Uma emocionante história de intriga que nos inundará totalmente na Londres da época vitoriana.
O juiz Stafford foi envenenado com ópio e o inspetor Pitt é o encarregado de investigar este crime, assunto que cada vez se vai fazendo mais e mais complexo, pois tropeçará com uma série de tramas sentimentais entre seus amigos e conhecidos, com as contradições da justiça, com o anti-semitismo latente na sociedade vitoriana e com as peculiaridades do mundo teatral. E à medida que continua investigando, o inspetor Pitt irá recompondo uma triste historia familiar. É esta uma emocionante historia de intriga que nos inundará totalmente na Londres da época vitoriana e o engenhoso método detetivesco de nosso protagonista.
—Não é incrível? - sussurrou Caroline Ellison a sua filha Charlotte – Transmite tantas emoções com a mais simples das palavras ou com um gesto!
Estavam sentadas juntas no camarote de felpa vermelha do teatro em penumbra. O outono chegava a seu fim e, como não havia calefação, o ar era frio. Ao fim do primeiro ato a multidão já tinha esquentado a sala de poltronas, mas ali em cima, nos camarotes do primeiro piso, era outra coisa. Então os aplausos e o esperneio tinham servido de ajuda, mas agora a ação voltava a ser tensa, e o entusiasmo produzia calafrios.
O cenário era magnífico; os atores, vivazes figuras ante o romântico cenário de cartão pedra. Uma em especial chamou a atenção do Caroline: um homem de estatura um pouco superior à média, esbelto, com um rosto sensível e aquilino que delatava humor e imaginação, embora com grandes dotes para a tragédia. Era Joshua Fielding, ator principal da companhia, e agora Charlotte tinha a certeza de que ele era a razão de que sua mãe tivesse escolhido essa peça em particular.
Aparentemente, Caroline esperava uma resposta. Seu rosto era vivo e inteligente, embora tocado de uma estranha espécie de vulnerabilidade, como se lhe importasse a resposta de Charlotte. Tinha enviuvado fazia já algum tempo. Depois do pesar inicial lhe tinha sobrevindo uma espécie de euforia, uma sensação de liberdade ao dar-se conta de tudo que poderia fazer sem restrições, pois agora era sua própria proprietária. Lia tudo aquilo que lhe agradava, fosse político, polêmico, inclusive escandaloso. Ingressou em associações nas que discutia assuntos de toda índole antes proibidos, e assistia a conferências de reformadores, viajantes e cientistas, muitas delas acompanhadas de fotografias ou diapositivos.
Entretanto, possivelmente parte do prazer que todo isso lhe proporcionava começava a desvanecer-se, e de quando em quando uma sombra de solidão obscurecia seus pensamentos.
—Sim, mamãe - concordou Charlotte com sinceridade - Poderia passar horas escutando sua voz.
Caroline sorriu e voltou a concentrar a atenção no cenário, no momento satisfeita.
Charlotte olhou seu marido de esguelha, mas Pitt estava observando os ocupantes de um camarote situado, a uns vinte metros no mesmo piso. Um deles era um homem de uns sessenta e tantos anos, de cabelo escasso e testa larga, que nesse preciso instante tinha o olhar cravado no cenário, a expressão fixa. O outro era uma mulher atraente de cabelo castanho, ao menos doze ou quatorze anos mais jovem. Suas jóias desprendiam brilhos de luz quando se movia, voltava a cabeça, tocava o cabelo e se inclinava ligeiramente no assento.
—Quem são? - sussurrou Charlotte.
—O que? - Pegou Pitt de surpresa.
—Quem são? - repetiu ela em voz baixa olhando para o outro camarote.
—Oh... - Se sentia um tanto perturbado. A entrada ao teatro era um presente de Caroline, e Pitt desejava parecer absolutamente absorto na peça, apesar de não lhe interessar - Um juiz do tribunal de apelação – sussurrou - O juiz Stafford.
—E ela é sua esposa? - perguntou Charlotte tratando de averiguar a razão do interesse de seu marido.
Este esboçou um sorriso.
—Acredito que sim... Por quê?
Charlotte olhou de novo o camarote, não com toda a discrição que deveria.
—Então por que os olha? - perguntou ainda a meia voz - Quem é o do camarote mais à frente?
—Parece o juiz Livesey.
—Não é muito jovem para ser juiz? É bastante atraente, não acha? E parece que a senhora Stafford acha o mesmo!
Pitt se remexeu um pouco em seu assento. Caroline estava muito absorta no palco para dar-se conta. Seguiu o olhar de Charlotte.
—O de cabelo negro não - esclareceu entre dentes - o ao lado. O jovem é Adolphus Pryce, um prestigioso advogado de Sua Majestade. Livesey é o corpulento de cabelo grisalho.
—Ah, bem; de qualquer forma, por que os está olhando?
—Simplesmente me surpreendeu vê-lo tão absorto na peça - respondeu ele dando levemente de ombros - É bastante romântica. Nunca o teria suspeitado. Entretanto, leva dez minutos ou mais sem afastar a vista do palco. De fato, nem sequer o vi pestanejar.
—Talvez esteja apaixonado por Tamar Macaulay - afirmou Charlotte com um risinho.
—Quem? - A confusão se desenhou no rosto do Pitt.
—A atriz! - Charlotte estava exasperada e por um momento ergueu a voz - Thomas, rogo-lhe Preste atenção! É a protagonista!
—Ah... naturalmente. Esqueci seu nome. Sinto muito - se desculpou arrependido - Baixe a voz e olhe a peça.
Os dois voltaram a vista à frente e guardaram silêncio durante quase um quarto de hora, até que um grito procedente do camarote dos Stafford e uma atividade pressurosa, meio apagada, chamaram sua atenção. Inclusive Caroline se viu obrigada a afastar a vista do cenário.
—O que acontece? - perguntou com inquietação - O que ocorreu? Há alguém doente?
—Sim, parece - respondeu Pitt, que afastou o assento para trás como se fosse levantar-se e a seguir mudou de opinião - Acredito que o juiz Stafford não se encontra bem.
O certo era que a senhora Stafford estava em pé, inclinada sobre seu marido com certo nervosismo, tratando de lhe afrouxar o pescoço da camisa e lhe falando em voz baixa, premente. Não obstante, ele não emitia resposta alguma, salvo uma sacudida espasmódica de seus membros, não frenética, mas sim como se sentisse agitado. Seu rosto mantinha a mesma expressão fixa, imóvel, como se seguisse sem poder afastar a atenção do palco e das figuras que se achavam nele representando seu próprio drama predeterminado.
—Não deveríamos ajudar? - sussurrou Charlotte dúbia.
—O que poderíamos fazer? - Pitt parecia preocupado, tinha o sobrecenho franzido-. Provavelmente necessite um médico. - Mas ao mesmo tempo em que o dizia já estava afastando o assento e ficando em pé - Será melhor que vá ver se deseja que chamemos um médico. E talvez necessitem ajuda para levá-lo a um lugar mais tranquilo onde possa deitar-se. Rogo-lhe que apresente minhas desculpas à Caroline - E sem mais demora abandonou o camarote.
Uma vez fora, percorreu a toda pressa o amplo corredor contando as portas até dar com a correta. Não tinha sentido bater. A mulher já tinha o suficiente tentando ajudar a seu marido para ir abrir uma porta que, de qualquer modo, não estaria fechada. De fato já estava entreaberta, não teve mais que empurrá-la e entrar.
Samuel Stafford se achava desabado na cadeira, com o rosto congestionado. Sua respiração fatigante se ouvia inclusive da porta. Juniper Stafford se achava agora no extremo oposto do camarote, apoiada no corrimão, cobrindo o rosto com as mãos, consternada. Parecia quase paralisada de medo. Junto a Stafford, meio ajoelhado no chão, estava o juiz Ignatius Livesey.
—Posso ajudá-los? - perguntou Pitt imediatamente - chamaram já a um médico? Querem que o eu faça?
Livesey se voltou, sobressaltado. Claramente não o tinha ouvido entrar. Era um homem corpulento, de cabeça longa e semblante poderoso, nariz romano e queixo carnudo. Era um rosto que refletia convicção e valor, talvez um caráter volúvel, o rosto de um homem com mudanças de humor fortes e repentinas, acostumado a dar ordens.
—Sim, faça vir um médico - se apressou a responder depois de lhe dirigir um olhar para assegurar-se de que era um cavalheiro, não um simples curioso intrometido. - Não me dedico à medicina e temo que pouco possa fazer.
—Naturalmente. Enviarei a minha esposa para que faça companhia à senhora
Stafford.
O semblante do Livesey denotou grande surpresa.
—Conhece-o?
—Só sua reputação, senhor Livesey - respondeu Pitt com o mais direto dos sorrisos.
O homem da cadeira escorregava pouco a pouco e sua respiração era cada vez mais lenta. Sem mais demora Pitt abandonou o camarote e, ao chegar ao dele, abriu a porta de um tranco.
—Charlotte, é grave - asseverou com urgência - Acredito que esse pobre homem está morrendo. Será melhor que vá ver a senhora Stafford.
Caroline se voltou e olhou-o com inquietação.
—Fique aqui, mamãe - foi a resposta do Pitt à tácita pergunta - vou procurar um médico, se é que há algum aqui.
Charlotte ficou em pé, saiu com ele e pôs-se a correr para o camarote dos Stafford, as saias ondeando. Pitt foi na direção oposta, para o escritório do diretor. Deu com a porta adequada, bateu energicamente e a seguir entrou sem esperar a resposta.
Dentro um homem com um magnífico bigode levantou zangado a vista da escrivaninha em que estava contemplando umas fotografias bastante indiscretas.
—Como se atreve! - protestou fazendo gesto de ficar em pé - Isto é
—Uma emergência - interrompeu Pitt sem incomodar-se em sorrir – Um espectador, no camarote quatorze, encontra-se muito doente. Para falar a verdade temo que bem possa estar morrendo. O juiz Stafford…
—Oh, Meu Deus! - O diretor estava horrorizado - É espantoso! Que escândalo! As pessoas são tão supersticiosas... Eu...
—Esqueça-se disso - lhe cortou Pitt - Há algum médico no teatro? Se não o houver, será melhor que faça vir ao mais próximo o antes possível. Eu voltarei para camarote para ver se posso fazer algo.
—Quem é você, senhor?
—Pitt, inspetor Thomas Pitt, Bow Street.
—Oh, santo céu! Que desastre! - O diretor empalideceu.
—Não seja tolo! - exclamou Pitt - Não se trata de um assassinato! O pobre homem ficou doente e eu me achava com minha família em um camarote próximo por acaso. Também a polícia vem ao teatro de vez em quando. E agora, pelo amor de Deus, vá procurar um médico.
A boca do diretor se abriu e se fechou sem emitir som algum. Depois recolheu a toda pressa as fotografias e guardou-as em uma gaveta, fechou-a de repente e saiu pisando nos calcanhares do inspetor.
De volta no camarote quatorze Pitt achou Samuel Stafford deitado ao fundo, fora do alcance de olhares inquisitivos que prefeririam um drama real ao que ainda seguia seu curso no palco. A disciplina dos atores bastava para que não se dispusessem de nenhum alvoroço entre o público. Livesey tinha tirado a jaqueta, tinha-a enrolado e a tinha colocado sob a cabeça do Stafford, e se achava ajoelhado a seu lado, olhando-o com grande consternação. Juniper Stafford estava sentada, inclinada, o olhar absorto em seu marido, que continuava em estado comatoso. Este respirava ainda com maior lentidão e a cor tinha desaparecido de seu rosto. Estava pálido, suarento e, à exceção do fraco subir e descer do peito mantinha-se absolutamente imóvel. Tinha os membros por completo paralisados. Charlotte estava ajoelhada junto a Juniper, lhe rodeando os ombros com o braço e lhe agarrando uma mão.
—O diretor foi procurar um médico - informou o inspetor em voz baixa, mesmo que ao dizer sabia que de pouco ia servir e que, certamente, seria muito tarde.
Livesey tomou o pulso ao Stafford e a seguir se ergueu, mordendo o lábio. Olhou Pitt.
—Obrigado - disse sem mais. Seus olhos expressavam o irremediável do caso e a advertência de não falar diante de Juniper.
Bateram na porta com indecisão.
—Entre - Livesey olhou Pitt, depois a porta. Não havia dúvida de que era muito cedo para que fosse o médico, a menos que este se encontrasse não só no teatro, mas nesse mesmo piso.
A porta se abriu e Pitt reconheceu o rosto suave, moreno do Adolphus Pryce, o advogado. O homem estava perturbado. Seu olhar pousou em Juniper Stafford em primeiro lugar, encurvada na cadeira, abraçada à Charlotte; continuando, na figura de Samuel Stafford, no chão. Inclusive a pobre luz que emitiam os lampiões do camarote, lá em cima, longe do brilho do palco e da sala, era claro que seu estado era extremamente grave.
—O que ocorreu? - perguntou Pryce a meia voz - Posso... posso fazer algo? Há...? - Emudeceu. Era evidente que ninguém que não fosse médico podia fazer nada, e possivelmente nem sequer assim - Senhora Stafford?
Juniper não disse nada, mas sim ficou olhando-o com os olhos muito abertos, desesperados.
—Sim - disse Charlotte com firmeza - Se for amável de trazer um copo de água fria e possivelmente assegurar-se de que a carruagem da senhora Stafford possa chegar à porta sem problemas, de forma que quando for o momento de partir não tenha que esperar...
—É claro. Sim, sim, naturalmente - Pryce parecia estar imensamente agradecido por poder fazer algo útil. Olhou um instante mais Juniper e, continuando, deu meia volta e saiu com tal rapidez que esteve a ponto de se chocar com um homem de baixa estatura, cabelos acobreados desordenados e mãos pequenas, gorduchas, muito limpas
Este entrou e instintivamente se dirigiu ao Livesey, como se fosse a autoridade responsável no assunto.
—Sou o doutor Lloyd. O diretor me disse que... Ah, sim, já vejo - Baixou o olhar e viu o Stafford no chão, agora já quase sem respiração - Oh, Meu Deus, Meu Deus. Sim - ajoelhou-se sem afastar a vista do Stafford - O que ocorre? Sabem? Um ataque do coração... não estranharia - Tomou o pulso com expressão cada vez mais preocupada - E dizem que é o juiz Stafford. Temo que não goste muito de seu aspecto - Tocou o cinzento rosto do Stafford - Suor frio - afirmou meditativo - Pode me dizer o que ocorreu? - A pergunta ia dirigida a Livesey.
—Ocorreu de forma repentina - respondeu este, com voz clara, mas muito baixa - Eu estava sentado no camarote contíguo e o vi afundar-se em seu assento, de modo que achei que devia ver se podia ser de ajuda. A princípio pensei que talvez se tratasse de um transtorno estomacal ou algo pelo estilo, mas agora me parece ser algo bastante mais grave.
—Não parece ter vomitado - observou o médico.
—Não... - corroborou Livesey - Naturalmente que poderia ser o coração, tal e como você sugere, mas não se queixou de nenhuma dor quando estava consciente e parece ter estado imerso em uma espécie de estupor há bastante tempo, quase desmaiado, poderia dizer-se.
—Quando entrei pela primeira vez tinha o rosto muito congestionado - acrescentou Pitt.
—Oh. E quem é você? - perguntou Lloyd, voltando-se para ele com o sobrecenho franzido - Desculpe, não o tinha visto. Supus que este cavalheiro era o responsável.
—Thomas Pitt, inspetor, delegacia de polícia do Bow Street.
—Polícia? Céu santo!
—Estou aqui a título pessoal - explicou o inspetor tranqüilamente - Estava com minha esposa e com minha sogra em um camarote próximo. Devia oferecer ajuda ou chamar um médico quando vi que o senhor Stafford estava doente.
—Muito louvável - aprovou Lloyd com desdém, limpando-as mãos nas calças - Não iam querer que a polícia interviesse em um assunto como este... Santo céu! Já é bastante trágico. Talvez um de vocês pudesse ser amável de ocupar-se da senhora não é?... Stafford? Não há nada que ela possa fazer pobre criatura.
—Eu, eu... Não poderia...? Oh, Samuel! - Juniper ficou sem fôlego e levou o lenço à boca.
—Estou certa de que você já fez tudo o que podia - lhe assegurou Charlotte docemente, tomando-a pelo braço - Agora é coisa do doutor. E se o senhor Stafford não está acordado, não sentirá sua falta. Venha comigo e me permita que procuremos um lugar tranqüilo onde nos sentar até que possam nos dizer algo.
—Você acha? - Juniper se dirigiu a Charlotte com uma desesperada súplica.
—Não me cabe a menor dúvida - respondeu Charlotte olhando Pitt um instante, logo depois de novo a Juniper - me acompanhe. Possivelmente o senhor Pryce venha com um copo de água e inclusive tenha localizado sua carruagem.
—Oh, não poderia ir para casa.
—Ainda não, é claro. Mas em caso de que assim o diga o doutor, não será necessário que aguardemos na fila, não é verdade?
—Sim... Sim, suponho que sim. Sim, é claro, tem razão.
Com a ajuda de Charlotte, Juniper ficou em pé. Depois de agradecer a Livesey sua colaboração e dirigir um último olhar à figura imóvel de seu marido, reprimiu um soluço e deixou que Charlotte a conduzisse para fora.
Lloyd suspirou profundamente.
—Agora podemos ir ao ponto, cavalheiros. Temo que não possa fazer nada pelo senhor Stafford. Estamos o perdendo rapidamente e não trago medicamentos comigo. De fato, não conheço nenhum que pudesse lhe ser de utilidade em seu estado - Franziu o sobrecenho e contemplou o corpo de seu paciente, agora completamente inerte. Voltou a lhe apalpar o peito, depois tomou a pulsação no pescoço e, por último, no pulso, sem deixar de cabecear levemente em nenhum momento.
Livesey se achava junto a Pitt, de costas à sala e ao cenário, no qual certamente os atores ignoravam a natureza do pequeno e negro drama que estava a ponto de concluir em um dos camarotes.
—O certo - acrescentou Lloyd ao cabo de breves instantes - é que o juiz Stafford faleceu - ficou em pé molemente, alisando as calças para lhes devolver o vinco. Olhou ao Livesey - É claro, informaremos a seu médico, e sua pobre viúva já está a par da situação. Lamento-o, mas não posso me pronunciar sobre a causa de sua morte. Não tenho nem a mais remota idéia. Terá que realizar-se uma autópsia. Penoso, mas é a lei.
—Não tem nem idéia? - Pitt franziu o sobrecenho - Não se trata de nenhuma enfermidade com a qual você esteja familiarizado?
—Pois não, senhor - admitiu Lloyd um tanto mal humorado - Não é muito razoável esperar que um médico diagnostique uma enfermidade em uns minutos, sem histórico algum e com um paciente comatoso, e todo isso na penumbra do camarote de um teatro e com uma representação no cenário. Realmente pede você o impossível.
—Não é um ataque do coração ou uma apoplexia? - prosseguiu o inspetor sem desculpar-se.
—Não, não é um ataque do coração, pelo que sei, e tampouco uma apoplexia. Para falar a verdade, se se tratasse de outra pessoa suspeitaria que tomou algum opiáceo e se administrou uma overdose acidentalmente. Salvo que, é claro, os homens de sua classe não tomam ópio e, com total segurança, não uma dose que faça este efeito.
