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Series & Trilogias Literarias
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AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES
A DELEGAÇÃO DO MINISTRO alemão foi a primeira a chegar. Viktor Orlov achou isso perfeito, pois sempre tinha visto os alemães como expansionistas por natureza. Passaram
pelo controle de passaportes com a ajuda de um agente britânico e foram levados até o hall de chegadas, onde uma linda jovem — russa, mas não descaradamente — estava
atrás de um quiosque improvisado onde se podia ler INICIATIVA DE NEGÓCIOS EUROPEIA. A garota verificou os nomes deles e os acompanhou até um luxuoso ônibus que os
levou até o hotel Dorchester, o hotel oficial da conferência. Só um membro da delegação, um suplente que fazia algo envolvendo comércio, reclamou de suas acomodações.
Foi, tirando isso, um bom começo.
Os holandeses chegaram logo depois, seguidos pelos franceses, os italianos, os espanhóis, e um grupo de noruegueses que pareciam ter vindo a Londres para um funeral.
Então foi a vez dos industriais do aço alemães, seguidos pelos da indústria automobilística, e os de eletrodomésticos. A delegação da indústria de moda italiana
fez uma chegada espalhafatosa, e a mais silenciosa foi a dos banqueiros suíços, que de alguma forma conseguiram chegar sem serem notados. Os gregos enviaram um único
vice-ministro cujo trabalho era pedir dinheiro. Orlov o chamava de Ministro com o Chapéu na Mão.
A seguinte a chegar foi a delegação de Maersk, o conglomerado dinamarquês de transporte e energia. Então, no voo da British Airways do meio da tarde vindo de Viena,
chegou um homem chamado Waleed al-Siddiqi, que antes era de Damasco, depois de Linz, onde tinha participação em um pequeno banco privado. Curiosamente, ele foi o
único convidado que chegou com guarda-costas, tirando o primeiro-ministro italiano, que ninguém queria morto. A garota no quiosque lutou um momento para encontrá-lo
na lista, pois seu nome não estava com o artigo definido al. Foi um pequeno erro, intencional, que o Escritório viu como o selo de qualidade de qualquer operação
bem planejada.
Parecendo um pouco irritado, al-Siddiqi e seus guarda-costas saíram, uma limusine Mercedes de cortesia estava parada no meio-fio. O carro pertencia ao MI6, assim
como o motorista. Cerca de cinquenta metros atrás da limusine havia um Vauxhall Astra vermelho. Nigel Whitcombe estava sentado atrás do volante; Gabriel estava no
passageiro, usando um fone de ouvido minúsculo. O fone, junto com o transmissor escondido ao qual estava conectado, provou ser desnecessário, pois Waleed al-Siddiqi
passou toda a viagem até Londres em completo silêncio. Foi, pensou Gabriel, um bom começo.
Eles o seguiram até o Dorchester; então Whitcombe deixou Gabriel em um apartamento do Escritório não tão seguro em Bayswater Road. Sua sala de estar tinha vista
para Lancaster Gate e o Hyde Park, e foi aí que ele estabeleceu seu modesto posto de comando. Tinha um celular seguro e dois laptops, um conectado à rede do MI6,
o outro conectado à equipe em Linz. O computador do MI6 permitia que ele monitorasse o transmissor que tinha sido colocado no quarto de hotel de al-Siddiqi; no outro,
ele ouvia a transmissão do celular grampeado de Jihan. Naquele momento, ela estava caminhando pela Mozartstrasse, cantarolando baixinho. De acordo com o relatório
de acompanhamento, Mikhail Abramov estava caminhando atrás dela e Yaakov Rossman estava na calçada oposta. Nenhum sinal de oposição. Nenhum sinal de problema.
E foi assim que Gabriel passou aquela longa noite, ouvindo outras vidas, lendo os relatórios concisos de vigilância, pensando em operações anteriores. Ele caminhava
pela sala de estar, repassava as centenas de detalhes, pensava em sua esposa e nos bebês que iam nascer. E às duas da manhã, quando Jihan acordou com um grito de
terror, considerou por um momento que o melhor seria fazê-la desaparecer. Mas não era possível, ainda não. Ele precisava mais do que o caderno de Waleed al-Siddiqi;
precisava do conteúdo de seu computador também. E para isso precisava da filha de Hama.
Finalmente, quando o céu estava começando a se iluminar no leste, ele deitou no sofá e dormiu. Acordou três horas depois com uma matéria da Al Jazeera sobre a última
atrocidade na Síria, seguida pelo barulho de água na Jacuzzi luxuosa do quarto de Waleed al-Siddiqi. O banqueiro saiu de seu quarto às oito e meia, e, acompanhado
por seus guarda-costas, desfrutou do abundante bufê do Dorchester. Enquanto estava lendo os jornais matutinos, uma equipe do MI6 verificava o quarto para ter certeza
se ele tinha esquecido seu caderno. Não tinha.
Saiu pela porta do hotel sem seus guarda-costas às 9h20, um conjunto de credenciais penduradas no pescoço por uma tira azul e dourada. Gabriel sabia disso porque
uma foto de vigilância do MI6 apareceu em sua tela de computador dois minutos depois. A foto seguinte mostrava al-Siddiqi dando seu nome à mesma garota russa que
o havia esperado no aeroporto. E em seguida ele estava entrando em um ônibus luxuoso que o levou para a parte leste de Londres, até a entrada de Somerset House.
Outro operativo do MI6 tirou uma foto quando ele desceu do ônibus e caminhou em silêncio por um pequeno grupo de jornalistas. Seus olhos brilhavam com arrogância
— e talvez, pensou Gabriel, um traço de orgulho perdido. Parecia que Waleed al-Siddiqi tinha chegado ao encontro do mundo dos negócios europeu. Sua estadia ali não
seria longa, pensou Gabriel. E sua queda seria mais dura do que a da maioria.
Quando, em seguida, Gabriel viu o banqueiro, estava cruzando o espaço empedrado da Fountain Courtyard. Então, dois minutos depois, estava se sentando em uma sala
de eventos enorme, com teto alto e vista para o Tâmisa. À sua esquerda, vestido com vários tons de cinza, estava Martin Landesmann, o suíço bilionário dos fundos
de investimento. O cumprimento deles — que Gabriel foi capaz de ouvir graças a um transmissor do MI6 escondido — foi contido, mas cordial. Landesmann rapidamente
voltou a conversar com um dos executivos do Maersk, deixando al-Siddiqi com um momento para revisar a pilha de materiais impressos que tinha sido deixado em seu
assento. Entediado, fez uma rápida ligação, mas Gabriel não descobriu para quem. Então ouviu-se um som forte que pareciam pregos sendo batidos em um caixão. Mas
não era um caixão; era apenas Viktor Orlov, martelando na mesa para começar a Iniciativa de Negócios Europeia.
Era em momentos como esse que Gabriel ficava feliz por ter nascido em uma família de artistas e não de empresários. Porque nas quatro horas seguintes teve que aguentar
uma discussão enfadonha sobre a confiança do consumidor europeu, margens de lucro antes dos impostos, valores padronizados, razão dívida/renda, eurobônus, bônus
em eurodólares e questões de Euro Equity. Ele agradeceu pelo intervalo ao meio-dia; passou ouvindo Jihan e Dina, que almoçaram na Hauptplatz sob o olhar cuidadoso
de Oded e Eli Lavon.
A sessão da tarde da conferência começou às duas e foi rapidamente sequestrada por Martin Landesmann, que fez um apaixonado discurso sobre o aquecimento global e
os combustíveis fósseis que foi respondido com sinais de desprezo e negativas dos homens da Maersk. Às quatro, uma declaração escrita rapidamente com recomendações
políticas foi aprovada por voto unânime, assim como uma moção secundária defendendo outra reunião em Londres no ano seguinte. No final, Viktor Orlov apareceu para
a imprensa em Fountain Courtyard e declarou que a conferência tinha sido um sucesso. Sozinho no apartamento, Gabriel não quis fazer julgamentos.
Com isso, os delegados voltaram ao Dorchester para relaxar. Al-Siddiqi fez duas ligações telefônicas de seu quarto, uma para sua esposa, a outra para Jihan. Então
subiu a um ônibus para jantar no Turbine Hall do Tate Modern. Ficou sentado entre um par de banqueiros suíços que passaram a maior parte da noite reclamando sobre
as novas regulamentações bancárias europeias que estavam ameaçando seu modelo de negócio. Al-Siddiqi culpou os norte-americanos. Então, em voz baixa, falou algo
sobre os judeus que fez com que os banqueiros suíços gargalhassem.
— Ouça, Waleed — falou um dos gnomos —, você realmente deveria vir nos visitar da próxima vez que estiver em Zurique. Tenho certeza de que podemos ajudá-lo e a seus
clientes.
Os banqueiros suíços disseram ter que viajar cedo e saíram antes da sobremesa. Al-Siddiqi passou uns poucos minutos conversando com um homem do Lloyds sobre o risco
de fazer negócios com os russos e depois resolveu ir embora. Ele dormiu bem naquela noite, assim como Gabriel, e eles acordaram juntos na manhã seguinte com a notícia
de que as forças do governo sírio tinham conquistado uma importante vitória sobre os rebeldes na cidade de Homs. Al-Siddiqi tomou banho e café da manhã de luxo;
Gabriel tomou uma ducha rápida e engoliu uma xícara dupla de café solúvel. Então desceu até Bayswater Road e entrou no lado do passageiro de um Vauxhall Astra que
estava à espera. Atrás do volante, vestido com um uniforme azul de segurança de aeroporto, estava Nigel Whitcombe. Ele se livrou do trânsito matutino e partiram
para Heathrow.
Uma garoa fina estava caindo às 8h32 quando Waleed al-Siddiqi saiu na porta do hotel Dorchester, um guarda-costas de cada lado. Sua limusine de cortesia do MI6 estava
esperando na porta, junto com seu motorista do MI6, que estava parado ao lado do porta-malas aberto, as mãos para trás, balançando-se um pouco.
— Sr. Siddiqi — chamou ele, deliberadamente tirando o artigo definido do nome de seu cliente. — Deixe-me ajudá-los, cavalheiros. — E fez exatamente isso, colocou
as malas no porta-malas e os donos delas dentro do carro: um guarda-costas no banco do passageiro da frente, o outro atrás do motorista e o “sr. Siddiqi” no banco
atrás do passageiro. Às 8h34 o carro entrou em Park Lane. SUJEITO A CAMINHO, dizia a mensagem que apareceu na rede de comunicações do MI6. FOTOS SE FOR NECESSÁRIO.
A corrida até o aeroporto de Heathrow demorou 45 minutos e foi facilitada pelo fato de que o carro de al-Siddiqi era parte de um comboio clandestino do MI6 que consistia
de seis veículos. O voo dele, British Airways 700 para Viena, saía do terminal três. O motorista tirou a bagagem do porta-malas, desejou ao cliente uma boa viagem,
e recebeu um olhar vazio como resposta. Como o banqueiro sírio estava voando de primeira classe, o processo de check-in consumiu apenas dez minutos. A garota no
balcão fez um círculo ao lado do número do portão em seu cartão de embarque e apontou para a área de segurança apropriada.
— É só seguir por ali — falou ela. — O senhor tem sorte, sr. al-Siddiqi. As filas não estão tão ruins essa manhã.
Era impossível saber se Waleed al-Siddiqi se considerava com sorte, porque a expressão que usou ao cruzar o salão muito iluminado com diversos painéis com os status
dos voos era de um homem lutando internamente com questões muito mais complicadas. Seguido por seus dois guarda-costas, ele apresentou seu passaporte e cartão de
embarque para o guarda de segurança para uma última inspeção e depois se juntou à fila menor. Viajante experiente, tirou o casaco sem pressa e removeu os eletrônicos
e líquidos de sua mala. Sem sapatos, viu a esteira puxar suas posses para dentro da máquina de raio-x. Então, quando foi instruído, passou pelo scanner e levantou
os braços como se estivesse se entregando depois de um longo sítio.
Como suas coisas não tinham nada remotamente perigoso, foi convidado a seguir em frente e retirar suas posses do outro lado da esteira. Um casal norte-americano,
jovem e com jeito de rico, esperava na frente dele. Quando suas bandejas de plástico vieram rolando pela esteira, eles agarraram tudo rapidamente e correram para
o saguão. Waleed al-Siddiqi franziu a testa com superioridade e avançou. Pensativo, bateu no bolso da camisa. Então olhou para a esteira parada, e esperou.
Por trinta longos segundos, três oficiais de segurança ficaram olhando para a tela da máquina de raio-x como se temessem que o paciente não conseguiria sobreviver.
Finalmente, um dos oficiais se afastou e, com uma bandeja de plástico na mão, caminhou até onde estava al-Siddiqi. A identificação no bolso do peito do oficial dizia
CHARLES DAVIES. Seu nome verdadeiro era Nigel Whitcombe.
— Essas coisas são suas? — perguntou ele.
— São — respondeu al-Siddiqi, seco.
— Precisamos fazer mais averiguações. Não vai demorar nem um minuto — acrescentou Whitcombe, cordialmente — e depois você poderá seguir.
— Seria possível me dar meu casaco?
— Desculpe — falou Whitcombe, negando com a cabeça. — Algum problema?
— Não — disse Waleed al-Siddiqi, sorrindo forçado. — Nenhum problema.
Whitcombe convidou o banqueiro e seus guarda-costas a se sentarem na área de espera. Então levou a bandeja plástica para trás de uma barreira e colocou-a na mesa
de inspeção, perto da mala de al-Siddiqi. O pequeno caderno de couro estava exatamente onde Jihan Nawaz tinha dito que estaria, no bolso esquerdo do casaco. Whitcombe
rapidamente entregou a uma jovem agente do MI6 chamada Clarissa, que o levou até uma porta ali perto que se abriu quando ela se aproximou. Do outro lado da porta
havia uma pequena sala com paredes brancas ocupadas por dois homens. Um dos homens era o diretor-geral. O outro era um homem com brilhantes olhos verdes e cabelo
grisalho cujas aventuras ela tinha lido nos jornais. Algo fez com que entregasse o caderno ao homem com olhos verdes e não para seu diretor-geral. Aceitando-o sem
dizer nada, ele abriu na primeira página e colocou-o debaixo das lentes de alta resolução de uma câmera. Então colocou seu olho no visor e tirou a primeira foto.
— Vire a página — falou ele em voz baixa e, quando o diretor-geral do MI6 virou a página, tirou outra foto.
— De novo, Graham.
Clique...
— Próxima.
Clique...
— Mais rápido, Graham.
Clique...
— Outra vez.
Clique...
47
LINZ, ÁUSTRIA
A MENSAGEM DE TEXTO APARECEU NO celular de Jihan às dez e meia, horário austríaco: ESTOU LIVRE PARA O ALMOÇO. QUE TAL O FRANZESCO? O assunto era inócuo. A escolha
do restaurante, no entanto, não era. Era um sinal pré-combinado. Por alguns segundos, Jihan sentiu que era incapaz de respirar; Hama, parecia, tinha se apoderado
de seu coração. Foram necessárias várias tentativas antes que ela conseguisse digitar uma resposta com duas palavras: TEM CERTEZA? A resposta voltou rápido: ABSOLUTA!
NÃO VEJO A HORA.
Com a mão tremendo, Jihan colocou seu celular na mesa e tirou o telefone do gancho. Vários números estavam programados nos botões de ligação rápida, incluindo um
que estava marcado CELULAR DO SR. AL-SIDDIQI. Ela repassou seu roteiro mais uma vez. Então apertou o botão. A ligação não foi atendida e por isso Jihan ficou momentaneamente
aliviada. Ela desligou sem deixar mensagem. Então respirou fundo e ligou novamente.
A primeira ligação de Jihan para Waleed al-Siddiqi não foi atendida porque naquele momento o celular dele ainda estava com um oficial de segurança do aeroporto de
Heathrow chamado Charles Davies, também conhecido como Nigel Whitcombe. Quando tocou a segunda vez, ele tinha retomado o controle de seu aparelho, mas estava muito
preocupado para atender; estava verificando se seu caderno de couro ainda estava no bolso esquerdo de seu casaco, e estava. Na terceira ligação, ele estava na área
de duty-free do terminal e de mau-humor. Atendeu com um grunhido.
— Sr. al-Siddiqi — exclamou Jihan, como se estivesse feliz por ouvir o som da voz dele. — Ainda bem que consegui falar com o senhor antes de embarcar no seu voo.
Infelizmente, temos um pequeno problema nas ilhas Caimã. O senhor tem alguns minutos?
O problema, ela falou, eram as cartas autenticadas de incorporação de uma empresa chamada LXR Investments of Luxembourg.
— Qual o problema com elas? — perguntou o sr. al-Siddiqi.
— Elas sumiram.
— Do que você está falando?
— Acabei de receber uma ligação de Dennis Cahill do Trade Winds Bank, em Georgetown.
— Sei quem é.
— O sr. Cahill diz que não consegue encontrar os documentos de registro da firma.
— Eu sei que meu representante deu a ele essas cartas pessoalmente.
— O sr. Cahill não nega isso.
— Então, qual é o problema?
— Tenho a impressão que foram destruídas por engano — disse Jihan. — Ele gostaria que enviássemos novas cópias.
— Quando?
— Imediatamente.
— Por que a pressa?
— Aparentemente, tem algo a ver com os norte-americanos. Não deu nenhum detalhe.
Em voz baixa, al-Siddiqi murmurou uma velha praga sobre mulas e parentes distantes. Jihan sorriu. Sua mãe usava a mesma expressão nas raras ocasiões em que perdia
a paciência.
— Acho que tenho cópias desses documentos no computador da minha sala — falou ele depois de um momento. — Na verdade, tenho certeza.
— O que gostaria que eu fizesse, sr. al-Siddiqi?
— Gostaria que enviasse a esse idiota do Trade Winds Bank, claro.
— Tudo bem se ligar de novo do meu celular? Vai ser mais fácil assim.
— Rápido, Jihan. Já está na hora do meu embarque.
“Sim”, ela pensou, quando desligou o telefone. “Vamos fazer isso rápido.”
Abriu a primeira gaveta de sua mesa e tirou dois itens: um bloco de notas de couro preto e um HD externo, também preto, de 8x11 cm. O HD estava dentro de um bloco
de anotações, por isso era invisível para as câmeras de segurança. Ela pressionou os dois itens firmemente contra a sua blusa, se levantou e caminhou até a porta
do escritório do sr. al-Siddiqi. Digitou o número do celular dele no caminho. Ele atendeu exatamente quando ela chegou na porta.
— Pronto — falou ela.
— O código é oito, sete, nove, quatro, um, dois. Entendeu?
— Sim, sr. al-Siddiqi. Um momento, por favor.
Usando a mesma mão que segurava o celular, ela rapidamente digitou os seis números e apertou ENTER. Os trincos se abriram com um ruído que foi ouvido do outro lado
da ligação.
— Entre — falou o sr. al-Siddiqi.
Jihan abriu a porta. Estava escuro do lado de dentro. Ela não acendeu a luz.
— Estou aqui — disse.
— Ligue o computador.
Ela se sentou na cadeira executiva de couro. Estava quente, como se ele tivesse acabado de se levantar. O monitor do computador, escuro, estava à esquerda, o teclado
alguns centímetros na frente dele, a CPU no chão debaixo da mesa. Ela esticou a mão e realizou sem erros a mesma manobra que tinha praticado tantas vezes na casa
em Attersee — a manobra que tinha praticado no escuro, e com o alemão sem nome gritando que o sr. al-Siddiqi estava chegando para matá-la. Mas ele não estava vindo
matá-la; estava do outro lado do telefone, dizendo com calma o que ela devia fazer.
— Pronta? — perguntou ele.
— Ainda não, sr. al-Siddiqi.
Houve um momento de silêncio.
— Agora, Jihan?
— Agora sim, sr. al-Siddiqi.
— Está vendo a caixa de login?
Ela respondeu que sim.
— Vou lhe dar outro número com seis dígitos. Está pronta?
— Pronta — falou ela.
Ele falou os seis números. Eles levavam ao menu principal do mundo escondido do sr. al-Siddiqi. Quando ela falou de novo, conseguiu parecer calma, quase entediada.
— Funcionou — disse.
— Está vendo minha pasta de documentos principais?
— Acho que sim.
— Clique nela, por favor.
Ela clicou. O computador pediu outra senha.
— É igual à anterior — disse ele.
— Acho que esqueci, sr. al-Siddiqi.
Ele repetiu o número. Quando ela digitou na caixa de login, a pasta de arquivos se abriu. Jihan viu os nomes de dezenas de empresas: de investimentos, holdings,
companhias de desenvolvimento imobiliário, empresas de importação e exportação. Ela reconheceu alguns dos nomes, pois tinha realizado, sem saber, transações relacionadas
a elas. A maioria, no entanto, era desconhecida.
