essa necessidade de me tratar como se fosse uma menina? — Perguntou.
Michael se moveu tão rápido que Libby mal teve tempo de acabar de engolir antes que ele a agarrasse, desse a volta e a sentasse sobre a bancada. Depois lhe tirou o copo da mão e o meteu na pia, acomodou-se entre suas coxas e puxou-a com firmeza até pegá-la a seu corpo.
—Não — Disse com exasperante tranquilidade — É porque quero que viva o suficiente para que revolvamos seus lençóis.
Libby ficou sem argumentos. Limitou-se a tomar sua face com as mãos e a cravar a vista em seus reluzentes olhos.
—Suponho que não levará algum anticoncepcional no bolso, não é? — Perguntou.
—Não, moça — Respondeu ele, meneando a cabeça dentro de suas mãos — E duvido de que o que tenho em casa valha de algo; pelo menos tem um par de anos.
Libby ficou surpresa, porque o amplo sorriso de Michael fez que lhe movessem suas mãos; depois apertou mais forte os quadris e avançou para beijar sua boca aberta.
—Pensa que acostumo ter aventuras? — Perguntou depois, a só uns centímetros de seus lábios.
—Eu… Pensava… Não sei o que pensava.
—Então pensa nisto, moça: amei duas mulheres, e as duas morreram, levando cada uma boa parte de mim. O que ficou, mal basta para meu filho. Espera só paixão de mim, Libby, porque é tudo o que posso te dar.
—Isso me basta — Sussurrou ela, aproximando a face dele para beijá-lo.
Michael recebeu sua boca com boa parte daquela paixão que lhe tinha prometido, e Libby pareceu que seus hormônios foram desbocar-se em uma nova explosão… Mas de repente ele se deteve e recuou.
Agarrou seu casaco de uma das cadeiras da cozinha e, depois de lhe dirigir um último olhar aceso, partiu tão em silêncio como tinha chegado.
Libby cravou a vista um instante no visor, que voltou para seu lugar depois de fechar a porta. Depois tampou o acelerado coração com uma mão e alargou a outra para pegar o vinho; depois de dar um comprido trago diretamente da garrafa, deixou que seu olhar vagasse pela cozinha.
Parecia maior agora que Michael se foi.
E, certamente, também estava mais tranquila. Sem ter que dizer uma palavra, fazer um ruído ou mover-se sequer, aquele homem a fazia sentir-se como se estivesse em meio de uma iminente tempestade. Tomou outro gole de vinho e seguiu olhando pela silenciosa cozinha até que por fim seus olhos pousaram-se em uma caixinha que havia sobre a mesa.
Não estava ali uma hora antes.
De um salto desceu da bancada, foi à mesa e agarrou o envelope que estava em cima da caixa.
Abriu-o, tirou o papel e leu a nota, escrita com letras não muito pulcras, de uma jovem mão tinha formado laboriosamente.
Querida Libby:
Estava pensando que talvez quer me fazer este pequeno trabalho, já que é artista e é boa fazendo coisas com as mãos. Estou trabalhando em um presente de Natal especial para meu pai, mas esta parte é muito difícil. Por favor, pode pintar a palavra “Tàirneanaiche” no tabuleiro de madeira? Também meto na caixa pintura dourada. Não se preocupe, não te peço um favor, só te dou um trabalho para que ganhe dinheiro até que abra seu estúdio. Farei que papai te recompense, mas não lhe diga para que é, só quanto vai cobrar.
Obrigado, Robbie MacBain
Libby leu duas vezes a nota; depois rompeu a parte de fita adesiva que havia na caixa e a abriu. Em efeito, dentro havia uma pequena tábua de madeira de uns vinte centímetros de comprimento. Agarrou-a e voltou a olhar a nota. “Tàirneanaiche”? Que palavra era essa?
Olhou de novo a madeira. Parecia uma espécie de placa, com as esquinas enroladas para dentro e uma raia trabalhada pelas quatro bordas. A placa era feita de madeira suave, possivelmente pinheiro ou cicuta, e lixada com esmero.
O que era “Tàirneanaiche”?
Libby leu outra vez a nota procurando uma chave do que significava a palavra ou para que era a placa, mas Robbie se mostrava reservado a respeito do presente de Natal de seu pai.
Então chegou à parte onde lhe prometia que seu pai ia compensa-la e riu em voz alta.
Não acabava de lhe pagar Michael toda a dívida?
Colocou a nota na caixa, levou-a a seu quarto e a pôs em cima do penteadeira, pensando na relação que havia entre o Robbie e Michael. Era evidente que o menino confiava em que seu pai lhe levaria a caixa sem jogar uma olhada dentro… E então decidiu que também desejava contar com sua confiança: faria seu trabalhinho e manteria seu segredo. A única indenização que lhe pediria era o significado de “Tàirneanaiche”.
Libby se despiu e colocou o grossa robe de flanela que tinha pego na fazenda de sua avó B, quando foi recolher seu material. Depois se tampou com as mantas, colocou os braços sob a cabeça e ficou adormecida… Com o sorriso de uma mulher que por fim perdeu a virgindade.
Libby abriu a porta, saiu ao alpendre e olhou o paraíso que a rodeava. Tudo estava coberto de geada, que reluzia sob o brilhante sol da manhã como se fosse uma capa de diamantes polidos. Junto ao galinheiro uma galinha bicava o chão, com as penas levantadas como um peru ufano para defender do frio.
Justo quando saía do alpendre para dar caça à ave fugitiva, ouviu o disparo. Apressou-se a recuar e olhou para a montanha TarStone enquanto o disparo ia ressoando montanha abaixo como o estampido de um trovão.
A temporada do rifle.
Isso queria dizer que, justo naquele momento, algum pobre cervo corria por ali acima para salvar a vida.
Preocupada com sua própria vida, correu também e entrou de novo na casa. Então foi ao banheiro e tirou da prateleira uma toalha de uma viva cor amarela; não era cor laranja, mas não lhe ocorreu nenhum animal que tivesse a pelagem amarela limão. Envolveu os ombros com ela como se fosse um xale e retornou ao alpendre. Depois, agachando a cabeça como um soldado que esquiva um tiroteio, cruzou depressa o jardim e entrou precipitadamente no galinheiro procurando refúgio.
Sua brusca chegada assustou às galinhas, que ficaram como loucas; desceram batendo as asas de seus cabides em meio de um escândalo de frenéticos gritos e levantando nuvens de serragem. Enquanto afastava com a mão a sufocante poeirada, Libby abriu a bolsa de penso que Ian tinha deixado e encheu o manjedoura que havia no chão. A seguir revisou o bebedouro e rompeu a casca de gelo que havia na superfície; imediatamente duas aves começaram a beber.
Voltou-se para os ninhos e deu uma olhada aos três que estavam vazios. Só encontrou um ovo quebrado e o tirou junto com parte da palha. Colocou aquele desastre em um cubo vazio que havia a seus pés e depois dedicou sua atenção à galinha que estava no canto.
Sem alterar-se, a galinha lhe devolveu o olhar e a atacou quando Libby colocou a mão debaixo dela e ficou a medir procurando um ovo.
—Ai, mas que bruxa ingrata! — Exclamou Libby, zangada.
Esfregou a mão na coxa e deu uma olhada feroz às galinhas.
—Vou deixar que os caçadores as usem em suas práticas de tiro, se não deixarem de me bicar — Disse, as incluindo a todas na ameaça — Garotas, vocês me dão ovos e eu lhes dou de comer; assim funcionam as coisas por aqui.
Mas as galinhas não a escutavam; a metade estava comendo, e as demais, bebendo. Então soou um leve ruído na porta e Libby se aproximou para abrir. Era a galinha fugitiva, que entrou em tudo correr e se reuniu com suas companheiras na manjedoura.
Depois de decidir que esta manhã não ia encontrar o café da manhã ali, Libby saiu, assegurou-se de que a porta ficasse bem fechada e colocou a toalha amarela pela cabeça. Depois, correndo, voltou para a casa, subiu os degraus do alpendre e soltou um suspiro de alívio ao não voltar a ouvir mais disparos
Que raro, ter que tomar precauções para sair de sua própria casa… A verdade é que não teve em conta a temporada de caça quando decidiu mudar-se a Nova Inglaterra.
E não é que fosse vegetariana; gostava da carne, mas não estava segura de que pudesse comer um precioso cervo. Embora sim que comeria uma ou duas galinhas se continuassem bicando-a.
Deixou a toalha no varal que havia junto à porta e foi ao banheiro lavar as mãos enquanto pensava no ocupado dia que a aguardava. Tinha que fazer um milhão de coisas… E os talões de cheques iam lhe dar um bom tato.
Expôs-se acrescentar à lista uma cama nova. Não o fazia muita graça a ideia de revolver os lençóis de Mary com o antigo amante de Mary e na antiga cama de Mary… Já era bastante mau viver em casa da Mary.
Apressou-se a escovar os dentes e se tocou o cabelo. Depois agarrou a bolsa e as listas e entrou na garagem. Ia direto à loja dos Doa comprar umas botas impermeáveis, luvas grossas para proteger as mãos de galinhas bicadeiras e, além disso, uma jaqueta e um chapéu cor laranja.
Abriu a porta da garagem, foi para sua nova caminhonete e abriu a porta; depois tratou de recordar como as tinha arrumado a noite anterior para subir a aquele condenado traste quando foi prová-lo na estrada.
Ah, sim! Amavelmente, Callum a tinha subido nos braços; depois, amavelmente também, sugeriu-lhe que lhe pusesse uns degraus… Isso sim, não tão amavelmente, não parou de rir em todo o momento.
Libby também tinha conhecido a sua esposa, Charlotte, e a seu bonito filho, Duncan.
Depois de várias tentativas de subir, reconheceu por fim sua derrota. Então olhou pela garagem, encontrou uma gaveta de madeira e o utilizou como degrau. Uma vez dentro da caminhonete, alargou a mão, agarrou a gaveta e o deixou no chão do passageiro; necessitaria-o outra vez se queria voltar para casa dirigindo.
Passou os três minutos seguintes ajustando o assento e dando obrigado porque fosse elétrico e subisse, além de adiantar-se. De passagem, Callum lhe tinha sugerido (amavelmente) que pegasse um taco de madeira ao acelerador com fita adesiva para alcançá-lo.
Abotoou o cinto de segurança e ligou o contato; para ouvir o potente motor sorriu enquanto jogava uma olhada por dentro. O carro era tão grande que se poderia dar um baile nele. Libby meneou a cabeça e riu. Quem ia pensar, só um mês antes, que estaria vivendo nas montanhas do Maine e conduzindo uma caminhonete quase tão grande como sua casa?
Mas não demorou para ficar séria. Era culpada de covardia, de dar as costas a seu trabalho… E sobre tudo, era culpada de não desejar um dom que ajudava às pessoas.
Mas esse dom não a transformava em uma espécie de rei MIDAS? O que tinha que fazer, curar a tudo o que roçasse? Porque aonde a levaria aquilo? A transformá-la em uma mulher-espetáculo, um fenômeno de feira com hordas de gente procurando-a, acossando-a, pedindo, suplicando…?
Libby tentou raciocinar com seus inquietantes pensamentos. Enquanto mantivera em segredo seu dom, estava a salvo: os de Pene Creek só tinham que saber que fabricava joias e que era de Califórnia. Michael e Grace guardariam seu segredo, estava segura; não parecia lhes importar muito o pouco disposto que ela estava a lhes confiar seu passado.
O fato de confiar neles a assombrava.
Já quando cursava a especialização, tinha aprendido a ser prudente com seus companheiros. Sim, a maioria que se dedicava à medicina eram pessoas entregues, mas, por muito honestas que fossem suas intenções, no lugar de trabalho sempre entravam em jogo as relações de poder.
Como sua rivalidade com o James Kessler pela promoção que os dois queriam. O dinheiro e o prestígio sempre complicavam as coisas.
Seus respectivos pais eram colegas, além de bons amigos, e Libby e ele se conheciam desde meninos. Embora James fosse dois anos mais velho, faziam a especialidade juntos, e ambos tinham encontrado um posto no Cedars-Sinai.
E agora os dois procuravam a mesma promoção para desenvolver um método novo de microcirurgia não invasiva.
Ou assim era até na semana anterior, quando a Libby veio o mundo abaixo. Agora só queria… Diabos, não sabia o que queria. Paz? Compreensão?
A vida que levava antes?
Ou queria uma vida nova ali?
Para encontrar a resposta a esta pergunta, já era hora de começar a explorar aquela possibilidade. De modo que começaria com o Armarinho de Doam e avançaria de ali.
Libby deu marcha ré e saiu da garagem. Depois girou no jardim e se dirigiu para a estrada, mas pisou no freio a fundo quando um grande caminhão articulado, carregado de madeiras até os batentes, passou a toda velocidade pela frente de onde acabava seu caminho de entrada. O condutor, que pelo visto não tinha intenção de compartilhar a estrada com ninguém, olhou-a sorrindo e a saudou com a mão. Depois levantou um braço para apertar a buzina e lhe brindou uma amistosa e ensurdecedora buzinada que ficou flutuando no ar, em meio de uma nuvem de pó, até muito depois de que tivesse desaparecido.
Assim que voltasse a ver o Michael, subiria a uma cadeira e lhe apresentaria suas desculpas. Não brincava quando a advertiu dos perigos de seu novo lar.
Talvez devesse lhe assar algo; um bolo ou bolachas… Ou um jantar. Isso; prepararia um bom jantar para o dia seguinte e convidaria Michael, Robbie e ao John Bigelow.
Colocou a mão na bolsa, procurou a lista da compra e, depois de acrescentar uma grande galinha para assar, sorriu satisfeita. Antes de cozinhá-la, mostraria a ave empacotada às garotas do galinheiro e lhes advertiria que se não deixavam de lhe dar bicadas, acompanhariam a sua colega no forno.
Depois, com seus planos bem organizados, Libby olhou a um lado e a outro da estrada para ver como estava o tráfico e, por fim, dirigiu-se ao povoado.
—Teria que procurar na seção de crianças, jovenzinha — Repetiu Harry Doam pela terceira vez, enquanto tentava levá-la à parede traseira da loja — Por aqui não há nada que lhe venha bem.
Libby se negou a mover-se. Estava muito ocupada subindo-as mangas da jaqueta cor laranja que levava posta. Mas a etiqueta do preço, tão grande como um livro e que provavelmente custava mais que o próprio objeto, não deixava de estorvá-la.
A mulher de Harry, Irisa, tentava ajudá-la, mas Libby só entendia a metade do que lhe dizia, e isso com tanto sotaque que não acabava de saber se o que tentava aquela mulher era lhe dar uma mão ou que se tirasse a jaqueta.
Maldição, não tinha intenção de comprar na seção infantil. Tinha idade suficiente para ter filhos que comprassem ali.
Nesse momento Dwayne Doam se aproximou da parede de trás com uma jaqueta na mão.
—Isto deveria ir bem — Disse — E tem capuz, igual a essa.
—Não quero uma jaqueta que me venha bem — Explicou Libby com teimosia —Quero pôr isso em cima de um pulôver.
Ignorando por completo seus protestos, Dwayne se deteve diante dela e lhe pôs a jaqueta sobre os ombros; seu inquebrável meio sorriso aparecia depois de uns bigodes de uma semana, e cheirava raro, como a pickles ou algo assim. Depois jogou a jaqueta ao ombro e alargou a mão até o zíper da que ela levava posta.
—Pois esta você pode colocar em cima, senhorita Hart — Disse.
Libby recuou, e então Irisa foi ao resgate; afugentou os dois homens e puxou a jaqueta menor que Dwayne levava a ombro.
—Eu acredito que sei — Disse em inglês assassinado, enquanto assentia com gesto pormenorizado — Não menina; mulher.
Libby cedeu diante o sorriso de Irisa. Subiu as mangas da jaqueta que levava posta para procurar as mãos, baixou o zíper e a tirou. A condenada chegava aos joelhos, e sabia que estava ridícula com ela, assim colocou a que lhe oferecia Irisa, menor; Depois subiu o zíper e meneou os braços para assegurar-se de que fosse o bastante folgada.
Estava olhando-se no espelho quando Irisa lhe pôs na cabeça um chapéu cor laranja. Libby não demorou para recuperar o bom humor e riu em voz alta. Agora sim que estava ridícula de verdade. Como se fosse comprar uma arma e disparar a algo.
Era um chapéu de feltro com asa e com uma cinta laranja a jogo, que lhe contribuía um toque de estilo. Libby puxou a parte dianteira para incliná-lo e lhe deu um ar desenvolto.
Nesse momento o tiraram da cabeça e em seu lugar lhe puseram outro; desta vez uma boina de beisebol em versão dos bosques do norte: os quadros laranja e negros, com orelhas e uma correia que se ajustava debaixo do queixo. Toda ela estava forrada de veludo e era tão quente como uma torrada.
Agora parecia Hortelino Troca-Letras, o caçador.
Depois Irisa lhe pôs um gorro de ponto. Também era de cor laranja e tinha um pequeno pompom em cima. Mas precisamente quando tentava encaixar-lhe o tiraram da cabeça e em seu lugar lhe puseram o chapéu de feltro.
Libby levantou o olhar no espelho e atrás dela viu um jaquetão de lã vermelha que cobria um grande peito. Imediatamente reconheceu o jaquetão… E o peito também.
Voltou-se rapidamente e bateu de narizes com um botão do jaquetão de Michael. Então elevou os olhos e teve que colocar o chapéu para trás para lhe sorrir.
Ele devolveu o sorriso e lhe deu um golpezinho na ponta do nariz.
—Agora sim que parece do Maine — Disse — Só te falta uma arma.
—ouvi um disparo esta manhã, lá encima no TarStone.
—Sim. Era eu, moça.
Libby recuo, surpreendida.
—Você disparava a um cervo? Mas por que?
O sorriso dele desapareceu.
—Para comer neste inverno.
—E teve…? Teve êxito sua caça?
Ao ver seu evidente desgosto, o olhar dele se suavizou.
—Sim. Mas não tem por que preocupar-se, Libby; foi uma morte limpa. O macho estava morto antes de cair ao chão.
Ela necessitou toda sua força de vontade para não estremecer… E muito esforço para sorrir.
Michael alargou a mão e, com suavidade, roçou-lhe a bochecha com os nódulos.
—É um ato natural, moça — Disse em voz baixa — O homem é caçador, e os cervos são presas. E a sociedade não mudará nunca isso, por muito civilizados que achamos ser agora.
—Sei. E eu como carne, como a maioria das pessoas. Só é que a caça é algo tão… Tão direto…
—Se lhe dessem a escolher, o que preferiria ser, um novilho em um curral ou um cervo que corre livre? — Perguntou ele — Se de todos os modos for acabar na mesa de alguém, que vida escolheria?
—A do cervo.
—Sim. Eu também. E o macho que matei esta manhã também. Por favor, tenta recordá-lo quando fincar o dente a um de seus pedaços este inverno. Comeu alguma vez carne de veado?
—Não. Dará-me um pedaço?
—Sim. E um ou dois assados, se quiser.
De repente Libby recordou a decisão que tinha tomado antes.
—Ah! — Disse — Amanhã vou preparar um frango para jantar, e pensei que ao melhor você, Robbie e John gostariam de vir a compartilhá-lo comigo.
Por mais que o tentou, não soube interpretar a expressão que de repente adotou o olhar do Michael enquanto dava um passo para ela.
—Vai pôr recheio? — Perguntou com voz emocionada — E vai fazer molho de carne e purê de batatas?
Assentindo, Libby aproximou de sua vez.
—Também tinha pensado fazer bolo de maçã de sobremesa.
Michael a agarrou pelos ombros e se inclinou até que, virtualmente, seus narizes se tocaram.
—Você prepara um bolo de maçã, moça, e eu levarei o sorvete. E também, uma boa garrafa de vinho.
Sua voz era gutural, quase sedutora, e Libby não soube se era de paixão por ela ou pela perspectiva da comida que planejava.
Nesse momento ouviu uma risadinha e desviou a vista para ver uma sorridente Irisa que tampava a boca com a mão, sem deixar de olhá-los.
Michael se endireitou, e Libby se apressou a afastar-se para ocultar seu aceso rosto. Depois tirou o chapéu e a jaqueta, os deu a Irisa e ficou a rebuscar a lista da compra na bolsa.
—A que hora?— Perguntou Michael.
Libby elevou a vista.
—A que hora o que?
—O jantar. A que hora quer que vamos? E obrigado por incluir o John.
—Ah, não me ocorreria deixar de convidá-lo. Tenho muita vontade de conhecê-lo. A que hora lhes vem bem?
—Às seis.
—Então às seis. Feito — Concordou Libby enquanto se aproximava do mostrador com sua lista.
Michael foi atrás e, antes que chegasse até o Harry e Dwayne, deteve-a.
—Pegou a caixa que te enviou Robbie? — Perguntou — Se não quiser fazer o que te pede, o menino o compreenderá.
Libby lhe dedicou um muito doce sorriso.
—A nota dizia que você me recompensaria — Sussurrou para que ninguém a ouvisse — E lhe advirto isso: não sou barata.
Michael levantou uma sobrancelha e a olhou com tanta intensidade que foi um milagre que Libby não se incendiasse. Então se apressou a recuar enquanto tentava sufocar o rubor que subia pelas bochechas. Como tinha ocorrido dizer semelhante coisa?
—Leysa acaba de chegar — Disse Dwayne, aproximando-se deles — Já pode lhe mostrar a loja. Bom dia, MacBain.
Depois de um último olhar aceso, Michael se voltou e saudou o Dwayne com uma inclinação de cabeça.
—chegaram já os cartuchos de seis milímetros com noventa? — Perguntou — Além disso vou encarregar te aquela faca de que falamos para o Robbie. Está seguro de que chegará a tempo para o Natal?
Libby tentou conter um grito afogado, de verdade que sim… Mas lhe saiu de todas formas. Então Michael baixou o olhar para ela, beliscou o cavalete do nariz e deu um paciente suspiro de cansaço.
Mas, antes que pudesse falar, ela elevou a mão.
—Não diga nada. Não quero saber por que vai comprar uma faca a um menino no Natal.
Ele confiou em sua palavra, deu meia volta e seguiu ao Dwayne até o mostrador, deixando Libby boquiaberta, lhe olhando as costas.
Maldição! Sim que queria saber! Por que ia comprar ao Robbie uma arma tão perigosa? E, além disso, que presente de Natal era uma faca? O menino devia receber brinquedos, um walkman, uma bicicleta, ou meias três-quartos e pulôver… Não algo com o que talvez se mutilasse.
Nesse momento Irisa lhe chamou a atenção para apresentar a Leysa, a esposa de Dwayne. Leysa possivelmente tivesse dez anos mais que Libby, era ao menos trinta centímetros mais alta que ela e tinha um bonito cabelo comprido e ondulado, recolhimento a ambos os lados da face com dois preciosos passadores de madeira.
Levava um menino pequeno no braço.
—Minha cunhada, Leysa —Disse Irisa — Seu trabalho ocupar-se de loja. Ela fala você aluguel.
Libby não pôde conter mais sua curiosidade. As duas mulheres eram muito bonitas, limpas como uma sala de cirurgia… E umas esposas tão insólitas para o Harry e Dwayne que, simplesmente, tinha que saber mais sobre elas.
—Olá, Leysa. Eu sou Libby — Disse; fez uma inclinação de cabeça enquanto acariciava com suavidade a mão do menino adormecido — É da Rússia você e Irisa?
Leysa sorriu, cordial, e estendeu o menino para que o pegasse. Surpreendida, mas encantada, Libby embalou o bebê nos braço e lhe acariciou a pequena e enrugada bochecha.
Em perfeito inglês, embora com muito sotaque, Leysa respondeu:
—Eu sou ucraniana, e Irisa é da Croácia. Viemos aqui faz quatro anos, depois de conhecer o Harry e o Dwayne em uma festa, em Moscou — Prosseguiu ao ver o olhar interrogante de Libby — Estavam procurando esposas, e nós…
Olhou a Irisa e sorriu; depois voltou a olhar a Libby.
—Nós estávamos procurando maridos.
—Nós escolhe bons homens — Acrescentou Irisa — E agora vive em formoso lugar e é feliz.
Passou-se a mão pelo liso ventre.
—Dou filho ao Harry próxima primavera.
Libby ficou estupefata. Que tinham conhecido Harry e Dwayne em uma festa em Moscou…? Uma vez tinha visto uma reportagem em televisão sobre essas festas; pelo visto, os norte-americanos viajavam a Rússia ou a Ásia para procurar esposas.
—Tenho nos braços um menino ou a uma menina? — Perguntou, baixando a vista para olhar ao pequeno.
—Uma menina — Disse Leysa — Se chama Rose, pela mãe de nossos maridos.
—É preciosa — Murmurou Libby, ao tempo que se dirigia ao mostrador e se detinha junto a Michael — Olhe o que tenho. Não é uma preciosidade?
Ele deixou o catálogo que estava folheando e dirigiu sua atenção a Rose. Imediatamente alargou a mão, pegou à pequena e a balançou contra seu peito, enquanto lhe cobria a cabeça com uma longa mão e enterrava o nariz em seu cabelo.
Ao Libby lhe afrouxaram as pernas ao vê-lo tratar à menina com tanta segurança e com autêntico afeto. E enquanto isso Leysa, em vez de horrorizar-se ao ver sua filha nos braços daquele homem enorme, ficou a puxar Libby para a porta da loja.
—Venha — Disse — Lhe mostrarei o local que temos em aluguel, e assim decidirá se lhe convém.
—Mas… Mas e Rose?
Leysa continuou caminhando.
—Se a afastá-la agora do Michael, despertará chorando — Disse; voltou-se para Libby com um sorriso—. Acredito que está apaixonada por ele; sempre que ele vem aqui e a pega nos braços. Só tenho que vigiar que não tente levá-la para casa às escondidas.
Então se inclinou e sussurrou:
—Acredito que Michael também está apaixonado por ela.
Naquele momento Libby não só sentiu que as pernas lhe voltavam macarrão, mas também notou que lhe dava vários tombos o coração. Voltou-se para olhar enquanto Leysa a arrastava e viu que Michael observava com atenção o catálogo outra vez ao tempo que passava uma preguiçosa mão pelas costas de Rose, feita um novelo em seu ombro.
Uma imponente montanha de homem que matava um cervo pela manhã e ao cabo de umas horas abraçava um bebê. Que entrava em uma habitação e a deixava sem fôlego, dizia algo que a punha feito uma fúria e depois fazia amor como se o mundo fosse acabar-se no dia seguinte… Que com apenas um olhar a emocionava, acendia-a e lhe punha os hormônios a toda marcha…
E justo então aquela advertência que lhe fez a noite em que foi a seu quarto para afugentá-la, por fim a alcançou com o ímpeto de uma locomotiva.
Sim, Libby faria muito bem em estar muito assustada.
A verdade é que Libby não queria sair da cama. Se aconchegou mais no quente edredom e se tampou com ele o frio nariz. Deitou-se tarde, passada a meia-noite, porque tinha estado pintando a placa de Robbie, e ao final tinha caído na cama como um zumbi.
O café não a ajudaria, e não estava segura de que nem sequer a ajudasse uma aspirina. Ao melhor um revolto de dois ou três ovos frescos lhe sentava bem, junto com uma grossa fatia torrada do pão de molde que tinha comprado na padaria, oportunamente situada na porta de ao lado de seu novo estúdio.
Tornou a tropeçar com o Michael quando este saía da padaria; levava os braços carregados de pão e bolos, mais uma bolsa que parecia conter duas dúzias de bolachas. Ia mastigando um donut e se limitou a saudá-la com a cabeça e a lhe abrir a porta com o pé para que passasse.
Dando um gemido, Libby jogou atrás a roupa de cama e, como uma anciã, foi cambaleando ao banheiro. Aquele dia tinha outro milhão de coisas que fazer, e a menos importante não era preparar o jantar. Graças a Deus que tinha visto alguns velhos receituários na prateleira da cozinha; fazia uns quantos anos que não preparava um bolo de maçã.
Abriu a ducha e esperou até que o vapor esquentou a habitação antes de meter-se sob a água, para que sua orvalhada torrencial lhe tirasse o intumescimento e o xampu de eucalipto limpasse a névoa do cérebro. Em meia hora tinha postos sua nova jaqueta e seu novo chapéu cor laranja e estava pronta para enfrentar às garotas do galinheiro; esta manhã levava luvas cor laranja para proteger as mãos do ataque de seus bicos.
Surpreendeu-a encontrar sete ovos nos ninhos, e lhe pareceu que era a manhã de Natal ao ver aqueles ovos vermelhos, perfeitamente formados, postos ali sem mais, esperando a que os recolhesse. Ian tinha advertido que pelo menos em uma semana, até que as galinhas se recuperassem da mudança, não teria nenhum.
Mas tinha sete ovos! Sentia-se a mulher mais rica do mundo.
Com seus tesouros bem guardados nos bolsos, Libby retornou devagar à casa, mas a metade do caminho se deteve para olhar o lago Pene.
E de repente sua riqueza se multiplicou por dez.
Uma sensação de comodidade, de paz e de alegria pousou sobre ela como uma quente manta de segurança. A suas costas sentiu a força da montanha TarStone, enquanto se empapava da beleza do lago situado no vale de baixo.
Isto sim que era autêntico.
Que bom estar ali! Naquele lugar cheio de energia seria capaz de confrontar seu dom. Exploraria suas características e começaria a compreendê-lo. Ali, com o apoio daquelas boas pessoas, aceitaria o que não podia trocar e o aceitaria como o milagre que era.
Pela primeira vez em quase duas semanas se sentiu equilibrada… E abençoada, em vez de maldita. Algo tinha conduzido sua busca e orientado seu computador para que encontrasse aquele lar em Pene Creek.
A avó B?
Ou um menino que tinha um plano?
—É uma vista verdadeiramente magnífica, não é?
Libby deu a volta como um raio e depois teve que gesticular para agarrar o ovo que saiu voando de seu bolso. Em vez disso, deu-lhe um tapa e ficou olhando enquanto o diminuto míssil voava pelo ar e aterrissava com um repugnante chof o peito de padre Daar.
Completamente estupefatos de horror, os dois cravaram o olhar o um no outro. Libby sentiu que lhe esquentavam as bochechas e se apressou a tirar as luvas para limpar com elas a porcaria do jaquetão.
O ancião sacerdote tirou lhe as luvas e recuou, ao tempo que limpava ele mesmo o peito.
—Eu… O lamento, padre. Deu-me um susto.
—Sim — Concordou ele; devolveu-lhe as luvas manchadas — E já levo posta minha penitência.
Olhou-a com receio.
—Tem mais ovos que queira atirar? Pois estou pensando que estariam melhor dentro de minha pança que em cima dela.
Aquele homem ia em busca de café da manhã. Tinha muito descaramento, depois de ser tão grosseiro com ela o outro dia.
—Tenho seis mais — Respondeu Libby.
Meteu as mãos nos bolsos e deixou que o ancião se preocupasse com o que pretendia fazer com eles.
Ele a olhou e elevou uma povoada sobrancelha.
—É cristã, Libby Hart?
—Às vezes — Respondeu ela, com intenção, olhando seu colarinho branco—. Quando a pessoa se comporta de forma cristã comigo.
Ele agachou a cabeça e suas bochechas avermelharam sobre sua recortada barba.
—Esta manhã vim para me desculpar por meu comportamento do outro dia —Disse em tom arrependido; olhou-lhe o cabelo — É que me sobressaltei, nada mais.
—Por isso? —Perguntou Libby enquanto se tocava o cacho branco—. Padre, é um traço genético. Muita gente o tem.
—Sim — Disse ele, assentindo — Já o vi outras vezes. Bom, vai incubar esses ovos, garota, ou a cozinhá-los?
Aquele homem era tenaz. Libby suspirou, deu a volta e, com um gesto, indicou-lhe que a acompanhasse.
—Vamos então, padre. Prepararei o café da manhã.
Coxeando, ele ajustou o passo ao dela, enquanto o golpear de sua torcida bengala de madeira mantinha o ritmo. Libby o olhou pela extremidade do olho e se perguntou que idade teria.
—Desceu andando da montanha?
O ancião sorriu; pelo visto, estava muito contente de que fossem lhe dar de comer.
—Sim — Disse — Eu gosto de caminhar. É bom para a alma.
—Por que você vive encima na montanha e não no povoado? Não se sente sozinho?
O sorriso do ancião se alargou.
—A solidão também é boa para a alma. Além disso, as pessoas não me são simpática.
Libby se deteve e o olhou com curiosidade.
—Mas você é sacerdote e, em teoria, tem que gostar de todo mundo. Não está em seus votos ou algo assim?
—Faz tanto tempo que pronunciei meus votos que me esqueci a metade. E além disso já sou velho; ganhei o direito a ser suscetível.
Bom, isso era indiscutível. A avó B tinha morrido com oitenta e nove anos, e teria dado lições de descaramento a um pavão.
Libby levou seu hóspede à casa e lhe indicou uma cadeira das que rodeavam a mesa da cozinha. O padre Daar se sentou dando um dolorido suspiro, rodeou o punho da bengala com as mãos e jogou uma olhada a seu redor.
—Este lugar não mudou muito — Disse — Mas sinto a alegria da velha casa por que vivem nela outra vez. Sente você sua energia, Libby?
Ela terminou de tirar os ovos dos bolsos e os pôs em uma terrina. Depois olhou o ancião e viu que a observava com atenção, com uma estranha e calculadora expressão em seus olhos azuis, surpreendentemente transparentes. Decidiu não responder a sua pergunta.
—Foi ao médico pela dor de suas articulações?
Ele entreabriu os olhos e enrugou o curtido rosto ao franzir o cenho.
—Eu não gosto dos médicos. Não fazem mais que pinçar, beliscar e te dar uma lista de coisas que não pode fazer e que não pode comer.
—Também lhe dariam algo para a dor.
—Não há nada de errado em um dorzinha — Replicou ele — Isso permite a um homem saber que está vivo.
—O abrir os olhos cada manhã também o permite. — Libby pôs a frigideira na boca do fogão e acendeu o fogão; depois agarrou o pão para cortar — Agora há uns tratamentos muito bons, padre. Não tem por que sofrer.
—Você é médica?
Ela deixou de cortar fatias de pão e o olhou. Em que confusão se meteria por mentir a um padre?
—Sei algo sobre medicina; o suficiente para me dar conta de que tem você uma boa artrite.
—Assim é como o chamam agora? — Perguntou ele — Em meus tempos o chamavam “ficar velho”.
Libby colocou o pão no torrador e quebrou os seis ovos que ficavam na frigideira. Depois procurou uma espátula, revolveu os ovos e apagou o fogão para deixar que se fizessem sozinhos. Pôs a mesa e serviu suco em dois copos, lubrificou manteiga nas torradas e serviu o café da manhã como uma eficiente cozinheira; isso sim, todo o momento tentou ignorar o penetrante olhar de sua intrometida visita.
Enquanto punha os dois pratos de comida na mesa e tomava assento frente ao padre Daar, perguntou-lhe:
—Fica todo o inverno na montanha? O que aconteceria se fizesse mal ou ficasse isolado pela neve?
Cruzou as mãos e esperou o sacerdote benzer a mesa, mas ele se lançou em picado sobre o café da manhã sem responder sequer a sua pergunta. Demorou ainda vários bocados em elevar a vista e olhá-la com o cenho franzido.
—Coma, garota, antes que se esfrie; benzi os mantimentos enquanto os cozinhava. E se necessitar ajuda, os MacKeage ou MacBain encontrarão o modo de chegar até minha casa.
—Mas, se tiver algum problema como vão saber que necessita ajuda? você tem um rádio ou algo parecido?
Ele não respondeu porque outra vez estava muito ocupado comendo. Então Libby se rendeu e se dedicou a seu próprio café da manhã, embora comeu mais devagar para saborear os ovos frescos, feitos com a manteiga caseira de fazenda que tinha comprado na padaria.
O colesterol ia ficar pelas nuvens, vivendo ali… E, provavelmente, ganharia mais de dois quilogramas aquele inverno.
—Isso o que cheiro é café? —Perguntou Daar.
Afastou seu prato vazio, se recostou na cadeira e sacudiu os miolos de torrada de sua batina de lã negra.
Durante seu passeio montanha abaixo tinha tido posto um chapéu laranja, que tinha pendurado com seu vermelho jaquetão escocês junto à porta quando os dois entraram na cozinha. Agora se levantou e se dirigiu ao salão.
—Poderíamos tomar o café no alpendre dianteiro — Sugeriu — Faz uma manhã estupenda, e o sol esquenta.
Libby pôs os pratos na pia e serviu duas xícaras de café.
—Como gosta a você? — Perguntou.
—Puro — Respondeu ele, enquanto cruzava o salão e saía pela porta principal.
Libby imaginou que tanta soltura se devia a que em tempos devia visitar frequentemente a Mary Sutter e agora tinha decidido recuperar o costume com ela. Sorriu enquanto saía atrás dele; pelo visto, tinha herdado um padre com bom apetite.
Sentaram-se em amigável silêncio, empapando do panorama enquanto tomavam o café tranquilamente. Libby decidiu que o padre Daar a divertia mais que a incomodava; dizia as coisas mais estrambóticas e surgia de um nada quando menos se esperava.
Seguia sem saber que idade tinha. Ia vestido como um sacerdote do século XVI, estava claro que era escocês, como a metade da gente que tinha conhecido ali, e parecia uma autêntica quinquilharia.
—Leva muito tempo vivendo em Pene Creek, pai? — Perguntou.
—Um pouco mais de onze anos — Respondeu ele — Vim aqui com os MacKeage.
—Desde Escócia?
—Sim.
Ao dar-se conta de que não ia brindar lhe mais detalhe, Libby decidiu dar outro rumo à conversa. Depois de tudo, tinha a um clérigo ao seu dispor. Por que não aproveitar-se de seus conhecimentos? Tinha todo o direito do mundo, tendo em conta que quatro de seus apreciados ovos estavam dentro de sua barriga…, por não falar do que lhe adornava o jaquetão.
—Você acredita na magia, padre?
O ancião sacerdote se engasgou com o café enquanto lhe dirigia um olhar tão surpreendido que Libby não soube se envergonhava de sua pergunta ou se alarmava-se por sua reação.
—É uma pergunta inocente, padre — Justificou—, já que estamos olhando esta formosa paisagem…
Ele se relaxou de novo em seu assento.
—Ah! — Disse — Refere si acredito na magia da natureza…
—Sim, isso. Mas também me perguntava se também acreditava em uma espécie de magia mais… Mais mística.
—Mais mística? — Perguntou ele, lhe dirigindo um olhar torcido — Refere a magia de bruxas e feiticeiros e… Magos?
—Eu não iria tão longe — Disse Libby, fazendo um gesto de rechaço com a mão — Falava de coisas como a reencarnação, a intuição e… Bom, e possivelmente que uma pessoa tenha um dom. Você conheceu alguma vez a alguém que afirmasse ter um dom especial? Imagino que, ao ser sacerdote, alguém terá ido a você alguma vez com esses assuntos.
Estava escorregando como uma tola. Tinha as bochechas quentes e já quase se arrependia de ter tirado a luz o tema.
Mas só “quase”. Maldição, andava na ponta dos pés por terreno sagrado, mas se ia cair de cara, por que não fazê-lo diante de um padre? Não o obrigavam esses votos que não recordava a não lhe contar a ninguém o que dissessem naquela conversa?
—Um dom?— Repetiu ele em voz baixa; voltou-se de tudo na poltrona para olhá-la de frente — Como o que? Me ponha um exemplo do que considera “um dom”.
Libby deixou sua xícara de café no corrimão do alpendre e esfregou as suarentas Palmas nas coxas. Depois inspirou, tremente, e como já ia fazendo-se costume nela, meteu-se no assunto de cabeça… Embora só em parte.
Esquivando seu problema particular ao tempo que tentava saber o que pensava o padre Daar, disse:
—Falo de uma mãe que retorna em forma de coruja. Viu você o mascote do Robbie?
Ele assentiu e a observou com receio.
—Sim — Disse — Lhe pôs o nome Mary.
—E você acha que é Mary, padre? — Perguntou Libby — Que o espírito dessa mulher retornou para estar com seu filho?
—Acredito que se Robbie MacBain necessitar sua mãe agora mesmo e acredita que a coruja é ela, então sim, Mary está aqui.
—Como se fosse uma amiga imaginária?
—Não. A coruja é de verdade. E que se afeiçoou com o menino também é verdade. Alguma vez em sua vida todo mundo experimenta coisas que não sabe explicar. Não passou a você?
Apesar de que estavam em uma fria e limpa amanhã de novembro, Libby sentia bastante calor sob o penetrante olhar do padre. Isto não era uma boa ideia.
—Sim que experimentei coisas que não sei explicar — Reconheceu — Mas não sei se iria tão longe para dizer que acredito na magia.
Viu que o ancião elevava o olhar até sua branca mecha de cabelo e depois voltava a olhá-la nos olhos. Depois pregou a cara em um sorriso.
—Sim, Libby, parece-me que sim que acredita — A contradisse com suavidade—. E que quando não é capaz de explicar algo que te ocorreu, se preocupa. Mas precisamente esse é o sentido da magia, verdade? Não precisa compreendê-la, só aceitá-la como o dom que é. Por que veio a Pene Creek?
Formulou sua pergunta de forma muito sutil, e Libby, que seguia tentando lutar com o que ele dizia, respondeu sem pensar:
—Porque me assustei.
—De algo que te aconteceu em Califórnia? Algo que não sabe explicar?
Já estava perdida, assim mais valia atirar-se ao rio.
—Sim. Ocorreu algo que não sei explicar.
O padre Daar se levantou da poltrona e se apoiou no corrimão diante dela; seus claros olhos azuis a olharam diretamente.
—Uma coisa tão grande para voltar do reverso todo seu mundo… — Conjeturou— E acredita que vindo aqui te esconderá disso?
Meneou a cabeça e acrescentou:
—Libby, as perguntas que está me fazendo e as evasivas com que me responde me fazem pensar que te concedeu um dom que não quer. Estou certo?
Libby baixou a vista e a cravou nas mãos que tinha cruzadas no colo.
—Parece-me que não tenho escolha — Sussurrou; elevou o olhar para ele — E isso é o que me dá medo. Não sei se controlo este dom, ou se acabará controlando a mim.
—Provaste-o?
—Uma vez — Disse ela — Depois de descobri-lo.
—E o que aconteceu?
—Que funcionou. Mas então começou a… Me assustei — Disse com sinceridade — Senti que dava voltas sem controle, como se esta… Esta coisa me consumisse. As vozes me chamavam, puxavam de mim… e saí correndo.
—E após não o tornou a provar?
—Não.
—Ignorá-lo não fará que desapareça, Libby.
—Já sei.
—Acredita que esse dom é bom ou mau?
—Bom — Disse ela, elevando a vista de relance.
Levantou-se, ficou a caminhar pelo alpendre e se voltou outra vez para olhá-lo de frente.
—Mas não é tão simples, padre. Se não saber controlá-lo ou se não acerto a empregá-lo de forma adequada, talvez resulte ser algo mau. Talvez termino fazendo mal às pessoas em vez de ajudando-a.
O ancião assentiu com um gesto de compreensão.
—Ah — Disse em voz baixa — Assim que o que teme não é o dom, e sim você mesma. Não quer a responsabilidade que leva consigo.
—Eu não a pedi — Sussurrou Libby; cruzou os braços como se abraçasse — Era muito feliz com minha vida.
Ele inclinou a cabeça sem deixar de olhá-la.
—Ah, sim? De verdade? Então, por que acredita que seu dom escolheu manifestar-se agora?
—Não sei por que.
Nesse momento Daar se endireitou e entrou na casa, com o que Libby teve que ir atrás para ouvir o que dizia.
—Como está claro que não está disposta a me contar o que ocorreu na Califórnia — Disse o ancião enquanto atravessava devagar o salão — Não posso te aconselhar. Só posso dizer que tem que fazer experimentos com esse dom.
Deteve-se no cabideiro da cozinha e desprendeu seu jaquetão e seu chapéu; depois se voltou para olhá-la.
—Pratica, Libby; joga com seu dom, aprende o que queira te ensinar.
—E se voo a montanha TarStone? — Perguntou ela, sorrindo sem convicção.
Ele a observou atentamente durante uns segundos, enquanto tentava decidir se brincava ou não. De repente seus olhos se animaram de regozijo e soltou uma risadinha em voz alta. — Estas montanhas já explodiram uma ou duas vezes — Disse — Confrontarão qualquer energia com a que esteja jogando. Deu uns tapinhas como se procurasse algo e franziu o cenho ao tempo que olhava pela cozinha. — Ah, esqueci minha bengala. Traz-me isso? Acredito que deixei no alpendre dianteiro. Pensando em suas palavras, Libby voltou a cruzar o salão. Jogar com seu dom? Esse condenado dom não era um brinquedo: dava medo. Aprender de seu dom…? Aprender o que? E fazer experimentos…? Vá, caramba…! E por que diabos não experimentar? Talvez começasse precisamente com o pai Daar, a ver o que lhe parecia.
Encontrou a bengala apoiada na poltrona onde se sentou o ancião. Agarrou-o e recuou para a casa. Mas de repente se deteve o notar que começavam a esquentar-se o as mãos e que a bengala começava a vibrar como um diapasão. Então sentiu um formigamento por todo o corpo, e a luz do sol se fez mais brilhante até rodeá-la de um intenso resplendor cheio de cores.
A voz do padre Daar lhe chegou através da névoa.
—Não tenha medo, Libby. Sinta a energia, sem mais, e me diga o que vê.
Ela não via mais que luz de cores… Mas sim que sentia coisas… As emoções a rodearam: contente, temor, saudade e paixão; todas estavam ali, envolvendo-a, puxando-a, arrastando-a em diferentes direções…
—Se concentre, Libby — Voltou a dizer a voz do padre Daar, que soava muito longe — Escolhe uma cor e se concentre nela.
Sua voz era tranquilizadora, intemporal e remota. Libby fez o que lhe dizia e se concentrou na cor mais forte e na emoção mais insistente.
Então o medo pareceu jogar ramos que subiram por sua mente, tentando afundá-la mais no redemoinho. Libby lutou contra o caos e gritou quando se sentiu cair em suas espantosas profundidades.
—Olhe a seu redor, garota. Busca algo ao que se agarrar. Se segure e vá lá sem medo.
Libby procurou algo que lhe servisse de ponto de apoio, mas só viu uns olhos cinza como o estanho cravados nela, brilhantes e ardendo de paixão. Uns braços de aço forjado a envolveram. Vacilante, apoiou-se na segurança que lhe brindavam e depois deu a volta para enfrentar a seu medo com uma nova sensação de fortaleza.
Nesse instante a energia se transformou em vozes; vozes que lhe chegavam de um milhar de direções diferentes, rogando, suplicando, procurando ajuda… Os braços que a sustentavam se esticaram e, depois de inspirar, tremente, Libby chegou ao centro do torvelinho…
Mas não se consumiu. Em vez disso, se descobriu capaz de tocar aquela vertiginosa massa de cores que pulsavam e se formavam redemoinhos. E, uma por uma, as vozes se calaram, as cores que a atacavam perderam intensidade, e a tormenta amainou.
Libby se voltou, afundou a face naqueles olhos cinza que a sustentavam… E o som de uma suave risada a devolveu à realidade. Então elevou a vista e encontrou padre Daar, situado a cinco passos de distância, com os olhos brilhantes de regozijo. Estendeu a mão e perguntou:
—Posso recuperar meu bastão antes que esgote todo seu poder?
—Bastão? — Repetiu Libby em voz baixa.
Olhou a bengala que zumbia baixinho em sua mão; depois elevou a vista para olhar ao sacerdote e deu um passo atrás.
—O que…? Quem é você?
O ancião inchou o peito e alisou o peitilho da batina.
—Sou um mago, garota. Ou é que não adivinhou?
Libby voltou a recuar outro passo.
—Mago? — Repetiu— Mas isso é impossível!
—Então me explique o que acaba de ocorrer.
—Não, explique-me você! — Exigiu ela, avançando para ele; levantou a bengala, ainda morna e vibrante, entre os dois — O que acaba de ocorrer?
—Acaba de vislumbrar seu autêntico dom — Disse ele ao tempo que agarrava a bengala e a estreitava contra seu peito em gesto protetor — E acaba de descobrir que sabe controlá-lo… Sempre que se mantenha bem segura.
Ela o observou com receio.
—Então você já sabe qual é meu dom.
O ancião meneou a cabeça.
—Não — Disse — Só sei que é uma força poderosa e que tem trabalho por diante até aprender a utilizá-la com sabedoria. E também sei que é o bastante inteligente para agir com prudência, já que pode ser uma força tão destrutiva como boa.
—E diz você que é um mago? — Repetiu Libby.
Perguntou se a idade não estaria lhe afetando as ideias…
Embora a ela não deveria afetá-lo com a idade e, entretanto, não se explicava o que acabava de ocorrer.
—Você não veio aqui por acaso, Libby Hart — Disse o padre Daar — A atraíram até esta terra mágica de propósito: o segredo para controlar seu dom está aqui.
Voltou a soltar uma risadinha.
—E além me parece que já encontrou seu melhor sustento — Meneou a cabeça — Embora o MacBain não vai gostar de nada quando descobrir.
Libby se aproximou do ancião e o agarrou pelas lapelas abertas de seu vermelho jaquetão escocês.
—Não se atreva a contar nada a Michael — Sussurrou, entre exigente e desesperada —. Não o entenderá.
O sacerdote que chamava a si mesmo mago meteu a bengala sob o braço e pôs suas mãos sobre as dela para as posar contra seu peito. O humor seguia lhe animando a face, e voltou a rir em voz alta.
—Ai, Libby… De todos os sustentos que podia ter procurado, pode estar segura de que MacBain é a melhor escolha; ele o entenderá melhor que ninguém.
Inclinou a cabeça ao tempo que desviava o olhar para o lago Pene.
—E além disso, começo a pensar que o contratempo de faz doze anos não foi um engano absolutamente… — A olhou de novo — MacBain também estava destinado a estar aqui. E, pelo visto, por mais de um motivo.
—Que contratempo? Que motivos? Do que fala você?
—De você, garota. Ele está aqui por você. E pelo Robbie também. O menino tinha que nascer, e MacBain teve que viajar aqui para que isso acontecesse.