—Duvido que o juiz Stafford fume ópio - comentou Livesey com frieza.
—Eu não insinuei que o fizesse cavalheiro! - exclamou Lloyd - Para falar a verdade, tratava de explicar a... ao senhor... ao senhor Pitt aqui presente - acrescentou voltando a cabeça para este - que não achava que o tivesse feito. Além de que ninguém poderia fumar o suficiente para que lhe causasse a morte assim. Teria que beber uma solução de ópio. Na verdade não sei sequer por que estamos falando do assunto. - Deu de ombros com brusquidão. - Ignoro qual é a causa do falecimento deste pobre homem. Será preciso uma autópsia. Possivelmente seu próprio médico esteja a par de alguma afecção que possa explicar. No momento isso é tudo que posso fazer, por isso lhes peço que me desculpem para que possa retornar com minha família, que está tratando de desfrutar de uma distração civilizada em uma de suas escassas noites junta. – Soprou - Sinto muito sua perda e lamento profundamente não ter podido evitá-la, mas era tarde, muito tarde. Meu cartão - Fez aparecer um como por arte de magia e o ofereceu a Livesey - boa noite, cavalheiro; senhor Pitt. - E dizendo isso se endireitou com elegância, saiu pressuroso e fechou a porta a suas costas, deixando Pitt e Livesey a sós com o corpo de Samuel Stafford.
Livesey tinha uma expressão grave, a tez pálida, o corpo fatigado e tenso, os largos ombros um tanto caídos, a cabeça adiantada, a tênue luz refletida na abundante cabeleira. Afundou a mão no bolso da calça lentamente e tirou um delicado cantil de prata lavrada. Ofereceu-o a Pitt.
—É do Stafford - disse com ar severo olhando ao inspetor nos olhos. - O vi beber dela pouco depois que finalizasse o ato. É uma idéia abominável, mas talvez contenha algo que lhe provocasse a enfermidade. Possivelmente deveria levá-la e fazer que a analisem, mesmo que seja só para descartar.
—Veneno? - perguntou o inspetor com gravidade. Olhou Stafford. Quanto mais pensava no curso dos acontecimentos que tinha presenciado, menos absurdas lhe pareciam as palavras de Livesey – Sim - admitiu-. Sim, é claro. Tem razão. Ao menos terá que o ter em conta, mesmo que seja só para demonstrar que não foi assim. Obrigado.
Tomou o cantil e o olhou, virou-o. Era muito delicado, muito caro, de prata lavrada e com o nome, Samuel Stafford, e a data em que o deram de presente, 28 de fevereiro de 1884, gravados; um presente recente, de algo mais de cinco anos e meio. Era um formoso objeto para ser portador de morte.
—Farei que a analisem, é claro - prosseguiu. - Enquanto isso possivelmente seja melhor que averigüemos tudo que possamos sobre a noite do senhor Stafford e o que passou exatamente.
—É claro - concordou Livesey. - E dispor que transladem o corpo discretamente. Terei que explicar à senhora Stafford por que não o pode levar para casa até que se determine a causa de sua morte. Que penoso para ela! Todo o assunto é muito doloroso. Pode-se fechar com chave esta porta?
O inspetor deu a volta e a olhou.
—Não, só tem um fecho normal e comum. Esperarei aqui até que você tenha informado ao diretor e faça vir a um agente. Não podemos deixá-la aberta.
—Não, naturalmente que não. Irei agora mesmo. - E sem mais demora Livesey saiu e desapareceu, deixando Pitt só justo quando caía o pano de fundo e se ouvia uma longa e entusiasta ovação.
Quando Charlotte abandonou o camarote com Juniper Stafford se achou quase imediatamente com o Adolphus Pryce, que retornava com um copo de água. Parecia extremamente nervoso e seus olhos escuros dirigiram a Juniper um olhar que, se não fosse ridículo pensá-lo, revelava algo que Charlotte teria definido como medo.
—Minha querida... senhora Stafford - disse entrecortadamente. - Há algo que possa fazer para ajudá-la? Seu cocheiro foi avisado e trará sua carruagem à porta logo que o deseje. Como se encontra o senhor Stafford?
—Não sei - respondeu Juniper com voz abafada. - Parecia... parecia... muito doente. Foi tudo tão... repentino!
—Sinto muito - disse Adolphus. - Não sabia que sua saúde fosse delicada, não tinha nem idéia. - Estendeu-lhe o copo de água.
Seus olhos se encontraram e Juniper lhe dirigiu um olhar longo e aflito. Ao tomar o copo com as duas mãos, a luz fez brilhar seus anéis. Seu magnífico vestido parecia agora deslocado.
—Não... naturalmente que não - se apressou a dizer. - Tampouco... tampouco eu sabia. Por isso é tão absurdo. - Sua voz soou alta, desesperada- e se interrompeu. Obrigou-se a beber um gole de água.
Adolphus ficou olhando-a. A julgar pela atenção que lhe dispensava o jovem, era como se Charlotte não existisse. Toda a intensidade da emoção de Pryce se concentrava em Juniper e, entretanto, não parecia saber que mais dizer.
—O doutor fará tudo que possa - assegurou Charlotte. - Seria melhor que fôssemos a um lugar tranqüilo a esperar o resultado, não acreditam?
—Sim... sim, certamente - respondeu Adolphus. Olhou Juniper de novo. - Se... se houver algo, senhora Stafford... Ao menos me faça saber como... como está.
—Assim o farei senhor Pryce. É muito amável. - Juniper o olhou com certo desespero. Depois, aferrando-se ao braço do Charlotte, deu meia volta e se encaminhou para uma saleta privada contígua ao foyer em que tão só uma hora antes tinham estado tomando um refresco. O diretor estava na porta, retorcendo as mãos e pronunciando sons inarticulados de ansiedade.
O tempo que passaram ali sentadas pareceu a Charlotte uma eternidade. De quando em quando tomava o copo de Juniper, logo o devolvia, efetuando pequenos comentários sem sentido e tentando reconfortá-la sem fazer promessas absurdas de um final feliz que, em sua opinião, não era possível.
Por fim chegou Ignatius Livesey. Dada a gravidade de seu semblante, Charlotte soube no instante em que o viu que Stafford tinha morrido. De fato, quando Juniper ergueu a cabeça, sua esperança se desvaneceu antes que falasse. Respirou fundo, fechou os olhos e rompeu a chorar; grossas lágrimas rolaram por suas faces.
—Sinto muito. - disse Livesey com voz baixa. - Lamento ter que lhe dizer que seu marido nos deixou. O único alívio que posso lhe oferecer é que foi bastante aprazível e que não terá sentido dor ou angústia, salvo momentaneamente e tão breve para esquecê-lo em um instante. - Enchia a porta, uma figura transbordante de calma judicial, de estabilidade em um mundo terrivelmente cambiante. - Era um grande homem, que serviu à lei com suma distinção durante mais de quarenta anos, e será recordado com honra e gratidão. Inglaterra é um lugar melhor, e a sociedade, mais sábia e justa graças a ele. Isso deveria lhe servir de consolo quando esta dor se atenuar, e me acredite que se atenuará com o tempo. É um legado que nem toda mulher pode possuir; deveria sentir-se orgulhosa.
Ela ficou olhando-o fixamente. Por um instante tentou falar. Era doloroso observá-la. Charlotte desejava ajudá-la.
—É muito generoso de sua parte - disse a Livesey, agarrando a mão de Juniper e estreitando-lhe com firmeza. - Obrigado por ser o portador de uma notícia que sem dúvida é extremamente delicada. Agora, se não houver nada mais que possa fazer-se aqui, seria amável de dar aviso de que tragam a carruagem da senhora Stafford? Suponho que o doutor se encarregará do... de adotar as medidas oportunas.
—Certamente - reconheceu Livesey, - mas... - Seu rosto se escureceu. - Temo que talvez a polícia deseje fazer algumas perguntas, dado que tudo foi tão rápido.
Juniper recuperou a fala; possivelmente por um momento a surpresa fora maior que o pesar.
—A polícia? Para que? Quem...? Quero dizer, por que veio? Como se inteirou? Você...?
—Não... foi bastante fortuito - esclareceu Livesey a toda pressa. - Se trata do senhor Pitt, que foi em sua ajuda.
—Que perguntas? - Juniper olhou Charlotte. Parecia confusa. - O que tem que perguntar?
—Imagino que quererá saber o que Samuel comeu ou bebeu nas últimas horas - respondeu Livesey amavelmente. - Possivelmente o que fez durante o dia. Se for capaz de tranqüilizá-lo suficiente para dar algumas respostas, servirá de ajuda.
Charlotte abriu a boca para dizer algo, formular alguma objeção, mas não lhe ocorreu palavra alguma que não fosse fútil. Stafford tinha morrido de repente e sem que pudesse identificar a causa. Era inevitável que se abrisse uma investigação formal. Livesey estava certo: quanto antes resolvesse, antes poderia dar começo ao natural pesar e, com o tempo, o princípio do alívio.
A porta se abriu e entrou Pitt, seguido de perto por Adolphus Pryce.
Juniper ergueu a vista rapidamente, mas para Pryce; logo, como fazendo um esforço, afastou-a.
—Senhor Pitt? - perguntou com lentidão. - Soube que é da polícia. O senhor Livesey disse que deve me fazer algumas perguntas sobre... sobre a morte de Samuel. -Respirou fundo. - Lhe direi tudo o que possa, mas não sei nada que possa ajudá-lo. Não sabia que estava doente. Nunca me fez a mais leve insinuação...
—Entendo senhora Stafford. - O inspetor se sentou, sem esperar o oferecimento, justo em frente dela para não ter que obrigá-la a elevar a vista. - Lamento profundamente ter que importuná-la em tão doloroso momento, mas se deixasse para mais tarde talvez esquecesse algum pequeno detalhe que poderia me proporcionar uma resposta. - Olhou-a com atenção. Estava muito pálida e as mãos lhe tremiam, mas parecia serena e ainda muito estupefata para dar rédea solta ao pranto ou a ira que com tanta freqüência costumam seguir à morte de um ser querido. - Senhora Stafford, o que jantou seu marido antes de vir ao teatro?
Ela refletiu por um instante.
—Cordeiro, molho de rabanetes picantes, verduras. Um jantar ligeiro, senhor Pitt, nada de excessos.
—Comeu o mesmo?
—Sim, exatamente o mesmo, embora em menor quantidade, é claro.
—E de beber?
A mulher franziu o sobrecenho em um gesto de perplexidade.
—Tomou um pouco de vinho tinto, mas o desarrolharam na mesa e o serviram diretamente da garrafa. Era excelente. Eu mesma tomei meio copo. Ele não bebeu muito, asseguro. Sempre bebia com grande moderação.
—Que mais?
—Um pudim de chocolate e um sorvete de fruta. Eu também comi um pouco.
Pitt captou um movimento com a extremidade do olho, voltou-se e viu que Livesey apalpava o bolso traseiro da calça.
O inspetor inquiriu com gravidade.
—Levava seu marido um cantil, senhora Stafford?
Ela arregalou os olhos.
—Sim, tinha um de prata. Dei de presente faz uns quatro ou cinco anos. Por quê?
—Enchia-o ele mesmo?
—Suponho que sim. Em realidade não sei. Por que, senhor Pitt? Quer... quer vê-lo?
—Já o tenho, obrigado. Sabe se bebeu dela esta noite?
—Não o vi, mas é muito provável que o fizesse. Ele gostava de tomar um pouco... - Se interrompeu a voz trêmula e vacilante. Necessitou um instante para recuperar a compostura.
—Pode me dizer o que fez seu marido durante o dia, senhora Stafford? Tudo o que saiba.
—O que fez? - A mulher vacilou. - Bom, sim, se assim o desejar, mas não entendo por que...
—É possível que tenha sido envenenado, senhora Stafford - interveio Livesey com gravidade, ainda junto à porta. - Se trata de uma idéia muito inquietante, mas temo que temos que confrontá-la. Vale dizer que possivelmente o legista descubra alguma doença que desconheçamos, mas até então devemos agir tomando em consideração todas as possibilidades.
Ela piscou.
—Envenenado? Quem ia envenenar ao Samuel?
Pryce se apoiava ora em um pé ora no outro, sem deixar de olhar Juniper, mas não intervinha.
—Não lhe ocorre ninguém? - Pitt captou de novo a atenção da mulher-. Sabe
se atualmente trabalhava em algum caso, senhora Stafford?
—Não, em nenhum. - Parecia lhe ser mais simples falar se sua mente se concentrasse em detalhes práticos e em respostas a perguntas concretas. - Essa mulher veio vê-lo de novo. Leva alguns meses acossando-o. Parecia muito aborrecido e, assim que ela partiu, meu marido saiu.
—Que mulher, senhora Stafford? - perguntou o inspetor.
—A senhorita Macaulay. Tamar Macaulay.
—A atriz? - Pitt estava surpreso. - Sabe o que queria?
—Oh, sim, certamente. - Juniper ergueu as sobrancelhas como se não esperasse a pergunta. Tinha suposto que Pitt saberia. - Vinha por causa de seu irmão.
—A que se refere senhora Stafford? - inquiriu ele com paciência, recordando a recente perda da mulher, e que não podia pedir que suas palavras tivessem muito sentido. - Quem é seu irmão? Tem interposta alguma apelação na atualidade?
Uma faísca de dureza, quase de amargura, iluminou o rosto de Juniper por um instante.
—Duvido-o, senhor Pitt. Enforcaram-no faz cinco anos. A senhorita Macaulay quer… queria que Samuel voltasse a abrir o caso. Ele foi um dos juízes do tribunal que desprezou a apelação. Foi um assassinato terrível. Acredito que se as pessoas pudessem enforcá-lo mais de uma vez o teria feito.
—O caso Godman - mencionou Livesey a suas costas. - O assassinato de Kingsley Blaine. Sem dúvida você o recordará.
Pitt refletiu por um instante. Sobreveio-lhe uma vaga lembrança, de horror e atrocidade, artigos nos jornais, um par de feios incidentes nas ruas, atropelos a judeus.
—Em Farrier"s Lane? - disse.
—Exatamente - corroborou Juniper. - Pois bem, Tamar Macaulay era sua irmã. Não sei por que seus sobrenomes eram diferentes; em qualquer caso, os atores não são gente comum. Com eles nunca se sabe o que é verdade e o que não. E naturalmente são judeus.
O inspetor estremeceu. Um frio repentino parecia ter invadido a sala, como se um sopro de ódio e injustiça tivesse entrado pela porta aberta, embora Livesey a tivesse fechado. Olhou Charlotte e viu em seus olhos uma sombra de medo, como se também ela tivesse percebido algo novo e escuro.
—Foi um caso espantoso - murmurou Livesey, a voz grave e com um tom de ira. - Não sei por que essa pobre mulher não o deixa estar, que morra na memória das pessoas; algo a obriga a removê-lo, a tratar de que volte a abrir-se. - A aversão apareceu em seu rosto, como se desejasse retroceder ante tanta dor inútil, salvo que o dever o impedia. - Lhe ocorreu a desatinada idéia de que assim lavaria o nome de seu irmão. - Encolheu seus robustos ombros. - Quando naturalmente o certo é que o desgraçado era culpado, o que ficou demonstrado além de toda dúvida, razoável ou não. Teve sua oportunidade no tribunal, e sua apelação. Conheço os fatos, Pitt, eu mesmo fiz parte do tribunal de apelação.
Pitt agradeceu a informação com um sinal de assentimento e se voltou para Juniper.
—A senhorita Macaulay voltou a ver o senhor Stafford hoje?
—Sim... a primeira hora da tarde.A visita inquietou muito meu marido. - Respirou fundo, mais calma, e pegou a mão de Charlotte. - Saiu imediatamente depois, dizendo que devia ver o senhor O'Neil e o senhor Fielding.
—Joshua Fielding, o ator? - perguntou Pitt. Por algum motivo evitou deliberadamente o olhar de Charlotte ao rememorar com dolorosa nitidez o rosto de Caroline no teatro e sua tensa agitação.
—Sim - respondeu Juniper assentindo levemente. - Naquela época fazia parte da companhia, e ainda faz parte dela, naturalmente. Você o viu esta noite. Era amigo de Aaron Godman e acredito que foi suspeito durante algum tempo, antes que averiguassem quem o fez, é claro.
—Entendo. E quem é O'Neil? Outro membro da companhia?
—Oh, não. O senhor O'Neil era amigo de Kingsley Blaine, o homem a quem assassinaram. Era muito respeitável.
—Por que queria vê-lo o senhor Stafford?
Ela meneou a cabeça levemente.
—Era suspeito... a princípio. Mas não por muito tempo. Ignoro por que Samuel queria vê-lo. Não me disse isso. Só sei por que estava tão alterado que lhe perguntei aonde ia, e ele se limitou a dizer que ia ver o senhor O'Neil e o senhor Fielding.
Adolphus Pryce trocou de postura, inquieto, e depois de clarear a voz afirmou:
—É.. eu... eu sei que isso é verdade, senhor Pitt. O senhor Stafford também veio hoje ver-me. Já tinha falado com o Fielding e com O'Neil.
Pitt o olhou surpreso. Tinha esquecido que Pryce estava ali.
—Ah sim? Falou com você do assunto, senhor Pryce?
—Bom, sim... e não. Por assim dizê-lo. - Pryce lhe olhou fixamente, como se lhe fosse difícil evitar que seus olhos vagassem a seu desejo - Fez algumas perguntas mais sobre o caso Blaine/Godman, assim é como o chamávamos; Blaine é a vítima, e Godman, o agressor. Eu fui o promotor, já sabe. Em realidade foi um caso muito claro. Godman tinha um motivo, os meios estavam ao alcance de qualquer um, e a ocasião também. De fato várias pessoas o viram pelas imediações e ele não o negou. - Fez um gesto de desculpa. - E devo dizer que era judeu.
O inspetor sentiu que algo duro se afiançava em seu interior como uma laje. Nem sequer tentou dissimular a ira em seu olhar.
—O que tem isso que ver senhor Pryce? Não vejo relação alguma.
As delicadas narinas de Pryce se contraíram.
—Crucificaram-no, senhor Pitt - resmungou. - Eu diria que a relação é terrivelmente óbvia.
Pitt ficou aniquilado.
—Crucificado! - exclamou.
—Na porta das cavalariças, em Farrier"s Lane - acrescentou Livesey da sua posição ainda próxima à porta. - Com certeza recorda o caso. Sobre ele se escreveu extensamente em todos os jornais de Londres. As pessoas não falavam de outra coisa.
Ao inspetor lhe sobreveio nitidamente a lembrança. Naquela época se achava trabalhando em outro caso e não dispunha de tempo para ler os jornais ou escutar o relato de outros acontecimentos que não fossem os do assunto que levava nas mãos, mas a notícia tinha estremecido a toda a cidade.
—Sim. - Franziu o sobrecenho, aborrecido porque o tinham pego desprevinido-. Certamente recordo ter ouvido falar dele, mas me achava no Barking dedicado a minha própria investigação. Pode ser substância muito absorvente... - Esboçou um sorriso forçado. - De fato nem sequer conheço os detalhes dos assassinatos do Whitechapel do ano passado; estava muito ocupado com um duplo assassinato em Highgate.