— Digite LXR Investments na caixa de busca, por favor.
Ela fez isso. Apareceram dez pastas.
— Abra a que tem o nome de Registro.
Ela tentou.
— Está pedindo outra senha.
— Tente a mesma.
— Pode repetir de novo, por favor?
Ele repetiu. Mas quando Jihan digitou, a pasta continuou travada e apareceu uma mensagem, avisando contra entradas sem autorização.
— Espere um minuto, Jihan.
Ela apertou o celular contra o ouvido. Podia ouvir o anúncio final de embarque para um voo a Viena e o barulho de páginas sendo viradas.
— Vou lhe dar outro número — falou finalmente al-Siddiqi.
— Pronto — falou ela.
Ele falou os seis novos números. Ela digitou na caixa e falou:
— Consegui.
— Está vendo o arquivo PDF com as cartas de incorporação?
— Estou.
— Anexe em um e-mail e envie àquele idiota do Trade Winds. Mas faça um favor — acrescentou ele rapidamente.
— Claro, sr. al-Siddiqi.
— Envie da sua conta.
— Claro. Ela anexou o documento a um e-mail em branco, digitou seu endereço e clicou em ENVIAR.
— Pronto — falou ela.
— Preciso desligar agora.
— Boa viagem.
A linha ficou muda. Jihan colocou seu celular na mesa do sr. al-Siddiqi perto do teclado e saiu da sala. A porta, quando se fechou, travou automaticamente atrás
dela. Jihan caminhou calma de volta à sua mesa, repassando os seis números em sua cabeça. Oito, sete, nove, quatro, um, dois...
Atrás de uma porta no fundo do terminal três do aeroporto de Heathrow em Londres, Gabriel estava sentado olhando para a tela de um laptop, com Graham Seymour ao
seu lado. Na sua mão havia um flash drive contendo tudo que havia no notebook de al-Siddiqi, e na tela do computador havia um vídeo ao vivo do banco privado do sr.
al-Siddiqi em Linz, cortesia de Yossi Gavish, que estava sentando em um Opel estacionado do lado de fora. O relatório de vigilância não indicava nenhum sinal de
oposição, nenhum sinal de problema. Na lateral havia um relógio em contagem regressiva: 8:27, 8:26, 8:25, 8:24... Era o tempo que faltava para o download do material
do computador do sr. al-Siddiqi.
— E o que acontece agora? — perguntou Seymour.
— Esperamos até que o número chegue a zero.
— E depois?
— Jihan se lembra que deixou seu telefone na mesa do sr. al-Siddiqi.
— Esperamos que al-Siddiqi não tenha uma forma de mudar remotamente o código de entrada de sua sala.
Gabriel olhou para o relógio: 8:06, 8:05, 8:04...
Sete minutos depois, Jihan Nawaz começou a procurar seu celular. Era fingimento, uma mentira, realizada para as câmeras de vigilância do sr. al-Siddiqi e, talvez,
para si mesma. Ela procurou na sua mesa, nas gavetas, no chão ao redor, no lixo. Procurou até no banheiro e na cozinha, apesar de que tinha certeza de que não tinha
ido a nenhum dos dois lugares desde que usou o telefone pela última vez. Finalmente, ligou para seu número do telefone de linha em sua mesa e ouviu como ele tocava
baixinho do outro lado da porta do sr. al-Siddiqi. Ela xingou em voz baixa, novamente para as câmeras do sr. al-Siddiqi, e ligou para o celular dele para pedir permissão
para entrar em sua sala. Não houve resposta. Ela ligou de novo com o mesmo resultado.
Ela desligou o telefone. Claro, ela pensou para si mesma, o sr. al-Siddiqi não se incomodaria se ela entrasse no escritório dele para pegar seu celular. Afinal,
ele tinha acabado de dar acesso aos arquivos mais particulares dele. Ela verificou a hora e viu que tinham se passado dez minutos. Então pegou um bloco de anotações
preto e se levantou. Forçou-se para caminhar tranquila até a porta dele; sua mão parecia dormente quando digitou os seis números no teclado: oito, sete, nove, quatro,
um, dois... O trinco se abriu imediatamente com um barulho forte. Ela imaginou que era o barulho da arma que iria dar um tiro fatal em sua cabeça. Abriu a porta
e entrou, cantarolando algo baixinho para esconder seu medo.
A escuridão era impenetrável, absoluta. Ela caminhou até a mesa e colocou sua mão direita sobre seu celular. Então, com a esquerda, colocou o bloco em cima de outro
idêntico que tinha deixado ali dez minutos antes — o que estava escondendo o HD externo das câmeras do sr. al-Siddiqi. Com um movimento rápido desconectou o USB
e levantou os três itens — o HD e os dois blocos de anotações idênticos — colocando-os na frente da sua blusa. Então saiu e fechou a porta atrás de si. Os trincos
se travaram com outro barulho de tiro. Quando voltou à sua mesa, seus pensamentos foram novamente tomados por números. Eram os números de dias e horas que ela ainda
tinha para viver.
À uma hora da tarde, Jihan informou a Herr Weber que estava saindo para almoçar. Ela pegou sua bolsa e colocou seus óculos de sol de atriz de cinema. Depois, dando
um aceno seco para Sabrina, a recepcionista, saiu. Um bonde estava esperando na rotatória; ela subiu rapidamente, seguida, alguns segundos depois, pelo homem alto
com pele pálida e olhos cinzentos. Ele se sentou mais perto de Jihan do que o normal, como se estivesse tentando deixá-la tranquila; e quando desceu em Mozartstrasse,
o que tinha o rosto marcado estava esperando para caminhar com ela até Franzesco. A mulher que conhecia como Ingrid Roth estava lendo D. H. Lawrence numa mesa banhada
pelo sol. Quando Jihan se sentou em frente, ela abaixou o livro e sorriu.
— Como foi sua manhã? — perguntou ela.
— Produtiva.
— Está na sua bolsa?
Jihan assentiu.
— Vamos pedir?
— Não consigo comer.
— Coma algo, Jihan. E sorria — acrescentou ela. — É importante que você sorria.
O voo 316 da El Al parte de Heathrow diariamente às 14h20 do terminal um. Gabriel subiu poucos minutos antes de a porta se fechar, colocou sua bagagem no compartimento
acima de sua cabeça e se sentou na primeira classe. O assento ao lado estava vazio. Um momento depois, Chiara apareceu.
— Oi, estranho — falou ela.
— Como você conseguiu isso?
— Amigos em postos importantes. — Ela sorriu. — Como foi tudo lá?
Sem falar nada, ele mostrou o flash drive.
— E Jihan?
Ele assentiu.
— Quanto tempo temos para encontrar o dinheiro?
— Não muito — disse ele.
48
BOULEVARD REI SAUL, TEL AVIV
A UNIDADE QUE OCUPAVA A Sala 414C do Boulevard Rei Saul não tinha nome oficial, porque, oficialmente, ela não existia. Aqueles que tinham participado dos trabalhos
se referiam a ela somente como Minyan, pois a unidade era formada por dez homens exclusivamente. Eles sabiam pouco de espionagem pura ou de operações especiais de
combate, apesar de que a terminologia que usavam trazia muitas coisas dessas duas disciplinas. Eles penetravam em redes usando back doors ou com ataques de força
bruta; usavam trojans, bombas-relógio e black hats. Com uns poucos comandos, podiam deixar uma cidade no escuro, derrubar uma rede de controle de tráfego aéreo ou
fazer as centrífugas de uma fábrica de enriquecimento de urânio iraniana girarem loucamente fora de controle. Resumindo, tinham a capacidade de virar as máquinas
contra seus mestres. Em particular, Uzi Navot se referia ao Minyan como dez bons motivos pelos quais ninguém em sã consciência deveria usar um computador ou um celular.
Estavam esperando em seus terminais, uma equipe heterogênea usando jeans e suéteres, quando Gabriel voltou ao Boulevard Rei Saul, com o conteúdo do caderno e do
computador de Waleed al-Siddiqi. Eles tentaram primeiro no banco Trade Winds nas ilhas Caimã, uma instituição que já tinham visitado antes, e fizeram a primeira
descoberta significativa. Os números das duas contas recentemente abertas para a LXR Investments não combinavam com os números que al-Siddiqi tinha anotado em seu
caderno; ele tinha escrito em um código cru, uma inversão de numerais, que logo descobriram. Parecia que ele gostava do Trade Winds, pois tinha aberto dez outras
contas ali com vários nomes. No total, o pequeno banco nas ilhas Caimã tinha mais de trezentos milhões de dólares em bens da Mal S.A. Além disso, o caderno e os
arquivos de computador revelaram que cinco outros bancos nas ilhas Caimã tinham contas da LXR Investments ou outras empresas fantasmas. O total em um único paraíso
fiscal era de 1,2 bilhão de dólares. E isso era só o começo.
Eles trabalharam metodicamente e geograficamente, com a supervisão de Gabriel o tempo todo. Das ilhas Caimã passaram para as Bermudas, ao norte, onde mais três bancos
tinham mais de seiscentos milhões. Depois fizeram uma viagem rápida pelas Bahamas antes de ir ao Panamá, onde desenterraram outro meio bilhão em 14 contas listadas
no caderno de al-Siddiqi. A turnê pelo hemisfério ocidental concluiu em Buenos Aires, a cidade dos canalhas e dos criminosos de guerra, onde encontraram outros quatrocentos
milhões de dólares em uma dúzia de contas. Em nenhum momento eles tiraram um centavo. Simplesmente colocaram armadilhas e circuitos de roteamento invisíveis que
lhes permitiriam, quando quisessem, realizar o maior roubo de bancos da história.
Mas o dinheiro não era a única preocupação de Gabriel. E assim, quando os hackers expandiram sua busca para o centro de bancos de Hong Kong, ele caminhou até sua
sala vazia para revisar os últimos informes de Linz. Era final da manhã na Áustria; Jihan estava em sua mesa, Waleed al-Siddiqi estava digitando algo rápido em seu
computador. Gabriel sabia disso porque tinha feito mais no aeroporto de Heathrow do que fotografar as páginas do caderno secreto de al-Siddiqi. Também tinha grampeado
o celular do banqueiro. Como o aparelho de Jihan, agora ele agia como um transmissor de áudio o tempo todo. Além disso, a equipe tinha a capacidade de ler os e-mails
e as mensagens de texto de al-Siddiqi, e tirar fotografias e gravar vídeos quando quisessem. Waleed al-Siddiqi, banqueiro privado da família dirigente da Síria,
agora pertencia ao Escritório. Eles o dominavam.
Quando Gabriel voltou à sala dos hackers, trouxe com ele sua velha lousa de madeira. Os ciberespiões acharam que era um objeto curioso; na verdade, a maioria nunca
tinha visto uma geringonça como essa antes. Gabriel escreveu um número nela: 2,9 bilhões de dólares, o valor total das contas identificadas e isoladas até o momento.
E quando os hackers tinham terminado o trabalho em Hong Kong, ele mudou o número para 3,6 bilhões. Dubai aumentou para 4,7 bilhões; Amã e Beirute, para 5,4 bilhões.
Liechtenstein e França acrescentaram outros oitocentos milhões, e, algo nada surpreendente, os bancos da Suíça contribuíram com incríveis dois bilhões, levando a
um total de 8,2 bilhões. Os bancos de Londres tinham outros seiscentos milhões de libras. De acordo com as ordens de Gabriel, os hackers montaram suas armadilhas
e circuitos de roteamento invisíveis no improvável evento de que Graham Seymour voltasse atrás em seu acordo de congelar o dinheiro.
Nesse momento, outras trinta horas tinham se passado, trinta horas durante as quais Gabriel e os hackers não tinham dormido ou consumido nada além de café. Era final
da tarde na Áustria; Jihan estava se preparando para ir embora, Waleed al-Siddiqi estava novamente digitando algo em seu computador. Com os olhos sonolentos, Gabriel
mandou os hackers criarem um botão cerimonial que, quando pressionado, faria com que mais de oito bilhões desaparecessem num piscar de olhos. Então subiu para a
suíte executiva. A luz sobre a porta estava brilhando verde. Uzi Navot estava lendo um arquivo em sua mesa.
— Quanto? — perguntou ele, levantando a cabeça.
Gabriel contou.
— Se fosse menos de oito bilhões — disse Navot, sarcástico —, eu mesmo poderia autorizar. Mas sob essas circunstâncias, gostaria de falar em particular com o primeiro-ministro
antes que alguém aperte o botão.
— Concordo.
— Então talvez você devesse falar com o primeiro-ministro. Afinal — acrescentou Navot —, provavelmente é hora de se conhecerem.
— Vou ter muito tempo para isso depois, Uzi.
Navot fechou o arquivo e olhou entre suas venezianas para o mar.
— E como faremos? — perguntou ele depois de um momento. — Pegamos o dinheiro, depois pegamos a garota?
— Na verdade — respondeu Gabriel —, minha intenção é fazer com que os dois desapareçam no mesmo momento.
— Ela está pronta?
— Já faz algum tempo.
— Um desaparecimento misterioso? É assim que você pretende fazer?
Gabriel assentiu.
— Sem bagagem, sem reservas de avião, nada para sugerir que ela estava planejando uma viagem. Nós a levamos de carro para a Alemanha e depois a trazemos de volta
a Israel de Munique.
— Quem vai ter a pouco invejável tarefa de contar a ela que esteve trabalhando para nós?
— Estava esperando fazer isso eu mesmo.
— Mas?
— Temo que a boa amiga de Jihan, Ingrid Roth, vai ter que fazer isso por mim.
— Quer agarrar o dinheiro essa noite?
Gabriel assentiu.
— Então é melhor eu falar com o primeiro-ministro.
— Acho que sim.
Navot balançou a cabeça lentamente.
— Oito bilhões de dólares — falou depois de um momento. — Isso é muito dinheiro.
— E tenho certeza de que há mais em outro lugar.
— Oito bilhões é muito. Quem sabe? — acrescentou Navot. — Poderia até ser suficiente para comprar aquele Caravaggio de volta.
Gabriel não falou nada.
— E quem vai apertar o botão? — perguntou Navot.
— É um trabalho para o chefe, Uzi.
— Não seria correto.
— Por que não?
— Porque foi sua operação do começo ao fim.
— Que tal concordarmos com um candidato? — perguntou Gabriel.
— Em quem está pensando?
— Na maior especialista do país em Síria e no movimento baathista.
— Ela poderia gostar. — Navot estava olhando de novo pela janela. — Gostaria que fosse você que contasse a Jihan que ela esteve trabalhando para nós.
— Eu também, Uzi. Mas não temos tempo.
— E se ela não entrar no avião?
— Vai entrar.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque ela não tem outra opção.
— Gostaria de colocar Waleed al-Siddiqi em um avião também — falou Navot. — De preferência dentro de um caixão.
— Algo me diz que a Mal S.A. vai cuidar de Waleed por nós quando descobrirem que oito bilhões de dólares desapareceram.
— Quanto tempo você acha que ele tem de vida?
Gabriel olhou para seu relógio.
Não demorou muito para se espalhar pela fraternidade fechada de segurança e defesa de que um evento de grande magnitude estava prestes a acontecer. Os não iniciados
só podiam adivinhar o que era. Os iniciados só balançavam a cabeça, espantados. Era, declararam, uma conquista de proporções shamronianas, talvez a maior da carreira
dele. Claramente já era hora de acabar com o sofrimento de Uzi Navot e fazer a mudança que todos sabiam que ocorreria no Boulevard Rei Saul.
Se Navot sabia dessas conversas, não deu nenhum sinal disso durante sua reunião com o primeiro-ministro. Foi rápido, fidedigno e sóbrio sobre as implicações do que
significaria desaparecer com oito bilhões de dólares. Era um movimento ousado, falou, que certamente levaria a uma retaliação se conseguissem descobrir quem estava
por trás da operação. Ele aconselhou o primeiro-ministro a colocar o Comando do Norte do IDF em alerta geral e aumentar a segurança em todas as embaixadas israelenses,
especialmente nas cidades onde o Hezbollah e a inteligência síria fossem mais ativos. O primeiro-ministro concordou com os dois passos. Também mandou que aumentasse
a segurança em todas as redes de computador e de comunicação de Israel. Então, com um simples movimento de cabeça, ele deu sua aprovação final.
— Gostaria de apertar o botão? — perguntou Navot.
— É tentador — respondeu o primeiro-ministro com um sorriso —, mas provavelmente pouco inteligente.
Quando Navot voltou ao Boulevard Rei Saul, Gabriel tinha passado as últimas instruções à equipe. Era sua intenção capturar o dinheiro às nove horas, horário de Linz,
dez horas em Tel Aviv. Quando o dinheiro tivesse chegado a seu destino final, um processo que demoraria apenas cinco minutos, ele mandaria uma mensagem a Dina e
Christopher Keller instruindo os dois a levar Jihan com eles. Serviços Domésticos e Transporte iriam limpar, tranquilamente, a bagunça.
Às nove, horário de Tel Aviv, não havia nada a fazer, a não ser esperar. Gabriel passou aquela hora final trancado na sala 414C, ouvindo os hackers explicarem pela
vigésima vez como oito bilhões iriam passar de dezenas de contas ao redor do globo para uma única no Israel Discount Bank, Ltd. sem deixar nenhum rastro digital.
E pela vigésima vez, ele fingiu entender o que estavam falando, quando o tempo todo estava se perguntando se algo assim era realmente possível. Ele não entendia
a linguagem que os hackers falavam, nem estava muito interessado em aprender. Só estava feliz por estarem do lado dele.
O trabalho que acontecia na sala 414C era tão delicado que nem mesmo o diretor do Escritório sabia o código que abria a porta. Como resultado, Uzi Navot precisou
bater na porta para poder entrar. Acompanhado por Bella e Chiara, ele entrou na sala às 21h50, horário de Tel Aviv, e recebeu as mesmas informações que Gabriel tinha
recebido alguns minutos antes. Ao contrário de Gabriel, que se via como um homem do século XVI, Navot sabia como os computadores e a internet funcionavam. Ele fez
várias perguntas pertinentes, pediu um conjunto final de garantias sobre a possibilidade de negação e depois deu a ordem formal de capturar o dinheiro.
Bella se sentou ao computador indicado e esperou o comando de Gabriel para apertar o botão. Eram 21h55 em Tel Aviv, 20h55 em Linz. Jihan Nawaz estava sozinha em
seu apartamento, cantarolando baixinho para esconder seu medo. Dois minutos depois, às 20h57, horário local, ela recebeu uma ligação de Waleed al-Siddiqi. A conversa
que se seguiu durou dez minutos. E antes mesmo de terminar, Gabriel deu a ordem de recuar. Ninguém apertaria nenhum botão, ele falou. Não essa noite.
49
LAGO ATTERSEE, ÁUSTRIA
MAIS TARDE NAQUELA NOITE, OUTRA GUERRA civil explodiu no Oriente Médio. Era menor que as outras e, felizmente, não houve bombardeios ou matanças, pois era uma guerra
de palavras, entre pessoas da mesma fé, filhos do mesmo Deus. Mesmo assim, as frentes de batalha eram cruéis e estavam claramente definidas. Um lado queria descontar
as fichas enquanto ainda tinha o dinheiro que ganhou. O outro queria rolar o dado mais uma vez, queria dar mais uma espiada na Mal S.A. Para o bem ou para o mal,
o líder dessa facção era Gabriel Allon, futuro chefe do serviço secreto de inteligência de Israel. E assim, depois de uma discussão que durou boa parte da noite,
ele pegou o voo El Al 353 para Munique e no começo da tarde estava de novo na sala de estar da casa de Attersee, vestido como o auditor fiscal sem nome de Berlim.
Um laptop estava aberto na mesinha de café, os alto-falantes emitindo o distinto som de Waleed al-Siddiqi falando em árabe. Ele abaixou o volume só um pouco quando
Jihan e Dina entraram.
— Jihan — chamou ele, como se não a estivesse esperando tão cedo. — Bem-vinda. É bom vê-la tão bem. Você conseguiu bem mais do que esperávamos. De verdade. Não podemos
agradecer o suficiente por tudo que fez.
Ele tinha feito esse discurso em seu alemão com sotaque de Berlim, através de um sorriso de hoteleiro com vagas. Jihan olhou para Dina, depois para o laptop.
— Foi para isso que me trouxe aqui de novo? — finalmente perguntou. — Para me agradecer?
— Não — foi tudo que ele disse.
— Então por que estou aqui?
— Está aqui — falou ele, aproximando-se devagar dela — por causa da ligação que recebeu às 20h57 ontem à noite. — Ele balançou a cabeça inquisitivamente para um
lado. — Lembra-se da ligação que recebeu ontem à noite, não?
— Impossível esquecer.