Sentindo-se mais confusa com cada palavra que o ancião pronunciava, Libby tentou afastar-se, mas o padre Daar seguia lhe agarrando as mãos e não a soltou. E seguia sorrindo amplamente, como um velho e demente idiota.
—Eu não cometi um engano faz doze anos, garota… E você tampouco o cometeu ao decidir se mudar para cá.
Em vez de contradizê-lo, Libby deu a volta a suas mãos nas dele e lhe agarrou os dedos torcidos pela idade. Depois lhe devolveu o sorriso e ordenou a seus poderes que lhe atravessassem velozes o corpo e procurassem cada uma de suas articulações artríticas.
Enquanto lhe percorria o esqueleto com a precisão de um raio laser, foi reconstruindo cartilagens e alisando ossos. E de novo, como tinha passado na Califórnia, seu corpo se esquentou, os batimentos de seu coração se fizeram mais lentos, viu a dor dele e a fez dissolver-se na luz.
O padre Daar soltou um afogado grito de surpresa e recuou dando tropeções, com a face tão pálida como a neve recém caída.
—O que fez? —Gritou com voz rouca; deu vários passos atrás e a assinalou com um dedo —. Não se aproxime de mim!
Ao Libby ainda formigavam as mãos; as esfregou nas coxas e lhe lançou um sorriso presunçoso.
—Só fiz o que você me disse que fizesse.
—O que?
Ela deu de ombros.
—Praticar. Examinar meu dom.
—Não pretendia que praticasse comigo!
—Tenho-lhe feito dano?
Daar teve que parar e pensar. Inclusive se deu umas quantas palmadas pelo corpo e se inclinou para fazer um exame visual, como se esperasse que o tivesse convertido em rã ou um algo parecido. Depois saltou de um pé a outro, agitou os braços como um pássaro e inclusive deu uma volta completa, tentando ver-se o traseiro por cima do ombro.
De repente se endireitou e a olhou com expressão surpreendida, ao tempo que elevava para ela uns olhos azuis muito abertos, cristalinos de puro azul.
—Pelos pregos de Cristo, mulher…! É uma curadora! — Sussurrou — Me curou as dores!
Libby ficou séria e se abraçou. Ouvir aquelas palavras, pronunciadas com uma autoridade tão firme, fez-lhe sentir calafrios.
O padre Daar foi por volta de uma das poltronas do alpendre e se sentou. Depois apoiou os cotovelos nos joelhos e esfregou várias vezes a face com as mãos antes de olhá-la por fim.
—E isto é o que te fez vir correndo aqui? — Perguntou — Esta capacidade para curar pessoas?
Incapaz de mover-se de seu lugar, Libby se limitou a assentir com a cabeça.
—Não é de estranhar que esteja desconcertada; é uma responsabilidade muito grande ter o poder de curar as pessoas. Não se pode ir por aí sem mais, curando a todo mundo à boa de Deus. A alguns não poderá curá-los.
Ao Libby entraram vontades de lhe dar um abraço. Por fim alguém que compreendia seu dilema.
—Por isso fugi — Explicou — Eu era cirurgiã, trabalhava em um hospital cheio de gente que desejava que a curassem. Onde acabaria isto? Quando me consumisse de tudo?
Ele se recostou na poltrona, olhou-a fixamente e assentiu.
—Sim — Disse — Suponho que a energia era arrebatadora.
—Em minha imaginação vi pessoas postas em fila até chegar à rua… — Confessou Libby, ainda incapaz de mover-se, abraçando-se ainda — Esperando que eu os curasse. Mas que direito tenho de brincar de ser Deus com suas vidas? E que direito tenho de não fazê-lo?
—Libby, não tem nenhum direito a tomar esse tipo de decisões.
—Então, por que me ocorreu isto, padre?
Ele acariciou a barba com o punho da bengala e refletiu sobre a pergunta em silêncio. De repente assinalou com um gesto da mão o lago Pene.
—Tudo está relacionado: a terra, as pessoas, as plantas, os animais e a energia que faz possível nossa própria existência. Talvez — A olhou — Tenha dado este dom por um motivo concreto. Para curar uma pessoa em particular cuja força vital está conectada com a unidade.
Libby deu uns passos e se apoiou no corrimão, diante dele.
—Que pessoa? — Perguntou inclinando-se para frente — Quem?
—Isso não posso dizer garota. Eu não faço adivinhações, só sou um condutor de energia.
Ela se endireitou e cruzou os braços.
—Então, como conhecerei essa pessoa? — Perguntou — E, enquanto isso, utilizo meu dom?
Daar meneou a cabeça.
—Isso tampouco posso dizer mas pelo visto já parece ter um pouco de controle sobre ele. Em sua visão encontrou algo no que te sustentar, e isso acalmou a tormenta que te rodeava.
—E está dizendo que meu sustento é Michael… Mas que ele não vai gostar?
—Sim — Concordou o ancião — Esse homem está absolutamente decidido a não deixar que seu coração se comprometa com outra mulher.
—Eu não quero seu coração.
—Pois isso é o que necessitará para que isto funcione, Libby. Não pode se agarrar só um momentinho e ir depois, ou acabará destruída.
—Então irei já. Não utilizarei ao Michael, padre.
Ele meneou a cabeça.
—Temo que é muito tarde. MacBain já se fixou em você, e não estou seguro de que te deixe partir.
Bom, maldição… Mas é que tinha perdido o controle de tudo?
Daar se levantou, estirou suas articulações recém curadas como um jovem de vinte anos e lhe sorriu.
—Vou desfrutar do caminho de volta a casa — Disse enquanto ia para o alpendre.
Ela foi atrás, mas se deteve quando ele se voltou a olhá-la.
—Tenho suficientes boas maneiras para te dar os obrigado, Libby Hart; pelo café da manhã e por me haver tirado as dores.
—Padre, se for um mago como afirma, e se essa sua bengala — Baixou a vista para olhá-la e depois voltou a olhar ao ancião — Tem… Essa energia que senti, por que não a usou consigo mesmo?
Ele sorriu com desdém.
—Se for sincero, moça, dava-me medo me transformar em um escaravelho bolorento ou em qualquer outro inseto vil. — Elevou sua bengala ao tempo que lhe jogava um olhar feroz — Este não é meu primeiro bastão e é tão novo que não confio nele.
—Que idade você tem, pai?
O ancião inchou o peito e endireitou os ombros.
—Farei mil quatrocentos e noventa e cinco no próximo março —Respondeu.
— Anos? — Disse ela com um grito.
—Claro que anos, garota — Grunhiu ele.
Deu a volta e desceu do alpendre, mas em metade do caminho de entrada se deteve e se voltou enquanto a assinalava com a bengala.
—Deixa de pensar como uma cirurgiã, Libby Hart, e deixa de tentar colocar às pessoas e às coisas em pequenos e ordenados compartimentos. A vida não funciona assim, e é provável que lhe explodam os miolos de frustração.
Depois se voltou um pouco e com a bengala assinalou um jardim de flores queimadas pela geada enquanto murmurava umas palavras baixinho. Um relâmpago saiu disparado da ponta da bengala e alcançou as murchas flores com força suficiente para levantar no ar uma nuvem de terra misturada com fumaça.
Libby recuou um passo.
E quando o pó se dissipou, viu que as mudas estavam em plena floração, com folhas de um verde vivo e flores de vistosas cores. Todo o jardim parecia que estava na primavera.
—E olhe que passar do tempo é um desses compartimentos — Disse o padre Daar— Só existe para os relojoeiros. Tenta recordá-lo quando tratar com MacBain.
Aquele misterioso comentário ficou no ar até muito depois de que ele partisse, enquanto que Libby permanecia ali, incapaz de afastar a vista das plantas em flor.
Um mago?
Diabos… Ao melhor o que passava era que já lhe tinham explodido os miolos!
Quando deram as cinco em ponto daquela tarde, Libby fazia justo o que Daar lhe havia dito que não fizesse: tinha metido os acontecimentos inexplicáveis da manhã em um pequeno e ordenado compartimento com a etiqueta de “pensar depois”.
Naquele preciso instante se sentia muito contente consigo mesma, e também um tanto surpreendida, por descobrir que gostava da vida caseira. Tinha um bolo de maçã esfriando na bancada e batatas cozinhando na boca do fogão, e toda a casa cheirava ao frango que se assava no forno. A mesa estava posta com um desigual sortido de pratos que demonstravam que no lar dos Sutter se serviram muitas comidas, e a luz do alpendre estava acesa para dar a boa-vinda a seus convidados.
Mas outro convidado chegou primeiro; sem ter recebido convite e absolutamente inesperado, embora igual de grato. Libby estava esfregando as fontes do forno quando ouviu um ruído fora e olhou pela janela. A coruja nevada, o mascote de Robbie, estava posado no corrimão do alpendre e lhe devolvia o olhar; tinha um grande pau agarrado em uma de suas afiadas garras.
Secando as mãos no avental, Libby abriu a porta e saiu ao alpendre.
—Nossa, olá — Disse aproximando-se da coruja — O que tem aí?
Mary estendeu as asas para equilibrar-se, abriu as garras e deixou cair o pau. Libby o agarrou e o observou atentamente à luz do alpendre.
Era um pau bastante robusto, de uns sessenta centímetros de comprimento, que parecia de madeira dura, embora não sabia de que espécie. Estava coberto de formosos e retorcidos nós, e tinha um suave e lustroso tom cinza. Pesava e estava morno ao tato.
Libby olhou a coruja e disse:
—Acredito que quer que eu o tenha. — Tentou não reconhecer que estava falando com uma ave — Não sei por que, mas obrigado por este precioso presente.
Deu a volta para entrar de novo na casa, mas se deteve o se dar conta de que a seguiam. Quando baixou a vista encontrou a Mary avançando a saltos pelo chão do alpendre, atrás dela.
Vacilou e depois, com um suspiro de resignação, abriu a porta da cozinha e se tornou a um lado; Mary entrou na casa como se fosse dela. Libby a seguiu, mas deixou a porta um pouco aberta se por acaso aquela ave surpreendentemente silenciosa trocava de opinião e decidia partir.
Ah, oxalá seus colegas da Califórnia a vissem agora. Até à avó B custaria acreditar que sua afetada neta não só fazia amizade com uma coruja… Mas também, além disso, falava com ela.
—Está em sua casa — Disse com ironia, enquanto observava como a coruja ia voando até o respaldo da cadeira de balanço que havia no extremo da cozinha.
Uma vez ali, Mary se voltou para olhá-la de frente, pregou as asas e lhe dirigiu uma piscada preguiçosa. Libby se perguntou se devia oferecer algo de comer a sua hóspede… Mas o que? Não tinha roedores.
Apoiou o pau na parede, debaixo do cabide, e correu a salvar as batatas da água que transbordava. Depois de uma inspeção viu que já estavam cosidas e olhou o relógio da parede. Faltavam vinte minutos para que chegassem seus convidados humanos.
Tirou o frango do forno e o examinou; parecia pronto e, certamente, cheirava estupendamente. Roubou um pouquinho do recheio, o meteu na boca, fechou os olhos e soltou um gemido. Caramba, sim que era boa cozinheira!
Agarrou as batatas e as levou a pia para lhes tirar a água, mas esteve a ponto de deixar cair a caçarola quando de repente Mary deu um agudo assobio. Imediatamente se ouviu a portada de uma caminhonete e depois passos no alpendre. Libby jogou uma olhada e viu que a porta da cozinha se abria ao tempo que Robbie MacBain entrava correndo com uma bolsa de papel marrom, que sustentava separada do corpo como se fosse uma bomba.
—Tenho que colocar este sorvete no congelador — Disse enquanto corria a geladeira — O pus no chão da caminhonete e se derreteu com a calefação.
Depois de colocar o sorvete no congelador agarrou um pano de uma prateleira.
—A caminhonete de papai está cheia de sorvete; se não o limpo, terei que voltar para casa andando — Explicou ao tempo que voltava a sair correndo.
Em seguida entrou um ancião vestido de cor laranja, igual a Robbie. Deixou a jaqueta e o chapéu no varal, inspirou fundo e sorriu.
—Bom, assim é como tem que cheirar o frango — Disse.
Aproximou-se de Libby e se deteve diante dela.
—Olá. Meu nome é John, e estou encantado de conhecê-la por fim, senhorita Hart. Isto é para você — Acrescentou lhe passando uma diminuta planta em um vaso de barro — Por salvar minhas papilas gustativas da autodestruição. É um galho das violetas africanas de Ellen.
—Ah, obrigado, John É preciosa! — Pôs a planta no batente da pia — E por favor, me chame Libby.
Robbie voltou a entrar como um furacão, jogou o trapo sujo no chão, tirou a jaqueta e o chapéu e os pendurou nos cabides mais baixos. Com os pegajosos dedos bem longe dele, foi à pia e os pôs debaixo do grifo.
Por último fez sua aparição Michael. Pôs uma caixa pequena de papelão no chão, junto à porta da cozinha, e afastou seu filho de um empurrãozinho para lavar também as pegajosas mãos.
Libby acreditou que sofria uma invasão. De repente sua tranquila cozinha estava cheia de gente.
—Mary! — Exclamou Robbie ao ver sua mascote pousada na cadeira de balanço.
Nesse momento Michael estava tirando uma garrafa de vinho do bolso, mas esteve a ponto de deixá-la cair ao chão quando se voltou para ouvir gritar a seu filho que Mary estava ali. Agarrou a garrafa como pôde e, pela ponta, conseguiu salvar a todos de outro pegajoso desastre.
Os quatro cravaram o olhar na coruja nevada que, a sua vez, olhou-os piscando, sem alterá-lo mais mínimo pelo alvoroço.
—Filho — Disse Michael — Não grite assim.
Depois de recuperar rapidamente a calma, olhou Libby e elevou uma sobrancelha.
—Se soubesse que seríamos cinco, teria trazido mais vinho.
Libby se limitou a encolher os ombros; nem louca se explicava o que estava fazendo uma ave selvagem em sua cozinha. Só Robbie parecia tomar-lhe como algo natural, porque inclusive o pobre John estava pego à parede e dava a impressão de que temia que a coruja fosse lançar-se na garganta. Libby supôs que era a primeira vez que via a Mary.
—Não tem nada, vôzinho — Assegurou Robbie — Mary é meu mascote. E de Libby também.
Voltou-se para lhe sorrir.
—Só veio fazer uma visita porque lhe contei que esta noite devíamos jantar aqui.
Então Libby se lembrou do pau e foi agarrá-lo.
—E olhe o que me trouxe — Disse mostrando-o para que todos o vissem.
Robbie se aproximou, mas, justo quando alargava a mão, Michael o tirou de Libby.
O segurou com o braço estendido e depois afastou o olhar do pau para olhá-la.
—Onde pegou isto? — Sussurrou.
Libby se perguntou por que se teria posto tão pálido.
—Trouxe-me isso Mary — Disse — Por que? É de uma madeira especial? De alguma árvore protegida ou algo assim?
—Não — Disse ele em voz baixa.
Deu a volta no pau e mediu seu peso. Depois olhou a coruja nevada com a cara tensa e os olhos entrecerrados em um gesto de receio.
—Diz que Mary lhe trouxe isso? — Perguntou olhando de novo Libby. Ela assentiu.
—Parece madeira de cerejeira — Interveio John.
Aproximou-se e tirou o pau de Michael; também deu a volta na mão e depois o levantou assinalando a Libby.
—Está cheio de nós — Passou os dedos pela madeira — Olhe, se os recortar e lhes dá lixa, descobrirá uma nervura em espiral que se obscurece até uma intensa vermelha cereja.
Com cuidado, Michael tirou o pau de John e depois olhou a seu redor como se tentasse decidir o que fazer com ele; tudo sem deixar de estar atento, por um lado, ao pau que tinha na mão e, por outro, a silenciosa coruja que cravava a vista neles. Por fim, e soltando algo que ao Libby pareceu um palavrão sussurrado, entrou no salão e se dirigiu para a lareira.
Mas ao chegar ao fogo se deteve e olhou as brilhantes chama.
—Não o queime, por favor — Suplicou Libby em voz baixa da porta do salão—. Não sei por que te incomoda, mas sentiria ver destruída essa preciosa madeira.
—Não o queime, papai — Acrescentou Robbie de trás dela — É um presente da Mary para Libby.
Michael continuou olhando o fogo com o pau agarrado como se fosse uma clava, tão forte que tinha os nódulos brancos. Libby se surpreendeu e conteve o fôlego. Por que gostava tão pouco esse presente da Mary?
Por que não dizia nada?
Começou a respirar outra vez quando Michael deixou o pau no suporte da lareira e se voltou a olhá-la.
—O jantar cheira bem — Disse com um tenso sorriso, sem desculpar-se e sem dar nenhuma explicação por seus atos.
Devagar, esfregou as mãos como sim celebrasse o jantar por antecipado, mas Libby se deu conta de que só tentava tirar a sensação do pau.
—E eu estou morto de fome — Disse Robbie ao tempo que dava a volta e corria para a mesa.
Sentou-se junto ao John e imediatamente alargou a mão para agarrar uma fatia de pão.
O ancião a tirou e voltou a pô-la em seu lugar.
—Tem que esperar a que todos estejamos sentados e benze a mesa — Disse em um sussurro — Ou se não, não comerá bolo de maçã.
Libby terminou de preparar o purê de batatas e o pôs em uma terrina grande enquanto Michael tirava o frango do forno e o colocava em uma travessa. Depois levaram a comida à mesa, onde Robbie e John esperavam com paciência. Produziu-se um momento embaraçoso quando os dois foram sentar se à cabeceira da mesa.
Imediatamente cada um cedeu a cadeira ao outro, mas só quando Libby se sentou frente a John e a Robbie, Michael acessou por fim a sentar-se à cabeceira. Ocupou-se de trinchar o frango, e enquanto isso Libby jogou uma olhada; viu que John sorria e que Robbie quase babava sobre seu prato vazio.
—Posso benzer a mesa enquanto papai trincha — Sugeriu o menino ao tempo que cruzava as mãos diante dele e inclinava a cabeça.
Libby e John fizeram o mesmo, mas Michael não deixou de trinchar; pelo visto, tinha as mesmas vontades de comer que seu filho.
—Obrigado, Deus, pela comida… — Começou Robbie — E além por ajudar a Libby a cozinhá-la estupendamente. Amém.
Voltou a pegar sua fatia de pão e lhe pôs um bom montão de manteiga.
O jantar foi quase tão rápido como a oração de Robbie. Michael, John e o menino comeram como se fosse acabar o mundo. Não houve muita conversa, e ao final tampouco ficou muita comida. O frango ficou reduzido a uma carapaça, o recheio tinha desaparecido, e Libby teve a impressão de que Robbie ia limpar a lambidas a terrina das batatas.
Justo quando ela ia pegar a última fatia de pão, ouviu um miado. Jogou uma olhada a Mary, que seguia pousada no respaldo da cadeira de balanço, mas a ave não estava fazendo o menor ruído. Entretanto, olhava com interesse a parede onde estava a roupa pendurada no cabide, junto à porta.
O miado se fez mais forte, e então Libby também ouviu que algo arranhava. Nesse momento decidiu que o ruído procedia da caixa que havia trazido Michael.
—O que há na caixa? — Perguntou.
Devagar, levantou-se e rodeou a mesa até que esta ficou entre ela e o ruído dos arranhões.
—Me tinham esquecido os gatinhos! — Disse Robbie.
Jogou atrás sua cadeira e correu para a caixa, mas Michael o apanhou quando passava por diante.
—Não, filho — Disse; o pôs no colo — Não os solte com sua mascote aqui.
Com os olhos muito abertos, Robbie olhou a Mary.
—Ah — Disse — Não tinha pensado nisso… Ao melhor toma pelo jantar.
Franziu o cenho de repente.
—Mas você me disse que a mamãe gosta dos gatos.
—E gosta; quer dizer, gostava. Mas sua mascote ao melhor os vê de modo diferente — Baixou o Robbie ao chão e o voltou para a Mary — Por que não vai ver se esta pronta para ir-se?
Com o cenho franzido e um olhar de preocupação que ia do Michael ao Robbie, John perguntou:
—Acredita, Michael, que é prudente que o menino toque essa coruja?
Robbie estendeu o braço, e a coruja subiu em cima.
—Não lhe fará mal — Assegurou Michael a John — Faz meses que são amigos.
Libby se aproximou da porta e a abriu para que o menino passasse.
—Adeus, Mary — Disse.
Alargou a mão e passou o dedo suavemente pela asa da coruja. Depois baixou a voz o suficiente para que Michael não a ouvisse.
—Obrigado pelo presente — Acrescentou — E volta a me visitar outra vez.
Encantado de que Libby falasse com sua mascote, Robbie saiu do alpendre e se internou na noite com a Mary, ao tempo que mantinha, a sua vez, uma conversa sussurrada com ela.
Quando Libby se deu a volta, encontrou Michael de cócoras diante da caixa, que agora fazia muito ruído; deviam ser um par de gatinhos que lhe tinha levado Robbie. Então afastou Michael, ajoelhou-se e abriu as tampas.
Três pares de olhos a olharam piscando.
Libby apanhou um dos gatinhos quando dava um salto para ela. Agarrou-o e o sustentou diante da cara.
—Nossa, olá! — Disse, sorrindo, aos enormes olhos verdes que lhe devolviam o olhar.
O gatinho soltou um miado de impaciência e se retorceu para que o soltassem. Libby o pôs no chão e tirou os outros dois, sustentando-os no alto para lhes dar uma boa olhada. Eram tão pequenos e tão inquietos que riu a gargalhadas e os deixou no chão junto ao outro.
Imediatamente, o primeiro gatinho começou a explorar seu novo lar; outro se sentou e ficou a olhar junto à caixa, e a última bolinha de pelos se escondeu sob uma tampa de papelão e pôs-se a tremer.
Michael agarrou o assustado gatinho e o embalou contra seu peito.
Libby lhe sorriu.
—O que vou fazer com três gatinhos? — Perguntou.
—É a ninhada inteira — Disse ele sem deixar de acariciar o pequeno, que ronronava com estrépito — Robbie não teve coragem para separá-los. Fizesse o que fizesse, um ficava sozinho, assim terá que cuidar dos três.
—Ele sabe qual é a fêmea — Disse John, que se aproximou de agarrar o gatinho tranquilo e observador — E tem uma lista de nomes de um quilômetro de tamanho, mas me disse que, como agora são seus, você deve escolher.
Libby se aproximou do jaquetão de Robbie, agarrou ao valente que estava tentando subir por ele e o embalou contra seu peito. Três. Era a orgulhosa mãe de três gatinhos muito bonitos.
O menino entrou de repente, esfregando as mãos para tirar o frio da noite.
—O que te parece, Libby? — Perguntou, tão sorridente como um pai orgulhoso — Tem que ficar com todos porque não se deve separar uma família.
Ela o tranquilizou.
—Fico com os três. — Esfregou o queixo contra a suave pelagem do gatinho—. Qual é a garota?
—Essa — Respondeu ele assinalando a Michael — O tio Ian diz que é a fraca da ninhada e que necessita atenção especial, pois tudo lhe dá medo.
—Por que não leva o que trouxemos na parte de atrás da caminhonete ao banheiro?— Sugeriu-lhe Michael.
—O que é? — Perguntou ela — Não será comida, não? Não vou lhes dar de comer no banheiro.
—É a gaveta da areia — Explicou ele.
Passou-lhe a gatinha, foi a bancada a pegar o bolo de maçã e a levou a mesa.
Aquele homem ainda tinha fome depois do jantar que acabava de comer…? Nesse momento John lhe passou também seu gatinho e foi com o Michael. Então Libby tombou a caixa e colocou os três gatinhos dentro. Imediatamente o mais intrépido voltou a sair como uma bala, mas a fêmea e o outro começaram a lamber um ao outro.
Com cuidado de não pisar no gatinho explorador, Libby limpou a mesa de pratos vazios e pôs outros limpos. Tirou o sorvete do congelador e o levou a pia antes de abrir a pegajosa bolsa; estava um pouco mole, mas ainda se podia comer. Passou-o a uma terrina e o levou a mesa, junto com colheres e garfos limpos.
Enquanto isso, Robbie entrou com duas bolsas e um grande balde, e desapareceu no banheiro.
Libby se sentou à mesa.
John se esfregou as mãos enquanto observava o bolo.
—Nossa, pôs casca de açúcar moreno e queijo cheddar… — Disse — E não regulou as maçãs…
Mais interessado em comer que em admirá-lo, Michael cortou o bolo em quatro partes e começou a servi-la. Libby quase entortou os olhos quando pôs um dos pratos diante. Esperava que comesse um quarto de bolo? Depois olhou enquanto quase meio litro de sorvete aterrissava em cima de sua parte. Não ia ganhar dois quilogramas e meio aquele inverno, ia ficar mais larga que alta.
O gatinho valente começou a subir pela perna das calças, e Libby alargou a mão, tirou-se as garras do joelho e o embalou no colo. Robbie chegou à mesa secando na camisa as mãos recém lavadas, sentou-se e lhe dedicou um amplo sorriso ao gatinho que aparecia pela mesa.
—Que nome vai pôr lhes? — Perguntou.
—Este será Problema — Disse ela.
—Não. Não será nenhum problema — Disse o menino em tom preocupado—. Só tem que vigiá-lo um pouco, nada mais.
Libby se apressou a tranquiliza-lo
—Não quero dizer que não o queira. É que vou chamá-lo de Problema. E à fêmea a chamarei Tímida.
Com surpreendente rapidez, Robbie entendeu por onde ia e sorriu com alívio.
—Então acredito que deveria chamar ao outro Guardião, porque sempre está cuidando de seus irmãos. E a verdade é que é o mais preparado dos três. Problema nem sempre presta atenção ao que acontece seu redor. Uma vez o tio Ian e eu tivemos que mover toda uma fileira de barras de feno para tirá-lo quando Guardião, que, por muitas vontades que tenha de explorar, sempre fica perto de sua irmã, avisou-nos do que acontecia.
Libby se deu conta de que Michael ficou quieto, com o garfo a metade de caminho para a boca, escutando o relato de Robbie. Tinha as feições tensas, e estava calado como um morto.
Então, sem afastar a atenção dele, disse a Robbie:
—Guardião, é? Pois assim é como o chamarei. Pôs a Problema no chão e o empurrou para seus irmãos.
—Como está o bolo, Michael? — Perguntou — Muito azedo?
—Como? Ah, não. Está perfeito — Disse ele, e se levou por fim o garfo à boca.
Libby baixou o olhar para seu próprio prato; era absolutamente impossível comer um bocado mais. Afastou-o e se levantou para limpar a mesa de tudo menos da sobremesa dos homens. Com gesto rápido, Michael se aproximou o prato que ela tinha afastado para que não o levasse.
—Se não vai comer — Disse — É que é uma pena que se desperdice.
Então dirigiu sua atenção a seu filho e lhe perguntou:
—Robbie, de onde tirou o nome de Guardião? Por que não Anjo, ou Guerreiro, ou algo parecido?
O menino revirou os olhos.
—A um gato macho não lhe chama Anjo, papai — Disse — E guardião não é quão mesmo “guerreiro”. Um guerreiro tem a responsabilidade de proteger, mas um guardião tem um dever mais alto. E o gatinho sabe, e isso o converte em guardião.
Libby ficou olhando-o fascinada. O menino parecia mais filósofo que seu pai.
Depois, enquanto levava a manteiga a geladeira, deu uma olhada a Michael. Brilhavam-lhe os olhos, mas tinha o punho bem fechado e a tez pálida, e de novo estava misteriosamente calado.
—Que espécie de dever? — Perguntou Michael por fim em voz baixa.
Libby viu que Robbie encolhia os ombros enquanto comia um bocado de bolo; depois de tragar disse:
—Não sei, papai. Só é uma coisa que compreendo, mas não sei explicar. —Lançou a seu pai um rápido olhar de preocupação — Mas ser guerreiro é bom também. E um ofício muito nobre.
—Sim — Concordou Michael; baixou o tom de voz — Muito nobre
—E se o chamamos Nobre — Sugeriu Libby — É um nome bonito.
—Não — Sussurrou Michael, ao tempo que afastava a vista de Robbie e a olhava — Chama-o do que é, Guardião.
Ela nunca tinha presenciado uma conversa tão rara; era como se só Robbie e Michael soubessem do que falavam. Por sua parte, John, que dava a impressão de ter assistido a muitos debates como aquele ao longo dos anos, seguia comendo tão contente seu bolo com sorvete.
Libby afastou a vista do intenso olhar do Michael e começou a encher de água quente a pia dos pratos sujos. Enquanto acrescentava sabão, escutou o silêncio quebrado só pelo tinido dos garfos nos pratos, e se deteve para pensar na imaginação de um menino de oito anos… E também na reação do Michael, quando tinha visto o pau que lhe tinha levado Mary como ao escutar o nome que Robbie tinha escolhido para um diminuto gatinho.
Decidiu que talvez tivesse chegado a um bom lugar ao mudar-se a Pene Creek, mas que também era um lugar raro. Um pouco desconcertante. Possivelmente sobrenatural.
Era como se estivesse em outra dimensão. Havia-se ficado amiga de uma coruja nevada que não deveria viver tão ao sul, tinha conhecido um ancião sacerdote que se acreditava um mago e afirmava ter quase mil e quinhentos anos de idade, tinha visto voltar para a vida umas flores murchas, e estava esforçando-se muitíssimo por não comprometer-se sentimentalmente com um homem filosófico e muito sexy cujos atos e crenças a faziam pensar que ele também tinha séculos de idade. E depois estava seu próprio dom… Sim, o certo é que encaixava ali perfeitamente.
Michael olhou seus dois pratos de sobremesa vazias e pensou no muito que fazia da última vez que tinha tomado uma comida tão saborosa.
Lástima que lhe tivesse sentado mal.
Jogou uma olhada ao salão, para o suporte da lareira onde estava o pau do drùidh. Sabia que era a outra metade do bastão perdido de Daar. O ancião levava cinco anos buscando-o, desde que saísse disparado da catarata quando Morgan MacKeage voou meia montanha Fraser.
Onde o tinha encontrado Mary? E por que diabos o tinha levado justamente a Libby?
—Vou levar o Robbie para casa, tá? — Sugeriu John nesse momento.
Levantou-se e esfregou a pança cheia enquanto se dirigia para a porta. Depois colocou o chapéu e o jaquetão, aproximou-se de Libby e lhe deu um beijo na bochecha.
—Foi um jantar estupendo — Disse com um sorriso de satisfação — Mas Robbie e eu não podemos ficar e ajudar com os pratos: temos que nos deitar cedo para estar bem bonitos e bem frescos manhã.
Voltou-se para a mesa.
—Você sim fica ajudando, não, Michael? Não se importa voltar para casa dando um passeio se Robbie e eu levarmos a caminhonete?
Ele concordou com um gesto e se dirigiu a seu filho.
—Robbie, por que não recolhe os gatinhos? Prepare uma cama na caixa e prenda-os no banheiro para que passem a noite. Depois vai para casa com o John e agasalham-se um ao outro.
Da pia, Libby se voltou tão rápido para olhar Michael que a espuma de suas mãos saiu voando pelo ar.
—Quer prende-los no banheiro? — Perguntou — Mas por quê?
—Nunca teve gatinhos, verdade? — Perguntou ele, ao tempo que se levantava para levar seus pratos vazios à pia — São gatos de campo, de hábitos noturnos. Terão-lhe acordada toda a noite, metendo-se em sabe Deus que confusões e te deixando “lembrancinhas” por todos lados até que aprendam onde está a caixa da areia.
—Ah… — Disse Libby; olhou Robbie e assentiu — Sim, vá prendê-los.
Então tirou duas terrinas do armário e os passou ao menino.
—Toma, para a comida e a água.
John começou a recolher gatinhos soltos enquanto o menino lhes preparava seu novo lar, e depois de encontrar a dois e colocá-los no banheiro, partiu a esquentar a caminhonete. Michael ficou a procurar o terceiro e demorou ao menos cinco minutos em dar com Problema; estava no salão, subindo pelo respaldo do sofá.
—Vamos, Problema — Disse com uma risadinha enquanto separava com os dedos ao jovem temerário do sofá.
Depois deu a volta ao gatinho até que estiveram olhando-se aos olhos.
—Temo-me que lhe puseram um nome muito adequado — Disse, e o levou o banheiro.
—Não tem que preocupar-se por me agasalhar, papai — Disse Robbie — Mary me disse que me seguirá até casa e que ficará aí até amanhã.
Michael, que estava pondo a Problema diante do prato de comida, elevou a vista e olhou aos olhos a seu filho.
—Mary te disse que vou ficar aqui toda a noite? — Disse com voz comovida. O menino assentiu.
—Sim. Gosta muitíssimo da Libby, papai, e acredita que deveria se apaixonar por ela.
Suavemente, Michael o agarrou pelos ombros.
—Já tivemos esta conversa, filho. Não quero que faça ilusões. Não posso amar a outra mulher, e sei que entende por que.
Robbie lhe passou a mão pela bochecha.
—Sim pode, se te cura o coração — Replicou — E Mary disse que Libby pode fazê-lo. É especial, papai.
—Mary?
—Não, Libby.
De repente Robbie franziu o cenho olhando à parede; era evidente que estava pensando.
—Como disse…? Ah, sim. — Olhou de novo a seu pai e sorriu — A providência. Disse que a providência enviou Libby.
Michael se sentou no chão, apoiado contra a parede, e esfregou a face com as mãos. Entravam-lhe vontades de devolver o bastão a Daar e lhe dizer que fizesse um feitiço para mandar a coruja de volta ao lugar de onde tinha vindo em meio de uma tormenta de plumas brancas. Maldição, não ia arriscar seu coração uma vez mais.
Robbie lhe deu uns tapinhas no ombro.
—Está tudo bem, papai. Sei que dá medo, mas você é a pessoa mais valente que viveu alguma vez. É um guerreiro, recorda? E os guerreiros não temem a nada.
Michael elevou o olhar e se encontrou com o amplo sorriso do menino, que, com palavras sábias, explicou-lhe:
—Então que uma mulher pequenina não pode te dar medo. E além disso Mary falou que Libby nos necessita; aos dois. Que não podemos zombar da providência quando vem de visita.
Michael o olhou com receio.
—Mary há dito “zombar”? — Perguntou.
O menino meneou a cabeça.
—Não, “zombar” o digo eu. Parece-me que ela disse “repreender” ou algo assim.
Michael não soube se abraçava Robbie ou se pô-lo de barriga para baixo sobre seus joelhos para lhe dar umas palmadas no traseiro.
—Filho — Disse com um grunhido — Está se colocando em assuntos que nos ultrapassam. Robbie assentiu com um gesto.
—Só tento te explicar, papai, que desperdiça o tempo tendo medo de Libby. Não me disse, quando enterramos à avó Ellen, que a vida ocorre, nós gostemos ou não?
O menino tinha oito anos e já estava acossando-o com suas próprias palavras… Depois de esfregar a face de novo, Michael se levantou e deu a volta para que ficasse de frente à cozinha. Mas antes que Robbie abrisse a porta do banheiro, inclinou-se e, em um sussurro, disse-lhe:
—A próxima vez que tenha oportunidade de falar com a Mary, lhe diga de minha parte que se meta em seus assuntos. Porque meu dever maior é te criar, e vou fazer sem que elas intrometam, sua tia Grace nem ninguém mais que tente dar seu parecer. Compreendeu, jovenzinho?
O menino se voltou e se lançou sobre o Michael, que o agarrou nos braços e o abraçou forte.
—Amo-te, papai — Disse, dando um tremulo suspiro — E meu dever é procurar que sorria outra vez.
Michael deu um trêmulo suspiro e afundou a face no ombro de seu filho.
—Já sorrio como um tolo cada vez que o olho… E além disso te amo mais que à vida.
Nesse momento Libby abriu um pouquinho a porta.
—Todo mundo está instalado por aqui? — Perguntou.
Michael se voltou e tampou Robbie para que não lhe visse as lágrimas.
—Todo mundo está instalado — Disse ao tempo que olhava a surpreendida e ruborizada face de Libby — Só estamos nos despedindo.
—Ah, sim, claro… — Gaguejou ela enquanto recuava e fechava a porta.
O menino se sentou nos braços de seu pai, limpou as lágrimas de um tapa e lhe mostrou um amplo sorriso.
—Como pode não querê-la, papai? É tão… Tão…
Michael terminou a frase por ele.
—Tão pequena?
O menino lhe agarrou a face entre as mãos e tentou, sem êxito, olhá-lo muito sério.
—Acredito que cresceu o cabelo um pouquinho. E parece estar ganhando peso; assim provavelmente terá curvas para a primavera.
Outra vez estavam no debate de duas noites… E Michael decidiu que se não podia desanimar ao menino, mais valia unir-se a ele.
—E a primavera seguinte provavelmente esteja tão gorda que a jogaremos rodando pelo TarStone abaixo como uma bola de neve — Acrescentou.
Robbie meneou a cabeça.
—Não, papai. Não estará gorda.
Michael soltou uma risadinha e o apertou.
—Filho, um homem não só procura beleza em uma mulher. O que importa é como é.
—Mamãe era preciosa.
—Sim, sim que o era. Mas não me apaixonei por ela por isso.
—Não?
—Não. Da Mary me apaixonou seu descaramento… — Disse Michael com um sorriso — E sua bondade, e sua fortaleza, e seu coração.
Fez um gesto afirmativo.
—Mas principalmente seu descaramento, que sinto dizer você herdou — Terminou.
Deixou-o no chão e lhe deu a volta para que olhasse à porta outra vez; depois, com suavidade, deu-lhe uma palmada no traseiro.
—John está ficando velho te esperando. Vá a casa, escove os dentes e deite. Estarei preparando o café da manhã quando despertar.
Robbie estremeceu visivelmente e disse: “Cereais…” Então abriu a porta e, enquanto por fim saía em direção à cozinha, acrescentou:
—E torradas… — Com ar ousado e passo arrogante se dirigiu a procura de seu jaquetão — Você é o campeão de torrar pão.
Michael foi arás e o ajudou a abotoá-la.
—Diga ao John que amontoe bem o fogo na estufa — Encarregou enquanto lhe punha o gorro — E não deixe que acrescente mais lenha; o farei quando chegar.
—Sim — Prometeu Robbie.
Depois se aproximou de Libby.
—Obrigado pelo delicioso jantar — Disse — É uma boa cozinheira.
—De nada. — Deu um abraço de despedida — Ah, e já terminei o trabalhinho que me encarregou.
Foi ao aparador, pegou a caixa e a deu. Depois lhe endireitou o pescoço do jaquetão e lhe dirigiu um meio sorriso.
—Espero que seja justo o que queria.
Robbie olhou a seu pai.
—Irá compensá-la, papai?
Michael assentiu e empurrou a seu filho para a porta.
—Sim que o farei. Vamos, adeus. Boa noite.
Por fim Robbie saiu ao alpendre, mas voltou a deter-se para olhar Libby.
—Estou te preparando uma surpresa para o Natal — Disse — E nem sequer papai sabe, assim não se incomode em tentar convencê-lo para que lhe diga isso.
Deu a volta sem esperar resposta e, com sua caixa secreta, dirigiu-se à caminhonete que o esperava. Michael ficou olhando até que os faróis traseiros desapareceram pelo caminho de entrada, e depois fechou com suavidade a porta e se voltou a olhar Libby.
Ela estava esfregando as mãos nas coxas e parecia como se levasse o peso do mundo sobre os ombros.
—Teve um par de dias ocupados — Disse ele enquanto se aproximava — Parece cansada, moça.
Ela começou a recuar.
—Eu gosto de estar ocupada. E além… Além disso não estou cansada.
Michael avançou ao compasso de sua retirada.
—Então, o que te faz se preocupar?
—Você — Disse ela; deteve-se o fim ao chegar à parede, com a expressão cautelosa de um cervo em seus grandes e espectadores olhos castanhos — O único que se preocupou esta noite foi você, primeiro pelo presente da Mary e depois pelo bate-papo do Robbie sobre os guardiões.
Sem tocá-la nem aproximar-se mais, Michael a cravou onde estava só com o olhar.
—Isso não me preocupa agora; agora o que me preocupa é você.
Passou as pontas dos dedos pela bochecha, depois se inclinou para frente e elevou o queixo para que recebesse seus lábios… Mas não a beijou. A só uns centímetros de sua boca, sussurrou:
—Você me preocupa muitíssimo, moça.
Ela se agachou sob seu braço e escapou até ficar ao outro lado da mesa.
—Temos que falar — Disse agarrando o respaldo de uma cadeira — De nós.
Michael se apoiou na parede, cruzou os braços e, em silêncio, observou com atenção seu rosto pálido.
—Esta manhã vieram a me fazer uma visita — Começou ela — O padre Daar apareceu por aqui em busca de café da manhã.
Michael procurou manter-se impassível.
—Não me surpreende — Disse — Esse ancião acostuma convidar ele sozinho a comer por toda Pene Creek. Provavelmente tenha jantado no Gu Bràth esta noite.
Por um momento Libby soltou a cadeira e se esfregou os braços com gesto nervoso.
—Tivemos uma conversa muito interessante.
—Ah, sim? Sobre o que? — Perguntou ele em tom familiar, embora já sabia que não ia gostar da resposta.
Ela tirou um miolo de pão que havia na mesa e sussurrou:
—Sobre a magia.
Elevou a vista para ele, e examinou seus olhos tentando medir sua reação.
De novo, Michael tentou não revelar sua inquietação.
—Espero que não tenha tomado muito a sério o que dissesse. Daar é muito velho e propenso a ter ideias absurdas.
Sua atitude despreocupada pareceu acalmar Libby o bastante para afrouxar seu puxão da cadeira.
—Você tocou em sua bengala alguma vez? — Perguntou.
—Sim, muitas vezes — Disse ele encolhendo os ombros — É tão fino que é um milagre que não se parta pela metade.
—Alguma vez o viu… Fazer algo com sua bengala?
Ele se endireitou, separou-se da parede e se dirigiu para a mesa, mas mantendo-a entre eles.
—Aonde quer chegar, Libby? O que ocorreu esta manhã?
—Acredita que a mascote de Robbie é de verdade sua mãe?
Michael fechou os olhos e beliscou o cavalete do nariz. Depois decidiu que aquela conversa tinha terminado.
—Não — Disse em voz baixa.
Rodeou a mesa, pegou Libby nos braços e antes que ela adivinhasse sua intenção a levou ao salão. Uma vez ali, sentou-se no sofá e a abraçou forte em seu colo.
Ela começou a brincar com um dos botões de sua camisa; em seus preocupados olhos se refletia a luz do fogo da lareira. Michael a deteve com uma mão e esperou que elevasse a vista.
—É médica, Libby, uma mulher da ciência que necessita que as coisas tenham lógica — Disse com voz suave — E a mascote de Robbie não encaixa em seu conceito de realidade. Mas é que tem que pôr em dúvida tudo o que te rodeia? Não pode, simplesmente, aceitar algumas coisas com fé?
Ela franziu o cenho.
—Isso é o que me disse o padre Daar — Reconheceu — E ainda estou tentando decidir se sou capaz de fazê-lo ou não. Mas não é isso o que me preocupa esta noite.
—Ah, não? — Perguntou ele, surpreso — Então, o que?
—Nós. Não me parece que seja boa ideia que… Bom, que estejamos juntos.
Michael obrigou a suas mãos a não apertar-se em torno dela.
—E isso por quê?
Libby começou a brincar com um botão outra vez enquanto o observava com grande atenção, e em um sussurro tão baixinho que ele apenas a ouviu, disse:
—Não quero me comprometer sentimentalmente com você — Por fim levantou a vista — Não… Podemos estar juntos. Não sei se vou te necessitar só durante um pouco de tempo.
—Sim. A necessidade chega a converter-se em um hábito.
—E não penso te fazer isso, Michael. Nem a mim tampouco. Não quero me agarrar a você, nem que você sinta… Que sou uma carga. De modo que decidi que não deveríamos estar juntos.
Dito isto, voltou a olhar ao peito dele.
Michael se perguntou o que teria acontecido aquela manhã entre Libby e Daar… E que diabos tinha acontecido com a aventura amorosa dos dois?
Elevou-lhe o queixo e sorriu. Então apertou a mão com que a tinha agarrada pela coxa.
—Nunca achei muita graça que ninguém tome decisões por mim— Disse; subiu um dedo o queixo de Libby aos lábios para lhe impedir de falar — Por muito nobre que essa pessoa esteja tentando ser, moça. Me deixe decidir.
Nesse instante resolveu que aquela conversa também se acabou. Deu a volta a Libby em seu colo para que ficasse sentada escarranchado sobre ele, atraiu-a contra seu peito e a beijou.
Não ia deixar que aquela mulher mudasse de opinião. Desejava-a e sabia de sobra que ela o desejava também. E a visita de um padre louco não ia separá-los.
Libby fez um som parecido a um miado, não muito diferente ao de sua tímida gatinha, e o coração de Michael lhe golpeou o peito. Ela era muito frágil; tão pequena, tão preciosa… E tão de verdade.
Libby lhe empurrou os ombros em um desesperado gesto de rejeição diante seu beijo. Mas ele sentiu que suas coxas lhe apertavam os quadris quando a atraiu mais intimamente contra si; alegrou-se ao sentir como seus seios empurravam o coração, saboreou a doçura de sua paixão, a ponto de explodir justo debaixo da superfície… E quis arrancar toda a roupa que tinham postas os dois e fazer amor ali mesmo, no sofá.
Desfez o beijo e começou a desabotoar a blusa. Ela o deteve.
—Não… Não — Sussurrou com voz tremula — Não podemos, Michael.
Ele vacilou; de repente se sentiu inseguro.
Movia o desejo ou era algo mais?
Ela estava igualmente acesa. Tinha a respiração entrecortada, as bochechas vermelhas de rubor e as mãos, que as tinha postas nos ombros, tremiam de paixão mal controlada.
—Vai acontecer, Libby — Disse despojando sua voz de todo rastro de urgência — Se não esta noite, amanhã ou no dia seguinte. Nossos caminhos se cruzaram, e o que acontece nós não podemos ignorar. Não desaparecerá, moça; só se fará mais forte.
Tomou a face entre suas mãos pequenas e delicadas; seus olhos lhe examinaram os seus, com todo o corpo tenso… E então sorriu, inclinou-se para frente e o beijou… Muito docemente.
Ele deixou de respirar e, de novo, elevou as mãos para os botões de sua blusa.
E, de novo, ela o deteve.
—Aqui não — Sussurrou.
Ele começou a respirar outra vez. Não era que não… Só era que ali não. De acordo, decidiu; e antes que trocasse de opinião, levantou-se com ela nos braços. Aquela mulher queria uma cama… Pois buscaria uma.
Levou-a pela cozinha com uma urgência que se comparava as mãos dela que se agarrava a seus ombros e a boca que explorava a mandíbula. Com um olho posto no caminho para não se chocar com a mesa, Michael lhe capturou os lábios e voltou a beijá-la. Ao entrar no quarto, faltou-lhe pouco para correr para a cama; pô-la em cima, tombou pela metade sobre Libby e, de novo, começou a lhe desabotoar a blusa.
E, de novo, ela o deteve.
—Maldição — Resmungou ele — E agora o que acontece?
—Aqui não — Sussurrou ela — Na cama da Mary não.
Ele se tornou para trás com gesto de incredulidade.
—Maldição, mulher, esta é a casa da Mary.
—A… aqui não, Michael — Repetiu ela.
Empurrou-o, enquanto seus enormes olhos castanhos se empanavam de emoção.
—Por favor — Suplicou — Vamos para outro lugar.
Michael soltou um suspiro de frustração, elevou a vista e o deu uma olhada assassino a cabeceira da cama. Maldição… Não havia outro lugar! Fora da casa estava abaixo de zero, sua própria casa estava ocupada e não ia fazer amor no celeiro… Ficou de lado e tampou a face com um braço enquanto soltava outro suspiro, este de resignação. De repente sentiu que o colchão se afundava e elevou o braço o suficiente para ver o Libby de pé junto à cama, abraçando-se.
Então rodou até descer da cama, recolheu o edredom e dois travesseiros, pegou-a pela mão e saiu do quarto dando passos longos. Libby o seguiu em silêncio enquanto a conduzia à garagem, metia-a na parte de atrás da caminhonete e jogava o edredom e os travesseiros. Depois abriu a porta traseira, tirou o terceiro assento e o pôs no chão, deu a volta até a lateral da caminhonete e pregou os assentos traseiros.
Depois de voltar junto a Libby, deteve-se só o justo para beijar sua boca aberta e jogou os travesseiros na parte traseira da caminhonete. Estendeu o edredom para lhes fazer uma cama, voltou-se, pegou nos braços e a colocou dentro, em cima do edredom.
E depois ele subiu, fechou as portas e alargou as mãos para os botões de sua blusa.
Libby piscou para acomodar a vista à escuridão da garagem. A caminhonete? Iam fazer amor na parte de trás da caminhonete?
Bom, tinha conseguido o que pedia: certamente, Mary não estava ali dentro… Então riu e se lançou sobre Michael procurando os botões de sua camisa. Despiram-se mutuamente com movimentos mais frenéticos que compassados, e a urgência de Libby cresceu à medida que iam surgindo à vista novas parte do corpo e ficavam ao descoberto interessantes parcela de pele.
Michael tinha razão: não tinha direito de decidir por ele. Ela o tinha advertido, e agora, simplesmente, os dois teriam que assumir as consequências. Não se agarraria a ele quando aquela aventura chegasse a seu fim… Algo que ocorreria com o tempo. E se, como havia dito o ancião sacerdote, isso a aniquilava… Não poderia culpar a ninguém mais que a si mesma.
Que liberação entregar-se à paixão por fim! Passou as mãos pelo corpo de Michael e gozou da textura e a firmeza de sua pele; não necessitou a luz para que seus dedos lhe dessem uma ideia mental de sua estatuária beleza.
Quando as calças se entupiram nos tornozelos, Michael ficou a lhe tirar os sapatos enquanto fazia ferver o ar com pitorescos palavrões. Em suas pressas se golpeou o joelho com o oco do para-lama e a cacetada fez mover a caminhonete; Libby o sentiu e depois riu em voz alta quando, ao girar, Michael se deu com a cabeça no teto.