—É difícil acreditar que um cristão crucifique a alguém. - Pryce ainda estava decidido a defender-se. - Essa é a razão pela qual ser judeu era relevante.
—O'Neil é judeu? - perguntou o inspetor com sarcasmo.
—É claro que não! Mas não esteve muito tempo sob suspeita - respondeu Pryce com aspereza. - Fielding e a senhorita Macaulay eram os outros suspeitos principais.
—Isso não vem ao caso - interrompeu Livesey, impaciente. - Godman era culpado e é uma lástima que sua irmã não possa aceitar os fatos e deixar que o caso se suma no esquecimento, onde deve estar. - Meneou a cabeça e apertou os lábios. - Empenhar-se em removê-lo não ajudará a ninguém. Não mudará nada. Essa mulher é uma imprudente.
Pitt se voltou para Juniper.
—Sabe de alguém mais a quem o senhor Stafford visse hoje, ou de algum outro lugar aonde fora?
—Não. - Negou com a cabeça. - Não, isso é tudo o que disse. Logo voltou para casa. Jantamos um pouco antes do costume; um jantar na verdade ligeiro. - Engoliu saliva com dificuldade. - E logo viemos ao teatro... aqui...
Charlotte continuava sentada a um lado e lhe pegava fortemente a mão. Olhou seu marido.
—Há algo mais que tenha que saber esta noite, Thomas? Não seria possível que a senhora Stafford partisse para sua casa e continuassem com o que queira saber amanhã pela manhã? Está esgotada.
—Sim, é claro. - Pitt se levantou com lentidão. - Sinto muito me haver visto obrigado a falar de tudo isto, senhora Stafford, e espero que seja desnecessário. -Estendeu-lhe a mão. - Me permita lhe expressar minhas mais sinceras condolências.
—Obrigada. - A mulher tomou sua mão, não só para despedir-se dele, mas para ficar em pé, um tanto pesadamente, com sua ajuda.
—Acompanharei a senhora até sua carruagem - propôs Charlotte.
Pryce se adiantou de repente para lhe oferecer o braço, com o rosto tenso da emoção.
—Rogo... Permita-me. Posso ajudá-la, senhora Stafford? Necessitará alguém para evitar que a assediem ou importunem pelo caminho, alguém que lhe dê seu apoio. Será para mim uma honra.
Juniper tinha os olhos arregalados, quase febris. Hesitou como se fosse objetar algo; depois se fez patente o prático da proposta e deu um passo para ele.
—Foi muito amável, senhora Pitt - disse Pryce olhando Charlotte com repentina cortesia e um sopro do que provavelmente fosse um peculiar encanto - Entretanto, me permita ser de ajuda; assim poderá ficar com seu marido.
—É muito generoso de sua parte - respondeu Charlotte com alívio. - Tenho que confessar que me tinha esquecido por completo de minha mãe, nossa anfitriã aqui. Pode ser que ainda continue em nosso camarote, nos esperando.
—Então não há mais que falar. - Pryce ofereceu o braço à senhora Stafford. Depois de uma breve despedida saíram juntos, ela apoiada nele e ele sustentando-a suavemente.
—Que lástima. - Livesey apertou os lábios. - Um assunto difícil, muito difícil. Estou certo de que se conduziu com correção, senhor Pitt. E você, senhora Pitt, mostrou-se muito considerada com sua compaixão e amabilidade. – Suspirou. - Não obstante, pode ser que o pior ainda esteja por chegar, se é que sua morte não foi natural. Roguemos que nosso temor seja infundado.
—Acredito que nem sequer Deus pode mudar o ocorrido - disse o inspetor com secura-. A que hora lhe visitou o senhor Stafford?
—Justo antes do almoço - respondeu Livesey. - Eu tinha ficado para comer com um colega e estava a ponto de sair do escritório quando entrou Stafford. Só ficou uns minutos....
—A visita guardava relação com o caso Blaine/ Godman? - interrompeu-lhe Pitt.
O largo rosto do Livesey refletiu certo desagrado.
—Não em princípio, embora o tenha mencionado. Tinha a ver com outro assunto, que naturalmente é confidencial. - Esboçou um leve sorriso. - De todo modo lhe posso servir de ajuda, inspetor. Justo antes de partir bebeu um golinho do cantil, e o mesmo fiz eu. Como pode ver, encontro-me perfeitamente. Assim sabemos que o cantil era inócuo então.
Pitt o olhou em silêncio, digerindo a informação e suas implicações.
Livesey deixou entrever um pequeno sorriso que curvou para baixo seus lábios.
—Corroborado, inspetor. Meu colega, John Wentworth, um eminente advogado, acabava de chegar para ir almoçar comigo. Estou certo de que, se o desejar, confirmará o que disse.
Pitt suspirou.
—Não duvido de sua palavra. Estava considerando a gravidade das conclusões que disso se derivam em caso de que se demonstre que o cantil continha veneno.
—Certamente. - O rosto do Livesey se escureceu. – Extremamente desagradáveis, temo, mas possivelmente inevitáveis. Não invejo seu encargo.
O inspetor terminou por sorrir.
—Meu não, senhor Livesey. Porei-o em mãos de meus superiores amanhã pela manhã, isso caso exista um caso. Limitei-me a atuar porque me achava aqui nesse momento. Seria irresponsável deixar passar a oportunidade de reunir provas, por acaso às moscas.
—Uma atitude muito louvável e, como você diz, é seu dever. - Livesey inclinou a cabeça-. E agora, se me desculpar, acredito que não posso lhe servir de mais ajuda. foi uma noite longa e em extremo desagradável. Sentirei-me muito aliviado quando achar minha carruagem e puder partir. Desejo-lhe boa noite.
—Boa noite, senhor Livesey. Obrigado por sua ajuda.
Quando Charlotte retornou ao camarote, Caroline ainda continuava ali. De algum modo, depois da realidade da tragédia, os assentos de veludo e o luxo acolhedor, a vista do palco vazio pareciam absurdamente corriqueiros. Caroline se achava de frente à porta, com expressão de nervosismo. Ficou em pé logo que chegou Charlotte.
—O que ocorreu? Como está ele?
—Receio que morreu - respondeu Charlotte, fechando a porta atrás de si. - Não recuperou os sentidos, o qual possivelmente seja uma bênção. O que é ainda pior é que o outro juiz, o senhor Livesey, inclina-se a pensar que poderia tratar-se de veneno.
—Oh, céu santo! - Caroline estava horrorizada. - Quer dizer que se... – de repente se deu conta. - Não... não é isso, verdade? Quer dizer que o assassinaram!
Charlotte tomou assento e puxou a mão de Caroline para que se sentasse também.
—Sim, é uma possibilidade que vai ganhando força. E temo que há algo pior, muito pior...
—O que? - Caroline arregalou os olhos. - Que demônios pode ser pior que isso?
—Tamar Macaulay o visitou hoje para tratar de um caso espantoso pelo qual seu irmão foi enforcado, faz uns cinco anos.
—Enforcado? Oh, Charlotte! Que tragédia! Mas o que podia fazer o senhor Stafford a respeito?
—Ao que parece Tamar continua acreditando que era inocente, apesar das provas, e queria que o senhor Stafford voltasse a abrir o caso. A senhora Stafford disse que a atriz levava algum tempo assediando-o e que ele estava bastante afetado. Depois que ela se foi, ele saiu a toda pressa e disse à senhora Stafford que ia ver os outros suspeitos do caso.
—E acha que um deles o assassinou? - concluiu Caroline, aflita. - E que isso é o que vimos... um assassinato?
—Sim. Os outros suspeitos eram um homem chamado O'Neil e... Joshua Fielding.
Caroline a olhou com uma expressão de sofrimento nos olhos, o rosto cheio de perplexidade.
—Joshua Fielding - repetiu piscando. - Suspeito de assassinato? Quem? Quem foi assassinado?
—Um homem chamado Blaine. Ao que parece foi um caso espantoso. Crucificaram-no.
—O que? - Caroline não conseguia assimilar o que acabava de ouvir. - Quer dizer... Não, não pode ser! É...
—Em uma porta - prosseguiu Charlotte. - Enforcaram o irmão de Tamar, mas ela nunca acreditou que fosse culpado. Sinto muito.
—Mas por que Joshua Fielding? Por que ia matar a esse homem? Que razões podia ter?
—Não sei. A senhora Stafford só disse que o juiz foi vê-los os dois, ao senhor Fielding e ao senhor O'Neil, depois de que Tamar o visitara hoje. - Soltou um risinho estridente-. Ou, melhor dizendo, ontem.
—O que está fazendo Thomas?
—Averiguando tudo que pode para que quando amanhã puser o caso em mãos de quem quer que vá encarregar se dele - isso caso que se trate de um envenenamento e que haja caso - tenha algo com que começar.
—Sim. Entendo. - Caroline estremeceu. - Suponho que seria reprovável não fazer nada. Quando se casou com um policial não tinha idéia das coisas extraordinárias em que acabaríamos colocadas.
—Tampouco eu - reconheceu Charlotte com franqueza. - Algumas foram maravilhosas, algumas aterradoras, outras trágicas e a maioria serviu para adquirir experiência e, espero, sabedoria e compreensão. Sinto pena dessas mulheres que não têm mais ocupação que a de bordar, flertar, mexericar e tentar pensar em algo que fazer que se possa chamar caridoso, mas que não danifique sua reputação ou suje suas mãos.
Caroline se mostrou ofendida, mas não pôs voz a seus pensamentos. Conhecia Charlotte o bastante bem para saber quão inútil seria, e uma parte dela sentia o secreto desejo de enfiar-se em tais aventuras, embora não tinha intenção de admiti-lo.
Um pouco depois se abriu a porta e apareceu Pitt, com semblante grave. Primeiro olhou Caroline.
—Sinto muito, mamãe - se desculpou. - Talvez a polícia tenha que tomar participação no assunto e, já que não há ninguém mais aqui, deveria falar com dois atores. Stafford os visitou ambos hoje mesmo. Pode ser que tenham alguma relação ou ao menos saibam algo que explique o ocorrido.
Charlotte ficou em pé na hora e alisou maquinalmente a saia.
—Vamos com você. Não quero esperar aqui, e você, mamãe?
—Não. - Caroline se levantou e permaneceu a seu lado. - Não. Preferiria ir com vocês. Podemos esperar em algum lugar onde não incomodemos.
Pitt retrocedeu e lhes abriu a porta. Saíram apressadamente, logo percorreram o corredor até os camarins, que ao que parecia ele tinha encontrado. O diretor os aguardava apoiando-se ora em um pé ora no outro, com o rosto crispado pelo nervosismo.
—O que aconteceu, senhor Pitt? - perguntou logo que este estava bastante perto para não ter que elevar a voz. - Sei que o juiz morreu, mas por que quer ver a senhorita Macaulay e ao senhor Fielding? No que podem ajudar? - meteu as mãos nos bolsos e em seguida voltou a tirá-las. - Não o entendo, de verdade que não. Eu quero lhe ajudar, é claro... mas isto é incompreensível.
—O senhor Stafford falou com eles hoje - explicou o inspetor com a mão apoiada na porta que conduzia aos camarins.
—Falou com eles? - O diretor parecia horrorizado. - Aqui não veio, inspetor! Asseguro!
—Não - disse Pitt enquanto caminhavam em fila Indiana pelo estreito corredor para a sala onde se pediu a Fielding e Tamar Macaulay que aguardassem. – A senhorita Macaulay visitou juiz em sua casa. Ao menos isso sabemos com certeza.
—Sabemos? Sabemos? - repetiu o diretor. - Eu não sei nada de nada! - deteve-se e abriu a porta de par em par. - Aí têm! Eu lavo as mãos. Meu Deus, como se não tivéssemos suficiente! Um juiz morre em seu camarote durante o espetáculo... e agora a polícia! Qualquer um diria que se estava representando a tragédia escocesa! Bem, adiante, adiante. Será melhor que faça o que tenha que fazer.
—Obrigado - respondeu o inspetor com um leve indício de ironia. Segurou a porta até que entraram Charlotte e Caroline, e logo a fechou com uma ligeira reverência no próprio nariz do diretor.
A sala era tranqüila e cômoda. Havia meia dúzia de poltronas dispersas pelo chão assoalhado, um pequeno fogão em um canto e uma chaleira em cima. As paredes estavam quase por completo cheias de pôsteres de teatro e pôsteres antigos. Alguns eram meras listas de atores; outros, evocações bastante elaboradas e formosas transbordantes de glamour. Olhando-os quase se podia ouvir de novo a música, ver as luzes. Pitt reconheceu os rostos do Henry Irving, Sarah Bernhardt, Ellen Terry, Herbert Beerbohm Tree, a jovem atriz italiana Eleanora Duse e a senhora Patrick Campbell.
Não obstante, a sala era minúscula. As figuras que atraíam a atenção de todo o mundo se achavam em pé, juntas, com uma elegância provavelmente tão ensaiada para que agora fosse bastante inconsciente. Joshua Fielding era exatamente igual a como aparecia através da lente dos binóculos, salvo que havia mais humor em seu rosto. As finas linhas ao redor da boca eram menos exageradas que os gestos de que se serviu para transmitir a mesma sensação de acuidade e melancólica graça. Possivelmente era menos bonito. A uns metros de distância, o nariz não parecia, o que se diz, reto, tinha os olhos desiguais e uma sobrancelha distinta da outra. Contudo, a própria imperfeição do conjunto era mais imediata e, portanto, de um atrativo mais duradouro que a aparência impecável do palco, carente de certa humanidade.
Tamar Macaulay, pelo contrário, era surpreendentemente diferente de como aparecia no cenário. Ou talvez nem Caroline nem Charlotte lhe tivessem prestado suficiente atenção. Era mais baixa e enxuta. A extrema feminilidade que projetava formava parte de sua arte, não era uma qualidade natural, e a intensa vitalidade que transmitia quase ligeireza de caráter, tinha desaparecido ao tirar o traje. Em repouso se mostrava imóvel, toda sua força era interior. Não obstante, seu rosto era um dos mais cativantes que Charlotte jamais tinha visto. Delatava uma mente poderosa, uma inteligência assombrosa. Era muito morena, de pele cítrica e cabelo negro, e entretanto possuía o extraordinário dom de ser capaz de refletir de uma fealdade extrema até uma beleza deslumbrante. Nunca poderia ter sido exuberante, cálida ou voluptuosa, mas, ao menos na opinião de Charlotte, poderia ter encarnado tanto a Medusa ou a Gorgona como a Helena de Tróia, e ter resultado absolutamente convincente como qualquer delas. Com a forte personalidade que deixava entrever seu rosto moreno, Charlotte poderia havê-lo olhado e acreditado que os homens suportaram onze anos de guerra e arruinaram um império por ela.
A conduta do Pitt não revelava pensamentos tão fantasiosos. Começou desculpando-se:
—Sinto lhes haver pedido que ficassem - disse com um sorriso lacônico. - Ao final de uma jornada semelhante devem estar cansados. Entretanto, suponho que lhes terão informado que o juiz Stafford morreu em seu camarote durante a representação desta noite. - Olhou ao Joshua, depois à Tamar.
—Sabia que se havia posto doente - respondeu Joshua afastando o olhar do Caroline e concentrando-se no Pitt.
Este se deu conta de sua omissão.
—Me desculpem. Apresento-lhes à senhora Caroline Ellison e a minha esposa, a senhora Pitt. Preferi não as deixar esperando fora.
—É claro. - Joshua fez uma ligeira reverência, primeiro a Caroline, quem se ruborizou timidamente, depois à Charlotte. - Lamento as circunstâncias deste encontro. Apenas posso lhes oferecer assento ou um refresco.
—Sabia que tinha estado doente - interveio Tamar voltando para assunto em questão. Sua voz era baixa e de um timbre pouco comum. - Ignorava que tinha morrido. - A tristeza se desenhou em seu rosto-. Sinto muito. Não consigo ver no que posso ajudar.
—Você visitou-o em sua casa hoje?
—Sim. - Não acrescentou nada, nenhuma explicação. Mostrava uma calma extraordinária até com uma resposta tão direta.
—Eu o vi depois, em meus aposentos - acrescentou Joshua. - Parecia estar perfeitamente. Mas é isso o que em realidade queria nos perguntar? - Parecia muito tranquilo, as mãos nos bolsos. - Com certeza a senhora Stafford é a mais indicada para lhe dizer tudo que deseje saber. Não está a par seu próprio médico de seu estado?
Pitt corrigiu o mal-entendido.
—Não sou médico, senhor Fielding. Sou inspetor de polícia.
Joshua arqueou as sobrancelhas e se ergueu ao mesmo tempo em que tirava as mãos dos bolsos.
—Polícia? Sinto-o... pensei que tinha caído doente. Sofreu uma agressão? Santo céu... no teatro?
—Não, tudo aponta a que foi envenenado - explicou o inspetor com cautela.
—Envenenado? - Joshua se mostrou desconfiado e Tamar ficou tensa. – Como sabe? - perguntou o primeiro.
—Não sei - respondeu o inspetor olhando ao um e à outra alternadamente - Mas os sintomas eram muito similares aos do envenenamento por ópio. Pecaria como irresponsável se não contemplasse essa possibilidade e não averiguasse tudo que possa esta noite, enquanto a lembrança ainda é nítida e recente, antes que ponha o assunto em mãos de quem vai encarregar-se dele quando estiver preparado o informe do legista.
—Entendo. - Joshua se mordeu o lábio. - Você veio aqui porque tanto Tamar como eu o vimos pelo dia e suspeita de nós, não é isso? - Seu rosto estava tenso, doído. Estendeu a mão de maneira quase inconsciente e roçou o braço de Tamar. Tratava-se de um gesto protetor, embora em alguns aspectos ela parecia ser a mais forte dos dois. Seu semblante era mais feroz, menos vulnerável que o dele.
Olhando-a Charlotte pensou no pouco que sabia do caso Godman e na espantosa perda de seu irmão. Perguntou-se que aspecto teria Aaron Godman. Suspeitou que, se parecia com ela, as pessoas o teriam temido, que acreditariam no menos capaz de uma paixão que bem poderia ter acabado em assassinato.
—Entre outros muitos. - Pitt não respondeu com evasivas. - Em todo caso, também é possível que possam contribuir alguma observação que nos guie para a verdade.
—Quer dizer implicar a alguém mais - corrigiu Tamar com frieza. - Já passamos pela investigação de um assassinato antes, inspetor Pitt. Não abrigamos esperança alguma de que vá tratar se de um assunto agradável ou de que a polícia descanse até que tenha dado com provas que convençam a um tribunal da culpa de alguém.
Charlotte se dava perfeita conta da precisão de suas palavras. A ferida da condenação de seu irmão distava muito de estar fechada.
—Nosso encargo consiste em apresentar as provas, senhorita Macaulay - respondeu Pitt sem sombra de ira ou crítica no rosto, - não em decidir sobre elas... a Deus obrigado. Não obstante, jamais apresentei nada que não acreditasse que fosse certo. Consta-me que acredita que com seu irmão se cometeu uma injustiça e isso guarda relação com o fato de que fora a ver o senhor Stafford hoje.
