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O CASO BALDWIN / Othmar Franz Lang
O CASO BALDWIN / Othmar Franz Lang

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CASO BALDWIN

 

Um jovem estudante de liceu de 17 anos, Hubert Baldwin, é acusado de ter morto a tia para a roubar. Na altura dos interrogatórios da polícia, o rapaz contradiz-se e compromete-se com mentiras. As suspeitas acumulam-se e é quase certo que vai ser condenado por assassinato. É então que o advogado dele, Robert York - um estreante que toma a peito o caso de Baldwin e que acredita na inocência do seu cliente -, recomeça minuciosamente a investigação. De facto em facto, York conseguirá fazer triunfar a verdade. O Caso Baldwin é um romance acerca dos meios judiciais e da nobre profissão de advogado. O leitor encontrará nele a suspense própria do romance policial.

 

A PRIMEIRA CAUSA IMPORTANTE DO ADVOGADO YORK.

Iniciado há pouco no foro, o advogado York, sentado à secretária, apertava os dedos, já de si demasiado grossos e excessivamente curtos. Na sua frente estendia-se a alvura virgem dum bloco de papel, a caneta cheia repousava num suporte metálico, e o telefone, colocado na sua frente, parecia até ignorar que estava ali para tocar.

Da sala vizinha chegava o martelar duma máquina de escrever. A menina Mayer entretinha-se com o seu correio particular, à falta de qualquer outra coisa para fazer. York acabara de entrar na profissão e, de momento, teria de enfrentar numerosas dificuldades.

Inconvenientes da profissão escolhida. Quando não se tem ainda um nome feito não nos confiam causas importantes, e, sem estas, não se faz um nome. Situação muito semelhante à da conhecida história da serpente que morde a própria cauda e cujo problema é sempre idêntico quer a olhemos da cabeça para a cauda ou da cauda para a cabeça.

No entanto, York contava já alguns pequenos sucessos no seu activo. Tinha tirado de apuros um certo número de delinquentes, na maioria jovens, ou conseguira, pelo menos, obter para eles circunstâncias atenuantes, demonstrando que os seus delitos não passavam de meras truculências da juventude. Tinha também proferido conferências em liceus e escrevera alguns artigos nos quais reclamava, para os jovens e com insistência, um melhor ensino dos grandes princípios de direito, pois achava deplorável a sua ignorância no que se refere ao código civil e ao código penal.

Com tudo isto York conseguira ganhar até ali o dinheiro suficiente para pagar os ordenados à menina Mayer, quase pontualmente e durante dois meses, isto é, desde que tinha aberto o escritório. E entretanto vivia dificilmente duma pequena parte da pensão da sua mãe. O seu capital era assim principalmente constituído pela caderneta da caixa económica. Tinha pago a instalação do escritório com as suas economias. De facto, como pequeno colaborador dum grande advogado ganharia mais dinheiro do que na actual situação. Por outro lado, não fazia a mínima ideia do modo como iria poder liquidar as letras que tinha aceite.

Estava ali sentado há um bom bocado quando se apercebeu de que, na sala ao lado, a máquina de escrever se calara. Preparava-se para se levantar, a fim de verificar se a menina Mayer não teria realmente mais nenhuma carta particular para escrever, quando esta abriu a porta e a fechou atrás de si, lívida como a cal, e aproximou-se da secretária.

- Menina Mayer - inquiriu York com inquietação -, aconteceu-lhe alguma coisa?

- Está um homem ali ao lado - murmurou a menina Mayer, aclarando a voz. - Enfim... quero dizer, um senhor. Em conclusão: um cliente!

- Mande-o entrar - disse York, agarrando na caneta. - Ou melhor! Peça a esse senhor o favor de esperar dois minutos.

- Dois minutos?

- Sim. Dois minutos. Eu próprio também vou ser forçado a refazer-me da surpresa - justificou-se York, enquanto a menina Mayer abria a porta e tornava a fechá-la atrás de si.

Rolou a caneta entre os dedos durante dois minutos e premiu o botão branco da campainha situada sob o tampo da secretária. Pousou a caneta no preciso instante em que o cliente entrava.

York levantou-se e estendeu a mão ao homem, que era mais ou menos da sua estatura.

- Queira sentar-se, por favor - disse, apontando-lhe uma cadeira. - A quem tenho a honra...?

- Baldwin - disse o homem. - Stéphane Baldwin. - E acrescentou: - Venho consultá-lo sobre um caso extremamente delicado.

- Sou todo ouvidos - disse York, enquanto anotava o nome do seu cliente. - Estou a escutá-lo, Sr. Baldwin.

- Eis a questão - começou Baldwin. - O caso é muito complicado. Já temos defensor para o nosso filho. Ou, antes... quer dizer... já não estamos muito seguros disso, porque nós, ou, mais exactamente, eu, tive uma violenta discussão com ele...

- De que colega se trata? - perguntou York calmamente.

- Peço-lhe a mais completa discrição - respondeu Baldwin, um tanto assustado.

Depois, recostou-se na cadeira e passou a mão sobre o rosto murmurando:

- Não imagina, Sr. Doutor, por quantas provações temos passado nestes últimos meses!

- Com qual dos meus colegas teve o senhor uma discussão? - continuou York prudentemente.

- Com... com o Dr. Stark.

Ao ouvir este nome, York franziu as sobrancelhas.

- O Doutor Stark é um advogado cheio de talento - observou.

- Sim, e um homem muito ocupado. Acho que não se interessa o bastante pelo meu filho. Desde o princípio que admitiu a sua culpabilidade e queria fundamentar a defesa num acesso passageiro de demência motivada por más influências externas, leituras imorais, divergências familiares, que sei eu!

- Ele devia ter razões para isso?

- Certamente! - suspirou Baldwin -, certamente. Razões tinha!

- Quais?

- Meu filho confessou; ele confessou o seu crime...

- Confessou à polícia?

- Sim. Mais tarde negou, e, na presença do juiz instrutor, depois duma conversa com o Dr. Stark, confessou outra vez, para finalmente voltar a negar.

- E qual é a sua opinião pessoal?

Baldwin levantou as duas mãos ao céu e deixou-as cair pesadamente sobre as pernas.

- Oxalá eu soubesse, doutor! - exclamou. - Por vezes estou certo, cem por cento certo de que não foi ele, de que não podia ter sido ele. Afinal de contas é meu filho. Depois, já não sei nada e torno a duvidar.

- Porquê?

- Porque ele mentiu desde o princípio. Se tivesse logo dito a verdade, toda a verdade, se o não tivesse intentado apenas quando a polícia interveio... (Baldwin olhava em frente, fixamente.) Nesse momento pôs-se a chorar e creio que queria dizer a verdade, mas um tipo gordo e enorme tapou-lhe o «bico» e arrastaram-no para fora enquanto se debatia.

O advogado York premiu novamente o botão da campainha que havia sob o rebordo da sua mesa de trabalho.

- Por favor, traga um copo de água a este senhor - disse para a menina Mayer quando esta apareceu no limiar da porta.

Baldwin agradeceu, tomou um golo e pousou o copo sobre a secretária.

- Ainda estou a ouvir o seu «Não fui eu!» - continuou.

- No entanto, depois confessou?

- Sim.

- Gostaria que me falasse do seu filho - disse York. Mas, antes que Baldwin recomeçasse, acrescentou: - Naturalmente não poderei assumir a sua defesa senão depois de ter contactado com o Dr. Stark e obtido o seu acordo. Deve compreender que doutro modo não poderia fazê-lo.

- Certamente - respondeu Baldwin. - Se venho procurá-lo, é precisamente para lhe pedir que se ponha em contacto com ele o mais rapidamente possível. O senhor... o senhor é jovem; não há muito que advoga. Há dez ou doze anos tinha talvez a idade que o meu filho tem hoje. Stark, pelo contrário, é um homem idoso e - perdoe-me - a rotina não é tudo!

- Fale-me do seu filho - repetiu York.

- O meu filho, que, aliás, é nosso filho único - continuou Baldwin refazendo-se - tem apenas dezanove anos.

- Que idade tinha ele na ocasião do crime?

- Dezoito anos e quatro meses.

- Então não irá ao Tribunal de Menores.

- Eu sei - disse Baldwin. - Chama-se Hubert e foi acima de tudo uma criança fácil. Embora não tenhamos, nem jamais tivéssemos, tido dificuldades materiais-sou procurador duma sociedade petrolífera internacional -, criámo-lo modestamente, sem nunca o encher de presentes e, pelo contrário, incitando-o à economia. Instruímo-lo na ideia de que não se pode ter tudo e, para mais, ele reconhecia-o e mostrava-se razoável. No seio da nossa pequena família tínhamos-lhe confiado certas obrigações, que ele desempenhava conscienciosamente, quase até com esmero, devo dizê-lo. As suas relações com a mãe eram particularmente harmoniosas, sem que se pudesse dizer, no entanto, que ela o amimasse excessivamente. Além disso, mãe e filho não são apenas parecidos fisicamente.

Baldwin interrompeu-se:

- Não estarei a alongar-me demasiado?

- Não, não - disse York. - Diga-me tudo o que considera como importante.

Baldwin suspirou, aliviado.

- Tenho confiança em si - confessou. - Sim. É verdade. Desde o princípio... O Dr. Stark interrompia-me sempre. Tudo isto lhe parecia de somenos. Bem. Eu continuo. Estávamos muito satisfeitos com o Hubert, e posso citar como testemunhas um grande número de pessoas das nossas relações que poderão confirmar que ele foi sempre um rapaz ajuizado e bem comportado... pouco mais ou menos até aos catorze anos...

Baldwin tomou outro golo de água.

- Depois, há aproximadamente cinco anos, a minha irmã voltou da América, onde tinha feito um casamento muito bom. Quando lhe morreu o marido, regressou, viúva e muito rica.

- Como se chama sua irmã? - perguntou York.

- Mathilde Stringfors, mas Baldwin de solteira - respondeu o cliente. - Será preciso acrescentar que do casamento com Stringfors não teve filhos. Isto explica que logo de princípio se tenha chegado muito a nós. Não somente porque se sentia só, mas também por causa de Hubert, que ela logo se pôs a estragar com mimos. Enchia-o de presentes, dava-lhe mesmo dinheiro e queria também, como acabámos por descobrir, infelizmente tarde de mais, influenciar não apenas a sua educação, mas ainda o seu carácter. Por vezes tínhamos mesmo a impressão de que ela tentava interpor-se entre nós e o nosso filho. O que resultou de tudo isto? Primeiro, Hubert começou a sentir dificuldades nos estudos. Dificuldades que, até então, nunca tinha tido. Ao mesmo tempo, começou a ter exigências pessoais. O que não podia obter em nossa casa, ia procurá-lo a casa da tia. Tornou-se insolente e cínico. Por mais duma vez, quando lhe recusávamos alguma coisa, dizia-nos: «Não gostam de mim! Se isto continua, vou instalar-me em casa da tia Mathilde.» Quase chantagem, como vê... Estava seguro de que, se nós não nos resolvêssemos a gastar dinheiro com ele, a tia pagaria os seus caprichos. Por outro lado, minha irmã intrometia-se cada vez mais nos nossos problemas. Não cessava de nos atirar à cara o argumento de «que só se é jovem uma vez». Tivemos de ouvir, vezes sem conta, que recusávamos tudo ao nosso filho, que não tínhamos coração, que éramos invejosos, e mesmo sovinas. Até ao dia em que, finalmente, durante uma grande discussão na qual minha irmã e eu quase chegámos a vias de facto, lhe roguei que não voltasse a pôr os pés em minha casa, duma vez para sempre.

- Essa discussão teve lugar na presença de Hubert? - perguntou York, que não tinha cessado de tomar notas.

- Sim, desgraçadamente! Até porque minha irmã procurava manifestamente provocar discussões diante dele. Além disso, esforçava-se sempre por não dizer senão o que ele desejava ouvir, e nunca aquilo que lhe poderia ser útil. Era a melhor maneira de o separar de nós. Enfim!, o facto de ter posto a tia na rua nada alterou em relação a Hubert.

«Uma vez que ela não vinha mais a nossa casa, seria ele que iria a casa dela. Minha irmã tinha comprado um grande apartamento, com uma esplêndida vista sobre a cidade, e arranjara, especialmente para Hubert, um quarto com uma varanda, o qual, suponho, era bastante luxuoso. Não seria, portanto, de estranhar que ele passasse algumas vezes a noite em casa dela. Até ao dia em que, já farto, ameacei minha irmã de a arrastar à justiça e proibi Hubert de tornar a pôr os pés em sua casa.

- O casamento de sua irmã - perguntou York prudentemente - foi um casamento de amor?

- Se quer referir-se ao dinheiro que ela obteve através do casamento com Stringfors - respondeu Baldwin amargamente-, então, sim, foi com certeza um casamento de amor. Desde a infância que minha irmã nunca escondeu que estaria disposta a todas as concessões em relação a alguém que tivesse dinheiro. Para ela, o maior defeito era não o possuir.

- E como é que as coisas evoluíram depois?

- Pois bem, fomos forçados a constatar que eles continuavam a ver-se.

- Sua irmã e seu filho?

- Sim.

- No apartamento da sua irmã ou noutro lugar?

- Imediatamente após a minha proibição, noutro lugar. Depois, voltou ao apartamento dela. Toda a desgraça vem daí.

- Como? - perguntou York.

- Foi a razão pela qual vim procurá-lo. Baldwin começou a transpirar e fez uma pausa.

Tomou outro golo de água.

- É necessário que compreenda bem - insistiu - que nós o tínhamos proibido de visitar a tia. Esta proibição, em si, não tinha grande significado, mas foi por ele a não ter respeitado que nós temos passado, nós e ele, estes sete meses pavorosos. E sabe Deus o que nos espera ainda!

Subitamente, os nomes Baldwin e Stringfors pareceram familiares a York. Um arrepio percorreu-o. Aclarou a voz antes de perguntar docemente:

- E qual é a acusação contra o vosso filho?

Baldwin, que não tinha certamente mais de quarenta e cinco anos, mostrou subitamente o rosto cinzento e fatigado dum velho.

- A acusação? - gemeu ele. - Assassínio e roubo na pessoa de sua tia.

 

York premiu o botão da campainha situado por baixo da placa de cobre, gravada, na porta do escritório do advogado Michel Stark.

A porta abriu-se. Entrou e dirigiu-se à recepcionista. Esta estava a passar uma comunicação ao patrão e mediu York de alto a baixo. Este apresentou-se, acrescentando :

- Antes de mais, gostaria de falar ao meu colega Longin. Tenho uma entrevista com ele.

- Quarto gabinete à esquerda, no corredor - disse a rapariga. - Ele não está ocupado com ninguém neste momento. - York bateu à porta e entrou. Longin levantou-se.

- Bom dia - disse, com uma voz cansada. - O que posso fazer por ti? - York voltou a fechar a porta.

- Gostaria de saber o que pensa «Ele» do caso Baldwin.

Longin ficou subitamente com ar preocupado.

- Os Baldwins foram procurar-te?

- Sim - disse York, - o pai, para ser mais exacto.

- Eles tiveram uma zaragata terrível - murmurou Longin, um tanto aborrecido. - Ouviam-se daqui. É um caso horrivelmente mal começado. O jovem Baldwin retratou-se por várias vezes, sem sustentar o que tinha sido combinado como tese de defesa. Daí a discussão. Receio bastante que «Ele» não queira ouvir falar mais nisso. Baldwin classificou-o de rotineiro, de advogado evasivo que foge completamente à análise do lado humano dum processo. Calcula tu!

- Sim - fez York. - Mas gostaria muito, mesmo assim, de ter uma conversa com ele.

- Será que por acaso tens intenção de assumir a defesa? - A cara de Longin estava a tornar-se cada vez mais torcida.

- Se «Ele» não puser objecções...

- E se, encarregando-te disso, te afundas? York sorriu e bateu no peito forte.

- Oh! sabes! Restam-me por enquanto algumas reservas para aguentar o golpe.

Longin estendeu a mão para o telefone e pediu o patrão.

- Tenho aqui um dos meus colegas - disse ele ao aparelho. - Ele vem... - marcou um tempo de hesitação - ele vem pelo caso Baldwin.

Afastou o aparelho do ouvido e fez uma careta significativa. - Ouço-o berrar - disse York. - Diz-lhe que, mesmo assim, gostaria de lhe falar. - Longin encolheu os ombros.

Aproveitando uma acalmia, conseguiu dizer:

- Ele desejaria conversar consigo por um momento...

Em seguida, depois de vários gestos de assentimento, repôs o auscultador no lugar.

- Bom - disse a York -, vai lá. Informo-te que temos um armário de primeiros socorros, bem fornecido de tónicos cardíacos e outros estimulantes, para o caso de...

York dirigiu-lhe um sorriso e atravessou o corredor. A secretária de Stark, uma mulher alta e forte, estava sentada à sua mesa, com ar trémulo. Quando York disse o seu nome, levantou-se dum salto, com agilidade insuspeitada numa mulher com a sua gordura, correu para a porta almofadada, abriu-a, e murmurou:

- Dr. Robert York. - E recuou para o deixar passar. York entrou, dirigiu-se a Stark repetindo o seu nome, e acrescentou logo:

- Meu caro confrade, pretendo esclarecer antes de mais que nada fiz nem pedi para defender esta causa.

- Acredito no que diz - retorquiu Stark -, pois você não tem o ar suficientemente estúpido para isso!

- Vieram ter comigo. Porquê? Não sei.

- O próprio Baldwin não deve sabê-lo - exclamou Stark furioso. - Se o filho muda cinco vezes seguidas a tese da sua defesa, como quer que o pai saiba o que pretende quando vai procurá-lo?

- Cinco vezes? - perguntou York, interessado.

- Exactamente-replicou Stark. - Cinco vezes. Primeiro declarou que nunca tinha ido a casa da tia. Tinham-lho proibido. Porque iria ele então a casa dela?

«Isto até ao momento em que lhe meteram na frente do nariz a luva que tinham encontrado ao lado da vítima! Enquanto a outra luva estava em casa dele! Por outro lado, havia as suas impressões digitais na porta e sobre alguns móveis. Finalmente confessa. Tinha lá ido, mas a tia já estava morta quando ele chegara.

«Eis um rapaz que pretende tornar-se jurista. Mais tarde volta-se para a música. E é suficientemente parvo para fugir com a rapariga que o espera em baixo! Não lhe diz palavra sobre o caso, leva-a ao cinema, e no fim volta para casa. E tudo isto para que os pais não venham a saber que tinha estado em casa da tia.

«Depois, subitamente, confessa.

«Porque tinha fome, disse-me depois, e porque o delegado lhe prometera duas sanduíches de presunto se ele confessasse.

«Você acredita nisso? Que por duas sanduíches de presunto um rapaz aceita correr o risco de ir parar à prisão por assassínio? Enfim! Aperto com ele, explico-lhe como conto tornear o caso de forma a poder sair dele sem grande dano.

Um acesso de loucura, para mais sem premeditação, sem roubo, apenas um homicídio, por ser essa a sua única saída, tanto mais que as provas são esmagadoras. Ele aceita.

«E que faz? No primeiro dia, quando o presidente do tribunal o interroga e lhe pergunta se se considera culpado ou inocente, responde: «Inocente. Não fui eu! A minha tia já estava morta quando...» Antes mesmo que eu possa intervir, para que chegue à razão, vai-se abaixo, o que, aliás, é absolutamente o seu género. O médico atesta que ele não está em estado de ser ouvido. Enfim! Vá lá saber-se se aquilo não terá sido simulado... Mas eu nem quero pronunciar-me sobre isso, uma vez que o defendo; mas gostaria de saber se o médico não teria sido pago para o fazer!

«É evidente que intervim. Pedi o adiamento. E é então que o pai vem procurar-me e faz uma cena dizendo que eu não passava dum homem rotineiro, um advogado evasivo, nada menos que isso, sem o mínimo interesse pelo lado humano da causa, etc.! Enfim! Não lhe fiquei atrás. Estou mesmo contente por me ter desligado desta causa!

- Trouxe a procuração - disse York. - Se está de acordo...

- Vou dar instruções para que lhe entreguem as peças do processo. Mas não venha depois procurar-me para me censurar de o não ter prevenido. Sei como reagem os jurados quando o acusado começa por declarar que não é culpado para depois confessar que o é. São personagens simples, essa gente, simples mas rancorosos, meu caro! Negar, a seus olhos, é agravar a pena. Não têm o perdão fácil!

- Mas o senhor, meu caro colega, o senhor acredita que ele é culpado? - perguntou York.

Stark ergueu as mãos e deixou-as recair.

- Enfim... que ele podia sê-lo? - insistiu York.

- Prefiro que o senhor faça o seu próprio juízo! Meu Deus... Uma vez convidaram-me a passar o Natal numa prisão para jovens delinquentes. Havia lá um que tocava violino de forma verdadeiramente celestial. Ora veja! Esse mesmo tinha morto o pai e a mãe. E os que, ao escutá-lo, soluçavam mais abertamente eram ladrões, salteadores, bandidos e vigaristas!

- Mas - perguntou York - teria ele um móbil? A tia estragava-o com mimos, podia obter dela tudo o que quisesse!

- Talvez que isso não lhe bastasse. Vejamos! Pense bem! Ele subiu enquanto a rapariga o esperava cá em baixo. Deus sabe de quanto precisaria. Ela, naturalmente, afirma: «Apenas algum dinheiro e o carro. O carro só emprestado, evidentemente!»

- Uma rapariga séria?

- Uma rapariga de boa família, como costuma dizer-se, mas, nos nossos dias, o que é que isso significa? Nas prisões para menores, metade dos delinquentes são de boas famílias! O jovem Baldwin é igualmente de boa família. Essa rapariga, além disso, é a única testemunha de defesa. Desgraçadamente ela não tem grande coisa para nos contar.

- Como se chama ela?

- Suzanne Rauschenbach.

- Em sua opinião, ela diz a verdade? Stark sorriu.

- Você é novo! - disse. - Ainda acredita nessas coisas! A verdade! Neste mundo perdido! Você ainda não ouviu tantas mentiras como eu: de acusados, de polícias, de defensores, de procuradores! Mentiras que toda a gente aceitava como verdades! Em parte alguma, mesmo em política, se mente tanto como no tribunal!

- Além do mais, já disse um psicólogo que, se nos reportarmos às mais recentes descobertas, ninguém mente melhor do que um inocente!

Stark sorriu novamente.

- A ser assim, o jovem Baldwin seria verdadeiramente um anjo de inocência. Eu conheci réus que me juraram, pela vida das mulheres e dos filhos, que estavam inocentes, que se condenavam a ficar cegos de repente se tivessem cometido o crime de que eram acusados. E, após a sentença, apertavam a mão ao juiz, agradecendo-lhe efusivamente o facto de os ter condenado com indulgência! Você não vai dizer-me com certeza que esta é a reacção dum inocente! Baldwin também me jurou que não fora ele, e, dois dias depois, na presença do juiz de instrução, disse o contrário. Nesse momento eu disse: «Bem! Tentemos construir a nossa defesa a partir daí.» E foi por isso mesmo que eu fiquei imensamente furioso quando ele se desdisse, mais uma vez, não mantendo a confissão.

«Entregar-lhe a si esta causa é, portanto, a melhor solução. Num processo como este, se não existe uma confiança recíproca, não se chegará a coisa nenhuma. Pelo meu lado, creio que todas as teses são possíveis...

- Eu acabarei por descobrir - disse York. Stark franziu as sobrancelhas, aliás espessas.

- Você - disse ele com uma careta, como se acabasse de descobrir em York uma doença grave -, você! Você é um optimista!

 

UMA AMIGA FIEL DO ACUSADO.

A menina Mayer entreabriu a porta e murmurou:

- Está ali uma tal menina Rauschenbach...

- Suzanne Rauschenbach? - perguntou York, para uma maior certeza.

- Suzanne? - perguntou a menina Mayer, voltando-se para a sala contígua, e logo para York:

- Sim, Suzanne - diz ela.

- Bem - disse York, tirando a tampa da caneta -, que entre!

- É a menina Rauschenbach? - perguntou-lhe York, levantando-se.

Suzanne Rauschenbach introduziu-se rapidamente na sala e estacou de repente. Era loura, miudinha e vestia um saia-e-casaco de cor cinzenta.

- Sim - disse ela, aproximando-se.

York estendeu-lhe a mão, que ela apertou com hesitação.

- Li no jornal - explicou - que o senhor tinha aceitado defender Hubert Baldwin.

- No jornal?

- Sim, no jornal.

Suzanne tirou da mala de mão um recorte de jornal e colocou-o sobre a secretária.

York percorreu ràpidamente com a vista a pequena notícia. Fora certamente Stark quem a comunicara à imprensa.

- Sente-se, por favor - disse.

- Foi esta notícia que a fez vir procurar-me?

- Sim.

- E que posso fazer por si?

- Queria simplesmente dizer-lhe que fui eu quem aconselhou o Sr. Baldwin a procurá-lo, pois assisti a algumas das suas conferências. Além disso, queria também dizer-lhe que Hubert... enfim que... Hubert está inocente. Faltei à aula para isso.

- Se quiser, posso escrever-lhe um cartão para justificar a falta. De qualquer modo, eu teria tido necessidade de lhe falar. A menina é a minha única testemunha. Todas as outras estão ao lado da acusação.

- Eu sei - murmurou Suzanne.

- Ouça - disse York. - Neste momento ninguém nos incomoda. Conte-me lá então, uma vez mais, o que se passou naquele dia. Mas antes disso diga-me quais eram as suas relações com Hubert, há quanto tempo se conheciam, e porquê e como... enfim, creio que me compreende?

- Sim - respondeu a rapariga, aproximando-se um pouco mais. - Bem, nós andávamos no mesmo liceu.

- Mas não andavam no mesmo ano?

- Não. Eu sou mais nova do que Hubert, mas no nosso liceu há um bom coro misto.

- Eu sei - disse York.

- Temos também uma orquestra. O nosso professor de música é completamente «levado», desculpe!, Dá todos os anos uma matinée musical no Conservatório. Não apenas com o coro e a orquestra, mas também com alguns solistas. Foi assim que Hubert e eu estreitámos o nosso conhecimento. Porque eu toco piano e, algumas vezes, quando necessário, acompanhava-o.

- Acompanhava Hubert?

- Sim.

- Porquê? Ele canta?

- Não. Toca violino. O professor disse-me que ele era notavelmente dotado e acreditava mesmo ele ter muitas probabilidades de vir a fazer parte da orquestra da Sociedade Filarmónica.

York pigarreou.

- E foi assim que vocês se conheceram? A rapariga fez um gesto de assentimento.

- Para lhe dizer a verdade - confessou ela -, apaixonei-me por ele...

- E ele? Não?

- Ele também, talvez. Mas seria preciso que eu lho revelasse. Ele, ele era incrivelmente tímido. Usa óculos de aros de tartaruga, muito escuros, e tem sempre um ar muito sério.

- Muito bem - disse York -, e como é que a menina lhe mostrou que gostava dele?

- Pedi-lhe se ele não queria tocar um dia alguma coisa para os meus pais, e se não poderíamos tocar juntos.

- E calculo que ele não tenha ido contra isso - disse York, sorrindo. - Ainda que eu, eu apenas toco violoncelo...

- Violoncelo? - perguntou ela. E logo: - Não, Hubert não discordou.

- E então? Vocês tocaram muitas vezes juntos? Saíram juntos? Conheceu os pais dele?

- Sim.

- E a tia também? Suzanne hesitou.

- Diga-me toda a verdade - insistiu York.

- Sim - respondeu ela -, vi-a uma só vez.

- Onde?

A rapariga hesitou novamente.

- No seu apartamento? - perguntou York.

- Sim.

- Pouco tempo antes do crime, ou muito tempo antes?

- Cerca de quatro semanas antes. Não poderei precisar com exactidão.

- E porque é que não voltou a vê-la depois? Durante esse lapso de tempo Hubert viu-a algumas vezes?

- Sim.

- Hum... Porque é que a menina não voltou a vê-la?

- Não queria vê-la mais - disse hesitante.

- Sabia que os pais de Hubert o tinham proibido de lá ir ou de voltar a encontrar-se com ela?

- Sim.

- Era por essa razão que a menina não queria voltar a vê-la?

- Não... (Suzanne hesitou outra vez.) Eu... não gostava dela.

- Porquê?

- Era recíproco. Senti-o imediatamente. Ela não podia suportar-me.

- Ela disse-o a Hubert?

- Sim. Bem, mais ou menos isso.

- Exactamente o quê?

- Qualquer coisa como: «Ela serve talvez muito bem para te acompanhar ao piano, mas como companheira para toda a vida farias melhor se procurasses uma mulher que tivesse dinheiro.»

- Sabe se essa observação se tratou dum caso isolado ou se, pelo contrário, ela fazia com frequência a Hubert outras do mesmo género?

A rapariga baixou a cabeça.

- Então, Suzanne? - perguntou ele, tão paternalmente quanto lho permitiam os seus trinta e dois anos.

- Parece que ela não se cansava de me desclassificar. Talvez se tivesse apercebido de que, depois que Hubert me conhecera, a sua influência sobre ele estava

a enfraquecer. Ele contou-me tudo. Ela era muito autoritária e não admitia que ninguém lhe fizesse sombra. Por essa altura ele já tinha mais ou menos compreendido que os seus pais não estavam fora da razão. Eu empurrava-o também para essa ideia, porque simpatizava muito com os pais dele, sobretudo com a mãe, que era toda gentilezas para mim. E, além disso...

Suzanne tirou da mala um lenço minúsculo e começou a amassá-lo.

- E além disso o quê?

- A tia tinha-lhe prometido um carro se...

- Se...? - perguntou York, desenhando um ponto de interrogação no bloco por baixo da palavra carro.

- Se ele deixasse de me ver...

- E que respondeu Hubert a essa proposta - perguntou York, como se a pergunta o não interessasse particularmente.

- Ele disse que de qualquer maneira teria o carro.

- Desculpe-me se lhe pareço indiscreto, mas qual era a natureza das suas relações com Hubert?

- Devo ser sincera?

- Peço-lhe instantemente.

- Inteiramente sincera?

- Tanto quanto possível!

- Pois bem! Aqui está: beijei-o duas vezes. - E baixou a cabeça.

- E ele?

- Ele? Nunca. Por vezes ele desejava-o bem. Quando se é rapariga, são coisas que se sentem. Mas ele era demasiado tímido. E, depois, quando foi detido, então...

- Então - disse York, com doçura. - Estou a ouvi-la...

- Pois bem!, escrevi-lhe que me considerava como sua noiva até que... enfim, até ao momento em que se tivesse provado a sua inocência. Compreende porque é que eu fiz aquilo? Queria dar-lhe um pouco de ânimo...

- Compreendo - disse York. - Mas já ultrapassou o dia crítico. O que se passou nesse dia?

- Estávamos em minha casa - continuou Suzanne, com voz mais firme. - Estivemos a tocar. Depois, ele estava muito alegre. Disse-me: «Não sabes? Vamos sair. Mas não só para ir ao cinema. Vamos jantar.» Primeiro eu não queria. Teria preferido ficar em casa. Mas a minha mãe disse-me: «Tocaram ambos tão bem que tu podes bem aceitar, visto que ele te pede.» Então, saí com ele. Na rua, disse-me, de repente: «Sabes uma coisa? Vou pedir emprestado o carro à tia Mathilde.»

- Era a primeira vez? - perguntou York. Suzanne sacudiu a cabeça.

- Não, ele tinha-lho pedido emprestado várias vezes.

- Ele tinha carta de condução?

- Sim. Tinha-a tirado às escondidas.

- Às escondidas de quem? Dos pais? E a tia dele sabia-o?

- Sim, certamente. Fora ela que lhe tinha pago a escola de condução. Naquela noite, queria dissuadi-lo de lhe pedir o carro, mas disse-me que tinha necessidade de algum dinheiro e que, assim, não seria obrigado a levar o violino atrás dele.

- Estava no estojo, penso eu.

- Sim, naturalmente. Quer dizer, aí está: por engano, ele tinha esquecido o violino em nossa casa e só levara a caixa vazia.

- Ele não tinha dado por isso?

- Não, veja lá!... - disse Suzanne com espanto. - Ele não notou absolutamente nada. Foi só ao voltar a casa que eu vi o seu violino sobre o meu piano.

- Ah! - disse York. - Ele já o tinha esquecido em sua casa outras vezes?

- Não, nunca.

- E quantas vezes foi ele tocar a sua casa?

- Oito ou dez vezes, talvez. Certamente não mais.

- Bem - disse York. - Então ele subiu a casa da tia. À hora que figura no processo?

- Sim. Às seis horas da noite.

- E ficou lá em cima cerca dum quarto de hora? A rapariga teve um movimento de ombros, como para

sacudir qualquer coisa e fez um sinal afirmativo.

- E, quando ele voltou, notou qualquer coisa de anormal? Reflicta bem. Se isso a pode ajudar, feche os olhos e faça por se recordar. Houve qualquer coisa que a tivesse impressionado particularmente?

Suzanne fechou os olhos.

- Ele estava pálido - exclamou ela muito depressa. - Não. A primeira coisa que me impressionou, foi que tinha o estojo do violino com ele; eu pensava que ele o deixaria em casa da tia. E, depois, notei que tinha a cara muito branca. A sua voz também estava diferente. Como enrouquecida. «Vem - disse-me ele -, vem, vamo-nos embora depressa!» Perguntei: «Questionaste com ela?» Ele pôs-se a rir: «Questionar!», disse ele simplesmente. Depois, parou e acrescentou: «Se tu soubesses!» E, em seguida, declarou que não iríamos jantar, mas simplesmente ao cinema. E lá fomos.

- Foi ele próprio que lhe propôs ir ao cinema? - perguntou York.

- Não. Fui eu. Eu disse: «Isso não faz mal, vamos ao cinema.»

- Fez-lhe ainda outras perguntas com respeito à tia? A rapariga fez sinal que sim.

- É um pouco assustador para contar, mas, evidentemente, naquele momento eu não sabia que ela já estava morta.

- O que é que perguntou?

- Eu perguntei: «Acabou tudo a valer com ela?» É evidente que eu queria referir-me às suas relações com a tia.

- E ele? Que respondeu ele?

- Ele disse: «Parece-me que sim!» Então eu respondi: «Estou bem contente», mas ele olhou-me e disse-me: «Não te regoziges tão depressa!» É horrível, não é verdade?

York fez um sinal de aprovação.