—Maldição, mulher…! — Disse ele em tom crispado, enquanto tentava tirar as botas — Se não deixar de rir, farei que se arrependa.
Libby fechou a boca de repente, mas não por sua ameaça, mas sim porque a vista já tinha acomodado à escuridão… E Michael a deixava sem respiração.
Havia visto muitos corpos nus em seu trabalho, alguns deles formosos, atléticos e excelentes exemplares da espécie humana. Mas Michael era… Era esplêndido: um conjunto de ossos esculpidos à perfeição e músculos proporcionados com o fim de obter a máxima força e mobilidade. Agora entendia por que o padre Daar o tinha chamado “guerreiro”.
Diminuía a parte de trás da grande e tenebrosa caminhonete, e a Libby secou a boca quando se voltou para tomá-la entre seus braços de novo. Irradiava suficiente calor para empanar os vidros; estava tão cheio de vigor e era tão gigantesco que se sentiu afligida.
Mas aquela sensação só durou até que sua boca começou a lhe fazer maravilhas na clavícula e suas mãos se apresentaram às partes mais sensíveis de seu corpo. Então decidiu que já era hora de fazer o mesmo. Baixou os dedos pelo ondulado torso do Michael e depois os passou devagar, muito devagar, sobre seus quadris ao tempo que se dirigia lentamente para seu… Seu…
Michael se tornou para trás, um grunhido brotou de sua garganta assim que ela o tocou e ele apanhou as mãos justo quando se fechavam em torno de sua ereção. Depois de um breve e agridoce tira e afrouxa, ele conseguiu segurá-la e o deu uma olhada feroz a seus sorridentes olhos.
—Quando por fim toma uma decisão, vá com calma — Sussurrou baixando os lábios sobre os seus — Não corra tanto, moça; temos toda a noite.
—Você não vai ser o único em tocar — Se queixou ela.
—Já terá ocasião — Prometeu ele.
Então baixou deslizando-se por seu corpo e passou a língua no umbigo.
Retorcendo-se, Libby se incorporou, agarrou-lhe punhados do cabelo e orientou a boca na viagem por seu estômago. Michael não soube se grunhia ou soltava uma gargalhada; mostrava-se muito sincera quanto a seus gostos e estava desejando dirigi-lo até cada ponto sensível.
Enquanto lhe beijava um diminuto sinal que tinha justo em cima do quadril, seu gemidinho de prazer lhe indicou que a deixava louca. Elevou o olhar e viu que tinha jogado atrás a cabeça contra o travesseiro, com os olhos fechados e o corpo ruborizado de paixão.
—Ai, santo Deus! Não pare! — Gritou Libby com voz rouca, tentando lhe empurrar a cabeça para baixo outra vez.
Michael não pensava deter-se, mas sim que trocou seu centro de interesse: voltou a subir a beijos pelo estômago até chegar a seus firmes e delicados seios.
Ela o agarrou mais forte pelo cabelo; seu corpo se esticou, impaciente, e então ele começou um lento e terno assalto a seus seios, descrevendo sensuais círculos com a língua em torno de cada sensível mamilo. Ela gemeu e arqueou as costas; depois lhe rodeou as coxas com as pernas e elevou os quadris até ficar centrada diretamente sob seu membro.
Abraçando-a, Michael ficou de barriga para cima e, em tom crispado, disse:
—Ainda não.
Dirigiu a boca de Libby para a sua, ao tempo que detinha o movimento de seus quadris para impedir que se encaixasse em sua ereção.
—Toda a noite, recorda? — Sussurrou.
Perdida em uma névoa de paixão, ela se incorporou piscando.
—Agora sua vez — Disse ele, enquanto se perguntava se não teria perdido o julgamento — Mãos e lábios nada mais.
Teve que lhe capturar as impaciente mãos, porque ela começou antes que ele acabasse de dar as instruções.
—Não estamos usando anticoncepcionais, Libby. Bruscamente, ela se tornou atrás, alarmada. — Em teoria, você devia se encarregar disso. — E o tenho feito; tenho-o no bolso — A tranquilizou Michael.
Depois dobrou os braços sob a cabeça, apertou os dentes e rezou para poder contar com um pouco de paciência e uma boa dose de autocontrole.
Libby não soube o que pensar em relação à indicação que lhe tinha dado, mas sabia de sobra o que fazer. Começou pelo umbigo e depois foi subindo as mãos, por todo ele até deslizar os dedos por entre o sedoso pelo que lhe cobria o peito. Fascinou-a ver como seus músculos se estremeciam sob sua carícia, como seus mamilos se endureciam quando passava com suavidade os dedos por cima, como lhe brotava o suor no pescoço e nos ombros, como se esticava e grunhia como se sentisse dor.
Mas ela sabia que não estava lhe fazendo mal; em realidade, sabia que estava enlouquecendo-o… E isso adorava: como sua simples carícia convertia em um farrapo tremulo a semelhante montanha de homem.
Experimentou uma sensação de poder. De repente, ao recordar que ele havia dito só lábios e mãos, substituiu os dedos pela boca e, arremedando o que lhe havia feito antes, passou a língua pelos mamilos. Satisfeita por ouvir seu grunhido, foi em busca de outra aproximação interessante.
—Vá com calma, não vá acabar com isto já — Advertiu ele; sua voz soou gutural e tensa.
Ela sorriu, rodeou-lhe os quadris com os dedos e, fazendo caso omisso de sua sugestão, deu-lhe um beijo tremendamente íntimo.
Michael se incorporou dando um grito, agarrou-a pelos ombros e a afastou antes de fazer um papelão. O de dar a aquela mulher tanta carta branca com seu corpo não tinha sido uma de suas ideias mais brilhantes.
—Procura minhas calças — Disse com esforço — Agora mesmo.
Não pôde evitar sorrir quando Libby agarrou as calças a toda pressa. Seu amplo sorriso se alargou mais por ouvi-la resmungar um impaciente palavrão enquanto rebuscava nos bolsos, até que por fim tirou um pacotinho prateado, olhou-o fixamente e depois se voltou e cravou a vista no Michael… Ou, mais concretamente, no que acabava de beijar.
Titubeou e de repente deu a impressão de estar um pouco preocupada. Ele tirou o pacote, abriu-o com os dentes e o pôs no chão; Depois voltou a tomá-la nos seus braços e fez estragos em sua boca com um beijo. Ela se derreteu contra ele, abraçou-o com paixão e lhe devolveu o beijo, abrindo seus doces lábios para deixá-lo entrar.
Ele fez amor a seus sentidos. As mãos vagaram por seu corpo e brincaram com os cachos de seu sexo. Acariciou-a intimamente, sussurrou-lhe palavras de espera na orelha e, devagar, colocou-a de barriga para cima até colocá-la debaixo dele. Colocou o preservativo sem deixar de beijá-la e depois baixou até ficar entre suas coxas.
—Libby — Rogou com voz emocionada — Abre os olhos e me olhe, moça, para que veja que compreenda o que está acontecendo entre nós.
Ela o olhou, e Michael viu o vivo fogo da paixão que ardia em seus formosos olhos castanhos.
—Diga Libby. Diga que me deseja.
As mãos dela se apertaram sobre seus braços quando se moveu contra ele procurando seu contato íntimo.
—Diga, moça!— Disse ele com esforço, agarrando-se ao muito fino fio que dominava seu controle—. me Diga.
—Sim — Gemeu ela ao tempo que elevava os quadris e se arqueava contra ele—. Sim, Michael. Desejo-te.
Satisfeito, introduziu-se nela devagar e com cuidado, consciente de sua delicadeza e sem deixar de lhe observar a face se por acaso via alguma sinal de dor.
Ela abriu muito os olhos e lhe fincou as unhas nos braços. E embora não estava seguro, lhe pareceu que, além disso, estava contendo a respiração. Assim baixou a mão entre os dois e com suavidade voltou a inflamar sua paixão com carícias.
Libby relaxou e se abriu, e por fim ele se deslizou inteiro em seu interior. Ao Michael pareceu que acabava de entrar no céu ao sentir a calidez que lhe dava as bom-vindas à profundidade de sua entrada. Mal pôde ficar quieto.
Graças a Deus, ela se moveu primeiro: rodeou-lhe forte a cintura com as pernas e elevou os quadris. Michael não necessitava mais estímulo. Tomou a face com as mãos, beijou-lhe os lábios e devagar marcou um ritmo suave que a fez gemer em sua boca.
Queria que aquilo durasse para sempre. Queria que Libby sentisse tão intensamente como ele a força da paixão que havia entre eles. Queria-a excitada e tão descontrolada como ele.
Pelo menos, Libby estava excitada. Estava tão concentrada em senti-lo fundo tão dentro de si que apenas se recordava de respirar. Fazer amor com Michael era uma experiência incrivelmente erótica.
Embora não estava muito satisfeita; Michael se movia muito devagar, ia com muita cautela. E ela não era um pulso de porcelana… Queria que soltasse seu maldito controle.
Então passou as unhas pelos ombros, fincou os calcanhares nas costas, afundou a face em seu peito e lhe lambeu um mamilo. Ele deu um grito rouco e investiu contra ela, e sua investida fez que Libby sentisse foguetes voando por todo o corpo.
—Sim! — Sussurrou com um grito de ânimo.
Arqueou as costas, com o que ele se retirou um pouco, e depois elevou os quadris.
Ele aprendeu depressa; entrou bem nela, depois se retirou e logo voltou a entrar fundo, com um ritmo que fez que os hormônios de Libby enlouquecessem. Um intenso prazer despertou cada um de seus sentidos ao notar o fôlego dele em sua orelha, seu corpo movendo-se contra o seu, seu persistente sabor nos lábios, e suas mãos… Suas grandes, fortes e calejadas mãos que dirigiam os corpos dos dois.
Sentiu que a caminhonete se balançava com a força de suas investidas, e, por alguma estranha razão, isso a levou até o limite de seu controle. Agarrou-se ao Michael, lançou um grito e chegou a um clímax tão intenso que acreditou que ao melhor se incendiava. E justo quando acreditava que aquilo se acabou, ele elevou o torso, grunhiu do mais profundo de sua garganta e ficou quieto. Pulsou dentro dela, e a força de seu clímax foi algo mágico de ver. Ela pôs as palmas das mãos no peito e sentiu que o coração lhe golpeava as costelas… E nesse momento seu próprio coração deu um tombo ao dar-se conta de que aquela noite tinha começado algo mais que uma simples aventura amorosa.
Algo muitíssimo maior.
Michael estava comovido até mesmos os dedos de seus pés descalços. Sem sair dela, baixou devagar e se apoiou nos cotovelos, resistente a que acabasse aquele instante. Afastou-lhe o úmido cabelo da face e lhe beijou a testa; por último, voltou-se de lado e a acomodou bem contra ele.
Maldição, então era verdade…! Às vezes as coisas maravilhosas vinham em pacotes pequenos.
Elevou a cabeça e viu Libby com os olhos fechados, a cabeça apoiada em seu peito e uma mão lhe agarrando o pescoço em atitude possessiva.
Então se acomodou nos travesseiros, subiu o edredom pelas costas e a pegou bem contra ele. Pensou nos outros três pacotes de papel prateado que estavam no bolso de suas calças e voltou a sorrir. Perguntou se Libby teria reparado neles enquanto procurava o primeiro, e se talvez calculava que valia mais descansar um pouco agora, enquanto podia.
Agora que o pensava, ele também se sentia um pouco esgotado. Cravou o olhar no teto e seu sorriso desapareceu. Na condenada caminhonete… Não podia acreditar que tivesse metido Libby na garagem, naquela condenada caminhonete, para fazer amor com ela. Era quase tão romântico como um alce no cio metido no pântano de um castor.
Não era de estranhar que ela não tivesse nada que dizer.
Michael não estava ali; Libby soube porque tinha frio. Escorria-lhe o nariz, tinha os pés como dois blocos de gelo e, em sua tentativa por manter-se abrigada, envolto-se tão forte no edredom que até lhe doía o corpo.
Foi-se. Aquele imbecil pouco romântico e insensível se largou às escondidas de madrugada, sem despedir-se sequer.
Tampouco lhe tinha dado os obrigado.
Como um homem que sabia tanto sobre o corpo de uma mulher para levá-la em uma incrível viagem de ida e volta ao céu, ignorava que era ficar a seu lado o tempo suficiente para lhe dizer que tinha desfrutado da excursão tanto como ela?
Não se consideravam apaixonadas as aventuras amorosas precisamente por seu romantismo? Não as aceitavam as mulheres justo por isso?
subiu o edredom pela face para tampar o gelado nariz e gemeu ao sentir dores em lugares que tinha esquecido que existiam.
Maldição. O que esperava de alguém que dizia de si mesmo que era um salto atrás? Flores? Música e velas? Uma nota sobre o travesseiro…? Libby apartou o edredom e olhou a sua direita, meio esperando ver uma nota no travesseiro que tinha ao lado.
Nada. Só o frio rastro do lugar onde tinha estado a cabeça de Michael.
Levantou e olhou pela caminhonete em sombras. Em comparação com outros ninhos de amor, e dadas as possibilidades disponíveis, ainda podia ter sido pior: podia ter despertado no celeiro, pensou, ao tempo que dava um suspiro de autocompaixão.
Afrouxou o casulo do edredom e engatinhou até a porta da caminhonete. Depois a abriu, saiu recuando e estremeceu quando seus pés descalços pisaram no chão de cimento da garagem. Ao arrastar o edredom consigo, algo caiu aos pés. Olhou para baixo, recolheu o pacote e cravou a vista nele com gesto de incredulidade; quando, ao olhar o chão enrugado da caminhonete, viu dois pacotes mais, sua incredulidade se converteu em espanto.
Quatro? Michael levava em cima quatro preservativos a noite anterior?
Imediatamente cada centímetro de seu corpo (inclusive os dedos dos pés) esquentou-se de indignação. Aquele homem se sentou a sua mesa para jantar com quatro camisinhas metidas no bolso, para fortalecer-se com vistas a uma maratona noite de sexo!
Nossa, não era de estranhar que se partiu. Depois de fazer o amor, ela se tinha deixado cair como um bêbado e ficou adormecida antes de acabar sequer de bocejar. Para falar a verdade, nem lhe ocorreu que ele queria fazê-lo outra vez. Por sua experiência com os homens, depois do sexo eles lhe abraçavam uns minutos e depois se levantavam e iam a sua casa… Embora não enquanto uma estava inconsciente, e só depois de te dar um doce beijo de despedida e dizer “obrigado”.
Libby deu meia volta e entrou na casa com passo resolvido. Dando fortes pisões, foi até a lata do lixo, levantou a tampa e deixou cair os três pacotes dentro.
—Vai! Toma, dom Macho Michael MacBain! — Disse entre dentes enquanto se dirigia ao banheiro.
Teria que ir procurá-la de joelhos se queria vê-la outra vez… E mais lhe valeria levar flores em uma mão e bombons na outra!
Abriu a porta do banheiro, mas imediatamente recuou com um grito de surpresa para evitar pisar no Problema.
Esqueceu-se dos gatinhos.
Os três passaram correndo por diante e saíram pela porta, e Libby soltou um suspiro de resignação enquanto os via entrar galopando na cozinha. Teria que assegurar-se de que sabiam onde estava a caixa da areia.
Foi à ducha, abriu-a e deixou cair o edredom a seus pés. Depois se meteu sob a cálida orvalhada de água e deixou que caísse em cascata sobre seu corpo, decidida a tirar todas as ideias relacionadas com o Michael.
Mas, pouco a pouco, enquanto se ensaboava e o calor voltava a filtrar-se por seus ossos, recordou suas mãos fortes e sensuais acariciando-a. Recordou ter despertado uma ou duas vezes durante a noite e encontrar-se pega a seu quente corpo, apanhada em seu possessivo abraço. E recordou sentir-se a salvo, segura e sujeita a um pouco mais firme que a montanha TarStone.
Antes que se secasse, seu aborrecimento se aplacou. Envolta só em uma toalha, voltou a entrar na cozinha e abriu a lata do lixo. Tirou os preservativos, levou-os para o quarto e os pôs na mesinha de noite, junto à cama.
Maldição. Concederia a Michael uma oportunidade mais para fazer que aquela aventura funcionasse. E se não começasse a estar à altura do que esperava dele… Ao melhor fazia uma visita ao padre Daar e pedia a aquele velho louco que o convertesse em rã.
Para quando deram nove e meia daquela manhã, Libby tinha aberto quase todas as caixas que enviou a si mesma por correio, e seu estúdio de joalheria começava a organizar-se. Agora, sentada e com os pés apoiados na mesa de escritório que já havia na loja, expor-se como queria expor sua produção.
Também ia pela metade do segundo donut polido, quente, enjoativo e absolutamente auto compassivo, que tinha comprado na padaria do lado. Se não tomasse cuidado, os donuts e o chocolate quente iam transformar-se em um hábito muito mau.
Necessitava prateleiras, decidiu, enquanto se lambia os pegajosos dedos e agarrava o chocolate. Possivelmente umas quantas vitrines de frontal transparente para pendurar na parede e, além disso, um mostrador de vidro e carvalho como o que tinham os Doam na loja. Mas em vez de facas, balas e miras de rifle, no seu haveria pássaros, bolotas e mamíferos do bosque feitos de vidro, assim como contas de vivas cores.
E colimbos[6]. Tinha que trabalhar no desenho de um bonito brinco com um colimbo, porque essas aves aquáticas pareciam contar com muitas simpatias ali no nordeste. No dia anterior, na loja dos Doam, tinha-as visto adornando camisetas, chapéus e quadros. E além disso havia quase tantas esculturas em madeira de colimbos como de alces.
Provavelmente devia desenhar um alce também. Mas não como brincos; possivelmente uma pequena figurinha que adornasse uma caixa de madeira ou algo assim.
Haveria algum carpinteiro em Pene Creek com quem associar-se? Talvez houvesse mais artesãos (e artesãs, claro) aos que lhes viria bem um ponto de venda para sua obra. Formaria uma espécie de cooperativa, e dessa forma o estúdio abriria mais horas porque todo mundo se alternaria para atender o mostrador.
Libby deixou cair os pés ao chão, agarrou a caneta e começou a fazer uma lista das possibilidades. Em seguida sentiu que lhe subia a moral. Não tinha estado tão animada desde que tomou um bisturi na mão pela primeira vez.
Mas nem sequer aquilo foi tão emocionante. O bisturi só era um passo mais de quão muitos tinha dado para converter-se em cirurgiã, mas montar um estúdio de artesanato era algo absolutamente diferente. A avó B levava razão: o que sua alma desejava era empreender uma carreira nova e criativa. Já não havia normas nem estritos procedimentos que cumprir, e certamente, tampouco havia ninguém olhando por cima de seu ombro e lhe dizendo o que podia fazer e o que não.
E isso era uma revelação muito liberadora.
Embora tivesse trinta e um anos e era uma pessoa inteligente, assombrava-lhe ter demorado tanto em dar-se conta de que antes não era feliz. Estava satisfeita como cirurgiã, já que devolver suas vidas às pessoas era algo muito gratificante, mas com os anos mais de uma vez se surpreendeu tendo saudades algo mais, procurando em segredo algo que faltava em sua vida.
Sua risada ressoou nas paredes do estúdio vazio. Apesar de suas ilusões de cirurgiã, em realidade nunca tinha controlado nada. A ordem médica estabelecida lhe impunha todos seus movimentos, e não só a medicina, mas também quem, em teoria, amavam-na. Quem, em teoria, queriam o melhor para ela.
Bom, pois agora era ela a que fazia o melhor para ela. E estava extremamente orgulhosa de si mesma.
Alguém bateu na porta, e quando elevou a vista, Libby viu Grace MacKeage examinando com as mãos cavadas na vitrine, ao tempo que uma menina pequena fazia o próprio à altura de seu joelho. Com um sorriso de bem-vinda, fez-lhes gestos para que entrassem enquanto se levantava para receber a suas primeiras clientes.
—Bem-vindas ao Estúdio de vidro Bosques do Norte! — Disse; deteve-se diante delas e se inclinou para a encantada e tímida menina que se agarrava à perna de sua mãe — E a quem temos aqui?
—Apresento a Elizabeth — Disse Grace, tirando a pequena o polegar da boca—. Elizabeth, esta é Libby. As duas têm o mesmo nome, mas ela prefere que a chamem Libby. Diga olá.
Em vez de falar, Elizabeth voltou a meter o polegar entre os dentes e escondeu a cara na avultada barriga de Grace.
Esta suspirou enquanto se endireitava e sorria a Libby.
—Ainda estamos no de conhecer pessoas. Assim se chama Estúdio de vidro Bosques do Norte?
Libby deu de ombros.
—Só é uma prova. O que te parece?
—Soa bem — Concordou Grace.
Jogou uma olhada às paredes vazias e abriu muito os olhos quando seu olhar se posou no maçarico que havia no banco de trabalho.
—colocou o equipamento aqui mesmo, na parte dianteira? — Perguntou ao tempo que se aproximava; a pequena Elizabeth foi com ela arrastando os pés — Imaginava que trabalharia fora, aí atrás, e que a parte de diante a encheria de prateleiras.
Libby a seguiu.
—Pensei que às pessoas gostaria de ver como trabalho — Explicou — Desse modo se me encarregarem algo especial, veem-me fazê-lo.
Grace a olhou; seus olhos azuis estavam cheios de interesse.
—Aceitará encomendas?
—Claro… Ou ao menos o tentarei — Esclareceu Libby — Trabalhar com vidro é difícil, e as peças nem sempre saem tão bem como se espera.
Grace assinalou com uma inclinação de cabeça o pingente azul de vidro que levava no pescoço.
—Só faz joias? — Perguntou.
Libby tirou o colar da ave, inclinou-se e o pôs pela cabeça de Elizabeth, cortando o cordão com destreza para que ficasse sobre o jaquetão.
—Faço também figurinhas de adorno — Explicou — só que não muito grandes. Tenho que montar o vidro por capas, e chega um momento em que é difícil de dirigir ou se esfria de forma desigual e então, simplesmente, faz-se pedacinhos.
Grace baixou a vista para sua filha, que estava ocupada admirando seu novo colar, e depois voltou o olhar a Libby.
—Acredita que poderia fazer uma espada? Não seria muito grande — Disse; separou os dedos indicadores uns vinte e cinco centímetros — E estaria envolta em um tecido de quadros escoceses. O vidro pode ser de várias cores?
Libby franziu o cenho, tentando imaginar o que Grace tinha na cabeça.
—Bom, o leque de cores não é muito ampla, mas eu os fundo juntos e cria uma gama bastante interessante.
—Se te fizer um desenho do que quero, estaria disposta a tentá-lo?
—Sim, claro.
—Bem… Antes do Natal? — Perguntou Grace.
—Feito. Se me der algo para me guiar, terei-o acabado para Ação de Graças.
—Estupendo. Então me considere sua primeira cliente oficial. Tem alguma jóia que se possa ver?
Examinou em uma das caixas abertas.
—Algo inspirado na natureza? — Lançou-lhe um meio sorriso — Tenho uma cunhada que virtualmente vive no campo.
Libby começou a tirar alguns dos brincos, colares e braceletes de vidro que havia feito ao longo dos anos, e em seguida Grace e Elizabeth ficaram a lançar exclamações de surpresa e admiração enquanto os olhavam. Grace levantou em alto um colar e o voltou para a luz do sol, que entrava em torrentes pelos vidraças dianteiras.
—É uma preciosidade! — Sussurrou — As cores estão quase vivas. Pesa bastante para ser tão frágil, e as framboesas são tão bonitas que dão vontade de comê-las.
O colar era feito de avultados bagos de um vermelho vivo, intercaladas com folhas verdes. Libby tinha empregado vidro transparente, não opaco, e ao atravessá-lo, o sol projetava um arco íris nas mãos de Grace.
Enquanto rebuscava na caixa o bracelete que fazia jogo, Libby lhe disse:
—É mais forte do que parece. Inclusive faço correntes com algumas dessas contas. — Olhou Grace com um sorriso —. Embora as folhas ao melhor se descascam se cair ao chão.
Grace emprestava atenção só pela metade, ocupada em grampear o colar e em procurar algo onde olhar-se. Então agarrou o espelho que Libby lhe passava.
—Ai, eu adorei! — Exclamou.
Acariciou as framboesas enquanto admirava o colar.
—Em agosto sempre passamos todo um dia pegando framboesas silvestres. Crescem sozinhas e abundam por aqui. O que te parece, Elizabeth? — Perguntou, sustentando a grandíssima barriga enquanto se inclinava para que sua filha visse o colar — Se assenta bem a mamãe?
A menina assentiu com a cabeça, mais interessada em seu próprio colar.
—Eu gosto de meu pássaro — Disse ao tempo que o mostrava.
—Então é seu — Disse Libby; olhou a Grace — Se te parecer. Não tenho caído em pensar em suas outras filhas… E talvez é muito pequeno e Elizabeth pode engasgar-se.
Ao dizer estas palavras olhou à menina.
Grace fez um gesto afirmativo.
—Obrigado. E não se preocupe, tomaremos cuidado com ele. — Deu a volta a sua filha para que a olhasse e lhe elevou o queixo—. O guardará em meu porta joias e só o porá quando se arrumar para sair, certo?
Elizabeth se apressou a assentir.
—Então diga obrigado a Libby.
—Obrigado, Libby — Repetiu a pequena, obediente; já não ficava nem rastro de seu acanhamento anterior — O levarei na festa de meu aniversário. E pode vir se quiser. É… é…
Olhou a sua mãe.
—Que dia é, mamãe?
—Este ano em vinte e um de dezembro, Doce — Esclareceu Grace, mas dirigindo-se ao Libby —. E como esse dia espero estar bastante ocupada…
Riu e deu um tapinha na barriga.
—Acredito que daremos a festa uns dias antes. E, certamente, está convidada.
Libby estava a ponto de lhe dar as obrigado e de aceitar quando uma sombra obscureceu o interior da loja. As três se voltaram justo quando entrou um homem corpulento que levava nos braços a duas preciosas meninas de olhos muito abertos.
Grace se aproximou apressadamente a ele.
—Ai, santo Deus! — Disse — Não se atreva às deixar no chão. Podem ser pior que dois elefantes em uma cristaleira.
—Pássaro — Disse uma das pequenas, assinalando a sua irmã.
—Descer — Exigiu a outra, retorcendo-se para soltar-se.
—Você fica onde está, Chelsea — Disse Grace, lhe ajustando o gorro de lã cor laranja; depois se voltou para Libby com um orgulhoso sorriso — Me Permita te apresentar a mais membros de minha família. Estas são Chelsea, que tem quase quatro anos, e sua irmã gêmea, Megan. E se por acaso não adivinhou já, este é meu marido, Greylen. Grei, apresento Libby Hart.
Ele inclinou a cabeça com um sorriso não menos imponente que seu tamanho.
—Senhorita Hart… — Disse — Encantado de conhecê-la por fim.
Depois de jogar uma rápida olhada pela loja, posou o olhar no colar de sua esposa e soltou um suspiro resignado, completamente masculino.
—Nem sequer terminou de desfazer as caixas e já tem uma cliente… Ou duas —Retificou com uma risadinha ao ver o pingente azul que tinha posto Elizabeth.
Libby estava estupefata. Será que havia algo na água dali que fazia tão grandes os homens? Tinha conhecido o Michael, Ian, Callum e agora a Grei. Todos eram gigantes… Todos escoceses… e todos arrasadores.
Embora, certamente, aquele não parava: seis meninas e outra em caminho… No Natal o homem teria sete filhas às que dirigir. Nesse momento Libby se deu conta de que todos a olhavam fixamente enquanto ela estava ali, boquiaberta como uma tola.
—Bem… Encantada de conhecê-lo também — Conseguiu dizer por fim; inclusive se arrumou para sorrir — E não esperará que uma mulher, tenha a idade que tenha, entre em uma joalheria e não se prove nada.
Nos claros olhos verdes do homem brilhou um brilho de humor.
—Vou conhecendo rápido as mentes femininas — Apertou com carinho às duas filhas que tinha nos braços, olhando de uma a outra; depois olhou a sua esposa —Deu-lhe já a notícia ou estava muito ocupada comprando?
—Ai, Por Deus, tinha me esquecido! — Grace dirigiu um azul olhar de desculpa a Libby — Katherine Hart e James Kessler se registraram em nosso hotel ontem à noite, já tarde. E perguntaram ao recepcionista se te conhecia e onde estava.
Libby sentiu que um peso cansativo lhe caía sobre os ombros. De repente lhe pareceu que tinha os pés atarraxados ao chão e que a cabeça tinha crescido até alcançar o dobro de seu tamanho; o coração começou a golpear as costelas tão forte que não podia respirar.
James estava em Pene Creek?
—O que… O que disse o recepcionista? — Sussurrou ao tempo que se agarrava à mesa para não cair.
Grace foi junto a ela com os olhos cheios de inquietação.
—Este é um povoado pequeno, Libby. Disse que acreditava que conhecia o nome, mas que não sabia onde vivia.
—Onde estão agora?
Grace lançou um preocupado olhar a seu marido, depois voltou a olhá-la e deu de ombros.
—Não sei. Suponho que estão pelo povoado, te buscando. Provavelmente perguntarão na agência de correios, não te parece? Tem-te inscrito já para a partilha do correio?
Deve ter pensado que Libby ia desabar ou a vomitar, porque imediatamente a conduziu até a cadeira que havia atrás da mesa e a fez sentar. Depois a segurou pelo ombro em um gesto de ânimo.
Maldição. Libby só queria um pouco de tempo para instalar-se antes de ter que confrontar aquela cena inevitável. Não se surpreendia que tivesse chegado sua mãe, porque a última vez que tinham falado por telefone, Katherine parecia mais curiosa que preocupada. Mas nem em sonhos teria esperado que James averiguasse seu paradeiro e que inclusive fosse até ali. E, por certo, como a tinha encontrado? Estava completamente segura de que sua mãe não o havia dito.
Mas o caso era que os dois estavam ali. Naquele instante. Em Pene Creek.
—Não tem por que vê-los, Libby — Disse Grace em voz baixa lhe apertando o ombro — Se não estiver preparada, veem o Gu Bràth e fica conosco até que se rendam e voltem para Califórnia. Ninguém tem por que saber onde está.
Libby elevou a vista para os alarmados olhos de Grace, deu-lhe um tapinha na mão que lhe tinha posta no ombro e meneou a cabeça.
—Obrigado — Disse com voz rouca — É uma boa amiga, e lhe agradeço isso. Sabia que ao melhor minha mãe vinha me buscar, mas acreditei que disporia de mais tempo.
—Mas não esperava que viesse esse James? — Perguntou Grace ao tempo que levantava uma sobrancelha com gesto de curiosidade.
—Não, ao James não o esperava — Respondeu Libby — Não pensei que fosse tomar essa moléstia.
Grei se aproximou enquanto entrecerrava os olhos com outro tipo de preocupação.
—Você tem medo dele? — Perguntou.
Libby voltou a menear a cabeça.
—James não me dá medo. Só me surpreende que esteja aqui.
—Então veem o Gu Bràth — Repetiu Grace.
Uma vez mais, Libby meneou a cabeça.
—Não. Isso não resolveria nada. — Endireitou-se, inspirou fundo e ficou de pé com um afetuoso sorriso — Terei que falar com ele antes ou depois, e, já postos, melhor que seja agora.
Grace tirou o colar e o deixou com cuidado sobre a mesa. Depois pegou Elizabeth, dirigiu à menina para Grei e indicou a este que já era hora de ir-se. Libby os viu sair à calçada e dirigir-se para sua caminhonete, estacionada diante da loja dos Doam; outras três cabeças aparecia pelo assento traseiro.
Grace se voltou a olhar a Libby.
—vou chamar o Michael — Disse sem rodeios — Ele deveria saber.
—Saber o que? — Perguntou Libby, surpreendida — Que minha mãe está no povoado? Só se preocupa comigo, isso não deveria ser estranho. E se uma de suas filhas agarrasse e partisse à outra ponta do país, assim, sem mais? Não lhe seguiria a pista? Certeza que você e seu marido sim.
—Não, se for uma mulher adulta e mais que capaz de tomar suas próprias decisões.
—Mas não quereria compreender essas decisões?
Grace cedeu com um terno sorriso.
—Sim, pegaria o primeiro avião — Reconheceu — Mas Michael deve saber que esse homem está no povoado.
—Por quê?
—Por quê? — Repetiu Grace olhando-a com incredulidade — Porque agora isto lhe concerne. Não vai gostar de que um homem tenha vindo até aqui te buscando.
—Como que lhe concerne? — Perguntou Libby, sinceramente desconcertada — É meu caseiro, não meu “canguru”.
—Desde quando os caseiros ficam a passar a noite com seus inquilinos?
—Como? — Gritou Libby — Mas como você sabe disso?
—Esta manhã Grei saiu a caçar ao amanhecer — Disse Grace — E me contou que se encontrou com o Michael, que voltava a pé para sua casa às quatro e meia da madrugada.
Libby voltou para sua cadeira e esfregou a testa, que de repente tinha começado a doer. Pois vá com a discrição…
Grace lhe deu uns tapinhas no ombro.
—Há uma coisa que tem que entender respeito a estes escoceses, Libby: quase sempre são mais antiquados que razoáveis. E quando se trata de suas mulheres, são tão condenadamente possessivos que, se não fosse tão frustrante, resultaria inclusive cômico. Apostaria com você um centavo a que agora mesmo Grei tem o celular na mão e está chamando o Michael.
—Mas por quê?
—Por sua reação. Viu quão afetada estava e, segundo sua forma de pensar, isso significa que Michael deve saber o que está ocorrendo. É uma coisa de homens.
Soltou uma risadinha.
—Um código não escrito pelo que se regem todos: guardar as costas mutuamente… Ou as de suas mulheres, neste caso.
—Mas isso é antediluviano! Sabemos cuidar de nós mesmas. Não necessito que Michael bata no peito para afugentar James; posso fazê-lo sozinha. — Com um repentino aborrecimento que lhe deu forças, ficou de pé — E o direi ao Michael se tenta intrometer-se. O que temos não é mais que uma aventura, Por Deus. Uma simples e ridícula aventura que, provavelmente, não se voltará a repetir.
—Ai, ai, ai… É que já danificou as coisas?
—Esta manhã me despertei na parte de trás de minha gelada caminhonete só de tudo, depois de que Michael escapuliu. Não se despediu sequer, nem me deu obrigado.
Com os olhos redondos de incredulidade e esforçando-se por não rir, Grace repetiu:
—Na parte de trás de sua caminhonete? Mas o que estavam…? Por que na caminhonete?
—Porque é o único lugar de que Mary não forma parte. Santo Deus, Grace, estou vivendo na casa da Mary, dormindo na cama da Mary, tentando ter uma aventura com seu antigo amante…!
Grace abriu a boca, mas não disse nada. E, arrependida, Libby prosseguiu com menos veemência.
—Desculpa. Era sua irmã… Mas compreende o difícil que me resulta?
—Não… Não me tinha exposto isso desse ponto de vista — Disse com suavidade, enquanto se inclinava por cima da avultada barriga para abraçá-la — Suponho que é muito natural que se sinta… rara.
Tornou-se para trás e esboçou um sorriso que tampou com a mão
—Mas na caminhonete? — Perguntou.
Libby deu de ombros.
—Naquele momento parecia sensato.
—E ele não se despediu nem… Te disse obrigado?
Libby recuperou seu senso de humor e sorriu com expressão azarada.
—Parece muito mesquinho, verdade?
Grace agarrou sua bolsa e se dirigiu para a porta, mas se deteve e se voltou a olhá-la.
—Adverti-lhe isso, não é? Disse que te deixaria louca. Assim se prepare, amiga minha. Dou dez minutos a Michael para que esteja aqui em sua porta. E bem-vinda às Terras Altas do Maine…!
A última frase a acabou entre risadas ao tempo que saía para reunir-se com sua família.
Libby ficou olhando-a e viu que Grei se apressava a rodear a caminhonete, abria a porta e, depois de pegar nos braços a sua grávida esposa, punha-a no assento dianteiro. Seis cabeças cobertas com gorros de lã apareciam pelas duas fileiras de assentos da parte de atrás, tudo pendentes do novo colar do pingente azul da Elizabeth.
Dando um suspiro, Libby voltou para sua mesa e se deixou cair na cadeira. Bom, pensou, assim que esse era o aspecto do amor…
Teria alguma vez algo assim? Um marido bonito, forte e protetor, e um bom montão de adoráveis meninos?
Por Deus, quem dera…
Bom, embora possivelmente sete, não.
Em vista das opções que lhe apresentavam, Libby decidiu que o mais razoável era sair correndo. De modo que fechou a loja com chave, entrou na caminhonete e se dirigiu à saída do povoado antes que sua mãe e James a encontrassem… E antes que Michael representasse o papel de cavalheiro da brilhante armadura e fosse a resgatá-la.
Não necessitava que a resgatassem. Sua mãe estava ali porque lhe preocupava sua única filha.
E James estava ali por seus próprios motivos.
Seguiu conduzindo até que viu um sinal com uma mesa desenhada que indicava uma zona para lanches campestres. Meteu-se pelo caminho sem asfaltar e não demorou para chegar a uma deserta zona de piquenique, à borda do lago Pene. Depois de jogar uma olhada, estacionou a caminhonete ao resguardo de um grupo de jovens abetos. Segura de que não se via da estrada principal, desceu, sentou-se em uma das muitas mesas e cravou o olhar nas frias águas que lambiam a gelada libera.
Amassou-se em sua jaqueta cor laranja, subiu o capuz e meteu as mãos nos bolsos. E depois suspirou, pensou em sua nova vida e a comparou com a que tinha levado em Califórnia.
Olhasse-o como o olhasse, tinha tomado a decisão correta. Inclusive sem aquele… Dom que lhe tinha concedido, já era hora de mudar. Por muito honorável e satisfatório que fosse o exercício da medicina, simplesmente já não lhe bastava.
Mas de verdade o que andava procurando era fazer joias?
Ver Grace MacKeage com sua família aquela manhã a tinha comovido profundamente. Ao melhor não tentava fugir da medicina, mas sim ambicionava uma nova vida; uma vida que incluíra um marido que a amasse, uns filhos e outra espécie de satisfação.
Por que não podia ter tudo? Exerceria a medicina em qualquer lugar: ali onde houvesse gente, havia necessidade de médicos. Califórnia ou Maine, dava igual; só importava encontrar mais equilíbrio em sua vida.
E nesse sentido, Maine ganhava com folga. Aquele lugar tinha um não sei o que… As montanhas, as pessoas, a sensação de intemporalidade que parecia impregnar o ar… Nada mais autêntico que matar um cervo para levá-lo a mesa, ou atravessar os bosques cavalgando ou em um quad. Até o tempo atmosférico se tomava em conta, e se aceitava sua influência na vida cotidiana. E a boa vizinhança… Isso era o mais extraordinário dali. Grace lhe tinha devotado asilo, e seu oferecimento lhe tinha dado uma lição de humildade. Havia feito dar-se conta de que estava mais perto daquela gente que de ninguém de lá de Califórnia… Tirando à avó B.
Sim, ia ter que pensar seriamente no futuro.
—Começa a pegar a mania de escapar — Disse Michael a suas costas.
Libby soltou um grito, ficou em pé de um salto e teria caído da mesa se as fortes mãos de Michael não a tivessem apanhado e estreitado contra seu largo e maciço peito. Em seguida seus lábios, quentes e exigentes, cobriram-lhe a boca e afogaram sua indignação por havê-la assustado daquela maneira.
Aquilo era tão pouco apropriado… Michael não estava de joelhos: a que estava de joelhos era ela. Ele estava de pé, e ela, ajoelhada na mesa, e mesmo assim a ultrapassava em altura. E como suas mãos estavam ocupadas abraçando-a forte, Libby sabia que não lhe tinha levado nem flores nem bombons.
Não quis corresponder a seu beijo, por simples questão de princípios. Partiu-se sem despedir pela manhã, e agora nem sequer havia dito “olá” antes de beijá-la… E ainda por cima, acusava-a de escapar!
Mas era tão bom… E era tão quente e tão firme ao tato… Libby deu um suspiro em sua boca. Deixava-a louca quando a tocava; sentia-se desinibida, e excitada imediatamente… Assim se rendeu: abriu a boca para ele e se derreteu.
Michael era tão condenadamente sexy que só uma morta ficaria impassível. Libby lhe rodeou a cintura com os braços, dentro do jaquetão desabotoado, e se aconchegou contra ele. Depois inclinou a cabeça para trás, colocou-lhe a língua na boca e o saboreou presa de prazer.
A sua mente acudiram imagens da noite anterior: seus corpos nus esfregando-se, a sensação prazenteira quando a penetrava, o estalo de sensações que seguiram… Por que não lhe teria ocorrido colocar um dos preservativos na bolsa aquela manhã? Queria senti-lo dentro dela outra vez. Naquele preciso instante e ali mesmo.
Desfez o beijo e afundou a face em seu peito; contra os lábios, que ainda lhe formigavam, notou o surdo rumor de uma risadinha.
—Bom dia — Disse ele com o queixo posado em sua cabeça.
—Foi sem despedir-se — Murmurou ela.
Os braços dele a abraçaram mais forte.
—Lamento que tivesse que despertar sozinha, moça, mas queria estar em casa antes que Robbie se levantasse. — Recuou e sorriu, baixando a vista para olhá-la—. Estava dormindo como um bebê e não me atrevi a te incomodar.
—Despertei convertida em um bloco de gelo — Se queixou ela, que não estava disposta a deixá-lo sair do atoleiro.
Ele a beijou no nariz e a rodeou mais com seu jaquetão, aproximando-a bem para compensar o frio que tinha experimentado naquela manhã.
E o triste era que funcionava.
—Me perdoe. Teria que ter te levado para dentro.
Comparada com outras, para Libby aquela desculpa pareceu passável. Depois de tudo era um homem… E o que sabiam os homens o que é romântico?
—Vou comprar uma cama nova — Disse — É que a caminhonete não vai funcionar.
—Sim — Disse ele com outra risadinha ao tempo que a afastava.
Subiu-lhe o zíper da jaqueta até o queixo e lhe tampou melhor as orelhas com o capuz, segurando as bordas para que ela tivesse que olhá-lo.
—Entendo que se sinta violenta pela Mary. E se uma cama nova serve de algo, levarei a antiga ao sótão.
Libby se afastou e desceu da mesa; depois elevou a vista e o olhou franzindo o cenho.
—Como me encontrou? — Perguntou — Acreditava que hoje começava a cortar as árvores de Natal.
—deixei uma equipe de quatro homens — Disse ele sentando-se em uma mesa de cara a ela — John está fiscalizando-os. E o como te tenha encontrado tem pouca importância. Viu já a sua mãe?
Libby se ruborizou ao reconhecer que também tinha fugido dela.
—Não — Respondeu — Precisamente estava a ponto de voltar para casa. Imagino que a estas alturas ela e James já sabem onde vivo.
A expressão dele se endureceu.
—Disse-me que não escapava de um homem — Disse em tom de tranquila ameaça — Vou ter que afugentá-lo?
—Nem te ocorra! Saí com James um tempo, mas isso foi faz um século. Deixa-o em paz. Que esteja aqui não é teu assunto.
Ele ficou de pé, voltou a lhe agarrar o capuz e se inclinou enquanto elevava a cabeça. Em voz muito baixa, disse:
—Agora você é meu assunto, Elizabeth Hart. O de ontem à noite o converteu em um fato.
Quando ela tentou afastar-se, continuou, mais baixo ainda:
—E além disso admitirá a reclamação que fiz ontem à noite.
—Que… Reclamação?
—A de que agora me pertence.
—Está te pondo filosófico outra vez ou é que só é teimoso? Estamos tendo uma aventura, Michael. E as mulheres deixaram de pertencer aos homens quando conseguiram seu direito ao voto.
—Não pode trocar as leis da natureza, moça — Disse ele com um súbito sorriso—. E tampouco pode rechaçar sua própria natureza. Pode tentar fingir que isto que há entre nós só é uma simples aventura, mas não faz mais que se enganar. Eu estava ali, lembra? Entregou-se livre e completamente, e eu te aceitei.
—Vá, mas que…! Michael, não pode decidir sem mais que lhe convém…
Ele deteve seu protesto com outro ardente beijo que fez que Libby se estremecesse até os dedos dos pés. O condenado tinha melhor sabor que uma dúzia de enjoativos donuts lustrados, e ela se debateu entre o desejo de lhe dar um murro e o desejo de devorá-lo.
O de devorá-lo ganhou… Provavelmente porque Michael lhe tinha metido uma mão sob a jaqueta e estava lhe acariciando um seio. Passou-lhe o polegar com suavidade pelo mamilo, e ela aspirou seu fôlego.
—Não faça isso — Murmurou quando por fim ele liberou sua boca — Não pode me beijar assim, sem mais, sempre que você não goste do que te digo.
Ele bateu com o dedo na ponta do nariz.
—Sim que posso. É um dos privilégios de pertencer-me. E você pode fazer o mesmo, moça, quando não gostar do que eu diga.
—Nem sequer os casados se pertencem… — O informou Libby.
Mas se deu conta de que estava falando com as costas de Michael, que se tinha dado a volta e já caminhava para a caminhonete.
Então correu para alcançá-lo.
—E ter uma aventura amorosa não é o mesmo nem de longe — Prosseguiu — De modo que deixa de agir como um troglodita. O que faz?
Ele estava lhe abrindo a porta da caminhonete. E antes que pudesse protestar, a tomou nos braços e a soltou no assento dianteiro, atrás do volante.
Era um sistema mais rápido que usar a gaveta de maçãs.
—Irei atrás de você até sua casa, e assim me apresentará a sua mãe — Disse.
Passou-lhe o cinto de segurança.
—E também ao James — Acrescentou com um olhar feroz — E logo nos quatro falaremos de como vamos dormir esta noite.
—A que te refere?
—Quero dizer que se James ficar, eu fico também.
—Como diz?
Ele tomou pelo queixo e fez que o olhasse diretamente nos olhos cor cinza aço.
—Ou ele fica no hotel, Libby, ou esta noite eu estou em sua cama para me assegurar de que não está ele.
—Mas que absu…!
Ele voltou a beijá-la.
—Já chega! — Balbuciou ela assim que pôde tornar-se para trás.
Sem fazer caso de seu olhar assassino, Michael lhe disse:
—Conduz com cuidado. Recordo-te que hoje conduzem madeireiros.
Depois fechou a porta e subiu a pé pelo caminho de terra que levava até a estrada principal.
Libby ficou olhando pelo para-brisa para o lago Pene, soltando palavrões em voz baixa e tirando dos lábios o sabor do Michael a lambidas. Maldição… Como ia explicar a sua mãe que não levava ali nenhuma semana e já “pertencia” a uma inflexível montanha de homem? Agora só lhe faltava que o padre Daar aparecesse para o jantar…
Ao melhor pedia ao sacerdote que transformasse em rãs a todos.
De repente se deu conta do que implicava a afirmação de Michael sobre que ia assegurar se de que James não estivesse em sua cama. Imediatamente abriu a porta da caminhonete, desceu de um salto e começou a correr atrás dele.
—Ouça! Espera! — Gritou, tentando chamar sua atenção.
Como ele não se deteve, Libby agarrou do chão um punhado de neve e o lançou.
Bateu justo na metade das costas. Mas antes que ele se voltasse para olhá-la com expressão de incredulidade, já lhe tinha atirado outra bola de neve, que desta vez bateu no peito.
Ele a olhou com gesto feroz e em atitude ameaçadora.
—Está brincando com minha paciência para que volte a te beijar? — Perguntou — Ou é que tem vontade de morrer?
Estavam a uns trinta passos de distância, e lhe lançou um olhar assassino ao ver a terceira bola de neve que Libby tinha na mão… E ela correspondeu com o mesmo olhar.
—Não — Disse — Estou tentando me controlar. Não te permitirei que volte a me insultar como o tem feito.
Ele afiançou sua postura e cruzou os braços sobre o peito.
—Te insultar? — Perguntou, com voz friamente grave.
—Você disse que estaria em minha cama para se assegurar de que não estivesse ali James. Já postos, poderia lhe haver dado uma bofetada, se isso for o que pensa de mim. Eu não vou de cama em cama, Michael MacBain. Tenho muito respeito por mim mesma; um respeito que, evidentemente, você não tem.
Com os olhos entrecerrados contra o sol, ele cravou o olhar nela. De repente descruzou os braços e os abriu bem até estendê-los de tudo para lhe apresentar seu largo peito enquanto, devagar, começava a caminhar para ela.
—Atira – me disse isso.
Com a cabeça, e sem deixar de caminhar, assinalou a bola de neve que ela ainda tinha na mão. —Lança seu melhor tiro, Libby — Insistiu.
Ela apertou a bola de neve e deu um passo atrás. — Não… Não quero atirar isso. Quero que confie em mim.
—Confio em você — Disse ele,
Seu passo era lento, seu olhar estava cravado na dela, seus braços seguiam estendidos para lhe proporcionar um alvo perfeito.
De repente Libby se sentiu como uma presa a que estivessem espreitando. Abriu a mão, deixou cair a bola de neve no chão e recuou outro passo.
—Não pretendia insinuar que ia se deitar com ele — Prosseguiu Michael — De quem não confio é James. Esse homem acaba de cruzar todo o país para vir a te buscar, assim tem seus planos.
Ela continuou recuando e, em tom um pouco desesperado, disse:
—Precisamente. E dá no mesmo que os tenha ou não. Eu sei dirigir ao James.
Olhou por cima do ombro tentando decidir se chegaria à caminhonete antes que Michael a apanhasse. Senhor, como lhe tinha ocorrido lhe atirar bolas de neve?
De repente ele se deteve.
—Não chegaria — Disse em voz baixa, adivinhando suas intenções — Veem aqui, Libby.
Acreditava que estava louca? No jaquetão, onde tinha acertado, tinha um mancha de neve meio derretida. E estava lhe dizendo que se metesse em sua armadilha?
Mas ele ficou ali, quieto, com os braços separados dos flancos.
Libby esfregou as úmidas palmas das mãos nos jeans. Certamente, estava deixando-a louca. Se não a deixava sem sentido a beijos, insultava-a, inflamando-a ou desconcertando-a tanto que tinha vontade de gritar. E agora, em uma repetição quase perfeita da tarde em que lhe tinha pedido que fosse com ele cavalgar, sem mover-se e sem dizer nada, só esperando a que cedesse, estava lhe dizendo que fosse a ele.