— Sentimos o mesmo. — A cabeça dele estava de lado, mas agora sua mão direita segurava pensativamente o queixo. — O momento da ligação foi incrível, para dizer o
mínimo. Se tivesse chegado alguns minutos depois, você nunca teria atendido.
— Por que não?
— Porque já teria partido. E com você, muito dinheiro — acrescentou ele rapidamente. — 8,2 bilhões de dólares, para ser preciso. Tudo por causa do corajoso trabalho
que você fez.
— Por que não aproveitaram?
— Foi muito tentador — respondeu ele. — Mas se tivéssemos continuado, seria impossível pensar na oportunidade que o sr. al-Siddiqi apresentou.
— Oportunidade?
— Estava ouvindo as coisas que ele falou para você ontem à noite?
— Tentei não ouvir.
Gabriel pareceu genuinamente perplexo com a resposta dela.
— E por quê?
— Porque não aguento mais o som da voz dele. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Não vou entrar pelas portas daquele banco de novo. Por favor, faça o dinheiro
desaparecer. E depois me faça desaparecer também.
— Vamos ouvir a gravação da conversa juntos, está bem? E se ainda se sentir da mesma maneira, partimos da Áustria juntos essa tarde, todos nós, e nunca mais vamos
voltar.
— Não fiz as malas.
— Não será preciso. Vamos cuidar de tudo.
— Para onde planejam me levar?
— Um lugar seguro, onde ninguém vai encontrá-la.
— Para onde? — perguntou ela de novo, mas Gabriel não respondeu e se sentou na frente do computador. Com um clique do mouse, ele silenciou a voz de Waleed al-Siddiqi.
Então, com outro clique, abriu um arquivo de áudio com o nome de INTERCEPTAÇÃO 238. Eram 20h57 da noite anterior. Jihan Nawaz estava sozinha em seu apartamento,
cantarolando baixinho para esconder seu medo. E então seu celular começou a tocar.
Tocou quatro vezes antes que ela atendesse, e quando falou parecia um pouco sem fôlego.
“Alô.”
“Jihan?”
“Sr. al-Siddiqi?”
“Desculpe ligar tão tarde. É um mau momento?”
“Não, de jeito nenhum.”
“Alguma coisa errada?”
“Não, por quê?”
“Você parece brava com algo.”
“Tive que correr para o telefone, só isso.”
“Tem certeza? Tem certeza de que não há nada errado?”
Gabriel clicou no ícone de PAUSA.
— Ele está sempre tão preocupado com seu bem-estar?
— É uma obsessão recente dele.
— Por que deixou o telefone tocar tantas vezes?
— Porque quando vi quem estava ligando, não queria atender.
— Tinha medo?
— Para onde vão me levar?
Gabriel clicou no PLAY.
“Estou bem, sr. al-Siddiqi. Como posso ajudá-lo?”
“Preciso discutir algo importante com você.”
“Claro, sr. al-Siddiqi.”
“Seria possível ir até seu apartamento?”
“Já é tarde.”
“Sei disso.”
“Desculpe, mas não é uma boa hora. Não dá para esperar até segunda-feira?”
Gabriel clicou em PAUSE.
— Gostaria de parabenizá-la por seu tradecraft. Conseguiu dispensá-lo com facilidade.
— Tradecraft?
— É um termo usado no mundo da inteligência.
— Não sabia que era uma operação da inteligência. E não foi tradecraft — acrescentou ela. — Uma garota muçulmana sunita de Hama nunca permitiria que um homem casado
viesse a seu apartamento desacompanhado, mesmo se esse homem casado fosse seu patrão.
Gabriel sorriu e clicou no PLAY.
“Infelizmente não posso esperar até segunda-feira. Preciso que faça uma viagem para mim na segunda-feira.”
“Para onde?”
“Genebra.”
STOP.
— Ele já pediu para você viajar por ele?
— Nunca.
— Sabe o que mais vai acontecer em Genebra na segunda-feira?
— Todo mundo sabe o que vai acontecer — respondeu ela. — Os norte-americanos, russos e europeus vão tentar conseguir um acordo de paz entre o regime e os rebeldes
sírios.
— Um marco, não é mesmo?
— Será um diálogo de surdos.
Outro sorriso.
PLAY.
“Por que Genebra, sr. al-Siddiqi?”
“Preciso que pegue uns documentos para mim. Só vai ficar lá uma ou duas horas. Eu mesmo faria isso, mas tenho que ir a Paris nesse mesmo dia.”
STOP.
— Para você saber — disse Gabriel —, o sr. al-Siddiqi não comprou uma passagem de avião para ir a Paris na segunda-feira.
— Ele sempre compra no último minuto.
— E por que os documentos precisam ser retirados pessoalmente? — perguntou Gabriel, ignorando-a. — Por que não podem ser enviados no serviço de entregas do correio?
Por que não transferir via e-mail?
— Não é incomum que registros financeiros confidenciais sejam entregues em mãos.
— Especialmente quando são entregues a um homem como Waleed al-Siddiqi.
PLAY.
“O que exatamente precisa que eu faça?”
“É bem simples, na verdade. Só preciso que se encontre com um cliente no hotel Métropole. Ele vai lhe dar um pacote de documentos e você deve trazê-los de volta
a Linz.”
“E o nome do cliente?”
“Kemel al-Farouk.”
STOP.
— Quem é ele? — perguntou Jihan.
Gabriel sorriu.
— Kemel al-Farouk é quem tem as chaves do reino — falou ele. — Kemel al-Farouk é o motivo pelo qual você precisa ir a Genebra.
50
LAGO ATTERSEE, ÁUSTRIA
ELES FORAM PARA O TERRAÇO e se sentaram debaixo da sombra de um guarda-sol. Um barco passando pelo lago abriu uma ferida na superfície da água; então o barco desapareceu
e eles ficaram sozinhos de novo. Poderiam ser as duas últimas pessoas no mundo se não fosse pelo som da voz de Waleed al-Siddiqi transmitindo do laptop dentro da
casa.
— Vi que comprou outro barco — disse Jihan, apontando para o lago.
— Na verdade, meus colegas compraram para mim.
— Por quê?
— Eu estava deixando todos loucos.
— Por quê?
— Por você, Jihan. Queria ter certeza de que estávamos fazendo todo o possível para que você estivesse segura.
Ela ficou em silêncio por um momento.
— Navegar aqui deve ser bem diferente do que é no Báltico. — Ela olhou para ele e sorriu. — Foi lá onde você aprendeu a navegar, não foi? No Báltico?
Ele assentiu lentamente.
— Nunca gostei — falou ela.
— Do Báltico?
— De navegar. Não gosto da sensação de não ter controle.
— Eu consigo ir a qualquer lugar nesse barco pequeno.
— Então você deve ser bom em controlar as coisas.
Gabriel não falou nada.
— Por quê? — perguntou Jihan depois de um momento. — Por que é tão importante que consigamos esses documentos de Kemel al-Farouk?
— Por causa do relacionamento dele com a família governante — respondeu Gabriel. — Kemel al-Farouk é o vice-ministro de Relações Exteriores da Síria. Na verdade,
ele estará sentado na mesa de negociações quando começarem as conversações na tarde de segunda-feira. Mas seu título não corresponde à sua influência. O dirigente
nunca dá um passo sem falar primeiro com Kemel, em termos de finanças ou política. Acreditamos que há mais dinheiro por aí — acrescentou Gabriel. — Muito mais. E
acreditamos que os documentos de Kemel podem mostrar o caminho.
— Acreditam?
— Não há garantias nesse negócio, Jihan.
— E qual é esse negócio?
Gabriel ficou em silêncio de novo.
— Mas por que o sr. al-Siddiqi quer que eu vá pegar os documentos? — perguntou Jihan. — Por que não vai ele mesmo?
— Porque quando a delegação síria chegar em Genebra vai estar sob vigilância constante da inteligência suíça, sem mencionar os norte-americanos e seus aliados europeus.
Não há como al-Siddiqi chegar perto daquela delegação.
— Não quero chegar perto deles também. São as mesmas pessoas que destruíram minha cidade, as mesmas pessoas que assassinaram minha família. Estou falando com você
em alemão por causa de homens como eles.
— Então por que não se uniu à rebelião síria, Jihan? Por que não vingar o assassinato de sua família nos trazendo esses documentos?
Da sala veio o som da risada de Waleed al-Siddiqi.
— Oito bilhões de dólares não é suficiente? — perguntou ela depois de um momento.
— É muito dinheiro, Jihan, mas eu quero mais.
— Por quê?
— Porque vai permitir que tenhamos mais influência sobre as ações dele.
— Do dirigente?
Ele assentiu.
— Desculpe — falou ela com um sorriso —, mas isso não parece algo que um auditor fiscal alemão diria.
Ele deu um sorriso evasivo, mas não falou nada.
— Como isso funcionaria? — perguntou ela.
— Você vai fazer tudo que o sr. al-Siddiqi pedir — respondeu Gabriel. — Vai voar para Genebra na segunda de manhã. Vai pegar o carro com chofer do aeroporto até
o hotel Métropole e recolher os documentos. E depois vai voltar ao aeroporto e viajar para Linz. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — E em algum ponto do caminho,
vai fotografar os documentos com seu celular e enviar para mim.
— E depois?
— Se, como suspeitamos, esses documentos forem uma lista de contas adicionais, vamos atacá-los enquanto você estiver no ar. Quando seu avião chegar em Viena, tudo
já terá terminado. E aí vamos fazer você desaparecer.
— Para onde? — perguntou ela. — Para onde vão me levar?
— Um lugar seguro, onde ninguém poderá machucá-la.
— Infelizmente isso não é suficiente — disse ela. — Quero saber onde você pretende me levar quando isso terminar. E por falar nisso, você pode me contar quem realmente
é. E dessa vez, eu quero a verdade. Sou uma filha de Hama. Não gosto quando as pessoas mentem para mim.
Eles entraram no barco a motor com a civilidade tensa de um casal brigando e foram para o lado sul do lago. Jihan se sentou rígida na popa, as pernas cruzadas, os
braços cruzados, os olhos fazendo dois buracos na nuca dele. Ela tinha absorvido as confissões dele com um silêncio enraivecido, como uma esposa ouvindo a admissão
de uma infidelidade do marido. Por enquanto, ele não tinha mais nada para dizer. Era a vez de ela falar.
— Seu maldito — falou ela por fim.
— Sente-se melhor agora?
Falou essas palavras sem se virar para ela. Aparentemente, ela não sentiu necessidade de responder.
— E se eu tivesse contado a verdade no começo? — perguntou ele. — O que você teria feito?
— Teria mandado você ir para o inferno.
— Por quê?
— Porque vocês são exatamente como eles.
Ele esperou um tempo antes de responder.
— Tem o direito de estar com raiva, Jihan. Mas não ouse me comparar com o açougueiro de Damasco.
— Você é pior!
— Deixe esses slogans de lado. Porque se o conflito na Síria provou algo, é que nós realmente somos diferentes de nossos adversários. Cento e cinquenta mil mortos,
milhões de refugiados, todos pelas mãos dos irmãos árabes.
— Vocês fizeram a mesma coisa! — gritou ela.
— Besteira. — Ele ainda não estava olhando para ela. — Você pode achar difícil de acreditar — falou ele —, mas eu quero que os palestinos tenham um Estado próprio.
Na verdade, eu quero fazer tudo que estiver em meu poder para tornar isso realidade. Mas, por enquanto, isso não é possível. É preciso dois lados para fazer a paz.
— São vocês que estão ocupando a terra deles!
Ele não se importou em responder, pois tinha aprendido há muito tempo que debates assim quase sempre assumiam a qualidade de um gato correndo atrás do próprio rabo.
Em vez disso, desligou o motor e virou seu banco para ficar de frente para ela.
— Tire esse disfarce — pediu ela. — Deixe-me ver seu rosto.
Ele tirou os óculos falsos.
— Agora a peruca.
Ele obedeceu. Ela se inclinou para frente e olhou para o rosto dele.
— Tire essas lentes de contato. Quero ver seus olhos.
Ele tirou as lentes e jogou-as no lago.
— Satisfeita, Jihan?
— Como você fala alemão tão bem?
— Minha família veio de Berlim. Minha mãe foi a única a sobreviver ao Holocausto. Quando chegou a Israel, não falava hebraico. Alemão foi a primeira língua que ouvi.
— E a Ingrid?
— Seus pais tiveram seis filhos, um para cada milhão assassinado no Holocausto. Sua mãe e duas de suas irmãs foram mortas por um ataque suicida do Hamas. Ingrid
ficou muito ferida. É por isso que ela caminha mancando. É por isso que nunca usa shorts ou vestido.
— Qual é o nome verdadeiro dela?
— Não é importante.
— Qual é o seu?
— Que diferença isso faz? Você me odeia por quem eu sou. Você me odeia por causa do que eu sou.
— Eu odeio você porque mentiu para mim.
— Não tive escolha.
O vento aumentou e trouxe com ele o cheiro das rosas.
— Você realmente nunca suspeitou que éramos de Israel?
— Suspeitei — admitiu ela.
— Por que não perguntou?
Ela não respondeu.
— Talvez porque não queria saber a resposta. E talvez agora que teve a chance de gritar comigo e me xingar, possamos voltar ao trabalho. Vou deixar o açougueiro
de Damasco muito pobre. Vou garantir que ele nunca mais use gás venenoso contra seu próprio povo, que ele nunca transforme outra cidade em ruínas. Mas não posso
fazer isso sozinho. Preciso da sua ajuda. — Ele parou, depois perguntou: — Vai me ajudar, Jihan?
Ela estava brincando com sua mão na água.
— Aonde vai me levar quando isso acabar?
— Aonde você acha?
— Não poderia viver lá, de jeito nenhum.
— Não é tão ruim quanto você foi levada a acreditar. Na verdade, é bastante bom. Mas não se preocupe — acrescentou ele —, não vai precisar ficar muito tempo. Assim
que for seguro para partir, poderá viver onde quiser.
— Está me dizendo a verdade dessa vez ou é outra de suas mentiras?
Gabriel não falou nada. Jihan pegou a água do lago e deixou que escorresse por seus dedos.
— Eu vou fazer — falou ela, finalmente —, mas preciso de algo seu em troca.
— Qualquer coisa, Jihan.
Ela olhou para ele por um momento, sem falar nada. Então disse:
— Preciso saber seu nome.
— Não é importante.
— É para mim — respondeu ela. — Me diga seu nome ou pode encontrar outra pessoa para retirar aqueles documentos em Genebra.
— Não é como as coisas funcionam no nosso negócio.
— Me diga seu nome — repetiu ela. — Vou escrever na água e depois esquecer.
Ele sorriu e falou seu nome.
— Como o arcanjo? — perguntou ela.
— Isso — respondeu ele. — Como o arcanjo.
— E seu sobrenome?
Ele falou também.
— É conhecido.
— Deveria ser.
Ela se inclinou para a lateral do barco e marcou o nome dele na superfície escura do lago. Então uma rajada de vento desceu das Montanhas do Inferno e tudo desapareceu.
51
LAGO ATTERSEE — GENEBRA
QUANDO TUDO TERMINASSE, GABRIEL seria capaz de lembrar poucas coisas das 24 horas seguintes, pois foram um furacão de planejamento, fortes brigas familiares e tensas
conversações ocorrendo através de canais seguros. No Boulevard Rei Saul, sua exigência emergencial de mais propriedades seguras e transporte causou uma breve rebelião,
que Uzi Navot conseguiu suprimir com um olhar duro e algumas poucas palavras inflexíveis. Só Transações Bancárias não teve problemas com o pedido de Gabriel por
mais fundos. Sua operação já estava resultando em um lucro substancial, com ganhos inesperados no quarto trimestre.
Jihan Nawaz não ficaria sabendo de nada sobre as batalhas internas do Escritório, só das exigências da última tarefa que faria para ele. Ela voltou à casa no lago
Attersee no domingo à tarde para uma reunião pré-operativa final, e para treinar as fotografias de documentos sob a pressão simulada de Gabriel, que era sua marca
pessoal. Depois, se juntou à equipe para um almoço na grama de frente para o lago. A falsa bandeira que eles tinham usado desde seu recrutamento já tinha sido guardada
há tempos. Eles eram israelenses agora, agentes de um serviço de inteligência que a maioria dos árabes via com uma mistura paradoxal de ódio e espanto. Havia o estudioso
Yossi, o falso burocrata do serviço de Rendas e Alfândega da Grã-Bretanha. Havia a figura baixa e amarrotada que tinha sido apresentado como Feliks Adler. Havia
Mikhail, Yaakov e Oded, seus três guardiões nas ruas de Linz. E havia Ingrid Roth, sua vizinha, sua confidente, com quem compartilhava feridas secretas, que tinha
sofrido uma perda que Jihan entendia muito bem.
E no final da mesa, silencioso e observador, estava o homem de olhos verdes cujo nome ela tinha escrito na água. Ele não era o monstro que a imprensa árabe tinha
descrito; nenhum deles era. Eram encantadores. Eram espertos. Eram inteligentes. Amavam seu país e seu povo. Sentiam muito pelo que tinha acontecido com Jihan e
sua família em Hama. Sim, eles admitiam, Israel tinha cometido erros desde sua fundação, erros terríveis. Mas não queriam nada mais do que viver em paz e serem aceitos
por seus vizinhos. A Primavera Árabe tinha trazido por pouco tempo a promessa de mudança no Oriente Médio, mas infelizmente isso tinha se transformado em uma luta
mortal entre sunitas e xiitas, entre os jihadistas globais e a velha ordem dos homens fortes árabes. Claro, eles concordavam, havia uma camada média, um Oriente
Médio moderno onde as ligações religiosas e tribais eram menos importantes do que governos decentes e progresso. Por algumas horas naquela tarde nas margens do Attersee
parecia que quase tudo era possível.
Ela se separou deles pela última vez no começo da tarde e, acompanhada por sua amiga Ingrid, voltou a seu apartamento. Só Keller ficou cuidando dela naquela noite,
pois o resto da equipe tinha começado uma rápida transição de campo de batalha que um engraçadinho do Escritório iria mais tarde chamar de grande migração para o
oeste. Gabriel e Eli Lavon viajaram de carros juntos, Gabriel dirigindo, Lavon inquieto e preocupado, da mesma forma que tinham feito mil vezes antes. Mas havia
uma diferença. O alvo deles não era um terrorista com sangue israelense nas mãos; eram bilhões de dólares que pertenciam ao povo da Síria. Lavon, o caçador de bens,
quase não podia conter sua animação. Se controlassem o dinheiro do açougueiro, ele falou, poderiam vencê-lo. Poderiam ser os donos dele.
Chegaram em Genebra na hora incerta entre a escuridão e a manhã, e foram para o velho apartamento seguro do Escritório no boulevard de Saint-Georges. Mordecai tinha
chegado ali antes deles, e na sala de estar tinha construído um posto de comando completo, com computadores e um rádio seguro. Gabriel mandou uma breve mensagem
de ativação para o Centro de Operações no Boulevard Rei Saul. Então, pouco antes das sete, ouviu um Waleed al-Siddiqi com voz cansada subindo no voo 411 da Austrian
Air no aeroporto Schwechat de Viena. Quando seu avião estava passando sobre Linz, um sedã preto parou na frente de um apartamento no distrito Innere Stadt. Cinco
minutos depois, Jihan Nawaz, a filha de Hama, saiu na rua.
Nas três horas seguintes, o mundo de Gabriel se limitou às 15 polegadas luminosas de sua tela de computador. Não havia guerra na Síria, nem em Israel, nem na Palestina.
Sua esposa não estava grávida de gêmeos. Na verdade, ele não tinha esposa. Só havia as luzes vermelhas piscando que mostravam as posições de Jihan Nawaz e Waleed
al-Siddiqi, e as luzes azuis piscando que mostravam onde estava sua equipe. Era ordenado, saudável, um mundo sem perigo. Parecia que nada poderia dar errado.
Às 8h15, a luz vermelha de Jihan chegou ao aeroporto Schwechat de Viena, e às nove tudo se apagou quando obedeceu as instruções da aeromoça de desligar todos os
aparelhos eletrônicos. Gabriel então voltou sua atenção a Waleed al-Siddiqi que, naquele momento, estava entrando no escritório de Paris de um famoso banco francês
onde tinha secretamente depositado várias centenas de milhões de dólares dos bens sírios. O banco estava localizado em uma parte elegante da rue Saint-Honoré, no
primeiro Arrondissement. A Mercedes preta de al-Siddiqi ficou estacionada na rua. Uma equipe de vigilância do Escritório da Estação de Paris tinha identificado o
motorista como membro da inteligência síria na França — segurança, principalmente, mas ocasionalmente coisas mais pesadas, também. Gabriel pediu uma foto e recebeu
em cinco minutos a imagem de um homem carrancudo com o pescoço grosso atrás do volante do carro luxuoso.