- E você não levou, por acaso, o estojo do violino?

- Não, porquê?

- Simplesmente por perguntar. Hubert levou-o para o cinema?

- Sim, estou certa disso. Ele tinha-o entre os joelhos.

- E não ficou surpreendida por mais nada?

- Não, nada, até ao momento em que chegámos à porta de entrada. Ele tinha-me acompanhado, e, quando nos despedimos, descobri que já não tinha senão uma luva. Eu disse-lhe: «Perdeste-a no cinema?» Então ele respondeu-me: «Tenho essa esperança!»

- E isso não lhe deu que pensar?

- Não, na realidade, não. Pensei que era uma brincadeira. Ele tinha por vezes um temperamento bastante singular. Quero dizer que ele dizia por vezes coisas completamente inesperadas.

- Por exemplo?

- Pois bem! Uma vez perguntei-lhe:

«Porque é que não falas?» Ele respondeu-me: «Porque há um momento que estou calado.» Qualquer coisa no género...

York olhou-a demoradamente, como se procurasse o que podia perguntar-lhe ainda. Cruzou os dedos, olhando atentamente as suas unhas cortadas rente.

- Diga-me, Suzanne - começou lentamente -, na realidade, como sabe que Hubert está inocente?

Ela ergueu-se vivamente.

- Mas, por acaso, o senhor duvida?

- Não respondeu à minha pergunta? Porque pensa que ele está inocente?

- Porque o sei - disse ela, e tornou-se sucessivamente muito corada e muito pálida. - É muito simples. Ele não o pode ter feito. Não é um ser capaz de fazer semelhante coisa!

- E donde lhe vem essa certeza?

Ela mordeu os lábios, esmagando incansavelmente o seu lencinho. Depois, disse de súbito, com uma voz cansada:

- Mas, enfim, Sr. Doutor! Sou o género de rapariga que ame um assassino?

Ela dominava-se corajosamente, mas ele viu a sua boca tremer e os seus olhos encherem-se de lágrimas. Ele levantou-se e veio junto dela, enquanto ela tentava reprimir um soluço.

- Suzanne - disse ele docemente, pousando-lhe a mão sobre o ombro. - Escute-me bem! Não sou um defensor para quem este caso é um caso de rotina. Isto é a minha primeira grande causa. Acredite-me: farei tudo o que posso. Não se trata só do futuro de Hubert, trata-se também do meu.

- Mas, ao menos, foi vê-lo? Ele abanou a cabeça.

- E porquê? - perguntou ela, quase agressiva.

- Porque queria primeiro fazer uma ideia de conjunto, estudar o processo, ver o Dr. Stark. E vê-la a si. De qualquer maneira, é preciso que eu ganhe a confiança dele, senão nada pode seguir. Antes de me encontrar na sua frente, é preciso reunir o maior número de informações.

- E agora - perguntou Suzanne - já tem bastantes? York indireitou-se.

- Não sei. Talvez quando lhe tiver falado...

- As coisas vão muito mal para ele? - perguntou ela, com uma voz trémula.

- Meu Deus! - suspirou York. - Mal! Simplesmente...

- Simplesmente o quê?

- Simplesmente, teria preferido muito mais que ele não tivesse esquecido o violino sobre o seu piano!

 

AS RETRACTAÇÕES DE HUBERT BALDWIN.

Não foi que York fosse subitamente tomado de pânico quando parou em frente do grande portal do Palácio da Justiça. Mas sentiu de repente a necessidade de se ir embora sem ter visto Hubert Baldwin, seu cliente. «É preciso absolutamente que eu veja antes de mais nada a mãe dele», disse para consigo York. Procurou a morada na sua pasta, tomou um táxi e fez-se conduzir a casa dos Baldwins. Estes habitavam um bairro residencial na parte sudoeste da cidade. Alguns anos antes, eles tinham-se instalado numa bonita casa, atrás da qual se escondia um minúsculo jardim.

York pagou o táxi e atravessou um caminho calcetado ladeado por roseiras polyantha. Ao seu toque de campainha, a porta abriu-se imediatamente. Achou-se em frente duma mulher pálida, de traços abatidos, que devia ter sido muito bonita.

York apresentou-se.

- Pode entrar - disse-lhe Mme Baldwin-, venha por aqui - e conduziu-o para uma sala de estar, arranjada com gosto.

- Estou trabalhando sobre este processo - explicou York, depois de se ter sentado. - Reli os depoimentos, conversei com o seu marido, com o Dr. Stark, com Suzanne, e li os jornais. Agora, antes de ir ver Hubert, gostaria que me dissesse como se comportou ele quando voltou para casa naquele dia. Esqueça o que disse à polícia e ao juiz instrutor. Fale-me muito naturalmente...

- Sim - disse Mme Baldwin -, compreendo. Está bem! Naquela noite, meu marido não estava em casa. Tinha saído com representantes da firma americana. Estava, portanto, sozinha. Hubert não tinha as suas chaves e tocou.

- Qual foi a sua primeira impressão quando abriu a porta?

- Sabe - declarou Mme Baldwin -, eu sou uma dona de casa! Não posso encontrar ninguém aqui para me ajudar, é por isso que olho sempre em primeiro lugar para o calçado dos meus dois homens. O de Hubert pareceu-me particularmente empoeirado, naquela noite.

- Não disse isso à polícia?

- Não. Deveria dizê-lo?

- Não, não. Como estava o Hubert, além disso?

- Tinha aspecto abatido e não tinha vontade de comer. Às 22 horas, abriu a rádio para ouvir as notícias. Habitualmente é o seu pai que o faz. Além disso, como não parecia ouvir as perguntas que lhe fazia, acabei por lhe perguntar se, por acaso, não tinha estado em casa da tia. Respondeu-me simplesmente: «Que ideia!»

- E acreditou-o?

- Sim. Ele não parecia mentir. Em seguida, tocou o telefone. Como de costume quando estava ali, era sempre ele que atendia. Porém, não se mexeu. Era Suzanne que telefonava para me dizer que o Hubert tinha esquecido o seu violino em casa dela e que em seguida tinha passeado todo o tempo com o estojo vazio, sem mesmo dar por isso. Ele gritou-me: «Pergunta-lhe se a minha luva ficou também em casa dela.» Quando o informei que não estava lá, pareceu-me muito deprimido.

- Disse qualquer coisa mais?

- Sim. Disse-me: «Uma luva como aquela pode-se encontrar, há milhões delas, não é verdade?»- Isso também não o disse à polícia - acrescentou Mme Baldwin.

- Eu sei - disse York. - Há ainda qualquer coisa de importante a mencionar ou mesmo completamente insignificante?

- Meu Deus! - suspirou Mme Baldwin - por vezes já não sei muito bem o que é verdade e o que eu imagino. Simplesmente, não posso acreditar que seja ele o culpado. Ultimamente estava muito mais razoável. E a rapariga parecia ter sobre ele uma boa influência.

- Poderia a senhora supor que a Suzanne fosse interesseira? Que ela lhe exigisse presentes, jóias, por exemplo?

- Oh!, não, certamente não!

- E como é que soube da morte da sua cunhada?

- Pelos jornais. Dois dias depois.

- O que pensou ao ler essa notícia? Não devia ter aparecido primeiramente senão uma breve notícia?

- Sim. Eu pensei: «Queira Deus que, realmente, o Hubert não tivesse estado em casa dela antes de ontem!»

York andava de um lado para o outro. A divisão era rectangular, sombria como uma cela, estreita como um corredor e comprida como uma pequena sala de conferências.

O verniz da mesa imitava desajeitadamente os veios duma madeira barata. Era um trabalho de grande duração, que exigia tempo, este tempo de que só podem dispor os detidos. A tampa duma caixa de graxa servia de cinzeiro. O Estado era económico. As cadeiras oscilantes datavam do século passado. O solo estava recoberto dum revestimento especial contra o pó, as paredes pintadas grosseiramente e desbotadas. A divisão cheirava a bafio. Uma lâmpada pendia do tecto, na ponta dum fio sujo. O abat-jour de vidro provinha do tempo da iluminação a gás, branco por dentro e verde por fora. A porta abriu-se bruscamente e um guarda empurrou o prisioneiro, Hubert Baldwin, para o parlatório dos advogados.

- Isto vai durar muito tempo, Sr. Doutor? - perguntou ele.

- Receio bem que sim.

O homem resmungou qualquer coisa incompreensível e tornou a fechar a porta do exterior. York, pela primeira vez, encontrava-se sozinho com o seu cliente. Disse o seu nome, estendeu a mão a Hubert, puxou uma cadeira para a mesa e disse-lhe que se sentasse. Enquanto tirava do bolso o seu bloco de apontamentos, transmitiu-lhe as saudades de seus pais.

O rapaz escutava, sem a menor emoção aparente.

- E depois - continuou York, observando-o disfarçadamente - devo dizer também que a Suzanne veio ver-me. De livre vontade... (Ele sorriu.) Ela faltou ao liceu por sua causa. Mas escrevi-lhe umas palavras de desculpa. Ela também me pediu para lhe transmitir as suas saudades.

Hubert, que, até ali, tinha ficado sentado, de aspecto obstinado e ausente, sorriu levemente.

- Uma rapariga encantadora - continuou York. - Se as suas qualidades de música são iguais às suas qualidades físicas, e se é tão esperta como parece razoável...

- Que quer de mim? - interrompeu-o bruscamente Hubert, num tom desagradável.

- Que seja, pelo menos, tão razoável como a Suzanne.

Hubert conservou-se em silêncio. York pegou na sua caneta.

- Hubert - disse-lhe ele-, gostaria simplesmente de lhe fazer notar que o meu encargo é difícil. O nosso tempo aqui é limitado. Uma coisa ainda: tenho um escritório novinho em folha, inicio a carreira, não tenho a rotina do Dr. Stark...

- Ah! O Dr. Stark! - disse Hubert.

- Também não tenho nem o seu nome nem a sua reputação.

Hubert riu-se outra vez, uma espécie de riso fanhoso de troça.

- Só tenho uma qualidade. Creio que sei escutar... York olhou o rapaz sentado a seu lado, o seu rosto

macilento, as rugas profundas marcadas do nariz à boca, os olhos encovados, por detrás dos vidros fumados que o envelheciam. Ou não seria só o efeito dos óculos?

- Que quer ouvir? - decidiu-se Hubert, depois de ter reflectido alguns instantes.

York colocou as mãos abertas sobre a mesa e curvou-se para a frente.

- A verdade - disse ele por fim. - Em toda a medida do possível.

- O senhor também, sem dúvida, acredita que sou eu o culpado?

- Escute! - exclamou York, com voz abafada. - Até agora, não acredito em coisa alguma. Ninguém viu o que se passou na realidade. A acusação só se baseia em indícios. O encadeado não tem falhas, só tem pontos fracos. A única coisa que torna este caso tão difícil e a sua situação tão precária foi porque se contradisse sem cessar. Não o censuro, Hubert. Absolutamente nada. Vim aqui com a intenção bem formada de o acreditar. Se me disser: o que vou contar-lhe agora é a verdade, eu sairei daqui levando esta verdade comigo e toda a gente a vai ouvir. É-me precisa toda a verdade. É a única maneira que tenho de o ajudar.

- E se eu lhe disser que não fui eu o assassino?

- Acreditá-lo-ei. Experimentarei, ainda que tenhamos perdido já muito tempo, procurar novas testemunhas. Não sou um advogado criminal, mas nós acharemos meios e soluções para o tirar de apuros; estou persuadido de que o Estado no qual vivemos procura salvaguardar a justiça em toda a medida do possível, senão não me teria feito advogado.

- Por onde devo começar? - perguntou Hubert.

- Já sei muitas coisas - respondeu-lhe York. - Sei como se escangalharam as suas relações com os seus pais, quando a sua tia voltou da América, também sei as cenas que daí resultaram. Sei como conheceu Suzanne, que nesse dia estava em casa dela, que antes tinha tido desavenças com a sua tia por causa dela. Sei que queria pedir-lhe o carro emprestado e pedir-lhe dinheiro, que às dezoito horas foi a casa dela, e que a Suzanne o esperava em baixo. O que queria saber é o que se passou durante aqueles minutos em que estava no edifício. Que lhe aconteceu? Peço-lhe, lembre-se bem de todos os pormenores; experimente recordar esses minutos na sua memória como se olhasse para um filme e conte-mos.

- Entrei na casa sem desconfiar de nada - começou Hubert. - Chegado em frente do ascensor, reparei que não funcionava.

- Entrou na cabina e carregou no botão?

- Sim. Fechei a porta como de costume, senão o ascensor não subiria. Carreguei no botão do nono andar, mas o ascensor não se moveu.

- Experimentou várias vezes?

- Sim. Pelo menos, duas ou três vezes. Depois experimentei outro botão, mas ele não se movia mesmo.

- E tinha o seu estojo do violino consigo?

- Sim.

- Que tinha ele dentro?

Nada - disse Hubert, surpreendido. - Tinha esquecido o violino em casa de Suzanne.

- Naquele momento já se tinha apercebido?

- Não! Somente à noite, quando a Suzanne me telefonou...

- E, esse estojo, há quanto tempo o tinha?

- Há cerca de três semanas. Ele parece mais uma pequena mala.

- Porque desejou possuir um estojo desse género?

- Tinha-os visto em casa dos membros da Sociedade Filarmónica.

- É a única razão?

- Sim.

- Bem - disse York. - O que fez quando o ascensor não funcionou?

- Saí da cabina. Perguntei a mim mesmo se iria trepar aqueles nove andares, e, por um pouco, teria tornado a sair e ido embora. Nesse momento, ouvi alguém a descer, e lembrei-me de que, para convidar Suzanne para jantar, não tinha muito dinheiro, e subi mesmo assim.

- Até lá, quanto tempo poderia ter estado no edifício?

- Dois, três, talvez quatro minutos.

- E, do ascensor, dirigiu-se directamente para a escada?

- Sim. Queria mesmo perguntar ao porteiro porque é que o ascensor não funcionava. Mas não havia ninguém ao fundo da escada.

- Onde estava a pessoa que tinha ouvido descer?

- Entre o terceiro e o segundo andar, pouco mais ou menos. Esperei para ver se, por acaso, não era a tia Mathilde, mas tratava-se de um serralheiro-montador.

- E, esse montador, viu-o realmente?

- Sim, sem dúvida!

- Disse-o à polícia?

- Sim.

- Mas isso não figura no auto! Leu-o bem, depois do seu interrogatório?

- Percorri-o apenas. Eles diziam-me: «Anda!, mexe-te! Não acreditas que queremos engavetar-te?» Tinha-me esquecido antes, mas os homens da polícia disseram-me: «Seja como for, o teu serralheiro-montador disse que eras tu o assassino. E foi-se embora. Não é verdade?»

- Eles disseram realmente isso?

- Sim.

- Mas você devia saber bem que não se assina nada antes de o ter lido?

- Sim...

- Então porque assinou, apesar disso?

- Tinha a impressão de que, se relesse tudo cuidadosamente, isso se voltaria contra mim.

- Portanto, o serralheiro-montador desceu realmente.

- Sim.

- Como é que viu que era um serralheiro-montador?

- Ele usava um fato-macaco e levava uma caixa de ferramentas de metal, a tiracolo.

- Que idade podia ele ter?

- Cerca de trinta. Usava um boné de pala. Disse para comigo: «Talvez esteja consertando o ascensor», e esperei que chegasse cá abaixo. Perguntei-lhe se era ele que consertava o ascensor, mas respondeu-me: «Não», e saiu.

- E então?

- Então subi.

- Os nove andares?

- Sim.

- Encontrou alguém mais?

- Não.

- Ouviu algum ruído suspeito?

- Não.

- Nada?

- Absolutamente nada! York ergueu os óculos.

- Bom - continuou ele. - Ei-lo, portanto, no nono andar. E ali, o que se passou?

- Dirigi-me para a porta da tia Mathilde.

- Parece-me que ela tinha reunido dois apartamentos num só...

- Sim, mas ela não utilizava nunca senão uma porta de entrada.

- Além disso, o nono andar é o último?

- Sim. Vou então à porta de entrada e toco. O toque pareceu-me de súbito anormalmente forte e, naquele momento, apercebi-me de que a porta não estava fechada, mas encostada.

- Então, que pensou?

- Pois bem! Que talvez ela não o soubesse, e esperei que viesse abrir-ma. Como nada se movia, toquei uma segunda vez, depois abri.

- Bem - disse York. - Está certo de ter tocado duas vezes? E enquanto esperava não ouviu nada?

- Não - respondeu Hubert-, lembro-me de que estava sufocado, tinha pancadas no coração.

Quando abri a porta, vi-a logo. Estava estendida, os pés na minha direcção, um pouco de lado. Primeiro julguei que tinha desmaiado, virei-a de costas e, então, vi a ferida na cabeça.

- Estava ela... - York raspou a garganta - estava ela ainda quente?

- Sim.

- Um calor normal?

- Ela tinha sempre as mãos um pouco frias.

- Sim. E depois?

- Primeiro, quis correr ao telefone. E, depois, subitamente, enchi-me de medo!

- Porquê?

- Não sei. Tinha medo. Talvez não fosse senão cobardia. A verdade é que me precipitei para fora do apartamento. Lembrei-me que meus pais me tinham ameaçado de me enviar para outra cidade, se eu voltasse, ainda uma só vez que fosse, a casa de minha tia. Suzanne esperava-me em baixo na rua; tinha-lhe contado as minhas questões. Temi que ela pensasse que era eu que a tinha morto. E que os outros também o pensem. Visto que... enfim!, é evidente que eu deveria ter dado o alarme imediatamente, no corredor, ou no andar abaixo.

- Porquê?

- Porque minha tia não tinha vizinhos. Estava sozinha no seu patamar. Depois, pensei que os meus pais não me mandariam embora ainda assim só por isso, mas não ousei tornar a subir. Pareceu-me de repente que tudo que fizesse me tornaria suspeito, quer chamasse ou não a polícia. E, depois, disse para comigo: «Afinal de contas, eles vão talvez encontrar o assassino.» Na verdade, já não sei muito bem tudo o que pensei!

- E o serralheiro-montador? Não o relacionou com a sua tia?

- Aquele! - disse Hubert com desespero - tinha-o esquecido completamente! Acredita-me, não é verdade?

- Está claro que sim! Somente, isso não nos serve de nada! Além disso, a polícia informou-se: nenhum locatário do edifício recebeu a visita desse serralheiro-montador àquela hora. Mesmo Suzanne, que afirmou tê-lo esperado todo esse tempo em frente à entrada, não viu sair do edifício nenhum homem de fato-macaco!

- Mas ela não podia deixar de o ver! Ele saiu pela frente, ali onde ela me esperava. Ele levava a tiracolo, suspensa por uma correia, uma caixa de ferramentas.

- O aborrecido é que a Suzanne começou por declarar, por ocasião do interrogatório, que não se tinha tirado da frente da porta. Só mais tarde ela conveio

em dizer que tinha talvez voltado a cabeça num dado momento ou dado alguns passos, mas, naturalmente, era tarde de mais!

- Ela não olhou - repetiu Hubert, com obstinação-, ela tinha de o ver! Ele tinha um boné de pala e um fato-macaco.

- Porque não disse à Suzanne o que acabava de lhe acontecer?

Hubert calou-se durante um instante.

- Não sabia o que devia fazer - continuou. - Se ela não estivesse ao corrente das questões que eu tinha há tempos com a tia Mathilde, talvez lhe tivesse dito. (Reflectiu.) Talvez não, na realidade. Depois pensei que, há algum tempo, a polícia prendia o primeiro que aparecesse, mesmo que não fosse o culpado. E tinha esperança, porque isso acontece às vezes, que eles acabariam, precisamente neste caso, por encontrar o verdadeiro. Estava de tal maneira transtornado!

- Hubert - perguntou York com doçura -, diga-me muito francamente: na realidade, seria capaz de assassinar a sua tia?

Hubert olhou fixamente pela janela.

- É essa a contrariedade - disse com uma voz abafada -, parece-me bem que sim...

- Porquê?

- Ela não cessava de dizer mal dos meus pais. Era realmente muito... muito ordinária. Mas a maneira como procurou desacreditar a Suzanne, então isso, não o pode imaginar!

- Porquê?

- Porque percebeu que perdia a influência sobre mim. Queria realmente subornar-me, só dou conta disso agora. Se tivesse escutado o meu pai...

- Sim. E como estava encolerizado e que... admitamo-lo, podia ter chegado a vias de facto, houve esse incidente com o bilhete que tentou fazer chegar à Suzanne.

- Sim.

- Acreditou realmente que lhe chegaria às mãos?

- É evidente, senão não lhe teria escrito que não mencionasse as minhas zangas com a tia Mathilde.

- Naturalmente, compreende que é um caso bicudo?

- Sim, mas ainda não sabia, naquele momento, que era um crime crapuloso. Não queria, por causa das questões com minha tia, estar metido numa história de assassinato.

York apoiou-se contra as costas da cadeira oscilante.

- Porque pensou isso?

- Porque eles não paravam de me interrogar. Foi só quando eu disse: «Bom!, fui eu!» que o inspector me disse: «E visto que, de qualquer modo, a tia estava morta, disseste para contigo: mais vale levar aquilo que preciso.»

- Mas, então, porque diabo disse que sim?

- Porque já não podia mais! Já não sabia de que se tratava. Já só desejava uma coisa: dormir.

- E duas sanduíches de presunto.

- Sim, com certeza, isso parece incrível! Mas vieram buscar-me antes do primeiro-almoço, e todo o dia não pararam de comer à minha frente. Havia sempre um a comer!

- Quanto tempo o interrogaram?

- Não havia relógio na divisão. E, durante todo o dia, a luz eléctrica.

- E quando o reconduziram para a cela?

- Era de noite, adormeci imediatamente.

- Hubert - perguntou York -, esqueceu qualquer coisa de importância.

- Disse tudo o que sabia.

- E a caixa do violino? Estava vazia? Palavra de honra?

- Estava vazia. Se a Susie não me tivesse distraído

tanto, porque eu... porque isso... tê-lo-ia notado certamente.

- Sim. E quando voltou para casa porque é que os seus sapatos estavam tão sujos?

- Há um depósito de materiais na rua, estava vedada; a rua ao lado estava tão escura, passei sobre um monte de terra.

- Aquele filme que foram ver, era o quê?

- Mal me lembro dele. Um filme policial.

- Hubert - continuou York-, se não foi você... quem foi então?

- Se eu o soubesse!

- A sua tia não tinha outras relações?

- Afirmou-me sempre que era a única pessoa que via.

- Mas é preciso que ela tenha conhecido alguém mais; ninguém se deixa derrubar assim por um desconhecido, sem opor resistência!

- Sei isso bem - disse Hubert -, tudo é contra mim, bem mo disseram na polícia! O bilhete confidencial, a caixa do violino vazia, a ausência de resistência da parte da minha tia...

- Vamos talvez encontrar esse serralheiro-montador. Vou ver se um ou dois jornais podem fazer caso disso e procurá-lo.

York apanhou os seus papéis e olhou em frente. O guarda abriu a porta e perguntou:

- Ainda demora muito?

- Não - respondeu York-, acabamos já.

- Tenho algumas probabilidades? - perguntou Hubert, quando o guarda tornou a fechar a porta.

- Se não foi você - e eu acredito-o-, então sim. Somente...

- Somente o quê?

- Não sei ainda como tudo isto acabará. York levantou-se.

- Tive sempre um pouco de sorte - disse -, Vamos precisar dela. E não é de pouca!

Mergulhado nos seus pensamentos, olhava o chão enquanto se retirava. No limiar da porta parou.

- Ainda um pormenor - disse ele. - Falta-me qualquer coisa: você abre a porta, vê a sua tia estendida na sua frente...

- Sim - fez Hubert.

- Que fez então? Quero dizer: quando se vê subitamente a nossa tia deitada assim na nossa frente? Correu logo para ela?

- Não!, gritei: «Oh!, minha tia!, minha tia!», e, depois de a ter voltado de costas, chamei-a ainda uma vez: «Tia Mathilde!» E depois vi a ferida na cabeça...

York abanou a cabeça pensativamente e foi-se embora.

 

A ASSOCIAÇÃO "JUSTIÇA".

- Preciso dos teus conselhos - disse York, colocando a sua pasta sobre a secretária de Paul Antal, seu antigo camarada da faculdade.

York recordava-se vagamente que Antal tinha deixado a universidade no decurso do terceiro semestre. Não porque fosse incapaz, mas porque tinha descoberto, de súbito, que a Justiça, da qual falava como duma senhora muito susceptível, podia ser servida de inúmeras maneiras: como polícia, como legislador, como procurador, ou como juiz, como defensor, ou como criminologista.

Antal tinha descoberto igualmente com entusiasmo uma outra possibilidade: o jornalismo.

A imprensa não podia, evidentemente, nem acusar, nem absolver. Mas, colocando-se fora dos que são parte, podia tentar descobrir a verdade, esclarecer pontos obscuros, mesmo quando um veredicto se tornasse definitivo aos olhos da justiça, podia, sem, no entanto, ter de transgredir as regras do direito, formular dúvidas, exprimir reservas, mesmo quando tivessem terminado todos os inquéritos administrativos, podia ainda perguntar, procurar, profundar, e, apoiando-se sobre novos factos, provocar um novo processo.

 

Antal redigia notícias maravilhosas dos debates judiciários, o que tinha aumentado consideràvelmente a tiragem do jornal que o empregava. As suas reportagens sobre assuntos criminais não procuravam nunca provocar sensação, mas ficavam concisas, realistas, cheias de ensinamentos; o acusado apresentava-se sempre sob os traços dum ser humano, e era certamente por isso que se liam como verdadeiros romances policiais. Antal não exagerava, mas minimizava de preferência, e, quando o interrogavam, a sua resposta ficava sempre aquém do que o seu instinto lhe tinha feito descobrir. Algumas vezes não respondia mesmo nada. Os entendidos não gostavam menos dele por isso, porque por diversas vezes lhes tinha demonstrado que mesmo os entendidos podiam enganar-se. Mas, graças a ele, os representantes do ministério público tinham perdido o hábito dum tom demasiado enfático.

Foi assim que, no correr dos anos, Antal se tinha tornado numa espécie de personagem. Não pertencia à redacção do jornal; no entanto, quase representava um organismo oficial. Era ele que recebia o correio mais abundante: ocupava um secretário e dois dactilógrafos, não lhes poupava as horas suplementares e, além disso, alimentava outros projectos.

- Preciso dos teus conselhos - repetiu York. Antal sorriu-lhe:

- Para o caso Baldwin? Stark disse-me que eras tu que te tinhas encarregado do processo. Deve sentir-se aliviado, o raposo velho!

- Por ocasião do crime - disse York -, não segui com acuidade o caso nos jornais. Ignoro, portanto, o que escreveste naquele momento.

- Não é de capital importância - disse Antal com modéstia. - Além disso, fui buscar as notícias dos jornais da época.

- Para mim?

- Não - disse Antal -, não para ti, para mim. Naturalmente podes vê-las.

- Que pensas disso, tu, deste caso?

Antal levantou-se e pôs-se a andar dum lado para o outro.

- Não estou certo... disse por fim, enfiando os indicadores nos bolsos do casaco.

- ... que seja ele?

- ... Não certo que seja ele, e também não certo que não seja ele. As suas confissões parecem plausíveis, se bem que...

Antal rodou sobre os calcanhares.

- Se bem que?

- Não gostei do inquérito feito pela polícia. Esta achava-se nesse tempo numa situação difícil, aliás compreensível. Precisava absolutamente de chegar a um resultado. Pouco tempo antes de se apresentar esta história de Mathilde Stringfors, não tinha podido esclarecer dois assassinatos, ambos assassinatos de mulheres. Precisava dum sucesso, como se precisa de pão! A opinião pública rosnava; os jornais não cessavam com os sarcasmos. Não o meu, naturalmente, apesar de nem sequer mo terem agradecido.

York levantou-se por sua vez e foi ter com Antal ao pé da janela.

- Éa minha primeira grande causa - explicou-lhe ele. - Se falhar, a minha carreira está tramada. Quando dizes que o inquérito te desagradou, que queres significar?

- Que, para a polícia, o primeiro suspeito que aparecia tinha de ser por força o culpado. Na altura, perguntei eu próprio ao comissário da Polícia Judiciária encarregado do inquérito se não existiam também outras pistas.

- E que te respondeu ele?

- Que, se existissem outras, segui-las-iam. Mas que não as havia.

- E tu, Paul? Qual era a tua impressão?

- Que o homenzinho não estava seguro de si, senão não me teria respondido com tanta arrogância. Fiz mesmo um artigo intitulado: «Finalmente, uma detenção!», tentando descrever a satisfação da polícia, que, depois de dois reveses oficiais, podia gabar-se duma detenção porque não tinha encontrado mais ninguém para prender. Fiz notar que tinha prendido Baldwin depressa de mais, com demasiada facilidade, e que estava segura de mais da sua culpabilidade. Terminei dizendo que era preferível não ter culpado algum que ter um acusado inocente e que ficar um crime sem castigo era certamente menos pesado que um erro judiciário evidente.

- Acreditas, na verdade, que a polícia pode enganar-se a esse ponto?

Antal conduziu York à frente dum armário metálico.

- Ali dentro - explicou ele - há uma colecção internacional e acrescento-a todos os dias...

- Uma colecção de quê?

- De erros cometidos pela polícia.

- E a que conclusões chegaste?

- Simplesmente que não existe erro que não tivesse já sido cometido e que não os há que não se repitam. As mais modernas máquinas, as descobertas mais recentes, podem, elas também, enganar-se, porque são utilizadas por homens.

- E como encaras o caso do Hubert Baldwin? Antal reflectiu.

- Não seria o único - disse por fim -, transgredindo uma proibição sem grande alcance, a desencadear uma catástrofe da qual fosse a vítima. Conheço casos, em Inglaterra, na América, países onde o acusado tem, de facto, muito mais direitos que no nosso, que não terminaram menos tragicamente, ou quase, a menos que, no último momento, um defensor...

- Fui vê-lo hoje - disse York.

- E que diz ele?

- Que a sua tia já estava morta. A porta do apartamento estava apenas encostada. Além disso, encontrou um operário na escada. Sabes como a polícia conduziu o inquérito com respeito a esse serralheiro-montador?

- Sem convicção-respondeu Antal.-Que eu saiba, suspenderam as suas investigações, quando Baldwin confessou.

- Mas ele jura que se cruzou na escada com um serralheiro-montador.

- Acreditas nele?

Diria de preferência: sim...

- Acreditas que, no fim de contas, é o serralheiro-montador o assassino?

- Não precisamente, mas talvez pudesse confirmar que viu Hubert na escada, que, por conseguinte, o ascensor não funcionava. E isso permitia-me provar que, em certos pontos, Hubert diz a verdade, ainda que nem a polícia, nem o juiz instrutor o acreditem.

- Queres dizer que isso te permitiria abalar o tribunal?

- Ou, pelo menos, impressionar o júri. Antal voltou para a janela.

- Eu - disse ele - aconselhar-te-ia a tratar com todo o cuidado esta história no momento dos debates; insiste nisso o mais tempo possível. De modo a que eu possa averiguar no meu jornal sobre a existência desse serralheiro-montador. Se ele existe, porque não se dá a conhecer? Se se esconde, que sabe exactamente? Como é possível que a polícia o não tenha encontrado? No dia seguinte, os outros jornais, também eles, falariam no serralheiro-montador.

Não fazes ideia de como se é plagiado assim que se tem uma ideia original!

- E acreditas que, se existe esse serralheiro-montador, vamos encontrá-lo?

- Talvez que venha ter comigo - disse Antal, dum modo pensativo. - Já se viu isso. Ou, ainda, alguém telefona e diz-me: «Pergunte a Fulano e a Fulano...» Isso acontece também. As pessoas sabem bem que eu não sou magistrado.

- Tu és formidável! - disse York.

- Vamos!, vamos! - retorquiu Antal. - De qualquer modo, assistirei a todas as audiências. Se qualquer coisa me impressionasse, fazia-te chegar às mãos uma palavrinha. Eu, observador imparcial, vejo talvez mais claro que tu, que estás enfronhado no caso e obrigado a tomar um partido.

- Paul - disse York -, como poderei eu agrade...

- Agradecer-me? - perguntou Antal, deitando-lhe uma olhadela. - É isso que querias pedir-me?

- Sim - respondeu York.

- Se vens pedir-me um conselho, não tem importância que eu to dê. Vem. Sentemo-nos.

Sentaram-se. Antal pediu, pelo telefone, duas chávenas de café. O secretário apareceu com um rubricador. Antal pediu desculpa e assinou algumas cartas. Um instante depois, uma rapariga trouxe o café.

- Tens umas colaboradoras bem bonitas - disse York, bom apreciador.

- Parece-te? - disse Antal, sorrindo, como se ainda não o tivesse notado.

Mexia o café, parecendo completamente ausente.

- Quererás dar-me uma informação - disse York -, acerca da maneira como poderia agradecer-te?

- Sim - disse Antal, com ar sonhador. - Tenho um projecto, imagina. Sou o contrário dum tipo para fundar associações, mas sinto-me irresistivelmente levado a isso...

- Não! Não vais fundar uma associação, Paul?

- Sim! - disse o outro, gravemente. - E mesmo com uma denominação tudo o que há de mais ridículo!

- E que fim terá?

- Para que não se prendam inocentes. Nos últimos tempos, alguns processos fundados apenas por simples indícios terminaram em condenações para sempre; isto só prova que o velho princípio: «O acusado deve aproveitar da dúvida» é completamente desconhecido. Adoptaram a minha ideia alguns velhos magistrados íntegros já reformados. Gostaria bem que te juntasses a nós. A justiça não é somente uma coisa que pertença aos tribunais; ela diz respeito a nós todos. Se os juizes fecham os ouvidos, é preciso que nós, nós ouçamos. Não devemos tolerar que inocentes se tornem as vítimas de textos sem vida. Não haverá nunca bastante gente, meu caro, para se importar com a justiça...

- E como vais chamá-la, a tua associação? - perguntou York.

Antal sorriu, embaraçado.

- Aqui está - disse lentamente, como se tivesse vergonha. - Não achei outra denominação. Mas gostaria de a chamar... - hesitou ainda - gostaria de a chamar "Justiça".

 

OS PONTOS FRACOS DA DEFESA.

- Menina Rauschenbach - disse York -, infelizmente não tenho nada de novo a anunciar-lhe, mas aproxime-se, peço-lhe.