Estava perdida se o fazia e era idiota se não o fazia… Sem saber como, ganhou seu coração enquanto ela se trabalhava em excesso em proteger-se dele. Mas se aquele homem acreditava que lhe pertencia, caramba se não lhe pertencia também.
Nesse instante Libby correu a lançar-se contra seu peito. Michael a rodeou com seus fortes braços e afundou a face em seu cabelo.
—Não pretendia te insultar — Sussurrou em sua orelha.
Abraçou-a tão forte que ela soltou um grito.
Enquanto lhe enchia a face de beijos, Libby se desculpou.
—Sinto ter te atirado neve. Machuquei-te?
A risada dele a sacudiu.
—Não. Mas fez algo muito agradável. Ela recuou e o olhou piscando. —Ah, sim? —Sim, demonstrou que confia em mim, moça. Sente-se tão segura para dar rédea solta a seu gênio, e isso é porque sabe que eu nunca te faria mal. Ela piscou outra vez. Tinha razão. Então sorriu, beijou-o na face e riu a gargalhadas. Sim, nem sequer se tinha exposto que ao melhor ele tomava represálias.
—Não sou uma pessoa violenta — Repôs ela — Não costumo atirar coisas às pessoas.
—Pois tem boa pontaria — Disse ele beijando-a no nariz.
Deixou-a descer deslizando-a por seu corpo e Libby deu um grito afogado ao sentir que seu ventre roçava o vulto das calças.
—Surpreende-se? — Disse ele com ironia, afastando-a — Não posso ocultar quanto me excita, Libby.
Com gesto atento, ela ficou a observar um grande botão do jaquetão de lã. Depois, mantendo a cabeça baixa para que ele não se desse conta de quão vermelha tinha ficado, perguntou-lhe em um sussurro:
—Foi tão cedo esta manhã porque levava quatro preservativos e só chegou a usar um?
Ele levantou o queixo com um dedo, e Libby olhou seus ternos e quentes olhos cinza como o estanho.
—Não levei a conta, moça. E nem sequer esperava usar esse. Fui porque não queria que Robbie despertasse antes que eu chegasse a casa. Não quero que o menino monte contos de fadas na cabeça sobre nós.
Muito tarde!, quis gritar Libby; ela já estava montando seu próprio conto de fadas.
—Vamos, e se te sigo até casa e apresenta a sua mãe? — Sugeriu ele.
—Amanhã a conhecerá… Depois da explosão.
Michael voltou a acompanhá-la até a caminhonete.
—Ah, mas é que eu gostaria de conhecer o James hoje —Disse — Assim o levo de volta ao hotel.
—É um velho amigo da família, Michael. Como vou explicar que não pode ficar em minha casa quando há quatro quartos vazios no andar de acima?
Ele a pegou nos braços, colocou-a de novo na caminhonete e lhe voltou o queixo para que o olhasse de frente.
—Pensa em algo — Disse muito sério — Ou, se não, eu pensarei.
—Está sendo pouco razoável.
Com expressão arrogante, ele assentiu.
—Sim. E o serei ainda menos se ele ficar em sua casa.
E sem mais discussão, fechou com suavidade a porta, deu a volta e subiu de novo pelo caminho.
Uma vez mais Libby olhou o lago Pene pelo para-brisa; mas nesta ocasião se surpreendeu sorrindo enquanto lhe parecia ouvir na cabeça o sussurro das palavras de advertência de Grace MacKeage.
Antiquado. Protetor. Possessivo.
Sim. Justo o que aquela doutora necessitava.
Embora não gostava de dever nada a Greylen MacKeage, Michael agradecia seu aviso daquela manhã sobre os visitantes de Libby. Chegou aonde tinha estacionado sua caminhonete na estrada principal, entrou nela, colocou o cinto de segurança e passou as mãos pela face.
Não o surpreendia que a mãe de Libby tivesse ido procurá-la, mas que diabos fazia seu antigo namorado ali?
Que desastre! Havia dito a Libby que agora lhe pertencia, e aquela mulher não recebeu sua reclamação de forma dócil nem elegante. Michael sabia que, no melhor dos casos, sua autoridade sobre ela era precária. Não estavam casados, e nem sequer se podia dizer que estivessem saindo juntos segundo os costumes modernos; fazer amor desenfreado e apaixonadamente na parte traseira de uma caminhonete estacionada em uma garagem não era sair juntos.
Não, Libby só tinha aceitado manter com ele uma discreta aventura amorosa. Michael sim que acreditava que para ela as aventuras implicavam exclusividade e que ambas as partes se consideravam mutuamente comprometidas, mas até ali chegavam seus direitos. Nestes dias as aventuras amorosas implicavam sexo monógamo e nada mais; nada de intrometer-se na vida do outro, nada de contrato formal, nada de recriminações se um se comportava de uma forma que o outro não gostava…
Mas ele não queria uma aventura moderna com Libby.
Queria ter o direito de segui-la a casa, conhecer sua mãe… E levar ao James de volta a Califórnia lhe dando chutes no traseiro.
A palma de sua mão direita estava desejando sentir o tato da espada; levantou a mão vazia e a olhou fixamente, em silêncio. Fazia anos que não usava a espada com intenção, e o impressionou que desejava fazê-lo nesse momento.
Bom, possivelmente o impressionava, embora não o surpreendia. Por motivos que não sabia explicar, Libby despertava seus mais baixos instintos. Um desejo que transbordava sua capacidade de compreensão fazia que desejasse possuí-la por completo.
Quando ela passou por seu lado, Michael fez girar o contato, pôs em movimento a caminhonete e entrou na estrada asfaltada atrás do mono volume. Esfregou a face com a mão direita, ainda inquieta, para limpar as gotas de suor da testa. O coração lhe golpeava as costelas, e um instinto de fuga lhe esticava os músculos.
Como fazê-lo? Como sentir-se atraído por outra mulher? Se dava seu coração a Libby e a perdia, ao melhor esta vez não sobreviveria.
E tinha que sobreviver… Por Robbie.
Mas já era muito tarde.
Porque, com uma simples e certeira bola de neve, Libby tinha conseguido nada mais e nada menos que fazer-se proprietária de seu coração.
Havia um carro de aluguel estacionado no jardim, e viu que sua mãe estava sentada no assento do passageiro. James estava no alpendre com as mãos cruzadas, o pescoço da jaqueta subido para combater o frio e um cenho de impaciência em seu bronzeado rosto.
Libby entrou diretamente na garagem e depois se apressou a aproximar-se do carro. Abriu a porta do passageiro, esperou que sua mãe descesse e a abraçou com afeto.
—Senti sua falta — Disse — Me alegro muito de que esteja aqui.
Katherine Hart lhe devolveu o abraço e a beijou na bochecha antes de afastar-se.
—Demoramos bastante em descobrir onde estava “aqui” — Repôs.
Falou bastante forte para que a ouvisse James, ao tempo que subia também o pescoço do casaco para proteger-se da fria brisa.
James deu a volta a Libby e a abraçou.
—Elizabeth… — Deu um beijo na bochecha; depois se inclinou para trás sem lhe soltar os ombros e a olhou, outra vez carrancudo — Tem ideia da confusão em que se colocou?
—Isso pode esperar — Disse Katherine.
Lançou um olhar à caminhonete que parou junto ao carro e olhou fixamente o gigante que saía dela.
— Quem é este? — Perguntou a Libby.
Deu uma olhada a Michael e se apressou a afastar-se de James. Depois pegou o braço a sua mãe e a levou para a caminhonete.
—Apresento a meu caseiro, Michael MacBain — Disse — Michael, ela é minha mãe, Katherine. E ele é James Kessler.
—Senhora Hart… — Disse ele.
Fez uma leve inclinação ao tomar a mão. Depois dedicou uma leve saudação com a cabeça ao James.
—Kessler… — Em seguida voltou a olhar à mãe de Libby — Me alegra ver que veio ajudar sua filha instalar-se.
—Ao que vim é para levar a minha filha a casa, senhor MacBain.
—Ah, sim? — Michael elevou uma sobrancelha — Tenho entendido que já está em casa.
Com a amabilidade de uma mulher de grande experiência em situações sociais graças a ilustre carreira de seu marido, Katherine Hart adotou um gesto de cortês regozijo. Então jogou uma olhada a seu redor, a abrupta paisagem e à casa que Libby tinha alugado, e subiu seu analítico olhar para pousá-la em Michael.
—A casa de uma pessoa está onde se encontra seu trabalho. E, além disso, onde se encontra sua família, senhor MacBain. Mas como, no caso de minha filha, está na Califórnia.
A Libby ia dando torcicolo de tentar observar as expressões de todos enquanto Michael e sua mãe falavam dela como se nem sequer estivesse ali.
Mas nesse momento se deu conta de que Katherine estava realizando uma estupenda interpretação em honra de James. Quase se excedia ao representar tão bem o papel de mãe preocupada.
Em realidade, era James quem inquietava mais a Libby. Estava estranhamente silencioso, e seus olhos dourados se concentravam no Michael enquanto tratava de decidir exatamente como encaixava aquele gigante em tudo aquilo.
Michael tomou a Katherine pelo cotovelo e começou a conduzi-la para a casa. E a mulher, sempre a elegância em pessoa, o permitiu, ao tempo que alargava o pescoço para lhe dedicar sua atenção.
Enquanto Libby se pegava a eles, ouviu que Michael lhe dizia:
—Não temos por que passar frio. Acenderei a lareira e sua filha lhe preparará um chá.
Nesse momento James deteve Libby de um puxão.
—Quem diabos é este sujeito?
—Meu caseiro.
—E reside aqui?
Imediatamente ela se separou dele.
—Não — Respondeu — Quer se acalmar? Só está sendo amável.
—O que está sendo é muito insolente, se quer saber minha opinião. Desfaz dele, Elizabeth. Temos que falar… A sós.
—Sim, e falaremos, é claro que sim… — Disse ela, ao tempo que corria para alcançar Michael e a sua mãe.
Justo enquanto atravessava a cozinha ouviu o Michael que do salão, absoluta e completamente a sério, dizia:
—Sua filha não pode retornar a Califórnia até depois de Natal, embora queira. Está obrigada a trabalhar para mim como pagamento por um contratempo que teve lugar o dia que chegou.
—Que espécie de contratempo? — Perguntou Katherine enquanto se sentava no sofá de frente a lareira — E que espécie de trabalho?
Michael se agachou e começou a preparar o fogo.
—Libby destruiu algumas de minhas melhores árvores de Natal com seu carro. —Começou a pôr palitos de lenha miúda sobre o papel — E aceitei a que me pague trabalhando em minha loja de Natal esta temporada.
Na porta do salão, Libby se deu conta de que tinha a boca aberta. Então a fechou de repente e lançou um rápido olhar das largas costas do Michael a sua subitamente estupefata mãe. Por sua parte, James, que tinha tomado assento junto a Katherine, também se tinha ficado boquiaberto.
Só Michael parecia alheio ao silêncio reinou. Voltou-se para sorrir ao Katherine e prosseguiu:
—Assim não pode partir até que tenha saldado a dívida que tem comigo. Se você ficar um tempo, também me viria bem sua ajuda, em troca de um salário justo, é obvio. Faz você doces no forno, senhora Hart? Ou possivelmente realiza peças artesãs? Precisamos vender adornos para as árvores de Natal, e os enfeites à mão saem muito bem.
Libby voltou a abrir a boca. Michael acabava de oferecer um trabalho a sua mãe? Um trabalho remunerado? Provavelmente Katherine Hart levava anos sem ver uma autêntica nota de um dólar… E, certamente, não trabalhava desde sua época de estudante.
—Elizabeth lhe pagará as árvores — Disse James — É uma cirurgiã muito renomada e não pode estar trabalhando em uma loja de Natal. Tem que retornar para salvar sua carreira. Quanto dinheiro lhe deve?
Meteu-se a mão no bolso interior de sua jaqueta.
—Farei-lhe um cheque agora mesmo.
Michael arranhou um fósforo, acendeu o papel que havia sob a lenha miúda e o olhou até assegurar-se de que prendia antes de voltar-se a olhar ao James. Então meneou a cabeça.
—O dinheiro não paga essas árvores — Disse — Eram abetos Douglas de primeira, sabe?; acredito que teriam ficado os primeiros na feira estatal o verão que vem. Guarde o talão, Kessler. Agora necessito ajuda mais que dinheiro.
Seu olhar foi de James a Libby.
—Além disso, ela já concordou.
James e Katherine deram a volta no sofá para olhá-la também, e um formigamento de calor subiu às bochechas de Libby. Maldição, Michael estava louco… E, sem dúvida, era um gênio.
—Assim é — Concordou — Prometi trabalhar para ele até o Natal.
—Mas Elizabeth… — James se levantou para olhá-la de frente — Está a ponto de que a denunciem por descumprimento de contrato. Partiu sem avisar com antecipação.
Michael se levantou também, e então Katherine puxou a mão de James para fazê-lo sentar-se.
—Já falaremos disso mais tarde, James — Disse — Elizabeth, pôs o chá? E obrigado por me oferecer um trabalho, senhor MacBain. Adula-me, e certamente o terei em conta.
—Então, de acordo — Disse Michael; esfregou as mãos enquanto entrava na cozinha, dando a volta em Libby e empurrando-a diante dele para a boca do fogão—. Acredito que vou descer um momento a dar uma olhada à caldeira, já que estou aqui. Disse que fazia um ruído raro, não?
—Sim — Espetou Libby, zangada — Faz muito ruído e joga um montão de ar quente.
Justo então um grito de surpresa chegou do salão, e ambos correram para a porta ao mesmo tempo. Katherine, de pé sobre o degrau da lareira, agarrava-se ao suporte e um fio da meia com a vista cravada em Problema, que tentava saltar atrás dela.
James agarrou o gatinho pelo cangote e o sustentou no ar com o braço estendido como se fosse uma porcaria. Problema soltou um miado de aborrecimento, e de repente Guardião começou a subir pela perna das calças do James para resgatar a seu irmão.
Por sorte, Libby se adiantou e, de passagem, também resgatou a ele.
—Não são encantadores? — Perguntou a sua mãe; abraçou os gatinhos contra seu peito enquanto olhava a Katherine — Me deu de presente o Robbie.
Olhou a seu redor.
—Há outro mais, uma gatinha que se chama Tímida. Estes são Guardião e Problema — Acrescentou, voltando-os um por um para que olhassem a sua mãe — Gatinhos, apresento-lhes a minha mãe.
Katherine deixou que James a ajudasse a descer do degrau e se inclinou para inspecionar o fio da meia. Depois de afastar o cabelo do subitamente envergonhado rosto, lançou um rápido olhar a Michael e depois voltou a olhar a Libby.
—Quem é Robbie?
—Na realidade, meu caseiro é ele — Explicou Libby — É o filho de Michael. E esta é a casa de sua mãe.
—E onde está sua mãe agora?
—Morreu quando ele nasceu — Disse Libby.
De novo Katherine lançou um rápido olhar a Michael.
—Ah, lamento, senhor MacBain.
Deu uma olhada pela habitação e depois voltou a olhar a Libby.
—Onde está a outra? — Sussurrou — Tímida diz que se chama, não?
—Provavelmente esteja escondida, daí o nome — Disse Libby, ao tempo que se aproximava de Michael e lhe passava os dois gatinhos — Talvez deveria ir revisar a caldeira já, antes de que comece a jogar mais ar quente.
Justo então James entrou na cozinha segurando a Tímida com o braço estendido.
—Aqui está a que faltava.
—Ah, está assustando-a, pobrezinha! — Disse Katherine, e arrebatou a Tímida da mão para estreitá-la contra sua jaqueta de caxemira — Não é mais que um filhote.
—Prenderei-a com os outros no banheiro — Disse Michael, estendendo a mão.
Mas a mãe de Libby afastou a gatinha.
—Não, está tremendo. Acredito que a abraçarei um pouquinho.
Só com isso, Libby soube que Katherine Hart acabava de ganhar a aprovação de Michael.
Depois de colocar a Problema e a Guardião no banheiro, Michael desapareceu no porão. Libby pôs água a ferver enquanto que sua mãe, sem deixar de abraçar a Tímida, tomava assento à mesa e jogava uma olhada à cozinha.
—É uma casa maravilhosa — Disse — Tão de estilo antiga da Nova Inglaterra… Como a encontrou?
Dirigiu-lhe um olhar carregado de intenção a sua filha, que indicava que ia manter a farsa.
—Na Internet — Respondeu Libby.
Foi a geladeira, confiando que dentro houvesse algo de comer. Encontrou meia barra de queijo cheddar, duas maçãs e um pepino. Levou tudo a bancada e começou a cortá-lo e a colocar as fatias em um prato para tomar um lanche.
James se sentou à mesa frente a Katherine.
—Por que Maine? — Perguntou.
Libby deu de ombros.
—E por que não?
—Se dá conta da confusão em que está colocada, Elizabeth? desatendeu seu contrato e, além disso, suas responsabilidades — Disse ele com voz severo — Tal como estão as coisas, provavelmente a viagenzinha te custará uma fortuna em multas, embora isso não é nada comparado com o que já fez a sua reputação. Partiu-se da sala de cirurgia, Elizabeth, e deixou ali um bom embrulho.
Libby deixou de fazer rodelas a maçã e se voltou para olhá-lo.
—Enviei uma carta certificada a Randal Peters dizendo que tinha que partir por motivos pessoais.
—Falei com o Peters, e lhe dão igual os motivos que alegava. Sabe que foi pelo que aconteceu. — James ficou de pé, se aproximou e tomou pelos ombros — Ainda há tempo de resolvê-lo, Elizabeth. Se retornar agora mesmo, pede desculpas à junta diretiva e lhes roga que a perdoem, ao melhor isto se soluciona de maneira discreta.
Nesse momento Michael apareceu pela porta do porão.
—O que ocorreu exatamente — Perguntou — Que requer desculpas e súplicas?
James deu meia volta para olhá-lo de frente.
—Isto não é assunto seu, MacBain, mas sim da Elizabeth.
—E seu? — Perguntou Michael em voz baixa, ao tempo que avançava para situar-se justo diante do James — Libby não me parece uma mulher disposta a suplicar por nada, assim me conte isso que fez que requer uma desculpa.
James voltou para a mesa e ficou depois da cadeira onde tinha estado sentado.
—Foi um tolo engano — Disse, fazendo um gesto depreciativo com a mão—. Esteve a ponto de abrir uma mulher perfeitamente sã na sala de cirurgia. Mas isso não é para atirar pela amurada uma carreira.
Michael se voltou a olhar a Libby; seus olhos cinza como o estanho sondaram com delicadeza os seus.
—É certo isso, moça? Foi por esse engano?
Nesse momento Katherine atraiu sua atenção lhe dizendo:
—É um engano grave para um cirurgião, senhor MacBain, mas não foi culpa de minha filha. Levaram-lhe a uma paciente equivocada.
Michael voltou a olhar a Libby.
Mas ela deu a volta para a bancada e ficou a cortar a maçã de novo. Então ouviu que Michael dizia ao Katherine:
—Devia sentir-se responsável. Tanto como para pôr em dúvida sua capacidade para realizar seu trabalho.
—Repito que isto não é assunto seu, MacBain — Disse James em tom crispado—. Nós resolveremos o problema da Elizabeth.
—Aconselhando que suplique? — Perguntou Michael, em voz tão baixa que Libby sentiu um calafrio de alarme pelas costas.
O tenso silêncio ficou quebrado pela chegada de Robbie, que entrou correndo na cozinha como uma rajada de ar frio e deixou que a porta se fechasse de uma forte portada atrás dele.
—Libby! tivemos um incêndio na escola! — Disse com alvoroço como saudação, em suas pressas por contar a notícia — Foi no banheiro dos meninos, e toda a escola se encheu de fumaça, e tivemos que sair sem pegar os jaquetões nem as coisas.
Quase sem reduzir a marcha, aproximou-se de Katherine e acariciou a Tímida na cabeça, ao tempo que dava um enorme sorriso à mãe de Libby.
—Se a acariciar bem aqui, ronrona.
Ao tempo que o dizia, guiou-lhe os dedos para a parte de atrás da orelha da gata.
—Ela gosta de você — Acrescentou com autoridade; seu sorriso se alargou mais—. É a mamãe de Libby? Pois se o é, eu gostarei também.
—Então acredito que sou — Disse ela; seus afáveis olhos castanhos brilhavam de regozijo — E pode me chamar Katherine.
Robbie a observou atentamente um bom momento enquanto pensava.
—Parece-me que te chamarei avozinha Katie — Decidiu por fim — Aos velhos gosta que lhes diga coisas assim.
Em seguida, absolutamente alheio ao espanto de Katherine, voltou-se para olhar de frente a James.
—Quem é você? — Perguntou, elevando seu jovem queixo — Mais vale que não tenha vindo levar Libby outra vez a Califórnia, pois ela não vai. Nos ficamos. Tem gatinhos e galinhas que cuidar, e assinou um contrato de arrendamento comigo. É um contrato que é… De repente, indeciso, olhou a Libby e sussurrou:
—Como era aquilo?
—De vinculação — Sussurrou ela, contendo apenas seu regozijo.
Robbie voltou a olhar James; em suas jovens feições havia um gesto bastante ameaçador.
—Sim. Seu contrato é de vinculação, e não pode partir em um ano.
—Bom — Disse James com aspereza — Se tivesse comprovado suas referências, jovenzinho, saberia que acostuma quebrar seus contratos.
—James… — Espetou Katherine, zangada—. Já chega.
—Sim — Interveio Michael — Já chega. Vamos, filho; você e eu temos que comprar a Libby uma cama nova.
—O que tem de errado com sua antiga cama? — Perguntou Robbie.
Depois de lançar um último olhar assassino ao James, concentrou sua atenção em Libby.
—Tem caroços? — Perguntou — Se afunda no centro? Podemos pôr uma tábua debaixo se afundar.
—Te… Tem caroços — Disse Libby, sobrepondo-se ao rubor.
Evitou que seu olhar entrasse em contato com o de Michael e se dirigiu diretamente a Robbie com a esperança de que seu pai não se inteirasse.
—Mas quero uma cabeceira nova também — Acrescentou.
Por que diabos tinha tido Michael que tirar o tema da cama agora, diante de sua mãe e de James? E além disso, maldição, ela queria escolher sua própria cama.
Robbie ficou nas pontas dos pés para falar com seu pai enquanto jogava um cauteloso olhar a James.
—Não acredito que devamos ir agora mesmo, papai — Sussurrou — Esse tipo que está com a avozinha Katie pode tentar nos roubar Libby. Temos que ficar até que se vá.
É obvio, todo mundo o ouviu, incluído o objeto de sua desconfiança. Então, olhando Libby, James disse com desdém:
—O menino não tem melhores maneiras que seus gatos.
Mas ela também se cansou. Com a maçã trespassada na faca assinalou ao James, disposta a lhe dizer o que pensava ela de suas maneiras… Mas Robbie se adiantou. Virou-se contra o altivo visitante e deu um passo para ele.
—Não necessito maneiras, porque tenho o direito de minha parte — Disse com os punhos fechados aos flancos; se aproximou um passo mais — E, além disso, a força.
—A força? — Balbuciou James incrédulo, enquanto sua face se escurecia de ira.
Libby se moveu para interpor-se entre eles, mas Michael a puxou pelo braço e meneou a cabeça em silêncio; seu olhar estava cheio de prazer e de uma boa dose de orgulho paternal.
—Sim, a força de meu papai — Explicou Robbie sem alterar a voz, com olhar feroz e desafiante — É um guerreiro, e pode vencer a homens maiores que você em uma briga.
No que a ameaças se refere, Libby não teria dado com nenhuma melhor. E, para ser um médico sofisticado e de mundo, que se sentia tão cômodo em uma sala de cirurgia como em uma reunião da junta diretiva, deu a impressão de que James não tinha nem ideia de como reagir diante a provocação do menino. Não sabia tratar com meninos, e ponto. Por isso, em vez de soltar uma resposta brusca, lançou um preocupado olhar a Michael, tirou sua cadeira e se sentou.
Katherine alargou o braço, mal dissimulando seu sorriso, e lhe deu uns tapinhas na mão.
—Por que não traz minha mala do carro? — Sugeriu-lhe em voz baixa — Depois volta para hotel e se registre outra vez para esta noite. Elizabeth e eu prepararemos um bom jantar; volta para as sete para jantar conosco.
Então olhou ao Robbie.
—Parece aceitável, jovenzinho? Tem minha palavra de que não tentaremos te roubar a Elizabeth esta noite.
Robbie lançou um rápido olhar a seu pai, franziu o cenho ao ver que Michael assentia e voltou a olhar a Katherine.
—Acredito que me parece bem. E se chama Libby, não Elizabeth — Disse.
Nesse momento James interveio, tentando resgatar algo de sua dignidade.
—Chama-se doutora Elizabeth Hart — Disse — E é uma cirurgiã muito importante na Califórnia.
Libby estremeceu e lançou um rápido e indeciso olhar a Michael, ao tempo que Robbie dava um grito afogado e se voltava para olhá-la de frente.
—Você não é médica! — Gritou — Faz joias!
Libby atirou a maçã e a faca na bancada e pegou o zangado menino pelos ombros.
—Sim que faço joias — Disse com doçura — Mas também sou médica, Robbie. Opero pessoas que sofreram acidentes terríveis.
Com um gesto brusco, ele se afastou, recuou e voltou a fechar as mãos até as converter em punhos.
—Não pode ser médica! —Sussurrou com desespero — Para operar necessita um hospital, e não temos nenhum!
De repente sua voz se transformou em um grito:
—Então vai partir!
E, depois de girar sobre seus calcanhares, saiu correndo pela porta, tão rápido e ruidosamente como tinha entrado.
Libby correu atrás dele, mas Michael a agarrou antes que saísse ao alpendre.
Ela lutou para soltar-se
—Tenho que ir atrás dele! — Disse — Tenho que explicar.
Ele lhe deu a volta.
—Não — Disse em voz baixa — Agora mesmo não te escutará.
—Mas tenho que fazer que compreenda…!
—Se tranquilizara quando eu lhe diga que não vai partir.
—E exatamente por que está tão seguro de que não partirei?
Ele a abraçou e lhe elevou o queixo para que o olhasse. Então sorriu e a estreitou até que ela soltou um chiado.
—Porque decidi que não deixarei que vá — Disse.
Beijou-a na ponta do nariz e a afastou.
Depois saiu do alpendre e, com passo firme e arrogante, sem olhar atrás, dirigiu-se para sua caminhonete e para o Robbie.
—Michael!
Este se deteve junto à porta da caminhonete e a olhou.
—Quero uma cama bonita, com um elegante cabeceira e um pé.
Ele sorriu satisfeito.
—Não te prometo elegância — Disse, lhe fazendo sentir um calafrio nas costas — Mas te prometo que será grande e forte.
—O que quis dizer Robbie com que faz joias? — Perguntou Katherine enquanto abria o grifo da pia e começava a cortar as batatas.
Acabavam de retornar do povoado e de descarregar os comestíveis, e agora estavam ocupadas preparando o jantar. Libby, que colocava o enorme assado no forno, elevou a vista e dedicou a sua mãe um envergonhado sorriso.
—Trabalho com vidro; faço brincos, colares e braceletes.
Katherine deixou de cortar batatas.
—Essas são criações suas? Esses passarinhos e plantinhas que usa?
—Refere aos que todas suas amigas tentaram comprar? — Perguntou Libby, assentindo — Sim, faço-os eu.
—Mas como…? Onde aprendeu? Não, espera. Minha mãe, não é? — Disse Katherine, dando um suspiro.
Meneou a cabeça e voltou para sua tarefa.
—Devia ter adivinhado quando se negava a dar a minhas amigas o nome do artista. — Olhou Libby, cada vez mais segura — E o astuto manchado que me deu de presente por Natal faz dois anos…? Também o fez você.
Libby voltou a assentir, foi a geladeira e tirou as cenouras.
—E o alfinete de gravata com forma de folha de hera que dei de presente a papai faz cinco anos também — Confessou enquanto ficava junto a sua mãe diante a pia.
—Mas são preciosos! — Exclamou Katherine — Não, um momento; não pretendia que soasse assim. Claro que são preciosos se os fez você. Sempre foi hábil com as mãos.
—Obrigado.
Katherine deixou de cortar outra vez e cravou a vista em sua filha.
—Por isso é tão boa cirurgiã, Elizabeth. É tão extraordinariamente boa que faz que pareça coisa de magia. Por favor, não renuncie a sua carreira. O que ocorreu na sala de cirurgia foi um engano.
—Não foi um engano, mamãe.
Libby lhe tirou da mão a batata e a faca, levou-a até a mesa e, com suavidade, a fez sentar-se em uma cadeira. Depois se sentou em frente e olhou diretamente nos preocupados olhos castanhos de sua mãe.
—A avó B não o inventava, mamãe, e acredito que você sabe. E além disso sabe que a tia Sylvia curava às pessoas, mas todos estes anos esteve negando-o porque tinha medo.
—Do que tinha medo?
—Não “do que”, mas sim “por quem” — Disse Libby — Tinha medo por mim, não é? Não queria que eu tivesse este dom, porque sabia o muito que me afetaria. Curei Esther Brown, mamãe, e foi um milagre.
—Realiza milagres todos os dias, Elizabeth…
—Não essa espécie de milagres — Disse Libby; tomou as mãos de sua mãe entre as suas — Isto é o poder de curar às pessoas sem usar minhas aptidões de cirurgiã. Katherine tentou afastar-se.
Libby não lhe soltou as mãos, mas sim as estreitou.
—Senti-a, mamãe; inclusive me transformei em parte de Esther Brown. Senti suas emoções e sua decisão de viver.
—Isso é impossível, carinho! — Sussurrou Katherine… É que não… É que não pode acontecer!
—Mas por que é impossível? Quantos milagres se documentaram ao longo da história? Por que não pode ser um deles a inexplicável recuperação de Esther Brown?
Libby lhe soltou as mãos, e imediatamente Katherine as cruzou em seu colo enquanto cravava a vista na toalha. Ao fim elevou o olhar: seus enormes olhos castanhos estavam cheios de preocupação.
—Não quero que minha mãe tenha tido razão todos estes anos.
—E acredita que eu sim? — Perguntou Libby.
Katherine alargou as mãos por cima da mesa para ela.
—Mas ao melhor não foi você, Elizabeth. Se foi um milagre, o que te faz pensar que você tenha tido algo que ver?
—Porque o fiz outra vez.
—Como?
—Fiz-o outra vez, mamãe. Tocava-me atender ao paciente de James aquela manhã, ao Jamie García, que só tem seis anos. Um carro o tinha atropelado, e estava em coma. Mas aquela tarde, depois do que ocorreu com Esther Brown, entrei em seu quarto, sentei-me junto a ele e rezei para que despertasse. E, exatamente igual a antes, senti suas emoções, seu medo e seus desesperados esforços por retornar com seus pais… E então abriu os olhos e me sorriu.
Katherine a olhou fixamente, sem dizer uma palavra.
—De modo que foi correndo… — Disse por fim em voz baixa—. E veio aqui. Mas por que aqui?
—Não sei por que. Acredito que as montanhas tiveram algo a ver. A distância… A reputação de estoica sensatez que têm os de Nova Inglaterra…
De repente Libby sorriu.
—Mas sobre tudo foi pelo Robbie MacBain. Havia sua foto no anúncio que aparecia na Internet. — Deu de ombros — Tinha um não sei o que… Uma expressão de sabedoria imprópria de sua idade. Como se tivesse a chave de todos os segredos do universo. E acreditei… Ou, bem soube que tinha que vir aqui.
Katherine sorriu.
—Ao menos isso entendo depois de conhecê-lo. É muito independente para ser um menino de doze anos.
—Só tem oito anos.
—Oito? — Katherine deu um grito afogado e se apoiou no respaldo da cadeira—. Não pode ter oito anos, é muito grande.
—Faz nove em janeiro.
Sua mãe ficou calada outra vez, mas em seguida ficou de pé e voltou para pia a cortar batatas. Enquanto isso, Libby começou a pôr a mesa para cinco comensais. Estava segura de que Michael e Robbie acabariam jantando com eles.
Ao cabo de um momento rompeu o silêncio com uma pergunta.
—O que faz James aqui? E por que não me ligou para dizer que vinham os dois?
Katherine lhe lançou um rápido olhar com o cenho franzido.
—Tentei. Duas vezes. Mas não respondia e não tem a secretária eletrônica conectada. — Deixou de cortar e se voltou para Libby — Eu não lhe disse onde estava, Elizabeth. E não sei como te encontrou. Mas veio a minha casa e me disse que tinha seguido a pista até Maine e que ia atrás de você.
Deu de ombros.
—Assim que o que ia fazer? Joguei um pouco de roupa em uma mala e vim com ele.
Interrompeu a tarefa de Libby e a pegou pelos ombros.
—Passei todo o voo tentando convencê-lo de que as histórias que contava sua avó B não eram verdade. De que houve uma confusão na sala de cirurgia e de que seu paciente despertou sozinho, nada mais. Elizabeth, o certo é que não pode demonstrar nada, de modo que, se nos mantivermos firmes em nossa versão dos fatos, se renderá e se voltará para casa. Diga que fique com a subvenção e deixará esta… Caça as bruxas.
—Isso é o que acredita que é? — Sussurrou Libby — Uma caça as bruxas?
Katherine lhe estreitou os ombros.
—Claro que não, carinho. Mas James acredita que sim. Ele também cresceu ouvindo as histórias de minha mãe…
Libby procurou outra faca, começou a cortar as cenouras e as jogou à panela com as batatas.
—Maldição! — Resmungou para si — Eu não sou uma bruxa.
Discretamente, Katherine tirou as cenouras e as meteu em outra panela; depois pôs a cozinhar as batatas na boca do fogão.
—Me fale de Michael — Disse enquanto se servia uma taça de vinho e se sentava à mesa com ela — É muito… Bem… Muito corpulento. E contigo agi como se fosse seu… Proprietário. Tem motivos para comportar-se de uma forma tão possessiva?
Com a esperança de esconder seu rubor, Libby baixou a cabeça para concentrar-se nas cenouras.
—Talvez — Disse entre dentes.
Produziu-se um comprido silencio, procedente da mesa, e depois sua mãe lhe perguntou:
—Criou Robbie sozinho?
—Sim. Com a ajuda de Grace MacKeage, a tia do menino.
—Elizabeth, me olhe.
Devagar e a contra gosto, Libby se voltou para olhá-la de frente, elevando o queixo enquanto lutava por impedir que seu rubor se estendesse.
Katherine lhe dedicou uma cálida e maternal sorriso.
—Não pode se comprometer com ele — Disse com doçura—. Agora não.
—Tentei não fazê-lo, mas aconteceu que todas formas.
—Está segura de que não está tratando de se distrair, sem mais?
Libby suspirou.
—Não. Possivelmente. Ai, maldição! Não sei. Michael é… é…
—Todo um homem? — Terminou sua mãe — Com tanta testosterona que ao melhor não é nem são? Elizabeth, sabe no que se coloca? Se comprometer com um homem como Michael MacBain será uma tarefa absorvente. Compreendi-o aos dez minutos de conhecê-lo. Está disposta a renunciar a sua carreira por ele?
—E por que tenho que fazê-lo? Posso ser médica no Maine igual na Califórnia.
—De verdade quer viver aqui? Terá que fazê-lo se te apaixona por ele, porque Michael não me parece uma pessoa disposta a fazer concessões em certas coisas.
Libby não pôde conter seu amplo sorriso.
—Como no referente a como organizamos para dormir esta noite?
Katherine meneou a cabeça.
—Estou segura de que se não chegasse a sugerir ao James que voltasse a registrar-se no hotel, Michael teria encarregado de fazê-lo… E de um modo menos diplomático. Não o encontra um pouquinho… Bem, um pouquinho dominante?
—Dominante? — Repetiu Libby — Talvez seja antiquado, mas, a verdade, não é um troglodita que anda golpeando o peito. Inclusive é bastante civilizado… Quase sempre.
—É impressionante.
Em voz baixa, Libby seguiu revelando a confusão no que se colocou e confessou:
—Me disse que não tem intenção de casar-se… E eu nem penso no matrimônio —se apressou a esclarecer, provavelmente para tranquilizar a si mesma mais que a sua mãe — Michael e Robbie vivem em sua casa, e eu serei uma boa vizinha, nada mais.
Nesse momento o brilhante resplendor de umas luzes entrou pela janela, e em seguida se ouviu que vários veículos se aproximavam da casa. Libby foi para a porta, e Katherine se apoiou na pia para olhar fora.
A caminhonete de Michael estava dando a volta para recuar até os degraus do alpendre; seu espaço de carga estava cheio de algo que parecia uma cama muito grande… E muito sólida.
Robbie saiu de um salto, subiu correndo ao alpendre e se lançou nos braços do Libby. O choque esteve a ponto de fazê-la cair enquanto ela o abraçava e tentava manter os dois direitos.
—Perdão por ter gritado e haver ido correndo — Disse ele no ombro, estreitando-a tão forte que acabou de lhe tirar todo o ar dos pulmões — Papai me prometeu que não vai. Nunca.
—De maneira que sim, né? — Sussurrou Libby, lhe dando um beijo na cabeça — Então me parece que está decidido.
—Sim — Concordou ele com voz emocionada; elevou a vista — E além disso me disse que se nos comportarmos com muita educação, ao melhor a avozinha Katie quererá ficar também.
Libby lhe alvoroçou o cabelo e em seguida se afastou com ele para deixar passar o Michael, que tinha subido ao alpendre com uma enorme cabeceira de aspecto pesado; imediatamente deu um grito afogado, não pela piscada que Michael lhe lançou ao passar, mas sim porque a cabeceira era mais alta que ela.
Correu atrás dele até o quarto e parou de um escorregão justo quando Michael apoiava a cabeceira em uma parede. E então, atônita e com os olhos muito abertos, cravou o olhar em sua nova cama.
Era incrível.
Os postes dos cantos pareciam de carvalho maciço e quase chegavam ao teto. As travessas, também de carvalho, mantinham os postes a mais de metro e meio de distância, formando uma robusta armação que emoldurava a figura de um alce, grande e bem definido, recortado em grosso aço. O carvalho estava tingido de um castanho quente, cor mel, e o alce estava pintado de negro. Caminhava por um bosque de abetos pintados de um limpo verde, também recortados em aço, que eram maiores atrás do animal e menores perto de seus pés.
Libby levantou seus assombrados olhos para o Michael.
—É… É lindo! — Sussurrou.
Passou um dedo pela galhada do alce e meneou a cabeça sem acabar de dar crédito a seus olhos.
—É uma preciosidade. — Voltou a elevar a vista para Michael — De onde a tirou?
—É meu segredo. Você gosta, moça? Não é elegante.
Incapaz de dar com um qualificativo melhor, Libby repetiu:
—É precioso. Eu adorei. De verdade é minha? — Perguntou.
Passou a mão pelo suave carvalho e desenhou o contorno de várias árvores com os dedos.
—Minha mãe! — Disse Katherine em voz baixa, ao tempo que ficava a seu lado—. É uma obra de arte!
Nesse momento Ian MacKeage, que colocava o pé da cama, resmungou:
—Sigo te dizendo que terá que tirar a cama antiga antes de colocar a nova… Onde quer que ponha este condenado traste? Pelos pregos de Cristo, sim que pesa!
Katherine deu a volta para ver de onde saía aquela voz desconhecida e soltou um grito de surpresa quando um gigante de cabelo revolto e povoada barba virtualmente a atropelou. Então afastou a sua filha de um empurrão e, dando tombos, foi atrás dela até que as duas acabaram embutidas no firme corpo de Michael. Libby elevou a vista, e ele se inclinou e lhe beijou a ponta do nariz.
—Nossa, agora sei onde aprendeu a gritar como o faz — Sussurrou — Agora tira a roupa da cama e depois vá assegurar que não queime o jantar. Antes que esteja preparada, Ian e eu o teremos tudo arrumado.
Katherine parecia que estava pregada no chão, assim Libby teve que empurrá-la para que se afastasse. E não só isso; além disso sua mãe estava olhando fixamente ao Ian.
E ele estava lhe devolvendo o olhar.
—Mamãe, apresento ao Ian MacKeage — Disse Libby — Ian, ela é minha mãe, Katherine.
—Senhor MacKeage… Em… Encantada de conhecê-lo. Ian a saudou com um cortês movimento de cabeça.
—Kate…
Olhou a Michael.
—É que pousou no pau como uma galinha para passar a noite, ou vamos fazer este trabalho, MacBain? O jantar cheira bem, e tenho fome — Terminou, ao tempo que girava sobre seus calcanhares e voltava a cruzar a cozinha.
Em silêncio, Michael foi atrás dele, e, de repente, o quarto voltou a parecer grande. Libby olhou a sua mãe, que seguia olhando a porta pela que tinha desaparecido Ian.
—Acredito que há algo na água que faz que sejam tão grandes… — Disse Libby — Assim ultimamente estive bebendo muita água. Se quiser, enquanto você tira os lençóis da cama, eu porei outro prato na mesa para o Ian.
Katherine a deteve agarrando-a do braço.
—Me chamou de Kate — Disse com voz rouca — E esse sotaque É… É…
Libby lhe deu um tapinha na mão.
—Ian é um pouco rude, mas não tem por que ter medo, mamãe, asseguro-lhe isso. Depois de todo esse cabelo, há um homem muito terno.
Por fim, Katherine se sacudiu seu estupor.
—Não lhe tenho medo — Disse — É que É… É…
Então Libby terminou a frase repetindo as palavras que sua mãe lhe havia dito antes.
—Todo um homem?
—Sim, sim; todo um homem — concordou Katherine ao tempo que ia para a antiga cama de Mary e lhe tirava o edredom.
Libby deu uma última olhada a sua nova cama e se deteve examinar o pé que tinha deixado Ian. Era idêntico a cabeceira, mas sem o alce e a metade de alto; uma fila de abetos, perfeitamente igualados como sentinelas, iam de poste a poste. Com os braços cheios de lençóis, Katherine cravou a vista na cama e perguntou:
—Onde acredita que a terá encontrado Michael? Parece feita à mão.
—Deve conhecer um marceneiro que viva por aqui — Aventurou Libby, passando outra vez a mão pela madeira — Me pergunto se me faria uma cômoda a jogo.
Katherine meneou a cabeça e estalou a língua.
—Vá! Está se assentando mais rápido que a geada em uma cabaça.
Libby a olhou subindo uma sobrancelha, e sua mãe elevou o queixo.
—O que? — Perguntou — Talvez B fosse sua avó, mas também era minha mãe. Não me afastei tanto da fazenda para esquecer minhas raízes.
—Sinto falta da avó.
—Sei, carinho. Eu também sinto falta dela.
—Me alegro de que esteja aqui, mamãe.
Katherine acomodou melhor sua carga de lençóis e endireitou os ombros ao tempo que inspirava fundo.
—Me alegro, porque me parece que talvez fique um tempo — Dirigiu-lhe um presunçoso e amplo sorriso — E como terei um trabalho remunerado, inclusive contribuirei com parte do aluguel.
Dito isto, Katherine se dirigiu por volta do banheiro, com os lençóis arrastando atrás dela como o manto de uma rainha.
Justo então se ouviu o Ian gritar:
—Pelos pregos de Cristo, mulheres! Que se queimam as batatas!
Libby correu à cozinha e se encontrou com um desastre fumegante e pestilento que cobria a boca do fogão. As batatas estavam tostadas e secas, e a panela de aço inoxidável estava tão negra que parecia de ferro coado. Agitou um pano para limpar a fumaça e abriu a janela de cima da pia para que entrasse o ar fresco.
Discretamente, Michael lhe tirou o pano, agarrou a panela queimada e a tirou ao exterior.
Quando o ar limpou o suficiente para que Libby visse de novo, havia quatro pares de olhos acusadores cravados nela com diversas expressões. Robbie, com os braços cheios de gatinhos, parecia abatido diante a perda da metade de seu jantar. Katherine parecia consternada. Ian parecia zangado… E Michael? Bom, as comissuras de seus olhos estavam pregadas, e além lhe agitavam os ombros.
James escolheu esse momento para entrar na casa. Afastou a fumaça com uma mão enquanto com a outra tampava o nariz para evitar o aroma.
—encontrei este senhor no caminho de entrada — Disse — Afirma que é sacerdote e que está convidado para jantar.
—Talvez mude de opinião — Disse o padre Daar ao tempo que passava na frente de James, quase roçando-o — Mas, em nome de Deus, o que fez com o jantar?
Ele deu uma olhada assassino a Libby enquanto enrugava o nariz.
—Como pode dizer que pode arrumar os corpos das pessoas se nem sequer é capaz de dirigir uma panela de batatas?
—Eu também me alegro de vê-lo, padre — Disse Libby com ironia, enquanto se voltava para apagar o fogão das cenouras — Mamãe, talvez seja hora de que abra outra garrafa de vinho.
Katherine estava jogando uma olhada à habitação, cheia de escoceses com chamativos casacos.
—Por que vai todo mundo vestido de laranja? — Perguntou — Tentam vocês fazer jogo com a folhagem outonal?
—Ai, pelo amor de…! — Soprou Ian, exasperado, enquanto secava o suor da face com uma larga mão — É que estamos em temporada de caça, mulher, e não nos faz graça que nos matem de um tiro.
—D… De um tiro?
Ian foi a bancada, procurou a garrafa aberta de vinho, encheu a taça vazia que estava junto a ela e a levou a Katherine.
—Quer vir caçar comigo manhã pela manhã? — Perguntou através de sua barba — Tenho um rifle infantil bastante bom que acredito que poderia dirigir bem.
Em vez de responder, Katherine elevou a taça e não a baixou até que não ficou nada de vinho.
—O… Obrigado — Gaguejou ao tempo que a devolvia.
—Então a recolherei às quatro e meia — Disse Ian — Abrigue-se, Kate.
—Mas não, o que queria dizer… É que não posso… — Inspirou fundo para tranquilizar-se, endireitou os ombros e lhe lançou um olhar feroz — Tenho um compromisso anterior para amanhã pela manhã, senhor MacKeage. Mas obrigado por seu amável oferecimento.
—Então, o que lhe parece depois de amanhã? Em teoria vai nevar, mas assim será muito mais fácil seguir o rastro a esses insetos ladinos.
Katherine lhe arrebatou a taça vazia, foi a geladeira e tirou a outra garrafa de vinho. Então Libby decidiu que era hora de resgatar a sua mãe.
—Robbie, por que não leva os gatinhos ao banheiro e lava as mãos? Michael, tira-me o assado do forno? — Enquanto escorria as cenouras na pia, animou a outros a sentar-se e elevou a vista para Michael — Alguém deveria ir procurar ao John. Não vamos deixar que coma sozinho.
—Esta noite visita uns vizinhos — Disse ele.
—Ah, então muito bem.
Michael permaneceu estranhamente calado durante toda a refeição, mas por outro lado Libby também esteve calada. Não sabia decidir se aquele caos a afligia… Ou a regozijava. Das centenas de jantares com convidados às que tinha assistido em sua vida, nenhuma só lhe tinha proporcionado, nem de longe, a alegria que estava sentindo naquele preciso instante.
Tinha a cozinha cheia de gente. A comida estava boa, a companhia era excepcional e o marco não podia ser mais encantador.
Ah, sim… A verdade é que estava acomodando-se ali mais rápido que a geada em uma cabaça.
Ao ver que o carro se detinha no final do campo, Michael desligou a serra mecânica, pô-la ao lado de um toco recém cortado e fez gestos a sua equipe de que continuasse trabalhando antes de descer pela fileira de árvores destruídas de Natal. Depois subiu a viseira do capacete e tirou as luvas. James Kessler desceu do carro, apoiou-se no para-choque e meteu as mãos nos bolsos do casaco.
Michael parou a três passos de distância.
—Perguntava-me quando ia aparecer você — Disse; meteu as luvas no bolso traseiro e se cruzou de braços — Está perdendo o tempo, Kessler. Libby vai ficar.
Esperava alguma reação diante uma declaração tão direta, mas a indiferença do Kessler o surpreendeu.
—Se ficar, será sua ruína — Se limitou a dizer James, sem malícia e só com um indício de preocupação — Tem um contrato e, se o quebrar, jamais voltará a trabalhar como cirurgiã.
—Trabalhará se quiser, se for tão boa como você afirma.
—Não é boa, MacBain, é magnífica. Elizabeth é metódica e meticulosa, e além disso tem um incrível controle de si mesma na sala de cirurgia. É sua vida privada o que está decidida a bagunçar, nada mais.
—É sua vida.
—Não ficará. Ao final superará esta birra e se dará conta do que deixou.
—Se você conhecesse só um pouco Libby, saberia que o que tem não é uma birra. Me diga, se não fez nenhum mal à mulher que quase operou, por que acredita que saiu correndo?
Kessler tomou seu tempo em responder e lhe dedicou um olhar largo e intencionado.
—Não sei — Disse por fim — Embora já desde o começo houve rumores de que havia algo raro no caso. À mulher a tinha visto primeira a equipe da Elizabeth, e necessitava uma operação urgente. Mas quando chegou à sala de cirurgia estava absolutamente sã.
—E que explicação se deu? Libby não foi quão única a viu.
Kessler se endireitou e se separou do carro.
—Não se deu nenhuma explicação. À cirurgiã de referência não a encontrou porque tinha fugido.
—E você está aqui para levá-la de volta e fazer que peça desculpas… Exatamente, por que deve pedir perdão?
—Por partir.
—Ah. Então não fez nada errado do ponto de vista ético.
—Não é ético fugir de seu compromisso com o hospital. E, além disso, tem a responsabilidade de descobrir o que ocorreu a seu paciente.
—Mas tem um compromisso ainda maior consigo mesma — Replicou Michael em voz baixa — Me diga por que você está aqui de verdade, Kessler.
—Elizabeth é minha amiga. Crescemos juntos, e desde que seu pai morreu faz quatro anos, cuidei que ela.
—Não está capacitada para cuidar de si mesma?
— Pelo visto, não. Michael meneou a cabeça.
—É algo mais que sua inquietação por uma amiga o que fez que você cruzasse o país. E algo mais que o que aconteceu a ela na sala de cirurgia. Por que está aqui, Kessler?
As feições do James se escureceram.
