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Series & Trilogias Literarias
XVIII
UMA CONFISSÃO
(Quarta-feira, 19 de junho — uma da tarde)
Quando nos vimos na rua, Markham perguntou:
— Como sabia você, homem do diabo, que ela tinha entregue as jóias a Pfyfe?
— Minhas sedutoras deduções metafísicas, sabe? Eu lhe disse que Benson não era o mão-aberta, o grande coração altruísta que fosse emprestar dinheiro sem garantia; e é claro que, se o pobre do Pfyfe possuísse coisa que valesse dez mil dólares não teria falsificado o cheque. Ergo: alguém emprestou a garantia. Agora, quem teria tanta confiança em Pfyfe para lhe conceder garantia daquele valor, senão uma sentimental mulher, cega para os seus formidáveis defeitos? Você sabe que meu espírito estava atento à procura da Calipso, que eu suspeitava existir na vida deste Ulisses, quando ele nos disse que ficara em Nova York para dizer adeus a alguém. Quando um homem como Pfyfe omite o sexo da pessoa, é certo que é o feminino. Por isso, lembrei que mandasse Paulo Pry a Port Washington, para sindicar de suas aventuras extramatrimoniais: eu tinha a certeza de que seria encontrada alguma mulher. Mais tarde, quando o misterioso pacote, que devia ser o penhor, pareceu identificar-se com a caixa de jóias vista pela curiosa governanta, disse comigo: “Foi a extraviada Dulcinéia de Leandro quem lhe emprestou as jóias para livrá-lo da cadeia". Nem pensei que ele podia estar protegendo alguém na explicação sobre o cheque. E, assim que Tracy soube do endereço e nome da dama, tratei de marcar o encontro em seu nome...
Íamos passando pela residência de Schwab, estilo gótico-renascimento, que se estende desde a esquina da Avenida Oeste com Riverside Drive, até à Rua 73, e Vance parou por um momento a contemplá-la.
Markham esperou pacientemente. Afinal Vance recomeçou a andar.
—... No momento em que vi a Sra. Banning, percebi que minhas conclusões eram certas. Era uma alma sentimental, justamente a espécie de mulher capaz de lançar mão de suas jóias para ajudar o homem amado. Além disso, ela não trazia nenhuma consigo quando entramos — e uma mulher da sua casta lança sempre mão das jóias quando deseja causar impressão a estranhos. E ela é da espécie que não vive sem jóias, ainda que a despensa esteja vazia. Era só fazê-la falar, como vê.
— De um modo geral, você saiu-se muito bem. Vance concordou, condescendente.
— É muito generoso... Mas diga-me: minha pequena conversa com a dama não conseguiu lançar um raio de luz na escuridão do seu espírito?
— Naturalmente. Eu não sou completamente obtuso. Inconscientemente, ela favoreceu os seus planos. Acreditava que Pfyfe não veio a Nova York, senão depois do crime, e contou com toda a franqueza que tinha dito ao telefone, a Pfyfe, que Benson tinha as jóias em casa. A situação agora é essa: Pfyfe sabia que elas estavam em casa de Benson, e ele estava ali no momento em que o tiro foi disparado. Além disso, as jóias desapareceram, e Pfyfe tentou esconder seus passos naquela noite.
Vance suspirou, desesperançado.
— Markham, há árvores demais no caso, e você não pode ver a floresta por causa delas...
— Não é de todo impossível, Vance, que você, de tanto olhar para uma árvore em particular, não veja as outras.
Uma sombra passou pelo rosto de Vance. que respondeu:
— Oxalá você tivesse razão!
Era mais de uma e meia, e dirigimo-nos para o Salão da Fonte, no Ansonia, para almoçar. Markham mostrou-se preocupado durante toda a refeição, e ao entrarmos no trem subterrâneo consultou, inquieto, o relógio.
— Vou a Wall Street, falar com o major, antes de voltar ao escritório. Não posso compreender por que ele pediu a Miss Hoffman que não falasse no pacote... Afinal, pode ser que não contivesse as jóias.
— E você crê que Alvino disse a verdade ao major a respeito do embrulho? Não foi uma transação muito recomendável, e o major indubitavelmente lhe perguntaria por que a fizera.
A explicação do major veio justificar a suspeita de Vance. Markham contou-lhe a visita a Paula Banning, dando destaque ao episódio das jóias, na esperança de que o major falasse voluntariamente no pacote; sua promessa a Miss Hoffman impedia-o de declarar o que sabia.
O major ouviu-o muito admirado, os olhos esbugalhados, num furor crescente.
— Receio que Alvino me tivesse enganado. — disse ele, olhando fixamente para cima. — E entristece-me pensar nisso — continuou, com a expressão já mais benigna, — agora que ele já não existe. Mas a verdade é que, quando Miss Hoffman me falou esta manhã no envelope, também mencionou um pacotinho que estava na gaveta-cofre de Alvino; pedi-lhe que não falasse nisso em sua narração, pois sabia que eram as jóias da Sra. Banning, e julguei que isso só podia servir para gerar confusão dos assuntos, se o senhor viesse a sabê-lo. Alvino disseme que fora lavrada uma sentença contra a Sra. Banning, e que antes do processo Pfyfe lhe trouxera as jóias dela, pedindo-lhe que as seqüestrasse temporariamente.
Quando voltávamos para o Tribunal, Markham tocou no braço de Vance e disse-lhe sorrindo:
— Você, pelo que vejo, continua com sorte nas adivinhações...
— Mais ou menos! Dir-se-ia que o defunto Alvino, como Warren Hastings, resolveu morrer no último reduto da prevaricação... Magnificamente mentiroso, não?
— Em todo o caso. o major, inconscientemente, acrescentou mais um elo à cadeia contra Pfyfe.
— Você até parece que está fazendo coleção de cadeias... Que fez das que forjou para Miss St. Clair e Leacock?
— Não as abandonei de todo... se é o que suponho que quer dizer, — respondeu Markham gravemente.
Quando chegamos ao gabinete, Heath esperava-nos, radiante de satisfação.
— Tudo vai bem, Sr. Markham. Ao meio-dia, depois que o senhor saiu daqui, Leacock veio procurá-lo. Ao saber que saíra, telefonou para a Chefatura, e de lá o puseram em contato comigo. Queria falar-me para uma coisa muito importante, disse. Fui sem demora, e encontrei-o sentado na sala de espera. Foi logo dizendo: "Vim entregar-me à prisão. Matei Benson". Ditou a confissão a Swacker, e assinou-a... Aqui está, — disse, estendendo uma folha de papel escrita à máquina.
Markham sentou-se, fatigado, Começava a sentir os efeitos da tensão dos últimos dias. Suspirou pesadamente e disse:
— Graças a Deus! Estão terminados nossos tormentos! Vance sacudiu a cabeça com tristeza, dizendo-lhe:
— E eu acho, ao contrário, que apenas começaram! Markham passou os olhos pela confissão, entregando-a logo a Vance, que a leu atentamente, mostrando no rosto crescente expressão de regozijo.
— Ora veja você, este documento não é legal. Qualquer "juiz digno desse nome o desprezaria. Não é simples, nem preciso. Não começa com "saudações"; não contém um simples "considerando", ou um "assim sendo"; nada diz acerca do "livre vontade", nem de "perfeito juízo", ou "faculdades mentais"; o capitão não se refere a si como "parte interessada"... Sem nenhum valor, sargento. Se eu fosse você, atirava isto fora.
Heath, muito orgulhoso com o seu triunfo, não se incomodou: limitou-se a sorrir com magnânima tolerância.
— Isto parece-lhe divertido, Sr. Vance?
— Se você soubesse, sargento, a que ponto é engraçada esta confissão, riria a bandeiras despregadas... Realmente, — continuou voltando-se para o Promotor, — não tenho muita confiança nisto, Markham. Contudo, pode vir a ser uma alavanca poderosa para descobrir a verdade. E estou muito contente por ver o capitão revelar-se assim um escritor de ficção. De posse desta encantadora fábula, creio que poderemos vencer os escrúpulos do major e levá-lo a dizer o que sabe. Talvez eu me engane, mas vale a pena tentar a experiência.
Dirigiu-se para a mesa do Promotor e inclinou-se, falando com voz melíflua:
— Ainda não o levei a erro algum, amigo velho, e vou dar-lhe outra idéia. Fale com o major, e peça-lhe para vir aqui imediatamente. Diga-lhe que tem em mãos uma confissão — mas não diga de quem. Dê-lhe a atender que é de Miss St. Clair,
ou de Pfyfe, — ou de Pôncio Pilatos. Mas insista na sua vinda imediata. Diga-lhe que quer discuti-la com ele antes de lavrar o auto de acusação.
— Não compreendo a necessidade desse passo: tenho a certeza de encontrá-lo esta noite no Clube, e poderei dizer-lhe então...
— Não seria a mesma coisa, — insistiu Vance. — Se o major puder esclarecer-nos algum ponto, creio que o sargento Heath deve ouvi-lo.
— Por mim, — atalhou este, — não careço de esclarecimento algum.
Vance olhou-o, surpreso e admirado.
— Que homem extraordinário! Até Goethe gritava por mehr Licht! — mais luz! e você aqui sentado, em estado de saturação... Assombroso!
— Escute. Vance, — disse Markham, — porque tenta você complicar o negócio? Isso é perder tempo... Além disso, é uma violência chamar o major aqui para discutir a confissão de Leacock. Já não nos são necessárias as informações dele, de qualquer maneira?
A voz, áspera a princípio, amaciou afinal; porque, embora não estivesse disposto a conceder nada, a experiência dos últimos dias mostrara-lhe que Vance jamais fazia uma sugestão, sem motivo sólido.
Este, sentindo que ganhava terreno, aproveitou:
— Creia que meu pedido se funda em coisa mais importante do que o inútil desejo de contemplar as faces rubicundas do major... Afirmo-lhe, com toda a seriedade de que sou capaz, que a presença dele nos seria útil neste momento.
Markham ainda tentou fazer ponderações a respeito, mas Vance foi tão persistente que acabou por convencê-lo.
Heath, esse estava visivelmente contrariado. Sentou-se, porém, em silêncio, procurando consolação num charuto.
O major atendeu com admirável rapidez, e mal podia ocultar sua sofreguidão por ver a confissão. Enquanto lia, seu rosto se anuviava, e o olhar denunciava assombro.
Por fim levantou a cabeça, testa franzida:
— Não compreendo nada disto. Estou profundamente surpreendido, confesso... Não me parece crível que Leacock matasse Alvino... Contudo, posso-me enganar, é claro.
Depôs o papel sobre a mesa e sentou-se muito desapontado.
— E o senhor, — perguntou, — o senhor contenta-se com isto?
— Não vejo motivo para não acreditar. Se ele não é o culpado, por que viria confessar de motu proprio? Há muitas provas contra ele, e há dois dias estive a ponto de prendê-lo.
— É ele o criminoso, — adiantou Heath. — Eu estava com o olho nele desde o princípio.
O major Benson não replicou logo; parecia estar meditando nas palavras que queria dizer.
— Pode ser — isto é, não é de todo impossível — que Leacock tivesse um motivo superveniente para confessar.
Todos nós, penso, vimos aonde ele queria chegar.
— Concordo, — disse Markham, — que a princípio admiti a idéia de que Miss St. Clair era culpada, e dei-o a perceber a Leacock. Mas depois persuadi-me de que ela não estava diretamente envolvida.
— Leacock sabe disso? — perguntou vivamente o major.
— Não, — disse Markham, após um momento de reflexão. — Eu não posso dizer que ele o saiba. De fato, o mais provável é que ele pense que ela ainda me é suspeita.
— Ah! — exclamou o major, quase involuntariamente.
— Mas que tem isso? — perguntou Heath, irritado. — O senhor supõe que ele esteja disposto a ir a cadeira elétrica para salvar a reputação dela? Ora bolas! Essas coisas estão muito bem no cinema, mas na vida real... nenhum homem é assim tão louco.
— Eu não estou bem certo disso, sargento, — aventurou Vance, indolentemente. — As mulheres são muito sensatas e práticas para tais gestos de loucura; mas os homens, você sabe,, têm uma capacidade ilimitada para a idiotice.
E, voltando-se para o major, com olhar inquisidor:
— Pode dizer-nos por que julga que o capitão está fazendo. de paladino?
O major, em vez de responder diretamente, refugiou-se em generalidades, e não se mostrou nada inclinado a prosseguir na sua interpretação original do ato de Leacock. Vance interrogou-o por algum tempo, sem conseguir penetrar-lhe as reticências.
Heath, inquieto, falou afinal:
— O senhor não pode contestar a confissão de Leacock. Recorde os fatos: Ele ameaçou Benson de matá-lo, se o encontrasse outra vez em companhia da moça. Quando Benson tornou a sair com ela à rua, foi assassinado. Depois, Leacock ocultou a arma em casa dela, e quando as coisas começaram a esquentar, levou a pistola e lançou-a ao rio. Subornou o rapaz da portaria para obter um álibi; e foi visto em casa de Benson hora depois da meia-noite. Interrogado, nada pode explicar... Diabos me levem, se tudo isto não é mais que duvidoso!
— De fato, as circunstâncias são convincentes, — admitiu o major. — Mas não poderão ser explicadas de outra forma?
Heath nem se dignou responder a esta interrogação.
— Aqui está como eu vejo o caso: Leacock, desconfiado, aí pela meia-noite, pega na pistola e sai. Encontra Benson com a noiva e, conforme tinha prometido, mata-o. Se quer, ambos têm parte na coisa, mas foi Leacock quem deu o tiro. E agora chegamos à confissão... Não há um só jurado em Nova York que não o conheça culpado,
— Ora! Probi et legales homines... — murmurou Vance, enquanto Swacker aparecia à porta.
— Os jornalistas desejam ser recebidos, — disse ele, fazendo uma careta.
— Sabem eles alguma coisa a respeito da confissão? — perguntou Markham.
— Ainda não, — respondeu Heath. — Não fui tão longe, por isso estão reclamando. Mas eu lhes darei com que se entreterem, se o senhor permite...
Markham anuiu, e Heath dirigiu-se para a porta, mas Vance plantou-se vivamente na frente.
— Markham, não poderia conservar isto em segredo até amanhã?
— Sim, posso, se eu quiser, — respondeu Markham, contrariado. — Mas por quê?
— Por sua própria causa, se não for por outra razão. Você tem a presa bem segura, refreie a sua vaidade por vinte e quatro horas, Markham. Eu e o major sabemos que Leacock é inocente e amanhã, a esta hora, toda a cidade o saberá.
Seguiu-se outra discussão, mas o resultado, como da vez anterior, foi a vitória de Vance: Markham compreendera afinal que Vance tinha uma certeza que ainda não queria divulgar. Pareceu-me que se opunha ao pedido de Vance para ver se descobria o que era; e convenci-me disso quando o via agora, ponderar gravemente sobre a conveniência de se tornar pública a confissão do capitão.
Vance, conforme o seu costume, nada quis revelar, e acabou por Markham pedir a Heath que esperasse até ao outro dia. O major manifestou sua aprovação por um gesto.
— Você pode dizer aos rapazes dos jornais, — lembrou Vance, — que lhes reserva uma notícia sensacional para amanhã!
O sargento saiu, sombrio e abatido.
— Um camarada arrebatado, este sargento. Tão impetuoso! — comentou Vance, pegando de novo na folha de papel da confissão, que tornou a ler atentamente.
— Agora, Markham, peço-lhe que mande buscar seu prisioneiro independente de habeas-corpus, etc. Instale-o naquela cadeira em frente da janela, dê-lhe um daqueles charutos que você reserva para os políticos de influência, e depois escute atentamente enquanto eu converso polidamente com ele... Espero que o major também fique para ouvir.
— Um pedido que posso deferir sem objeção, — respondeu Markham, sorrindo. — Eu já havia resolvido falar com Leacock.
Apertou um botão, e apareceu um funcionário de rosto corado e alegre.
— Uma requisição para o Capitão Filipe Leacock, — ordenou o Promotor.
Saiu o funcionário pela porta do corredor, e dez minutos depois entrava o preso, acompanhado por um oficial da Torre do Tombo.
XIX
NOVO INTERROGATÓRIO
(Quarta-feira, 19 de junho — 3h30 da tarde)
Vinha indiferente e abatido o capitão Leacock — ombros ·caídos, braços pendentes, olhar macilento da prolongada vigília. Avistando o major Benson, aprumou-se e dirigiu-se a ele, estendendo-lhe a mão. Era claro que, mesmo não gostando de Alvino Benson, considerava o major como um amigo. De repente, porém, lembrou-se da situação em que estava ali e suspendeu o gesto, embaraçado. O major adiantou-se e tocou-lhe no braço.
— Vamos, Leacock, — disse suavemente. — Não posso acreditar que você tivesse matado Alvino.
O capitão voltou-se, com uma apreensão no olhar, e disse com voz abatida:
— Sim, matei-o! Eu disse a ele que ia matá-lo. Vance indicou-lhe uma cadeira.
— Sente-se, capitão. O Promotor deseja ouvir de sua própria boca a história do crime. Compreende, não é? A lei não.aceita confissões de assassinato, sem provas evidentes. E como, neste caso, há outras pessoas suspeitas, precisamos que responda a algumas perguntas, para comprovar sua culpa. Senão, teremos de continuar a suspeitar de outros além do senhor.
Sentou-se em frente a Leacock e pegou na confissão escrita.
— Diz aqui que não ficou satisfeito pelo fato de o Sr. Benson tê-lo injuriado e que foi à sua casa, mais ou menos à meia hora do dia treze... Quando falou em insultos, referia-se às atenções que ele dispensava a Miss St. Clair?
O rosto do capitão traiu-lhe o agressivo estado de espírito.
— Que importa a razão por que o matei? Não pode deixar Miss St. Clair de parte?
— Sem dúvida, Prometo-lhe que ela não será envolvida nisto. Mas precisamos de conhecer completamente o motivo que o impeliu.
— Perfeitamente, — disse Leacock após um curto silêncio.
— Foi bem como eu narrei.
— Como soube que Miss St. Clair ia jantar com o Sr.. Benson naquela noite?
— Eu os seguira até ao Marseilles.
— E depois, voltou para casa?
— Sim.
— Por que voltou à casa de Benson?
— Fiquei pensando naquilo, até que não pude suportar por mais tempo. Comecei a ver tudo vermelho, e afinal peguei na minha Colt e saí, resolvido a matá-lo.
Sentia-se crepitar naquela voz uma nota de paixão. Parecia inacreditável que ele estivesse mentindo... Vance referiu-se de novo a confissão:
— O senhor ditou: "Fui ao nº. 87, Rua 48, Oeste, e entrei pela porta da frente..." Tocou a campainha? Ou a porta da frente não estava fechada?
Leacock ia. responder, mas hesitou. Era evidente que procurava recordar as notícias dos jornais, as declarações da governanta: ela afirmara positivamente que a campainha não tocara naquela noite.
— Que diferença pode fazer isso? — perguntou, para ganhar tempo.
— Nós gostaríamos de saber... é só, — disse Vance. — Mas não se apresse.
— Visto que isto é tão importante para os senhores, saibam que eu não toquei a campainha, e a porta não estava aberta. Mas.
— continuou, hesitando ainda mais, — justamente quando eu chegava, Benson descia de um táxi.
— Um momento... Notou um outro carro parado em frente da casa? Um Cadillac cinzento?
— Mas... sim.
— Não reconheceu quem o ocupava?
Outro silêncio.
— Não estou bem certo. Creio que era um homem chamado Pfyfe.
— Ele e o Sr. Benson chegaram ali então ao mesmo tempo? Leacock franziu a testa.
— Não... ao mesmo tempo não. Não havia ali ninguém quando cheguei... Não vi Pfyfe senão alguns momentos depois, ao sair.
— Ele chegou de carro quando o senhor estava lá dentro, não foi?
— Deve ter sido.
— Compreendo... E agora, voltemos um pouco atrás: Benson chegou de táxi. E depois?
— Eu me dirigi a ele e disse-lhe que desejava falar-lhe. Disseme que entrasse, e entramos juntos. Serviu-se de uma chave de trinco.
— E agora, capitão, conte-nos exatamente o que aconteceu depois que entraram em casa.
— Ele pendurou o chapéu e a bengala no cabide, e fomos para o salão. Sentou-se ao pé da mesa, eu fiquei de pé e disse... o que tinha a dizer. Depois puxei minha arma e atirei.
Vance olhava para o homem atentamente. Markham estava inclinado para a frente.
— Como se explica então que ele estivesse lendo naquele momento?
— Creio que ele pegou num livro enquanto eu falava... Tentando aparentar indiferença, sem dúvida.
— Procure lembrar-se agora disto: O senhor e ele chegaram à sala indo diretamente do vestíbulo, assim que entraram ·em casa?
— Sim.
— Então como explica o fato de estar o Sr. Benson, quando foi morto, de paletó e chinelos?
Leacock olhou em roda, nervoso. Antes de responder, umedeceu com a língua os lábios ressequidos.
— Agora me lembro... Benson foi primeiro lá em cima, talvez ao quarto dele... Eu estava tão excitado, — acrescentou, desesperado, — que não me lembro bem de tudo.
— É natural, — disse Vance, num tom compreensivo. — Mas, quando ele desceu, notou por acaso alguma particularidade nos seus cabelos?
Leacock olhou vagamente para cima.
— Nos cabelos? Eu... não compreendo...
— Na cor do cabelo, é o que eu quero dizer. Quando Benson se sentou defronte do senhor, debaixo da lâmpada, não notou alguma... diferença, quero dizer... na aparência do seu cabelo?
O homem fechou os olhos, como se tentasse evocar a cena.
— Não... não me lembro.
— É um ponto insignificante, — disse Vance, indiferente. — E a fala de Benson, depois que ele desceu, pareceu-lhe tão natural... isto é, notou alguma dificuldade, ou leve impedimento que fosse, na sua voz?
Leacock estava visivelmente perturbado.
— Não sei o que o senhor quer dizer. Pareceu-me que ele falava como sempre.
— E por acaso não viu um cofrezinho de jóias, azul, sobre a mesa?
— Não notei.
Vance tirou algumas baforadas de seu cigarro, pensativo. — Quando saiu da sala, depois de matar Benson, apagou: as luzes, sem dúvida?
Se não vinha resposta imediata, Vance sugeria uma.
— Decerto fez isso, porque o Sr. Pfyfe diz que a casa estava às escuras, quando ele foi lá.
Leacock então afirmou com a cabeça.
— É verdade. Não podia lembrar-me no momento.
— Agora, que se lembra do fato: como apagou as luzes? — Eu... — começou ele, e parou. — No interruptor.
— E onde está ele colocado, capitão?
— Não me posso lembrar exatamente.
— Pense um instante. Sem dúvida há de se recordar.
— Ao lado da porta que dá para o vestíbulo, se não me engano...
— De que lado da porta?
— Mas como posso saber? — perguntou ele, em tom lamentoso. — Estava tão nervoso... Creio que do lado direito.
— Lado direito — de quem entra ou de quer sai?
— De quem sai.
— Seria aquele onde está a estante de livros?
— Sim.
Vance parecia satisfeito.
— Vamos agora à arma, capitão. Por que a entregou a Miss St. Clair?
— Fui um covarde. — replicou o moço. — Receei que a fossem encontrar em minha casa. E nunca imaginei que pudessem suspeitar dela.
— E quando a acusaram, o senhor imediatamente pegou na arma e jogou-a ao rio?
— Sim.
— Creio que faltava uma bala no cilindro também — o que por si só seria uma circunstância comprometedora.
— Pensei assim, por isso lancei fora a arma. Vance franziu a testa.
— É estranho... Havia então duas armas no rio, porque o fundo foi dragado, e encontrou-se uma pistola Colt automática, mas carregada... Está certo, capitão, de que foi a sua pistola que levou da casa de Miss St. Clair e atirou ao rio?
Eu, que ignorava que tivessem retirado arma alguma do rio, fiquei surpreendido. Quereria Vance, depois de tudo, envolver a moça? E percebi que a Markham também ocorrera a mesma dúvida.
Leacock não respondeu logo. Depois, com voz áspera e irritada, retrucou:
— Não há duas armas. A que foi encontrada era a minha... É que tornei a carregá-la...
— Ah! Isso explica tudo, — disse Vance, em tom amável e tranqüilizador. — Outra pergunta, capitão: Por que veio fazer esta confissão hoje?
Pela primeira vez, durante o interrogatório, os olhos de Leacock se animaram:
— Por quê? Porque era a única saída digna. Suspeitaram injustamente de uma pessoa inocente; não quero que ninguém sofra em meu lugar.
Estava terminada a entrevista. Markham nada tinha a perguntar, e o oficial reconduziu o capitão.
Estranho silêncio caiu sobre aqueles homens. Markham fumava frenèticamente, as mãos cruzadas na nuca, olhos fixos no teto. O major,.recostado na cadeira, contemplava Vance com manifesta satisfação. Vance, por sua vez, olhava para Markham com o rabo do olho, sorrindo sonolento. A expressão de cada um deles revelava perfeitamente sua impressão individual em relação à entrevista. Markham estava perturbado, o major satisfeito, Vance céptico. E foi ele quem quebrou o silêncio, dizendo indolentemente:
— Então, Markham, viu agora que coisa tola é uma confissão? Nosso puritano e orgulhoso capitão deu um Munchausen insignificante. Ninguém poderia mentir mais miseravelmente do que ele. Impossível fingir tanta inabilidade, a menos que não se tenha nascido para isso. E quer-nos fazer crer que é o criminoso... Muito comovente. Sem dúvida, imaginou que você ia pregar-lhe a confissão no peitilho da camisa e remetê-lo ao carrasco. Notou que ele nem sequer sabia como entrara na casa de Benson? A presença conhecida de Pfyfe ali é que veio destruir sua explicação improvisada e mal alinhavada, de que entrara de braço dado com a pretensa vítima. E nem se lembrava do traje caseiro de Benson. Quando lhe recordei, ele se contradisse e fez Benson trotar escada acima, para mudar rapidamente a roupa. Por sorte, os jornais não tinham mencionado a peruca. Nem por sombras imaginou em que pensava eu, ao insinuar-lhe que Benson tingira o cabelo enquanto trocava de roupa e sapatos... E, por falar nisto, major, seu irmão falava com dificuldade quando tirava a dentadura?
— Sim, e notava-se bem a diferença. Se Alvino tinha tirado a dentadura naquela noite — conforme depreendi pela sua pergunta — Leacock teria sem nenhuma dúvida percebido.
— Não notou igualmente outras coisas: o cofre de jóias, por exemplo, e a localização do interruptor.
— Neste ponto, — retrucou o major, — ele meteu os pés pelas mãos: a casa de Alvino é antiga, e o único interruptor que há na sala é pendente, ligado à lâmpada.
— Exatamente... Entretanto, seu maior erro foi quanto à arma. Caiu completamente. Declarou que atirara a arma ao rio porque lhe faltava uma bala; e quando eu disse que estava completa a carga, explicou que substituíra a bala que disparara. Assim, a arma encontrada não era a dele... É jogo do capitão. Supõe que Miss St. Clair está implicada, e resolveu arcar com a culpa.
— Também me pareceu, — disse o major.
— Ainda assim, — comentou Vance, — a atitude do capitão me confunde um pouco. Não há dúvida de que ele teve alguma interferência no crime: senão, por que iria ocultar a pistola, no dia seguinte, em casa de Miss St. Clair? Ele é bem da espécie 'de tolo que ameaçaria qualquer homem suspeito de pretender-lhe a noiva, e depois sustentaria a ameaça, no caso de ser necessário. Além disso, sua consciência o acusa — isso é evidente. Mas de quê? Não de ter matado, isso não; o crime foi planejado, e ele é desses tipos de homem que apanham uma idéia fixa, cingem com ela os lombos, e realizam o feito corajosamente, prontos a sofrer as conseqüências. É a cavalaria, puro beau geste: seus adeptos sabem o que valem. E quando saem a libertar o mundo de um Don Juan, vão sempre de ânimo sereno... O capitão, por exemplo, não teria passado por alto as luvas e a bolsa de sua Bela Dama — levá-las-ia consigo... De fato, é tão certo que ele poderia ter matado Benson, como que não o matou. Aqui é que está a dificuldade. Psicologicamente, é possível que o tenha feito; e, também psicologicamente, é impossível que o fizesse daquele modo.
Acendeu um cigarro, contemplando as espirais de fumo por algum tempo.
— Se não fosse inverossímil, eu diria que ele resolveu matar o outro, e que o encontrou morto. Isso explicaria por que Pfyfe o encontrou ali, e por que confiou a arma a Miss St. Clair no dia seguinte.
Toca o telefone: o coronel Ostrander queria falar com o Promotor. Este, depois de curta palestra, olhou contrariado para Vance.
— Seu sanguinário amigo desejava saber se eu já prendi alguém. Oferece-me mais algumas idéias inestimáveis, no caso de eu estar ainda indeciso a respeito do autor do crime.
— Ouvi você agradecer-lhe tolamente qualquer coisa... Que lhe disse acerca de seu estado de espírito?
— Que ainda estava no escuro...
E sorriu, cansado e sombrio. Mas Vance compreendeu que renunciara à idéia da culpabilidade de Leacock. O major levantou-se e estendeu-lhe a mão.
— Compreendo o que sente, — disse ele, — e sei que isso é desagradável. Mas é preferível deixar escapar um culpado a castigar um inocente... Não se aflija tanto, não desanime. Encontrará por fim a solução, e quando isso acontecer — o resto da frase saiu-lhe por entre os dentes cerrados — não oporei obstáculo algum. Ajudá-lo-ei no que puder.
Com um sorriso sombrio, pegou no chapéu, dizendo ainda:
— Vou-me embora. Volto ao escritório. Se precisar de mim a qualquer hora, chame-me. Talvez eu possa auxiliá-lo... mais tarde.
Cumprimentou Vance amàvelmente e saiu.
Markham nada disse durante alguns minutos.
— Que coisa horrível, Vance! — disse por fim, irritado. — O negócio torna-se a cada passo mais complicado. Já vou causando.
— Mas também, amigo velho, você não deve tomar isso tanto a peito. Não vale a pena a gente se atormentar na encruzilhada da vida.
"Nada é novidade,
Nada é verdade,
E nada, realmente, vale a pena." Foram mortos na guerra alguns milhões de tolos e nem por isso você se altera. Mas porque um canalha é assassinado no seu distrito — e bem o mereceu! — você perde noites de sono, e se aflige? Palavra! Você é por demais incoerente!
— A coerência... — começou Markham; mas Vance interrompeu-o.
— Não cite Emerson agora. Prefiro de muito Erasmo. Você devia ler o Elogio da Loucura: isso o consolaria por não descobrir o assassino. O velho professor holandês de queixo pontudo jamais se lamentaria, inconsolável, sobre a destruição de Alvino, o Calvo.
— Eu não nasci para comer, como você, — censurou Markham. — Fui eleito para este cargo...
— Oh! Perfeitamente — "não amei mais do que a honra", etc, — concordou Vance. — Mas não seja tão sensível. Mesmo que o capitão não consiga ficar na cadeia, como deseja, ainda lhe restam cinco possibilidades. A Sra. Platz... e Pfyfe... e o coronel Ostrander... e Miss Hoffman... e a Sra. Banning... Então! Por que não os prende a todos, cada um por sua vez, e não os obriga a confessar? Heath ficaria louco de alegria...
Tão abatido de ânimo se sentia Markham, que não se podia agastar com seus motejos. Antes parece que o bom humor de Vance o reanimava.
— Se quer que lhe diga a verdade, é isso mesmo que sinto desejo de fazer. Só me sinto indeciso na escolha. Por qual deles deveria começar?
— Camarada valente! E que fará do capitão? Ele ficaria com o coração partido se você o pusesse em liberdade.
— Pois vai ficar mesmo. E o melhor é tratar já das formalidades, — concluiu, pegando no fone.
— Um momento apenas, — pediu Vance, estendendo a mão para ele. — Não ponha ainda termo ao seu arrebatador martírio. Deixe-o ser feliz por mais um dia, ao menos. Tenho a impressão de que nos pode ser mais útil, mirando-se na sua cela solitária, como o prisioneiro de Chillon.
Sem uma palavra, Markham pendurou, e colocou outra vez o fone no gancho. Parecia-me que cada vez mais se submetia à vontade) de Vance, aceitando-lhe a direção. Não porque se sentisse desesperançado e desnorteado, embora isso também influísse em parte na sua submissão — mas porque via bem que Vance sabia mais do que dizia.
— Já tentou fazer uma idéia do modo como Pfyfe e sua Bolinha entraram no caso?
— Sim, — respondeu petulantemente Markham, — com alguns milhares de outros enigmas... Mas, quanto mais penso nisso, mais, misteriosas se tornam as coisas.
— Eis um erro, meu caro. Não há mistérios originados nos seres humanos; há apenas problemas. E qualquer problema originado por outro ser humano. Basta o conhecimento do espírito humano, e a aplicação desse conhecimento a atos humanos. É simples, não acha?
Olhou para o relógio e disse:
— Estranho a demora do Sr. Stitt no exame dos livros de Benson Benson... Espero com impaciência seu relatório.
Isto era demais para Markham, cuja paciência se esgotara afinal com o método fatigante de insinuações e indiretas do outro. Perdera o domínio de si mesmo. Inclinou-se para a frente e bateu irritado na mesa.
— Já estou cansado dessa atitude superior, — disse, muito alterado. — Ou você sabe alguma coisa, ou não sabe. Se nada sabe, faça-me o favor de deixar de insinuar que sabe. Se sabe alguma coisa, é seu dever dizer-me. Desde que Benson foi assassinado, anda você, de uma maneira ou de outra, dando a entender que sabe coisas. Se tem alguma idéia sobre o assassino — quero sabê-lo!
Endireitou-se na cadeira e apanhou outro charuto. Não ergueu os olhos enquanto cortou, com todo o cuidado, a ponta, e o acendeu. Sem dúvida, estava um tanto vexado por ter se deixado levar pela ira.
Vance, aparentemente indiferente durante toda a tirada, esticou as pernas e ficou a olhar para Markham durante muito tempo.
— Sabe, velho amigo Markham, não lhe censuro essa vergonhosa explosão. A própria situação a explica, na verdade. Mas chegou a hora de por fim à comédia. Não estou brincando, não. É fato que tenho algumas idéias muito interessantes sobre este assunto.
Ergueu-se e bocejou.
— Faz hoje um calor estúpido! Mas... tem de ser feito, não é?
"Tão perto está a grandeza da miséria,
Como Deus está junto à humanidade.
Se — Tu deves — murmura a consciência,
"Eu posso! — lhe responder a mocidade." Eu sou a nobre mocidade; você, Markham, a voz do dever — ainda que não tenha murmurado nada, não é?... Mas qual é teu dever? E Goethe responde: A aceleração dos dias. Mas — diabo leve tudo isto! — eu quisera que a pergunta tivesse vindo em um dia mais fresco!
Pegou no chapéu de Markham e deu-lhe.
— Venha, Póstumo. "Tudo tem o seu tempo determinado; e todo propósito debaixo do céu tem o seu tempo" (*). Seu expediente está encerrado hoje, Markham; diga-o a Swacker, sim? Nós vamos visitar uma dama que não é nutra senão Miss St. Clair.
(*) Esta citação do Eclesiastes me recorda que Vance lia habitualmente o Velho Testamento. "Quando me sinto fatigado dos literatos profissionais, disseme ele uma vez, encontro estímulo na majestosa prosa da Bíblia. Se os modernos sentem que devem escrever, deviam dedicar no mínimo duas horas diárias à leitura dos historiadores bíblicos".
Markham compreendeu que o modo brincalhão do amigo mascarava um propósito sério. Percebeu também que Vance queria dizer-lhe o que soubera, por seu próprio esforço, e que, fosse qual fosse o caminho que o levava a essas descobertas — por mais tortuoso, obstruído ou desgarrado que parecesse — ele tinha razões poderosas para segui-lo. Além disso, desde o desmascaramento da confissão fictícia de Leacock. estava em tal estado de espírito, que seguiria qualquer fio que lhe desse a mais tênue esperança de alcançar a verdade. Sem demora, pois, chamou Swacker e informou-o de que não voltaria mais ao escritório naquele dia. v
Dez minutos depois íamos, no metrô, a caminho do n.º 94 de Riverside Drive.
XX
EXPLICAÇÕES DE UMA DAMA
(Quarta-feira, 19 de junho — 4h30 da tarde)
— O fim a que nos propusemos, de fazer luz sobre o caso, — dizia Vance, enquanto seguíamos pela rua, — pode parecer chato, Markham, mas apele para sua força de vontade, e disponha-se a padecer comigo. Você não imagina quão árdua é a tarefa que tenho em mãos! Não é nada divertido isto... Sou ainda um tanto jovem para ser sentimental, e mesmo assim, acho-me inclinado a deixar o seu réu escapar.
— Pode-me dizer por que vamos à casa de Miss St. Clair?
— perguntou Markham, resignadamente.
Vance retrucou, amável:
— Pois não! Na verdade, acho melhor que você saiba. Há muitos pontos concernentes à dama que carecem de elucidação. Primeiro: as luvas e a bolsa. "Nem papoula nem mandrágora te restituirão o sono perdido", como diz o poeta, enquanto você não destrinçar a história daqueles objetos, não? Você não se lembra de-que Miss Hoffman contou que o major escutava à porta do gabinete do irmão, enquanto lá estava certa dama, no dia em que ele foi assassinado? Pois desconfio que a visitante era Miss St. Clair. E gostaria de saber o que se passou ali, e por que ela voltou lá. E também por que foi tomar chá com Benson à tarde? E que papel representaram as jóias na palestra?... Alas há ainda outros itens. Por exemplo: Por que foi o capitão à casa dela buscar a arma? De onde lhe veio a idéia de que era ela a assassina? — você sabe que ele crê nisso, E também julgou ela que era o criminoso, desde o princípio? Markham, céptico, perguntou:
— E você acredita que ela lhe conte tudo isso?
— Tenho muita esperança, — retrucou o outro. — Com seu perfeito e gentil cavalheiro preso, assassino confesso, ela nada terá a perder por descarregar a alma... Mas nada de barulho. Seu estilo policial de inquirição não fará efeito algum sobre a dama, asseguro-lhe.
— E de que maneira pretende você executar sua investigação?
— Com morbidezza, como dizem os pintores. Com muita delicadeza e suavidade, você vai ver.
Markham refletiu um momento e observou:
— Eu ficarei de fora, e deixarei a agenda a seu cargo. — Que idéia magnífica!
Quando chegamos, Markham avisou pelo telefone que trazia uma missão muito importante e fomos recebidos imediatamente. Miss St. Clair estava apreensiva, naturalmente, por causa do capitão Leacock.
Sentou-se em frente a nós, na sala que abria sobre o Hudson, pálida e desfeita, com as mãos unidas e trêmulas. Ta longe a fria reserva da primeira entrevista, e suas olheiras denunciavam o tormento das vigílias.
Vance foi direto ao ponto. Falava com volubilidade, o que 'diminuía a tensão da atmosfera e suavizava a gravidade da visita.
— Lamento ter de lhe dizer, mas o capitão Leacock confessou tolamente ter assassinado Benson. Contudo, nós não estamos satisfeitos com essa declaração. Estamos boiando: não conseguimos saber se o capitão é um vilão, ou um "cavalheiro sem medo e sem mácula". A narração que fez da execução do crime é um esboço apenas: vaga, em certos detalhes essenciais; e — o que mais confusão traz — apagou as luzes da horrorosa sala de Benson por meio de um interruptor que lá nunca existiu. Por isso, desconfiei que ele inventou essa história para esconder alguém que ele supõe ser o verdadeiro culpado.
Indicou Markham com um leve gesto e continuou:
— Aqui o Promotor não concorda inteiramente comigo. É que o espírito jurídico é incrivelmente rígido e aferra-se com tenacidade às idéias. Porque a senhora esteve em companhia de Benson na última tarde que ele passou neste mundo, e por outras razões igualmente fúteis, o Sr. Markham julgou que a senhora tivesse algo a ver com a morte desse homem.
Sorriu ao amigo, como uma censura amistosa, e continuou:
— A senhora é a única pessoa a quem o capitão Leacock poderia proteger tão heroicamente. Por outro lado, estou convencido de sua inocência. Por isso, vimos aqui pedir-lhe esclarecimentos sobre alguns pontos de suas relações com Benson. Nenhum dano advirá de tais declarações, nem à senhora nem ao capitão, e até poderão elas contribuir para dissipar alguma dúvida que acaso ainda subsista no espírito do Promotor sobre a inocência do Capitão.
As palavras serenas de Vance tiveram salutar reação sobre a moça. Mas Markham fervia interiormente, indignado com as censuras veladas do amigo, ainda que procurasse refrear sua ira.
Miss St. Clair encarou francamente Vance por alguns instantes.
— Não sei por que eu confiaria no senhor, ou sequer o acreditaria, — disse serenamente. Mas agora que o capitão Leacock confessou — receei que fosse essa a sua intenção, quando me falou pela última vez — não vejo também por que me recusaria a responder-lhe... Acredita sinceramente que ele seja inocente?
A pergunta era um grito involuntário; a emoção sopitada despedaçara a carapaça de serenidade.
— Creio-o firmemente, — declarou Vance com calor. — O Sr. Markham lhe dirá que antes de sairmos do seu gabinete insisti com ele para restituir a liberdade ao capitão. E foi na esperança de que ele se convencesse ao ouvi-la ao acerto dessa medida, que me apressei em vir aqui com ele.
Alguma coisa no tom da voz e nas maneiras de Vance, inspiravam confiança à moça.
— E que queria o senhor perguntar-me?
Vance lançou um olhar repreensivo a Markham, que a custo continha a raiva de que estava possuído, voltando-se depois para a jovem:
— Primeiro que tudo, desejo saber como estavam em casa de Benson suas luvas e sua bolsa. O Promotor não se cansa de procurar uma explicação para a presença desses objetos ali.
Ela olhou-o franca e diretamente.
— O Sr. Benson convidou-me para jantar. Não me senti muito satisfeita com o seu procedimento, e quando nos dirigíamos para a minha casa, meu ressentimento aumentou. Ao chegar a Times Square, ordenei ao chofer que parasse, resolvida a voltar sozinha. Ao deixar o táxi, tanta pressa tive, e tal era a minha cólera, que sem dúvida deixei cair a bolsa e as luvas, cuja falta notei só depois que o táxi se foi. Sem dinheiro, pois, tive de regressar a pé. E esses objetos foram encontrados em casa do Sr. Benson porque ele os levou para lá.
— Foi exatamente o que supus. Mas... Que longa caminhada deu a senhora até aqui!
E, voltando-se para Markham com um sorriso cruel, acrescentou:
— Já vê que Miss St. Clair não poderia chegar aqui antes de uma hora...
Markham, severo e sombrio, nada retrucou.
— Agora, — continuou Vance, — desejaria saber em que circunstâncias foi feito o convite para jantar.
Uma sombra escureceu-lhe a face, mas a voz não se alterou.
— Perdera muito dinheiro na casa Benson, e tive a intuição de que o Sr. Benson o fizera de propósito, e poderia, se quisesse, ajudar-me a recuperar o que perdera. Há algum tempo que me importunava com seus galanteios, — continuou ela, baixando os olhos, — mas não lhe atribuí nenhum mau desígnio. Fui ao escritório e disse-lhe francamente o que pensava; respondeu-me que, se eu jantasse com ele naquela noite, poderíamos falar a respeito disso. Não me iludi com o seu propósito, mas estava tão desesperada que resolvi aceitar, contando convencê-lo de que devia ajudar-me.
— E em que termos lhe disse a senhora que o seu jantar devia terminar a uma hora certa?
Ela olhou para ele admirada, mas respondeu sem hesitar:
— Ele falou em uma festa, mas eu disse-lhe — e muito seriamente — que, se eu fosse, sairia à meia-noite, rigorosamente. como é meu costume invariável em todas as festas... Porque eu levo muito a sério meu estudo de canto, e imponho-me o sacrifício — ou antes, a restrição — de recolher-me à meia-noite, seja em que ocasião for.
— Um sábio e recomendável hábito! — continuou Vance. — E os seus conhecidos sabem disso?
— Oh, sim, e daí resultou me alcunharem de "Gata Borralheira".
— Sabem-no o coronel Ostrander e o Sr. Pfyfe?
— Sim.
Vance meditou algum tempo.
— E como foi que, no dia do crime, a senhora foi à casa de Benson, e tomou chá com ele, se deviam jantar juntos?
— Nada há que admirar nisso, — declarou ela, ruborizada. — Depois que saí do escritório do Sr. Benson, voltei lá para lhe dizer que resolvera não lhe aceitar o convite. Não o encontrando já ali, fui à sua casa, com o fim de fazer-lhe ainda um apelo final, e pedir-lhe que me desligasse da minha promessa. Pôs o assunto de parte com uma risada, instou para que tomasse chá, e mandou mais tarde um táxi trazer-me aqui em casa para que me vestisse. Às sete e meia veio buscar-me.
— E, quando a senhora lhe pediu para a desobrigar da promessa, tentou assustá-lo, recordando-lhe a ameaça do capitão Leacock; e ele respondeu-lhe que aquilo era apenas uma brincadeira...
— Sim, — murmurou ela, novamente surpreendida. Vance sorriu amàvelmente.
— O coronel Ostrander disseme que a viu no Marseilles em companhia de Benson.
— Sim; e fiquei muito vexada, porque ele tinha-me prevenido contra Benson, alguns dias antes.
— Pois eu os supunha amigos.
— Eram-no — até à semana passada. Mas o coronel perdeu mais do que eu em um jogo de ações que o Sr. Benson manobrara recentemente, e deu-me a entender muito claramente que ele de propósito nos aconselhara mal, em seu próprio proveito. Nem falou com o Sr. Benson naquela noite, no "Marseilles".
— E que me pode dizer sobre as pedras preciosas que acompanharam seu chá em casa de Benson?
— Eram engodos, — respondeu ela, e sorria com um desdém que era a mais eloqüente condenação de Benson, mais ainda do que se ela tivesse recorrido ao pior castigo. — O moço julgou que com isso virava minha cabeça... Ofereceu-me um colar de pérolas para usar no jantar, mas recusei-o. E disseme que, se eu encarasse as coisas como devia — ou outra frase igualmente aliciadora — teria jóias como aquelas, inteiramente minhas, e talvez as mesmas, no dia vinte e um deste mês.
— É isso — no dia vinte e um, — murmurou Vance. —
Está ouvindo, Markham? A promissória de Pfyfe vencia-se a 21, e se não fossei resgatada, as jóias estavam perdidas.
— Tinha ele consigo as jóias ao jantar?
— Oh não! Creio que desanimou, vendo que recusei as pérolas.
Vance encarava-a com simpatia.
— Agora faça o favor de me contar o episódio da arma — em suas próprias palavras, como dizem os juristas, na esperança de confundi-la depois.
Mas, ao que parece, ela não temia ser confundida. E narrou: — Na manhã do dia seguinte ao do crime, o capitão Leacock veio cá e me disse que fora à casa de Benson, mais ou menos à meia-noite, com a intenção de matá-lo. Encontrando do lado de fora o Sr. Pfyfe, e julgando que este tivesse ido fazer uma visita a Benson, abandonara a idéia e se recolhera. Receei que o outro o tivesse visto, e disse-lhe que era mais seguro trazer-me a pistola e dizer, se o interrogassem, que a perdera na França... Veja, senhor, eu pensei realmente, que ele matara Benson, e que... procedia como um cavalheiro, para me poupar desgostos. Quando, mais tarde, ele veio buscar a pistola para jogá-la ao rio, convenci-me inteiramente disso. Sorriu, desanimada, e continuou:
— Aí está por que recusei responder às suas perguntas. Queria que o senhor suspeitasse de mim, para não atribuir o crime ao capitão Leacock.
— Mas é que ele não mentia de modo nenhum!
— Agora sei que não... E devia tê-lo compreendido antes: não me traria a pistola, se fosse o criminoso. Pobre rapaz, — continuou, com os olhos rasos dágua, — confessou porque pensa que fui eu a assassina.
— É precisamente essa a situação, — concordou Vance. — Mas, onde pensou ele que a senhora tinha obtido a arma?
— Conheço muitos oficiais, amigos dele e do major Benson. E no verão passado, nas montanhas, pratiquei bastante tiro ao alvo, a pistola, por divertimento. Oh! a idéia era muito plausível.
Vance levantou-se e cumprimentou-a delicadamente.
— A senhora foi muito amável — e prestou-nos grande auxílio. Veja. o Sr. Markham tinha várias teorias a respeito do assassino. A primeira, parece-me, é que a senhora sozinha era uma Lucrécia Bórgia. A segunda foi que matara Benson, com o capitão, assim como se diz — assassinato a quatro mãos. A terceira, que o capitão puxara o gatilho a capella. E o espírito jurídico é tão estranhamente constituído que pode admitir muitas teorias opostas ao mesmo tempo... E o pior é que Markham está um pouco inclinado a crer que ambos são culpados, individual e coletivamente. Tentei chamá-lo à razão antes de vir aqui, mas perdi meu tempo. Por isso insisti com ele para vir ouvir toda a história dos seus encantadores lábios.
E para Markham, que o encarava de lábios contraídos:
— Então, meu velho, não continua a insistir na culpa de Miss St. Clair ou do capitão Leacock, pois não?... Não vai agora compadecer-se do capitão, e restituí-lo à liberdade, como lhe pedi?
E estendia os braços, num gesto de súplica teatral.
Markham chegara ao limite do furor, e parecia que ia explodir, mas dominou-se, e disse a Miss St. Clair, com tamanha bondade, que me impressionou de novo a sua grandeza de alma:
— Senhorita, asseguro-lhe que abandonei a idéia de que fosse a senhora ou o capitão Leacock quem matou Benson, apesar do que Vance chama meu rígido e incompreensivo espírito jurídico... Perdôo-lhe, contudo, porque ele me impediu de cometer contra a senhora uma grave injustiça. Providenciarei para que tenha o seu capitão de volta tão logo eu possa assinar a ordem de soltura.
Quando íamos de volta, Markham virou-se selvagemente para Vance.
— Então! Eu é que conservava preso o precioso capitão da moça, e você é que teimava comigo para soltá-lo! Você sabe muito bem que eu nunca suspeitei de nenhum dos dois — foi você, só você, lagarto preguiçoso!
Vance suspirou, perguntando, irritado:
— Meu caro amigo! Então você não quer ter nenhum serviço neste caso?
— Que lucra você em me apresentar como um asno, na presença daquela moça? — resmungou Markham. — Não posso compreender o que ganhou você com essa estultice.
— O quê? O testemunho que você acaba de ouvir, vai ajudá-lo poderosamente a encontrar o culpado. Além disso, sabemos como foram as luvas e a bolsa parar à casa de Benson, e quem era a clama que o procurou no escritório, e o que fez Miss St. Clair entre meia-noite e uma hora, e por que ela jantou sozinha com Alvino, e por que tomou chá primeiro com ele,
e como as jóias foram lá ter, e porque o capitão foi buscar a arma à sua casa, e jogou-a fora, e por que ele confessou... Palavra! Não o satisfazem todos esses detalhes? Isso desembaraça a situação de muitas dificuldades... Parou e acendeu um cigarro.
— O que ela nos disse de mais importante foi que seus amigos conheciam seu hábito de retirar-se sistematicamente à meia-noite, de qualquer reunião. Não despreze este ponto, amigo velho: é muito importante. Eu lhe disse há muito tempo que a pessoa que matou Benson sabia que ela jantaria com ele naquela noite.
— Já sei: não tarda que você me diga que sabe quem o matou, — disse Markham, zombeteiro.
Vance, soltando um rolo de fumaça, respondeu:
— Desde o princípio, sempre soube quem matou aquele biltre.
— É mesmo? — retrucou o outro, escarninho. — E quando lhe rebentou no cérebro essa revelação?
— Oh! Apenas cinco minutos depois que entrei na casa do crime, naquela manhã.
— Bem, bem... E por que não me contou tudo, para evitar todos os passos que dei?
— Absolutamente impossível! Você não estava ainda preparado para crer em meus conhecimentos apócrifos. Era preciso que primeiro o guiasse através das várias florestas escuras e dos sombrios tremedais em que você teimava em desgarrar-se... Porque você é tão sem imaginação...
Chamou um táxi que passava, e indicou:
— Rua 48, Oeste, n? 87.
E, segurando com um ar confidencial o braço de Markham:
— Agora, uma rápida palestra com a Sra. Platz. Depois lhe direi ao ouvido meus modestos segredos.
XXI
REVELAÇÕES DA GOVERNANTA
(Quarta-feira, 19 de junho — 5h30 da tarde)
Recebeu-nos a governanta com visível inquietação. Era uma mulher robusta, mas parecia abatida, e lia-se-lhe a ansiedade no rosto. Disse-nos Snitkin, quando entramos, que ela lera cuidadosamente todos os jornais que traziam notícias do caso, e interrogava-o constantemente sobre o assunto.
Entrou na sala sem nos dar muita atenção, e sentou-se na cadeira que Vance lhe ofereceu como uma mulher que se resigna a uma prova terrível, mas inevitável. Ao sentir o olhar penetrante de Vance, encarou-o assustada e voltou o rosto, como se tivesse, naquele rápido olhar, percebido que ele conhecia o segredo que ela guardava zelosamente.
Vance começou seu interrogatório, sem preâmbulos.
— Sra. Platz, o Sr. Benson era muito escrupuloso com a sua peruca — isto é, recebia seus amigos sem colocá-la na cabeça?
— Oh! Não, nunca, senhor! — respondeu a mulher, que pareceu intimamente aliviada.
— Pense bem, Sra. Platz. O Sr. Benson nunca esteve, que a senhora o soubesse, em companhia de ninguém, sem a peruca?
Ela esteve calada por algum tempo, as sobrancelhas contraídas.
— Vi-o tirar uma vez a peruca e mostrá-la ao coronel' Ostrander, um senhor mais idoso do que ele e que costumava vir sempre aqui. Mas o coronel Ostrander era um velho amigo dele, e tinham morado juntos, noutros tempos.
— E ninguém mais?
Franziu a testa, pensativa, novamente, e, depois de alguns minutos, respondeu:
— Não.
— E quanto aos outros homens de negócios?
— Era muito desconfiado com eles... E com os estranhos também; costumava sentar-se aqui, quando fazia muito calor, sem a peruca, mas puxava a cortina daquela janela, — acrescentou, indicando a mais próxima do vestíbulo. — Podia ser visto da escada.
— Estimo que tenha esclarecido este ponto; e da escada. alguém poderia bater na janela, ou nas grades, e atrair a atenção* de quem estivesse na sala?
— Oh, sim, senhor! Facilmente. Eu mesma o fiz, uma vez que saí a um recado e esqueci minha chave.
— Seria assim que entrou em casa o assassino?
— Sim, senhor, — respondeu logo, apegando-se a esta idéia.
— Então essa pessoa devia conhecer muito bem o Sr. Benson para bater na janela em vez de tocar a campainha, não acha, Sra. Platz?
— Sim, senhor, devia... — respondeu ela, mas em tom de dúvida: a pergunta estava acima de sua compreensão.
— Se um estranho batesse à janela, e o Sr. Benson estivesse.--em a peruca, ele o mandaria entrar?
— Oh! Não — ele não deixaria nenhum estranho entrar.
— E a senhora está bem certa de que a campainha não tocou naquela noite?
— Certíssima, senhor, — respondeu, convicta.
— Há luz em frente da escada?
— Não, senhor.
— Se o Sr. Benson tivesse olhado pela janela, poderiai reconhecer quem batia?
— Não sei, — respondeu, hesitante. — Penso que não.
— Pode-se ver quem bate sem abrir a parta?
— Não, senhor. E mais de uma vez o lamentei.
— E se uma pessoa chamasse à janela, o Sr. Benson reconheceria a voz?
— Parece-me que sim.
— E tem certeza de que ninguém pode entrar sem chave?
— Como poderia entrar? A porta fecha por si.
— É fechadura automática?
— Sim, senhor.
— Então deve haver um trinco para se poder abrir a porta de qualquer lado, não?
— Havia um trinco desses, mas o Sr. Benson fixou-o de modo que não podia funcionar. Dizia que era perigoso — eu podia sair e deixar a porta aberta.
Vance foi até ao vestíbulo, e ouviu-o abrir e fechar a porta da frente.
— É como a senhora disse, Sra. Platz, — observou ao voltar. — Agora diga-me: está bem certa de que ninguém tinha outra chave?
— Sim senhor. Ninguém a não ser eu e o Sr. Benson.
— Disse que deixara aberta a porta do seu quarto, na noite em que o Sr. Benson foi assassinado... Era hábito deixá-la assim?
— Não, fechava-a quase sempre. Mas o calor era sufocante, naquela noite.
— De modo que foi acidentalmente que a deixou aberta?
— Exatamente, senhor.
— Se a porta estivesse fechada, como de costume, podia ter ouvido o tiro?
— Se eu estivesse acordada, talvez... Mas, se estivesse dormindo, creio que não. Estas casas antigas têm as portas muito grossas.
— E muito bonitas, também, — continuou Vance, admirando a dupla porta maciça, de acaju, que abria para o vestíbulo.
— Você sabe, Markham, nossa chamada civilização nada mais é do que a persistente destruição de todas as coisas belas e duradouras, e a fabricação de artigos de pouco valor. Você deve ler o livro de Osvaldo Spengler, Poentes dos Países Ocidentais — um documento muito incisivo. Admira-me que ainda não aparecesse nenhum editor de iniciativa que quisesse embalsamá-lo em nossa gíria nativa. Toda a história desta era degenerada a que chamamos civilização pode ser estudada em nossos trabalhos de madeira. Olhe para esta linda porta antiga, por exemplo, com seus painéis em ângulos agudos ou obtusos, e frisos salientes, suas pilastras jônicas e portais lavrados. E compare-a depois com as tábuas lisas, franzinas, feitas à máquina e pintadas a laça, que por aí existem aos milhares hoje. Sic transit...
Examinou a porta ainda por algum tempo; depois, voltou-se abruptamente para a Sra. Platz, que o olhava com curiosidade e crescente apreensão.
— Que fez o Sr. Benson do estojo de jóias quando foi jantar?
— Nada, senhor, — respondeu ela, nervosa. — Deixou-o ali sobre a mesa.
— Viu-o ali depois que ele saiu?
— Sim, senhor. E ia tirá-lo, mas depois achei que era melhor não tocar nele.
— E ninguém bateu à porta, nem entrou em casa depois que o Sr. Benson saiu?
— Não, senhor.
— Está bem certa disso?
— Absolutamente, senhor.
Vance levantou-se e pôs-se a passear pela sala. De repente, justamente quando passava em frente da mulher, deteve-se e encarou-a.
— Seu nome de solteira era Hoffman, Sra. Platz? Chegara o momento tão temido! Empalideceu, dilataram-se-lhe os olhos, os lábios descaíram.
Vance continuava a olhar para ela, não sem certa bondade. Antes que ela se pudesse refazer, porém, disse-lhe:
— Tive há pouco tempo o prazer de encontrar sua encantadora filha.
— Minha filha?... — gaguejou a mulher, dominando-se.
— Miss Hoffman, a senhora sabe — a simpática jovem de cabelos de ouro, secretária do Sr. Benson.
A mulher empertigou-se e disse, com os dentes cerrados:
— Ela não é minha filha!