De pé, no limiar da porta, Suzanne Rauschenbach olhava-o, parecendo indecisa. Depois perguntou, com hesitação:

- Teria acontecido qualquer coisa de grave?

- Não, não - tranquilizou-a York. - Entre, peço-lhe. Vai ajudar-me a pensar.

- Eu? - admirou-se Suzanne.

- Sim, você - respondeu York, sorrindo. - Acabo de notar que cometo um erro.

Suzanne pareceu ainda mais surpreendida.

- O senhor comete erros, o senhor?

- Perfeitamente. Um erro fundamental. Venha, sente-se.

York levantou-se e pôs-se a dar grandes passadas na sala.

- Cometo um erro estúpido e é por isso que não avanço. Compreende, é preciso que não considere sem cessar esta causa como se fosse o seu defensor. Com o tempo, acaba-se por não se ver mesmo nada.

- E agora o que deseja?

York sorriu de novo.

- É muito claro. É preciso que considere toda a história como se eu fosse o delegado do ministério público.

- Porquê? - perguntou Suzanne, olhando-o atentamente.

- Porque isso me permitirá descobrir as manhas. Dar-me-ei conta dos pontos fracos da defesa. Compreende? Conseguirei chegar quase aos argumentos que ele vai utilizar contra mim durante o processo.

- E que posso eu fazer dentro disso?

- Você? Você vai encarregar-se da defesa!

- Eu? Está a brincar!

- Não. Nada disso. É preciso que diga o que diria se estivesse encarregada da defesa. Sim? Pode fazê-lo, visto que é praticamente a noiva do acusado.

- Mas acredita que saberei defendê-lo?

- Está visto que saberá. Nós vamos agarrar nas cópias dos depoimentos das testemunhas e vamos discuti-las. Você como defensor, eu como delegado do ministério público.

- Estou toda arrepiada - disse Suzanne.

- Isso já me aconteceu várias vezes desde que me ocupo deste caso - tranquilizou-a York, tornando a sentar-se.

- Vamos a isso! Então, eis a minha melhor testemunha: Thomas Braun, cinquenta e dois anos, celibatário. Profissão: construtor de aparelhagens eléctricas. Declarou: «Em 23 de Fevereiro, dia do assassinato, fiquei todo o dia no meu apartamento, porque exerço a profissão em minha casa. Pouco depois das 18 horas, parei de trabalhar para preparar o meu jantar. Pus a água a ferver para o chá e dirigi-me da cozinha ao quarto de banho para lavar as mãos. Quando saí do quarto de banho para voltar à cozinha, ouvi, passando pela entrada, alguém descendo a escada a correr. Disse para

comigo: O ascensor está outra vez avariado. E, como me encontrava justamente em frente da porta de entrada, olhei pelo ralo o que se passava no patamar, apesar de não estar nos meus hábitos. O sobrinho de Mme String-fors envergava umas calças cinzentas, sapatos leves castanhos, um casaco verde; não, rectifico, um casaco cinzento-esverdeado, na mão direita um estojo de violino. Disse para comigo: Ah!, esta juventude! E Porque corre ele assim? Nesse momento, a minha chaleira pôs-se a apitar e voltei à cozinha. Depois de ter jantado, saí. Deviam ser aproximadamente 18.45. O que posso afirmar é que não desci do meu sexto andar a pé, mas pelo ascensor. Este funcionava igualmente muito bem quando voltei.

«Além disso, não ouvi ninguém no edifício queixar-se que naquele dia o ascensor estivesse avariado. Devo precisar que, se tivesse estado, havia fortes probabilidades que tivesse sido informado, porque já me aconteceu reparar pequenos incidentes desse género.»

York ergueu os olhos.

- Vê - disse ele -, no que respeita a advogado de acusação, encontro-me numa situação divertida. É sempre bom ter um técnico entre as testemunhas; esta gente reúne o sentido da hora, a precisão e a memória.

- Fixo apenas uma coisa neste depoimento - disse Suzanne -, é que o Hubert passou em frente da porta de Braun. Mas foi precisamente este ponto que, de qualquer maneira, o Hubert reconheceu. Ele afirmou que desceu a escada a correr. O Sr. Braun confirma-o com todos os pormenores. Mas ainda assim viu muitas coisas através do seu ralo!

- Parece-lhe? - disse York. (Abanou a cabeça.) - Este homem está acostumado a registar tudo só com uma olhadela. Aqui está: não há nada além disso.

- E, depois - retorquiu Suzanne -, porque insiste ele tanto no facto de o ascensor funcionar normalmente?

- Certamente porque a polícia tinha feito restrições. Eu, na qualidade de delegado do ministério público, sou da mesma opinião que a polícia. O ascensor funcionava. Ninguém se queixou naquele dia que estivesse avariado. Além disso, o inquérito revelou que todos os inquilinos que voltaram para casa, naquela tarde, se serviram do ascensor, o último cerca das 17.45.

- Mas talvez - objectou Suzanne - estivesse avariado cinco ou dez minutos mais cedo!

- Talvez estivesse, igualmente, cinco ou dez minutos mais tarde, querida confrade! Há também uma senhora que nos informou que tinha deixado o seu apartamento às 18.30 exactamente e que o ascensor funcionava nessa hora. O tempo durante o qual teria estado desarranjado reduz-se, portanto, a três quartos de hora no máximo. Acredita que, na realidade, fosse justamente durante esses três quartos de hora que se teria avariado?

- E porque não?

- E que tivesse sido consertado?

- Certamente.

- Menina Rauschenbach - exclamou York -, seja objectiva. Ninguém foi buscar um mecânico e não se incomodou o Sr. Braun. Como pode defender a sua tese?

- É o nosso distribuidor - disse Suzanne - que me deu a solução. O edifício que habito tem sete andares, mas, quando o distribuidor está na casa, o ascensor está sempre desarranjado: porque o distribuidor sobe dum andar ao outro e deixa a porta do patamar aberta: o contacto está cortado, o ascensor já não trabalha!

- Ah! - exclamou York alegremente -, você é uma rapariga maravilhosa! Esta hipótese vai permitir-nos progredir. O delegado do ministério público agarrava-se muito a este ascensor desarranjado, e, se tudo o que declaram as testemunhas é verdade, há sempre a possibilidade de que o assassino...

- ... ao abrir a porta do ascensor - exclamou Suzanne...

- ... o tivesse posto em avaria. Porquê? - perguntou York. - Porque podia supor, quase pela certa, que ninguém subiria a pé os nove andares para ir ver Mme Stringfors.

York reflectiu um momento.

- E de resto não! - disse de repente -, isto não pega. Isto não pôde passar-se assim.

- Porque não?

- Porque - declarou York - seria demasiado belo, menina Rauschenbach!

- Não importa! - replicou Suzanne, toda corada de excitação -, não importa! Não cedo. Ou, então, o assassino era o serralheiro-montador.

- Isso não me agrada mais - resmungou York. - Se fosse ele, não teria com certeza descido a pé, podia tornar a descer pelo ascensor. (York reflectiu ainda.) Não, não!

- exclamou de repente. - A sua tese está errada. Se o assassino tivesse deixado a porta do ascensor aberta, o pequeno avisador vermelho: «Ocupado», ter-se-ia acendido no rés-do-chão. Hubert teria dado por isso e não teria mesmo podido abrir a porta do ascensor.

- Que pena! - suspirou Suzanne. - Acreditava que estávamos mesmo a chegar à solução.

- Vejamos um pouco o que diz Mme Clara Merck, que habita também no edifício da vítima - propôs York.

- Ela viu também descer o jovem Baldwin; encontrava-se no patamar para deitar qualquer coisa no receptáculo do lixo. Ela fez, em suma, o mesmo relato que Braun, e à mesma hora.

- Tudo isto é muito bonito, mas isso não chega para provar que o Hubert é o assassino.

- Esquece a caixa do violino vazia, na qual podia dissimular-se tanto o instrumento do crime como o produto do roubo.

Esquece também que este rapaz perdeu uma luva no local do crime.

- A luva não pode ter caído senão quando voltou a tia de costas: o crime não tinha móbil!

- Como não tinha móbil? Porque é que, nesse caso, escreveu à sua amiga: «Não digas sobretudo que, nestes tempos atrás, questionei com a tia Mathilde.»

- Mas eram as discussões habituais, já lhe falei nisso.

- Habituais, diz-me você? Tratava-se de grandes quantias. Tenho uma testemunha, o porteiro Novotny. Exactamente uma semana antes do crime, portanto em 16 de Fevereiro, ele ouviu uma discussão entre a tia e o sobrinho. Fazia a limpeza no prédio. Dificilmente o podem censurar de ter demorado um pouco mais do tempo necessário diante duma porta onde havia coisas interessantes para ouvir.

«A tia teria dito: - Está muito bem. Querias que te desse tanto dinheiro como dantes, mas agora não vens senão uma vez por semana, durante alguns minutos.

«Hubert: - Tu bem sabes que os meus pais mo proibiram.

«A tia: - Antes, também não to permitiam e vinhas apesar disso. Se já não vens, é porque isso não agrada a essa jovem pretensiosa.

«Hubert: -Peço-te que não metas a Suzanne nisto.

«A tia: - ...sei perfeitamente que essa ronhosa te excita contra mim!

«Hubert: - É absolutamente falso. Não se trata disso. És tu que tentas excitar-me contra ela. Se dizes mais uma vez qualquer coisa contra ela, então...

«A tia: - Então? Então o quê? Vamos, di-lo...»

York compôs os óculos.

- Neste momento o rapaz não respondeu nada. Não se diz facilmente: «Senão, assassino-te!»

- É desprezível o que acaba de dizer! - exclamou Suzanne, indignada.

- Mas sou o delegado do ministério público - desculpou-se York.

- Além disso, reconheceu o Hubert o que acaba de contar?

- Sim. Mas afirma que queria dizer: «Então nunca mais cá volto.»

- É perfeitamente verosímil - replicou Suzanne.

- Não tão verosímil como isso. É muito mais fácil proferir uma ameaça inofensiva. Não há necessidade de nos contermos. Então porque não a disse ele?

- Para não envenenar as coisas ao último ponto - explicou Suzanne. - Para mais, provavelmente precisava de dinheiro. Um rapaz novo sem rendimentos precisa de dinheiro e em casa dele davam-lhe na verdade muito, muito pouco. E por isso eu só o deixava pagar a minha parte muito raramente quando saíamos.

- Lembre-se bem - disse York - que sou eu o delegado do ministério público. É um caso precioso, um verdadeiro festim para a minha severidade! Este rapaz um pouco inconstante pode muito bem ter arranjado dinheiro da maneira que sabe.

Ouviu-se tocar na entrada. Ao fim dum instante, MelI° Mayer entrou na sala com uma carta por mão própria.

- Devo abri-la? - perguntou ela.

- Sim, se faz favor. O que é?

Mayer abriu a carta e leu: «Preciso falar-lhe com urgência. Hubert Baldwin.»

 

NO LOCAL DO CRIME.

O Dr. Robert York andava na rua com um passo muito mais ligeiro que nos dias anteriores.

Assim, o porteiro Novotny devia dinheiro a Mathilde Stringfors! Admitindo que Hubert tivesse falado verdade e que o que tinha dito sua tia diante dele fosse exacto. Para ela, aquilo não representava uma grande quantia. Mas para o porteiro era certamente importante. No entanto, ele não se referira a isso no momento do seu depoimento; pelo contrário, citou factos que eram de natureza a sobrecarregar o sobrinho da mulher de quem ele próprio era devedor.

York assobiou entre dentes, entrou num café e encomendou um copo de leite.

- Leite? - espantou-se a criada, muito pintada.

- Sim, leite de vaca! - confirmou York com ironia, sentindo-se sorrir interiormente.

Os jurados, sabia-o, não gostavam que se duvidasse dos depoimentos das testemunhas, ainda menos que estas testemunhas fossem colocadas sob um aspecto desfavorável e suspeitadas de terem cometido elas próprias o crime. Os jurados não gostavam de coisas complicadas. O que preferiam é que o acusado seja o culpado, que as testemunhas sejam inabaláveis e inatacáveis e que a defesa, contrita, implore as circunstâncias atenuantes. York não gostava muito de juízes, de delegados do ministério público ainda menos, e menos ainda de jurados. Eram eles que tinham as mais imprevisíveis reacções. Descobria-se bastante depressa os objectivos e as manhas dum delegado do ministério público; podíamo-nos, quase tão facilmente, colocar no lugar do presidente do tribunal. Mas os jurados, expostos a múltiplas influências, envoltos no seu anonimato, ficavam impenetráveis. Havia ali uma incógnita que podia ser determinante.

York bebeu o seu copo de leite, pagou, e deixou-se escorregar do seu banco. O que gostaria de fazer era ir ver um pouco este porteiro e, depois também, o próprio prédio, o ascensor, a escada.

- Almoçou? - perguntou a Melle Mayer quando voltou ao seu escritório.

- Sim - respondeu ela.

- Nada de novo?

- Nada - disse Melle Mayer. - E o senhor? Almoçou?

- Sim - mentiu York. - Mas tenho uma ideia. Acompanha-me?

- E o telefone? Vamos deixá-lo sozinho?

- Ponha-o nos assinantes ausentes - tranquilizou-a York.

Melle Mayer tirou o seu casaco do vestiário.

- Onde vamos? - perguntou ela.

- À casa do crime!

Os olhos da secretária pestanejaram. Depois avisou o serviço dos assinantes ausentes.

- Não tem medo? - perguntou York.

- Absolutamente nada. Mas gostaria bem de saber o que tem intenção de fazer?

- Nada perigoso, senão não a levaria comigo. Gostaria de encontrar o porteiro e, depois, ver tudo o que

pode haver ali para ver. Talvez que isso nos faça avançar...

Na rua, York chamou um táxi, abriu a porta para deixar passar a sua secretária e sentou-se a seu lado. Durante o trajecto, guardou na mão o seu bloco e a sua caneta permanente, o que era nele um sinal de reflexão. No entanto, não fez a mínima anotação.

- Chegámos - fez-lhe notar Melle Mayer, quando o carro parou.

York emergiu dos seus pensamentos.

- O quê? - disse ele.

- Cá estamos.

Pareceu subitamente recordar-se do que tinha projectado e quis pagar o trajecto. Mas constatou que não trazia com ele dinheiro bastante.

- Deixe - disse Melle Mayer -, vou pagar com o dinheiro do escritório - e pediu um recibo ao motorista.

Quando saíram do táxi, ela disse-lhe:

- Vai restituir-mo quando Baldwin lhe pagar os seus honorários.

- Ah!, está bem - disse sorrindo. - Perguntava a mim mesmo o que queria dizer por «dinheiro do escritório»! Bem. Agora concentremo-nos. Olhe à sua volta tão atentamente quanto possível. Em seguida, vai dizer-me o que a tiver impressionado.

Ela fez sinal que tinha compreendido e enfiou as mãos nos bolsos do seu casaco. Depois de terem trepado os cinco degraus da entrada, empurraram a enorme porta de vidro e aço e penetraram no edifício do crime. Dirigiram-se primeiro para uma espécie de montra onde figuravam, detrás dum vidro, os cartões de visita dos inquilinos, o andar e o número das suas respectivas portas. No nono andar, por baixo do número 35/36, aparecia o nome de Mme Stringfors. No sexto andar, porta 24, York encontrou o nome da testemunha Braun, no quarto, porta 16, o de Mme Merck, a segunda testemunha.

Junto do dístico «Porta n.o 1» figurava a inscrição «Porteiro», e debaixo, traçada por uma mão desajeitada: «Novotny».

- Comecemos por ele - disse York, procurando a porta n.o 1.

- Ali está! - disse-lhe a secretária. - O senhor está de costas para ela.

York voltou-se, dirigiu-se com passo firme para a porta e tocou com decisão. Um homem mal barbeado, de camisa desleixada, veio abrir-lha. Tinha a boca cheia e não pôde fazer perguntas.

- O Sr. Novotny? - perguntou York.

- Sim - disse o outro, dum modo pouco convidativo, continuando a mastigar.

- Chamo-me York, Dr. York, e sou o defensor de Hubert Baldwin. Penso que não verá inconveniente em que visite o prédio, a escada, o ascensor e o nono andar? É tudo o que desejo.

- O apartamento do nono está selado.

- Já sei. Só queria ver o patamar.

- Espere - disse o porteiro, sem entusiasmo -, vou acompanhá-lo.

- Muitíssimo obrigado. Não faça nada disso. Sobretudo não se incomode. Só quero ver o ascensor, a escada e...

- Mesmo assim, acompanho-o - retorquiu Novotny, que desapareceu um instante e voltou logo enfiando um casaco. - Aqui está! - disse com o tom dum guia para turistas estrangeiros. - Antes de tudo: aqui está o ascensor.

- Ah! Bom! - disse York, e pôs-se a considerar como um monumento do mais alto interesse a porta metálica laçada na qual se recortava um vidro. - Ali está, portanto, o ascensor - continuou ele. - Vejo que tem um vão especial e que não foi colocado no da escada.

- Isso significa qualquer coisa de extraordinário? - perguntou Novotny.

York abanou a cabeça.

- Não, constato-o simplesmente.

- Quer subir? - perguntou Novotny, que parecia acautelar-se.

- Sim, de boa vontade - disse York. - Pergunto a mim mesmo justamente...

- O quê? - perguntou o porteiro, apressadamente.

- Oh!, nada... Há de vez em quando crianças estranhas ao prédio que se servem deste ascensor?

- Sim, de tempos a tempos. Mas garanto-lhe que, se eu os apanho, fica-lhes pouca vontade de rir!

Entretanto, tinham penetrado na cabina. Novotny aproximou um dedo do botão que se encontrava ao lado do 9 e perguntou:

- Ao nono andar?

- Sim - disse York-, com certeza.

O porteiro carregou sobre o botão. Ouviu-se um estalido e a cabina subiu ronronando.

York ia silencioso, sentindo que o porteiro o observava com atenção.

- Então, pelo visto - perguntou Novotny-, é o senhor o novo defensor do assassino?

- Se é realmente ele o culpado - retorquiu York, sorrindo -, mas primeiro era preciso que se provasse na audiência, não é assim? Quer o senhor dizer que está absolutamente certo de que é ele?

- Com certeza! Além disso, ele confessou.

- Sim. Somente, em seguida, desdisse-se!

- Mas nos jornais, dizia-se...

York cortou-lhe a palavra secamente.

- O que me interessa a mim é o que está no processo e no auto de acusação!

Chegaram ao nono andar. O porteiro fez um gesto para convidar os outros dois a sair. York hesitou um instante antes de se dirigir ao patamar, examinou o mecanismo de segurança da porta do ascensor, sem, no entanto, perceber fosse o que fosse daquilo.

- Terá acontecido qualquer coisa de novo? - perguntou o porteiro, desconfiado.

York fingiu não ter ouvido a pergunta e caminhou para o patamar com a sua secretária. Dirigiu-se para a porta 35, examinou os selos, depois os que se encontravam a alguns metros mais à esquerda, sobre a porta 36.

- Terá acontecido, por acaso, qualquer coisa de novo? - repetiu o porteiro.

Gotas de suor orvalhavam-lhe a testa.

- Sim - disse York, num tom arrastado, e voltou à porta 35. - É aquela porta que Mme Stringfors utilizava como porta de entrada? - perguntou, apesar de ter dado conta disso imediatamente.

Abaixo da fechadura, o verniz estava mais arranhado que sobre a outra porta, uma criança teria podido dar por isso. O porteiro não deixou de perguntar:

- Como o sabe?

Os lábios de York abriram-se num largo sorriso.

- Ah! - disse ele - meu pobre senhor! Se soubesse tudo o que eu sei!

Novotny empalideceu. Não pareceu apreciar lá muito o facto de que nesse preciso instante alguém o chamasse lá de baixo. Manifestamente, não tinha o menor desejo de deixar sozinhos os seus visitantes.

- Esperem-me aqui-disse, entrando no ascensor-, volto sem demora.

- Notou qualquer coisa? - perguntou York à sua secretária.

- A porta n.o 35 está em viés em relação à do ascensor - disse Melle Mayer. - Em compensação, a escada está mais perto da porta n.o 36. Estou persuadida de que o assassino manejou o ascensor.

- Admitindo que não seja Baldwin o assassino...

- Não é ele - repetiu Melle Mayer com obstinação.

- Possível, mas não pode prová-lo.

- Não. Mas ficaria bem contente se o senhor pudesse encontrar uma prova da sua inocência.

- Pensa que seja o porteiro?

- Não sei nada, mas, em todo o caso, tem a consciência pesada!

- Tinha ele um móbil? - disse York num tom pensativo, começando a descer a escada.

- Naturalmente! - disse Melle Mayer. - Não podia reembolsar Mme Stringfors, que o exigia, e ass...

- Ou tinha ainda necessidade de dinheiro e ela já não lhe deu mais.

- Porque diabo tinha este tipo necessidade de tanto dinheiro? - murmurou York. - De facto? O que terá ele na ideia?

Tinham chegado ao oitavo andar e continuaram a descer para o sétimo. Ali, uma senhora de certa idade encontrava-se justamente em frente da tampa cromada do receptáculo do lixo.

- Veja-me esta porcaria!-lamentou-se, dirigindo-se a York. - Olhe, este papel! Já faz dois dias que está aqui! Se eu não o deitar fora, ficará aqui durante semanas!

- Que ruim porteiro! - exclamou York por brincadeira, sem suspeitar que tocava num ponto sensível.

- Aquele! - fez ela indignada. - É um tipo lastimoso! A mulher esfalfa-se a trabalhar e, durante esse tempo, o senhor passeia... (A senhora de idade olhou York dum modo severo.) Não é por acaso da Polícia Judiciária?

- Tenho cara disso? - perguntou York, com indignação.

- Não, justamente! Disse para comigo que devia ser qualquer coisa de melhor. Ouviu falar do caso Stringfors?

- Oh! - murmurou York -, lembro-me disso vagamente.

- Pois bem! Ela emprestou-lhe dinheiro. Ela própria mo disse!

- Pois bem! Ele teve sorte!

- Sorte? Porquê?

- Não há por aí muita gente disposta a emprestar. E agora...

- Sim, agora, que está morta, já não tem necessidade de a reembolsar!

- Mas, isso, ele disse-o certamente à polícia?

- Não, justamente não!

- E esta Mme Stringfors, ela emprestou dinheiro a outras pessoas?

- Ela tinha muito e não atraía nem por isso a simpatia - disse a velha senhora. - O que havia de mais atraente nela era o seu dinheiro.

- Ela emprestou-o a outras pessoas no prédio? - repetiu York.

- De que maneira! O que não compreendo é que o tivesse emprestado também a esse desprezível porteiro.

- A quem mais o emprestou ela?

- Isso não o direi. Além disso, não o sei exactamente, mas o que posso dizer-lhe é que, se o prédio continua a estar tão mal cuidado, acabarei por ir à polícia.

- Pois bem! - disse York-, deve lá ir sem tardar muito.

- É o que vou fazer - afirmou a velhota, com quezília.- Esta eterna porcaria! É uma vergonha!

- E este receptáculo de lixo - perguntou Melle Mayer - para onde vai ele?

- Termina na cave, num grande subsolo. Nunca lá fui.

- E tiram de lá o lixo?

- Não, não. Temos uma instalação de incineração. Queimam-no logo.

- Agradeço-lhe - disse Melle Mayer. - É, na realidade, um belo prédio, muito moderno.

- Mas é uma casa onde se assassina - disse a mulher de idade. - Nem mesmo se está certa de ficar aqui com vida! - resmungou ela, e voltou para o seu apartamento.

York e Melle Mayer continuaram o seu caminho. No sexto andar, York murmurou:

- É mesmo aqui que mora a testemunha Braun.

- Pareceu-me ver alguém por detrás do ralo - murmurou Melle Mayer, enquanto prosseguia o seu caminho.

- Em que sítio?

- Por detrás da porta 24.

- É a porta de Braun. Deve ter-se enganado!

- Ia jurá-lo. York sorriu.

- O que dizia o auto: «Apesar de isso não estar nos seus hábitos»?, ou qualquer coisa no género...

No quinto andar, encontraram-se cara a cara com o porteiro.

- Mas então onde estavam metidos? - perguntou furioso. - Procurei-os em toda a casa!

- Ficou lá muito tempo, meu amigo - disse York, alegremente. - Então descemos a pé.

- Mas tinha-lhes pedido para esperarem que voltasse !

- Diga lá! O senhor exagera! - disse York, num modo áspero. - Não tem ordens a dar-me. Além disso - tornou a sorrir -, tranquilize-se, nós não escutámos às portas. É por isso que vou fazer-lhe uma pergunta.

- Faça favor - fez o porteiro, embaraçado.

- Ouviu dizer que Mme Stringfors emprestava dinheiro às pessoas?

O homem empalideceu.

- Dinheiro? - disse, com voz enrouquecida. - Não. Nunca. Nem uma palavra. Ela... por acaso...?

- Oh!, evocava simplesmente esta hipótese. Isso teria podido fornecer um móbil.

- Que móbil?

- Ora, um móbil para a assassinar! Por exemplo, o que teria pedido emprestado não podia reembolsar, ou ainda queria mais, então...

- Então o quê?

York não respondeu a esta pergunta.

- O senhor tem uma instalação de incineração do lixo no prédio? - perguntou Melle Mayer.

- Sim, porquê?

- Quem se ocupa disso?

- Um fogueiro. Porquê?

- O que põe ele para fazer o seu trabalho? - perguntaram ambos, quase ao mesmo tempo.

- Umas vezes isto, outras aquilo! - respondeu o porteiro, com modo arrogante.

- E no Verão, onde trabalha ele?

- Não lho perguntei.

- Não devo ser-lhe muito simpático - disse York, de brincadeira, e a sua mão pousou pesadamente sobre o ombro do porteiro. - Mas console-se. Se fosse você o assassino...

O porteiro libertou-se da compressão e exclamou:

- Mas olhe lá, senhor! Eu não sou o assassino...

- Com certeza - disse York -, deixe-me acabar. Queria simplesmente dizer-lhe que, se fosse o seu defensor, faria outro tanto por si.

Estavam parados no quarto andar. York mostrou a porta n.o 16.

- É ali - explicou à sua secretária - que habita a outra testemunha, Mme Clara Merck. E além, vê, deve ser o esgoto do lixo. Foi daqui que ela viu Hubert.

York deu alguns passos para medir a distância.

- Cerca de seis metros - constatou ele. - Mayerzinha, suba então alguns degraus, depois torne a descer o mais depressa possível e pare um pouco mais abaixo.

- Porque fazem isso? - perguntou o porteiro.

- Gostamos de nos divertir um pouco - disse York. Melle Mayer tinha desaparecido. Ela gritou:

- Atenção! Vou já!

Alguns segundos depois, tinha passado.

- Como estava ela vestida? - perguntou York ao porteiro. - Vamos! Depressa! Como era o seu fato?

- Não sei. Passou depressa de mais.

- Não é verdade? - disse York radiante. - Não é verdade? Passou muito depressa. Sabe porquê?

- Não.

- Porque tenho uma secretária muito rápida!

O porteiro sorriu indeciso, já não sabia bem se estavam a troçar dele ou não.

- E bonita - acrescentou, procurando ser amável -, e também bonita.

- Parece-lhe? - disse York. - Vou precisar de olhar melhor para ela.

- As rendas devem ser caras, neste prédio - disse Melle Mayer, que os esperava.

- Ah!, sim!, decerto! Não eram os senhores que poderiam pagar aqui um apartamento.

- Em suma, só inquilinos abastados!

- Oh!, absolutamente! Só boa gente!

- Não há seguramente nenhum que tivesse pedido dinheiro emprestado à Mme Stringfors?

O homem perdeu de novo a confiança. Num momento pareceu querer dizer qualquer coisa, depois humedeceu os lábios, abanando a cabeça.

- Há neste prédio pessoas de quem não goste? Questionou com algum inquilino?

Novotny respirou fundo.

- Não - disse, com uma voz rouca. - Porquê? Alguém lhe teria dito qualquer coisa a meu respeito?

York abanou a cabeça.

- Mme Stringfors teve uma discussão com alguém?

- Não. Também não.

- Bom - disse York, como se falasse consigo próprio. - De qualquer maneira, acabarei por sabê-lo... como o resto. (Fez uma pequena pausa.) Sabê-lo-ei - repetiu.

- O que veste esse fogueiro quando se ocupa do aquecimento? - continuou Melle Mayer, a quem a primeira resposta do porteiro não tinha satisfeito.

- Um fato-macaco - respondeu Novotny sem reflectir.

- Olha! Olha! Você sabe de repente que era um fato-macaco?

- E levava alguma coisa na cabeça? - perguntou York muito depressa.

- Não sei nada disso!

- Faz ele reparações no prédio, nos radiadores, por exemplo, ou a coisas desse género?

- O aquecimento não é da minha conta - respondeu o porteiro evasivamente.

- Viu-o alguma vez com um boné de pala? O porteiro fez um sinal afirmativo.

- Sim, quando sai. Lembro-me agora. Ele disse-me que tinha a cabeça sensível. Por causa do aquecimento.

- E leva uma caixa de ferramentas, de folha?

- Com certeza! É preciso que tenha uma. Tinham chegado abaixo. York agradeceu ao porteiro

em termos calorosos.

- Foi muito atencioso - disse ele. - Infelizmente, não posso gratificá-lo, porque apareceria ainda alguém para falar de suborno de testemunha.

- Ninguém saberia nada - disse o homem ingenuamente.

- Decerto que não - exclamou York. - Tenho confiança na sua discrição. Seria muito bonito da sua parte não dizer nada se recebesse dinheiro de mim, e estou certo de que nada diria se o recebesse, ou se o tivesse recebido. Mas é preciso que sejamos correctos. Utilizarei esta gorjeta para um bom fim...

- Qual? - perguntou o homem estupidamente, porque não tinha compreendido a ironia.

- O inocente suspeito, criado pela defesa - declarou York. - Se um dia se encontrar em dificuldades com as autoridades, e Deus sabe como isso acontece tão facilmente!, um dia diz-se de mais, num outro não o bastante, ou então esquece-se qualquer coisa, e depois as pessoas não vos acreditam e arranjam lenha para vos queimar..., enfim, resumindo: se algum dia se encontrar num caso parecido, não hesite, dirija-se a mim. Chamo-me York. Encontra a minha morada na próxima edição da lista telefónica.

Antes que o porteiro tivesse podido responder qualquer coisa, York tinha dado meia volta e, levando Melle Mayer pelo braço, dirigiu-se para a saída. Ainda não tinha lá chegado, já o porteiro o chamava:

- Sr. Doutor!

York parou e voltou-se lentamente.

- O que há ainda? - perguntou, num tom aborrecido.

- Aí está... (O homem hesitou e aproximou-se.) Quer dizer, não. Não, na realidade nada. Não, nada...

- É pena - disse York. - É pena que você tenha esquecido outra vez alguma coisa...

E saiu.

- É pena realmente! - repetiu no passeio.

- Oh!, ele voltará, aquele - animou-o Melle Mayer. - Tenho a impressão de que vamos tornar a vê-lo não tarda nada. Não vai ter um instante mais de sossego. Ele não é tão estúpido! Compreendeu perfeitamente!

- É engraçado! - disse York.

- O que é engraçado? - perguntou Melle Mayer.

- Tenho subitamente uma fome canina.

- É engraçado! - repetiu Melle Mayer.

- Porquê?

- Porque... eu também. Ainda não almocei.

- Mas julgava que sim.

- Oh!, disse aquilo por dizer!

- Gostaria bem de a convidar - disse York, com pena. - Mas, como sabe, não tinha mesmo dinheiro suficiente para pagar o táxi.

- Vou emprestar-lho - propôs ela. - Tenho o bastante.

- Mas não posso aceitar - exclamou ele.

- Sim, mas sim - disse ela. - É o senhor que me convida.

Numa rua transversal, procuraram um restaurantezito que Melle Mayer conhecia. Serviam-se ali refeições quentes a toda a hora e os preços eram baratos. Sentaram-se num canto sossegado, numa mesa onde a toalha estava limpa. O grande aperto do meio-dia tinha acabado há muito tempo, ninguém viria incomodá-los ali. Uma criadita aproximou-se com a amabilidade superficial reservada para os turistas de passagem.

York colocou o seu bloco e a sua caneta ao lado do prato.

- O que quer anotar? - perguntou Melle Mayer.

- O nome do culpado - disse York gravemente.

- Encontrou-o?

York aprovou com a cabeça.

- Crê que é ele?

- Quem, o porteiro?

- Sim.

- Era bom de mais para nós!

- Em todo o caso, é suspeito.

- É preciso que o seja suficientemente. York carregou na palavra «suficientemente».

- Eu - disse Melle Mayer - inscrevê-lo-ia como suspeito. Em todo o caso, ele sabe mais do que aquilo que nos disse, e do que confessou à polícia.

- Bem - disse York, inscrevendo a palavra «porteiro» no seu canhenho.

- A polícia interrogou o fogueiro?

- Tanto quanto eu saiba, muito superficialmente. Uma simples questão de rotina. Não era suspeito e, à hora do crime, já tinha saído do prédio. Vou exigir a convocação dele como testemunha.

- Confrontaram-no com o jovem Baldwin?

- Porquê?

- Mas... talvez que o famoso serralheiro-mecânico fosse ele!

- Ah!, está bem! - disse York, e inscreveu no seu bloco «fogueiro-mecânico».

Depois olhou para a empregada, que, duma tigela estragada, deitava o caldo para o seu prato. Pareceu-lhe melhor do que se conjecturava da tigela estragada e da indiferente empregada. Ele gostava imenso de sopa. Melle Mayer observou-o atentamente durante um instante. Ela não tinha encomendado aquilo.

- E, se - perguntou - esse fogueiro e esse serralheiro-mecânico são duas pessoas distintas, porque não se ouviu o fogueiro durante mais tempo? Porque não se procurou o serralheiro-mecânico activamente? Na realidade, a polícia não se cansou!

- Excelente! - disse York, empurrando o seu prato. - Não, não a polícia, a sopa! Para responder à sua pergunta: a pouca sorte quis que todas as dúvidas convergissem para Hubert Baldwin. Percorri os jornais; o delegado respondeu a um jornalista que lhe perguntava porque não se tinham seguido outras pistas: «Porque não as havia!»

- Mas nós sabemos agora - exclamou Melle Mayer

- que há qualquer coisa que não pega nesta história. Senão, o porteiro ter-se-ia comportado doutra maneira!