—Fez algo a um de meus pacientes — Disse em tom tenso — O pirralho estava em coma quando Elizabeth entrou em seu quarto, mas quando ela saiu, estava incorporado e perguntando por seus pais.
Fechou as mãos aos flancos até as converter em punhos, e sua atitude se voltou defensiva.
—Quero saber o que lhe fez.
Michael sentiu que lhe arrepiava o pelo do pescoço; descruzou os braços e, em voz baixa, perguntou:
—O que você acha que lhe fez?
De repente Kessler soltou um bufo de frustração.
—Você trabalhava a terra, MacBain — Disse ao tempo que assinalava com a mão o campo de árvores de Natal — Não sabe nada de medicina nem das relações de poder que suporta. Elizabeth atendeu o menino aquela manhã, mas, como era meu paciente, não tinha que aproximar-se dele… E não só o fez, mas também o tirou do coma.
Michael pensou na faca que tinha metido na bota e se perguntou como reagiria Kessler se o tirasse e o pusesse na garganta.
—Veio aqui porque está furioso que Libby foi ver seu paciente? — Perguntou.
Voltou a cruzar os braços enquanto meneava a cabeça e depois, fazendo provisão de toda sua vontade, relaxou sua postura e fez caso omisso de seu desejo de equilibrar-se à garganta daquele homem.
—Você parte hoje — Disse sem alterar o tom de voz — E parte sozinho.
—Maldição! Isto nem sequer é assunto seu, MacBain. Só vim porque parece ter certo tipo de… Influência sobre a Elizabeth. E devo saber o que fez a meu paciente.
Uma vez mais, o pelo do pescoço de Michael se arrepiou quando este se deu conta de que não estavam falando de medicina nem de relações de poder. Aquele homem ocultava algo.
Ou andava à caça de algo.
De repente Michael soube que ali se estava jogando algo mais que a carreira de Libby. Não sabia o que tinha ocorrido aos dois pacientes que ela tinha visto aquele dia, mas o caso é que isso a tinha afetado tanto que tinha posto de pernas pro ar sua vida.
Por isso Libby apareceu correndo ali em busca de proteção. Michael esfregou o lugar onde a bola de neve lhe tinha dado o dia antes. De verdade se importava o que tinha ocorrido na Califórnia?
Não. Só se importava que agora lhe pertencia, e que em um instante James Kessler tinha passado de ser uma moléstia a ser uma ameaça.
Michael sorriu e deu um passo para frente.
—Sim, Kessler. Só sou um homem que trabalha a terra — Disse sem alterar a voz — Mas sei mais sobre o corpo humano do que pensa.
Sua voz se transformou em um sussurro.
—Por exemplo — Tocou o peito justo por debaixo do nó da gravata — Sei que se bater a um homem justo aqui, com determinada pressão, lhe esmaga a traqueia.
Afastou a mão e pôs a palma para cima, fazendo caso omisso da repentina atitude defensiva do Kessler.
—E além disso — Prosseguiu — Se o bater na ponta do nariz, fincaria-lhe a cartilagem no cérebro antes que se desse conta sequer de minha intenção.
Kessler recuou um passo e deu contra o para-choque do carro.
—Está me ameaçando? — Perguntou com os olhos muito abertos e a cara ruborizada de ira.
—Sim, faço — Grunhiu Michael ao tempo que o agarrava pela gravata e puxava-o para aproximar-lhe a face, Kessler, merece a pena arriscar sua própria vida por entremeter-se com Libby?
O médico lhe agarrou a mão e tratou de soltar-se de um puxão. Michael se limitou a girar o pulso para apertar o nó contra sua garganta.
—Vá, Kessler. E não volte. E se alguma vez descubro que voltou a ficar em contato com Libby, irei buscá-lo para lhe ensinar tudo o que sei de anatomia humana.
Pronunciada sua advertência, abriu a mão e deu um passo atrás. Imediatamente Kessler colocou um dedo pelo nó da gravata, puxou até afrouxar-lhe e respirou com dificuldade enquanto dava dois passos de lado.
—Está me ameaçando de verdade… — Disse em tom mais incrédulo que assustado — Há leis contra isso, MacBain.
Michael voltou a cruzar os braços.
—Dão-me bastante igual essas leis — Disse com ironia.
Kessler alisou a roupa em uma tentativa de recuperar a calma.
—Olhe, você e eu somos homens civilizados. Não há necessidade de reduzir isto a um pulso sem sentido. Vim vê-lo para lhe explicar minha preocupação pela Elizabeth.
—Aqui só há uma pessoa civilizada, Kessler, e começo a pensar que sou eu. Você finge preocupação por Libby quando o que tenta em realidade é destruir sua carreira.
—Maldição! Não entende? A essas duas pessoas passou algo raro, algo que tem a ver com a Elizabeth. Nem sequer sente curiosidade pelo que lhes fez? Ou é que o cega muito o desejo e não vê que vai babando depois de um condenado fenômeno de feira?
Rapidamente, Michael se adiantou e lhe rodeou o pescoço com uma mão enquanto com a outra o levantava pelo cinturão. Depois o lançou sobre o capô do carro, moveu o polegar até ficar o sobre o pulso do pescoço e apertou.
—Enquanto eu viver e respirar vou me arrepender de não fazê-lo mingau com uma surra agora mesmo — Sussurrou junto à colorada cara do Kessler — Mas para Libby é mais útil inteiro.
Apertou mais o polegar.
—Porque você vai voltar para a Califórnia e vai fazer que desapareçam todas essas perguntas sobre ela.
Kessler se retorceu, tentando tirar o pescoço de debaixo do polegar de Michael. Este voltou a agarrá-lo pela gravata e o arrastou pelo capô ao tempo que rodeava a parte dianteira do carro. Uma vez no lado do condutor, deu um novo puxão em Kessler para o por de pé, abriu a porta e o colocou dentro de um empurrão. Depois se inclinou para olhá-lo nos olhos.
—Tem uma hora para partir do povoado — Disse — Mas primeiro pare na casa de Libby e lhe assegure que vai limpar todas as asperezas no hospital.
Com os olhos exagerados e a cara pálida, Kessler elevou a vista.
—Está você louco! — Sussurrou horrorizado.
—Sim — Concordou Michael — Isso já me disseram. E mais de uma vez comecei guerras por menos disso, de modo que fará bem em fazer o que lhe digo.
Agarrou-lhe o ombro e apertou até que Kessler estremeceu.
—E mais vale que as notícias que cheguem a Libby de Califórnia sejam estupendas, ou irei buscá-lo para terminar com isto. Entendeu? — Perguntou apertando mais forte.
James Kessler assentiu com frenesi.
Então Michael decidiu que a conversa tinha acabado. Fechou a porta do carro com cuidado e retornou andando por seu campo de árvores de Natal enquanto o suor lhe corria pelas costas, apesar de que fazia tão frio que parecia que estivesse a ponto de nevar. E ao tempo que voltava para trabalho, perguntou-se o que teria ocorrido entre Libby e aquelas duas pessoas que tinham estado tão graves e que agora andavam pelo mundo como se nunca lhes tivesse passado nada.
Do alpendre, Libby e sua mãe viram James sair do carro pelo caminho de entrada.
—Parece que tinha pressa— Disse Katherine — Aonde acredita que iria esta manhã antes de vir aqui?
—Eu acredito que foi ver o Michael.
Katherine levou uma mão ao peito.
—Ah! — Disse — Me teria encantado estar ali.
—A mim não — Disse Libby revirando os olhos — Provavelmente Michael se negou a falar com ele e terá estado calado todo o momento.
—Isso não explica por que James decidiu partir tão de repente, depois de ter vindo até aqui e sem obter nada em realidade — Disse Katherine com o cenho franzido — E dava a impressão de que tinha o olhar um pouco enlouquecido, não te parece?
Libby elevou uma sobrancelha.
—Insinua que Michael o espantou? — Riu — Isso é ridículo. Ele não faria algo assim.
Enlaçou o braço com o de sua mãe e voltou a entrar com ela na casa.
—Provavelmente, James se deu conta de que estava agindo de forma estúpida. Agora que viu que não me saíram chifres e rabo de repente, está desejando voltar para fazer-se com o dinheiro dessa promoção antes que eu mude de opinião e retorne.
Depois que entrou na cozinha, Katherine se deteve e tomou Libby pelas mãos.
—De verdade acredita que vai deixá-lo assim? — Sussurrou.
Então Libby investiu o puxão e estreitou as mãos dela.
—Tem que fazê-lo — Assegurou — Como você disse, não pode demonstrar nada. E, além disso, começa a dar-se conta de que só conseguirá ficar em ridículo se seguir adiante com isto.
Katherine sorriu com alívio.
—Claro, tem razão.
Libby deu uma olhada à cozinha e depois olhou outra vez a sua mãe.
—Bom, o que fazemos o resto do dia, agora que nos temos desfeito do James?
—Pois me leva a povoado a comprar uma jaqueta laranja para que não me matem de um tiro. E um gorro. Quero um gorro do Hortelino Troca-letras.
Libby deu um grito afogado e a olhou com os olhos muito abertos.
—Katherine Hart! — Disse — Vou fazer te uma foto e a mandá-la a seu clube de jardinagem!
—Não, faremos um cartão natalino, as duas vestidas de laranja e com rifles na mão, como se estivéssemos a ponto de disparar a algo. Acredita que Ian nos emprestará um par de armas?
—Assim agora é Ian? O que foi com o “senhor MacKeage”?
Sua mãe deu a volta e alargou a mão para agarrar o casaco e a bolsa.
—Esta manhã me despertei pensando que tem razão: debaixo de todo esse cabelo só há um fanfarrão.
Libby agarrou sua bolsa e se dirigiu à garagem. Uma vez ali, foi ao lado do passageiro de seu mono volume, tirou a gaveta de maçãs e o pôs no chão.
—De verdade que tenho que pensar em lhe pôr uns degraus… — Disse enquanto ajudava a sua mãe a subir — Isto é uma estupidez.
Pegou a gaveta e o levou a sua porta; depois de entrar, pôs com esforço a gaveta no assento traseiro sem que as duas sofressem danos de importância.
—Como te ocorreu comprar uma caminhonete tão grande? — Perguntou Katherine, enquanto fechava o cinto de segurança.
—É que me parece que por aqui não têm caminhonetes pequenas. Tudo neste lugar é grande: a paisagem, as montanhas, os homens… Em particular, os caminhões madeireiros. Ah, e deveria ver o cavalo de Michael… A vida é grande aqui. O mais seguro é que acabe com torcicolo crônico.
—Vai me mostrar seu estúdio?
—Claro que sim. Me ajudará a arrumá-lo. Tenho que decidir as prateleiras que necessito.
—Talvez pudesse encarregar a quem te fez a cama que te faça as prateleiras. Podemos cortar ramos secos e pôr neles seus brincos. Para o Natal procuraremos feltro branco e montaremos um cenário temático de temporada.
Libby entrou na estrada asfaltada e lançou a sua mãe um rápido olhar de regozijo.
—A verdade é que isto te parece bem, né?
Katherine lhe devolveu o sorriso.
—Em realidade, parece-me mais que bem. Me alegro muitíssimo por você, Elizabeth. Fazia muito tempo que não te via tão feliz. Está animada; interessada outra vez.
—Interessada?
—Na vida — Disse sua mãe concisa; depois suspirou e meneou a cabeça — E quero te dar obrigado por isso.
—A mim?
Katherine se voltou para olhá-la de frente.
—Sim. Obrigado por ter a coragem de mudar sua vida, por me abrir os olhos à verdade e por me dar a coragem de fazer o mesmo.
Libby lhe lançou outro rápido olhar.
—Não foi coragem, foi medo, puro e duro. Saí correndo, mamãe, porque estava assustada.
—Pôde fazer um montão de coisas além de fugir — Disse Katherine, ao tempo que fazia um gesto desdenhoso com a mão — Você tem caráter, Elizabeth. E me recordou que eu também tenho capacidade de escolha.
—Mas que…? Mamãe, do que está falando?
Katherine se olhou atentamente as mãos, cruzadas em seu colo.
—Faz muito tempo que não sou feliz de verdade… — Lançou um preocupada olhar ao Libby — Não interprete mal, eu amava a seu pai. Mas era um ser tão excepcional que me consumia. Esqueci quem era eu, de onde provinha e o que era importante para mim. Estava tão ocupada sendo a esposa de Barnaby Hart que me esquece de ser Kate.
Endireitou os ombros e olhou pela janela.
—Meu pai sempre me chamava Kate — Sussurrou — Também isso tinha esquecido… Até ontem à noite.
—Nossa o que quer dizer?
Katherine lhe deu um rápido olhar e sorriu.
—Pretendo dizer obrigado por me dar a coragem de ser feliz outra vez. Se não se importar, eu gostaria de ficar aqui com você. Prometo não me intrometer em sua vida; além disso, estarei muito ocupada recuperando a minha… Acredita que a Pene Creek lhe viria bem uma floricultura?
Libby ficou sem fala… Mas muito contente. Não só havia ultrapassado o temporal que tinha chegado da Califórnia, mas também tinha encontrado um formoso arco íris ao final. Sua mãe queria ficar.
Ao Robbie adoraria que a avó Katie ficasse.
Era provável que Ian MacKeage também estivesse contente.
Mas Michael não. Porque, sim, Libby acabava de conseguir uma preciosa cama nova, mas também uma companheira de quarto… Que dava a casualidade de que era sua mãe.
Todos estavam no salão, felizmente fartos depois de outra janta com muitas calorias e uma grande dose de colesterol. John tinha a Guardião aconchegado em seu peito e estava lendo o jornal. Kate acariciava com suavidade a Tímida em seu colo enquanto folheava uma revista de artesanato. Só Robbie estava na cozinha, escancarado no chão, brincando com Problema com uma pena atada a uma corda.
E além disso, por sorte, aquela noite o padre Daar tinha escolhido deleitar com a companhia dos MacKeage.
Michael estava esparramado no sofá, com as longas pernas estiradas; tirou as botas e seus pés, metidos em meias três - quartos, descansavam no degrau da lareira. Tinha os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o repleto ventre, e parecia um homem satisfeito que se recuperava depois de um duro dia de trabalho.
Em troca, Libby estava um pouco menos satisfeita. Em primeiro lugar, os pés não lhe chegavam a lareira, de modo que tinha que apoiá-los nas pernas do Michael. E embora fosse agradável, não bastava.
Queria apoiar todo seu corpo no Michael.
A se possível, seu corpo nu. Queria provar sua nova cama.
Fazia mais de uma semana que James partiu e que sua mãe tinha declarado que ia ficar. Nove dias longos e frustrantes no plano sexual.
Dava-lhe a impressão de que seus hormônios iam explodir.
Ela e Michael as tinham arrumado para dar alguma boa sessão de carícias e chegar quase ao frenesi uma ou duas vezes, até o extremo de que Libby tinha estado a ponto de sugerir que fizessem uma rápida excursão ao povoado mais próximo onde houvesse um motel.
Inclusive tinha dois preservativos metidos na bolsa, se por acaso John ia de visita enquanto Robbie estava no colégio e a equipe de Michael trabalhava lá encima, no campo dos doze acres.
Mas até o momento não se deu semelhante coincidência.
—Como não para de se mover, moça, vou te mandar por mais lenha — A ameaçou Michael, sem incomodar-se em abrir os olhos.
—Mamãe, quando tem pensado voltar para Califórnia para fechar sua casa e organizar suas coisas? — Perguntou Libby.
Kate elevou o olhar da revista.
—Pensei esperar até depois do dia de Ação de Graças.
Imediatamente Michael abriu os olhos e se sentou direito, ao tempo que deixava cair os pés de Libby ao chão com os seus.
—Mas essa é a temporada de mais trabalho — Disse — Contava com sua ajuda na loja. Disse-me que ia nos dar uma mão.
—Ah, não sabia que se começasse tão cedo…
—Ainda ficam duas semanas para Ação de Graças — Interveio Libby — Talvez deveria ir já. Não demorará mais de uma semana em organizar as coisas e voltará com tempo de sobra.
Michael lhe lançou um olhar receoso, e Libby lhe respondeu com um doce e inocente sorriso. Então o olhar dele se transformou em estanho fundido e líquido, e ela intensificou o sorriso um pouco mais.
Devagar, Michael se voltou e se dirigiu a sua mãe.
—Eu a levo ao aeroporto amanhã — Disse.
Kate deu um suspiro, fechou sua revista e acariciou a Tímida sob o queixo.
—É um voo tão comprido que estive postergando-o… Libby, gostaria de voltar comigo para arrumar também suas coisas?
Claro, é mais: deveria fazê-lo. Mas agora mesmo seus assuntos de Califórnia pareciam de pouca importância comparados com outro: conseguir que Michael estivesse sozinho e nu, e bastante aceso para utilizar os três ou quatro preservativos que tinha colocados debaixo do travesseiro de sua cama nova.
—Vou esperar — Disse; levantou-se e estirou os braços com gesto despreocupado por cima da cabeça — Me pus em contato com o Randal Peters por causa de meu descumprimento de contrato, e vai falar com a junta diretiva. De todos os modos é provável que não decidam nada até depois de Natal, e será então quando tiver que aparecer para tentar convencê-los de que não me denunciem.
—De verdade podem te denunciar? — Perguntou John elevando a vista do jornal.
—O certo é que tinha um contrato e o rompi.
—E o que acontece se a denunciam?
—Deixam-me na ruína. E além minha reputação fica arruinada também.
John franziu o cenho em um gesto de inquietação.
—Significa isso que já não poderá fazer de médica?
Libby sorriu.
—Estou segura de que se poderá convencer a um hospital pequeno para que passar por cima meu pecado. As comunidades rurais sempre estão desejando encontrar cirurgiões peritos.
—No Greenville há um pequeno hospital — Comentou John — E outro no Dover-Foxcroft. Poderia perguntar ali.
—Talvez o faça, quando me sentir preparada para “fazer de médica” outra vez. Agora mesmo só quero pôr em andamento meu estúdio… Algo que seria muito mais fácil — Disse ao tempo que lançava uma rápida e penetrante olhada a Michael e depois outra ao John — se alguém me dissesse quem fez minha cama para lhe pedir que me faça umas prateleiras.
John se apressou a levantar de novo o jornal diante de sua cara. E Robbie, que acabava de entrar no salão com Problema encarapitado no ombro, girou sobre seus calcanhares e voltou a dirigir-se à cozinha. Só ficou Michael para lhe jogar um olhar assassino.
Ele sorriu, ficou de pé e lhe deu um golpezinho com o dedo na ponta do nariz antes de entrar na cozinha atrás de seu filho.
—Sobrou bolo? — Perguntou enquanto desaparecia.
Kate riu e se levantou também, acomodando a Tímida no braço.
—Se renda de uma vez — Disse com uma risadinha e uma conjuração — E quando os rapazes decidem unir-se, não os move nem a dinamite.
—Mas que grande segredo é esse? Quem fez a cama deveria estar orgulhoso de sua obra.
—Talvez é que é um tipo antissocial — Disse Kate — Já sabe, o humilde artesão que trabalha por amor a sua arte, não pela glória.
—E eu lhe guardarei o segredo, se o desejar. Só necessito umas prateleiras.
—Por que não diz a Michael o que necessita, e que ele o diga? — Sugeriu Kate ao tempo que se dirigia para andar de acima a deitar-se.
Ah, sim, pensou Libby… Sim que queria contar ao Michael o que necessitava, é claro que sim… E não tinha nada que ver com prateleiras. O que precisava era dele.
Embora Michael parecesse bastante satisfeito com como estavam as coisas agora: uns jogos amorosos de vez em quando, jantar juntos quase todas as noites, ir cada um a seu trabalho todos os dias… e depois, todas as noites, cada um a sua cama.
Alguma vez Libby o tinha surpreso cravando a vista nela com um olhar reflexivo e intencionado em seus olhos cinza. Não sabia dizer o que estava pensando; era um mistério para ela desde dia que James tinha ido vê-lo.
E isso a preocupava. Do que teriam falado?
James não havia dito nada. Voltou, despediu-se dela e de Kate e, depois de lhes desejar todo o melhor, partiu em meio de uma nuvem de neve em pó.
Depois Libby perguntou a Michael o que tinha ocorrido entre ele e James. Mas só tinha obtido um sorriso como resposta, e um beijo que não só lhe tinha fechado o bico, mas também lhe havia feito esquecer até a pergunta.
Enquanto mexia no fogo da lareira, empurrando os rescaldos para a parte de trás e amontoando-os para a noite, John se levantou da poltrona, dobrou o jornal e o pôs em cima de Guardião como se fosse uma barraca de campanha.
—Parece-me que por esta noite vamos deixá-lo — Disse; aproximou-se de Libby e lhe deu um beijo na bochecha — Acabo de ouvir ficar em movimento a caminhonete do Michael. Obrigado pelo delicioso jantar, Libby. É muitíssimo mais fácil ir trabalhar todos os dias sabendo que vou tomar uma comida decente de noite. É uma boa cozinheira.
Depois de dizer adeus com a mão, foi até a caminhonete; Robbie já esperava dentro e mandou a Libby uma enorme saudação pelo para-brisa antes de abrir a porta para que entrasse John e ficar no centro do assento. Libby viu que o assento do condutor estava vazio.
Nesse momento Michael saiu da cozinha sacudindo a serragem do jaquetão.
—Tornei a encher a caixa da lenha — Disse ao tempo que alargava a mão e lhe dava um quente abraço — O jantar esteve muito bom esta noite, moça. Obrigado.
—E já que comeu toda minha comida, vai.
—Tenho dois caminhões que vão a Nova Iorque amanhã pela manhã, e ainda não estão carregados. A equipe chega ao amanhecer.
Ela suspirou e apoiou a cabeça em seu peito enquanto lhe rodeava a cintura com os braços por debaixo do jaquetão. Ele puxou as bordas por cima de suas costas para fechá-lo e a abraçou forte.
—Parecia muito decidida a te desfazer de sua mãe esta noite, moça. Algum motivo em concreto?
Ela beliscou o flanco e lhe sorriu pega ao peito quando deu um pulo.
—Você sabe por que. Está me matando, Michael. Rodeada de pessoas o perigo de explodir.
Sob sua orelha, o peito dele retumbou com uma risada carinhosa.
—Sim. E tenho muita vontade de vê-lo.
Seus braços a estreitaram com mais força, quase levantando-a do chão, e depois lhe fez sentir calafrios pelas costas ao lhe sussurrar na orelha:
—Logo, Libby, teremos que provar sua cama nova.
—Por que não quer me dizer quem a tem feito?
— Porque me pediu que não lhe dissesse isso. Ela elevou a vista e sorriu.
—Foi Papai Noel? É em realidade um de seus elfos e jurou guardar seu segredo?
Ele a beijou no nariz.
—Se disser que sim, desmascaro-me eu sozinho, verdade? Desfruta da cama, moça, em vez de convertê-la em um quebra-cabeças que tem que resolver.
—Desfrutaria mais se não tivesse que dormir sozinha… — Sussurrou ela ao tempo que subia um pé pela parte de atrás de sua perna.
—Seja boazinha — Resmungou ele — Temos público.
—Sempre temos públic…
A pesar do público, Michael a beijou em plena boca, Libby se agarrou a ele, devolveu-lhe o beijo e voltou a subir o pé pela perna. O beijo se transformou em um grunhido, e ela sorriu.
Ao melhor Michael pensava que sabia como lhe fechar o bico, mas ela sabia ganhar com suas próprias armas, para quando se foi para sua caminhonete, estava segura de que saiam fumaça das orelhas… E além disso caminhava com passo um pouco duro, tinha apertados os punhos… E o que resmungou enquanto descia do alpendre seguro que não era, nem muito menos, um pouco apropriado para os ouvidos de Robbie.
Kate demorou outros dois dias em ir por fim a Califórnia. Michael tinha se oferecido a levá-la ao aeroporto do Bangor, mas ao final foi Libby que a levou, que queria fazer algumas compra em um povoado que tivesse mais de duas lojas. Depois de despedir de sua mãe, passou todo o dia em Bangor, e agora a parte de atrás de sua caminhonete estava cheia até o teto de bolsas.
Tinha decidido que era hora de transformar sua casa em um lar. Já tinha falado com seu jovem caseiro e obtido sua autorização para subir parte do antigo mobiliário ao sótão. Libby respeitava Mary Sutter e a todos os Sutter que a tinham precedido, mas era importante que desse à casa seu próprio selo.
Ia começar pelo quarto.
Sua preciosa cama nova foi sua fonte de inspiração. Os alces eram uns animais íntimos de puro feios, com suas enormes gargalhadas, suas barbas pendentes, suas largas e fortes patas e suas descomunais cabeças. E, além disso, os abetos da cama, pintados de um verde tão vivo e intenso, fizeram-na decidir-se por uma ambientação que invocasse os bosques e a vida ao ar livre.
Em algum lugar da parte traseira da caminhonete havia uma sacola que continha lençóis de flanela com estampado de bordas de pinhas e pinheiro. Inclusive tinha encontrado uma colcha de patchwork com grupos de colimbos, alces, ursos negros e carboníferos, que, segundo se tinha informado, era o pássaro oficial do estado de Maine. Também tinha comprado uma capa de canapé com volante de quadros, capas de travesseiro e vários jogos de toalhas para combinar.
Tinha comprado, do mesmo modo, dois abajures novos para os lados da cama, ambas esculpidas em madeira de abedul com carvoeiros pousados nos ramos. Além disso, por algum lugar, ali atrás, havia um tapete de lã, uma gravura emoldurada com um alce comendo em um pântano entre a névoa matinal e cortinas novas a jogo com a capa do canapé.
Mas suas compras mais fascinantes e, ironicamente, as menos caras, eram umas estrelas fluorescentes que tinha encontrado em uma pulcra tendinha do centro de Bangor. Estava desejando chegar a casa, as pegar no teto do quarto, apagar as luzes e ficar adormecida sob as estrelas.
Libby concentrou seu olhar além dos limpadores de para-brisas, enquanto estes tentavam seguir o ritmo da chuva torrencial que levava trinta quilômetros tamborilando a caminhonete. Começava a parecer-se mais a geada que a chuva, e Libby se alegrou de ter atravessado Pene Creek antes de que as estradas se gelassem. Agora só faltavam quatro quilômetros e meio. Durante todo o caminho de volta, a rádio havia dito que um vento do nordeste subia pela costa e que a chuva se converteria em neve, primeiro nas montanhas e, provavelmente, para o anoitecer. Já anoitecia, e o homem do tempo estava demonstrando ter razão.
Quando saiu para Bangor, Michael lhe deu seu telefone móvel e já a tinha chamado três vezes. A última tinha sido muito contundente; havia-lhe dito que colocasse o traseiro na caminhonete e voltasse para casa antes que chegasse a tempestade.
Mas não se importou sua atitude de macho… Simplesmente porque não conseguia cansar-se daquele sujeito.
Possivelmente no dia seguinte de noite pudessem ficar de verdade. Passaria o dia reorganizando seu quarto, pondo-o bonito e romântico. Depois tomaria um bom banho de espuma bem longo, pintaria as unhas dos pés e inclusive resgataria um pouco de maquiagem.
Como era uma mulher moderna, pediria a Michael que saíssem. Passaria a recolhê-lo, pagaria o jantar e depois o levaria de volta a sua casinha de solteira para que lhe desse as obrigado como Deus manda pela agradável noite.
Ao melhor até lhe comprava um vistoso buquê de flores.
Libby deu um suspiro de alívio quando por fim estacionou na garagem. Desceu de um salto e depois correu à porta; de ali, através da mistura de neve e água que agitava o vento, olhou o galinheiro. Maldição… Não havia mais remédio: era preciso ocupar-se das galinhas. Subiu o capuz da jaqueta, cruzou o jardim a toda velocidade, entrou no galinheiro como uma exalação… E com as mãos afastou o torvelinho de penas que levantaram as assustadas aves.
—Perdoem, garotas. Bom… A que estamos tudo o mar de rosas aqui dentro? Têm algum ovo para mim esta noite?
As galinhas piscaram como resposta e imediatamente começaram a lhe bicar os sapatos cobertos de barro. Libby lhes trocou a água do bebedouro e voltou a lhes encher a manjedoura. Depois recolheu seis enormes ovos, os meteu nos bolsos e voltou a sair correndo à tempestade.
Quase chegava à garagem quando de repente deu um escorregão. Embora ficou a agitar os braços e a espernear para não perder o equilíbrio, deu uma boa pancada e caiu com um golpe surdo, de barriga para cima, em metade de um enlameado atoleiro de neve derretida. Ouviu que algo se partia e demorou todo um minuto em dar-se conta de que não tinham sido seus ossos; o que tinha quebrado eram os ovos.
A cabeça ia explodir de dor, doíam-lhe os ombros quase tanto como os dentes e tinha as mãos arranhadas. E quando tentou limpar os olhos de barro, o granizo quase a cegou.
—Bom, diabos… Bem-vinda a casa, Libby— Murmurou, ao tempo que se dava a volta devagar e voltava a levantar-se muito lentamente.
Fazendo um leve ruído de chapinho, entrou na garagem, tirou os enlameados sapatos e depois entrou com o mesmo chapinho na casa.
Um bendito calor a recebeu. Calor, luz de velas… E um aroma de comida queimada.
Ficou petrificada… Bem porque estava muito ocupada em olhar boquiaberta ao Michael, ou porque a habitação não deixava de dar voltas.
Ele estava sentado à mesa da cozinha, meio oculto depois de um floreiro cheio de rosas situado entre duas velas acesas e quase consumidas. Junto a seu punho, que rodeava uma estilizada taça de cristal quase vazia, havia uma garrafa de vinho aberta.
—Ficavam cinco minutos; depois teria ido te buscar — Disse em voz baixa enquanto se levantava devagar — Tem muita sorte de estar já de volta.
Parte dela quis jogar-se em seus braços… Mas seu instinto fez que desejasse voltar a sair correndo em vez de confrontar a tormenta que se morava ali dentro. Assim ficou onde estava, gotejando água por todo o chão e conteve as lágrimas.
—Eu caí — Sussurrou com voz rouca — E além estragou a surpresa. Eu ia chamar- te por telefone… E… E te pedir que saísse comigo, e ia comprar flores e te levar a jantar…
Imediatamente ele se apressou a ir para ela e acendeu a luz da cozinha, mas Libby não deixou de falar.
—E além disso ia paga-lo, e você depois me corresponderia… Aqui, em minha cama nova.
Michael não disse nada; limitou-se a passar as mãos por cada centímetro de seu gelado e enlameado corpo, assentindo com a cabeça a cada afirmação que ela fazia.
—Tinha tudo planejado — Seguiu Libby enquanto, com movimentos torpes, tratava de ajudá-lo na tarefa de tira-la da roupa — Ia pintar as unhas dos pés. Tenho estrelas. Íamos dormir debaixo. Entre pinhas. E com… Com os carvoeiros.
—Você bateu com cabeça —disse Michael; passou os dedos por seu couro cabeludo — Sim, que galo… Venha, moça, tenho que te lavar.
A cozinha começou a dar voltas de novo quando ele a levantou nos braços.
—Estragou minha surpresa… — Insistiu, enquanto tratava de recordar se já o havia dito.
—Não, moça — Replicou ele em voz baixa, pondo-a no cesto do banheiro — Você estragou a minha. Se segure aqui.
Pôs as mãos em torno do lavabo para que não caísse. Depois abriu a ducha e se voltou de novo para ela; ajoelhou-se e, com suavidade, tocou outra vez o galo.
—Agora se ajoelha… — Sussurrou ela — Tinha que fazer isso amanhã de noite.
—E o farei — Prometeu ele; acariciou-lhe com os polegares as faces cheias de barro — Como caiu, Libby?
—Quase me afogo em um atoleiro. Tenho quebrado os ovos.
—Mas não tem quebrado esse formoso pescoço; isso é o que importa.
—Quem me fez a cama?
—Papai Noel.
—Vou escrever-lhe uma carta. Quero uma cômoda pelo Natal. Tem um peito precioso…
Sem perdê-la de vista, e ainda ajoelhado diante dela, Michael tinha tirado a camisa. Libby alargou a mão e lhe tocou o peito. Depois suspirou e se inclinou para frente, decidida a lhe beijar um mamilo.
Com suavidade, tomou a cabeça entre as mãos e a pegou antes que seus lábios aterrissassem.
—Tem uma contusão cerebral — Disse.
—Não. Sou médica. Sei.
—Bom, pois algo te sacudiu os miolos, moça. Venha, vamos à ducha — Disse.
Levantou-a do cesto nos braços e a depositou na banheira.
Libby deu um grito ao notar a água quente, e teria caído se ele não tivesse estado segurando-a. Mas se tranquilizou quando, pouco a pouco, o calor começou a penetrar em seus ossos até que por fim a névoa que havia em sua cabeça limpou, enquanto aquela orvalhada celestial arrastava rios de barro pelo deságue.
—Já… Já estou bem — Sussurrou, envergonhada de repente ao ver que a banhavam como uma menina — Já termino eu.
Ele fez caso omisso de suas palavras e, depois de lhe pôr um jorro de xampu no cabelo, friccionou com suavidade até tirar espuma, tomando cuidado com o galo.
—Levo uma hora te chamando no celular — Disse enquanto seguia lhe lavando a cabeça, sem elevar a voz, embora Libby ouviu a aspereza de suas palavras — Por que não respondeu?
—Pareceu-me ouvi-lo soar, mas estava na parte de trás da caminhonete, em uma das bolsas, acredito.
O suspiro de Michael fez que lhe arrepiasse a pele.
—Tinha que ter parado para buscá-lo. Estava muito preocupado, moça.
O manter os olhos fechados para que não lhe colocasse sabão estava deixando-a tonta outra vez. agarrou-se ao cinturão de Michael com uma mão enquanto, como uma tola, tampava os seios com a outra.
De repente a água se cortou, e ele a tirou nos braços da banheira e se apressou a envolvê-la em uma toalha. Pôs outra pela cabeça enquanto a estreitava contra seu peito e a levava ao quarto.
A luz das velas piscava por toda a habitação, e havia dúzias de rosas metidas em floreiros, situadas sobre todas as superfícies disponíveis. Então as lágrimas de Libby se derramaram sem freio ao dar-se conta, por fim, de que Michael sim que era romântico.
Ele a pôs na cama, tirou-lhe a toalha e, com ternura, beijou-a na face.
—Não se atreva a chorar — Sussurrou enquanto lhe esfregava com suavidade o cabelo para secar — Não está ferida, já não quero te estrangular e Papai Noel não te trará uma cômoda se molhar de lágrimas toda a cama.
—Estraguei a surpresa… — Disse ela com voz rouca ao tempo que o rodeava com os braços e afundava a face em seu peito — Me comprou flores… E velas. É um romântico, e eu estraguei tudo.
—Shhh — Cantarolou ele em voz baixa enquanto se deitava junto a ela na cama e, com suavidade, aproximava-a contra seu flanco — Só se danificou a comida, moça. Temos o resto da noite para passá-lo bem. Ainda tem estrelas na cabeça?
— Não. Estão na caminhonete.
Ele se afastou um pouco e a observou com olhos receosos.
—Na caminhonete? — Repetiu.
—Com os carvoeiros — Acrescentou ela.
Se aconchegou contra ele e fechou os olhos. Depois bocejou e passou a mão pelo peito, deixando que seus dedos descansassem no sedoso pelo que lhe rodeava os mamilos.
—Tem um peito precioso.
Michael passou uma perna por cima do quadril e a pegou bem a ele.
—Você também tem um peito precioso — Disse dando outro suspiro — Durma, Libby, mas vou despertar te cada hora.
—As camisinhas estão na gaveta.
—Para ver se teve uma contusão cerebral, moça — Disse ele com outro suspiro, este de exasperação.
—Não tenho uma contusão.
—Me alegro. Mas vou te despertar de todos os modos.
Libby elevou a cabeça.
—Vai às escondidas outra vez antes de que seja de dia?
Ele voltou a aproximá-la a seu peito e a manteve ali.
—Não. Robbie passa a noite com os Doam. Amanhã vai com a Leysa e Rose fazer umas compras.
—Eu comprei no Bangor. Minha caminhonete está cheia.
—Sim. Cheia de estrelas, já me disse.
—E de outras coisas — Murmurou ela, contendo outro bocejo.
Michael a acomodou de forma que sua boca ficasse para cima e seus seios o tocassem.
—Está ficando quente? — Perguntou subindo o edredom pelas costas — Te dói em algum outro lugar, além da cabeça?
—Não, mas me doerá pela manhã.
—Não. Já verei o que faço com suas dores… Pela manhã, moça. Agora durma.
—Promete-me que estará aqui?
—Sim, durma.
Sentindo suas palavras pousar-se nela como uma suave carícia, Libby se aconchegou contra Michael e ficou adormecida em sua cama nova, contente por estar a salvo da tempestade e dos atoleiros devora-pessoas.
Michael cravou o olhar no teto enquanto escutava o suave subir e descer da respiração de Libby. O granizo apedrejava a janela e a tempestade seguia bramando, sem consideração alguma pelos desafortunados a quem pegava à intempérie.
Tinha a testa coberta de suor. Tinha passado duas horas infernais esperando a que Libby voltasse para casa, e justo acabava de terminar a paciência quando a ouviu chegar à garagem. Os cinco minutos que demorou para entrar estiveram cheios de fantasias nas que estrangulava a aquela mulher por fazer que se preocupasse daquela maneira.
Como diabos ia imaginar que iria ver primeiro as galinhas e que não faria falta estrangulá-la, porque se escorregaria e se daria um bom golpe ela sozinha?
A sensação de culpa era uma emoção espantosa, mas, por desgraça, estava familiarizado com ela. Tinha falhado a duas mulheres em sua vida, e devia ter especial cuidado para não falhar a Libby também.
Esfregou o peito, no lugar onde o tinha golpeado com a bola de neve fazia quase duas semanas. Ela não sabia, mas tinha dado justo no coração… E tinha deixado uma marca indelével que o tempo não só fazia mais profunda, mas também ia estendendo; agora Libby formava parte dele, tanto que logo não saberia viver sem ela…
Já não sabia viver sem ela.
De maneira igual as estrelas, pensou com uma silenciosa risadinha. Mas do que falava? E o que era o de um encontro no dia seguinte de noite? Pelo visto, pensava convidá-lo a sair e depois pretendia levá-lo de volta ali e seduzi-lo. Em sua cama nova… Que havia feito Papai Noel.
Bom, pois Papai Noel sentia uma repentina curiosidade.
Muito devagar, Michael se levantou da cama e depois de agasalhar bem Libby com o edredom e lhe pôr um travesseiro à costas no lugar onde tinha estado ele, foi à cozinha, sem fazer ruído, colocou as botas e se dirigiu à garagem. Uma vez ali, fechou a enorme porta para não deixar entrar a tempestade e abriu a porta traseira da caminhonete.
A luz interior se acendeu, embora obscurecida pelo montão de sacolas que chegavam até ela. Michael deu um assobio e meneou a cabeça, assombrado.
Não era de estranhar que Libby não se mantivera acordada. Não tinha uma contusão cerebral: estava moída depois de fazer tantas compras. Menos mal que a senhora era proprietária de uma caminhonete enorme; necessitava-a, dada seu evidente vício às compras.
Começou a tirar sacolas e às colocar na casa, e ao cabo de quatro viagens encontrou os carvoeiros encarapitados em uns abajures: insetos de tamanho natural que revoavam por um tronco de abedul de mais de meio metro de altura. Levou os dois abajures ao salão e pôs uma a cada extremo do suporte da lareira. Conectou-os e acendeu, e depois deu um passo atrás para ver como ficavam.
Pareceram-lhe uma maravilha; sua luz projetava um suave resplendor sobre os lisos paus com que estava coberta a lareira. Satisfeito de ter encontrado um novo lar aos carvoeiros de Libby, girou sobre seus calcanhares e voltou a ir à caminhonete.
Colocou no ombro o tapete enrolado, e quando agarrava duas sacolas mais, um fino pacote de vivas cores caiu de uma delas. Recolheu-o do chão da caminhonete, deu-lhe a volta e sorriu.
Estrelas. “Uma porção de estrelas”, dizia a etiqueta: doze dúzias de estrelas que brilhavam na escuridão e se pegavam a quase todas as superfícies. Michael colocou o pacote na sacola e retornou à cozinha. Ao passar deixou as sacolas sobre a mesa e seguiu até o salão, onde procedeu a colocar o tapete diante da lareira e a desenrolá-lo.
Mais carboníferos, assim como outras aves do bosque. Perfeito. Fazia jogo com os abajures e encaixava muito bem entre a lareira e o sofá.
Libby talvez lhe tivesse quebrado a surpresa desta noite, mas quando despertasse pela manhã lhe teria outra preparada. Voltou para a cozinha e começou a abrir todas as sacolas para tirar lençóis, cortinas, um pacote que dizia que era uma capa de canapé com volante (ou seja, que diabos seria aquilo) e toalhas.
Mas as estrelas continuavam lhe chamando a atenção. Para que quereria Libby estrela? Abriu os pacotes e as jogou em cima da mesa. Cento e quarenta e quatro, de diferentes tamanhos. Voltou a ler a etiqueta e pouco a pouco, começou a rir. “Pegar ao teto”, diziam as instruções.
Assim Libby queria dormir sob as estrelas… Bom, maldição, pois dormiria sob as estrelas. E, além disso, esta mesma noite. tirou as botas de um chute e, sem fazer ruído, entrou no quarto. Inclinou-se sobre Libby para comprovar que estava profundamente adormecida e lhe tampou a face com a borda do edredom antes de acender a luz; depois, com cuidado, elevou a mão e começou a pregar estrelas no teto.
Construiu a Ursa Maior sobre o extremo norte da cama; depois foi para o sul e dispôs Orión. Agrupou várias estrelas em uma larga fila para imitar a Via Láctea e colocou todas as constelações que pôde.
Necessitava mais estrelas: ainda ficava a metade do teto por encher. Desceu da cama, retornou à mesa da cozinha e derrubou as sacolas que ficavam. Encontrou outros seis pacotes de estrelas.
Seis…? Diabos, mas é que Libby pensava cobrir toda a casa?
Sentou-se à mesa e se serviu o que ficava de vinho; depois tomou um comprido gole e cravou a vista em todas as coisas que tinha comprado.
Estava construindo seu ninho. Ali, diante de seus olhos, tinha todos os sinais de uma mulher que estava instalando-se. Libby tinha adotado Maine como seu novo lar e estava rodeando-se de toda sua parafernália.
“Não ficará”, havia dito James Kessler.
Entretanto, em vista do que tinha comprado, Michael soube que já não tinha que preocupar-se pelas intenções de Libby. Estava pousando-se no pau como uma velha galinha que se prepara para aninhar.
Alegrou-se. Levava duas semanas em brasas, hesitando entre o medo a pressioná-la e as vontades de lhe aplicar a mão dura para fazer que ficasse. De um gole, tomou o resto do vinho e se levantou. Se aquela mulher queria sentir-se cômoda, ele a ajudaria a fazê-lo.
Com Problema, Guardião e Tímida mais interessados em brincar com as sacolas vazias que em dar uma mão, demorou quase toda a noite em acabar o trabalho. Lavou e dobrou os lençóis novos de Libby, dispôs suas toalhas, pôs a toalha na mesa da cozinha, repartiu as almofadas novas pelo sofá, pôs em lugares estratégicos as velas que tinha comprado e pendurou a gravura do alce em cima do suporte da lareira.
E além disso pegou cada uma das ditosas estrelas reluzentes em cada um dos tetos do piso de baixo da casa.
Amanhecia quando por fim se meteu na cama e aproximou de Libby contra seu cansado corpo, com a esperança de dormir um pouquinho ele também.
Sim, fazia um bom trabalho tampando de penas o ninho do Libby.
—Vai fingir muito mais tempo que está dormindo, pois se for fazê-lo, escreverei a Papai Noel para lhe dizer que não te traga nada no Natal?
Já sabia Libby de onde tinha tirado Robbie o costume de dizer “pois” todo o momento.
—Shhh —Sussurrou, aconchegada contra o quente corpo de Michael — Estou saboreando o fato de que ainda esteja aqui.
—Ainda estou aqui — Disse ele com voz emocionada —E muito agradecido de que você esteja também. Deu-me um bom susto ontem à noite, Libby. Tinha que ter chegado antes da tempestade.
Ela abriu os olhos por fim e encontrou o Michael apoiado em um cotovelo, com um olhar feroz e acusador cravado nela.
—Meu cérebro está um pouco confuso ainda, mas não tratamos deste tema ontem à noite?
—Em parte — Concordou ele ao tempo que dava a volta e a segurava em seu lugar — Mas me parece importante que o repassemos outra vez. Tem que fazer caso das predições meteorológicas e planejar seus assuntos as tendo em conta.
—E isso acreditei fazer — Elevou a mão e passou um dedo pelo lado da face — Lamento ter te preocupado. Não voltarei a fazê-lo. E a próxima vez não soltarei o celular.
Ele pareceu surpreender-se por sua desculpa, embora também deu a impressão de que desconfiava um pouquinho. Depois a beijou com avidez enquanto deslizava a mão por debaixo da manta e procurava um de seus seios nus.
—Bem… Fizemos…? Você e eu… Fizemos amor ontem à noite?
Com as sobrancelhas levantadas em um gesto de interrogação, ele se afastou.
—Não o recorda? — Perguntou ao tempo que passava uma mão pelo galo — Pois sim que te deu um bom golpe.
—Lembro como me cuidava, mas fiquei adormecida. Você… Você disse que despertaria cada hora. Despertou?
Ele soltou um suspiro que agitou o cabelo de Libby.
—Parece-me que acabam de me insultar — Meneou a cabeça — Não se lembra de nada? Nem sequer de que me disse onde tinha posto as camisinhas?
Libby o olhou horrorizada.
—Eu…? Nós…? As usamos todas? Inclusive os duas que levava na bolsa? Mordeu o lábio inferior para que não tremesse. Maldição, tinham estreado por fim sua cama nova… E ela não se acordava de nada!
—Te...Tem alguma mais? — Sussurrou.
—Ao melhor. Por que?
—Pensava que poderíamos… Bem… Fazê-lo outra vez. Estou completamente acordada, Michael. Desta vez me lembrarei, prometo.
—Não sei… — Ele elevou a vista para a cabeceira como se o pensasse — Provavelmente, decepcionarei-te tanto que voltará a esquecê-lo.
Nesse instante Libby alargou a mão, agarrou-o por cabelo e o obrigou a olhá-la.
—Está mentindo — Disse em tom acusador enquanto o observava atentamente — Ontem à noite não me tocou.
Michael adotou uma expressão ferida.
—Ontem à noite toquei cada centímetro seu, moça — Sussurrou em tom gutural, lhe fazendo sentir calafrios — Recordo muito bem que te beijei essa preciosa marca de nascimento que tem no quadril esquerdo.
Os calafrios se transformaram em formigamentos de calor quando umas imagens eróticas vieram a mente de Libby. Ai, por que não se lembrava?
Ao melhor sim que tinha uma contusão cerebral.
—Quer beijá-la outra vez? —Perguntou; baixou um dedo pelo lado da face de Michael, deteve-o em sua boca e lhe desenhou a curva do lábio inferior — E esta? Destacou um pequeno sinal que tinha no ombro direito.
—Estou segura de que me lembraria se me tivesse beijado isso. Sou especialmente sensível aí.
Os intensos olhos cor estanho se iluminaram com o reflexo de uma risada que por fim escapou quando ele deu a volta, sem soltar Libby, até que esta se encontrou sentada escarranchado sobre sua cintura.
—Possivelmente sairia melhor se beijasse você meus pontos sensíveis — Disse com voz densa ao tempo que elevava os quadris. Ela deu um grito afogado quando sua ereção a tocou intimamente — Desse modo talvez se lembre.
—Mas gastamos todas as camisinhas… Não?
Com a cabeça, ele assinalou a mesinha de noite, e Libby se inclinou e abriu a gaveta. Quatro fileiras de pacotes saíram de repente.
Aquele homem tinha metido uma dúzia de preservativos em sua mesinha de noite?
Levantou-se e o olhou com os olhos entrecerrados em um gesto de desconfiança.
—Esperamos visita? — Perguntou em voz baixa — Ou é que, simplesmente, é otimista?
—Vamos, moça… — Disse ele; tremendo de risada, deu a volta com ela até que Libby ficou debaixo de seu corpo — Não os quero em casa, onde Robbie talvez os encontre e fica a fazer perguntas. Juro que esse menino tem mais pergunta que toda uma classe de pirralhos inteira. Sorriu, beijou-a no nariz e elevou as sobrancelhas.
—Mas tenho que dizer que em uma coisa tem razão: sim que você tem seios bagunceiros, senhorita Hart.
—Como?
Michael lhe beijou a ruborizada face e deixou que seus lábios se atrasassem nas abrasadas bochechas.
—Que ele… Que Robbie disse que tenho… Ai, Deus! — Disse ela, indignada, enquanto tentava fundir-se na cama.
Afastou a boca de Michael e tampou a face com o travesseiro.
—Não quero saber sequer como surgiu o tema de meus seios — Disse entre dentes.
Ele afastou o travesseiro e o atirou ao chão.
—Pelo visto, Frankie Boggs acredita que os seios pequenos estão bem se forem bagunceiros — Esclareceu entre beijos.
—Quem é Frankie Boggs?
—A autoridade de sua classe em matéria de mulheres — Repôs Michael justo quando suas mãos subiam pelas costelas dela e cobriam os bagunceiros seios; passou o polegar por seus mamilos — Sendo médica, talvez deveria se oferecer para dar uma aula de educação sexual na escola.
Libby aspirou e tentou seguir o ritmo da conversa.
—Aos meninos do primário? — Disse escapando um grito; ele tinha descido a cabeça e estava tomando um mamilo na boca. Sua respiração se transformou em um ofego — Fecha o bico, Michael…
Rodeou-lhe o pescoço com os braços e o estreitou contra ela.
—Fecha o bico e me faça amor. Ele suspirou enquanto se mudava de um mamilo a outro.
—Se insistir, moça… — Murmurou contra sua pele — Mas tenta prestar atenção desta vez.
Sim que prestaria atenção, seguro… E também tinha a firme intenção de participar.
Com lenta e terna atenção ao detalhe, Michael e Libby por fim estrearam a cama nova. Revolveram a roupa até que só ficou em seu lugar o lençol de baixo… E este começou a soltar-se pelos cantos.