—É claro. - Seu regozijo era genuíno, embora amargo. - Não vejo outro motivo para freqüentar seu escritório. Sou consciente de que as atrizes têm certa reputação. Em meu caso não está justificada. E não vejo por que ia supor se o ao senhor Stafford. - Seus olhos destilavam uma brincadeira feroz, uma mofa de Stafford, de si mesmo e de todos aqueles carentes de emoções. - Era um homem sem senso de humor - prosseguiu. - Sem imaginação, e no suposto pouco provável de que procurasse uma aventura, acredito que não seria tão indiscreto para escolher a uma atriz para vivê-la.
Charlotte olhou o rosto do Pitt e lhe viu dar rédea solta à imaginação. Tamar era uma mulher da qual um homem poderia apaixonar-se, perdidamente inclusive, mas não uma mulher com a que ter uma aventura. Encarnava sonhos, inclusive visões, mas não era um agradável passatempo, diversão e sensualidade à margem dos deveres do matrimônio ou da solidão do solteiro. Charlotte não podia imaginá-la como uma mulher cômoda, e achava que Pitt era da mesma opinião.
—Eu não tiro conclusões, senhorita Macaulay. - A voz de Pitt a afastou de seus pensamentos. - Mesmo que pareçam repousar na base mais firme.
Tamar esboçou um sorriso que na hora desapareceu.
—E você, senhor Fielding? - Pitt se dirigiu ao Joshua. - Visitou o senhor Stafford por motivo deste caso?
—Sim, é claro. De suas palavras coligi que estava pensando em voltar a abri-lo. -Suspirou profundamente - Agora essa possibilidade se esfumou. Não conseguimos convencer a ninguém mais de que o exponha.
—Você o viu a sós, senhor Fielding?
—Sim. Suponho não ter sentido lhe dizer o que ocorreu, dado que não há ninguém que possa verificá-lo. - Joshua deu de ombros. – Simplesmente me perguntou da noite em que mataram ao Blaine e me fez repetir de novo tudo que sei. Depois disse que ia ver o Devlin O'Neil, o amigo do Blaine, com quem discutiu aquela noite... por dinheiro, acredito.
—Levava isto consigo? - O inspetor tirou o cantil de prata do bolso e o mostrou.
Joshua a observou com curiosidade.
—Eu não o vi, mas ninguém costuma levar uma coisa assim à vista. Por quê? Verteram veneno nela?
Tamar estremeceu e a olhou com desagrado.
—Não sei - respondeu o inspetor guardando-o de novo. – Você já o tinha visto antes, senhorita Macaulay?
—Não.
Pitt deixou estar.
—Obrigado. Suponho que quem está a cargo amanhã voltará a falar com vocês. Lamento o incômodo.
Joshua deu levemente de ombros esboçando um sorriso que não demorou a desaparecer.
Pitt lhes deu boa noite e, depois de uma breve despedida, partiu com Charlotte e Caroline. Fora a noite era escura, as luzes do teatro se apagaram, só as luzes da rua pareciam pérolas luminosas em uma neblina que ameaçava semear o ar de fantasmas leitosos. As rodas das carruagens giravam a toda velocidade pelos meio-fios molhados e os cascos das cavalarias sacolejavam ruidosamente na úmida pavimentação.
Tinha Stafford previsto voltar a abrir o caso de assassinato pelo que tinham enforcado Aaron Godman? Tinham-no matado por isso? Tamar Macaulay queria que o reabrissem. Quem desejava que seguisse fechado... tanto para matar?
Ou acaso se tratava de algo completamente diferente: uma pessoa distinta, um medo... ou um ódio diferentes?
Charlotte avivou o passo e pegou o braço de Pitt enquanto este tratava de procurar uma carruagem que os levasse a casa.
Nessa manhã, Micah Drummond chegou cedo a seu escritório. Desde que concluíra o caso que tinha girado em torno de Belgrave Square nesse verão e produzido tanto horror e escândalo e que ao próprio Drummond lhe tinha proporcionado uma descoberta que afetava a toda sua vida, - já não estava satisfeito com seus próprios pensamentos. O trabalho lhe trazia certo alívio, mesmo que com muita freqüência recordasse-lhe o tortuoso vigamento de obrigações de que tinha passado a fazer parte sem saber quando aceitou ingressar na associação secreta do Círculo Interior.
Eleanor Byam era outra questão. A única forma de manter sua mente afastada dela era ocupando-a nos urgentes e complicados problemas de outros.
Achava-se de pé junto à janela, a tênue luz do sol outonal, quando Pitt bateu na porta.
—Entre - disse Drummond esperançado. Não havia muito trabalho em sua escrivaninha, e o que havia estava resolvido. Já tinha estudado e delegado convenientemente. A única coisa que podia fazer agora era pedir cada certo tempo mais informes que o mantivessem à corrente de cada novo giro dos acontecimentos, algo que podia supor mais interferências do que seus agentes mereciam. - Adiante - repetiu com maior brusquidão.
A porta se abriu e Pitt apareceu na entrada, os cabelos muito encrespados, a jaqueta enrugada e o nó da gravata em perigo iminente de desfazer-se por completo. Drummond o considerou uma visão notavelmente tranqüilizadora, familiar e, entretanto, sempre portadora de alguma surpresa. Sorriu.
—Sim, Pitt?
Este entrou fechando a porta atrás de si.
—Ontem à noite fui ao teatro. - Afundou as mãos nos bolsos e se colocou frente à escrivaninha, tudo menos firme. Se tratasse de outro homem, Drummond teria se incomodado com sua atitude, mas Pitt lhe agradava muito para querer reafirmar sua autoridade.
—Ah sim? - Drummond estava surpreso. Não era uma das afeições do Pitt.
—Convite de minha sogra - explicou. - O juiz Samuel Stafford morreu em seu camarote - prosseguiu. - Vi-o ficar doente e fui oferecer ajuda. - Tirou um cantil de prata do bolso da jaqueta, um belo e reluzente objeto.
Drummond observou-o, depois olhou Pitt nos olhos, à espera de uma explicação.
O inspetor deixou o cantil na coberta de couro verde da escrivaninha.
—Ainda não temos o informe médico, naturalmente, mas se parecia muito a um envenenamento por ópio para passar por cima a possibilidade. O juiz Ignatius Livesey também se achava ali. Estava no camarote contiguo e foi para ajudar. O certo é que foi ele quem percebeu que podia tratar-se de um envenenamento. Viu Stafford beber do cantil, de modo que o tirou do bolso e me deu isso para que a examinassem.
—Samuel Stafford - repetiu Drummond lentamente. - É juiz do tribunal de apelação, não? - Não se tratava de uma pergunta, mas sim de uma observação. - Pobre homem. - Franziu o sobrecenho. - Veneno? Ópio? Não parece provável.
Pitt deu de ombros e uma sombra de tristeza aninhou-se em seus olhos.
—Não, não o parece à primeira vista - reconheceu. - O caso é que fiz algumas averiguações sobre suas atividades durante o dia e vieram à luz algumas coisas interessantes. Recorda o caso Blaine/Godman, há uns cinco anos?
—Blaine/Godman? - Drummond se aproximou um pouco mais da escrivaninha. Profundas rugas sulcaram seu rosto, mas aparentemente não recordava nada.
—Um homem crucificado em uma porta, em Farrier"s Lane - acrescentou Pitt.
—Oh! - Drummond estremeceu. - Sim, é claro que me lembro. Um assunto terrível, absolutamente horripilante. Armou-se uma boa. Um dos casos mais horríveis que lembro. - Olhou o inspetor com gesto sério. - O que tem que ver a morte de Stafford a noite passada no teatro com Farrier"s Lane? O culpado já enforcaram na época.
—Sim - disse Pitt. A ira e a compaixão se refletiam em seu rosto. Reprovava os enforcamentos, fosse qual fosse o crime. Só agravavam uma barbaridade lhe somando outra, e o discernimento humano era falível com muita freqüência; os enganos, muito fáceis de cometer; os conhecimentos, muito escassos. - Stafford foi um dos juízes que desprezaram a apelação do Godman - continuou. - Sua irmã, a atriz Tamar Macaulay, esteve tratando de voltar a abrir o caso depois. Acredita que seu irmão não era culpado.
—É natural - lhe interrompeu Drummond. - As pessoas custam aceitar que seus parentes, seus amigos inclusive, possam ser culpados de algo tão atroz. Com certeza ela estava atuando, não? É pouco provável que tivesse a oportunidade de verter veneno no cantil do que quer que fosse... uísque?
—Não tenho nem idéia. - Pitt o pegou, desenroscou a rolha e o levou com cuidado ao nariz. - Sim, é uísque. Sim, estava atuando quando ele morreu, mas foi vê-lo antes, nesse mesmo dia, a sua casa. - Enroscou a rolha e voltou a deixar o cantil na escrivaninha.
—Oh! - Drummond estava surpreso e preocupado. O panorama começava a escurecer-se. - Mas por que ia ela matar ao Stafford? Em que modo ajudaria isso à causa de seu irmão? Ou acaso perdeu a razão, além do entendimento?
Pitt sorriu.
—Não tenho nem idéia! Limito-me a lhe contar o que ocorreu ontem à noite e a entregar-lhe o cantil para que o dê a quem vai encarregar-se da investigação, se é que a há.
—O senhor Samuel Stafford. - Drummond lhe devolveu o sorriso, uma expressão encantadora que alterou por completo a gravidade e as feições um tanto ascéticas de seu rosto. - Juiz do tribunal de apelação de Sua Majestade. Um personagem importante, para falar a verdade. Um caso digno de seu talento, Pitt. Um caso delicado, extremamente político - acrescentou. - Requererá uma investigação discreta e conscienciosa, no caso de ser um assassinato. Acredito que será melhor que se encarregue dela certamente. Sim... delegue o que tenha nas mãos neste momento e ocupe-se disto. -Tomou o cantil da escrivaninha e o devolveu ao Pitt observando-o com expressão divertida, desafiante.
O inspetor olhou-o de cima abaixo, depois estendeu a mão e pegou o cantil.
—Me mantenha informado - ordenou Drummond. - Se tratar de um assassinato, será melhor que atuemos com rapidez.
—Será melhor que estejamos certos - corrigiu Pitt, furioso, e ao ver o rosto de ansiedade do Drummond esboçou um amplo e repentino sorriso. - E que sejamos diplomáticos - acrescentou.
—Vá-se! - exclamou Drummond com um sorriso zombador, não porque o caso tivesse algo de divertido, fosse ou não um assassinato, mas sim porque, contra toda lógica, experimentou uma onda de calor em seu interior, a reafirmação de que o estranho, o excêntrico, o ingovernável, o honesto, isso que movia a risada e a compaixão, isso que era fundamentalmente humano, era muito mais importante que a conveniência política ou as normas sociais. Sem querer, veio-lhe à cabeça o rosto de Eleanor, mas com muito menos dor que antes e sem um ápice de triste desesperança.
Pitt se surpreendeu que o tivessem atribuído o caso embora, olhando bem, não deveria. Drummond tinha sido franco com ele quando Pitt renunciou à promoção porque não queria sentar-se a uma escrivaninha e dizer a outros como fazer um trabalho para o que ele mesmo possuía um indubitável talento e que amava apesar do salário relativamente inferior. Um aumento de salário teria significado muito para ele. Teria aceito, por Charlotte, pelas crianças, por tudo que teria suposto, mas foi Charlotte quem se negou, sabedora do muito que o trabalho significava para ele.
Drummond lhe havia dito que a partir de então lhe atribuiria os casos políticos e os mais delicados, uma espécie de promoção paralela, o modo que tinha Drummond de recompensá-lo apesar de si mesmo, e possivelmente também de tirar o melhor partido de seus dotes.
O médico legista era novo no posto e Pitt ainda não o conhecia. Quando este entrou no laboratório, aquele se achava atrás de um microscópio em uma grande mesa de mármore, o rosto contraído em uma expressão intensa, com frasquinhos, retortas e vidrinhos ao redor. Era robusto, tão alto como Pitt e muito mais corpulento; provavelmente não passava dos trinta e cinco anos. Seu brilhante cabelo avermelhado caía em uma cascata de pequenas e apertadas ondas, e sua barba parecia um ninho caído.
—Tenho-o! - exclamou com entusiasmo. - Céus, tenho-o! Entre e fique a vontade, quem quer que seja, e tranqüilize sua alma exercitando a paciência. Estarei com você em um momento. - Sua voz era aguda, com um suave acento escocês das Terras Altas , e não afastou os olhos do aparelho nenhuma só vez.
Teria sido mesquinho mostrar-se ofendido, de modo que Pitt obedeceu de bom grado e tirou o cantil do bolso, disposto a cedê-lo ao jovem.
Passaram uns instantes em silêncio, enquanto o inspetor observava a caótica abundância de potes, platinas e frasquinhos que continham toda sorte de substâncias. Por fim o legista ergueu a vista e sorriu.
—Sim? - perguntou com tom jovial. - O que posso fazer por você?
—Inspetor Pitt - se apresentou.
—Sutherland - disse o legista. - Ouvi falar de você. Deveria tê-lo reconhecido, desculpe. Do que se trata? Assassinato?
Pitt sorriu também.
—No momento de um cantil. Eu gostaria de saber o que há nele. - Entregou-o.
Sutherland o pegou, abriu-o e a levou com cautela ao nariz.
—Uísque - respondeu, olhando Pitt. Cheirou-a de novo. - Malte muito medíocre... Caro, mas muito medíocre. Direi-lhe algo mais quando lhe tiver dado uma olhada. Que espera achar?
—Ópio possivelmente.
—Curiosa forma de tomá-lo. Pensava que normalmente se fumava. Não é muito difícil consegui-lo.
—Não acredito que tomasse intencionalmente - explicou o inspetor.
—Assassinato! Sabia. Informarei-lhe logo que saiba algo. - Ergueu o cantil para observá-lo e leu o nome gravado: - "Samuel Stafford". Não morreu ontem à noite? Ouvi comentar algo a respeito pelos distribuidores de jornais.
—Sim. Mantenha-me informado.
—Certamente. Se for ópio saberei esta noite. Se for alguma outra coisa, ou nada, demorarei mais.
—A autópsia - perguntou Pitt.
—É da autópsia do que estou falando agora - respondeu Sutherland imediatamente. - O uísque só me levará um momento. Não é complicado. Inclusive um uísque medíocre. É fácil de averiguar.
—Bem. Voltarei - concluiu Pitt.
—Se não me achar aqui, estarei em minha casa - afirmou Sutherland energicamente. - Estarei lá a partir das oito mais ou menos.
E sem dizer nada mais reatou seu estudo no microscópio. Pitt deixou seu cartão com o endereço da delegacia de polícia do Bow Street sobre a mesa de mármore e se dispôs a iniciar a investigação.
O primeiro que deverei determinar era se Stafford tinha a intenção de voltar a abrir o caso Blaine/Godman. Não cabia dúvida de que se tinha incomodado em visitar Joshua Fielding e Devlin O'Neil ao menos devia haver o exposto. Se o caso fosse a seguir fechado, teria tido o trabalho de contara alguém além de à própria Tamar?
Ou acaso Livesey estava certo e sua única intenção era demonstrar, de uma vez por todas que Godman era culpado e assegurar-se de que não voltassem a expor-se mais interrogações sobre o assunto nem formularem-se mais insinuações relativas a uma possível falha da justiça? As dúvidas constantes, por muito corriqueiras que fossem ou por muito que estivessem apoiadas em sentimentos, velhas lealdades e amores, alteravam a confiança das pessoas na lei e na administração da justiça. Se a lei em si não era merecedora de respeito, todo mundo sofria. Seria algo natural e honroso por parte do Stafford.
Ao tratar de demonstrar a culpa de Godman e justificar a lei, mesmo que fosse ante a própria Tamar, tinha tropeçado sem dar-se conta com alguma irregularidade? Tinha assustado alguém culpado do... que? Outro crime? Um pecado oculto? Algum tipo de cumplicidade?
Por muito lamentável que fosse, tinha que começar por sua viúva. Em conseqüência, percorreu a calçada a grandes passadas, cruzando com elegantes damas a caminho de costureiras e chapeleiros, criados que se exerciam como mensageiros, empregados de escritório insignificantes e pequenos comerciantes que atendiam seus negócios. Era uma manhã fria, gélida, e as ruas buliam com o ruído de cascos de cavalarias, rodas de carruagens, gritos de cocheiros e vendedores ambulantes, varredores, jornaleiros, enganadores cantando balidas de escândalo e drama popular.
Parou uma carruagem e deu o endereço da casa do Stafford em Bruton Street, perto de Berkeley Square, que tinha obtido do sargento de guarda de Bow Street. Acomodou-se no assento à medida que o veículo se dirigia a toda pressa para o oeste pelo Long Acre e começou a considerar as perguntas às quais devia achar resposta.
Ocorreu-lhe uma idéia muito desagradável: se a morte do juiz não tinha relação alguma com o caso Blaine/Godman, então, dado que no momento de sua morte Stafford não estava imerso em nenhuma outra causa, poderia ser um assunto privado, um temor ou uma vingança pessoal, que com toda probabilidade teria que ver com sua família - sua viúva - possivelmente por dinheiro.
No dia seguinte saberia mais, ao menos se Sutherland achasse ópio no corpo e no cantil. Mas se em realidade Stafford tinha morrido de uma enfermidade da qual ninguém estava a par, se seu médico particular podia oferecer alguma explicação, então poderia esquecer-se de todo o assunto. Entretanto, essa era uma esperança que revoava em algum lugar de sua mente, não uma solução que esperasse.
Não foi difícil achar a casa dos Stafford. Escuras coroas pendiam na porta, e braçadeiras de luto negro sobre as cortinas jogadas. Uma criada pálida com chapéu e casaco apareceu nos degraus do porão e pôs-se a andar pelo atalho para fazer algum recado, e um lacaio com bracelete negro pegou um balde de carvão e fechou a porta. Era uma casa visivelmente de luto.
Pitt apeou, pagou ao cocheiro e se dirigiu à porta principal.
—Sim, senhor? - disse a criada com ar dúbio. Olhou Pitt com desaprovação. A primeira vista parecia um camelô, salvo que não levava nada para vender. Entretanto, suas maneiras refletiam certa segurança, arrogância inclusive, que desmentia qualquer tentativa de parecer com um. A criada estava aturdida e aflita pelos dramáticos acontecimentos. As criadas estavam muito lacrimosas, o cozinheiro desmaiou duas vezes, o mordomo estava muito sensível, meio bêbado depois de passar longo tempo na copa com as chaves da adega, e o valete do senhor Stafford parecia que tinha visto um fantasma.
—Lamento importunar à senhora Stafford em um momento assim - disse Pitt com todo o encanto de que era capaz, que era o bastante, - mas preciso lhe fazer umas perguntas sobre os acontecimentos da passada noite com o propósito de que tudo se possa solucionar o mais rápida e discretamente possível. Seria amável de lhe perguntar se quereria me receber? - Rebuscou no bolso e lhe ofereceu um cartão, um gesto que o tinha recompensado em numerosas ocasiões.
A criada tomou, procurou a ocupação do visitante e não a achou. Deixou-a na bandeja de prata que utilizava a tal efeito e lhe indicou que esperasse enquanto transmitia seu pedido.