Dez minutos depois das nove, horário de Paris, al-Siddiqi entrou no escritório de monsieur Gérard Beringer, um dos vice-presidentes do banco. O sírio não ficou lá
muito tempo, porque às 9h17 recebeu uma ligação em seu celular que o levou ao corredor em busca de privacidade. A ligação era de um número em Damasco, a voz de barítono
do outro lado denotava masculinidade, uma pessoa de autoridade. Ao final da conversa — que demorou apenas vinte segundos e foi realizada no dialeto alauíta do árabe
sírio —, al-Siddiqi desligou seu celular e sua luz vermelha desapareceu da tela de computador.
Gabriel ouviu a gravação da conversa cinco vezes e não conseguiu determinar exatamente o que foi dito. Então pediu ao Boulevard Rei Saul uma tradução e recebeu a
informação de que a voz em barítono tinha instruído al-Siddiqi a ligar de volta de outro aparelho. A análise de voz não conseguiu encontrar combinações para a identidade
de quem tinha ligado. A unidade 8200 estava tentando localizar o número em Damasco.
— As pessoas desligam o celular o tempo todo — falou Eli Lavon. — Especialmente pessoas como Waleed al-Siddiqi.
— É verdade — respondeu Gabriel. — Mas geralmente fazem isso quando acham que alguém está ouvindo.
— Alguém está ouvindo.
Gabriel não falou nada. Estava olhando para a tela de computador como se tentasse fazer com que a luz de al-Siddiqi voltasse à vida por sua única vontade.
— A ligação provavelmente tinha algo a ver com o homem sentado no hotel Métropole — falou Lavon depois de um momento.
— É o que me preocupa.
— Não é tarde demais para pegar o dinheiro e desistir, Gabriel. Você pode fazer oito bilhões de dólares desaparecerem. E pode fazer a garota desaparecer também.
— E se tiver mais oito bilhões aí fora, Eli. E se houver oitenta bilhões?
Lavon não falou nada por um tempo. Então, finalmente, perguntou:
— O que você vai fazer?
— Vou considerar todas as razões pelas quais Waleed al-Siddiqi poderia ter desligado seu celular. E depois vou tomar uma decisão.
— Infelizmente acho que não há tempo para isso.
Gabriel olhou de novo para a tela do computador. A filha de Hama tinha acabado de chegar em Genebra.
A sala de desembarque do aeroporto de Genebra estava mais lotada do que o normal: diplomatas, repórteres, polícia e segurança extra, um grupo de exilados sírios
cantando a música de protesto que foi escrita por um homem cuja garganta tinha sido cortada pela polícia secreta. Como resultado disso, Jihan demorou um tempo para
encontrar seu motorista. Tinha trinta e poucos anos, cabelo escuro e pele morena, parecia um pouco inteligente demais para trabalhar como chofer. Seu olhar se voltou
para ela quando se aproximou — obviamente tinha visto uma fotografia — e ele deu um sorriso, expondo uma fileira de dentes muito brancos. Ele falou com ela em árabe,
com um sotaque sírio.
— Espero que tenha feito uma boa viagem, senhorita Nawaz.
— Foi boa — respondeu ela, fria.
— O carro está aí fora. Siga-me, por favor.
Ele apontou para a porta correta. A rota os fez passar pelos manifestantes, que ainda estavam cantando a música de protesto, e pelo pequeno israelense quadrado que
parecia capaz de dobrar barras de ferro. Jihan olhou como se ele fosse invisível e saiu. Uma Mercedes S-Class preta com janelas bem escuras e placas diplomáticas
estava esperando. Quando o motorista abriu a porta traseira, Jihan hesitou antes de entrar. Ela esperou até a porta se fechar antes de virar a cabeça e olhar para
o homem sentado ao lado dela. Era vários anos mais velho do que o motorista, com cabelo preto fino, um bigode cheio e as mãos de um pedreiro.
— Quem é você? — perguntou Jihan.
— Segurança — respondeu ele.
— Por que preciso de segurança?
— Porque está prestes a de se encontrar com um oficial do ministério de Relações Exteriores da Síria. E porque há muitos inimigos do governo sírio em Genebra no
momento, incluindo aquela turba aí dentro — acrescentou ele apontando para o prédio do terminal. — É importante que chegue a seu destino com segurança.
O motorista subiu no carro e fechou sua porta.
— Yallah — disse o que estava no banco traseiro e o carro arrancou.
Só quando saíram do aeroporto foi que ele falou seu nome. Disse que se chamava sr. Omari. Trabalhava, ou foi o que disse, como oficial de segurança sênior para os
postos diplomáticos sírios na Europa Ocidental — um trabalho difícil, acrescentou com um ar cansado, por causa das tensões políticas do momento. Era claro por seu
sotaque que ele era alauíta. Também era claro que o motorista, que parecia não ter nenhum nome, não estava pegando a rota direto para o centro de Genebra. Ele andou
por um vasto terreno de prédios industriais baixos por vários minutos, olhando constantemente pelo espelho retrovisor, antes de finalmente pegar a rota de Meyrin,
que os levou por um bairro residencial frondoso e, no final, às margens do lago. Quando cruzaram a Pont du Mont-Blanc, Jihan percebeu que estava apertando sua bolsa
tão forte que os nós de seus dedos tinham ficado brancos. Ela se forçou a relaxar e sorrir um pouco quando olhou pela janela para a linda cidade iluminada pelo sol.
A visão dos policiais suíços alinhados na muralha da ponte fez com que sentisse um momento de conforto; e quando chegaram à margem oposta do lago, viu o israelense
com o rosto marcado olhando a vitrine de uma loja Armani no Quai du Géneral-Guisan. O carro passou por ele e parou na frente da fachada verde-acinzentada do Métropole.
O sr. Omari esperou um momento antes de falar.
— Suponho que o sr. al-Siddiqi contou o nome do homem esperando por você?
— Sr. al-Farouk.
Ele assentiu lentamente.
— Está esperando no quarto 312. Por favor, vá direto ao quarto dele. Não fale com a recepcionista ou qualquer outra pessoa no hotel. Está claro, senhorita Nawaz?
Ela assentiu.
— Quando tiver os documentos, deve sair do quarto dele e voltar diretamente a esse carro. Não faça nenhuma parada. Não fale com ninguém. Entendeu?
Ela assentiu de novo.
— Algo mais? — perguntou ela.
— Sim — disse ele. — Por favor, entregue-me seu celular, junto com qualquer outro aparelho eletrônico que tiver na sua bolsa.
Dez segundos depois, a luz vermelha do celular de Jihan desapareceu da tela de computador de Gabriel. Ele imediatamente falou com Yaakov, que tinha seguido Jihan
até o hotel, e mandou que abortasse a missão. Mas já era tarde demais; ela estava caminhando pelo lobby do hotel lotado como se estivesse marchando, o queixo levantado
desafiador, sua bolsa no ombro. Então entrou no elevador, que fechou suas portas, e desapareceu da vista dele.
Yaakov rapidamente subiu no elevador ao lado e apertou o botão para o terceiro andar. A viagem pareceu durar uma eternidade; e quando as portas finalmente se abriram,
ele viu um segurança sírio, parado no hall, as mãos fechadas, os pés abertos, como se estivesse preparado para um ataque frontal. Os dois homens trocaram um olhar
longo e frio. Então as portas se fecharam, e o elevador desceu lentamente de volta ao lobby.
52
HOTEL MÉTROPOLE, GENEBRA
ELA BATEU DE LEVE NA PORTA — LEVE DEMAIS, aparentemente, porque demorou longos segundos para alguém responder. Então a porta recuou alguns centímetros, e um par
de olhos escuros olhou para ela por cima da trava de segurança. Os olhos pertenciam a outro segurança. Era mais parecido com o motorista de Jihan do que com o implacável
sr. Omari, jovem, bem vestido e penteado, um assassino em uma embalagem apresentável. No hall de entrada ele revistou sua bolsa para ter certeza de que ela não tinha
trazido um revólver ou um colete suicida. Então a convidou a segui-lo até a sala de estar da luxuosa suíte. Havia mais quatro seguranças como ele no lugar; e sentado
no sofá estava Kemel al-Farouk, vice-ministro de Relações Exteriores, ex-oficial da Mukhabarat, amigo e conselheiro do dirigente. Estava segurando uma xícara e um
pires em uma mão e balançando sua cabeça para algo que um repórter da Al Jazeera estava falando na televisão. Havia papéis no sofá e na mesinha de café. Jihan ficou
imaginando o conteúdo. Papéis sobre a posição deles em relação às negociações de paz? Uma contagem das recentes vitórias nos campos de batalha? Uma lista de números
recentes de opositores mortos? Finalmente, ele virou a cabeça alguns graus e, com um aceno, convidou-a a se sentar. Nem se levantou nem ofereceu sua mão. Homens
como Kemel al-Farouk eram muito poderosos para se preocupar com boas maneiras.
— Sua primeira vez me Genebra? — perguntou ele.
— Não — respondeu ela.
— Já veio aqui antes a trabalho para o sr. al-Siddiqi?
— De férias, na verdade.
— Quando veio aqui de férias, Jihan? — Ele sorriu de repente e perguntou: — Tudo bem se eu chamá-la de Jihan?
— Claro, sr. al-Farouk.
O sorriso dele desapareceu. Ele perguntou de novo sobre as circunstâncias de suas férias em Genebra.
— Eu era criança — falou ela. — Não me lembro muito.
— O sr. al-Siddiqi me disse que você foi criada em Hamburgo.
Ela assentiu.
— É uma das grandes tragédias do nosso país, a grande diáspora síria. Quantos de nós fomos dispersos aos quatro ventos? Dez milhões? Quinze milhões? Se eles voltassem,
a Síria seria realmente uma grande nação.
Ela queria explicar a ele que a diáspora nunca voltaria enquanto homens como ele estivessem dirigindo o país. Em vez disso, assentiu pensativa, como se ele tivesse
falado palavras de grande inspiração. Estava sentado como o pai do dirigente, com os pés descansados no chão e as mãos nos joelhos. Seu cabelo bem aparado tinha
um toque avermelhado, assim como sua barba bem cortada. Com seu terno feito sob medida e gravata discreta era quase possível imaginar que ele fosse realmente um
diplomata e não um homem que costumava crucificar oponentes por diversão.
— Café? — perguntou ele, como se de repente tivesse percebido sua falta de educação.
— Não, obrigada — respondeu ela.
— Algo para comer, talvez?
— Me mandaram pegar os documentos e partir, sr. al-Farouk.
— Ah, sim, os documentos. — Ele pegou um envelope ao lado dele no sofá. — Gostou de crescer em Hamburgo, Jihan?
— Sim, acho que sim.
— Havia muitos outros sírios lá, não?
Ela assentiu.
— Inimigos do governo sírio?
— Não saberia dizer.
Seu sorriso dizia que não acreditava nela.
— Você morava em Marienstrasse, não morava?
— Como sabe disso?
— São tempos difíceis — falou ele depois de um momento, como se a Síria estivesse passando por uma fase de clima inclemente. — Meus homens de segurança me contaram
que nasceu em Damasco.
— Isso mesmo.
— Em 1976.
Ela assentiu lentamente.
— Também tempos difíceis — falou ele. — Salvamos a Síria dos extremistas na época e vamos salvar a Síria de novo agora. — Ele olhou para ela por um momento. — Você
quer que o governo ganhe essa guerra, não quer, Jihan?
Ela levantou o queixo um pouco e olhou diretamente para ele.
— Quero paz para o nosso país — falou ela.
— Todos queremos a paz — respondeu ele. — Mas é impossível fazer a paz com monstros.
— Concordo plenamente, sr. al-Farouk.
Ele sorriu e colocou o envelope na mesa em frente a ela.
— Quanto tempo até a saída do seu voo? — perguntou ele.
Ela olhou para o relógio e falou:
— Noventa minutos.
— Tem certeza de que não quer café?
— Não, obrigada, sr. al-Farouk — falou ela, tímida.
— Nem comer alguma coisa?
Ela forçou um sorriso.
— Comerei algo no avião.
Durante alguns minutos naquela gloriosa manhã de segunda-feira em Genebra parecia que o imponente hotel Métropole era o centro do mundo civilizado. Limusines pretas
chegavam e saíam da entrada; diplomatas e banqueiros cinzentos entravam e saíam de suas portas. Uma famosa repórter da BBC usava sua fachada como fundo de uma reportagem
ao vivo. Um grupo de manifestantes gritava para o hotel por permitir que assassinos dormissem pacificamente debaixo de seu teto.
Dentro do hotel, tudo estava quieto. Depois de sua breve visita ao terceiro andar, Yaakov tinha se sentado na última mesa livre no bar Mirror e olhava para os elevadores
por cima de um café com creme morno. Às 11h40, as portas se abriram e Jihan apareceu de repente. Quando ela entrou no hotel alguns minutos antes, carregava sua bolsa
no ombro direito. Agora estava no esquerdo. Era um sinal pré-combinado. Ombro esquerdo significava que tinha os documentos. Ombro esquerdo significava que estava
segura. Yaakov rapidamente se comunicou com Gabriel pedindo ordens. Gabriel falou para Yaakov deixá-la ir.
A equipe tinha o hotel cercado pelos quatro lados, mas ninguém se preocupou com a cobertura fotográfica. Não importava; quando Jihan passou pela entrada principal,
cruzou na frente das filmagens da BBC. A imagem, transmitida ao vivo para o mundo todo e guardada até hoje nos arquivos digitais da estação, foi a última feita dela.
Seu rosto parecia calmo e resoluto; seus passos eram rápidos e determinados. Ela parou, como se estivesse confusa sobre qual das Mercedes estacionadas na frente
do hotel era a dela. Então o homem com trinta e poucos anos acenou para ela, que desapareceu no banco de trás de um carro. O homem de trinta e poucos anos olhou
para os andares mais altos do hotel antes de se sentar no volante. O carro se afastou da calçada e a filha de Hama desapareceu.
Entre os muitos aspectos da saída de Jihan que não foram capturados pela câmera da BBC estava o Toyota prateado que a seguiu. Kemel al-Farouk notou o carro, no entanto,
porque no momento estava parado na janela de seu quarto no terceiro andar do hotel. Ex-oficial de inteligência, não pôde deixar de admirar a forma como o motorista
do Toyota se enfiou no trânsito sem pressa ou urgência. Era profissional; Kemel al-Farouk tinha certeza disso.
Tirou um celular do bolso, discou um número e murmurou algumas palavras em código que informava ao homem do outro lado da chamada que estava sendo seguido. Então
desligou e ficou olhando a Jet d’Eau lançar um jato de água por cima do lago. Seus pensamentos, no entanto, estavam nos eventos que iriam acontecer em seguida. Primeiro,
o sr. Omari faria com que ela falasse. Depois, o sr. Omari iria matá-la. Prometia ser uma tarde divertida. Kemel al-Farouk só queria ter tempo em sua agenda complicada
para fazer isso pessoalmente.
No apartamento seguro do boulevard de Saint-Georges, Gabriel estava na frente do computador, uma mão descansando sobre o queixo, a cabeça virada para o lado, paralisado.
Eli Lavon caminhava devagar atrás dele, uma xícara de chá na mão, um escritor procurando o verbo perfeito. O rádio seguro contava tudo que era preciso saber; o computador
só fornecia provas comprobatórias. Jihan Nawaz estava segura de volta ao carro e este ia na direção do Aeroporto Internacional de Genebra. Mikhail Abramov estava
a duzentos metros atrás deles na route de Meyrin, com Yossi servindo como navegador e segundo par de olhos de reserva. Oded e Rimona Stern estavam cobrindo o terminal.
O resto da equipe estava a caminho. Tudo estava indo de acordo com o plano, com uma pequena exceção.
— Qual é? — perguntou Eli Lavon.
— O celular — respondeu Gabriel.
— O que tem?
— Só estou imaginando por que o sr. Omari não o devolveu para ela.
Outro minuto se passou e a luz vermelha piscando ainda não apareceu na tela. Gabriel levantou o rádio até seus lábios e mandou que Mikhail se aproximasse.
Mais tarde, durante o inquérito secreto que se seguiu aos eventos em Genebra, haveria alguns questionamentos de quando precisamente Mikhail e Yossi receberam a ordem
de Gabriel. No final, todos concordaram que foi às 12h17. Não havia nenhuma dúvida sobre a localização deles no momento; estavam passando pelo bar e restaurante
Les Asters no número 88 da Route de Meyrin. Uma mulher de cabelo escuro estava parada na varanda de seu apartamento bem em cima do café. Um bonde estava vindo na
direção deles. Era o número 14. Mikhail e Yossi tinham certeza disso.
Tinham certeza, também, de que a Mercedes levando Jihan Nawaz estava a cem metros na frente deles e indo a uma velocidade considerável. Tão considerável, na verdade,
que Mikhail achou difícil diminuir o intervalo separando os dois carros. Ele passou o farol vermelho na avenida Wendt e quase atropelou um temerário pedestre, mas
não funcionou. O motorista da Mercedes estava pisando fundo pelo boulevard como se estivesse com medo que Jihan perdesse seu voo.
Finalmente, na saída do compacto centro da cidade de Genebra, Mikhail conseguiu pisar fundo no acelerador. E foi quando o caminhão comercial branco, muito novo,
sem nenhuma marca, veio cruzando pela rua lateral estreita. Mikhail teve menos de um segundo para considerar a ação evasiva e nesse momento determinou que não havia
escolha. Havia um bonde parado no centro do boulevard, e trânsito pesado vindo na direção dele nas faixas opostas. O que não lhe deixou alternativa a não ser pisar
nos freios enquanto girava o volante à esquerda, uma manobra que fez com que o carro derrapasse de forma controlada.
O motorista do caminhão brecou, bloqueando assim as duas faixas do boulevard. E quando Mikhail fez um gesto para que saísse, o motorista desceu do caminhão e começou
a discutir em uma língua que parecia uma mistura de francês e árabe. Mikhail desceu também e por um momento pensou em mostrar sua arma. Mas não foi necessário; depois
de fazer um último gesto obsceno, o motorista do caminhão voltou à cabine e, sorrindo, saiu do caminho lentamente. A Mercedes não estava em lugar nenhum e Jihan
Nawaz tinha oficialmente desaparecido das telas do radar.
O celular que pertencia ao sr. Omari, primeiro nome desconhecido, tocou duas vezes depois que ele saiu do hotel Métropole; quando estavam cruzando a Pont du Mont-Blanc
e novamente quando estava se aproximando do aeroporto. Durante a primeira ligação ele não falou nada; durante a segunda, emitiu algo mais que um grunhido antes de
desligar. O celular de Jihan estava perto do console do centro. Até o momento, ele não tinha dado nenhuma indicação de que planejava devolvê-lo, agora ou mais tarde.
— Deve estar curiosa sobre a natureza desses documentos — falou ele depois de um momento.
— De jeito nenhum — respondeu ela.
— É mesmo? — Ele se virou e olhou para ela. — Acho difícil acreditar.
— Por quê?
— Porque a maioria das pessoas é naturalmente curiosa quando se trata dos negócios financeiros de pessoas poderosas.
— Trabalho com pessoas poderosas o tempo todo.
— Não como o sr. al-Farouk. — Ele deu um sorriso desagradável. Então falou: — Vá em frente. Dê uma olhada.
— Me mandaram não olhar.
Jihan não se moveu. O sorriso dele desapareceu.
— Olhe os documentos — voltou a falar.
— Não posso.
— O sr. al-Farouk acabou de me contar que queria que você abrisse o envelope antes de entrar no avião.
— Ele não me falou isso, então não posso.
— Olhe os documentos, Jihan. É importante.
Ela tirou o envelope de sua bolsa e entregou para ele. O homem levantou as mãos na defensiva, como se estivessem oferecendo uma cobra venenosa para ele.
— Não tenho permissão para vê-los — falou ele. — Só você.
Ela soltou a presilha de metal, levantou a aba e tirou o maço de documento. Tinha meio centímetro de grossura e estava preso com um gancho de metal. A página de
cima estava em branco.
— Pronto — falou ela. — Já vi. Podemos ir ao aeroporto agora?
— Olhe a página seguinte — falou ele, sorrindo de novo.
Ela fez isso. Também estava em branco. Assim como a terceira. E a quarta. Então levantou a vista para o sr. Omari e viu a arma em sua mão, a arma que estava apontada
para o peito dela.