A plena luz, sem que os curvassem preocupações exteriores, exploraram-se mutuamente cada centímetro do corpo. Ela descobriu mais de um lugar sensível no Michael, enquanto que ele descobriu uns quantos mais nela.
As preliminares nos que tanto se treinaram durante as duas semanas anteriores agora pareceram durar uma eternidade, até que por fim Libby elevou as mãos por cima da cabeça e agarrou os cascos do alce que estavam na cabeceira. Michael se ajoelhou entre suas coxas, cravando o olhar nela com olhos de líquido e vertiginoso metal, embainhou o preservativo e depois, devagar, baixou seu corpo sobre o dela.
—Ah, moça, como eu gosto disso! — Sussurrou penetrando-a com cuidado, cobrindo com sua boca o gemido dela.
As sensações explodiram quando Libby se sentiu alargar-se e aceitar devagar aquela suave invasão. Então lhe rodeou a cintura com as pernas, fechou os olhos e se agarrou a cabeceira enquanto ele impunha um suave ritmo que a embalou de prazer. Mas, por agradável que fosse, simplesmente, aquilo não bastava.
—Depois de tudo, acredito que esta cama não é sólida… — Sussurrou, desafiando-o — Dá a impressão de que está preocupado se por acaso se quebre.
Ele se deteve.
Sorrindo, Libby elevou o olhar para ele.
—Eu tampouco quebrarei Michael.
Ele soltou um pequeno grunhido, cobriu sua boca e voltou a mover-se, desta vez com um pouquinho mais de entusiasmo. Ela se agarrou a seus ombros e gemeu seu prazer em voz alta.
Ele voltou a parar.
—Não faça isso — Disse em tom crispado.
Com a testa coberta de suor, os olhos escuros de paixão e os braços tremendo, afastou-se um pouco dela.
—Fazer o que?
—Isso — Sussurrou ele em tom desesperado; em seguida sua voz se encheu de indignação — Vê? Isso. Quase se retirou dela.
—Quero que isto dure.
Sem querer, os músculos de Libby se esticaram, e nesse momento Michael voltou a soltar um bufo de aborrecimento, saiu de tudo e rodou até ficar de barriga para cima.
—É horrível fazer isso a um homem que está tentando manter o controle!
Libby se voltou sobre o cotovelo e lhe deu uns tapinhas no peito.
—Não o faço de propósito. Nem sequer estou segura de saber exatamente a que se refere.
Ele a agarrou como se fosse uma pluma e, com cuidado, a encaixou suavemente em cima. Libby conteve o fôlego, afundou-lhe as unhas no peito e gemeu. E desta vez foi ela quem impôs o ritmo e se recreou em sua recém descoberta liberdade de rebolar, mover-se e deixar loucos os dois.
Ia se saindo muito bem… Até que Michael alargou a mão e a acariciou exatamente como havia feito aquela primeira noite diante da lareira.
O último pensamento coerente de Libby enquanto chegava ao clímax foi que o alce de sua cabeceira tinha um sorriso bobo na cara.
—Tem seis dedos nos pés! — Disse Libby a Michael enquanto cravava o olhar no fundo da banheira; não podia olhar a nenhum outro lugar sem encher a face de sabão.
—Não! — Gritou ele horrorizado — É verdade!
Também olhou para baixo, e então seu quadril empurrou Libby contra a parede. Orvalhada de água bateu em plena face. Enquanto se voltava para não afogar-se, deu uma boa cotovelada em Michael para que não a espremesse mais.
—Isto não funciona! — Balbuciou — Você monopoliza toda a água, e além disso está me espremendo!
Ele tentou pegá-la para colocá-la de frente, mas ela escorregou entre os dedos como se fosse de gelatina. Então Libby deu um grito, gesticulou para manter-se direita e engoliu outro bocado de água. Rapidamente, Michael lhe protegeu a cabeça com uma mão para que não batesse contra a parede, e com a outra lhe rodeou a cintura antes de que caísse.
—E você se preocupa de que nos ponhamos um capacete… — Disse rindo—. É um pouquinho dada aos acidentes, não?
—Não é verdade. É que esta banheira não foi feita para duas pessoas — Balbuciou ela outra vez; rendeu-se por fim e, ao sair da banheira, jogou uma olhada ao Michael por trás da cortina — E menos quando uma delas é um gigante.
Ele se apressou a enxaguar-se, com o que teve que inclinar a cabeça para escorre o cabelo, e saiu atrás dela.
—Agora é sua vez — Disse afastando a cortina — Eu fico aqui olhando, para me assegurar de que não se mata.
Nesse momento ouviram uma forte batida na porta da cozinha.
Libby deu um grito afogado e agarrou uma toalha para envolver-se.
Michael se limitou a fechar os olhos.
—Conheço esse som — Disse com um suspiro — Isso que se ouve é uma bengala.
Desta vez Libby não voltou a dar um grito afogado: deu um grito alto.
—Ai, santo Deus! Tem que se esconder! — Deu-lhe um empurrão — Não, espera… Vista-se e sai pela janela do quarto!
Ele a olhou com gesto de incredulidade. Depois tomou seu tempo em colocar uma toalha pela cintura e, por fim, entrou sem pressas na cozinha para saudar aquele convidado sem convite que batia com tanta urgência.
Libby entrou correndo em seu quarto, desapareceu dentro do roupeiro e não saiu até estar completamente vestida. Ao passar pela frente de um espelho a caminho da cozinha, observou que levava o cabelo sem pentear e que ainda tinha sabão em uma orelha.
Maldição. Por que o padre Daar tinha que ir tomar o café da manhã ali aquela manhã? Se de verdade era um mago, não era muito preparado: não parava de aparecer pelas boas nos momentos mais inoportunos.
Olhou-se no espelho e contemplou como, de repente, sua face se enchia de espanto. Ai, Deus meu…! Ele sabia. O padre Daar sabia de seu dom… E estava na cozinha, com Michael, que não tinha nem ideia do assunto!
Nem teria nunca. Não queria que Michael pensasse que era um fenômeno de feira ou… Uma aberração. Se descobrisse, provavelmente jamais voltaria a deixar que se aproximasse de seu filho.
Tinha que falar com o padre Daar antes que dissesse algo. Michael ainda tinha que vestir-se, e essa seria sua oportunidade. Libby inspirou fundo, tirou o sabão da orelha e passou os dedos pelo cabelo. De repente, o fato de que Michael recebesse o sacerdote levando posta só uma toalha foi a menor de suas preocupações. Assim, da forma mais tranquila possível e com um sorriso pego à cara, entrou por fim na cozinha.
—Bom dia, padre — Disse enquanto se aproximava da bancada e ficava a preparar o café — Passou bem o temporal?
Os dois homens a olharam com receio.
—Michael, por que não se veste enquanto faço o café da manhã? — Disse Libby enquanto cortava fatias de pão — E quer ir ver se as garotas tiverem posto algum ovo mais?
Ele parecia ter criado raízes no chão; ficou ali quieto, com o cabelo gotejando água, os braços cruzados diante do peito e a toalha apenas agarrada a seus quadris com a simples e pequena dobra de uma ponta.
—Já fui ver suas garotas — Disse o padre Daar ao tempo que tirava uns ovos do bolso — E só encontrei estes três.
Ele deu uma olhada assassino ao Michael, como se este fosse o convidado inoportuno.
—Espero que tenha mais na geladeira, porque tenho muita fome esta manhã.
Libby também lançou outro olhar assassino ao Michael; e, do mesmo modo, assinalou-lhe com a cabeça o quarto, lhe indicando em silêncio que fosse se vestir. Ele sorriu, colocou os polegares na cintura da toalha e, devagar, foi com passo tranquilo para o quarto.
Ela esperou até que se fechou a porta e depois se aproximou do sacerdote justo quando ele abria a geladeira. Então o agarrou pelos braços e o obrigou a olhá-la de frente.
—Não quero que conte ao Michael nada sobre meu dom — Sussurrou—. Não quero que ele saiba.
Daar elevou uma povoada e grisalha sobrancelha.
—E isso por quê? — Perguntou sem incomodar-se absolutamente em sussurrar.
—Acreditaria que estou louca.
—MacBain? — Perguntou o ancião, surpreso — Não, garota. Ele é a última pessoa que acreditaria semelhante coisa.
—Pois não vou correr o risco. Me prometa que não vai lhe contar nada.
O ancião reagiu elevando as duas sobrancelhas.
—De verdade acredita que vai esconder algo assim? — Perguntou com gesto incrédulo — Libby, ocultar seu dom a MacBain causará muitos mais problemas que o dom em si. Tem ideia do que esse homem é capaz de fazer se irritá-lo?
Estremeceu visivelmente e deu um passo atrás para soltar-se de seu puxão.
—Prefiro não me prestar a isso, se não se importar.
—Não tento enganá-lo, tento protegê-lo.
—Do que? — Perguntou Daar franzindo o cenho.
—De mim. Disto que tenho, seja o que for.
—Não é uma enfermidade. É um dom.
—Não importa, mais valia que fosse uma enfermidade —Espetou ela um pouco zangada.
Ele suspirou, acariciou a barba e a observou com gesto perspicaz.
—Libby — Começou com voz grave — Tentar esconder seu dom de MacBain não fará mais que agravar seus problemas. Precisa de muita energia para manter um segredo; energia que estaria melhor empregada em compreender seu dom que em tentar de ignorá-lo.
—O que é o que tenta ignorar? — Perguntou Michael justo então.
Enquanto saía do quarto e se aproximava da bancada, foi colocando a camisa pelo cinturão. Depois se serviu uma xícara de café.
—O que é o que Libby deveria ignorar? — Repetiu quando nenhum dos dois respondeu.
Voltou-se para ela e a olhou elevando uma sobrancelha em um gesto de interrogação.
—Bem… O mistério de quem fez minha cama — Se apressou a dizer ela ao tempo que lançava um olhar feroz ao sacerdote quando este soltou um bufo — O padre Daar diz que deveria deixá-lo correr. Que é provável que de verdade a tenha feito o Papai Noel, e que se sigo insistindo em saber quem é o artista, não conseguirei a cômoda combinando.
Estava tagarelando como uma tola, provavelmente porque sabia que Michael tinha advertido que estava mentindo. Olhando-a por cima da borda da xícara, ele deu um gole a seu café e depois se voltou outra vez para a bancada e colocou o pão no torrador. Daar se sentou à mesa.
—Tomo o café puro…Se por acaso esqueceu como eu gosto — Acrescentou dedicando a Libby um cenho franzido carregado de intenção — Levou a sua mãe ao aeroporto ontem?
—Sim. Disse que estaria de volta antes de Ação de Graças.
—Bom, isso lhes dará uns quantos dias de intimidade — Disse o ancião sacerdote com uma risadinha baixando a vista para a mesa — Eu gosto de sua toalha. É nova?
Libby acabava de começar a pôr o café quando lhe fez a pergunta; então se voltou para a mesa e deu um grito afogado ao ver a toalha de quadros azuis que adornavam umas diminutas e verdes árvores de Natal com bolas de um vermelho vivo sobre a ponta.
—O que… Faz isto aqui? — Perguntou olhando a Michael — Onde o encontrou?
—Em sua caminhonete — Disse ele enquanto lubrificava manteiga às torradas—. A descarreguei ontem à noite.
Colocou duas fatias mais de pão no torrador e, com a faca, assinalou ao teto.
—E além disso pus todas suas condenadas estrelas — Disse ao tempo que se voltava de tudo para olhá-la de frente; cruzou os braços, com a faca da manteiga no punho — Tem ideia de quanto são sete pacotes de estrelas?
Quando Libby elevou a vista, ficou boquiaberta. O teto de sua cozinha estava coberto de estrelas. Mal eram visíveis com a luz da manhã, mas quando anoitecesse, provavelmente a cegariam. Com os olhos muito abertos olhou a Michael, que sorria como um menino que conta ser elogiado, com os braços um pouco abertos, como se esperasse que Libby fosse lançar se para ele, agradecida.
—Você… Bem… Colocou todas? Os sete pacotes? — Sussurrou — Na cozinha?
—E no salão e em seu quarto… Diabos, até coloquei algumas no banheiro.
—M… Mas por quê?
—Para te ajudar a construir seu ninho.
—Meu ninho?
—Sim, seu ninho — Disse ele; deu a impressão de que ficava um pouco na defensiva — foi comprar coisas de mulheres, de modo que isso significa que está fazendo aqui seu ninho.
Um dos dois, ou ao melhor ambos, estavam confusos… E Libby temia que fosse ela.
—Fazendo meu ninho? — Repetiu.
—Acredito que o que quer dizer é que está tentando te ajudar a se instalar, garota — Disse o padre Daar.
Levantou-se e tirou de sua mão esquecida xícara de café.
Enquanto meneava a cabeça e seguia olhando boquiaberta Michael, Libby repetiu como um louro:
—A me instalar? E que… Mais tem feito? — Perguntou.
Então jogou uma olhada à cozinha.
Michael respondeu:
—Coloquei os abajures no suporte da lareira e pus o tapete diante do sofá. E além pendurei esse quadro do alce sobre a lareira.
Libby entrou no salão e, de atrás do sofá, ficou olhando. Ali estava a gravura do alce pendurado em cima da lareira, com os abajures de carvoeiros a ambos os lados. O tapete dos pássaros estava no chão, justo onde Michael havia dito, e a colcha que pensava pôr sobre sua cama estava dobrada no respaldo do sofá.
Levantou a vista. O teto estava coberto de estrelas.
Libby não soube se ria ou chorava. Tinha previsto utilizar dois pacotes de estrelas no quarto; outros eram presentes de Natal para Robbie e as meninas MacKeage. A toalha era outro presente de Natal, este para John Bigelow. E aquelas velas que Michael tinha situado com tanto esmero nas mesinhas auxiliares para ajudá-la a fazer o ninho eram para Grace.
Ele se aproximou até ficar atrás dela; rodeou-a com seus braços e a atraiu para seu peito.
—comprou umas coisas preciosas, moça — Disse — E agora transformou esta casa em seu ninho.
—S...sim, pelo visto sim. Com sua ajuda… — Se apressou a afirmar; então relaxou no abraço dele e pôs as mãos sobre seus braços — Obrigado.
O que outra coisa poderia dizer? Devia ter trabalhado toda a noite pondo… Quantas? Mais de um milhar de estrelas. Não teve coragem de discutir com ele. Assim deu a volta, rodeou-lhe o pescoço com os braços e lhe deu um beijo na garganta… Porque não chegava mais alto.
—Que as torradas se queimam! — Mugiu nesse instante o padre Daar — E a frigideira está fumegando!
Michael fez caso omisso do sacerdote e sem soltar Libby disse:
—Não queria me perguntar uma coisa esta manhã? Ontem à noite disse não sei quanto um jantar…
—Ah, sim. Pensei que podíamos ir jantar e, ao melhor, também dançar, ou ao cinema, ou algo assim… — Sussurrou ela olhando ao terceiro botão de sua camisa—. Se… Se gostar.
—Está me pedindo que saiamos, senhorita Hart? — Perguntou ele ao tempo que levantava o queixo.
Seus olhos eram de uma profunda e quente cor estanho e a olhavam com uma ternura que reforçou a coragem de Libby. Por que era tão difícil pedir uma encontro a um homem, inclusive depois da intimidade que tinham compartilhado fazia menos de uma hora? Saiu de seu abraço e enquanto ia à cozinha, dirigiu-lhe um descarado sorriso por cima do ombro.
—Recolherei-o às seis — Disse — Ponha roupa informal.
Junto à porta, o padre Daar estava colocando o jaquetão; lançou um olhar assassino ao Libby e resmungou:
—Já não tenho fome. Detesto as torradas queimadas.
—Vamos, sente-se, homem— Disse ela, enquanto separava do fogão a fumegante frigideira — Lhe farei outras.
—Não sei… — Disse ele, irritado.
Passou a mão pelo nó superior de sua bengala de cerejeira, com a careta de um menino obstinado em sua velha e curtida face.
—Se se sentar, mostrar-lhe-ei algo que acredito que vai interessar. É uma surpresa.
Estava segura de que aquilo arderia a curiosidade, e assim foi. Talvez fosse velho… E talvez era um mago, mas também era humano, não é?
Daar tirou o jaquetão e voltou a pendurá-lo no gancho.
—O que é? — Perguntou.
Foi à mesa, pegou sua xícara de café, foi a bancada e a encheu outra vez. De repente, enquanto retornava à mesa, deteve-se e a olhou com receio.
—Não será um desses blasfemos livros sobre magia, que encontrou em uma livraria — Meneou a cabeça — Só há um livro que valha algo, e esse já o tenho.
Libby se afastou para que Michael limpasse a frigideira e começasse a preparar os ovos.
—você tem um livro de feitiços? — Perguntou fascinada.
Sem fazer caso do bufo de Michael, sentou-se à mesa junto ao ancião.
—Me mostrará?
—Talvez — Disse Daar elevando o desafiante queixo — Se é que de verdade sua surpresa for interessante.
Então Libby baixou a vista para a bengala que tinha pendurada na borda da mesa.
—Você a fez? — Perguntou.
O sacerdote a olhou com o cenho franzido e uma expressão precavida.
—Sim. De uma árvore jovem que crescia na montanha Fraser. Por que?
Libby se voltou para olhar ao Michael.
—Acredita que minha vara de cerejeira será dali? — Perguntou-lhe — A que me trouxe Mary?
Ao ouvir o grito afogado de Daar deu a volta rapidamente.
—Que vara? — Disse o ancião elevando a voz e ficando de pé — A mascote de Robbie te trouxe uma vara de cerejeira?
Olhou pela cozinha.
—Onde está? Que aspecto tem?
Sua reação desconcertou Libby, que se levantou e se dirigiu ao salão.
—Está no suporte da Lareira. Tem mais ou menos meio metro de comprimento, é grossa e parece muito velha.
Daar esteve a ponto de fazê-la cair em sua tentativa por chegar primeiro ao suporte da lareira.
De um salto, ela subiu ao degrau da lareira para pegar a vara, mas não estava lá. Então olhou ao Daar, que retorcia as mãos e pulava de um pé a outro.
—Bom — Disse ele nervoso — Onde está?
—Eu… Bem… Estava aqui mesmo… Michael! — Gritou para a cozinha — Trocou a vara de lugar quando pôs os adornos ontem à noite? Onde a colocou?
Ele se afastou um passo da boca do fogão para olhar para o salão.
—Ontem à noite não estava no suporte da lareira — Disse em voz baixa.
—Onde está? — Repetiu Daar.
Ficou a olhar a sala e procurou até no último canto. De repente se deteve e o deu uma olhada feroz a Libby.
—Me diga exatamente que aspecto tinha. Era assim de longa? — Perguntou afastando as mãos meio metro — Era grossa, diz? Tinha nós por toda parte?
Ela desceu do degrau de um salto.
—Sim. Estava infestada de nós. Mas não sei onde está agora, padre. A última vez que a vi estava em cima do suporte da lareira.
Daar ficou diante dela.
—E MacBain sabia que estava aí? — Perguntou em tom áspero — Viu a vara quando Mary lhe trouxe isso?
—Sim. Foi ele quem a pôs no suporte.
O sacerdote olhou fixamente para a cozinha, e Libby seguiu seu olhar. Michael estava revolvendo os ovos na frigideira, sem prestar a menor atenção.
—Não passa nada, pai. Não é mais que uma velha parte de madeira de cerejeira.
—É meu bastão! — Disse ele em voz baixa; nublaram os olhos e a olhou com expressão dolorida — Faz mais de oito anos que o perdi, e me inteirei de que ainda existia faz só cinco anos. Levo buscando-o após.
—Seu bastão? — Sussurrou Libby em tom de temeroso respeito —. Faz o que faz sua bengala? Como quando a segurei?
O ancião meneou a cabeça.
—Não, é muito mais poderoso que esta bengala — Disse ele em um sussurro reverente — Tem mais de mil e quinhentos anos. E MacBain sabe onde está.
Depois de lançar um rápido olhar furioso ao Michael, voltou a olhar ao Libby meneando a cabeça.
—Escondeu-o para que eu não o encontre. Ele sabe o poder que tem.
Ela estava cada vez mais fascinada…
E um pouco assustada.
—Michael sabe que você é um mago?
—Claro que sim. Por que acredita que me escondeu o bastão?
—Por que?
—Porque, igual ao MacKeage, não quer que eu tenha o poder.
—O que poder? — Perguntou Libby, cada vez mais irritada e, inclusive, mais desconcertada — Do que tem medo? E que MacKeage? Refere-se ao Greylen? O que tem ele que ver com isto?
Mas em vez de responder, Daar fechou a boca de repente e entrou na cozinha dando fortes pisões. Agarrou sua bengala de cerejeira e de três passo longos se aproximou dos varais. Colocou o jaquetão e foi para a porta, mas de repente se deteve e assinalou ao Michael com a bengala.
—Se destruir essa parte de madeira, MacBain, não descansarei até que esteja ardendo no inferno. Robbie não será um menino sempre, e então estarei livre para te atormentar.
Voltou-se e assinalou ao Libby.
Nesse momento, e sem dizer uma palavra, Michael se interpôs entre os dois.
Mas, de todas formas, Daar falou.
—Convença-o de que me devolva o bastão ou, ao melhor, também irá com ele ao inferno.
Dito isto deu a volta e saiu dando uma portada tão forte que fez tremer as janelas.
O silêncio se apropriou da cozinha.
—Acabam de nos jogar uma maldição? — Sussurrou Libby esfregando os braços enquanto se abraçava para não sentir o repentino frio da cozinha.
Michael se voltou para olhá-la.
—Não. É um sacerdote e é incapaz de condenar a ninguém. Isso só o faz a si mesmo.
—Por que não quer lhe devolver o bastão?
—Porque é melhor para todos nós que não ponha a mão em cima. O poder de Daar só vale o que vale seu bastão e enquanto não tenha mais que essa fina bengala, todos estaremos mais seguros.
—Seguros? A que se refere? Do que tem medo?
Ele não disse nada e se limitou a cravar nela seus profundos e impenetráveis olhos cinza. Libby se abraçou mais forte; de repente pareceu sentir náuseas. Michael deu um passo para frente, e ela recuou. Mas ele alargou a mão para atraí-la até seus braços, estreitou-a com força e apoiou o queixo em sua cabeça.
— Vou fazer um trato com você, moça: quando você esteja preparada para me contar o que aconteceu com aquela mulher e a aquele menino lá na Califórnia, eu te contarei por que Daar não deve recuperar seu poder jamais.
—Isso é chantagem — Murmurou ela em seu peito.
—Não — Disse ele; deu um suspiro e esteve a ponto de esmagá-la — Isso é o que há, nada mais. Entre nós não há lugar para segredos, Libby. Enquanto existam, têm o poder de nos fazer machucar.
— Não posso… Tenho que pensar nisso
Os braços dele a rodearam com mais força.
—Shhh. De acordo, moça. Sei ter paciência. — Afastou-se e a olhou sorrindo — Mas sabe tê-la você?
Ela tentou aliviar o ambiente e, em tom descarado, disse:
—Note, talvez não espero a que me conte seu segredos. Tenho a intenção de descobrir quem fez mim cama, e depois vou inteirar me do que ocultam você e Greylen MacKeage. Sou cirurgiã, lembra-se? E aos cirurgiões sabemos muito bem fazer quebra-cabeças.
—Então que não se esqueça colocar outra peça em seus quebra-cabeças — Disse ele em voz baixa enquanto batia com o dedo na ponta do nariz — Por que te trouxe Mary o bastão, em vez de mim ou a Greylen?
Depois de dizer estas enigmáticas palavras, beijou-a na boca, pegou seu jaquetão do varal e saiu pela porta… Fechando-a com suavidade atrás de si.
Libby cravou o olhar no visor que voltou flutuando a seu lugar e se perguntou se o encontro da noite seguia em pé. Então elevou a vista dando um suspiro… E voltou a suspirar uma vez mais ao ver todas as estrelas do teto.
Sim que saíram àquela noite, e durante as duas semanas seguintes passaram bastante tempo juntos. Libby, Michael, Robbie e John se acomodaram tranquilamente à rotina de jantar juntos todos os dias. Às vezes comiam na casa de Libby, e às vezes era ela que ia a casa deles cozinhar.
E todas as noites, depois de jantar, ou Michael ficava a ajudá-la a esfregar os pratos e faziam amor, ou a levava de volta a sua casa e faziam amor.
Libby descobriu duas coisas a respeito daquele homem: uma, que sim que era romântico, e a outra, que sabia guardar um segredo melhor que o Pentágono.
O dia de Ação de Graças pela manhã não só continuava sem descobrir quem havia feito sua cama, mas também estava mais frustrada ainda por esse outro segredo que Michael lhe ocultava.
Por muito que detestasse reconhecer, Daar tinha razão: os segredos consumiam energia; a energia que se gastava em guardá-los e em descobri-los. Libby levava duas semanas ficando louca. O único momento em que deixava de lhe dar voltas ao que estaria lhe ocultando Michael era quando estavam os dois nus, na cama, fazendo amor.
Mas, por agradável que fosse, isso não bastava.
Ali estava o dilema: Michael tinha a paciência de Jó. Não havia tornado a lhe fazer perguntas sobre o que tinha ocorrido na Califórnia, e sua aparente capacidade de deixar o assunto a um lado e seguir com sua vida normal a desconcertava.
Libby tinha procurado por todos lados aquele maldito bastão de cerejeira e se preocupava que talvez Michael o tivesse destruído. Inclusive surpreendeu a si mesma caminhando pelo bosque e chamando gritos a Mary com a descabelada ideia de que talvez pudesse falar com a ave. Mas ultimamente Mary guardava as distâncias; só Robbie comentava que a via, e isso em contadas ocasiões.
Quando não estava tentando de descobrir o segredo de Michael, Libby dava voltas ao dela. Talvez ele soubesse de bastões, magos e poderes mágicos (o qual já era alucinante em si mesmo), mas como reagiria se descobrisse que a mulher com a que estava revolvendo os lençóis era um fenômeno de feira?
O primeiro que lhe vinha à cabeça era o medo. Teria medo dela? Não parecia ter medo ao Daar… Embora, por outro lado, Michael sabia que naquele momento o ancião sacerdote em certo sentido estava desprovido de poderes; por isso tentava assegurar-se de que continuasse assim.
Por sua parte, o ancião não tinha voltado para sua casa da manhã em que partiu indignado e jogando pragas. A Libby não importava; também estava um pouco furiosa com ele.
—Espero que tenham melhor sabor que aspecto — Disse Kate ao tempo que entrava na loja de Natal com uma bandeja de donuts — Os buracos se fecharam com a calda e está completamente encharcado.
Libby agarrou a bandeja e a pôs no mostrador.
—Parece-me que tínhamos que ter deixado que se esfriassem antes de banhá-los — Disse.
Sua mãe havia retornado o dia anterior. Ian tinha ido a Bangor a recolhê-la e a noite anterior tinha jantado com elas na casa de Libby. Segundo sua mãe, o escocês tinha “tomado simpatia” e havia dito a sua filha que o sentimento era mútuo.
Vá, uma combinação que demonstrava que os opostos se atraem.
Kate brincou com os colares pendurados no ramo nu que Robbie tinha cortado para expô-los.
—Que amável foi Michael deixando que venda suas joias em sua loja, não é? — Disse — Quando passar o Natal, ocuparemo-nos por fim de abrir seu estúdio.
Libby soltou um bufado.
—Michael leva uma comissão de vinte por cento, além de ter pessoal que atende grátis o mostrador.
—Mas você consegue os fazer conhecerem seus produtos — Replicou Kate com afeto—. As pessoas vão comprá-los para os dar de presente no Natal.
Acariciou um pássaro de vidro, um macho de cardeal de um vermelho vivo.
—Este ficaria bem com uma blusa de veludo verde. Fará-me um para que use em nossa festa de Natal?
—Mas vamos dar uma festa?
Kate se voltou e franziu o cenho.
—Claro que sim! Convidaremos a todos os MacKeage, os Doam, Michael, Robbie, John e ao padre Daar.
Com os olhos brilhantes de animação, rodeou o mostrador, procurou papel e caneta e começou a escrever.
—Vamos planejar o menu; deve ser algo simples, mas de bom gosto. Acredita que conseguiremos lagosta nesta época do ano? — Elevou a vista para Libby — E quando a compramos? Na véspera de Natal ou uns quantos dias antes?
—Mamãe, vamos estar muito ocupadas para dar uma festa. Esta é a temporada de mais trabalho para o Michael, e estaremos nesta loja desde que amanheça até depois do anoitecer todos os dias, incluída a véspera de Natal.
Kate rejeitou o comentário com um gesto da mão.
—Nossa, tolices! — Disse — Eu monto uma festa com os olhos fechados. Bom, precisaremos encontrar uma florista.
De repente calou enquanto mordia a caneta com expressão pensativa.
—Será muito pomposo mandar os convites por correio? São nossos amigos, de modo que possivelmente seja melhor dizer-lhe pessoalmente, sem mais.
Fazia muito tempo que Libby sabia que quando a sua mãe colocava algo na cabeça era muito melhor calar e não discutir. E as festas, para Kate, eram a chave da amizade.
—Provavelmente será melhor dizer-lhe em pessoa — Concordou.
E, sem dar mais voltas, voltou para a tarefa de adornar a arvore Douglas de três metros de altura que Michael tinha instalado no centro da loja.
Era uma preciosidade… Pensou que devia ser uma de suas árvores de primeira categoria; um dos poucos que ela tinha conseguido não destruir com o carro. O verão anterior não o tinham podado muito, e agora as pontas dos ramos eram suaves e se curvavam um pouco para baixo, lhe dando um aspecto natural.
Libby nunca tinha pensado muito de onde procediam as árvores de Natal; limitava-se a ir ao mercadinho ao ar livre onde os vendiam e escolher o que gostava. Agora sabia que cultivá-los custava muito trabalho, planejamento e arte. E paciência… Algo que, pelo visto, Michael possuía de montes. Ele tinha contado que aquela árvore tinha doze anos; era muito tempo de espera para recolher os lucros de um investimento. Sim, para cultivar árvores de Natal precisa de tempo, cuidado, trabalho e habilidade, assim como instinto protetor.
E disso Michael também tinha em abundância.
Bendito seja Deus, sim que estava apaixonando-se por ele… E, exatamente como tinha dito Grace MacKeage, estava deixando-a louca. Mas era uma espécie de loucura tão agradável, quente e difusa que Libby quase não cabia em si de alegria.
—Ah, aqui chegam nossos primeiros clientes! — Disse Kate, nervosa, ao ver pela cristaleira que se detinha um carro.
Dele saíram um homem, uma mulher e seis crianças. As crianças, cujas idades oscilavam mais ou menos dos dez até os dois anos, nem o pensaram: dirigiram-se com brio ao campo de árvores mais próxima. A mulher jogou mão a quão pequena que mal caminhava, agarrou-a nos braços e, devagar, saiu atrás de sua prole enquanto o homem, com expressão resignada, entrava na loja.
Kate alisou o cabelo, ficou muito direita e lhe dirigiu uma amável sorriso.
—Bom dia — Disse em tom alegre — Precisa de uma serra?
—Sim — Respondeu ele; olhou-a com receio e tirou a carteira do bolso traseiro — Bem… Onde está John?
Kate ficou mais séria.
—Está passando o dia com os Potts e vai tomar com deles o jantar de Ação de Graças — Disse —. Temíamos que hoje o passasse mal… Sem Ellen.
O homem fez um gesto afirmativo.
—Sim, claro. Ellen era o coração deste lugar.
Deu uma olhada aos donuts e franziu o cenho.
—E você é…? — Perguntou
—Ah, sou Kate Hart — Respondeu ela, e depois assinalou Libby — Apresento a minha filha, Libby Hart.
O homem se voltou e Libby o saudou com um sorriso.
—Libby Hart? — Repetiu ele — Você é a médica de quem me falaram, a que vive na casa da Mary?
Ela não soube o que responder, de modo que assentiu sem dizer nada.
—Vai abrir um consultório no povoado? — Perguntou ele — Levamos anos tentando conseguir um médico.
—Eu… Sou cirurgiã, senhor…
A face do homem se tingiu de vermelho.
—Perdão — Disse ao tempo que lhes dirigia uma inclinação de cabeça — Alan Brewer. Sou o dono da oficina de solda do povoado.
Libby correspondeu a sua saudação.
—Senhor Brewer… — Disse — Na realidade, minha especialidade não é a medicina geral. Antes trabalhava em um centro de traumatologia.
De repente o homem pareceu interessar-se mais ainda.
—Pois aqui temos casos de traumatologia — Disse — Entre as serrarias e as atividades florestais, nesta região quase todo o trabalho é perigoso, por não falar do acidentado do terreno. Às vezes, e eu vi, uma pessoa teve que esperar mais de uma hora para que o levassem em helicóptero até o Bangor. E alguns inclusive morreram antes que chegasse a ajuda.
De novo Libby não soube o que responder, embora apostava um centavo a que a próxima vez que ocorresse um acidente receberia uma chamada de telefone. Bom, assim eram as coisas. Em consciência, não podia negar-se a ajudar se podia salvar a vida a alguém.
Talvez devesse reunir um estojo de primeiro socorros e levá-lo na caminhonete… Nesse momento Kate lhe evitou de ter que responder.
—Aqui tem a serra, senhor Brewer — Disse ao tempo que a passava por cima do mostrador — E quando acabar, traga seus filhos para que peguem uns donuts. Também temos chocolate quente e suco de maçã para eles, e café para você e sua esposa.
—O mais seguro é que demore um momento — Disse ele com um aflito suspiro. Deu-lhe o dinheiro e pegou a serra — No ano passado estivemos quase uma hora no campo, e é que cada um de meus filhos tem uma opinião sobre o aspecto que deve ter uma árvore de Natal. Até daqui a pouco.
Com uma inclinação de cabeça a cada uma, acrescentou:
—Senhora Kate. Doc Libby…
Depois meteu a serra sob o braço e partiu para alcançar a sua família.
—Bom! Foi…
Libby soltou um forte gemido e terminou a frase por sua mãe.
—Incômodo? Parece-me que já se correu a voz de que Pene Creek tem um novo médico residente.
—Tinha esquecido como era a vida em um povoado pequeno — Disse Kate — Libby, já sabe que lhe chamarão se houver um acidente grave, não é?
—Sim, já o vejo… Senhor, e também me chamarão “Doc Libby”?
Pois pelo visto, sim; e além disso a advertência de Kate sobre a vida nos povoados pequenos resultou ser certa. Pelo menos a metade das pessoas que entraram em turba na loja naquele dia (e deveram ser cinquenta) sabia que um médico se mudou ao povoado. Caramba, até as pessoas de fora do povoado sabia e perguntava com os olhos cheios de esperança e com um pouco de alívio.
Quando chegou a hora de fechar, tanto Libby como Kate estavam cansadas de sorrir e responder perguntas, de preparar chocolate e café, de dar opiniões sobre as preferências dos clientes sobre a árvore perfeita e de desculpar-se pelo lamentável estado dos donuts. E, para cúmulo, em meio de todo aquilo, Libby tinha tido que ir correndo de vez em quando à casa a dar uma olhada ao peru para que não se secasse, a cortar verduras e a pôr a mesa para o banquete de Ação de Graças.
Michael passou o dia carregando árvores em outros três caminhões invertebrados para fora do estado, de modo que não foi de muita ajuda. Tampouco foi Robbie, a quem tinham encarregado a função de contar todas as árvores que se carregavam. E quanto ao Ian MacKeage, quando não estava dentro comendo donuts e paquerando com Kate, estava fora, atando grossas árvores de Natal e ajudando a carregá-los na carretas de carros e caminhonetes para que os levassem.
Por fim, às sete em ponto, rendidos e famintos como ursos, todos estavam sentados à mesa, preparados para dar um banquete com um peru de dez quilo.
Foi então quando soou o telefone e a predição de Kate se fez realidade. Ao retornar à mesa, Michael disse a Libby em voz baixa que Alan Brewer e seu filho acabavam de cair do telhado de sua casa.
Libby estava no assento do passageiro da caminhonete de Michael olhando sem ver como passava a imprecisa paisagem e pensando em que normalmente ela acostumava atender às vítimas depois de que os bombeiros já houvessem feito sua tarefa. E embora, quando estudava, muitas vezes tinha ido de serviço em ambulâncias, fazia bastante tempo que não agia de urgências no lugar de um acidente.
E além disso, maldição, não tinha nada com que trabalhar.
—No que estavam pensando ao deixar que um menino subisse ao telhado de uma casa? — Perguntou pela quinta vez — E não tenho material adequado… Está seguro de que chamaram à ambulância?
Michael alargou a mão e pegou as suas, que ela não parava de retorcer.
—Quão único precisa são seus conhecimentos. E sim, já chamaram à ambulância, mas está a sessenta quilômetros, porque vem da outra ponta do lago.
—Meus conhecimentos não valem de nada sem material. Mas no que estavam pensando? — Repetiu.
Michael estreitou as mãos e depois teve que reduzir e concentrar-se em tomar a curva fechada para não ter um acidente. Dirigia depressa, mas não de forma imprudente.
—As crianças crescem rápido aqui, moça — Disse enquanto trocava de marcha e acelerava para sair da curva — Não podemos nos permitir o luxo de protegê-los muito, porque, se não, podem ter ainda mais problemas quando se transformarem em adolescentes.
Jogou-lhe uma olhada e sorriu.
—Não é prudente esperar que um menino cresça para pôr na mão uma serra mecânica. Ou para subi-lo a uma moto de neve, ou deixá-lo disparar um rifle. Começamos a lhes ensinar essas coisas quando são pequenos, quando ainda podemos vigiá-los.
Libby começou a retorcer as mãos outra vez.
—Há…? Usou Robbie uma serra mecânica? — Sussurrou enquanto reprimia a imagem que surgiu em sua mente — Disparou um rifle?
—Sim, Libby. Sob minha supervisão.
—Mas se ainda não tem nove anos!
—Se for o bastante forte para levantar uma ferramenta, tem que saber como usá-la em caso de emergência.
—Uma arma de fogo não é uma ferramenta.
Michael lhe dedicou um olhar mais longo, mais intenso, como se tentasse avaliar seu humor.
—Claro que é uma ferramenta, moça — Repôs em voz baixa — Por isso procurei que saiba como se dispara uma arma. Quando só tinha três anos, congelei meio litro de água e dei um tiro para que visse o que podia ocorrer a uma pessoa se lhe disparavam. Como era de esperar, ficou horrorizado ao vê-la explodir.
Como era de esperar, naquele momento Libby também ficou horrorizada.
Michael soltou um impaciente suspiro.
—Libby — Disse — Agora que está na escola, Robbie vai a casa de seus amigos. E por aqui em quase todas as casas há um rifle de caça. Tenho que estar seguro de que entende o que pode acontecer se um amigo quer impressioná-lo com a arma de seu pai.
—Quão único deveria saber é que tem que sair correndo como alma que leva o diabo a procurar um adulto, nada mais.
—E o fará — Garantiu ele — Acredite, essa foi minha primeira norma.
Meteu-se por um caminho de entrada.
—Já chegamos.
Antes que Michael apagasse o motor, Libby já tinha saído da caminhonete e corria para o grupo de gente que estava ao lado da casa.
Receberam-na com olhares de preocupação, impotência e alívio. Também a recebeu a senhora Brewer com sua filha de dois anos nos braços; as lágrimas lhe caíam por ambas as bochechas.
—Por favor, ajude-o! — Sussurrou com voz rouca — Alan está ferido gravemente… Acr… Acredito que quebrou as costas…
Imediatamente Libby adotou sua tranquilizadora cara de médico e lhe sorriu.
—Farei o que posso — Prometeu.
Afastou-se e se dirigiu ao grupo de pessoas que, de pé ou de joelhos, rodeavam o homem que havia caído.
Rapidamente, deu uma olhada procurando uma segunda vítima, mas só viu o Alan Brewer.
—Disseram-me que havia dois feridos — Disse — Onde está o menino?
—Está aqui — Respondeu alguém, afastando-se.
Com a cara manchada de terra e lágrimas, o pequeno estava sentado, apoiado em uma mulher, e se sustentava o braço contra o peito. Além de um possível braço quebrado, parecia estar bem.
Libby se ajoelhou junto a Alan Brewer e deu graças ao ver que estava consciente.
—Alan — Disse; manteve-lhe a cabeça quieta quando tentou olhar para ela — Me Diga onde lhe dói.
Uma voz desconhecida surgiu do grupo dos que olhavam e disse:
—Nas costas.
—Quero que ele me diga. Onde lhe dói, Alan?
—Nas costas — Repetiu ele com voz gutural.
—Mas em que parte das costas? Vamos, junto aos ombros, ou mais abaixo, perto da cintura?
—Abaixo — Disse ele em tom crispado — E no ombro esquerdo.
As últimas palavras soaram mas bem como um grunhido. Alan fechou os olhos. Libby viu que tinha o ombro esquerdo deslocado, mas o que mais lhe preocupava era as costas.
Nesse momento falou alguém que estava ajoelhado ao outro lado do Alan.
—Tentou pegar o Darren quando se escorregou — Disse — Mas a escada cedeu, e para proteger o Darren se retorceu quando caíam. Seu filho caiu em cima dele.
Libby supôs que Darren era o menino do braço quebrado.
—Não o movemos — Disse outro.
Libby deu graças a Deus por aquele pequeno milagre e assentiu com gesto distraído. Via que Alan Brewer sofria muitos dores e que começava a dar amostras de choque. Maldição, onde estava a ambulância?
Sua formação era inútil sem material para estabilizá-lo, sem soro intravenoso, uma tábua e um colarinho. Diabos, se nem sequer tinha um estetoscópio para detectar uma hemorragia interna…
Tomou a cara de Alan entre as mãos e se inclinou para lhe sussurrar ao ouvido.
—Respire devagar, sem forçar —Disse em voz baixa — Concentre-se só em mim. Escute o que lhe digo.
—Darren… — Disse ele com um áspero grunhido.
—Está bem — Disse Libby, sem deixar de lhe sussurrar ao ouvido —. Está sentado e está bem. Me escute, Alan. Quero que se concentre em minhas mãos. Sente minhas mãos na sua face?
—Sim.
—Vai sentir que se esquentam. Concentre-se no calor. Deixe que o calor lhe atravesse o corpo e que desça até as costas.
Fechou os olhos e concentrou toda sua energia no Alan Brewer. Imediatamente a cor iluminou sua imaginação: uma turbulenta e vertiginosa massa de negro, vermelho e azul fervente. O coração começou a palpitar com força, e então se deu conta de que o que sentia eram os batimentos do Alan. A dor a atacou em ondas. A tensão sacudiu seus sentidos.
—Me deixe entrar, Alan — Sussurrou — Posso ajudá-lo.
As cores se formaram redemoinhos em um borrascoso caos que, bramando, atravessou o corpo dele e entrou no seu. Mas as violentas emoções de Alan seguiam arremetendo contra ela e lhe impediam de alcançar sua ferida. Durante quase cinco minutos Libby tentou que a deixasse entrar, lhe sussurrando palavras de ânimo e lhe rogando que abrisse sua mente. E cada vez as cores se formaram redemoinhos, e a ferida saltou até ficar justo fora de seu alcance.
De repente umas mãos fortes, quentes, poderosas e conhecidas lhe agarraram os trêmulos ombros, e Libby reatou seus esforços. Mas por muito que o tentasse, não alcançava a vértebra quebrada de Alan.
Uma sirene soou ao longe e pouco a pouco foi aproximando-se até que ao fim se deteve subitamente a suas costas. Umas vozes penetraram na névoa de sua mente, e Libby se sentou sobre os calcanhares e soltou a face de Alan.
Michael a agarrou para pô-la em pé e a abraçou. Depois colocou sua cabeça sob o queixo e a apertou entre seus braços, como se tentasse lhe deter o tremor que sacudia seu corpo.
—Aqui chega seu material, moça — Sussurrou.
Os bombeiros, carregados de material, chegaram correndo. E durante uns minutos, Libby se limitou a ser espectadora… Até que sua formação se impôs a sua comoção. Então se afastou bruscamente de Michael, ajoelhou-se ao lado de Alan e começou a dar ordens aos bombeiros. Mas se deteve assim que advertiu que estes a olhavam confusos.
Nesse momento Michael se aproximou e se ajoelhou junto a ela.
—É traumatóloga — Disse com tranquila autoridade.
E desde esse momento Libby agiu como tal: empregou seus anos de formação para orientar aos bombeiros, dois homens e uma mulher, enquanto todos trabalhavam em equipe para estabilizar Alan Brewer. Puseram-lhe soro intravenoso; depois o colocaram com cuidado em uma tábua e o imobilizaram, carregaram-no na maca e o meteram na ambulância. Libby falou pela rádio com um médico de Bangor e lhe disse que já tinham enviado um helicóptero.
Depois de dar umas quantas ordens mais aos bombeiros, Libby agarrou um estojo de primeiro socorros, aproximou-se do jovem Darren Brewer e se ajoelhou diante dele. Depois sorriu e tirou uma lágrima de sua diminuta bochecha.
—Sou Doc Libby, Darren. Lembra-se de que estava na loja das árvores de Natal esta manhã? Ele enxugou outra lágrima e depois destacou o braço esquerdo. —Tenho caído — Sussurrou.
— Deixa-me ver onde se machucou? — Sussurrou ela — A mão te sustenta muito bem o braço, mas me parece que eu sustentarei melhor. Com um olhar preocupado, cheia de dor e de incredulidade, o menino assentiu devagar e soltou o braço ferido. Libby sorriu à mulher que segurava Darren. — Por que não deixa que Michael ocupe seu lugar? — Sugeriu — Ele segurará o menino. Com uma expressão igual de alarmada que Darren diante seu comentário, a mulher assentiu vacilante e se afastou para que Michael ficasse atrás do menino. Enquanto, devagar, Libby cortava com as tesouras a camisa de Darren e a separava do braço, e perguntou: — O que faziam no telhado? Não, me deixe adivinhar… — Prosseguiu tentando distraí-lo com seu bate-papo — Vejo luzes de Natal pendurando do beiral. Estavam decorando a casa, não é? Ele assentiu com a cabeça e inspirou profundamente assim que lhe deixou o braço ao descoberto. Estava quebrado entre o cotovelo e o pulso, mas o osso não tinha perfurado a carne. Libby soltou um comprido assobio de admiração e lhe sorriu. — Nossa que hematoma que tem! — Disse assombrada — Se fosse eu, estaria chorando como uma descontrolada.
— É que você é uma garota — Disse Darren. Ela assentiu. —Sim, acredito que por isso eu estaria gemendo. Mas você não, você é um menino muito valente. Ele jogou um rápido olhar à ambulância. — Papai vai ficar bem? — Perguntou.
—Ficará estupendamente, Darren. Mas se machucou, assim vamos deixá-lo na ambulância até que chegue o helicóptero.
—Eu também… Entrarei no helicóptero? — Perguntou ele. Libby tomou a face entre as mãos e meneou a cabeça com um aflito sorriso. — Sinto muito, amiguinho. Desta vez não. Ele afastou a vista da ambulância e a olhou. Então ela jogou uma rápida olhada a Michael e depois voltou a olhar ao menino. — Fecha os olhos, Darren —Sussurrou — E pensa em algo bonito. Tem um mascote?
—Tenho Bingo — Disse enquanto fechava forte os olhos. Libby manteve uma mão em seu queixo e colocou a outra sobre a fratura do braço — Bingo é um gato? —Perguntou. —Não. É um cão. Ai! — Exclamou o pequeno, estremecendo-se. —Shhh. Calma, Darren. Só é calor o que sente, não dor. —Sim que tem as mãos quentes — Assentiu ele em voz baixa.
Baixou a vista para seu braço, mas Libby lhe levantou o queixo para que a olhasse.
—Não estou segura de que tenha quebrado o braço, Darren; oxalá só seja um forte hematoma. Agora fecha os olhos outra vez e pensa em Bingo. Tem-no desde que era um filhotinho?
Mas se Darren respondeu, Libby não ouviu sua resposta, porque com a imaginação já viajava através de seu corpo. Sentiu sua rápida e nervosa respiração e seus jovens batimentos que se aceleravam devido ao medo. Encontrou o osso quebrado, que palpitava em cores, e começou a curá-lo com a mente. Pouco a pouco a fratura se soldou, cortaram-se os sangramentos e o inchaço diminuiu muito levemente.
Justo quando saía de seu corpo, Libby observou outra coisa: uma irregularidade do batimento do coração de Darren, uma vazante em uma válvula. Assim se deteve, concentrou-se e a reparou enquanto estava ali. Depois abriu os olhos, elevou o queixo do pequeno e lhe sorriu. —É um menino com muita sorte. O braço só está um pouquinho machucado — Disse; jogou uma olhada à senhora Brewer, que agora estava ajoelhada junto a ela — um pouco de paracetamol se queixar, e estará totalmente recuperado dentro de um ou dois dias. A mulher roçou com suavidade o braço do Darren.
—Não…Não está quebrado? — Perguntou.
—Não. O inchaço baixará rápido quando lhe pusermos um pouco de gelo. — Libby tirou do estojo de primeiro socorros uma compressa de gelo, rompeu o lacre para misturar os ingredientes e depois, com cuidado, colocou-a sobre o braço do menino — Acredito que está mais desconcertado que ferido.
Parte da tensão desapareceu da face da mulher.
—E Alan? —perguntou — Ficará bem também?
Libby assentiu.
—Sim. — Recordou a ferida que tinha visto, mas a que não tinha podido aproximar-se — Terá que fazer umas semanas de reabilitação, mas ficará bem em seguida.
Então a mulher afundou a face nas mãos.
—Tudo é minha culpa! — Gritou — Eu comprei essas malditas luzes e quis, que as pusessem nos beirais!
Libby passou um braço pelos ombros e tentou recordar as apresentações daquela manhã.
—Você se chama Karen, não? — Perguntou.
—Carrie — A corrigiu a mulher, assentindo.
—Não foi culpa de ninguém, Carrie. Foi um acidente. E seu marido e seu filho vão ficar bem. Passarão vocês um estupendo Natal.
A mulher agarrou a seu filho nos braços.
—Diga obrigado a Doc Libby, Darren — Disse.
O menino a olhou com gesto receoso.