— Vamos, vamos, Sra. Platz! — disse Vance, repreendendo-a como se falasse a uma criança. — É tolice querer enganar-me... Lembra-se da sua aflição quando lhe observei que tinha interesse pessoal na dama que estivera aqui tomando chá com o Sr. Benson? Receava que eu supusesse ser Miss Hoffman... Alas nem tinha motivo de se inquietar por causa dela, Sra. Platz. Estou certo de que é uma moça muito séria. E na verdade não deve censurá-la por preferir o nome de Hoffman ao de Platz. Platz significa geralmente um lugar, embora também designe um estalido, ou uma explosão; q algumas vezes um Platz é um bolo fermentado. Mas um Hoffman é um cor-tesão — mais bonito do que um bolo, não é?
Sorria, para encorajá-la, e seus modos afáveis de fato a tranqüilizaram.
— Não é isso, senhor, — disse ela, olhando para ele como se o acusasse — eu é que a fiz usar esse nome. Nesse país qualquer moça inteligente pode vir a ser uma grande drama, se tiver oportunidade. E...
— Compreendo perfeitamente, — interrompeu Vance, gracejando. — Miss Hoffman é hábil, e a senhora receou estorvar o feliz desenlace de seus negócios, se viessem a saber que era filha de uma governanta. Eliminou-se, pois, por assim dizer, para assegurar-lhe a prosperidade. Acho muito generoso o seu procedimento... Sua filha vive sozinha?
— Sim, senhor, em Morningside Heights. Mas eu a vejo todas as semanas, — continuou, em voz apenas audível.
— Sem dúvida — o mais que a senhora pode, estou certo...
E veio trabalhar na casa de Benson por ser ela a secretária dele?
A mulher olhou-o, uma expressão de amargura nos olhos.
— Sim, senhor, foi por isso mesmo. Ela contou-me que espécie de homem era ele; e que muitas vezes a fazia vir aqui à noite para trabalhos extraordinários.
— E quis estar aqui para protegê-la?
— Sim, senhor, foi por isso...
— Por que ficou tão inquieta, no dia seguinte ao do crime, quando aqui o Sr. Markham perguntou se o Sr. Benson tinha armas de fogo em casa?
Ela desviou o olhar, para responder:
— Eu não fiquei inquieta...
— Sim, ficou, Sra. Platz. E vou dizer-lhe por quê. A senhora receou que atribuíssemos o crime a Miss Hoffman.
— Oh, não, senhor! Não foi isso! — gritou ela. — Minha menina nem sequer esteve aqui naquela noite — juro-o! — ela não esteve aqui...
Estava profundamente perturbada: a tensão nervosa que reprimira toda a semana rompera-se enfim, e ela olhava ao redor de si, desamparada.
— Vamos, vamos, Sra. Platz, — disse Vance, em tom consolador. — Ninguém pensa, por um só momento, que Miss Hoffman tomou parte na morte de Benson.
A mulher pareceu esquadrinhar-lhe o rosto. A principio recusava-se a acreditar — era evidente que o medo estivera longo tempo a atormentar-lhe o espírito. Vance levou todo um quarto de hora para convencê-la de que dizia a verdade. E quando, finalmente, saímos, estava relativamente serena.
Em caminho para o Club Stuyvesant, Markham ia silencioso, engolfando em seus pensamentos. Perturbavam-no consideravelmente, sem dúvida, os novos aspectos que ressaltavam da conversa com a Sra. Platz.
Vance fumava, sonhador, voltando a cabeça de vez em quando para examinar os edifícios. Seguimos para leste, atravessando a Rua 48, e quando chegamos em frente da Sociedade Bíblica de Nova York, ordenou ao chofer que parasse e instou para que admirássemos o edifício.
— O cristianismo, — observou ele, — quase que se justificaria só por sua arquitetura. Com poucas exceções, os únicos edifícios que não ofendem a vista, nesta cidade, são as igrejas e construções semelhantes. O credo da estética americana é: "Tudo o que é enorme, é belo". Os americanos adoram estas caixas opressivas em forma de canudo, com buracos regulares. chamadas arranha-céus, simplesmente porque são imensas. Unia caixa com 40 fileiras de buracos é duas vezes mais bela do que uma que só tem 20 fileiras. Simples fórmula, não?... Olhe agora para este pequeno edifício de cinco andares, do outro lado da rua. É infinitamente mais agradável — e mais impressivo, também — do que qualquer arranha-céu.
Vance referiu-se apenas uma vez ao crime durante nossa ida para o clube, e ainda assim, indiretamente.
— Um bom coração, Markham, vale mais que uma coroa. Fiz hoje uma boa ação, e sinto-me perfeitamente virtuoso. Frau Platz dormirá muito melhor esta noite: ela estava transtornada, por causa da pequena Gretchen. É uma velha valente, aquela. e maternal, e tudo o mais. E não pode suportar a idéia de que se levante uma suspeita contra a futura Lady Vera de Vera... Por que será que ela se atormenta assim? — concluiu ele, deitando um olhar materno para o lado do Promotor.
E nada mais se disse, até ao fim do jantar. Terminado este, empurramos para trás as cadeiras e ficamo-nos no jardim do terraço, a contemplar os cimos das árvores de Madison Square.
— Agora, Markham. — disse Vance, — abandone todas as idéias preconcebidas e considere a situação judiciosamente — para me servir de um eufemismo de jurista... Para começar; sabemos agora a razão da angústia da Sra. Platz, quando lhe perguntou sobre as armas de fogo, e por que ela se sentiu aterrada quando lhe observei o seu particular interesse pela jovem que tomara chá com Benson. Assim, esses dois mistérios estão eliminados...
— Mas, como descobriu você seu parentesco com a moça?
— Com meus olhares às furtadelas. Você não se lembra de que eu "espiei" a moça no primeiro dia em que a vi?... Mas eu o desculpo, Markham... E você não se lembra da nossa pequena discussão acerca das idiossincrasias cranianas? Notei à primeira vista que Miss Hoffman possuía a mesma conformação física da governanta de Benson. Era braquicéfala; tinha os ossos da face supero-articulados, a mandíbula ortognata, a estrutura parietal pouco desenvolvida, o nariz mesorriniano... Depois observei-lhe a orelha, porque já tinha notado que a da Sra. Platz era pontuda, sem lobos, orelhas "de fauno" — também chamadas de Darwin. Essas orelhas são hereditárias; e quando vi que as de Miss Hoffman eram do mesmo tipo, ainda que modificadas, adquiri a certeza do parentesco. Mas havia outras semelhanças — a do pigmento, por exemplo; e da altura — ambas são altas. E as massas centrais em ambas são muito desenvolvidas em relação às massas periféricas; os ombros são estreitos e os pulsos e tornozelos finos, enquanto que os quadris são volumosos... Que Hoffman era o nome de solteira da Sra. Platz foi unicamente adivinhação. Mas isso não tem importância...
E acomodou-se na poltrona, continuando:
— Vamos agora às suas considerações jurídicas... Primeiro, presumamos que um pouco antes dos trinta minutos, na noite de treze, o malfeitor foi à casa de Benson, viu luz no salão, bateu na janela e foi imediatamente recebido... Que é que, na sua opinião, indicam estas suposições a respeito do visitante?
— Apenas que era bem conhecido de Benson... Mas isso de nada serve: não podemos estender a suspeição a todas as pessoas que ele conhecia.
— As indicações vão muito mais longe do que isso, velha camarada. Elas mostram, inequivocamente, que o assassino de: Benson era um velho amigo muito íntimo, afinal, uma pessoa diante de quem ele não cuidava das aparências. A ausência da peruca, conforme já lhe lembrei uma vez, é um sinal essencial neste caso. A peruca, você não sabe? É a indumentária imprescindível de todo homem de meia-idade, com aspirações a Belo Brummel — e calvo... Você ouviu o que disse a Sra. Platz a respeito. Pode crer por um segundo que ele, que ocultava sua deficiência capilar até ao caixeiro do armazém, pudesse receber a visita de um simples conhecido, despojado de sua coroa de glória? E além de estar assim pelado, sem os dentes? De mais a mais, sem colarinho nem gravata, e enfronhado em uma velha jaqueta, e de chinelos? Imagine o espetáculo, meu caro!... Um homem não pode parecer atraente sem colarinho, com a camisa aberta e o botão de ouro à mostra. Equivaleria a uma dama de papelotes... Quantos homens pensa você que Benson conhecia, diante de quem seria capaz de aparecer em tais condições de desalinho?
— Não sei... três ou quatro, talvez; mas não posso prendê-los a todos.
— Acredito que você o faria, se pudesse, mas nem é necessário, — retrucou Vance, escolhendo outro cigarro da cigarreira. — Há ainda outras indicações: o assassino estava muito bem inteirado dos arranjos domésticos de Vance. Devia saber que a governanta dormia a uma boa distância da sala e não despertaria com o tiro, se a porta do quarto estivesse fechada, como de costume. Também devia saber que não havia mais ninguém em · casa àquela hora. E outra coisa: não esqueça que sua voz era
perfeitamente familiar a Benson. Se houvesse a mais leve dúvida; acerca disso, Benson não teria aberto a porta, em vista do seu
natural medo de ladrões, e com a ameaça do capitão pendente:sobre a cabeça.
— É uma hipótese aceitável... Que há mais?
— Há as jóias, Markham — essas mensageiras do amor. Pensou nelas? Estavam sobre a mesa quando Benson tomava chá, à tarde, e de manhã tinham sumido... De modo que parece indubitável que o assassino as levou, não acha? E não podem elas mesmas ter chamado ali o assassino? Nesse caso, qual das íntimas "persona grata" de Benson sabia que estavam em casa dele? E quem as desejava particularmente?...
— É verdade, Vance, — disse Markham, sacudindo a cabeça lentamente. — Você acertou. Sempre tive certa desconfiança de Pfyfe, e estava a ponto de mandar prendê-lo, quando Heath me comunicou a confissão de Leacock. Depois, quando seu nenhum valor foi reconhecido, minhas suspeitas recaíram nele... Nada lhe disse porque queria ver aonde iam parar suas idéias, mas o que me diz agora coincide com meu modo de pensar: é Pfyfe o nosso homem...
Baixou repentinamente as pernas da cadeira, clamando:
— E você deixou-o escapar!...
— Não se impaciente, amigo velho. Ele está livre de perigo, ao lado da esposa, eu o espero, ao menos. E seja como for, seu amigo Ben Hudson é tão destro em descobrir fugitivos... Deixe o atribulado Leandro em paz, por hora. Não precisa dele esta noite — e amanhã não o quererá mais.
— Que diz você? Eu não o quererei mais?... E por que, não me dirá?
— Oh! — exclamou Vance, indolentemente, — ele não é amável de nascença, não acha? E não é também vim objeto de beleza deslumbrante... Eu não desejaria tê-lo perto de mim mais do que o necessário... E, por falar nisso, Pfyfe não é o assassino.
Markham, muito perturbado para se irritar, olhou atentamente para Vance.
— Não o compreendo, — disse afinal. — Se não é Leandro,, quem é então o culpado?
Vance olhou para o relógio.
— Vá almoçar comigo amanhã, e leve o relatório que pediu a Heath. Vou-lhe dizer então quem matou Benson.
Alguma coisa no seu tom impressionou Markham. Compreendeu que Vance não faria tal promessa levianamente, sem a certeza de poder cumpri-la. Conhecia-o de sobejo para desprezar, ou sequer diminuir o valor da sua declaração.
— Afãs por que não me diz agora?
— Sinto muito, — lamentou Vance. — Mas vou ao concerto "especial" da Filarmônica esta noite. Tocam a Sonata em Ré Menor, de César Franck, e o temperamento de Stransky se harmoniza tão bem com estas sentimentalidades diatônicas... Você devia ir comigo, Markham. É delicioso para acalmar os nervos, venha!...
— Eu não! — resmungou o Promotor. — Agora só desejo tomar um brandy com soda.
Desceu conosco até o automóvel.
— Vá amanhã às nove, — disse Vance quando nos assentávamos. — Deixe o gabinete esperar um pouco. E não se esqueça de pedir as informações pelo telefone a Heath.
E, no momento em que o carro começava?. mover-se, ainda se inclinou para dizer a Markham:
— Escute, Markham: que altura tem a Sra. Platz?
XXII
A TEORIA DE VANCE
(Quinta-feira, 20 de junho — 9 da manhã)
Markham chegou à casa de Vance às nove em ponto. Vinha de mau humor.
— Vance, — disse assim que se sentou à mesa, — quero saber qual o sentido de suas palavras de despedida ontem à noite.
— Coma esse melão, amigo velho, —.respondeu Vance. — Vem do Norte do Brasil, e está delicioso. Mas não lhe tire o sabor, deitando-lhe pimenta ou sal. Uma estranha prática, embora não tão estranha como a de encher o melão de sorvete. O americano faz as coisas mais espantosas com o sorvete. Ele o mete no pastel, mistura-o com soda; ele o introduz no chocolate puro, como um bombom; imprensa-o entre dois biscoitos doces e chama a isso sanduíche sorvete; e até o usa, em lugar de creme batido, em uma charlotte russa...
— O que eu queria saber...
Mas Vance não lhe deu tempo de acabar.
— É surpreendente ver a quantidade de idéias errôneas do povo acerca dos melões. Há unicamente duas espécies — o melão almiscarado e o melão dágua, ou melancia. Todos os melões alimentícios — como o cantalupo, o limão, o noz-moscada, Cassabas e maná — são variedades do melão almiscarado. Mas o povo, como você, tem a noção de que cantalupo é um termo genérico. Em Filadélfia chamam todo melão "cantalupo". Ora. a verdade é que esse tipo de melão foi cultivado primeiramente em Cantalupo, na Itália...
— Muito interessante, — disse Markham, com mal disfarçada impaciência. — Que pretendia você com aquela observação ontem à noite?
— E, além do melão, Currie preparou-lhe um prato especial. É a minha obra-prima culinária — com a colaboração de Currie, já se vê.,. Gastei meses na sua concepção — compondo e organizando, por assim dizer. Não lhe dei nome ainda —talvez você possa lembrar um nome apropriado... Para executar esse prato, pica-se em primeiro lugar um ovo bem cozido, e mistura-se-lhe queijo Port du Salut ralado; adiciona-se um nadinha de estragão. Essa pasta é então enrolada em um filete de perca branca — como uma panqueca. Amarra-se com um fio de seda, cobre-se com uma massa de amêndoas especialmente preparada, e frita-se em manteiga fresca. Isto, sem dúvida, é a explicação mais resumida do preparo, omitidos todos os detalhes.
— Deve ser muito gostoso, — disse Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas eu não vim aqui para uma lição de cozinha...
— Você menospreza a importância dos prazeres do estômago, Markham. A alimentação é um guia infalível no progresso intelectual de um povo, assim como a medida exata do temperamento dos indivíduos. O selvagem cozinhava e comia como selvagem. Na infância da raça, o gênero humano foi afligido por uma vasta epidemia de indigestão. Houve o diabo a quatro, e apareceram idéias infernais: eram os pesadelos da dispepsia. Depois, quando o homem começou a assenhorear-se da técnica da cozinha, tornou-se civilizado; e quando atingiu os pináculos da arte culinária, também alcançou os pináculos da cultura e da glória intelectual. Quando a arte cio guloso retrocedeu, também o homem retrogradou. A cozinha da América, sem gosto, padronizada, é o símbolo da sua decadência. Uma sopa perfeitamente temperada, Markham, tem mais nobreza do que a Sinfonia em Dó Menor de Beethoven...
Ouvia Markham com ar apavorado a tagarelice de Vance. Fez diversas tentativas para trazer à tona o assunto que lhe interessava, mas Vance, como que não o percebendo, não lhe dava ouvidos.
Somente depois que Currie retirou os pratos, consentiu ele em referir-se ao objeto da visita de Markham.
— Trouxe as informações, Markham?
— E levei cinco horas à procura de Heath, depois que você saiu, ontem à noite.
— Que pena! — disse Vance.
Foi à secretária, tirou de um compartimento uma folha de papel dobrada, escrita de ambos os lados, e deu-a a Markham.
— Desejo que você leia isso e me dê sua douta opinião. Preparei-o ontem, depois do concerto.
Tomei, mais tarde, posse do documento, e arquivei-o com outras notas e papéis concernentes ao caso Benson. Eis o seu texto, palavra por palavra:
HIPÓTESE
A Sra. Ana Platz alvejou e matou Alvino Benson na noite de 13 de junho.
LOCAL
Ela morava na casa, e confessou que estava lá no momento em que o tiro foi disparado.
OCASIÃO
Estava só cm casa com Benson.
As janelas que não eram gradeadas estavam fechadas com ferrolho por dentro. A porta da frente estava fechada. Não havia outro meio de acesso à casa.
Sua presença na sala era natural: podia entrar sem se ocultar, para fazer qualquer pergunta relativa ao governo da casa.
Podia parar em frente de Benson sem provocar sequer um olhar do patrão. Daí sua atitude de quem lia.
Que outra pessoa podia ter chegado tão perto dele com o propósito de alvejá-lo, sem lhe despertar a atenção?
Ele não se preocupava com o trajo diante da governanta. Habituara-a a vê-lo sem dentes nem peruca, e cm roupa caseira.
Vivendo na mesma casa, podia escolher o momento propício para o crime.
MOMENTO
Ela o esperava. A despeito de sua negativa, podia ele ter-lhe dito a hora em que voltaria.
Quando viu o patrão vir só e mudar de roupa, ela compreendeu que não esperava visita alguma.
Escolheu o momento imediato à sua volta porque assim pareceria que ele trouxera alguém consigo, e que essa outra pessoa o matara.
MEIOS
Serviu-se da arma do próprio Benson. É fora de dúvida que ele tinha mais de uma; porque era mais natural que guardasse uma arma no quarto de dormir do que na sala, e uma vez que o Smith and Wesson foi encontrado na sala, é que havia outro no quarto.
Sendo sua governanta, sabia da existência da outra arma em cima. Depois que ele desceu e foi ler para o salão, ela pegou na arma, levantou-a oculta no avental.
Deitou-a fora, ou escondeu-a. depois de atirar: teve para isso toda a noite.
Assustou-se quando interrogada a respeito das armas que Benson teria em casa, porque ficou em dúvida sabre se nós saberíamos ou não que havia outra no quarto.
MOTIVO
Ela foi ser governanta de Benson porque teve medo da conduta dele para com sua filha. Sempre ouvia quando a moca ia à noite trabalhar em casa dele.
Descobrira ultimamente que Benson tinha intenções ignóbeis e acreditou que a filha corria perigo iminente.
Uma mãe que se sacrifica pelo futuro de sua filha, como ela o fez, não hesitaria em matar para salvá-la.
E havia as jóias. Ela ocultou-as e conserva-as para a filha.
Então Benson ia sair deixando o estojo cm cima da mesa? E, se as tivesse posto noutra parte, quem senão ela, familiarizada com a casa, e tendo todo o tempo ao seu dispor, poderia achá-las?
COMPORTAMENTO
Mentiu quando falou na vinda de Miss St. Clair para o chá, explicando mais tarde que a moça não podia estar implicada no crime. Era intuição feminina? Não. Sabia que Miss St. Clair era inocente, unicamente porque era ela mesma a culpada. Como tem o amor maternal muito apurado, não queria que se suspeitasse de uma inocente.
Assustou-se muito ontem, ao ouvir o nome da filha, receando que a descoberta do parentesco viesse a revelar o móvel do crime.
Confessou que ouvira o tiro, porque uma experiência provaria logo que uma detonação na sala seria perfeitamente ouvida no seu quarto: isso daria motivo a suspeitas, portanto. E acaso quem desperta, noite alta, acende as luzes para verificar a hora? No caso de ouvir um disparo dentro de casa, não se teria ela levantado, para verificar a causa, ou dar rebate?
Da primeira vez que foi interrogada, mostrou sem rebuços que não gostava de Benson,
Cada vez que é interrogada, demonstra grande inquietação.
Pertence ao tipo germânico, teimoso, astuto e resoluto, que bem podia, ter não só planejado, mas executado o delito.
ALTURA
Mais ou menos cinco pés e dez polegadas, isto é, a altura demonstrada para o criminoso.
Markham leu o resumo várias vezes — levou um quarto de hora nisso — e ao terminar, afinal, ficou ainda silencioso por alguns minutos. Depois levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro da sala.
— |Não é um documento legal imaginário, — observou Vance. — Mas creio que até um membro do Grande Júri o compreenderia. Você pode, é claro, tornar a escrevê-lo e adorná-lo tom inúmeras frases sem sentido e recônditos termos jurídicos.
Markham não respondeu logo. Parou perto das janelas francesas e olhou a rua. Depois disse:
— Sim, creio que você demonstrou o caso... É extraordinário! Eu tinha curiosidade, desde o princípio, de saber o que você procurava; e suas perguntas de ontem à Sra. Platz me pareceram sem fundamento. Mas confesso que nunca me ocorreu a idéia de suspeitar dela. Benson deve ter-lhe dado sólidos motivos!
Voltou muito devagar, e veio vindo para o nosso lado, a cabeça baixa, as mãos nas costas.
— Não me agrada a idéia de prendê-la... É singular que eu nunca tivesse desconfiado dela.
Parou defronte de Vance.
— E você mesmo, a principio, não pensava nela a despeito de se jactar de saber quem era o assassino cinco minutos depois de entrar na casa de Benson.
Vance sorriu alegremente e agitou-se na cadeira, o que indignou Markham.
— Diabo! Você me disse outro dia que nenhuma mulher podia ter feito isso, fosse qual fosse a prova aduzida, e arengou acerca de arte e de psicologia, e sabe Deus o que mais...
— E é verdade, — murmurou Vance, ainda sorrindo. —
Não foi mulher que matou Benson. j
— Não foi mulher!? — repetiu Markham, cuja indignação subia de ponto.
— Oh! Não, meu caro... — afirmou Vance, apontando para o papel que Markham conservava na mão. Isso é apenas uma pilhéria, sabe?... Pobre da velha Platz... ela é inocente como um cordeiro.
Markham arrojou o papel sobre a mesa e sentou-se. Eu nunca o vira tão furioso; mas dominava-se admiràvelmente.
— Olhe, meu amigo, — disse Vance em sua fala arrastada e indiferente, — tive um desejo irresistível de demonstrar-lhe quão nulas são suas provas materiais e circunstanciais. Sinto-me orgulhoso da minha acusação contra a Sra. Platz. Estou certo de que você poderia convencê-la da verdade desse libelo. Mas, como toda a teoria da sua lei tão elogiada, é ele tão especioso como errôneo... A prova circunstancial, Markham, é a maior asneira que se possa imaginar. Sua teoria discorda da democracia de nossos dias. A teoria democrática é que, se você acumula muita ignorância nas cabeças, produz inteligência; e a teoria da prova circunstancial é que, se você reúne um número suficiente de elos fracos, produz uma cadeia forte.
— Fez-me vir aqui hoje para ouvir uma dissertação sobre a teoria jurídica? — perguntou o Promotor, friamente.
— Oh! não, — assegurou Vance, rindo. — Apenas preciso prepará-lo para aceitar a minha revelação; porque não tenho nem sequer um fragmento de prova material, nem circunstancial contra o culpado. E, não obstante, Markham, eu sei que ele é o criminoso, tão bem como sei que você está sentado nessa cadeira, planejando a maneira de me torturar e matar sem ser punido.
— Se você não tem provas, como chegou a essa conclusão? — indagou Markham, em tom mordaz.
— Unicamente pela análise psicológica — aquilo que chamarei a ciência das possibilidades pessoais. A natureza psicológica de um homem é um estigma tão claro para quem sabe ler nela, como a carta vermelha de Hester Prynne... Eu nunca li Hawthorn, devo dizê-lo. Não posso suportar o temperamento da Nova Inglaterra.
Markham mordeu os lábios e olhou para Vance ferozmente.
— Espera você que eu me vá apresentar diante do tribunal, levando sua vítima pelo braço, e diga ao juiz: "Aqui está o homem que matou Alvino Benson. Não tenho prova alguma contra ele, mas quero que o condene à morte, porque meu brilhante e sagaz amigo, Sr. Philo Vance, o inventor da perca recheada, diz que ele é perverso por natureza..." Você espera isso?
Vance encolheu quase imperceptivelmente os ombros.
— Olhe, eu não vou morrer de desgosto se você não prender o culpado. Mas achei que era mais humano dizer-lhe quem é, ao menos para impedi-lo de atormentar pessoas inocentes.
— Pois bem, diga-me quem é ele, que eu saberei o que me cumpre fazer.
Talvez Markham duvidasse de que Vance sabia na verdade quem era o assassino de Benson. Em todo o caso, essa incerteza, se a houve no seu espírito, se dissipou naquela manhã, em que compreendeu por que Vance o mantivera durante dias suspenso em ansiedade. Quando, afinal, ele o descobriu, perdoou a Vance: mas naquele momento estava furioso a mais não poder.
— Há ainda alguma coisa a fazer antes que eu possa revelar o nome do cavalheiro, — disse-lhe Vance. — Primeiro, deixe-me dar uma olhadela a esse relatório.
Markham tirou do bolso uma folha de papel datilografada e deu-lha.
Vance ajustou o monóculo e leu-a cuidadosamente. Depois se levantou e saiu da sala, e ouviu-o telefonar. Quando voltou, tornou a ler as notas. Uma chamou-lhe a atenção mais particularmente, e ele parecia pesar-lhe as possibilidades.
— É possível, — murmurou afinal, olhando indeciso para o fogão.
Tornou a examinar as informações.
— Vejo aqui que o coronel Ostrander, acompanhado por um vereador de Bronx, chamado Moriarty, assistiu à peça "Loucuras da Meia-Noite" no Teatro Piccadilly, Rua 47, na noite de 13, chegando ali um pouco antes das 12 e permanecendo durante a representação, que foi até às duas e meia da madrugada, mais ou menos. Conhece esse vereador?
Markham encarou-o surpreso e severo.
— Conheço o Sr. Moriarty. Que há com ele? — perguntou., com mal contida excitação.
— Onde se encontram os vereadores de Bronx, pela manhã?
— Em casa, sem dúvida... ou talvez no Club Samoset... Às vezes têm algum trabalho na Municipalidade.
— Palavra que não sei de atividade mais imprópria para um político! E quer você averiguar se ele está em casa ou no. clube? Se não for muito incômodo, gostaria de lhe dizer uma palavra.
Markham lançou ao outro um olhar suspicaz. Depois, sem uma palavra, foi até ao gabinete. Ao voltar, anunciou:
— O Sr. Moriarty estava em casa, pronto para ir para a Municipalidade. Pedi-lhe que, de caminho para a cidade viesse aqui.
— Espero que ele não nos desaponte, — suspirou Vance. — Mas vale a pena tentar.
— Está compondo uma charada? — perguntou Markham,. asperamente.
— Sob minha palavra, velho amigo: não tento perturbar o grande acontecimento. Exerço apenas um pouco daquela fé de que você é tão ricamente dotado — isso é mais desejável do que sangue normando, você bem o sabe... Entregar-lhe-ei o culpado antes que a manhã acabe. Mas preciso assegurar-me de que você o aceita. Estas informações preparam o caminho para o meu golpe... Umálibi, conforme eu já lhe disse, é coisa enganosa e perigosa: abre caminho à suspeita. E a ausência dele também, não tem nenhuma importância. Por exemplo, vejo por este relatório que Miss Hoffman não poderia alegar nenhum álibi para a noite de 13. Ela disse que foi a um cinema e voltou para casa. Mas ninguém a viu em parte alguma. Provavelmente foi à casa de Benson, em visita à mamãe, e lá ficou até tarde. Parece suspeito isso, não? E, no entanto, mesmo que estivesse ali, seu único crime naquela noite foi sua afeição filial... Por outro lado, há alguns aqui que são, como se diz, de ferro fundido — tola metáfora: o ferro fundido quebra facilmente... Ora, acontece que um deles é falso, sei-o eu. Seja camarada, Markham, e tenha paciência, pois é muito necessário que examinemos minuciosamente todos eles.
Quinze minutos depois, chegava o Sr. Moriarty. Era um moço sério, bem apessoado, bem vestido, já próximo dos trinta — não se parecendo em nada com o tipo de vereador que eu imaginara — e falava um inglês claro e preciso, quase sem sotaque.
Markham apresentou-o em poucas palavras, explicando-lhe por que lhe pedira para vir.
— Um dos homens do Departamento de Crimes, — declarou Moriarty — interrogou-me ontem a esse respeito.
— Temos aqui o seu relatório. — disse Vance, — mas é um tanto vago. Quer o senhor dizer-nos exatamente o que fez naquela noite depois que encontrou o coronel Ostrander?
— O coronel convidara-me para jantar e ir depois ao teatro com ele. Encontramo-lo às dez horas, no Marseilles. Jantamos ali e saímos um pouco antes da meia-noite, para ir ao Piccadilly, onde ficamos até às duas e meia, mais ou menos. Eu acompanhei-o até sua casa, onde bebi um pouco, palestrei, e depois tomei o metrô para voltar a casa, cerca de três e meia da madrugada.
— Disse ontem ao investigador que tomara um camarote no teatro?
— É verdade.
— Permaneceram no camarote, o senhor e o coronel, durante toda a representação?
— Não. Depois do primeiro ato, um amigo meu veio ao camarote e o coronel escusou-se e foi até ao lavatório. E após o segundo, eu e o coronel fomos para o corredor, para fumar.
— Poderia dizer que horas eram quando acabou o primeiro ato?
— Meia hora depois da meia-noite, mais ou menos.
— E onde fica situado esse corredor? Se bem me lembro, fica ao lado do teatro e tem saída para a rua?
— É isso mesmo.
— E não há uma porta de saída muito próxima dos camarotes, e que dá para o corredor?
— Há, sim. Passamos por ela naquela noite.
— E quanto tempo esteve o coronel fora, depois do primeiro ato?
— Alguns minutos... Não posso dizer exatamente.
— Voltou ele, então, quando correu o pano para o segundo ato?
— Não me parece, — respondeu Moriarty depois de refletir. Creio que, quando ele voltou, tinha começado o ato há poucos minutos.
— Uns dez, talvez?
— Não posso precisar. Mas com certeza não mais do que isso.
— Então, se dermos dez minutos para o intervalo, o coronel teria estado ausente vinte minutos?
— Sim... É possível.
Terminara a entrevista. Saiu Moriarty, e Vance recostou-se na cadeira, meditativo.
— Que extraordinária coincidência! — comentou ele. — O Teatro Piccadilly fica pertinho da casa de Benson, é só dobrar a esquina. Compreende a situação, Markham?... O coronel convida um vereador para as "Loucuras da Meia-Noite", e toma um camarote perto de uma das saídas para o corredor. Pouco depois da meia-noite, ele abandona o camarote, sai furtivamente pelo corredor, corre à casa de Benson; bate, entra, mata o homem e corre de volta ao teatro... Vinte minutos teriam sido mais que suficientes.
Markham endireitou-se na cadeira, mas não fez comentário algum.
— Agora, vamos às circunstâncias que indicam e confirmam os fatos... Miss St. Clair disse-nos que o coronel perdera muito dinheiro com as manipulações de Benson na Bolsa, e acusava-o de perversidade. Não falava com Benson já há uma semana: logo, havia entre eles uma desinteligência. Viu Miss St. Clair no Marseilles com Benson, e, sabendo que ela sempre se recolhe a casa à meia-noite, escolhe os trinta minutos depois como hora propícia; poderia esperar para mais tarde, mas preferiu escapulir do teatro. Sendo oficial do exército, deve possuir uma pistola Colt 45; e deve ser também bom atirador. Estava ansioso para que você prendesse alguém — fosse quem fosse, parece, e até lhe telefonou para indagar disso. Era uma das pouquíssimas pessoas neste mundo a quem Benson receberia vestido como estava. Conhecia-o intimamente há quinze anos, e a Sra. Platz viu uma vez o patrão tirar a peruca e mostrar-lha. Ainda mais: devia conhecer os costumes da casa, pois é provável que lá tivesse dormido muitas vezes, no tempo em que iniciava seu camarada na vida noturna de Nova York... Que me diz a tudo isto?
Markham levantara-se e passeava no salão, com os olhos quase fechados.
— Então era por isso que você estava tão interessado no coronel — a indagar de todo o mundo se o conhecia, e a convidá-lo para almoçar?... De onde lhe veio a idéia de que ele é o culpado?
— Culpado! — exclamou Vance. — Aquele velho nulo e tolo, culpado! Realmente, Markham, é absurda essa idéia... Estou certo de que ele foi ao lavatório naquela noite para pentear as sobrancelhas e arranjar a gravata. Sentado, como estava, em um camarote, as artistas podiam vê-lo do palco, não é?
Markham parou abruptamente. Ficou vermelho e seus olhos relampejaram. Mas, antes que pudesse falar, Vance, sereno e indiferente à sua cólera, continuou:
— Na verdade, fui de uma felicidade extraordinária! Ele é realmente a espécie de velho chichisbeu que vai para a frente do espelho a se narcisar — até julguei que... Mas palavra! Markham, adiantamos muito esta manhã, apesar de você estar tão aborrecido... Pois agora tem cinco pessoas diferentes a quem pode, com um pouco de habilidade jurídica, imputar o crime. De qualquer maneira, pode acusá-las. Em primeiro lugar, — continuou, meditativo, — vem Miss St. Clair. Você estava quase certo de que ela tinha cometido o delito, e disse ao major que tudo estava pronto para prendê-la; lançava assim às urtigas minha demonstração da altura do assassino, sob o fundamento de que, sendo racional e concludente, nenhum tribunal a levaria em conta. E tenho certeza de que o juiz concordaria com esse parecer... Em segundo lugar, dei-lhe o capitão Leacock. Vi-me obrigado a recorrer à força para impedi-lo de prender o rapaz. Tinha você contra ele a sua deliciosa confissão; e, como ainda lhe.restassem dúvidas, veio ele próprio em seu auxílio, feliz de ser reconhecido culpado. Apresentei-lhe, em terceiro lugar, Leandro, o Formoso. Estava munido de mais provas, contra este, do que em qualquer dos outros casos — uma verdadeira riqueza, em matéria de provas: era só o embaraço da escolha. E qualquer juiz o condenaria com prazer — eu mesmo, quando mais não fosse, pelo seu vestuário. Em quarto lugar, aponto com orgulho para a Sra. Platz — outro caso perfeito, cheio de fios condutores, e inferências, e mil coisas. Quinto, trago-lhe o coronel, a respeito de quem acabo de lhe dar provas comprometedoras; e poderia elaborar, se tivesse mais tempo, um trabalho mais impressionante...
Calou-se, sorrindo francamente, e continuou, amável:
— Note, Markham, que cada membro deste quinteto reúne todos os requisitos exigidos para o culpado presuntivo; cada um deles preenche perfeitamente todas as condições legais: hora, lugar, ocasião, meios, motivo, comportamento... A única coisa que lhes falta é serem culpados. Isso é, concordo, muito inconveniente — mas é assim... Agora, se todas as pessoas contra quem há suspeita são inocentes, que fazer? Que maçada!
Tornou a pegar no relatório.
— Nada a fazer, positivamente, senão continuar a examinar estes papéis...
Eu não podia compreender qual era o fim das suas digressões, aparentemente sem importância nenhuma. Markham, também, estava intrigado; mas nenhum de nós duvidou, por um momento sequer, de que ele procedia metòdicamente.
— Vamos ver, — continuou Vance. — Segue-se, pela ordem, o major. Que diria você de um reconhecimento? Não nos levaria muito tempo: mora perto daqui, e toda justificação se baseia em uma declaração do porteiro que atende à noite no edifício onde está o seu apartamento. Vamos!
— Sabe você se o rapaz está lá agora?
— Sim. Telefonei há pouco.
— Mas isso é um contra-senso!
Vance, levando Markham pelo braço, dirigia-se alegremente para a porta, levando-o depressa.
— Oh! Indubitavelmente! — acrescentou. — Mas tenho-lhe dito tantas vezes, meu amigo, que você leva a vida muito a sério!...
Markham, protestando energicamente, queria voltar, e esforçava-se por desprender o braço, mas foi em vão: Vance tinha decidido ir com ele, e depois de acalorada discussão acabou por ceder.
— Já me vou fartando destas mistificações, — resmungou ele, quando íamos no carro, a caminho.
— E eu, — disse Vance, — já estou farto!
XXIII
EXAMINANDO UM ÁLIBI
(Quinta-feira, 20 de junho — 10h30 da manhã)
O major Benson morava em um edifício de apartamentos, não muito grande, situado na Rua 46, entre a Quinta Avenida e a Sexta. Denominava-se "Armas de Chatham", e só alojava celibatários. A entrada, sob uma fachada simples, mas imponente, era ao nível da rua, e apenas dois degraus davam acesso ao primeiro pavimento. A porta da frente abria para um estreito corredor, tendo à esquerda uma salinha, como um beco. Ao fundo, via-se o elevador, e ao lado deste, por baixo da escada, a mesa telefônica.
Quando chegamos, dois rapazes de uniforme estavam de serviço: um recostado à porta do elevador, outro sentado à mesa telefônica.
Vance deteve Markham à entrada.
— Na noite de 13 estava um destes dois rapazes de serviço, segundo me informaram. Indague qual foi, e intimide-o para que obedeça, dando-lhe a conhecer sua qualidade de Promotor. Depois deixe-o comigo.
Markham, a contragosto, entrou no corredor. Depois de algumas perguntas, levou um deles para a sala de recepção, e explicou-lhe quem era(*).
(*) O rapaz era Jack Prisco; morava na Rua Kelly, 621.
Começou Vance seu interrogatório com o ar confiante de quem não tem dúvida alguma de que aquele a quem interroga conhece perfeitamente o assunto.
— A que hora voltou o major na noite em que o irmão dele foi assassinado?
O moço esbugalhou os olhos.
— Ele chegou mais ou menos às 11 horas, logo que acabou o espetáculo, — respondeu após leve hesitação.
(Para economizar espaço, escrevi o resto em forma de diálogo.)
VANCE — Falou com você, não?
RAPAZ — Sim, senhor. Disseme que fora ao teatro, mas que o espetáculo era péssimo, e que tinha uma terrível dor de cabeça.
VANCE — Como pode você lembrar tão bem o que ele lhe disse há uma semana?
RAPAZ — Porque nessa noite o irmão dele foi assassinado!
VANCE — E esse crime o impressionou tanto, que guardou na memória todos os incidentes da noite, em relação ao major?
RAPAZ — Decerto — ele era irmão do moço que mataram.
VANCE — Quando o major entrou, à noite, disse alguma coisa acerca da data?
RAPAZ — Não, isto é, disse que tivera pouca sorte com o espetáculo, por ser dia 13.
VANCE — Disse mais alguma coisa?
RAPAZ — (fazendo uma momice). Disse, sim senhor, que para mim o dia 13 era de sorte, e deu-me todo o troco que tinha no bolso — níqueis e uma moeda de cinqüenta cents.
VANCE — E quanto somava tudo?
RAPAZ — Três dólares e 45 cents.
VANCE — Depois ele foi para o quarto?
RAPAZ — Sim, senhor, subiu no elevador; ele mora no terceiro andar.
VANCE — E tornou a sair depois disso?
RAPAZ — Não, senhor.
VANCE — Como o sabe você?
RAPAZ — Eu o teria visto, porque estive trabalhando, toda a noite, ou atendendo ao telefone, ou no elevador. Não poderia sair sem que eu o visse.
VANCE — E você esteve sozinho no trabalho toda a noite?
RAPAZ — Depois das dez horas, nunca fica mais de um porteiro.
VANCE — E não há outro meio de sair de casa, senão pela porta da frente?
RAPAZ — Não, senhor.
VANCE — Quando tornou a ver o major?
RAPAZ — (depois de refletir um momento) Chamou para pedir um pedaço de gelo, e eu levei-lhe.
VANCE — A que horas?
RAPAZ — Mas... não sei exatamente... Sim! Já sei! Era meia hora depois da meia-noite.
VANCE — (sorrindo) Por acaso, ele perguntou as horas?
RAPAZ — Sim, senhor, perguntou. Pediu-me que visse no relógio da sala.
VANCE — Conte-me como foi isso.
RAPAZ — Foi assim: eu levei o gelo; ele já estava na cama, e pediu-me que o deixasse no seu jarro, na sala. Quando eu estava ali, pediu-me que visse a hora no relógio da lareira, porque o seu relógio de bolso estava parado e queria acertá-lo.
VANCE — Que mais disse ele?
RAPAZ — Oh! Pouca coisa mais: que não tocasse a sua campainha, fosse quem fosse que o procurasse. Que queria dormir, e não queria que o acordasse.
VANCE — Ele insistiu nisso?
RAPAZ — Muito. Foi ordem terminante.
VANCE — E disse ainda alguma outra, coisa?
RAPAZ — Não. Disse apenas "boa noite" e apagou a luz, e eu desci.
VANCE — Que luz apagou ele?
RAPAZ — A do seu quarto.
VANCE — Podia você ver para dentro do quarto, estando na sala?
RAPAZ — Não. O quarto fica longe.
VANCE — Então como sabe que a luz se apagou?
RAPAZ — É que a porta estava aberta, e a luz refletia na sala.
VANCE — E, quando saiu, você passou pela porta do quarto?
RAPAZ — Certamente, tinha de passar por ali.
VANCE — E a porta estava ainda aberta?
RAPAZ — Sim, senhor.
VANCE — Onde se achava o major, quando você entrou?
RAPAZ — Na cama.
VANCE — Como o sabe?
RAPAZ — (meio irritado) Porque o vi!
VANCE — (depois de uma pausa) Está bem certo de que ele não tornou a descer?
RAPAZ — Eu lhe disse, senhor, que o veria se ele tivesse descido...
VANCE — Não podia ele ter descido enquanto você tinha o elevador em cima, sem que o visse?
RAPAZ — Certamente que podia. Mas eu não subi com o elevador, depois que levei o gelo ao major, senão ali pelas duas e meia, quando o Sr. Montagu se recolheu.
VANCE — Então não subiu com o elevador desde que levou o gelo ao Major Benson, até o regresso do Sr. Montagu?
RAPAZ — Não, senhor, não levei ninguém.
VANCE — E não saiu da portaria durante esse tempo?
RAPAZ — Não. Estive sentado aqui todo o tempo.
VANCE — Então, a última vez que viu o major, ele estava na cama, aos trinta minutos do dia treze.
RAPAZ — Sim, não o tornei a ver senão de manhã cedo, à hora em que uma senhora (*) telefonou, dizendo que seu irmão tinha sido assassinado. Ele desceu, uns dez minutos depois, e saiu.
(*) Trata-se, evidentemente, da Sra. Platz.
VANCE — É só. Agora, não abra a boca a quem quer que seja, sobre a nossa estada aqui, senão você se arrependerá, compreende? Pode voltar ao seu trabalho, — concluiu, dando-lhe um dólar.
Quando o rapaz saiu, Vance, deitando a Markham um olhar aliciante, disse-lhe:
— E agora, meu velho amigo, para melhor proteger a sociedade, e pelos mais altos interesses da justiça, e para benefício de muita gente, e pro bono publico, e tudo o mais, é preciso que você ainda uma vez vá de encontro aos seus próprios princípios — ou como melhor você achar, em termos jurídicos. Em linguagem vulgar: quero dar uma busca no apartamento do major.
— Mas para quê? — protestou Markham em altas vozes. — Você perdeu o juízo? O testemunho deste rapaz é irretorquível... Talvez eu seja pobre de espírito, mas conheço quando uma testemunha diz a verdade!
— E esta disse a verdade, — declarou Vance serenamente. — E é exatamente, por isso que quero ir lá acima. Venha, meu caro Markham... Não há perigo de o major chegar de surpresa a esta hora... Ademais, — continuou, afetuosamente, — você me prometeu seu auxílio, não se lembra?
Foram veemente, mas inúteis, os protestos de Markham — porque Vance foi não menos veemente na insistência; e poucos minutos depois, entrávamos, com o auxílio de uma gazua, no apartamento do major Benson.
A única entrada era uma porta que do hall levava por um corredor estreito em linha reta até à sala, no outro extremo. À direita desse corredor, perto da entrada, ficava uma porta abrindo para o quarto de dormir.
Vance foi direto a sala, que ficava ao fundo do corredor. À direita, via-se a chaminé, com uma prateleira, sobre a qual pousava um relógio de acaju. À esquerda da chaminé, no canto da parede, uma mesinha com um serviço de prata para água gelada — a jarra e seis taças.
— Aqui temos, — disse Vance, — o prestativo relógio e a jarra da prata em que o porteiro deitou o gelo. Imitação de prata Sheffield.
Foi até à janela e olhou para o pátio, que ficava a vinte e cinco ou trinta pés abaixo, observando:
— Não foi pela janela que o major escapou. Voltou-se e ficou um momento a olhar para o corredor.
— A porta estava aberta; logo, era fácil ao rapaz ver na parede branca e lustrosa do corredor o reflexo da luz do quarto.
Entrou depois neste; em frente à porta, uma cama pequena, com dossel, e ao lado, sobre a mesinha de cabeceira, uma lâmpada elétrica. Sentou-se na beira da cama, olhou ao redor, e acendeu e apagou a lâmpada. Depois, voltando-se para Markham:
— Compreende como o major pôde sair sem ser visto pelo rapaz?
— Por levitação, suponho...
— Vem a dar na mesma... — replicou Vance. — É diabolicamente engenhoso, também... Escuta, (Markham: m?ia hora depois da meia-noite, o major chamou e pediu gelo. O rapaz trouxe-lhe e, ao entrar olhou para o quarto, cuja porta estava aberta, e viu o major já deitado. Este lhe disse que pusesse o gelo na jarra da sala. Para isso tinha de atravessá-la e ir até onde estava a mesinha; pediu-lhe então que visse que horas eram no relógio da chaminé: trinta minutos depois da meia-noite. Observou que não queria ser perturbado no seu descanso, deu boa noite, apagou esta lâmpada, saltou da cama — estava vestido, é claro — e saiu àgilmente pelo vestíbulo antes que o rapaz tivesse tempo de despachar o gelo e voltar ao corredor. Desceu a escada correndo e, antes que o rapaz voltasse com o elevador, estava já na rua. Quando passou pela porta do quarto, ao voltar, não podia o rapaz ter visto se o major estava ou não na cama, ainda que tivesse olhando para dentro, porque já estava às escuras. Não é muito engenhoso mesmo?
— Tudo é possível, não há dúvida, mas já lhe falha a fantasia para explicar a volta.
— Pois isso é o mais simples do plano. Provavelmente o major esperou na entrada de alguma casa próxima, até que algum inquilino se recolhesse. Disse o rapaz que o Sr. Montagu voltou pelas duas e meia. Então o major introduziu-se sorrateiramente, quando viu o elevador partir, e subiu pela escada.
Markham, sorrindo pacientemente, nada disse.
— Você percebe o trabalho que teve o major para estabelecer a data e a hora gravando-as no espírito do rapaz: "Um espetáculo sem interesse — dor de cabeça — dia aziago..." Por que aziago? Era dia 13, não o esqueça. Contudo, para o rapaz, foi de sorte: uma mancheia de dinheiro — tudo prata. Singular meio de suborno, pois não? Um dólar seria mais depressa esquecido.
Pelo rosto de Markham passou uma sombra, mas retrucou na mesma voz indulgente de sempre:
— Prefiro seu libelo contra a Sra. Platz.
— Ah! Mas ainda não acabei. Tenho esperança de encontrar a arma, sabe?
Olhava-o agora Markham com um ar de incredulidade divertida.
— Isso seria sem dúvida um fator importante... Mas espera encontrá-la, deveras?
— Sem nenhuma dúvida, — afirmou Vance alegremente, enquanto abria as gavetas do toucador.
— Nosso anfitrião ausente, — continuou ele, — não deixou a pistola em casa de Alvino, e era muito prudente para jogá-la fora... Como serviu na última guerra, e é major, é de esperar que a tivesse; de mais a mais, muitas pessoas devem saber que ele possuía uma arma dessas. E, se é inocente — como espera que o acreditamos — por que não a conservaria em casa e no lugar habitual? A falta da arma, sim, seria mais comprometedora do que a presença dela. Também entra aqui um fator psicológico muito interessante. Um inocente, receoso de ser suspeitado, tê-la-ia ocultado, ou deitado fora, como o capitão Leacock, por exemplo. Mas o criminoso, que quer parecer inocente, tornaria a colocá-la no lugar em que estava antes do crime. Tudo se reduz, portanto, — continuou, enquanto investigava o toucador, — tudo se reduz a descobrir qual era a morada antiga da arma do major... Não é aqui, — disse, fechando a última gaveta.
Abriu um estojo de violino que estava aos pés da cama.
— Nem aqui, — murmurou com indiferença. — Resta o guarda-roupa: é o único lugar onde pode estar.
Atravessou o quarto, abriu a porta do guarda-roupa e acendeu a lâmpada. Na prateleira superior, bem à vista, estava um cinturão do exército, com um coldre bojudo. Vance pegou nele com extrema delicadeza e veio colocá-lo sobre a cama, junto à janela.
— Aqui tem você, velho camarada, — anunciou alegremente, curvando-se sobre o cinto, que examinava atentamente.
— Queira tomar nota de que todo o cinturão e o coldre — com exceção unicamente da virola deste — estão cobertos de uma camada espessa de pó. A virola está relativamente limpa, o que demonstra que foi aberto recentemente... Não é conclusivo, de certo; mas você aprecia pistas, Markham...
Tirou a pistola do coldre, com muito cuidado.
— Note, também, que a própria arma está sem pó... Presumo que a limparam há pouco tempo.
Introduziu uma ponta do lenço no tambor e, retirando-a, ergueu-a.
— Vê? Até o interior do tambor está imaculado... E aposto todos os meus Cézanne, contra um diploma de doutor em Direito, que não lhe falta uma só bala.
Extraiu as balas e espalhou-as sobre a mesinha, onde ficaram formando uma fileira.
Eram sete — o número completo.
— Apresento-lhe de novo, Markham, uma de suas tão apreciadas pistas. Os cartuchos que ficam por longo tempo em um tambor tornam-se levemente embaçados, porque o fecho não é hermético. A caixa de balas, porém, é perfeitamente fechada, e ali as balas conservam o brilho por muito mais tempo. Observe que esta bala, — continuou, apontando para a primeira que rolara do tambor — a última que foi metida no cilindro, está um pouco mais brilhante do que as suas companheiras. A dedução é — você é um adepto das deduções, não é verdade? — que esta bala é mais nova, e foi posta no tambor há pouco tempo. E, olhando Markham nos olhos, continuou:
— Ela foi posta ali para substituir aquela que o capitão Hagedorn levou.
Markham ergueu a cabeça, sacudindo-a, como se quisesse arremessar para longe uma fascinação, e sorriu, embora com esforço.
— Pois ainda penso que a acusação contra a Sra. Platz é a sua obra-prima.
— Meu quadro do major está ainda apenas em esboço, — respondeu Vance. — As pinceladas reveladoras ainda estão por fazer. Mas, primeiro, vejamos: como sabia o major que seu irmão estaria em casa aos trinta minutos da madrugada de 13? É que ele ouvira Alvino convidar Miss St. Clair para jantar — lembre-se de que Miss Hoffman contou que ele escutava às portas... E também ouviu a moça explicar que infalivelmente à meia-noite se retiraria. Quando eu disse ontem, depois que saímos de casa de Miss St. Clair, que uma frase dela nos ajudaria a encontrar o culpado, referia-me à sua declaração de que era à meia-noite que invariavelmente se recolhia. O major sabia, portanto, que Alvino estaria em casa aos trinta minutos, e além disso estava seguro de que não encontraria ali nenhuma outra pessoa. De qualquer modo, tê-lo-ia esperado, não?... Poderia ele obter uma audiência imediata do irmão, assim em traje caseiro? — Sim. Bateu à janela: o outro reconheceu-lhe a voz, sem nenhuma sombra de dúvida, e imediatamente o recebeu. Alvino não se preocupava com a indumentária em frente do irmão, e não via mal em recebê-lo sem dentes nem cabeleira... Terá o major a estatura requerida? — Tem. Fiquei, de propósito, a seu lado no gabinete do Tribunal, Markham: tem mais ou menos cinco pés e dez polegadas e meia...
Markham contemplava silencioso a pistola descarregada. A voz de Vance era completamente diferente de quando ele enunciava casos hipotéticos contra supostos criminosos, e a Markham não passara despercebida a alteração.
— Vamos agora às jóias, — continuou ele. — Exprimi uma vez a crença de que, se descobríssemos o aval dado por Pfyfe em garantia da promissória, teríamos posto a mão sobre o assassino. Pensava então que o major tinha consigo as jóias; quando, mais tarde, Miss Hoffman contou que ele lhe pedira para silenciar sobre o estojo azul, adquiri a certeza disso. Alvino levou-as para casa naquela tarde, e é fora de dúvida que o major o sabia. E creio até que isso influiu na sua decisão de acabar com a vida do irmão naquela noite: cobiçou essas bagatelas. Markham. Resta apenas encontrá-las, — continuou, levantando-se e dirigindo-se no seu andar cadenciado para a porta. — O assassino carregou-as consigo; elas não podiam ter desaparecido de nenhum outro jeito. Portanto, estão neste apartamento... Se o major as levasse para o escritório, alguém as veria; e, se as depositasse no cofre de algum banco, o funcionário do banco poderia mais tarde recordar esse episódio. Além disso, a mesma psicologia aplicada à arma se adapta às jóias: o major agia sob a presunção de sua inocência; e, de fato, as bugigangas estavam mais seguras aqui do que algures. E ficava tempo de sobra para dispor delas quando tudo serenasse... Venha comigo um momento, Markham. É doloroso, eu sei; e seu coração é muito fraco para um anestésico.
Markham seguiu-o pelo corredor, sob uma impressão de estupor. Grande foi a piedade que me inspirou aquele homem, porque já não havia dúvida alguma de que Vance falava seriamente, ao demonstrar a culpa do major. Na verdade, sempre me pareceu que Markham suspeitava qual a razão por que Vance lhe pedira para averiguar o emprego do tempo do major; e que sua oposição fora devida mais ao grande receio do resultado do que a impaciência diante dos métodos irritantes do outro. Não é que ele fosse capaz de fugir à realidade, a despeito mesmo da velha amizade que o ligava ao major; mas ele se debatia — agora o vejo — contra o inevitável das circunstâncias e esperava contra toda a esperança, fazia empenho de se convencer de que tinha interpretado mal as palavras de Vance, e acreditava que, resistindo com vigor aos próprios passos, poderia alterar o curso dos acontecimentos.
Vance dirigiu-se à sala e parou um momento a examinar os móveis, enquanto Markham permanecia à porta, olhando para ele, os lábios contraídos, as mãos metidas nos bolsos.
— Podíamos mandar um perito esquadrinhar o apartamento, palmo a palmo, — observou Vance, — mas acho desnecessário. O major é um sujeito arrojado e astuto: atestam-no a vasta fronte quadrada, o olhar dominador, o corpo ereto e o ventre côncavo. É rígido em todas as operações mentais. Como o ministro D..., de Poe, acharia pueril a idéia de ocultar as jóias em algum canto obscuro, e nem lhe ocorreu a intenção de escondê-las; apenas resguardá-las onde não estivessem ao alcance da vista. Para isso basta uma fechadura, não? E, como no quarto não havia esconderijo dessa espécie, vim procurá-lo aqui.
Foi até uma pequena secretária de pau-rosa e experimentou todas as gavetas, mas estavam abertas; aberta também uma papeleira espanhola, ao pé da janela.
— Markham, — disse ele, desapontado, — preciso de encontrar ao menos uma gaveta fechada a chave!
Esquadrinhou de novo a sala, e quando já ia voltar ao quarto, desenganado, deu com uma charuteira circassiana, de nogueira, meio oculta sob uma pilha de revistas, na prateleira inferior da mesa de centro. Deteve-se bruscamente, pegou na caixa, e tentou abri-la. Estava fechada.
— Vejamos, — murmurou. — Que fuma o major?... Parece-se que é Romeo y Julieta Perjeccionados, mas estes charutos não são tão preciosos que precisem de ser guardados debaixo de chave...
Pegou numa faca de papel, de bronze, que estava sobre a mesa, e forçou a fechadura, metendo-a numa fenda.
— Você não pode fazer isso! — gritou Markham. E a voz traía-lhe a aflição e reprovação por aquele procedimento.
Mas, antes que ele pudesse alcançar Vance, ouviu um estalido, e a tampa saltou. Dentro aparecia um estojo de jóias de veludo azul.
— Ah! "Jóias mudas, mais eloqüentes do que as palavras!" — exclamou Vance. Markham ficou a olhar para a caixa, com o rosto contraído por trágica aflição. Depois voltou-se devagar e caiu pesadamente em uma poltrona.
— Meu Deus! — murmurou ele. — Não sei no que hei de acreditar!
— Nesse ponto, — retorquiu Vance, — você está nas mesmas condições de todos os filósofos. Mas você estava pronto a crer na culpa de meia dúzia de pessoas inocentes; por que iria agora poupar o major, que é criminoso?
Falava em tom desdenhoso, mas iluminava-lhe o olhar uma luz curiosa e imperscrutável, que desmentia a voz. Veio-me então ao espírito a observação de que, a despeito da amizade indissolúvel que unia aqueles dois homens, eu jamais os ouvira trocar uma só palavra de afeição ou sequer de solidariedade, entre si.
Markham, com os cotovelos apoiados nos joelhos, curvado, a cabeça entre as mãos, era a imagem do desânimo.
— Mas o motivo? — indagou afinal. — Um homem não mata seu irmão por um punhado de jóias!
— Certamente que não, — disse Vance. — As jóias foram um mero acréscimo. Havia um motivo imperioso, fique certo disso. Creio que, quando vier o relatório do perito que foi examinar a escrita, tudo — ou pelo menos uma boa parte — nos será revelado.
— Foi por isso que você quis fazer o exame dos livros? Venha então, — disse Markham, levantando-se resolutamente. — Quero deslindar tudo já.
Vance não se moveu logo. Examinava atentamente um castiçalzinho antigo, de desenho oriental, que estava sobre a lareira.
— Uma excelente cópia! murmurou ele.
XXIV
A PRISÃO
(Quinta-feira, 20 de junho — meio-dia)
Deixando o apartamento, Markham levou a pistola e a caixa de jóias. Foi à farmácia da esquina da Sexta Avenida e telefonou a Heath, para que fosse ter com ele imediatamente ao seu gabinete, e levasse o capitão Hagedorn. Telefonou também a Stitt, o perito, dizendo-lhe que trouxesse o relatório o mais depressa possível.
— Já deve ter observado, — dizia Vance, quando seguíamos para o Tribunal, — a grande vantagem do meu método sobre o seu. Sabendo desde o princípio quem cometeu um crime, não nos deixamos desviar por aparências, ao passo que, sem esse conhecimento prévio, a gente pode ser ludibriada por um astucioso álibi, por exemplo... Pedi-lhe para verificar o emprego do tempo de tanta gente, porque sabia que o major era o criminoso, e havia de tratar de preparar um engenhoso álibi.
— Mas por que requereu tudo aquilo? E para que gastar tempo tentando refutar o do coronel Ostrander?
— E que probabilidade teria eu de obter o do major, se não incluísse seu nome subrepticamente na lista dos outros?... Se eu lhe pedisse para examinar o do major primeiro, você teria recusado. Preferi começar com o do coronel, para despistar — e foi uma sorte essa escolha. Sabia que se eu pudesse utilizar um dos outros, seria mais fácil que você me ajudasse a examinar o do major.