Não passou muito tempo no sombrio saguão, com as braçadeiras de luto colocadas apressadamente, antes que a criada retornasse para conduzi-lo a sala da parte traseira da casa onde Juniper Stafford o recebeu. A decoração era cara, com cores quentes e motivos pontilhados em torno das portas que lhes conferiam um toque pessoal. Sobre uma chaise longue esculpida havia uma manta de tricô em tons vermelho e ameixa, e ninguém tinha trocado o centro de crisântemos murchos da reluzente mesa.
Juniper parecia muito cansada nessa manhã, e emocionada, como se começasse a perceber a morte de seu marido, com todas as mudanças que isso conduziria em sua vida. À dura luz do dia sua pele parecia de papel, e as diminutas manchas naturais, mais pronunciadas, mas continuava sendo uma mulher atraente, de traços deliciosos e delicados olhos escuros. Vestia-se de negro absoluto, mas a excelência do corte, a perfeita queda da malha nos quadris e a bandagem das anquinhas convertiam seu traje em um objeto de moda e muito favorecedor.
—Bom dia, senhora Stafford - saudou Pitt com formalidade. – Lamento seriamente importuná-la de novo tão logo, mas há algumas perguntas que não pude lhe formular ontem à noite.
—É claro - respondeu ao na hora. Compreendo senhor Pitt. Não é preciso que se explique. Fui a esposa de um juiz durante bastante tempo para compreender as necessidades da lei. Certamente ainda não praticaram a... - Vacilou em usar a palavra, tão desagradável lhe resultava.
—Não, ainda não. - Economizou-lhe ter que dizer "autópsia"-. Espero que esteja pronta esta tarde. Enquanto isso eu gostaria de confirmar qual era o propósito do senhor Stafford ao visitar os senhores O'Neil e Fielding. - Seu rosto se entristeceu. - Estou um pouco confuso a respeito de se tinha a intenção de reabrir o caso Blaine/Godman ou se simplesmente tratava de achar mais provas para convencer à senhorita Macaulay da inutilidade de sua cruzada.
—No final lhe encarregaram o caso, não? - perguntou ela, ainda de pé, uma mão apoiada no espaldar da cadeira estofada.
—Atribuíram-me isso esta manhã.
—Me alegro. Teria sido mais duro ter que tratar com alguém a quem não conheço.
Era um delicioso cumprimento que Pitt aceitou como tal, agradecendo-lhe com sua expressão em lugar de com palavras.
Juniper se aproximou da lareira; sobre o suporte pendia um óleo holandês especialmente delicado de vacas que pastavam em um campo outonal, um céu quente com uma luz dourada atrás delas. Contemplou-o por um instante antes de voltar-se para o inspetor.
—O que posso lhe dizer senhor Pitt? Meu marido não me confiava suas intenções, mas, pelo que disse, supus que tinha encontrado algum motivo para voltar a investigar o caso. Se for certo que o... assassinaram - pronunciou a palavra com dificuldade, depois de engolir em seco -,então tenho que supor que existe uma conexão entre ambos os fatos. Foi um caso horrível, brutal, blasfemo. A gente pôs o grito no céu na época. - estremeceu e a lembrança lhe fez apertar os lábios. - Com certeza o recorda. Saiu em todos os jornais, conforme soube.
—Quem era Kingsley Blaine? - perguntou o inspetor. Não tinha esquecido a sensação de horror que lhe sobreveio quando ela falou de Farrier"s Lane, mas era pouco o que lhe vinha à memória, nenhum detalhe, nenhum rosto atrás dos nomes.
—Um homem jovem bastante comum de uma família abastada - respondeu a senhora Stafford, que permanecia junto à lareira e olhava além de Pitt, em direção à janela. As cortinas estavam corridas em sinal de luto. - Com dinheiro, claro está, mas não aristocrata. Ele e seu amigo, Devlin O'Neil, foram ao teatro essa noite. Há quem diz que tiveram alguma diferença de opinião, mas mais tarde se demonstrou que não foi importante. Tratava-se unicamente de dinheiro, uma pequena dívida ou algo similar. Nada grande. - olhou o anel de granadas e o fez virar lentamente à luz.
—O senhor O'Neil foi suspeito durante um tempo, não é assim? - inquiriu Pitt.
—Pura rotina, acredito - respondeu ela.
—Mas o senhor Stafford visitou-o ontem.
—Sim. Não sei por que. Possivelmente pensava que talvez soubesse algo. Além de tudo, o senhor O'Neil esteve ali aquela noite.
—Qual é o papel de Aaron Godman nesta história?
Juniper deixou cair as mãos e olhou de novo em direção à janela, como se através das cortinas pudesse ver o jardim e a rua.
—Era ator. Aquela noite estava atuando no teatro. Dizem que tinha talento. – Sua voz se alterou levemente, mas ele não podia calibrar o significado de tal mudança - Blaine tinha uma aventura com o Tamar Macaulay e ficou até tarde entre bastidores. Quando partia, alguém lhe deu uma nota em que lhe pedia que se reunisse com O'Neil em uma casa de jogo. Nunca chegou ali, já que quando atravessava Farrier"s Lane, a caminho, foi assassinado e crucificado na porta das cavalariças, com pregos de ferrador. - Experimentou um calafrio e engoliu e seco como se lhe tivesse obstruído a garganta. - Dizem que o feriram no flanco, como a Nosso Senhor - continuou em um sussurro. - Em um jornal se afirmava que confeccionaram uma coroa de pregos velhos e a colocaram na cabeça.
—Agora me lembro - disse o inspetor. - Tinha esquecido os detalhes concretos.
Juniper falava com tom reservado, em voz muito baixa, contida, cheia de temor, com um retraimento do corpo como se a emoção continuasse sendo tão vivida nela como devia ter sido cinco anos atrás.
—Foi muito desagradável, senhor Pitt. Foi como se algo tivesse saído de um pesadelo e adotado uma forma vivente. Toda a gente que conheço ficou tão horrorizada como nós. - Incluiu inconscientemente a seu marido. - Até que enforcaram Godman, não podíamos pensar em outra coisa. Misturava-se em tudo como uma escuridão, como se pudesse emergir de Farrier"s Lane e esse horrível pátio para nos fustigar e nos crucificar a todos. – estremeceu como se nem sequer essa sala fosse do todo segura.
—Tudo terminou senhora Stafford - disse Pitt com amabilidade. - Já não há necessidade de preocupar-se, não deixe que a atormente.
—É isso verdade? - voltou-se para lhe olhar o rosto. Arregalou seus escuros olhos, ainda temerosos, e sua voz se tingiu de dureza e medo. - Você acredita? Não foi por isso que assassinaram ao Samuel?
—Não sei. O senhor Livesey parece pensar que o senhor Stafford estava bastante convencido de que o veredicto foi correto. Simplesmente queria achar mais provas a fim de que inclusive Tamar Macaulay se persuadisse e o deixasse estar. Pelo bem público.
Ela estava muito quieta, o corpo rígido sob o vestido negro.
—Então quem matou ao Samuel? - perguntou com voz baixa. - E pelo amor de Deus, por quê? Nenhuma outra coisa tem sentido. Ocorreu imediatamente depois de que essa mulher viesse aqui e que ele fosse falar com O'Neil e com o Joshua Fielding sobre as provas. Acredita... acredita que possivelmente foi um deles quem matou Kingsley Blaine e que tinha medo que Samuel soubesse algo... e de que fosse demonstrá-lo?
—É possível - reconheceu Pitt. - Senhora Stafford, lhe ocorre algo que dissesse que possa nos ajudar a averiguar o que sabia? Inclusive o que pretendia fazer; isso ajudaria.
Juniper guardou silêncio por uns instantes, o semblante grave, ensimesmada.
Pitt aguardou.
—Parecia ter a sensação de que era extremamente urgente - disse por fim a mulher. Uma profunda angústia se refletia em seu rosto. - Não teria tornado a ver Devlin O'Neil, alguém tão próximo à família do homem assassinado, e um amigo pessoal, a menos que soubesse que tinha nova informação ou provas. Eu... eu só sei, por sua conduta, que tinha averiguado algo. - Olhou fixamente o inspetor, totalmente concentrada. - É normal que não me comentasse isso. Não teria sido correto, e de qualquer modo eu desconhecia os detalhes. O que sabia era de domínio público. Todo mundo falava disso. Era impossível topar com um amigo ou um conhecido em alguma parte, na ópera ou em um restaurante, sem que saísse a tona na conversa ao cabo de uns minutos. Uma terrível indignação invadia tudo, senhor Pitt. Não foi um crime comum.
—Não. - Pitt pensou no sombrio ar de medo e preconceito que sopraria procedente de Farrier"s Lane, manchado de sangue, e penetraria inclusive nos salões de Londres e nos circunspetos clubes de cavalheiros, estofos de raso, com o tinido do cristal e o aroma da fumaça dos charutos.
—Não foi, asseguro. - Agora havia nela certa petulância, como se pensasse que ele duvidava de sua palavra. - Nunca vi semelhante fúria por um crime; à exceção dos assassinatos do Whitechapel, naturalmente. E mesmo assim, neste havia um componente de blasfêmia que indignou as pessoas de forma distinta. Inclusive pessoas benévolas e pias desejavam vê-lo enforcado.
—Salvo Tamar Macaulay - observou ele.
Juniper fez uma careta de dor.
—A ideia de que ela pudesse ter razão é abominável, não é verdade?
—Sim - concordou Pitt com uma repentina emoção. - Em muitos sentidos, muito pior que o crime original.
Juniper o olhou sem compreender.
—O assassinato de Kingsley Blaine foi o assassinato de um homem - explicou o inspetor com um sorriso amargo-. O assassinato, por assim dizer, de Aaron Godman foi a lenta paixão judiciária provocada pelo medo e ira, e também pelo engano, de uma nação e do que pretende ser o sistema judiciário que pratica. Que existam criminosos é um triste fato da humanidade. Que existam leis que, levadas a limite, infligem um castigo irreparável a um inocente para apaziguar nossos próprios temores constitui uma tragédia de uma ordem muito maior. Todos nós consentimos; todos nós estamos envolvidos.
Juniper estava muito pálida, os olhos afundados, o pescoço em tensão.
—Senhor Pitt, isso é... é simplesmente espantoso! Pobre Samuel. Se era isso o que temia, não é de estranhar que se mostrasse tão alterado.
—Estava alterado?
—Oh, sim, levava algum tempo nervoso por culpa do caso. - Baixou a vista ao bonito tapete. - Como é natural, eu não tinha certeza de se simplesmente temia que a senhorita Macaulay fosse reviver o caso ante a opinião pública e tentasse desprestigiar a lei. Nem que dizer tem que isso lhe teria preocupado sobremaneira. - Olhou Pitt nos olhos. - Amava a lei. Tinha-lhe dedicado a maior parte de sua vida e a reverenciava sobre todas as coisas. Era como uma religião para ele.
O inspetor hesitou. A seguinte ideia que lhe veio à cabeça era difícil de expressar sem ofendê-la.
Ela o olhava de cima abaixo, à espera que falasse, ainda com uma expressão de medo nos olhos.
—Senhora Stafford - começou ele com cuidado - não sei como lhe perguntar... e não desejo ofendê-la, mas... mas é possível que seu marido pretendesse proteger a reputação da lei... ante os olhos das pessoas...? - Se interrompeu.
—Não, senhor Pitt - assegurou ela em voz baixa. - Você não conhecia o Samuel, do contrário não precisaria fazer essa pergunta. Era um homem íntegro. Se tinha provas adicionais que o faziam pensar que talvez Aaron Godman não fosse culpado, teria feito isso público sem lhe importar o perigo que isso supusesse para a reputação da lei, ou do advogado concreto ou do juiz que ditou sentença, ou de si mesmo inclusive. Mas se tinha tais provas, com certeza já as teria dado a conhecer. Acredito que possivelmente só suspeitava de algo, e agora que se foi... talvez nunca cheguemos a saber do que se tratava.
—A não ser que voltemos sobre seus passos - respondeu o inspetor. - E se for necessário, isso é o que farei.
—Obrigado, senhor Pitt. - obrigou-se a sorrir. - foi muito considerado, e tenho fé em que levará todo este assunto da melhor maneira possível.
—Certamente o tentarei - afirmou o inspetor, consciente já de que suas averiguações bem poderiam afastar-se do que ela desejava ou previa. Não seria simples inteirar-se do que tinha descoberto Samuel Stafford tanto tempo depois do acontecimento que tinha causado a alguém semelhante terror para recorrer a sua vez ao assassinato. Contemplou seu atraente rosto, de sobrancelhas escuras e feições bem proporcionadas, e percebeu a calma em seus olhos pela primeira vez desde que a vira no camarote do teatro olhando ao cenário, antes que adoecesse Stafford. Sentiu-se culpado, pois ela tinha depositado nele uma confiança a qual duvidava fosse capaz de fazer honra.
Despediu-se com pressa, já que se sentia desconfortável, e depois de uma enérgica caminhada tomou uma carruagem de volta zona oeste, até o escritório de Adolphus Pryce, advogado da Coroa. Achava-se em um dos principais colégios de advogados, perto do Old Bailey e o lugar, com as paredes revestidas em carvalho, fervilhava de estagiários e ajudantes com os dedos manchados de tinta e expressão grave. Um cavalheiro de certa idade, de longas costeletas brancas e ar solene, saiu a seu encontro olhando-o por cima de seus óculos dourados.
—Me diga o que podemos fazer por você? - perguntou. - Senhor...?
—Pitt, inspetor Thomas Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street. Encontro-me aqui em relação com a morte do juiz Stafford na passada noite.
—Uma notícia terrível. - O empregado meneou a cabeça. - Muito repentina, para falar a verdade. Nem sequer sabíamos que o pobre homem estava doente. Que comoção! E no teatro... Não é o lugar mais recomendável para abandonar este vale de lágrimas, não senhor, não. Não obstante, o que não se pode mudar tem que suportar da melhor maneira possível. Lamentável. Mas... - Tossiu secamente. - Em que modo isso afeta a este escritório? O senhor Stafford era juiz do tribunal de apelação, não advogado. E na atualidade não temos com ele nenhum caso, disso estou bastante certo; é meu encargo sabê-lo.
O inspetor mudou de enfoque.
—-Entretanto, tiveram-no no passado, não?
O homem ergueu suas encanecidas sobrancelhas.
—Certamente. Levamos casos ante a maioria dos juízes da magistratura, tanto da penitenciária como do tribunal de apelação. Suponho que igual a outros escritórios creditados de Londres.
—Estava pensando no caso de Aaron Godman.
De repente se fez o silêncio. Uma dúzia de penas deixou de mover-se e um ajudante com um livro maior nas mãos ficou imóvel.
—Aaron Godman? - O empregado de escritório repetiu o nome. – Aaron Godman! Ah, isso foi há algum tempo, ao menos cinco anos. Mas você está certo, é claro. O senhor Pryce se encarregou da acusação e obteve uma condenação. Foi ao tribunal de apelação, acredito que ante o senhor Stafford, entre outros. Em geral há cinco juízes na apelação, mas com certeza você já sabe.
O ajudante do livro maior reatou seu caminho e as penas começaram a mover- se de novo, mas se notava que a sala permanecia à escuta, embora ninguém se virasse ou olhasse Pitt.
—Por acaso se lembra de quem eram? - perguntou.
—Por acaso não, por memória - respondeu o homem. - Além do próprio senhor Stafford, os senhores Ignatius Livesey, Morley Sadler, Edgar Boothroyd e Granville Oswyn. Sim, assim é. Acredito que o senhor Sadler abandonou a magistratura, e me inteirei que o senhor Boothroyd passou à Sala da Chancelaria. Com certeza o caso já não tem interesse. Se mal não recordar, desprezou-se a apelação. Realmente não havia motivos para que voltasse a abrir o caso, nenhum. Não senhor, não. O julgamento se levou a cabo com absoluta correção e não cabe dúvida de que não havia provas adicionais.
—Está falando da apelação?
—Naturalmente. Do que se não?
—Ouvi que o senhor Stafford continuava interessado no assunto e havia tornado a entrevistar-se com algumas das principais testemunhas nos últimos dias.
De novo a escritura cessou e se produziu um silêncio espinhoso.
—Seriamente? Não sabia. - O empregado parecia bastante desconcertado. - Não consigo compreender o que significa isso. Entretanto, não concerne a este escritório, senhor... não é... senhor Pitt, não é assim? Isso é... senhor Pitt. Nós levamos a acusação, não a defesa. Disso se encarregou, se mal não recordar, o senhor Barton James, do Finnegan, James e Mulhare, no Fetter Lane. - Franziu o sobrecenho-. De todo modo é curioso que o senhor Stafford estivesse investigando este assunto. Se na verdade saíssem à luz novas provas, atreveria-me a pensar que deveria fazer-se responsável delas o senhor James. Se é que são relevantes.
—A senhorita Macaulay, a irmã do Godman, apelou pessoalmente ao senhor Stafford - explicou Pitt.
—Certo, que lástima. Uma jovem muito tenaz, totalmente equivocada. – O homem meneou a cabeça. - Lamentável. Atriz, acredito. Muito lamentável. Bem, senhor Pitt, o que podemos fazer por você?
—Poderia ver o senhor Pryce, se estiver disponível? Achava-se no teatro ontem à noite e o senhor Stafford também o visitou à tarde. Talvez possa nos dar alguma informação que jogue mais luz sobre a morte do juiz.
—Certamente. Era amigo pessoal do senhor e da senhora Stafford; é possível que o senhor Stafford lhe confiasse suas preocupações por sua saúde. Neste momento está com um cliente, mas não acredito que tarde muito. Se tiver a bondade de tomar assento, notificarei-lhe que está aqui. - E dizendo isso fez uma ligeira reverência, um movimento rígido, como um corvo negro que estivesse a ponto de bicar algo e mudasse de opinião.
Pitt o viu afastar-se entre as escrivaninhas, dossiês, tamboretes de altos espaldares nos quais jovens aplicados se inclinavam sobre livros, rabiscando diligentemente. Nenhum ergueu a vista quando ele passou.
O empregado demorou mais de um quarto de hora para voltar para lhe informar de que o senhor Pryce já estava livre e conduzi-lo até o escritório, profusamente ornado, onde cômodas e estantes de carvalho esculpidas albergavam uma biblioteca de livros de leis, e o tênue brilho da madeira encerada refletia a calidez do fogo. Duas janelas providas de pesadas cortinas apareciam em um pequeno pátio sombreado. A única árvore luzia já as brilhantes cores outonais e a erva pedia a gritos uma ceifa.
A luz do sol incidia em uma escrivaninha muito formal, com incrustações de couro, provida de tinteiros de ônix e cristal, e um suporte para penas, selos, abridor de cartas, velas e areia fina. Um expediente, atado com um laço, descansava ainda em uma dos reluzentes cantos da mesa.
Adolphus Pryce parecia nervoso. Vestia-se na última moda, com paletó negro, calças de listas e colete de corte impecável. Possuía uma elegância natural e um porte que faziam parecer suas roupas ainda mais caras do que provavelmente eram.
—Boa tarde, senhor Pitt - saudou com uma ameaça de sorriso que, entretanto, extinguiu-se em seus lábios quase antes de nascer. Tinha aspecto de ter dormido pouco. - Withers me disse que veio por causa do pobre Stafford. Não estou certo de poder lhe contar nada mais, mas naturalmente terei muito gosto em tentá-lo. Rogo que se sente. -Assinalou com a mão a grande poltrona de couro verde próxima ao Pitt.