—Já não me dói o braço.
—Me alegro — Disse Libby, enquanto se levantava e fechava o estojo de primeiro socorros — E vou receitar que se separe dos telhados, jovenzinho, durante ao menos três anos.
Michael lhe tirou o estojo de primeiro socorros e voltou a levá-lo a ambulância, com o que Libby pôde adiantar-se correndo para ver o Alan. Parecia incômodo atado naquela tábua, e além disso, depois da máscara de oxigênio, lhe notava na face a tensão de sua terrível experiência.
Passaram outros quinze minutos até que por fim se ouviu sobre as copas das árvores o forte rufo dos sinais de multiplicação de um helicóptero. Junto à casa dos Brewer havia um grande descampado, e as pessoas que tinha estacionado ali seus carros acendeu os faróis para iluminar o local. Enquanto alagava o campo com suas próprias e potentes luz, o helicóptero desceu devagar, obrigando aos que olhavam a procurar refúgio. Ao aterrissar apareceram os ajudantes, que correram para a ambulância.
Com a mão posta sobre o peito de Alan em um gesto tranquilizador, Libby desceu da ambulância quando o tiraram nos braços e se somou à procissão de bombeiros; gritando para fazer-se ouvir por cima do estrondo, pôs ao dia aos recém chegados de seus sinais vitais. Logo que o meteram no helicóptero, fechou a portinhola e, depois de dar um golpe no lateral, agachou a cabeça e voltou correndo à ambulância para que a turbulência das pás não a levasse voando.
—Tem a alguém que a leve a Bangor? E a alguém que fique com seus filhos? —Perguntou a Carrie Brewer.
Sem deixar de olhar o helicóptero que levava a seu marido, a mulher assentiu com a cabeça. Depois olhou para Libby.
—Deveria vir Darren comigo?
—Seria o melhor — Disse Libby — Deveriam reconhecê-lo mais a fundo e possivelmente lhe fazer uma radiografia.
Carrie puxou-a e deu um tremulo abraço.
—Obrigado! — Sussurrou — Obrigado por nos ajudar!
—Os bombeiros fizeram todo o trabalho. Vamos, vá a Bangor e diga a quem a leve que não corra. Demorarão um momento em avaliar o estado de Alan, mas falarão com você antes de fazer qualquer coisa. E não se preocupe — Terminou, lhe dando uns tapinhas no ombro — Ficará bem.
Libby deu meia volta e foi para a caminhonete de Michael; ao chegar, abriu a porta do passageiro e olhou fixamente o assento que lhe chegava ao peito. Estava muito cansada e muito intumescida para subir até ele. Nesse momento umas fortes mãos a agarraram pela cintura e a levantaram; depois fecharam o cinto de segurança e fecharam a porta.
Libby fechou os olhos e apoiou a cabeça no assento. Além de dizer ao bombeiros que era médica, Michael não havia dito nenhuma palavra durante toda a noite. E seguiu sem dizer nada quando se sentou atrás do volante, pôs em marcha a caminhonete e desceu pelo caminho de entrada. Ao chegar à estrada asfaltada, girou à direita, não para a esquerda, e se dirigiu para a casa dela.
Libby agradeceu seu silêncio. Dava-lhe voltas a cabeça, tinha o estômago revolto e não deixava de tremer. Até que Michael ligou a calefação e sentiu uma rajada de ar quente, não se deu conta de que estava gelada até os ossos.
Pensou que, provavelmente, deveria dizer algo.
Mas o que?
Olhou à esquerda e, a tênue luz do painel, mal distinguiu o perfil de Michael, que olhava a estrada. Em silêncio, ele levantou o braço direito. E igual de calada, Libby desabotoou o cinto de segurança e foi pouco a pouco pelo assento até ficar bem pega a ele; então voltou a fechar os olhos com um suspiro e se aconchegou em seu forte abraço.
Depois de duas horas com a vista cravada no teto, as brilhantes estrelas não eram mais que imprecisos pontos de luz. Libby olhou o relógio que estava junto à cama, amaldiçoou o fato de que ainda faltassem outras três horas para o amanhecer e voltou a olhar as estrelas. Ele sabia.
Michael conhecia seu segredo. A noite anterior esteve ali com ela, segurando-a, enquanto tentava curar Alan Brewer. E, além disso, sustentou o Darren quando arrumou o braço quebrado; teve que sentir como a atravessava a energia, teve que ver exatamente o que viu ela e teve que dar-se conta do que acontecia.
Assim já sabia.
E não havia dito nenhuma palavra. Levou a sua casa, meteu-a na cama, deu-lhe um casto beijo e partiu.
O que pensava? Estaria naquele preciso instante deitado em sua cama, olhando seu espaçoso teto e perguntando-se que espécie de fenômeno de feira era ela?
Libby tratou de imaginar como se sentiria se fosse Michael quem tivesse aquele dom. Teria-lhe medo? Seria ela capaz de amar a alguém com esse tipo de “poder”?
Embora ele também tinha um segredo, e não era só o de quem havia feito sua cama. No Michael havia algo misterioso relacionado com seu passado. Doze anos antes lhe tinha ocorrido algo que havia feito que aquele homem tão forte e tão seguro de si mesmo se retirasse às montanhas do Maine.
Disse-lhe que tinha sido guerreiro. É que tinha visto ou feito algo tão perturbador que o obrigou a esconder-se?
E qual era sua relação com o Daar? Michael parecia aceitar sem problema a afirmação do sacerdote de que era um mago. Caramba, inclusive parecia respeitar a aquele ancião…
Mas não lhe tinha medo. Só se mostrava prudente… E cauteloso.
Estava tão pouco disposta a falar do segredo dela porque tampouco queria falar do dele? Maldição, que confusão!
Libby jogou para trás as mantas e foi dando tropeções ao banheiro, onde esteve a ponto de pisar na Problema, que saiu correndo assim que abriu a porta. Guardião foi atrás dele, e soube que os dois meninos se dirigiam ao andar de cima a procurar a sua irmã, que provavelmente estava dormindo com Kate.
Jogou água na face, alisou o cabelo e se escovou os dentes. Depois voltou para quarto, colocou várias capas de roupa de frio e entrou na cozinha. Procurou papel e lápis e escreveu uma nota a sua mãe, lhe dizendo que não a esperasse na loja até o meio-dia. Depois colocou as botas, a jaqueta, o chapéu e as luvas, procurou a lanterna e saiu ao alpendre.
Ficou ali uns minutos, olhando para a negra e silenciosa montanha TarStone que se elevava como um gigante adormecido no céu tachado de estrelas.
Parecia extraordinariamente fria. E impressionante.
E também um lugar onde era fácil perder-se.
Por medo a recuperar o bom sentido de repente e ficar onde estava, Libby não se atreveu a calcular as possibilidades que tinha de encontrar a cabana de Daar. Mas tinha que falar com o ancião sacerdote antes que explodisse a cabeça. Assim, acendeu a lanterna, cruzou o jardim e se internou no bosque.
Não deixava de pensar na noite anterior; não superava o fato de não ter podido fazer nada pelo Alan Brewer.
Por que tinha acontecido aquilo? Do que servia um dom que só funcionava às vezes? Por que tinha curado Darren Brewer, mas não a seu pai?
Tinha que falar com alguém e só podia recorrer a um velho padre que fazia reviver as flores. E já que era o bastante insensata para confrontar o escuro e horripilante bosque e arriscar-se a que a comesse um urso, esperava que o mago tivesse algumas respostas.
Sua resolução foi muito útil e a sustentou durante a primeira hora de subida até que, de repente, ouviu algo a sua esquerda: o estalo de um ramo. Girou em redondo e enfocou a lanterna em direção ao ruído, mas não viu mais que árvores sem folhas até onde penetrava o feixe de luz.
E então viu dois pequenos pontinhos luminosos.
Os olhos não se moviam; estavam cravados nela, imperturbáveis, só a uns centímetros do chão. Era um animal pequeno, um coelho, uma raposa ou algo assim? Ou era um urso escondido que se preparava para atacar?
Maldição. O que estava fazendo no meio do bosque às quatro e meia da madrugada, só com uma lanterna e uma imaginação fértil?
De repente um borrão branco se lançou em picado e cruzou pela frente do feixe de luz, e Libby deu um grito. Ao recuar, tropeçou com uma pedra e caiu em umas matas de abetos.
—Maldição, Mary— Balbuciou, ao tempo que tirava um ramo da face de um tapa — Me deu um susto de morte!
A única resposta foi o eco de sua própria voz.
Devagar, levantou-se, sacudiu a roupa e endireitou o chapéu. Bom, já não estava sozinha…Embora uma coruja tampouco serviria de muito contra um urso. Depois seguiu caminhando na única direção que conhecia: para cima. Mas em vez de limitar-se a iluminar com a lanterna o chão, agora de vez em quando também assinalava às árvores procurando a coruja.
—Mary — Gritou com voz cantada, sentindo-se mais desesperada que estúpida—. Onde está a casa do pai Daar?
Um seco e agudo assobio soou a sua direita; voltou-se e ficou em caminho naquela direção, ao tempo que seu tom cantado se transformava em sussurrados palavrões quando agachava a cabeça para esquivar dos ramos baixos ou tropeçava com árvores caídas. Durante uma hora seguiu Mary, às vezes só com um assobio como guia, às vezes vislumbrando-a enquanto planava em silencio diante dela. Por fim, arranhada, gelada e exausta, Libby viu uma débil luz longe, frente a ela. Entrou no claro dando tropeções, mas se deteve bruscamente ao ver que Daar estava no alpendre de sua cabana; sua silhueta se recortava à luz de um abajur de querosene que pendurava da parede, detrás dele.
Nesse instante se ouviu o resmungar de sua voz no frio ar da noite:
—Se não traz meu bastão, garota, já pode dar meia volta e voltar a descer a montanha.
—Quero uma xícara de café.
—Só lhe darei isso se me trouxe o bastão.
—Tem-no Michael.
—Então cuidado de que não te coma um urso no caminho de volta — Disse o ancião ao tempo que se voltava e entrava em sua casa.
Libby ficou plantada no chão, com a vista cravada na porta. Sabia que Daar tinha café ali dentro; se até o cheirava, maldição!
Com ar resolvido, foi à cabana dando fortes pisões, subiu os quatro degraus do alpendre e golpeou a maciça porta com a lanterna.
—Não penso partir ! — Gritou — Quero uma xícara de café e quero falar com você!
Através da madeira lhe chegou uma amortecida resposta.
—Bom, pois eu não quero falar contigo.
—A lei do bosque diz que terá que dar proteção a quem se perdeu! — Repôs Libby — Junto com comida e algo quente de beber.
—Você acaba de inventar isso se mande antes de que te converta em um escaravelho bolorento.
Ela voltou a esmurrar a porta com a lanterna. Ao não obter nenhuma resposta, apoiou a cabeça na madeira e começou a soluçar em voz baixa.
—Meu… Dom não funciona — Sussurrou — Não pude usá-lo ontem à noite, quando o necessitava.
A porta se abriu de repente e Libby caiu nos braços do padre Daar.
Afundou a face em seu ombro e prosseguiu sua argumentação baixinho.
—Não pude curar Alan Brewer. Arrumei o braço quebrado de Darren, mas não pude fazer nada por seu pai. Pareceu-me que me sumia no caos. As cores se formavam redemoinhos e não me deixaram chegar a sua ferida.
Dava a impressão de que Daar não tinha nem ideia do que fazer com uma mulher que lhe chorava no ombro; com uma mão lhe deu umas quantas tapinhas bruscas nas costas enquanto tentava afastá-la com a outra. Por fim a levou até a mesa e a sentou em uma cadeira. Libby cruzou forte as mãos, baixou a vista para olhar-lhe e prosseguiu:
—Não funcionou nada do que tentei. Tinha ao Michael ali, me sustentando, mas não pude me abrir passo até o Alan. — Olhou ao ancião — Por que? Sentia dor… É que não queria que o curasse?
Daar se sentou em uma cadeira a seu lado, coçou a barba e entreabriu os olhos, pensativo.
—Claro que quereria curar-se. Diz que o tentou, mas que não pôde chegar até ele? E, entretanto, curou o menino?
Libby assentiu.
—Darren tinha um braço quebrado. Pude penetrar nele, ver a fratura e arrumar-lhe E também vi a ferida de Alan Brewer, mas não pude alcançá-la. As cores não paravam de me afastar.
O sacerdote ficou calado. Levantou-se, foi até a boca do fogão e serviu uma xícara de café. Depois a levou a mesa e a pôs diante de Libby. Ela a agarrou, soprou o vapor e com cuidado tomou um gole da escura e aromática infusão.
O ancião voltou a sentar-se a seu lado
—Me conte o que aconteceu — Disse — Eu conheço os Brewer. Diz que tiveram um acidente?
—Alan e seu filho Darren caíram do telhado enquanto tentavam pendurar umas luzes de Natal.
—E o menino quebrou o braço?
—Sim, e Alan se quebrou uma vértebra e deslocou o ombro — Acrescentou ela —Eu não tinha material adequado para tratá-lo, e como a ambulância ia demorar muito tempo, tentei usar meu dom para curá-lo.
—E não pôde… — Terminou ele em voz baixa; franziu o cenho com expressão pensativa — O que viu exatamente, Libby? Entrou em seu corpo?
—Sim, igual às outras vezes. Inclusive… Me movi dentro dele. Ouvi os batimentos de seu coração, cada respiração, senti sua dor… Vi sua ferida e soube exatamente como podia curá-lo.
—E quando o tentou, o que aconteceu?
—Nada. Vi a vértebra quebrada, mas não pude me aproximar dela. As cores não paravam de arremeter contra mim e me faziam recuar.
—Inclusive tendo o MacBain ali. Não pôde fazer nada?
—Michael me agarrava pelos ombros.
Daar voltou a levantar-se e foi até a lareira. Sem dizer uma palavra, mexeu um momento no fogo que ardia devagar, depois voltou para a mesa e a olhou de frente com as sobrancelhas franzidas.
—Nem todo mundo tem que curar-se, Libby — Disse em voz baixa — Ou, se tiverem que curar-se, sua cura deve sair deles mesmos, não de uma fonte exterior.
—Mas poderia lhe economizar meses de reabilitação.
—Sim, mas ele não estava disposto a receber seu dom, moça. Alan Brewer me parece um homem sofrido, reservado. É temeroso de Deus, mas isso nem sempre significa acreditar em milagres.
—Quer dizer então que meu dom só funciona com os que acreditam?
—Algo parecido — Disse ele assentindo — O mais provável é que Brewer, simplesmente, não compreenda o que não é evidente. Se não se tocar, não se cheira ou não se vê, o mais seguro é que não exista.
—Mas eu não acreditava e tenho o dom.
—Sim. Mas você não fechava a essa possibilidade, moça. Em seu trabalho realiza milagres todos os dias, e no fundo sabe que na sala de cirurgia não está sozinha. —Dirigiu-lhe um afável sorriso — Como médica utiliza seus conhecimentos sobre o corpo humano, mas cada operação é um ato de fé, não é? E não só fé na ciência… Não há algo mais que guia sua mão na sala de cirurgia?
Libby olhou sua xícara de café com o cenho franzido.
—Não tinha exposto isso nesses termos — Reconheceu. Olhou ao Daar — Eu só fazia o que tinha que fazer.
—E ontem à noite, quando seu dom falhou, o que fez?
—Recorri a minha formação.
—Bem. E Alan Brewer se recuperará?
—Sim. Tinha as costas quebrada, mas vi que não era uma fratura grave, que não o deixaria paralítico. Mas e Darren? Por que pude ajudá-lo?
—Porque é um menino — Disse Daar — Não viveu o suficiente para que a mente se tenha fechado.
Libby tomou um gole de café e pensou no que dizia o ancião. E se disse que, de um modo estranho, tinha lógica.
—Assim só sou uma espécie de canal? Quer dizer que não posso impor a ninguém meu dom à força?
Daar se sentou a seu lado; seus cristalinos olhos azuis brilhavam com cordialidade.
—Sim, Libby; e isso deveria aliviar muitas de suas preocupações. Não tem poder para decidir o destino de uma pessoa. Não era esse seu maior temor?
Tinha razão: aquilo era o que mais a preocupava. Libby assentiu e tomou outro gole de café, dando obrigado de que por fim os dedos das mãos e os pés lhe estivessem entrando em calor. De repente, enquanto a olhava fixamente, Daar inclinou a cabeça e entreabriu os olhos em um gesto que ela já reconhecia como o sinal exterior de que estava pensando.
—Mas me pergunto… — Disse pensativo — O que teria ocorrido ontem à noite se tivesse tido meu bastão?
Libby lhe lançou uma rápida olhada a bengala que estava apoiada na lareira.
—Esse bastão? — Perguntou assinalando-o — Por que? Acredita que teria curado Alan Brewer se o tivesse tido?
Daar assentiu devagar; seus pensamentos voltavam a dirigir-se para dentro —Sim. Embora talvez não tem suficiente poder… Meu velho bastão sim que era poderoso — Acrescentou com brutalidade, ao tempo que voltava a centrar sua atenção nela — Imagino que com ele teria podido vencer a resistência de Brewer.
Libby começou a inquietar-se.
—Mas isso não seria pouco ético… Ou imoral, ou algo assim? — Perguntou—. Eu não desejo um poder que possa vencer as defesas de uma pessoa.
—Mas se for um poder bom, moça…
—Bom para quem? — Libby meneou a cabeça — Começo a entender por que Michael não quer lhe devolver o bastão. Disse que você seria perigoso se recuperasse todos seus poderes, e começo a acreditar que talvez tem razão.
Ao Daar lhe escureceu a cara.
—Perigoso! — Resmungou — Porque saiba que dirigi esses poderes durante mais de quatorze séculos, garota, e nenhuma só vez abusei deles.
—Mas cometeu enganos — Replicou ela — Aquela manhã, em meu alpendre, reconheceu-o.
Nesse momento Daar ficou de pé, foi à porta, abriu-a e se colocou a um lado, lhe indicando em silêncio que sua visita tinha terminado. Libby se levantou, jogou uma última e ofegante olhar a quente lareira e saiu ao alpendre.
A porta se fechou de uma portada a suas costas e ouviu correr o ferrolho com um forte golpe surdo. Então saiu e atravessou o claro sob um cristalizado amanhecer, cada vez mais luminoso.
Demorou o dobro de antes em encontrar o caminho de volta a sua casa; pelo visto, a Mary já não gostava de ajudá-la.
E, enquanto caminhava, perguntou-se em que confusão teria metido por negar-se a ajudar a um mago que desejava recuperar seus poderes.
Devagar, Michael esfregou a superfície da alta cômoda de carvalho para lhe dar outra capa de cera. Desde que começou a temporada de mais atividade tinha tido muito pouco tempo para trabalhar no presente de Libby, e era um milagre para que a tivesse acabado a tempo.
A cama do alce, a cômoda e as duas mesinhas de noite a jogo que ainda estavam por terminar as tinha começado fazia mais de um ano. Fazia a cama para si mesmo; não porque necessitasse uma cama nova, mas sim porque, da infância, trabalhar com madeira era uma grande fonte de prazer. Por isso havia feito aquela mesa de cozinha de arce dois anos antes e a tinha dado a Ellen Bigelow o dia em que fez oitenta e cinco anos. Também tinha fabricado a cama de Robbie com madeira de abedul, para quando o menino deixou de dormir no berço.
Jogou uma olhada por sua oficina e o assombrou a coleção de ferramentas que tinha acumulado em só nove anos. Quando era um menino que crescia nas Terras Altas, ele e seu pai só tinham um punhado de ferramentas. Agora parecia incrível como sua mãe apreciava todos e cada um dos móveis que lhe faziam, funcionais mas de tosco desenho.
Michael sorriu ao recordar um móvel em concreto, um baú onde Isobel MacBain guardava seus apreciados itens de costura e seus tecidos, e no que ele tinha trabalhado com afã durante quase cinco meses sob o paciente olhar de seu pai. Na tampa do baú tinha esculpido flores silvestres que, mais que urze e louro, pareciam ervas daninhas…
Ao ver o presente, sua mãe tinha tido a mesma reação que Libby, embora no que se refere à habilidade de sua fatura os dois móveis distavam mundos… E séculos. As duas passaram as mãos sobre a polida madeira, maravilhadas, como se o móvel fosse de rico ouro.
Libby.
Naquelas três semanas, do acidente de Alan Brewer, tinha estado distante e estranhamente reservada. Diabos, aquela mulher tinha procurado evitá-lo. E quando falavam, pelo geral o faziam de tais tolices que seria para rir se não fosse tão frustrante.
Estava assustada, nada mais. Libby sabia que ele conhecia seu segredo, e preocupava que talvez fosse rejeitá-la por possuir o poder de curar.
Assim, por um mecanismo de defesa ela rejeitava a ele. E isso também seria para rir se não fosse tão exasperante.
Michael lhe tinha permitido seu silencioso motim só porque tinha que aprender sozinha aquela lição. A confiança era um conceito frágil, difícil de inculcar a uma pessoa, e só se acostumava mediante o exemplo.
Era uma verdadeira pena que Libby demorasse tanto tempo em decidir que podia confiar nele.
Tinha-lhe concedido um tempo até o Natal. Se para então não falava com ele abertamente do ocorrido na casa dos Brewer… Bom, talvez tirava aquela mulher de sua apreciada cama do alce, subia-a às montanhas… E não retornava até que concordasse a casar-se com ele.
Michael deixou de esfregar a gaveta inferior, endireitou-se e recuou para admirar sua obra. As vivas e cálidas veta do carvalho brilhavam sob as abundantes capa de cera. Sorrindo, olhou a alta cômoda; Libby ia ter que ficar nas pontas dos pés para ver a gaveta de acima. Talvez devesse fazer uma pequena banqueta com as partes de madeira que ficavam. Diabos, se já tinha que tomar impulso só para subir à cama de um salto…
Maldição, como sentia falta de lhe fazer amor!
Sim, concedia-lhe até Natal para que entrasse em razão. E é que calculava que demoraria mais ou menos outra semana em deixá-lo louco e deitá-la sobre seus preciosos ossos no abrigo onde se faziam as coroas de Natal.
Depois de atirar o trapo sobre o banco de trabalho, colocou o jaquetão e saiu ao frio ar noturno. A fria neve rangeu sob seus pés quando se deteve contemplar as centenas árvores de Natal dispostos em perfeitas fileiras, só interrompidas pelo oco dos exemplares destruídos, cortados para adornar as casas das pessoas.
A lua cheia se refletia na limpa neve e iluminava uma paisagem coberta de um imaculado manto branco de vinte e cinco centímetros de espessura. Fria e silenciosa, a montanha TarStone se elevava ao fundo enquanto que a montanha Fraser não era mais que uma sombra longínqua no horizonte.
Michael inspirou fundo e suspirou satisfeito. Por uma vez estava em paz com o mundo, disse-se, enquanto esfregava o lugar onde lhe tinha batido a bola de neve de Libby. Em realidade, sentia-se mais seguro que satisfeito por acabar seus dias nesta época, agora que sabia que o velho drùidh jamais recuperaria seu poderoso bastão. Não tinha destruído a vara de cerejeira, mas a tinha escondido onde Daar, e em particular aquela coruja intrometida, não a encontrariam nunca.
Soltou uma risadinha, meteu as mãos nos bolsos e começou a caminhar para a casa, enquanto observava como seu fôlego subia brandamente em forma de nuvem no frio ar da noite. Só uma semana e seriam uma família, reunidos pela providência ou pela casualidade, com idades que iam dos nove aos oitocentos e trinta e seis anos.
Mas desta vez ia esperar até depois das bodas para contar a sua esposa o de sua incrível viagem.
Libby deixou cair vários ramos de canela no suco de maçã que estava esquentando.
—Se tiver que escutar outra canção de Natal, juro-te que grito — Ameaçou — Por que não pomos um interruptor que as ligue só quando entre um cliente?
Kate, que colocava uma lenha na estufa, endireitou-se e sacudiu as mãos, estremecendo, ao tempo que uma versão de “Natal, Natal, branco Natal” cantado por esquilos enchia a loja.
—Poderíamos deixar cair o reprodutor de cd no lago sem querer… — Sugeriu — Ou talvez digo ao Ian que lhe dê um tiro e pronto.
Mas Libby se encarregou em pessoa de solucionar o problema. Limitou-se a rodear o mostrador, desligar o reprodutor e tirar o disco. Depois abriu a porta traseira e atirou o cd o mais longe que pôde.
O disco saiu voando e esteve a ponto de bater em Robbie, que se deteve bruscamente dando um escorregão enquanto o plano míssil passava voando perto dele e desaparecia girando na neve. O menino se voltou a olhá-la com seus surpreendidos olhos cor estanho, sorriu e meneou a cabeça.
—A vózinha Ellen também fazia sempre coisas raras justo antes do Natal — Disse ao tempo que passava por diante dela e entrava na loja — Papai diz que o envelope de meu pagamento está aqui. Pode me dar? Leysa e Rose chegarão logo, e necessito meu dinheiro. Kate abriu a caixa registradora, tirou um envelope cor marrom e o agitou no ar.
—Para que? — Perguntou — Por que necessita um jovenzinho dinheiro nesta época do ano?
—É Natal — Disse ele; elevou a vista para ela e sorriu — E Leysa vai levar me as compras em Bangor com ela e com a Rose.
Libby deu a volta em Robbie, desabotoou-lhe o jaquetão mau abotoado e voltou a abotoar certo.
—Outra vez? — Perguntou — É a terceira vez neste mês.
—As outras duas vezes não fui às compras. Fui de baba.
—Da Rose? — Perguntou Libby — Cuidava da pequenina?
O menino revirou os olhos.
—Mas não só — Disse — Leysa só me necessita para que entretenha a Rose nas lojas. Eu empurro o carrinho, e brincamos enquanto sua mãe compra.
—E certamente que a ajuda muitíssimo — Disse Kate enquanto lhe endireitava o gorro e lhe colocava o envelope no bolso — O que vai comprar hoje?
Robbie, que pelo visto já tinha chegado a seu limite de mimos femininos, começou a dirigir-se muito lentamente para a porta.
—É Natal — Repetiu elevando o queixo — Não posso dizer isso
—Pode me dizer, pelo menos, a que hora pensa estar em casa? — Perguntou Libby — Recorda que esta noite damos a festa.
—Leysa me prometeu que estaremos de volta com tempo de sobra. Me disse que não a perderia por nada do mundo.
Ao sair à neve se deteve, voltou a cabeça e deu a Libby um olhar feroz.
—Não olhe em minha oficina enquanto estou fora — Advertiu — Ou se não, Papai Noel não será generoso contigo manhã pela manhã.
Libby elevou a mão em uma saudação de garota exploradora.
—Prometo-te não olhar, Robbie — Disse; então baixou a voz e saiu com ele à porta para que Kate não o ouvisse — Por favor, dirá-me o que te ajudei a fazer para o Michael? Sei que o que estive forrando com uma velha parte de lã escocesa é uma espécie de vitrine, mas não sei o que irá dentro. E também suponho que a placa que pintei é para essa vitrine, mas o que significa “Tàirneanaiche”?
Ele deu um sorriso cheio de segredos… E bastante satisfeita.
—Descobrirá amanhã — Disse; sua voz se transformou em um sussurro — Não é divertido o Natal, com tantos segredos e surpresas? Tudo vai crescendo até que acredita que vai explodir, e depois todo tira o chapéu de repente. Te vai encantar a surpresa que papai está te preparando, Libby.
Seu sorriso se ampliou docemente.
—A mim, certamente, eu adoro. Amanhã pela manhã vou ser o menino mais feliz do mundo. E amanhã de noite você vai ser a mulher mais feliz, pois seus sonhos vão transformar em realidade.
Ela elevou uma sobrancelha enquanto correspondia a seu contagioso sorriso.
—E que sonhos são esses? — Perguntou — Como sabe sequer com o que eu sonho?
—Mary me contou — Disse ele concisamente — Ela sabe estas coisas.
—Mary te contou quais são meus sonhos? — Perguntou Libby alarmada.
Robbie lhe deu uns tapinhas no ombro e voltou a revirar os olhos.
—Não é que veja em sua cabeça nem nada disso — Assegurou — Só sabe o que é bom para as pessoas.
Voltou a sorrir.
—E diz que o presente de papai é justo o que os dois necessitam.
Voltou-se ao ouvir que uma caminhonete se aproximava.
—Aí estão Leysa e Rose. Tenho que ir.
Voltou a olhar a Libby, jogou-se em seus braços e a abraçou forte.
—Até esta noite. Se encarregue de que haja muito bolo de queijo. A verdade é que eu adoro o bolo de queijo!
Deu-lhe um forte apertão e logo, depois de soltá-la, correu para a caminhonete que estava esperando-o.
Michael, que saía de sua oficina, pegou-o justo quando abria a porta da caminhonete. Passou o menino uma parte de papel dobrado, deu-lhe um abraço de despedida, acomodou-o no assento traseiro e fechou o cinto de segurança com um estalo. Depois de falar uns minutos com a Leysa, acariciou o queixo de Rose e por fim fechou com suavidade a porta e os olhou partir.
Libby o viu dar a volta e cruzar os braços sobre o peito. Limitou-se a ficar ali, contemplando-a em silencio do outro lado do jardim vazio.
Ela se obrigou a ficar quieta. Senhor, quanto sentia falta de fazer amor com ele! Já tinham passado quatro longas semanas, com noites incluso mais longas. Mais que os canções de natal, o que estava tirando-a do sério era a teimosa paciência de Michael.
Sabia o que estava fazendo. Sabia que estava esperando a que fosse a ele para falar do que tinha ocorrido aquela noite na casa dos Brewer.
Mas estar perto dele todos os dias, inclusive sem relações sexuais, era melhor que vê-lo desaparecer de sua vida por completo. E isso é justo o que ocorreria se alguma vez chegava a inteirar-se da magnitude de seu segredo.
—O outro dia te vi sentada na moto de neve — Disse ele, ainda de pé ao outro lado do jardim, olhando-a atentamente — Gostaria de dar um passeio, moça?
Ela tratou de decidir se estava sendo sincero ou se, simplesmente, calculava suas possibilidades de estar com ela a sós, longe de qualquer distração.
—Agora mesmo? — Perguntou — Mas e a loja?
—Hoje é Véspera de natal, e não haverá tanta gente. Quase todo mundo já pôs as árvores. Kate e Ian se encarregarão da loja.
Sim que gostava de ir dar um passeio, mas o que de verdade não queria fazer era ficar a sós com o Michael. Porque havia duas possibilidades: ou atacaria sem mais seu formoso corpo… Ou se derrubaria por completo e soltaria todas suas preocupações de repente.
—Tenho que ajudar a preparar a festa desta noite.
Ele cruzou os braços.
—Não estaremos muito tempo fora — Disse; sua voz persuasiva lhe fez sentir calafrios nas costas — Te trarei de volta dentro de duas horas.
Voltou-se e se dirigiu ao abrigo das máquinas.
Pelo visto estava seguro de que ela aceitaria seu convite, porque, por cima do ombro, ordenou-lhe:
—Ponha o jaquetão e as luvas. Pode pôr o capacete de Robbie.
Indecisa ainda, Libby ficou paralisada e esfregou as mãos nas coxas. Mas em seguida entrou correndo na loja, disse ao Kate aonde ia, prometeu estar de volta a tempo para dar uma mão com a festa e saiu como um vendaval pela porta dianteira enquanto colocava a jaqueta.
Mais que sua vida, ia pôr seu coração nas mãos do Michael, mas aquele era um passeio que já não podia evitar. Iam resolver os assuntos pendentes aquela mesma manhã.
E calculou que tinha cinquenta por cento de possibilidades de descer da montanha com um companheiro da alma… Ou de voltar andando sozinha, sem mais companheiro que a dor.
Michael pôs em marcha o motor da potente moto de neve e a deixou em ponto morto para que se esquentasse enquanto recolhia o capacete de Libby e a via sair correndo da loja.
Não parecia uma pessoa feliz diante a perspectiva de montar na moto de neve pela primeira vez. Não, mas bem parecia uma mulher que caminhasse para uma execução… E Michael sabia que era ao redor de seu próprio pescoço onde sentia esticar a corda.
Partiu a alma por ela… E por si mesmo. Também lhe parecia que aquela viagem talvez fosse sua perdição, porque se Libby não suportasse o que estava a ponto de lhe contar, o mais seguro era que desta vez quebrasse o coração em dois.
Ela se deteve justo à porta do abrigo das máquinas.
—Estou pronta — Disse.
Agarrou o capacete que estendia, voltou-o de barriga para baixo e agachou a cabeça para colocá-lo e depois se endireitou, dirigiu-lhe um tenso sorriso e se ajustou a correia sob o queixo.
—Posso conduzir?
—Não — Disse Michael ao tempo que se voltava para ocultar seu sorriso.
Talvez desconfiasse de suas intenções, mas dava a impressão de que isso não esfriava seu entusiasmo pelo passeio em si.
Subiu ao veículo, acelerou o motor e saiu muito lentamente do abrigo. Seu capacete estava pendurado do guidão; agarrou-o, o pôs e depois deu uns tapinhas no assento de trás. Assim que ela se montou de um salto, lhe colocou bem os pés nas proteção de pés e levou suas mãos aos cabos que tinha aos lados.
—Se apoie no respaldo e tenta relaxar — Ordenou —. Não tem que preocupar-se por manter o equilíbrio: vai mais como um carro que como uma motocicleta. Além disso, irei devagar.
—Muito devagar não — Repreendeu ela, enquanto o examinava pelo frontal aberto de seu capacete.
Ele baixou a viseira de repente e ficou em marcha entre as fileiras das árvores de Natal em direção para a montanha TarStone. Mas ao passar por diante do caminho que levava a casa dela, girou e ao cabo de uns minutos parou em seu jardim.
Libby levantou a viseira.
—Por que paramos? — Perguntou.
—Pareceu-me boa ideia recolher um pouco de almoço para nos levar.
—Um lanche campestre? Em pleno inverno?
Michael deu de ombros e desceu da moto de neve.
—Por que não? Procuraremos um lugar ensolarado, a resguardo do vento.
Antes que terminasse de falar, ela já corria para a casa e desaparecia pela porta. Michael deu a volta ao veículo para encarar o TarStone, sem deixar de pensar no que faria assim que a tivesse o bastante longe da civilização como para que não pudesse correr pedindo ajuda a gritos.
Para ser uma mulher que acabava de dar a luz a sua sétima filha fazia quatro dias, na noite anterior Grace MacKeage ainda ficavam muitas energias; teve energia suficiente para soltar a Michael um cáustico sermão sobre que uma mulher deve saber que está a ponto de casar-se.
Michael tinha ido ao Gu Bràth com o pretexto de que ele e Robbie conhecessem o membro mais recente dos MacKeage. Mas assim que Robbie saiu da sala para jogar com o Heather e as demais meninas, e Greylen se foi com seu flamejante bebê nos braços, Michael se sentou diante do fogo junto a Grace e lhe contou sua intenção de casar-se com a Libby no dia de Natal.
Esperava a surpresa de Grace, mas não sua indignação. E é que, depois de levantar-se, ela se inclinou sobre ele e o cravou com o dedo no peito de forma bastante brusca. E depois, sem deixar de agitar aquele mesmo dedo diante sua cara, passou a instruí-lo sobre questões mais sutis: o que era romântico, o sentido da oportunidade e o modo de pensar das mulheres modernas.
Por isso estava ali agora, com todas suas palavras repicando na cabeça, e por isso levava furtivamente Libby, para declarar-se como é devido.
Soltou um bufado, tirou o capacete e esfregou o pescoço em uma tentativa de impedir que o suor lhe corresse pelas costas. Grace também lhe fez prometer que não se declararia até que não lhe tivesse explicado sua viagem no tempo.
Por isso subiam a montanha. Tinha aprendido a lição com a Mary e não ia perder de vista a Libby até não estar seguro de que estava tranquila e não sairia correndo.
Ouviu a porta fechar-se de uma portada, deu a volta e viu Libby que voltava correndo com uma mochila muito cheia nos braços. Agarrou a mochila e a segurou bem no respaldo; depois voltou a montar na moto de neve e esperou a que ela se acomodasse atrás outra vez.
—Tenho que me agarrar aos cabos? — Perguntou ela . Não posso me agarrar em você?
—O que seja mais cômodo, moça.
Pôs em marcha o motor e olhou por cima do ombro.
—Pronta? — Perguntou.
Viu que ela inspirava fundo, descia de um tapa a viseira e assentia. Assim que suas mãos lhe rodearam a cintura, Michael saiu pelo atalho de trás para a colina do West Shoulder.
Foram em amigável silêncio vários quilômetros, até que Libby lhe deu um tapinha no ombro.
—Quero levá-lo — Reclamou quando ele se deteve ver para ver o que queria — Não parece muito difícil.
Michael se levantou para que ela se deslocasse para frente e montou atrás.
—Este é o acelerador — Disse lhe colocando o polegar sobre a alavanca do lado direito do guidão — Aperta com suavidade, que responde rápido. E este é o freio.
Fechou-lhe os dedos na alavanca da esquerda.
—Mantém sempre os pés nos repousos, embora pareça que vamos cair, assim evitará quebre um tornozelo. Leva-se igual a uma bicicleta, mas sem a inclinação.
Ela afastou lhe apartou os braços com os cotovelos e, ao tocar no acelerador, saíram disparados como um foguete. Em seguida se detiveram bruscamente quando Libby freou de repente. Michael apoiou bem os pés para não esmagá-la contra o guidão, fechou os olhos e rezou pedindo paciência.
—É hipersensível! —Queixou-se ela a gritos através da viseira, justo quando tocava no acelerador outra vez.
Desta vez não freou, e de repente Michael se alegrou de ter decidido não deixar uma moto de neve a ela para aquele passeio. Durante os três quilômetros seguintes voaram montanha acima como uma lebre bêbada enquanto, pouco a pouco, lhe agarrava o tranquilo ao potente veículo. Michael teve que intervir quatro vezes para que não se chocassem contra as árvores.
Por fim alargou as mãos em torno dela e se fez cargo dos comandos para dirigir o veículo para um pequeno claro situado ao pé de uma saliência orientado ao sul. Uma vez ali, desligou o motor e desceu, tirou o capacete e observou como a cabeça de Libby surgia devagar do capacete até deixar ao descoberto um sorriso beatífico.
—Foi maravilhoso! — Disse ela com os olhos brilhantes de prazer, dando uns carinhosos tapinhas a moto de neve — Vou comprar uma. Na loja dos Doam vi um mapa que indica como percorrer todo o estado em moto de neve.
Michael lhe tirou o capacete da mão, atirou-o ao chão, tomou-a nos seus braços e beijou seu precioso sorriso.
Estava mais doce que nunca, com um muito leve rastro de suco de maçã quente e um pouco de canela. Era tão preciosa e diminuta, inclusive com sua roliça jaqueta invernal de plumas, que não se cansava dela. Levantou-a no alto e grunhiu de satisfação quando lhe rodeou a cintura com as pernas, rodeou-lhe o pescoço com os braços e gemeu em sua boca.
Dando passos longos, Michael foi até a saliência e procurou um lugar onde não houvesse neve e que estivesse coberto de grama seca e amaciada. Pô-la ali e se estendeu também até que ela esteve comodamente debaixo… Tudo isso sem desfazer o beijo. Claro que ela não teria permitido. Lhe tinha agarrado ao cabelo e, sem deixar de fazer doces ruidinhos como miados de urgência, meneava-se inquieta contra ele até que Michael acreditou que ia explodir em chamas.
Sim, tinha passado muito tempo da última vez que haviam feito amor.
Com um esforço hercúleo, Michael se deteve, puxou as mãos de Libby para afastar-lhe do pescoço e as colocou entre os corpos de ambos enquanto olhava fixamente seus olhos cheios de paixão.
—Não podemos, Libby.
—coloquei três camisinhas na mochila. E uma manta.
Michael meneou a cabeça e sorriu com gesto tenso diante seu evidente desejo.
—Não, moça. Trouxe-te aqui para falar.
—E falaremos… Mas depois. Por favor, Michael, me faça amor.
Ele voltou a menear a cabeça, beijou-a na ponta do nariz e deu a volta até ficar sentado junto a ela. Então se rodeou os joelhos com os braços e cravou o olhar nas longínquas e geladas águas do lago Pene, metido no vale de abaixo. — Libby, não se perguntou alguma vez por que aceito com tanta facilidade que Daar seja um mago? —Perguntou em voz baixa. Ela se sentou a seu lado, e Michael sentiu seus olhos cravados na sua face. Não a olhou, mas sim seguiu contemplando fixamente o lago. — Sim me perguntei isso. Mas tinha tantas coisas de que me ocupar que… Não me pareceu importante.
Pôs uma diminuta mão sobre seu braço.
—Por que acredita nos magos?
Por fim ele a olhou, e se encontrou com um olhar tempestuoso, preocupada e, também, um pouco assustada.
—É um drùidh de verdade, moça. Sei porque senti seus poderes em pessoa. Foi no ano 1200, e eu estava combatendo contra Greylen MacKeage.
—Combatendo contra Greylen? Q… Quando? — Sussurrou ela.
Michael se voltou e a levantou até pô-la em seu colo; depois a rodeou forte com os braços. Os olhos dos dois estavam agora à mesma altura.
—Eu nasci o ano 1171, Libby. Tenho mais de oito séculos de idade.
Ela tentou afastar-se bruscamente, mas ele o impediu.
E prosseguiu sua história.
—Durante esse combate divisei um ancião que se encontrava sobre um penhasco por cima de nós, com os braços estendidos e um comprido bastão na mão sustentado em alto. de repente uma grande tempestade explodiu sobre nós; obscureceu tanto o céu que se fez noite, e encheu o ar de um fortíssimo vento e um crepitar de raios. E de repente me vi caindo, rodando por algo que só posso definir como energia, algo de um branco cegador. Naquele breve instante senti como se não existisse; simplesmente, consumi-me.
A mulher que tinha no colo ficou calada como uma morta, com a pele pálida e os olhos muito abertos. Mesmo assim, Michael continuou, resolvido a lhe fazer entender quem era exatamente.
—Meu seguinte pensamento consciente foi que, depois de tudo, não tinha morrido. Estava estendido em um campo de alta grama e ouvia os gemidos de meus homens, quebrado só pelos gritos de nossos aterrados cavalos — Apertou as mãos sobre os braços dela, mais para que deixassem de tremer que para abraçá-la —Greylen MacKeage estava estendido a meu lado. Também cinco de meus guerreiros, e Callum, Morgan e Ian MacKeage. Ao fim nossos cavalos conseguiram levantar-se com dificuldade e ficaram ali tremendo, respirando penosamente e soprando de pânico, sem saber para onde correr para ficar a salvo. Não sabíamos o que tinha acontecido nem o que era o que nos ameaçava.
Libby elevou uma diminuta mão enluvada até sua face e passou um dedo pela tensa bochecha.
—Onde estavam? — Sussurrou.
—Na Escócia atual. — Apanhou-lhe a mão e a estreitou contra seu peito, sobre o martelar de seu coração — Disso faz doze anos, Libby. Os cinco MacBain que estavam comigo já morreram. Só ficamos os MacKeage e eu. E Daar. Seu nome autêntico é Pendaär, e é um drùidh.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas não saiu nenhum som. Limitou-se a dirigir o olhar para a mão que ele mantinha contra seu peito.
Michael elevou seu queixo e sorriu.
—Seu segredo, moça, não é tão espantoso comparado com o meu. Que tenha o dom de curar pessoas é algo maravilhoso, Libby. E o que eu compreendi seus poderes é o presente que ganhou.
Agora ela estava franzindo o cenho e voltava a lhe olhar fixamente o peito.
—Está dizendo que viajou oito séculos no tempo? Que nasceu na Escócia medieval, e que um mago te enfeitiçou e te trouxe aqui? — Rematou em voz baixa.
De novo elevou seus tempestuosos e empapados olhos castanhos e o olhou.
—Sim, Libby. Isso foi o que ocorreu. Bem sabe Deus que não sei como nem por que, só que assim é. E durante estes doze anos aprendi a aceitar esse feito.
Sem pensar, lhe rodeou o pescoço com os braços e o abraçou muito forte, enquanto lhe acariciava a orelha com os lábios e sussurrava:
—Ai, Michael, lamento muitíssimo o que te ocorreu!
Mas então ele a agarrou pelos ombros, manteve-a a distância e cravou a vista em seus olhos cheios de lágrimas.
—Não se atreva a lamentá-lo — Grunhiu — Eu aceitei meu destino, e agora é você quem tem que fazer o mesmo.
Ela piscou, evidentemente surpreendida por seu aborrecimento.
—Mas…
—Você nasceu em uma época em que os druidas, a magia e os milagres se consideram suspeitos, Libby — Prosseguiu ele com doce energia — Não entendem o que não tocam nem veem. Mas eu sou de um tempo em que a magia era quase uma religião e formava parte da vida cotidiana. É através de mim como chegará a aceitar seus dons, e os aceitará, em vez de ter medo. E muito bem pode ser esse o motivo pelo que estou aqui, moça.
De repente sorriu.
—E também pelo Robbie. Acredito que ele tinha que nascer de uma mulher maravilhosa e muito especial. O destino de meu filho está ainda por revelar, mas sei que o meu é estar aqui com ele… E contigo.
Antes que ela pudesse reagir, e mantendo um ponto de dureza na voz, acrescentou:
—Por isso vamos nos casar amanhã.
—Nos casar? Amanhã? — Balbuciou ela com a voz quebrada pela surpresa.
Michael fez uma brusca inclinação de cabeça.
—Mas você não quer se casar! — Disse ela em tom crispado; saiu com esforço do colo dele e o assinalou com o dedo — Não tenho intenção de viver com um homem que não pode me amar.
Ele se recostou na saliência, com os tornozelos cruzados e os braços cruzados sobre o peito.
—Mas é que te amo — Disse em voz baixa.
Nesse momento deu a impressão de que ela estava a ponto de explodir.
—Não me ama! Não pode me amar! Disse que não ficava nada para dar a uma mulher!
—Estava equivocado.
—Sou uma anomalia… Um fenômeno estranho da natureza!
—Pois seremos dois fenômenos juntos. — Michael se levantou até ficar, imponente, sobre ela, e sorriu — Mas seremos fenômenos casados, Libby. Você me pertence. E passaremos o resto de nossos dias como marido e mulher, aceitando juntos nossos destinos.
Estendeu as mãos assim que se deu conta de que ela estava a ponto de vir-se abaixo, aflita e desorientada, e depois se apressou a sentar-se outra vez e a balançá-la contra seu peito.
—Ai, moça. Você necessita de alguém em quem te apoiar, e eu também. Seremos uma base sólida um para o outro. Nossas forças combinadas nos manterão acordados, e juntos ajudaremos o Robbie a transformar-se em um homem excelente enquanto se prepara para procurar seu próprio destino.
Elevou uma mão e lhe acariciou a branca mecha da frente.
—E talvez teremos um ou dois meninos mais. Meninas, se você quiser, com lindas mechinhas de cabelo branco e seis dedos nos pés.
Ela pôs uma mão na sua e lhe lançou um olhar horrorizado.
—Meus filhos serão normais! — Balbuciou.
Ele deu um puxão do branco cacho.
—E que graça tem isso? Qualquer um pode ser normal.
Ela tinha que pensar e, a julgar por sua cara, era difícil aceitar semelhante ideia. Assim Michael calculou que teria que ajudá-la beijando o precioso bico de seus lábios.
—Se case comigo, Libby — Sussurrou em sua boca — Amanhã ao meio-dia me faça o homem mais feliz do mundo.
Ela se tornou atrás ao tempo que dava um grito afogado.
—Robbie sabe! — Gritou — Me disse essas mesmas palavras esta manhã!
Golpeio-o no ombro.
—Ele sabia antes que eu!
Rapidamente, Michael lhe agarrou as mãos e assentiu.
—E Kate também. E Grace. E John… Levo quase uma semana planejando a cerimônia.
Se tivesse podido soltar as mãos, lhe teria golpeado outra vez.
—E, exatamente, quando ia me dizer isso.
Michael sentiu que o calor subia às bochechas.
—Em princípio tinha pensado esperar até manhã — Reconheceu; nesse momento sim que se alegrou de que Grace se intrometeu — Tenho seu anel metido em uma caixinha, escondido em nossa árvore de Natal. Eu… Bem… Ia te dar uma surpresa.
Libby lhe examinou a face e, em voz baixa, repetiu:
—Com um anel… — De repente deu um suspiro, meneou a cabeça e todo seu ânimo de luta desapareceu — Toda mulher sonha com uma surpresa assim.
Lançou-lhe um olhar assassino.
—Embora pelo geral dispõe de uns quantos meses antes da cerimônia para acostumar-se à ideia.
—Por que esperar?
—Por que não esperar?
Michael tomou sua face entre as mãos e passou os polegares pelas bochechas enquanto ela elevava a vista para ele.
—Porque te desejo em minha cama de noite, moça. Quando duas pessoas decidem passar juntas o resto de suas vidas, um compromisso comprido é um desperdício.
Libby voltou a ficar pensando, e Michael decidiu que o que pensasse muito tempo e com muita concentração poderia ser perigoso. De modo que a beijou.
Ao princípio ela vacilou, mais distraída que interessada, até que ele colocou a mão por debaixo de sua jaqueta e encontrou um pequeno e firme seio. Também descobriu que não usava sutiã.
Que bom. E que prático.
Debaixo de várias camadas de roupa e da jaqueta de plumas, a pele estava quentinha. Sua mão, muito mais fria, fez-lhe sentir calafrios pelo corpo e lhe endureceu o suave e sedoso mamilo. Ele passou o polegar por cima, capturou seu grito afogado com a boca e depois rodou até ficar comodamente encaixado entre suas pernas.
Por fim Libby se somou ao jogo amoroso e colocou a pequena e doce língua como uma flecha na boca enquanto arqueava o seio contra sua mão.
Michael pensou na manta e em quão preservativos estavam na mochila… E decidiu que já não eram necessários. Estavam estendidos sobre uma suave cama de grama seca, aquecida pelo sol, e não estaria mal começar já a fazer um irmão ou uma irmã ao Robbie.
Com ternura e um recém declarado amor, despiram-se o um ao outro em uma dança maravilhosamente erótica que pouco a pouco foi jogando a um lado todas as barreiras que se elevaram entre eles.