— Mas, se sabia desde o princípio que o major era o criminoso, por que, meu Deus! Por que não me disse, poupando-me toda esta ansiedade?
— Não seja ingênuo, meu velho, — retrucou Vance. Se eu tivesse acusado o major desde o começo, você me teria mandado prender por scandalum magnatum e difamação. Foi somente enganando-o constantemente sobre a culpa do major, foi despistando-o, que eu consegui convencê-lo agora. Contudo, nem uma só vez lhe menti. Repelia constantemente suas idéias, apontando-lhe fatos significativos, na esperança de que você alcançasse a luz por si mesmo; mas você não queria saber de minhas insinuações, ou interpretava-as mal, com uma perversidade irritante.
Markham esteve calado por algum tempo. Depois, respondeu:
— Vejo aonde quer chegar... Mas por que me sugeriu pistas falsas, para depois abandoná-las?
— É que você estava preso, de corpo e alma, à prova circunstancial. Foi unicamente mostrando-lhe que isso não o levaria ao fim desejado, que consegui por o major em evidência. Não tínhamos prova alguma — e ele naturalmente sabe por quê... Ninguém se lembraria sequer de suspeitá-lo: o fratricídio foi sempre considerado, desde os tempos de Caim, como uma monstruosidade — uma coisa inconcebível. Com todos os artifícios imagináveis, você defendia o terreno palmo a palmo, fazendo toda a sorte de objeções, para neutralizar meus humildes esforços... Reconheça, Markham, como bom camarada, que se não fora a minha teimosia, ninguém jamais suspeitaria do major.
— E, ainda agora, há coisas que não chego a compreender. Por que, por exemplo, protestou ele com tanto empenho contra a minha idéia de prender o capitão?
— Você é de uma transparência incrível, Markham! Nunca se lembre de praticar um crime, porque seria imediatamente preso. Pois não vê que o major se tornava ainda mais inatacável, se, em vez de se desinteressar do assunto, defendesse um dos que você acusava? Nem tinha melhor e mais seguro meio de afastar de sua pessoa quaisquer suspeitas. De mais a mais, sabia bem que o seu protesto não o demoveria do cumprimento do dever, porque você é um camarada correto.
— Contudo, ele me deu a entender, uma ou duas vezes, que suspeitava de Miss St..Clair...
— É muito astuto e aproveita-se das oportunidades. O major, inquestionavelmente, planejara o crime de modo que as suspeitas recaíssem sobre o capitão. Leacock ameaçara publicamente seu irmão por causa de Miss St. Clair; e a dama ia jantar sozinha com Alvino. No dia seguinte era este encontrado morto, com uma bala de Colt do exército na cabeça; quem, a não ser o capitão, podia ser acusado? O major sabia que o capitão morava só, e que lhe seria difícil apelar para um álibi... Vê agora, Markham, a astúcia que empregou, indicando Pfyfe como fonte de informações? Sabia que Pfyfe, ao ser interrogado, contaria logo a ameaça ouvida. E não esqueça que a alusão a Pfyfe foi, na aparência, resultado de uma reflexão tardia: queria que parecesse casual. Diabòlicamente astucioso, não?
Mergulhado em profunda tristeza, Markham o escutava, sem replicar.
— Vejamos a oportunidade de que tirou vantagem, — continuou Vance. — Você transtornou-lhe os planos, dizendo que sabia quem jantara com Benson, e que já possuía provas bastantes para um mandado de prisão preventiva; isso chamou-lhe a atenção. Ele sabe que, nesta muito cavalheiresca cidade, nenhuma mulher bonita seria acusada de um assassinato, seja qual for a prova contra ela; por instinto, preferia que não se punisse ninguém, por aquele crime. Assim, desejava que você dirigisse suas suspeitas para a moça — e manejou habilmente, fingindo sempre que hesitava em envolvê-la no caso.
— E foi por isso que você me sugeriu que eu lhe deixasse entrever que me mandara examinar os livros da firma por causa dela?
— Exatamente!
— E a pessoa a quem ele na verdade protegia...
— Era a si próprio. Mas queria fazer você crer que era a Miss St. Clair.
— Se você estava certo de que era ele o culpado, por que meteu o coronel Ostrander no caso?
— Na esperança de que ele nos fornecesse mais lenha para a fogueira do major. Eu sabia que ele conhecia Alvino e toda a sua camarilha; e também que era um bisbilhoteiro emérito, que forçosamente farejaria a inimizade entre os irmãos Benson, e suspeitaria da verdade. Também me convinha lançar uma vista de olhos sobre Pfyfe, para afastar qualquer suspeita, por mais remota que fosse.
— Mas nós já sabíamos o bastante a respeito de Pfyfe...
— Oh! Não me refiro às indicações materiais; queria saber alguma coisa do seu caráter — da psicologia, e principalmente da personalidade do jogador. O crime revelava um jogador calculista e de sangue-frio; e só um homem desse tipo poderia tê-lo cometido.
As teorias de Vance, aparentemente, já não interessavam tanto o Promotor.
— Você acreditou quando o major lhe disse que o irmão lhe mentira acerca das jóias?
— O velhaco do Alvino provavelmente nunca falou nelas a Antônio. O ouvido à escuta, na porta, por ocasião de uma visita de Pfyfe, teria sido a sua fonte de informações... E por falar nas indiscrições do major, foi isso mesmo que me sugeriu um motivo para o crime. É seu perito Stitt quem nos vai esclarecer este ponto.
— De acordo com a sua teoria, o crime foi concebido precipitadamente.
Esta declaração de Markham, envolvia na verdade uma pergunta.
— Os detalhes da execução foram concebidas apressadamente, — corrigiu Vance. — É fora de dúvida que o major pensava há algum tempo em se desembaraçar do irmão. O que não decidira ainda era o meio e o momento. Teria forjado e rejeitado uma dúzia de planos. No dia 13, porém, apresentou-se a ocasião favorável: todas as condições ajustavam-se ao seu desígnio. Ouviu a promessa de Miss St. Clair de ir jantar com Alvino; logo, sabia também que o irmão estaria só aos trinta minutos e, mais, que se aproveitasse essa hora as suspeitas recairiam sobre Leacock. Viu Alvino pegar no estojo de jóias — outra circunstância providencial. O momento propício, que há tanto tempo almejava, chegara afinal. Faltava apenas preparar o álibi a alegar mais tarde, e combinar o modus operandi. Já lhe demonstrei como procedeu.
Markham, depois de alguns minutos de meditação, ergueu a cabeça.
— Você quase me convenceu. Mas, seja como for, eu examinei o caso e, em verdade, as provas jurídicas são muito escassas.
— Seus tolos tribunais não me interessam, — retrucou Vance, encolhendo os ombros, — e menos ainda suas ineptas regras. Mas, uma vez que está convencido, não me poderá acusar de faltar ao compromisso, não é verdade?
— É verdade, — assentiu Markham tristemente, com os lábios contraídos. — Você executou a sua parte da tarefa, eu farei o que me toca...
Heath e o capitão Hagedorn esperavam no gabinete. Markham cumprimentou-os com a habitual reserva, secamente, até. Pôs-se ao trabalho imediatamente, prosseguindo na dura tarefa com a força de vontade que o caracterizava no cumprimento do dever.
— Creio que afinal, sargento, pusemos a mão no homem. Sente-se, e inteirá-lo-ei do assunto daqui a pouco. Antes, porém, preciso de averiguar alguma coisa. Espere um momento.
— Examine esta arma, capitão, — disse ele ao perito, entregando-lhe a pistola do major Benson, — e diga-me se há algum meio de verificar se foi a que disparou contra Alvino Benson.
Hagedorn dirigiu-se lentamente para a janela. Largando a arma no peitoril, retirou dos bolsos do seu volumoso casaco vários instrumentos, que colocou ao lado da pistola. Depois, ajustando aos olhos uma lente de joalheiro, deu começo a uma série, que me pareceu interminável, de pesquisas no mecanismo. Abriu as chapas da coronha, puxou para trás o ferrolho e retirou a agulha. Moveu o pistão, desatarraxou o parafuso, e tirou fora a mola do coice. Pensei que ia desarmar toda a pistola, mas, ao que parece, queria apenas fazer penetrar a luz no cano, porque, feito isto, levou a arma até à janela e espiou para dentro durante cinco minutos, movendo-a lentamente para diante e para trás, de modo que o reflexo do sol batesse em diversos pontos do interior.
Afinal, sem uma palavra, reconstituiu lenta e cuidadosamente a arma. Depois, atirando-se sobre uma cadeira sem nenhuma atenção à postura, ali ficou a pestanejar lenta e pesadamente durante algum tempo.
— Digo-lhe, — disse depois, inclinando a cabeça para a frente e encarando Markham por cima dos óculos de aço, — que pode ser esta a arma. Não posso dizê-lo com certeza, mas no outro dia, quando examinei a bala, notei algumas marcas particulares, certos arranhões; e as riscas que se vêem nesta arma parecem coincidir com as da bala. Não estou certo, repito. Gostaria de examinar este cano com o meu helixômetro. (*)
(*) O helixômetro, soube-o mais tarde, é um instrumento que permite examinar todo o interior do cano de uma arma, por meio de um microscópio.
— Mas supõe que seja essa a arma? — insistiu Markham.
— Não posso afirmar, mas creio que sim. Contudo, posso estar enganado...
— Muito bem, capitão. Leve-a, então, e dê-me o resultado assim que a tiver examinado.
— É esta a arma, tenho a certeza, — afirmou Heath, quando Hagedorn saiu. — Conheço este pássaro: ele não teria adiantado tanto, se não estivesse certo do que dizia... De quem é a arma, Sr. Markham?
— Di-lo-ei daqui a pouco, — respondeu Markham.
Lutava contra a evidência, retardando quanto podia a declaração da culpa do major, até que nenhuma escapatória mais lhe restasse.
— Desejo falar com Stitt, — continuou ele, antes de dizer qualquer coisa. — Está encarregado de examinar os livros da firma de Benson, e estará aqui dentro em pouco.
Enquanto esperávamos, Markham tentou ocupar-se de outros assuntos. Stitt entrou, cumprimentou gravemente o Promotor e Heath; depois, avistando Vance, dirigiu-lhe um sorriso aprovador, dizendo:
— O senhor deu-me uma boa tarefa! É que o senhor tinha posto o dedo na ferida. Se tivesse conservado o major afastado da casa, eu poderia trabalhar melhor. Enquanto ele ali esteve, vigiava-me todo o tempo.
— Fiz tudo quanto pude, — disse Vance, suspirando. — Você sabe, — continuou, dirigindo-se a Markham, — ontem, durante o almoço, eu estava pensando no meio de afastar o major do escritório enquanto o Sr. Stitt fazia a investigação; e quando soube da confissão de Leacock, achei o pretexto que buscava... Não é que eu desejasse ver o major — queria dar mão livre ao Sr. Stitt.
— Que encontrou? — indagou o Promotor, dirigindo-se a Stitt.
— Muita coisa! — respondeu ele, laconicamente.
Tirou do bolso uma folha de papel, que colocou em cima da mesa.
— Aqui tem um breve relatório... Segui os conselhos do Sr. Vance e lancei os olhos no livro de registro das existências e no borrador; também examinei a transferência dos depósitos. Não vi as entradas do Diário, concentrei minha busca sobre a atividade dos chefes da firma. Vi que o major Benson hipotecara grande quantidade de títulos que lhe tinham sido transferidos, como colateral, acidentalmente, e que especulara a fundo com ações da Bolsa. Perdeu.rudemente... Quanto, não posso dizê-lo.
— E Alvino? — perguntou Vance.
— Metia-se nas mesmas especulações, mas jogou com sorte. Ganhou muito dinheiro com poules da Columbus Motors, há poucas semanas; e guardou o dinheiro no seu cofre — pelo menos foi o que me disse a secretária.
— E, se o major Benson tinha a chave desse cofre, — lembrou Vance, — foi uma sorte para ele o irmão ter sido assassinado.
— Sorte? — retorquiu Stitt. — Isso o livrará da cadeia.
Quando o contador saiu, Markham ficou como uma estátua, os olhos fixos na parede oposta. Evaporava-se mais uma nuga em que baseava a esperança instintiva de ver provada a inocência do major.
O telefone tocou. Pegou vagarosamente no receptor e, enquanto escutava, vi transparecer-lhe nos olhos a resignação completa. Recostou-se na cadeira, como se se sentisse exausto.
— Era Hagedorn, — disse. — Foi aquela a arma. Depois, endireitou o corpo, e dirigiu-se a Heath:
— O dono da arma, sargento, era o major Benson.
O investigador, assombrado, esbugalhou os olhos e soltou um assobio. Pouco a pouco, porém, voltou-lhe ao rosto a expressão habitual de apatia.
— Isso não me surpreende.
Markham tocou a campainha, ordenando a Swacker:
— Chame o major Benson ao telefone, e diga-lhe... diga-lhe que vou efetuar uma prisão, e desejaria que ele viesse aqui imediatamente.
Creio que todos compreenderam a razão por que incumbiu Swacker do chamado. Fez depois um resumo da acusação contra o major, para auxiliar ainda a Heath; quando terminou, ergueu-se e pôs em ordem as cadeiras em frente à sua mesa.
— Quando vier o major, sargento, vou fazê-lo sentar-se aqui, — disse ele, indicando a cadeira que ficava em frente da sua. Você ficará à direita, e deve chamar Phelps — ou outro, se ele não estiver — para ficar à esquerda. Mas não façam qualquer movimento antes que eu dê o sinal. Então poderão prendê-lo.
Heath foi chamar Phelps, e quando se acomodaram ao pé da mesa Vance disse:
— Aconselho-o, sargento, a estar atento. No momento em que o major compreender o que o espera, cairá sobre você como um cego.
Heath sorriu, um sorriso de grosseiro desdém.
— Não é o primeiro que prendo, senhor Vance, embora lhe agradeça muito o conselho. Além disso, o major não é desta espécie de homens: é muito nervoso.
— Como quiser, — replicou Vance, com indiferença. — Mas está avisado. O major é prudente; tem afrontado grandes perigos, e perderia até o último dólar sem se perturbar. Mas, quando ele se vir encurralado, conhecendo que está derrotado, tudo o que reprimiu a vida inteira, perdendo o freio, explodirá. Porque o homem que vive sem emoções, sem paixões nem entusiasmos, há de atingir um dia ou outro o limite extremo. Em alguns a explosão se resolve pelo suicídio; mas o princípio é o mesmo: uma reação psicológica. O major não pertence ao tipo dos que recorrem à própria destruição — aí está por que digo que vai explodir...
— Pode ser que nós por aqui sejamos pouco entendidos em psicologia, — disse Heath com ironia, — mas conhecemos perfeitamente a natureza humana.
Vance, disfarçando um bocejo, acendeu um cigarro despreocupadamente. Notei, entretanto, que empurrou a cadeira para trás, junto à ponta da mesa, onde ambos nos tínhamos sentado, quando Phelps disse, com a sua voz áspera:
— Muito bem, Chefe. Creio que seus aborrecimentos chegaram ao fim, não? Pois eu estava seguro de que o amigo Leacock era o seu homem... Quem foi que desentranhou o major Benson?
— Ao sargento Heath e ao Departamento de Homicídios caberão todas as honras deste feito, — disse Markham. — Sinto muito, Phelps, mas nem a Promotoria nem nenhum auxiliar seu serão mencionados neste processo.
— Oh! — respondeu Phelps, filosòficamente. — É sempre assim na vida...
Caiu então sobre a sala pesado silêncio, até à chegada do major. Markham fumava, com ar abstrato. Releu várias vezes a folha de papel com as notas de Stitt. Foi até à geladeira, procurar o que beber. Vance abriu um livro de jurisprudência, que por acaso se achava em frente dele, e lia com sorriso divertido a sentença que dera um juiz do Oeste em um caso de suborno. Heath e Phelps, habituados a esperar, mal se moviam.
Entrou o major. Markham cumprimentou-o com exagerada indiferença, mexendo em uma gaveta para evitar o aperto de mão. Heath, entretanto, estava quase alegre. Aproximou a cadeira para o major sentar, e disse uma grande banalidade a respeito da temperatura. Vance fechou o livro e conservou-se sentado, tenso, os pés para trás.
Vinha o major cheio de amável e altiva cordialidade. Se suspeitou de alguma coisa, não o deu a perceber.
— Major, — disse Markham, com a sua voz grave, mas sonora, — desejo fazer-lhe algumas perguntas, se o senhor está disposto a responder.
— Estou às suas ordens, — respondeu o outro prontamente.
— O senhor possui uma pistola, não é verdade?
— Sim. Uma Colt automática, — retrucou o major, dirigindo a Markham um olhar interrogativo.
— Quando limpou e carregou essa arma pela última vez?
— Não me posso recordar exatamente, — disse o major, sem que um só músculo da face se movesse. — Limpei-a muitas vezes. Mas não a carreguei de novo depois que voltei da Europa.
— Emprestou-a a alguém há pouco tempo?
— Não, que me lembre.
Markham pegou em uma das notas de Stitt e examinou-a por um momento.
— Como tencionava satisfazer seus clientes, se eles tivessem reclamado seus depósitos inesperadamente?
O major respondeu, com um movimento de lábios desdenhoso:
— Ah! Então foi para isso que, sob o disfarce da amizade, mandou um homem examinar meus livros!
E subiu-lhe pelo pescoço uma onda de sangue, que o fez vermelho até às.orelhas.
— Não, eu não o mandei lá com esse propósito, — atalhou Markham, ferido com aquela acusação. — Mas hoje de manhã estive no seu apartamento.
— Então é também arrombador? — perguntou o major, rubro de cólera e com as veias da testa intumescidas.
— E encontrei as jóias da Sra. Banning... Como foram parar lá, major?
— Não é da sua conta o modo como foram lá ter, — respondeu ele, com a mesma voz firme e fria de sempre.
— Por que disse a Miss Hoffman que não me falasse nelas?
— Isso também não é da sua conta!
— Também não será da minha conta, — replicou vivamente Markham, — que a bala que matou seu irmão fosse disparada da sua pistola?
O major encarou-o firmemente e retrucou, sarcástico: — Isto é uma espécie de traição que me faz... convidar-me a vir aqui, com o fim de me prender, e fazer-me perguntas que podem comprometer-me, sem que eu suspeitasse de seu intento. Afinal, você não passa de um vilão!
Vance inclinou-se para a frente e disse-lhe em voz baixa, mas cortante como um látego:
— O senhor está louco! Não vê que ele é seu amigo, e faz-lhe essas perguntas no último e desesperado anseio de vê-lo inocente?
O major voltou-se para ele com veemência:
— Não se meta no que não é da sua conta, seu fresco.
— Oh, perfeitamente! — murmurou Vance.
— E quanto a você — e apontava com o dedo trêmulo para Markham — eu lhe farei pagar caro isto!...
E brotavam-lhe dos lábios pragas e vitupérios; tinha as narinas dilatadas, os olhos injetados de sangue. Seu furor ultrapassava os limites da cólera humana; parecia presa de um insulto apoplético — contorcido, repulsivo, insensato.
Markham, de olhos fechados, com a cabeça apoiada nas mãos, suportava tudo pacientemente. Quando, afinal, o furor do major o tornou mudo, ergueu a cabeça e fez sinal a Heath. Era a senha que ele esperava.
Antes, porém, que Heath pudesse fazer um movimento, o major levantou-se. Ao mesmo tempo, girou com o corpo e deu um violento soco na face do sargento. Heath caiu da cadeira e ficou estatelado no chão. Phelps saltou para a frente e abaixou-se; mas o major ergueu o joelho e apanhou-lhe o ventre. Phelps abateu-se e rolou no soalho, gemendo.
Voltou-se então o major para Markham. Os olhos fuzilavam-lhe como os de um louco, tinha os lábios descaídos; o estertor da respiração dilatava-lhe as narinas. Com os ombros encolhidos, os dedos rígidos, era a personificação horrífica do mal.
— Agora você! — gaguejou ele. — E as palavras, guturais e rancorosas, saíam-lhe como num grunhido.
Ao mesmo tempo que falava, saltou para a frente. Vance, que assistira a toda a luta sentado, fumando tranqüilamente, de olhos semicerrados, levantou-se e contornou a mesa rapidamente. Ergueu os braços, segurando o pulso direito do major com uma das mãos e com a outra prendendo-lhe o cotovelo. Depois, pareceu que caía, com um movimento circular, e o braço tolhido do major ficou torcido para cima, por detrás da omoplata. O homem soltou um grito e abateu-se sob a garra de Vance.
Já então Heath tinha-se recobrado. Ergueu-se depressa e correu. Ao estalido das algemas o major caiu pesadamente na cadeira, movendo o ombro com dificuldade.
— Não é nada grave, — disse Vance. — O ligamento escapular um pouco ferido. Em poucos dias estará bom.
Heath adiantou-se, sem uma palavra, estendeu a mão a Vance. Este gesto significava ao mesmo tempo um pedido de desculpa e uma homenagem. Fiquei gostando dele por isso.
Depois que ele saiu com o seu prisioneiro, e que Phelps recostado numa poltrona, fora atendido, Markham pôs a mão no braço de Vance:
— Vamos embora. Estou cansado.
XXV
O MÉTODO DE VANCE
(Quinta-feira, 20 de junho — 9 da noite)
Naquela mesma noite, depois de um banho turco e do jantar, sentamo-nos no caramanchão do Club Stuyvesant. Markham estava triste e fatigado, Vance sereno e amável. Fumamos em silêncio por uma meia hora. De repente Vance, como se continuasse um diálogo interior, observou:
— E são rapazes rudes e sem imaginação como Heath que constituem a barreira humana entre o criminoso e a sociedade! É triste, muito triste!...
— Em nossos dias já não há Napoleões, — respondeu Markham — e, se os houvesse, é pouco provável que fossem investigadores.
— Mas, mesmo que tivessem forte pendor por essa profissão, seriam rejeitados em vista da estatura. Já percebi isso: seus policiais são escolhidos pela altura e peso, embora os únicos crimes em que têm de intervir sejam motins e brigas entre quadrilhas. Volume — eis o grande ideal americano, seja em arte, arquitetura, refeições ou polícias. É encantador!
— Em todo o caso, — disse Markham, conciliante, — Heath possui um coração generoso. Perdoou-lhe tudo.
Vance sorriu.
— A reputação que adquiriu, com os elogios dos jornais desta tarde, bastaria para quebrantar qualquer criatura. Ele perdoaria até ao major o soco que lhe deu. Belo golpe, aquele, baseado na alavanca rotativa. Deve ser forte a constituição de Heath, senão não se recobraria tão prontamente... E o coitado do Phelps! Terá horror a joelhos pelo resto da vida!
— Você calculou certo a reação do major... Estou quase inclinado a crer que há alguma coisa na sua argumentação psicológica, apesar de tudo. Parece que suas deduções estéticas levaram-no à pista certa.
Calou-se por um momento. Em seguida, olhando para Vance com ar indagador, disse:
— Diga-me exatamente, por que desde o princípio você estava convencido de que era o major o assassino?
Vance recostou-se na cadeira.
— Atente, por um momento, para as características — os traços mais salientes — do crime. Antes do tiro, Benson e o assassino, sem nenhuma dúvida, tinham estado conversando, ou discutindo — um sentado, o outro de pé. Depois Alvino pretendeu ler: dissera tudo o que tinha a dizer. O gesto de começar a ler era o fim da palestra: porque ninguém lê quando conversa com outrem, a não ser com algum desígnio deliberado. O assassino, vendo que a situação era desesperada, e tendo vindo preparado para enfrentá-la a todo o custo, puxou a arma, apontou-a à fronte de Benson, e deu ao gatilho. Depois apagou a luz e saiu... Tais são os fatos, indicados e positivos.
Tirou algumas fumaças do cigarro e continuou:
— Analisemos agora esses fatos... Já lhe demonstrei que o assassino não apontou para o corpo, onde teria mais possibilidade de acertar, mas menos de matar. Escolheu o meio mais difícil e arriscado — e, ao mesmo tempo mais certo e eficiente. Sua técnica era, por assim dizer, arrojada, direta e temerária. Só um homem dono de nervos de aço e de um instinto de jogador extremamente desenvolvido a teria posto em prática com tamanha audácia. Logo, todos os nervosos, os coléricos, os impulsivos e os tímidos estavam naturalmente eliminados. O aspecto nítido, diria quase profissional do crime, aliado à ausência de qualquer indício material que pudesse esboçar uma pista, indicavam indubitavelmente que fora premeditado e planejado com precisão e frieza, por um indivíduo absolutamente senhor de si e habituado a afrontar perigos. Nada há neste crime que denuncie sutileza, nem a menor parcela de imaginação. Tudo nele revela um espírito agressivo, bronco — um espírito a um tempo estático, resoluto e intrépido, afeito a encarar fatos e situações de um modo direto, concreto e inequívoco... Markham, você conhece muito bem a natureza humana, para não compreender estas indicações, não é?
— Creio que alcanço o alvo do seu raciocínio, — disse o outro, ainda um tanto duvidoso.
— Então, — continuou Vance, — prossigamos. Determinada com exatidão a natureza psicológica do fato, resta achar uma pessoa interessada, cujo espírito e temperamento sejam tais que, se ela empreendesse uma tarefa destas, em dadas circunstâncias, executá-la-ia precisamente da maneira por que foi feita. Ora, por acaso, eu conhecia o major há muito tempo; e assim não tive dúvida alguma, ao examinar a situação naquela manhã, de que era ele o autor. Aquele crime, em todas as suas minúcias, era uma expressão psicológica perfeita do seu caráter e da sua mentalidade. Mas, ainda que eu não o conhecesse pessoalmente, seria capaz — desde que chegasse a ter um conhecimento tão nítido e apurado da mentalidade do assassino — seria capaz de isolá-lo entre uma multidão de acusados.
— Mas suponhamos que outra pessoa, com o mesmo caráter do major, cometera o crime?
— Todas as criaturas se diferenciam em sua natureza — por maior que seja a semelhança aparente. E, embora mal se possa conceber que outro homem com o caráter e o temperamento do major o cometesse, é preciso ainda assim, levar em conta a lei das probabilidades. Supondo mesmo que haja em Nova York dois homens idênticos na personalidade e nos instintos, teriam ambos um motivo para matar Benson? Contudo, por mais remota que fosse a possibilidade, quando Pfyfe entrou em cena, e eu soube que era um jogador e caçador, aproveitei a ocasião para examinar o caso do seu lado. Como não o conhecia pessoalmente, apelei para o coronel Ostrander, para obter a informação precisa; e o que dele ouvi pôs logo Pfyfe fora de cogitações.
— Contudo, ele tinha fibra: era um especulador arrojado, e certamente tem arrostado muitos perigos, — objetou Markham.
— Ah! Mas é que entre um especulador arrojado e um jogador temerário e equilibrado como o major, há grande diferença — um abismo psicológico. De fato, o impulso que os anima é diverso, oposto até. O aventureiro é movido pelo receio, a esperança, o desejo; o jogador de sangue frio escolhe a ocasião e obedece à convicção e ao raciocínio. Um é emotivo, o outro intelectual. Ao contrário de Pfyfe, o major é um jogador nato, e tem confiança absoluta em si próprio. Essa confiança não é, todavia, negligência, ainda que em essência o pareça: baseia-se em uma crença instintiva na própria infalibilidade e segurança. É o reverso do que os freudianos denominam menosprezo de si próprio — uma forma de egomania, variedade da mania de grandeza. O major a possuía, enquanto que não existia no temperamento de Pfyfe; e como o crime a denunciava no assassino, vi que Pfyfe era inocente.
— Começo a ver, ainda mal distinto, o que você delineia, — respondeu Markham, depois de uma pausa.
— Mas havia ainda outros indícios, psicológicos e de outra espécie: o desalinho do trajo do morto, a peruca, e os dentes no quarto em cima, a familiaridade evidente do assassino com os arranjos domésticos, o fato de ter sido recebido pelo_ próprio Benson, o conhecimento prévio de que Benson estaria àquela hora em casa e sozinho — tudo indica que é o major o culpado. Outra coisa: a estatura do assassino corresponde à do major, indicação que não tem, ainda assim, grande importância; porque, se minhas medidas não combinassem com as do major, eu teria a certeza de que a bala se desviara, a despeito da opinião de todos os capitães Hagedorn do mundo inteiro.
— Por que disse com tanta firmeza que uma mulher não poderia ter cometido o crime?
— Para começar: não era façanha para uma mulher, isto é, nenhuma mulher o teria praticado daquela forma. Uma mulher, ainda que seja a mais cerebral de todas, se comove quando chega a tal extremo que tenha de tirar a vida de alguém.
E a hipótese de que uma delas tivesse concebido friamente semelhante crime, e depois o executasse com tamanha perfeição, mirando um pequeno alvo na testa da vítima, — à distância de cinco ou seis pés — seria contrária a tudo o que sabemos sobre a natureza humana. Além disso, as mulheres nunca discutem de pé, estando seu antagonista sentado. Parece que se sentem mais seguras sentadas. Falam melhor assim; enquanto que os homens falam melhor de pé. Nem uma mulher, parada defronte de Benson, poderia alvejá-lo sem que ele a visse. Meter a mão no bolso é um gesto natural num homem; mas uma mulher não traz bolsos, nem outro lugar onde oculte uma arma, senão sua bolsinha. E um homem está sempre em guarda quando uma mulher encolerizada abre a bolsa de mão diante dele — a incerteza sobre a natureza das mulheres torna os homens suspicazes, quando elas estão excitadas... Mas — era sobretudo a cabeça pelada de Benson e os chinelos o que tornava insustentável a hipótese de uma mulher no crime...
— Você observou há pouco que o assassino fora ali naquela noite preparado para recorrer a meios extremos, se necessário. E disse mais que o crime fora planejado.
— E é verdade. Não são contraditórias essas duas afirmativas. O crime foi premeditado — não há disso a menor dúvida. Mas o major queria dar à vítima uma última oportunidade de salvar a vida. Minha teoria é esta: o major, que se via em apuros de dinheiro, já avistando a cadeia que o esperava, sabia que o irmão tinha no cofre quantia suficiente para salvá-lo; ideou o crime e foi lá naquela noite, pronto a executá-lo. Antes, porém, expôs ao irmão a sua situação, e pediu-lhe o dinheiro. Provavelmente Alvino mandou-o ao diabo. É possível que o major ainda insistisse algum tempo, com o fim de lhe poupar a vida; mas, quando Alvino retornou à leitura, ele conheceu a inanidade de um último apelo e cumpriu o seu espantoso desígnio.
Após fumar em silêncio por algum tempo, Markham observou:
— Admitindo como certo tudo o que você expõe, ainda não compreendi como você podia saber, como podia afirmar, ainda esta manhã, que o major preparara o crime, com o propósito deliberado de fazer as suspeitas recaírem sobre o capitão Leacock.
— Assim como o escultor, conhecendo perfeitamente os princípios da anatomia, pode substituir integralmente a parte que falta a uma estátua, também o psicólogo, que conhece o espírito humano, pode descobrir o fator que falta a uma ação humana. E, entre parênteses, devo acrescentar que toda essa tagarelice sobre os braços da Afrodite de Milos — a Vênus de Milo, você sabe — é da maior frivolidade. Qualquer artista competente, que conheça as leis da estética, poderia restaurar-lhe os braços, tal como eram primitivamente. Essas restaurações dependem apenas do conjunto — o fator que falta deve-se harmonizar com o resto, já conhecido do artista.
Vance sublinhou estas palavras com um gesto delicado.
— Ora, o problema da suspeita errônea é uma minudência importante em todo crime premeditado. E, uma vez que a concepção geral deste crime era positiva, concludente e concreta, claro era que cada uma de suas partes componentes seria positiva, concludente e concreta. Portanto, se o major tivesse apenas preparado as coisas de modo que ele não viesse a ser suspeitado, devia ter sido também negativa a concepção para se ajustar convenientemente aos outros aspectos psicológicos do fato. Isso seria muito vago, muito indeciso, muito indefinido. Um espírito como o que planejou este crime teria logicamente tudo disposto para que não faltasse um agente específico e tangível sobre quem recaíssem as suspeitas. Por conseguinte, quando começaram a se acumular as provas materiais contra o capitão e o major se encarniçou em defendê-lo, percebi que fora ele a vítima escolhida. A princípio, confesso, desconfiei que escolhera Miss St. Clair para bode expiatório; mas, quando soube que sua bolsa e luvas estavam em casa de Benson por mero acaso, e me lembrei de que o major nos recomendara Pfyfe como testemunha da ameaça do capitão, compreendi que ele não pretendera de nenhum modo comprometê-la.
Pouco depois, Markham levantou-se e, espreguiçando-se, disse:
— Bem, Vance, sua tarefa está acabada. Agora começa a minha. E preciso de dormir.
Em menos de uma semana, o major Antônio Benson era acusado do assassinato do irmão. Seu julgamento, presidido pelo juiz Rodolfo Hansacker, como está na memória de todos, foi sensacional. A Associated Press dedicou diariamente colunas e colunas ao caso, e durante muitas semanas todos os jornais do país estamparam na primeira página notícias espetaculosas do processo. Não é necessário recordar como a Promotoria conseguiu, após árduo trabalho, destrinçar o caso; nem como foi o crime classificado no segundo grau, pelo caráter indireto das provas; nem, finalmente, os vinte anos de prisão a que foi condenado Antônio Benson, após a apelação para o Tribunal Superior; todos esses fatos são de domínio público.
Markham não funcionou como Promotor: a antiga amizade que o ligara ao acusado não lhe permitira. Ninguém, pois, o censurou quando ele entregou o caso ao seu substituto, Sullivan. O major Benson cercou-se de um corpo tão numeroso de advogados, como raras vezes se tem visto em nossos tribunais. Entre eles viam-se Blashfield e Bauer — aquele preenchendo as funções do solicitador inglês, e este as de advogado. Apelaram ambos para todos os ardis jurídicos de que dispunham, mas as provas acumuladas contra o seu cliente foram esmagadoras.
Certo agora de que o major era culpado, mandou Markham proceder a uma investigação nos negócios dos dois irmãos, e a situação apareceu mais grave do que revelara o primeiro relatório de Stitt. A firma se apropriara sistematicamente de todos os depósitos, utilizando-os em especulações particulares; mas, enquanto Alvino fora bem sucedido, ganhando somas fabulosas, ficara o major quase completamente arruinado. Markham demonstrou que só lhe restava uma esperança de escapar à ação da lei, restituindo os fundos desviados — era a morte imediata do irmão. Verificou-se também, durante o processo, que no dia do crime o major fizera promessas de reembolso, que só poderiam ser cumpridas se recorresse ao dinheiro do irmão. E, o que é mais, baseavam-se essas promessas em somas específicas, pertencentes ao outro; e, em certa instância, empenhara, em uma promissória a vencer-se dentro de quarenta e oito horas, um penhor já hipotecado — fato que por si só o desmascararia, se o irmão fora vivo.
Miss Hoffman foi uma testemunha prestimosa e inteligente na acusação. O conhecimento que tinha das condições da firma Benson Benson trouxe grande contribuição contra o major.
A Sra. Platz também depôs, e disse que ouvira mais de uma vez disputas acrimoniosas entre os dois irmãos. Narrou que, cerca de duas semanas antes do crime, o major, que esperara inutilmente que Alvino lhe emprestasse 50.000 dólares, o ameaçara com estas palavras:
"Se algum dia eu tiver de escolher entre a tua pele e a minha, não é esta que eu hei de sacrificar!"
Teodoro Montagu, o homem que, conforme o depoimento do porteiro, se recolhera depois das duas horas na noite do crime, disse que quando seu auto chegou em frente da casa, os faróis iluminaram um homem parado na entrada de uma loja do outro lado da rua, e que o homem se parecia com o major Benson. Pouco efeito produziria este depoimento, se Pfyfe não tivesse vindo, logo após a prisão, dizer que vira o major atravessando a Sexta Avenida, na esquina da Rua 46, quando ele se dirigia ao restaurante de Pietro, em busca de seus frascos de bolso Haig Haig. Explicou que ligara pouca importância ao fato na ocasião, julgando que ele voltava de algum restaurante da Broadway. O major nem o vira.
Este depoimento, aliado ao do Sr. Montagu, anulara o álibi planejado pelo major com tanto cuidado. E, embora a defesa sustentasse obstinadamente que ambas as testemunhas se haviam enganado, a prova impressionou profundamente o júri, especialmente quando o Promotor substituto, Sullivan, guiado por Vance, explicou detalhadamente, expondo diagramas sobre o modo como o major podia ter saído e voltado naquela noite, sem que o porteiro o visse.
Provou-se também que as jóias só podiam ter sido retiradas do teatro do crime pelo assassino. E eu e Vance fomos chamados a depor como testemunhas da sua descoberta em casa do major. Foi apresentada ao tribunal a demonstração da estatura do criminoso, feita por Vance, mas, coisa curiosa, teve pouco peso, porque a solução se perdeu em um emaranhado de objeções científicas. A identificação da pistola pelo capitão Hagedorn foi o obstáculo mais difícil que se apresentou à defesa.
O júri durou três semanas e houve revelações escandalosas, apesar de Sullivan, a conselho de Markham, se haver empenhado para reduzir ao mínimo possível os casos particulares de pessoas inocentes que se viram, por infelicidade, envolvidas no episódio. O coronel Ostrander, contudo, jamais perdoou a Markham não o ter chamado a depor.
Durante a última semana do júri, Miss St. Clair apareceu como prima donna em uma opereta que se conservou dois anos no cartaz de um teatro da Broadway. Casou depois com o seu cavalheiresco capitão, e parecem perfeitamente felizes.
Pfyfe continua casado, e mais elegante do que nunca. Vai regularmente a Nova York, apesar da ausência do seu "caro amigo Alvino". Encontrei-o, por acaso, em companhia da simpática Sra. Banning. Pfyfe pagou — como, não sei! — os 10.000 dólares e recuperou as jóias dela. Não se divulgou, no julgamento, que lhe pertenciam, o que muito me alegrou.
No dia em que fora pronunciado o veredicto contra o major, estávamos sentados no Club Stuyvesant, eu, Markham e Vance. Jantáramos ali, mas nem uma palavra dissemos sobre os acontecimentos das últimas semanas. Mas agora, eu via um sorriso irônico surgir sorrateiro nos lábios de Vance.
— Markham! — disse ele na sua voz arrastada. — Que grotesco espetáculo o do tribunal! A prova evidente nem sequer foi apresentada. Benson foi condenado absolutamente sobre suposições, presunções, ilações e inferências... Deus ajude o inocente Daniel que inadvertidamente cai em uma cova de leões judiciais!
Com grande surpresa ouvi Markham aprovar gravemente estas palavras.
— Sim, mas se Sullivan tentasse basear uma acusação sobre o que você chama suas teorias psicológicas, teria sido decretada a insanidade mental dele.
— Sem nenhuma dúvida, — disse Vance, suspirando. — Seus iluminados da lei teriam pouco que fazer se você tratasse esses assuntos com mais inteligência.
— Teoricamente, — replicou Markham, afinal, — seu método é muito claro. Mas receio que, depois de ter lidado por tanto tempo com os fatos materiais, não os possa abandonar para me ocupar de psicologia e de arte... Contudo, — acrescentou em tom brincalhão, — se algum dia minhas provas jurídicas falharem, posso chamá-lo para meu assistente?
— Estarei sempre pronto para servi-lo, meu velho, — replicou Vance. — Eu creio, entretanto, que é quando a prova jurídica o atrai irresistivelmente para a sua vítima que você necessita mais de mim, não?
E esta observação, dita apenas como uma frase de espírito, transformou-se, na verdade, em uma estranha profecia.
XVIII
UMA CONFISSÃO
(Quarta-feira, 19 de junho — uma da tarde)
Quando nos vimos na rua, Markham perguntou:
— Como sabia você, homem do diabo, que ela tinha entregue as jóias a Pfyfe?
— Minhas sedutoras deduções metafísicas, sabe? Eu lhe disse que Benson não era o mão-aberta, o grande coração altruísta que fosse emprestar dinheiro sem garantia; e é claro que, se o pobre do Pfyfe possuísse coisa que valesse dez mil dólares não teria falsificado o cheque. Ergo: alguém emprestou a garantia. Agora, quem teria tanta confiança em Pfyfe para lhe conceder garantia daquele valor, senão uma sentimental mulher, cega para os seus formidáveis defeitos? Você sabe que meu espírito estava atento à procura da Calipso, que eu suspeitava existir na vida deste Ulisses, quando ele nos disse que ficara em Nova York para dizer adeus a alguém. Quando um homem como Pfyfe omite o sexo da pessoa, é certo que é o feminino. Por isso, lembrei que mandasse Paulo Pry a Port Washington, para sindicar de suas aventuras extramatrimoniais: eu tinha a certeza de que seria encontrada alguma mulher. Mais tarde, quando o misterioso pacote, que devia ser o penhor, pareceu identificar-se com a caixa de jóias vista pela curiosa governanta, disse comigo: “Foi a extraviada Dulcinéia de Leandro quem lhe emprestou as jóias para livrá-lo da cadeia". Nem pensei que ele podia estar protegendo alguém na explicação sobre o cheque. E, assim que Tracy soube do endereço e nome da dama, tratei de marcar o encontro em seu nome...
Íamos passando pela residência de Schwab, estilo gótico-renascimento, que se estende desde a esquina da Avenida Oeste com Riverside Drive, até à Rua 73, e Vance parou por um momento a contemplá-la.
Markham esperou pacientemente. Afinal Vance recomeçou a andar.
—... No momento em que vi a Sra. Banning, percebi que minhas conclusões eram certas. Era uma alma sentimental, justamente a espécie de mulher capaz de lançar mão de suas jóias para ajudar o homem amado. Além disso, ela não trazia nenhuma consigo quando entramos — e uma mulher da sua casta lança sempre mão das jóias quando deseja causar impressão a estranhos. E ela é da espécie que não vive sem jóias, ainda que a despensa esteja vazia. Era só fazê-la falar, como vê.
— De um modo geral, você saiu-se muito bem. Vance concordou, condescendente.
— É muito generoso... Mas diga-me: minha pequena conversa com a dama não conseguiu lançar um raio de luz na escuridão do seu espírito?
— Naturalmente. Eu não sou completamente obtuso. Inconscientemente, ela favoreceu os seus planos. Acreditava que Pfyfe não veio a Nova York, senão depois do crime, e contou com toda a franqueza que tinha dito ao telefone, a Pfyfe, que Benson tinha as jóias em casa. A situação agora é essa: Pfyfe sabia que elas estavam em casa de Benson, e ele estava ali no momento em que o tiro foi disparado. Além disso, as jóias desapareceram, e Pfyfe tentou esconder seus passos naquela noite.
Vance suspirou, desesperançado.
— Markham, há árvores demais no caso, e você não pode ver a floresta por causa delas...
— Não é de todo impossível, Vance, que você, de tanto olhar para uma árvore em particular, não veja as outras.
Uma sombra passou pelo rosto de Vance. que respondeu:
— Oxalá você tivesse razão!
Era mais de uma e meia, e dirigimo-nos para o Salão da Fonte, no Ansonia, para almoçar. Markham mostrou-se preocupado durante toda a refeição, e ao entrarmos no trem subterrâneo consultou, inquieto, o relógio.
— Vou a Wall Street, falar com o major, antes de voltar ao escritório. Não posso compreender por que ele pediu a Miss Hoffman que não falasse no pacote... Afinal, pode ser que não contivesse as jóias.
— E você crê que Alvino disse a verdade ao major a respeito do embrulho? Não foi uma transação muito recomendável, e o major indubitavelmente lhe perguntaria por que a fizera.
A explicação do major veio justificar a suspeita de Vance. Markham contou-lhe a visita a Paula Banning, dando destaque ao episódio das jóias, na esperança de que o major falasse voluntariamente no pacote; sua promessa a Miss Hoffman impedia-o de declarar o que sabia.
O major ouviu-o muito admirado, os olhos esbugalhados, num furor crescente.
— Receio que Alvino me tivesse enganado. — disse ele, olhando fixamente para cima. — E entristece-me pensar nisso — continuou, com a expressão já mais benigna, — agora que ele já não existe. Mas a verdade é que, quando Miss Hoffman me falou esta manhã no envelope, também mencionou um pacotinho que estava na gaveta-cofre de Alvino; pedi-lhe que não falasse nisso em sua narração, pois sabia que eram as jóias da Sra. Banning, e julguei que isso só podia servir para gerar confusão dos assuntos, se o senhor viesse a sabê-lo. Alvino disseme que fora lavrada uma sentença contra a Sra. Banning, e que antes do processo Pfyfe lhe trouxera as jóias dela, pedindo-lhe que as seqüestrasse temporariamente.
Quando voltávamos para o Tribunal, Markham tocou no braço de Vance e disse-lhe sorrindo:
— Você, pelo que vejo, continua com sorte nas adivinhações...
— Mais ou menos! Dir-se-ia que o defunto Alvino, como Warren Hastings, resolveu morrer no último reduto da prevaricação... Magnificamente mentiroso, não?
— Em todo o caso. o major, inconscientemente, acrescentou mais um elo à cadeia contra Pfyfe.
— Você até parece que está fazendo coleção de cadeias... Que fez das que forjou para Miss St. Clair e Leacock?
— Não as abandonei de todo... se é o que suponho que quer dizer, — respondeu Markham gravemente.
Quando chegamos ao gabinete, Heath esperava-nos, radiante de satisfação.
— Tudo vai bem, Sr. Markham. Ao meio-dia, depois que o senhor saiu daqui, Leacock veio procurá-lo. Ao saber que saíra, telefonou para a Chefatura, e de lá o puseram em contato comigo. Queria falar-me para uma coisa muito importante, disse. Fui sem demora, e encontrei-o sentado na sala de espera. Foi logo dizendo: "Vim entregar-me à prisão. Matei Benson". Ditou a confissão a Swacker, e assinou-a... Aqui está, — disse, estendendo uma folha de papel escrita à máquina.
Markham sentou-se, fatigado, Começava a sentir os efeitos da tensão dos últimos dias. Suspirou pesadamente e disse:
— Graças a Deus! Estão terminados nossos tormentos! Vance sacudiu a cabeça com tristeza, dizendo-lhe:
— E eu acho, ao contrário, que apenas começaram! Markham passou os olhos pela confissão, entregando-a logo a Vance, que a leu atentamente, mostrando no rosto crescente expressão de regozijo.
— Ora veja você, este documento não é legal. Qualquer "juiz digno desse nome o desprezaria. Não é simples, nem preciso. Não começa com "saudações"; não contém um simples "considerando", ou um "assim sendo"; nada diz acerca do "livre vontade", nem de "perfeito juízo", ou "faculdades mentais"; o capitão não se refere a si como "parte interessada"... Sem nenhum valor, sargento. Se eu fosse você, atirava isto fora.
Heath, muito orgulhoso com o seu triunfo, não se incomodou: limitou-se a sorrir com magnânima tolerância.
— Isto parece-lhe divertido, Sr. Vance?
— Se você soubesse, sargento, a que ponto é engraçada esta confissão, riria a bandeiras despregadas... Realmente, — continuou voltando-se para o Promotor, — não tenho muita confiança nisto, Markham. Contudo, pode vir a ser uma alavanca poderosa para descobrir a verdade. E estou muito contente por ver o capitão revelar-se assim um escritor de ficção. De posse desta encantadora fábula, creio que poderemos vencer os escrúpulos do major e levá-lo a dizer o que sabe. Talvez eu me engane, mas vale a pena tentar a experiência.
Dirigiu-se para a mesa do Promotor e inclinou-se, falando com voz melíflua:
— Ainda não o levei a erro algum, amigo velho, e vou dar-lhe outra idéia. Fale com o major, e peça-lhe para vir aqui imediatamente. Diga-lhe que tem em mãos uma confissão — mas não diga de quem. Dê-lhe a atender que é de Miss St. Clair,
ou de Pfyfe, — ou de Pôncio Pilatos. Mas insista na sua vinda imediata. Diga-lhe que quer discuti-la com ele antes de lavrar o auto de acusação.
— Não compreendo a necessidade desse passo: tenho a certeza de encontrá-lo esta noite no Clube, e poderei dizer-lhe então...
— Não seria a mesma coisa, — insistiu Vance. — Se o major puder esclarecer-nos algum ponto, creio que o sargento Heath deve ouvi-lo.
— Por mim, — atalhou este, — não careço de esclarecimento algum.
Vance olhou-o, surpreso e admirado.
— Que homem extraordinário! Até Goethe gritava por mehr Licht! — mais luz! e você aqui sentado, em estado de saturação... Assombroso!
— Escute. Vance, — disse Markham, — porque tenta você complicar o negócio? Isso é perder tempo... Além disso, é uma violência chamar o major aqui para discutir a confissão de Leacock. Já não nos são necessárias as informações dele, de qualquer maneira?
A voz, áspera a princípio, amaciou afinal; porque, embora não estivesse disposto a conceder nada, a experiência dos últimos dias mostrara-lhe que Vance jamais fazia uma sugestão, sem motivo sólido.
Este, sentindo que ganhava terreno, aproveitou:
— Creia que meu pedido se funda em coisa mais importante do que o inútil desejo de contemplar as faces rubicundas do major... Afirmo-lhe, com toda a seriedade de que sou capaz, que a presença dele nos seria útil neste momento.
Markham ainda tentou fazer ponderações a respeito, mas Vance foi tão persistente que acabou por convencê-lo.
Heath, esse estava visivelmente contrariado. Sentou-se, porém, em silêncio, procurando consolação num charuto.
O major atendeu com admirável rapidez, e mal podia ocultar sua sofreguidão por ver a confissão. Enquanto lia, seu rosto se anuviava, e o olhar denunciava assombro.
Por fim levantou a cabeça, testa franzida:
— Não compreendo nada disto. Estou profundamente surpreendido, confesso... Não me parece crível que Leacock matasse Alvino... Contudo, posso-me enganar, é claro.
Depôs o papel sobre a mesa e sentou-se muito desapontado.
— E o senhor, — perguntou, — o senhor contenta-se com isto?
— Não vejo motivo para não acreditar. Se ele não é o culpado, por que viria confessar de motu proprio? Há muitas provas contra ele, e há dois dias estive a ponto de prendê-lo.
— É ele o criminoso, — adiantou Heath. — Eu estava com o olho nele desde o princípio.
O major Benson não replicou logo; parecia estar meditando nas palavras que queria dizer.
— Pode ser — isto é, não é de todo impossível — que Leacock tivesse um motivo superveniente para confessar.
Todos nós, penso, vimos aonde ele queria chegar.
— Concordo, — disse Markham, — que a princípio admiti a idéia de que Miss St. Clair era culpada, e dei-o a perceber a Leacock. Mas depois persuadi-me de que ela não estava diretamente envolvida.
— Leacock sabe disso? — perguntou vivamente o major.
— Não, — disse Markham, após um momento de reflexão. — Eu não posso dizer que ele o saiba. De fato, o mais provável é que ele pense que ela ainda me é suspeita.
— Ah! — exclamou o major, quase involuntariamente.
— Mas que tem isso? — perguntou Heath, irritado. — O senhor supõe que ele esteja disposto a ir a cadeira elétrica para salvar a reputação dela? Ora bolas! Essas coisas estão muito bem no cinema, mas na vida real... nenhum homem é assim tão louco.
— Eu não estou bem certo disso, sargento, — aventurou Vance, indolentemente. — As mulheres são muito sensatas e práticas para tais gestos de loucura; mas os homens, você sabe,, têm uma capacidade ilimitada para a idiotice.
E, voltando-se para o major, com olhar inquisidor:
— Pode dizer-nos por que julga que o capitão está fazendo. de paladino?
O major, em vez de responder diretamente, refugiou-se em generalidades, e não se mostrou nada inclinado a prosseguir na sua interpretação original do ato de Leacock. Vance interrogou-o por algum tempo, sem conseguir penetrar-lhe as reticências.
Heath, inquieto, falou afinal:
— O senhor não pode contestar a confissão de Leacock. Recorde os fatos: Ele ameaçou Benson de matá-lo, se o encontrasse outra vez em companhia da moça. Quando Benson tornou a sair com ela à rua, foi assassinado. Depois, Leacock ocultou a arma em casa dela, e quando as coisas começaram a esquentar, levou a pistola e lançou-a ao rio. Subornou o rapaz da portaria para obter um álibi; e foi visto em casa de Benson hora depois da meia-noite. Interrogado, nada pode explicar... Diabos me levem, se tudo isto não é mais que duvidoso!
— De fato, as circunstâncias são convincentes, — admitiu o major. — Mas não poderão ser explicadas de outra forma?
Heath nem se dignou responder a esta interrogação.
— Aqui está como eu vejo o caso: Leacock, desconfiado, aí pela meia-noite, pega na pistola e sai. Encontra Benson com a noiva e, conforme tinha prometido, mata-o. Se quer, ambos têm parte na coisa, mas foi Leacock quem deu o tiro. E agora chegamos à confissão... Não há um só jurado em Nova York que não o conheça culpado,
— Ora! Probi et legales homines... — murmurou Vance, enquanto Swacker aparecia à porta.
— Os jornalistas desejam ser recebidos, — disse ele, fazendo uma careta.
— Sabem eles alguma coisa a respeito da confissão? — perguntou Markham.
— Ainda não, — respondeu Heath. — Não fui tão longe, por isso estão reclamando. Mas eu lhes darei com que se entreterem, se o senhor permite...
Markham anuiu, e Heath dirigiu-se para a porta, mas Vance plantou-se vivamente na frente.
— Markham, não poderia conservar isto em segredo até amanhã?
— Sim, posso, se eu quiser, — respondeu Markham, contrariado. — Mas por quê?
— Por sua própria causa, se não for por outra razão. Você tem a presa bem segura, refreie a sua vaidade por vinte e quatro horas, Markham. Eu e o major sabemos que Leacock é inocente e amanhã, a esta hora, toda a cidade o saberá.
Seguiu-se outra discussão, mas o resultado, como da vez anterior, foi a vitória de Vance: Markham compreendera afinal que Vance tinha uma certeza que ainda não queria divulgar. Pareceu-me que se opunha ao pedido de Vance para ver se descobria o que era; e convenci-me disso quando o via agora, ponderar gravemente sobre a conveniência de se tornar pública a confissão do capitão.
Vance, conforme o seu costume, nada quis revelar, e acabou por Markham pedir a Heath que esperasse até ao outro dia. O major manifestou sua aprovação por um gesto.
— Você pode dizer aos rapazes dos jornais, — lembrou Vance, — que lhes reserva uma notícia sensacional para amanhã!
O sargento saiu, sombrio e abatido.
— Um camarada arrebatado, este sargento. Tão impetuoso! — comentou Vance, pegando de novo na folha de papel da confissão, que tornou a ler atentamente.
— Agora, Markham, peço-lhe que mande buscar seu prisioneiro independente de habeas-corpus, etc. Instale-o naquela cadeira em frente da janela, dê-lhe um daqueles charutos que você reserva para os políticos de influência, e depois escute atentamente enquanto eu converso polidamente com ele... Espero que o major também fique para ouvir.
— Um pedido que posso deferir sem objeção, — respondeu Markham, sorrindo. — Eu já havia resolvido falar com Leacock.
Apertou um botão, e apareceu um funcionário de rosto corado e alegre.
— Uma requisição para o Capitão Filipe Leacock, — ordenou o Promotor.
Saiu o funcionário pela porta do corredor, e dez minutos depois entrava o preso, acompanhado por um oficial da Torre do Tombo.
XIX
NOVO INTERROGATÓRIO
(Quarta-feira, 19 de junho — 3h30 da tarde)
Vinha indiferente e abatido o capitão Leacock — ombros ·caídos, braços pendentes, olhar macilento da prolongada vigília. Avistando o major Benson, aprumou-se e dirigiu-se a ele, estendendo-lhe a mão. Era claro que, mesmo não gostando de Alvino Benson, considerava o major como um amigo. De repente, porém, lembrou-se da situação em que estava ali e suspendeu o gesto, embaraçado. O major adiantou-se e tocou-lhe no braço.
— Vamos, Leacock, — disse suavemente. — Não posso acreditar que você tivesse matado Alvino.
O capitão voltou-se, com uma apreensão no olhar, e disse com voz abatida:
— Sim, matei-o! Eu disse a ele que ia matá-lo. Vance indicou-lhe uma cadeira.
— Sente-se, capitão. O Promotor deseja ouvir de sua própria boca a história do crime. Compreende, não é? A lei não.aceita confissões de assassinato, sem provas evidentes. E como, neste caso, há outras pessoas suspeitas, precisamos que responda a algumas perguntas, para comprovar sua culpa. Senão, teremos de continuar a suspeitar de outros além do senhor.
Sentou-se em frente a Leacock e pegou na confissão escrita.
— Diz aqui que não ficou satisfeito pelo fato de o Sr. Benson tê-lo injuriado e que foi à sua casa, mais ou menos à meia hora do dia treze... Quando falou em insultos, referia-se às atenções que ele dispensava a Miss St. Clair?
O rosto do capitão traiu-lhe o agressivo estado de espírito.
— Que importa a razão por que o matei? Não pode deixar Miss St. Clair de parte?
— Sem dúvida, Prometo-lhe que ela não será envolvida nisto. Mas precisamos de conhecer completamente o motivo que o impeliu.
— Perfeitamente, — disse Leacock após um curto silêncio.
— Foi bem como eu narrei.
— Como soube que Miss St. Clair ia jantar com o Sr.. Benson naquela noite?
— Eu os seguira até ao Marseilles.
— E depois, voltou para casa?
— Sim.
— Por que voltou à casa de Benson?
— Fiquei pensando naquilo, até que não pude suportar por mais tempo. Comecei a ver tudo vermelho, e afinal peguei na minha Colt e saí, resolvido a matá-lo.
Sentia-se crepitar naquela voz uma nota de paixão. Parecia inacreditável que ele estivesse mentindo... Vance referiu-se de novo a confissão:
— O senhor ditou: "Fui ao nº. 87, Rua 48, Oeste, e entrei pela porta da frente..." Tocou a campainha? Ou a porta da frente não estava fechada?
Leacock ia. responder, mas hesitou. Era evidente que procurava recordar as notícias dos jornais, as declarações da governanta: ela afirmara positivamente que a campainha não tocara naquela noite.
— Que diferença pode fazer isso? — perguntou, para ganhar tempo.
— Nós gostaríamos de saber... é só, — disse Vance. — Mas não se apresse.
— Visto que isto é tão importante para os senhores, saibam que eu não toquei a campainha, e a porta não estava aberta. Mas.
— continuou, hesitando ainda mais, — justamente quando eu chegava, Benson descia de um táxi.
— Um momento... Notou um outro carro parado em frente da casa? Um Cadillac cinzento?
— Mas... sim.
— Não reconheceu quem o ocupava?
Outro silêncio.
— Não estou bem certo. Creio que era um homem chamado Pfyfe.
— Ele e o Sr. Benson chegaram ali então ao mesmo tempo? Leacock franziu a testa.
— Não... ao mesmo tempo não. Não havia ali ninguém quando cheguei... Não vi Pfyfe senão alguns momentos depois, ao sair.
— Ele chegou de carro quando o senhor estava lá dentro, não foi?
— Deve ter sido.
— Compreendo... E agora, voltemos um pouco atrás: Benson chegou de táxi. E depois?