53
GENEBRA
ÀS DUAS HORAS DAQUELA TARDE, a Conferência de Genebra sobre a Síria se reuniu na sede da ONU em Genebra. O sério secretário de Estado norte-americano pediu uma transição
organizada do regime para a democracia, algo que o ministro de Relações Exteriores sírio disse que nunca iria acontecer. Não foi surpreendente que sua posição ganhou
o apoio do representante russo, que avisou que o Kremlin iria vetar qualquer tentativa, militar ou diplomática, de forçar que seu único aliado no mundo árabe fosse
retirado do poder. Na conclusão da sessão, o secretário-geral da ONU declarou timidamente que as negociações tiveram um “início promissor”. A imprensa global discordou.
Eles caracterizaram todo o episódio como uma monumental perda de tempo e dinheiro, principalmente o deles, e foram atrás de uma história melhor para cobrir.
Em outro lugar da pequena cidade encantada, a vida corria como sempre. Os banqueiros ocupavam-se de seus negócios na rue du Rhône, os cafés da Cidade Velha se enchiam
e esvaziavam, os aviões brancos subiam aos céus claros sobre o Aeroporto Internacional de Genebra. Entre os voos que saíram naquela tarde estava o 577 da Empresa
Austríaca. A única irregularidade era a ausência de uma única passageira, uma mulher de 39 anos, nascida na Síria e criada numa rua em Hamburgo, que estaria para
sempre ligada ao terrorismo islâmico. Por causa do passado incomum da mulher e dos eventos acontecendo em Genebra naquele dia, a companhia aérea enviou um informe
à autoridade de aviação suíça que, por sua vez, enviou a informação ao NDB, o serviço de inteligência e segurança da Suíça. No final, esse informe chegou à mesa
de Christoph Bittel, que, coincidentemente, tinha sido colocado no comando da segurança para as conversações de paz da Síria. Ele fez um pedido de rotina por informações
de seus companheiros em Berlim e Viena, e recebeu a resposta de que não tinham nenhuma informação. Mesmo assim, mandou uma cópia do arquivo e da foto dela para a
polícia de Genebra, para os serviços de segurança diplomáticos norte-americano e russo, e até para os sírios. E então passou para assuntos mais urgentes.
A mulher que não conseguiu pegar um avião para Viena era bem mais importante para os dois homens no apartamento do boulevard de Saint-Georges. Em poucos minutos,
o humor deles passou da confiança calma ao desespero silencioso. Eles tinham recrutado, mentido e depois se revelado para ela. Tinham prometido protegê-la, dar a
ela uma nova vida em um lugar onde os monstros que tinham assassinado sua família nunca a encontrariam. E agora, num piscar de olhos, eles a perderam. Mas por que
os monstros a trouxeram a Genebra para início de conversa? E por que tinham permitido que entrasse em um quarto de hotel onde Kemel al-Farouk, vice-ministro de Relações
Exteriores da Síria e conselheiro do dirigente, estava presente?
— Obviamente — falou Eli Lavon — era uma armadilha.
— Obviamente? — perguntou Gabriel.
Lavon olhou para a tela do computador.
— Está vendo alguma luz vermelha? — perguntou ele. — Porque eu não estou.
— Isso não significa que era uma armadilha.
— O que significa?
— Por que trazê-la aqui durante a conferência de paz? Por que não raptá-la em Linz?
— Porque sabiam que estávamos cuidando dela, e acharam que não conseguiriam raptá-la facilmente.
— Então criaram uma desculpa para trazê-la até Genebra? Algo que não poderíamos resistir? É isso que está falando, Eli?
— Já viu isso antes?
— O que está falando?
— É exatamente como teríamos feito isso.
Gabriel não ficou convencido.
— Você notou algum agente de inteligência síria quando estávamos em Linz?
— Isso não significa que não estavam lá.
— Notou, Eli?
— Não — falou, balançando a cabeça. — Não posso falar que vi.
— Nem eu — respondeu Gabriel. — E é por que Waleed al-Siddiqi e Jihan Nawaz eram os únicos sírios na cidade. Ninguém a seguia até seu avião pousar em Genebra.
— O que aconteceu?
— Aconteceu isso. — Gabriel apertou o ícone de PLAY no computador e uns segundos depois apareceu o som de Waleed al-Siddiqi murmurando algo em árabe.
— A ligação de Damasco? — perguntou Lavon.
Gabriel assentiu.
— Se tivesse que adivinhar — falou ele — era alguém da Mukhabarat dizendo a Waleed que ele contratou uma mulher de Hama para trabalhar como sua gerente de contas.
— Grande erro.
— E foi por isso que Waleed ligou depois para Kemel al-Farouk no hotel Métropole e mandou que cancelasse a reunião.
— Mas al-Farouk tinha uma ideia melhor?
— Talvez tenha sido ideia de al-Farouk. Ou talvez do sr. Omari. A questão é — acrescentou Gabriel —: eles não tem nada contra ela a não ser o fato de ter mentido
sobre seu local de nascimento.
— Algo me diz que não vai demorar muito para eles descobrirem a verdade.
— Concordo.
— Então, o que vai fazer?
— Um acordo, claro.
— Como?
— Assim. — Gabriel digitou uma mensagem de três palavras para o Boulevard Rei Saul e apertou SEND.
— Isso vai chamar a atenção deles — falou Lavon. — Tudo que precisamos agora é de alguém para negociar.
— Temos alguém, Eli.
— Quem?
Gabriel virou o computador para Lavon ver a tela. Uma luz vermelha estava piscando na rue Saint-Honoré, no primeiro Arrondissement de Paris. Waleed al-Siddiqi tinha
finalmente ligado seu celular.
Uzi Navot tinha um corpo construído para a força, não para a velocidade. Mesmo assim, todos que foram testemunhas de sua corrida do Centro de Operações até a sala
414C mais tarde diriam que nunca tinham visto o chefe se mover tão rápido. Ele bateu tão forte na porta que parecia que estava tentando quebrá-la, e quando entrou
foi direto para o terminal de computador que tinha sido reservado para o roubo.
— Ainda está pronto? — perguntou ele para ninguém em especial, e de algum lugar da sala veio a resposta de que tudo estava em ordem. Navot se inclinou e, com mais
força do que era necessário, apertou o botão. Eram 16h22 em Tel Aviv, 15h55 em Genebra. E ao redor do mundo, armadilhas estavam sendo desatadas e o dinheiro estava
começando a fluir.
Aproximadamente cinco minutos depois de cruzar a fronteira francesa, o sr. Omari arrastou Jihan aos gritos para o porta-malas do carro. A tampa fechou sobre ela
com um barulho forte e definitivo, e seu mundo se tornou negro. Era como Hama durante o sítio, ela pensou. Mas aqui no porta-malas do carro não havia explosões ou
gritos para cortar a escuridão, só o enlouquecedor zumbido dos pneus sobre o asfalto. Ela imaginou que estava nos braços de sua mãe de novo, agarrando seu hijab.
Até imaginou que conseguia sentir o perfume de rosas dela. Então o cheiro de gasolina superou tudo, e a memória do abraço de sua mãe desapareceu, deixando somente
o medo. Ela sabia qual seria seu destino; já tinha visto isso tudo antes, durante os dias negros depois do sítio. Ela seria interrogada. Depois seria morta. Não
havia nada a fazer. Era a vontade de Deus.
O escuro fazia com que fosse impossível que Jihan visse seu relógio e, portanto, acompanhasse a passagem do tempo. Ela cantarolou para esconder seu medo. E, por
um breve momento, pensou no oficial de inteligência israelense cujo nome tinha escrito na superfície do Attersee. Ele nunca a abandonaria; tinha certeza disso. Mas
ela precisava ficar viva tempo suficiente para que ele a encontrasse. Então se lembrou de um homem que tinha conhecido em Hamburgo quando era estudante universitária,
um dissidente sírio que tinha sido torturado pela Mukhabarat. Ele tinha sobrevivido, contou, porque havia contado aos interrogadores coisas que achou que queriam
ouvir. Jihan iria fazer a mesma coisa — não a verdade, claro, mas uma mentira tão irresistível que iriam querer saber de tudo. Não tinha dúvidas de sua capacidade
de enganá-los. Tinha enganado as pessoas sua vida toda.
E assim, deitada no escuro, com a estrada debaixo dela, inventou a história que esperava que salvaria sua vida. Era a história de uma aliança improvável entre um
homem poderoso e uma jovem solitária, uma história de ambição e enganos. Ela repassou o começo, fez uma edição e reescreveu aqui e ali, e quando o carro finalmente
parou, estava terminada. Quando o porta-malas se abriu, ela viu o rosto do sr. Omari antes que ele enfiasse um saco preto em sua cabeça. Tinha esperado por isso.
O dissidente sírio tinha contado que a Mukhabarat gostava da privação dos sentidos.
Ela foi tirada do porta-malas e levada por um caminho de terra. Então a forçaram a descer umas escadas tão íngremes que no final desistiram e a carregaram. Um momento
depois eles a largaram num chão de concreto como se ela estivesse morta. Então ouviu uma porta se fechar, seguida pelo som de passos masculinos se afastando. Ela
ficou imóvel por vários segundos antes de finalmente tirar o saco e descobrir que estava novamente em um lugar totalmente escuro. Tentou não tremer, mas não conseguiu
evitar. Tentou não chorar, mas as lágrimas escorriam por seu rosto. Então pensou em sua história. Era culpa do sr. al-Siddiqi, ela falou para si mesma. Nada disso
teria acontecido se o sr. al-Siddiqi não tivesse oferecido um emprego para ela.
54
TEL AVIV - HAUTE-SAVOIE, FRANÇA
NO FINAL, OS dez gênios da computação conhecidos coletivamente como Minyan estavam errados sobre o tempo que iria demorar. O processo não durou cinco minutos, mas
pouco mais de três. Como resultado, à 16h25, hora de Tel Aviv, 8,2 bilhões dos bens do dirigente sírio estavam sob controle do Escritório. Um minuto depois, Uzi
Navot enviou uma mensagem para Gabriel no apartamento de Genebra confirmando que a transferência tinha sido completada. Nesse ponto, Gabriel deu a ordem para uma
segunda transação: a transferência de quinhentos milhões para uma conta no Bank TransArabian em Zurique. O dinheiro chegou às 15h29, hora local, quando o dono da
conta, Waleed al-Siddiqi, estava preso no trânsito da tarde de Paris. Gabriel ligou para o número do celular do banqueiro, mas ele não atendeu. Cortou a ligação,
esperou outro minuto, e ligou de novo.
Não a fizeram esperar muito, cinco minutos apenas. Então Jihan ouviu a primeira batida na porta, e uma voz masculina mandou que colocasse o saco na cabeça de novo.
Era um dos que tinham esperado por ela no aeroporto de Genebra; ela reconheceu sua voz e o cheiro de colônia horrível um momento depois, quando ele a levantou. Guiou-a
até a escada íngreme, depois por um piso de mármore. Ela percebeu que era algum tipo de grande espaço institucional porque os ecos de seus passos pareciam ir bem
longe. Finalmente, ele mandou que ela parasse e a forçou a se sentar em uma cadeira de madeira dura. E ela ficou ali sentada por vários minutos, cega pelo saco e
pelo medo do que viria a seguir. Ficou imaginando quanto tempo tinha de vida. Ou talvez, pensou, já estivesse morta.
Outro minuto se passou. Então uma mão arrancou o saco, levando um tufo de cabelo de Jihan com ele. O sr. Omari estava na frente dela, de camiseta regata, um cassetete
de borracha na mão. Jihan olhou onde estava. Era uma grande sala bonita de um grande château. Não um château, ela pensou de repente, mas um palácio. Parecia recentemente
decorado e ainda vazio.
— Onde estou? — perguntou ela.
— Que diferença isso faz?
Ela voltou a olhar para a sala e perguntou:
— De quem é esse lugar?
— Do presidente da Síria. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Seu presidente, Jihan.
— Sou cidadã alemã. Você não tem o direito de me prender.
Os dois homens sorriram um para o outro. Então o sr. Omari colocou seu celular na pequena mesa decorativa ao lado da cadeira de Jihan.
— Ligue para seu embaixador, Jihan. Ou melhor ainda — acrescentou ele —, por que não liga para a polícia francesa? Tenho certeza de que eles chegariam em pouco tempo.
Jihan não se moveu.
— Ligue para eles — exigiu ele. — O número de emergência na França é um, um, dois. Aí você disca 17 para a polícia.
Ela esticou a mão para pegar o telefone, mas antes que pudesse agarrá-lo, o cassetete atingiu as costas de sua mão como um martelo. Instantaneamente, ela se dobrou
pela metade e agarrou a mão atacada como se fosse um passarinho machucado. Então o cassetete caiu sobre suas costas, e ela rolou no chão. Ficou ali como uma bola
defensiva, incapaz de se mover, incapaz de fazer qualquer som a não ser um profundo soluço de agonia. “Então é aqui que vou morrer”, ela pensou. “No palácio do dirigente,
em uma terra que não é a minha.” Ela esperou pelo golpe seguinte, mas ele não veio. Em vez disso, o sr. Omari juntou um punhado do cabelo dela e puxou seu rosto
para perto do dele.
— Se estivéssemos na Síria — falou ele —, teríamos muitos aparelhos à nossa disposição para obrigá-la a falar. Mas aqui só temos esse — acrescentou ele, apontando
para o cassetete de borracha. — Podemos demorar um pouco, e não vai sobrar muito da sua cara quando eu terminar, mas você vai falar, Jihan. Todo mundo fala.
Por um momento, ela não conseguiu responder. Então, finalmente, retomou a capacidade de falar.
— O que quer saber?
— Quero saber para quem você está trabalhando.
— Trabalho para Waleed al-Siddiqi no Bank Weber AG em Linz, Áustria.
O cassetete atingiu a lateral de seu rosto. Sentiu que ficou temporariamente cega.
— Quem a seguiu até o hotel em Genebra essa manhã?
— Não sabia que estava sendo seguida.
Dessa vez, o cassetete atingiu a lateral de seu pescoço. Não teria ficado surpresa se tivesse visto sua cabeça rolando pelo chão de mármore do dirigente.
— Você está mentindo, Jihan.
— Não estou mentindo! Por favor — pediu ela —, não me bata de novo.
Ele ainda estava segurando-a pelo cabelo. O rosto dele estava vermelho pela raiva e pelo esforço.
— Vou fazer uma pergunta simples, Jihan. Confie em mim quando digo que sei a resposta para essa pergunta. Se me disser a verdade, nada vai acontecer com você. Mas
se mentir, não vai sobrar muita coisa de você quando eu terminar. — Ele balançou violentamente a cabeça dela. — Está me entendendo, Jihan?
— Estou.
— Diga onde você nasceu.
— Síria
— Em que lugar da Síria, Jihan?
— Hama — respondeu ela. — Nasci em Hama.
— Qual era o nome do seu pai?
— Ibrahim Nawaz.
— Ele era membro da Irmandade Muçulmana?
— Era.
— Ele morreu durante o levante em Hama em fevereiro de 1982?
— Não — respondeu ela. — Ele foi assassinado pelo regime em 1982, junto com meus irmãos e minha mãe.
Claramente, o sr. Omari não estava interessado em ficar discutindo o passado.
— Mas você não — afirmou ele.
— Não — respondeu ela. — Eu sobrevivi.
— Por que não contou ao sr. al-Siddiqi nada disso quando ele a contratou para trabalhar no Bank Weber?
— Como assim?
— Não brinque comigo, Jihan.
— Não estou brincando — disse.
— Disse ao sr. al-Siddiqi que tinha nascido em Hama?
— Disse.
— Contou ao sr. al-Siddiqi que sua família tinha morrido durante esse levante?
— Contei.
— Contou a ele que seu pai era um Irmão Muçulmano?
— Claro — falou ela. — Contei tudo ao sr. al-Siddiqi.
Na quarta tentativa, Waleed al-Siddiqi finalmente atendeu o telefone. Durante vários segundos ele não disse nada, a luz vermelha piscando como um coração nervoso
na tela do computador de Gabriel. Então, em árabe, ele perguntou:
— Quem é?
— Estou ligando sobre um problema em uma de suas contas — disse Gabriel, calmo. — Na verdade, em várias das suas contas.
— Do que você está falando?
— Se eu fosse você, Waleed, ligaria para Dennis Cahill no Trade Winds Bank nas ilhas Caimã e perguntaria sobre alguma atividade recente nas contas da LXR Investments.
E, aproveitando, eu ligaria para Gérard Beringer, o homem com o qual acabou de se reunir na Société Générale. E depois quero que você me ligue de volta. Você tem
cinco minutos. Rápido, Waleed. Não me deixe esperando.
Gabriel desligou e colocou o celular na mesa.
— Isso vai chamar a atenção dele — falou Eli Lavon.
Gabriel olhou para a tela do computador e sorriu.
Já tinha chamado.
Ele ligou para o Trade Winds e o Société Générale. Depois ligou para o UBS, o Credit Suisse, o Centrum Bank de Liechtenstein e o First Gulf Bank de Dubai. Em cada
instituição, ouviu a mesma história. Finalmente, dez minutos atrasado, ligou para Gabriel.
— Você nunca vai se safar disso — falou ele.
— Já me safei.
— O que você fez?
— Não fiz nada, Waleed. Foi você que roubou o dinheiro do dirigente.
— Do que você está falando?
— Acho que deveria fazer mais uma ligação, Waleed.
— Para onde?
Gabriel contou. Então cortou a ligação e aumentou o volume do computador. Dez segundos depois, um telefone estava tocando no TransArabian Bank em Zurique.
55
HAUTE-SAVOIE, FRANÇA
ELES TROUXERAM UMA TIGELA com água gelada para sua mão. A tigela era grande e prateada; sua mão era uma massa ensanguentada. O choque do frio ajudou a diminuir a
dor, mas não a raiva queimando dentro dela. Homens como o sr. Omari tinham tirado tudo dela — sua família, sua vida, sua cidade. Agora, tanto tempo depois, ela tinha
a chance de enfrentá-lo. E talvez, pensou, vencê-lo.
— Cigarro? — perguntou ele, e ela respondeu que sim, ela aceitaria outra misericórdia cordial do assassino. Ele colocou um Marlboro entre seus lábios partidos e
acendeu. Ela tragou e, com dificuldade, segurou o cigarro com a mão esquerda.
— Está confortável, Jihan?
Ela tirou a mão direita da água gelada, mas não falou nada.
— Não teria acontecido se tivesse me contado a verdade.
— Não me deu muita oportunidade.
— Estou dando agora.
Ela decidiu jogar devagar. Tragou o cigarro de novo e soltou uma nuvem de fumaça na direção do teto ornamentado do dirigente.
— E se eu contar o que sei? O que acontece?
— Vai ficar livre para ir embora.
— Para onde?
— A escolha é sua.
Ela colocou de novo sua mão na água.
— Me desculpe, sr. Omari — falou ela —, mas você pode imaginar que não tenho muita confiança no que você fala.
— Então acho que não tenho escolha a não ser quebrar sua outra mão. — Outro sorriso cruel. — E depois vou quebrar suas costelas e todos os ossos em seu rosto.
— O que quer de mim? — perguntou ela depois de um momento.
— Quero que me conte tudo que sabe sobre Waleed al-Siddiqi.
— Ele nasceu na Síria. Ganhou muito dinheiro. Comprou participação em um pequeno banco privado em Linz.
— Sabe por que ele comprou o banco?
— Usa como plataforma para investir dinheiro e esconder bens para clientes poderosos do Oriente Médio.
— Conhece alguns dos nomes deles?
— Só um — respondeu ela, olhando para a sala.
— Como soube a identidade do cliente?
— O sr. al-Siddiqi me contou.
— Por que ele diria algo assim?
— Acho que queria me impressionar.
— Sabe onde o dinheiro está investido?
— Zurique, Liechtenstein, Hong Kong, Dubai, os lugares de sempre.
— E os números das contas? Sabe quais são, também?
— Não — disse ela, negando com a cabeça. — Só o sr. al-Siddiqi conhece os números das contas. — Ela colocou sua mão sobre seu coração. — Ele carrega a informação
aqui, em um caderno de couro preto.
Naquele exato momento, o homem no centro da incrível narrativa de Jihan estava sentado sozinho no banco de trás de seu carro, pensando em qual seria seu próximo
movimento — ou, como Christopher Keller falaria depois, tentando decidir como se matar com o mínimo de dor possível. Finalmente, al-Siddiqi ligou para Gabriel e
capitulou.
— Quem é você? — perguntou ele.
— Logo vai descobrir.
— O que quer de mim?
— Quero que ligue para Kemel al-Farouk e diga como você perdeu oito bilhões de dólares do dinheiro do dirigente. Depois quero que diga como uma parte importante
desses bens terminou em uma conta no seu nome.
— E depois?
— Vou oferecer uma incrível oportunidade de investimento — falou Gabriel. — É uma oportunidade única, uma chance incrível de ganhar muito dinheiro bem rápido. Está
me ouvindo, Waleed? Tenho toda sua atenção agora?