Por fim, com ambos os corações entregues por completo, Michael penetrou devagar em Libby. A paixão brilhou nos olhos dela quando elevou os quadris para tomá-lo mais fundo, e seu sorriso, que eclipsava ao sol, deu-lhe no centro do coração… Bem no mesmo lugar onde sua certeira bola de neve lhe tinha golpeado fazia tão somente cinco curtas semanas.
Libby estava sentada no degrau superior do alpendre, envolta em lã até o nariz e desfrutando da serenidade noturna. Enormes flocos de neve caíam com calada intensidade, depositando sem cessar uma imaculada manta sobre a terra dormida. O silêncio era absoluto, quebrado só pelo som amortecido da conversa que chegava do interior da casa.
Kate estava lá dentro, sentada diante de um fogo bem quente e abraçando Winter MacKeage, de quatro dias de idade. Sentada junto a ela, Grace tomava seu chá a goles. Greylen tinha deixado a sua esposa e a recém-nascida fazia mais ou menos uma hora e partiu a recolher a suas outras seis filhas antes que Libby tivesse tempo de lhe perguntar por que não tinham vindo todos juntos.
Por isso Libby estava ali fora naquele momento, esperando a ver o que Greylen lhe disse que seria uma surpresa maravilhosa.
Ao parecer, todos aqueles escoceses eram fanáticos das surpresas.
Enquanto esperava, sentindo o abraço da paz da noite, pensou no segredo de Michael. E no de Greylen. E no de Ian, Morgan e Callum… Michael lhe disse que todos aqueles homens tinham nascido em outra época. E embora em outro tempo tinham sido inimigos, agora os unia sua decisão de construir umas vidas novas.
Como era possível que tivessem viajado no tempo?
O que lhe comentou Daar aquela manhã em que despertou a suas flores com um raio?
“O tempo — Disse — Só existia para os relojoeiros…”
E, pelo visto, os magos o manipulavam.
Que inquietante… E que aterrador. Poderia Daar mandar de novo Michael a sua época de nascimento?
Não, o ancião nunca devia pegar seu poderoso bastão. Alegrou-se de que Michael o tivesse pego, e esperou que tivesse tido suficiente presencia de ânimo para destruí-lo.
Nesse momento, e sem nenhum som que advertisse de sua presença, Mary saiu sigilosamente da escuridão e pousou no corrimão do alpendre por cima de Libby.
—Nossa, olá! — Disse — Vejo que recebeu meu convite para a festa.
Mary piscou e depois voltou a cabeça para a janela do salão.
—Viu já a sua nova sobrinha? — Perguntou Libby — A verdade é que é uma pequenina encantada.
A silenciosa coruja nevada foi caminhando de lado pelo corrimão até ficar frente à janela. De ali observou a sua irmã e a sua sobrinha.
Um suave som ressoou na noite, um tênue tinido que ia aproximando-se pouco a pouco, misturado com as fracas vozes.
Libby ficou de pé, emocionadíssima de repente: eram campainhas de trenó. E pessoas que cantava canções de natal enquanto seguia o ritmo das formosas campainhas. O pesado golpear de uns cascos de cavalo se somava ao coro, e a sinfonia reverberava docemente no ar.
Desceu correndo todo o caminho de entrada até a estrada e ficou a olhar até que apareceu o enorme trenó, que avançava devagar. Dois gigantescos cavalos puxava-o, suas campainhas tilintavam e as luzes que penduravam de umas varas postas nos cantos iluminavam a mais de uma dúzia de pessoas.
Libby continuou correndo pela estrada. O trenó estava cheio de membros da família MacKeage: alguns cantavam, outros riam e as crianças pulavam como bolas de ping-pong. Ian levava as rédeas, e através de sua barba salpicada de flocos de neve aparecia seu amplo sorriso. De um puxão deteve os cavalos, e Libby tomou a mão que lhe tendia e subiu junto a ele.
—Ai, santo Deus! É maravilhoso! — Disse voltando-se para sorrir a outros — Que forma tão perfeita de ir a uma festa a véspera de Natal! Onde está Michael? E Robbie?
Ian sacudiu as rédeas para pôr em marcha aos cavalos.
—Acreditávamos que já estavam aqui — Disse — Não há maneira de saber o que andará fazendo Michael.
As últimas palavras as pronunciou com uma risadinha, ao tempo que lhe piscava um olho.
—Virão logo, suponho.
Libby se agarrou ao lado do assento quando o trenó deu uma sacudida para frente, e seguia sorrindo quando os cavalos se meteram pelo caminho de entrada e começaram a trotar para subir com impulso a levantada costa.
Ao deter-se diante do alpendre, Kate saiu da casa e levou as mãos às bochechas enquanto ficava olhando, muda de assombro. Os homens desembarcaram de um salto e começaram a descer as crianças antes de ajudar a suas esposas.
Libby se negou a mover-se de seu assento. Em vez disso, enlaçou seu braço no do Ian e lhe dedicou um doce olhar de súplica.
—Vão todos para dentro, todos. Ian vai levar me a dar um passeio — Disse.
Ele a jogou de um lado, quase espremendo-a, e deu uns tapinhas ao espaço livre que tinha ficado no assento.
—Só se vier sua mãe — disse secamente — Vamos, Kate! Ponha seu lindo e pequeno traseiro aqui acima!
—Tenho que pegar o casaco.
—Não. Eu te manterei abrigada, moça — Repôs Ian enquanto voltava a dar tapinhas no assento — Só vamos dar um breve trotezinho pelo campo.
Kate não necessitou mais adulações. Enquanto descia do alpendre, indicou por gestos aos convidados a sua festa que entrassem na casa, e depois elevou os braços para que Ian a subisse ao trenó.
Libby observou as rédeas com atenção e voltou a sorrir ao Ian com doçura.
—Posso levá-lo? — Perguntou — Não parece muito difícil.
Ele dedicou um olhar feroz e, em gesto protetor, estreitou as rédeas contra seu peito.
—Não! São animais muito temperamentais e se comportarão mal se derem conta de que os dirige uma mulher.
Libby se deslocou até a borda do assento. Podia haver dito que não sem mais aquele comentário machista… Ia esconder o bolo de maçã que Kate tinha assado especialmente para ele, e ia pôr lhe uma boa quantidade de canela no suco de maçã.
Valente velho e bobo troglodita…!
Descreveram um círculo completo em torno do campo antes que os lábios do Kate começassem a ficar azuis; uma vez na porta, Libby e sua mãe entraram correndo na casa e deixaram que Ian se encarregasse de seus preciosos cavalos.
Um buliçoso caos lhes deu as boas-vindas: as crianças corriam e engatinhavam perseguindo aos curvados gatinhos; os homens estavam de pé em torno da mesa da comida, enchendo a boca mais que os pratos, enquanto as mulheres MacKeage, com bebês de diversas idades nos braços, diziam a seus maridos que deixassem um pouco de comida para quão convidados ainda não tinham chegado.
Imediatamente o olhar de Libby se dirigiu para Sadie MacKeage. Sua altura era como um ímã, e seu cabelo loiro brilhava como um farol na abarrotada sala. Libby tinha conhecido Sadie e Morgan justo na semana anterior, quando foram à loja a comprar sua árvore de Natal. Então, quando Sadie tirou as notas para pagar, fixou-se em que tinha a palma da mão direita coberta de cicatrizes de queimaduras.
A alta e formosa mulher pôs a sua filha no chão, e a pequenina que mal andava não demorou para sair disparada atrás de Problema. Foi então quando Libby se deu conta de seu engano: não devia ter colocado laços vermelhos ao pescoço dos gatinhos. Agora a menina (Jennifer, se não recordava mal) estava a ponto de estrangular Problema. Por sorte, a avó da pequena, Charlotte, foi ao resgate e se apressou a desatar o laço e a pegar o gato para que sua neta o acariciasse.
Em seguida Libby procurou guardião e a Tímida e lhes tirou os perigosos adornos.
Alguém lhe passou uma taça de vinho, e quando elevou a vista para dizer obrigado, encontrou-se sorrindo aos resplandecentes olhos de padre Daar.
—Esta noite, garota, não vai dizer uma palavra sobre meu bastão — Sussurrou o ancião com um tenso sorriso — Não quero que Greylen descubra que ainda existe.
Ela devolveu um amplo sorriso, igual de apaziguadora.
—Ah, não? Por que? — Perguntou em tom inocente.
—Bom, dá no mesmo — Murmurou ele — Tem álcool o ponche de ovo?
Ela ia dizer lhe que não, mas em seguida pensou melhor de embebedar a um mago.
—Leva uma quinta parte de rum — Disse — Possivelmente deveria seguir com o suco de maçã.
Ele soltou um pigarro e se dirigiu para a mesa da comida.
Libby deu uma olhada à sala e seu olhar se pousou em Greylen MacKeage. Levava uma mochila pendurada nos ombros que descansava sobre seu peito, em que Grace estava colocando Winter.
Libby observou como, com uma de suas grandes mãos, Greylen embalava o traseiro da recém-nascida enquanto se voltava e, com a mão livre, começava a comer de novo.
Grace olhou o grande relógio de pé que estava no canto e depois se voltou outra vez para Libby.
—Pensava que Michael, Robbie e John já estariam aqui. Robbie leva toda a semana falando desta festa.
—E eu me pergunto o que é que entretém o Dwayne e o Harry — Disse Sadie MacKeage, unindo-se à conversa — A casa está preciosa, Libby. E tem estrelas no teto do banheiro!
Inclinou a cabeça com expressão de curiosidade.
—Quando entrei, antes de acender a luz, todo o teto reluzia. Assim saí outra vez correndo e peguei Jennifer para mostrar-lhe teriam que ter visto a cara quando o viu. Onde posso conseguir umas quantas? Eu adoraria as pôr no teto, em cima de minha cama.
—Há uma tendinha de intrigas genial no centro de Bangor — Disse Libby ao tempo que lhes indicava que fossem com ela — Vamos. Têm que ver o teto de meu quarto.
As estrelas foram um êxito, embora nem muito menos tanto como a cama do alce. Sadie não deixava de passar a mão por ela. E quanto ao Grace… Essa mulher não deixava de sorrir como quem sabe um segredo.
Libby a olhou diretamente nos olhos.
—Você sabe quem fez esta cama, não é? — Disse.
Grace deu uns leves golpes no queixo com o dedo, e seu sorriso se voltou ardesse.
—A ver… Lembro de tê-la visto na oficina de alguém… Vá, onde era? — Meneou a cabeça e deu de ombros em um gesto de desculpa absolutamente arrependida — Nada… Que pelo visto não lembro de quem era essa oficina.
Libby suspirou. Já quase não se importava. Enquanto Papai Noel lhe levasse uma cômoda a jogo no dia seguinte pela manhã… Então as três saíram para reincorporar-se à festa, e justo quando entravam na cozinha, a porta do alpendre se abriu de uma portada e Michael entrou correndo.
Tinha a face tensa sobre as salientes maçãs do rosto, a pele pálida até parecer cinza, e em seus olhos havia uma tremenda angústia, e pânico.
—Necessito ajuda! — Disse com evidente urgência à abarrotada sala — Houve um acidente a três quilômetros ao leste de Pene Creek. A caminhonete da Leysa Doam saiu da estrada. Agora mesmo a levam a Dover-Foxcroft de ambulância.
O silêncio geral durou apenas uns segundos antes que os homens que havia na sala se movessem quase ao uníssono. Sem perguntas, sem comentários, passaram- as crianças a suas esposas e se apressaram a procurar seus jaquetões. Só a preocupação escurecia seus rostos.
Libby se aproximou correndo de Michael.
—E Robbie? — Perguntou agarrando-o pelas lapelas do jaquetão — Está bem?
Os homens ficaram quietos, e voltou a fazer o silêncio.
Michael a pegou pelos ombros.
—Não sei — Disse, emocionado — Quando Dwayne descobriu o acidente, não havia nem rastro dele. Robbie e Rose não estavam na caminhonete.
Libby o agarrou mais forte quando suas palavras fizeram que lhe acelerasse o coração.
—Então, onde estão? — Gritou — Estavam com a Leysa!
Suavemente, Michael se soltou, deu meia volta e pegou do cabide a jaqueta de Libby. Com gestos firmes e serenos a pôs, passou-lhe o braço pelos ombros e a estreitou forte enquanto centrava sua atenção nos homens.
—Parece-me que vai a pé, tentando chegar a casa pelo bosque. Encontrei fracos rastros que vão para o noroeste, mas a nevasca não demorou para tampar seus rastros.
—por que não ficaria na estrada? —Perguntou Libby, desesperada — por que se meteria no bosque?
Kate foi a seu lado e a puxou pelo braço para sustentá-la.
—Não tem nem nove anos… — Disse — Estará confuso…
—Não — Replicou Michael — Está agindo por instinto. Leysa tinha tomado um atalho: uma estrada secundária pela que só se transita durante a semana para transportar madeiras. Ele sabia que o modo mais rápido de encontrar ajuda era subir pela colina.
—Então, como encontraram a Leysa? — Perguntou Libby atraindo a atenção do Michael outra vez.
—Dwayne foi procurá-la ao ver que se atrasava. Passou-lhe um dedo pela bochecha e tirou uma lágrima.
—Libby, havia sangue no assento traseiro — Disse em voz baixa — Ou Robbie ou Rose estão feridos. Acredito que quando não pôde despertar Leysa, Robbie decidiu pegar Rose e ir procurar ajuda.
Olhou a Greylen.
—Necessito que saiam desde o Gu Bràth e se dirijam pela colina até o caminho madeireiro. Se nos dispersarmos, encontraremos-lo.
Greylen assentiu.
—Antes de nos pôr em marcha acenderemos as luzes da pista de esqui. Talvez as veja. — Dirigiu-se ao alpendre e deixou que Ian, Callum e Morgan passassem na frente; então se voltou a olhar a Daar — Vamos, ancião. Você nos ajudará.
O sacerdote, que já estava colocando o jaquetão, apressou-se a unir-se a outros. Ao chegar à altura de Libby se deteve e cravou seus cristalinos e profundos olhos azuis nos dela.
—Acredito que obterá sua resposta esta noite, garota. E rezarei para que seja a que espera — Disse em tom enigmático; depois deu a volta e saiu com outros.
Michael conteve Libby para que não fosse atrás e olhou às mulheres.
—John está em casa, esperando junto ao telefone. Uma de vocês deveria ir com ele. Harry e Irisa vão de caminho para estar com Leysa, e Dwayne já está procurando a sua filha com a polícia do estado. Chamem por telefone a quem possa ajudar. Que se concentrem na zona entre o TarStone e o lago Pene.
Dadas suas tranquilas ordens, Michael se dirigiu por fim com Libby para fora. Abriu a porta do lado do condutor de sua caminhonete, quase a lançou dentro e subiu atrás dela.
Mas não arrancou em seguida; ficou com a vista cravada mais à frente do para-brisa, com as feições tensas e todo o corpo tão quieto como a noite.
—Havia muito sangue, moça — Disse em voz baixa, sem deixar de olhar para frente — E rastros de mãos do tamanho das de Robbie.
Por fim se voltou a olhá-la.
—Escreveu no vidro com sangue umas coisas que não compreendo.
Libby pôs uma tremula mão sobre a de Michael, fechada no volante.
—O que? — Sussurrou.
—Três palavras em gaélico. Estava mau escrita, mas acredito que tentava me indicar o que tinha que fazer.
—Quais eram as palavras?
—A primeira é simples: “mascote”. Dizia que sua coruja o encontraria.
Libby lançou um rápido olhar ao corrimão do alpendre.
—Claro, Mary! — Gritou; voltou a olhar a Michael — Esteve aqui. Antes. Mas já se foi.
—Talvez esteja com o Robbie — Aventurou ele.
Por fim pôs em movimento a caminhonete e, depois de dar marcha atrás, deu a volta e desceu pelo caminho de entrada.
—E as outras palavras? — Perguntou Libby — O que diziam?
Absorto em seus pensamentos, Michael observou a estrada.
—Feargleidhidh. Significa “guardião”, e acredito que se referia a seu dever para a Rose. E fiodh, que pode significar “uma parte de madeira” ou “bosque”, como o caminho que pensava tomar… Diabos! — Grunhiu, frustrado, ao tempo que lhe lançava um rápido olhar — Ou o mesmo significa algo, vê-la ou seja. Estava mal escrito.
Libby se apressou a fechar o cinto de segurança enquanto baixavam a toda velocidade pela estrada coberta de neve, mais rápido do que iluminavam os faróis.
—Mas por que tem escrito em gaélico? — Perguntou.
Michael reduziu enquanto girava para entrar patinando em uma estrada madeireira coberta de neve.
—Talvez Robbie tenha nascido nesta época — Disse com brutalidade — Mas sua alma é antiga. Encontra-se em um momento de crise, e se orienta por um instinto tão velho como seus antepassados.
Lançou-lhe uma rápida olhada de desespero e depois se apressou a centrar-se em conduzir.
—O menino sabe gaélico, mas ninguém lhe ensinou a escrevê-lo.
Pisou no acelerador e levou a caminhonete a uma velocidade perigosamente rápida pela estreita estrada sem asfaltar.
—Maldição! —Grunhiu dando um tapa no volante — Leva horas no bosque!
—Horas?
—Sim. Quando Dwayne encontrou a caminhonete, tinha quase dez centímetros de neve em cima e o motor estava frio. E além de estar gravemente ferida, Leysa tinha hipotermia; isso significa que o acidente ocorreu pelo menos faz três horas.
Olhou Libby com os olhos escurecidos de angústia.
—Quanto tempo pode sobreviver com estas temperaturas se está perdendo sangue? — Perguntou com evidente preocupação.
Libby pôs uma mão no braço.
—Depende das feridas — Disse — Às vezes uma mancha no interior de um carro produzida por uma quantidade muito pequena de sangue pode ser enganosa. Robbie é o bastante preparado para tentar deter a hemorragia. E, além disso, é grande, Michael; tem suficiente massa corporal para manter o calor.
Apertou-lhe o braço e depois ficou calada, lutando contra o medo que ia crescendo em seu interior enquanto deixava que Michael se aferrasse à esperança que lhe tinha dado.
Madeira… Uma parte de madeira… O que queria dizer Robbie?
De repente lhe agarrou o braço de novo.
—Espera! — Gritou — Para a caminhonete!
Michael pisou no freio a fundo, fazendo que se detiveram entre derrapagens, e a olhou fixamente.
—O bastão! O bastão do Daar! Destruí-o?
—Não. Quis fazê-lo mas ao final não me atrevi. Por que? O que tem que ver encontrando ao Robbie? Mary nos ajudará.
—Uma parte de madeira, Michael! E se referisse ao bastão do Daar? E se estava pedindo que o levasse?
—O mais seguro é que signifique outra coisa: que está cruzando pelo bosque. Robbie nem sequer sabe nada do bastão de Daar.
—De todas maneiras temos que pegá-lo — Disse ela puxando-o — Recorda ao Alan Brewer? Não pude ajudá-lo porque não tinha suficiente poder para transpassar suas defesas. Mas Daar disse que com seu bastão talvez teria podido curá-lo.
—Robbie não resistirá, Libby. Ele confia em você.
—Mas e se chegarmos muito tarde? — Sussurrou ela.
Cruzou as mãos no colo e baixou a vista. Um repentino silêncio se fez no interior da caminhonete, quebrado tão somente pelo som do motor em funcionamento e o compasso dos limpador de para-brisas. Grossos e oscilantes flocos de neve golpeavam o para-brisa cada vez mais forte e desapareceriam em seguida no vidro quente, convertidos em gotas de chuva. As luzes do painel brilhavam com cores etéreas que não faziam mais que acrescentar verossimilhança a suas tristes palavras.
De repente, com um grunhido por resposta, Michael colocou de repente a marcha ré, deu a volta à caminhonete na estreita estrada fazendo girar os quatro pneus para agarrar-se melhor, e tomou a direção contrária.
Em silêncio atravessaram a noite a toda velocidade enquanto Libby rezava por que estivessem fazendo o correto. Sabia o muito que Michael se opunha a revelar o paradeiro do poderoso bastão, mas a estas alturas dava igual a um raio os mandasse a todos eles de volta à Escócia medieval: o importante era que Robbie sobrevivesse.
Passou a mão com suavidade pela coxa de Michael e nesse momento decidiu que iria com eles. Melhor estar em qualquer lugar e em qualquer época com os dois homens que amava que permanecer nesta época sem Robbie.
Deixaram atrás o caminho de entrada para sua casa e, sem reduzir a marcha, seguiram até a casa de Michael e se detiveram entre derrapagens diante da oficina. Ele freou com uma sacudida e, antes que a caminhonete deixasse de balançar-se, já entrava correndo.
Libby ia um passo atrás.
O súbito resplendor das luzes do teto iluminou a silenciosa e plácida oficina de carpintaria. Sem reduzir o passo, Michael foi a seu banco de trabalho e desprendeu uma pequena serra mecânica. Depois deu um forte puxão do arranque e o motor em miniatura cobrou vida entre alaridos.
Libby lançou um grito afogado de surpresa ao ver que Michael empurrava uma formosa e brilhante cômoda de carvalho até fazê-la cair com estrépito ao chão. A seguir levou a rugiente folha da serra contra o painel traseiro e atravessou a madeira. A oficina se encheu de serragem e dos sufocantes gases do motor enquanto o ensurdecedor gemido da lâmina prosseguia a destruição com espantosa facilidade.
A cômoda se partiu em dois limpamente, e a metade superior caiu de barriga para cima. De repente cessou o ruído, embora no ar seguiu zumbindo um bom momento o eco arrepiante da serra. E então, paralisada de horror, Libby contemplou como Michael destruía com suas próprias mãos a parte inferior de sua maravilhosa criação.
Quando ficou de pé apertava no punho a grossa e nodosa parte de madeira de cerejeira de ao redor de meio metro de comprimento. Sem dizer uma palavra, tomou a mão de Libby e, sem voltar-se sequer a olhar os destroços, puxou-a de novo para a caminhonete. Colocou-a dentro nos braços, deu-lhe o bastão, subiu e pôs em marcha a caminhonete antes de que ela se houvesse fechado o cinto de segurança.
Libby cravou o olhar na pesada e morna parte de madeira que tinha nas mãos. Ainda zumbia com persistente energia… Era por efeito da serra mecânica? Senhor, isso esperava… Talvez estivessem brincando com fogo ao tentar utilizar aquele muito velho elemento da antiga magia para salvar a vida de Robbie.
Com cuidado, Libby colocou o bastão ao lado da janela e voltou a pôr a mão sobre a coxa de Michael enquanto observava os cegadores flocos de neve que passavam correndo por diante do capô; seu reflexo nos faróis dianteiros era quase um grito de urgência.
Estavam demorando muito.
Talvez chegassem muito tarde.
De repente Michael deu uma freada. Um branco borrão de plumas atravessou o feixe de luz dos faróis dianteiros, lançou-se em picado, passou em voo rasante e depois voltou a elevar-se até meter-se no bosque. A caminhonete se deteve entre derrapagens, e Michael desligou o motor e baixou o vidro. Ele e Libby ficaram em completo silêncio e escutaram.
Nesse momento, chegou-lhes um assobio claro, longínquo e inesquecível do bosque.
Michael olhou a estrada e depois voltou a olhar a Libby.
—Ainda estamos a quatro quilômetros e meio do acidente — Disse ao tempo que olhava de novo para o bosque.
—A que velocidade caminhará ele levando a uma menina pequena nos braços? —Perguntou Libby.
—Em uma hora pode ter percorrido um quilômetro e meio, ou possivelmente pouco mais de dois — Respondeu a ele — Tudo depende de suas feridas. Possivelmente já esteja na colina.
—Há uma estrada que suba até ali?
—Sim, há um montão de caminhos madeireiros. Mas entre a anterior tormenta e esta há mais de sessenta centímetros de neve. Os MacKeage são os que têm mais probabilidades de encontrá-lo com as pisaneves.
Libby lhe tocou o braço.
—Mas nós temos a Mary — Recordou.
Michael pôs em marcha a caminhonete e depois foi avançando devagar, sem deixar de olhar pelo vidro aberto. Os dois viram o estreito atalho ao mesmo tempo. Então ele pôs a caminhonete em ponto morto, trocou a tração às quatro rodas a uma velocidade baixa e, depois de dar uma aceleração no motor, inclinaram-se para atravessar a beirada e subir até o caminho.
Libby teve que segurar-se bem para aguentar os violentos vaivens do acidentado terreno; agarrou-se ao painel e sustentou o bastão de cerejeira entre os joelhos para que não fosse dando botes pelo interior da caminhonete.
Pouco a pouco se afundaram e se inclinaram dando tombos, abrindo caminho pela profunda neve e subindo a colina por cima das rochas e rodeando as árvores caídas. De repente se detiveram com uma sacudida, enquanto os quatro pneus chiavam e estremeciam procurando agarre.
Michael desligou o motor.
—Já está. Agora seguimos caminhando — Disse.
Abriu a porta, saiu e colocou a mão sob o assento para tirar uma lanterna. Depois a acendeu e iluminou o interior da caminhonete.
—Me dê o bastão — Disse.
Então ajudou Libby a descer e a sustentou enquanto ela recuperava o equilíbrio.
—Escuta! — Sussurrou olhando para as copas das muito altas árvores.
Outra vez voltavam a ouvir aquele fraco e inconfundível grito de urgente desespero lá longe, à esquerda, no alto da colina.
Michael levantou a parte de atrás do jaquetão, meteu-se o pesado bastão sob o cinturão e o tampou. Depois tomou a mão de Libby e se internou no bosque.
—Por aqui — Disse.
Em silêncio, Libby foi atrás de Michael enquanto ele a guiava quando tinham que rodear grandes rochas arredondadas ou passar sobre árvores caídas, tentando com todas suas forças não atrasar a marcha que ele tinha imposto. Parecia-lhe estar em um desses desesperadores pesadelos em que alguém corre tudo quão rápido pode e, entretanto, não consegue mover-se.
Levavam caminhando o que lhe parecia uma eternidade; estava empapada de suor e começava a tiritar. Respirava com fadiga e lhe doíam os músculos. Só a urgência das longínquas chamadas de Mary lhe dava forças para seguir pondo um pé diante do outro.
De repente Michael se deteve e assinalou o topo da colina.
—Ali, vê-o? — Perguntou em um sussurro sem fôlego — Vê esse resplendor azul?
—São as luzes da pista de esqui? — Perguntou Libby, tentando vê-lo melhor.
—Não — Ele assinalou à esquerda — O TarStone está ao norte. O reflexo das luzes da torre se distingue apenas nas nuvens. Este resplendor é azul.
Voltou a assinalar a ladeira sul da colina.
—Vê-o?
Mas não esperou sua resposta, mas sim começou a levá-la na direção que tinha a luz. E, enquanto a levantava por cima de uma árvore caída, disse:
—É Mary. É sua luz.
Nesse momento o cansaço de Libby desapareceu. Começou a correr para seguir o ritmo de Michael, cujas largas pernas devoravam a distância com tremenda velocidade. À medida que se aproximavam, o resplendor azul foi fazendo-se mais intenso; refletia-se na neve em feitas ondas tão reluzentes que convertiam a noite em dia.
Michael se deteve, e Libby se deteve atrás. Mary estava pousada em um pequeno montículo de neve pelo que aparecia um gorro de ponto vermelho, justo onde a coruja tinha arranhado.
Libby correu a ajoelhar-se e ficou a tirar a neve com as mãos.
—Robbie! — Gritou.
Michael se ajoelhou frente a ela; com cuidado deu a volta ao Robbie, que estava inconsciente e o pegou no seu colo. Libby arrancou as luvas e, com suavidade, tirou os cristais de gelo que havia na face do menino. Depois tocou o sangue seco que tinha na têmpora direita, perto do nascimento do cabelo e, depois de examinar o pequeno corte que já não sangrava, rapidamente decidiu que só era um arranhão de pouca importância e que não era a causa do estado em que se encontrava. Então deslizou os dedos devagar por seu pescoço para procurar o pulso.
Mas não tinha pulso.
À força, Libby descruzou os braços de Robbie e desabotoou o jaquetão. Rose Doam caiu em suas mãos. A pequena estava exânime, com as diminutas feições tensas e pálidas. Libby se inclinou, pousou a boca em sua bochecha e sentiu um muito leve indício de respiração.
—Está viva! — Disse — Embora muito fraca.
Michael pôs a boca sobre a de seu filho e grunhiu seu nome.
—Robbie!
Com suavidade, insuflou-lhe várias respirações e depois olhou a Libby com desespero.
—Faz algo! — Exigiu — Desperta-o!
Ela tirou a jaqueta e a pôs no chão, junto a silenciosa coruja. Colocou Rose dentro, agasalhou-a bem e depois alargou as mãos para pegar Robbie. Michael colocou a seu filho nos braços e os pôs no colo de forma que Libby ficou sentada escarranchado sobre seus quadris com o Robbie metido entre os dois.
—Usa sua magia! — Suplicou Michael — Salva a meu filho, Libby!
Ela já estava tentando. Mas em vez de encontrar as já conhecidos cores que deveriam formar redemoinhos pelo corpo do Robbie, só via escuridão. Não sentia nenhuma luz, nem cores, nenhuma só emoção.
—Ele… Ele não está aqui, Michael — Sussurrou elevando o olhar— Ele… Ele se foi.
Engasgou com um soluço e fechou os olhos ao tempo que apoiava a boca no cabelo de Robbie.
Os braços de Michael se esticaram.
—Não está morto! — Levou a mão à face de Robbie — Tenta-o de novo!
Libby reatou a busca da energia vital do menino, mas não encontrou mais que escuridão. Com sua mente vagou pelo corpo vazio de Robbie procurando algo que lhe desse um motivo para seguir. Fez caso omisso do frio daquele vazio e em seu lugar se concentrou em cada órgão vital para procurar a mínima faísca de vida.
E no mais fundo do coração de Robbie, Libby encontrou uma esperança. Então notou que os braços de Michael se apertavam em torno dela, e soube que ele estava ali, a seu lado, sentindo e vendo o que ela sentia e via: o eco remoto de um jovem e resolvido desespero.
E se deu conta de que aquele pulso não era mais que uma conexão com o Robbie, uma corda de salvamento que empregar para retornar a ele. Então se separou do menino, abriu os olhos e elevou a vista para o Michael.
—Volta a entrar! — Exigiu ele abraçando-a muito forte — Está vivo!
—Não está aí, Michael — Disse ela — Está em Rose.
Os dois olharam ao mesmo lugar; com o bico, Mary afastava suavemente as dobras da jaqueta que estava sobre a neve.
Libby se soltou do abraço de Michael e lhe disse:
—Ele está protegendo-a; está usando suas últimas forças para mantê-la viva —Pegou à pequena e a acomodou entre seu corpo e o de Robbie — Se quisermos salvá-lo temos que salvar Rose. Não a deixará até estar seguro de que está a salvo.
Michael alargou a mão atrás dele e tirou do cinturão o bastão do ancião sacerdote. Com mãos assombrosamente firmes e gesto suave, colocou a grossa vara de cerejeira entre Rose e Robbie; depois rodeou os ombros de Libby em um forte abraço que a abrangia a ela e os meninos, olhou-a, inspirou fundo e assentiu com a cabeça.
E nesse momento Libby abraçou forte os dois jovens corpos, fechou os olhos e de novo partiu em busca das cores.
Imediatamente um resplandecente batimento de luz branca cruzou sua mente e fez que lançasse um grito de surpresa. Os braços de Michael se esticaram para suportar a investida, e pouco a pouco Libby sentiu dois corações que pulsavam fracamente.
Procurou o pulso mais frouxo e orientou a luz branca para Rose; com doçura começou a infundir calor em seu diminuto corpo. A pequena não demorou para dar um estertor e soltar um grito, e em seguida seu diminuto coração começou a acelerar-se com o rápido batimento de um filhotinho de tigre.
Libby chorou de alívio enquanto pousava os lábios na bochecha do menino.
—Volta! — Sussurrou — Rose já está a salvo, Robbie. Vai viver.
Um turbulento e palpitante arco íris atravessou de repente a luz branca e puxou de Libby ao passar a toda velocidade. Uma miríade de brincalhonas cores bailavam em frenéticos círculos e tocou cada fibra sensível antes de sair a toda pressa para o Michael.
—Retorna a casa! — Exigiu este com voz emocionada — Vamos, filho!
As cores se detiveram, ficaram flutuando e de repente os envolveram a todos em um apertado abraço de júbilo.
—Pelos pregos de Cristo! — Gritou Michael; suas palavras ressonaram através do resplendor — Retorna a casa!
Pouco a pouco, Libby foi aproximando-se ao fraco pulso de Robbie e, com suavidade, acariciou-lhe o coração. O órgão estremeceu, deu dois enérgicos batimentos e depois começou a pulsar com a força de um leão.
A luz cegadora foi obscurecendo-se devagar até transformar-se em um suave resplendor azul, e quando Libby abriu os olhos viu um borrão de plumas brancas que se perdia flutuando na noite. Olhou sua jaqueta no chão, mas Mary não estava ali.
—Tenho muitíssima fome, papai.
Libby voltou a vista para Robbie, que estava olhando o Michael.
—E Rose também — Acrescentou o menino.
De repente dedicou um amplo sorriso a Libby.
—É mais de meia-noite — Disse — Feliz Natal!
Ela o estreitou contra seu peito enquanto soluçava de alívio.
—Feliz Natal! — Exclamou.
Michael os rodeou com mãos tremulas ao tempo que sussurrava sua felicitação de Natal. Nesse instante Rose soltou um grito de protesto e se meneou para soltar-se. Libby se tornou para trás, limpou as lágrimas da face e levantou com a menina nos braços.
A pequena lhe lançou um meio sorriso e depois alargou seus curtos bracinhos para o Robbie. Este foi pegá-la, mas pelo visto Michael ainda não tinha acabado de abraçá-lo. Assim que o menino centrou sua atenção em seu pai e lhe devolveu o abraço.
Libby o ouviu dizer:
—Sabia que viria me buscar, papai. E aguentei até que chegou.
Com os olhos fechados para conter a tormenta emocional que sentia em seu interior, Michael o abraçou forte.
—Sim — Disse em voz baixa — Fez muito bem, filho.
Libby recolheu sua jaqueta e quando estava cobrindo com ela a Rose, que agora chupava o polegar, voltou-se para o barulho de um motor que se aproximava. Uns faróis apareceram sobre o topo da colina, e um veículo de correntes duplas abriu passo pelo bosque e se deteve junto a eles.
As portas se abriram, e saíram Greylen e Ian. Este ajudou a descer o Daar por cima da larga corrente e lhe deu o braço enquanto se aproximavam de Libby e de Michael.
Greylen tocou Robbie para assegurar-se por si mesmo de que o menino estava bem. Então deu uma palmada nas costas de Michael.
—Encontrou-o — Disse — Parece estar forte como um carvalho.
Michael assentiu, embora sem deixar a seu filho no chão ainda.
—Sim.
—E Rose? — Perguntou Greylen, voltando-se para Libby.
Esta abriu a jaqueta para mostrar à pequena.
—Ela também está forte como um carvalho… — Disse — E faminta.
Nesse momento Robbie tentou aparecer por cima do forte abraço de seu pai.
—Guardou-me bolo de queijo? — Perguntou — Me… Parece que nos perdemos a festa.
—Não — Disse Libby — A atrasamos até amanhã… Quer dizer, até hoje… Ao meio-dia.
O menino abriu muito os olhos e se voltou para olhar a seu pai.
—Ao meio-dia? — Repetiu.
Inclinou-se para frente e sussurrou algo a Michael, que assentiu com a cabeça; então Robbie voltou a olhar a Libby, com um presunçoso sorriso que lhe iluminava a cara.
—Eu disse que o Natal está cheio de surpresas…
Não lhe teria respondido nada embora tivesse podido. Nesse momento interveio Ian. Enquanto subia o pescoço do jaquetão e se metia as mãos nos bolsos, disse:
—Bem, vocês se movam ou vamos perder o Papai Noel se não empreendermos o caminho de volta! E ainda temos que procurar Dwayne para lhe dizer que sua filha está bem.
Michael pôs-se a andar para a máquina pisa neves e pôs o Robbie no assento traseiro. Depois se voltou para Libby, que estava atrás, pegou a Rose dos braços e passou a menina a seu filho. Mas antes de olhar de novo a Libby, deteve-se o suficiente para passar uma mão pela cabeça de seu filho, tomá-lo pelo queixo e lhe levantar a face para que o olhasse.
—Ian te levará para casa — Disse — E Libby ficará com você até que eu chegue. Dê ao John um grande abraço quando o vir; esteve preocupadíssimo com você.
Depois se inclinou mais, e Libby se adiantou um pouco para ouvir o que dizia.
—O fez bem, filho — Disse em tom brusco, enquanto acariciava com um dedo a redonda bochecha da pequena — Esta noite foi o anjo da guarda de Rose.
Robbie o olhou piscando.
—Era meu dever, papai.
Michael lhe deu um tapinha no ombro.
—Sim — Concordou.
Quando se voltou para Libby, ela se lançou a seus braços.
—Volta conosco — Suplicou enquanto o abraçava forte — Não quero que nos separemos agora mesmo.
—Não há lugar, moça — Sussurrou ele com a boca pega a seu cabelo — Ian os levará para casa, e Greylen e eu iremos em minha caminhonete a procurar o Dwayne. Estaremos em casa em seguida.
Ela elevou a face para olhá-lo, e ele a beijou e dedicou um tranquilizador sorriso.
—Dê de comer a meu filho e a Rose; depois lhes dê um banho quente… E vê se convence o Robbie para que durma um pouco.
Dito isto, levantou-a e a pôs no assento traseiro junto ao Robbie. Inclinou-se, deu-lhe um rápido beijo e depois se voltou para os homens.
—Onde está Daar? — Perguntou.
Ian e Greylen se voltaram a olhar a luz dos faróis, e Libby também estirou o pescoço para buscá-lo.
Mas ao pai Daar não o via por nenhuma parte.
Então Libby deu um grito afogado e tocou ao Michael no braço.
—O bastão! — Exclamou em voz baixa — Onde está?
Como uma bala, Michael voltou a cabeça e cravou a vista no lugar onde tinham estado os meninos. Depois de lançar uma rápida olhada a Libby, aproximou-se e começou a arranhar o chão coberto de neve com o pé, procurando o bastão.
Por sua parte, Ian foi olhar ao outro lado da pisa neves.
—Nossa, aonde diabos terá ido? — Disse Ian entre dentes.
Libby desceu e começou a ajudar Michael. Então Greylen se aproximou e os olhou com ar de curiosidade zombadora.
—O que perdeu? — Perguntou.
Michael se deteve e o olhou de frente.
—O bastão do Daar.
Greylen elevou uma sobrancelha
—Sua bengala?
—Não. Seu velho bastão. Que você atirou à lacuna faz nove anos.
Libby deu um passo atrás ao ver que o ar interrogante da cara de Greylen de repente se transformava em um gesto de perigoso aborrecimento. Depois, depois de endireitar-se em toda sua estatura, Grei deu um passo para o Michael.
—Insinua que o bastão desse drùidh ainda existe?
—Sim — Afirmou Michael — Pelo visto se liberou saltando pela catarata justo antes de que Morgan voasse a montanha Fraser.
Greylen assinalou o chão onde Michael e Libby tinham procurado.
—E como terminou aqui? — Perguntou.
—A coruja mascote de Robbie o levou a Libby. Mas eu o agarrei e o escondi.
—E…? — Insistiu Greylen em voz gutural.
—E esta noite o necessitamos para salvar a vida de meu filho.
Grei olhou ao Michael e depois a Libby… E depois voltou a olhar ao Michael.
—E agora Daar e o bastão desapareceram — Disse.
Suas palavras não eram uma pergunta, e sim uma afirmação.
Michael assentiu, e com as caras pálidas e os punhos apertados aos flancos, os dois se voltaram a olhar para o TarStone, em direção à cabana do Daar. Libby olhou também, assim como Ian, que se tinha reunido com ela para escutar a conversa.
De repente soou uma detonação na metade da montanha, e por cima do TarStone o céu se acendeu como quando se queimavam os foguetes na festa de 4 de julho.
Michael alargou a mão e estreitou Libby em um abraço protetor enquanto todos contemplavam os relâmpagos de vivas cores que chispavam sobre a cúpula. E nesse momento se produziu outra potente explosão que fez vibrar o chão sob seus pés, ao tempo que fazia tremer as árvores com força suficiente para sacudir a neve dos ramos.
Ian começou a soltar palavrões baixo. Michael abraçou mais forte a Libby.
E Greylen MacKeage pôs-se a rir.
—Ali — Disse quando todos o olharam, surpreendidos.
Assinalou a metade da ladeira; uma coluna de fumaça subia para o céu, que ainda chispava.
—Com certeza que é a cabana de Daar que acaba de sair voando. Esse louco e velho idiota levava tanto tempo sem dispor de sua magia que mandou ao inferno a cabana de um estouro.
—E a si mesmo, espero — Interveio Ian.
Libby deu um grito afogado. Mas antes que pudesse expressar sua inquietação com palavras, Michael a sossegou com um novo empurrão. Depois lhe deu a volta e a conduziu outra vez a pisa neves. Robbie estava de pé nas correntes, com o Rose obstinada a seu peito, olhando boquiaberto o TarStone.
Michael lhe disse que voltasse a entrar no veículo, ajudou Libby a subir ao assento do passageiro e lhe deu um beijo na boca.
—Até dentro de uns minutos — Disse enquanto fechava com suavidade a porta.
Em silêncio, Ian subiu na pisa neves, pôs em marcha o motor, deu a volta em redondo e empreendeu com eles o caminho de volta.
Sentado sobre um toco meio podre, Daar acariciou o que ficava de seu antigo bastão e olhou fixamente os restos de sua cabana em chamas. Pelos pregos de Cristo, havia-a feito boa desta vez! Não só tinha destruído sua casa, mas também seu velho livro de feitiços.
Demoraria quase um século em conseguir outro. Teria que elevar uma petição aos que mandam, ir a sua presença para lhes explicar o ocorrido e depois suplicar seu perdão. E depois teria que subornar, negociar e voltar a suplicar aos outros magos para que o deixassem tirar cópias de seus livros.
Baixou o olhar por volta do agora encolhido bastão que tinha na mão. Sem seu livro de feitiços não servia para nada.
Daar elevou a cabeça quando lhe chegou um débil som que subia da colina de baixo. E imediatamente soltou um palavrão ao dar-se conta do que ouvia: era Greylen MacKeage, desatando em risada.
Bom, maldição…! Vamos ver quem ria por último… Porque ia encarregar se de que a jovem Winter MacKeage mantivesse a seus pais bem desesperados durante toda sua infância.
Eram quase as três da madrugada quando a casa de Michael se acalmou por fim. Rose, sã e feliz, estava com seu pai, e os dois iam caminho do Dover-Foxcroft para estar com a Leysa. Libby tinha chamado o hospital para perguntar como estava, e lhe tranquilizou saber que se recuperaria por completo e que o mais provável é que estivesse de volta com sua família para Ano Novo.
Kate tinha ficado esperando com John, e Ian a tinha levado a casa na pisa neves. Quanto ao Robbie, encheu bem a pança e por fim ficou adormecido fazia uns vinte minutos.
E agora Libby e Michael estavam sentados no chão da biblioteca diante um bom fogo. O se apoiava em sua gasta poltrona de couro, e ela estava sentada entre suas coxas, com o olhar perdido na lareira revestido de painéis de carvalho.
De repente caiu na conta do que era exatamente o que estava olhando, e ao fim compreendeu qual era o presente de Natal que Robbie tinha estado preparando, com sua ajuda, para seu pai.
Levantou-se com esforço e foi para a lareira.
—Tàirneanaiche — Sussurrou.
Elevou a mão e passou o dedo pela folha de uma das três espadas que estavam penduradas sobre o suporte.
—Vá com calma, Libby — Disse Michael — Está afiada.
Ela se voltou para olhá-lo.
—Esta é sua espada de antes.
—Sim — Disse ele.
Ficou de pé e foi junto a ela. Então baixou a espada que tinha estado tocando e a empunhou na mão direita, com a ponta assinalando o teto.
Libby soube que estava boquiaberta, mas não pôde evitá-lo. Naquele momento estava vendo o Michael, o guerreiro de fazia oito séculos, segurando sua espada, relaxado e seguro de si mesmo, e preparado para enfrentar a qualquer provocação.
E voltou a apaixonar-se outra vez.
—Olha-me como se estivesse vendo um fantasma — Disse Michael ao tempo que se apressava a voltar a colocar a espada em seu lugar.
—Não. Estou vendo o homem com quem vou me casar hoje.
Rodeou-lhe a cintura com os braços e o abraçou muito forte.
—Amo-te, Michael MacBain. — Elevou a vista e sorriu — Tanto que quando estávamos procurando o Robbie e tínhamos o bastão do Daar decidi que, embora um raio mandasse a todos de volta no tempo, seria feliz enquanto todos estivéssemos juntos.
Ele a estreitou mais forte e se inclinou para beijar seu sorriso.
—Sim. Eu também tive a mesma ideia — Sussurrou — Então a vida era dura, moça, mas tinha suas coisas boas.
—Sente falta dela?
—Não — Disse ele meneando a cabeça — Já não.
Tomou nos braços e voltou a levá-la até a poltrona; depois de deixá-la no chão, acomodou-se atrás. Libby se aconchegou em seu abraço e voltou a cravar o olhar no fogo. Pelo visto não havia nada mais que dizer, e lhe agradava estar ali, sentada sem mais, em silêncio.
Mas justo quando estava a ponto de fechar os olhos e dar uma cochilada… Um pacote apareceu diante de seu nariz.
Era um pacotinho envolto em alegre papel natalino e atado com um complicado laço. Alargou a mão e agarrou o presente enquanto jogava atrás a cabeça para olhar o Michael, que lhe sorria e a olhava com os olhos brilhantes de ilusão.
—O que será? — Perguntou ela agitando o pacote.
Ele deu um beijo no nariz.
—Temo que não é uma cômoda a jogo com sua cama — Disse, e esboçou um meio sorriso — Te farei uma nova.
O sorriso de Libby desapareceu de repente.
—Escondeu o bastão de Daar em minha cômoda — Repreendeu — Isso é ter mais descaramento que cérebro.
Mas ele não estava nada arrependido.
—Ah, sim? Me pareceu um traço de genialidade — Replicou encolhendo os ombros — Não me atrevia a destruí-lo e que melhor lugar para escondê-lo? Eu sabia que você cuidaria essa cômoda acontecesse o que acontecesse, e que com o tempo a herdaria Robbie. Que melhor ferramenta lhe dar quando for cumprir seu destino?
—Agora o tem Daar.
—Sim. Mas provavelmente Greylen tem razão. Não acredito que devamos temer ao velho drùidh. Ao menos durante bastante tempo. E, se chegar esse momento, lutaremos com ele.
Libby sacudiu seu presente.
—O que há dentro? — Perguntou.
—Por que não o abre e descobri?
Ela não necessitou que o dissessem duas vezes. Com cuidado, tirou o laço e ao romper o pacote encontrou uma caixinha de veludo. Abriu a tampa e soltou um grito afogado.
—É turmalina — Disse Michael — Extraída aqui mesmo, no Maine.
Tirou o anel da caixa, pegou a mão esquerda e deslizou o anel em seu dedo.
—Pronto — Disse com voz emocionada — É minha.
—Acredito que sim — Murmurou ele.
Elevou a mão para admirar a grande pedra cor verde bosque, esculpida em forma de lágrima, e depois olhou por cima do ombro ao Michael.
—Assim que me parece que você também é meu.
—Sim — Concordou ele em voz baixa enquanto voltava a lhe dar um beijo no nariz.
Libby deu a volta até ficar de joelhos de frente a ele, rodeou-lhe o pescoço com os braços e cravou o olhar diretamente em seus olhos.
—Amo-te, Michael — Sussurrou.
—Sim — Repetiu ele, desta vez com a voz empanada pela emoção — Eu também te amo, doutora Elizabeth Hart. Quer se casar comigo, moça?
—Sim.
Michael lhe alisou o cabelo com a mão e com os dedos lhe acariciou a bochecha.
—Pois te concedo um compromisso de nove horas, assim talvez queira tirar proveito…
—O tempo só importa aos relojoeiros — Sussurrou ela; estirou-se e aproximou a boca à sua — E o único tempo que importa é o que fica do resto de nossas vidas.
Abriu a boca para beijá-lo, depois se tornou atrás e sorriu olhando seus olhos de um cinza fundido.
—Sempre quis fazer amor diante de uma lareira ruidosa e suja. Vai acontecer por fim?
—Sim — Sussurrou ele.
Sem deixar de abraçá-la, deu a volta até que Libby esteve estendida no tapete diante da lareira, com ele ao seu lado. Então lhe afastou o cabelo da face e a beijou na bochecha, justo debaixo da orelha.
—Vai acontecer agora mesmo, moça.
Libby sentiu um calafrio por todo o corpo. Colou-se a ele, lhe pondo uma perna sobre os quadris e capturando a boca com um beijo cheio de promessas de paixão. E depois, com escrupulosa atenção ao detalhe, despiram o um ao outro, desfrutando de cada novo pedaço de pele que ficava ao descoberto e de cada gota de prazer que compartilhavam.
Foi justo quando Michael estava penetrando-a devagar e ela se agarrava a seu ombro, quando Libby viu o anel em sua mão esquerda. A luz do fogo batia na jóia, e teria jurado que via uma árvore de Natal lhe dando uma piscada do centro da gema.
Suspirou satisfeita.
Estava apaixonada por um antigo guerreiro das Terras Altas escocesas. Não havia vida mais autentica… Nem mais mágico que aquela.
[1] O mesmo que Druida: pessoa encarregada das tarefas de aconselhamento, ensino, etc.
[2] A coruja nevada é uma grande coruja diurna branca que tem uma cabeça arredondada e olhos amarelos, Os pés são muito fortes, são consideradas aves de rapina (caçadoras)
[3] Tipo de árvore ou arbusto.
[4] São árvores do gênero das coníferas, vao de 20 a 70 metros de comprimento.
[5] É um gênero de planta muito venenosa.
[6] Tipo de ave aquática mergulhadora.
Janet Chapman
O melhor da literatura para todos os gostos e idades