— Eu me dirigi a ele e disse-lhe que desejava falar-lhe. Disseme que entrasse, e entramos juntos. Serviu-se de uma chave de trinco.
— E agora, capitão, conte-nos exatamente o que aconteceu depois que entraram em casa.
— Ele pendurou o chapéu e a bengala no cabide, e fomos para o salão. Sentou-se ao pé da mesa, eu fiquei de pé e disse... o que tinha a dizer. Depois puxei minha arma e atirei.
Vance olhava para o homem atentamente. Markham estava inclinado para a frente.
— Como se explica então que ele estivesse lendo naquele momento?
— Creio que ele pegou num livro enquanto eu falava... Tentando aparentar indiferença, sem dúvida.
— Procure lembrar-se agora disto: O senhor e ele chegaram à sala indo diretamente do vestíbulo, assim que entraram ·em casa?
— Sim.
— Então como explica o fato de estar o Sr. Benson, quando foi morto, de paletó e chinelos?
Leacock olhou em roda, nervoso. Antes de responder, umedeceu com a língua os lábios ressequidos.
— Agora me lembro... Benson foi primeiro lá em cima, talvez ao quarto dele... Eu estava tão excitado, — acrescentou, desesperado, — que não me lembro bem de tudo.
— É natural, — disse Vance, num tom compreensivo. — Mas, quando ele desceu, notou por acaso alguma particularidade nos seus cabelos?
Leacock olhou vagamente para cima.
— Nos cabelos? Eu... não compreendo...
— Na cor do cabelo, é o que eu quero dizer. Quando Benson se sentou defronte do senhor, debaixo da lâmpada, não notou alguma... diferença, quero dizer... na aparência do seu cabelo?
O homem fechou os olhos, como se tentasse evocar a cena.
— Não... não me lembro.
— É um ponto insignificante, — disse Vance, indiferente. — E a fala de Benson, depois que ele desceu, pareceu-lhe tão natural... isto é, notou alguma dificuldade, ou leve impedimento que fosse, na sua voz?
Leacock estava visivelmente perturbado.
— Não sei o que o senhor quer dizer. Pareceu-me que ele falava como sempre.
— E por acaso não viu um cofrezinho de jóias, azul, sobre a mesa?
— Não notei.
Vance tirou algumas baforadas de seu cigarro, pensativo. — Quando saiu da sala, depois de matar Benson, apagou: as luzes, sem dúvida?
Se não vinha resposta imediata, Vance sugeria uma.
— Decerto fez isso, porque o Sr. Pfyfe diz que a casa estava às escuras, quando ele foi lá.
Leacock então afirmou com a cabeça.
— É verdade. Não podia lembrar-me no momento.
— Agora, que se lembra do fato: como apagou as luzes? — Eu... — começou ele, e parou. — No interruptor.
— E onde está ele colocado, capitão?
— Não me posso lembrar exatamente.
— Pense um instante. Sem dúvida há de se recordar.
— Ao lado da porta que dá para o vestíbulo, se não me engano...
— De que lado da porta?
— Mas como posso saber? — perguntou ele, em tom lamentoso. — Estava tão nervoso... Creio que do lado direito.
— Lado direito — de quem entra ou de quer sai?
— De quem sai.
— Seria aquele onde está a estante de livros?
— Sim.
Vance parecia satisfeito.
— Vamos agora à arma, capitão. Por que a entregou a Miss St. Clair?
— Fui um covarde. — replicou o moço. — Receei que a fossem encontrar em minha casa. E nunca imaginei que pudessem suspeitar dela.
— E quando a acusaram, o senhor imediatamente pegou na arma e jogou-a ao rio?
— Sim.
— Creio que faltava uma bala no cilindro também — o que por si só seria uma circunstância comprometedora.
— Pensei assim, por isso lancei fora a arma. Vance franziu a testa.
— É estranho... Havia então duas armas no rio, porque o fundo foi dragado, e encontrou-se uma pistola Colt automática, mas carregada... Está certo, capitão, de que foi a sua pistola que levou da casa de Miss St. Clair e atirou ao rio?
Eu, que ignorava que tivessem retirado arma alguma do rio, fiquei surpreendido. Quereria Vance, depois de tudo, envolver a moça? E percebi que a Markham também ocorrera a mesma dúvida.
Leacock não respondeu logo. Depois, com voz áspera e irritada, retrucou:
— Não há duas armas. A que foi encontrada era a minha... É que tornei a carregá-la...
— Ah! Isso explica tudo, — disse Vance, em tom amável e tranqüilizador. — Outra pergunta, capitão: Por que veio fazer esta confissão hoje?
Pela primeira vez, durante o interrogatório, os olhos de Leacock se animaram:
— Por quê? Porque era a única saída digna. Suspeitaram injustamente de uma pessoa inocente; não quero que ninguém sofra em meu lugar.
Estava terminada a entrevista. Markham nada tinha a perguntar, e o oficial reconduziu o capitão.
Estranho silêncio caiu sobre aqueles homens. Markham fumava frenèticamente, as mãos cruzadas na nuca, olhos fixos no teto. O major,.recostado na cadeira, contemplava Vance com manifesta satisfação. Vance, por sua vez, olhava para Markham com o rabo do olho, sorrindo sonolento. A expressão de cada um deles revelava perfeitamente sua impressão individual em relação à entrevista. Markham estava perturbado, o major satisfeito, Vance céptico. E foi ele quem quebrou o silêncio, dizendo indolentemente:
— Então, Markham, viu agora que coisa tola é uma confissão? Nosso puritano e orgulhoso capitão deu um Munchausen insignificante. Ninguém poderia mentir mais miseravelmente do que ele. Impossível fingir tanta inabilidade, a menos que não se tenha nascido para isso. E quer-nos fazer crer que é o criminoso... Muito comovente. Sem dúvida, imaginou que você ia pregar-lhe a confissão no peitilho da camisa e remetê-lo ao carrasco. Notou que ele nem sequer sabia como entrara na casa de Benson? A presença conhecida de Pfyfe ali é que veio destruir sua explicação improvisada e mal alinhavada, de que entrara de braço dado com a pretensa vítima. E nem se lembrava do traje caseiro de Benson. Quando lhe recordei, ele se contradisse e fez Benson trotar escada acima, para mudar rapidamente a roupa. Por sorte, os jornais não tinham mencionado a peruca. Nem por sombras imaginou em que pensava eu, ao insinuar-lhe que Benson tingira o cabelo enquanto trocava de roupa e sapatos... E, por falar nisto, major, seu irmão falava com dificuldade quando tirava a dentadura?
— Sim, e notava-se bem a diferença. Se Alvino tinha tirado a dentadura naquela noite — conforme depreendi pela sua pergunta — Leacock teria sem nenhuma dúvida percebido.
— Não notou igualmente outras coisas: o cofre de jóias, por exemplo, e a localização do interruptor.
— Neste ponto, — retrucou o major, — ele meteu os pés pelas mãos: a casa de Alvino é antiga, e o único interruptor que há na sala é pendente, ligado à lâmpada.
— Exatamente... Entretanto, seu maior erro foi quanto à arma. Caiu completamente. Declarou que atirara a arma ao rio porque lhe faltava uma bala; e quando eu disse que estava completa a carga, explicou que substituíra a bala que disparara. Assim, a arma encontrada não era a dele... É jogo do capitão. Supõe que Miss St. Clair está implicada, e resolveu arcar com a culpa.
— Também me pareceu, — disse o major.
— Ainda assim, — comentou Vance, — a atitude do capitão me confunde um pouco. Não há dúvida de que ele teve alguma interferência no crime: senão, por que iria ocultar a pistola, no dia seguinte, em casa de Miss St. Clair? Ele é bem da espécie 'de tolo que ameaçaria qualquer homem suspeito de pretender-lhe a noiva, e depois sustentaria a ameaça, no caso de ser necessário. Além disso, sua consciência o acusa — isso é evidente. Mas de quê? Não de ter matado, isso não; o crime foi planejado, e ele é desses tipos de homem que apanham uma idéia fixa, cingem com ela os lombos, e realizam o feito corajosamente, prontos a sofrer as conseqüências. É a cavalaria, puro beau geste: seus adeptos sabem o que valem. E quando saem a libertar o mundo de um Don Juan, vão sempre de ânimo sereno... O capitão, por exemplo, não teria passado por alto as luvas e a bolsa de sua Bela Dama — levá-las-ia consigo... De fato, é tão certo que ele poderia ter matado Benson, como que não o matou. Aqui é que está a dificuldade. Psicologicamente, é possível que o tenha feito; e, também psicologicamente, é impossível que o fizesse daquele modo.
Acendeu um cigarro, contemplando as espirais de fumo por algum tempo.
— Se não fosse inverossímil, eu diria que ele resolveu matar o outro, e que o encontrou morto. Isso explicaria por que Pfyfe o encontrou ali, e por que confiou a arma a Miss St. Clair no dia seguinte.
Toca o telefone: o coronel Ostrander queria falar com o Promotor. Este, depois de curta palestra, olhou contrariado para Vance.
— Seu sanguinário amigo desejava saber se eu já prendi alguém. Oferece-me mais algumas idéias inestimáveis, no caso de eu estar ainda indeciso a respeito do autor do crime.
— Ouvi você agradecer-lhe tolamente qualquer coisa... Que lhe disse acerca de seu estado de espírito?
— Que ainda estava no escuro...
E sorriu, cansado e sombrio. Mas Vance compreendeu que renunciara à idéia da culpabilidade de Leacock. O major levantou-se e estendeu-lhe a mão.
— Compreendo o que sente, — disse ele, — e sei que isso é desagradável. Mas é preferível deixar escapar um culpado a castigar um inocente... Não se aflija tanto, não desanime. Encontrará por fim a solução, e quando isso acontecer — o resto da frase saiu-lhe por entre os dentes cerrados — não oporei obstáculo algum. Ajudá-lo-ei no que puder.
Com um sorriso sombrio, pegou no chapéu, dizendo ainda:
— Vou-me embora. Volto ao escritório. Se precisar de mim a qualquer hora, chame-me. Talvez eu possa auxiliá-lo... mais tarde.
Cumprimentou Vance amàvelmente e saiu.
Markham nada disse durante alguns minutos.
— Que coisa horrível, Vance! — disse por fim, irritado. — O negócio torna-se a cada passo mais complicado. Já vou causando.
— Mas também, amigo velho, você não deve tomar isso tanto a peito. Não vale a pena a gente se atormentar na encruzilhada da vida.
"Nada é novidade,
Nada é verdade,
E nada, realmente, vale a pena." Foram mortos na guerra alguns milhões de tolos e nem por isso você se altera. Mas porque um canalha é assassinado no seu distrito — e bem o mereceu! — você perde noites de sono, e se aflige? Palavra! Você é por demais incoerente!
— A coerência... — começou Markham; mas Vance interrompeu-o.
— Não cite Emerson agora. Prefiro de muito Erasmo. Você devia ler o Elogio da Loucura: isso o consolaria por não descobrir o assassino. O velho professor holandês de queixo pontudo jamais se lamentaria, inconsolável, sobre a destruição de Alvino, o Calvo.
— Eu não nasci para comer, como você, — censurou Markham. — Fui eleito para este cargo...
— Oh! Perfeitamente — "não amei mais do que a honra", etc, — concordou Vance. — Mas não seja tão sensível. Mesmo que o capitão não consiga ficar na cadeia, como deseja, ainda lhe restam cinco possibilidades. A Sra. Platz... e Pfyfe... e o coronel Ostrander... e Miss Hoffman... e a Sra. Banning... Então! Por que não os prende a todos, cada um por sua vez, e não os obriga a confessar? Heath ficaria louco de alegria...
Tão abatido de ânimo se sentia Markham, que não se podia agastar com seus motejos. Antes parece que o bom humor de Vance o reanimava.
— Se quer que lhe diga a verdade, é isso mesmo que sinto desejo de fazer. Só me sinto indeciso na escolha. Por qual deles deveria começar?
— Camarada valente! E que fará do capitão? Ele ficaria com o coração partido se você o pusesse em liberdade.
— Pois vai ficar mesmo. E o melhor é tratar já das formalidades, — concluiu, pegando no fone.
— Um momento apenas, — pediu Vance, estendendo a mão para ele. — Não ponha ainda termo ao seu arrebatador martírio. Deixe-o ser feliz por mais um dia, ao menos. Tenho a impressão de que nos pode ser mais útil, mirando-se na sua cela solitária, como o prisioneiro de Chillon.
Sem uma palavra, Markham pendurou, e colocou outra vez o fone no gancho. Parecia-me que cada vez mais se submetia à vontade) de Vance, aceitando-lhe a direção. Não porque se sentisse desesperançado e desnorteado, embora isso também influísse em parte na sua submissão — mas porque via bem que Vance sabia mais do que dizia.
— Já tentou fazer uma idéia do modo como Pfyfe e sua Bolinha entraram no caso?
— Sim, — respondeu petulantemente Markham, — com alguns milhares de outros enigmas... Mas, quanto mais penso nisso, mais, misteriosas se tornam as coisas.
— Eis um erro, meu caro. Não há mistérios originados nos seres humanos; há apenas problemas. E qualquer problema originado por outro ser humano. Basta o conhecimento do espírito humano, e a aplicação desse conhecimento a atos humanos. É simples, não acha?
Olhou para o relógio e disse:
— Estranho a demora do Sr. Stitt no exame dos livros de Benson Benson... Espero com impaciência seu relatório.
Isto era demais para Markham, cuja paciência se esgotara afinal com o método fatigante de insinuações e indiretas do outro. Perdera o domínio de si mesmo. Inclinou-se para a frente e bateu irritado na mesa.
— Já estou cansado dessa atitude superior, — disse, muito alterado. — Ou você sabe alguma coisa, ou não sabe. Se nada sabe, faça-me o favor de deixar de insinuar que sabe. Se sabe alguma coisa, é seu dever dizer-me. Desde que Benson foi assassinado, anda você, de uma maneira ou de outra, dando a entender que sabe coisas. Se tem alguma idéia sobre o assassino — quero sabê-lo!
Endireitou-se na cadeira e apanhou outro charuto. Não ergueu os olhos enquanto cortou, com todo o cuidado, a ponta, e o acendeu. Sem dúvida, estava um tanto vexado por ter se deixado levar pela ira.
Vance, aparentemente indiferente durante toda a tirada, esticou as pernas e ficou a olhar para Markham durante muito tempo.
— Sabe, velho amigo Markham, não lhe censuro essa vergonhosa explosão. A própria situação a explica, na verdade. Mas chegou a hora de por fim à comédia. Não estou brincando, não. É fato que tenho algumas idéias muito interessantes sobre este assunto.
Ergueu-se e bocejou.
— Faz hoje um calor estúpido! Mas... tem de ser feito, não é?
"Tão perto está a grandeza da miséria,
Como Deus está junto à humanidade.
Se — Tu deves — murmura a consciência,
"Eu posso! — lhe responder a mocidade." Eu sou a nobre mocidade; você, Markham, a voz do dever — ainda que não tenha murmurado nada, não é?... Mas qual é teu dever? E Goethe responde: A aceleração dos dias. Mas — diabo leve tudo isto! — eu quisera que a pergunta tivesse vindo em um dia mais fresco!
Pegou no chapéu de Markham e deu-lhe.
— Venha, Póstumo. "Tudo tem o seu tempo determinado; e todo propósito debaixo do céu tem o seu tempo" (*). Seu expediente está encerrado hoje, Markham; diga-o a Swacker, sim? Nós vamos visitar uma dama que não é nutra senão Miss St. Clair.
(*) Esta citação do Eclesiastes me recorda que Vance lia habitualmente o Velho Testamento. "Quando me sinto fatigado dos literatos profissionais, disseme ele uma vez, encontro estímulo na majestosa prosa da Bíblia. Se os modernos sentem que devem escrever, deviam dedicar no mínimo duas horas diárias à leitura dos historiadores bíblicos".
Markham compreendeu que o modo brincalhão do amigo mascarava um propósito sério. Percebeu também que Vance queria dizer-lhe o que soubera, por seu próprio esforço, e que, fosse qual fosse o caminho que o levava a essas descobertas — por mais tortuoso, obstruído ou desgarrado que parecesse — ele tinha razões poderosas para segui-lo. Além disso, desde o desmascaramento da confissão fictícia de Leacock. estava em tal estado de espírito, que seguiria qualquer fio que lhe desse a mais tênue esperança de alcançar a verdade. Sem demora, pois, chamou Swacker e informou-o de que não voltaria mais ao escritório naquele dia. v
Dez minutos depois íamos, no metrô, a caminho do n.º 94 de Riverside Drive.
XX
EXPLICAÇÕES DE UMA DAMA
(Quarta-feira, 19 de junho — 4h30 da tarde)
— O fim a que nos propusemos, de fazer luz sobre o caso, — dizia Vance, enquanto seguíamos pela rua, — pode parecer chato, Markham, mas apele para sua força de vontade, e disponha-se a padecer comigo. Você não imagina quão árdua é a tarefa que tenho em mãos! Não é nada divertido isto... Sou ainda um tanto jovem para ser sentimental, e mesmo assim, acho-me inclinado a deixar o seu réu escapar.
— Pode-me dizer por que vamos à casa de Miss St. Clair?
— perguntou Markham, resignadamente.
Vance retrucou, amável:
— Pois não! Na verdade, acho melhor que você saiba. Há muitos pontos concernentes à dama que carecem de elucidação. Primeiro: as luvas e a bolsa. "Nem papoula nem mandrágora te restituirão o sono perdido", como diz o poeta, enquanto você não destrinçar a história daqueles objetos, não? Você não se lembra de-que Miss Hoffman contou que o major escutava à porta do gabinete do irmão, enquanto lá estava certa dama, no dia em que ele foi assassinado? Pois desconfio que a visitante era Miss St. Clair. E gostaria de saber o que se passou ali, e por que ela voltou lá. E também por que foi tomar chá com Benson à tarde? E que papel representaram as jóias na palestra?... Alas há ainda outros itens. Por exemplo: Por que foi o capitão à casa dela buscar a arma? De onde lhe veio a idéia de que era ela a assassina? — você sabe que ele crê nisso, E também julgou ela que era o criminoso, desde o princípio? Markham, céptico, perguntou:
— E você acredita que ela lhe conte tudo isso?
— Tenho muita esperança, — retrucou o outro. — Com seu perfeito e gentil cavalheiro preso, assassino confesso, ela nada terá a perder por descarregar a alma... Mas nada de barulho. Seu estilo policial de inquirição não fará efeito algum sobre a dama, asseguro-lhe.
— E de que maneira pretende você executar sua investigação?
— Com morbidezza, como dizem os pintores. Com muita delicadeza e suavidade, você vai ver.
Markham refletiu um momento e observou:
— Eu ficarei de fora, e deixarei a agenda a seu cargo. — Que idéia magnífica!
Quando chegamos, Markham avisou pelo telefone que trazia uma missão muito importante e fomos recebidos imediatamente. Miss St. Clair estava apreensiva, naturalmente, por causa do capitão Leacock.
Sentou-se em frente a nós, na sala que abria sobre o Hudson, pálida e desfeita, com as mãos unidas e trêmulas. Ta longe a fria reserva da primeira entrevista, e suas olheiras denunciavam o tormento das vigílias.
Vance foi direto ao ponto. Falava com volubilidade, o que 'diminuía a tensão da atmosfera e suavizava a gravidade da visita.
— Lamento ter de lhe dizer, mas o capitão Leacock confessou tolamente ter assassinado Benson. Contudo, nós não estamos satisfeitos com essa declaração. Estamos boiando: não conseguimos saber se o capitão é um vilão, ou um "cavalheiro sem medo e sem mácula". A narração que fez da execução do crime é um esboço apenas: vaga, em certos detalhes essenciais; e — o que mais confusão traz — apagou as luzes da horrorosa sala de Benson por meio de um interruptor que lá nunca existiu. Por isso, desconfiei que ele inventou essa história para esconder alguém que ele supõe ser o verdadeiro culpado.
Indicou Markham com um leve gesto e continuou:
— Aqui o Promotor não concorda inteiramente comigo. É que o espírito jurídico é incrivelmente rígido e aferra-se com tenacidade às idéias. Porque a senhora esteve em companhia de Benson na última tarde que ele passou neste mundo, e por outras razões igualmente fúteis, o Sr. Markham julgou que a senhora tivesse algo a ver com a morte desse homem.
Sorriu ao amigo, como uma censura amistosa, e continuou:
— A senhora é a única pessoa a quem o capitão Leacock poderia proteger tão heroicamente. Por outro lado, estou convencido de sua inocência. Por isso, vimos aqui pedir-lhe esclarecimentos sobre alguns pontos de suas relações com Benson. Nenhum dano advirá de tais declarações, nem à senhora nem ao capitão, e até poderão elas contribuir para dissipar alguma dúvida que acaso ainda subsista no espírito do Promotor sobre a inocência do Capitão.
As palavras serenas de Vance tiveram salutar reação sobre a moça. Mas Markham fervia interiormente, indignado com as censuras veladas do amigo, ainda que procurasse refrear sua ira.
Miss St. Clair encarou francamente Vance por alguns instantes.
— Não sei por que eu confiaria no senhor, ou sequer o acreditaria, — disse serenamente. Mas agora que o capitão Leacock confessou — receei que fosse essa a sua intenção, quando me falou pela última vez — não vejo também por que me recusaria a responder-lhe... Acredita sinceramente que ele seja inocente?
A pergunta era um grito involuntário; a emoção sopitada despedaçara a carapaça de serenidade.
— Creio-o firmemente, — declarou Vance com calor. — O Sr. Markham lhe dirá que antes de sairmos do seu gabinete insisti com ele para restituir a liberdade ao capitão. E foi na esperança de que ele se convencesse ao ouvi-la ao acerto dessa medida, que me apressei em vir aqui com ele.
Alguma coisa no tom da voz e nas maneiras de Vance, inspiravam confiança à moça.
— E que queria o senhor perguntar-me?
Vance lançou um olhar repreensivo a Markham, que a custo continha a raiva de que estava possuído, voltando-se depois para a jovem:
— Primeiro que tudo, desejo saber como estavam em casa de Benson suas luvas e sua bolsa. O Promotor não se cansa de procurar uma explicação para a presença desses objetos ali.
Ela olhou-o franca e diretamente.
— O Sr. Benson convidou-me para jantar. Não me senti muito satisfeita com o seu procedimento, e quando nos dirigíamos para a minha casa, meu ressentimento aumentou. Ao chegar a Times Square, ordenei ao chofer que parasse, resolvida a voltar sozinha. Ao deixar o táxi, tanta pressa tive, e tal era a minha cólera, que sem dúvida deixei cair a bolsa e as luvas, cuja falta notei só depois que o táxi se foi. Sem dinheiro, pois, tive de regressar a pé. E esses objetos foram encontrados em casa do Sr. Benson porque ele os levou para lá.
— Foi exatamente o que supus. Mas... Que longa caminhada deu a senhora até aqui!
E, voltando-se para Markham com um sorriso cruel, acrescentou:
— Já vê que Miss St. Clair não poderia chegar aqui antes de uma hora...
Markham, severo e sombrio, nada retrucou.
— Agora, — continuou Vance, — desejaria saber em que circunstâncias foi feito o convite para jantar.
Uma sombra escureceu-lhe a face, mas a voz não se alterou.
— Perdera muito dinheiro na casa Benson, e tive a intuição de que o Sr. Benson o fizera de propósito, e poderia, se quisesse, ajudar-me a recuperar o que perdera. Há algum tempo que me importunava com seus galanteios, — continuou ela, baixando os olhos, — mas não lhe atribuí nenhum mau desígnio. Fui ao escritório e disse-lhe francamente o que pensava; respondeu-me que, se eu jantasse com ele naquela noite, poderíamos falar a respeito disso. Não me iludi com o seu propósito, mas estava tão desesperada que resolvi aceitar, contando convencê-lo de que devia ajudar-me.
— E em que termos lhe disse a senhora que o seu jantar devia terminar a uma hora certa?
Ela olhou para ele admirada, mas respondeu sem hesitar:
— Ele falou em uma festa, mas eu disse-lhe — e muito seriamente — que, se eu fosse, sairia à meia-noite, rigorosamente. como é meu costume invariável em todas as festas... Porque eu levo muito a sério meu estudo de canto, e imponho-me o sacrifício — ou antes, a restrição — de recolher-me à meia-noite, seja em que ocasião for.
— Um sábio e recomendável hábito! — continuou Vance. — E os seus conhecidos sabem disso?
— Oh, sim, e daí resultou me alcunharem de "Gata Borralheira".
— Sabem-no o coronel Ostrander e o Sr. Pfyfe?
— Sim.
Vance meditou algum tempo.
— E como foi que, no dia do crime, a senhora foi à casa de Benson, e tomou chá com ele, se deviam jantar juntos?
— Nada há que admirar nisso, — declarou ela, ruborizada. — Depois que saí do escritório do Sr. Benson, voltei lá para lhe dizer que resolvera não lhe aceitar o convite. Não o encontrando já ali, fui à sua casa, com o fim de fazer-lhe ainda um apelo final, e pedir-lhe que me desligasse da minha promessa. Pôs o assunto de parte com uma risada, instou para que tomasse chá, e mandou mais tarde um táxi trazer-me aqui em casa para que me vestisse. Às sete e meia veio buscar-me.
— E, quando a senhora lhe pediu para a desobrigar da promessa, tentou assustá-lo, recordando-lhe a ameaça do capitão Leacock; e ele respondeu-lhe que aquilo era apenas uma brincadeira...
— Sim, — murmurou ela, novamente surpreendida. Vance sorriu amàvelmente.
— O coronel Ostrander disseme que a viu no Marseilles em companhia de Benson.
— Sim; e fiquei muito vexada, porque ele tinha-me prevenido contra Benson, alguns dias antes.
— Pois eu os supunha amigos.
— Eram-no — até à semana passada. Mas o coronel perdeu mais do que eu em um jogo de ações que o Sr. Benson manobrara recentemente, e deu-me a entender muito claramente que ele de propósito nos aconselhara mal, em seu próprio proveito. Nem falou com o Sr. Benson naquela noite, no "Marseilles".
— E que me pode dizer sobre as pedras preciosas que acompanharam seu chá em casa de Benson?
— Eram engodos, — respondeu ela, e sorria com um desdém que era a mais eloqüente condenação de Benson, mais ainda do que se ela tivesse recorrido ao pior castigo. — O moço julgou que com isso virava minha cabeça... Ofereceu-me um colar de pérolas para usar no jantar, mas recusei-o. E disseme que, se eu encarasse as coisas como devia — ou outra frase igualmente aliciadora — teria jóias como aquelas, inteiramente minhas, e talvez as mesmas, no dia vinte e um deste mês.
— É isso — no dia vinte e um, — murmurou Vance. —
Está ouvindo, Markham? A promissória de Pfyfe vencia-se a 21, e se não fossei resgatada, as jóias estavam perdidas.
— Tinha ele consigo as jóias ao jantar?
— Oh não! Creio que desanimou, vendo que recusei as pérolas.
Vance encarava-a com simpatia.
— Agora faça o favor de me contar o episódio da arma — em suas próprias palavras, como dizem os juristas, na esperança de confundi-la depois.
Mas, ao que parece, ela não temia ser confundida. E narrou: — Na manhã do dia seguinte ao do crime, o capitão Leacock veio cá e me disse que fora à casa de Benson, mais ou menos à meia-noite, com a intenção de matá-lo. Encontrando do lado de fora o Sr. Pfyfe, e julgando que este tivesse ido fazer uma visita a Benson, abandonara a idéia e se recolhera. Receei que o outro o tivesse visto, e disse-lhe que era mais seguro trazer-me a pistola e dizer, se o interrogassem, que a perdera na França... Veja, senhor, eu pensei realmente, que ele matara Benson, e que... procedia como um cavalheiro, para me poupar desgostos. Quando, mais tarde, ele veio buscar a pistola para jogá-la ao rio, convenci-me inteiramente disso. Sorriu, desanimada, e continuou:
— Aí está por que recusei responder às suas perguntas. Queria que o senhor suspeitasse de mim, para não atribuir o crime ao capitão Leacock.
— Mas é que ele não mentia de modo nenhum!
— Agora sei que não... E devia tê-lo compreendido antes: não me traria a pistola, se fosse o criminoso. Pobre rapaz, — continuou, com os olhos rasos dágua, — confessou porque pensa que fui eu a assassina.
— É precisamente essa a situação, — concordou Vance. — Mas, onde pensou ele que a senhora tinha obtido a arma?
— Conheço muitos oficiais, amigos dele e do major Benson. E no verão passado, nas montanhas, pratiquei bastante tiro ao alvo, a pistola, por divertimento. Oh! a idéia era muito plausível.
Vance levantou-se e cumprimentou-a delicadamente.
— A senhora foi muito amável — e prestou-nos grande auxílio. Veja. o Sr. Markham tinha várias teorias a respeito do assassino. A primeira, parece-me, é que a senhora sozinha era uma Lucrécia Bórgia. A segunda foi que matara Benson, com o capitão, assim como se diz — assassinato a quatro mãos. A terceira, que o capitão puxara o gatilho a capella. E o espírito jurídico é tão estranhamente constituído que pode admitir muitas teorias opostas ao mesmo tempo... E o pior é que Markham está um pouco inclinado a crer que ambos são culpados, individual e coletivamente. Tentei chamá-lo à razão antes de vir aqui, mas perdi meu tempo. Por isso insisti com ele para vir ouvir toda a história dos seus encantadores lábios.
E para Markham, que o encarava de lábios contraídos:
— Então, meu velho, não continua a insistir na culpa de Miss St. Clair ou do capitão Leacock, pois não?... Não vai agora compadecer-se do capitão, e restituí-lo à liberdade, como lhe pedi?
E estendia os braços, num gesto de súplica teatral.
Markham chegara ao limite do furor, e parecia que ia explodir, mas dominou-se, e disse a Miss St. Clair, com tamanha bondade, que me impressionou de novo a sua grandeza de alma:
— Senhorita, asseguro-lhe que abandonei a idéia de que fosse a senhora ou o capitão Leacock quem matou Benson, apesar do que Vance chama meu rígido e incompreensivo espírito jurídico... Perdôo-lhe, contudo, porque ele me impediu de cometer contra a senhora uma grave injustiça. Providenciarei para que tenha o seu capitão de volta tão logo eu possa assinar a ordem de soltura.
Quando íamos de volta, Markham virou-se selvagemente para Vance.
— Então! Eu é que conservava preso o precioso capitão da moça, e você é que teimava comigo para soltá-lo! Você sabe muito bem que eu nunca suspeitei de nenhum dos dois — foi você, só você, lagarto preguiçoso!
Vance suspirou, perguntando, irritado:
— Meu caro amigo! Então você não quer ter nenhum serviço neste caso?
— Que lucra você em me apresentar como um asno, na presença daquela moça? — resmungou Markham. — Não posso compreender o que ganhou você com essa estultice.
— O quê? O testemunho que você acaba de ouvir, vai ajudá-lo poderosamente a encontrar o culpado. Além disso, sabemos como foram as luvas e a bolsa parar à casa de Benson, e quem era a clama que o procurou no escritório, e o que fez Miss St. Clair entre meia-noite e uma hora, e por que ela jantou sozinha com Alvino, e por que tomou chá primeiro com ele,
e como as jóias foram lá ter, e porque o capitão foi buscar a arma à sua casa, e jogou-a fora, e por que ele confessou... Palavra! Não o satisfazem todos esses detalhes? Isso desembaraça a situação de muitas dificuldades... Parou e acendeu um cigarro.
— O que ela nos disse de mais importante foi que seus amigos conheciam seu hábito de retirar-se sistematicamente à meia-noite, de qualquer reunião. Não despreze este ponto, amigo velho: é muito importante. Eu lhe disse há muito tempo que a pessoa que matou Benson sabia que ela jantaria com ele naquela noite.
— Já sei: não tarda que você me diga que sabe quem o matou, — disse Markham, zombeteiro.
Vance, soltando um rolo de fumaça, respondeu:
— Desde o princípio, sempre soube quem matou aquele biltre.
— É mesmo? — retrucou o outro, escarninho. — E quando lhe rebentou no cérebro essa revelação?
— Oh! Apenas cinco minutos depois que entrei na casa do crime, naquela manhã.
— Bem, bem... E por que não me contou tudo, para evitar todos os passos que dei?
— Absolutamente impossível! Você não estava ainda preparado para crer em meus conhecimentos apócrifos. Era preciso que primeiro o guiasse através das várias florestas escuras e dos sombrios tremedais em que você teimava em desgarrar-se... Porque você é tão sem imaginação...
Chamou um táxi que passava, e indicou:
— Rua 48, Oeste, n? 87.
E, segurando com um ar confidencial o braço de Markham:
— Agora, uma rápida palestra com a Sra. Platz. Depois lhe direi ao ouvido meus modestos segredos.
XXI
REVELAÇÕES DA GOVERNANTA
(Quarta-feira, 19 de junho — 5h30 da tarde)
Recebeu-nos a governanta com visível inquietação. Era uma mulher robusta, mas parecia abatida, e lia-se-lhe a ansiedade no rosto. Disse-nos Snitkin, quando entramos, que ela lera cuidadosamente todos os jornais que traziam notícias do caso, e interrogava-o constantemente sobre o assunto.
Entrou na sala sem nos dar muita atenção, e sentou-se na cadeira que Vance lhe ofereceu como uma mulher que se resigna a uma prova terrível, mas inevitável. Ao sentir o olhar penetrante de Vance, encarou-o assustada e voltou o rosto, como se tivesse, naquele rápido olhar, percebido que ele conhecia o segredo que ela guardava zelosamente.
Vance começou seu interrogatório, sem preâmbulos.
— Sra. Platz, o Sr. Benson era muito escrupuloso com a sua peruca — isto é, recebia seus amigos sem colocá-la na cabeça?
— Oh! Não, nunca, senhor! — respondeu a mulher, que pareceu intimamente aliviada.
— Pense bem, Sra. Platz. O Sr. Benson nunca esteve, que a senhora o soubesse, em companhia de ninguém, sem a peruca?
Ela esteve calada por algum tempo, as sobrancelhas contraídas.
— Vi-o tirar uma vez a peruca e mostrá-la ao coronel' Ostrander, um senhor mais idoso do que ele e que costumava vir sempre aqui. Mas o coronel Ostrander era um velho amigo dele, e tinham morado juntos, noutros tempos.
— E ninguém mais?
Franziu a testa, pensativa, novamente, e, depois de alguns minutos, respondeu:
— Não.
— E quanto aos outros homens de negócios?
— Era muito desconfiado com eles... E com os estranhos também; costumava sentar-se aqui, quando fazia muito calor, sem a peruca, mas puxava a cortina daquela janela, — acrescentou, indicando a mais próxima do vestíbulo. — Podia ser visto da escada.
— Estimo que tenha esclarecido este ponto; e da escada. alguém poderia bater na janela, ou nas grades, e atrair a atenção* de quem estivesse na sala?
— Oh, sim, senhor! Facilmente. Eu mesma o fiz, uma vez que saí a um recado e esqueci minha chave.
— Seria assim que entrou em casa o assassino?
— Sim, senhor, — respondeu logo, apegando-se a esta idéia.
— Então essa pessoa devia conhecer muito bem o Sr. Benson para bater na janela em vez de tocar a campainha, não acha, Sra. Platz?
— Sim, senhor, devia... — respondeu ela, mas em tom de dúvida: a pergunta estava acima de sua compreensão.
— Se um estranho batesse à janela, e o Sr. Benson estivesse.--em a peruca, ele o mandaria entrar?
— Oh! Não — ele não deixaria nenhum estranho entrar.
— E a senhora está bem certa de que a campainha não tocou naquela noite?
— Certíssima, senhor, — respondeu, convicta.
— Há luz em frente da escada?
— Não, senhor.
— Se o Sr. Benson tivesse olhado pela janela, poderiai reconhecer quem batia?
— Não sei, — respondeu, hesitante. — Penso que não.
— Pode-se ver quem bate sem abrir a parta?
— Não, senhor. E mais de uma vez o lamentei.
— E se uma pessoa chamasse à janela, o Sr. Benson reconheceria a voz?
— Parece-me que sim.
— E tem certeza de que ninguém pode entrar sem chave?
— Como poderia entrar? A porta fecha por si.
— É fechadura automática?
— Sim, senhor.
— Então deve haver um trinco para se poder abrir a porta de qualquer lado, não?
— Havia um trinco desses, mas o Sr. Benson fixou-o de modo que não podia funcionar. Dizia que era perigoso — eu podia sair e deixar a porta aberta.
Vance foi até ao vestíbulo, e ouviu-o abrir e fechar a porta da frente.
— É como a senhora disse, Sra. Platz, — observou ao voltar. — Agora diga-me: está bem certa de que ninguém tinha outra chave?
— Sim senhor. Ninguém a não ser eu e o Sr. Benson.
— Disse que deixara aberta a porta do seu quarto, na noite em que o Sr. Benson foi assassinado... Era hábito deixá-la assim?
— Não, fechava-a quase sempre. Mas o calor era sufocante, naquela noite.
— De modo que foi acidentalmente que a deixou aberta?
— Exatamente, senhor.
— Se a porta estivesse fechada, como de costume, podia ter ouvido o tiro?
— Se eu estivesse acordada, talvez... Mas, se estivesse dormindo, creio que não. Estas casas antigas têm as portas muito grossas.
— E muito bonitas, também, — continuou Vance, admirando a dupla porta maciça, de acaju, que abria para o vestíbulo.
— Você sabe, Markham, nossa chamada civilização nada mais é do que a persistente destruição de todas as coisas belas e duradouras, e a fabricação de artigos de pouco valor. Você deve ler o livro de Osvaldo Spengler, Poentes dos Países Ocidentais — um documento muito incisivo. Admira-me que ainda não aparecesse nenhum editor de iniciativa que quisesse embalsamá-lo em nossa gíria nativa. Toda a história desta era degenerada a que chamamos civilização pode ser estudada em nossos trabalhos de madeira. Olhe para esta linda porta antiga, por exemplo, com seus painéis em ângulos agudos ou obtusos, e frisos salientes, suas pilastras jônicas e portais lavrados. E compare-a depois com as tábuas lisas, franzinas, feitas à máquina e pintadas a laça, que por aí existem aos milhares hoje. Sic transit...
Examinou a porta ainda por algum tempo; depois, voltou-se abruptamente para a Sra. Platz, que o olhava com curiosidade e crescente apreensão.
— Que fez o Sr. Benson do estojo de jóias quando foi jantar?
— Nada, senhor, — respondeu ela, nervosa. — Deixou-o ali sobre a mesa.
— Viu-o ali depois que ele saiu?
— Sim, senhor. E ia tirá-lo, mas depois achei que era melhor não tocar nele.
— E ninguém bateu à porta, nem entrou em casa depois que o Sr. Benson saiu?
— Não, senhor.
— Está bem certa disso?
— Absolutamente, senhor.
Vance levantou-se e pôs-se a passear pela sala. De repente, justamente quando passava em frente da mulher, deteve-se e encarou-a.
— Seu nome de solteira era Hoffman, Sra. Platz? Chegara o momento tão temido! Empalideceu, dilataram-se-lhe os olhos, os lábios descaíram.
Vance continuava a olhar para ela, não sem certa bondade. Antes que ela se pudesse refazer, porém, disse-lhe:
— Tive há pouco tempo o prazer de encontrar sua encantadora filha.
— Minha filha?... — gaguejou a mulher, dominando-se.
— Miss Hoffman, a senhora sabe — a simpática jovem de cabelos de ouro, secretária do Sr. Benson.
A mulher empertigou-se e disse, com os dentes cerrados:
— Ela não é minha filha!
— Vamos, vamos, Sra. Platz! — disse Vance, repreendendo-a como se falasse a uma criança. — É tolice querer enganar-me... Lembra-se da sua aflição quando lhe observei que tinha interesse pessoal na dama que estivera aqui tomando chá com o Sr. Benson? Receava que eu supusesse ser Miss Hoffman... Alas nem tinha motivo de se inquietar por causa dela, Sra. Platz. Estou certo de que é uma moça muito séria. E na verdade não deve censurá-la por preferir o nome de Hoffman ao de Platz. Platz significa geralmente um lugar, embora também designe um estalido, ou uma explosão; q algumas vezes um Platz é um bolo fermentado. Mas um Hoffman é um cor-tesão — mais bonito do que um bolo, não é?
Sorria, para encorajá-la, e seus modos afáveis de fato a tranqüilizaram.
— Não é isso, senhor, — disse ela, olhando para ele como se o acusasse — eu é que a fiz usar esse nome. Nesse país qualquer moça inteligente pode vir a ser uma grande drama, se tiver oportunidade. E...
— Compreendo perfeitamente, — interrompeu Vance, gracejando. — Miss Hoffman é hábil, e a senhora receou estorvar o feliz desenlace de seus negócios, se viessem a saber que era filha de uma governanta. Eliminou-se, pois, por assim dizer, para assegurar-lhe a prosperidade. Acho muito generoso o seu procedimento... Sua filha vive sozinha?
— Sim, senhor, em Morningside Heights. Mas eu a vejo todas as semanas, — continuou, em voz apenas audível.
— Sem dúvida — o mais que a senhora pode, estou certo...
E veio trabalhar na casa de Benson por ser ela a secretária dele?
A mulher olhou-o, uma expressão de amargura nos olhos.
— Sim, senhor, foi por isso mesmo. Ela contou-me que espécie de homem era ele; e que muitas vezes a fazia vir aqui à noite para trabalhos extraordinários.
— E quis estar aqui para protegê-la?
— Sim, senhor, foi por isso...
— Por que ficou tão inquieta, no dia seguinte ao do crime, quando aqui o Sr. Markham perguntou se o Sr. Benson tinha armas de fogo em casa?
Ela desviou o olhar, para responder:
— Eu não fiquei inquieta...
— Sim, ficou, Sra. Platz. E vou dizer-lhe por quê. A senhora receou que atribuíssemos o crime a Miss Hoffman.
— Oh, não, senhor! Não foi isso! — gritou ela. — Minha menina nem sequer esteve aqui naquela noite — juro-o! — ela não esteve aqui...
Estava profundamente perturbada: a tensão nervosa que reprimira toda a semana rompera-se enfim, e ela olhava ao redor de si, desamparada.
— Vamos, vamos, Sra. Platz, — disse Vance, em tom consolador. — Ninguém pensa, por um só momento, que Miss Hoffman tomou parte na morte de Benson.
A mulher pareceu esquadrinhar-lhe o rosto. A principio recusava-se a acreditar — era evidente que o medo estivera longo tempo a atormentar-lhe o espírito. Vance levou todo um quarto de hora para convencê-la de que dizia a verdade. E quando, finalmente, saímos, estava relativamente serena.
Em caminho para o Club Stuyvesant, Markham ia silencioso, engolfando em seus pensamentos. Perturbavam-no consideravelmente, sem dúvida, os novos aspectos que ressaltavam da conversa com a Sra. Platz.
Vance fumava, sonhador, voltando a cabeça de vez em quando para examinar os edifícios. Seguimos para leste, atravessando a Rua 48, e quando chegamos em frente da Sociedade Bíblica de Nova York, ordenou ao chofer que parasse e instou para que admirássemos o edifício.
— O cristianismo, — observou ele, — quase que se justificaria só por sua arquitetura. Com poucas exceções, os únicos edifícios que não ofendem a vista, nesta cidade, são as igrejas e construções semelhantes. O credo da estética americana é: "Tudo o que é enorme, é belo". Os americanos adoram estas caixas opressivas em forma de canudo, com buracos regulares. chamadas arranha-céus, simplesmente porque são imensas. Unia caixa com 40 fileiras de buracos é duas vezes mais bela do que uma que só tem 20 fileiras. Simples fórmula, não?... Olhe agora para este pequeno edifício de cinco andares, do outro lado da rua. É infinitamente mais agradável — e mais impressivo, também — do que qualquer arranha-céu.
Vance referiu-se apenas uma vez ao crime durante nossa ida para o clube, e ainda assim, indiretamente.
— Um bom coração, Markham, vale mais que uma coroa. Fiz hoje uma boa ação, e sinto-me perfeitamente virtuoso. Frau Platz dormirá muito melhor esta noite: ela estava transtornada, por causa da pequena Gretchen. É uma velha valente, aquela. e maternal, e tudo o mais. E não pode suportar a idéia de que se levante uma suspeita contra a futura Lady Vera de Vera... Por que será que ela se atormenta assim? — concluiu ele, deitando um olhar materno para o lado do Promotor.
E nada mais se disse, até ao fim do jantar. Terminado este, empurramos para trás as cadeiras e ficamo-nos no jardim do terraço, a contemplar os cimos das árvores de Madison Square.
— Agora, Markham. — disse Vance, — abandone todas as idéias preconcebidas e considere a situação judiciosamente — para me servir de um eufemismo de jurista... Para começar; sabemos agora a razão da angústia da Sra. Platz, quando lhe perguntou sobre as armas de fogo, e por que ela se sentiu aterrada quando lhe observei o seu particular interesse pela jovem que tomara chá com Benson. Assim, esses dois mistérios estão eliminados...
— Mas, como descobriu você seu parentesco com a moça?
— Com meus olhares às furtadelas. Você não se lembra de que eu "espiei" a moça no primeiro dia em que a vi?... Mas eu o desculpo, Markham... E você não se lembra da nossa pequena discussão acerca das idiossincrasias cranianas? Notei à primeira vista que Miss Hoffman possuía a mesma conformação física da governanta de Benson. Era braquicéfala; tinha os ossos da face supero-articulados, a mandíbula ortognata, a estrutura parietal pouco desenvolvida, o nariz mesorriniano... Depois observei-lhe a orelha, porque já tinha notado que a da Sra. Platz era pontuda, sem lobos, orelhas "de fauno" — também chamadas de Darwin. Essas orelhas são hereditárias; e quando vi que as de Miss Hoffman eram do mesmo tipo, ainda que modificadas, adquiri a certeza do parentesco. Mas havia outras semelhanças — a do pigmento, por exemplo; e da altura — ambas são altas. E as massas centrais em ambas são muito desenvolvidas em relação às massas periféricas; os ombros são estreitos e os pulsos e tornozelos finos, enquanto que os quadris são volumosos... Que Hoffman era o nome de solteira da Sra. Platz foi unicamente adivinhação. Mas isso não tem importância...
E acomodou-se na poltrona, continuando:
— Vamos agora às suas considerações jurídicas... Primeiro, presumamos que um pouco antes dos trinta minutos, na noite de treze, o malfeitor foi à casa de Benson, viu luz no salão, bateu na janela e foi imediatamente recebido... Que é que, na sua opinião, indicam estas suposições a respeito do visitante?
— Apenas que era bem conhecido de Benson... Mas isso de nada serve: não podemos estender a suspeição a todas as pessoas que ele conhecia.
— As indicações vão muito mais longe do que isso, velha camarada. Elas mostram, inequivocamente, que o assassino de: Benson era um velho amigo muito íntimo, afinal, uma pessoa diante de quem ele não cuidava das aparências. A ausência da peruca, conforme já lhe lembrei uma vez, é um sinal essencial neste caso. A peruca, você não sabe? É a indumentária imprescindível de todo homem de meia-idade, com aspirações a Belo Brummel — e calvo... Você ouviu o que disse a Sra. Platz a respeito. Pode crer por um segundo que ele, que ocultava sua deficiência capilar até ao caixeiro do armazém, pudesse receber a visita de um simples conhecido, despojado de sua coroa de glória? E além de estar assim pelado, sem os dentes? De mais a mais, sem colarinho nem gravata, e enfronhado em uma velha jaqueta, e de chinelos? Imagine o espetáculo, meu caro!... Um homem não pode parecer atraente sem colarinho, com a camisa aberta e o botão de ouro à mostra. Equivaleria a uma dama de papelotes... Quantos homens pensa você que Benson conhecia, diante de quem seria capaz de aparecer em tais condições de desalinho?
— Não sei... três ou quatro, talvez; mas não posso prendê-los a todos.
— Acredito que você o faria, se pudesse, mas nem é necessário, — retrucou Vance, escolhendo outro cigarro da cigarreira. — Há ainda outras indicações: o assassino estava muito bem inteirado dos arranjos domésticos de Vance. Devia saber que a governanta dormia a uma boa distância da sala e não despertaria com o tiro, se a porta do quarto estivesse fechada, como de costume. Também devia saber que não havia mais ninguém em · casa àquela hora. E outra coisa: não esqueça que sua voz era
perfeitamente familiar a Benson. Se houvesse a mais leve dúvida; acerca disso, Benson não teria aberto a porta, em vista do seu
natural medo de ladrões, e com a ameaça do capitão pendente:sobre a cabeça.
— É uma hipótese aceitável... Que há mais?
— Há as jóias, Markham — essas mensageiras do amor. Pensou nelas? Estavam sobre a mesa quando Benson tomava chá, à tarde, e de manhã tinham sumido... De modo que parece indubitável que o assassino as levou, não acha? E não podem elas mesmas ter chamado ali o assassino? Nesse caso, qual das íntimas "persona grata" de Benson sabia que estavam em casa dele? E quem as desejava particularmente?...
— É verdade, Vance, — disse Markham, sacudindo a cabeça lentamente. — Você acertou. Sempre tive certa desconfiança de Pfyfe, e estava a ponto de mandar prendê-lo, quando Heath me comunicou a confissão de Leacock. Depois, quando seu nenhum valor foi reconhecido, minhas suspeitas recaíram nele... Nada lhe disse porque queria ver aonde iam parar suas idéias, mas o que me diz agora coincide com meu modo de pensar: é Pfyfe o nosso homem...
Baixou repentinamente as pernas da cadeira, clamando:
— E você deixou-o escapar!...
— Não se impaciente, amigo velho. Ele está livre de perigo, ao lado da esposa, eu o espero, ao menos. E seja como for, seu amigo Ben Hudson é tão destro em descobrir fugitivos... Deixe o atribulado Leandro em paz, por hora. Não precisa dele esta noite — e amanhã não o quererá mais.
— Que diz você? Eu não o quererei mais?... E por que, não me dirá?
— Oh! — exclamou Vance, indolentemente, — ele não é amável de nascença, não acha? E não é também vim objeto de beleza deslumbrante... Eu não desejaria tê-lo perto de mim mais do que o necessário... E, por falar nisso, Pfyfe não é o assassino.
Markham, muito perturbado para se irritar, olhou atentamente para Vance.
— Não o compreendo, — disse afinal. — Se não é Leandro,, quem é então o culpado?
Vance olhou para o relógio.
— Vá almoçar comigo amanhã, e leve o relatório que pediu a Heath. Vou-lhe dizer então quem matou Benson.
Alguma coisa no seu tom impressionou Markham. Compreendeu que Vance não faria tal promessa levianamente, sem a certeza de poder cumpri-la. Conhecia-o de sobejo para desprezar, ou sequer diminuir o valor da sua declaração.
— Afãs por que não me diz agora?
— Sinto muito, — lamentou Vance. — Mas vou ao concerto "especial" da Filarmônica esta noite. Tocam a Sonata em Ré Menor, de César Franck, e o temperamento de Stransky se harmoniza tão bem com estas sentimentalidades diatônicas... Você devia ir comigo, Markham. É delicioso para acalmar os nervos, venha!...
— Eu não! — resmungou o Promotor. — Agora só desejo tomar um brandy com soda.
Desceu conosco até o automóvel.
— Vá amanhã às nove, — disse Vance quando nos assentávamos. — Deixe o gabinete esperar um pouco. E não se esqueça de pedir as informações pelo telefone a Heath.
E, no momento em que o carro começava?. mover-se, ainda se inclinou para dizer a Markham:
— Escute, Markham: que altura tem a Sra. Platz?
XXII
A TEORIA DE VANCE
(Quinta-feira, 20 de junho — 9 da manhã)
Markham chegou à casa de Vance às nove em ponto. Vinha de mau humor.
— Vance, — disse assim que se sentou à mesa, — quero saber qual o sentido de suas palavras de despedida ontem à noite.
— Coma esse melão, amigo velho, —.respondeu Vance. — Vem do Norte do Brasil, e está delicioso. Mas não lhe tire o sabor, deitando-lhe pimenta ou sal. Uma estranha prática, embora não tão estranha como a de encher o melão de sorvete. O americano faz as coisas mais espantosas com o sorvete. Ele o mete no pastel, mistura-o com soda; ele o introduz no chocolate puro, como um bombom; imprensa-o entre dois biscoitos doces e chama a isso sanduíche sorvete; e até o usa, em lugar de creme batido, em uma charlotte russa...
— O que eu queria saber...
Mas Vance não lhe deu tempo de acabar.
— É surpreendente ver a quantidade de idéias errôneas do povo acerca dos melões. Há unicamente duas espécies — o melão almiscarado e o melão dágua, ou melancia. Todos os melões alimentícios — como o cantalupo, o limão, o noz-moscada, Cassabas e maná — são variedades do melão almiscarado. Mas o povo, como você, tem a noção de que cantalupo é um termo genérico. Em Filadélfia chamam todo melão "cantalupo". Ora. a verdade é que esse tipo de melão foi cultivado primeiramente em Cantalupo, na Itália...
— Muito interessante, — disse Markham, com mal disfarçada impaciência. — Que pretendia você com aquela observação ontem à noite?
— E, além do melão, Currie preparou-lhe um prato especial. É a minha obra-prima culinária — com a colaboração de Currie, já se vê.,. Gastei meses na sua concepção — compondo e organizando, por assim dizer. Não lhe dei nome ainda —talvez você possa lembrar um nome apropriado... Para executar esse prato, pica-se em primeiro lugar um ovo bem cozido, e mistura-se-lhe queijo Port du Salut ralado; adiciona-se um nadinha de estragão. Essa pasta é então enrolada em um filete de perca branca — como uma panqueca. Amarra-se com um fio de seda, cobre-se com uma massa de amêndoas especialmente preparada, e frita-se em manteiga fresca. Isto, sem dúvida, é a explicação mais resumida do preparo, omitidos todos os detalhes.
— Deve ser muito gostoso, — disse Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas eu não vim aqui para uma lição de cozinha...
— Você menospreza a importância dos prazeres do estômago, Markham. A alimentação é um guia infalível no progresso intelectual de um povo, assim como a medida exata do temperamento dos indivíduos. O selvagem cozinhava e comia como selvagem. Na infância da raça, o gênero humano foi afligido por uma vasta epidemia de indigestão. Houve o diabo a quatro, e apareceram idéias infernais: eram os pesadelos da dispepsia. Depois, quando o homem começou a assenhorear-se da técnica da cozinha, tornou-se civilizado; e quando atingiu os pináculos da arte culinária, também alcançou os pináculos da cultura e da glória intelectual. Quando a arte cio guloso retrocedeu, também o homem retrogradou. A cozinha da América, sem gosto, padronizada, é o símbolo da sua decadência. Uma sopa perfeitamente temperada, Markham, tem mais nobreza do que a Sinfonia em Dó Menor de Beethoven...
Ouvia Markham com ar apavorado a tagarelice de Vance. Fez diversas tentativas para trazer à tona o assunto que lhe interessava, mas Vance, como que não o percebendo, não lhe dava ouvidos.
Somente depois que Currie retirou os pratos, consentiu ele em referir-se ao objeto da visita de Markham.
— Trouxe as informações, Markham?
— E levei cinco horas à procura de Heath, depois que você saiu, ontem à noite.
— Que pena! — disse Vance.
Foi à secretária, tirou de um compartimento uma folha de papel dobrada, escrita de ambos os lados, e deu-a a Markham.
— Desejo que você leia isso e me dê sua douta opinião. Preparei-o ontem, depois do concerto.
Tomei, mais tarde, posse do documento, e arquivei-o com outras notas e papéis concernentes ao caso Benson. Eis o seu texto, palavra por palavra:
HIPÓTESE
A Sra. Ana Platz alvejou e matou Alvino Benson na noite de 13 de junho.
LOCAL
Ela morava na casa, e confessou que estava lá no momento em que o tiro foi disparado.
OCASIÃO
Estava só cm casa com Benson.
As janelas que não eram gradeadas estavam fechadas com ferrolho por dentro. A porta da frente estava fechada. Não havia outro meio de acesso à casa.
Sua presença na sala era natural: podia entrar sem se ocultar, para fazer qualquer pergunta relativa ao governo da casa.
Podia parar em frente de Benson sem provocar sequer um olhar do patrão. Daí sua atitude de quem lia.
Que outra pessoa podia ter chegado tão perto dele com o propósito de alvejá-lo, sem lhe despertar a atenção?
Ele não se preocupava com o trajo diante da governanta. Habituara-a a vê-lo sem dentes nem peruca, e cm roupa caseira.
Vivendo na mesma casa, podia escolher o momento propício para o crime.
MOMENTO
Ela o esperava. A despeito de sua negativa, podia ele ter-lhe dito a hora em que voltaria.
Quando viu o patrão vir só e mudar de roupa, ela compreendeu que não esperava visita alguma.
Escolheu o momento imediato à sua volta porque assim pareceria que ele trouxera alguém consigo, e que essa outra pessoa o matara.
MEIOS
Serviu-se da arma do próprio Benson. É fora de dúvida que ele tinha mais de uma; porque era mais natural que guardasse uma arma no quarto de dormir do que na sala, e uma vez que o Smith and Wesson foi encontrado na sala, é que havia outro no quarto.
Sendo sua governanta, sabia da existência da outra arma em cima. Depois que ele desceu e foi ler para o salão, ela pegou na arma, levantou-a oculta no avental.
Deitou-a fora, ou escondeu-a. depois de atirar: teve para isso toda a noite.
Assustou-se quando interrogada a respeito das armas que Benson teria em casa, porque ficou em dúvida sabre se nós saberíamos ou não que havia outra no quarto.
MOTIVO
Ela foi ser governanta de Benson porque teve medo da conduta dele para com sua filha. Sempre ouvia quando a moca ia à noite trabalhar em casa dele.
Descobrira ultimamente que Benson tinha intenções ignóbeis e acreditou que a filha corria perigo iminente.
Uma mãe que se sacrifica pelo futuro de sua filha, como ela o fez, não hesitaria em matar para salvá-la.
E havia as jóias. Ela ocultou-as e conserva-as para a filha.
Então Benson ia sair deixando o estojo cm cima da mesa? E, se as tivesse posto noutra parte, quem senão ela, familiarizada com a casa, e tendo todo o tempo ao seu dispor, poderia achá-las?
COMPORTAMENTO
Mentiu quando falou na vinda de Miss St. Clair para o chá, explicando mais tarde que a moça não podia estar implicada no crime. Era intuição feminina? Não. Sabia que Miss St. Clair era inocente, unicamente porque era ela mesma a culpada. Como tem o amor maternal muito apurado, não queria que se suspeitasse de uma inocente.
Assustou-se muito ontem, ao ouvir o nome da filha, receando que a descoberta do parentesco viesse a revelar o móvel do crime.
Confessou que ouvira o tiro, porque uma experiência provaria logo que uma detonação na sala seria perfeitamente ouvida no seu quarto: isso daria motivo a suspeitas, portanto. E acaso quem desperta, noite alta, acende as luzes para verificar a hora? No caso de ouvir um disparo dentro de casa, não se teria ela levantado, para verificar a causa, ou dar rebate?
Da primeira vez que foi interrogada, mostrou sem rebuços que não gostava de Benson,
Cada vez que é interrogada, demonstra grande inquietação.
Pertence ao tipo germânico, teimoso, astuto e resoluto, que bem podia, ter não só planejado, mas executado o delito.