O sr. Omari estava a ponto de perguntar a Jihan sobre a natureza de seu relacionamento com Waleed al-Siddiqi quando seu celular vibrou baixinho. Ele ouviu em silêncio
por um momento, emitiu um grunhido e desligou. Então fez um gesto para seu jovem motorista e cúmplice, que colocou o saco escuro sobre a cabeça de Jihan e a levou
de volta para sua cela. E lá eles a deixaram no escuro, a mão latejando, a cabeça tomada pelo medo. Talvez ela já estivesse morta. Ou talvez, pensou, tivesse vencido.
56
ANNECY, FRANÇA
GABRIEL E ELI LAVON FIZERAM uma última viagem juntos, Gabriel atrás do volante, Lavon no banco do passageiro, inquieto e preocupado como sempre. Eles foram para
o oeste, cruzaram a fronteira francesa, depois viraram para o sul atravessando o campo de Haute-Savoie até Annecy. Era quase noite quando chegaram; Gabriel deixou
Lavon perto da prefeitura e estacionou o carro perto da Igreja de Saint-François de Sales. Uma bonita estrutura branca no aterro do rio Thiou, lembrou a Gabriel
a Igreja de San Sebastiano em Veneza. Espiou dentro dela, imaginando se veria um restaurador parado sozinho na frente de um Veronese, e depois caminhou até um café
próximo chamado Savoie Bar. Era um lugar com um menu simples e umas poucas mesas organizadas debaixo de um teto vermelho. Em uma das mesas estava Christopher Keller.
Ele estava novamente usando a peruca loira e os óculos de lentes azuis de Peter Rutledge, o falso ladrão de arte. Gabriel se sentou na frente dele e colocou seu
BlackBerry na mesa; e quando um garçom finalmente se aproximou, ele pediu um café com creme.
— Tenho que admitir — falou Keller depois de um momento — que não esperava que isso terminasse assim.
— Como esperava que terminasse, Christopher?
— Com você encontrando o Caravaggio, claro.
— Não dá para ter tudo. Além disso, encontrei algo muito melhor que o Caravaggio. E mais valioso, também.
— Jihan?
Gabriel assentiu.
— A garota de oito bilhões de dólares — murmurou Keller.
— São 8,2 — respondeu Gabriel. — Mas quem está contando?
— Não está arrependido?
— De quê?
— De fazer um acordo.
— De jeito nenhum.
Nesse momento, Eli Lavon passou por eles na praça e se juntou a Yaakov no café da outra esquina. Mikhail e Yossi estavam estacionados na rua estreita chamada rue
Grenette. Oded estava olhando o carro de uma mesa na obrigatória lanchonete de kebab.
— São bons homens — disse Keller enquanto olhava a praça. — Todos. Não foi culpa deles. Você organizou uma boa operação em Linz, Gabriel. Algo deve ter dado errado
no final.
Gabriel não falou nada, apenas olhou para seu BlackBerry.
— Onde está ele? — perguntou Keller.
— A menos de dois quilômetros ao norte e chegando rápido.
— Acho que vou gostar muito disso.
— Algo me diz que Waleed não vai sentir o mesmo.
Gabriel colocou o BlackBerry de volta na mesa, olhou para Keller e sorriu.
— Desculpe metê-lo em tudo isso — falou ele.
— Na verdade, não perderia por nada desse mundo.
— Talvez exista esperança para você, afinal, Christopher. Você conseguiu não matar ninguém dessa vez.
— Tem certeza de que não matamos ninguém?
— Ainda não.
Gabriel olhou de novo para o BlackBerry. A luz vermelha piscando entrou nos limites da cidade de Annecy.
— Ainda vindo na nossa direção? — perguntou Keller.
Gabriel assentiu.
— Talvez você devesse me deixar fazer a negociação.
— Por que faria isso?
— Porque pode não ser uma boa ideia deixar que o vejam. Afinal — acrescentou Keller —, até o momento eles não sabem que o Escritório está envolvido.
— A menos que tenham arrancado a informação de Jihan.
Keller ficou em silêncio.
— Aprecio a oferta, Christopher, mas isso é algo que tenho que fazer. Além disso — acrescentou Gabriel —, quero que o açougueiro mirim e seus escudeiros saibam que
eu estava por trás da operação. Algo me diz que vai facilitar meu trabalho quando eu assumir o Escritório.
— Você não vai fazer isso, vai?
— Não tenho muita escolha na questão.
— Todos escolhemos a vida que levamos. — Keller fez uma pausa, depois acrescentou: — Até eu.
Gabriel permitiu que um silêncio caísse entre eles.
— Minha oferta ainda está de pé — falou ele finalmente.
— Trabalhar para você no Escritório?
— Não — falou Gabriel. — Pode trabalhar para Graham Seymour no MI6. Ele vai lhe dar uma nova identidade, uma nova vida. Poderá voltar para casa. E, mais importante,
poderá falar a seus pais que ainda está vivo. É terrível o que fez com eles. Se não gostasse tanto de você, acharia que é um verdadeiro...
— Acha que daria certo? — perguntou Keller, interrompendo.
— O quê?
— Eu como agente do MI6?
— Por que não?
— Gosto de morar na Córsega.
— Mantenha uma casa lá.
— O dinheiro não seria tão bom.
— Não — concordou Gabriel —, mas você já tem muito dinheiro.
— Seria uma grande mudança.
— Às vezes, é bom mudar.
Keller ficou pensando.
— Nunca gostei muito de matar pessoas, sabe. Acontece que sou bom nisso.
— Sei exatamente como você se sente, Christopher. — Gabriel olhou de novo para o BlackBerry.
— Onde ele está?
— Perto — falou Gabriel. — Muito perto.
— Onde? — perguntou Keller de novo.
Gabriel apontou para a rue Grenette.
— Bem ali.
57
ANNECY, FRANÇA
ERA A MESMA MERCEDES que o tinha levado a sua reunião na Société Générale, dirigida pelo mesmo agente de inteligência sírio em Paris. Mikhail entrou no banco de
trás e, com uma arma apontada para as costas do motorista, revistou Waleed al-Siddiqi. Quando terminou, os dois homens saíram e ficaram parados na calçada enquanto
o carro seguia pela rua. Então, Mikhail acompanhou al-Siddiqi pela praça vazia e o colocou na mesa do Savoie Bar onde Gabriel e Keller estavam esperando. O sírio
não parecia muito bem, mas isso não era nenhuma surpresa. Banqueiros que perdem oito bilhões de dólares em uma simples tarde raramente parecem bem.
— Waleed — falou Gabriel, alegre. — Que bom que veio. Desculpe arrastá-lo até aqui, mas essas coisas são melhor quando feitas pessoalmente.
— Onde está o dinheiro?
— Onde está minha garota?
— Não sei.
— Resposta errada.
— É a verdade.
— Me dê seu telefone.
O banqueiro sírio entregou. Gabriel abriu o diretório de chamadas recentes e viu os números que al-Siddiqi tinha ligado freneticamente desde que descobriu que oito
bilhões de dólares pertencentes ao dirigente da Síria tinham desaparecido de repente.
— Qual? — perguntou Gabriel.
— Esse — respondeu o banqueiro, tocando a tela.
— Quem vai atender?
— Um cavalheiro chamado sr. Omari.
— O que ele faz para viver?
— Mukhabarat.
— Ele a machucou?
— Infelizmente é o que ele faz.
Gabriel ligou para o número. Depois de dois toques, uma voz masculina atendeu.
— Sr. Omari, suponho?
— Quem é?
— Meu nome é Gabriel Allon. Talvez já tenha ouvido falar de mim.
Houve um silêncio.
— Vou entender como um sim — falou Gabriel. — Agora, poderia ser gentil e passar o telefone para Jihan por um momento? Quero ter certeza de que você está com ela.
Houve um breve silêncio. Gabriel ouviu o som da voz de Jihan.
— Sou eu — foi tudo que ela disse.
— Onde você está?
— Não tenho certeza.
— Eles a machucaram?
— Não foi tão ruim.
— Fique tranquila, Jihan. Você está quase em casa.
O telefone mudou de mãos. O sr. Omari voltou à linha.
— Onde quer que a gente vá? — perguntou ele.
— Para a rue Grenette no centro de Annecy. Tem um lugar perto da igreja chamado Chez Lise. Estacione em frente e espere minha ligação. E não ouse colocar as mãos
nela de novo. Se fizer isso, vou dedicar minha vida a encontrá-lo e matá-lo. Só para ficar claro.
Gabriel finalizou a ligação e devolveu o celular a al-Siddiqi.
— Achei que você parecia familiar — disse o sírio. Então olhou para Keller e acrescentou: — Ele também. Na verdade, ele parece bastante com um homem que estava tentando
vender um Van Gogh roubado em Paris algumas semanas atrás.
— E você foi estúpido o suficiente para comprar. Mas não se preocupe — acrescentou Gabriel. — Não era verdadeiro.
— E a Iniciativa de Negócios Europeia em Londres? Acho que era falsa, também.
Gabriel não falou nada.
— Parabéns, Allon. Sempre ouvi dizer que você era muito criativo.
— Quantos você tem, Waleed?
— Quadros?
Gabriel assentiu.
— O suficiente para abrir um pequeno museu.
— O suficiente para manter a família dirigente vivendo no estilo que está acostumada — falou Gabriel friamente — caso alguém descubra as contas bancárias.
— Isso — falou o sírio. — Por via das dúvidas.
— Onde estão os quadros agora?
— Aqui e ali — respondeu al-Siddiqi. — Cofres bancários principalmente.
— E o Caravaggio?
— Não saberia dizer.
Gabriel se inclinou para frente, ameaçador.
— Eu me considero um cara razoável, Waleed, mas meu amigo, o sr. Bartholomew, é conhecido por ter pouca paciência. Ele também é uma das poucas pessoas no mundo que
é mais perigosa do que eu, então dessa vez não banque o tolo.
— Estou dizendo a verdade, Allon. Não sei onde está o Caravaggio.
— Quem o teve pela última vez?
— É difícil dizer. Mas se eu fosse chutar, diria que foi Jack Bradshaw.
— E é por isso que você o matou.
— Eu? — Al-Siddiqi negou com a cabeça. — Não tive nada a ver com a morte do Bradshaw. Por que iria matá-lo? Ele era minha única ligação com o lado sujo do mundo
da arte. Estava planejando usá-lo para vender os quadros se precisasse de algum dinheiro rápido.
— Então quem o matou?
— Foi o sr. Omari.
— Por que um agente médio da Mukhabarat mataria alguém como Jack Bradshaw?
— Porque recebeu ordens.
— De quem?
— Do presidente da Síria, claro.
Gabriel não queria que Jihan ficasse nas mãos dos assassinos um minuto a mais do que fosse necessário, mas não havia como voltar atrás; ele precisava saber. E assim,
com a noite caindo ao redor deles, marcada pelos sinos nas torres da igreja, ouviu o banqueiro explicar que o Caravaggio não deveria ser usado como estoque de dinheiro
do submundo. Deveria ser contrabandeado para a Síria, restaurado e pendurado em um dos palácios do dirigente. E quando o quadro desapareceu, o dirigente teve um
ataque de raiva violenta. Então mandou que o sr. Omari, um respeitado agente da Mukhabarat e guarda-costas de confiança de seu pai, encontrasse o quadro. Ele começou
sua busca na residência de Jack Bradshaw no lago Como.
— Foi Omari quem matou Bradshaw? — perguntou Gabriel.
— E seu falsificador também — respondeu al-Siddiqi.
— E o Samir?
— Ele já não era mais necessário.
Assim como você, pensou Gabriel. Então, perguntou:
— Onde está o Caravaggio agora?
— Omari nunca conseguiu encontrá-lo. O Caravaggio sumiu. Quem sabe? — acrescentou al-Siddiqi, dando de ombros. — Talvez nunca tenha existido um Caravaggio.
Nesse instante, um carro parou na rue Grenette, uma Mercedes preta de vidros escuros. Gabriel pegou o celular de al-Siddiqi e ligou. Omari respondeu imediatamente.
Gabriel mandou entregar o celular a Jihan.
— Sou eu — falou ela de novo.
— Onde você está? — perguntou Gabriel.
— Estacionada numa rua em Annecy.
— Está perto de um restaurante?
— Estou.
— Como se chama?
— Chez Lise.
— Mais alguns minutos, Jihan. Aí você poderá ir para casa.
A linha ficou muda. Gabriel entregou o telefone para al-Siddiqi e explicou os termos do acordo.
Eram bastante simples: 8,2 bilhões de dólares por uma mulher, menos cinquenta milhões para cobrir os custos de migração e a segurança pelo resto da vida dela. Al-Siddiqi
concordou sem negociar ou reclamar. Para dizer a verdade, ele estava espantado com a generosidade da oferta.
— Para onde gostaria que eu enviasse o dinheiro? — perguntou Gabriel.
— Gazprombank em Moscou.
— Número da conta?
Al-Siddiqi entregou a Gabriel um pedaço de papel com o número escrito. Gabriel enviou a informação para o Boulevard Rei Saul e instruiu Uzi Navot a apertar o botão
pela segunda vez. Só demorou dez segundos. Então o dinheiro desapareceu.
— Ligue para seu homem no Gazprombank — falou Gabriel. — Ele vai dizer que os ativos do seu banco aumentaram bastante.
Era meia-noite em Moscou, mas o contato de al-Siddiqi estava em sua mesa esperando a ligação dele. Gabriel conseguiu ouvir a animação em sua voz através do celular
de al-Siddiqi. Ele ficou pensando quanto dinheiro o presidente russo pegaria antes que os sírios conseguissem movê-lo para lugares mais confiáveis.
— Satisfeito? — perguntou Gabriel.
— Bastante impressionante — falou o banqueiro.
— Me poupe dos elogios, Waleed. Ligue para o sr. Omari e diga para abrir a maldita porta.
Trinta segundos depois, a porta se abriu e a tensão aumentou na rua. Do carro saiu Jihan, os óculos escuros de estrela de cinema cobrindo as marcas no rosto, a bolsa
no ombro esquerdo. Era o ombro esquerdo, notou Gabriel, porque a mão direita estava enfaixada demais para ser utilizada. Ela começou a cruzar a praça da igreja,
os saltos fazendo barulho ao tocarem as pedras, mas Mikhail rapidamente a levou a um carro que a esperava, e ela desapareceu da visão deles. Um momento depois, al-Siddiqi
ocupou o lugar dela na Mercedes e partiu, também, deixando Gabriel e Keller sozinhos no café.
— Acha que eles fazem operações assim no MI6? — perguntou Keller.
— Só quando estamos envolvidos.
— Não está arrependido?
— De quê, Christopher?
— Oito bilhões de dólares por uma única vida.
— Não — falou Gabriel, sorrindo. — Melhor acordo que já fiz.
PARTE CINCO
UMA ÚLTIMA JANELA
58
VENEZA
NOS NOVE DIAS SEGUINTES, o mundo da arte girou tranquilo em seu eixo dourado, sem saber das riquezas perdidas que logo começariam a aparecer. Então, em uma tarde
abafada do começo de agosto, o diretor do Rijksmuseum Vincent van Gogh anunciou que Doze Girassóis numa Jarra, óleo sobre tela, 95x73 cm, tinha voltado para casa.
O diretor se recusou a falar precisamente onde a obra perdida tinha sido encontrada, apesar de que, mais tarde, descobririam que havia sido deixada em um quarto
de hotel em Amsterdã. O quadro não tinha sofrido nenhum dano durante seu longo desaparecimento; na verdade, disse o diretor, parecia melhor do que estava na época
do roubo. O chefe da polícia holandesa assumiu o crédito publicamente pela recuperação, apesar de não ter nada a ver com isso. Julian Isherwood, presidente do Comitê
para Proteção da Arte, deu uma declaração hiperbólica em Londres dizendo que “era um grande dia para a humanidade e tudo que é decente e lindo nesse mundo”. Naquela
tarde, ele foi visto em sua mesa de sempre no Green’s Restaurant, acompanhado por Amanda Clifton da Sotheby’s. Todos os presentes mais tarde descreveriam a expressão
no rosto dela como “encantada”. Disseram que Oliver Dimbleby estava fervendo de ciúmes.
Somente Julian Isherwood, o ajudante secreto dos espiões, de um espião em particular, sabia que mais riquezas apareceriam. Outra semana se passou, tempo suficiente,
disseram mais tarde, para que diminuísse a euforia com Doze Girassóis numa Jarra. Então, em um palazzo cor de creme no centro de Roma, o general Cesare Ferrari do
Esquadrão de Arte mostrou três quadros, há muito desaparecidos, agora recuperados: A Sagrada Família, de Parmigianino, Jovens Mulheres no Campo, de Renoir e Retrato
de uma Mulher, de Klimt. Mas o general não tinha terminado. Também anunciou a recuperação de Praia em Pourville, de Monet e Mulher com Leque, de Modigliani, junto
com obras de Matisse, Degas, Picasso, Rembrandt, Cézanne, Delacroix e algo que poderia ou não ser um Ticiano. A coletiva de imprensa foi realizada com toda a pompa
e circunstância que fazia parte da fama do general Ferrari, mas foi talvez mais memorável pelo que o detetive de arte italiana não disse — especificamente, onde
e como as obras tinham sido encontradas. Ele falou de uma grande e altamente sofisticada rede de ladrões, contrabandistas e intermediários, sugerindo que mais quadros
iriam aparecer. Então, usando a desculpa de que se tratava de uma investigação em andamento, caminhou até a porta, fazendo uma pausa longa o suficiente para responder
às obrigatórias perguntas sobre as perspectivas de encontrar o objetivo número um do Esquadrão da Arte: a Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio.
— Odiamos usar a palavra nunca —, disse ele tristemente e foi embora.
Os eventos em Amsterdã e Roma contrastaram com as notícias da Áustria, onde as autoridades estavam tentando resolver outro tipo de mistério: o desaparecimento de
duas pessoas, um homem de cinquenta anos e uma mulher de 39, da antiga cidade comercial no Danúbio, Linz. O homem era Waleed al-Siddiqi, um sócio minoritário de
um pequeno banco privado. A mulher era Jihan Nawaz, a gerente de contas do banco. O fato de que os dois eram da Síria alimentou a especulação de algo estranho, assim
como a movimentação de Jihan Nawaz no dia do seu desaparecimento. Ela tinha viajado de Linz para Genebra, de acordo com as autoridades, onde as câmeras de segurança
do hotel Métropole tinham mostrado ela entrar no quarto de Kemel al-Farouk, o vice-ministro de Relações Exteriores da Síria e um assessor e conselheiro próximo ao
presidente do país. Inevitavelmente, isso levou a especulações de que a senhorita Nawaz era agente do governo sírio; na verdade, uma revista alemã, que já teve boa
reputação, publicou um longo artigo acusando-a de ser espiã do serviço de inteligência síria. A história foi desmentida dois dias depois quando um parente de Hamburgo
admitiu que os formulários de imigração alemães da mulher desaparecida não estavam totalmente corretos. Ela não tinha nascido em Damasco, como havia sido falado
antes, mas na cidade de Hama, onde forças do regime tinham matado toda sua família em fevereiro de 1982. Jihan Nawaz não era agente do regime, falou o parente, mas
uma fervorosa oponente.
As descobertas logo levaram a especulações de que Jihan Nawaz tinha trabalhado não para o governo sírio, mas para um serviço de inteligência ocidental. A teoria
ganhou força com o lento vazamento para a imprensa de mais informações biográficas sobre seu chefe, também desaparecido, informações que sugeriam que ele estava
envolvido na administração de bens financeiros escondidos do dirigente sírio. Então chegou um relatório de uma respeitável empresa de segurança de computadores sobre
uma série de transações financeiras que tinham sido detectadas durante o monitoramento rotineiro da internet. Parecia que vários bilhões de dólares tinham sido tirados
de vários bancos importantes do mundo e movidos para um único local em um período de tempo excepcionalmente curto. A empresa nunca conseguiu mostrar uma estimativa
precisa da quantidade de dinheiro envolvido, nem foi capaz de identificar os responsáveis. Conseguiu, no entanto, encontrar traços de códigos espalhados pelo mundo.
Todos que analisaram o código ficaram chocados com sua sofisticação. Não foi o trabalho de hackers comuns, disseram, mas de profissionais trabalhando para um governo.
Um especialista comparou com o worm de computador Stuxnet que tinha sido inserido na rede de computadores do programa de armas nucleares iraniano.