Este aceitou, reclinou-se e cruzou as pernas como se tivesse intenção de ficar algum tempo. Viu que a preocupação se intensificava no rosto do Pryce quando também ele se sentou.
—O senhor Stafford veio vê-lo, ontem - começou o inspetor, sem estar certo de qual era o melhor modo de obter a informação que queria, sem estar seguro, para falar a verdade, de se Pryce a tinha. - Pode me dizer o motivo? Sou consciente de que não pode violar o direito à confidencialidade de um cliente, mas o próprio senhor Stafford morreu, e o caso Godman é de domínio público.
—É claro. - Pryce se recostou um tanto no assento e juntou a ponta dos dedos em atitude pensativa. - Para falar a verdade veio só pelo caso Godman. Nem dizer que trocamos as cortesias de praxe. - Voltou a sentir-se desconfortável por um instante. - Nos... conhecemos há algum tempo. Mas o motivo de sua visita foi sua preocupação... melhor dizendo, sua intenção de atuar com relação a esse caso.
—Atuar? Disse-lhe isso?
—Sim... . Pryce olhou-o fixamente. Era um homem de considerável encanto e aprumo, traços aristocráticos e a suficiente personalidade para perdurar de forma inconfundível na memória.
—Voltar a estudar a apelação? - insistiu Pitt. - Apoiando-se no que?
—Ah, não o mencionou, ao menos não de forma explícita.
—Por que veio a você, senhor Pryce? O que queria que fizesse?
—Nada. Nada absolutamente. - Pryce deu ombros ligeiramente. - Em realidade se tratava de uma amostra de cortesia, já que fui o promotor na época, e suponho que talvez se perguntasse se eu mesmo albergava alguma dúvida.
—Se tinha a intenção de voltar a estudar a apelação, senhor Pryce, ou tinha achado alguma infração da devida diligência no julgamento original ou novas provas, não é certo? Do contrário não haveria motivo para voltar a trazer a luz este assunto.
—Certo. Muito certo. Asseguro-lhe que o julgamento se levou a cabo com absoluta correção. O juiz foi o senhor Thelonius Quade, um homem da máxima integridade e talento mais que suficiente para não cometer um desafortunado engano. – Suspirou - portanto, a conclusão inevitável parece ser que o senhor Stafford tinha achado novas provas. Sim me deu a entender que tinha que ver com o testemunho médico do primeiro julgamento, mas não me disse do que se tratava. Deste modo insinuou que tinha a sensação de que havia algo mais sem resolver, mas não deu mais explicações.
—As provas da autópsia do Blaine?
—Suponho. - Pryce ergueu exageradamente as sobrancelhas. - Me ocorre que é possível que se referisse a algum reconhecimento do Godman, embora ignoro qual poderia ser a relação.
Pitt se surpreendeu.
—Havia provas médicas de Godman?
—Oh, algo muito inquietante. Quando foi ao julgamento se achava em um estado lamentável. Apresentava alguns machucados e lacerações em extremo desagradáveis no rosto e nos ombros, e uma grave claudicação.
—Uma briga? - Pitt estava aflito. Ninguém tinha falado de defesa própria; a ele nem sequer lhe tinha ocorrido. - Não o mencionou Barton James durante o julgamento?
—Não. A alegação da defesa foi que não era culpado, que não o fez Godman, mas outra pessoa ou pessoas desconhecidas. Nem sequer se fez a mínima insinuação de que Blaine e Godman brigassem e o primeiro morrera em conseqüência da briga. - A repugnância apareceu em seu rosto. - Para falar a verdade, seria difícil justificar que Godman cravejasse ao pobre desgraçado à porta das cavalariças. É um ato macabro... espantoso. Acredito que qualquer jurado do país o acharia indefensável, independentemente da provocação, fosse do tipo que fosse.
—É isso o que você teria feito se estivesse na defesa em lugar de na acusação, senhor Pryce? - perguntou o inspetor. - Teria afirmado que não foi seu cliente e silenciado sobre a briga?
Pryce mordeu o lábio superior, pensativo.
—É difícil de dizer, senhor Pitt. Acredito que, em geral, teria recorrido à defesa própria; teria tido mais possibilidades que se declarando não culpado. Godman foi visto na zona em torno da hora do assassinato. Uma florista o identificou e ele não negou que se encontrasse ali, limitou-se a dizer que em realidade tinha sido meia hora antes. Outros inclusive o viram sair de Farrier"s Lane momentos depois do assassinato, e com sangue na roupa.
—Entretanto o senhor Barton James optou por negá-lo rotundamente! - Pitt não dava crédito. Era incompreensível. - Desejava o senhor Stafford reabrir o caso apoiando-se na incompetência da defesa? Não cabe dúvida de que agora dificilmente se pode retificar. As únicas pessoas que poderiam nos dizer se produziu uma briga, e o que aconteceu, são Blaine e Godman, e ambos estão mortos.
—Com efeito - reconheceu Pryce com tristeza. - Temo que são meras conjeturas e não me ocorre modo algum de que possa ir mais adiante.
—Entretanto, afirma que o senhor Stafford parecia pensar que tinha sentido perseverar - indicou Pitt. - Como certo, por que se supõe que Godman matou Blaine? Que motivo tinha?
—Oh, sórdido. - Pryce franziu levemente o sobrecenho. - Era judeu, já sabe, como também o é sua irmã. Blaine tinha uma aventura com ela, ou ao menos isso se disse. Não cabe dúvida de que a cortejava com certo empenho, e nessa mesma noite lhe tinha dado um colar de considerável valor que tinha pertencido a sua sogra.
Seu rosto se escureceu. - Uma estupidez, de péssimo gosto. Bem, a Godman ofendiam sobremaneira as atenções do Blaine por sua irmã, consciente como era de que não tinha a menor intenção de casar-se com ela... Além do fato de que ela era judia, e atriz, o próprio Blaine já estava casado.
—E Godman chegou a esse extremo em defesa de sua irmã? - Pitt estava surpreso. Conhecendo o Tamar Macaulay, era-lhe difícil imaginá-la como uma vítima romântica, necessitada do amparo de seu irmão. Mas, pensando bem, o amor pode pôr em ridículo inclusive às pessoas mais firmes, e a fortaleza de caráter ou a determinação não supõem amparo algum; de fato, as vezes o mais poderoso pode ser o mais vulnerável.
—Assim é. - Pryce assentiu com a cabeça. - Foi um assunto de honra familiar e também de honra religiosa e racial. Assim como nos horrorizaria que uma de nossas filhas mantivesse uma relação com um judeu, parece ser que lhes espanta que um dos seus se relacione com alguém não judeu. - acomodou-se um pouco na cadeira. - Com um pouco de imaginação suponho que poderíamos compreender seu ponto de vista. Seja como for, essa é a razão pela qual Godman matou Blaine; e com certeza não seria o primeiro em apunhalar ao sedutor de sua irmã.
—Não - concedeu o inspetor. - Certamente que não. Entretanto, isso não se utilizou alguma vez em sua defesa, não é assim?
Pryce sorriu.
—Duvido que a sociedade tivesse aceito a virtude da senhorita Macaulay como motivo suficiente para justificar o assassinato, senhor Pitt. Temo que tivesse sido objeto de graça fora do tribunal.
—Tão manchada está sua reputação?
—Absolutamente. É a reputação das atrizes em geral. E não acredito que um jurado não judeu contemplasse com benevolência a desculpa de que ele não queria que ela aceitasse os favores de um amante não judeu porque isso poluiria a pureza de seu sangue. - Em seu rosto se desenhou uma expressão desanimada-. Se tiver que crucificar a todo que cortejou a um feijão atraente, necessitaríamos mais cruzes das que há em Roma... e nossos bosques se veriam ameaçados!
—Sim. - Pitt meteu as mãos nos bolsos. - Um caso extremamente desagradável, afinal de contas, e que não goza absolutamente da compaixão alheia. Surpreende-me que a senhorita Macaulay se salvasse da fogueira e ainda siga tendo público no teatro.
Pryce deu de ombros.
—Acredito que o passou mal durante um tempo, mas quando enforcaram Godman e ninguém afirmou que ela tivesse algo a ver, as pessoas ficaram satisfeitas e decidiram perdoá-la. - Estendeu a mão distraidamente e seus longos dedos acariciaram a suave superfície do tabelionato de jaspe. - E contra toda lógica, eram muitos os que admiravam em segredo a lealdade por seu irmão, mesmo que ao mesmo tempo desejassem pendurá-lo na forca mais alta do país. Se lhe tivesse dado as costas, a teriam tachado de traidora. Parecia que ela realmente acreditava na inocência de seu irmão, e as pessoas optaram por aceitar que a senhorita Macaulay era inocente de tudo salvo de apaixonar-se por um homem que nunca se teria casado com ela.
—Perdeu seu amante e a seu irmão em um ato - sentenciou Pitt, carrancudo.
—Assim parece - concordou Pryce.
—Mas você disse que aceitou uma valiosa jóia dele, uma relíquia de família.
—Ela sustenta que a colocou aquela noite, no jantar, e que logo insistiu em que ele ficasse.
—E ficou? - perguntou Pitt.
Pryce pareceu surpreso.
—Não tenho nem ideia. Não a levava consigo. Possivelmente a senhorita Macaulay se desfizera dela para dar credibilidade a sua história. Que eu saiba, não se tornou a saber nada desse colar depois. - Em seu rosto apareceu um vislumbre de esperança. - Possivelmente Stafford averiguasse algo a respeito. Teria bastante mais sentido que o de umas provas puramente médicas de Godman que nunca poderão verificar-se. Para falar a verdade, é uma idéia bastante plausível.
—Quem estava a par sobre o colar? - perguntou o inspetor, cuja mente arranjava possibilidades, novos fios dos quais Stafford pudesse ter puxado até aproximar-se de uma verdade oculta até então e assustar a alguém tanto para cometer um assassinato. - Não pôde transcorrer muito tempo desde que o deu até que Blaine abandonou o teatro.
—Não, é certo - corroborou Pryce imediatamente. - Assim o testemunhou a ajudante de camarim da senhorita Macaulay, Primrose Walker. Ela viu como Blaine o entregava e lhe ouviu lhe dizer que levava anos em sua família; de fato, tinha pertencido a sua sogra. A senhorita Macaulay afirma que esse é o motivo pelo que o devolveu, mas, para sua desgraça, não há provas que o respaldem. A menos, é claro, que Stafford achasse algo.
—Não o haveria dito a você?
—Não tinha por que. Eu era o promotor, senhor Pitt, não o defensor. Bem poderia ter pensado em dizer ao Barton James logo que estivesse seguro dos fatos. Para falar a verdade, sim mencionou que tinha a intenção de ir ver James a seguir. - Olhou a seu interlocutor com gravidade, mas seu rosto refletia um crescente entusiasmo. Isso explicaria muitas coisas que do contrário seriam muito estranhas. - Calou, como se temesse haver dito muito, e esperou que Pitt falasse.
—Não percebeu a polícia a ausência do colar na época? - inquiriu o inspetor, que continuava dando voltas aos fatos na cabeça.
—Não, não que eu recorde - respondeu Pryce lentamente. – Talvez percebesse, mas não apareceu entre as provas durante o julgamento. A senhorita Macaulay afirmou que o havia devolvido ao Blaine e acredito que simplesmente não acreditaram, achando que tinha ficado (era bastante valioso), ou que o havia dito para ajudar na defesa de seu irmão.
—Serviu de algo?
Pryce deu de ombros com tristeza.
—Absolutamente. Como lhe disse, não acreditaram. Talvez lhe devamos uma desculpa. - Seu rosto refletia remorso, inclusive certa dor. - Temo que na época insinuei que era de duvidosa reputação nesse aspecto e que diria algo para tentar semear a dúvida sobre a culpa de seu irmão. Dadas as circunstâncias, não é uma hipótese descabelada, mas possivelmente não seja certa depois de tudo. - Torceu o gesto. - É uma idéia muito desagradável, senhor Pitt, pensar que alguém possa haver-se servido do próprio talento para levar a forca a um homem inocente. O argumento de que assim é este trabalho nem sempre é satisfatório.
Pitt sentiu por ele uma instintiva compaixão, e lhe vieram à memória com absoluta clareza lembranças próprias muito ruins. Gostava de Pryce, e, entretanto havia algo que o inquietava algo apenas perceptível, muito amorfo para nomear.
—Entendo - disse. - Eu enfrento o mesmo.
—Claro, claro. - concordou Pryce. - Tomara pudesse lhe dizer mais, mas isso é tudo que sei. Duvido que o senhor Stafford soubesse muito mais, pois do contrário o teria mencionado. -interrompeu-se. Uma sombra em seus olhos cobria a natural serenidade de seu semblante. - Eu... é... sinto muito. Era um amigo íntimo.
—Compreendo seus sentimentos. - Pitt falou porque a situação parecia requerê-lo. Não estava acostumado a sentir-se incômodo ou com falta de palavras. Enfrentou tantas vezes às perdas de outros que, embora nunca tivessem deixado de lhe importar, tinha aprendido a saber o que dizer. Havia algo no Pryce que o confundia, assim como havia, pensando bem, em Juniper Stafford. Possivelmente só fosse o natural afã de dar com a solução o antes possível, de evitar o escândalo, as conjeturas desagradáveis ou estúpidas, de modo que as pessoas pudessem recordar ao Stafford com honra e afeto, e o horrível fato do assassinato pudesse desvanecer-se em alguma outra coisa, uma tragédia da que se fizesse responsável a lei.
—Obrigado por seu tempo, senhor Pryce. - O inspetor ficou em pé. - foi muito generoso e me deu muito em que pensar. Não cabe dúvida de que o senhor Stafford teria tido motivo para seguir a pista a certos aspectos do caso Blaine/Godman e que há provas que indicam que isso é o que pretendia. Se o informe do legista assim o requerer, eu mesmo os analisarei.
Pryce também se levantou e lhe estendeu a mão.
—Não há de que. Por favor, me faça saber se lhe posso ser de mais ajuda, se houver algo mais que precise saber do caso.
—Naturalmente. Obrigado.
Pryce o acompanhou até a porta, abriu-a e o obediente empregado de escritório o conduziu até a rua.
Não obstante, quando Pitt visitou o juiz Livesey em seu escritório a primeira hora da tarde, topou-se com uma resposta completamente distinta. Livesey o recebeu de boa vontade; para falar a verdade parecia estar esperando-o. Seus aposentos eram espaçosos, o sol outonal se refletia no lustroso mobiliário com incrustações, uma escrivaninha de deliciosa marchetaria de madeiras tropicais, poltronas de couro vinho, dois vasos com crisântemos. Uma estante baixa segurava dois magníficos bronzes, e sobre o suporte da lareira descansava um relógio engastado em mármore.
—Temo que tudo isso não é mais que um disparate - comentou Livesey com um sorriso em resposta às primeiras observações do Pitt sobre o caso. Reclinou-se em sua poltrona e o olhou com ar tolerante. - Stafford era um homem inteligente e profundamente responsável. Um homem versado em leis, que compreendia seu dever. Um juiz, em particular um juiz do tribunal de apelação, desempenha um papel de especial importância, senhor Pitt. - Tinha uma expressão de profunda, repousada segurança. - Somos o último recurso com que conta o sentenciado para obter clemência ou a reparação de uma sentença excessivamente severa ou errônea. Do mesmo modo, somos a voz final do povo para selar um veredicto para sempre jamais. Trata-se de uma responsabilidade monumental e não podemos nos permitir um engano. Stafford era consciente disso, como o somos todos nós. - Olhou Pitt com um crescente sorriso nos lábios. - Não sei por que as pessoas dizem que sem a lei não seríamos muito melhores que os selvagens. Seríamos muito piores. Os selvagens têm leis, senhor Pitt, leis em geral muito estritas. Até eles entendem que não há sociedade alguma que possa funcionar sem elas. Sem lei reina a anarquia, o diabo arrasa a terra, aniquila-nos um a um, ao fraco e ao forte por igual. -Apertou os lábios. - Todos nós somos vulneráveis às vezes. Não se trata só de justiça; no fim de contas se trata da própria sobrevivência. - Seus olhos serenos não se afastavam do inspetor. - Sem lei, quem protegerá à mãe e ao filho, a força da amanhã? Quem protegerá os gênios, o inventor, o artista que enriquece ao mundo, mas que carece do poder econômico ou da capacidade física para defender-se? Quem protegerá aos sábios que envelheceram e poderiam sucumbir ante os poderosos e os néscios? E quem protegerá aos fortes de si mesmos?
—Passei toda minha vida adulta ao serviço da lei, senhor Livesey - afirmou Pitt lhe sustentando o olhar. - Não é preciso que me convença de sua importância. Tampouco duvido do serviço que lhe prestou o senhor Stafford.
—Sinto muito - se desculpou Livesey. - Não me expliquei bem. Não está familiarizado com o caso Godman, que foi mais desagradável que de costume. Se o conhecesse tanto como eu, também estaria seguro de que recebeu um tratamento justo e correto na época. - Deslocou um tanto seu imponente peso na poltrona. - Não houve vício algum no veredicto, e Stafford sabia, assim como todos nós. Achava-se alterado porque Tamar Macaulay não estava disposta a deixar o assunto. - Seu rosto se escureceu. - Uma mulher muito imprudente, por desgraça. Obcecada com a ideia de que seu irmão não era culpado, quando todos outros tinham claro que o era. De fato, não havia nenhum outro suspeito importante.
—Nem sequer seu amigo...? - Pitt se viu obrigado a fazer uma pausa para recordar seu nome. - O senhor O'Neil? Não brigou com o Blaine aquela noite?
—Devlin O'Neil? - Livesey arregalou os olhos; eram de um azul claro pouco comum em um homem de sua idade-. Não cabe dúvida de que tiveram discrepâncias, mas "briga" é uma palavra excessiva. Tiveram suas diferenças com respeito a quem tinha ganhado ou perdido uma aposta corriqueira. -Moveu sua pesada, poderosa mão rechaçando a idéia-. Só se tratava de umas poucas libras, uma quantia que qualquer deles podia permitir-se de sobra. Não é algo pelo qual um homem assassina a seu amigo.
—Como sabe? - inquiriu Pitt, igualmente afável.
—Eu era um dos juízes do tribunal de apelação - afirmou Livesey franzindo ligeiramente o sobrecenho. - Devo dizer que estudei atentamente as provas do julgamento.
A pergunta do inspetor lhe tinha deixado perplexo, tão óbvia parecia a resposta.
Pitt sorriu, paciente.
—Faço-me claro, senhor Livesey. Queria saber de quem é o testemunho, de O'Neil?
—Naturalmente.
—Isso não prova grande coisa.
Uma sombra de escuridão e surpresa atravessou o rosto do Livesey. Obviamente não o tinha exposto dessa forma.
—Não havia razão para duvidar dele - assegurou com certa irritação. - Suas diferenças de opinião foram presenciadas por outras pessoas que declararam ante a polícia quando investigava o assassinato. Pediu-se a O'Neil que desse uma explicação, o que fez para satisfação de todo o mundo, salvo ao seu parecer.