ALTURA
Mais ou menos cinco pés e dez polegadas, isto é, a altura demonstrada para o criminoso.
Markham leu o resumo várias vezes — levou um quarto de hora nisso — e ao terminar, afinal, ficou ainda silencioso por alguns minutos. Depois levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro da sala.
— |Não é um documento legal imaginário, — observou Vance. — Mas creio que até um membro do Grande Júri o compreenderia. Você pode, é claro, tornar a escrevê-lo e adorná-lo tom inúmeras frases sem sentido e recônditos termos jurídicos.
Markham não respondeu logo. Parou perto das janelas francesas e olhou a rua. Depois disse:
— Sim, creio que você demonstrou o caso... É extraordinário! Eu tinha curiosidade, desde o princípio, de saber o que você procurava; e suas perguntas de ontem à Sra. Platz me pareceram sem fundamento. Mas confesso que nunca me ocorreu a idéia de suspeitar dela. Benson deve ter-lhe dado sólidos motivos!
Voltou muito devagar, e veio vindo para o nosso lado, a cabeça baixa, as mãos nas costas.
— Não me agrada a idéia de prendê-la... É singular que eu nunca tivesse desconfiado dela.
Parou defronte de Vance.
— E você mesmo, a principio, não pensava nela a despeito de se jactar de saber quem era o assassino cinco minutos depois de entrar na casa de Benson.
Vance sorriu alegremente e agitou-se na cadeira, o que indignou Markham.
— Diabo! Você me disse outro dia que nenhuma mulher podia ter feito isso, fosse qual fosse a prova aduzida, e arengou acerca de arte e de psicologia, e sabe Deus o que mais...
— E é verdade, — murmurou Vance, ainda sorrindo. —
Não foi mulher que matou Benson. j
— Não foi mulher!? — repetiu Markham, cuja indignação subia de ponto.
— Oh! Não, meu caro... — afirmou Vance, apontando para o papel que Markham conservava na mão. Isso é apenas uma pilhéria, sabe?... Pobre da velha Platz... ela é inocente como um cordeiro.
Markham arrojou o papel sobre a mesa e sentou-se. Eu nunca o vira tão furioso; mas dominava-se admiràvelmente.
— Olhe, meu amigo, — disse Vance em sua fala arrastada e indiferente, — tive um desejo irresistível de demonstrar-lhe quão nulas são suas provas materiais e circunstanciais. Sinto-me orgulhoso da minha acusação contra a Sra. Platz. Estou certo de que você poderia convencê-la da verdade desse libelo. Mas, como toda a teoria da sua lei tão elogiada, é ele tão especioso como errôneo... A prova circunstancial, Markham, é a maior asneira que se possa imaginar. Sua teoria discorda da democracia de nossos dias. A teoria democrática é que, se você acumula muita ignorância nas cabeças, produz inteligência; e a teoria da prova circunstancial é que, se você reúne um número suficiente de elos fracos, produz uma cadeia forte.
— Fez-me vir aqui hoje para ouvir uma dissertação sobre a teoria jurídica? — perguntou o Promotor, friamente.
— Oh! não, — assegurou Vance, rindo. — Apenas preciso prepará-lo para aceitar a minha revelação; porque não tenho nem sequer um fragmento de prova material, nem circunstancial contra o culpado. E, não obstante, Markham, eu sei que ele é o criminoso, tão bem como sei que você está sentado nessa cadeira, planejando a maneira de me torturar e matar sem ser punido.
— Se você não tem provas, como chegou a essa conclusão? — indagou Markham, em tom mordaz.
— Unicamente pela análise psicológica — aquilo que chamarei a ciência das possibilidades pessoais. A natureza psicológica de um homem é um estigma tão claro para quem sabe ler nela, como a carta vermelha de Hester Prynne... Eu nunca li Hawthorn, devo dizê-lo. Não posso suportar o temperamento da Nova Inglaterra.
Markham mordeu os lábios e olhou para Vance ferozmente.
— Espera você que eu me vá apresentar diante do tribunal, levando sua vítima pelo braço, e diga ao juiz: "Aqui está o homem que matou Alvino Benson. Não tenho prova alguma contra ele, mas quero que o condene à morte, porque meu brilhante e sagaz amigo, Sr. Philo Vance, o inventor da perca recheada, diz que ele é perverso por natureza..." Você espera isso?
Vance encolheu quase imperceptivelmente os ombros.
— Olhe, eu não vou morrer de desgosto se você não prender o culpado. Mas achei que era mais humano dizer-lhe quem é, ao menos para impedi-lo de atormentar pessoas inocentes.
— Pois bem, diga-me quem é ele, que eu saberei o que me cumpre fazer.
Talvez Markham duvidasse de que Vance sabia na verdade quem era o assassino de Benson. Em todo o caso, essa incerteza, se a houve no seu espírito, se dissipou naquela manhã, em que compreendeu por que Vance o mantivera durante dias suspenso em ansiedade. Quando, afinal, ele o descobriu, perdoou a Vance: mas naquele momento estava furioso a mais não poder.
— Há ainda alguma coisa a fazer antes que eu possa revelar o nome do cavalheiro, — disse-lhe Vance. — Primeiro, deixe-me dar uma olhadela a esse relatório.
Markham tirou do bolso uma folha de papel datilografada e deu-lha.
Vance ajustou o monóculo e leu-a cuidadosamente. Depois se levantou e saiu da sala, e ouviu-o telefonar. Quando voltou, tornou a ler as notas. Uma chamou-lhe a atenção mais particularmente, e ele parecia pesar-lhe as possibilidades.
— É possível, — murmurou afinal, olhando indeciso para o fogão.
Tornou a examinar as informações.
— Vejo aqui que o coronel Ostrander, acompanhado por um vereador de Bronx, chamado Moriarty, assistiu à peça "Loucuras da Meia-Noite" no Teatro Piccadilly, Rua 47, na noite de 13, chegando ali um pouco antes das 12 e permanecendo durante a representação, que foi até às duas e meia da madrugada, mais ou menos. Conhece esse vereador?
Markham encarou-o surpreso e severo.
— Conheço o Sr. Moriarty. Que há com ele? — perguntou., com mal contida excitação.
— Onde se encontram os vereadores de Bronx, pela manhã?
— Em casa, sem dúvida... ou talvez no Club Samoset... Às vezes têm algum trabalho na Municipalidade.
— Palavra que não sei de atividade mais imprópria para um político! E quer você averiguar se ele está em casa ou no. clube? Se não for muito incômodo, gostaria de lhe dizer uma palavra.
Markham lançou ao outro um olhar suspicaz. Depois, sem uma palavra, foi até ao gabinete. Ao voltar, anunciou:
— O Sr. Moriarty estava em casa, pronto para ir para a Municipalidade. Pedi-lhe que, de caminho para a cidade viesse aqui.
— Espero que ele não nos desaponte, — suspirou Vance. — Mas vale a pena tentar.
— Está compondo uma charada? — perguntou Markham,. asperamente.
— Sob minha palavra, velho amigo: não tento perturbar o grande acontecimento. Exerço apenas um pouco daquela fé de que você é tão ricamente dotado — isso é mais desejável do que sangue normando, você bem o sabe... Entregar-lhe-ei o culpado antes que a manhã acabe. Mas preciso assegurar-me de que você o aceita. Estas informações preparam o caminho para o meu golpe... Umálibi, conforme eu já lhe disse, é coisa enganosa e perigosa: abre caminho à suspeita. E a ausência dele também, não tem nenhuma importância. Por exemplo, vejo por este relatório que Miss Hoffman não poderia alegar nenhum álibi para a noite de 13. Ela disse que foi a um cinema e voltou para casa. Mas ninguém a viu em parte alguma. Provavelmente foi à casa de Benson, em visita à mamãe, e lá ficou até tarde. Parece suspeito isso, não? E, no entanto, mesmo que estivesse ali, seu único crime naquela noite foi sua afeição filial... Por outro lado, há alguns aqui que são, como se diz, de ferro fundido — tola metáfora: o ferro fundido quebra facilmente... Ora, acontece que um deles é falso, sei-o eu. Seja camarada, Markham, e tenha paciência, pois é muito necessário que examinemos minuciosamente todos eles.
Quinze minutos depois, chegava o Sr. Moriarty. Era um moço sério, bem apessoado, bem vestido, já próximo dos trinta — não se parecendo em nada com o tipo de vereador que eu imaginara — e falava um inglês claro e preciso, quase sem sotaque.
Markham apresentou-o em poucas palavras, explicando-lhe por que lhe pedira para vir.
— Um dos homens do Departamento de Crimes, — declarou Moriarty — interrogou-me ontem a esse respeito.
— Temos aqui o seu relatório. — disse Vance, — mas é um tanto vago. Quer o senhor dizer-nos exatamente o que fez naquela noite depois que encontrou o coronel Ostrander?
— O coronel convidara-me para jantar e ir depois ao teatro com ele. Encontramo-lo às dez horas, no Marseilles. Jantamos ali e saímos um pouco antes da meia-noite, para ir ao Piccadilly, onde ficamos até às duas e meia, mais ou menos. Eu acompanhei-o até sua casa, onde bebi um pouco, palestrei, e depois tomei o metrô para voltar a casa, cerca de três e meia da madrugada.
— Disse ontem ao investigador que tomara um camarote no teatro?
— É verdade.
— Permaneceram no camarote, o senhor e o coronel, durante toda a representação?
— Não. Depois do primeiro ato, um amigo meu veio ao camarote e o coronel escusou-se e foi até ao lavatório. E após o segundo, eu e o coronel fomos para o corredor, para fumar.
— Poderia dizer que horas eram quando acabou o primeiro ato?
— Meia hora depois da meia-noite, mais ou menos.
— E onde fica situado esse corredor? Se bem me lembro, fica ao lado do teatro e tem saída para a rua?
— É isso mesmo.
— E não há uma porta de saída muito próxima dos camarotes, e que dá para o corredor?
— Há, sim. Passamos por ela naquela noite.
— E quanto tempo esteve o coronel fora, depois do primeiro ato?
— Alguns minutos... Não posso dizer exatamente.
— Voltou ele, então, quando correu o pano para o segundo ato?
— Não me parece, — respondeu Moriarty depois de refletir. Creio que, quando ele voltou, tinha começado o ato há poucos minutos.
— Uns dez, talvez?
— Não posso precisar. Mas com certeza não mais do que isso.
— Então, se dermos dez minutos para o intervalo, o coronel teria estado ausente vinte minutos?
— Sim... É possível.
Terminara a entrevista. Saiu Moriarty, e Vance recostou-se na cadeira, meditativo.
— Que extraordinária coincidência! — comentou ele. — O Teatro Piccadilly fica pertinho da casa de Benson, é só dobrar a esquina. Compreende a situação, Markham?... O coronel convida um vereador para as "Loucuras da Meia-Noite", e toma um camarote perto de uma das saídas para o corredor. Pouco depois da meia-noite, ele abandona o camarote, sai furtivamente pelo corredor, corre à casa de Benson; bate, entra, mata o homem e corre de volta ao teatro... Vinte minutos teriam sido mais que suficientes.
Markham endireitou-se na cadeira, mas não fez comentário algum.
— Agora, vamos às circunstâncias que indicam e confirmam os fatos... Miss St. Clair disse-nos que o coronel perdera muito dinheiro com as manipulações de Benson na Bolsa, e acusava-o de perversidade. Não falava com Benson já há uma semana: logo, havia entre eles uma desinteligência. Viu Miss St. Clair no Marseilles com Benson, e, sabendo que ela sempre se recolhe a casa à meia-noite, escolhe os trinta minutos depois como hora propícia; poderia esperar para mais tarde, mas preferiu escapulir do teatro. Sendo oficial do exército, deve possuir uma pistola Colt 45; e deve ser também bom atirador. Estava ansioso para que você prendesse alguém — fosse quem fosse, parece, e até lhe telefonou para indagar disso. Era uma das pouquíssimas pessoas neste mundo a quem Benson receberia vestido como estava. Conhecia-o intimamente há quinze anos, e a Sra. Platz viu uma vez o patrão tirar a peruca e mostrar-lha. Ainda mais: devia conhecer os costumes da casa, pois é provável que lá tivesse dormido muitas vezes, no tempo em que iniciava seu camarada na vida noturna de Nova York... Que me diz a tudo isto?
Markham levantara-se e passeava no salão, com os olhos quase fechados.
— Então era por isso que você estava tão interessado no coronel — a indagar de todo o mundo se o conhecia, e a convidá-lo para almoçar?... De onde lhe veio a idéia de que ele é o culpado?
— Culpado! — exclamou Vance. — Aquele velho nulo e tolo, culpado! Realmente, Markham, é absurda essa idéia... Estou certo de que ele foi ao lavatório naquela noite para pentear as sobrancelhas e arranjar a gravata. Sentado, como estava, em um camarote, as artistas podiam vê-lo do palco, não é?
Markham parou abruptamente. Ficou vermelho e seus olhos relampejaram. Mas, antes que pudesse falar, Vance, sereno e indiferente à sua cólera, continuou:
— Na verdade, fui de uma felicidade extraordinária! Ele é realmente a espécie de velho chichisbeu que vai para a frente do espelho a se narcisar — até julguei que... Mas palavra! Markham, adiantamos muito esta manhã, apesar de você estar tão aborrecido... Pois agora tem cinco pessoas diferentes a quem pode, com um pouco de habilidade jurídica, imputar o crime. De qualquer maneira, pode acusá-las. Em primeiro lugar, — continuou, meditativo, — vem Miss St. Clair. Você estava quase certo de que ela tinha cometido o delito, e disse ao major que tudo estava pronto para prendê-la; lançava assim às urtigas minha demonstração da altura do assassino, sob o fundamento de que, sendo racional e concludente, nenhum tribunal a levaria em conta. E tenho certeza de que o juiz concordaria com esse parecer... Em segundo lugar, dei-lhe o capitão Leacock. Vi-me obrigado a recorrer à força para impedi-lo de prender o rapaz. Tinha você contra ele a sua deliciosa confissão; e, como ainda lhe.restassem dúvidas, veio ele próprio em seu auxílio, feliz de ser reconhecido culpado. Apresentei-lhe, em terceiro lugar, Leandro, o Formoso. Estava munido de mais provas, contra este, do que em qualquer dos outros casos — uma verdadeira riqueza, em matéria de provas: era só o embaraço da escolha. E qualquer juiz o condenaria com prazer — eu mesmo, quando mais não fosse, pelo seu vestuário. Em quarto lugar, aponto com orgulho para a Sra. Platz — outro caso perfeito, cheio de fios condutores, e inferências, e mil coisas. Quinto, trago-lhe o coronel, a respeito de quem acabo de lhe dar provas comprometedoras; e poderia elaborar, se tivesse mais tempo, um trabalho mais impressionante...
Calou-se, sorrindo francamente, e continuou, amável:
— Note, Markham, que cada membro deste quinteto reúne todos os requisitos exigidos para o culpado presuntivo; cada um deles preenche perfeitamente todas as condições legais: hora, lugar, ocasião, meios, motivo, comportamento... A única coisa que lhes falta é serem culpados. Isso é, concordo, muito inconveniente — mas é assim... Agora, se todas as pessoas contra quem há suspeita são inocentes, que fazer? Que maçada!
Tornou a pegar no relatório.
— Nada a fazer, positivamente, senão continuar a examinar estes papéis...
Eu não podia compreender qual era o fim das suas digressões, aparentemente sem importância nenhuma. Markham, também, estava intrigado; mas nenhum de nós duvidou, por um momento sequer, de que ele procedia metòdicamente.
— Vamos ver, — continuou Vance. — Segue-se, pela ordem, o major. Que diria você de um reconhecimento? Não nos levaria muito tempo: mora perto daqui, e toda justificação se baseia em uma declaração do porteiro que atende à noite no edifício onde está o seu apartamento. Vamos!
— Sabe você se o rapaz está lá agora?
— Sim. Telefonei há pouco.
— Mas isso é um contra-senso!
Vance, levando Markham pelo braço, dirigia-se alegremente para a porta, levando-o depressa.
— Oh! Indubitavelmente! — acrescentou. — Mas tenho-lhe dito tantas vezes, meu amigo, que você leva a vida muito a sério!...
Markham, protestando energicamente, queria voltar, e esforçava-se por desprender o braço, mas foi em vão: Vance tinha decidido ir com ele, e depois de acalorada discussão acabou por ceder.
— Já me vou fartando destas mistificações, — resmungou ele, quando íamos no carro, a caminho.
— E eu, — disse Vance, — já estou farto!
XXIII
EXAMINANDO UM ÁLIBI
(Quinta-feira, 20 de junho — 10h30 da manhã)
O major Benson morava em um edifício de apartamentos, não muito grande, situado na Rua 46, entre a Quinta Avenida e a Sexta. Denominava-se "Armas de Chatham", e só alojava celibatários. A entrada, sob uma fachada simples, mas imponente, era ao nível da rua, e apenas dois degraus davam acesso ao primeiro pavimento. A porta da frente abria para um estreito corredor, tendo à esquerda uma salinha, como um beco. Ao fundo, via-se o elevador, e ao lado deste, por baixo da escada, a mesa telefônica.
Quando chegamos, dois rapazes de uniforme estavam de serviço: um recostado à porta do elevador, outro sentado à mesa telefônica.
Vance deteve Markham à entrada.
— Na noite de 13 estava um destes dois rapazes de serviço, segundo me informaram. Indague qual foi, e intimide-o para que obedeça, dando-lhe a conhecer sua qualidade de Promotor. Depois deixe-o comigo.
Markham, a contragosto, entrou no corredor. Depois de algumas perguntas, levou um deles para a sala de recepção, e explicou-lhe quem era(*).
(*) O rapaz era Jack Prisco; morava na Rua Kelly, 621.
Começou Vance seu interrogatório com o ar confiante de quem não tem dúvida alguma de que aquele a quem interroga conhece perfeitamente o assunto.
— A que hora voltou o major na noite em que o irmão dele foi assassinado?
O moço esbugalhou os olhos.
— Ele chegou mais ou menos às 11 horas, logo que acabou o espetáculo, — respondeu após leve hesitação.
(Para economizar espaço, escrevi o resto em forma de diálogo.)
VANCE — Falou com você, não?
RAPAZ — Sim, senhor. Disseme que fora ao teatro, mas que o espetáculo era péssimo, e que tinha uma terrível dor de cabeça.
VANCE — Como pode você lembrar tão bem o que ele lhe disse há uma semana?
RAPAZ — Porque nessa noite o irmão dele foi assassinado!
VANCE — E esse crime o impressionou tanto, que guardou na memória todos os incidentes da noite, em relação ao major?
RAPAZ — Decerto — ele era irmão do moço que mataram.
VANCE — Quando o major entrou, à noite, disse alguma coisa acerca da data?
RAPAZ — Não, isto é, disse que tivera pouca sorte com o espetáculo, por ser dia 13.
VANCE — Disse mais alguma coisa?
RAPAZ — (fazendo uma momice). Disse, sim senhor, que para mim o dia 13 era de sorte, e deu-me todo o troco que tinha no bolso — níqueis e uma moeda de cinqüenta cents.
VANCE — E quanto somava tudo?
RAPAZ — Três dólares e 45 cents.
VANCE — Depois ele foi para o quarto?
RAPAZ — Sim, senhor, subiu no elevador; ele mora no terceiro andar.
VANCE — E tornou a sair depois disso?
RAPAZ — Não, senhor.
VANCE — Como o sabe você?
RAPAZ — Eu o teria visto, porque estive trabalhando, toda a noite, ou atendendo ao telefone, ou no elevador. Não poderia sair sem que eu o visse.
VANCE — E você esteve sozinho no trabalho toda a noite?
RAPAZ — Depois das dez horas, nunca fica mais de um porteiro.
VANCE — E não há outro meio de sair de casa, senão pela porta da frente?
RAPAZ — Não, senhor.
VANCE — Quando tornou a ver o major?
RAPAZ — (depois de refletir um momento) Chamou para pedir um pedaço de gelo, e eu levei-lhe.
VANCE — A que horas?
RAPAZ — Mas... não sei exatamente... Sim! Já sei! Era meia hora depois da meia-noite.
VANCE — (sorrindo) Por acaso, ele perguntou as horas?
RAPAZ — Sim, senhor, perguntou. Pediu-me que visse no relógio da sala.
VANCE — Conte-me como foi isso.
RAPAZ — Foi assim: eu levei o gelo; ele já estava na cama, e pediu-me que o deixasse no seu jarro, na sala. Quando eu estava ali, pediu-me que visse a hora no relógio da lareira, porque o seu relógio de bolso estava parado e queria acertá-lo.
VANCE — Que mais disse ele?
RAPAZ — Oh! Pouca coisa mais: que não tocasse a sua campainha, fosse quem fosse que o procurasse. Que queria dormir, e não queria que o acordasse.
VANCE — Ele insistiu nisso?
RAPAZ — Muito. Foi ordem terminante.
VANCE — E disse ainda alguma outra, coisa?
RAPAZ — Não. Disse apenas "boa noite" e apagou a luz, e eu desci.
VANCE — Que luz apagou ele?
RAPAZ — A do seu quarto.
VANCE — Podia você ver para dentro do quarto, estando na sala?
RAPAZ — Não. O quarto fica longe.
VANCE — Então como sabe que a luz se apagou?
RAPAZ — É que a porta estava aberta, e a luz refletia na sala.
VANCE — E, quando saiu, você passou pela porta do quarto?
RAPAZ — Certamente, tinha de passar por ali.
VANCE — E a porta estava ainda aberta?
RAPAZ — Sim, senhor.
VANCE — Onde se achava o major, quando você entrou?
RAPAZ — Na cama.
VANCE — Como o sabe?
RAPAZ — (meio irritado) Porque o vi!
VANCE — (depois de uma pausa) Está bem certo de que ele não tornou a descer?
RAPAZ — Eu lhe disse, senhor, que o veria se ele tivesse descido...
VANCE — Não podia ele ter descido enquanto você tinha o elevador em cima, sem que o visse?
RAPAZ — Certamente que podia. Mas eu não subi com o elevador, depois que levei o gelo ao major, senão ali pelas duas e meia, quando o Sr. Montagu se recolheu.
VANCE — Então não subiu com o elevador desde que levou o gelo ao Major Benson, até o regresso do Sr. Montagu?
RAPAZ — Não, senhor, não levei ninguém.
VANCE — E não saiu da portaria durante esse tempo?
RAPAZ — Não. Estive sentado aqui todo o tempo.
VANCE — Então, a última vez que viu o major, ele estava na cama, aos trinta minutos do dia treze.
RAPAZ — Sim, não o tornei a ver senão de manhã cedo, à hora em que uma senhora (*) telefonou, dizendo que seu irmão tinha sido assassinado. Ele desceu, uns dez minutos depois, e saiu.
(*) Trata-se, evidentemente, da Sra. Platz.
VANCE — É só. Agora, não abra a boca a quem quer que seja, sobre a nossa estada aqui, senão você se arrependerá, compreende? Pode voltar ao seu trabalho, — concluiu, dando-lhe um dólar.
Quando o rapaz saiu, Vance, deitando a Markham um olhar aliciante, disse-lhe:
— E agora, meu velho amigo, para melhor proteger a sociedade, e pelos mais altos interesses da justiça, e para benefício de muita gente, e pro bono publico, e tudo o mais, é preciso que você ainda uma vez vá de encontro aos seus próprios princípios — ou como melhor você achar, em termos jurídicos. Em linguagem vulgar: quero dar uma busca no apartamento do major.
— Mas para quê? — protestou Markham em altas vozes. — Você perdeu o juízo? O testemunho deste rapaz é irretorquível... Talvez eu seja pobre de espírito, mas conheço quando uma testemunha diz a verdade!
— E esta disse a verdade, — declarou Vance serenamente. — E é exatamente, por isso que quero ir lá acima. Venha, meu caro Markham... Não há perigo de o major chegar de surpresa a esta hora... Ademais, — continuou, afetuosamente, — você me prometeu seu auxílio, não se lembra?
Foram veemente, mas inúteis, os protestos de Markham — porque Vance foi não menos veemente na insistência; e poucos minutos depois, entrávamos, com o auxílio de uma gazua, no apartamento do major Benson.
A única entrada era uma porta que do hall levava por um corredor estreito em linha reta até à sala, no outro extremo. À direita desse corredor, perto da entrada, ficava uma porta abrindo para o quarto de dormir.
Vance foi direto a sala, que ficava ao fundo do corredor. À direita, via-se a chaminé, com uma prateleira, sobre a qual pousava um relógio de acaju. À esquerda da chaminé, no canto da parede, uma mesinha com um serviço de prata para água gelada — a jarra e seis taças.
— Aqui temos, — disse Vance, — o prestativo relógio e a jarra da prata em que o porteiro deitou o gelo. Imitação de prata Sheffield.
Foi até à janela e olhou para o pátio, que ficava a vinte e cinco ou trinta pés abaixo, observando:
— Não foi pela janela que o major escapou. Voltou-se e ficou um momento a olhar para o corredor.
— A porta estava aberta; logo, era fácil ao rapaz ver na parede branca e lustrosa do corredor o reflexo da luz do quarto.
Entrou depois neste; em frente à porta, uma cama pequena, com dossel, e ao lado, sobre a mesinha de cabeceira, uma lâmpada elétrica. Sentou-se na beira da cama, olhou ao redor, e acendeu e apagou a lâmpada. Depois, voltando-se para Markham:
— Compreende como o major pôde sair sem ser visto pelo rapaz?
— Por levitação, suponho...
— Vem a dar na mesma... — replicou Vance. — É diabolicamente engenhoso, também... Escuta, (Markham: m?ia hora depois da meia-noite, o major chamou e pediu gelo. O rapaz trouxe-lhe e, ao entrar olhou para o quarto, cuja porta estava aberta, e viu o major já deitado. Este lhe disse que pusesse o gelo na jarra da sala. Para isso tinha de atravessá-la e ir até onde estava a mesinha; pediu-lhe então que visse que horas eram no relógio da chaminé: trinta minutos depois da meia-noite. Observou que não queria ser perturbado no seu descanso, deu boa noite, apagou esta lâmpada, saltou da cama — estava vestido, é claro — e saiu àgilmente pelo vestíbulo antes que o rapaz tivesse tempo de despachar o gelo e voltar ao corredor. Desceu a escada correndo e, antes que o rapaz voltasse com o elevador, estava já na rua. Quando passou pela porta do quarto, ao voltar, não podia o rapaz ter visto se o major estava ou não na cama, ainda que tivesse olhando para dentro, porque já estava às escuras. Não é muito engenhoso mesmo?
— Tudo é possível, não há dúvida, mas já lhe falha a fantasia para explicar a volta.
— Pois isso é o mais simples do plano. Provavelmente o major esperou na entrada de alguma casa próxima, até que algum inquilino se recolhesse. Disse o rapaz que o Sr. Montagu voltou pelas duas e meia. Então o major introduziu-se sorrateiramente, quando viu o elevador partir, e subiu pela escada.
Markham, sorrindo pacientemente, nada disse.
— Você percebe o trabalho que teve o major para estabelecer a data e a hora gravando-as no espírito do rapaz: "Um espetáculo sem interesse — dor de cabeça — dia aziago..." Por que aziago? Era dia 13, não o esqueça. Contudo, para o rapaz, foi de sorte: uma mancheia de dinheiro — tudo prata. Singular meio de suborno, pois não? Um dólar seria mais depressa esquecido.
Pelo rosto de Markham passou uma sombra, mas retrucou na mesma voz indulgente de sempre:
— Prefiro seu libelo contra a Sra. Platz.
— Ah! Mas ainda não acabei. Tenho esperança de encontrar a arma, sabe?
Olhava-o agora Markham com um ar de incredulidade divertida.
— Isso seria sem dúvida um fator importante... Mas espera encontrá-la, deveras?
— Sem nenhuma dúvida, — afirmou Vance alegremente, enquanto abria as gavetas do toucador.
— Nosso anfitrião ausente, — continuou ele, — não deixou a pistola em casa de Alvino, e era muito prudente para jogá-la fora... Como serviu na última guerra, e é major, é de esperar que a tivesse; de mais a mais, muitas pessoas devem saber que ele possuía uma arma dessas. E, se é inocente — como espera que o acreditamos — por que não a conservaria em casa e no lugar habitual? A falta da arma, sim, seria mais comprometedora do que a presença dela. Também entra aqui um fator psicológico muito interessante. Um inocente, receoso de ser suspeitado, tê-la-ia ocultado, ou deitado fora, como o capitão Leacock, por exemplo. Mas o criminoso, que quer parecer inocente, tornaria a colocá-la no lugar em que estava antes do crime. Tudo se reduz, portanto, — continuou, enquanto investigava o toucador, — tudo se reduz a descobrir qual era a morada antiga da arma do major... Não é aqui, — disse, fechando a última gaveta.
Abriu um estojo de violino que estava aos pés da cama.
— Nem aqui, — murmurou com indiferença. — Resta o guarda-roupa: é o único lugar onde pode estar.
Atravessou o quarto, abriu a porta do guarda-roupa e acendeu a lâmpada. Na prateleira superior, bem à vista, estava um cinturão do exército, com um coldre bojudo. Vance pegou nele com extrema delicadeza e veio colocá-lo sobre a cama, junto à janela.
— Aqui tem você, velho camarada, — anunciou alegremente, curvando-se sobre o cinto, que examinava atentamente.
— Queira tomar nota de que todo o cinturão e o coldre — com exceção unicamente da virola deste — estão cobertos de uma camada espessa de pó. A virola está relativamente limpa, o que demonstra que foi aberto recentemente... Não é conclusivo, de certo; mas você aprecia pistas, Markham...
Tirou a pistola do coldre, com muito cuidado.
— Note, também, que a própria arma está sem pó... Presumo que a limparam há pouco tempo.
Introduziu uma ponta do lenço no tambor e, retirando-a, ergueu-a.
— Vê? Até o interior do tambor está imaculado... E aposto todos os meus Cézanne, contra um diploma de doutor em Direito, que não lhe falta uma só bala.
Extraiu as balas e espalhou-as sobre a mesinha, onde ficaram formando uma fileira.
Eram sete — o número completo.
— Apresento-lhe de novo, Markham, uma de suas tão apreciadas pistas. Os cartuchos que ficam por longo tempo em um tambor tornam-se levemente embaçados, porque o fecho não é hermético. A caixa de balas, porém, é perfeitamente fechada, e ali as balas conservam o brilho por muito mais tempo. Observe que esta bala, — continuou, apontando para a primeira que rolara do tambor — a última que foi metida no cilindro, está um pouco mais brilhante do que as suas companheiras. A dedução é — você é um adepto das deduções, não é verdade? — que esta bala é mais nova, e foi posta no tambor há pouco tempo. E, olhando Markham nos olhos, continuou:
— Ela foi posta ali para substituir aquela que o capitão Hagedorn levou.
Markham ergueu a cabeça, sacudindo-a, como se quisesse arremessar para longe uma fascinação, e sorriu, embora com esforço.
— Pois ainda penso que a acusação contra a Sra. Platz é a sua obra-prima.
— Meu quadro do major está ainda apenas em esboço, — respondeu Vance. — As pinceladas reveladoras ainda estão por fazer. Mas, primeiro, vejamos: como sabia o major que seu irmão estaria em casa aos trinta minutos da madrugada de 13? É que ele ouvira Alvino convidar Miss St. Clair para jantar — lembre-se de que Miss Hoffman contou que ele escutava às portas... E também ouviu a moça explicar que infalivelmente à meia-noite se retiraria. Quando eu disse ontem, depois que saímos de casa de Miss St. Clair, que uma frase dela nos ajudaria a encontrar o culpado, referia-me à sua declaração de que era à meia-noite que invariavelmente se recolhia. O major sabia, portanto, que Alvino estaria em casa aos trinta minutos, e além disso estava seguro de que não encontraria ali nenhuma outra pessoa. De qualquer modo, tê-lo-ia esperado, não?... Poderia ele obter uma audiência imediata do irmão, assim em traje caseiro? — Sim. Bateu à janela: o outro reconheceu-lhe a voz, sem nenhuma sombra de dúvida, e imediatamente o recebeu. Alvino não se preocupava com a indumentária em frente do irmão, e não via mal em recebê-lo sem dentes nem cabeleira... Terá o major a estatura requerida? — Tem. Fiquei, de propósito, a seu lado no gabinete do Tribunal, Markham: tem mais ou menos cinco pés e dez polegadas e meia...
Markham contemplava silencioso a pistola descarregada. A voz de Vance era completamente diferente de quando ele enunciava casos hipotéticos contra supostos criminosos, e a Markham não passara despercebida a alteração.
— Vamos agora às jóias, — continuou ele. — Exprimi uma vez a crença de que, se descobríssemos o aval dado por Pfyfe em garantia da promissória, teríamos posto a mão sobre o assassino. Pensava então que o major tinha consigo as jóias; quando, mais tarde, Miss Hoffman contou que ele lhe pedira para silenciar sobre o estojo azul, adquiri a certeza disso. Alvino levou-as para casa naquela tarde, e é fora de dúvida que o major o sabia. E creio até que isso influiu na sua decisão de acabar com a vida do irmão naquela noite: cobiçou essas bagatelas. Markham. Resta apenas encontrá-las, — continuou, levantando-se e dirigindo-se no seu andar cadenciado para a porta. — O assassino carregou-as consigo; elas não podiam ter desaparecido de nenhum outro jeito. Portanto, estão neste apartamento... Se o major as levasse para o escritório, alguém as veria; e, se as depositasse no cofre de algum banco, o funcionário do banco poderia mais tarde recordar esse episódio. Além disso, a mesma psicologia aplicada à arma se adapta às jóias: o major agia sob a presunção de sua inocência; e, de fato, as bugigangas estavam mais seguras aqui do que algures. E ficava tempo de sobra para dispor delas quando tudo serenasse... Venha comigo um momento, Markham. É doloroso, eu sei; e seu coração é muito fraco para um anestésico.
Markham seguiu-o pelo corredor, sob uma impressão de estupor. Grande foi a piedade que me inspirou aquele homem, porque já não havia dúvida alguma de que Vance falava seriamente, ao demonstrar a culpa do major. Na verdade, sempre me pareceu que Markham suspeitava qual a razão por que Vance lhe pedira para averiguar o emprego do tempo do major; e que sua oposição fora devida mais ao grande receio do resultado do que a impaciência diante dos métodos irritantes do outro. Não é que ele fosse capaz de fugir à realidade, a despeito mesmo da velha amizade que o ligava ao major; mas ele se debatia — agora o vejo — contra o inevitável das circunstâncias e esperava contra toda a esperança, fazia empenho de se convencer de que tinha interpretado mal as palavras de Vance, e acreditava que, resistindo com vigor aos próprios passos, poderia alterar o curso dos acontecimentos.
Vance dirigiu-se à sala e parou um momento a examinar os móveis, enquanto Markham permanecia à porta, olhando para ele, os lábios contraídos, as mãos metidas nos bolsos.
— Podíamos mandar um perito esquadrinhar o apartamento, palmo a palmo, — observou Vance, — mas acho desnecessário. O major é um sujeito arrojado e astuto: atestam-no a vasta fronte quadrada, o olhar dominador, o corpo ereto e o ventre côncavo. É rígido em todas as operações mentais. Como o ministro D..., de Poe, acharia pueril a idéia de ocultar as jóias em algum canto obscuro, e nem lhe ocorreu a intenção de escondê-las; apenas resguardá-las onde não estivessem ao alcance da vista. Para isso basta uma fechadura, não? E, como no quarto não havia esconderijo dessa espécie, vim procurá-lo aqui.
Foi até uma pequena secretária de pau-rosa e experimentou todas as gavetas, mas estavam abertas; aberta também uma papeleira espanhola, ao pé da janela.
— Markham, — disse ele, desapontado, — preciso de encontrar ao menos uma gaveta fechada a chave!
Esquadrinhou de novo a sala, e quando já ia voltar ao quarto, desenganado, deu com uma charuteira circassiana, de nogueira, meio oculta sob uma pilha de revistas, na prateleira inferior da mesa de centro. Deteve-se bruscamente, pegou na caixa, e tentou abri-la. Estava fechada.
— Vejamos, — murmurou. — Que fuma o major?... Parece-se que é Romeo y Julieta Perjeccionados, mas estes charutos não são tão preciosos que precisem de ser guardados debaixo de chave...
Pegou numa faca de papel, de bronze, que estava sobre a mesa, e forçou a fechadura, metendo-a numa fenda.
— Você não pode fazer isso! — gritou Markham. E a voz traía-lhe a aflição e reprovação por aquele procedimento.
Mas, antes que ele pudesse alcançar Vance, ouviu um estalido, e a tampa saltou. Dentro aparecia um estojo de jóias de veludo azul.
— Ah! "Jóias mudas, mais eloqüentes do que as palavras!" — exclamou Vance. Markham ficou a olhar para a caixa, com o rosto contraído por trágica aflição. Depois voltou-se devagar e caiu pesadamente em uma poltrona.
— Meu Deus! — murmurou ele. — Não sei no que hei de acreditar!
— Nesse ponto, — retorquiu Vance, — você está nas mesmas condições de todos os filósofos. Mas você estava pronto a crer na culpa de meia dúzia de pessoas inocentes; por que iria agora poupar o major, que é criminoso?
Falava em tom desdenhoso, mas iluminava-lhe o olhar uma luz curiosa e imperscrutável, que desmentia a voz. Veio-me então ao espírito a observação de que, a despeito da amizade indissolúvel que unia aqueles dois homens, eu jamais os ouvira trocar uma só palavra de afeição ou sequer de solidariedade, entre si.
Markham, com os cotovelos apoiados nos joelhos, curvado, a cabeça entre as mãos, era a imagem do desânimo.
— Mas o motivo? — indagou afinal. — Um homem não mata seu irmão por um punhado de jóias!
— Certamente que não, — disse Vance. — As jóias foram um mero acréscimo. Havia um motivo imperioso, fique certo disso. Creio que, quando vier o relatório do perito que foi examinar a escrita, tudo — ou pelo menos uma boa parte — nos será revelado.
— Foi por isso que você quis fazer o exame dos livros? Venha então, — disse Markham, levantando-se resolutamente. — Quero deslindar tudo já.
Vance não se moveu logo. Examinava atentamente um castiçalzinho antigo, de desenho oriental, que estava sobre a lareira.
— Uma excelente cópia! murmurou ele.
XXIV
A PRISÃO
(Quinta-feira, 20 de junho — meio-dia)
Deixando o apartamento, Markham levou a pistola e a caixa de jóias. Foi à farmácia da esquina da Sexta Avenida e telefonou a Heath, para que fosse ter com ele imediatamente ao seu gabinete, e levasse o capitão Hagedorn. Telefonou também a Stitt, o perito, dizendo-lhe que trouxesse o relatório o mais depressa possível.
— Já deve ter observado, — dizia Vance, quando seguíamos para o Tribunal, — a grande vantagem do meu método sobre o seu. Sabendo desde o princípio quem cometeu um crime, não nos deixamos desviar por aparências, ao passo que, sem esse conhecimento prévio, a gente pode ser ludibriada por um astucioso álibi, por exemplo... Pedi-lhe para verificar o emprego do tempo de tanta gente, porque sabia que o major era o criminoso, e havia de tratar de preparar um engenhoso álibi.
— Mas por que requereu tudo aquilo? E para que gastar tempo tentando refutar o do coronel Ostrander?
— E que probabilidade teria eu de obter o do major, se não incluísse seu nome subrepticamente na lista dos outros?... Se eu lhe pedisse para examinar o do major primeiro, você teria recusado. Preferi começar com o do coronel, para despistar — e foi uma sorte essa escolha. Sabia que se eu pudesse utilizar um dos outros, seria mais fácil que você me ajudasse a examinar o do major.
— Mas, se sabia desde o princípio que o major era o criminoso, por que, meu Deus! Por que não me disse, poupando-me toda esta ansiedade?
— Não seja ingênuo, meu velho, — retrucou Vance. Se eu tivesse acusado o major desde o começo, você me teria mandado prender por scandalum magnatum e difamação. Foi somente enganando-o constantemente sobre a culpa do major, foi despistando-o, que eu consegui convencê-lo agora. Contudo, nem uma só vez lhe menti. Repelia constantemente suas idéias, apontando-lhe fatos significativos, na esperança de que você alcançasse a luz por si mesmo; mas você não queria saber de minhas insinuações, ou interpretava-as mal, com uma perversidade irritante.
Markham esteve calado por algum tempo. Depois, respondeu:
— Vejo aonde quer chegar... Mas por que me sugeriu pistas falsas, para depois abandoná-las?
— É que você estava preso, de corpo e alma, à prova circunstancial. Foi unicamente mostrando-lhe que isso não o levaria ao fim desejado, que consegui por o major em evidência. Não tínhamos prova alguma — e ele naturalmente sabe por quê... Ninguém se lembraria sequer de suspeitá-lo: o fratricídio foi sempre considerado, desde os tempos de Caim, como uma monstruosidade — uma coisa inconcebível. Com todos os artifícios imagináveis, você defendia o terreno palmo a palmo, fazendo toda a sorte de objeções, para neutralizar meus humildes esforços... Reconheça, Markham, como bom camarada, que se não fora a minha teimosia, ninguém jamais suspeitaria do major.
— E, ainda agora, há coisas que não chego a compreender. Por que, por exemplo, protestou ele com tanto empenho contra a minha idéia de prender o capitão?
— Você é de uma transparência incrível, Markham! Nunca se lembre de praticar um crime, porque seria imediatamente preso. Pois não vê que o major se tornava ainda mais inatacável, se, em vez de se desinteressar do assunto, defendesse um dos que você acusava? Nem tinha melhor e mais seguro meio de afastar de sua pessoa quaisquer suspeitas. De mais a mais, sabia bem que o seu protesto não o demoveria do cumprimento do dever, porque você é um camarada correto.
— Contudo, ele me deu a entender, uma ou duas vezes, que suspeitava de Miss St..Clair...
— É muito astuto e aproveita-se das oportunidades. O major, inquestionavelmente, planejara o crime de modo que as suspeitas recaíssem sobre o capitão. Leacock ameaçara publicamente seu irmão por causa de Miss St. Clair; e a dama ia jantar sozinha com Alvino. No dia seguinte era este encontrado morto, com uma bala de Colt do exército na cabeça; quem, a não ser o capitão, podia ser acusado? O major sabia que o capitão morava só, e que lhe seria difícil apelar para um álibi... Vê agora, Markham, a astúcia que empregou, indicando Pfyfe como fonte de informações? Sabia que Pfyfe, ao ser interrogado, contaria logo a ameaça ouvida. E não esqueça que a alusão a Pfyfe foi, na aparência, resultado de uma reflexão tardia: queria que parecesse casual. Diabòlicamente astucioso, não?
Mergulhado em profunda tristeza, Markham o escutava, sem replicar.
— Vejamos a oportunidade de que tirou vantagem, — continuou Vance. — Você transtornou-lhe os planos, dizendo que sabia quem jantara com Benson, e que já possuía provas bastantes para um mandado de prisão preventiva; isso chamou-lhe a atenção. Ele sabe que, nesta muito cavalheiresca cidade, nenhuma mulher bonita seria acusada de um assassinato, seja qual for a prova contra ela; por instinto, preferia que não se punisse ninguém, por aquele crime. Assim, desejava que você dirigisse suas suspeitas para a moça — e manejou habilmente, fingindo sempre que hesitava em envolvê-la no caso.
— E foi por isso que você me sugeriu que eu lhe deixasse entrever que me mandara examinar os livros da firma por causa dela?
— Exatamente!
— E a pessoa a quem ele na verdade protegia...
— Era a si próprio. Mas queria fazer você crer que era a Miss St. Clair.
— Se você estava certo de que era ele o culpado, por que meteu o coronel Ostrander no caso?
— Na esperança de que ele nos fornecesse mais lenha para a fogueira do major. Eu sabia que ele conhecia Alvino e toda a sua camarilha; e também que era um bisbilhoteiro emérito, que forçosamente farejaria a inimizade entre os irmãos Benson, e suspeitaria da verdade. Também me convinha lançar uma vista de olhos sobre Pfyfe, para afastar qualquer suspeita, por mais remota que fosse.
— Mas nós já sabíamos o bastante a respeito de Pfyfe...
— Oh! Não me refiro às indicações materiais; queria saber alguma coisa do seu caráter — da psicologia, e principalmente da personalidade do jogador. O crime revelava um jogador calculista e de sangue-frio; e só um homem desse tipo poderia tê-lo cometido.
As teorias de Vance, aparentemente, já não interessavam tanto o Promotor.
— Você acreditou quando o major lhe disse que o irmão lhe mentira acerca das jóias?
— O velhaco do Alvino provavelmente nunca falou nelas a Antônio. O ouvido à escuta, na porta, por ocasião de uma visita de Pfyfe, teria sido a sua fonte de informações... E por falar nas indiscrições do major, foi isso mesmo que me sugeriu um motivo para o crime. É seu perito Stitt quem nos vai esclarecer este ponto.
— De acordo com a sua teoria, o crime foi concebido precipitadamente.
Esta declaração de Markham, envolvia na verdade uma pergunta.
— Os detalhes da execução foram concebidas apressadamente, — corrigiu Vance. — É fora de dúvida que o major pensava há algum tempo em se desembaraçar do irmão. O que não decidira ainda era o meio e o momento. Teria forjado e rejeitado uma dúzia de planos. No dia 13, porém, apresentou-se a ocasião favorável: todas as condições ajustavam-se ao seu desígnio. Ouviu a promessa de Miss St. Clair de ir jantar com Alvino; logo, sabia também que o irmão estaria só aos trinta minutos e, mais, que se aproveitasse essa hora as suspeitas recairiam sobre Leacock. Viu Alvino pegar no estojo de jóias — outra circunstância providencial. O momento propício, que há tanto tempo almejava, chegara afinal. Faltava apenas preparar o álibi a alegar mais tarde, e combinar o modus operandi. Já lhe demonstrei como procedeu.
Markham, depois de alguns minutos de meditação, ergueu a cabeça.
— Você quase me convenceu. Mas, seja como for, eu examinei o caso e, em verdade, as provas jurídicas são muito escassas.
— Seus tolos tribunais não me interessam, — retrucou Vance, encolhendo os ombros, — e menos ainda suas ineptas regras. Mas, uma vez que está convencido, não me poderá acusar de faltar ao compromisso, não é verdade?
— É verdade, — assentiu Markham tristemente, com os lábios contraídos. — Você executou a sua parte da tarefa, eu farei o que me toca...
Heath e o capitão Hagedorn esperavam no gabinete. Markham cumprimentou-os com a habitual reserva, secamente, até. Pôs-se ao trabalho imediatamente, prosseguindo na dura tarefa com a força de vontade que o caracterizava no cumprimento do dever.
— Creio que afinal, sargento, pusemos a mão no homem. Sente-se, e inteirá-lo-ei do assunto daqui a pouco. Antes, porém, preciso de averiguar alguma coisa. Espere um momento.
— Examine esta arma, capitão, — disse ele ao perito, entregando-lhe a pistola do major Benson, — e diga-me se há algum meio de verificar se foi a que disparou contra Alvino Benson.
Hagedorn dirigiu-se lentamente para a janela. Largando a arma no peitoril, retirou dos bolsos do seu volumoso casaco vários instrumentos, que colocou ao lado da pistola. Depois, ajustando aos olhos uma lente de joalheiro, deu começo a uma série, que me pareceu interminável, de pesquisas no mecanismo. Abriu as chapas da coronha, puxou para trás o ferrolho e retirou a agulha. Moveu o pistão, desatarraxou o parafuso, e tirou fora a mola do coice. Pensei que ia desarmar toda a pistola, mas, ao que parece, queria apenas fazer penetrar a luz no cano, porque, feito isto, levou a arma até à janela e espiou para dentro durante cinco minutos, movendo-a lentamente para diante e para trás, de modo que o reflexo do sol batesse em diversos pontos do interior.
Afinal, sem uma palavra, reconstituiu lenta e cuidadosamente a arma. Depois, atirando-se sobre uma cadeira sem nenhuma atenção à postura, ali ficou a pestanejar lenta e pesadamente durante algum tempo.
— Digo-lhe, — disse depois, inclinando a cabeça para a frente e encarando Markham por cima dos óculos de aço, — que pode ser esta a arma. Não posso dizê-lo com certeza, mas no outro dia, quando examinei a bala, notei algumas marcas particulares, certos arranhões; e as riscas que se vêem nesta arma parecem coincidir com as da bala. Não estou certo, repito. Gostaria de examinar este cano com o meu helixômetro. (*)
(*) O helixômetro, soube-o mais tarde, é um instrumento que permite examinar todo o interior do cano de uma arma, por meio de um microscópio.
— Mas supõe que seja essa a arma? — insistiu Markham.
— Não posso afirmar, mas creio que sim. Contudo, posso estar enganado...
— Muito bem, capitão. Leve-a, então, e dê-me o resultado assim que a tiver examinado.
— É esta a arma, tenho a certeza, — afirmou Heath, quando Hagedorn saiu. — Conheço este pássaro: ele não teria adiantado tanto, se não estivesse certo do que dizia... De quem é a arma, Sr. Markham?
— Di-lo-ei daqui a pouco, — respondeu Markham.
Lutava contra a evidência, retardando quanto podia a declaração da culpa do major, até que nenhuma escapatória mais lhe restasse.
— Desejo falar com Stitt, — continuou ele, antes de dizer qualquer coisa. — Está encarregado de examinar os livros da firma de Benson, e estará aqui dentro em pouco.
Enquanto esperávamos, Markham tentou ocupar-se de outros assuntos. Stitt entrou, cumprimentou gravemente o Promotor e Heath; depois, avistando Vance, dirigiu-lhe um sorriso aprovador, dizendo:
— O senhor deu-me uma boa tarefa! É que o senhor tinha posto o dedo na ferida. Se tivesse conservado o major afastado da casa, eu poderia trabalhar melhor. Enquanto ele ali esteve, vigiava-me todo o tempo.
— Fiz tudo quanto pude, — disse Vance, suspirando. — Você sabe, — continuou, dirigindo-se a Markham, — ontem, durante o almoço, eu estava pensando no meio de afastar o major do escritório enquanto o Sr. Stitt fazia a investigação; e quando soube da confissão de Leacock, achei o pretexto que buscava... Não é que eu desejasse ver o major — queria dar mão livre ao Sr. Stitt.
— Que encontrou? — indagou o Promotor, dirigindo-se a Stitt.
— Muita coisa! — respondeu ele, laconicamente.
Tirou do bolso uma folha de papel, que colocou em cima da mesa.
— Aqui tem um breve relatório... Segui os conselhos do Sr. Vance e lancei os olhos no livro de registro das existências e no borrador; também examinei a transferência dos depósitos. Não vi as entradas do Diário, concentrei minha busca sobre a atividade dos chefes da firma. Vi que o major Benson hipotecara grande quantidade de títulos que lhe tinham sido transferidos, como colateral, acidentalmente, e que especulara a fundo com ações da Bolsa. Perdeu.rudemente... Quanto, não posso dizê-lo.
— E Alvino? — perguntou Vance.
— Metia-se nas mesmas especulações, mas jogou com sorte. Ganhou muito dinheiro com poules da Columbus Motors, há poucas semanas; e guardou o dinheiro no seu cofre — pelo menos foi o que me disse a secretária.
— E, se o major Benson tinha a chave desse cofre, — lembrou Vance, — foi uma sorte para ele o irmão ter sido assassinado.
— Sorte? — retorquiu Stitt. — Isso o livrará da cadeia.
Quando o contador saiu, Markham ficou como uma estátua, os olhos fixos na parede oposta. Evaporava-se mais uma nuga em que baseava a esperança instintiva de ver provada a inocência do major.
O telefone tocou. Pegou vagarosamente no receptor e, enquanto escutava, vi transparecer-lhe nos olhos a resignação completa. Recostou-se na cadeira, como se se sentisse exausto.
— Era Hagedorn, — disse. — Foi aquela a arma. Depois, endireitou o corpo, e dirigiu-se a Heath:
— O dono da arma, sargento, era o major Benson.
O investigador, assombrado, esbugalhou os olhos e soltou um assobio. Pouco a pouco, porém, voltou-lhe ao rosto a expressão habitual de apatia.
— Isso não me surpreende.
Markham tocou a campainha, ordenando a Swacker:
— Chame o major Benson ao telefone, e diga-lhe... diga-lhe que vou efetuar uma prisão, e desejaria que ele viesse aqui imediatamente.
Creio que todos compreenderam a razão por que incumbiu Swacker do chamado. Fez depois um resumo da acusação contra o major, para auxiliar ainda a Heath; quando terminou, ergueu-se e pôs em ordem as cadeiras em frente à sua mesa.
— Quando vier o major, sargento, vou fazê-lo sentar-se aqui, — disse ele, indicando a cadeira que ficava em frente da sua. Você ficará à direita, e deve chamar Phelps — ou outro, se ele não estiver — para ficar à esquerda. Mas não façam qualquer movimento antes que eu dê o sinal. Então poderão prendê-lo.
Heath foi chamar Phelps, e quando se acomodaram ao pé da mesa Vance disse:
— Aconselho-o, sargento, a estar atento. No momento em que o major compreender o que o espera, cairá sobre você como um cego.
Heath sorriu, um sorriso de grosseiro desdém.
— Não é o primeiro que prendo, senhor Vance, embora lhe agradeça muito o conselho. Além disso, o major não é desta espécie de homens: é muito nervoso.
— Como quiser, — replicou Vance, com indiferença. — Mas está avisado. O major é prudente; tem afrontado grandes perigos, e perderia até o último dólar sem se perturbar. Mas, quando ele se vir encurralado, conhecendo que está derrotado, tudo o que reprimiu a vida inteira, perdendo o freio, explodirá. Porque o homem que vive sem emoções, sem paixões nem entusiasmos, há de atingir um dia ou outro o limite extremo. Em alguns a explosão se resolve pelo suicídio; mas o princípio é o mesmo: uma reação psicológica. O major não pertence ao tipo dos que recorrem à própria destruição — aí está por que digo que vai explodir...
— Pode ser que nós por aqui sejamos pouco entendidos em psicologia, — disse Heath com ironia, — mas conhecemos perfeitamente a natureza humana.
Vance, disfarçando um bocejo, acendeu um cigarro despreocupadamente. Notei, entretanto, que empurrou a cadeira para trás, junto à ponta da mesa, onde ambos nos tínhamos sentado, quando Phelps disse, com a sua voz áspera:
— Muito bem, Chefe. Creio que seus aborrecimentos chegaram ao fim, não? Pois eu estava seguro de que o amigo Leacock era o seu homem... Quem foi que desentranhou o major Benson?
— Ao sargento Heath e ao Departamento de Homicídios caberão todas as honras deste feito, — disse Markham. — Sinto muito, Phelps, mas nem a Promotoria nem nenhum auxiliar seu serão mencionados neste processo.
— Oh! — respondeu Phelps, filosòficamente. — É sempre assim na vida...
Caiu então sobre a sala pesado silêncio, até à chegada do major. Markham fumava, com ar abstrato. Releu várias vezes a folha de papel com as notas de Stitt. Foi até à geladeira, procurar o que beber. Vance abriu um livro de jurisprudência, que por acaso se achava em frente dele, e lia com sorriso divertido a sentença que dera um juiz do Oeste em um caso de suborno. Heath e Phelps, habituados a esperar, mal se moviam.
Entrou o major. Markham cumprimentou-o com exagerada indiferença, mexendo em uma gaveta para evitar o aperto de mão. Heath, entretanto, estava quase alegre. Aproximou a cadeira para o major sentar, e disse uma grande banalidade a respeito da temperatura. Vance fechou o livro e conservou-se sentado, tenso, os pés para trás.
Vinha o major cheio de amável e altiva cordialidade. Se suspeitou de alguma coisa, não o deu a perceber.
— Major, — disse Markham, com a sua voz grave, mas sonora, — desejo fazer-lhe algumas perguntas, se o senhor está disposto a responder.
— Estou às suas ordens, — respondeu o outro prontamente.
— O senhor possui uma pistola, não é verdade?
— Sim. Uma Colt automática, — retrucou o major, dirigindo a Markham um olhar interrogativo.
— Quando limpou e carregou essa arma pela última vez?
— Não me posso recordar exatamente, — disse o major, sem que um só músculo da face se movesse. — Limpei-a muitas vezes. Mas não a carreguei de novo depois que voltei da Europa.
— Emprestou-a a alguém há pouco tempo?
— Não, que me lembre.
Markham pegou em uma das notas de Stitt e examinou-a por um momento.
— Como tencionava satisfazer seus clientes, se eles tivessem reclamado seus depósitos inesperadamente?
O major respondeu, com um movimento de lábios desdenhoso:
— Ah! Então foi para isso que, sob o disfarce da amizade, mandou um homem examinar meus livros!
E subiu-lhe pelo pescoço uma onda de sangue, que o fez vermelho até às.orelhas.
— Não, eu não o mandei lá com esse propósito, — atalhou Markham, ferido com aquela acusação. — Mas hoje de manhã estive no seu apartamento.
— Então é também arrombador? — perguntou o major, rubro de cólera e com as veias da testa intumescidas.
— E encontrei as jóias da Sra. Banning... Como foram parar lá, major?
— Não é da sua conta o modo como foram lá ter, — respondeu ele, com a mesma voz firme e fria de sempre.
— Por que disse a Miss Hoffman que não me falasse nelas?
— Isso também não é da sua conta!
— Também não será da minha conta, — replicou vivamente Markham, — que a bala que matou seu irmão fosse disparada da sua pistola?
O major encarou-o firmemente e retrucou, sarcástico: — Isto é uma espécie de traição que me faz... convidar-me a vir aqui, com o fim de me prender, e fazer-me perguntas que podem comprometer-me, sem que eu suspeitasse de seu intento. Afinal, você não passa de um vilão!
Vance inclinou-se para a frente e disse-lhe em voz baixa, mas cortante como um látego:
— O senhor está louco! Não vê que ele é seu amigo, e faz-lhe essas perguntas no último e desesperado anseio de vê-lo inocente?
O major voltou-se para ele com veemência:
— Não se meta no que não é da sua conta, seu fresco.
— Oh, perfeitamente! — murmurou Vance.
— E quanto a você — e apontava com o dedo trêmulo para Markham — eu lhe farei pagar caro isto!...
E brotavam-lhe dos lábios pragas e vitupérios; tinha as narinas dilatadas, os olhos injetados de sangue. Seu furor ultrapassava os limites da cólera humana; parecia presa de um insulto apoplético — contorcido, repulsivo, insensato.
Markham, de olhos fechados, com a cabeça apoiada nas mãos, suportava tudo pacientemente. Quando, afinal, o furor do major o tornou mudo, ergueu a cabeça e fez sinal a Heath. Era a senha que ele esperava.
Antes, porém, que Heath pudesse fazer um movimento, o major levantou-se. Ao mesmo tempo, girou com o corpo e deu um violento soco na face do sargento. Heath caiu da cadeira e ficou estatelado no chão. Phelps saltou para a frente e abaixou-se; mas o major ergueu o joelho e apanhou-lhe o ventre. Phelps abateu-se e rolou no soalho, gemendo.
Voltou-se então o major para Markham. Os olhos fuzilavam-lhe como os de um louco, tinha os lábios descaídos; o estertor da respiração dilatava-lhe as narinas. Com os ombros encolhidos, os dedos rígidos, era a personificação horrífica do mal.