Foi nesse momento que um holofote indesejado iluminou o serviço de inteligência com sede em um anônimo bloco de escritórios em Tel Aviv. Os especialistas viram uma
evidência conclusiva, um elo perfeito de habilidade e motivação, e estavam corretos. Mas nenhum deles ligaria o suspeito movimento de dinheiro com a recente recuperação
de várias obras de arte roubadas, ou com o homem de altura e físico medianos, o sol entre as pequenas estrelas, que voltou a uma igreja em Veneza na terceira quarta-feira
de agosto. A plataforma de madeira em cima de seu andaime estava exatamente como ele tinha deixado vários meses antes: frascos de produtos químicos, um maço de algodão,
um pacote de cavilhas de madeira, uma lente de aumento, duas fortes lâmpadas halógenas. Ele colocou uma cópia de La Bohème no aparelho de som manchado de tinta e
começou a trabalhar. Molhar, girar, descartar... Molhar, girar, descartar...
Havia dias que ele mal podia esperar que terminassem, e dias que esperava que nunca tivessem fim. Seu caprichoso estado mental aparecia na frente da tela. Às vezes,
ele trabalhava com a lentidão de Veronese; em outras, com a velocidade despreocupada de Vincent, como se estivesse tentando captar a essência de seu tema antes que
definhasse e morresse. Felizmente, não havia ninguém para testemunhar suas mudanças de humor. Os outros membros da equipe já tinham completado o trabalho durante
sua longa ausência. Ele estava sozinho na casa de outra fé, de outro povo.
A operação raramente abandonava seus pensamentos por muito tempo. Ele a via em sua mente como um ciclo de naturezas mortas, paisagens e retratos: o espião caído,
o ladrão de arte, o assassino profissional, a filha de Hama escrevendo o nome dele na superfície do lago. A garota de oito bilhões de dólares... Ele nunca se arrependeu
de sua decisão de entregar o dinheiro em troca da liberdade dela. Dinheiro pode se ganhar e perder, encontrar e congelar. Mas Jihan Nawaz, a única sobrevivente de
uma família assassinada, era insubstituível. Ela era um original. Era uma obra de arte.
A Igreja de San Sebastiano estava programada para reabrir ao público no primeiro dia de outubro, o que significava que Gabriel não tinha escolha a não ser trabalhar
de manhã à noite sem parar. Na maioria dos dias, Francesco Tiepolo passava ao meio-dia com um saco de cornetti e uma garrafa térmica com café fresco. Se Gabriel
estivesse se sentindo caridoso, permitia que Tiepolo desse uns leves retoques, mas na maioria dos dias o italiano só podia olhar por cima do ombro de Gabriel e pedir
que trabalhasse mais rápido. E, invariavelmente, ele interrogava Gabriel, gentilmente, sobre seus planos futuros.
— Estamos prestes a receber um pedido muito bom — disse ele numa tarde enquanto uma tempestade castigava a cidade. — Algo importante.
— Muito importante? — perguntou Gabriel.
— Não tenho a liberdade de dizer.
— Igreja ou scuola?
— Igreja — falou Tiepolo. — E o retábulo tem o seu nome.
Gabriel sorriu e pintou em silêncio.
— Não fica nem tentado?
— Está na hora de ir para casa, Francesco.
— Essa é a sua casa — respondeu Tiepolo. — Você deveria criar seus filhos aqui em Veneza. E quando morrer, vamos enterrá-lo debaixo de um cipreste em San Michele.
— Não sou tão velho, Francesco.
— Também não é tão jovem.
— Não tem nada melhor para fazer? — perguntou Gabriel, enquanto passava o pincel da mão direita para a esquerda.
— Não — respondeu Tiepolo, sorrindo. — O que poderia ser melhor do que ficar olhando você pintar?
Os dias ainda estavam quentes e pesados com umidade, mas à noite uma brisa vinda da lagoa deixava a cidade mais tolerável. Gabriel pegava Chiara em seu escritório
e a levava para jantar. No meio de setembro, ela estava de seis meses, tendo passado o ponto onde era possível manter sua gravidez em segredo do resto da pequena,
mas fofoqueira, comunidade judaica de Veneza. Gabriel achava que estava mais bonita do que nunca. Sua pele estava luminosa, seus olhos brilhavam como ouro e até
quando se sentia desconfortável, ela parecia incapaz de qualquer expressão que não fosse um amplo sorriso. Era uma planejadora por natureza, criadora de listas,
e no jantar a cada noite falava incessantemente de todas as coisas que precisavam fazer. Tinham decidido ficar em Veneza até a última semana de outubro, até a primeira
de novembro, no máximo. Então voltariam a Jerusalém para preparar o apartamento na rua Narkiss para o nascimento das crianças.
— Vão precisar de nomes, você sabe — disse Gabriel uma noite quando estavam caminhando pela fonte de Zattere.
— Sua mãe tinha um lindo nome.
— Tinha sim — respondeu Gabriel. — Mas Irene não é um nome apropriado para um menino.
— Então talvez devêssemos chamar a garota de Irene.
— Boa ideia.
— E o menino?
Gabriel ficou em silêncio. Era muito cedo para começar a escolher um nome para o menino.
— Falei com Ari essa manhã — disse Chiara depois de um momento. — Como você deve imaginar, ele está ansioso para que a gente volte para casa.
— Falou para ele que preciso terminar o Veronese primeiro?
— Falei.
— E?
— Ele não entende por que um retábulo pode manter vocês dois distantes em um momento como esse.
— Porque esse retábulo pode ser o último que tenho a chance de restaurar.
— Talvez — disse Chiara.
Eles caminharam em silêncio por um tempo. Então Gabriel perguntou:
— Como ele estava?
— Ari?
Ele assentiu.
— Nada bem, na verdade. — Ela olhou para ele séria e perguntou: — Sabe de algo que eu não sei?
— A signadora me disse que ele não tem muito tempo.
— Ela disse algo mais que eu deveria saber?
— Disse — respondeu ele. — Disse que estava perto.
Nesse momento, era final de setembro, Gabriel estava terrivelmente atrasado. Tiepolo ofereceu alguns dias a mais, mas Gabriel era cabeça-dura e recusou; não queria
que a última restauração em sua adorada cidade das águas e quadros fosse lembrada somente pelo fato de que ele não tinha conseguido terminar no prazo combinado.
Por isso se isolou na igreja sem distrações e trabalhou com uma energia e velocidade que nunca teria imaginado que fosse possível. Ele retocou a Virgem e o Menino
Jesus em um único dia, e no final da tarde reparou o rosto do anjo de cabelo encaracolado que, de uma nuvem celestial, estava olhando para o sofrimento terreno abaixo.
O anjo se parecia muito com Dani, e Gabriel chorou baixinho enquanto trabalhava. Quando terminou, enxugou seus pincéis e seu rosto, e ficou parado na frente da enorme
tela, uma mão no queixo, a cabeça levemente inclinada para um lado.
— Terminou? — perguntou Francesco Tiepolo, que estava olhando para ele da base do andaime.
— Terminei — falou Gabriel. — Acho que terminei.
59
VENEZA
NO CANTO NOROESTE DO Campo di Ghetto Nuovo existe um pequeno e inóspito memorial para os judeus de Veneza que, em dezembro de 1943, foram capturados, confinados
em campos de concentração e assassinados em Auschwitz. O general Cesare Ferrari estava parado na frente do memorial quando Gabriel chegou à praça, às seis e meia
daquela tarde. Sua mão direita defeituosa estava enfiada no bolso de sua calça. Seu olhar duro parecia mais crítico do que o normal.
— Nunca soube o que tinha acontecido aqui em Veneza — falou ele depois que Gabriel se aproximou. — A captura em Roma foi diferente. A de Roma foi grande demais para
ser esquecida. Mas aqui... — Ele olhou ao redor da tranquila praça. — Não parece possível.
Gabriel ficou em silêncio. O general deu um passo para frente e passou sua mão defeituosa sobre uma das sete placas em baixo relevo.
— De onde eles foram levados? — perguntou ele.
— De lá — falou Gabriel.
Ele apontou para o prédio de três andares à sua direita. A placa acima da porta dizia CASA ISRAELITICA DI RIPOSO. Era uma casa de repouso para membros idosos da
comunidade.
— Quando o cerco finalmente aconteceu — disse Gabriel depois de um momento —, a maioria dos judeus que ainda viviam em Veneza já tinha se escondido. Os únicos que
tinham ficado na cidade eram os velhos e doentes. Foram arrastados de suas camas pelos alemães e seus ajudantes italianos.
— Quantos vivem ali agora? — perguntou o general.
— Uns dez.
— Não são muitos.
— Não sobraram muitos.
O general olhou de novo para o memorial.
— Não sei por que você vive em um lugar assim.
— Não vivo — falou Gabriel. Então perguntou ao general por que tinha voltado a Veneza.
— Precisei fazer uma limpeza no escritório do Esquadrão de Arte aqui. Também queria participar da reabertura da Igreja de San Sebastiano. — O general fez uma pausa,
depois acrescentou: — Ouvi dizer que o retábulo principal está maravilhoso. Você obviamente conseguiu terminá-lo.
— Com umas poucas horas para descansar.
— Mazel tov.
— Grazie.
— E agora? — perguntou o general. — Quais são seus planos?
— Vou passar o próximo mês tentando ser o melhor marido possível. E depois vou voltar para casa de novo.
— As crianças vão chegar logo, não é?
— Logo — falou Gabriel.
— Como pai de cinco, posso garantir que sua vida nunca mais será a mesma.
No outro canto da praça, a porta do escritório da comunidade se abriu e Chiara emergiu das sombras. Ela olhou para Gabriel e depois desapareceu novamente pela entrada
do museu do gueto. O general parecia não ter notado; estava olhando para a estrutura de metal verde próxima ao memorial onde um carabinieri uniformizado estava sentado
atrás de um vidro à prova de balas.
— É uma pena que tenhamos que colocar um posto de segurança no meio desse lindo lugar.
— Infelizmente faz parte do jogo.
— Por que esse ódio eterno? — perguntou o general, balançando a cabeça lentamente. — Por que nunca termina?
— Me diga você.
Acolhendo o silêncio, Gabriel perguntou novamente ao general por que ele tinha voltado a Veneza.
— Faz tempo que procuro uma coisa — disse o italiano — e esperava que você pudesse me ajudar a encontrar.
— Eu tentei — disse Gabriel. — Mas parece que escapou por entre meus dedos.
— Ouvi falar que você realmente chegou perto. — O general baixou a voz e acrescentou: — Mais perto do que você imagina.
— Como sabe disso?
— Como sempre. — O general olhou sério para Gabriel e perguntou: — Existe alguma chance de você concordar com um interrogatório antes de sair do país?
— O que quer saber?
— Tudo que aconteceu depois que você roubou o Doze Girassóis numa Jarra.
— Eu não roubei. Peguei emprestado por sugestão do comandante do Esquadrão de Arte. E a resposta é não — acrescentou Gabriel, balançando a cabeça. — Não vou sentar
para responder a nenhum interrogatório, nem agora nem no futuro.
— Então talvez possamos comparar tranquilamente nossas anotações.
— Infelizmente, minhas anotações são secretas.
— Isso é bom — falou o general, sorrindo. — Porque as minhas também são.
Eles cruzaram a praça até o café kosher perto do centro da comunidade e pediram uma garrafa de pinot grigio enquanto, ao redor deles, a escuridão começava a aumentar.
Gabriel principiou fazendo o general jurar segredo e o ameaçando com retaliações se o juramento de silêncio fosse algum dia quebrado. Então contou tudo que tinha
acontecido desde a última reunião deles, iniciando com a morte de Samir Basara em Stuttgart e terminando com a descoberta, e devolução, de oito bilhões de dólares
que pertenciam ao presidente da Síria.
— Suponho que isso tenha algo a ver com aqueles dois banqueiros sírios que desapareceram na Áustria — disse o general quando Gabriel terminou.
— Que banqueiros sírios?
— Vou entender isso como um sim. — O general tomou um gole do vinho. — Então Jack Bradshaw se recusou a entregar o Caravaggio porque os sírios mataram a única mulher
que ele já amou? É isso que está falando?
Gabriel assentiu lentamente e ficou olhando um par de estudantes yeshiva com casacos pretos cruzarem a praça.
— Agora eu entendo por que você me fez jurar não mencionar o nome de Bradshaw durante a coletiva com a imprensa — dizia o general. — Não queria que eu arrastasse
postumamente o nome dele para a lama. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Queria que ele descansasse em paz.
— Ele merece.
— Por quê?
— Porque foi torturado sem misericórdia e não falou o que fez com o quadro.
— Acredita em redenção, Allon?
— Sou um restaurador — falou Gabriel.
O general sorriu.
— E os quadros que descobriu no Freeport de Genebra? — perguntou ele. — Como conseguiu tirá-los da Suíça sem levantar suspeitas?
— Com a ajuda de um amigo.
— Um amigo suíço?
Gabriel assentiu.
— Não sabia que isso era possível.
Dessa vez foi Gabriel que sorriu. Os estudantes yeshiva entraram no sottoportego e desapareceram de vista. A praça agora estava vazia exceto por duas crianças, um
menino e uma menina, que estavam jogando uma bola um para o outro sob o olhar cuidadoso de seus pais.
— A pergunta é: o que Jack Bradshaw fez com o Caravaggio? — disse o general, olhando para sua taça de vinho.
— Suponho que colocou em algum lugar onde achou que ninguém iria encontrar.
— Talvez — concordou o general. — Mas não é o que se fala por aí.
— O que você ouviu?
— Que ele entregou para alguém guardar.
— Alguém do lado sujo do negócio?
— É difícil dizer. Mas como você poderia esperar — acrescentou rapidamente o general —, outras pessoas estão procurando. O que significa que é imperativo que encontremos
antes delas.
Gabriel ficou em silêncio.
— Não fica nem tentado, Allon?
— Meu envolvimento nesse assunto está oficialmente terminado.
— Parece que está falando sério dessa vez.
— Estou.
A família foi embora em silêncio, deixando o campo vazio. O pesado silêncio parecia perturbar o general. Ele olhou as luzes iluminando as janelas da Casa Israelitica
di Riposo e balançou a cabeça lentamente.
— Não entendo por que você escolheu morar no gueto — falou ele.
— É um bom bairro — respondeu Gabriel. — O melhor de Veneza, se me perguntar.
60
VENEZA
NOS DIAS SEGUINTES, Gabriel raramente saiu do lado de Chiara. Preparava o café da manhã todo dia. Passava as tardes com ela no escritório da comunidade judaica.
Sentava-se na pia da cozinha à noite e ficava olhando enquanto ela preparava a comida. No começo, ela gostava da atenção dele, mas aos poucos o peso de seu afeto
incessante começou a incomodá-la. Era, ela diria mais tarde, um pouco demais de uma coisa boa. Ela pensou em pedir a Francesco Tiepolo um quadro para restaurar —
algo pequeno e não muito danificado —, mas preferiu organizar uma viagem. Nada muito extravagante, ela disse, e nenhum lugar que exigisse tomar um avião. Dois dias,
três no máximo. Gabriel teve uma ideia. Naquela noite, ele ligou para Christoph Bittel e pediu permissão para entrar na Suíça; e Bittel, que sabia bem o motivo pelo
qual seu recente amigo e cúmplice queria voltar à Confederação, concordou prontamente.
— Talvez seja melhor que eu me encontre com você — falou ele.
— Estava esperando que dissesse isso.
— Conhece a região?
— Nada — mentiu Gabriel.
— Tem um hotel nos arredores da cidade chamado Alpenblick. Vou esperá-los lá.
E assim foi. No começo da manhã seguinte, Gabriel e Chiara deixaram sua adorada cidade das águas e dos quadros, e partiram para o pequeno país sem saída para o mar,
cheio de riquezas e segredos, que tinha um papel importante nas suas vidas. Já era o meio da manhã quando eles cruzaram a fronteira em Lugano e continuaram para
o norte pelos Alpes. A neve caía nas passagens altas, mas quando chegaram às margens do Interlaken, o sol estava brilhando forte em um céu sem nuvens. Gabriel encheu
o tanque com gasolina e depois cruzou o vale até Grindewald. O hotel Alpenblick era uma construção rústica e solitária na fronteira da cidade. Gabriel deixou o carro
no pequeno estacionamento do hotel e, com Chiara ao seu lado, subiu os degraus até o terraço. Bittel estava tomando café e olhando para os impressionantes picos
do Monch e do Eiger. Levantando-se, ele apertou a mão de Gabriel. Depois olhou para Chiara e sorriu.
— Você certamente tem um nome realmente muito bonito, mas não vou cometer o erro de perguntá-lo. — Ele olhou para Gabriel e disse: — Você nunca me falou que seria
pai de novo, Allon.
— Na verdade — falou Gabriel —, ela é apenas minha degustadora.
— Que pena.
Bittel se sentou e acenou para um garçom. Então apontou para um prado verde, na direção da base das montanhas.
— O chalé fica bem ali — falou para Gabriel. — É um bom lugar, boa vista, muito limpo e confortável.
— Você tem futuro como corretor imobiliário, Bittel.
— Prefiro proteger meu país.
— Suponho que você tenha um posto de observação permanente em algum lugar.
— Estamos no chalé ao lado — falou Bittel. — Vamos manter dois agentes aqui em tempo integral e outros vão se revezar de acordo com as necessidades. Ela nunca vai
a nenhum lugar sem acompanhantes.
— Algum visitante suspeito?
— Sírio?
Gabriel assentiu.
— Há todos os tipos de pessoas em Grindewald — respondeu Bittel —, então é difícil dizer. Mas até agora, ninguém chegou perto dela.
— Como está o humor dela?
— Ela parece solitária — disse Bittel, sério. — Os guardas passam o máximo de tempo possível com ela, mas...
— Mas o quê, Bittel?
O policial suíço sorriu tristemente.
— Posso estar errado — falou ele —, mas acho que ela precisava de um amigo.
Gabriel se levantou.
— Não tenho como lhe agradecer o suficiente por cuidar dela, Bittel.
— É o mínimo que podemos fazer para agradecer pela limpeza da bagunça no Freeport de Genebra. Mas você deveria ter pedido nossa permissão antes de realizar aquela
operação no hotel Métropole.
— Teria dado?
— Claro que não — respondeu Bittel. — O que significa que ainda teria oito bilhões de dólares de dinheiro sírio na sua conta bancária.
“São 8,2”, pensou Gabriel quando caminhava para seu carro. Mas quem estava contando?
Gabriel deixou Chiara e Bittel no hotel e foi sozinho até aquele campo. A casa estava no final de uma rua, uma pequena estrutura de madeira escura com um teto bem
inclinado e vasos de flores no balcão da janela. Jihan Nawaz apareceu assim que Gabriel parou na grama e desligou o motor. Estava usando jeans azul e um suéter de
lã grosso. Seu cabelo estava mais comprido e escuro; um cirurgião plástico tinha alterado o formato de seu nariz, das bochechas e do queixo. Ela não estava bonita,
mas não tinha mais uma aparência comum. Pouco depois, quando saiu pela porta da frente, trouxe com ela o doce perfume das rosas. Passou os braços ao redor do pescoço
dele, abraçou-o com força e deu dois beijos em seu rosto.
— Posso chamá-lo pelo seu nome verdadeiro? — sussurrou em seu ouvido.
— Não — respondeu ele. — Aqui não.
— Quanto tempo você pode ficar?
— O tempo que você quiser.
— Venha — falou ela, pegando-o pela mão. — Fiz algo para comermos.
O interior do chalé era quente e confortável, mas não continha nenhum traço de que a pessoa que vivia ali tinha família ou algum passado. Gabriel sentiu uma pontada
de arrependimento. Deveria tê-la deixado em paz. Waleed al-Siddiqi ainda estaria gerenciando o dinheiro do pior homem do mundo, e Jihan estaria vivendo tranquila
em Linz. Ainda assim, ela sabia o nome do cliente especial de al-Siddiqi, ele pensou. E tinha ficado no banco por algum motivo.
— Já vi esse olhar no seu rosto antes — falou ela, olhando atentamente para ele. — Foi em Annecy, quando eu estava saindo do carro. Vi que estava sentado no café
do outro lado da praça. Você parecia... — Ela deixou o pensamento no ar.
— O quê? — perguntou ele.
— Se sentir culpado — falou ela sem hesitar.
— Eu era culpado.
— Por quê?
— Nunca deveria ter deixado você entrar naquele hotel.
— Minha mão já está bem — falou ela, levantando-a como se quisesse provar sua afirmação. — E meus machucados também estão curados. Além disso, não foi nada em comparação
com o que a maioria dos sírios sofreu desde que começou a guerra. Foi uma pena que não consegui fazer mais.
— Sua guerra terminou, Jihan.
— Foi você que me incentivou a me unir à rebelião síria.
— E nossa rebelião fracassou.
— Você pagou muito dinheiro por mim.
— Não estava querendo uma negociação prolongada — falou Gabriel. — Foi uma oferta rápida.
— Só gostaria de ter visto a cara do sr. al-Siddiqi quando ele descobriu que você tinha roubado o dinheiro.