—Ou possivelmente do senhor Stafford; queria voltar a ver O’Neil.
—Isso não significa que duvidasse dele, senhor Pitt. - encolheu um tanto os ombros. - Como já lhe disse, Stafford não pretendia em modo algum reabrir o caso Blaine/Godman. Não há motivo para questionar nenhum aspecto do mesmo. O julgamento se desenvolveu de forma exemplar e não existe nenhuma prova nova. - Sorriu ao mesmo tempo que tamborilava com os dedos na capa de couro da escrivaninha. - Stafford não contava com provas novas. Ele mesmo falou comigo ontem. Tinha a intenção de voltar a demonstrar a culpa do Godman, mais à frente inclusive da capacidade do Tamar Macaulay para pô-la em tecido de julgamento. – Olhou Pitt fixamente -. Pelo bem de todos, inclusive o seu próprio, a senhorita Macaulay deveria aceitar de uma vez por todas a verdade e permitir-se a si mesma concentrar sua atenção em sua própria vida, sua profissão ou o que queira que considere valioso. Quanto ao resto de nós, deveríamos deixar de duvidar da lei e de questionar sua eficácia ou sua integridade.
—Lhe disse isso? - perguntou Pitt, invadido pela incerteza, sopesando o que haviam dito Juniper Stafford e Pryce. - Ontem mesmo?
—Não exatamente ontem - esclareceu Livesey com paciência. - Com o passar do tempo, e ontem não mudou nada. Reafirmou-o, tanto pelo que disse como pelo que deixou de dizer. Não tinha trocado de opinião e não cabe dúvida de que não tinha descoberto nada de novo.
—Entendo. - Pitt falou só para demonstrar que tinha ouvido. Em realidade não entendia nada. Pryce se mostrava tão seguro de que Stafford tinha a intenção de voltar a abrir o caso... e por que ia estar interessado em que Pitt acreditasse se não fosse verdade? Pryce tinha levado a acusação e parecia sentir-se em certo modo responsável pela condenação. Não quereria que agora fosse revogada. Entretanto, se Stafford não pretendia reabrir o caso, por que alguém teria que matá-lo?
Possivelmente não o tinham assassinado e se tratava de alguma estranha enfermidade com sintomas similares aos do envenenamento que nem ele mesmo conhecia ou tinha decidido ocultar a sua esposa, talvez sem ser consciente de sua gravidade.
Livesey parecia estar lhe lendo o pensamento. Seu rosto se tornou grave, todo rastro de impaciência se desvaneceu, como se tivesse sido corriqueiro, algo momentâneo e carente de importância. Agora tinha voltado à realidade, uma realidade que o preocupava.
—Se não ia reabrir o caso, por que teriam que matá-lo? - inquiriu Livesey com voz baixa. - Uma pergunta justificada, senhor Pitt. Não tinha previsto reabrir o caso, e inclusive se tivesse pensado fazê-lo, não há ninguém que tenha motivos para temê-lo, salvo a própria Tamar Macaulay, já que isso teria tornado a despertar o clamor popular, para desonra de seu irmão, e as pessoas voltariam a recordar todo o assunto. Não é possível que ela queira isso quando não cabe esperar uma desculpa. – Sorriu sem humor, sem vontade, tão só consciente da perda e das lágrimas derramadas. - Acredito que a pobre mulher esteve tão imersa em sua própria cruzada durante todos estes anos que esta cobrou seu próprio ímpeto, à margem de toda realidade. Deixou que tivesse presente a verdade do caso – prosseguiu - e já não pensa nas provas, só no desejo de inocentar seu irmão. O amor, inclusive o amor familiar, pode ser cego. É fácil que vejamos só aquilo que queremos ver, e com a pessoa ausente, como acontece com os mortos, não há nada que nos recorde a realidade. - Apertou os lábios. - A visão consome. Converteu-se em uma religião para ela, tão importante que não pode deixar estar. Embriagou-a. ocupou nela o lugar do marido e do filho. Realmente é muito trágico.
Pitt já tinha visto essa obsessão. Não era impossível acreditar nisso. Entretanto, não respondia à pergunta de quem tinha assassinado ao Stafford, se é que o tinham assassinado.
—Acredita que Stafford lhe disse tudo isso? - inquiriu, olhando Livesey.
—E que ela o matou por havê-la decepcionado? - Livesey mordeu o lábio, com o sobrecenho franzido. - Um excesso de credulidade, sejamos francos. Está obcecada, certo, mas não acredito que seu desequilíbrio chegue até tal ponto. Teria que demonstrá-lo sem lugar a dúvidas para que eu o aceitasse.
—Então o que? - perguntou Pitt. - A senhora Stafford disse que atualmente não estava imerso em nenhuma outra apelação. Vingança por algum velho assunto?
—De um juiz do tribunal de apelação? - Livesey deu de ombros - Pouco provável... muito pouco provável. Ouvi condenados ameaçar a testemunhas, ao agente de polícia que os prendeu, ao promotor ou a seu próprio advogado defensor se acreditarem que é incompetente, inclusive ao juiz que os condenou, e algumas vezes ao jurado, mas nunca aos juízes do tribunal de apelação. Em qualquer caso, há ao menos cinco. Parece inverossímil, senhor Pitt.
—Então quem?
O rosto do Livesey se escureceu.
—Lamento dizer isto, mas não tenho alternativa. Tudo indica que fica pouco, salvo sua vida privada. A maior parte dos assassinatos se comete durante um roubo ou são domésticos, como sem dúvida saberá.
O inspetor sabia.
—Que motivo ia ter a senhora Stafford para desejar a morte de seu marido? - perguntou sem afastar a vista do rosto do Livesey.
Este ergueu o olhar da escrivaninha e exalou um profundo suspiro.
—Desagrada-me sobremaneira ter que repetir isto. Dizer algo assim de um colega ou de sua família é vil e indigno. O caso é que a relação da senhora Stafford com o senhor Adolphus Pryce é muito mais estreita do que poderia parecer à primeira vista.
—Indecorosa? - Por um instante Pitt ficou surpreso, logo lhe vieram à memória pequenas lembranças: um olhar, um repentino rubor, um anseio, um momento embaraço, acanhamento sem uma causa aparente.
—Lamento dizê-lo... mas sim - respondeu Livesey, o olhar cravado no rosto do Pitt. - Não pensava que fosse mais que uma aventura temerária, um desejo passageiro que acabaria apagando-se, como costuma acontecer nessa classe de paixões. Mas possivelmente seja mais que isso. Não o invejo, senhor Pitt, por mim temo que possivelmente se veja obrigado a investigar essa possibilidade.
Por desagradável que fosse, respondia muitas perguntas.
Livesey estava observando-o.
—Vejo que você também pensou nisso – acrescentou - Se Adolphus Pryce tratou de convencê-lo de que Stafford ia reabrir o caso Blaine/Godman, bem poderia saber você por que. Nem tem de dizer que tanto ele como a senhora Stafford prefeririam que você acreditasse que foi uma parte culpada e temerosa daquele caso que cometeu o assassinato do marido, em lugar de que os investigue a eles.
—Naturalmente - Pitt experimentou uma opressão irracional. Era absurdo. Sabia que o que Livesey havia dito era certo. Agora que se dava conta, sabia que tinha atuado à ligeira ao não ter percebido os pequenos sinais antes. Ficou em pé e jogou para trás a cadeira - Muito obrigado por me dedicar seu tempo esta tarde, senhor Livesey.
—Não há de que - Livesey também se levantou - É um assunto muito grave e garanto que lhe proporcionarei toda a ajuda que me seja possível. Não tem mais que me dizer.
Dito isso, Pitt se desculpou e partiu. Caminhou devagar, com a mente em funcionamento. Caía a tarde, o sol estava baixo atrás dos telhados das casas e nas ruas úmidas se levantava a neblina, a fumaça tingia de cinza a palidez do céu, seu cheiro rançoso se espalhava ao avivarem as pessoas seus fogos para fazer frente ao frio gelado da noite.
Talvez o legista tivesse já os resultados da autópsia. Ou ao menos talvez soubesse se havia veneno no cantil. Todo o caso podia desvanecer-se, um julgamento apressado, um temor não materializado. Avivou o passo e percorreu a grandes passadas a rua até a via principal para achar uma carruagem.
A luz continuava acesa no escritório do legista, e quando Pitt bateu na porta o convidaram a entrar.
Sutherland estava em mangas de camisa, o cabelo encrespado por onde passara os dedos. Tinha um lápis detrás de cada orelha e outro na mão, o extremo mordiscado e estilhaçado. Levantou a vista dos papéis que estava olhando e observou Pitt com vivo interesse.
—Ópio - disse sem mais - O cantil estava cheio. Mais que suficiente para matar a quatro homens, quanto mais a um.
—É o que acabou com o Stafford? - perguntou Pitt.
—Sim, temo que sim. Tinha razão, envenenamento por ópio. Facilmente reconhecível se a gente souber o que está procurando, e você me disse isso. Repugnante.
—Poderia ter sido acidental, que pretendesse simplesmente...?
—Não - disse Sutherland enfaticamente. - Ninguém toma ópio com uísque desse modo. O normal é fumá-lo. E qualquer um que tomasse regularmente saberia de sobra que uma dose assim seria mortal. Não, senhor Pitt, pretendia ser exatamente o que foi: letal. Trata-se de um assassinato, não cabe dúvida.
Pitt não disse nada. Era o que se temia, e, entretanto uma parte dele ainda alentava a esperança de que não fosse assim. Agora era concludente. O juiz Samuel Stafford tinha sido assassinado... e ao que parecia não pelo caso Blaine/Godman. Tinham sido Juniper Stafford e Adolphus Pryce? Um deles ou os dois? Assim simplesmente horrível?
—Obrigado - disse ao Sutherland.
—Porei-o tudo por escrito - afirmou este enrugando a testa - e o enviarei à delegacia de polícia.
—Obrigado - repetiu Pitt, percebendo o olhar de triste compreensão de Sutherland - boa noite.
—Boa noite - Sutherland pegou o lápis e continuou rabiscando o papel que tinha ante si.
Na manhã depois de assistir ao teatro, Charlotte saiu à rua bastante cedo e durante o resto da jornada se manteve ocupada em afazeres domésticos, já que sua criada Gracie tinha a tarde livre. Portanto, foi no dia seguinte, uma vez que Pitt já sabia que Stafford tinha morrido envenenado com ópio, que se entregou à laboriosa tarefa de preparar um saboroso bolo de fruta e teve a oportunidade de contar a Gracie o que tinha ocorrido.
O primeiro passo consistia em preparar a fruta em si. Tinha que enfarinhar as uvas passas e soltá-las para impedir que se condensassem. Isso era o que Charlotte fazia no centro da impoluta mesa da cozinha enquanto Gracie retirava todos os objetos do aparador, limpava as estantes e os pratos, e lustrava as caçarolas. Estava há já vários anos ao serviço do Charlotte e estava a ponto de completar dezessete, mas apesar de todos os esforços de Charlotte continuava parecendo tão pequena e desamparada como quando chegou. Entretanto, seu comportamento tinha sofrido uma enorme transformação. Tinha mais confiança em si mesma que qualquer outra criada da rua, com bastante probabilidade de meio Bloomsbury. Não só trabalhava para um detetive, o melhor de toda a polícia de Londres, mas de fato tinha ajudado em um caso. Tinha vivido aventuras e não aceitava uma resposta impertinente de nenhum mensageiro ou lojista, fossem quem fosse.
Encarapitou-se ao aparador a risco de perder a vida, um pano úmido em uma mão e uma sopeira de porcelana na outra, o rosto concentrado enquanto se virava lentamente e depositava na mesa a sopeira antes de limpar a prateleira superior, primeiro com um lado do trapo, depois com o outro, contemplar a sujeira satisfeita e voltar a passá-lo uma vez mais.
Charlotte estava inclinada sobre a fruta, e seus dedos exploravam os compactos montinhos de passas e os obrigava a separar-se.
—Era boa a peça, senhora? - interessou-se Gracie com seu peculiar acento de sua precária posição.
—Não sei - respondeu Charlotte com franqueza - Para ser sincera, mal me inteirei. Mas o ator principal era muito atraente - Sorriu ao dizê-lo, pensando na vulnerabilidade de Caroline.
—Era muito bonito? - perguntou Gracie com curiosidade - Era moreno e muito galhardo?
—Não muito moreno - Charlotte recordou o rosto em extremo pessoal e enigmático do Joshua Fielding - Tampouco era exatamente bonito, suponho, não na moda, mas sim encantador. Acredito que é porque dá a sensação de ter uma grande capacidade para rir sem crueldade e para ser amável. Alguém imagina que seria capaz de entender toda classe de coisas.
—Soa muito bem - aprovou Gracie - Eu gostaria de conhecer alguém assim. A protagonista era bonita? Como era? Toda cabelos dourados e brilhantes?
—Não, absolutamente - respondeu Charlotte pensativa - Para falar a verdade, deve ser a mulher inglesa mais morena que vi na vida, mas poderia fazer você sentir que é a mais formosa do mundo se assim o quisesse. Realmente tinha presença. Todos outros pareciam pálidos e esvaídos a seu lado. Parecia arder por dentro, como se outros só estivessem meio vivos, mas não de forma ostentosa, não sei se me explico.
—Não, senhora - admitiu Gracie - Ao contrário o que?
—Oh! De forma chamativa.
—Oh. - Gracie desceu do aparador, as saias e o avental em cachos, e foi lavar o trapo sob o grifo - Não posso imaginar a uma mulher assim... mas eu gostaria. Parece muito emocionante - Escorreu o trapo com suas mãos pequenas, magras, muito fortes, e voltou a encarapitar-se ao móvel - Então por que não desfrutou da peça, senhora?
—Porque se produziu um assassinato no camarote contíguo – respondeu Charlotte acrescentando mais farinha às passas soltas.
Gracie interrompeu sua tarefa, uma mão na prateleira superior, a outra sustentando uma molheira. Virou-se devagar, com seu afiado rosto transbordante de agitação.
—Um assassinato? Seriamente? Está-zombando de mim, senhora?
—Oh, não - assegurou Charlotte muito séria- - Absolutamente. Mataram a um juiz muito eminente. Para falar a verdade exagerei um pouco, não foi no camarote contíguo, mas uns quatro camarotes mais à frente. Envenenaram-no.
Gracie torceu o gesto. Sua mente sempre prática.
—Como é possível envenenar a alguém em um teatro? Quero dizer de propósito; uma vez comi umas enguias que me sentaram mal, mas não foi nada intencional, vá.
—Em seu cantil de uísque - explicou Charlotte desfazendo o último montão de uvas soltas e jogando-as todas no coador para lavá-las sob a torneira e eliminar o polvilho antes de procurar algum rabo solto.
—Que lástima, pobre homem - Gracie reatou a limpeza das prateleiras – Foi terrível?
Charlotte levou o coador à pia.
—Não, em realidade não. Entrou em uma espécie de sono - Abriu a torneira e deixou que a água caísse sobre a fruta - Me dava mais pena sua esposa; pobre criatura.
—Não seria ela quem o fez? - perguntou Gracie, dúbia.
—Não sei. Ele era juiz do tribunal de apelação e tinha começado a investigar um caso de há alguns anos, um assassinato espantoso. O homem que foi enforcado por ele era o irmão da atriz da que te falei.
—Caramba! - Agora Gracie estava totalmente absorta. Colocou a molheira na prateleira equivocada, sem seu prato. - Caramba! - repetiu enquanto colocava o pano no bolso do avental. Permaneceu imóvel no aparador, com a cabeça quase roçando o ralo de ventilação por debaixo do teto - Era um caso no que estivera trabalhando o senhor?
—Não, então não - Charlotte fechou a torneira e levou a fruta à mesa da cozinha, derrubou-a sobre um pano fino, secou-a com delicadeza e a seguir ficou a procurar rabinhos - Mas o será agora, suponho.
—Então por que mataram ao juiz? - De repente Gracie estava desconcertada - Se ia estudar o caso de novo... não é isso o que ela quereria? Oh! É claro! Quer dizer que a quem cometeu realmente o assassinato assustava que ele averiguasse quem tinha sido. Caramba poderia ser qualquer um, não? Foi muito horrível?
—Sim, muito. Muito horrível para lhe contar. Teria pesadelos.
—Duvido - assegurou Gracie alegremente - Não será pior do que já ouvi.
—Possivelmente não - concordou Charlotte com tristeza - Foi o assassinato de Farrier"s Lane.
—Nunca ouvi falar dele - Gracie parecia decepcionada.
—É normal - respondeu Charlotte - Ocorreu faz cinco anos. Você só tinha doze.
—Isso foi antes que aprendesse a ler - comentou Gracie com notável orgulho. Ler era um lucro que a situava muito por cima de seus contemporâneos e das que antes seriam suas iguais sociais. Charlotte tinha empregado em ensiná-la um tempo que ambas deveriam ter dedicado aos afazeres domésticos, mas a recompensa tinha sido imensa, mesmo que estivesse certa de que grande parte do que Gracie lia eram novelas.
—O senhor vai investigar? - Gracie interrompeu seus pensamentos - Atrizes e juízes. Está-se fazendo cada vez mais importante, não?
—Sim - disse Charlotte com um sorriso. Gracie estava tão orgulhosa de Pitt que seu rosto resplandecia quando mencionava seu nome. Mais de uma vez Charlotte a tinha ouvido por acaso falar com os lojistas e lhes dizer para quem trabalhava, de quem era essa casa e que mais valia que se cuidassem de não errarem e lhe dessem só o melhor.
Gracie começou a limpar as prateleiras inferiores do aparador e a colocar de novo os pratos e as caçarolas. Deteve-se duas vezes para erguer as saias. Era tão baixa que sempre ficavam muito longas e estas não as tinha cortado o suficiente. Charlotte repartiu a fruta sobre uma bandeja que introduziu no forno, pré-esquentado a fogo médio para evitar que a temperatura fosse excessiva.
—É claro que pode ter sido sua esposa - afirmou Charlotte, voltando para assassinato de Stafford - Ou o amante de sua esposa. - Foi à despensa e tirou a manteiga para dessalgá-la, a seguir envolvê-la em um pano de musselina e escorrer toda a água ou o soro que pudesse ter.
Gracie hesitou por um instante, pensando se Charlotte se referia ao primeiro assassinato, o de Farrier"s Lane, ou à morte acontecida duas noites atrás no teatro. Escolheu bem.
—Oh. - Estava decepcionada. Parecia muito simples, inadequado para pôr a prova as habilidades de Pitt. Não oferecia aventura alguma e, com toda certeza, nada no que ela mesma pudesse ajudar. Engoliu e seco. - Pensei que estava um pouco preocupada, senhora. Suponho que me equivoquei.
Charlotte sentiu uma pontada de culpa. Era presa de um considerável nervosismo, se por acaso tivesse algo que ver com o Joshua Fielding. Se tratava do caso Blaine/Godman, ele estava comprometido e isso desgostaria Caroline, quanto mais pois o tinha conhecido.
—Eu não gostaria que fosse o ator – explicou - Minha mãe o achava em extremo encantador e quando o conheceu... - Sua voz se foi apagando. Como ia explicar à criada que sua mãe estava apaixonada por um ator ao menos treze ou quatorze anos mais novo que ela? Naturalmente, só se tratava de um sentimento superficial, mas mesmo assim capaz de causar dor.