- Sim. Desgraçadamente, o jovem Baldwin já se tinha conduzido antes de tal modo que, infalivelmente, devia atrair sobre si todas as desconfianças.

A empregada trouxe o prato do dia. Melle Mayer serviu o seu patrão: cozido e legumes.

- Está a servir-me de mais! - protestou ele, sem convicção.

- O senhor é o homem! - disse ela -, e vai mesmo tomar mais um pouco de carne. Não - exclamou ela, antes que ele pudesse opor-se -, nada de protestos!

- Ele conduziu-se como sendo o único culpado possível - disse York, saboreando o cozido. - Está esplêndido - disse -, muito tenro! Era preciso saber a quem Mme Stringfors emprestou dinheiro e se outras pessoas sabiam que ela o tinha emprestado. (York olhou na sua frente e espetou um bocado de cenoura com o garfo.) Além disso, o culpado podia muito bem não ter pedido emprestado nenhum dinheiro, mas ter vindo simplesmente buscar algum...

- E essa mulher que falou connosco? Talvez saiba mais do que disse?

- Em todo o caso, vou pedir que a convoquem e interrogo-a eu próprio ainda uma vez - prometeu York.

- Como se chamava então o famoso técnico-construtor? - perguntou Melle Mayer.

- Quer dizer Braun?

- Sim.

- Porque me pergunta você isso?

- Porque fez uma discrição de tal modo detalhada do acusado...

- Talvez já tivesse visto Hubert várias vezes e sabia, por conseguinte, como estava vestido.

York tomou nota: «Perguntar a Hubert pelo fato.»

- E essa mulher que viu Hubert, quando se encontrava diante do receptáculo do lixo? Como se chama ela?

- Mas, Mayerzinha, nós não podemos suspeitar de todas as testemunhas! (York sorriu.) A opinião não gosta disso, os jurados também não, nem a polícia, nem a acusação, e isso incomoda o juiz. Não quero, de forma alguma, um processo em que toda a gente estará contra mim. Não procuro o escândalo, mas um sucesso para Hubert. Portanto: uma absolvição e devo provar que ele está inocente.

- Mas não o disse o senhor mesmo, quando desci a escada correndo, que não me tinha visto lá grande coisa?

- Temos de reflectir nisso seriamente. Hubert assegura que não viu Mme Merck, mas estava transtornado, talvez não se lembre disso. Desce portanto a escada - York tentava reconstruir o encontro -, dá alguns passos em baixo na escada em direcção da testemunha, avista-a, assusta-se, talvez inconscientemente, pergunta a si próprio, talvez: «Devo dizê-lo? Não o devo dizer?» Era ainda tempo para isso. Se se conduziu desta maneira, ela teve tempo de o observar. Hubert reconhece, ele próprio, que, ao deixar o cadáver de sua tia, estava agitado pelos mais contraditórios sentimentos. Talvez estivesse também reflectindo em frente da porta de Braun e continuasse o seu caminho correndo.

- E se isso não se tivesse passado assim?

- Pois bem!, naquele momento penso que seria preciso perguntar a mim próprio se, no caso presente, em que não somos juízes, mas parte, nós avaliámos bem o tempo que lhe foi preciso para passar a correr.

- Que quer dizer? - perguntou Melle Mayer, afastando o seu prato vazio e curvando-se para ele.

York mastigava, deliciado, um bocado de cozido.

- Talvez, começou... enfim, quero dizer que poderia ser possível que eu não desejasse a tal ponto vê-la passar a si. Você compreende?

- Porquê?

York olhava fixamente o seu prato, sem responder.

- Coma - disse Melle Mayer, numa voz desanimada. - De contrário, vai ficar tudo frio. Mas... -não pôde deixar de perguntar de novo - porque não tinha empenho a tal ponto de me ver? Mesmo inconscientemente?

- Oh! - disse York, suspirando -, porque isso me conviria grandemente!

 

UM TESTEMUNHO,.. ESPONTÂNEO!

Quando voltaram ao escritório, aguardava-os uma surpresa. Novotny estava diante da porta. Esboçou um sorriso contrafeito.

- Olha! - exclamou York. - Eis uma surpresa! Melle Mayer abriu a porta e ouviu York perguntar:

- Teria por acaso esquecido alguma coisa em sua casa?

- Não! Não! Sr. Doutor! - exclamou Novotny. - Pelo contrário! É uma história estranha...

Melle Mayer acabava de tirar a correspondência da caixa do correio.

- Alguma coisa importante? - perguntou York. Havia, com efeito, qualquer coisa importante na correspondência: a data do processo estava fixada.

- Aqui está - balbuciou Novotny -, gostaria... York não o ouvia. Segurava na mão o documento oficial, como se já visse ali o veredicto, e olhava sem ver.

- Melle Mayer - disse ele, numa voz velada -, chame Suzanne Rauschenbach, peço-lhe. Tenho de lhe falar mais uma vez.

Melle Mayer anotou no seu bloco.

- E previna também o pai...

Estendeu-lhe a notificação, rubricada com uma assinatura ilegível e com o carimbo azul da administração.

- ... uma espécie de consulta - recomeçou Novotny. - Pagarei o preço, Sr. Doutor. É que, compreende, a gente fica de tal maneira desarmada diante dum tribunal !

- Venha - disse York, suspirando, e abriu a porta do seu gabinete. - Sente-se, Novotny. Não, não atrás da secretária, aí é o meu lugar. Ali! Venha. Esta poltrona é para você.

Deixou-se cair na cadeira e poisou os dedos curtos e grossos na secretária. Depois, numa voz cansada e indiferente, perguntou:

- Então?

- Gostaria - explicou Novotny pela segunda vez -, uma espécie de consulta...

- Olha! - exclamou York, tirando os óculos e esfregando os olhos -, vem-me qualquer coisa à ideia. Você deveria estar em condições de me informar. (Pareceu reflectir.) Sim. Você deveria sabê-lo.

- Então o quê? - perguntou Novotny com voz rouca.

- No átrio onde foi encontrada Mme Stringfors, como está colocada a porta de entrada e quantas portas há ali ainda?

Novotny respirou e reflectiu.

- A divisão é quadrada? - continuou York.

- Dois metros e meio por quatro, ou três metros por quatro...-disse Novotny.

York desenhou um ângulo recto.

- A porta de entrada encontra-se no lado mais curto ou no lado mais comprido?

- No lado mais comprido.

- Ao meio?

- Sim, pouco mais ou menos ao meio.

- E em frente da porta de entrada?

- À esquerda é a sala de estar, à direita o quarto de dormir.

- E na parede da esquerda?

- Não há porta.

- E na parede da direita?

- Duas, não três portas.

- Que vão ter aonde?

- À cozinha, à... (Novotny teve vergonha de ser mais exacto) e à casa de banho.

York mostrou o esboço a Novotny.

- Assim, pouco mais ou menos? Novotny fez sinal que sim.

- Sabe como estava mobilada esta divisão?

- À esquerda da porta de entrada, o vestiário.

- E sobre a parede, em frente da porta de entrada?

- Ali - lembrou-se Novotny - há um móvel.

- Um armário?

- Não, um móvel baixo. O telefone está colocado em cima.

- Está bem. Já chega. Não, uma coisa ainda. Que género de portas?

- Que quer o senhor dizer? - perguntou Novotny.

- Portas maciças de madeira, ou portas envidraçadas?

- Apenas portas de madeira, como todas as portas de entrada do prédio, laçadas sem brilho.

- Laçadas sem brilho?

- Sim.

- Que pena!

York olhou para o lado e reflectiu, ou fingiu.

Não sabia muito bem o que tinha esperado fazendo aquela pergunta, mas tinha-lhe parecido que ela lhe ia trazer um esclarecimento. Não sabia, além disso, o que este esclarecimento lhe teria trazido a mais e, no entanto, tinha a impressão de que acabava de perder uma esperança.

- Então - perguntou num tom desagradável -, de que se trata?

- Aqui está - disse Novotny. - É para um amigo meu. Está convocado pelo tribunal. É uma pessoa de categoria. É chamado como testemunha.

- Ah!, bem - fez York, fingindo ter escutado mal. - Espero que não tenha feito um depoimento falso. Poderia trazer-lhe sérios aborrecimentos!

- Não, não, Sr. Doutor, nem falso depoimento, nem mentira.

- Bom. Então o quê?

- Está bem!, cá vai. Há qualquer coisa que ele esqueceu completamente. Compreende... o nervoso, a emoção, a polícia, o juiz instrutor... pode-se bem esquecer qualquer coisa.

- É muito amável, Novotny - felicitou-o York -, de dar prova de tanta compreensão com respeito ao seu amigo. Para mais, é uma sorte que seja testemunha. Quando um acusado esquece qualquer coisa, servem-se disso contra ele.

- Não é tão grave, Sr. Doutor. Isso não diz respeito ao assassino.

York bateu com a palma da mão em cima da secretária.

- O quê! - exclamou ele. - O seu amigo esqueceu qualquer coisa num processo por assassinato? E você diz que não é grave? E porquê assassino? Já se condenou o homenzinho?

- Não, não - balbuciou Novotny, assustado. - Mas estava escrito no jornal...

- No jornal - exclamou York, indignado.

- E toda a gente disse...

- A gente! A gente! (York levantou-se dum salto.) É ainda uma sorte que as pessoas não sejam os juízes! Porque, se o fossem, recairíamos em plena Idade Média. E sabe o que aconteceria então ao seu amigo?

- Não - fez Novotny, humedecendo os beiços. - Mas ele não o fez de propósito.

- Era o que faltava! - resmungou York. Depois, menos zangado: - Então, o que esqueceu ele? - e meteu a cabeça entre as mãos.

- Bem, aqui está, ele esqueceu-se de dizer... Novotny limpou o suor que lhe escorria da testa.

- Novotny, não tenho assim tanto tempo a perder - disse York, com impaciência.

- Ele esqueceu-se de dizer que o... enfim, que a vítima tinha emprestado dinheiro a alguém.

- A vítima?

- Sim, o... a...

York levantou-se e curvou-se por cima da mesa para Novotny, que recuou aflito.

- Era um homem ou uma mulher?

- Uma mulher.

- Mme Stringfors? - perguntou York com aspecto cansado.

Novotny ficou calado.

- Devo fazer-lhe notar - rosnou York - que em minha casa as coisas são mais fáceis que na polícia. Sabe o que é um interrogatório ininterrupto?

- Sim, sim - apressou-se a dizer Novotny. - Mme Stringfors.

- Ts! Ts! Ts! E o seu amigo só se lembra disso hoje?

- Não. Ele lembra-se disso há muito tempo, mas que quer! Não teve coragem... Não sabe o que há-de fazer. Com a polícia, com o tribunal, é a tal ponto complicado!

- A quem tinha Mme Stringfors emprestado dinheiro?

Novotny hesitou e pôs-se a voltar a boina entre as mãos.

- A quem? - repetiu York.

- Ao Sr. Merck.

- Quem é este senhor?

- É o filho de Mm" Merck.

- Merck, Merck - murmurou York. - Parece-me que esse nome não me é estranho!

- Ela habita no nosso prédio, no quarto andar, porta 16.

- Ah!, sim! A mulher do receptáculo do lixo. Recordo-me. (York folheou o seu relatório.) Aqui está - exclamou ele. - A testemunha Clara Merck. Ela viu Hubert descer a escada naquela noite.

- Sim. Clara.

- E o filho dela pediu dinheiro emprestado a Mme Stringfors?

Novotny fez um sinal afirmativo.

- Sabe quanto?

- Oh!, bastante! Ele vendeu o seu velho carro e comprou com isso um novo.

- E que idade tem esse Sr. Merck?

- Cerca de trinta anos, talvez um pouco mais.

- Que profissão tem?

- Diz que é representante. Chama-se Carl. Carl com um C.

- E você pensa que Mme Stringfors emprestou ao Sr. Merck a quantia que lhe faltava, depois da venda do carro velho, para poder comprar um novo?

- Sim, sim - disse Novotny com prontidão. - Ela emprestou-lha.

- Você supõe-o, ou você sabe isso?

- Mme Stringfors disse-mo ela própria!

- Quer dizer ao seu amigo? Novotny corou imenso.

- Sim, com certeza, ao meu amigo...

- Não minta - disse York, bruscamente. - Foi a si que ela o disse.

- Uma vez - murmurou Novotny, com voz sumida. - Ao passar. Foi por isso que o esqueci.

- E não sabe nada mais a respeito doutra gente a quem ela teria igualmente emprestado dinheiro?

- N... n... não!

York fingiu acreditá-lo.

- E agora quereria saber o que deve fazer?

- Sim.

- Vá imediatamente dizê-lo à polícia. Mas, na realidade, imediatamente.

- Tenho mesmo de ir? - perguntou Novotny numa voz lamentosa, como se se tratasse para ele de ir ao dentista.

- Com certeza! E já! E lembre-se bem: uma testemunha não deve acrescentar nada, e nada omitir. Deve dizer toda a verdade. Portanto, cuidado! Não acrescente nada.

Novotny levantou-se e inclinou-se desajeitadamente.

- E sobretudo - recomendou York -, no caso de se lembrar ainda de alguma coisa, não omita nada.

- Não, não, nada - prometeu Novotny.

York estendeu-lhe a mão. Quando o porteiro, muito apoquentado, alcançou a porta, chamou-o uma última vez.

- Vou mandar-lhe a minha conta. Pela consulta. Novotny cumprimentou, muito perturbado.

- Oh!, mas com certeza, Sr. Doutor. Da melhor vontade!

 

QUEM TRATAVA POR TU Mme STRINGFORS?

Durante largo tempo, York ficou sentado à secretária a olhar fixamente para o bloco de papel branco. Assim encontrava-se a alguns dias da audiência. E, praticamente, não sabia nada. Ou, mais exactamente, sabia de mais ou não sabia bastante. Era conforme. Se, na realidade, o jovem Baldwin estava inocente, só o poderia ajudar na audiência. Quando muito, esperava fazê-lo. Se tivesse sorte... Era uma história desgraçada: um processo fundamentado sobre suspeitas, um acusado que começa por negar, depois confessa, em seguida desdiz-se.

A tese da acusação encadeava-se perfeitamente. Que a Mme Stringfors tivesse emprestado dinheiro, isso talvez só tivesse interesse para ele, York. Talvez ele lhe ligasse demasiada importância.

York pegou no seu canhenho e reviu todos os nomes que tinha anotado. Leu a palavra «porteiro» e sublinhou-a. Ao lado das palavras «fogueiro-montador», desenhou um segundo ponto de interrogação.

Era tudo o que podia fazer. Não podia fazer outra coisa: inscrever ao lado «Carl Merck» e desenhar um outro ponto de interrogação. Enfim, podia também acrescentar: «Braun, técnico.» Era bem possível que nesse próprio dia tivesse ainda espreitado pelo ralo. No seu

depoimento, que York verificou, Braun dissera: «Como me encontrava mesmo ao pé da porta de entrada, espreitei pelo ralo para o patamar, o que, de costume, não está nos meus hábitos.» Esta afirmação: «o que, de costume, não está nos meus hábitos», não agradava a York. Ele estava quase certo de ter sido observado. Ou, então, tê-lo-ia imaginado? Desejava isso inconscientemente? Estava a perder a sua objectividade? Acrescentou, portanto, um ponto de interrogação ao lado do nome de Braun e começou a reproduzir sobre o seu bloco a planta de entrada, acrescentou o vestiário à esquerda, e, em frente da porta de entrada, o móvel baixo sobre o qual estava colocado o telefone. Era entre esta porta e esse móvel que estava estendida a morta. York contemplou esse esboço como se ele lhe fosse dar a chave do enigma. De que porta e para que porta se dirigia a vítima? Ela devia ter caído, certamente, sem desconfiar duma armadilha. Não havia sinais de luta e nem sequer se tinha defendido. Teria o culpado entrado secretamente? Ou... York não ousou formular o seu pensamento até ao fim, o culpado seria tão íntimo que em momento algum ela teria podido imaginar que ele ia atacá-la? Era horrível supor tal coisa! Porque diabo não tinha escutado os conselhos de seu pai e não se tinha tornado num procurador?

Destapou a caneta: devia também anotar o nome do acusado, não era senão justo, porque era bem preciso admitir que Hubert Baldwin era suspeito. A questão era saber se ele tinha dito tudo e, no caso afirmativo, se era exacto. Realmente, o que lhe tinha dito o rapaz parecia possível. Mas porquê este Novotny continuava a esconder que tinha pedido dinheiro emprestado à morta? Porque tentava ele dirigir as suspeitas sobre Merck? Porque é que Mme Merck tinha descrito Hubert com tantos pormenores. Pretendia ela assim proteger o seu filho? Suspeitava ela, temia ela qualquer coisa?

Ele anotou: «No decurso da audiência, interrogar a fundo Mme Merck.»

Melle Mayer abriu a porta. York sobressaltou-se como se ela o tivesse surpreendido a fazer qualquer coisa repreensível.

- Suzanne Rauschenbach - anunciou-lhe a secretária.

- Que entre! - disse York, e aclarou a voz. - Poderá você fazer-nos café?

- Acabo de pôr a água a aquecer...

- Já sabia - disse York sorrindo - que você ia adivinhar o que eu desejava.

Depois levantou-se para cumprimentar Suzanne Rauschenbach.

- Sabe - perguntou ele o mais alegremente que pôde - porque lhe pedi para vir esta noite?

- Não - disse Suzanne, com espanto.

- Eu, também não, imagine - confessou York. - Você vai tomar uma chávena de café comigo!

- Sim, com muito gosto! ,

- Talvez que eu só lhe tenha pedido para vir porque... (York fez um gesto para oferecer uma poltrona à sua visita e sentou-se a seu lado diante duma mesa baixa)... porque você está tão maravilhosamente - ele hesitou -, tão maravilhosamente convencida da inocência do Hubert.

- Mas o senhor? O senhor não o está?

York sorriu, para ganhar tempo, e depois disse:

- Para si, minha menina, é mais fácil. Infinitamente mais fácil. É levada por um sentimento profundo, que lhe dá certeza. Eu, pelo contrário, só tenho um montão de papéis... a verdade... ou mentiras! Talvez seja tudo falso e a verdade esteja algures. Talvez que eu esteja hipnotizado por qualquer coisa que não conduz a nada, ou que eu tenha já a solução entre as mãos, e não saiba o que lhe hei-de fazer. Talvez me tenha detido diante da porta certa e me tenha ido embora.

- Em todo o caso - exclamou Suzanne -, o Hubert não é o culpado!

- Se eu ao menos - suspirou York - tivesse a mínima prova!

- Não tem ainda nada! York baixou a cabeça.

- Tenho - em parte - exactamente o que não queria ter.

- Quer dizer?

- Vou pôr em dúvida os depoimentos das testemunhas, vou criticar o trabalho da polícia e considerar insuficiente todo o inquérito.

- Mas é maravilhoso!-exclamou Suzanne.

- Você avalia exageradamente a objectividade do tribunal criminal. Há coisas que põem as pessoas de mau humor, mesmo se juram que não desprezam nada do que poderia ser a favor ou em detrimento do acusado. Indagam mais o que poderia sobrecarregá-lo do que aquilo que poderia ilibá-lo.

- E o que é que estaria a favor de Hubert?

- Se o que tinha dito era realmente incontestável, se - York hesitou -, se, na verdade, ele não escondeu nada. E se você própria... não escondeu nada também, espero.

Ela olhou-o com olhos arregalados e sinceros.

- Não - disse ele -, não, certamente não. Em todo o caso, não de propósito.

- É isso, justamente! Talvez que saiba qualquer coisa muito importante, e que não lhe compreenda a importância! E, a mim, isso poderia servir-me. Esbarra-se contra uma parede quando se procura a verdade - lamentou-se York.

Melle Mayer entrou com o café, encheu as chávenas e tornou a sair.

- Foi certamente uma vez a casa da tia de Hubert? - continuou York, estendendo para a rapariga o açucareiro e o boião de nata.

- Sim, já lho disse. Isso não foi muito agradável. Diante da tia, Hubert procedia para comigo duma maneira completamente diferente.

- Procedia como?

York mexia com a colher na chávena.

- Parecia um rapazinho nada seguro de si. Ela exercia sobre ele uma forte influência...

- E Mme Stringfors, que impressão lhe fez ela a si? Pode dizer-mo objectivamente?

- Parecia muito mais nova do que era na realidade. À primeira vista também, de preferência bem, como dizer?, culta. Muito autoritária, muito senhora. A seguir, esta impressão foi-se apagando, porque ela abandonava-se e tornava-se bastante ordinária. Primeiro foi muito amável comigo, mas só aparentemente. Fez-me compreender sem ambiguidade que não podia suportar-me.

- Isso não é uma coisa que tenha imaginado?

- Não. São coisas que uma mulher, uma rapariga, adivinha perfeitamente.

- E Hubert? Tinha-o notado também?

- Não. Não deu por isso senão quando lho fiz observar. Depois, quando voltámos a casa.

- Por exemplo?

- Ela fez isso com muita habilidade. Pôs-se a censurar raparigas que tocavam piano, dizendo que eram todas umas simplórias. E, mesmo no fim, exclamou: «Oh!, tinha completamente esquecido que você também, você toca piano!» Em seguida disse que entre os empregados, mesmo os chefes de serviço, não havia homens realmente dignos desse nome. Que apenas aquele que ousava arriscar tudo o que possuía era corajoso. E depois: «Oh!, desculpe-me! Acabo de me lembrar que o seu pai era também empregado. Guarda-livros, parece-me?»

«Não, respondi eu, procurador.» «Sim, sim, disse ela, enfim, guarda-livros, quê!»

- Pobre pequena - disse York, cheio de dó. (E reflectiu.) - Pensa que seja esse o género de Mme String-fors ou que ela só fosse assim agressiva consigo?

- Creio antes que não podia suportar ninguém perto dela que tivesse a menor personalidade. Era muito tirânica.

- Crê que fosse só no seu caso, ou em geral?

- Oh!, antes em geral!

- E Hubert, sobre que falou naquela noite?

- Oh!, quase que não disse nada. «Sim» e «Não» e «Obrigado» e «Se faz favor». Tive a impressão de que se arrependia de me ter trazido. Ele sabia que ao pé dela parecia lastimável. E talvez compreendesse também, pela primeira vez, que os seus pais, de quem se tinha queixado a mim muita vez, eram pessoas que valiam muito mais.

York serviu outra vez café à rapariga.

- Desculpe-me - disse ele -, mas há uma coisa que não me parece muito clara. Porque não impediu Hubert de tornar a ir a casa da tia? Porque o deixou lá ir a última vez?

- Devo ser completamente franca? - perguntou Suzanne.

- Se isso não a maça demasiado...

- Sabe, não é uma razão muito brilhante!

- Já esperava isso, faça ideia.

- Eu achava que era bem feito, para ela, que ele a explorasse!

- Então ele explorava-a? - perguntou York acautelando-se, de súbito muito atento.

- Talvez - retorquiu ela logo -, me expresse mal. Hubert não o fazia com certeza conscientemente. Mas, dessa vez que fui a casa dela, ela nunca deixou de falar da importância do dinheiro, e disse para comigo:

«Não é senão justo que ele lho tire, se ela lho dá!» Não é muito bonito, não é verdade? - perguntou, muito embaraçada.

- Em suma, esperava secretamente que um dia Mme Stringfors se encontraria sangrada financeiramente?

- Sim. Nunca desejei a sua morte, mas, pelo contrário, uma longa vida...

- ... com muito pouco dinheiro? Suzanne fez um sinal afirmativo.

- É preciso que ela a tenha magoado realmente - disse York, sorrindo -, uma vida sem dinheiro é interminável.

- Como é isso?

- Porque cada dia, e dia após dia, espera-se dinheiro. Conheço isso! Mas voltemos a esta famosa noite. Mme Stringfors disse qualquer coisa, naquela noite, que pudesse fazer-lhe supor que tinha relações com outras pessoas a quem teria podido emprestar dinheiro, ou que pudessem estar ao corrente da fortuna dela?

Suzanne reflectiu.

- Não, ela não disse nada nesse sentido. Ao contrário, insistiu várias vezes sobre o facto de que Hubert era tudo para ela.

- Portanto, não havia outras relações fora o Hubert?

- Um momento - exclamou de repente a rapariga, e levantou-se dum salto. - Estive quase a esquecer! Enquanto estávamos em casa dela, o telefone tocou.

- Ah!, bom! E então?

York levantou-se para pegar no seu bloco e na sua caneta.

- Mme Stringfors saiu para a entrada e respondeu. Quando voltou sorria nervosamente e disse-nos. «Foi um engano.»

- Sim? E então?

- Mas eu ouvi-a dizer distintamente, depois de ter atendido: «Agora não, volta a chamar-me mais tarde.»

- Você ouviu isso distintamente?

- Sim.

- Está pronta a dizê-lo perante o tribunal superior?

- Porquê? É assim tão importante?

- É tanto mais importante quanto é certo não ter a polícia podido encontrar rasto de nenhuma relação de Mme Stringfors. Ora, depois do que me disse, é necessário convir que ela tinha, pelo menos, UMA. Tratou realmente por tu essa pessoa?

- Posso jurar que disse: «Volta a chamar-me mais tarde.»

- E, naquele momento, o que pensou?

- Disse para comigo que ela representava uma comédia ao Hubert, visto que tinha dito por várias vezes que, fora ele, não tinha ninguém no mundo.

- Você fez notar isso ao Hubert?

- Tive intenção disso, mas primeiro esqueci-o, e em seguida...

- Em seguida?

- Pois bem! Depois ele descobriu sozinho que género de mulher era ela!

- Porque foi tão reservada, em presença de Hubert, nas suas apreciações sobre Mme Stringfors?

- Porque me dei conta de que, fosse como fosse, ele se desprenderia dela. Para mais, Hubert defendia sempre os que eram atacados pelos outros. Achava isso muito bem da parte dele. É verdade que ele atacava da mesma maneira tudo o que os outros defendiam.

York sorriu.

- Espero que não se ataque a si mesmo porque o defendo. Mas voltemos outra vez a esta noite que passou com ele em casa da tia.

Suzanne tornou a sentar-se e olhou de olhos muito abertos para York.

- Sim?

- Onde estava você?

- Na sala de estar.

York mostrou a Suzanne o esboço que tinha feito.

- Portanto, se a entrada é aqui, a sala de estar é bem ali, à esquerda desta divisão?

- Sim?

- E estavam na sala de estar, quando o telefone tocou?

- Sim, todos três.

- E o telefone tocou onde?

- Na entrada. Estava sobre a arca.

- O móvel que está ali, em frente da porta de entrada?

- Sim. Ouvi Mme Stringfors levantar o auscultador e responder.

- Que respondeu ela?

- Ela disse um número - o dela, provavelmente.

- Não o nome dela?

- Não, não, nada disso. Um número.

- E em seguida?

- Depois dum curto silêncio, disse: «Agora não, volta a chamar-me mais tarde.»

- E a porta que dava para a entrada estava aberta ou fechada?

- Entreaberta. Cerca de 45 graus.

- E o Hubért não notou nada?

- Não, estava a ler o texto dum envelope de disco.

- Vou informar-me para saber a quanto importavam os recibos de telefone de Mme Stringfors. Eles deveriam mostrar-nos se, na realidade, ela vivia ou não de tal maneira afastada do mundo.

York anotou qualquer coisa no seu canhenho.

- Não sei - disse radiante a Suzanne -, mas tenho a impressão de que a sua visita não foi inútil.

Há nesta cidade alguém que tratava por «tu» Mme Stringfors. Um momento...

York puxou o telefone para si e marcou o número de Baldwin. Quando este respondeu, York disse o nome e pediu desculpa de o incomodar.

- Pode dizer-me, senhor, em que momento esteve em contacto, pela última vez, com a sua irmã? Não, quero dizer, exactamente quando? E, depois, nunca mais a chamou? A sua mulher também não? E ela não tinha outros parentes? A sua irmã falou-lhe das relações dela? Porque pergunto isto? Só hoje soube que foi chamada ao telefone por alguém que ela tratava por tu. Não, não era o Hubert, não pode ser ele, porque naquele momento estava ao pé dela.

Depois, York disse ainda várias vezes «sim, sim» e «espero» e desligou.

- Não era também o Sr. Baldwin - disse ele a Suzanne -, já fez dois anos que não tornou a vê-la. A sua mulher também não. Não existem outros parentes e Baldwin não lhe conhece outras relações. Mas, durante os dois anos em que estiveram de mal, Mme Stringfors teve tempo de arranjar relações.

Ele sentou-se e colocou a caneta sobre o bloco.

- «Agora não, volta a chamar-me mais tarde» - murmurou York para consigo. - Não se diz isso senão quando se faz tenção de ter uma longa conversa da qual os visitantes não devem ouvir nada. Melhor ainda, eles não devem saber que ela conhece alguém que lhe telefona. E foi por isso que ela lhe disse: «Era um engano.» Se eu soubesse ao menos - suspirou York - quem se encontrava na outra ponta do fio naquele dia!

- O assassino, acredita? - perguntou Suzanne, aclarando a voz.

- Poderia bem ser! Mas como sabê-lo! York tirou os óculos e esfregou os olhos.

- Sim-continuou ele, ao fim dum momento. - Esta história do telefone, é preciso você falar nela na audiência. Conte-a como hoje, não acrescente nada, a menos que até lá se recorde de qualquer outra coisa.

Suzanne Rauschenbach tinha-se levantado; estendeu a mão a York.

- Vou fazer pedir pelo tribunal criminal os recibos do telefone de Mme Stringfors - disse ele como para consigo, e deixou cair a capa do bloco sobre a folha onde estavam inscritas as palavras: «Porteiro?», «Fogueiro-serralheiro?», «Carl Merck?», «Baldwin?» e o esboço da entrada.

Suzanne Rauschenbach ficou um momento indecisa em frente à porta. Depois abriu-a para se ir embora. Mas, antes que a tivesse fechado, York emergiu dos seus pensamentos e gritou-lhe:

- Pare!

Suzanne voltou à sala e perguntou com voz trémula:

- Que é?

York mostrou-lhe o esboço da entrada e colocou a mão sobre os nomes.

- Reconhece isto? - perguntou ele. Suzanne reflectiu um momento.

- Sim. É a entrada do apartamento da Mme String-fors.

- O esboço parece-lhe exacto?

- Sim, pouco mais ou menos...

- E as portas?

- Sim?

- Como eram as portas? Em madeira maciça, ou portas envidraçadas, ou quê?

- Portas maciças laçadas, em cinzento.

- Obrigada - disse York-, isso é bastante. Suzanne afastou-se pela segunda vez e York tornou

a sentar-se à secretária. De súbito ela exclamou:

- Não, espere...

Ela voltou em direcção à secretária.

- Posso examinar novamente o esboço?

York estendeu-lho, tapando os nomes com a mão.

- Falou de portas envidraçadas - explicou Suzanne. - Há efectivamente uma porta envidraçada na entrada, ali, quando se entra, sobre a parede da esquerda.

- Uma porta envidraçada? - disse York. - Sobre a parede da esquerda?

- Sim. Uma espécie de porta de batentes duplos. Mme Stringfors disse-nos ela própria que, nesse sítio, tinha feito abrir a parede para passar para a entrada do seu segundo apartamento e juntar assim os dois...

- Essa porta envidraçada, pode descrever-ma?

- Uma porta de dois batentes, como se chama isso? Ela fez um movimento com os braços.

- E a vidraça?

- Quatro ou seis vidros de cada lado.

- Vidro transparente?

- Sim, vidro para vidraças, mas tapado com tecido de cortinados.

- O que havia na outra divisão?

- Não sei nada disso, visto que as portas, como acabo de lhe dizer, estavam forradas de tecido.

- Obrigado - disse York, com voz desanimada -, desta vez, é realmente tudo!

Sentou-se, desenhou a porta envidraçada sobre a parede da esquerda e empurrou o canhenho para longe dele, com um gesto fatigado.

Sentia-se deprimido e descontente. Porque é que este rapaz se tinha conduzido duma maneira a tal ponto idiota quando encontrou o cadáver de sua tia? Perdido nos seus pensamentos, olhava para o seu canhenho, sem duvidar de que este continha já quase toda a solução do enigma.

 

O explosivo estava reunido, faltava só a mecha para lhe pegar fogo.

O telefone tocou:

- O Sr. Novotny gostaria de lhe falar - anunciou Melle Mayer. - O porteiro...

- Ligue-me para ele.

York esperou a ligação e depois disse o nome.

- Sou eu - disse Novotny. - Estou desolado de o vir maçar outra vez.

- Esteve na polícia?

- Sim, Sr. Doutor.

- E então?

- Disseram-me que não me preocupasse, que isso não tinha importância. De qualquer modo, para eles, o inquérito estava concluído.

- Naturalmente, suponho que isso o alivia muito?

- Oh!, sim, Sr. Doutor, muito. Mas lembro-lhe. Esqueci ainda qualquer coisa...

- Ainda? Você poderia ser professor, Novotny. Não se é distraído a esse ponto!

- Oh!, é apenas uma diferença - desculpou-se Novotny.- Mme Stringfors tinha um apartamento geminado. ..

- Sim, e então, o que é que esqueceu?

- Pois bem! Aqui está, Sr. Doutor. Na entrada, sobre a parede da esquerda, há uma porta envidraçada.

- Ah bom!

- Tinha-me esquecido completamente de lhe falar nisso, desculpe-me!

- Esteve na outra entrada?

- Sim. Fiz ali um armário.

- Onde?

- Mesmo atrás da porta. Para que ninguém possa passar por ali.

- Detrás da porta de entrada?

- Sim, no vão da porta. Ali a parede é muito espessa: havia bastante fundo para lá fazer um armário.

- Você diz: «Para que ninguém possa passar por lá.» O que é que o faz dizer isso?

- Mme Stringfors tinha medo da segunda porta.

- Nesse caso, porque é que não a entaipou completamente?

- Porque a administração não a autorizou.

- E porque é que ela tinha medo?

- Ela disse que não estava habituada a ter duas entradas num apartamento.

York perguntou a si mesmo se não tinha de perguntar outra coisa, mas não lhe veio nada à ideia.

- Bom!, pois bem!, então, obrigado! - disse ele, parecendo falsamente indiferente, como se o telefonema não oferecesse nenhum interesse para ele.

 

O DR. YORK ANDA À VOLTA.

- Na verdade - disse Mme York, levantando a mesa -, na verdade, Robert, era realmente tempo de te ires deitar.