— Devo admitir que desfrutei do sofrimento dele um pouco demais — falou Gabriel —, mas o seu era o único rosto que queria ver naquele momento.
Com isso, ela se virou e o levou até o jardim. Havia uma pequena mesa com café e chocolates suíços. Jihan se sentou de frente para o chalé; Gabriel, para a gigantesca
montanha cinza. Quando se sentaram, ele perguntou sobre sua estadia em Israel.
— Passei as primeiras duas semanas trancada num apartamento em Tel Aviv — contou ela. — Foi horrível.
— Fazemos o máximo para que nossos visitantes se sintam bem-vindos.
Jihan sorriu.
— Ingrid foi me ver algumas vezes — disse ela —, mas você não. Se recusavam a me dizer onde você estava.
— Infelizmente, eu tinha outro negócio para resolver.
— Outra operação?
— Pode-se dizer que sim.
Ela encheu as xícaras de café.
— No final — ela voltou a contar —, permitiram que Ingrid e eu fizéssemos uma viagem juntas. Ficamos em um hotel nas colinas de Golã. À noite, dava para ouvir os
bombardeios e ataques aéreos do outro lado da fronteira. Eu só conseguia pensar em quantas pessoas estavam morrendo cada vez que o céu se iluminava.
Gabriel não tinha uma resposta para isso.
— Li nos jornais essa manhã que os norte-americanos estão estudando ataques militares contra o regime.
— Também li.
— Acha que vão fazer isso dessa vez?
— Atacar o regime?
Ela balançou a cabeça. Gabriel não teve coragem de dizer a verdade, então contou uma última mentira.
— Acho — respondeu ele. — Acho que sim.
— E o regime vai cair se os norte-americanos atacarem?
— Pode ser.
— Se caísse — falou ela depois de um momento —, eu voltaria à Síria e ajudaria a reconstruir o país.
— Este é seu lar agora.
— Não — falou ela. — Esse é o lugar em que me escondo dos açougueiros. Mas Hama sempre será meu lar.
Uma brisa repentina soprou uma mecha de seu cabelo, recentemente clareado, sobre o rosto. Ela o afastou e olhou para a montanha. Sua base estava mergulhada nas sombras,
mas os picos cobertos de neve estavam rosados com o sol do final da tarde.
— Adoro minha montanha — falou ela de repente. — Faz com que me sinta segura. Como se nada pudesse acontecer comigo.
— Está feliz aqui?
— Tenho um novo nome, um novo rosto, um novo país. É o quarto. Isso é o que significa ser síria.
— E judeu — falou Gabriel.
— Mas os judeus têm um lar agora. — Ela levantou a mão e apontou para o campo próximo. — E eu tenho isso.
— Vai conseguir ser feliz aqui?
— Sim — respondeu ela depois de pensar muito. — Acho que sim. Mas gostei do tempo que passamos juntos no Attersee, especialmente os passeios de barco.
— Eu também.
Ela sorriu, depois perguntou:
— E você? Está feliz?
— Gostaria que não tivessem machucado você.
— Mas nós vencemos, não foi? Pelo menos por um tempo.
— É, Jihan, nós vencemos.
A última luz caía sobre os picos das montanhas e a noite desceu como uma cortina sobre o vale.
— Tem uma coisa que você nunca me contou.
— O quê?
— Como me encontrou?
— Não iria acreditar.
— É uma boa história?
— Sim — respondeu ele. — Acho que sim.
— Como termina?
Ele deu um beijo no rosto dela e deixou-a sozinha com seu passado.
61
LAGO COMO, ITÁLIA
GABRIEL E CHIARA PASSARAM as duas noites seguintes em um pequeno hotel nas margens do Interlaken e depois partiram da Suíça pela mesma rota pela qual tinham entrado.
Nas passagens das montanhas, Gabriel recebeu uma mensagem segura do Boulevard Rei Saul com instruções para ligar o rádio; e quando cruzaram a fronteira italiana
em Lugano, descobriu que Kemel al-Farouk, vice-ministro de Relações Exteriores, ex-agente da Mukhabarat, amigo e conselheiro do presidente sírio, morrera em uma
misteriosa explosão em Damasco. Tinha sido uma operação de Uzi Navot, mas em muitos aspectos foi o primeiro assassinato da era de Allon. De alguma forma, ele suspeitava
que não seria o último.
Estava chovendo quando chegaram ao Como. Gabriel deveria pegar a autoestrada até Milão, mas em vez disso seguiu a estrada sinuosa até chegar mais uma vez ao portão
de ferro da villa de Jack Bradshaw. O portão estava bem fechado; ao lado havia uma placa que dizia que a propriedade estava à venda. Gabriel ficou ali por um momento,
as mãos em cima do volante, tentando decidir o que fazer. Então ligou para o general Ferrari em Roma, pediu o código de segurança e digitou no teclado. Alguns segundos
depois, o portão se abriu. Gabriel colocou o carro em movimento e avançou pelo caminho.
A porta estava trancada também. Gabriel rapidamente a abriu com uma ferramenta fina de metal que carregava habitualmente em sua maleta e guiou Chiara ao hall de
entrada. Havia um forte cheiro de lugar fechado no ar, mas tinham limpado o sangue do chão de mármore. Chiara tentou acender a luz; o candelabro no qual Jack Bradshaw
tinha sido enforcado ganhou vida. Gabriel fechou a porta e foi até a grande sala.
As paredes estavam vazias de quadros e tinham sido pintadas recentemente; uma parte dos móveis tinha sido removida para criar a ilusão de ter mais espaço. Mas não
a pequena mesa de trabalho de Bradshaw. Estava no mesmo lugar que antes, mas as duas fotografias dele tinham desaparecido. O telefone continuava ali, coberto por
uma fina camada de poeira. Gabriel colocou o fone no ouvido. Não havia sinal. Colocou-o de novo no lugar e olhou para Chiara.
— Por que estamos aqui? — perguntou ela.
— Porque estava aqui.
— Talvez — disse ela.
— Talvez — concordou ele.
Dias depois da descoberta inicial de Gabriel, o Esquadrão de Arte do general Ferrari tinha revirado a villa de Jack Bradshaw procurando outros quadros roubados.
Era improvável que uma tela medindo 2,13 x 2,44 m não tivesse sido notada. Mesmo assim, Gabriel queria dar uma olhada final só para ter certeza. Tinha passado vários
meses de sua vida perseguindo a mais famosa obra de arte perdida do mundo. E no final, tudo que tinha conseguido foram alguns quadros roubados e um açougueiro sírio
morto.
Então, com o sol se pondo naquela tarde de outono, ele fez uma busca na casa de um homem que nunca conheceu, com sua esposa grávida ao seu lado — quarto por quarto,
armário por armário, gaveta por gaveta, no chão, nos canos de ar, no porão, no sótão. Procurou partes que podiam ter sido renovadas nas paredes. Procurou nos tacos
do chão se havia pregos novos. Procurou nos jardins por terra mexida recentemente. Até que finalmente, cansado, frustrado e sujo de terra, voltou a se sentar à escrivaninha
de Bradshaw. Levantou o telefone, mas continuava sem linha. Então tirou seu BlackBerry do bolso do casaco e ligou para um número que tinha guardado em sua memória.
Alguns segundos depois, uma voz masculina atendeu em italiano.
— É o padre Marco — falou. — Como posso ajudá-lo?
62
BRIENNO, ITÁLIA
A IGREJA DE SAN GIOVANNI EVANGELISTA era pequena e branca contrastando com a rua. À direita havia uma cerca de ferro, e atrás dela o pequeno jardim da paróquia.
O padre Marco estava esperando no portão quando Gabriel e Chiara chegaram. Era jovem, tinha 35 anos no máximo, com o cabelo escuro bem penteado e um rosto que parecia
ter vontade de perdoar todos os pecados.
— Bem-vindos — falou ele, apertando as mãos dos dois. — Por favor, sigam-me.
Levou-os por um caminho no jardim até a cozinha. Era um espaço apertado com paredes pintadas de branco, uma mesa de madeira e latas de comida organizadas em prateleiras.
O único luxo era uma máquina de espresso automática, que o padre Marco usou para preparar três xícaras de café.
— Lembro-me do dia em que você telefonou — disse ele, quando colocou a xícara na frente de Gabriel. — Foi dois dias depois do assassinato do signor Bradshaw, não
foi?
— Exato — falou Gabriel. — E por alguma razão, você desligou duas vezes antes de atender.
— Já recebeu uma ligação telefônica de um homem que acabou de ser brutalmente assassinado, signor Allon? — O padre estava sentado na frente de Gabriel e colocava
açúcar em seu café. — Foi uma experiência perturbadora, para dizer o mínimo.
— Parecia que estava bastante em contato com ele na época de sua morte.
— Estava.
— Antes e depois.
— Julgando pelo que li nos jornais — disse o padre. — Eu provavelmente liguei para a villa quando ele estava pendurado morto do candelabro. É uma imagem terrível.
— Ele era paroquiano aqui?
— Jack Bradshaw não era católico — disse o padre. — Foi criado na Igreja Anglicana, mas não tenho certeza se era realmente cristão.
— Eram amigos?
— Acho que sim. Mas eu era principalmente seu confessor. Não no sentido verdadeiro da palavra — acrescentou o padre rapidamente. — Não poderia conceder absolvição
de seus pecados.
— Ele estava perturbado na época de sua morte?
— Profundamente.
— Falou o motivo?
— Disse que tinha algo a ver com seus negócios. Era algum tipo de consultor. — O padre deu um sorriso de desculpas. — Desculpe, signor Allon, mas não sou muito sofisticado
quando se trata de negócios e finanças.
— Somos dois então.
O padre voltou a sorrir e mexeu em seu café.
— Ele costumava se sentar onde você está agora. Trazia uma cesta de comida e vinho, e ficávamos conversando.
— Sobre o quê?
— O passado dele.
— Quanto ele contou ao senhor?
— O suficiente para saber que estava envolvido com trabalho secreto de algum tipo para o governo dele. Algo aconteceu há muitos anos quando estava no Oriente Médio.
Uma mulher foi morta. Acho que era francesa.
— O nome era Nicole Devereaux.
O padre ergueu o olhar severamente.
— O signor Bradshaw contou isso para você?
Gabriel ficou tentado a responder de forma afirmativa, mas não tinha vontade de mentir para um homem de batina.
— Não — falou. — Nunca o conheci.
— Acho que teria gostado dele. Era muito inteligente, vivido, engraçado. Mas também carregava muita culpa pelo que tinha acontecido com Nicole Devereaux.
— Ele contou sobre o caso?
O padre hesitou, depois assentiu.
— Aparentemente, ele a amava muito, e nunca se perdoou pela morte dela. Nunca se casou, nunca teve filhos. De certa forma, vivia como um padre. — O padre Marco olhou
ao redor e acrescentou: — Mas de uma forma muito mais luxuosa, claro.
— Já foi à villa?
— Muitas vezes. Era muito bonita. Mas não diz muito como era o signor Bradshaw de verdade.
— E como ele era de verdade?
— Generoso ao máximo. Manteve essa igreja funcionando quase sozinho. Também doou voluntariamente para nossas escolas, hospitais e programas para alimentar e agasalhar
os pobres. — O padre sorriu triste. — Além do nosso retábulo.
Gabriel olhou para Chiara, que estava mexendo distraída na superfície da mesa como se não estivesse ouvindo. Então olhou de novo para o jovem padre e perguntou:
— Que retábulo?
— Foi roubado há um ano. O signor Bradshaw gastou muito tempo tentando recuperá-lo. Mais tempo que a polícia — acrescentou o padre. — Infelizmente, nosso retábulo
tinha pouco valor artístico ou monetário.
— Ele conseguiu encontrá-lo?
— Não — disse o padre. — Então substituiu por um de sua coleção pessoal.
— Quando isso aconteceu? — perguntou Gabriel.
— Infelizmente, poucos dias antes de sua morte.
— Onde está o retábulo agora?
— Ali — disse o padre, inclinando sua cabeça para a direita. — Na igreja.
Eles entraram pela porta lateral e cruzaram a nave até o altar. Uma estante com velas votivas jogava uma luz vermelha tremeluzente sobre o nicho contendo a estátua
de São João, mas o retábulo estava invisível no escuro. Mesmo assim, Gabriel conseguiu ver que as dimensões eram mais ou menos corretas. Então ouviu o barulho de
um interruptor de luz e, com a súbita iluminação, viu uma crucificação ao estilo de Guido Reni, competentemente executada, mas pouco inspirada, que mal valia o lucro
do vendedor. Sentiu o coração apertar. Então, calmamente, olhou para o padre e perguntou:
— Você tem uma escada?
Em uma empresa de produtos químicos no bairro industrial de Como, Gabriel comprou acetona, álcool, água destilada, um béquer de vidro, óculos e máscara de proteção.
Em seguida, parou em uma loja de artesanato no centro da cidade onde comprou cavilhas de madeira e um pacote de algodão. Quando voltou à igreja, o padre Marco tinha
conseguido uma escada de seis metros que estava colocada na frente do quadro. Gabriel rapidamente misturou uma solução básica de solvente e, envolvendo um pouco
de algodão numa cavilha de madeira, subiu na escada. Com Chiara e o padre olhando de baixo, abriu uma janela no centro do quadro e viu a mão de um anjo, bastante
danificada, agarrando uma tira de seda branca. Em seguida abriu uma segunda janela, uns trinta centímetros mais abaixo na tela e alguns centímetros para a direita,
e viu o rosto de uma mulher exausta por ter dado à luz. A terceira janela revelou outro rosto — o de uma criança recém-nascida, um menino, iluminado por uma luz
celestial. Gabriel colocou os dedos gentilmente na tela e, para sua própria surpresa, começou a chorar incontrolavelmente. Então fechou bem os olhos e deu um grito
de alegria que ecoou pela igreja vazia.
A mão de um anjo, uma mãe, uma criança...
Era o Caravaggio.
NOTA DO AUTOR
O caso Caravaggio é uma obra de ficção e deve ser lida apenas como tal. Os nomes, personagens, lugares e incidentes retratados na história são produto da imaginação
do autor ou foram usados de maneira ficcional. Qualquer semelhança com pessoas reais, mortas ou vivas, empresas, eventos ou locais é total coincidência.
Existe realmente uma Igreja de San Sebastiano na sestiere de Dorsoduro — foi consagrada em 1562 e é considerada uma das cinco grandes igrejas da peste em Veneza
— e o principal retábulo de Veronese, Virgem e o Menino em Glória com Santos, está descrito com precisão. Visitantes da cidade procurarão em vão a empresa de restauração
de Francesco Tiepolo e o rabino Zolli no antigo gueto judeu. Há várias casas pequenas de calcário na rua Narkiss em Jerusalém, mas até onde sei ninguém com o nome
de Gabriel Allon vive em nenhuma delas. A sede do serviço secreto israelense não está mais localizada no Boulevard Rei Saul em Tel Aviv. Escolhi manter a sede do
meu fictício serviço ali, em parte porque sempre gostei do nome da rua.
Há muitas lojas excelentes de antiguidades e galerias de arte na rue de Miromesnil em Paris, mas a Antiquités Scientifiques não é uma delas. Maurice Durand já apareceu
em três livros de Gabriel Allon e, mesmo assim, ele ainda não existe. Nem Pascal Rameau, seu cúmplice no submundo criminoso de Marselha. A Divisão de Defesa do Patrimônio
Cultural dos Carabinieri, mais conhecida como Esquadrão de Arte, está localizada realmente em um lindo palazzo na Piazza di Sant’Ignazio de Roma. Seu chefe é o competente
Mariano Mossa, não Cesare Ferrari de um olho só. Minhas profundas desculpas ao Rijksmuseum Vincent van Gogh em Amsterdã por pegar emprestado o Doze Girassóis numa
Jarra de sua magnífica coleção, mas às vezes a melhor forma de encontrar uma obra roubada é roubando outra.
Não existe nenhuma Igreja de San Giovanni Evangelista em Brienno, Itália. Portanto, o glorioso Natividade de Caravaggio, roubado do Oratorio di San Lorenzo em Palermo
em outubro de 1969, não poderia ter sido encontrado pendurado sobre seu altar, disfarçado como uma crucificação ao estilo de Guido Reni. A história da turbulenta
vida de Caravaggio contida em O caso Caravaggio é totalmente verdadeira, apesar de que alguns poderão discordar das escolhas que fiz em relação a datas e detalhes
de certos eventos, já que ocorreram há quatro séculos e, por isso, estão abertas à interpretação. Até hoje, as exatas circunstâncias da morte de Caravaggio estão
envoltas em mistério. Assim como, também, a localização da Natividade. A cada ano que passa, as chances de encontrar a grande tela intacta vão ficando cada vez mais
remotas. O impacto de sua perda não pode ser minimizado. Caravaggio viveu apenas 39 anos e deixou pouco mais de cem trabalhos que podem sem dúvida ser atribuídos
a ele. O desaparecimento de um único quadro deixaria um buraco no cânone ocidental que nunca poderia ser preenchido.
Não existe nenhuma empresa registrada em Luxemburgo com o nome de LXR Investments, nem existe um banco privado em Linz, Áustria, conhecido como Bank Weber AG. Os
bancos da Áustria já estiveram entre os mais sigilosos do mundo — mais sigilosos, até, que os bancos da Suíça. Mas em maio de 2013, sob pressão da União Europeia
e dos Estados Unidos, os bancos austríacos concordaram em começar a compartilhar informações sobre seus clientes com autoridades fiscais de outros países. Para o
bem ou para o mal, instituições como o Bank Weber — bancos estilo butique, controlados por famílias, que atendem os muitos ricos — estão rapidamente entrando em
extinção. Quando escrevi este livro, o número de bancos privados na Suíça tinha diminuído para apenas 148 instituições, e espera-se, com as consolidações e fusões,
que o número caia ainda mais no futuro. Claramente, os dias dos gnomos parecem contados, com os governos norte-americano e europeu dispostos a tomar medidas anda
mais agressivas para combater a evasão fiscal.
Houve realmente um massacre na cidade síria de Hama em 1982 e, usando numerosas fontes, tentei descrever o horror de forma precisa. O homem que ordenou a destruição
da cidade, e o assassinato de mais de vinte mil de seus residentes, não foi o ditador sem nome mostrado em O caso Caravaggio. Foi Hafez al-Assad, dirigente da Síria
de 1970 até sua morte, em 2000, quando seu filho do meio, Bashar, que estudou em Londres, assumiu o controle. Alguns especialistas em Oriente Médio confundiram Bashar
com um reformista. Mas em março de 2011, quando a chamada Primavera Árabe finalmente chegou à Síria, ele respondeu com uma selvageria que incluiu o uso de gás venenoso
contra mulheres e crianças. Mais de cento e cinquenta mil pessoas foram mortas na guerra civil síria, e outros dois milhões ficaram sem casa ou tiveram que fugir
para os países vizinhos, principalmente Líbano, Jordânia e Turquia. O número de sírios vivendo como refugiados vai logo superar os quatro milhões, o que faria dela
a maior população refugiada do mundo. Este é o legado de quatro décadas e meia de domínio da família Assad. Se a matança e o êxodo continuarem nesse ritmo, os Assads
poderiam se tornar, um dia, os dirigentes de uma terra sem povo.
Mas por que os Assads continuam a lutar quando a maioria de seu povo claramente quer se livrar deles? E por que essa perversa despreocupação com as normas civilizadas?
Claramente, deve ter algo a ver com dinheiro. “É um típico negócio familiar”, disse à CNBC Jules Kroll, o investigador corporativo internacional e especialista em
recuperação de bens, em setembro de 2013. “Só que este negócio familiar é um país. Estimativas publicadas da riqueza dos Assads variam muito. Bashar supostamente
possui mais de um bilhão de dólares, embora especialistas estimem que a fortuna total da família ronde os 25 bilhões de dólares. O caso do Egito é ilustrativo. O
ex-presidente Hosni Mubarak, que recebeu benesses dos contribuintes norte-americanos por mais de trinta anos, possui uma fortuna estimada em cerca de setenta bilhões
— isso em um país onde o cidadão médio subsiste com apenas oito dólares por dia.
Uma pequena fração dos bens do regime sírio foi congelada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, mas bilhões de dólares continuam cuidadosamente escondidos.
Enquanto escrevia este livro, caçadores de bens profissionais estavam ocupados procurando o dinheiro. Assim como Steven Perles, advogado de Washington, DC, que representa
vítimas do terrorismo patrocinado pela Síria. Especialistas concordam que caçadores de bens provavelmente vão precisar da ajuda de alguém dentro da Assad S.A. para
ter sucesso em seus esforços. Talvez essa pessoa tenha comprado a participação em um pequeno banco particular na Áustria. E talvez exista uma jovem corajosa, filha
de Hama, observando todos os movimentos dele.
Daniel Silva
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