— Agora você! — gaguejou ele. — E as palavras, guturais e rancorosas, saíam-lhe como num grunhido.
Ao mesmo tempo que falava, saltou para a frente. Vance, que assistira a toda a luta sentado, fumando tranqüilamente, de olhos semicerrados, levantou-se e contornou a mesa rapidamente. Ergueu os braços, segurando o pulso direito do major com uma das mãos e com a outra prendendo-lhe o cotovelo. Depois, pareceu que caía, com um movimento circular, e o braço tolhido do major ficou torcido para cima, por detrás da omoplata. O homem soltou um grito e abateu-se sob a garra de Vance.
Já então Heath tinha-se recobrado. Ergueu-se depressa e correu. Ao estalido das algemas o major caiu pesadamente na cadeira, movendo o ombro com dificuldade.
— Não é nada grave, — disse Vance. — O ligamento escapular um pouco ferido. Em poucos dias estará bom.
Heath adiantou-se, sem uma palavra, estendeu a mão a Vance. Este gesto significava ao mesmo tempo um pedido de desculpa e uma homenagem. Fiquei gostando dele por isso.
Depois que ele saiu com o seu prisioneiro, e que Phelps recostado numa poltrona, fora atendido, Markham pôs a mão no braço de Vance:
— Vamos embora. Estou cansado.
XXV
O MÉTODO DE VANCE
(Quinta-feira, 20 de junho — 9 da noite)
Naquela mesma noite, depois de um banho turco e do jantar, sentamo-nos no caramanchão do Club Stuyvesant. Markham estava triste e fatigado, Vance sereno e amável. Fumamos em silêncio por uma meia hora. De repente Vance, como se continuasse um diálogo interior, observou:
— E são rapazes rudes e sem imaginação como Heath que constituem a barreira humana entre o criminoso e a sociedade! É triste, muito triste!...
— Em nossos dias já não há Napoleões, — respondeu Markham — e, se os houvesse, é pouco provável que fossem investigadores.
— Mas, mesmo que tivessem forte pendor por essa profissão, seriam rejeitados em vista da estatura. Já percebi isso: seus policiais são escolhidos pela altura e peso, embora os únicos crimes em que têm de intervir sejam motins e brigas entre quadrilhas. Volume — eis o grande ideal americano, seja em arte, arquitetura, refeições ou polícias. É encantador!
— Em todo o caso, — disse Markham, conciliante, — Heath possui um coração generoso. Perdoou-lhe tudo.
Vance sorriu.
— A reputação que adquiriu, com os elogios dos jornais desta tarde, bastaria para quebrantar qualquer criatura. Ele perdoaria até ao major o soco que lhe deu. Belo golpe, aquele, baseado na alavanca rotativa. Deve ser forte a constituição de Heath, senão não se recobraria tão prontamente... E o coitado do Phelps! Terá horror a joelhos pelo resto da vida!
— Você calculou certo a reação do major... Estou quase inclinado a crer que há alguma coisa na sua argumentação psicológica, apesar de tudo. Parece que suas deduções estéticas levaram-no à pista certa.
Calou-se por um momento. Em seguida, olhando para Vance com ar indagador, disse:
— Diga-me exatamente, por que desde o princípio você estava convencido de que era o major o assassino?
Vance recostou-se na cadeira.
— Atente, por um momento, para as características — os traços mais salientes — do crime. Antes do tiro, Benson e o assassino, sem nenhuma dúvida, tinham estado conversando, ou discutindo — um sentado, o outro de pé. Depois Alvino pretendeu ler: dissera tudo o que tinha a dizer. O gesto de começar a ler era o fim da palestra: porque ninguém lê quando conversa com outrem, a não ser com algum desígnio deliberado. O assassino, vendo que a situação era desesperada, e tendo vindo preparado para enfrentá-la a todo o custo, puxou a arma, apontou-a à fronte de Benson, e deu ao gatilho. Depois apagou a luz e saiu... Tais são os fatos, indicados e positivos.
Tirou algumas fumaças do cigarro e continuou:
— Analisemos agora esses fatos... Já lhe demonstrei que o assassino não apontou para o corpo, onde teria mais possibilidade de acertar, mas menos de matar. Escolheu o meio mais difícil e arriscado — e, ao mesmo tempo mais certo e eficiente. Sua técnica era, por assim dizer, arrojada, direta e temerária. Só um homem dono de nervos de aço e de um instinto de jogador extremamente desenvolvido a teria posto em prática com tamanha audácia. Logo, todos os nervosos, os coléricos, os impulsivos e os tímidos estavam naturalmente eliminados. O aspecto nítido, diria quase profissional do crime, aliado à ausência de qualquer indício material que pudesse esboçar uma pista, indicavam indubitavelmente que fora premeditado e planejado com precisão e frieza, por um indivíduo absolutamente senhor de si e habituado a afrontar perigos. Nada há neste crime que denuncie sutileza, nem a menor parcela de imaginação. Tudo nele revela um espírito agressivo, bronco — um espírito a um tempo estático, resoluto e intrépido, afeito a encarar fatos e situações de um modo direto, concreto e inequívoco... Markham, você conhece muito bem a natureza humana, para não compreender estas indicações, não é?
— Creio que alcanço o alvo do seu raciocínio, — disse o outro, ainda um tanto duvidoso.
— Então, — continuou Vance, — prossigamos. Determinada com exatidão a natureza psicológica do fato, resta achar uma pessoa interessada, cujo espírito e temperamento sejam tais que, se ela empreendesse uma tarefa destas, em dadas circunstâncias, executá-la-ia precisamente da maneira por que foi feita. Ora, por acaso, eu conhecia o major há muito tempo; e assim não tive dúvida alguma, ao examinar a situação naquela manhã, de que era ele o autor. Aquele crime, em todas as suas minúcias, era uma expressão psicológica perfeita do seu caráter e da sua mentalidade. Mas, ainda que eu não o conhecesse pessoalmente, seria capaz — desde que chegasse a ter um conhecimento tão nítido e apurado da mentalidade do assassino — seria capaz de isolá-lo entre uma multidão de acusados.
— Mas suponhamos que outra pessoa, com o mesmo caráter do major, cometera o crime?
— Todas as criaturas se diferenciam em sua natureza — por maior que seja a semelhança aparente. E, embora mal se possa conceber que outro homem com o caráter e o temperamento do major o cometesse, é preciso ainda assim, levar em conta a lei das probabilidades. Supondo mesmo que haja em Nova York dois homens idênticos na personalidade e nos instintos, teriam ambos um motivo para matar Benson? Contudo, por mais remota que fosse a possibilidade, quando Pfyfe entrou em cena, e eu soube que era um jogador e caçador, aproveitei a ocasião para examinar o caso do seu lado. Como não o conhecia pessoalmente, apelei para o coronel Ostrander, para obter a informação precisa; e o que dele ouvi pôs logo Pfyfe fora de cogitações.
— Contudo, ele tinha fibra: era um especulador arrojado, e certamente tem arrostado muitos perigos, — objetou Markham.
— Ah! Mas é que entre um especulador arrojado e um jogador temerário e equilibrado como o major, há grande diferença — um abismo psicológico. De fato, o impulso que os anima é diverso, oposto até. O aventureiro é movido pelo receio, a esperança, o desejo; o jogador de sangue frio escolhe a ocasião e obedece à convicção e ao raciocínio. Um é emotivo, o outro intelectual. Ao contrário de Pfyfe, o major é um jogador nato, e tem confiança absoluta em si próprio. Essa confiança não é, todavia, negligência, ainda que em essência o pareça: baseia-se em uma crença instintiva na própria infalibilidade e segurança. É o reverso do que os freudianos denominam menosprezo de si próprio — uma forma de egomania, variedade da mania de grandeza. O major a possuía, enquanto que não existia no temperamento de Pfyfe; e como o crime a denunciava no assassino, vi que Pfyfe era inocente.
— Começo a ver, ainda mal distinto, o que você delineia, — respondeu Markham, depois de uma pausa.
— Mas havia ainda outros indícios, psicológicos e de outra espécie: o desalinho do trajo do morto, a peruca, e os dentes no quarto em cima, a familiaridade evidente do assassino com os arranjos domésticos, o fato de ter sido recebido pelo_ próprio Benson, o conhecimento prévio de que Benson estaria àquela hora em casa e sozinho — tudo indica que é o major o culpado. Outra coisa: a estatura do assassino corresponde à do major, indicação que não tem, ainda assim, grande importância; porque, se minhas medidas não combinassem com as do major, eu teria a certeza de que a bala se desviara, a despeito da opinião de todos os capitães Hagedorn do mundo inteiro.
— Por que disse com tanta firmeza que uma mulher não poderia ter cometido o crime?
— Para começar: não era façanha para uma mulher, isto é, nenhuma mulher o teria praticado daquela forma. Uma mulher, ainda que seja a mais cerebral de todas, se comove quando chega a tal extremo que tenha de tirar a vida de alguém.
E a hipótese de que uma delas tivesse concebido friamente semelhante crime, e depois o executasse com tamanha perfeição, mirando um pequeno alvo na testa da vítima, — à distância de cinco ou seis pés — seria contrária a tudo o que sabemos sobre a natureza humana. Além disso, as mulheres nunca discutem de pé, estando seu antagonista sentado. Parece que se sentem mais seguras sentadas. Falam melhor assim; enquanto que os homens falam melhor de pé. Nem uma mulher, parada defronte de Benson, poderia alvejá-lo sem que ele a visse. Meter a mão no bolso é um gesto natural num homem; mas uma mulher não traz bolsos, nem outro lugar onde oculte uma arma, senão sua bolsinha. E um homem está sempre em guarda quando uma mulher encolerizada abre a bolsa de mão diante dele — a incerteza sobre a natureza das mulheres torna os homens suspicazes, quando elas estão excitadas... Mas — era sobretudo a cabeça pelada de Benson e os chinelos o que tornava insustentável a hipótese de uma mulher no crime...
— Você observou há pouco que o assassino fora ali naquela noite preparado para recorrer a meios extremos, se necessário. E disse mais que o crime fora planejado.
— E é verdade. Não são contraditórias essas duas afirmativas. O crime foi premeditado — não há disso a menor dúvida. Mas o major queria dar à vítima uma última oportunidade de salvar a vida. Minha teoria é esta: o major, que se via em apuros de dinheiro, já avistando a cadeia que o esperava, sabia que o irmão tinha no cofre quantia suficiente para salvá-lo; ideou o crime e foi lá naquela noite, pronto a executá-lo. Antes, porém, expôs ao irmão a sua situação, e pediu-lhe o dinheiro. Provavelmente Alvino mandou-o ao diabo. É possível que o major ainda insistisse algum tempo, com o fim de lhe poupar a vida; mas, quando Alvino retornou à leitura, ele conheceu a inanidade de um último apelo e cumpriu o seu espantoso desígnio.
Após fumar em silêncio por algum tempo, Markham observou:
— Admitindo como certo tudo o que você expõe, ainda não compreendi como você podia saber, como podia afirmar, ainda esta manhã, que o major preparara o crime, com o propósito deliberado de fazer as suspeitas recaírem sobre o capitão Leacock.
— Assim como o escultor, conhecendo perfeitamente os princípios da anatomia, pode substituir integralmente a parte que falta a uma estátua, também o psicólogo, que conhece o espírito humano, pode descobrir o fator que falta a uma ação humana. E, entre parênteses, devo acrescentar que toda essa tagarelice sobre os braços da Afrodite de Milos — a Vênus de Milo, você sabe — é da maior frivolidade. Qualquer artista competente, que conheça as leis da estética, poderia restaurar-lhe os braços, tal como eram primitivamente. Essas restaurações dependem apenas do conjunto — o fator que falta deve-se harmonizar com o resto, já conhecido do artista.
Vance sublinhou estas palavras com um gesto delicado.
— Ora, o problema da suspeita errônea é uma minudência importante em todo crime premeditado. E, uma vez que a concepção geral deste crime era positiva, concludente e concreta, claro era que cada uma de suas partes componentes seria positiva, concludente e concreta. Portanto, se o major tivesse apenas preparado as coisas de modo que ele não viesse a ser suspeitado, devia ter sido também negativa a concepção para se ajustar convenientemente aos outros aspectos psicológicos do fato. Isso seria muito vago, muito indeciso, muito indefinido. Um espírito como o que planejou este crime teria logicamente tudo disposto para que não faltasse um agente específico e tangível sobre quem recaíssem as suspeitas. Por conseguinte, quando começaram a se acumular as provas materiais contra o capitão e o major se encarniçou em defendê-lo, percebi que fora ele a vítima escolhida. A princípio, confesso, desconfiei que escolhera Miss St. Clair para bode expiatório; mas, quando soube que sua bolsa e luvas estavam em casa de Benson por mero acaso, e me lembrei de que o major nos recomendara Pfyfe como testemunha da ameaça do capitão, compreendi que ele não pretendera de nenhum modo comprometê-la.
Pouco depois, Markham levantou-se e, espreguiçando-se, disse:
— Bem, Vance, sua tarefa está acabada. Agora começa a minha. E preciso de dormir.
Em menos de uma semana, o major Antônio Benson era acusado do assassinato do irmão. Seu julgamento, presidido pelo juiz Rodolfo Hansacker, como está na memória de todos, foi sensacional. A Associated Press dedicou diariamente colunas e colunas ao caso, e durante muitas semanas todos os jornais do país estamparam na primeira página notícias espetaculosas do processo. Não é necessário recordar como a Promotoria conseguiu, após árduo trabalho, destrinçar o caso; nem como foi o crime classificado no segundo grau, pelo caráter indireto das provas; nem, finalmente, os vinte anos de prisão a que foi condenado Antônio Benson, após a apelação para o Tribunal Superior; todos esses fatos são de domínio público.
Markham não funcionou como Promotor: a antiga amizade que o ligara ao acusado não lhe permitira. Ninguém, pois, o censurou quando ele entregou o caso ao seu substituto, Sullivan. O major Benson cercou-se de um corpo tão numeroso de advogados, como raras vezes se tem visto em nossos tribunais. Entre eles viam-se Blashfield e Bauer — aquele preenchendo as funções do solicitador inglês, e este as de advogado. Apelaram ambos para todos os ardis jurídicos de que dispunham, mas as provas acumuladas contra o seu cliente foram esmagadoras.
Certo agora de que o major era culpado, mandou Markham proceder a uma investigação nos negócios dos dois irmãos, e a situação apareceu mais grave do que revelara o primeiro relatório de Stitt. A firma se apropriara sistematicamente de todos os depósitos, utilizando-os em especulações particulares; mas, enquanto Alvino fora bem sucedido, ganhando somas fabulosas, ficara o major quase completamente arruinado. Markham demonstrou que só lhe restava uma esperança de escapar à ação da lei, restituindo os fundos desviados — era a morte imediata do irmão. Verificou-se também, durante o processo, que no dia do crime o major fizera promessas de reembolso, que só poderiam ser cumpridas se recorresse ao dinheiro do irmão. E, o que é mais, baseavam-se essas promessas em somas específicas, pertencentes ao outro; e, em certa instância, empenhara, em uma promissória a vencer-se dentro de quarenta e oito horas, um penhor já hipotecado — fato que por si só o desmascararia, se o irmão fora vivo.
Miss Hoffman foi uma testemunha prestimosa e inteligente na acusação. O conhecimento que tinha das condições da firma Benson Benson trouxe grande contribuição contra o major.
A Sra. Platz também depôs, e disse que ouvira mais de uma vez disputas acrimoniosas entre os dois irmãos. Narrou que, cerca de duas semanas antes do crime, o major, que esperara inutilmente que Alvino lhe emprestasse 50.000 dólares, o ameaçara com estas palavras:
"Se algum dia eu tiver de escolher entre a tua pele e a minha, não é esta que eu hei de sacrificar!"
Teodoro Montagu, o homem que, conforme o depoimento do porteiro, se recolhera depois das duas horas na noite do crime, disse que quando seu auto chegou em frente da casa, os faróis iluminaram um homem parado na entrada de uma loja do outro lado da rua, e que o homem se parecia com o major Benson. Pouco efeito produziria este depoimento, se Pfyfe não tivesse vindo, logo após a prisão, dizer que vira o major atravessando a Sexta Avenida, na esquina da Rua 46, quando ele se dirigia ao restaurante de Pietro, em busca de seus frascos de bolso Haig Haig. Explicou que ligara pouca importância ao fato na ocasião, julgando que ele voltava de algum restaurante da Broadway. O major nem o vira.
Este depoimento, aliado ao do Sr. Montagu, anulara o álibi planejado pelo major com tanto cuidado. E, embora a defesa sustentasse obstinadamente que ambas as testemunhas se haviam enganado, a prova impressionou profundamente o júri, especialmente quando o Promotor substituto, Sullivan, guiado por Vance, explicou detalhadamente, expondo diagramas sobre o modo como o major podia ter saído e voltado naquela noite, sem que o porteiro o visse.
Provou-se também que as jóias só podiam ter sido retiradas do teatro do crime pelo assassino. E eu e Vance fomos chamados a depor como testemunhas da sua descoberta em casa do major. Foi apresentada ao tribunal a demonstração da estatura do criminoso, feita por Vance, mas, coisa curiosa, teve pouco peso, porque a solução se perdeu em um emaranhado de objeções científicas. A identificação da pistola pelo capitão Hagedorn foi o obstáculo mais difícil que se apresentou à defesa.
O júri durou três semanas e houve revelações escandalosas, apesar de Sullivan, a conselho de Markham, se haver empenhado para reduzir ao mínimo possível os casos particulares de pessoas inocentes que se viram, por infelicidade, envolvidas no episódio. O coronel Ostrander, contudo, jamais perdoou a Markham não o ter chamado a depor.
Durante a última semana do júri, Miss St. Clair apareceu como prima donna em uma opereta que se conservou dois anos no cartaz de um teatro da Broadway. Casou depois com o seu cavalheiresco capitão, e parecem perfeitamente felizes.
Pfyfe continua casado, e mais elegante do que nunca. Vai regularmente a Nova York, apesar da ausência do seu "caro amigo Alvino". Encontrei-o, por acaso, em companhia da simpática Sra. Banning. Pfyfe pagou — como, não sei! — os 10.000 dólares e recuperou as jóias dela. Não se divulgou, no julgamento, que lhe pertenciam, o que muito me alegrou.
No dia em que fora pronunciado o veredicto contra o major, estávamos sentados no Club Stuyvesant, eu, Markham e Vance. Jantáramos ali, mas nem uma palavra dissemos sobre os acontecimentos das últimas semanas. Mas agora, eu via um sorriso irônico surgir sorrateiro nos lábios de Vance.
— Markham! — disse ele na sua voz arrastada. — Que grotesco espetáculo o do tribunal! A prova evidente nem sequer foi apresentada. Benson foi condenado absolutamente sobre suposições, presunções, ilações e inferências... Deus ajude o inocente Daniel que inadvertidamente cai em uma cova de leões judiciais!
Com grande surpresa ouvi Markham aprovar gravemente estas palavras.
— Sim, mas se Sullivan tentasse basear uma acusação sobre o que você chama suas teorias psicológicas, teria sido decretada a insanidade mental dele.
— Sem nenhuma dúvida, — disse Vance, suspirando. — Seus iluminados da lei teriam pouco que fazer se você tratasse esses assuntos com mais inteligência.
— Teoricamente, — replicou Markham, afinal, — seu método é muito claro. Mas receio que, depois de ter lidado por tanto tempo com os fatos materiais, não os possa abandonar para me ocupar de psicologia e de arte... Contudo, — acrescentou em tom brincalhão, — se algum dia minhas provas jurídicas falharem, posso chamá-lo para meu assistente?
— Estarei sempre pronto para servi-lo, meu velho, — replicou Vance. — Eu creio, entretanto, que é quando a prova jurídica o atrai irresistivelmente para a sua vítima que você necessita mais de mim, não?
E esta observação, dita apenas como uma frase de espírito, transformou-se, na verdade, em uma estranha profecia.
XVIII
UMA CONFISSÃO
(Quarta-feira, 19 de junho — uma da tarde)
Quando nos vimos na rua, Markham perguntou:
— Como sabia você, homem do diabo, que ela tinha entregue as jóias a Pfyfe?
— Minhas sedutoras deduções metafísicas, sabe? Eu lhe disse que Benson não era o mão-aberta, o grande coração altruísta que fosse emprestar dinheiro sem garantia; e é claro que, se o pobre do Pfyfe possuísse coisa que valesse dez mil dólares não teria falsificado o cheque. Ergo: alguém emprestou a garantia. Agora, quem teria tanta confiança em Pfyfe para lhe conceder garantia daquele valor, senão uma sentimental mulher, cega para os seus formidáveis defeitos? Você sabe que meu espírito estava atento à procura da Calipso, que eu suspeitava existir na vida deste Ulisses, quando ele nos disse que ficara em Nova York para dizer adeus a alguém. Quando um homem como Pfyfe omite o sexo da pessoa, é certo que é o feminino. Por isso, lembrei que mandasse Paulo Pry a Port Washington, para sindicar de suas aventuras extramatrimoniais: eu tinha a certeza de que seria encontrada alguma mulher. Mais tarde, quando o misterioso pacote, que devia ser o penhor, pareceu identificar-se com a caixa de jóias vista pela curiosa governanta, disse comigo: “Foi a extraviada Dulcinéia de Leandro quem lhe emprestou as jóias para livrá-lo da cadeia". Nem pensei que ele podia estar protegendo alguém na explicação sobre o cheque. E, assim que Tracy soube do endereço e nome da dama, tratei de marcar o encontro em seu nome...
Íamos passando pela residência de Schwab, estilo gótico-renascimento, que se estende desde a esquina da Avenida Oeste com Riverside Drive, até à Rua 73, e Vance parou por um momento a contemplá-la.
Markham esperou pacientemente. Afinal Vance recomeçou a andar.
—... No momento em que vi a Sra. Banning, percebi que minhas conclusões eram certas. Era uma alma sentimental, justamente a espécie de mulher capaz de lançar mão de suas jóias para ajudar o homem amado. Além disso, ela não trazia nenhuma consigo quando entramos — e uma mulher da sua casta lança sempre mão das jóias quando deseja causar impressão a estranhos. E ela é da espécie que não vive sem jóias, ainda que a despensa esteja vazia. Era só fazê-la falar, como vê.
— De um modo geral, você saiu-se muito bem. Vance concordou, condescendente.
— É muito generoso... Mas diga-me: minha pequena conversa com a dama não conseguiu lançar um raio de luz na escuridão do seu espírito?
— Naturalmente. Eu não sou completamente obtuso. Inconscientemente, ela favoreceu os seus planos. Acreditava que Pfyfe não veio a Nova York, senão depois do crime, e contou com toda a franqueza que tinha dito ao telefone, a Pfyfe, que Benson tinha as jóias em casa. A situação agora é essa: Pfyfe sabia que elas estavam em casa de Benson, e ele estava ali no momento em que o tiro foi disparado. Além disso, as jóias desapareceram, e Pfyfe tentou esconder seus passos naquela noite.
Vance suspirou, desesperançado.
— Markham, há árvores demais no caso, e você não pode ver a floresta por causa delas...
— Não é de todo impossível, Vance, que você, de tanto olhar para uma árvore em particular, não veja as outras.
Uma sombra passou pelo rosto de Vance. que respondeu:
— Oxalá você tivesse razão!
Era mais de uma e meia, e dirigimo-nos para o Salão da Fonte, no Ansonia, para almoçar. Markham mostrou-se preocupado durante toda a refeição, e ao entrarmos no trem subterrâneo consultou, inquieto, o relógio.
— Vou a Wall Street, falar com o major, antes de voltar ao escritório. Não posso compreender por que ele pediu a Miss Hoffman que não falasse no pacote... Afinal, pode ser que não contivesse as jóias.
— E você crê que Alvino disse a verdade ao major a respeito do embrulho? Não foi uma transação muito recomendável, e o major indubitavelmente lhe perguntaria por que a fizera.
A explicação do major veio justificar a suspeita de Vance. Markham contou-lhe a visita a Paula Banning, dando destaque ao episódio das jóias, na esperança de que o major falasse voluntariamente no pacote; sua promessa a Miss Hoffman impedia-o de declarar o que sabia.
O major ouviu-o muito admirado, os olhos esbugalhados, num furor crescente.
— Receio que Alvino me tivesse enganado. — disse ele, olhando fixamente para cima. — E entristece-me pensar nisso — continuou, com a expressão já mais benigna, — agora que ele já não existe. Mas a verdade é que, quando Miss Hoffman me falou esta manhã no envelope, também mencionou um pacotinho que estava na gaveta-cofre de Alvino; pedi-lhe que não falasse nisso em sua narração, pois sabia que eram as jóias da Sra. Banning, e julguei que isso só podia servir para gerar confusão dos assuntos, se o senhor viesse a sabê-lo. Alvino disseme que fora lavrada uma sentença contra a Sra. Banning, e que antes do processo Pfyfe lhe trouxera as jóias dela, pedindo-lhe que as seqüestrasse temporariamente.
Quando voltávamos para o Tribunal, Markham tocou no braço de Vance e disse-lhe sorrindo:
— Você, pelo que vejo, continua com sorte nas adivinhações...
— Mais ou menos! Dir-se-ia que o defunto Alvino, como Warren Hastings, resolveu morrer no último reduto da prevaricação... Magnificamente mentiroso, não?
— Em todo o caso. o major, inconscientemente, acrescentou mais um elo à cadeia contra Pfyfe.
— Você até parece que está fazendo coleção de cadeias... Que fez das que forjou para Miss St. Clair e Leacock?
— Não as abandonei de todo... se é o que suponho que quer dizer, — respondeu Markham gravemente.
Quando chegamos ao gabinete, Heath esperava-nos, radiante de satisfação.
— Tudo vai bem, Sr. Markham. Ao meio-dia, depois que o senhor saiu daqui, Leacock veio procurá-lo. Ao saber que saíra, telefonou para a Chefatura, e de lá o puseram em contato comigo. Queria falar-me para uma coisa muito importante, disse. Fui sem demora, e encontrei-o sentado na sala de espera. Foi logo dizendo: "Vim entregar-me à prisão. Matei Benson". Ditou a confissão a Swacker, e assinou-a... Aqui está, — disse, estendendo uma folha de papel escrita à máquina.
Markham sentou-se, fatigado, Começava a sentir os efeitos da tensão dos últimos dias. Suspirou pesadamente e disse:
— Graças a Deus! Estão terminados nossos tormentos! Vance sacudiu a cabeça com tristeza, dizendo-lhe:
— E eu acho, ao contrário, que apenas começaram! Markham passou os olhos pela confissão, entregando-a logo a Vance, que a leu atentamente, mostrando no rosto crescente expressão de regozijo.
— Ora veja você, este documento não é legal. Qualquer "juiz digno desse nome o desprezaria. Não é simples, nem preciso. Não começa com "saudações"; não contém um simples "considerando", ou um "assim sendo"; nada diz acerca do "livre vontade", nem de "perfeito juízo", ou "faculdades mentais"; o capitão não se refere a si como "parte interessada"... Sem nenhum valor, sargento. Se eu fosse você, atirava isto fora.
Heath, muito orgulhoso com o seu triunfo, não se incomodou: limitou-se a sorrir com magnânima tolerância.
— Isto parece-lhe divertido, Sr. Vance?
— Se você soubesse, sargento, a que ponto é engraçada esta confissão, riria a bandeiras despregadas... Realmente, — continuou voltando-se para o Promotor, — não tenho muita confiança nisto, Markham. Contudo, pode vir a ser uma alavanca poderosa para descobrir a verdade. E estou muito contente por ver o capitão revelar-se assim um escritor de ficção. De posse desta encantadora fábula, creio que poderemos vencer os escrúpulos do major e levá-lo a dizer o que sabe. Talvez eu me engane, mas vale a pena tentar a experiência.
Dirigiu-se para a mesa do Promotor e inclinou-se, falando com voz melíflua:
— Ainda não o levei a erro algum, amigo velho, e vou dar-lhe outra idéia. Fale com o major, e peça-lhe para vir aqui imediatamente. Diga-lhe que tem em mãos uma confissão — mas não diga de quem. Dê-lhe a atender que é de Miss St. Clair,
ou de Pfyfe, — ou de Pôncio Pilatos. Mas insista na sua vinda imediata. Diga-lhe que quer discuti-la com ele antes de lavrar o auto de acusação.
— Não compreendo a necessidade desse passo: tenho a certeza de encontrá-lo esta noite no Clube, e poderei dizer-lhe então...
— Não seria a mesma coisa, — insistiu Vance. — Se o major puder esclarecer-nos algum ponto, creio que o sargento Heath deve ouvi-lo.
— Por mim, — atalhou este, — não careço de esclarecimento algum.
Vance olhou-o, surpreso e admirado.
— Que homem extraordinário! Até Goethe gritava por mehr Licht! — mais luz! e você aqui sentado, em estado de saturação... Assombroso!
— Escute. Vance, — disse Markham, — porque tenta você complicar o negócio? Isso é perder tempo... Além disso, é uma violência chamar o major aqui para discutir a confissão de Leacock. Já não nos são necessárias as informações dele, de qualquer maneira?
A voz, áspera a princípio, amaciou afinal; porque, embora não estivesse disposto a conceder nada, a experiência dos últimos dias mostrara-lhe que Vance jamais fazia uma sugestão, sem motivo sólido.
Este, sentindo que ganhava terreno, aproveitou:
— Creia que meu pedido se funda em coisa mais importante do que o inútil desejo de contemplar as faces rubicundas do major... Afirmo-lhe, com toda a seriedade de que sou capaz, que a presença dele nos seria útil neste momento.
Markham ainda tentou fazer ponderações a respeito, mas Vance foi tão persistente que acabou por convencê-lo.
Heath, esse estava visivelmente contrariado. Sentou-se, porém, em silêncio, procurando consolação num charuto.
O major atendeu com admirável rapidez, e mal podia ocultar sua sofreguidão por ver a confissão. Enquanto lia, seu rosto se anuviava, e o olhar denunciava assombro.
Por fim levantou a cabeça, testa franzida:
— Não compreendo nada disto. Estou profundamente surpreendido, confesso... Não me parece crível que Leacock matasse Alvino... Contudo, posso-me enganar, é claro.
Depôs o papel sobre a mesa e sentou-se muito desapontado.
— E o senhor, — perguntou, — o senhor contenta-se com isto?
— Não vejo motivo para não acreditar. Se ele não é o culpado, por que viria confessar de motu proprio? Há muitas provas contra ele, e há dois dias estive a ponto de prendê-lo.
— É ele o criminoso, — adiantou Heath. — Eu estava com o olho nele desde o princípio.
O major Benson não replicou logo; parecia estar meditando nas palavras que queria dizer.
— Pode ser — isto é, não é de todo impossível — que Leacock tivesse um motivo superveniente para confessar.
Todos nós, penso, vimos aonde ele queria chegar.
— Concordo, — disse Markham, — que a princípio admiti a idéia de que Miss St. Clair era culpada, e dei-o a perceber a Leacock. Mas depois persuadi-me de que ela não estava diretamente envolvida.
— Leacock sabe disso? — perguntou vivamente o major.
— Não, — disse Markham, após um momento de reflexão. — Eu não posso dizer que ele o saiba. De fato, o mais provável é que ele pense que ela ainda me é suspeita.
— Ah! — exclamou o major, quase involuntariamente.
— Mas que tem isso? — perguntou Heath, irritado. — O senhor supõe que ele esteja disposto a ir a cadeira elétrica para salvar a reputação dela? Ora bolas! Essas coisas estão muito bem no cinema, mas na vida real... nenhum homem é assim tão louco.
— Eu não estou bem certo disso, sargento, — aventurou Vance, indolentemente. — As mulheres são muito sensatas e práticas para tais gestos de loucura; mas os homens, você sabe,, têm uma capacidade ilimitada para a idiotice.
E, voltando-se para o major, com olhar inquisidor:
— Pode dizer-nos por que julga que o capitão está fazendo. de paladino?
O major, em vez de responder diretamente, refugiou-se em generalidades, e não se mostrou nada inclinado a prosseguir na sua interpretação original do ato de Leacock. Vance interrogou-o por algum tempo, sem conseguir penetrar-lhe as reticências.
Heath, inquieto, falou afinal:
— O senhor não pode contestar a confissão de Leacock. Recorde os fatos: Ele ameaçou Benson de matá-lo, se o encontrasse outra vez em companhia da moça. Quando Benson tornou a sair com ela à rua, foi assassinado. Depois, Leacock ocultou a arma em casa dela, e quando as coisas começaram a esquentar, levou a pistola e lançou-a ao rio. Subornou o rapaz da portaria para obter um álibi; e foi visto em casa de Benson hora depois da meia-noite. Interrogado, nada pode explicar... Diabos me levem, se tudo isto não é mais que duvidoso!
— De fato, as circunstâncias são convincentes, — admitiu o major. — Mas não poderão ser explicadas de outra forma?
Heath nem se dignou responder a esta interrogação.
— Aqui está como eu vejo o caso: Leacock, desconfiado, aí pela meia-noite, pega na pistola e sai. Encontra Benson com a noiva e, conforme tinha prometido, mata-o. Se quer, ambos têm parte na coisa, mas foi Leacock quem deu o tiro. E agora chegamos à confissão... Não há um só jurado em Nova York que não o conheça culpado,
— Ora! Probi et legales homines... — murmurou Vance, enquanto Swacker aparecia à porta.
— Os jornalistas desejam ser recebidos, — disse ele, fazendo uma careta.
— Sabem eles alguma coisa a respeito da confissão? — perguntou Markham.
— Ainda não, — respondeu Heath. — Não fui tão longe, por isso estão reclamando. Mas eu lhes darei com que se entreterem, se o senhor permite...
Markham anuiu, e Heath dirigiu-se para a porta, mas Vance plantou-se vivamente na frente.
— Markham, não poderia conservar isto em segredo até amanhã?
— Sim, posso, se eu quiser, — respondeu Markham, contrariado. — Mas por quê?
— Por sua própria causa, se não for por outra razão. Você tem a presa bem segura, refreie a sua vaidade por vinte e quatro horas, Markham. Eu e o major sabemos que Leacock é inocente e amanhã, a esta hora, toda a cidade o saberá.
Seguiu-se outra discussão, mas o resultado, como da vez anterior, foi a vitória de Vance: Markham compreendera afinal que Vance tinha uma certeza que ainda não queria divulgar. Pareceu-me que se opunha ao pedido de Vance para ver se descobria o que era; e convenci-me disso quando o via agora, ponderar gravemente sobre a conveniência de se tornar pública a confissão do capitão.
Vance, conforme o seu costume, nada quis revelar, e acabou por Markham pedir a Heath que esperasse até ao outro dia. O major manifestou sua aprovação por um gesto.
— Você pode dizer aos rapazes dos jornais, — lembrou Vance, — que lhes reserva uma notícia sensacional para amanhã!
O sargento saiu, sombrio e abatido.
— Um camarada arrebatado, este sargento. Tão impetuoso! — comentou Vance, pegando de novo na folha de papel da confissão, que tornou a ler atentamente.
— Agora, Markham, peço-lhe que mande buscar seu prisioneiro independente de habeas-corpus, etc. Instale-o naquela cadeira em frente da janela, dê-lhe um daqueles charutos que você reserva para os políticos de influência, e depois escute atentamente enquanto eu converso polidamente com ele... Espero que o major também fique para ouvir.
— Um pedido que posso deferir sem objeção, — respondeu Markham, sorrindo. — Eu já havia resolvido falar com Leacock.
Apertou um botão, e apareceu um funcionário de rosto corado e alegre.
— Uma requisição para o Capitão Filipe Leacock, — ordenou o Promotor.
Saiu o funcionário pela porta do corredor, e dez minutos depois entrava o preso, acompanhado por um oficial da Torre do Tombo.
XIX
NOVO INTERROGATÓRIO
(Quarta-feira, 19 de junho — 3h30 da tarde)
Vinha indiferente e abatido o capitão Leacock — ombros ·caídos, braços pendentes, olhar macilento da prolongada vigília. Avistando o major Benson, aprumou-se e dirigiu-se a ele, estendendo-lhe a mão. Era claro que, mesmo não gostando de Alvino Benson, considerava o major como um amigo. De repente, porém, lembrou-se da situação em que estava ali e suspendeu o gesto, embaraçado. O major adiantou-se e tocou-lhe no braço.
— Vamos, Leacock, — disse suavemente. — Não posso acreditar que você tivesse matado Alvino.
O capitão voltou-se, com uma apreensão no olhar, e disse com voz abatida:
— Sim, matei-o! Eu disse a ele que ia matá-lo. Vance indicou-lhe uma cadeira.
— Sente-se, capitão. O Promotor deseja ouvir de sua própria boca a história do crime. Compreende, não é? A lei não.aceita confissões de assassinato, sem provas evidentes. E como, neste caso, há outras pessoas suspeitas, precisamos que responda a algumas perguntas, para comprovar sua culpa. Senão, teremos de continuar a suspeitar de outros além do senhor.
Sentou-se em frente a Leacock e pegou na confissão escrita.
— Diz aqui que não ficou satisfeito pelo fato de o Sr. Benson tê-lo injuriado e que foi à sua casa, mais ou menos à meia hora do dia treze... Quando falou em insultos, referia-se às atenções que ele dispensava a Miss St. Clair?
O rosto do capitão traiu-lhe o agressivo estado de espírito.
— Que importa a razão por que o matei? Não pode deixar Miss St. Clair de parte?
— Sem dúvida, Prometo-lhe que ela não será envolvida nisto. Mas precisamos de conhecer completamente o motivo que o impeliu.
— Perfeitamente, — disse Leacock após um curto silêncio.
— Foi bem como eu narrei.
— Como soube que Miss St. Clair ia jantar com o Sr.. Benson naquela noite?
— Eu os seguira até ao Marseilles.
— E depois, voltou para casa?
— Sim.
— Por que voltou à casa de Benson?
— Fiquei pensando naquilo, até que não pude suportar por mais tempo. Comecei a ver tudo vermelho, e afinal peguei na minha Colt e saí, resolvido a matá-lo.
Sentia-se crepitar naquela voz uma nota de paixão. Parecia inacreditável que ele estivesse mentindo... Vance referiu-se de novo a confissão:
— O senhor ditou: "Fui ao nº. 87, Rua 48, Oeste, e entrei pela porta da frente..." Tocou a campainha? Ou a porta da frente não estava fechada?
Leacock ia. responder, mas hesitou. Era evidente que procurava recordar as notícias dos jornais, as declarações da governanta: ela afirmara positivamente que a campainha não tocara naquela noite.
— Que diferença pode fazer isso? — perguntou, para ganhar tempo.
— Nós gostaríamos de saber... é só, — disse Vance. — Mas não se apresse.
— Visto que isto é tão importante para os senhores, saibam que eu não toquei a campainha, e a porta não estava aberta. Mas.
— continuou, hesitando ainda mais, — justamente quando eu chegava, Benson descia de um táxi.
— Um momento... Notou um outro carro parado em frente da casa? Um Cadillac cinzento?
— Mas... sim.
— Não reconheceu quem o ocupava?
Outro silêncio.
— Não estou bem certo. Creio que era um homem chamado Pfyfe.
— Ele e o Sr. Benson chegaram ali então ao mesmo tempo? Leacock franziu a testa.
— Não... ao mesmo tempo não. Não havia ali ninguém quando cheguei... Não vi Pfyfe senão alguns momentos depois, ao sair.
— Ele chegou de carro quando o senhor estava lá dentro, não foi?
— Deve ter sido.
— Compreendo... E agora, voltemos um pouco atrás: Benson chegou de táxi. E depois?
— Eu me dirigi a ele e disse-lhe que desejava falar-lhe. Disseme que entrasse, e entramos juntos. Serviu-se de uma chave de trinco.
— E agora, capitão, conte-nos exatamente o que aconteceu depois que entraram em casa.
— Ele pendurou o chapéu e a bengala no cabide, e fomos para o salão. Sentou-se ao pé da mesa, eu fiquei de pé e disse... o que tinha a dizer. Depois puxei minha arma e atirei.
Vance olhava para o homem atentamente. Markham estava inclinado para a frente.
— Como se explica então que ele estivesse lendo naquele momento?
— Creio que ele pegou num livro enquanto eu falava... Tentando aparentar indiferença, sem dúvida.
— Procure lembrar-se agora disto: O senhor e ele chegaram à sala indo diretamente do vestíbulo, assim que entraram ·em casa?
— Sim.
— Então como explica o fato de estar o Sr. Benson, quando foi morto, de paletó e chinelos?
Leacock olhou em roda, nervoso. Antes de responder, umedeceu com a língua os lábios ressequidos.
— Agora me lembro... Benson foi primeiro lá em cima, talvez ao quarto dele... Eu estava tão excitado, — acrescentou, desesperado, — que não me lembro bem de tudo.
— É natural, — disse Vance, num tom compreensivo. — Mas, quando ele desceu, notou por acaso alguma particularidade nos seus cabelos?
Leacock olhou vagamente para cima.
— Nos cabelos? Eu... não compreendo...
— Na cor do cabelo, é o que eu quero dizer. Quando Benson se sentou defronte do senhor, debaixo da lâmpada, não notou alguma... diferença, quero dizer... na aparência do seu cabelo?
O homem fechou os olhos, como se tentasse evocar a cena.
— Não... não me lembro.
— É um ponto insignificante, — disse Vance, indiferente. — E a fala de Benson, depois que ele desceu, pareceu-lhe tão natural... isto é, notou alguma dificuldade, ou leve impedimento que fosse, na sua voz?
Leacock estava visivelmente perturbado.
— Não sei o que o senhor quer dizer. Pareceu-me que ele falava como sempre.
— E por acaso não viu um cofrezinho de jóias, azul, sobre a mesa?
— Não notei.
Vance tirou algumas baforadas de seu cigarro, pensativo. — Quando saiu da sala, depois de matar Benson, apagou: as luzes, sem dúvida?
Se não vinha resposta imediata, Vance sugeria uma.
— Decerto fez isso, porque o Sr. Pfyfe diz que a casa estava às escuras, quando ele foi lá.
Leacock então afirmou com a cabeça.
— É verdade. Não podia lembrar-me no momento.
— Agora, que se lembra do fato: como apagou as luzes? — Eu... — começou ele, e parou. — No interruptor.
— E onde está ele colocado, capitão?
— Não me posso lembrar exatamente.
— Pense um instante. Sem dúvida há de se recordar.
— Ao lado da porta que dá para o vestíbulo, se não me engano...
— De que lado da porta?
— Mas como posso saber? — perguntou ele, em tom lamentoso. — Estava tão nervoso... Creio que do lado direito.
— Lado direito — de quem entra ou de quer sai?
— De quem sai.
— Seria aquele onde está a estante de livros?
— Sim.
Vance parecia satisfeito.
— Vamos agora à arma, capitão. Por que a entregou a Miss St. Clair?
— Fui um covarde. — replicou o moço. — Receei que a fossem encontrar em minha casa. E nunca imaginei que pudessem suspeitar dela.
— E quando a acusaram, o senhor imediatamente pegou na arma e jogou-a ao rio?
— Sim.
— Creio que faltava uma bala no cilindro também — o que por si só seria uma circunstância comprometedora.
— Pensei assim, por isso lancei fora a arma. Vance franziu a testa.
— É estranho... Havia então duas armas no rio, porque o fundo foi dragado, e encontrou-se uma pistola Colt automática, mas carregada... Está certo, capitão, de que foi a sua pistola que levou da casa de Miss St. Clair e atirou ao rio?
Eu, que ignorava que tivessem retirado arma alguma do rio, fiquei surpreendido. Quereria Vance, depois de tudo, envolver a moça? E percebi que a Markham também ocorrera a mesma dúvida.
Leacock não respondeu logo. Depois, com voz áspera e irritada, retrucou:
— Não há duas armas. A que foi encontrada era a minha... É que tornei a carregá-la...
— Ah! Isso explica tudo, — disse Vance, em tom amável e tranqüilizador. — Outra pergunta, capitão: Por que veio fazer esta confissão hoje?
Pela primeira vez, durante o interrogatório, os olhos de Leacock se animaram:
— Por quê? Porque era a única saída digna. Suspeitaram injustamente de uma pessoa inocente; não quero que ninguém sofra em meu lugar.
Estava terminada a entrevista. Markham nada tinha a perguntar, e o oficial reconduziu o capitão.
Estranho silêncio caiu sobre aqueles homens. Markham fumava frenèticamente, as mãos cruzadas na nuca, olhos fixos no teto. O major,.recostado na cadeira, contemplava Vance com manifesta satisfação. Vance, por sua vez, olhava para Markham com o rabo do olho, sorrindo sonolento. A expressão de cada um deles revelava perfeitamente sua impressão individual em relação à entrevista. Markham estava perturbado, o major satisfeito, Vance céptico. E foi ele quem quebrou o silêncio, dizendo indolentemente:
— Então, Markham, viu agora que coisa tola é uma confissão? Nosso puritano e orgulhoso capitão deu um Munchausen insignificante. Ninguém poderia mentir mais miseravelmente do que ele. Impossível fingir tanta inabilidade, a menos que não se tenha nascido para isso. E quer-nos fazer crer que é o criminoso... Muito comovente. Sem dúvida, imaginou que você ia pregar-lhe a confissão no peitilho da camisa e remetê-lo ao carrasco. Notou que ele nem sequer sabia como entrara na casa de Benson? A presença conhecida de Pfyfe ali é que veio destruir sua explicação improvisada e mal alinhavada, de que entrara de braço dado com a pretensa vítima. E nem se lembrava do traje caseiro de Benson. Quando lhe recordei, ele se contradisse e fez Benson trotar escada acima, para mudar rapidamente a roupa. Por sorte, os jornais não tinham mencionado a peruca. Nem por sombras imaginou em que pensava eu, ao insinuar-lhe que Benson tingira o cabelo enquanto trocava de roupa e sapatos... E, por falar nisto, major, seu irmão falava com dificuldade quando tirava a dentadura?
— Sim, e notava-se bem a diferença. Se Alvino tinha tirado a dentadura naquela noite — conforme depreendi pela sua pergunta — Leacock teria sem nenhuma dúvida percebido.
— Não notou igualmente outras coisas: o cofre de jóias, por exemplo, e a localização do interruptor.
— Neste ponto, — retrucou o major, — ele meteu os pés pelas mãos: a casa de Alvino é antiga, e o único interruptor que há na sala é pendente, ligado à lâmpada.
— Exatamente... Entretanto, seu maior erro foi quanto à arma. Caiu completamente. Declarou que atirara a arma ao rio porque lhe faltava uma bala; e quando eu disse que estava completa a carga, explicou que substituíra a bala que disparara. Assim, a arma encontrada não era a dele... É jogo do capitão. Supõe que Miss St. Clair está implicada, e resolveu arcar com a culpa.
— Também me pareceu, — disse o major.
— Ainda assim, — comentou Vance, — a atitude do capitão me confunde um pouco. Não há dúvida de que ele teve alguma interferência no crime: senão, por que iria ocultar a pistola, no dia seguinte, em casa de Miss St. Clair? Ele é bem da espécie 'de tolo que ameaçaria qualquer homem suspeito de pretender-lhe a noiva, e depois sustentaria a ameaça, no caso de ser necessário. Além disso, sua consciência o acusa — isso é evidente. Mas de quê? Não de ter matado, isso não; o crime foi planejado, e ele é desses tipos de homem que apanham uma idéia fixa, cingem com ela os lombos, e realizam o feito corajosamente, prontos a sofrer as conseqüências. É a cavalaria, puro beau geste: seus adeptos sabem o que valem. E quando saem a libertar o mundo de um Don Juan, vão sempre de ânimo sereno... O capitão, por exemplo, não teria passado por alto as luvas e a bolsa de sua Bela Dama — levá-las-ia consigo... De fato, é tão certo que ele poderia ter matado Benson, como que não o matou. Aqui é que está a dificuldade. Psicologicamente, é possível que o tenha feito; e, também psicologicamente, é impossível que o fizesse daquele modo.
Acendeu um cigarro, contemplando as espirais de fumo por algum tempo.
— Se não fosse inverossímil, eu diria que ele resolveu matar o outro, e que o encontrou morto. Isso explicaria por que Pfyfe o encontrou ali, e por que confiou a arma a Miss St. Clair no dia seguinte.
Toca o telefone: o coronel Ostrander queria falar com o Promotor. Este, depois de curta palestra, olhou contrariado para Vance.
— Seu sanguinário amigo desejava saber se eu já prendi alguém. Oferece-me mais algumas idéias inestimáveis, no caso de eu estar ainda indeciso a respeito do autor do crime.
— Ouvi você agradecer-lhe tolamente qualquer coisa... Que lhe disse acerca de seu estado de espírito?
— Que ainda estava no escuro...
E sorriu, cansado e sombrio. Mas Vance compreendeu que renunciara à idéia da culpabilidade de Leacock. O major levantou-se e estendeu-lhe a mão.
— Compreendo o que sente, — disse ele, — e sei que isso é desagradável. Mas é preferível deixar escapar um culpado a castigar um inocente... Não se aflija tanto, não desanime. Encontrará por fim a solução, e quando isso acontecer — o resto da frase saiu-lhe por entre os dentes cerrados — não oporei obstáculo algum. Ajudá-lo-ei no que puder.
Com um sorriso sombrio, pegou no chapéu, dizendo ainda:
— Vou-me embora. Volto ao escritório. Se precisar de mim a qualquer hora, chame-me. Talvez eu possa auxiliá-lo... mais tarde.
Cumprimentou Vance amàvelmente e saiu.
Markham nada disse durante alguns minutos.
— Que coisa horrível, Vance! — disse por fim, irritado. — O negócio torna-se a cada passo mais complicado. Já vou causando.
— Mas também, amigo velho, você não deve tomar isso tanto a peito. Não vale a pena a gente se atormentar na encruzilhada da vida.
"Nada é novidade,
Nada é verdade,
E nada, realmente, vale a pena." Foram mortos na guerra alguns milhões de tolos e nem por isso você se altera. Mas porque um canalha é assassinado no seu distrito — e bem o mereceu! — você perde noites de sono, e se aflige? Palavra! Você é por demais incoerente!
— A coerência... — começou Markham; mas Vance interrompeu-o.
— Não cite Emerson agora. Prefiro de muito Erasmo. Você devia ler o Elogio da Loucura: isso o consolaria por não descobrir o assassino. O velho professor holandês de queixo pontudo jamais se lamentaria, inconsolável, sobre a destruição de Alvino, o Calvo.
— Eu não nasci para comer, como você, — censurou Markham. — Fui eleito para este cargo...
— Oh! Perfeitamente — "não amei mais do que a honra", etc, — concordou Vance. — Mas não seja tão sensível. Mesmo que o capitão não consiga ficar na cadeia, como deseja, ainda lhe restam cinco possibilidades. A Sra. Platz... e Pfyfe... e o coronel Ostrander... e Miss Hoffman... e a Sra. Banning... Então! Por que não os prende a todos, cada um por sua vez, e não os obriga a confessar? Heath ficaria louco de alegria...
Tão abatido de ânimo se sentia Markham, que não se podia agastar com seus motejos. Antes parece que o bom humor de Vance o reanimava.
— Se quer que lhe diga a verdade, é isso mesmo que sinto desejo de fazer. Só me sinto indeciso na escolha. Por qual deles deveria começar?
— Camarada valente! E que fará do capitão? Ele ficaria com o coração partido se você o pusesse em liberdade.
— Pois vai ficar mesmo. E o melhor é tratar já das formalidades, — concluiu, pegando no fone.
— Um momento apenas, — pediu Vance, estendendo a mão para ele. — Não ponha ainda termo ao seu arrebatador martírio. Deixe-o ser feliz por mais um dia, ao menos. Tenho a impressão de que nos pode ser mais útil, mirando-se na sua cela solitária, como o prisioneiro de Chillon.
Sem uma palavra, Markham pendurou, e colocou outra vez o fone no gancho. Parecia-me que cada vez mais se submetia à vontade) de Vance, aceitando-lhe a direção. Não porque se sentisse desesperançado e desnorteado, embora isso também influísse em parte na sua submissão — mas porque via bem que Vance sabia mais do que dizia.
— Já tentou fazer uma idéia do modo como Pfyfe e sua Bolinha entraram no caso?
— Sim, — respondeu petulantemente Markham, — com alguns milhares de outros enigmas... Mas, quanto mais penso nisso, mais, misteriosas se tornam as coisas.
— Eis um erro, meu caro. Não há mistérios originados nos seres humanos; há apenas problemas. E qualquer problema originado por outro ser humano. Basta o conhecimento do espírito humano, e a aplicação desse conhecimento a atos humanos. É simples, não acha?
Olhou para o relógio e disse:
— Estranho a demora do Sr. Stitt no exame dos livros de Benson Benson... Espero com impaciência seu relatório.
Isto era demais para Markham, cuja paciência se esgotara afinal com o método fatigante de insinuações e indiretas do outro. Perdera o domínio de si mesmo. Inclinou-se para a frente e bateu irritado na mesa.
— Já estou cansado dessa atitude superior, — disse, muito alterado. — Ou você sabe alguma coisa, ou não sabe. Se nada sabe, faça-me o favor de deixar de insinuar que sabe. Se sabe alguma coisa, é seu dever dizer-me. Desde que Benson foi assassinado, anda você, de uma maneira ou de outra, dando a entender que sabe coisas. Se tem alguma idéia sobre o assassino — quero sabê-lo!
Endireitou-se na cadeira e apanhou outro charuto. Não ergueu os olhos enquanto cortou, com todo o cuidado, a ponta, e o acendeu. Sem dúvida, estava um tanto vexado por ter se deixado levar pela ira.
Vance, aparentemente indiferente durante toda a tirada, esticou as pernas e ficou a olhar para Markham durante muito tempo.
— Sabe, velho amigo Markham, não lhe censuro essa vergonhosa explosão. A própria situação a explica, na verdade. Mas chegou a hora de por fim à comédia. Não estou brincando, não. É fato que tenho algumas idéias muito interessantes sobre este assunto.
Ergueu-se e bocejou.
— Faz hoje um calor estúpido! Mas... tem de ser feito, não é?
"Tão perto está a grandeza da miséria,
Como Deus está junto à humanidade.
Se — Tu deves — murmura a consciência,
"Eu posso! — lhe responder a mocidade." Eu sou a nobre mocidade; você, Markham, a voz do dever — ainda que não tenha murmurado nada, não é?... Mas qual é teu dever? E Goethe responde: A aceleração dos dias. Mas — diabo leve tudo isto! — eu quisera que a pergunta tivesse vindo em um dia mais fresco!
Pegou no chapéu de Markham e deu-lhe.
— Venha, Póstumo. "Tudo tem o seu tempo determinado; e todo propósito debaixo do céu tem o seu tempo" (*). Seu expediente está encerrado hoje, Markham; diga-o a Swacker, sim? Nós vamos visitar uma dama que não é nutra senão Miss St. Clair.
(*) Esta citação do Eclesiastes me recorda que Vance lia habitualmente o Velho Testamento. "Quando me sinto fatigado dos literatos profissionais, disseme ele uma vez, encontro estímulo na majestosa prosa da Bíblia. Se os modernos sentem que devem escrever, deviam dedicar no mínimo duas horas diárias à leitura dos historiadores bíblicos".
Markham compreendeu que o modo brincalhão do amigo mascarava um propósito sério. Percebeu também que Vance queria dizer-lhe o que soubera, por seu próprio esforço, e que, fosse qual fosse o caminho que o levava a essas descobertas — por mais tortuoso, obstruído ou desgarrado que parecesse — ele tinha razões poderosas para segui-lo. Além disso, desde o desmascaramento da confissão fictícia de Leacock. estava em tal estado de espírito, que seguiria qualquer fio que lhe desse a mais tênue esperança de alcançar a verdade. Sem demora, pois, chamou Swacker e informou-o de que não voltaria mais ao escritório naquele dia. v
Dez minutos depois íamos, no metrô, a caminho do n.º 94 de Riverside Drive.
XX
EXPLICAÇÕES DE UMA DAMA
(Quarta-feira, 19 de junho — 4h30 da tarde)
— O fim a que nos propusemos, de fazer luz sobre o caso, — dizia Vance, enquanto seguíamos pela rua, — pode parecer chato, Markham, mas apele para sua força de vontade, e disponha-se a padecer comigo. Você não imagina quão árdua é a tarefa que tenho em mãos! Não é nada divertido isto... Sou ainda um tanto jovem para ser sentimental, e mesmo assim, acho-me inclinado a deixar o seu réu escapar.
— Pode-me dizer por que vamos à casa de Miss St. Clair?
— perguntou Markham, resignadamente.
Vance retrucou, amável:
— Pois não! Na verdade, acho melhor que você saiba. Há muitos pontos concernentes à dama que carecem de elucidação. Primeiro: as luvas e a bolsa. "Nem papoula nem mandrágora te restituirão o sono perdido", como diz o poeta, enquanto você não destrinçar a história daqueles objetos, não? Você não se lembra de-que Miss Hoffman contou que o major escutava à porta do gabinete do irmão, enquanto lá estava certa dama, no dia em que ele foi assassinado? Pois desconfio que a visitante era Miss St. Clair. E gostaria de saber o que se passou ali, e por que ela voltou lá. E também por que foi tomar chá com Benson à tarde? E que papel representaram as jóias na palestra?... Alas há ainda outros itens. Por exemplo: Por que foi o capitão à casa dela buscar a arma? De onde lhe veio a idéia de que era ela a assassina? — você sabe que ele crê nisso, E também julgou ela que era o criminoso, desde o princípio? Markham, céptico, perguntou:
— E você acredita que ela lhe conte tudo isso?
— Tenho muita esperança, — retrucou o outro. — Com seu perfeito e gentil cavalheiro preso, assassino confesso, ela nada terá a perder por descarregar a alma... Mas nada de barulho. Seu estilo policial de inquirição não fará efeito algum sobre a dama, asseguro-lhe.
— E de que maneira pretende você executar sua investigação?
— Com morbidezza, como dizem os pintores. Com muita delicadeza e suavidade, você vai ver.
Markham refletiu um momento e observou:
— Eu ficarei de fora, e deixarei a agenda a seu cargo. — Que idéia magnífica!
Quando chegamos, Markham avisou pelo telefone que trazia uma missão muito importante e fomos recebidos imediatamente. Miss St. Clair estava apreensiva, naturalmente, por causa do capitão Leacock.
Sentou-se em frente a nós, na sala que abria sobre o Hudson, pálida e desfeita, com as mãos unidas e trêmulas. Ta longe a fria reserva da primeira entrevista, e suas olheiras denunciavam o tormento das vigílias.
Vance foi direto ao ponto. Falava com volubilidade, o que 'diminuía a tensão da atmosfera e suavizava a gravidade da visita.
— Lamento ter de lhe dizer, mas o capitão Leacock confessou tolamente ter assassinado Benson. Contudo, nós não estamos satisfeitos com essa declaração. Estamos boiando: não conseguimos saber se o capitão é um vilão, ou um "cavalheiro sem medo e sem mácula". A narração que fez da execução do crime é um esboço apenas: vaga, em certos detalhes essenciais; e — o que mais confusão traz — apagou as luzes da horrorosa sala de Benson por meio de um interruptor que lá nunca existiu. Por isso, desconfiei que ele inventou essa história para esconder alguém que ele supõe ser o verdadeiro culpado.