Ela colocou as chávenas vazias, os pires e o bule num tabuleiro, depois, humedecendo o indicador da mão direita, apanhou as migalhas sobre a toalha, fê-las cair num prato, e, em seguida, compôs os seus bonitos cabelos grisalhos.

- Sim, menino - insistiu ela -, é preciso que vás

dormir.

Foi junto do filho e deu-lhe uma pancadinha nas

costas.

- Estás a ouvir-me?

- Não - disse York, de pé, em frente à janela-, não te ouço.

- O processo começa depois de amanhã - disse Mme York. - Tenta repousar um pouco. Não há defensor mais eficaz que um defensor que dormiu bem.

- E não há melhor acusado do que um acusado bem descansado. O acusado, o meu, também não dorme certamente. Estivemos a rever tudo ainda uma vez, tudo, ponto por ponto!

- Mas então? Devias estar sossegado!

- Justamente, não o estou - resmungou York.

- Porquê?

- Podemos ter esquecido qualquer coisa. Um ponto importante.

- Tu? Certamente não - tranquilizou-o a mãe, que o admirava perdidamente. - Tu esqueces-te de comer, de lavar os dentes, de dar o nó da gravata, mas, quando se trata da tua profissão, nunca esqueces nada.

- Oh!, por algum destes pequenos processos que tive até agora - disse York com o nariz na cortina. (Depois calou-se durante muito tempo.) Gostaria de saber - disse por fim - se ele pensa nisso, ele também...

- Quem?

- O delegado do ministério público.

- Porque pensaria ele nisso? - perguntou Mme York, ingenuamente.

- Se ele pensa nisso agora, depois das 11 horas da noite. Afinal de contas ele é funcionário. Pergunto por vezes a mim mesmo de que massa são feitos os promotores de justiça.

- Oh! - exclamou Mme York -, são funcionários; precisam de ter as nádegas bem estofadas.

- Sim, mas não só isso! - disse York, voltando-se para a mãe, isso não chegaria.

- Que mais então?

- O coração bem couraçado ou...

- Ou o quê? - perguntou a mãe, com voz sumida, passando a língua pelos lábios.

- ... ou não ter coração nenhum!

- Oh!, ouve, cala-te! Vamos dormir! York voltou-se de novo para a janela.

- Suponhamos - começou ele - que a acusação o vence, que os jurados declaram Hubert Baldwin culpado (é só raramente que os jurados se deixam influenciar mais pela defesa que pela acusação!). Bom! Admitamos que Hubert seja condenado e que esteja inocente.

O que faz o delegado do ministério público quando se descobre a verdade vários anos depois? Contenta-se em dizer: «Toda a gente se pode enganar?» Recomeça no processo seguinte, no qual também não tem mais provas, a requerer um castigo exemplar? Ou torna-se então mais humano?

- Pensas de mais! É preciso que te vás deitar.

- Nunca se pensa de mais - contradisse York. - Chega-se a resolver quase tudo, reflectindo. Os maiores progressos só foram realizados graças ao pensamento. É um velho finório - continuou ele a monologar. - Põe um pouco de confusão nos seus requisitórios, mas isso serve! Ele pode transformar um requisitório de tal maneira que as pessoas simples imaginam que a causa está entendida e que a defesa está ali só para atenuar a pena.

- Mas, então, a história é muito simples - disse Mme York.

- Simples?

York sorriu com cansaço.

- Mas sim! É preciso não o deixar chegar até ao seu requisitório. É preciso que, desde a inquirição das testemunhas, tu tenhas reabilitado tão bem o teu cliente de todas as suspeitas que ele se veja obrigado a retirar imediatamente a acusação.

- Está certo. É o que vou fazer.

- Bravo! E agora vai meter-te na cama.

- Não.

- Como não? Porque não?

- Porque não posso proceder na audiência como tu supões.

- Mas enfim! - exclamou a mãe -, porque não?

- Porque ela está morta!

- Porque ela...? Quem... ela?

- A mulher.

- Quem? A vítima?

- Saber... - murmurou ele -, se foi por querer ou se foi o acaso?

- Na realidade, de quem falas tu?

- Da senhora de idade que encontrámos no sétimo andar em frente do receptáculo do lixo.

- A senhora que sabia que Mme Stringfors tinha emprestado dinheiro?

- Exactamente. Ela tinha ido ver uns amigos; ao voltar, foi atropelada numa ruela escura. Dois dias depois de nos ter falado.

- O motorista estava certamente embriagado.

- Talvez estivesse, pelo contrário, muito lúcido!

- O que te faz dizer isso?

- Para ter a certeza de não falhar.

- Não lhe fizeram uma análise de sangue?

- Não se pode fazer uma análise de sangue a um motorista que foge - disse York, abanando a cabeça.

- E o carro? Devia estar danificado? Foi encontrado?

- Foi encontrado, efectivamente. Mas, no momento em que o desastre se deu, já tinha sido assinalado como roubado.

- E é por isso que dás tratos à imaginação?

- Oh!, não é somente por isso!

- Há outra coisa?

- Sim. Cometi um erro.

- Um erro grave?

Mme York ficou assustada e colocou dois dedos da mão esquerda sobre o lábio inferior.

- Quer dizer que, na realidade, eu não sei mesmo se foi ou não um erro.

- Então, era ou não era?

- Parece-me que me deveria ter interessado mais pela vítima - desta vez falo de Mme Stringfors -, à sua maneira de viver, às suas relações, em vez de...

- ... em vez de?

- ... de procurar a todo o custo um suspeito mais suspeito que o da polícia.

- Mas, enfim!, Robert - exclamou Mme York -, tu és o advogado de defesa, e não inspector da polícia judiciária!

- É esse o aborrecimento - resmungou York. - Seria preciso que fôssemos tudo ao mesmo tempo. Um inspector da polícia judiciária não precisa de ser outra coisa...

York continuou a fixar a cortina. Era um cortinado, quase transparente, e, no entanto, não podia distinguir-se nada no exterior, excepto a lâmpada dum candeeiro que se balançava ao vento, na rua, à sua direita.

Mme York tinha saído da divisão, colocado o tabuleiro na cozinha, apagado a luz. Ela voltou à sala. O filho estava ainda de pé, em frente da janela.

- Enfim! - exclamou ela, com voz descontente.

- Basta! Apago tudo e vai-te deitar.

- Espera - exclamou o filho, sempre à janela.

- Acende ainda uma vez.

Mme York obedeceu, sem compreender.

- Apaga ainda uma vez.

- Robert? O que se passa?

- É esquisito - disse York. - Agora que a sala está às escuras, vejo todos os pormenores na rua, mas, quando a luz está acesa, distingo apenas a lâmpada do candeeiro.

- Em que é que essa descoberta é tão importante? - perguntou a mãe, que se pôs a bocejar sem pôr a mão diante da boca, o que nela era um sinal de grande cansaço.

- É muito importante descobrir novas coisas - respondeu de repente York, com voz alegre - ou de tornar a descobrir coisas antigas...

- Vais enfim decidir-te a ir deitar-te? - perguntou a mãe, bocejando outra vez.

- Sim, desta vez estou bastante acordado para me ir deitar...

 

A IMPRENSA INTERVÉM.

Na altura da primeira audiência, os jornais tornaram a falar no assassinato de Mathilde Stringfors. A maior parte deles contentaram-se com o relatório da polícia e lembraram que os debates já tinham começado uma primeira vez, mas que o acusado se tinha ido abaixo pouco depois da abertura da audiência e que o médico de medicina legal não o tinha achado em estado de comparecer. Os cronistas judiciais não deixaram de mencionar que o Dr. Stark tinha desistido de o defender. Só três jornais, de entre os quais o de Paul Antal, publicaram o nome do novo defensor.

Antal tinha composto o seu artigo duma maneira muito diferente. Antes de tudo, relatou as circunstâncias dum assassinato acontecido na América muitos anos antes. Uma mulher tinha sido assassinada e, em seguida à inquirição de numerosas testemunhas, tinha-se conseguido determinar a marca e a cor do carro do pressuposto culpado; além disso, graças aos projécteis que se tinham encontrado, tinha-se podido precisar igualmente, com cem por cento de exactidão, as características da arma do crime. Um homem tinha lido o relatório do crime. Ele não tinha nada que ver com esse assassinato, mas acontecia que tinha um carro da mesma marca e da mesma cor que o do suposto assassino. Além disso, detinha por acaso uma pistola do mesmo modelo que aquela que tinha sido utilizada para cometer o crime. Este homem apresentou-se às pessoas que o tinham visto no mesmo momento em que o crime tinha sido cometido, e que, por conseguinte, podiam confirmar que, só por motivo desta circunstância, não podia ser o culpado. No entanto, nem o dono do restaurante onde tinha jantado, nem um barqueiro que tinha transportado na sua barcaça o seu carro, nem o encarregado duma bomba de gasolina, puderam recordar-se de o ter visto, apenas há dois dias, na hora do crime. Desesperado, o homem tentou persuadir outras pessoas a fornecer-lhe um álibi. Acabaram por denunciá-lo e as diligências tentadas por este homem inocente conduziram exactamente ao resultado contrário àquele que ele pretendia. Não só não tinha conseguido estabelecer um álibi, mas, além disso, tinha-se tornado suspeito. E, como todo o resto correspondia em absoluto em três pontos: o carro, a pistola, e que não podia fornecer um álibi, que, para mais, era iminentemente suspeito porque tinha pedido às pessoas para o reconhecer, foi declarado culpado e condenado à morte. Durante cinco anos esperou a execução da sentença, até ao dia em que, por fim, um novo defensor descobriu o verdadeiro culpado e arrancou assim o inocente à justiça humana.

«Para quê contar esta história?», perguntava Antal no seu artigo. «Não a conto para influenciar os jurados ou o tribunal. Conto-a para provar que ninguém pode ser tão desastrado como um inocente sobre a cabeça do qual se acumulam as suspeitas. Os verdadeiros culpados defendem-se de maneira muito mais verosímil. Esta comprovação não é da minha lavra; foi um psicólogo de grande nomeada que a fez ultimamente. No entanto, não quero dizer que alguém que se defenda duma maneira verosímil seja forçosamente culpado.

Mas quereria simplesmente chamar a atenção sobre o delicado encargo que espera o Supremo Tribunal da Justiça neste processo, quando se cometeram erros no decurso da investigação, erros que, hoje, alguns meses depois do crime, são irremediáveis. Pela ordem, esses erros foram os seguintes: depois de ter detido Hubert Baldwin, a polícia não seguiu nenhuma pista. Ouço ainda as palavras do delegado principal encarregado da investigação: «Se existissem outras pistas, teriam sido seguidas. Mas não as há.» Os habitantes do prédio não foram interrogados senão muito superficialmente e porque é costume. As declarações de duas testemunhas que viram fugir o jovem Baldwin (o que ele próprio aliás reconhece e que nunca contestou) foram tomadas tão a sério como se estas testemunhas tivessem assistido pessoalmente ao crime. Além disso, pode-se bem imaginar que uma pessoa que descobre um crime horrível fica brutalmente transida de medo e não se vai embora vagarosamente, mas, pelo contrário, a pernas para que vos quero. Parece-me que se deu demasiada importância ao facto de saber se o elevador funcionava ou não; além disso, o facto de ele ter funcionado antes e depois do crime não é uma prova, tanto faz que ele tenha trabalhado ou não na altura em que o crime foi cometido. O serralheiro de fato-macaco não foi procurado senão molemente, como se, na realidade, não se tivesse empenho em o encontrar, e não como um possível assassino. Só igualmente se interessaram de modo muito superficial com a vida e as relações da vítima. Quando se soube que esta tinha emprestado dinheiro, não se ligou a isso importância alguma. O desastre mortal acontecido a uma senhora de idade que habitava na casa do crime não prendeu a atenção suficientemente; foi atribuído ao acaso, enquanto o culpado não foi encontrado e o carro que guiava tinha sido roubado.

«Admitamos - continuou Antal - que a polícia e a justiça estejam cheios de trabalho. Mas a justiça é um serviço público que não pode enfraquecer na sua tarefa de rectidão. Trata-se aqui da felicidade ou da desgraça de um ou mesmo de dois seres jovens. Por maior que seja a confiança que se deva conceder à justiça, um só erro judiciário pode abalar por muito tempo a confiança da população nos seus magistrados. Certamente, pede-se muito à polícia e à justiça, muito mais do que se poderia razoavelmente pedir a qualquer outra organização humana, e ainda menos a qualquer indivíduo. Exige-se delas que não cometam erro algum no cumprimento das suas tarefas.

«Mas o que é permitido exigir com insistência é que, num processo baseando-se unicamente em suposições quando elas não podem provar indiscutivelmente a culpabilidade, se abstenham, pelo menos, contrariamente ao costume que se instaurou na nossa terra, de fazer pressão para obter uma condenação custe o que custar, pondo em relevo, no passado do acusado, factos que não têm nada, absolutamente nada a ver com o crime do qual se pretende o castigo. A acusação não deve ser nem o anjo exterminador da sociedade, nem o inimigo pessoal do acusado, como temos disso tanta vez a sensação. Se ela vê desmoronar as razões de queixa que julgava perfeitamente fundadas, a acusação não deve considerar isso uma derrota pessoal. Ter a coragem de abandonar a acusação em semelhante hipótese deveria ser moeda corrente. A bem dizer: a responsabilidade dos jurados no caso Baldwin é esmagadora. Possa a missão deles dar-lhes força para se saírem bem dela com honra. Deverão prender-se a tudo o que for versado nos debates pelo presidente, a acusação e a defesa. Possam eles não pronunciar o seu veredicto irreflectidamente!»

 

O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

York tinha-se sentado. Para acalmar a agitação, contemplava a sala de audiência. Os seus dedos corriam nervosamente entre os documentos do processo. Não podia queixar-se. O público tinha afluído. Os espectadores esmagavam-se sobre os bancos, mulheres na maioria. Ao fundo da sala, avistava boas faces gordas de donas de casa trazendo com elas as redes e os sacos das compras e, nas primeiras filas, algumas senhoras particularmente elegantes. Duas de entre elas encaravam-no com curiosidade. Deu por isso e, antes de erguer de novo os olhos, pareceu absorver-se durante um instante no seu processo.

À direita, em primeiro plano, encontravam-se os bancos da imprensa. Avistou ali Antal. Este cumprimentou-o e, quando ele lhe retribuiu o cumprimento, todos os jornalistas voltaram a cabeça para ele. York teve a sensação de que o cumprimento de Antal o tinha tornado mais interessante para alguns deles.

Em frente de York, no banco dos réus, estava sentado Hubert Baldwin. De cabeça baixa, olhava intensamente o sobrado. A seu lado, o guarda tinha cruzado as pernas e olhava fixamente para o tecto.

Em frente, do outro lado da sala, encontravam-se os jurados. Entre eles tomavam parte três mulheres. I Ele não teria querido para secretária nenhuma delas. Teve a impressão de que duas, pelo menos, se tinham vestido de novo para a ocasião. Sabia por experiência que, no caso de assassinato em que a vítima era uma mulher, não eram particularmente ternas para o acusado. Teria preferido muito mais não ter na sua frente senão homens. E que espécie de homens havia ali? York examinou-os uns após outros, procurando adivinhar qual de entre eles o escutaria melhor. Disse para consigo que não seria muito escutado por aquele que tinha os lábios finos, nem junto daquele que usava óculos de aros de ouro, tanto como junto do gordo de cabelos brancos e de olhos globulosos. Para eles, o defensor era qualquer coisa bastante semelhante a um cúmplice. Os outros pareceram-lhe decentes. Dois principalmente, um pouco gordos como ele próprio, que pareciam extremamente benevolentes. Além disso, foram os únicos que o cumprimentaram a distância com uma inclinação de cabeça prudente e tímida. York inclinou igualmente a cabeça com um leve sorriso. Depois arregaçou as mangas da toga e olhou para a esquerda: a cerca de três metros dele, o delegado do ministério público acabava de tomar lugar. York cumprimentou-o com uma inclinação muda e recebeu em resposta o esboço dum cumprimento. Depois, o delegado do ministério público deixou cair o processo sobre a carteira. Hubert estremeceu. Com o lenço que tinha escondido na manga direita da sua toga, York enxugou as mãos às escondidas. Sentia-se de repente mal disposto fisicamente. Teve a impressão de que o estômago se erguia como um balão e lhe comprimia o coração e os pulmões a ponto de lhe cortar a respiração. A testa molhou-se-lhe de suor, a língua secou-se-lhe completamente, a boca encheu-se-lhe dum gosto abominável. De repente teve consciência de que tudo o que tinha feito era em vão e que estava incapaz de ajudar o seu cliente. Ter-se-ia podido afinal pôr no seu lugar uma boneca articulada. Ela não teria conseguido nem mais, nem menos.

Um sussurro agitou a sala. O presidente, seguido dos seus dois juízes adjuntos e do escrivão, fez a sua entrada. Eles alcançaram os seus lugares. York tinha-se levantado como toda a gente. No banco dos jurados e nas filas dos espectadores, os cochichos acabaram. O escrivão declarou a sessão aberta contra o citado Hubert Baldwin, acusado de assassinato.

Em pouco tempo, o nervoso e a fraqueza de York desapareceram. Sentou-se como os outros; curvando-se para Hubert, disse-lhe:

- Vai ser chamado pelo presidente. Hubert fez um ligeiro sinal de cabeça. York encostou-se para trás e deitou um rápido olhar a Antal. Este fez de novo um sinal de cabeça ao seu antigo condiscípulo. De repente, York sentiu-se revigorado. O processo principiou normalmente. Não podia haver ali surpresa. O seu desenrolar tinha sido fixado rigorosamente. É estranho, pensou York, quantas regras imaginou o homem para controlar a sua existência: as regras da circulação, o processo perante os tribunais, os costumes do comércio, os grandes princípios da educação, os regulamentos desportivos e os da democracia. Como previam os autos judiciais do Supremo Tribunal de Justiça, o presidente devia lembrar ao acusado o libelo feito contra ele e proceder ao interrogatório de identidade: nome, apelido, idade, lugar de nascimento, religião, estado e profissão. Hubert respondeu a estas perguntas com voz velada, mas perfeitamente audível. O presidente era um homem de cabelos brancos, do qual se poderia legitimamente pensar que devia ser adorado pelos netos. Olhou para Hubert com atenção durante um bom momento, como se quisesse marcar o seu espanto ao ver neste tribunal este jovem vestido decentemente e de boas maneiras.

- Acusado - disse enfim, aclarando a garganta -, esteja atento ao que vai ouvir no decurso destes debates, e, especialmente, ao auto de acusação. - Fez uma pausa e acrescentou: - Trata-se, evidentemente, do vosso próprio interesse.

Hubert, em resposta, inclinou-se.

O presidente examinou o acusado uma vez ainda, como se procurasse decifrar no rosto dele qualquer coisa. Depois tossiu levemente.

- Da outra vez - continuou - o senhor desmaiou pouco antes da abertura dos debates, não é verdade?

- Sim - com efeito -, disse Hubert.

- Sente-se melhor, hoje?

- Sim - repetiu Hubert.

O delegado do ministério público tossiu com força. O presidente dirigiu-lhe um olhar, em primeiro lugar espantado, depois interrogador, e finalmente severo, o que lhe fez baixar a cabeça.

- Sabe - perguntou ele - que pode tomar notas no decurso da audiência?

- O meu defensor fez-me notar isso - respondeu Hubert.

- Bem. Sente-se.

York inclinou-se para a frente e colocou rapidamente a mão sobre o ombro de Hubert, que se tinha tornado a sentar.

- Pelo que vejo - disse o presidente, como se falasse consigo próprio - nenhum dos jurados aqui presentes prestou ainda juramento. Nós vamos então começar por proceder a esta formalidade.

Levantou-se com algum esforço e toda a sala fez o mesmo.

- Peço-lhes, senhores - disse o presidente, voltando-se para os jurados -, para me prestarem toda a vossa atenção.

- E pôs-se a ler lentamente e, distintamente, as frases seguintes: - «Vós jurais e vós prometeis perante Deus de conceder a mais escrupulosa atenção aos depoimentos reunidos a favor ou contra o acusado, de não desprezar nada que poderia ser-lhe favorável ou desfavorável, de observar fielmente as prescrições da lei que vós ides aplicar, antes de decidir o vosso veredicto neste processo, de não falar nisso a ninguém fora dos membros do tribunal, de não escutar nem a voz da simpatia, nem a da aversão, de não ceder nem ao medo nem ao espírito de vingança, de só vos decidirdes, com imparcialidade e firmeza, depois de terdes examinado os testemunhos prestados a favor ou contra o acusado e de terdes adquirido a certeza da qual vós assumireis a responsabilidade perante Deus e perante a vossa consciência.»

York, por sua vez, tinha seguido cuidadosamente o texto do juramento. O presidente não tinha omitido, nem acrescentado uma só palavra: sentiu-se mais leve.

Até ali tudo se desenrolava normalmente. É uma frase bem comprida, esta exortação aos jurados, disse para consigo, e seria mais compreensível numas frases mais curtas. Ele próprio tinha recomendado a Hubert para se expressar em frases curtas, porque seriam compreendidas melhor e, além disso, lhe facilitariam a defesa.

Chamados à frente do presidente cada um por sua vez, os jurados respondiam com uma voz que não era exactamente a deles: «Juro-o, e que Deus me ajude...»

Um pouco mais tarde, York fez uma observação que já o tinha impressionado como jovem estagiário em análogas circunstâncias. Assim que começava a leitura do auto de acusação, as caras dos jurados tornavam-se de pedra como se obedecessem às ordens de um encenador invisível. Ostentavam todos como uma máscara uniforme de severidade, que já não dava lugar nem a um sorriso, nem a uma expressão pessoal.

Um delegado do ministério público particularmente temível podia sombrear mais ainda estas caras. Um acusado podia provocar ali a indignação ou a severidade. Só um advogado hábil podia forçar este muro, acelerar o ritmo destes corações, despertar neles misericórdia, com a condição, todavia, de que fosse ajudado pelo acusado. Mesmo se lhe repetissem dez vezes seguidas para não escutar a voz da simpatia ou da aversão - como saber se eram movidos pela aversão quando reconheciam «culpado» ou pela simpatia quando declaravam «não culpado»?

Era agora a vez das testemunhas de ouvirem lembrar-lhes a gravidade do juramento. Lembravam-lhes também que, independentemente dos remorsos das suas próprias consciências, os falsos depoimentos eram puníveis. Depois as testemunhas abandonaram a sala e a leitura do auto de acusação começou.

York conhecia-lhe o conteúdo. Escutou por conseguinte distraidamente o tom monótono do escrivão. Esforçou-se antes por definir o estado de espírito do público, porque sabia bem de mais que o ambiente da sala se transmitia aos jurados, mesmo quando eles se gabavam de imparcialidade.

Era então censurado a Hubert de ter, na intenção de matar e depois roubar, atacado a vítima com um objecto contundente, dando-lhe três pancadas violentas na cabeça, que tinham provocado a morte imediata. Um arrepio percorreu a assembleia. Era horrível ouvir isso. A sala desabafou como um suspiro. Hubert encolheu-se mais sobre ele próprio, um nervo pôs-se a tremer debaixo duma das suas pálpebras. As faces dos jurados tinham-se tornado pálidas, contraídas e angulosas; revelavam-lhes um crime abominável, o crime dum ser abjecto que, por cobiça, por uma furiosa avidez de prazer, como o dizia o auto de acusação, tinha assassinado a única irmã de seu pai. A acusação não duvidava um só momento da culpabilidade- dele, primeiro porque o acusado tinha mudado no decurso dos seus depoimentos, que tinha confessado mesmo o crime, depois tinha-se contradito junto do juiz instrutor, tinha modificado novamente as suas respostas a conselho do seu primeiro defensor, depois tinha-se declarado outra vez culpado. Não era, além disso, a única coisa que o tornava suspeito; por outro lado, a acusação estava firmada por numerosas suspeitas. Pouco tempo antes do assassinato da tia dele, o homicida tinha comprado uma nova caixa de violino, rectangular, muito mais larga, por conseguinte, que um estojo vulgar, que toma mesmo a forma do instrumento. Quando saiu para ir ver a tia, tinha tido a precaução de deixar o violino em casa de uns amigos, para poder meter na caixa vazia o produto do roubo. Depois de ter antes negado, o acusado tinha acabado por reconhecer que na hora em que, segundo o relatório do médico de medicina legal, se tinha dado a morte da vítima, ele se encontrava não só no prédio, mas no apartamento desta última. Ele tinha mesmo deixado uma luva no local do crime.

Tinha sido avistado por duas testemunhas, Braun e Merck, no momento em que, correndo, abandonava o prédio. Do mesmo modo, uma terceira testemunha, o porteiro, Novotny, tinha ouvido, poucos dias antes do crime, uma discussão entre o acusado e a vítima, no decurso da qual o acusado tinha proferido uma ameaça. E esta ameaça devia ser tomada a sério, visto que mesmo o acusado o tinha sentido assim: ele tinha-o provado tentando fazer chegar às mãos da sua amiga, Suzanne Rauschenbach, um bilhete confidencial, no qual lhe pedia não informasse a polícia das altercações frequentes que o tinham oposto à vítima, durante o período que tinha precedido o crime. Todas estas suposições, que, consideradas isoladamente, eram insuficientes, tornavam-se, por motivos dos depoimentos contraditórios do acusado e duma série de outros factos acabrunhantes, motivos de suspeita suficientes para sobrecarregar Hubert Baldwin.

York aproximou a cadeira da mesa, desenroscou a tampa da caneta e preparou o seu caderno de apontamentos. A batalha ia começar.

Apenas as últimas palavras da acusação tinham sido pronunciadas, o presidente coçou a orelha direita, compôs os óculos, aclarou a voz e disse:

- Acusado, levante-se.

Hubert levantou-se e adiantou-se.

- Ouviu a acusação? - perguntou o magistrado.

- Sim, Sr. Presidente.

- Declara-se culpado ou não culpado?

York fixou Hubert, que se endireitou. Toda a gente retinha a respiração.

- Não culpado - disse Hubert.

- Bem. Não culpado - repetiu o magistrado, enquanto o escrivão começava a estenografar. - O presidente arrumou alguns papéis e disse, como se falasse com ele próprio: - Bom. Pois bem!, será preciso que nós ouçamos o que tem a dizer com respeito a esta acusação. Antes de tudo... (ele acabou por encontrar a folha de papel branco que parecia procurar)... antes de tudo, gostaria que me falasse um pouco da sua vida passada. Fale-nos do que nós não sabemos ainda. Por exemplo, das suas doenças de criança, dos seus acidentes, dos seus estudos escolares. Compreende-me?

Hubert fez sinal que sim.

- Fora do sarampo e duma gripe de vez em quando - começou ele - estive raramente doente em criança. Meus pais foram muito bons para mim. Era um aluno bastante bom, um pouco fraco nas matemáticas e em ciências naturais, até ao dia em que... - Hubert hesitou.

- ... em que já não atendi do mesmo modo os meus pais - disse por fim, para não nomear a tia dele.

- E quando se deu isso? - perguntou o presidente.

- Não posso dizê-lo exactamente, mas, pouco mais ou menos, cerca dos meus catorze anos.

- E passou de repente para a idade ingrata? Ou havia aí uma outra razão?

Hubert reflectiu. Não queria de modo algum denegrir a tia, estava isso combinado com York.

- Talvez fosse com efeito a idade ingrata - acabou por admitir.

- Que idade tinha, quando travou conhecimento com a sua tia?

Hubert corou.

- Catorze anos - pouco mais ou menos.

- Ah!, bom! - disse o presidente. - E, antes, não a conhecia?

- Não.

- Não se falava dela em sua casa?

- Sim, de tempos a tempos.

- Quando chegavam cartas dela, enviava dinheiro ou presentes?

- Não, ela não enviava nada, nem cartas, nem presentes. Não se falava dela senão quando o meu pai se preocupava a seu respeito.

- Afirma, por conseguinte, que até aos seus catorze anos a vossa tia não se importou nem consigo, nem com o irmão dela, quer dizer, com o vosso pai?

- Sim.

- E, um dia, ela apareceu de repente, sem prevenir ninguém?

- Sim. Estava viúva. Completamente vestida de preto.

- Sim - disse o presidente, depois de um momento de reflexão. - E então o que se passou? Ficou a gostar dela logo?

Ou só mais tarde? Como aconteceu isso? Pode contar-nos isso resumidamente? Hubert fez sinal afirmativo.

- Gostei logo muito dela. Porque... compreende, ela chegava da América, onde vivia à grande. Sabia montes de coisas, muitas mais, particularmente, do que as que nós aprendemos na aula de Geografia.

York pôs-se de pé, erguendo a mão.

O presidente olhou-o por cima dos óculos.

- Sr. Presidente, desculpe-me interrompê-lo, mas enquanto vós vos esforçais por conduzir estes debates duma maneira franca e imparcial, devo chamar a atenção sobre uma verdadeira incongruência...

O presidente olhou para York com espanto.

- No mesmo momento em que pronuncio estas palavras, um dos jurados ousa - o olhar do presidente deslizou para o banco onde os jurados tinham tomado lugar -, um dos jurados ousa ler o jornal. Alguém que, há poucos minutos, acaba de prestar juramento de escutar atentamente o que seria alegado aqui a favor ou contra o acusado. Um homem que lê o jornal durante o interrogatório do acusado não pode, toda a gente aqui chegará a um acordo, seguir os debates com a mais escrupulosa atenção! Peço-lhe uma vez ainda o favor de elucidar os jurados sobre o dever deles e pretendo determinar desde já que, se semelhantes faltas de atenção voltarem a repetir-se, ver-me-ei obrigado a formular as mais terminantes reservas sobre as medidas que daí poderiam vir a resultar,

York tornou a sentar-se com a sensação de ter marcado um ponto pelo menos em presença da imprensa e do público.

À sua esquerda, o delegado do ministério público fez um sinal de cabeça, mas ficou com o olhar fixo nos seus papéis.

York teve a sensação vaga de que este sinal de cabeça dizia respeito mais ao defensor que troçava dos jurados do que ao jurado que lia o seu jornal. Além disso, a expressão uniforme das caras dos jurados tinha desaparecido. Ao passo que metade deles ostentava sempre uma aparência impenetrável, a cara do homem dos lábios finos tinha corado intensamente; as outras representavam a indignação. York supôs com justa razão que a indignação deles não se dirigia ao seu colega, mas sim a ele próprio. Manifestava-se na sala uma certa agitação e os jornalistas tomavam notas.

- Peço silêncio - gritou o presidente, voltado para o público. Depois dirigiu-se aos jurados:

- Pensava que tinham sido suficientemente informados do vosso dever. Posso repetir ainda outra vez que a nossa função está colocada sob o domínio do direito e que nós todos, aqui, ignoramos por enquanto se o acusado vai deixar esta sala condenado ou livre. Não tenho instruções a submeter a este respeito, e vós também não. O tribunal não tem de tomar partido. As partes no processo aqui são, no nosso caso, o Sr. Delegado do ministério público, dum lado, e, do outro, o acusado e o seu defensor. No que nos diz respeito, vós, Srs. Jurados, e eu próprio, nós somos perfeitamente neutros. Ninguém pode forçar o nosso veredicto, nem num sentido nem no outro. Gostaria que não subsistisse a menor dúvida acerca deste assunto. Não mais que sobre o facto de que sois obrigados, como eu, a prestar toda a vossa atenção ao acusado, assim como a todos aqueles que tomarão a palavra neste recinto.

O presidente folheou o seu processo, olhou à sua volta e perguntou por fim.

- Ter-me-ia expressado com clareza? York disse:

- Muito obrigado, Sr. Presidente.

- Vejamos - continuou o presidente, voltando-se novamente para Hubert Baldwin - onde estávamos nós quando fomos interrompidos?

E, como Hubert ficasse calado, voltou-se para o escrivão; este, relendo os apontamentos da audiência, declarou :

- O acusado acabava de dizer que a tia lhe tinha ensinado muito mais sobre a América que os seus cursos de Geografia.

- É exacto. (O presidente sorriu.) São coisas que acontecem, não é assim?

O juiz adjunto, à direita do presidente, sorriu igualmente.

- E - continuou este último - era isso todo o encanto da senhora sua tia ou tinha, além disso, outra coisa a oferecer?

- Naturalmente, tinha-me trazido também muitos presentes. E iam chegando sempre outros.

- Em espécies ou também em dinheiro?

- De princípio, somente em espécies. Mais tarde, deu-me igualmente dinheiro.

- Era o senhor que lhe pedia dinheiro?

- De princípio, não. Mais tarde, sim.

- Porque é que a sua tia teve a ideia de lhe dar dinheiro?

- Porque eu não tinha muito...

- Isso acontece muita vez na sua idade - disse o presidente, sem deixar de sorrir. - E tinha menos que os seus condiscípulos de aula?

- Penso que sim.

- Os seus pais não estavam numa situação financeira difícil?

- Não, Sr. Presidente, mas fui educado duma maneira espartana.

- No entanto, era filho único?

- Talvez fosse precisamente por isso.

- É isso uma censura com respeito aos seus pais?

Hubert corou.

- Oh!, não, certamente não. Reconheço que tiveram razão de me educar assim.

- Desde quando está convencido disso?

- Desde que tive muito tempo para reflectir.

- Bom. Além disso, nós ouviremos os seus pais sobre esse ponto. Vê bem para o que nós nos dirigimos?

- Sim - disse Hubert em voz baixa.

- Portanto, a sua tia dava-lhe dinheiro. Qual era a importância dessas quantias?

- De princípio, eram pequenas importâncias, para uma ou duas sessões de cinema.

- Mas isso não ficou por aí?

- Não.

- Qual foi pouco mais ou menos a maior importância em dinheiro que recebeu dela?

- Pude comprar uns esquis de competição. Já não me lembro exactamente a importância.

- E porque não tinha recebido esse dinheiro de seus pais?

- Já tinha esquis lá em casa.

- Mas não esquis de competição! Bem. E como é que a sua tia lhe entregava este dinheiro? Pedia-lho pessoalmente ou então forçava-o ela a aceitá-lo? Como se passava isso?

- Bastava-me dizer que tal ou tal coisa me tinha agradado, ou interessado...

- E ela dava-lhe logo o dinheiro para a ir comprar?

- Sim, quase sempre. Para os esquis, foi assim que isso se passou.

- E isso foi sempre assim?

- Mais tarde, fazia-se um pouco rogada.

Esta resposta inquietou York. Ter-se-ia apercebido Hubert da ratoeira que lhe era armada e que podia fechar-se sobre ele? York inclinou-se para a frente esfregando nervosamente o polegar contra o indicador.

- Mais tarde, fazia-se um pouco rogada - repetiu o presidente olhando para o tecto da sala, como se fosse encontrar ali a próxima pergunta que teria de fazer.

- Pode dizer-me aproximadamente, a partir de que momento?

- Quando já não fui vê-la tantas vezes.

- E porque é que já não a ia ver?

- Eu tinha... tinha travado conhecimento com uma rapariga.

- Não havia também uma proibição de seus pais com respeito a essas visitas?

- Sim.

- Essa proibição não o levou a espaçá-las? Hubert hesitou e deitou um olhar suplicante a York.

Este encorajou-o com um sinal de cabeça.

- Não - disse então Hubert.

York esmagava a pele entre o polegar e o indicador.

- Ainda uma pergunta com respeito às quantias que lhe dava a sua tia. Como é que as recebia? Tinham todas elas uma utilização determinada, ou estava livre de dispor delas à sua vontade?

- A maior parte das vezes, ela dava-mas com um fim bem definido. As quantias de que podia dispor livremente não eram nunca muito avultadas.

- Como explica o senhor isso, acusado? Hubert hesitou.

- Eu... eu não sei.

- Deve, com certeza, ter reflectido nisso, não?

- Sim...

- Então?

- À distância a que estamos agora...

- Então? - insistiu o presidente.

- Está bem! Deveria ter-me apercebido então, ou pelo menos bastante depressa, de que me dava pouco dinheiro de cada vez para que eu fosse obrigado a lá ir com frequência.

- Excepto, bem entendido, se tivesse renunciado a qualquer coisa? Fez isso de vez em quando? Privou-se algumas vezes?

- Ultimamente, sim, muitas vezes.

- Desde quando, pouco mais ou menos?

- Já lhe dei disso a razão.

- Aquele encontro que teve?

- Sim.

- Mas, quando um jovem trava conhecimento com uma rapariga, tem, geralmente, mais necessidade de dinheiro, não é assim? Pelo menos, assim o creio - disse o presidente, voltando-se para o seu juiz adjunto, que, uma vez mais, lhe retribuiu o sorriso.

- Sr. Presidente, nós tocávamos muito juntos, mas não saíamos muito.

York suspirou. Apoiou-se contra as costas da cadeira. Um olhar à sala mostrou-lhe que esta história de amor por música tinha sido bem aceite.

- O senhor quer dizer com isso que, a partir do momento em que conheceu essa rapariga, os donativos em dinheiro diminuíram?

- Sim.

- Ora, não compreendo muito bem. Não recebia por essa altura lições de condução às escondidas?

- Sim.

- Mas, diga-me, isso representa, no entanto, uma quantia bastante avultada!

- Permita-me que lhe explique - retorquiu Hubert. - Queria falar dos presentes destinados a outros fins. É certo que as lições da escola de condução representavam uma grande quantia.

- Como explica que a sua tia lhe tenha pago essas lições?

- Era o presente dela para os meus dezoito anos. Minha tia dizia-me, desde há dois anos, que me pagaria lições de condução. Era uma ideia dela...

- Ah!, bom! - disse o presidente. - E quando fez dezoito anos, lembrou-se da promessa?

- Sim.

- Entregou-lhe esta quantia duma só vez ou por várias vezes?

- No dia do meu aniversário, deu-me uma quantia avultada porque era preciso pagar logo os cursos de código e outras despesas. Mas para as lições tinha de ir ter com ela de cada vez.

- E pensa ainda que ela não lhe dava este dinheiro aos bocadinhos senão porque o queria ver o mais possível?

- Sim.

- Ficava reconhecido a sua tia pelo que ela lhe dava?

- Oh!, sim!

- Mas então como explica que tivesse havido entre vós este afastamento? Reconhece-o?

- Sim, reconheço-o. Creio que foi porque sentia enfraquecer a influência dela sobre mim.

- Voltamos outra vez à rapariga com a qual tinha feito conhecimento, não é verdade?

Um novo olhar ao juiz adjunto, que sorriu. Hubert disse simplesmente:

- Sim.

- Até agora - disse o presidente, puxando um pouco para a frente a sua poltrona - tudo isto me parece plausível. Agora, isto vai tornar-se mais difícil. O senhor mantém que se declara «não culpado»?

- Sim, Sr. Presidente.

- Bem. Então como explica que tivesse confessado duas vezes? Todavia, já não estamos no tempo das torturas e sevícias do mesmo género. Ou então...?

Hubert Baldwin, pela primeira vez, perdeu a firmeza.

- Sei - começou ele - que estas duas confissões não me colocaram sob uma luz muito favorável e posso...

O presidente esperou um momento. Depois:

- Sim? - perguntou -, o senhor pode o quê? Ou não pode o quê?

- Não mo posso ainda explicar hoje. Era esta situação... E porque, por minha culpa, tinha ficado desde o princípio a tal modo complicada. Chega-se a um tal ponto de indiferença, que há um momento em que já não se pode mais ser interrogado.

- Reconhece, pois, por conseguinte, que nem na polícia, nem junto do juiz instrutor, foi maltratado?

- Reconheço-o.

- Deixemos de lado essas declarações e conte-me outra vez o que lhe aconteceu no dia do crime. Comece pela tarde.

Hubert contou de novo que tinha estado a tocar com a Suzanne e que, em seguida, tinha saído com ela para ir a casa da tia. Repetiu a história do elevador, que não funcionava, do mecânico que descia a escada e como ele próprio tinha subido até ao nono andar. Contou que tinha tocado com força, que a porta estava entreaberta e que, finalmente, tendo-a empurrado, tinha encontrado a tia dele estendida no chão entre a porta de entrada e a arca, que quis antes de tudo telefonar, mas que, tomado de pânico, tinha fugido.

Na sala, as mulheres deviam sentir arrepios. Mesmo o presidente pareceu compreender que o acusado tivesse fugido. Ele hesitou um momento antes de perguntar:

- E a sua amiga esperava-o em baixo?

- Sim.

York recomeçou a inquietar-se.

- O senhor tinha confiança nesta rapariga?

- Sim.

O presidente começou a abanar a cabeça.

- Não tome isto a mal, mas acho extremamente esquisito que não tenha dito palavra a esta rapariga do que acabava de descobrir lá em cima. Não era a coisa mais urgente a fazer, dizer-lhe a verdade? Ela teria certamente sabido o que fazer. As mulheres nestes casos sabem sempre... Não crê que teria sido preferível?

- Hoje, sim, penso assim.

- Em vez disso, o que é que fez?

Hubert encolheu-se todo. A sala tornou-se enfurecida.

- E então?

- Fomos ao cinema.

Antal anotou: «O presidente, que até aqui dirigia os debates duma maneira perfeita, bateu sobre a mesa com a palma da mão; exigiu o silêncio e ameaçou fazer evacuar a sala se houvesse outras manifestações de descontentamento.»

- Reconhece que o seu comportamento era dos mais extraordinários?

- Sim, Sr. Presidente, certamente!

- Que explicação pode dar disso?

- Estava de tal maneira transtornado, tudo me andava à roda na cabeça...

- Mas aparentemente ao contrário - disse o presidente.

Antal anotou: «Risos de troça na sala.»

- Não acha que, para um rapaz, enfim, para um estudante, não demonstrava inteligência?

- Sim.

- Então, acabemos com isto. Não me engano supondo que vai manter as declarações que acaba de fazer?

- Não, Sr. Presidente.

- O senhor declara que as coisas se passaram assim, e não de outra maneira?

- Sim, Sr. Presidente.

- Vou então fazer ler os vossos dois depoimentos precedentes e o senhor poderá, se o desejar, em seguida, tomar ainda posição. Entretanto pode sentar-se, no caso de se sentir cansado.

Hubert ficou de pé e, durante a leitura das suas declarações perante a polícia e o juiz instrutor, o seu rosto não cessou de mudar de cor. Quando o escrivão acabou a sua leitura, o presidente deixou passar alguns momentos. Depois retomou o interrogatório:

- Reconhece, pelo menos, que sou obrigado a achar as suas contradições excessivamente extravagantes? Quero dizer neste sentido: entre o que disse então e o que declara hoje?

- Mas, o que disse hoje, disse-o também, no princípio, à polícia...

- Não! - cortou o presidente asperamente. - Primeiro, pretendeu que não tinha ido a casa da sua tia.

- Sim, mas, depois, reconheci bem...

- Quando não pôde fazer de outra maneira!

- Com certeza, mas...

- E depois desta segunda fase, confessou mesmo o assassinato. À polícia, disse que se tratava de dinheiro e que tinha vindo na intenção de o tirar, à força, se fosse preciso...

- Mas isso fizeram-mo dizer!

- Não interrompa o presidente - exclamou o delegado do ministério público.

- Obrigado, mas sou capaz de me defender sozinho - disse o presidente, que, voltando-se para o seu juiz adjunto, acrescentou: - Não é verdade? - Depois, dirigindo-se a Hubert: - Junto do juiz instrutor, atenuou as suas declarações, dizendo que tinham questionado por causa da rapariga, que a sua tia lhe tinha feito perder a paciência e que, depois, tinha perdido a cabeça! Isso, disse-o todavia livremente, ou, então, foi o juiz instrutor que lho fez dizer?

- Não foi o juiz instrutor - disse Hubert, muito pálido.

- Quem então?

- O defensor que tinha nessa altura.

- Isso - gritou o delegado do ministério público - é forte de mais!

York levantou a mão para pedir a palavra. Levantou-se devagar, o olhar voltado para a acusação, e disse:

- Peço ao Sr. Presidente para rogar ao Sr. Delegado do ministério público que se abstenha destas interrupções.

A sala voltava a estar agitada. York pediu uma interrupção de audiência, a fim, disse, de não se ficar com a impressão de que o acusado pudesse ter sido intimidado pelo tribunal. Era preciso sentar-se outra vez, quando de repente lhe veio uma ideia.

- Habitualmente - disse ele com ironia -, o Sr. Delegado do ministério público não tem a reputação de compartilhar o ponto de vista da defesa!

- Vamos, vamos! - disse o presidente -, tenham ambos paciência. De qualquer modo vai chegar a vossa vez... Acusado - continuou, dirigindo-se a Hubert -, reflicta um pouco. Não procura utilizar para sua defesa as suas declarações junto do juiz instrutor?

- Não, Sr. Presidente.

- Mantém, por conseguinte, as suas presentes declarações?

- Sim, Sr. Presidente.

- Absolutamente?

- Sim, Sr. Presidente.

O presidente voltou-se para o juiz adjunto, que lhe tinha sorrido:

- Ainda uma pergunta?

O juiz adjunto abanou a cabeça. O segundo juiz adjunto fez o mesmo. Seguiu-se um aceno com a mão dirigido ao delegado do ministério público. E este levantou-se por sua vez.

- Na minha opinião - disse ele -, ainda não foi dito claramente que o senhor é estudante.

O senhor é realmente estudante?

- Sim.

- Se devesse julgar-se a si próprio, que qualificativo poderia dar: aluno medíocre, com boa média, abaixo da média, ou pensa antes que está acima da média?

- De preferência acima - respondeu Hubert.

- Sois modesto - disse o delegado do ministério público. - Tenho aqui a declaração de um dos professores do seu colégio que fala de si como de um dos alunos mais dotados que alguma vez tivesse tido.

York já se tinha levantado.

- Peço-lhe, Sr. Presidente, de não permitir este género de interrogatório. Ser dotado para os estudos não significa forçosamente ser dotado para viver, nós todos o sabemos, sobretudo nas situações extraordinárias como esta em que o acusado se encontrou.

- Nós sabemo-lo bem, Sr. Doutor - disse o presidente -, mas o senhor também pode interrogá-lo sobre os seus estudos.

- Tomo nota, Sr. Presidente - disse York, tornando a sentar-se.

- Portanto, um dos alunos mais dotados - repetiu o delegado do ministério público. - Conhecemos agora a natureza das suas relações com a sua tia. Mas é outra coisa que me interessa. Quais eram as suas leituras preferidas?

- As minhas leituras? - repetiu Hubert. - Em geral as narrativas dos romancistas ingleses e americanos.

- Os quais?

- Wilder, Hemingway, Faulkner, Waugh...

- Extraordinário! - disse o procurador. - Porque não menciona que, durante o período que precedeu a sua detenção, o senhor tinha formado uma pequena biblioteca incluindo obras dum género particular. Obras de criminologia. Não simples romances policiais, não!, mas relatórios de crimes célebres, biografias de advogados de tribunal criminal, um tratado de literatura criminal. O Assassinato Literário, reunindo os casos criminosos durante um período de trezentos anos. Porque procura escondê-lo aqui?

- Não pensava que isso tivesse tanta importância. Era uma mania. Como...

- O senhor chama a isso uma mania? - berrou o delegado do ministério público. - Numa destas obras, e como por acaso, na última que comprou, encontra-se um caso que apresenta analogias inquietantes, insisto a este respeito, analogias inquietantes, com o assassinato de vossa tia. O senhor leu de certeza o relatório deste caso?

- Sim - disse Hubert.

- Pelo menos, isso, reconhece-o! Poderia explicar-me também porque marcou justamente a página naquele sítio com a factura da livraria onde tinha comprado este livro?

- Como sinal de leitura - disse Hubert.

- Mas acabou de dizer que tinha lido essa história. Não se põe um sinal de leitura numa história que já se leu!

- Guardo sempre as facturas nos meus livros.

- Ah!, bom! - disse o procurador. - Mas, segundo essa mesma factura, o senhor, nesse dia, comprou um outro livro. Então porque não guardou a factura no segundo e porque não a pôs justamente numa outra história mas naquela?

O queixo de Hubert pôs-se a tremer. Não pôde articular uma palavra. York já se tinha levantado há um instante. Tomou a palavra por sua vez:

- Sr. Presidente: Churchill, Adenauer, e não sei quem mais, leram ou liam romances policiais. O livro que menciona o Sr. Delegado do ministério público foi impresso em várias dezenas de milhares de exemplares.

Houve, no entanto, dez mil tias assassinadas?

York tinha elevado muito a voz, ao pronunciar estas últimas palavras.

- Não - disse o delegado do ministério público em tom glacial. - Só uma. E é daquela que se trata aqui.

- Mas não se pode, todavia, basear sobre o facto de que, por acaso, um ou vários livros de criminologia se encontrem na biblioteca dum acusado, para obter conclusões esmagadoras para ele. Grande número de pessoas possuem livros semelhantes; e não são, no entanto, assassinos forçados. Pode-se estender uma armadilha a alguém partindo dessa comprovação. Peço-lhe, Sr. Presidente...

O presidente fez um sinal de recusa.

- Sr. Delegado do ministério público, continue o seu interrogatório, peço-lhe.

- Constato portanto - disse este - que o senhor não pode explicar como nem porquê este sinal se encontrava no princípio desta história, na qual era contado o assassinato duma tia rica pelo seu sobrinho.

- Não.

- Ainda uma pergunta. Com que dinheiro comprou o senhor este livro?

- Protesto contra esta pergunta! - gritou York.

O presidente limitou-se a abanar a cabeça e disse:

- Acusado, queira responder.

- Com o dinheiro que me tinha dado minha tia. Pela segunda vez um sussurro subiu da sala. York teria pago caro para que Hubert não tivesse comprado este livro. Era possível, certamente, este livro não ter a menor ligação com o crime, mas este género de confronto faz muito mau efeito sobre o público e sobre os jurados, e o delegado do ministério público sabia-o perfeitamente.

- Ainda uma pergunta - continuou o delegado do ministério público. - Esta caixa rectangular de violino? Durante quanto tempo a desejou?

- Cerca de dois anos.

- Dois anos, para acabar por comprá-los exactamente vinte dias antes do assassinato de vossa tia?

- Sim.

- E não a comprou senão porque queria uma caixa de violino rectangular?

- Sim.

- E quereria que eu o acredite? Se a tivesse querido, esta caixa, simplesmente por ela própria, não teria podido comprá-la mais cedo?

- Sim.

- Então? Porque a comprou tão tarde?

- Porque adiava sempre...

- Adiava o quê... O crime?

- Sr. Delegado do ministério público! - repreendeu suavemente o presidente, ignorando a mão levantada de York.

- A compra - retorquiu Hubert com voz vibrante.

- E porquê?

- Porque isso não tinha importância a tal ponto!

- Mas a vossa mãe disse - folheava o processo -, aqui está... que era uma coisa que desejava há muito tempo. Porque é que se tornou de repente de tal maneira urgente, precisamente antes do crime. Deve todavia ter uma explicação! A vossa antiga caixa de violino não estava fora de uso?

- Não, mas era aquela que eu desejava.

- Deixemos isso. Sei o que devo pensar. Voltemos ao momento em que entrou no prédio. Como sabe que não esteve ali mais de um quarto de hora?

- Porque, do ponto de vista tempo, não podia ser de outra maneira...

- O que é que isso quer dizer?

Pela segunda vez, York apurou o ouvido e tornou-se extremamente atento. Mas já Hubert cometia o erro que ele temia.

- Se tivesse ficado mais tempo na casa - disse ele -, não teríamos chegado a tempo à sessão de cinema.

- Pela reacção da sala, mesmo Hubert compreendeu que teria sido preciso responder de outra maneira.

- E pretende, à viva força, que o elevador não funcionava?

- Sim.

- A escada estava iluminada?

- Sim.

- Foi por isso que viu bem o serralheiro-montador?

- Sim.

- Esse serralheiro-montador descia a escada correndo ou então sem se apressar?

- Ia como quando se vai para o trabalho - disse Hubert, que não compreendeu porque é que as pessoas riam.

- Portanto - disse o delegado do ministério público, sorrindo-, de preferência devagar?

- Sim.

- Segundo o senhor, o comportamento dele era o de alguém que acaba de cometer um assassinato?

- Protesto contra esta pergunta! - exclamou York. O delegado do ministério público sorriu outra vez e antes que o presidente tivesse podido intervir:

- O homem pareceu assustado quando o viu?

- Não - disse Hubert.

- Reflicta bem.

- Não. Ele não pareceu assustado.

- Não teve um estremecimento, nada?

- Não.

- Obrigado - exclamou o delegado do ministério público, como se esta resposta lhe fizesse arranjo. - Uma única pergunta ainda.

Depois da descoberta do corpo de sua tia não voltou mais a casa dela, por exemplo, no dia do crime?

- Não - disse Hubert.

- Obrigado, isso basta-me.

York levantou-se, tentando disfarçar a surpresa que lhe causara a última frase do procurador. Voltou-se primeiro para o presidente, lembrando-lhe que lhe tinha prometido de o deixar interrogar o acusado sobre a sua vida escolar.

- Gostava de andar na escola? - começou ele.

- Sim - respondeu Hubert.

- Há na escola, numa das salas de aula ou no vestíbulo, uma inscrição da qual possa lembrar-se?

- Na escada, há sobre a parede uma placa de mármore com o nome dos antigos alunos caídos na guerra.

- Sim. E além disso?

- Do outro lado há: «Não é para a escola que nós nos instruímos, mas para a vida», enfim, qualquer coisa aproximada.

- Ouviu alguma vez na sua escola, que, de facto, era um liceu, qualquer coisa sobre a maneira como se faz um contrato, um testamento, ou coisas deste género?

- Não, nunca.

- Faltou muito à escola?

- Não. Meu pai tinha calculado um dia que, no decurso de todos os meus anos escolares, não tinha faltado, creio eu, senão cinquenta e cinco horas ao todo.

- Nunca estava doente?

- Não, só durante as férias, desgraçadamente. York sentiu subir do público uma onda de simpatia

e continuou:

- Aprendeu alguma coisa nas aulas sobre a maneira como é organizado um tribunal?

- Não.

- Sobre o direito, sobre a organização judicial, sobre as audiências, sobre as diferentes espécies de jurisdição?

- Não, absolutamente nada.

- Ensinaram-lhe qualquer coisa sobre o estatuto dos magistrados, sobre a legislatura, sobre as disposições do código penal, sobre os processos?

- Não, não que eu me lembre.

- Aconselharam-no alguma vez nas aulas sobre a maneira como devia conduzir-se quando nos encontramos numa situação crítica, em conflito com a polícia, por exemplo?

- Não, também não.

- Não lhe disseram nunca que, quando se encontrasse numa situação embaraçosa, se não tivesse confiança nem na polícia, nem nos seus pais, nem nos seus professores, era preciso, pelo menos, ir procurar um advogado?

- Não.

- Sr. Presidente, Sr. Delegado do ministério público, Srs. Jurados - disse York -, informei-me junto dos professores de Baldwin. Confirmaram-me o que o acusado acaba de declarar. (A voz dele tornou-se cortante.) Nos nossos liceus, nos nossos estabelecimentos de ensino superior, não se tem tempo para resumir as mais elementares noções de Direito! Aquele que, depois do seu bacharelato, não estuda Direito deverá viver num Estado bem repleto de leis, sem nunca ter ouvido falar nisso na aula. E, ainda, o que nós temos aqui é um assunto de escol, o que há de melhor, se ouso dizer... (York retomou a calma.) Na sua escola - continuou - havia com certeza cursos de esqui?

- Sim.

Houve risos na sala, pela primeira vez.

- Quem recebia a importância destes cursos de esqui?

- O instrutor de Educação Física, ou um aluno que ele tinha encarregado disso.

- Davam-lhe um recibo por essas liquidações?

- Não.

- Pediu um alguma vez?

- Sim, da parte de meu pai.

- A quem o pediu?

- Ao instrutor de Educação Física.

- Este instrutor dava outros cursos?

- Sim, cursos de Geografia.

- Mas, enfim! - exclamou o delegado do ministério público num tom de censura -, que significa este interrogatório?

- Vai sabê-lo, Sr. Delegado do ministério público - respondeu York. - Que notas tinha antes de ter reclamado este recibo?

- Excelentes.

- Uma vez, ou geralmente?

- Sempre...

- E depois...?

- Depois? Tive três...

- E um pouco mais tarde?

- Quatro...

- Deram-lhe o recibo?

- Não.

- Parece-me, no entanto, que sim - disse York e, de novo, teve os que riam do seu lado. (York voltou a ficar sério.)-Para que saibam - disse, voltando-se para o Tribunal - qual era esta importância, que mudava assim de mãos sem o menor recibo, eu informo que ela representava mais que a metade do salário mensal de um operário especializado!

Antal anotou: «A Escola no banco dos réus!» York continuou:

- Talvez tenha aborrecido o tribunal com estas perguntas. Mas, para mim, tratava-se de provar que um estudante não conhece mais sobre as coisas de Direito que um aprendiz qualquer ou que um servente de pedreiro. Todavia, o servente tem uma experiência

da vida que lhe facilita muito mais as coisas que a um intelectual! Voltemos a esse assunto de literatura: Foi a primeira vez que se interessou por um certo género literário?

- Não.

- Que género de livros coleccionou primeiro?

- Todas as lendas que pude encontrar.

- E depois?

- Devo dizê-lo?

- Isso valeria mais.

- Karl May.(1)

- E em seguida?

- Tudo o que dizia respeito a viagens.

- E houve outras coisas?

- Sim. Obras populares de vulgarização científica.

- Obrigado - disse York. - Que valor tem a sua biblioteca, falo da sua, não da de seu pai?

- Cerca de seiscentos volumes.

- E pode dizer-me quantos romances policiais há

entre esses seiscentos livros?

- Dez, quando muito.

- Sabia isso, Sr. Delegado do ministério público? O interessado ficou calado.

- Ainda uma pergunta. O senhor experimentou alguma vez escrever? Poemas? Narrativas?

- Sim.

- Foi publicado?

- Três poemas apareceram numa revista escolar.

- E de onde lhe veio esse interesse repentino por o que o Sr. Delegado do ministério público chamou esta «vaga de criminalidade»?

- Persuadi-me que podia, eu também, escrever um romance policial.

 

*1. Autor popular alemão correspondendo pouco mais ou menos a Fenimore Cooper.

 

- Escreveu-o?

- Não, não o acabei.

- Onde está o manuscrito?

- Escondi-o em casa, no armário da entrada.

- Nós o mandaremos buscar - disse York. - Talvez venha a interessar o Sr. Delegado do ministério público. Voltemos agora à caixa de violino. Era esse o único desejo que trazia consigo há dois anos?

- Não, com certeza...

- Que desejaria além disso que pudesse declarar aqui?

Hubert reflectiu.

- Um instrumento melhor, uma estante de música, talvez um novo micro para o magnetofone.

- E porque comprou essa caixa de violino?

- Porque era o que custava mais barato. E depois também porque ela parecia mais neutra. Não se é logo catalogado como violinista. Com a outra caixa, abordaram-me muita vez no autocarro ou no eléctrico. Era o que queria evitar.

- Conhece um ou vários casos em que músicos se foram embora com a caixa vazia sem perceber, por motivo da diferença de peso, que estava vazia?

- Sim. Aconteceu muitas vezes ao meu professor. Foi ele que mo disse, um dia em que, precisamente, me ia embora com a minha caixa vazia...

- Voltemos agora a este famoso dia. Pretende ter visto um serralheiro-montador? Descreva-o.

- Ele tinha um boné de pala, um fato-macaco e uma caixa de folha.

- Esta caixa parecia pesada ou leve?

- Não notei nada de especial; devia ter um peso normal; o homem tinha este modo de andar característico, um pouco inclinado para o lado.

- A caixa estava aberta?

- Não, creio que estava fechada.

- Tente lembrar-se com exactidão!

Hubert Baldwin reflectiu um momento, depois disse:

- Parece-me que ele tinha o antebraço colocado sobre a caixa.

- Pôde ver o que continha essa caixa?

- Não, mas eram, verosimilmente, ferramentas.

- Teve a impressão que a caixa estava vazia?

- Não, não estava certamente vazia, senão, porque é que o homem teria tido este modo de andar inclinado?

York humedeceu os lábios com a ponta da língua. Teria podido, naturalmente, continuar a interrogar o acusado durante horas, mas isso não teria entusiasmado ninguém na sala.

Foi por isso que se contentou de perguntar:

- Quando empurrou a porta entreaberta do apartamento da sua tia, qual foi a primeira coisa que o impressionou?

- Foi que a minha tia estava deitada no chão.

- Qual foi o seu primeiro pensamento?

- Que talvez tivesse desmaiado. Que tinha tentado sair do apartamento e que se tinha ido abaixo.

- Quando entrou no apartamento, já tinha medo?

- Não.

- A partir de que momento teve medo?

- Depois de me ter curvado sobre a minha tia e ter visto a ferida na cabeça, e quando compreendi que...

York viu Hubert cambalear.

- Obrigado - disse ele -, basta.

- Acusado - perguntou o presidente -, deseja um copo de água?

- Não, obrigado, Sr. Presidente.

- Então, água não - disse o presidente decepcionado.

- Tenho ainda uma pergunta a fazer - disse o delegado do ministério público.

- Acusado - começou ele, quase com brandura. -, o senhor deixou o liceu depois do seu bacharelato. Isso admite, mesmo se não está enunciado no seu diploma, uma certa maturidade. O senhor lia os jornais?

- Sim.

- Completamente, ou por alto?

- Isso dependia das ocasiões.

- O que lia com mais atenção?

- Crónicas de filmes ou de teatro, críticas de concertos...

- Ummm... - disse o delegado do ministério público. - Nada mais?, nem noticiários políticos, ou judiciais?

- Algumas vezes, mas muito superficialmente.

O delegado do ministério público experimentou outra coisa.

- Mas, enfim, o senhor admitirá que aprendeu a raciocinar. Por conseguinte parece absolutamente inverosímil que não tivesse contado a ninguém a sua horrível descoberta, nem mesmo a alguém em quem confiava, nem mesmo ao seu pai, que, afinal de contas, na qualidade de irmão da morta, tinha todo o direito de saber o que tinha acontecido à irmã! Não pensou um só instante que, se nós nos baseamos nas suas presentes declarações, o que, aliás, nos parece difícil, o senhor fez ganhar ao assassino um tempo inacreditável? Portanto, não ignora, segundo as suas leituras, da importância que pode ter o factor «tempo» na investigação dum assassinato. O senhor reconhece-o?

- Sim.

- Como pode explicar o seu procedimento?

- É isso mesmo! - disse Hubert. - Hoje já não o posso explicar a mim próprio...

- Já não tenho mais perguntas a fazer - disse ao presidente o delegado do ministério público.

Mas já York se levantava e pedia ainda a palavra por alguns momentos.

- Já viu muitos mortos? - perguntou ele a Baldwin -, ou era a primeira vez?

- Sim. Quero dizer: directamente.

- Que devo compreender?

- Vi mortos em fotografias, mortos dos campos de concentração...

- Portanto somente em fotografias. E a sua tia era a primeira morta que tinha visto e tocado?

- Sim.

- E foi por isso que teve tanto medo?

- Não, na realidade não.

Antal registou um destes momentos em que toda a gente sustém a respiração e em que se teria ouvido cair um alfinete.

- Qual foi o motivo do seu terror?

- Tive de repente a impressão de que estava ali alguém...

- Mais um morto? - interrompeu o delegado do ministério público com um riso irónico.

- Não - disse Hubert-, alguém bem vivo...

York deixou a frase fazer efeito. «Meu Deus!», suspirou alguém na sala. Os jurados tinham baixado a cabeça. O presidente voltava um lápis entre os dedos e olhava intensamente para o acusado, como se isso pudesse fazer-lhe descobrir a verdade. Aparentando descontentamento o delegado do ministério público tomava notas febrilmente.

- Sr. Presidente - disse York -, não faço mais perguntas.

Este reflectiu um momento e disse:

- Bom! Então, penso que nós poderíamos suspender a audiência. Esta tarde, às 14 horas, ouviremos duma vez só os depoimentos das testemunhas. Estão todos de acordo?

Ninguém fez objecção. Levantou-se e deixou a sala. No momento em que o levaram, York fez um sinal de encorajamento a Hubert Baldwin, e ficou sentado diante do seu maço de notas e de papéis. Agora, que a primeira parte da audiência e a sua tensão tinham passado, sentia-se quase sem fôlego. Melle Mayer apareceu e, cheia de solicitude, ocupou-se dele.

Ela declarou que era absolutamente preciso que fosse almoçar. Isto fez-lhe bem. Sentiu-se mais animado ainda quando Antal lhe bateu no ombro, dizendo-lhe:

- Isto correu maravilhosamente, meu velho! Levantando a cabeça, olhou demoradamente para o seu condiscípulo.

- Sim... mas como vai continuar?

- Oh! - disse o outro rapidamente -, começa por ir almoçar. Depois, tu verás! Raspo-me para a redacção; talvez que lá encontre novidades!

York fez um sinal afirmativo.

- Que poderíamos nós ter feito de outra maneira, ou melhor? - perguntou ele.

- Absolutamente nada! - declarou Antal. - A atmosfera melhorou sensivelmente. Que mais queres?

Antal fez sinal a Melle Mayer para se ocupar do patrão e perguntou antes de se ir embora.

- Onde vais almoçar?

- Ao Chapon Rouge, presumo eu - respondeu Melle Mayer em vez de York, que parecia atacado de mutismo.

- Bom! Se tiver tempo, irei lá vê-los antes da continuação da audiência - e, batendo-lhe no ombro uma última vez, Antal desapareceu.

Melle Mayer começou a arrumar os papéis de York na pasta e, como ele não se decidia nunca mais a mexer-se, disse-lhe:

- Vamos! Venha. Mandei guardar uma mesa num canto sossegado.

Como uma criança obediente, York levantou-se e seguiu-a. Os pais de Hubert e Suzanne Rauschenbach

esperavam-no na sala dos passos perdidos. Assediaram-no com perguntas e isso contribuiu para que York voltasse à realidade.

- Parece-me - disse ele, quase alegremente - que isto não correu mal. Hubert mostrou presença de espírito, e creio que a impressão geral foi favorável.

- A impressão foi muito agradável - confirmou Mlle Mayer. - Mas deviam conceder uma pausa ao Dr. York, ele precisa dela.

- Naturalmente - disse o Sr. Baldwin. - Então, isso correu bem?

- Sim - disse York. - O senhor também deveria ir almoçar. Leve esta rapariguinha, ela parece precisar muito disso.

- Oh! - protestou Suzanne -, não poderei engolir nada.

- Está bem! Faça um esforço! - pediu York. - Faça-o pelo Hubert e por mim. Vamos precisar de si.

Melle Mayer interveio outra vez.

- Realmente - disse ela, com doce firmeza -, é preciso que o Dr. York descanse. É mesmo no interesse de Hubert...

O Sr. e a Sr.a Baldwin, acompanhados de Suzanne, retiraram-se. York passou pelo vestiário dos advogados, despiu a toga, lavou as mãos e dirigiu-se ao Chapon Rouge com a sua secretária. Durante o curto trajecto não trocaram uma palavra. Foi só depois de ter consultado a lista que Melle Mayer propôs:

- Devia deixar-me escolher a ementa. Proponho-lhe um caldo de ovos escalfados, uma costeleta de vitela grelhada, uma salada, fruta e um café...

York fez um sinal de aprovação. Depois do caldo, perguntou:

- Então? O que pensa disto?

- A minha impressão é boa - disse Melle Mayer - e é por isso que deveríamos falar de qualquer outra coisa.

- Sim, tem razão. Mas não me vem outra coisa à ideia...

- Que faria o senhor, se fosse rico?

- Se viesse a ser rico? Como diabo viria eu a sê-lo?

- Oh!, eu - disse Melle Mayer - já o estou a ver daqui! De toda a maneira, não o pode evitar. Pessoas como o senhor tornam-se ricos!

Ela serviu-lhe a costeleta de vitela.

- Parece - disse York, sonhando - que há velhas casas rústicas quase em ruínas, que se podem restaurar. Eis uma coisa que me tentaria! E se houvesse um pequeno regato nos arredores onde se pudesse pescar! E não mais de uma hora de trajecto até ao escritório, podia-se habitar ali sempre durante a estação calmosa!

Ele comia com apetite a costeleta de vitela e a salada.

- Não é - continuou - que pretenda tornar-me muitíssimo rico. Compreende, não quereria ter somente dinheiro, quereria também ter tempo!

- Isso - disse ela - é um ponto de vista razoável. O senhor gostaria também de ter um jardim?