Indicou Markham com um leve gesto e continuou:
— Aqui o Promotor não concorda inteiramente comigo. É que o espírito jurídico é incrivelmente rígido e aferra-se com tenacidade às idéias. Porque a senhora esteve em companhia de Benson na última tarde que ele passou neste mundo, e por outras razões igualmente fúteis, o Sr. Markham julgou que a senhora tivesse algo a ver com a morte desse homem.
Sorriu ao amigo, como uma censura amistosa, e continuou:
— A senhora é a única pessoa a quem o capitão Leacock poderia proteger tão heroicamente. Por outro lado, estou convencido de sua inocência. Por isso, vimos aqui pedir-lhe esclarecimentos sobre alguns pontos de suas relações com Benson. Nenhum dano advirá de tais declarações, nem à senhora nem ao capitão, e até poderão elas contribuir para dissipar alguma dúvida que acaso ainda subsista no espírito do Promotor sobre a inocência do Capitão.
As palavras serenas de Vance tiveram salutar reação sobre a moça. Mas Markham fervia interiormente, indignado com as censuras veladas do amigo, ainda que procurasse refrear sua ira.
Miss St. Clair encarou francamente Vance por alguns instantes.
— Não sei por que eu confiaria no senhor, ou sequer o acreditaria, — disse serenamente. Mas agora que o capitão Leacock confessou — receei que fosse essa a sua intenção, quando me falou pela última vez — não vejo também por que me recusaria a responder-lhe... Acredita sinceramente que ele seja inocente?
A pergunta era um grito involuntário; a emoção sopitada despedaçara a carapaça de serenidade.
— Creio-o firmemente, — declarou Vance com calor. — O Sr. Markham lhe dirá que antes de sairmos do seu gabinete insisti com ele para restituir a liberdade ao capitão. E foi na esperança de que ele se convencesse ao ouvi-la ao acerto dessa medida, que me apressei em vir aqui com ele.
Alguma coisa no tom da voz e nas maneiras de Vance, inspiravam confiança à moça.
— E que queria o senhor perguntar-me?
Vance lançou um olhar repreensivo a Markham, que a custo continha a raiva de que estava possuído, voltando-se depois para a jovem:
— Primeiro que tudo, desejo saber como estavam em casa de Benson suas luvas e sua bolsa. O Promotor não se cansa de procurar uma explicação para a presença desses objetos ali.
Ela olhou-o franca e diretamente.
— O Sr. Benson convidou-me para jantar. Não me senti muito satisfeita com o seu procedimento, e quando nos dirigíamos para a minha casa, meu ressentimento aumentou. Ao chegar a Times Square, ordenei ao chofer que parasse, resolvida a voltar sozinha. Ao deixar o táxi, tanta pressa tive, e tal era a minha cólera, que sem dúvida deixei cair a bolsa e as luvas, cuja falta notei só depois que o táxi se foi. Sem dinheiro, pois, tive de regressar a pé. E esses objetos foram encontrados em casa do Sr. Benson porque ele os levou para lá.
— Foi exatamente o que supus. Mas... Que longa caminhada deu a senhora até aqui!
E, voltando-se para Markham com um sorriso cruel, acrescentou:
— Já vê que Miss St. Clair não poderia chegar aqui antes de uma hora...
Markham, severo e sombrio, nada retrucou.
— Agora, — continuou Vance, — desejaria saber em que circunstâncias foi feito o convite para jantar.
Uma sombra escureceu-lhe a face, mas a voz não se alterou.
— Perdera muito dinheiro na casa Benson, e tive a intuição de que o Sr. Benson o fizera de propósito, e poderia, se quisesse, ajudar-me a recuperar o que perdera. Há algum tempo que me importunava com seus galanteios, — continuou ela, baixando os olhos, — mas não lhe atribuí nenhum mau desígnio. Fui ao escritório e disse-lhe francamente o que pensava; respondeu-me que, se eu jantasse com ele naquela noite, poderíamos falar a respeito disso. Não me iludi com o seu propósito, mas estava tão desesperada que resolvi aceitar, contando convencê-lo de que devia ajudar-me.
— E em que termos lhe disse a senhora que o seu jantar devia terminar a uma hora certa?
Ela olhou para ele admirada, mas respondeu sem hesitar:
— Ele falou em uma festa, mas eu disse-lhe — e muito seriamente — que, se eu fosse, sairia à meia-noite, rigorosamente. como é meu costume invariável em todas as festas... Porque eu levo muito a sério meu estudo de canto, e imponho-me o sacrifício — ou antes, a restrição — de recolher-me à meia-noite, seja em que ocasião for.
— Um sábio e recomendável hábito! — continuou Vance. — E os seus conhecidos sabem disso?
— Oh, sim, e daí resultou me alcunharem de "Gata Borralheira".
— Sabem-no o coronel Ostrander e o Sr. Pfyfe?
— Sim.
Vance meditou algum tempo.
— E como foi que, no dia do crime, a senhora foi à casa de Benson, e tomou chá com ele, se deviam jantar juntos?
— Nada há que admirar nisso, — declarou ela, ruborizada. — Depois que saí do escritório do Sr. Benson, voltei lá para lhe dizer que resolvera não lhe aceitar o convite. Não o encontrando já ali, fui à sua casa, com o fim de fazer-lhe ainda um apelo final, e pedir-lhe que me desligasse da minha promessa. Pôs o assunto de parte com uma risada, instou para que tomasse chá, e mandou mais tarde um táxi trazer-me aqui em casa para que me vestisse. Às sete e meia veio buscar-me.
— E, quando a senhora lhe pediu para a desobrigar da promessa, tentou assustá-lo, recordando-lhe a ameaça do capitão Leacock; e ele respondeu-lhe que aquilo era apenas uma brincadeira...
— Sim, — murmurou ela, novamente surpreendida. Vance sorriu amàvelmente.
— O coronel Ostrander disseme que a viu no Marseilles em companhia de Benson.
— Sim; e fiquei muito vexada, porque ele tinha-me prevenido contra Benson, alguns dias antes.
— Pois eu os supunha amigos.
— Eram-no — até à semana passada. Mas o coronel perdeu mais do que eu em um jogo de ações que o Sr. Benson manobrara recentemente, e deu-me a entender muito claramente que ele de propósito nos aconselhara mal, em seu próprio proveito. Nem falou com o Sr. Benson naquela noite, no "Marseilles".
— E que me pode dizer sobre as pedras preciosas que acompanharam seu chá em casa de Benson?
— Eram engodos, — respondeu ela, e sorria com um desdém que era a mais eloqüente condenação de Benson, mais ainda do que se ela tivesse recorrido ao pior castigo. — O moço julgou que com isso virava minha cabeça... Ofereceu-me um colar de pérolas para usar no jantar, mas recusei-o. E disseme que, se eu encarasse as coisas como devia — ou outra frase igualmente aliciadora — teria jóias como aquelas, inteiramente minhas, e talvez as mesmas, no dia vinte e um deste mês.
— É isso — no dia vinte e um, — murmurou Vance. —
Está ouvindo, Markham? A promissória de Pfyfe vencia-se a 21, e se não fossei resgatada, as jóias estavam perdidas.
— Tinha ele consigo as jóias ao jantar?
— Oh não! Creio que desanimou, vendo que recusei as pérolas.
Vance encarava-a com simpatia.
— Agora faça o favor de me contar o episódio da arma — em suas próprias palavras, como dizem os juristas, na esperança de confundi-la depois.
Mas, ao que parece, ela não temia ser confundida. E narrou: — Na manhã do dia seguinte ao do crime, o capitão Leacock veio cá e me disse que fora à casa de Benson, mais ou menos à meia-noite, com a intenção de matá-lo. Encontrando do lado de fora o Sr. Pfyfe, e julgando que este tivesse ido fazer uma visita a Benson, abandonara a idéia e se recolhera. Receei que o outro o tivesse visto, e disse-lhe que era mais seguro trazer-me a pistola e dizer, se o interrogassem, que a perdera na França... Veja, senhor, eu pensei realmente, que ele matara Benson, e que... procedia como um cavalheiro, para me poupar desgostos. Quando, mais tarde, ele veio buscar a pistola para jogá-la ao rio, convenci-me inteiramente disso. Sorriu, desanimada, e continuou:
— Aí está por que recusei responder às suas perguntas. Queria que o senhor suspeitasse de mim, para não atribuir o crime ao capitão Leacock.
— Mas é que ele não mentia de modo nenhum!
— Agora sei que não... E devia tê-lo compreendido antes: não me traria a pistola, se fosse o criminoso. Pobre rapaz, — continuou, com os olhos rasos dágua, — confessou porque pensa que fui eu a assassina.
— É precisamente essa a situação, — concordou Vance. — Mas, onde pensou ele que a senhora tinha obtido a arma?
— Conheço muitos oficiais, amigos dele e do major Benson. E no verão passado, nas montanhas, pratiquei bastante tiro ao alvo, a pistola, por divertimento. Oh! a idéia era muito plausível.
Vance levantou-se e cumprimentou-a delicadamente.
— A senhora foi muito amável — e prestou-nos grande auxílio. Veja. o Sr. Markham tinha várias teorias a respeito do assassino. A primeira, parece-me, é que a senhora sozinha era uma Lucrécia Bórgia. A segunda foi que matara Benson, com o capitão, assim como se diz — assassinato a quatro mãos. A terceira, que o capitão puxara o gatilho a capella. E o espírito jurídico é tão estranhamente constituído que pode admitir muitas teorias opostas ao mesmo tempo... E o pior é que Markham está um pouco inclinado a crer que ambos são culpados, individual e coletivamente. Tentei chamá-lo à razão antes de vir aqui, mas perdi meu tempo. Por isso insisti com ele para vir ouvir toda a história dos seus encantadores lábios.
E para Markham, que o encarava de lábios contraídos:
— Então, meu velho, não continua a insistir na culpa de Miss St. Clair ou do capitão Leacock, pois não?... Não vai agora compadecer-se do capitão, e restituí-lo à liberdade, como lhe pedi?
E estendia os braços, num gesto de súplica teatral.
Markham chegara ao limite do furor, e parecia que ia explodir, mas dominou-se, e disse a Miss St. Clair, com tamanha bondade, que me impressionou de novo a sua grandeza de alma:
— Senhorita, asseguro-lhe que abandonei a idéia de que fosse a senhora ou o capitão Leacock quem matou Benson, apesar do que Vance chama meu rígido e incompreensivo espírito jurídico... Perdôo-lhe, contudo, porque ele me impediu de cometer contra a senhora uma grave injustiça. Providenciarei para que tenha o seu capitão de volta tão logo eu possa assinar a ordem de soltura.
Quando íamos de volta, Markham virou-se selvagemente para Vance.
— Então! Eu é que conservava preso o precioso capitão da moça, e você é que teimava comigo para soltá-lo! Você sabe muito bem que eu nunca suspeitei de nenhum dos dois — foi você, só você, lagarto preguiçoso!
Vance suspirou, perguntando, irritado:
— Meu caro amigo! Então você não quer ter nenhum serviço neste caso?
— Que lucra você em me apresentar como um asno, na presença daquela moça? — resmungou Markham. — Não posso compreender o que ganhou você com essa estultice.
— O quê? O testemunho que você acaba de ouvir, vai ajudá-lo poderosamente a encontrar o culpado. Além disso, sabemos como foram as luvas e a bolsa parar à casa de Benson, e quem era a clama que o procurou no escritório, e o que fez Miss St. Clair entre meia-noite e uma hora, e por que ela jantou sozinha com Alvino, e por que tomou chá primeiro com ele,
e como as jóias foram lá ter, e porque o capitão foi buscar a arma à sua casa, e jogou-a fora, e por que ele confessou... Palavra! Não o satisfazem todos esses detalhes? Isso desembaraça a situação de muitas dificuldades... Parou e acendeu um cigarro.
— O que ela nos disse de mais importante foi que seus amigos conheciam seu hábito de retirar-se sistematicamente à meia-noite, de qualquer reunião. Não despreze este ponto, amigo velho: é muito importante. Eu lhe disse há muito tempo que a pessoa que matou Benson sabia que ela jantaria com ele naquela noite.
— Já sei: não tarda que você me diga que sabe quem o matou, — disse Markham, zombeteiro.
Vance, soltando um rolo de fumaça, respondeu:
— Desde o princípio, sempre soube quem matou aquele biltre.
— É mesmo? — retrucou o outro, escarninho. — E quando lhe rebentou no cérebro essa revelação?
— Oh! Apenas cinco minutos depois que entrei na casa do crime, naquela manhã.
— Bem, bem... E por que não me contou tudo, para evitar todos os passos que dei?
— Absolutamente impossível! Você não estava ainda preparado para crer em meus conhecimentos apócrifos. Era preciso que primeiro o guiasse através das várias florestas escuras e dos sombrios tremedais em que você teimava em desgarrar-se... Porque você é tão sem imaginação...
Chamou um táxi que passava, e indicou:
— Rua 48, Oeste, n? 87.
E, segurando com um ar confidencial o braço de Markham:
— Agora, uma rápida palestra com a Sra. Platz. Depois lhe direi ao ouvido meus modestos segredos.
XXI
REVELAÇÕES DA GOVERNANTA
(Quarta-feira, 19 de junho — 5h30 da tarde)
Recebeu-nos a governanta com visível inquietação. Era uma mulher robusta, mas parecia abatida, e lia-se-lhe a ansiedade no rosto. Disse-nos Snitkin, quando entramos, que ela lera cuidadosamente todos os jornais que traziam notícias do caso, e interrogava-o constantemente sobre o assunto.
Entrou na sala sem nos dar muita atenção, e sentou-se na cadeira que Vance lhe ofereceu como uma mulher que se resigna a uma prova terrível, mas inevitável. Ao sentir o olhar penetrante de Vance, encarou-o assustada e voltou o rosto, como se tivesse, naquele rápido olhar, percebido que ele conhecia o segredo que ela guardava zelosamente.
Vance começou seu interrogatório, sem preâmbulos.
— Sra. Platz, o Sr. Benson era muito escrupuloso com a sua peruca — isto é, recebia seus amigos sem colocá-la na cabeça?
— Oh! Não, nunca, senhor! — respondeu a mulher, que pareceu intimamente aliviada.
— Pense bem, Sra. Platz. O Sr. Benson nunca esteve, que a senhora o soubesse, em companhia de ninguém, sem a peruca?
Ela esteve calada por algum tempo, as sobrancelhas contraídas.
— Vi-o tirar uma vez a peruca e mostrá-la ao coronel' Ostrander, um senhor mais idoso do que ele e que costumava vir sempre aqui. Mas o coronel Ostrander era um velho amigo dele, e tinham morado juntos, noutros tempos.
— E ninguém mais?
Franziu a testa, pensativa, novamente, e, depois de alguns minutos, respondeu:
— Não.
— E quanto aos outros homens de negócios?
— Era muito desconfiado com eles... E com os estranhos também; costumava sentar-se aqui, quando fazia muito calor, sem a peruca, mas puxava a cortina daquela janela, — acrescentou, indicando a mais próxima do vestíbulo. — Podia ser visto da escada.
— Estimo que tenha esclarecido este ponto; e da escada. alguém poderia bater na janela, ou nas grades, e atrair a atenção* de quem estivesse na sala?
— Oh, sim, senhor! Facilmente. Eu mesma o fiz, uma vez que saí a um recado e esqueci minha chave.
— Seria assim que entrou em casa o assassino?
— Sim, senhor, — respondeu logo, apegando-se a esta idéia.
— Então essa pessoa devia conhecer muito bem o Sr. Benson para bater na janela em vez de tocar a campainha, não acha, Sra. Platz?
— Sim, senhor, devia... — respondeu ela, mas em tom de dúvida: a pergunta estava acima de sua compreensão.
— Se um estranho batesse à janela, e o Sr. Benson estivesse.--em a peruca, ele o mandaria entrar?
— Oh! Não — ele não deixaria nenhum estranho entrar.
— E a senhora está bem certa de que a campainha não tocou naquela noite?
— Certíssima, senhor, — respondeu, convicta.
— Há luz em frente da escada?
— Não, senhor.
— Se o Sr. Benson tivesse olhado pela janela, poderiai reconhecer quem batia?
— Não sei, — respondeu, hesitante. — Penso que não.
— Pode-se ver quem bate sem abrir a parta?
— Não, senhor. E mais de uma vez o lamentei.
— E se uma pessoa chamasse à janela, o Sr. Benson reconheceria a voz?
— Parece-me que sim.
— E tem certeza de que ninguém pode entrar sem chave?
— Como poderia entrar? A porta fecha por si.
— É fechadura automática?
— Sim, senhor.
— Então deve haver um trinco para se poder abrir a porta de qualquer lado, não?
— Havia um trinco desses, mas o Sr. Benson fixou-o de modo que não podia funcionar. Dizia que era perigoso — eu podia sair e deixar a porta aberta.
Vance foi até ao vestíbulo, e ouviu-o abrir e fechar a porta da frente.
— É como a senhora disse, Sra. Platz, — observou ao voltar. — Agora diga-me: está bem certa de que ninguém tinha outra chave?
— Sim senhor. Ninguém a não ser eu e o Sr. Benson.
— Disse que deixara aberta a porta do seu quarto, na noite em que o Sr. Benson foi assassinado... Era hábito deixá-la assim?
— Não, fechava-a quase sempre. Mas o calor era sufocante, naquela noite.
— De modo que foi acidentalmente que a deixou aberta?
— Exatamente, senhor.
— Se a porta estivesse fechada, como de costume, podia ter ouvido o tiro?
— Se eu estivesse acordada, talvez... Mas, se estivesse dormindo, creio que não. Estas casas antigas têm as portas muito grossas.
— E muito bonitas, também, — continuou Vance, admirando a dupla porta maciça, de acaju, que abria para o vestíbulo.
— Você sabe, Markham, nossa chamada civilização nada mais é do que a persistente destruição de todas as coisas belas e duradouras, e a fabricação de artigos de pouco valor. Você deve ler o livro de Osvaldo Spengler, Poentes dos Países Ocidentais — um documento muito incisivo. Admira-me que ainda não aparecesse nenhum editor de iniciativa que quisesse embalsamá-lo em nossa gíria nativa. Toda a história desta era degenerada a que chamamos civilização pode ser estudada em nossos trabalhos de madeira. Olhe para esta linda porta antiga, por exemplo, com seus painéis em ângulos agudos ou obtusos, e frisos salientes, suas pilastras jônicas e portais lavrados. E compare-a depois com as tábuas lisas, franzinas, feitas à máquina e pintadas a laça, que por aí existem aos milhares hoje. Sic transit...
Examinou a porta ainda por algum tempo; depois, voltou-se abruptamente para a Sra. Platz, que o olhava com curiosidade e crescente apreensão.
— Que fez o Sr. Benson do estojo de jóias quando foi jantar?
— Nada, senhor, — respondeu ela, nervosa. — Deixou-o ali sobre a mesa.
— Viu-o ali depois que ele saiu?
— Sim, senhor. E ia tirá-lo, mas depois achei que era melhor não tocar nele.
— E ninguém bateu à porta, nem entrou em casa depois que o Sr. Benson saiu?
— Não, senhor.
— Está bem certa disso?
— Absolutamente, senhor.
Vance levantou-se e pôs-se a passear pela sala. De repente, justamente quando passava em frente da mulher, deteve-se e encarou-a.
— Seu nome de solteira era Hoffman, Sra. Platz? Chegara o momento tão temido! Empalideceu, dilataram-se-lhe os olhos, os lábios descaíram.
Vance continuava a olhar para ela, não sem certa bondade. Antes que ela se pudesse refazer, porém, disse-lhe:
— Tive há pouco tempo o prazer de encontrar sua encantadora filha.
— Minha filha?... — gaguejou a mulher, dominando-se.
— Miss Hoffman, a senhora sabe — a simpática jovem de cabelos de ouro, secretária do Sr. Benson.
A mulher empertigou-se e disse, com os dentes cerrados:
— Ela não é minha filha!
— Vamos, vamos, Sra. Platz! — disse Vance, repreendendo-a como se falasse a uma criança. — É tolice querer enganar-me... Lembra-se da sua aflição quando lhe observei que tinha interesse pessoal na dama que estivera aqui tomando chá com o Sr. Benson? Receava que eu supusesse ser Miss Hoffman... Alas nem tinha motivo de se inquietar por causa dela, Sra. Platz. Estou certo de que é uma moça muito séria. E na verdade não deve censurá-la por preferir o nome de Hoffman ao de Platz. Platz significa geralmente um lugar, embora também designe um estalido, ou uma explosão; q algumas vezes um Platz é um bolo fermentado. Mas um Hoffman é um cor-tesão — mais bonito do que um bolo, não é?
Sorria, para encorajá-la, e seus modos afáveis de fato a tranqüilizaram.
— Não é isso, senhor, — disse ela, olhando para ele como se o acusasse — eu é que a fiz usar esse nome. Nesse país qualquer moça inteligente pode vir a ser uma grande drama, se tiver oportunidade. E...
— Compreendo perfeitamente, — interrompeu Vance, gracejando. — Miss Hoffman é hábil, e a senhora receou estorvar o feliz desenlace de seus negócios, se viessem a saber que era filha de uma governanta. Eliminou-se, pois, por assim dizer, para assegurar-lhe a prosperidade. Acho muito generoso o seu procedimento... Sua filha vive sozinha?
— Sim, senhor, em Morningside Heights. Mas eu a vejo todas as semanas, — continuou, em voz apenas audível.
— Sem dúvida — o mais que a senhora pode, estou certo...
E veio trabalhar na casa de Benson por ser ela a secretária dele?
A mulher olhou-o, uma expressão de amargura nos olhos.
— Sim, senhor, foi por isso mesmo. Ela contou-me que espécie de homem era ele; e que muitas vezes a fazia vir aqui à noite para trabalhos extraordinários.
— E quis estar aqui para protegê-la?
— Sim, senhor, foi por isso...
— Por que ficou tão inquieta, no dia seguinte ao do crime, quando aqui o Sr. Markham perguntou se o Sr. Benson tinha armas de fogo em casa?
Ela desviou o olhar, para responder:
— Eu não fiquei inquieta...
— Sim, ficou, Sra. Platz. E vou dizer-lhe por quê. A senhora receou que atribuíssemos o crime a Miss Hoffman.
— Oh, não, senhor! Não foi isso! — gritou ela. — Minha menina nem sequer esteve aqui naquela noite — juro-o! — ela não esteve aqui...
Estava profundamente perturbada: a tensão nervosa que reprimira toda a semana rompera-se enfim, e ela olhava ao redor de si, desamparada.
— Vamos, vamos, Sra. Platz, — disse Vance, em tom consolador. — Ninguém pensa, por um só momento, que Miss Hoffman tomou parte na morte de Benson.
A mulher pareceu esquadrinhar-lhe o rosto. A principio recusava-se a acreditar — era evidente que o medo estivera longo tempo a atormentar-lhe o espírito. Vance levou todo um quarto de hora para convencê-la de que dizia a verdade. E quando, finalmente, saímos, estava relativamente serena.
Em caminho para o Club Stuyvesant, Markham ia silencioso, engolfando em seus pensamentos. Perturbavam-no consideravelmente, sem dúvida, os novos aspectos que ressaltavam da conversa com a Sra. Platz.
Vance fumava, sonhador, voltando a cabeça de vez em quando para examinar os edifícios. Seguimos para leste, atravessando a Rua 48, e quando chegamos em frente da Sociedade Bíblica de Nova York, ordenou ao chofer que parasse e instou para que admirássemos o edifício.
— O cristianismo, — observou ele, — quase que se justificaria só por sua arquitetura. Com poucas exceções, os únicos edifícios que não ofendem a vista, nesta cidade, são as igrejas e construções semelhantes. O credo da estética americana é: "Tudo o que é enorme, é belo". Os americanos adoram estas caixas opressivas em forma de canudo, com buracos regulares. chamadas arranha-céus, simplesmente porque são imensas. Unia caixa com 40 fileiras de buracos é duas vezes mais bela do que uma que só tem 20 fileiras. Simples fórmula, não?... Olhe agora para este pequeno edifício de cinco andares, do outro lado da rua. É infinitamente mais agradável — e mais impressivo, também — do que qualquer arranha-céu.
Vance referiu-se apenas uma vez ao crime durante nossa ida para o clube, e ainda assim, indiretamente.
— Um bom coração, Markham, vale mais que uma coroa. Fiz hoje uma boa ação, e sinto-me perfeitamente virtuoso. Frau Platz dormirá muito melhor esta noite: ela estava transtornada, por causa da pequena Gretchen. É uma velha valente, aquela. e maternal, e tudo o mais. E não pode suportar a idéia de que se levante uma suspeita contra a futura Lady Vera de Vera... Por que será que ela se atormenta assim? — concluiu ele, deitando um olhar materno para o lado do Promotor.
E nada mais se disse, até ao fim do jantar. Terminado este, empurramos para trás as cadeiras e ficamo-nos no jardim do terraço, a contemplar os cimos das árvores de Madison Square.
— Agora, Markham. — disse Vance, — abandone todas as idéias preconcebidas e considere a situação judiciosamente — para me servir de um eufemismo de jurista... Para começar; sabemos agora a razão da angústia da Sra. Platz, quando lhe perguntou sobre as armas de fogo, e por que ela se sentiu aterrada quando lhe observei o seu particular interesse pela jovem que tomara chá com Benson. Assim, esses dois mistérios estão eliminados...
— Mas, como descobriu você seu parentesco com a moça?
— Com meus olhares às furtadelas. Você não se lembra de que eu "espiei" a moça no primeiro dia em que a vi?... Mas eu o desculpo, Markham... E você não se lembra da nossa pequena discussão acerca das idiossincrasias cranianas? Notei à primeira vista que Miss Hoffman possuía a mesma conformação física da governanta de Benson. Era braquicéfala; tinha os ossos da face supero-articulados, a mandíbula ortognata, a estrutura parietal pouco desenvolvida, o nariz mesorriniano... Depois observei-lhe a orelha, porque já tinha notado que a da Sra. Platz era pontuda, sem lobos, orelhas "de fauno" — também chamadas de Darwin. Essas orelhas são hereditárias; e quando vi que as de Miss Hoffman eram do mesmo tipo, ainda que modificadas, adquiri a certeza do parentesco. Mas havia outras semelhanças — a do pigmento, por exemplo; e da altura — ambas são altas. E as massas centrais em ambas são muito desenvolvidas em relação às massas periféricas; os ombros são estreitos e os pulsos e tornozelos finos, enquanto que os quadris são volumosos... Que Hoffman era o nome de solteira da Sra. Platz foi unicamente adivinhação. Mas isso não tem importância...
E acomodou-se na poltrona, continuando:
— Vamos agora às suas considerações jurídicas... Primeiro, presumamos que um pouco antes dos trinta minutos, na noite de treze, o malfeitor foi à casa de Benson, viu luz no salão, bateu na janela e foi imediatamente recebido... Que é que, na sua opinião, indicam estas suposições a respeito do visitante?
— Apenas que era bem conhecido de Benson... Mas isso de nada serve: não podemos estender a suspeição a todas as pessoas que ele conhecia.
— As indicações vão muito mais longe do que isso, velha camarada. Elas mostram, inequivocamente, que o assassino de: Benson era um velho amigo muito íntimo, afinal, uma pessoa diante de quem ele não cuidava das aparências. A ausência da peruca, conforme já lhe lembrei uma vez, é um sinal essencial neste caso. A peruca, você não sabe? É a indumentária imprescindível de todo homem de meia-idade, com aspirações a Belo Brummel — e calvo... Você ouviu o que disse a Sra. Platz a respeito. Pode crer por um segundo que ele, que ocultava sua deficiência capilar até ao caixeiro do armazém, pudesse receber a visita de um simples conhecido, despojado de sua coroa de glória? E além de estar assim pelado, sem os dentes? De mais a mais, sem colarinho nem gravata, e enfronhado em uma velha jaqueta, e de chinelos? Imagine o espetáculo, meu caro!... Um homem não pode parecer atraente sem colarinho, com a camisa aberta e o botão de ouro à mostra. Equivaleria a uma dama de papelotes... Quantos homens pensa você que Benson conhecia, diante de quem seria capaz de aparecer em tais condições de desalinho?
— Não sei... três ou quatro, talvez; mas não posso prendê-los a todos.
— Acredito que você o faria, se pudesse, mas nem é necessário, — retrucou Vance, escolhendo outro cigarro da cigarreira. — Há ainda outras indicações: o assassino estava muito bem inteirado dos arranjos domésticos de Vance. Devia saber que a governanta dormia a uma boa distância da sala e não despertaria com o tiro, se a porta do quarto estivesse fechada, como de costume. Também devia saber que não havia mais ninguém em · casa àquela hora. E outra coisa: não esqueça que sua voz era
perfeitamente familiar a Benson. Se houvesse a mais leve dúvida; acerca disso, Benson não teria aberto a porta, em vista do seu
natural medo de ladrões, e com a ameaça do capitão pendente:sobre a cabeça.
— É uma hipótese aceitável... Que há mais?
— Há as jóias, Markham — essas mensageiras do amor. Pensou nelas? Estavam sobre a mesa quando Benson tomava chá, à tarde, e de manhã tinham sumido... De modo que parece indubitável que o assassino as levou, não acha? E não podem elas mesmas ter chamado ali o assassino? Nesse caso, qual das íntimas "persona grata" de Benson sabia que estavam em casa dele? E quem as desejava particularmente?...
— É verdade, Vance, — disse Markham, sacudindo a cabeça lentamente. — Você acertou. Sempre tive certa desconfiança de Pfyfe, e estava a ponto de mandar prendê-lo, quando Heath me comunicou a confissão de Leacock. Depois, quando seu nenhum valor foi reconhecido, minhas suspeitas recaíram nele... Nada lhe disse porque queria ver aonde iam parar suas idéias, mas o que me diz agora coincide com meu modo de pensar: é Pfyfe o nosso homem...
Baixou repentinamente as pernas da cadeira, clamando:
— E você deixou-o escapar!...
— Não se impaciente, amigo velho. Ele está livre de perigo, ao lado da esposa, eu o espero, ao menos. E seja como for, seu amigo Ben Hudson é tão destro em descobrir fugitivos... Deixe o atribulado Leandro em paz, por hora. Não precisa dele esta noite — e amanhã não o quererá mais.
— Que diz você? Eu não o quererei mais?... E por que, não me dirá?
— Oh! — exclamou Vance, indolentemente, — ele não é amável de nascença, não acha? E não é também vim objeto de beleza deslumbrante... Eu não desejaria tê-lo perto de mim mais do que o necessário... E, por falar nisso, Pfyfe não é o assassino.
Markham, muito perturbado para se irritar, olhou atentamente para Vance.
— Não o compreendo, — disse afinal. — Se não é Leandro,, quem é então o culpado?
Vance olhou para o relógio.
— Vá almoçar comigo amanhã, e leve o relatório que pediu a Heath. Vou-lhe dizer então quem matou Benson.
Alguma coisa no seu tom impressionou Markham. Compreendeu que Vance não faria tal promessa levianamente, sem a certeza de poder cumpri-la. Conhecia-o de sobejo para desprezar, ou sequer diminuir o valor da sua declaração.
— Afãs por que não me diz agora?
— Sinto muito, — lamentou Vance. — Mas vou ao concerto "especial" da Filarmônica esta noite. Tocam a Sonata em Ré Menor, de César Franck, e o temperamento de Stransky se harmoniza tão bem com estas sentimentalidades diatônicas... Você devia ir comigo, Markham. É delicioso para acalmar os nervos, venha!...
— Eu não! — resmungou o Promotor. — Agora só desejo tomar um brandy com soda.
Desceu conosco até o automóvel.
— Vá amanhã às nove, — disse Vance quando nos assentávamos. — Deixe o gabinete esperar um pouco. E não se esqueça de pedir as informações pelo telefone a Heath.
E, no momento em que o carro começava?. mover-se, ainda se inclinou para dizer a Markham:
— Escute, Markham: que altura tem a Sra. Platz?
XXII
A TEORIA DE VANCE
(Quinta-feira, 20 de junho — 9 da manhã)
Markham chegou à casa de Vance às nove em ponto. Vinha de mau humor.
— Vance, — disse assim que se sentou à mesa, — quero saber qual o sentido de suas palavras de despedida ontem à noite.
— Coma esse melão, amigo velho, —.respondeu Vance. — Vem do Norte do Brasil, e está delicioso. Mas não lhe tire o sabor, deitando-lhe pimenta ou sal. Uma estranha prática, embora não tão estranha como a de encher o melão de sorvete. O americano faz as coisas mais espantosas com o sorvete. Ele o mete no pastel, mistura-o com soda; ele o introduz no chocolate puro, como um bombom; imprensa-o entre dois biscoitos doces e chama a isso sanduíche sorvete; e até o usa, em lugar de creme batido, em uma charlotte russa...
— O que eu queria saber...
Mas Vance não lhe deu tempo de acabar.
— É surpreendente ver a quantidade de idéias errôneas do povo acerca dos melões. Há unicamente duas espécies — o melão almiscarado e o melão dágua, ou melancia. Todos os melões alimentícios — como o cantalupo, o limão, o noz-moscada, Cassabas e maná — são variedades do melão almiscarado. Mas o povo, como você, tem a noção de que cantalupo é um termo genérico. Em Filadélfia chamam todo melão "cantalupo". Ora. a verdade é que esse tipo de melão foi cultivado primeiramente em Cantalupo, na Itália...
— Muito interessante, — disse Markham, com mal disfarçada impaciência. — Que pretendia você com aquela observação ontem à noite?
— E, além do melão, Currie preparou-lhe um prato especial. É a minha obra-prima culinária — com a colaboração de Currie, já se vê.,. Gastei meses na sua concepção — compondo e organizando, por assim dizer. Não lhe dei nome ainda —talvez você possa lembrar um nome apropriado... Para executar esse prato, pica-se em primeiro lugar um ovo bem cozido, e mistura-se-lhe queijo Port du Salut ralado; adiciona-se um nadinha de estragão. Essa pasta é então enrolada em um filete de perca branca — como uma panqueca. Amarra-se com um fio de seda, cobre-se com uma massa de amêndoas especialmente preparada, e frita-se em manteiga fresca. Isto, sem dúvida, é a explicação mais resumida do preparo, omitidos todos os detalhes.
— Deve ser muito gostoso, — disse Markham, sem nenhum entusiasmo. — Mas eu não vim aqui para uma lição de cozinha...
— Você menospreza a importância dos prazeres do estômago, Markham. A alimentação é um guia infalível no progresso intelectual de um povo, assim como a medida exata do temperamento dos indivíduos. O selvagem cozinhava e comia como selvagem. Na infância da raça, o gênero humano foi afligido por uma vasta epidemia de indigestão. Houve o diabo a quatro, e apareceram idéias infernais: eram os pesadelos da dispepsia. Depois, quando o homem começou a assenhorear-se da técnica da cozinha, tornou-se civilizado; e quando atingiu os pináculos da arte culinária, também alcançou os pináculos da cultura e da glória intelectual. Quando a arte cio guloso retrocedeu, também o homem retrogradou. A cozinha da América, sem gosto, padronizada, é o símbolo da sua decadência. Uma sopa perfeitamente temperada, Markham, tem mais nobreza do que a Sinfonia em Dó Menor de Beethoven...
Ouvia Markham com ar apavorado a tagarelice de Vance. Fez diversas tentativas para trazer à tona o assunto que lhe interessava, mas Vance, como que não o percebendo, não lhe dava ouvidos.
Somente depois que Currie retirou os pratos, consentiu ele em referir-se ao objeto da visita de Markham.
— Trouxe as informações, Markham?
— E levei cinco horas à procura de Heath, depois que você saiu, ontem à noite.
— Que pena! — disse Vance.
Foi à secretária, tirou de um compartimento uma folha de papel dobrada, escrita de ambos os lados, e deu-a a Markham.
— Desejo que você leia isso e me dê sua douta opinião. Preparei-o ontem, depois do concerto.
Tomei, mais tarde, posse do documento, e arquivei-o com outras notas e papéis concernentes ao caso Benson. Eis o seu texto, palavra por palavra:
HIPÓTESE
A Sra. Ana Platz alvejou e matou Alvino Benson na noite de 13 de junho.
LOCAL
Ela morava na casa, e confessou que estava lá no momento em que o tiro foi disparado.
OCASIÃO
Estava só cm casa com Benson.
As janelas que não eram gradeadas estavam fechadas com ferrolho por dentro. A porta da frente estava fechada. Não havia outro meio de acesso à casa.
Sua presença na sala era natural: podia entrar sem se ocultar, para fazer qualquer pergunta relativa ao governo da casa.
Podia parar em frente de Benson sem provocar sequer um olhar do patrão. Daí sua atitude de quem lia.
Que outra pessoa podia ter chegado tão perto dele com o propósito de alvejá-lo, sem lhe despertar a atenção?
Ele não se preocupava com o trajo diante da governanta. Habituara-a a vê-lo sem dentes nem peruca, e cm roupa caseira.
Vivendo na mesma casa, podia escolher o momento propício para o crime.
MOMENTO
Ela o esperava. A despeito de sua negativa, podia ele ter-lhe dito a hora em que voltaria.
Quando viu o patrão vir só e mudar de roupa, ela compreendeu que não esperava visita alguma.
Escolheu o momento imediato à sua volta porque assim pareceria que ele trouxera alguém consigo, e que essa outra pessoa o matara.
MEIOS
Serviu-se da arma do próprio Benson. É fora de dúvida que ele tinha mais de uma; porque era mais natural que guardasse uma arma no quarto de dormir do que na sala, e uma vez que o Smith and Wesson foi encontrado na sala, é que havia outro no quarto.
Sendo sua governanta, sabia da existência da outra arma em cima. Depois que ele desceu e foi ler para o salão, ela pegou na arma, levantou-a oculta no avental.
Deitou-a fora, ou escondeu-a. depois de atirar: teve para isso toda a noite.
Assustou-se quando interrogada a respeito das armas que Benson teria em casa, porque ficou em dúvida sabre se nós saberíamos ou não que havia outra no quarto.
MOTIVO
Ela foi ser governanta de Benson porque teve medo da conduta dele para com sua filha. Sempre ouvia quando a moca ia à noite trabalhar em casa dele.
Descobrira ultimamente que Benson tinha intenções ignóbeis e acreditou que a filha corria perigo iminente.
Uma mãe que se sacrifica pelo futuro de sua filha, como ela o fez, não hesitaria em matar para salvá-la.
E havia as jóias. Ela ocultou-as e conserva-as para a filha.
Então Benson ia sair deixando o estojo cm cima da mesa? E, se as tivesse posto noutra parte, quem senão ela, familiarizada com a casa, e tendo todo o tempo ao seu dispor, poderia achá-las?
COMPORTAMENTO
Mentiu quando falou na vinda de Miss St. Clair para o chá, explicando mais tarde que a moça não podia estar implicada no crime. Era intuição feminina? Não. Sabia que Miss St. Clair era inocente, unicamente porque era ela mesma a culpada. Como tem o amor maternal muito apurado, não queria que se suspeitasse de uma inocente.
Assustou-se muito ontem, ao ouvir o nome da filha, receando que a descoberta do parentesco viesse a revelar o móvel do crime.
Confessou que ouvira o tiro, porque uma experiência provaria logo que uma detonação na sala seria perfeitamente ouvida no seu quarto: isso daria motivo a suspeitas, portanto. E acaso quem desperta, noite alta, acende as luzes para verificar a hora? No caso de ouvir um disparo dentro de casa, não se teria ela levantado, para verificar a causa, ou dar rebate?
Da primeira vez que foi interrogada, mostrou sem rebuços que não gostava de Benson,
Cada vez que é interrogada, demonstra grande inquietação.
Pertence ao tipo germânico, teimoso, astuto e resoluto, que bem podia, ter não só planejado, mas executado o delito.
ALTURA
Mais ou menos cinco pés e dez polegadas, isto é, a altura demonstrada para o criminoso.
Markham leu o resumo várias vezes — levou um quarto de hora nisso — e ao terminar, afinal, ficou ainda silencioso por alguns minutos. Depois levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro da sala.
— |Não é um documento legal imaginário, — observou Vance. — Mas creio que até um membro do Grande Júri o compreenderia. Você pode, é claro, tornar a escrevê-lo e adorná-lo tom inúmeras frases sem sentido e recônditos termos jurídicos.
Markham não respondeu logo. Parou perto das janelas francesas e olhou a rua. Depois disse:
— Sim, creio que você demonstrou o caso... É extraordinário! Eu tinha curiosidade, desde o princípio, de saber o que você procurava; e suas perguntas de ontem à Sra. Platz me pareceram sem fundamento. Mas confesso que nunca me ocorreu a idéia de suspeitar dela. Benson deve ter-lhe dado sólidos motivos!
Voltou muito devagar, e veio vindo para o nosso lado, a cabeça baixa, as mãos nas costas.
— Não me agrada a idéia de prendê-la... É singular que eu nunca tivesse desconfiado dela.
Parou defronte de Vance.
— E você mesmo, a principio, não pensava nela a despeito de se jactar de saber quem era o assassino cinco minutos depois de entrar na casa de Benson.
Vance sorriu alegremente e agitou-se na cadeira, o que indignou Markham.
— Diabo! Você me disse outro dia que nenhuma mulher podia ter feito isso, fosse qual fosse a prova aduzida, e arengou acerca de arte e de psicologia, e sabe Deus o que mais...
— E é verdade, — murmurou Vance, ainda sorrindo. —
Não foi mulher que matou Benson. j
— Não foi mulher!? — repetiu Markham, cuja indignação subia de ponto.
— Oh! Não, meu caro... — afirmou Vance, apontando para o papel que Markham conservava na mão. Isso é apenas uma pilhéria, sabe?... Pobre da velha Platz... ela é inocente como um cordeiro.
Markham arrojou o papel sobre a mesa e sentou-se. Eu nunca o vira tão furioso; mas dominava-se admiràvelmente.
— Olhe, meu amigo, — disse Vance em sua fala arrastada e indiferente, — tive um desejo irresistível de demonstrar-lhe quão nulas são suas provas materiais e circunstanciais. Sinto-me orgulhoso da minha acusação contra a Sra. Platz. Estou certo de que você poderia convencê-la da verdade desse libelo. Mas, como toda a teoria da sua lei tão elogiada, é ele tão especioso como errôneo... A prova circunstancial, Markham, é a maior asneira que se possa imaginar. Sua teoria discorda da democracia de nossos dias. A teoria democrática é que, se você acumula muita ignorância nas cabeças, produz inteligência; e a teoria da prova circunstancial é que, se você reúne um número suficiente de elos fracos, produz uma cadeia forte.
— Fez-me vir aqui hoje para ouvir uma dissertação sobre a teoria jurídica? — perguntou o Promotor, friamente.
— Oh! não, — assegurou Vance, rindo. — Apenas preciso prepará-lo para aceitar a minha revelação; porque não tenho nem sequer um fragmento de prova material, nem circunstancial contra o culpado. E, não obstante, Markham, eu sei que ele é o criminoso, tão bem como sei que você está sentado nessa cadeira, planejando a maneira de me torturar e matar sem ser punido.
— Se você não tem provas, como chegou a essa conclusão? — indagou Markham, em tom mordaz.
— Unicamente pela análise psicológica — aquilo que chamarei a ciência das possibilidades pessoais. A natureza psicológica de um homem é um estigma tão claro para quem sabe ler nela, como a carta vermelha de Hester Prynne... Eu nunca li Hawthorn, devo dizê-lo. Não posso suportar o temperamento da Nova Inglaterra.
Markham mordeu os lábios e olhou para Vance ferozmente.
— Espera você que eu me vá apresentar diante do tribunal, levando sua vítima pelo braço, e diga ao juiz: "Aqui está o homem que matou Alvino Benson. Não tenho prova alguma contra ele, mas quero que o condene à morte, porque meu brilhante e sagaz amigo, Sr. Philo Vance, o inventor da perca recheada, diz que ele é perverso por natureza..." Você espera isso?
Vance encolheu quase imperceptivelmente os ombros.
— Olhe, eu não vou morrer de desgosto se você não prender o culpado. Mas achei que era mais humano dizer-lhe quem é, ao menos para impedi-lo de atormentar pessoas inocentes.
— Pois bem, diga-me quem é ele, que eu saberei o que me cumpre fazer.
Talvez Markham duvidasse de que Vance sabia na verdade quem era o assassino de Benson. Em todo o caso, essa incerteza, se a houve no seu espírito, se dissipou naquela manhã, em que compreendeu por que Vance o mantivera durante dias suspenso em ansiedade. Quando, afinal, ele o descobriu, perdoou a Vance: mas naquele momento estava furioso a mais não poder.
— Há ainda alguma coisa a fazer antes que eu possa revelar o nome do cavalheiro, — disse-lhe Vance. — Primeiro, deixe-me dar uma olhadela a esse relatório.
Markham tirou do bolso uma folha de papel datilografada e deu-lha.
Vance ajustou o monóculo e leu-a cuidadosamente. Depois se levantou e saiu da sala, e ouviu-o telefonar. Quando voltou, tornou a ler as notas. Uma chamou-lhe a atenção mais particularmente, e ele parecia pesar-lhe as possibilidades.
— É possível, — murmurou afinal, olhando indeciso para o fogão.
Tornou a examinar as informações.
— Vejo aqui que o coronel Ostrander, acompanhado por um vereador de Bronx, chamado Moriarty, assistiu à peça "Loucuras da Meia-Noite" no Teatro Piccadilly, Rua 47, na noite de 13, chegando ali um pouco antes das 12 e permanecendo durante a representação, que foi até às duas e meia da madrugada, mais ou menos. Conhece esse vereador?
Markham encarou-o surpreso e severo.
— Conheço o Sr. Moriarty. Que há com ele? — perguntou., com mal contida excitação.
— Onde se encontram os vereadores de Bronx, pela manhã?
— Em casa, sem dúvida... ou talvez no Club Samoset... Às vezes têm algum trabalho na Municipalidade.
— Palavra que não sei de atividade mais imprópria para um político! E quer você averiguar se ele está em casa ou no. clube? Se não for muito incômodo, gostaria de lhe dizer uma palavra.
Markham lançou ao outro um olhar suspicaz. Depois, sem uma palavra, foi até ao gabinete. Ao voltar, anunciou:
— O Sr. Moriarty estava em casa, pronto para ir para a Municipalidade. Pedi-lhe que, de caminho para a cidade viesse aqui.
— Espero que ele não nos desaponte, — suspirou Vance. — Mas vale a pena tentar.
— Está compondo uma charada? — perguntou Markham,. asperamente.
— Sob minha palavra, velho amigo: não tento perturbar o grande acontecimento. Exerço apenas um pouco daquela fé de que você é tão ricamente dotado — isso é mais desejável do que sangue normando, você bem o sabe... Entregar-lhe-ei o culpado antes que a manhã acabe. Mas preciso assegurar-me de que você o aceita. Estas informações preparam o caminho para o meu golpe... Umálibi, conforme eu já lhe disse, é coisa enganosa e perigosa: abre caminho à suspeita. E a ausência dele também, não tem nenhuma importância. Por exemplo, vejo por este relatório que Miss Hoffman não poderia alegar nenhum álibi para a noite de 13. Ela disse que foi a um cinema e voltou para casa. Mas ninguém a viu em parte alguma. Provavelmente foi à casa de Benson, em visita à mamãe, e lá ficou até tarde. Parece suspeito isso, não? E, no entanto, mesmo que estivesse ali, seu único crime naquela noite foi sua afeição filial... Por outro lado, há alguns aqui que são, como se diz, de ferro fundido — tola metáfora: o ferro fundido quebra facilmente... Ora, acontece que um deles é falso, sei-o eu. Seja camarada, Markham, e tenha paciência, pois é muito necessário que examinemos minuciosamente todos eles.
Quinze minutos depois, chegava o Sr. Moriarty. Era um moço sério, bem apessoado, bem vestido, já próximo dos trinta — não se parecendo em nada com o tipo de vereador que eu imaginara — e falava um inglês claro e preciso, quase sem sotaque.
Markham apresentou-o em poucas palavras, explicando-lhe por que lhe pedira para vir.
— Um dos homens do Departamento de Crimes, — declarou Moriarty — interrogou-me ontem a esse respeito.
— Temos aqui o seu relatório. — disse Vance, — mas é um tanto vago. Quer o senhor dizer-nos exatamente o que fez naquela noite depois que encontrou o coronel Ostrander?
— O coronel convidara-me para jantar e ir depois ao teatro com ele. Encontramo-lo às dez horas, no Marseilles. Jantamos ali e saímos um pouco antes da meia-noite, para ir ao Piccadilly, onde ficamos até às duas e meia, mais ou menos. Eu acompanhei-o até sua casa, onde bebi um pouco, palestrei, e depois tomei o metrô para voltar a casa, cerca de três e meia da madrugada.
— Disse ontem ao investigador que tomara um camarote no teatro?
— É verdade.
— Permaneceram no camarote, o senhor e o coronel, durante toda a representação?
— Não. Depois do primeiro ato, um amigo meu veio ao camarote e o coronel escusou-se e foi até ao lavatório. E após o segundo, eu e o coronel fomos para o corredor, para fumar.
— Poderia dizer que horas eram quando acabou o primeiro ato?
— Meia hora depois da meia-noite, mais ou menos.
— E onde fica situado esse corredor? Se bem me lembro, fica ao lado do teatro e tem saída para a rua?
— É isso mesmo.
— E não há uma porta de saída muito próxima dos camarotes, e que dá para o corredor?
— Há, sim. Passamos por ela naquela noite.
— E quanto tempo esteve o coronel fora, depois do primeiro ato?
— Alguns minutos... Não posso dizer exatamente.
— Voltou ele, então, quando correu o pano para o segundo ato?
— Não me parece, — respondeu Moriarty depois de refletir. Creio que, quando ele voltou, tinha começado o ato há poucos minutos.
— Uns dez, talvez?
— Não posso precisar. Mas com certeza não mais do que isso.
— Então, se dermos dez minutos para o intervalo, o coronel teria estado ausente vinte minutos?
— Sim... É possível.
Terminara a entrevista. Saiu Moriarty, e Vance recostou-se na cadeira, meditativo.
— Que extraordinária coincidência! — comentou ele. — O Teatro Piccadilly fica pertinho da casa de Benson, é só dobrar a esquina. Compreende a situação, Markham?... O coronel convida um vereador para as "Loucuras da Meia-Noite", e toma um camarote perto de uma das saídas para o corredor. Pouco depois da meia-noite, ele abandona o camarote, sai furtivamente pelo corredor, corre à casa de Benson; bate, entra, mata o homem e corre de volta ao teatro... Vinte minutos teriam sido mais que suficientes.
Markham endireitou-se na cadeira, mas não fez comentário algum.
— Agora, vamos às circunstâncias que indicam e confirmam os fatos... Miss St. Clair disse-nos que o coronel perdera muito dinheiro com as manipulações de Benson na Bolsa, e acusava-o de perversidade. Não falava com Benson já há uma semana: logo, havia entre eles uma desinteligência. Viu Miss St. Clair no Marseilles com Benson, e, sabendo que ela sempre se recolhe a casa à meia-noite, escolhe os trinta minutos depois como hora propícia; poderia esperar para mais tarde, mas preferiu escapulir do teatro. Sendo oficial do exército, deve possuir uma pistola Colt 45; e deve ser também bom atirador. Estava ansioso para que você prendesse alguém — fosse quem fosse, parece, e até lhe telefonou para indagar disso. Era uma das pouquíssimas pessoas neste mundo a quem Benson receberia vestido como estava. Conhecia-o intimamente há quinze anos, e a Sra. Platz viu uma vez o patrão tirar a peruca e mostrar-lha. Ainda mais: devia conhecer os costumes da casa, pois é provável que lá tivesse dormido muitas vezes, no tempo em que iniciava seu camarada na vida noturna de Nova York... Que me diz a tudo isto?
Markham levantara-se e passeava no salão, com os olhos quase fechados.
— Então era por isso que você estava tão interessado no coronel — a indagar de todo o mundo se o conhecia, e a convidá-lo para almoçar?... De onde lhe veio a idéia de que ele é o culpado?
— Culpado! — exclamou Vance. — Aquele velho nulo e tolo, culpado! Realmente, Markham, é absurda essa idéia... Estou certo de que ele foi ao lavatório naquela noite para pentear as sobrancelhas e arranjar a gravata. Sentado, como estava, em um camarote, as artistas podiam vê-lo do palco, não é?
Markham parou abruptamente. Ficou vermelho e seus olhos relampejaram. Mas, antes que pudesse falar, Vance, sereno e indiferente à sua cólera, continuou:
— Na verdade, fui de uma felicidade extraordinária! Ele é realmente a espécie de velho chichisbeu que vai para a frente do espelho a se narcisar — até julguei que... Mas palavra! Markham, adiantamos muito esta manhã, apesar de você estar tão aborrecido... Pois agora tem cinco pessoas diferentes a quem pode, com um pouco de habilidade jurídica, imputar o crime. De qualquer maneira, pode acusá-las. Em primeiro lugar, — continuou, meditativo, — vem Miss St. Clair. Você estava quase certo de que ela tinha cometido o delito, e disse ao major que tudo estava pronto para prendê-la; lançava assim às urtigas minha demonstração da altura do assassino, sob o fundamento de que, sendo racional e concludente, nenhum tribunal a levaria em conta. E tenho certeza de que o juiz concordaria com esse parecer... Em segundo lugar, dei-lhe o capitão Leacock. Vi-me obrigado a recorrer à força para impedi-lo de prender o rapaz. Tinha você contra ele a sua deliciosa confissão; e, como ainda lhe.restassem dúvidas, veio ele próprio em seu auxílio, feliz de ser reconhecido culpado. Apresentei-lhe, em terceiro lugar, Leandro, o Formoso. Estava munido de mais provas, contra este, do que em qualquer dos outros casos — uma verdadeira riqueza, em matéria de provas: era só o embaraço da escolha. E qualquer juiz o condenaria com prazer — eu mesmo, quando mais não fosse, pelo seu vestuário. Em quarto lugar, aponto com orgulho para a Sra. Platz — outro caso perfeito, cheio de fios condutores, e inferências, e mil coisas. Quinto, trago-lhe o coronel, a respeito de quem acabo de lhe dar provas comprometedoras; e poderia elaborar, se tivesse mais tempo, um trabalho mais impressionante...
Calou-se, sorrindo francamente, e continuou, amável:
— Note, Markham, que cada membro deste quinteto reúne todos os requisitos exigidos para o culpado presuntivo; cada um deles preenche perfeitamente todas as condições legais: hora, lugar, ocasião, meios, motivo, comportamento... A única coisa que lhes falta é serem culpados. Isso é, concordo, muito inconveniente — mas é assim... Agora, se todas as pessoas contra quem há suspeita são inocentes, que fazer? Que maçada!
Tornou a pegar no relatório.
— Nada a fazer, positivamente, senão continuar a examinar estes papéis...
Eu não podia compreender qual era o fim das suas digressões, aparentemente sem importância nenhuma. Markham, também, estava intrigado; mas nenhum de nós duvidou, por um momento sequer, de que ele procedia metòdicamente.
— Vamos ver, — continuou Vance. — Segue-se, pela ordem, o major. Que diria você de um reconhecimento? Não nos levaria muito tempo: mora perto daqui, e toda justificação se baseia em uma declaração do porteiro que atende à noite no edifício onde está o seu apartamento. Vamos!
— Sabe você se o rapaz está lá agora?
— Sim. Telefonei há pouco.
— Mas isso é um contra-senso!
Vance, levando Markham pelo braço, dirigia-se alegremente para a porta, levando-o depressa.
— Oh! Indubitavelmente! — acrescentou. — Mas tenho-lhe dito tantas vezes, meu amigo, que você leva a vida muito a sério!...
Markham, protestando energicamente, queria voltar, e esforçava-se por desprender o braço, mas foi em vão: Vance tinha decidido ir com ele, e depois de acalorada discussão acabou por ceder.
— Já me vou fartando destas mistificações, — resmungou ele, quando íamos no carro, a caminho.
— E eu, — disse Vance, — já estou farto!
XXIII
EXAMINANDO UM ÁLIBI
(Quinta-feira, 20 de junho — 10h30 da manhã)
O major Benson morava em um edifício de apartamentos, não muito grande, situado na Rua 46, entre a Quinta Avenida e a Sexta. Denominava-se "Armas de Chatham", e só alojava celibatários. A entrada, sob uma fachada simples, mas imponente, era ao nível da rua, e apenas dois degraus davam acesso ao primeiro pavimento. A porta da frente abria para um estreito corredor, tendo à esquerda uma salinha, como um beco. Ao fundo, via-se o elevador, e ao lado deste, por baixo da escada, a mesa telefônica.
Quando chegamos, dois rapazes de uniforme estavam de serviço: um recostado à porta do elevador, outro sentado à mesa telefônica.
Vance deteve Markham à entrada.
— Na noite de 13 estava um destes dois rapazes de serviço, segundo me informaram. Indague qual foi, e intimide-o para que obedeça, dando-lhe a conhecer sua qualidade de Promotor. Depois deixe-o comigo.
Markham, a contragosto, entrou no corredor. Depois de algumas perguntas, levou um deles para a sala de recepção, e explicou-lhe quem era(*).
(*) O rapaz era Jack Prisco; morava na Rua Kelly, 621.
Começou Vance seu interrogatório com o ar confiante de quem não tem dúvida alguma de que aquele a quem interroga conhece perfeitamente o assunto.
— A que hora voltou o major na noite em que o irmão dele foi assassinado?
O moço esbugalhou os olhos.
— Ele chegou mais ou menos às 11 horas, logo que acabou o espetáculo, — respondeu após leve hesitação.
(Para economizar espaço, escrevi o resto em forma de diálogo.)
VANCE — Falou com você, não?
RAPAZ — Sim, senhor. Disseme que fora ao teatro, mas que o espetáculo era péssimo, e que tinha uma terrível dor de cabeça.
VANCE — Como pode você lembrar tão bem o que ele lhe disse há uma semana?
RAPAZ — Porque nessa noite o irmão dele foi assassinado!
VANCE — E esse crime o impressionou tanto, que guardou na memória todos os incidentes da noite, em relação ao major?
RAPAZ — Decerto — ele era irmão do moço que mataram.
VANCE — Quando o major entrou, à noite, disse alguma coisa acerca da data?
RAPAZ — Não, isto é, disse que tivera pouca sorte com o espetáculo, por ser dia 13.
VANCE — Disse mais alguma coisa?
RAPAZ — (fazendo uma momice). Disse, sim senhor, que para mim o dia 13 era de sorte, e deu-me todo o troco que tinha no bolso — níqueis e uma moeda de cinqüenta cents.
VANCE — E quanto somava tudo?
RAPAZ — Três dólares e 45 cents.
VANCE — Depois ele foi para o quarto?
RAPAZ — Sim, senhor, subiu no elevador; ele mora no terceiro andar.
VANCE — E tornou a sair depois disso?
RAPAZ — Não, senhor.
VANCE — Como o sabe você?
RAPAZ — Eu o teria visto, porque estive trabalhando, toda a noite, ou atendendo ao telefone, ou no elevador. Não poderia sair sem que eu o visse.
VANCE — E você esteve sozinho no trabalho toda a noite?
RAPAZ — Depois das dez horas, nunca fica mais de um porteiro.
VANCE — E não há outro meio de sair de casa, senão pela porta da frente?
RAPAZ — Não, senhor.
VANCE — Quando tornou a ver o major?
RAPAZ — (depois de refletir um momento) Chamou para pedir um pedaço de gelo, e eu levei-lhe.