- Sim - disse York. - Mas um verdadeiro jardim de abade, uma confusão de flores. Não sei como se chega a isso, mas deve poder ver-se e copiar...

- Com certeza! - disse ela. - Quer o senhor mais um bocadinho da minha carne? Quero dizer, da minha costeleta de vitela?

Ela ficou encantada de o ver rir.

- E depois - continuou ele - gostaria bem de ter também um pequeno tanque, artificial, naturalmente, apenas alguns metros quadrados, com peixes lá dentro, que se poderiam deixar ali no Inverno, e juncos à volta, com libelinhas no Verão. Algumas velhas árvores nas proximidades, moitas cheias de ninhos, e, sob o telhado, andorinhas. Uma fonte com uma calha de madeira, que transbordaria numa concha de pedra onde viriam banhar-se os pássaros. Não seria nada mau, aquilo, o que acha?

- Sim - disse a rapariga, sonhando também. - Não seria nada mau!

Ela estendeu-lhe a compoteira.

- Tome lá! Veja frutos do jardim...

- Palavra de honra - exclamou York, contemplando a salada de fruta-, é verdade. Ignorava de todo que habitávamos uma região frutífera!

- Que queira ter ninhos de andorinhas sob o telhado, isso agrada-me - declarou Melle Mayer. - Nas casas modernas não os há, e isso faz desesperar as andorinhas.

- Com certeza!-York mexia a salada de fruta. - Isso alteraria as linhas rectas. Pense um pouco-disse ele-, se almoçasse numa casa de campo como aquela com que sonho, diante da casa, por exemplo... poderia cuspir os seus caroços de cerejas e de ameixas para muito, muito longe.

- Pois bem!, arranje-se para a ter, essa casa.

- Podia-se mesmo - disse York, continuando a sua ideia - fazer disso um desporto. Espetavam-se estacas como no chinquilho. Poder-se-ia disputar partidas com as aldeias vizinhas, talvez mesmo tornar-se mestre na arte de cuspir caroços!

- Ou campeão olímpico! - disse a rapariga, que já tinha posto açúcar na chávena de café de Robert York e remexia com a colher.

Quando o açúcar ficou derretido, estendeu-lhe a chávena; ele tinha acabado a salada de fruta.

- E, agora - disse ela -, o senhor deveria fumar um cigarro tranquilamente.

Ela tirou um maço de cigarros da carteira e estendeu-lho. York voltou a ficar sério.

- Quanto tempo temos ainda? - perguntou.

- Uma hora e tal. Fume tranquilamente, acalme-se e pense no regato por detrás da casa. Talvez que haja

lá uma velha roda de moinho e uma tília em frente da casa. Um canto de sombra sob grandes folhas verdes. E alguns velhos salgueiros, tão belos no nevoeiro, quando perderam todas as folhas.

- Diga-me? - admirou-se York-, parece-me que conhece o sítio...

- O meu bisavô era moleiro - explicou Melle Mayer, corando sem bem saber porquê.

- Por acaso não estaria o moinho à venda?

- Ai de mim!, não! Há muito tempo que está em ruínas. Ardeu.

- Ah! - disse York.

- Mas o regato existe ainda.

- Sim, evidentemente - disse York-, um regato, isso não arde com facilidade!

Foi a vez de Melle Mayer sorrir.

- O café está bom? - perguntou.

- Como no escritório!

- Isso quer dizer que está bom? York fez sinal que sim.

- Na realidade - disse ele -, seria preciso telefonar à minha mãe. Para que saiba que isto corre bem.

- Já está feito. Telefonei do Palácio da Justiça há bocado.

- É verdade?

- Sim. Olha!, ali está o Sr. Antal - anunciou Melle Mayer, e levantou o braço, porque ele não os tinha descoberto.

York voltou-se e chamou-o:

- Por este lado, Paul! Por este lado! Estamos aqui! Antal veio ter com eles num passo rápido, sentou-se

à mesa deles, abriu a lista, tornou a fechá-la e disse:

- Adivinha um pouco quem acabou de me telefonar para o jornal?

- Não faço a menor ideia! - disse York. - Ela é bonita?

- Não é uma «ela» e não é bonita. Procura...

- Não sei nada disso! Como queres que eu saiba!

- Então, nesse caso adivinhe a menina - disse Antal a Melle Mayer.

- Oh!, eu, desisto de adivinhar!

- Bom! - disse Antal -, não prestam para nada. Vai ser preciso que eu lhes diga. Segura-te bem, meu

caro...

- Então! Vais dizer-mo ou tu não mo dizes? - disse

York. - Quem era?

- O serralheiro-montador de fato-macaco...

 

O HOMEM DO FATO-MACACO.

O presidente tinha aberto, esfregando as mãos, a sessão da tarde, destinada à audição das testemunhas. Depois tinha folheado o seu processo e esperado que o sossego voltasse à sala; no momento em que ia tomar a palavra, reparou que York já estava de pé. Mostrou má cara, pareceu interrogar-se se devia ou não dar por isso e acabou por perguntar:

- Que aconteceu ainda?

York pediu ao tribunal para fazer o favor de convocar e ouvir como testemunha Hans Meerwein, com a idade de vinte e três anos, celibatário, serralheiro-montador, do qual o depoimento era indispensável para estabelecer a verdade.

- Mas vejamos! - queixou-se o presidente -, há cada vez mais testemunhas! O que vem a ser esse homem?

York deixou passar alguns segundos antes de responder:

- É o serralheiro-montador de fato-macaco que Hubert Baldwin encontrou na escada.

York passou a vista pela sala. A notícia tinha feito sensação. Mesmo os bancos da imprensa se agitaram. Hubert Baldwin ergueu-se num salto, como se a batalha

estivesse ganha, e o guarda foi obrigado a mandá-lo sentar outra vez.

O presidente olhou para o delegado do ministério público, que fez um sinal de cabeça.

- Bom - disse ele -, esta testemunha pode apresentar-se perante o tribunal?

- Está ali, atrás da porta.

- Nesse caso - disse o presidente ao delegado do ministério público - gostaria de mudar a ordem da audição das testemunhas; os outros depoimentos já são conhecidos do tribunal e talvez... (voltou a procurar qualquer coisa nos seus processos)... que isso nos pouparia... (acabou por encontrar o papel que o interessava) ... sim, penso que nós poderíamos ouvi-lo em primeiro lugar, não é verdade?

O delegado do ministério público consentiu outra vez.

A testemunha Meerwein foi então chamada ao pretório e convidada a declinar o seu nome, apelido e categoria. Averiguou-se que já tinha sido condenada e, em conformidade, não o fizeram prestar juramento.

- Sr. Meerwein - disse-lhe o presidente -, deu-se a conhecer bem tardiamente! Como aconteceu isso?

Meerwein humedeceu os lábios e disse:

- Tinha medo!

- Mais um que tem medo! - disse o presidente ao juiz adjunto da direita. - De que tinha medo?

- Que os senhores me prendessem como se fosse eu o culpado.

- E porque é que o temia?

- Porque já fui condenado.

- Ah!, é por isso! O que é que tinha feito? Mas, todavia, não foi condenado injustamente, penso eu?

- Não, não naquela ocasião. Vou a muitos apartamentos, e, um dia, havia na entrada uma carteira de senhora em couro castanho, e dentro muito mais dinheiro do que eu pensava. Senão, talvez ninguém tivesse reparado que eu a tinha palmado.

Então, o senhor compreende, quando se deu um passo em falso, depois nunca mais nos acreditam...

- Portanto, naquele dia, estava nesse prédio? Que tinha que fazer ali?

- Tinha de consertar um cano de gás.

- E fez isso?

- Não. A senhora disse-me para voltar no dia seguinte de manhã.

- Que senhora?

Pela segunda vez, Meerwein humedeceu os lábios:

- Bem, Mme Stringfors - disse numa voz enrouquecida.

Antal anotou: «Estas duas palavras rebentaram na sala como uma bomba.»

O delegado do ministério público levantou-se e lançou numa voz tonitruante:

- Mme Stringf ors estava viva?

Nas últimas filas, uma senhora desmaiou, uma outra gritou: «Meu Deus!», os jornalistas esqueceram-se de tomar notas, só o rosto do presidente tinha ficado impassível. Quando o sossego voltou, perguntou:

- E o senhor só declara isso hoje? Meerwein repetiu com hesitação:

- Mme Stringf ors estava viva.

- Seja um pouco mais exacto, peço-lhe. Foi Mme Stringf ors quem lhe pediu para lá ir?

- O meu patrão tinha-me dado algumas moradas, uma das quais a de Mme Stringfors. Terminei por ela, dizendo para comigo: «É um belo prédio, talvez, se vier tarde, me dêem qualquer coisa para jantar, ou uma boa gorjeta.»

- Quando é que chegou ao edifício?

- Um pouco antes das 18 horas. Já estava a fazer horas suplementares...

- E, depois, o que se passou?

- O elevador estava partido. Houve outra vez redemoinhos na sala.

- Como partido?

- Não andava. Morto. Parado, quê! O que sei eu! Algumas vezes verificam-se os elevadores, desmontam-se as peças para as enviar à oficina para consertar...

- Havia lá um aviso, um letreiro sobre a porta do elevador?

- Não, absolutamente nada. Ia-me mesmo embora, mas, enfim, era um belo prédio, disse para comigo: «Se trepo os nove andares e se conto isso como deve ser à cliente, ela vai dar-me uma gorjeta maior; é costume.»

Portanto, subi a pé e toquei...

- E Mme Stringfors abriu-lhe logo?

- Não, tive de tocar duas vezes. Finalmente, chegou, de cigarro na mão; olhou-me de alto a baixo e disse-me: «Ah!, logo havia de chegar neste momento! Não pode voltar amanhã de manhã?» - «Madame», disse-lhe eu, «acabo de trepar os nove andares a pé!»

Ela deu-me um marco e disse-me: «Agora não me convém, tenho visitas.»

- E depois? - perguntou o presidente.

- Pois bem! Fui-me embora. Ao descer, como estava ofegante, parei e acendi um cigarro. No sexto andar, provavelmente, antes no quinto, sentei-me e fumei-o.

- O senhor sentou-se? Onde?

- Na escada. Estava cansado...

- E depois?

- Esmaguei o cigarro no chão e continuei.

- E depois?

- Pois bem!, em baixo, encontrei este senhor - Meerwein indicou o acusado -, que me perguntou se eu consertava o ascensor. Eu disse: «Não, não», e fui-me embora.

- Evidentemente - disse o presidente -, tudo o que

nos conta aí é muito bonito, mas porque só se apresentou agora?

- Sr. Presidente - disse Meerwein com franqueza -, estou na lista negra... Por outro lado, queria ajudar o pobre diabo que aí está, e foi por isso que mandei a minha noiva.

«Então ela escutou; e quando o senhor acusado se mostrou tão correcto e disse que não pensava que eu pudesse ser o culpado, pois bem, disse para comigo que era preciso que eu também fosse decente.

- E, antes, não estava disposto a sê-lo?

- O senhor sabe - disse Meerwein -, cometem-se erros a tal ponto... e quando se tem cadastro... Quando isto aconteceu, não conhecia ainda há muito tempo a minha noiva, não tinha ganho ainda a confiança dela; hoje é diferente.

- E, a mulher com a qual falou, tem a certeza de que era Mme Stringfors?

- Evidentemente!

- Como pode estar a tal ponto certo disso?

- Eu bem vi, depois, o retrato dela nos jornais e diziam lá que ela tinha estado muito tempo na América: de facto, tinha um pouco de sotaque.

- E, quando viu a fotografia do acusado, o que pensou?

- Pois bem!, se o senhor me permite ser franco, disse para comigo: «Deus queira que não tenham agarrado o falso culpado!»

- E, apesar disso - gritou o presidente -, não se deu a conhecer?

- Devo recomeçar - perguntou Meerwein - a explicar-lhe que tinha medo, Sr. Presidente?

O presidente pareceu resignar-se e dirigindo-se ao delegado do ministério público:

- Penso - disse ele - que tem perguntas a fazer?

- Sim,- disse o delegado do ministério público, levantando-se.

- Sr. Meerwein - começou -, contou-nos tudo muito bem e compreendo perfeitamente que tivesse tido medo de se apresentar mais cedo. Não lho levamos a mal. Quando tocou lá em cima, em casa de Mme Stringfors, estava ofegante ou não?

- Bem, talvez arfasse. Nove andares, Sr. Delegado do ministério público, fariam arfar toda a gente, mesmo o senhor!

- Com certeza! - admitiu o delegado do ministério público, que se dignou sorrir. - Seja quem for, ficava ofegante. Também disse que tinha acendido um cigarro logo que retomou o fôlego. Sentou-se mesmo, depois deste esforço. Tinha também a sua caixa de ferramentas. Quanto pode ela pesar, pouco mais ou menos?

- Quinze, vinte quilos pelo menos...

- E, ainda por cima, nove andares! Isso pode pôr-nos ofegantes.

- Com certeza, Sr. Delegado do ministério público.

- Mas, visto que o senhor reconhece mesmo que estava ofegante, não se poderia ter dado o caso de Mme Stringfors lhe dizer outra coisa diferente do que o senhor julgou compreender, por exemplo: «Espero uma visita»?

York saltou.

- Protesto contra esta pergunta - exclamou ele.

- O que quero dizer - continuou o delegado do ministério público, imperturbável - é isto: pode o senhor, depois de ter reflectido, afirmar conscienciosamente, com cem por cento de certeza, que Mme Stringfors disse «TENHO uma visita»?

Meerwein pareceu indeciso.

- Em sua alma e consciência poderia o senhor jurá-lo? Poderia afirmar que ela lhe disse «isso», e não outra coisa?

- Enfim - disse Meerwein, esfregando a ponta do nariz -, estive sempre certo de que ela tinha dito que TINHA uma visita. Mas, se reflicto bem... evidentemente... estava ofegante... Mas ela disse com certeza: «Uma visita.»

- Não se trata de contestar a palavra «visita», mas pode afirmar cem por cento que ela disse «TENHO uma visita»?

- É preciso dizer - tentou desviar Meerwein - que já lá vai algum tempo. Enfim!, não direi talvez cem por cento, mas, em todo o caso, noventa e nove por cento.

- Mas não o diria sob juramento?

A testemunha procurou encontrar um rosto na sala, hesitou um momento, e acabou por dizer:

- Sob juramento... gostaria mais de não... York já estava de pé.

- Sr. Meerwein - começou ele -, sou o defensor do acusado. Fique sabendo que não quereria trazê-lo ali onde ele se encontra neste momento; bem pelo contrário, devo agradecer-lhe, porque, pelo seu depoimento, trouxe a prova de que, nesse ponto, o acusado tinha dito toda a verdade. O facto de que o elevador tivesse estado desarranjado alivia-o, porque, sem isso, a acusação não se entenderia com o espaço de tempo que foi necessário para cometer o crime. Mas o senhor deixou-se desorientar um pouco pelo Sr. Delegado do ministério público... Sim, sim - disse York, num tom apaziguador em atenção ao procurador que tentava intervir. - Tente, no entanto, lembrar-se bem do que existia nas suas recordações quando chegou aqui. Ou, antes, façamos a pergunta de outra maneira. Falou o senhor com a sua noiva do que se tinha passado no nono andar?

- Sim.

- O que é que disse à sua noiva? Que a Mme String-fors TINHA uma visita, ou que esperava uma?

- Que tinha lá uma, naturalmente!

- Bom. Recomecemos outra vez, a partir do momento em que tocou à porta. Disse que lhe tinha sido preciso tocar duas vezes antes que ela lhe abrisse.

- Sim.

- Quanto tempo se passou entre o seu primeiro e o seu segundo toque de campainha?

- Toquei, e depois esperei, e quando, ao fim dum bocado, ouvi passos, toquei outra vez.

- Portanto, quanto tempo pouco mais ou menos? A testemunha apoiou o polegar sobre a barra, reflectiu, depois apoiou novamente.

- Cerca de quinze a vinte segundos.

- Bem. E depois demorou ainda muito tempo, antes que Mme Stringfors viesse abrir-lhe?

- Depois do segundo toque de campainha, ouvi os seus passos bastante depressa.

- E, quando lhe abriu, como se passou isso? Tinha um cigarro na mão, disse o senhor?

- Sim.

York reflectiu e depois perguntou:

- Notou se o cigarro acabava de ser acendido, ou se estava já meio fumado?

A testemunha abanou a cabeça.

- Ficou no patamar ou entrou no vestíbulo?

- A meio, a meio... no limiar da porta.

- Podia ver a entrada?

- Sim.

- E também a parede onde se encontra o vestiário?

- Sim.

- Isto passava-se em Fevereiro. Havia qualquer coisa dependurada no vestiário, um sobretudo?

- Não, nada, disso tenho a certeza.

- Todas as outras portas estavam fechadas? Meerwein enxugou a testa, fechou os olhos, inclinou

a cabeça para trás.

- Creio - disse ele -, que a porta à esquerda, em frente da porta de entrada, estava um bocadinho aberta, certamente. Porque... Bem, porque pensei: «Pois bem!, que fumaceira, ali dentro!»

- O que é que o fez pensar isso?

- Havia uma espécie de luz oculta atrás da porta e podia-se ver o fumo...

- Senhor Meerwein - continuou York -, penso que o senhor compreende que deve ser, com uma quase certeza, a última pessoa que tenha visto Mme String-fors viva. - York marcou uma pausa. - Fora, naturalmente, o assassino dela. Tente lembrar-se: havia na entrada alguma coisa que lhe indicasse, ou pudesse indicar, a presença duma outra pessoa no apartamento?

Meerwein enxugou a testa novamente, depois a nuca, e ficou com o lenço na mão.

- Não notei nada de extraordinário - disse finalmente. - Quando muito, este fumo atrás da porta.

- Mas o senhor mesmo disse - interrompeu o delegado do ministério público - que Mme Stringfors lhe veio abrir com um cigarro aceso na mão?

- Sim, mas, então, seria preciso que ela tivesse fumado um enorme maço antes, porque isso, isso impressionou-me ! Visto que pensei: «Bem! O que é que ela fuma, esta!» Não sabia como era a divisão atrás da porta, mas era bem preciso que houvesse algumas lá dentro...

- Algumas quê? - perguntou York, cheio de esperança.

- Bem, beatas, pontas de cigarro.

- Mme Stringfors mostrava desassossego quando veio abrir? - perguntou ele, desapontado.

- Não, abriu-me logo, sem olhar pelo ralo.

- Tem a certeza disso?

- Tenho disso a certeza.

Hubert levantou a mão. O presidente disse-lhe:

- Acusado, tenha paciência. Interrogá-lo-ei logo depois da testemunha.

- Então, está certo - perguntou York, segunda vez - que ela não olhou através do ralo?

- Sim.

- Obrigado.

York sentou-se. Também ele tinha calor. Se conseguisse ao menos lembrar-se de tudo o que a testemunha tinha dito e o que ele próprio tinha perguntado! Cada resposta lhe parecia importante, mas onde estava, no fim de contas, o que podia ser o mais útil para Hubert Baldwin?

- Então, acusado? - perguntou o presidente, assim que Meerwein foi mandado para a sala das testemunhas e lhe foi pedido manter-se à disposição do tribunal.

Hubert Baldwin levantou-se.

- Queria simplesmente dizer que minha tia olhava sempre pelo ralo, mesmo quando era eu.

- Como podia ela saber que era o senhor.

- Tínhamos concordado num certo toque de campainha.

- Então, como explica o senhor que, para a testemunha Meerwein, ela não tenha espreitado pelo ralo?

Hubert deitou a York um olhar suplicante. Este levantou-se e disse:

- Sr. Presidente, o meu cliente prefere deixar ao tribunal, e mesmo ao senhor, o cuidado de tirar as conclusões que se impõem, a saber que a tia dele era uma pessoa bastante medrosa, como poderá confirmar a testemunha Novotny.

- Então que a chamem! - exclamou o presidente, aliviado ao ver que os debates se adiantavam.

 

A PARTIDA PARECE PERDIDA.

Novotny tinha o nariz e os cabelos lustrosos. Tinha-se barbeado e as suas faces estavam francamente mais pálidas que o resto da cara. Enquanto o presidente lhe lembrava o que tinha a fazer, o seu olhar interrogador pousou sucessivamente nos jurados e, na outra extremidade da sala, no delegado do ministério público. Por fim descobriu York. Estremeceu e, a partir deste momento, olhou fixamente o magistrado.

- Então, Sr. Novotny - começou o presidente -, que tem a dizer-nos?

Novotny raspou a garganta.

- Tudo está escrito no processo, Sr. Juiz. Já não me lembro muito bem...

- O senhor é, na verdade, o porteiro?

- Sim, Sr. Juiz.

- E ouviu, por detrás da porta de Mme Stringfors, uma certa conversa entre ela e o sobrinho?

- Sim, Sr. Juiz.

- Bom. Então? O que se disse ali de extraordinário?

- Está tudo no processo, Sr. Juiz. Eu tinha dito tudo naquela ocasião.

- Sim, mas nós gostaríamos mais de o ouvir hoje da sua boca.

- Oh!, está bem! Sr. Juiz, passaram meses desde isso! Compreende, eu sou o porteiro, tenho outras coisas em que pensar.

- Todavia, são coisas das quais nos lembramos. Que se passou naquela ocasião? Que dia era?

- Questionaram, Sr. Juiz. Mas já não me lembro que dia era.

- Pois bem! Tente lembrar-se.

- Foi, em todo o caso, antes do crime - disse Novotny, com a maior seriedade.

Antal tomou nota: «Risos na sala.»

- Isso parece-nos a própria evidência - disse o presidente. - Aliás, a data não tem importância a tal ponto. Foi muito tempo ou pouco antes do assassinato de Mme Stringfors?

- Pouco antes, Sr. Juiz.

- Bem, que se passou de extraordinário?

- Questionaram.

- Sabemos isso. De que maneira?

- Falando alto, Sr. Juiz. Não escuto às portas, estava a alguns passos da porta no patamar, e, no entanto, ouvi cada palavra, principalmente Mme Stringfors...

- Isso quer dizer que era ela que gritava mais alto?

- Sim, Sr. Juiz!

- Pois bem!, se não se lembra já exactamente o que foi dito, de que se tratava no todo?

Novotny reflectiu com esforço, depois disse:

- Mme Stringfors parecia ciumenta, como se fosse casada com aquele senhor... - indicou Hubert.

O presidente deitou um olhar ao seu juiz adjunto da direita, inclinaram a cabeça e sorriram um para o outro; depois continuou:

- Sr. Novotny, não sei de onde obteve a sua experiência, mas de que se tratava?

- Da rapariga. Ela estava na verdade ciumenta.

- Não pode expressar-se mais claramente!

- Mas isso deve figurar, quase palavra por palavra, no processo! O que lá está escrito, disseram eles... pouco mais ou menos.

O delegado do ministério público propôs que se relesse algumas linhas do depoimento para refrescar a memória da testemunha.

- O senhor concorda, doutor? - perguntou o presidente, voltando-se para o defensor.

- Sim, Sr. Presidente, concordo.

Depois de ter procurado um momento, o escrivão leu:

- «A tia disse: - Está muito bem. Querias que te desse tanto dinheiro como dantes, mas, agora, só vens uma vez por semana, durante alguns minutos! Hubert: - Sabes bem que meus pais mo proibiram. A tia: - Antes não to permitiam também e mesmo assim vinhas. Se já não vens, é porque isso incomoda esta jovem pretensiosa! Hubert:

- Peço-te que não metas Suzanne nisso. A tia: - Sei perfeitamente que essa ronhosa te excita contra mim! Hubert: - É absolutamente falso. És tu que tentas excitar-me contra ela. Se dizes mais uma vez qualquer coisa contra ela, então... A tia: -Então? Então o quê? Vamos, di-lo...»

- Era isso? - perguntou o presidente, depois de breve pausa.

- Se eu o disse naquela ocasião, Sr. Juiz, é que era isso.

- E o acusado não respondeu à última pergunta da tia?

- Sim.

- Pois bem - disse o presidente com impaciência -, que respondeu ele?

- Qualquer coisa como: «Desta entrada, ouvem-nos em todo o prédio!» E a tia respondeu: «Quero lá saber!»

- Outra coisa ainda?

- O jovem disse qualquer coisa como: «Tu, talvez! Mas não eu!»

York perguntou:

- Porque não disse isso quando do seu depoimento?

- Eu disse-o.

- Porque não está isso relatado no auto?

- Mas eu disse-o!

- O senhor releu o auto do seu depoimento quando

o assinou?

- Não...

- Porquê?

O presidente interrompeu-o:

- Desculpe-me, doutor, mas ainda não acabei.

- Peço que me desculpe, Sr. Presidente - disse York, e tornou a sentar-se.

- Portanto, o acusado disse: «Tu, talvez! Mas não eu!»

- Sim.

- Pode jurá-lo.

- É possível que o tivesse dito doutra maneira,

Sr. Juiz...

- Como então?

- «É possível que não queiras saber, mas não eu.»

- Sim, enfim! Qualquer coisa parecida.

- Sim.

- E isto, pode jurá-lo?

- Sim, Sr. Juiz.

O presidente fez sinal ao delegado do ministério

público.

- O que pensou - perguntou este - ao ouvir o

acusado falar assim à tia?

York protestou contra esta pergunta: o que podia ter pensado a testemunha não tinha importância no que dizia respeito à audiência.

- A discussão era muito animada? - perguntou o delegado do ministério público.

- Ah!, sim!

- Falou dessa discussão com mais alguém?

- Só com a minha mulher.

- E que lhe disse ela?

- Ela disse-me: «Bem! Eles são de família!»

O que não era absolutamente o que o delegado do ministério público desejava ouvir, assim como os risos na sala.

- Peço silêncio - disse o presidente.

- Depois de ter ouvido essa conversa, receou pela vida de Mme Stringfors?

- Eu? - disse Novotny, e puxou com dois dedos pelo lábio inferior. - Não - disse por fim -, não realmente.

O delegado do ministério público parecia ter-se desorientado com a última intervenção de York e disse:

- Por enquanto não tenho outras perguntas a fazer.

York tentou dar novamente firmeza a Novotny lançando-lhe um olhar de franca cordialidade. Ele não gostava de ter de lhe perguntar forçosamente quanto dinheiro lhe tinha emprestado Mme Stringfors. Fez-lhe portanto outra pergunta:

- Como porteiro, sabe se, além do sobrinho, Mme Stringfors recebia outras visitas?

- Isso não sei.

- Viu várias vezes o sobrinho ir e vir?

- Sim, com certeza.

- Sabia que era o sobrinho dela?

- Evidentemente.

- Sabia quem iam ver as pessoas estranhas ao prédio?

- Quando as tinha visto várias vezes, sim.

- Portanto, Mme Stringfors podia ter recebido visitantes sem que os tivesse visto?

- Naturalmente; não podia estar sempre a dar atenção!

- Também podia haver pessoas que a vieram ver, que o senhor viu, mas que não conhecia?

- Com certeza. Não lhes fiz perguntas.

- Poderia também ter havido inquilinos do prédio que teriam ido ver Mme Stringfors sem que o senhor o soubesse.

- Doutor - murmurou o presidente -, todas essas possibilidades nos parecem evidentes.

- Mas gostaria igualmente de as tornar muito evidentes para os Srs. Jurados, Sr. Presidente - respondeu York. - Acabei, aliás, com as perguntas, no que me diz respeito. Depois da conclusão do processo, lembrou-se, senhor Novotny, que Mme Stringfors tinha, em vida, emprestado dinheiro a um inquilino da casa. E o senhor fez referência disso, como devia ser.

- Sim, sim, com certeza!

- Isso também o sabemos - disse o presidente. - Foi tida em conta essa indicação, mas sem resultados...!

- Como se chamava o homem a quem a Mme Stringfors tinha emprestado dinheiro?

Novotny introduziu dois dedos entre o colarinho da camisa e o pescoço e disse, com voz abafada:

- Sr. Merck, nome Carl. Carl com um C.

- Passemos ao vosso depoimento na polícia. O senhor disse que não o leu, e, apesar disso, assinou-o.

--Sim.

- Pediram-lhe para o ler?

- Não. Um senhor leu-mo. E depois assinei.

- E, o que tinha dito, não fora alterado no auto?

- Oh!, estava já um pouco diferente. Estava escrito, quê!, não falado.

- Pergunto-lhe outra vez: o que o senhor tinha dito constava palavra por palavra no auto?

- Não, não palavra por palavra.

- Obrigado - disse York, com um suspiro de alívio. - Terminei.

- Bem - disse o presidente, olhando de lado para o seu juiz adjunto, e voltou-se para o acusado.

- Reconhece ter tido essa discussão com a sua tia?

- Sim, Sr. Presidente.

- Pode dizer-nos de que tencionava ameaçar sua tia e porque não o exprimiu?

Hubert hesitou:

- Era uma ameaça terrível? - exclamou o delegado do ministério público.

- Na realidade - respondeu Hubert -, queria dizer-lhe: «Então, não voltarei mais a ver-te.»

- E porque - perguntou o presidente - não formulou essa ameaça bastante inofensiva?

- Em primeiro lugar, porque seria dar prova de ingratidão e, depois, também, porque teria sido eu o primeiro a ser castigado...

- Que quer dizer?

- Quero dizer, porque recebia sempre de minha tia...

- Ah!, bom! - murmurou o presidente -, sempre os dons em espécies!

- Sim! - exclamou o delegado do ministério público -, é bem isso! É porque não podia renunciar a isso, que por fim o senhor está aqui hoje. Se tivesse realizado a ameaça inofensiva de não voltar mais, teria, pelo menos, obedecido a seus pais. Se tivesse dado prova de obediência, não estaria aí! Mas nós bem o sabemos, é sempre assim que isso começa!

- Mas isso não acaba sempre inevitavelmente num assassinato - disse York. - Não se exclui que, no caso de que nos ocupamos, nós possamos provar que isso NãO acabou num assassinato.

- Vento de feição! - gritou-lhe o delegado do ministério público, tornando a arrumar os papéis.

A testemunha seguinte era Thomas Braun; profissão: construtor de aparelhagem eléctrica, cinquenta e dois anos, celibatário, habitando no sexto andar no

prédio do crime. Referiu-se imediatamente ao depoimento que tinha feito depois do crime, declarou que não tinha nada a acrescentar-lhe, que lhe tinha, além disso, esquecido o conteúdo exacto, no intervalo, mas que o tinha feito quando as suas recordações estavam ainda bem recentes, conforme o que sabia e de acordo com a sua consciência.

O presidente mandou ler o depoimento.

- «Passando do quarto de banho para a entrada para voltar à cozinha, ouvi alguém descer a escada correndo. O elevador está outra vez desarranjado, disse para comigo. O sobrinho de Mme Stringfors levava umas calças cinzentas, sapatos ligeiros, castanho-escuros, um casaco verde, rectifico, um casaco cinzento-esverdeado, na mão direita uma caixa de violino. Pensei: Ah!, esta juventude! e Porque corre ele assim? Naquele momento, a minha chaleira pôs-se a apitar...»

- Bem - disse o presidente. - Não tem nada a acrescentar?

- Não, Sr. Presidente, nada a acrescentar e nada a

suprimir.

- Muito obrigado.

O delegado do ministério público não tinha perguntas a fazer. Mas o defensor tinha-as:

- Pergunto ao senhor, porque certas testemunhas assinaram o depoimento sem o ler, releu o senhor o seu?

- Com certeza. Como profissional, tenho constantemente contratos para assinar. Sei o que significa uma

assinatura.

- Por conseguinte, o senhor leu o auto do seu depoimento antes de o assinar? Obrigado. Correspondia às vossas próprias declarações, ou o funcionário já o tinha

redigido?

- Se me permite que me expresse assim, ditei-o eu próprio ao empregado que o escreveu à máquina.

- Portanto, o auto reproduz fielmente as suas próprias palavras?

- Sim, doutor.

- Conhecia bem Mme Stringfors?

- Não conhecia praticamente ninguém no prédio, nem mesmo Mme Stringfors. É devido ao elevador. Temos um elevador que não se pode parar do exterior quando está em andamento. Uma vez lá dentro, não se encontra ninguém ao subir ou ao descer. Mesmo os meus vizinhos de patamar... só vim a conhecê-los ao fim de seis meses.

- Viu distintamente o rosto do acusado quando passou em frente da sua porta? Pode dizer-me que impressão lhe fez esse rosto?

- Meu Deus! - disse Braun -, o rosto... Não supus nada de mau. Disse para comigo simplesmente: «Porque está ele tão apressado?» Além disso, isso consta do auto.

- Parecia ele alguém que acaba de cometer um crime horrível?

- Aí - Braun hesitou -, aí, realmente, não posso dizer nada.

- Eis tudo por agora, muito obrigado.

O presidente regozijou-se deste breve depoimento e esfregou as mãos.

- Façam entrar a testemunha Clara Merck - exclamou quase alegremente.

Mme Merck apareceu, curvou-se em frente do júri e o porteiro viu-se obrigado a mandá-la voltar-se para o presidente. Ela tinha sessenta e sete anos, viúva, e recebia uma pensão por morte do marido. Estava de pé na barreira das testemunhas, trémula e um pouco curvada. As lentes dos seus óculos eram duma espessura que não podia passar despercebida. Declarou que se achava em frente do receptáculo do lixo quando Hubert Baldwin tinha passado por ela. Também tinha visto que ele levava um casaco cinzento-esverdeado, umas calças cinzentas e sapatos ligeiros, castanho-escuros, e uma caixa de violino.

Não tinha nada a acrescentar ao seu depoimento; nem o presidente, nem o delegado do ministério público lhe fizeram perguntas.

Mas a defesa, ela, queria, como sempre, saber mais.

- A senhora habita no quarto andar da casa na qual o crime foi cometido?

- Sim.

- Habita sozinha no seu apartamento?

- Não, com o meu filho, meu filho único.

- E encontrava-se precisamente em frente do receptáculo do lixo no corredor ao lado da escada?

- Sim, deitava flores murchas no receptáculo do lixo.

- O seu filho encontrava-se em sua casa naquele momento?

Mme Merck empalideceu visivelmente.

- Não - disse muito depressa -, ele é representante; não tem horas fixas no seu trabalho, e também não tem dia de oito horas.

- Portanto, estava sozinha?

- Sim.

- Quando o acusado passou a correr diante de si,

teve medo?

- Não. Ele desapareceu logo. Talvez tivesse tido medo se ele tivesse parado. Mas ele só passou.

- A que distância pouco mais ou menos o acusado passou diante de si?

- A cerca de cinco metros.

- Mas, em todo o caso, reconheceu este jovem? Mme Merck olhou para Hubert Baldwin e respondeu:

- Sim.

- Usa sempre óculos, ou só ocasionalmente?

- Ah! Sr. Juiz - respondeu Mme Merck, quase com familiaridade -, sem óculos, fico morta!

- Não sou juiz, senhora - explicou York -, mas o defensor do acusado. Saberá por acaso, Mme Merck, quantas dioptrias têm as suas lentes?

- Menos cinco, creio eu, ou mais. Não são iguais, uma vista é mais fraca que a outra. A esquerda? - perguntou a si própria. - Não, creio que é a direita...

- E, naturalmente, trazia os óculos?

- Com certeza.

York procurou com desespero o que podia ainda perguntar-lhe. Tinha a impressão de que era preciso fazer-lhe ainda uma pergunta, que precisava de tempo, que era preciso que não se deixasse empurrar pela pressa do presidente.

- Eu também - disse - sou míope; não tanto como a senhora, mas sem óculos, também eu, estou perdido. Tem a senhora óculos sobressalentes?

O presidente interveio:

- Doutor - perguntou-, o que é que isso nos adianta saber se Mme Merck tem ou não óculos sobressalentes?

- Estou quase a acabar - disse York, tentando acalmá-lo. - Já faço só algumas perguntas.

Portanto, Mme Merck, tem óculos sobressalentes?

- Não - disse ela. - Por que razão? Não jogo futebol, não parto as minhas lentes...

- Então, não tem óculos sobressalentes, e, os que usa, usa-os constantemente?

- Mal salto da cama. Só os tiro para lavar a cara.

- Bom - disse York. - Basta para os óculos. Voltemos ao seu filho, Mme Merck. Sabia, ou sabe

hoje, onde se encontrava o seu filho quando este rapaz passou correndo diante de si?

- Meu filho é adulto, doutor! Conta-me às vezes o que faz, mas eu não lhe faço perguntas.

- Está ao corrente da importância dos negócios dele, da situação das suas finanças?

Mme Merck hesitou, depois perguntou ao presidente se devia responder a esta pergunta.

- Pode responder por sim ou por não - propôs York.

- Não - disse ela muito depressa.

- Conhece outros inquilinos no prédio? Quero dizer: há lá pessoas que cumprimenta?

- Não.

- Nem mesmo uma senhora?

- Não.

- Conhecia a senhora que foi ferida mortalmente

por um automóvel?

- Não.

- Doutor - exclamou o presidente -, está a fazer de coca-bichinhos! Nunca mais poderemos respeitar o nosso horário; temos ainda a polícia judiciária, os peritos, Suzanne Rauschenbach, para ouvir. Penso que não tem, no entanto, a intenção de fatigar deliberadamente o tribunal?

York sentiu que corava.

- Sr. Presidente - exclamou ele-, não estou aqui para cansar o tribunal, mas para defender o meu cliente, e peço-lhe que me deixe fazer as perguntas necessárias à defesa. Afinal de contas, as provas da acusação são o assassínio e o roubo. O castigo que daí resulta o senhor conhece-o como eu. Estou convencido de que o Sr. Delegado do ministério público ouvirá Suzanne Rauschenbach duma maneira excessivamente minuciosa!

- Bom, então! - concedeu o presidente -, mas, pelo amor de Deus, não se afaste assim do assunto.

- Queria simplesmente perguntar ainda à testemunha se ela leu o auto do seu depoimento, antes de

o assinar?

- Que auto? - inquiriu Mme Merck.

- O da polícia?

- Assinei-o - disse Mme Merck.

- Sim, sabemos isso, mas tinha-o tornado a ler

antes?

- Não.

- O funcionário não lho deu para reler?

- É possível que tenha recusado isso.

- Portanto, não o releu.

O suor aljofrava a testa de York. Pelo amor do céu, que podia ele ainda perguntar-lhe?

- Quando o jovem passou na sua frente - perguntou ao acaso -, o que é que a impressionou particularmente?

Mme Merck reflectiu. E murmurou:

- O calçado, o casaco, as calças, a caixa de violino... Com certeza!... - exclamou ela -, a caixa de violino!

- Pode descrever-ma? A cor, por exemplo?

Era uma pergunta estúpida, pois que a caixa preta e quadrada estava colocada sobre a mesa em frente dos juízes.

- Não tenho a menor ideia - disse Mme Merck-, já era noite.

- Mas viu bem a cor do casaco - gritou York. - Que forma tinha a caixa de violino?

- Meu Deus! - disse Mme Merck -, que forma pode ter um estojo de violino?

- Isso não é uma resposta, Mme Merck. Que forma?

- Pois bem!, naturalmente, a forma dum violino - retorquiu Mme Merck com evidente descontentamento.

O presidente olhou para os seus juízes adjuntos, depois para o delegado do ministério público e lançou a York um olhar quase admirativo.

- Quer ter a bondade de repetir o que acaba de dizer? - pediu York.

- A forma de um violino.

- Obrigado - disse York, triunfalmente. - Ela não tinha precisamente essa forma! Era uma caixa rectangular. Como pode a senhora explicar-se a este respeito?

O olhar de Mme Merck, envergonhada, foi de York ao presidente, depois de novo a York.

- Além disso, porque disse «estojo de violino». Pois que a caixa preta que se encontra ali, diante de nós, é a que levava Hubert Baldwin e, vista do exterior, não se pode saber de modo nenhum se contém um violino.

Ela poderia ser, afinal, uma mala de mão. Que tem a senhora a dizer, Mme Merck?

A voz de York tinha-se tornado alta e áspera.

Mme Merck abriu várias vezes a boca para dar uma explicação, mas não achou nenhuma. Finalmente declarou que não se sentia bem. Ameaçava cair e um guarda teve de a amparar, enquanto um outro lhe trazia, a um sinal do presidente, uma cadeira e um copo de água.

A sala começava a agitar-se e o presidente parecia consternado ao ver esta mulher que ou fingia bem ou, então, ia realmente desmaiar. A sua experiência de há mais de dez anos insinuava-lhe que se tratava antes de simulação.

Mas se ela estava, na verdade, doente e se, no fim de contas, ela falecia na sala, era ele que suportaria a responsabilidade disso!

- Que fazemos? - perguntou ao delegado do ministério público e ao defensor.

O delegado do ministério público lia um papel que acabavam de lhe trazer. York assegurou:

- Lamento, mas não posso renunciar a interrogar esta testemunha, e é preciso que seja hoje mesmo.

O presidente pareceu reflectir. Antal dirigiu a York um sinal de aprovação e fez para Hubert um gesto animador. Naquele momento, o delegado do ministério público levantou-se bruscamente e bradou:

- Peço a comparência da testemunha Adalbert Weis-mantel.

- O quê? - gemeu o presidente. - Mais uma? O que

sabe esse?

O delegado do ministério público esperou que o silêncio fosse restabelecido. Depois, com uma voz primeiro muito suave, que tomou amplitude progressivamente, declarou:

- Este homem virá testemunhar que em 23 de Fevereiro levou o acusado no seu táxi até à casa da vítima, onde ele entrou depois de ter pago o trajecto. O que significa que o acusado teve o sangue-frio de voltar ao local do crime.

York levantou-se de um salto e gritou a Hubert:

- É verdade?

Hubert fez um gesto ao mesmo tempo de assentimento e de desculpa.

- Mas o senhor é doido - gritou York -, completamente doido!

- Que o elevador tenha funcionado ou não - disse o delegado do ministério público, tentando falar mais alto que York - não tem doravante a mínima importância! Visto que o acusado tinha ainda com ele a caixa de violino preta. Nós todos nos lembramos de que ele declarou que, depois de ter descoberto o cadáver da tia dele, não tinha voltado nunca mais à casa do crime...!

- Podemos continuar agora a inquirição de Mme Merck - perguntou o presidente quando os redemoinhos se acalmaram um pouco. - Está em estado de responder, minha senhora, e de continuar o seu depoimento?

Clara Merck parecia encantada. Sim, ela podia perfeitamente continuar.

- Sei bem, em todo o caso - disse ela -, que a caixa de violino era preta. Mas o acusado tapava-a com o corpo, foi por isso que não vi exactamente a forma.

- Obrigado - disse York, num tom cansado. - De momento, não tenho mais perguntas a fazer-lhe.

O presidente conversou um momento com o seu juiz adjunto, olhou para o relógio e adiou a audiência para o dia seguinte de manhã, 9 horas.

- Porque me escondeu esta história de táxi? - perguntou York, furioso, a Hubert, enquanto a sala se esvaziava.

- Da primeira vez, não lho disse porque o tinha realmente esquecido. E, depois, quando vi que parecia acreditar-me, e quando me lembrei disso, já não ousei. Além de que, nunca se falou nisso.

- Mas que voltava o senhor a fazer nessa casa?

- Procurar a minha luva.

- E porque não a apanhou? Não subiu?

- Sim.

- E então?

- A porta estava fechada.

- A porta de entrada?

- Sim.

- Tinha fechado a porta ao fugir?

- Certamente não...

- E agora? - perguntou York, que tinha perdido toda a sua firmeza. - Está realmente certo que me disse verdadeiramente tudo?

- Sim - balbuciou Hubert -, e, peço-lhe, acredite-me. Senão... Sei bem que me portei como um... Mas, se já não me acredita...

York fez sinal que sim.

- O senhor! - disse ele -, não estou a ponto de o

esquecer!

E, quando os guardas levaram Hubert Baldwin, esforçou-se para lhe sorrir. Por detrás dele, ouviu a voz de Melle Mayer.

- Seja como for, não é ele, não é ele o culpado! York pôs-se de pé.

- Se, daqui a vinte e quatro horas, não agarrarmos o assassino, ele não será absolvido.

Quando vi a velha Merck engelhar-se diante de mim, via já despontar a absolvição. -E agora?

- Agora? Já não vejo mais nada. Isto toma um mau

aspecto!

- Mas eu - disse Melle Mayer - vejo bem. Poderia aqui mesmo nomear no mesmo instante o assassino.

- Livre-se disso! Venha, vamo-nos embora!

No corredor, encontrou o Sr. e a Sr.a Baldwin e Suzanne Rauschenbach, que esperavam ouvir-lhe a confirmação da má notícia. Estavam desesperados. Suzanne tinha os olhos vermelhos.

- Não consigo compreender este garoto - exclamou Baldwin. - Como pôde ele...?

- Que quer dizer? - perguntou York.

- ... voltar ao local do crime!

- Se ao menos mo tivesse dito - respondeu York. - Não pode tê-lo esquecido, não é possível!

- Doutor, podemos conservar ainda alguma esperança? - perguntou Mme Baldwin.

- Com certeza que sim - respondeu York, evitando o olhar dela. - Falta muito para termos perdido. Sei talvez certas coisas que não tinha empenho em revelar por agora.

- Como pôde ele voltar junto dela! - repetiu Baldwin, completamente transtornado. - Não compreendo! Isso não se parece com ele.

York passou o braço pelo ombro de Suzanne.

- Não se aflija assim! - disse-lhe ele. - Se lhe pudesse falar amanhã, que lhe diria?

- Passava-lhe uma descompostura - disse Suzanne, tentando gracejar.

York não se iludiu. Ela calou-se um momento, observando-o atentamente.

- Com franqueza - disse, corajosamente -, há ainda alguma esperança?

York tentou sustentar o olhar dela.

- Se interrogasse Melle Mayer - disse sorrindo -, ela lhe afirmaria que conhece o nome do assassino. Mas eu proibi-lhe de o revelar!

- É verdade? - perguntou Suzanne.

- Tão verdade como estar eu na sua frente.

- Nestas condições, porque não poupar a Hubert, como a nós próprios, uma noite pavorosa?

- Porque quero eu ter certezas. Neste momento, Melle Mayer e eu próprio devemos voltar ao escritório. Estou persuadido de que me compreendem.

York despediu-se o mais depressa que pôde.

Alguns momentos mais tarde, quando deixou o vestiário dos advogados, estava muito menos optimista. Tinha encontrado ali Stark, que, apertando-lhe a mão com aspecto fúnebre, lhe tinha dito num tom lúgubre, como se lhe desse os pêsames: «Meu pobre amigo! Estou ao corrente!»

Antal esperava-o ao fundo da escada, no vestíbulo:

- Coragem, meu velho! - disse-lhe com ar preocupado. - Este Baldwin procedeu com inqualificável falta de senso, mas, no entanto, não o podes abandonar! Finalmente, estavas quase livre do melaço. Não desanimes amanhã, com a leitura dos jornais.

- Porquê?

- Oh!, tenho a impressão de que vai haver artigos sobre «o assassinato em vários episódios» com, de certeza, pontos de interrogação. É preciso dizer que é belo de mais, para certos jornalistas: um assassino que começa por matar, depois vai para o cinema com a sua amiguinha, para voltar em seguida junto da sua vítima para a roubar...

- Que vais tu escrever? - perguntou York.

- Se eu o soubesse! - suspirou Antal. - Em todo o caso, tranquiliza-te, não sou eu que te vou arrasar.

- Se eu soubesse como vou reencontrar-me amanhã - disse York, apertando a mão de Antal. - Se souberes qualquer coisa com interesse, podes encontrar-me, quer seja no escritório, quer seja em casa da minha mãe. Boa noite.

 

GOLPE DE TEATRO.

No escritório havia alguns assuntos a pôr em ordem e o correio, que não tinha trazido nada de novo para examinar. A assinatura não foi senão um reles derivativo.

Depois de uma chávena de café, York sentiu-se melhor. Releu novamente os depoimentos das testemunhas e comparou em particular as de Clara Merck e de Braun. As descrições que tinham feito de Hubert concordaram em absoluto, quase de mais. Havia ali qualquer coisa suspeita? - York reflectiu. O telefone tocou.

- Deixe - disse ele a Melle Mayer. - Ou antes, sim, atenda!

Ela pegou no auscultador. Durante um momento escutou com atenção, depois:

- Um momento - disse -, queira ter paciência, peço-lhe.

Passou o telefone a York.

- Quem é?

- Um oculista, Rosner. Ou qualquer coisa no género.

- Não paguei os meus últimos óculos? - perguntou

York antes de responder.

- É o Dr. York? - perguntou uma voz de homem na outra ponta do fio.

- Sim - disse York. - A quem tenho o prazer de falar?

- Rosner - disse a voz. - O seu oculista. Lembra-se?

- Sim, sim, naturalmente - disse York. - De que se trata, Sr. Rosner?

- Afirmo-lhe imediatamente que não venho pedir-lhe nada. Mas descobri qualquer coisa de estranho, que talvez pudesse interessar-lhe. Conhece a minha filha?

- Uma senhora morena, com óculos escuros?

- Exactamente. Ela não tem por hábito seguir as audiências no Supremo Tribunal de Justiça, mas, quando soube que o senhor advogava neste caso, disse-me que tinha tido um dia uma conversa muito agradável consigo, isso interessou-a e dirigiu-se à audiência.

- Foi muito amável - disse York, desapontado -, transmita-lhe os meus cumprimentos.

- Não deixarei de o fazer - disse o Sr. Rosner. - Hoje ouviu- se o depoimento de Mme Merck, como testemunha, e o senhor fez-lhe perguntas acerca dos óculos dela, perguntando-lhe se os usava, e se tinha óculos sobressalentes. Entre parênteses, muito obrigado por ter feito essa pergunta, é o que digo sempre aos meus clientes, que lhes é preciso dois pares de óculos, mas, a maior parte das vezes, as pessoas não pensam nisso...

- Sim, e então, Sr. Rosner?

- Volto ao motivo do meu telefonema. Uma coisa é certa: Mme Merck só tem uns óculos. A minha filha lembrou-se que um dia Mme Merck nos tinha trazido os seus óculos para consertar; não eram as lentes, mas a armação que estava partida. Nós pudemos soldá-la, podia explicar-lhe isso, mas não tem importância. Após isso, fui ver no livro das encomendas QUANDO se efectuou essa reparação.

- Sim - disse York, de repente enrouquecido -, e foi quando?

 

- Levei muito tempo a encontrá-la, foi preciso voltar atrás mais de sete meses!

- Era portanto - York reflectiu a toda a pressa - em Fevereiro?

- Exactamente em Fevereiro.

- A quantos?

- Queira tomar nota, doutor - disse o oculista. - Mme Merck trouxe-nos os seus óculos em 23 de Fevereiro às 14 horas e, como o nosso operário se tinha ido embora para um enterro e eu não tinha tempo, e, para mais, minha filha se ocupa da clientela, não pudemos fazer logo o concerto; tivemos então de pedir à cliente para ter paciência até ao dia seguinte de manhã às 10 horas; e foi àquela hora que veio outra vez buscar os óculos!

York esteve quase a desmaiar.

- O que me diz, Sr. Rosner, posso fiar-me nisso em absoluto?

- Absolutamente. Tenho na minha frente o meu registo, onde isso está lançado.

- O senhor sabe que dia era 23 de Fevereiro?

- Perfeitamente - respondeu Rosner -, é o dia em que Mathilde Stringfors foi assassinada.

- Sabe a que horas?

- Sim, entre as 18 horas e 18.15. Vinha nos jornais.

- Portanto - murmurou York -, precisamente no momento em que Mma Merck não tinha óculos. Como é possível então que ela pudesse ver Hubert Baldwin tão distintamente?

- É, na verdade, o que é extraordinário - disse o Sr. Rosner - e é por isso que telefono. Quer dizer, é a minha filha que insistiu para que eu o fizesse.

- Sr. Rosner - disse York -, prometo comprar-lhe uma meia dúzia de óculos sobressalentes, se a sua informação me puder ser útil.

Poderia o senhor vir amanhã de manhã ao Palácio de Justiça com o seu registo de consertos?

- Mas com certeza - disse Rosner -, se posso ajudá-lo...

- Oh!, pode sim! - exclamou York -, o senhor pode. Transmita os meus cumprimentos e os meus agradecimentos à menina sua filha. Ou devo dizer: «Senhora sua filha»?

- Não, não, ela é ainda solteira.

- Então, à menina sua filha. E, de todo o coração, obrigado!

York desligou.

- Ouviu? - perguntou ele a Melle Mayer.

- Sim - disse ela -, tem uma admiradora!

- E, além disso, de 23 de Fevereiro às 14 horas, a 24 de Fevereiro às 10 horas, Mme Merck não tinha óculos.

- Vai denunciá-lo? - perguntou Melle Mayer.

- Quem?

- Carl Merck.

- Pergunto-o a mim mesmo - disse York -, que nos falta fazer.

- Duas cartas que devem partir hoje.

- Bem - disse York. - Depois vamos lá...

- Vamos aonde?

- Gostaria de ver novamente...

- O quê?

- A casa do crime...

- O que tem? - perguntou York, quando entraram no prédio e se dirigiram ao elevador.

- Não sei; um arrepio esquisito!

- Porquê? Tem medo?

- Não, não é medo, uma impressão estranha... York fê-la entrar antes dele, fechou a porta da cabina

e carregou no botão do nono andar.

- Sobe até lá cima?

- Sim.

- Fazer o quê?

- Se eu o soubesse... - disse York.

Quando o elevador parou, saiu antes, ajudou a secretária e voltou a fechar a porta.

- E agora? - perguntou ela.

- Um pouco de paciência. Se não me engano - o elevador tornou a descer -, vê, disse... espero não me ter enganado.

- Se soubesse ao menos o que o senhor quer! - disse Melle Mayer, com um tudo-nada de irritação.

- Espere - disse York.

Isso não tardou muito tempo. O elevador tornou a subir, parou no nono andar, e o Sr. Novotny saiu dele.

- Mas que fazem aí? - perguntou ele, surpreendido desagradàvelmente.

- E o senhor? - perguntou York -, que faz aqui o senhor?

- Eu? - disse Novotny -, eu moro aqui!

- Ah bom! - disse York -, no nono andar? Vem muitas vezes aqui?

- Sim.

- E alguém mais vem aqui também?

- Porque me pergunta isso?

- Porque dizem que os assassinos voltam sempre ao local do crime.

- E o senhor? - perguntou Novotny, depois de demorado silêncio, num tom muito menos seguro -, que faz o senhor aqui?

- Oh!, nada. Olhar para coisas. Se as portas estão bem seladas e...

- E quê?

- Ver se alguém ia seguir-me. Porque amanhã - disse York - nós saberemos se se condena ou não um inocente.

Novotny tornou-se lívido.

- O senhor não pensa todavia que sou eu?

- Enquanto penso nisso - disse York. - Todos os ralos da casa são semelhantes?

- Porquê?

- Gostaria de saber...

- Com certeza - disse Novotny -, foram fabricados na mesma oficina.

- Obrigado - disse York. - Quer deixar-nos sozinhos agora?

- Porquê?

- Se eu fosse o senhor, Novotny - exclamou York -, não hesitaria a tal ponto. Não tem empenho, penso eu, em tornar-se suspeito.

Novotny foi-se embora, visivelmente agitado pelos mais diversos sentimentos.

- Se eu soubesse tudo o que ele sabe! - suspirou York, quando se encontrou outra vez sozinho com Melle Mayer.

- Que quer fazer agora?

- Vou tocar à porta no andar de baixo e pedir para espreitar pelo ralo.

- E eu?

- Você, você vai passar a correr. E depois tornamos a fazer isso uma ou duas vezes.

- Em casa de Braun também?

- Não, não em casa de Braun. Mas por cima e por baixo da casa dele. Em casa de Braun, só me certificarei, na medida em que se pode ver do exterior que o ralo dele é do mesmo modelo que os outros.

- Porque não vai a casa de Braun?

- Porque ele é testemunha.

York repetiu a experiência quatro vezes a seguir. Duas vezes no apartamento por cima do de Braun, duas vezes no de baixo. O resultado foi sempre o mesmo. Da cabeça aos joelhos, via Melle Mayer perfeitamente.

Melhor mesmo do que tinha pensado. Para não descuidar nada, mediu outra vez a distância do receptáculo do lixo à escada. Se, realmente, Mme Merck se encontrava nesse lugar, só havia, na mais favorável hipótese, cinco metros apenas entre ela e Hubert.

Quando deixaram a casa, Novotny observava-os através do ralo. Fingiram não dar por isso.

- O senhor encontrou o que procurava? - perguntou mMe Mayer na rua.

York sorriu.

- Amanhã - disse -, na sala do Tribunal, se tivermos sorte, sabê-lo-ei.

- Ele virá?

- Quem? O assassino? Penso que sim.

- E se ele tentasse fugir?

- Vou telefonar esta noite a Antal. Antal prevenirá os guardas. Se ele conseguir sair da sala, não irá longe...

- E se está armado?

- Isso não lhe servirá de nada.

- O senhor não me quer dizer quem é?

- É preciso que releia novamente todos os autos, será só então que saberei exactamente...

Passava um táxi. York chamou-o, levou a secretária a casa dela, depois regressou a casa da mãe.

- Antal telefonou - disse ela.

- Porquê?

- O serralheiro-montador disse-lhe que está CERTO que a tia tinha dito que TINHA uma visita.

- Sei - disse York.

- Que tinha alguém em casa dela?

- Sim - respondeu York.

 

Antal não se tinha enganado. Três redactores não resistiram à tentação. «O crime em vários episódios» era um título aliciante.

«Cometeu-se o crime em dois tempos?» Intitulava-se um. Num outro: «O cinema entre o assassinato e o roubo.»

Um terceiro: «Assassinato antes do cinema, roubo depois.» Antal, ele, tinha escrito: «Um advogado em busca da verdade.»

Pouco antes do início da audiência, York tinha encontrado Rosner no vestíbulo. Apertou-lhe a mão cordialmente e examinou com atenção a página do livro dos consertos.

- Nunca teria imaginado - disse Rosner - que a minha mania da ordem teria um dia tanta importância!

- Não ficará ofendido - perguntou York - se, por acaso, não o convocarem como testemunha?

- O essencial - disse Rosner - é que o senhor atinja o seu fim.

- Tenho essa esperança - disse York. - Vou tentar fazê-lo perder o menos tempo possível.

Hubert aparentava ter passado mal a noite. Pálido e abatido, estava prostrado no seu banco ao lado do guarda. Mal deu pelo sinal de cabeça tranquilizador de York.

O delegado do ministério público cumprimentou York amavelmente. Para ele, o caso já parecia liquidado e só se podia lastimar este jovem advogado do qual a primeira causa importante ia terminar desastrosamente pela condenação do seu cliente.

Os jurados evitaram o olhar de York. Só aquele que tinha lido o jornal por ocasião da primeira audiência o encarou com ironia.

O presidente parecia ter dormido bem. Entrou na sala num passo vivo, sentou-se e recomeçou o seu joguinho costumado que consistia em empurrar os papéis de aqui para ali até que cada um deles tivesse encontrado o lugar que lhe parecia conveniente. Enfim, levantou a cabeça e perguntou:

- Então? Há ainda novas testemunhas?

O delegado do ministério público abanou a cabeça sorrindo.

York sorriu igualmente e disse:

- Isso depende. Não consegui ontem interrogar Mme Merck até ao fim; tenho ainda duas perguntas a fazer-lhe.

- Não há oposição? - perguntou o presidente ao delegado do ministério público.

Este encolheu os ombros e sorriu.

- Mas, então, rapidamente, se faz favor - disse o presidente. - Façam entrar Mme Merck.

Mme Merck dirigiu-se aos juízes.

- Sente-se melhor hoje? - perguntou-lhe o presidente - ou deseja sentar-se imediatamente?

- Sinto-me muito bem - respondeu Mme Merck num tom afectado.

«Coitada», pensou York, «se ela soubesse!» E começou.

- Antes que lhe faça perguntas, Mme Merck... o seu filho estava ontem na sala?

- Não.

- E hoje, está cá?

- Sim, hoje, está cá.

- Bem. Muito obrigado. Volto outra vez a este assunto dos óculos - continuou York, fingindo não ouvir o suspiro do presidente. - Disse-nos ontem, não é verdade, que não tinha óculos sobressalentes?

- Sim - respondeu Mme Merck com enfado.

- E disse, além disso, que levava os seus óculos quando Hubert Baldwin tinha passado na sua frente a cerca de cinco metros de distância?

- Sim, perfeitamente.

- Sabe que as suas respostas não me são só destinadas a mim, mas que interessam igualmente ao tribunal?

- Sim.

- Então porque - York acentuou um tempo de hesitação -, porque mente a senhora ao tribunal?

Mme Merck olhou para o presidente com ar suplicante. Este pediu primeiro silêncio à sala. Mas, antes mesmo que tivesse podido interrogar York, este tinha já retomado a palavra.

- Na hora em que Mme Merck pretende que se encontrava no patamar, SE ela lá estava!, não estava na posse dos óculos, que são, nós o sabemos, bastante fortes.

- Não é verdade! - gritou Mme Merck.

- Está aqui - retorquiu York - um oculista conhecido por muito honrado na nossa cidade, com o seu livro de consertos debaixo do braço. Neste livro, está lançado que em 23 de Fevereiro, às 14 horas, quer dizer, cerca de quatro horas antes do crime, a senhora lhe trouxe os seus óculos, dos quais os aros estavam partidos, e que só voltou a buscá-los no dia seguinte, 24 de Fevereiro, às 10 horas da manhã!

Desta vez, Mme Merck precisou duma cadeira.

- Então, Mme Merck? - perguntou o presidente. - O que diz a defesa é exacto?

Aniquilada, Clara Merck fez sinal que sim.

York voltou os olhos para Antal e ergueu as sobrancelhas com ar interrogador. Antal fez um sinal afirmativo. No banco das testemunhas, Novotny torcia o lenço, e Braun, com as pernas cruzadas, parecia indiferente aos debates.

- Porquê - perguntou com ar grave o presidente -, porque fez isso?

Clara Merck manteve-se em silêncio.

- Dá-me licença, Sr. Presidente, de responder a essa pergunta? - pediu York, e, sem esperar o consentimento deste, continuou: - Porque Mme Merck julga o filho dela como o assassino de Mme Stringfors. É certo, Mme Merck?

Mme Merck caiu desamparada.

- Enquanto... - acrescentou York muito depressa, depois de um silêncio bastante prolongado -, enquanto o filho não é certamente o assassino. Ele não tinha nenhuma razão de o ser.

Tinha recebido dinheiro de Mme Stringfors de maneira perfeitamente lícita e não pedia nada mais. No entanto, há uma coisa que gostaria de saber agora - disse York, voltando-se para Mme Merck: - QUEM lhe descreveu Hubert Baldwin?

- Então, Mme Merck? - insistiu o presidente, depois de ela ter ficado muito tempo sem responder.

- Além disso - exclamou York -, não precisamos da resposta dela. Ela ali está, a resposta, escrita preto no branco no processo. Foi mesmo o próprio assassino de Mme Stringfors que lha deu.

O olhar de York voltou-se para o banco das testemunhas. Novotny levantou- se subitamente e pôs-se a gritar:

- Não fui eu! Asseguro-o! Não fui eu!

- Mas, Sr. Novotny! - acalmou-o York -, porque se agita assim? Com certeza que não foi o senhor!

York voltou-se para o presidente, que empurrava a orelha direita para a frente com o indicador.

- Duas coisas traíram o assassino. Dois pormenores na descrição muito exacta da pessoa do pressuposto culpado. É por isso que lhe peço, Sr. Presidente, que mande deter a testemunha Braun, sob a acusação de assassinato de Mathilde Stringfors.

Aparentemente muito calma, a testemunha Braun levantou-se.

- E porquê, se faz favor? York voltou-se para ele.

- Foi o único que releu o auto do seu depoimento, disse-o mesmo o senhor ontem neste recinto, nós todos o ouvimos. Foi o único que reconheceu que tinha ditado as suas respostas ao funcionário que o interrogava. Ditou-lhe portanto que o sobrinho de Mme Stringfors tinha sapatos ligeiros castanho-escuros. Mas, se tivesse visto Baldwin através do ralo da sua porta, não lhe teria visto o calçado. Pois que não foi através do ralo, por detrás da sua porta, que o senhor o viu, mas atrás do cortinado da porta envidraçada na entrada de Mme Stringfors, esta porta envidraçada que servia de comunicação com o segundo apartamento. Foi só dali que poderia ter visto o calçado do acusado. E vou provar-lhe que o senhor se encontrava efectivamente nesse sítio. O senhor mesmo reconheceu nunca ter visto o acusado. Porém, no seu auto, foi dito terminantemente que era o sobrinho de Mme Stringfors. Como poderia saber, de alguém que lhe era completamente desconhecido, que se tratava do sobrinho da vítima? Porquê? - York levantou a voz e estendeu o braço na direcção de Braun -, porque, atrás da porta envidraçada, não somente viu o calçado castanho, mas ouviu também o jovem aterrorizado, gritar aflitivamente: «Minha tia!, oh!, minha tia!» Além disso, teremos de verificar se o desastre sofrido pela senhora de idade que habitava o mesmo prédio que o senhor não está relacionado directamente com o crime de que nos ocupamos hoje.

Braun tinha baixado a cabeça. Não respondeu, quando o presidente lhe dirigiu a palavra, e deixou-se levar sem resistência.

Alguns momentos mais tarde, o Sr. e a Sr.a Baldwin, Suzanne e York esperavam na sala dos passos perdidos a libertação de Hubert.

O Sr. Baldwin passeava nervosamente de trás para diante.

- Não posso acreditar - repetia ele, batendo na testa -, esta reviravolta repentina não me entra na cabeça!

- Será bem preciso acostumar-se a ela!

Mme Baldwin parecia ter mais dificuldade em suportar a alegria que os desgostos. Sentada num banco, ela parecia completamente prostrada e não deixava de abanar a cabeça. Quanto a Suzanne, estava encostada à parede e olhava para a frente.

- O que vai fazer - perguntou York -, quando ele sair?

- Vou dizer-lhe que, se ele quiser, pode terminar o nosso noivado. Porque, na realidade, fui só eu que decidi que estávamos noivos.

- Se eu fosse você - aconselhou York -, não lhe diria nada disso hoje. Espere de preferência até amanhã...

- Porquê?

- Porque, amanhã, já talvez não lho diga!

- Para onde foi Melle Mayer? - perguntou Suzanne.

- Ela foi a um florista. E está a encomendar um belo ramo para a filha do oculista que tanto nos ajudou!

- Naturalmente - exclamou Baldwin -, sou eu que vou pagar as flores!

- Nada disso - respondeu York -, são as minhas flores e sou eu que as pago. Nada o impede de lhas enviar também!

- Obrigado por mo lembrar. Em todo o caso - disse Baldwin, parando o seu vaivém e olhando para o comprido corredor -, há uma coisa que ainda não compreendi. Como diabo caiu o senhor assim de repente sobre a testemunha Braun?

- Porque era o único suspeito capaz de manejar o elevador. Ele tinha feito, todavia, um cálculo errado: duas pessoas subiram a pé até ao nono andar, o serralheiro-montador de fato-macaco e Hubert. O serralheiro-montador viu que não havia casaco pendurado no vestiário, quando se estava em Fevereiro e a temperatura lá fora menos não sei quanto; então pensei imediatamente num visitante do prédio.

- O que quer dizer... - continuou Baldwin, procurando as palavras. - Mesmo assim não é pavoroso pensar que ela foi assassinada quando Hubert já se encontrava no edifício e subia para a casa dela?

- Sim. É assim que isso se deve ter passado - respondeu York. - Para ficar completamente sossegado, Braun tinha deixado a porta entreaberta, a fim de ouvir se havia ruído no patamar.

- Pelo contrário, se Hubert lá tivesse ficado e tentasse telefonar, ele também poderia ter sido... Na realidade, ele seguiu a sua intuição.

- Sim, naquele momento. Mas, em seguida, é preciso reconhecer que lhe faltou por completo.

- E tudo isto - resmungou Baldwin - porque não quis ouvir-nos. Uma pequena coisa, aparentemente sem gravidade, que esteve quase a acabar numa tal catástrofe !

Ao fundo do corredor, abriu-se uma porta. Hubert adiantou-se num passo hesitante. Suzanne correu para ele. Ficaram abraçados no meio do corredor, imóveis, mudos, molhando cada um com suas lágrimas as faces do outro. Os pais, eles também, queriam beijar o filho. Mas York deteve-os.

- Venham - disse-lhes ele, mudando os óculos vulgares por óculos escuros. - Venham dar alguns passos comigo. Aqueles dois ali têm um grande atraso de lágrimas para chorar.

 

                                                                                Othmar Franz Lang  

 

                      

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