VANCE — A que horas?
RAPAZ — Mas... não sei exatamente... Sim! Já sei! Era meia hora depois da meia-noite.
VANCE — (sorrindo) Por acaso, ele perguntou as horas?
RAPAZ — Sim, senhor, perguntou. Pediu-me que visse no relógio da sala.
VANCE — Conte-me como foi isso.
RAPAZ — Foi assim: eu levei o gelo; ele já estava na cama, e pediu-me que o deixasse no seu jarro, na sala. Quando eu estava ali, pediu-me que visse a hora no relógio da lareira, porque o seu relógio de bolso estava parado e queria acertá-lo.
VANCE — Que mais disse ele?
RAPAZ — Oh! Pouca coisa mais: que não tocasse a sua campainha, fosse quem fosse que o procurasse. Que queria dormir, e não queria que o acordasse.
VANCE — Ele insistiu nisso?
RAPAZ — Muito. Foi ordem terminante.
VANCE — E disse ainda alguma outra, coisa?
RAPAZ — Não. Disse apenas "boa noite" e apagou a luz, e eu desci.
VANCE — Que luz apagou ele?
RAPAZ — A do seu quarto.
VANCE — Podia você ver para dentro do quarto, estando na sala?
RAPAZ — Não. O quarto fica longe.
VANCE — Então como sabe que a luz se apagou?
RAPAZ — É que a porta estava aberta, e a luz refletia na sala.
VANCE — E, quando saiu, você passou pela porta do quarto?
RAPAZ — Certamente, tinha de passar por ali.
VANCE — E a porta estava ainda aberta?
RAPAZ — Sim, senhor.
VANCE — Onde se achava o major, quando você entrou?
RAPAZ — Na cama.
VANCE — Como o sabe?
RAPAZ — (meio irritado) Porque o vi!
VANCE — (depois de uma pausa) Está bem certo de que ele não tornou a descer?
RAPAZ — Eu lhe disse, senhor, que o veria se ele tivesse descido...
VANCE — Não podia ele ter descido enquanto você tinha o elevador em cima, sem que o visse?
RAPAZ — Certamente que podia. Mas eu não subi com o elevador, depois que levei o gelo ao major, senão ali pelas duas e meia, quando o Sr. Montagu se recolheu.
VANCE — Então não subiu com o elevador desde que levou o gelo ao Major Benson, até o regresso do Sr. Montagu?
RAPAZ — Não, senhor, não levei ninguém.
VANCE — E não saiu da portaria durante esse tempo?
RAPAZ — Não. Estive sentado aqui todo o tempo.
VANCE — Então, a última vez que viu o major, ele estava na cama, aos trinta minutos do dia treze.
RAPAZ — Sim, não o tornei a ver senão de manhã cedo, à hora em que uma senhora (*) telefonou, dizendo que seu irmão tinha sido assassinado. Ele desceu, uns dez minutos depois, e saiu.
(*) Trata-se, evidentemente, da Sra. Platz.
VANCE — É só. Agora, não abra a boca a quem quer que seja, sobre a nossa estada aqui, senão você se arrependerá, compreende? Pode voltar ao seu trabalho, — concluiu, dando-lhe um dólar.
Quando o rapaz saiu, Vance, deitando a Markham um olhar aliciante, disse-lhe:
— E agora, meu velho amigo, para melhor proteger a sociedade, e pelos mais altos interesses da justiça, e para benefício de muita gente, e pro bono publico, e tudo o mais, é preciso que você ainda uma vez vá de encontro aos seus próprios princípios — ou como melhor você achar, em termos jurídicos. Em linguagem vulgar: quero dar uma busca no apartamento do major.
— Mas para quê? — protestou Markham em altas vozes. — Você perdeu o juízo? O testemunho deste rapaz é irretorquível... Talvez eu seja pobre de espírito, mas conheço quando uma testemunha diz a verdade!
— E esta disse a verdade, — declarou Vance serenamente. — E é exatamente, por isso que quero ir lá acima. Venha, meu caro Markham... Não há perigo de o major chegar de surpresa a esta hora... Ademais, — continuou, afetuosamente, — você me prometeu seu auxílio, não se lembra?
Foram veemente, mas inúteis, os protestos de Markham — porque Vance foi não menos veemente na insistência; e poucos minutos depois, entrávamos, com o auxílio de uma gazua, no apartamento do major Benson.
A única entrada era uma porta que do hall levava por um corredor estreito em linha reta até à sala, no outro extremo. À direita desse corredor, perto da entrada, ficava uma porta abrindo para o quarto de dormir.
Vance foi direto a sala, que ficava ao fundo do corredor. À direita, via-se a chaminé, com uma prateleira, sobre a qual pousava um relógio de acaju. À esquerda da chaminé, no canto da parede, uma mesinha com um serviço de prata para água gelada — a jarra e seis taças.
— Aqui temos, — disse Vance, — o prestativo relógio e a jarra da prata em que o porteiro deitou o gelo. Imitação de prata Sheffield.
Foi até à janela e olhou para o pátio, que ficava a vinte e cinco ou trinta pés abaixo, observando:
— Não foi pela janela que o major escapou. Voltou-se e ficou um momento a olhar para o corredor.
— A porta estava aberta; logo, era fácil ao rapaz ver na parede branca e lustrosa do corredor o reflexo da luz do quarto.
Entrou depois neste; em frente à porta, uma cama pequena, com dossel, e ao lado, sobre a mesinha de cabeceira, uma lâmpada elétrica. Sentou-se na beira da cama, olhou ao redor, e acendeu e apagou a lâmpada. Depois, voltando-se para Markham:
— Compreende como o major pôde sair sem ser visto pelo rapaz?
— Por levitação, suponho...
— Vem a dar na mesma... — replicou Vance. — É diabolicamente engenhoso, também... Escuta, (Markham: m?ia hora depois da meia-noite, o major chamou e pediu gelo. O rapaz trouxe-lhe e, ao entrar olhou para o quarto, cuja porta estava aberta, e viu o major já deitado. Este lhe disse que pusesse o gelo na jarra da sala. Para isso tinha de atravessá-la e ir até onde estava a mesinha; pediu-lhe então que visse que horas eram no relógio da chaminé: trinta minutos depois da meia-noite. Observou que não queria ser perturbado no seu descanso, deu boa noite, apagou esta lâmpada, saltou da cama — estava vestido, é claro — e saiu àgilmente pelo vestíbulo antes que o rapaz tivesse tempo de despachar o gelo e voltar ao corredor. Desceu a escada correndo e, antes que o rapaz voltasse com o elevador, estava já na rua. Quando passou pela porta do quarto, ao voltar, não podia o rapaz ter visto se o major estava ou não na cama, ainda que tivesse olhando para dentro, porque já estava às escuras. Não é muito engenhoso mesmo?
— Tudo é possível, não há dúvida, mas já lhe falha a fantasia para explicar a volta.
— Pois isso é o mais simples do plano. Provavelmente o major esperou na entrada de alguma casa próxima, até que algum inquilino se recolhesse. Disse o rapaz que o Sr. Montagu voltou pelas duas e meia. Então o major introduziu-se sorrateiramente, quando viu o elevador partir, e subiu pela escada.
Markham, sorrindo pacientemente, nada disse.
— Você percebe o trabalho que teve o major para estabelecer a data e a hora gravando-as no espírito do rapaz: "Um espetáculo sem interesse — dor de cabeça — dia aziago..." Por que aziago? Era dia 13, não o esqueça. Contudo, para o rapaz, foi de sorte: uma mancheia de dinheiro — tudo prata. Singular meio de suborno, pois não? Um dólar seria mais depressa esquecido.
Pelo rosto de Markham passou uma sombra, mas retrucou na mesma voz indulgente de sempre:
— Prefiro seu libelo contra a Sra. Platz.
— Ah! Mas ainda não acabei. Tenho esperança de encontrar a arma, sabe?
Olhava-o agora Markham com um ar de incredulidade divertida.
— Isso seria sem dúvida um fator importante... Mas espera encontrá-la, deveras?
— Sem nenhuma dúvida, — afirmou Vance alegremente, enquanto abria as gavetas do toucador.
— Nosso anfitrião ausente, — continuou ele, — não deixou a pistola em casa de Alvino, e era muito prudente para jogá-la fora... Como serviu na última guerra, e é major, é de esperar que a tivesse; de mais a mais, muitas pessoas devem saber que ele possuía uma arma dessas. E, se é inocente — como espera que o acreditamos — por que não a conservaria em casa e no lugar habitual? A falta da arma, sim, seria mais comprometedora do que a presença dela. Também entra aqui um fator psicológico muito interessante. Um inocente, receoso de ser suspeitado, tê-la-ia ocultado, ou deitado fora, como o capitão Leacock, por exemplo. Mas o criminoso, que quer parecer inocente, tornaria a colocá-la no lugar em que estava antes do crime. Tudo se reduz, portanto, — continuou, enquanto investigava o toucador, — tudo se reduz a descobrir qual era a morada antiga da arma do major... Não é aqui, — disse, fechando a última gaveta.
Abriu um estojo de violino que estava aos pés da cama.
— Nem aqui, — murmurou com indiferença. — Resta o guarda-roupa: é o único lugar onde pode estar.
Atravessou o quarto, abriu a porta do guarda-roupa e acendeu a lâmpada. Na prateleira superior, bem à vista, estava um cinturão do exército, com um coldre bojudo. Vance pegou nele com extrema delicadeza e veio colocá-lo sobre a cama, junto à janela.
— Aqui tem você, velho camarada, — anunciou alegremente, curvando-se sobre o cinto, que examinava atentamente.
— Queira tomar nota de que todo o cinturão e o coldre — com exceção unicamente da virola deste — estão cobertos de uma camada espessa de pó. A virola está relativamente limpa, o que demonstra que foi aberto recentemente... Não é conclusivo, de certo; mas você aprecia pistas, Markham...
Tirou a pistola do coldre, com muito cuidado.
— Note, também, que a própria arma está sem pó... Presumo que a limparam há pouco tempo.
Introduziu uma ponta do lenço no tambor e, retirando-a, ergueu-a.
— Vê? Até o interior do tambor está imaculado... E aposto todos os meus Cézanne, contra um diploma de doutor em Direito, que não lhe falta uma só bala.
Extraiu as balas e espalhou-as sobre a mesinha, onde ficaram formando uma fileira.
Eram sete — o número completo.
— Apresento-lhe de novo, Markham, uma de suas tão apreciadas pistas. Os cartuchos que ficam por longo tempo em um tambor tornam-se levemente embaçados, porque o fecho não é hermético. A caixa de balas, porém, é perfeitamente fechada, e ali as balas conservam o brilho por muito mais tempo. Observe que esta bala, — continuou, apontando para a primeira que rolara do tambor — a última que foi metida no cilindro, está um pouco mais brilhante do que as suas companheiras. A dedução é — você é um adepto das deduções, não é verdade? — que esta bala é mais nova, e foi posta no tambor há pouco tempo. E, olhando Markham nos olhos, continuou:
— Ela foi posta ali para substituir aquela que o capitão Hagedorn levou.
Markham ergueu a cabeça, sacudindo-a, como se quisesse arremessar para longe uma fascinação, e sorriu, embora com esforço.
— Pois ainda penso que a acusação contra a Sra. Platz é a sua obra-prima.
— Meu quadro do major está ainda apenas em esboço, — respondeu Vance. — As pinceladas reveladoras ainda estão por fazer. Mas, primeiro, vejamos: como sabia o major que seu irmão estaria em casa aos trinta minutos da madrugada de 13? É que ele ouvira Alvino convidar Miss St. Clair para jantar — lembre-se de que Miss Hoffman contou que ele escutava às portas... E também ouviu a moça explicar que infalivelmente à meia-noite se retiraria. Quando eu disse ontem, depois que saímos de casa de Miss St. Clair, que uma frase dela nos ajudaria a encontrar o culpado, referia-me à sua declaração de que era à meia-noite que invariavelmente se recolhia. O major sabia, portanto, que Alvino estaria em casa aos trinta minutos, e além disso estava seguro de que não encontraria ali nenhuma outra pessoa. De qualquer modo, tê-lo-ia esperado, não?... Poderia ele obter uma audiência imediata do irmão, assim em traje caseiro? — Sim. Bateu à janela: o outro reconheceu-lhe a voz, sem nenhuma sombra de dúvida, e imediatamente o recebeu. Alvino não se preocupava com a indumentária em frente do irmão, e não via mal em recebê-lo sem dentes nem cabeleira... Terá o major a estatura requerida? — Tem. Fiquei, de propósito, a seu lado no gabinete do Tribunal, Markham: tem mais ou menos cinco pés e dez polegadas e meia...
Markham contemplava silencioso a pistola descarregada. A voz de Vance era completamente diferente de quando ele enunciava casos hipotéticos contra supostos criminosos, e a Markham não passara despercebida a alteração.
— Vamos agora às jóias, — continuou ele. — Exprimi uma vez a crença de que, se descobríssemos o aval dado por Pfyfe em garantia da promissória, teríamos posto a mão sobre o assassino. Pensava então que o major tinha consigo as jóias; quando, mais tarde, Miss Hoffman contou que ele lhe pedira para silenciar sobre o estojo azul, adquiri a certeza disso. Alvino levou-as para casa naquela tarde, e é fora de dúvida que o major o sabia. E creio até que isso influiu na sua decisão de acabar com a vida do irmão naquela noite: cobiçou essas bagatelas. Markham. Resta apenas encontrá-las, — continuou, levantando-se e dirigindo-se no seu andar cadenciado para a porta. — O assassino carregou-as consigo; elas não podiam ter desaparecido de nenhum outro jeito. Portanto, estão neste apartamento... Se o major as levasse para o escritório, alguém as veria; e, se as depositasse no cofre de algum banco, o funcionário do banco poderia mais tarde recordar esse episódio. Além disso, a mesma psicologia aplicada à arma se adapta às jóias: o major agia sob a presunção de sua inocência; e, de fato, as bugigangas estavam mais seguras aqui do que algures. E ficava tempo de sobra para dispor delas quando tudo serenasse... Venha comigo um momento, Markham. É doloroso, eu sei; e seu coração é muito fraco para um anestésico.
Markham seguiu-o pelo corredor, sob uma impressão de estupor. Grande foi a piedade que me inspirou aquele homem, porque já não havia dúvida alguma de que Vance falava seriamente, ao demonstrar a culpa do major. Na verdade, sempre me pareceu que Markham suspeitava qual a razão por que Vance lhe pedira para averiguar o emprego do tempo do major; e que sua oposição fora devida mais ao grande receio do resultado do que a impaciência diante dos métodos irritantes do outro. Não é que ele fosse capaz de fugir à realidade, a despeito mesmo da velha amizade que o ligava ao major; mas ele se debatia — agora o vejo — contra o inevitável das circunstâncias e esperava contra toda a esperança, fazia empenho de se convencer de que tinha interpretado mal as palavras de Vance, e acreditava que, resistindo com vigor aos próprios passos, poderia alterar o curso dos acontecimentos.
Vance dirigiu-se à sala e parou um momento a examinar os móveis, enquanto Markham permanecia à porta, olhando para ele, os lábios contraídos, as mãos metidas nos bolsos.
— Podíamos mandar um perito esquadrinhar o apartamento, palmo a palmo, — observou Vance, — mas acho desnecessário. O major é um sujeito arrojado e astuto: atestam-no a vasta fronte quadrada, o olhar dominador, o corpo ereto e o ventre côncavo. É rígido em todas as operações mentais. Como o ministro D..., de Poe, acharia pueril a idéia de ocultar as jóias em algum canto obscuro, e nem lhe ocorreu a intenção de escondê-las; apenas resguardá-las onde não estivessem ao alcance da vista. Para isso basta uma fechadura, não? E, como no quarto não havia esconderijo dessa espécie, vim procurá-lo aqui.
Foi até uma pequena secretária de pau-rosa e experimentou todas as gavetas, mas estavam abertas; aberta também uma papeleira espanhola, ao pé da janela.
— Markham, — disse ele, desapontado, — preciso de encontrar ao menos uma gaveta fechada a chave!
Esquadrinhou de novo a sala, e quando já ia voltar ao quarto, desenganado, deu com uma charuteira circassiana, de nogueira, meio oculta sob uma pilha de revistas, na prateleira inferior da mesa de centro. Deteve-se bruscamente, pegou na caixa, e tentou abri-la. Estava fechada.
— Vejamos, — murmurou. — Que fuma o major?... Parece-se que é Romeo y Julieta Perjeccionados, mas estes charutos não são tão preciosos que precisem de ser guardados debaixo de chave...
Pegou numa faca de papel, de bronze, que estava sobre a mesa, e forçou a fechadura, metendo-a numa fenda.
— Você não pode fazer isso! — gritou Markham. E a voz traía-lhe a aflição e reprovação por aquele procedimento.
Mas, antes que ele pudesse alcançar Vance, ouviu um estalido, e a tampa saltou. Dentro aparecia um estojo de jóias de veludo azul.
— Ah! "Jóias mudas, mais eloqüentes do que as palavras!" — exclamou Vance. Markham ficou a olhar para a caixa, com o rosto contraído por trágica aflição. Depois voltou-se devagar e caiu pesadamente em uma poltrona.
— Meu Deus! — murmurou ele. — Não sei no que hei de acreditar!
— Nesse ponto, — retorquiu Vance, — você está nas mesmas condições de todos os filósofos. Mas você estava pronto a crer na culpa de meia dúzia de pessoas inocentes; por que iria agora poupar o major, que é criminoso?
Falava em tom desdenhoso, mas iluminava-lhe o olhar uma luz curiosa e imperscrutável, que desmentia a voz. Veio-me então ao espírito a observação de que, a despeito da amizade indissolúvel que unia aqueles dois homens, eu jamais os ouvira trocar uma só palavra de afeição ou sequer de solidariedade, entre si.
Markham, com os cotovelos apoiados nos joelhos, curvado, a cabeça entre as mãos, era a imagem do desânimo.
— Mas o motivo? — indagou afinal. — Um homem não mata seu irmão por um punhado de jóias!
— Certamente que não, — disse Vance. — As jóias foram um mero acréscimo. Havia um motivo imperioso, fique certo disso. Creio que, quando vier o relatório do perito que foi examinar a escrita, tudo — ou pelo menos uma boa parte — nos será revelado.
— Foi por isso que você quis fazer o exame dos livros? Venha então, — disse Markham, levantando-se resolutamente. — Quero deslindar tudo já.
Vance não se moveu logo. Examinava atentamente um castiçalzinho antigo, de desenho oriental, que estava sobre a lareira.
— Uma excelente cópia! murmurou ele.
XXIV
A PRISÃO
(Quinta-feira, 20 de junho — meio-dia)
Deixando o apartamento, Markham levou a pistola e a caixa de jóias. Foi à farmácia da esquina da Sexta Avenida e telefonou a Heath, para que fosse ter com ele imediatamente ao seu gabinete, e levasse o capitão Hagedorn. Telefonou também a Stitt, o perito, dizendo-lhe que trouxesse o relatório o mais depressa possível.
— Já deve ter observado, — dizia Vance, quando seguíamos para o Tribunal, — a grande vantagem do meu método sobre o seu. Sabendo desde o princípio quem cometeu um crime, não nos deixamos desviar por aparências, ao passo que, sem esse conhecimento prévio, a gente pode ser ludibriada por um astucioso álibi, por exemplo... Pedi-lhe para verificar o emprego do tempo de tanta gente, porque sabia que o major era o criminoso, e havia de tratar de preparar um engenhoso álibi.
— Mas por que requereu tudo aquilo? E para que gastar tempo tentando refutar o do coronel Ostrander?
— E que probabilidade teria eu de obter o do major, se não incluísse seu nome subrepticamente na lista dos outros?... Se eu lhe pedisse para examinar o do major primeiro, você teria recusado. Preferi começar com o do coronel, para despistar — e foi uma sorte essa escolha. Sabia que se eu pudesse utilizar um dos outros, seria mais fácil que você me ajudasse a examinar o do major.
— Mas, se sabia desde o princípio que o major era o criminoso, por que, meu Deus! Por que não me disse, poupando-me toda esta ansiedade?
— Não seja ingênuo, meu velho, — retrucou Vance. Se eu tivesse acusado o major desde o começo, você me teria mandado prender por scandalum magnatum e difamação. Foi somente enganando-o constantemente sobre a culpa do major, foi despistando-o, que eu consegui convencê-lo agora. Contudo, nem uma só vez lhe menti. Repelia constantemente suas idéias, apontando-lhe fatos significativos, na esperança de que você alcançasse a luz por si mesmo; mas você não queria saber de minhas insinuações, ou interpretava-as mal, com uma perversidade irritante.
Markham esteve calado por algum tempo. Depois, respondeu:
— Vejo aonde quer chegar... Mas por que me sugeriu pistas falsas, para depois abandoná-las?
— É que você estava preso, de corpo e alma, à prova circunstancial. Foi unicamente mostrando-lhe que isso não o levaria ao fim desejado, que consegui por o major em evidência. Não tínhamos prova alguma — e ele naturalmente sabe por quê... Ninguém se lembraria sequer de suspeitá-lo: o fratricídio foi sempre considerado, desde os tempos de Caim, como uma monstruosidade — uma coisa inconcebível. Com todos os artifícios imagináveis, você defendia o terreno palmo a palmo, fazendo toda a sorte de objeções, para neutralizar meus humildes esforços... Reconheça, Markham, como bom camarada, que se não fora a minha teimosia, ninguém jamais suspeitaria do major.
— E, ainda agora, há coisas que não chego a compreender. Por que, por exemplo, protestou ele com tanto empenho contra a minha idéia de prender o capitão?
— Você é de uma transparência incrível, Markham! Nunca se lembre de praticar um crime, porque seria imediatamente preso. Pois não vê que o major se tornava ainda mais inatacável, se, em vez de se desinteressar do assunto, defendesse um dos que você acusava? Nem tinha melhor e mais seguro meio de afastar de sua pessoa quaisquer suspeitas. De mais a mais, sabia bem que o seu protesto não o demoveria do cumprimento do dever, porque você é um camarada correto.
— Contudo, ele me deu a entender, uma ou duas vezes, que suspeitava de Miss St..Clair...
— É muito astuto e aproveita-se das oportunidades. O major, inquestionavelmente, planejara o crime de modo que as suspeitas recaíssem sobre o capitão. Leacock ameaçara publicamente seu irmão por causa de Miss St. Clair; e a dama ia jantar sozinha com Alvino. No dia seguinte era este encontrado morto, com uma bala de Colt do exército na cabeça; quem, a não ser o capitão, podia ser acusado? O major sabia que o capitão morava só, e que lhe seria difícil apelar para um álibi... Vê agora, Markham, a astúcia que empregou, indicando Pfyfe como fonte de informações? Sabia que Pfyfe, ao ser interrogado, contaria logo a ameaça ouvida. E não esqueça que a alusão a Pfyfe foi, na aparência, resultado de uma reflexão tardia: queria que parecesse casual. Diabòlicamente astucioso, não?
Mergulhado em profunda tristeza, Markham o escutava, sem replicar.
— Vejamos a oportunidade de que tirou vantagem, — continuou Vance. — Você transtornou-lhe os planos, dizendo que sabia quem jantara com Benson, e que já possuía provas bastantes para um mandado de prisão preventiva; isso chamou-lhe a atenção. Ele sabe que, nesta muito cavalheiresca cidade, nenhuma mulher bonita seria acusada de um assassinato, seja qual for a prova contra ela; por instinto, preferia que não se punisse ninguém, por aquele crime. Assim, desejava que você dirigisse suas suspeitas para a moça — e manejou habilmente, fingindo sempre que hesitava em envolvê-la no caso.
— E foi por isso que você me sugeriu que eu lhe deixasse entrever que me mandara examinar os livros da firma por causa dela?
— Exatamente!
— E a pessoa a quem ele na verdade protegia...
— Era a si próprio. Mas queria fazer você crer que era a Miss St. Clair.
— Se você estava certo de que era ele o culpado, por que meteu o coronel Ostrander no caso?
— Na esperança de que ele nos fornecesse mais lenha para a fogueira do major. Eu sabia que ele conhecia Alvino e toda a sua camarilha; e também que era um bisbilhoteiro emérito, que forçosamente farejaria a inimizade entre os irmãos Benson, e suspeitaria da verdade. Também me convinha lançar uma vista de olhos sobre Pfyfe, para afastar qualquer suspeita, por mais remota que fosse.
— Mas nós já sabíamos o bastante a respeito de Pfyfe...
— Oh! Não me refiro às indicações materiais; queria saber alguma coisa do seu caráter — da psicologia, e principalmente da personalidade do jogador. O crime revelava um jogador calculista e de sangue-frio; e só um homem desse tipo poderia tê-lo cometido.
As teorias de Vance, aparentemente, já não interessavam tanto o Promotor.
— Você acreditou quando o major lhe disse que o irmão lhe mentira acerca das jóias?
— O velhaco do Alvino provavelmente nunca falou nelas a Antônio. O ouvido à escuta, na porta, por ocasião de uma visita de Pfyfe, teria sido a sua fonte de informações... E por falar nas indiscrições do major, foi isso mesmo que me sugeriu um motivo para o crime. É seu perito Stitt quem nos vai esclarecer este ponto.
— De acordo com a sua teoria, o crime foi concebido precipitadamente.
Esta declaração de Markham, envolvia na verdade uma pergunta.
— Os detalhes da execução foram concebidas apressadamente, — corrigiu Vance. — É fora de dúvida que o major pensava há algum tempo em se desembaraçar do irmão. O que não decidira ainda era o meio e o momento. Teria forjado e rejeitado uma dúzia de planos. No dia 13, porém, apresentou-se a ocasião favorável: todas as condições ajustavam-se ao seu desígnio. Ouviu a promessa de Miss St. Clair de ir jantar com Alvino; logo, sabia também que o irmão estaria só aos trinta minutos e, mais, que se aproveitasse essa hora as suspeitas recairiam sobre Leacock. Viu Alvino pegar no estojo de jóias — outra circunstância providencial. O momento propício, que há tanto tempo almejava, chegara afinal. Faltava apenas preparar o álibi a alegar mais tarde, e combinar o modus operandi. Já lhe demonstrei como procedeu.
Markham, depois de alguns minutos de meditação, ergueu a cabeça.
— Você quase me convenceu. Mas, seja como for, eu examinei o caso e, em verdade, as provas jurídicas são muito escassas.
— Seus tolos tribunais não me interessam, — retrucou Vance, encolhendo os ombros, — e menos ainda suas ineptas regras. Mas, uma vez que está convencido, não me poderá acusar de faltar ao compromisso, não é verdade?
— É verdade, — assentiu Markham tristemente, com os lábios contraídos. — Você executou a sua parte da tarefa, eu farei o que me toca...
Heath e o capitão Hagedorn esperavam no gabinete. Markham cumprimentou-os com a habitual reserva, secamente, até. Pôs-se ao trabalho imediatamente, prosseguindo na dura tarefa com a força de vontade que o caracterizava no cumprimento do dever.
— Creio que afinal, sargento, pusemos a mão no homem. Sente-se, e inteirá-lo-ei do assunto daqui a pouco. Antes, porém, preciso de averiguar alguma coisa. Espere um momento.
— Examine esta arma, capitão, — disse ele ao perito, entregando-lhe a pistola do major Benson, — e diga-me se há algum meio de verificar se foi a que disparou contra Alvino Benson.
Hagedorn dirigiu-se lentamente para a janela. Largando a arma no peitoril, retirou dos bolsos do seu volumoso casaco vários instrumentos, que colocou ao lado da pistola. Depois, ajustando aos olhos uma lente de joalheiro, deu começo a uma série, que me pareceu interminável, de pesquisas no mecanismo. Abriu as chapas da coronha, puxou para trás o ferrolho e retirou a agulha. Moveu o pistão, desatarraxou o parafuso, e tirou fora a mola do coice. Pensei que ia desarmar toda a pistola, mas, ao que parece, queria apenas fazer penetrar a luz no cano, porque, feito isto, levou a arma até à janela e espiou para dentro durante cinco minutos, movendo-a lentamente para diante e para trás, de modo que o reflexo do sol batesse em diversos pontos do interior.
Afinal, sem uma palavra, reconstituiu lenta e cuidadosamente a arma. Depois, atirando-se sobre uma cadeira sem nenhuma atenção à postura, ali ficou a pestanejar lenta e pesadamente durante algum tempo.
— Digo-lhe, — disse depois, inclinando a cabeça para a frente e encarando Markham por cima dos óculos de aço, — que pode ser esta a arma. Não posso dizê-lo com certeza, mas no outro dia, quando examinei a bala, notei algumas marcas particulares, certos arranhões; e as riscas que se vêem nesta arma parecem coincidir com as da bala. Não estou certo, repito. Gostaria de examinar este cano com o meu helixômetro. (*)
(*) O helixômetro, soube-o mais tarde, é um instrumento que permite examinar todo o interior do cano de uma arma, por meio de um microscópio.
— Mas supõe que seja essa a arma? — insistiu Markham.
— Não posso afirmar, mas creio que sim. Contudo, posso estar enganado...
— Muito bem, capitão. Leve-a, então, e dê-me o resultado assim que a tiver examinado.
— É esta a arma, tenho a certeza, — afirmou Heath, quando Hagedorn saiu. — Conheço este pássaro: ele não teria adiantado tanto, se não estivesse certo do que dizia... De quem é a arma, Sr. Markham?
— Di-lo-ei daqui a pouco, — respondeu Markham.
Lutava contra a evidência, retardando quanto podia a declaração da culpa do major, até que nenhuma escapatória mais lhe restasse.
— Desejo falar com Stitt, — continuou ele, antes de dizer qualquer coisa. — Está encarregado de examinar os livros da firma de Benson, e estará aqui dentro em pouco.
Enquanto esperávamos, Markham tentou ocupar-se de outros assuntos. Stitt entrou, cumprimentou gravemente o Promotor e Heath; depois, avistando Vance, dirigiu-lhe um sorriso aprovador, dizendo:
— O senhor deu-me uma boa tarefa! É que o senhor tinha posto o dedo na ferida. Se tivesse conservado o major afastado da casa, eu poderia trabalhar melhor. Enquanto ele ali esteve, vigiava-me todo o tempo.
— Fiz tudo quanto pude, — disse Vance, suspirando. — Você sabe, — continuou, dirigindo-se a Markham, — ontem, durante o almoço, eu estava pensando no meio de afastar o major do escritório enquanto o Sr. Stitt fazia a investigação; e quando soube da confissão de Leacock, achei o pretexto que buscava... Não é que eu desejasse ver o major — queria dar mão livre ao Sr. Stitt.
— Que encontrou? — indagou o Promotor, dirigindo-se a Stitt.
— Muita coisa! — respondeu ele, laconicamente.
Tirou do bolso uma folha de papel, que colocou em cima da mesa.
— Aqui tem um breve relatório... Segui os conselhos do Sr. Vance e lancei os olhos no livro de registro das existências e no borrador; também examinei a transferência dos depósitos. Não vi as entradas do Diário, concentrei minha busca sobre a atividade dos chefes da firma. Vi que o major Benson hipotecara grande quantidade de títulos que lhe tinham sido transferidos, como colateral, acidentalmente, e que especulara a fundo com ações da Bolsa. Perdeu.rudemente... Quanto, não posso dizê-lo.
— E Alvino? — perguntou Vance.
— Metia-se nas mesmas especulações, mas jogou com sorte. Ganhou muito dinheiro com poules da Columbus Motors, há poucas semanas; e guardou o dinheiro no seu cofre — pelo menos foi o que me disse a secretária.
— E, se o major Benson tinha a chave desse cofre, — lembrou Vance, — foi uma sorte para ele o irmão ter sido assassinado.
— Sorte? — retorquiu Stitt. — Isso o livrará da cadeia.
Quando o contador saiu, Markham ficou como uma estátua, os olhos fixos na parede oposta. Evaporava-se mais uma nuga em que baseava a esperança instintiva de ver provada a inocência do major.
O telefone tocou. Pegou vagarosamente no receptor e, enquanto escutava, vi transparecer-lhe nos olhos a resignação completa. Recostou-se na cadeira, como se se sentisse exausto.
— Era Hagedorn, — disse. — Foi aquela a arma. Depois, endireitou o corpo, e dirigiu-se a Heath:
— O dono da arma, sargento, era o major Benson.
O investigador, assombrado, esbugalhou os olhos e soltou um assobio. Pouco a pouco, porém, voltou-lhe ao rosto a expressão habitual de apatia.
— Isso não me surpreende.
Markham tocou a campainha, ordenando a Swacker:
— Chame o major Benson ao telefone, e diga-lhe... diga-lhe que vou efetuar uma prisão, e desejaria que ele viesse aqui imediatamente.
Creio que todos compreenderam a razão por que incumbiu Swacker do chamado. Fez depois um resumo da acusação contra o major, para auxiliar ainda a Heath; quando terminou, ergueu-se e pôs em ordem as cadeiras em frente à sua mesa.
— Quando vier o major, sargento, vou fazê-lo sentar-se aqui, — disse ele, indicando a cadeira que ficava em frente da sua. Você ficará à direita, e deve chamar Phelps — ou outro, se ele não estiver — para ficar à esquerda. Mas não façam qualquer movimento antes que eu dê o sinal. Então poderão prendê-lo.
Heath foi chamar Phelps, e quando se acomodaram ao pé da mesa Vance disse:
— Aconselho-o, sargento, a estar atento. No momento em que o major compreender o que o espera, cairá sobre você como um cego.
Heath sorriu, um sorriso de grosseiro desdém.
— Não é o primeiro que prendo, senhor Vance, embora lhe agradeça muito o conselho. Além disso, o major não é desta espécie de homens: é muito nervoso.
— Como quiser, — replicou Vance, com indiferença. — Mas está avisado. O major é prudente; tem afrontado grandes perigos, e perderia até o último dólar sem se perturbar. Mas, quando ele se vir encurralado, conhecendo que está derrotado, tudo o que reprimiu a vida inteira, perdendo o freio, explodirá. Porque o homem que vive sem emoções, sem paixões nem entusiasmos, há de atingir um dia ou outro o limite extremo. Em alguns a explosão se resolve pelo suicídio; mas o princípio é o mesmo: uma reação psicológica. O major não pertence ao tipo dos que recorrem à própria destruição — aí está por que digo que vai explodir...
— Pode ser que nós por aqui sejamos pouco entendidos em psicologia, — disse Heath com ironia, — mas conhecemos perfeitamente a natureza humana.
Vance, disfarçando um bocejo, acendeu um cigarro despreocupadamente. Notei, entretanto, que empurrou a cadeira para trás, junto à ponta da mesa, onde ambos nos tínhamos sentado, quando Phelps disse, com a sua voz áspera:
— Muito bem, Chefe. Creio que seus aborrecimentos chegaram ao fim, não? Pois eu estava seguro de que o amigo Leacock era o seu homem... Quem foi que desentranhou o major Benson?
— Ao sargento Heath e ao Departamento de Homicídios caberão todas as honras deste feito, — disse Markham. — Sinto muito, Phelps, mas nem a Promotoria nem nenhum auxiliar seu serão mencionados neste processo.
— Oh! — respondeu Phelps, filosòficamente. — É sempre assim na vida...
Caiu então sobre a sala pesado silêncio, até à chegada do major. Markham fumava, com ar abstrato. Releu várias vezes a folha de papel com as notas de Stitt. Foi até à geladeira, procurar o que beber. Vance abriu um livro de jurisprudência, que por acaso se achava em frente dele, e lia com sorriso divertido a sentença que dera um juiz do Oeste em um caso de suborno. Heath e Phelps, habituados a esperar, mal se moviam.
Entrou o major. Markham cumprimentou-o com exagerada indiferença, mexendo em uma gaveta para evitar o aperto de mão. Heath, entretanto, estava quase alegre. Aproximou a cadeira para o major sentar, e disse uma grande banalidade a respeito da temperatura. Vance fechou o livro e conservou-se sentado, tenso, os pés para trás.
Vinha o major cheio de amável e altiva cordialidade. Se suspeitou de alguma coisa, não o deu a perceber.
— Major, — disse Markham, com a sua voz grave, mas sonora, — desejo fazer-lhe algumas perguntas, se o senhor está disposto a responder.
— Estou às suas ordens, — respondeu o outro prontamente.
— O senhor possui uma pistola, não é verdade?
— Sim. Uma Colt automática, — retrucou o major, dirigindo a Markham um olhar interrogativo.
— Quando limpou e carregou essa arma pela última vez?
— Não me posso recordar exatamente, — disse o major, sem que um só músculo da face se movesse. — Limpei-a muitas vezes. Mas não a carreguei de novo depois que voltei da Europa.
— Emprestou-a a alguém há pouco tempo?
— Não, que me lembre.
Markham pegou em uma das notas de Stitt e examinou-a por um momento.
— Como tencionava satisfazer seus clientes, se eles tivessem reclamado seus depósitos inesperadamente?
O major respondeu, com um movimento de lábios desdenhoso:
— Ah! Então foi para isso que, sob o disfarce da amizade, mandou um homem examinar meus livros!
E subiu-lhe pelo pescoço uma onda de sangue, que o fez vermelho até às.orelhas.
— Não, eu não o mandei lá com esse propósito, — atalhou Markham, ferido com aquela acusação. — Mas hoje de manhã estive no seu apartamento.
— Então é também arrombador? — perguntou o major, rubro de cólera e com as veias da testa intumescidas.
— E encontrei as jóias da Sra. Banning... Como foram parar lá, major?
— Não é da sua conta o modo como foram lá ter, — respondeu ele, com a mesma voz firme e fria de sempre.
— Por que disse a Miss Hoffman que não me falasse nelas?
— Isso também não é da sua conta!
— Também não será da minha conta, — replicou vivamente Markham, — que a bala que matou seu irmão fosse disparada da sua pistola?
O major encarou-o firmemente e retrucou, sarcástico: — Isto é uma espécie de traição que me faz... convidar-me a vir aqui, com o fim de me prender, e fazer-me perguntas que podem comprometer-me, sem que eu suspeitasse de seu intento. Afinal, você não passa de um vilão!
Vance inclinou-se para a frente e disse-lhe em voz baixa, mas cortante como um látego:
— O senhor está louco! Não vê que ele é seu amigo, e faz-lhe essas perguntas no último e desesperado anseio de vê-lo inocente?
O major voltou-se para ele com veemência:
— Não se meta no que não é da sua conta, seu fresco.
— Oh, perfeitamente! — murmurou Vance.
— E quanto a você — e apontava com o dedo trêmulo para Markham — eu lhe farei pagar caro isto!...
E brotavam-lhe dos lábios pragas e vitupérios; tinha as narinas dilatadas, os olhos injetados de sangue. Seu furor ultrapassava os limites da cólera humana; parecia presa de um insulto apoplético — contorcido, repulsivo, insensato.
Markham, de olhos fechados, com a cabeça apoiada nas mãos, suportava tudo pacientemente. Quando, afinal, o furor do major o tornou mudo, ergueu a cabeça e fez sinal a Heath. Era a senha que ele esperava.
Antes, porém, que Heath pudesse fazer um movimento, o major levantou-se. Ao mesmo tempo, girou com o corpo e deu um violento soco na face do sargento. Heath caiu da cadeira e ficou estatelado no chão. Phelps saltou para a frente e abaixou-se; mas o major ergueu o joelho e apanhou-lhe o ventre. Phelps abateu-se e rolou no soalho, gemendo.
Voltou-se então o major para Markham. Os olhos fuzilavam-lhe como os de um louco, tinha os lábios descaídos; o estertor da respiração dilatava-lhe as narinas. Com os ombros encolhidos, os dedos rígidos, era a personificação horrífica do mal.
— Agora você! — gaguejou ele. — E as palavras, guturais e rancorosas, saíam-lhe como num grunhido.
Ao mesmo tempo que falava, saltou para a frente. Vance, que assistira a toda a luta sentado, fumando tranqüilamente, de olhos semicerrados, levantou-se e contornou a mesa rapidamente. Ergueu os braços, segurando o pulso direito do major com uma das mãos e com a outra prendendo-lhe o cotovelo. Depois, pareceu que caía, com um movimento circular, e o braço tolhido do major ficou torcido para cima, por detrás da omoplata. O homem soltou um grito e abateu-se sob a garra de Vance.
Já então Heath tinha-se recobrado. Ergueu-se depressa e correu. Ao estalido das algemas o major caiu pesadamente na cadeira, movendo o ombro com dificuldade.
— Não é nada grave, — disse Vance. — O ligamento escapular um pouco ferido. Em poucos dias estará bom.
Heath adiantou-se, sem uma palavra, estendeu a mão a Vance. Este gesto significava ao mesmo tempo um pedido de desculpa e uma homenagem. Fiquei gostando dele por isso.
Depois que ele saiu com o seu prisioneiro, e que Phelps recostado numa poltrona, fora atendido, Markham pôs a mão no braço de Vance:
— Vamos embora. Estou cansado.
XXV
O MÉTODO DE VANCE
(Quinta-feira, 20 de junho — 9 da noite)
Naquela mesma noite, depois de um banho turco e do jantar, sentamo-nos no caramanchão do Club Stuyvesant. Markham estava triste e fatigado, Vance sereno e amável. Fumamos em silêncio por uma meia hora. De repente Vance, como se continuasse um diálogo interior, observou:
— E são rapazes rudes e sem imaginação como Heath que constituem a barreira humana entre o criminoso e a sociedade! É triste, muito triste!...
— Em nossos dias já não há Napoleões, — respondeu Markham — e, se os houvesse, é pouco provável que fossem investigadores.
— Mas, mesmo que tivessem forte pendor por essa profissão, seriam rejeitados em vista da estatura. Já percebi isso: seus policiais são escolhidos pela altura e peso, embora os únicos crimes em que têm de intervir sejam motins e brigas entre quadrilhas. Volume — eis o grande ideal americano, seja em arte, arquitetura, refeições ou polícias. É encantador!
— Em todo o caso, — disse Markham, conciliante, — Heath possui um coração generoso. Perdoou-lhe tudo.
Vance sorriu.
— A reputação que adquiriu, com os elogios dos jornais desta tarde, bastaria para quebrantar qualquer criatura. Ele perdoaria até ao major o soco que lhe deu. Belo golpe, aquele, baseado na alavanca rotativa. Deve ser forte a constituição de Heath, senão não se recobraria tão prontamente... E o coitado do Phelps! Terá horror a joelhos pelo resto da vida!
— Você calculou certo a reação do major... Estou quase inclinado a crer que há alguma coisa na sua argumentação psicológica, apesar de tudo. Parece que suas deduções estéticas levaram-no à pista certa.
Calou-se por um momento. Em seguida, olhando para Vance com ar indagador, disse:
— Diga-me exatamente, por que desde o princípio você estava convencido de que era o major o assassino?
Vance recostou-se na cadeira.
— Atente, por um momento, para as características — os traços mais salientes — do crime. Antes do tiro, Benson e o assassino, sem nenhuma dúvida, tinham estado conversando, ou discutindo — um sentado, o outro de pé. Depois Alvino pretendeu ler: dissera tudo o que tinha a dizer. O gesto de começar a ler era o fim da palestra: porque ninguém lê quando conversa com outrem, a não ser com algum desígnio deliberado. O assassino, vendo que a situação era desesperada, e tendo vindo preparado para enfrentá-la a todo o custo, puxou a arma, apontou-a à fronte de Benson, e deu ao gatilho. Depois apagou a luz e saiu... Tais são os fatos, indicados e positivos.
Tirou algumas fumaças do cigarro e continuou:
— Analisemos agora esses fatos... Já lhe demonstrei que o assassino não apontou para o corpo, onde teria mais possibilidade de acertar, mas menos de matar. Escolheu o meio mais difícil e arriscado — e, ao mesmo tempo mais certo e eficiente. Sua técnica era, por assim dizer, arrojada, direta e temerária. Só um homem dono de nervos de aço e de um instinto de jogador extremamente desenvolvido a teria posto em prática com tamanha audácia. Logo, todos os nervosos, os coléricos, os impulsivos e os tímidos estavam naturalmente eliminados. O aspecto nítido, diria quase profissional do crime, aliado à ausência de qualquer indício material que pudesse esboçar uma pista, indicavam indubitavelmente que fora premeditado e planejado com precisão e frieza, por um indivíduo absolutamente senhor de si e habituado a afrontar perigos. Nada há neste crime que denuncie sutileza, nem a menor parcela de imaginação. Tudo nele revela um espírito agressivo, bronco — um espírito a um tempo estático, resoluto e intrépido, afeito a encarar fatos e situações de um modo direto, concreto e inequívoco... Markham, você conhece muito bem a natureza humana, para não compreender estas indicações, não é?
— Creio que alcanço o alvo do seu raciocínio, — disse o outro, ainda um tanto duvidoso.
— Então, — continuou Vance, — prossigamos. Determinada com exatidão a natureza psicológica do fato, resta achar uma pessoa interessada, cujo espírito e temperamento sejam tais que, se ela empreendesse uma tarefa destas, em dadas circunstâncias, executá-la-ia precisamente da maneira por que foi feita. Ora, por acaso, eu conhecia o major há muito tempo; e assim não tive dúvida alguma, ao examinar a situação naquela manhã, de que era ele o autor. Aquele crime, em todas as suas minúcias, era uma expressão psicológica perfeita do seu caráter e da sua mentalidade. Mas, ainda que eu não o conhecesse pessoalmente, seria capaz — desde que chegasse a ter um conhecimento tão nítido e apurado da mentalidade do assassino — seria capaz de isolá-lo entre uma multidão de acusados.
— Mas suponhamos que outra pessoa, com o mesmo caráter do major, cometera o crime?
— Todas as criaturas se diferenciam em sua natureza — por maior que seja a semelhança aparente. E, embora mal se possa conceber que outro homem com o caráter e o temperamento do major o cometesse, é preciso ainda assim, levar em conta a lei das probabilidades. Supondo mesmo que haja em Nova York dois homens idênticos na personalidade e nos instintos, teriam ambos um motivo para matar Benson? Contudo, por mais remota que fosse a possibilidade, quando Pfyfe entrou em cena, e eu soube que era um jogador e caçador, aproveitei a ocasião para examinar o caso do seu lado. Como não o conhecia pessoalmente, apelei para o coronel Ostrander, para obter a informação precisa; e o que dele ouvi pôs logo Pfyfe fora de cogitações.
— Contudo, ele tinha fibra: era um especulador arrojado, e certamente tem arrostado muitos perigos, — objetou Markham.
— Ah! Mas é que entre um especulador arrojado e um jogador temerário e equilibrado como o major, há grande diferença — um abismo psicológico. De fato, o impulso que os anima é diverso, oposto até. O aventureiro é movido pelo receio, a esperança, o desejo; o jogador de sangue frio escolhe a ocasião e obedece à convicção e ao raciocínio. Um é emotivo, o outro intelectual. Ao contrário de Pfyfe, o major é um jogador nato, e tem confiança absoluta em si próprio. Essa confiança não é, todavia, negligência, ainda que em essência o pareça: baseia-se em uma crença instintiva na própria infalibilidade e segurança. É o reverso do que os freudianos denominam menosprezo de si próprio — uma forma de egomania, variedade da mania de grandeza. O major a possuía, enquanto que não existia no temperamento de Pfyfe; e como o crime a denunciava no assassino, vi que Pfyfe era inocente.
— Começo a ver, ainda mal distinto, o que você delineia, — respondeu Markham, depois de uma pausa.
— Mas havia ainda outros indícios, psicológicos e de outra espécie: o desalinho do trajo do morto, a peruca, e os dentes no quarto em cima, a familiaridade evidente do assassino com os arranjos domésticos, o fato de ter sido recebido pelo_ próprio Benson, o conhecimento prévio de que Benson estaria àquela hora em casa e sozinho — tudo indica que é o major o culpado. Outra coisa: a estatura do assassino corresponde à do major, indicação que não tem, ainda assim, grande importância; porque, se minhas medidas não combinassem com as do major, eu teria a certeza de que a bala se desviara, a despeito da opinião de todos os capitães Hagedorn do mundo inteiro.
— Por que disse com tanta firmeza que uma mulher não poderia ter cometido o crime?
— Para começar: não era façanha para uma mulher, isto é, nenhuma mulher o teria praticado daquela forma. Uma mulher, ainda que seja a mais cerebral de todas, se comove quando chega a tal extremo que tenha de tirar a vida de alguém.
E a hipótese de que uma delas tivesse concebido friamente semelhante crime, e depois o executasse com tamanha perfeição, mirando um pequeno alvo na testa da vítima, — à distância de cinco ou seis pés — seria contrária a tudo o que sabemos sobre a natureza humana. Além disso, as mulheres nunca discutem de pé, estando seu antagonista sentado. Parece que se sentem mais seguras sentadas. Falam melhor assim; enquanto que os homens falam melhor de pé. Nem uma mulher, parada defronte de Benson, poderia alvejá-lo sem que ele a visse. Meter a mão no bolso é um gesto natural num homem; mas uma mulher não traz bolsos, nem outro lugar onde oculte uma arma, senão sua bolsinha. E um homem está sempre em guarda quando uma mulher encolerizada abre a bolsa de mão diante dele — a incerteza sobre a natureza das mulheres torna os homens suspicazes, quando elas estão excitadas... Mas — era sobretudo a cabeça pelada de Benson e os chinelos o que tornava insustentável a hipótese de uma mulher no crime...
— Você observou há pouco que o assassino fora ali naquela noite preparado para recorrer a meios extremos, se necessário. E disse mais que o crime fora planejado.
— E é verdade. Não são contraditórias essas duas afirmativas. O crime foi premeditado — não há disso a menor dúvida. Mas o major queria dar à vítima uma última oportunidade de salvar a vida. Minha teoria é esta: o major, que se via em apuros de dinheiro, já avistando a cadeia que o esperava, sabia que o irmão tinha no cofre quantia suficiente para salvá-lo; ideou o crime e foi lá naquela noite, pronto a executá-lo. Antes, porém, expôs ao irmão a sua situação, e pediu-lhe o dinheiro. Provavelmente Alvino mandou-o ao diabo. É possível que o major ainda insistisse algum tempo, com o fim de lhe poupar a vida; mas, quando Alvino retornou à leitura, ele conheceu a inanidade de um último apelo e cumpriu o seu espantoso desígnio.
Após fumar em silêncio por algum tempo, Markham observou:
— Admitindo como certo tudo o que você expõe, ainda não compreendi como você podia saber, como podia afirmar, ainda esta manhã, que o major preparara o crime, com o propósito deliberado de fazer as suspeitas recaírem sobre o capitão Leacock.
— Assim como o escultor, conhecendo perfeitamente os princípios da anatomia, pode substituir integralmente a parte que falta a uma estátua, também o psicólogo, que conhece o espírito humano, pode descobrir o fator que falta a uma ação humana. E, entre parênteses, devo acrescentar que toda essa tagarelice sobre os braços da Afrodite de Milos — a Vênus de Milo, você sabe — é da maior frivolidade. Qualquer artista competente, que conheça as leis da estética, poderia restaurar-lhe os braços, tal como eram primitivamente. Essas restaurações dependem apenas do conjunto — o fator que falta deve-se harmonizar com o resto, já conhecido do artista.
Vance sublinhou estas palavras com um gesto delicado.
— Ora, o problema da suspeita errônea é uma minudência importante em todo crime premeditado. E, uma vez que a concepção geral deste crime era positiva, concludente e concreta, claro era que cada uma de suas partes componentes seria positiva, concludente e concreta. Portanto, se o major tivesse apenas preparado as coisas de modo que ele não viesse a ser suspeitado, devia ter sido também negativa a concepção para se ajustar convenientemente aos outros aspectos psicológicos do fato. Isso seria muito vago, muito indeciso, muito indefinido. Um espírito como o que planejou este crime teria logicamente tudo disposto para que não faltasse um agente específico e tangível sobre quem recaíssem as suspeitas. Por conseguinte, quando começaram a se acumular as provas materiais contra o capitão e o major se encarniçou em defendê-lo, percebi que fora ele a vítima escolhida. A princípio, confesso, desconfiei que escolhera Miss St. Clair para bode expiatório; mas, quando soube que sua bolsa e luvas estavam em casa de Benson por mero acaso, e me lembrei de que o major nos recomendara Pfyfe como testemunha da ameaça do capitão, compreendi que ele não pretendera de nenhum modo comprometê-la.
Pouco depois, Markham levantou-se e, espreguiçando-se, disse:
— Bem, Vance, sua tarefa está acabada. Agora começa a minha. E preciso de dormir.
Em menos de uma semana, o major Antônio Benson era acusado do assassinato do irmão. Seu julgamento, presidido pelo juiz Rodolfo Hansacker, como está na memória de todos, foi sensacional. A Associated Press dedicou diariamente colunas e colunas ao caso, e durante muitas semanas todos os jornais do país estamparam na primeira página notícias espetaculosas do processo. Não é necessário recordar como a Promotoria conseguiu, após árduo trabalho, destrinçar o caso; nem como foi o crime classificado no segundo grau, pelo caráter indireto das provas; nem, finalmente, os vinte anos de prisão a que foi condenado Antônio Benson, após a apelação para o Tribunal Superior; todos esses fatos são de domínio público.
Markham não funcionou como Promotor: a antiga amizade que o ligara ao acusado não lhe permitira. Ninguém, pois, o censurou quando ele entregou o caso ao seu substituto, Sullivan. O major Benson cercou-se de um corpo tão numeroso de advogados, como raras vezes se tem visto em nossos tribunais. Entre eles viam-se Blashfield e Bauer — aquele preenchendo as funções do solicitador inglês, e este as de advogado. Apelaram ambos para todos os ardis jurídicos de que dispunham, mas as provas acumuladas contra o seu cliente foram esmagadoras.
Certo agora de que o major era culpado, mandou Markham proceder a uma investigação nos negócios dos dois irmãos, e a situação apareceu mais grave do que revelara o primeiro relatório de Stitt. A firma se apropriara sistematicamente de todos os depósitos, utilizando-os em especulações particulares; mas, enquanto Alvino fora bem sucedido, ganhando somas fabulosas, ficara o major quase completamente arruinado. Markham demonstrou que só lhe restava uma esperança de escapar à ação da lei, restituindo os fundos desviados — era a morte imediata do irmão. Verificou-se também, durante o processo, que no dia do crime o major fizera promessas de reembolso, que só poderiam ser cumpridas se recorresse ao dinheiro do irmão. E, o que é mais, baseavam-se essas promessas em somas específicas, pertencentes ao outro; e, em certa instância, empenhara, em uma promissória a vencer-se dentro de quarenta e oito horas, um penhor já hipotecado — fato que por si só o desmascararia, se o irmão fora vivo.
Miss Hoffman foi uma testemunha prestimosa e inteligente na acusação. O conhecimento que tinha das condições da firma Benson Benson trouxe grande contribuição contra o major.
A Sra. Platz também depôs, e disse que ouvira mais de uma vez disputas acrimoniosas entre os dois irmãos. Narrou que, cerca de duas semanas antes do crime, o major, que esperara inutilmente que Alvino lhe emprestasse 50.000 dólares, o ameaçara com estas palavras:
"Se algum dia eu tiver de escolher entre a tua pele e a minha, não é esta que eu hei de sacrificar!"
Teodoro Montagu, o homem que, conforme o depoimento do porteiro, se recolhera depois das duas horas na noite do crime, disse que quando seu auto chegou em frente da casa, os faróis iluminaram um homem parado na entrada de uma loja do outro lado da rua, e que o homem se parecia com o major Benson. Pouco efeito produziria este depoimento, se Pfyfe não tivesse vindo, logo após a prisão, dizer que vira o major atravessando a Sexta Avenida, na esquina da Rua 46, quando ele se dirigia ao restaurante de Pietro, em busca de seus frascos de bolso Haig Haig. Explicou que ligara pouca importância ao fato na ocasião, julgando que ele voltava de algum restaurante da Broadway. O major nem o vira.
Este depoimento, aliado ao do Sr. Montagu, anulara o álibi planejado pelo major com tanto cuidado. E, embora a defesa sustentasse obstinadamente que ambas as testemunhas se haviam enganado, a prova impressionou profundamente o júri, especialmente quando o Promotor substituto, Sullivan, guiado por Vance, explicou detalhadamente, expondo diagramas sobre o modo como o major podia ter saído e voltado naquela noite, sem que o porteiro o visse.
Provou-se também que as jóias só podiam ter sido retiradas do teatro do crime pelo assassino. E eu e Vance fomos chamados a depor como testemunhas da sua descoberta em casa do major. Foi apresentada ao tribunal a demonstração da estatura do criminoso, feita por Vance, mas, coisa curiosa, teve pouco peso, porque a solução se perdeu em um emaranhado de objeções científicas. A identificação da pistola pelo capitão Hagedorn foi o obstáculo mais difícil que se apresentou à defesa.
O júri durou três semanas e houve revelações escandalosas, apesar de Sullivan, a conselho de Markham, se haver empenhado para reduzir ao mínimo possível os casos particulares de pessoas inocentes que se viram, por infelicidade, envolvidas no episódio. O coronel Ostrander, contudo, jamais perdoou a Markham não o ter chamado a depor.
Durante a última semana do júri, Miss St. Clair apareceu como prima donna em uma opereta que se conservou dois anos no cartaz de um teatro da Broadway. Casou depois com o seu cavalheiresco capitão, e parecem perfeitamente felizes.
Pfyfe continua casado, e mais elegante do que nunca. Vai regularmente a Nova York, apesar da ausência do seu "caro amigo Alvino". Encontrei-o, por acaso, em companhia da simpática Sra. Banning. Pfyfe pagou — como, não sei! — os 10.000 dólares e recuperou as jóias dela. Não se divulgou, no julgamento, que lhe pertenciam, o que muito me alegrou.
No dia em que fora pronunciado o veredicto contra o major, estávamos sentados no Club Stuyvesant, eu, Markham e Vance. Jantáramos ali, mas nem uma palavra dissemos sobre os acontecimentos das últimas semanas. Mas agora, eu via um sorriso irônico surgir sorrateiro nos lábios de Vance.
— Markham! — disse ele na sua voz arrastada. — Que grotesco espetáculo o do tribunal! A prova evidente nem sequer foi apresentada. Benson foi condenado absolutamente sobre suposições, presunções, ilações e inferências... Deus ajude o inocente Daniel que inadvertidamente cai em uma cova de leões judiciais!
Com grande surpresa ouvi Markham aprovar gravemente estas palavras.
— Sim, mas se Sullivan tentasse basear uma acusação sobre o que você chama suas teorias psicológicas, teria sido decretada a insanidade mental dele.
— Sem nenhuma dúvida, — disse Vance, suspirando. — Seus iluminados da lei teriam pouco que fazer se você tratasse esses assuntos com mais inteligência.
— Teoricamente, — replicou Markham, afinal, — seu método é muito claro. Mas receio que, depois de ter lidado por tanto tempo com os fatos materiais, não os possa abandonar para me ocupar de psicologia e de arte... Contudo, — acrescentou em tom brincalhão, — se algum dia minhas provas jurídicas falharem, posso chamá-lo para meu assistente?
— Estarei sempre pronto para servi-lo, meu velho, — replicou Vance. — Eu creio, entretanto, que é quando a prova jurídica o atrai irresistivelmente para a sua vítima que você necessita mais de mim, não?
E esta observação, dita apenas como uma frase de espírito, transformou-se, na verdade, em uma estranha profecia.
S. S. Van Dine
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