—Oh, entendo - assegurou Gracie com tom jovial. Sabia dos sentimentos que albergavam os cavalheiros pelo Lírio de Jersey e algumas das rainhas da revista - Vá que se fosse um homem iria aos camarins. - Começou a peneirar a farinha para eliminar os torrões. A ralada da laranja e da noz moscada deixaria para Charlotte. A tarefa requeria bom julgamento - Bom, possivelmente não foi ele.
—Não acredito que fosse a esposa do juiz - disse Charlotte pausadamente.
—O que vai fazer a respeito, senhora? - perguntou Gracie sem indício de dúvida, sem que lhe passasse pela cabeça a possibilidade de que Charlotte não fizesse nada.
Esta ficou pensando uns minutos, analisando os pedaços que tinha reunido no teatro e o pouco que Pitt lhe tinha contado. Por que não achava que fora Juniper? Por outro lado, tinha algum valor sua opinião? Já se tinha equivocado antes várias vezes.
Gracie peneirou a farinha uma segunda vez.
—Suponho que deveríamos resolver o assassinato de Farrier"s Lane - disse ao cabo Charlotte, com tom veemente.
Gracie não questionou nem por um instante a capacidade de sua senhora para levar a cabo tal empresa. Sua lealdade era absoluta.
—Boa idéia – aprovou - Assim não poderiam dizer que foi ele. O que aconteceu?
Charlotte referiu os fatos de forma breve e não de todo precisa.
—Um jovem cavalheiro casado estava cortejando a atriz Tamar Macaulay. Depois de uma representação alguém o seguiu e o assassinou em Farrier"s Lane pregando-o em uma porta, como uma crucificação. Acusaram ao irmão da atriz, já que pensava que o jovem cavalheiro estava enganando sua irmã. Enforcaram-no, mas ela sempre acreditou que era inocente.
Gracie estava muito interessada para procurar outra tarefa. Peneirou a farinha uma vez mais, com os olhos arregalados e sem afastar a vista do rosto de Charlotte.
—E quem ela acha que o fez?
—Não sei - admitiu Charlotte com surpresa - Não sei se alguém perguntou.
—Ela acha que foi este...? Como se chama?
—Joshua Fielding? Não, não, são grandes amigos.
—Então certamente não o fez - assegurou Gracie com firmeza – Temos que lhes demonstrar que é inocente senhora.
Charlotte ouviu o "temos" e sorriu para si mesma, embora não dissesse nada.
—Boa idéia. Terei que pensar por onde começar.
—Bom a senhora Radley não poderá nos ajudar desta vez - disse Gracie pensativa - Tendo em conta que está no campo.
Era certo. Emily, irmã de Charlotte e companheira habitual em semelhantes aventuras, achava-se na última etapa de sua segunda gravidez, e ela e seu marido, Jack, tiraram férias no sudoeste do país, afastados do bulício social de Londres, até que se acontecesse o parto. Charlotte recebia cartas suas com regularidade e as respondia com menos freqüência. Emily dispunha de muito mais tempo e as horas se faziam eternas. Meios tinha mais que de sobra, herdados de seu primeiro marido, enquanto que ao Charlotte a mantinham ocupada os numerosos afazeres domésticos e o cuidado de seus dois filhos. Nem precisava dizer que contava com a ajuda de Gracie todo tempo e de uma mulher que se encarregava de fazer uma limpeza a fundo três dias por semana, e a roupa branca a enviava fora; mas Emily tinha a seu serviço uma equipe de pelo menos vinte criados, dentro e fora da casa.
—Bem - prosseguiu Gracie alegremente - já que ela não pode, talvez a sua mãe goste. Por estar apaixonada lhe interessará, não?
Charlotte tentou ser diplomática, algo para o qual não estava dotada de um talento natural.
—Não acredito. Ela não o faz isso, sabe?
—Mas se gosta! -Gracie estava desconcertada.
—Quer me passar a fruta e abrir a tampa do forno? - pediu Charlotte, que por fim começou a misturar os ingredientes na grande terrina de barro amarela.
Gracie obedeceu, prescindindo do pano para abrir o forno e utilizando o avental, como de costume.
Trabalharam diligentemente durante um quarto de hora, até que a massa esteve distribuída em formas e começou a assar. Gracie pôs a chaleira no fogo e se dispunham a preparar o chá quando soou a campainha da porta principal.
—Se o menino das verduras tornou a vir pela porta principal - disse Gracie com aspereza - darei-lhe uma reprimenda que não esquecerá em sua vida - E dizendo isso prendeu melhor o avental, aparou o cabelo e saiu brincando de correr pelo corredor.
Retornou em menos de um minuto.
—É sua mãe. A senhora Ellison, quero dizer.
O certo é que Caroline estava bem atrás dela, vestida com uma jaqueta com delicadas águas verdes e pele no pescoço, uma bonita saia elegantemente drapeada e um glorioso chapéu inclinado sobre a sobrancelha esquerda e cheio de penas. Havia rubor em suas faces, ansiedade em seus olhos. Pareceu não reparar no velho vestido de algodão azul de Charlotte, com as mangas arregaçadas e um avental branco que ocultava a parte dianteira. Deste modo passou por cima a cozinha, a pia repleta de terrinas e colheres e inclusive o delicioso aroma que saía do forno.
—Mamãe! - Charlotte a recebeu com prazer e surpresa - Está estupenda! Como se encontra? O que a traz por aqui a estas horas?
—Oh... - Caroline fez um gesto de indiferença com uma mão embainhada em uma luva - Ah… bom... - Então a preocupação se apropriou de seu rosto e retrocedeu no esforço - Me perguntava... - Se interrompeu de novo.
Sem que ninguém o dissesse, Gracie jogou mão do bule do chá e começou a tirar as xícaras.
Charlotte aguardou. Pelo modo em que Caroline procurava as palavras soube que não tinha nada que ver com Emily. Se tivesse tratado de uma enfermidade ou um problema familiar de qualquer classe, teria se mostrado preocupada, mas não sem palavras.
—Está bem depois da tragédia do teatro? - começou Caroline de novo. Desta vez olhou Charlotte, mas seu rosto não refletia concentração. Parecia estar olhando através dela, a algo imaginário.
—Sim, obrigado - respondeu Charlotte com cautela - E você?
—É claro. Quero dizer... bom... foi muito angustiante, naturalmente - Por fim Caroline se sentou em uma das cadeiras de madeira.
Gracie colocou o bule fumegante e duas xícaras em uma bandeja e a levou a mesa junto com leite e açúcar.
—Desculpe senhora - disse com tato - mas, com sua permissão, será melhor que vá trocar a roupa das camas.
—Sim, é claro - respondeu Charlotte com gratidão - Boa ideia.
Logo que Gracie partiu, Caroline voltou a enrugar a frente e olhou Charlotte, com expressão carrancuda enquanto servia o chá.
—Sabe já Thomas se... se assassinaram o pobre homem?
—Sim - respondeu Charlotte, que por fim pressentiu o que tanto alterava a sua mãe - Temo que sim. Envenenaram-no vertendo ópio no cantil, tal como temia o juiz Livesey. Sinto que a visse envolvida nisso, mamãe, embora fosse indiretamente. No teatro havia muita gente muito respeitável. Não terá que temer que alguém vá pensar mal de você.
—Oh, não tenho medo - afirmou Caroline com autêntica surpresa – Me - Baixou a vista e um sutil rubor tingiu suas faces - Me preocupava que se suspeitasse do senhor Fielding ou da senhorita Macaulay. Acredita... acredita que Thomas pensa que poderiam ser culpados?
Charlotte não sabia o que responder. É claro não só era possível, mas provável, que Pitt suspeitasse de ambos, e não cabia dúvida de que suspeitaria de Joshua Fielding, que, como ficava patente, era o que estava pensando Caroline. Recordou o rosto irônico e encantador de Fielding, e se perguntou que emoções ocultava, até que ponto seria um bom ator. O que poderiam esconder suas palavras sobre Aaron Godman? Qual era o motivo pelo qual o juiz Stafford lhe tinha visitado no dia que morreu?
Caroline a olhava de cima abaixo, os olhos atentos, ansiosos.
Procurando dolorosamente na memória, Charlotte evocou os muitos sonhos que tinha tecido em sua juventude para fazer com eles um manto com o que abrigar a seu cunhado, Dominic Corde. Era tão fácil imaginar que um rosto atraente delatava paixão, sensibilidade, sonhos parecidos aos próprios, e a seguir dotar à pessoa de aptidões que nunca havia possuído ou desejado possuir e, ao fazê-lo, não ver a pessoa real...
Estava Caroline fazendo o mesmo com um ator ao qual tinha visto levar os pensamentos de outros homens com semelhante talento que já não era capaz de distinguir entre o mundo da imaginação e o da realidade?
—Sim. Temo que tenha que expor o respondeu - Só alguém a quem o senhor Stafford viu nesse dia teve a oportunidade de jogar veneno no cantil, e se, com efeito, estava investigando aquele assassinato, aí temos uma excelente razão pela qual alguém poderia desejar sua morte. Como ia Thomas a passá-lo por alto?
—Não posso acreditar que o fizesse ele - sussurrou Caroline com ferocidade e uma forte determinação - Tem que haver outra resposta. -Ergueu a vista imediatamente, sem indício de indecisão ou estranheza - O que podemos fazer para ajudar? O que poderíamos averiguar? A quem conhecemos?
Charlotte ficou estupefata. Era Caroline consciente de que tinha falado como se ela mesma tivesse a intenção de tomar parte? Tratava-se de um modo de dizer?
—Nós? - Charlotte não pôde evitar sorrir.
Caroline mordeu o lábio.
—Bom... você, suponho. Não sei como... investigar...
Charlotte era incapaz de dizer se sua mãe estava tentando livrar-se de tomar parte ou se procurava uma reafirmação de que, em efeito, podia ser útil. Parecia ao mesmo tempo vulnerável e determinada. Havia nela vitalidade, uma mescla de temor e euforia muito estranha.
—Conhece alguém? - insistiu Caroline.
—Não - se apressou a responder Charlotte - Eu nunca conheci ninguém. Quem conhece gente é Emily. Mas poderíamos tentar entabular relação com alguém, suponho.
—Temos que fazer algo - afirmou Caroline com veemência - Se enforcaram uma vez a pessoa equivocada e o deixamos em suas mãos, é possível que a polícia se equivoque de novo. Oh! Sinto muito! Não referia ao Thomas. É claro que será diferente com Thomas encarregado. Não obstante Charlotte esboçou um amplo sorriso e tomou sua xícara de chá, que estava esfriando depressa.
—Está bem, mamãe. Será melhor que não diga nada mais... não faz mais que piorar. Thomas não é infalível, ele seria o primeiro em lhe dizer isso Bebeu um gole - E eu seria primeira em defendê-lo até a morte se fosse outro quem dissesse isso. Em realidade não sei muito desse caso, salvo o que você já sabe. Ao que parece foi absolutamente horrendo. Recorda-o? Foi há cinco anos.
—De maneira nenhuma. Seu pai ainda vivia e eu nunca lia os jornais.
—Oh. Bem, suponho que não conhecia os Blaine ou a alguém relacionado com eles e tenho absoluta certeza de que quando papai ainda vivia você não conhecia ninguém do teatro.
Caroline se ruborizou e bebeu por sua vez um gole de chá.
—Tampouco acredito que a tia avó Vespasia conheça alguém - continuou Charlotte, tentando reprimir a risada - Ao menos não ultimamente. A atores, quero dizer
Caroline arqueou as sobrancelhas, alheia por completo à brincadeira.
—Acha que lady CummingGould conhece algum ator? Oh, é pouco provável. É de muito boa família.
—Sei - admitiu Charlotte, que com muita dificuldade guardava a compostura - Bom, o suficiente para não ter que preocupar-se do que pensem outros. Ela teria podido conhecer quem quisesse... discretamente, talvez. De todo modo não nos serve de nada. Tem já mais de oitenta anos. Os atores aos quais poderia ter conhecido não nos valem. Provavelmente estejam mortos. Entretanto, é possível que conheça alguém que conhecesse Kingsley Blaine ou que soubesse dele. Deveria lhe perguntar?
—Oh, faria-o? - inquiriu Caroline com impaciência-. O faria? Por favor.
A perspectiva era muito atraente. Charlotte levava algum tempo sem ver a tia avó Vespasia. Nem sequer era tia de Charlotte, mas sim de Emily, por seu primeiro marido, mas tanto Charlotte como Emily se ocupavam dela mais que qualquer outro, salvo a família mais próxima, e com freqüência inclusive mais que esta.
—Sim - afirmou Charlotte com decisão - Acredito que seria uma excelente ideia. Disporei tudo para ir amanhã.
—Oh... acha que pode esperar? - Caroline parecia abatida - Não seria melhor que fosse hoje? Certamente não será fácil. Não seria melhor que começássemos quanto antes?
Charlotte olhou o vestido de algodão, depois se voltou para o forno.
—Gracie pode tirar os bolos - propôs Caroline rapidamente, percebendo cada vez mais o delicioso aroma - E em caso de que te atrase, estará aqui quando voltarem as crianças da escola. Ou ficarei eu esperando, se isso a tranqüilizar. Pode levar minha carruagem, está fora. Isso seria excelente. Agora vá para cima e ponha um vestido adequado. Vá!
Charlotte não esperou para ouvir duas vezes. Se Caroline o desejava tanto e estava disposta a ficar ali, seria mesquinho não satisfazer seus desejos.
—De acordo - respondeu, e sem mais demora saiu da cozinha e subiu para pôr um vestido adequado e informar Gracie da mudança de planos.
—Oh! - exclamou a criada com evidente entusiasmo - vai trabalhar no caso! Oh, senhora... esperava que o fizesse. - limpou as mãos no avental – Se houver algo que eu possa fazer...
—Tenha a certeza de que lhe direi - prometeu Charlotte. - De todo modo explicarei a você tudo que descubra, se é que descubro algo. No momento vou visitar lady Vespasia CummingGould, para ver se posso contar com sua ajuda.
Sabia que Gracie admirava enormemente à tia avó Vespasia. Em sua época foi uma das maiores belezas, possuidora de toda a dignidade e o encanto inconsciente da segurança absoluta, assim como de um engenho mordaz, e lhe desagradavam profundamente as convenções. Gracie a tinha conhecido uma vez que visitou
Caroline se sentou na cozinha, fascinada com a parafernália do dia da lavagem de roupa que nunca tinha visto. Para Gracie era uma criatura de dimensões mágicas.
—OH, senhora, é uma idéia excelente - aplaudiu Gracie, cujo rosto resplandecia - Com certeza a ajudará, se é que alguém pode.
Charlotte chegou ao Gladstone Park uma hora mais tarde e foi recebida pela criada da Vespasia, uma garota que Pitt achou em um asilo em um caso anterior e que recomendou à anciã. Naquela época a moça parecia uma sombra; agora a cor tinha voltado à sua pele e trazia o cabelo preso em um brilhante coque. Estava bastante a par das preferências da Vespasia para saber que Charlotte era bem-vinda em todo momento. Não a visitava para tratar assuntos sociais corriqueiros, a não ser que estivesse em marcha alguma aventura urgente ou se tinha alguma história extremamente interessante que contar.
Vespasia se achava sentada em sua saleta privada. Não era uma peça de recepção de visitas, mas uma estadia menor, discretamente mobiliada, inundada de luz e só com três cadeiras de brocado creme e madeira esculpida. No chão, deitada em uma mancha de sol, descansava uma cadelinha branca e negra de cabelo curto e denso. Parecia um cão de caça, um cruzamento entre galgo e collie com possivelmente um toque de spaniel na cara. Era muito inteligente, mas fraca, nascida para correr, e com manchas irregulares. Logo que Charlotte entrou, começou a mover seu longo rabo e se aproximou de Vespasia.
—Charlotte, querida, me alegra vê-la - disse Vespasia encantada - Não faça caso do Willow, não morde. É idiota de tudo. A cadela do Martin escapou e este é o resultado. Nem carne nem peixe. E isso que esperavam ter uma ninhada de bons dálmatas. Dizem que a cadela se estragou, o que não deixa de ser uma tolice. Mas não se pode convencer às pessoas - Acariciou a cadelinha com afeto – tudo que sabe fazer esta criatura é meter-se em cada atoleiro que Deus criou e dar saltos como um coelho.
Charlotte se inclinou e beijou Vespasia na face.
—Bem, sente-se - ordenou a anciã - Como veio sem avisar e a uma hora muito estranha, suponho que terá algo importante que dizer. – Parecia esperançada - O que ocorreu? Nada trágico, vejo-o em seu rosto.
—Oh - Charlotte se sentia envergonhada - Bom, é... para os implicados...
—Um caso? - Os olhos claros, quase prateados, de Vespasia brilhavam sob as sobrancelhas arqueadas - Está a ponto de se intrometer e deseja minha ajuda. - Havia um sorriso em seus lábios, mas não ignorava que, por muito estranho que fosse ou por muito a prova que pusesse a inteligência e o engenho, um caso também significava medo, uma perda para alguém e a tragédia muito maior de uma vida truncada, privada de toda a felicidade que poderia ter tido. Depois que a casualidade forjara sua amizade com Thomas Pitt tinha visto uma face oculta da vida, uma pobreza e um desespero que nunca tinha percebido em seu brilhante círculo social, nem sequer nas cruzadas políticas nas quais tanto colaborava. Tinha ampliado sua própria capacidade de compaixão, assim como de ira.
Entre elas não era preciso explicar nada disto. Tinham compartilhado muito para que fosse preciso palavras.
Charlotte se sentou e a cadelinha se aproximou para cheirá-la delicadamente movendo o rabo. Acariciou-lhe a suave cabeça, distraída.
—O juiz Stafford – começou - Quando menos há algo...
—Algo? - Vespasia estava perplexa - Você está preocupada com sua morte, pobre homem. No obituário se explicava que tinha morrido de repente no teatro... vendo uma peça romântica, uma obra um tanto corriqueira para ser o último compromisso terreno de tão distinto luminar da magistratura. Agora que penso nisso, os comentários omitiam ostensivamente a causa do falecimento.
—Certamente - disse Charlotte com secura - Ingeriu ópio líquido com o uísque.
—Meu Deus - O rosto extremamente inteligente de Vespasia refletia uma curiosa mescla de emoções - Suponho que não foi acidental ou voluntário.
—Não pode ter sido acidental - respondeu Charlotte - Que classe de acidente seria? Mas admito que ninguém falou em suicídio.
—Ninguém o faria - assegurou Vespasia com tom cortante - Se supõe que as pessoas como Samuel Stafford não tiram a vida. É um delito, querida. Dificilmente podemos julgar alguém por fazê-lo, claro está, mas é um delito muito grave contemplado nos códigos e todos sabemos que ao suicida se enterra em solo não consagrado e o castigo lhe é infligido no outro mundo, ao menos isso se acredita - De repente em seu rosto apareceram muito vivas, a ira e a compaixão - Conheci infelizes desesperadas que foram resgatadas ao bordo da morte e reanimadas o suficiente para enforcá-las por isso. Deus nos perdoe. Existe alguma razão para pensar que Samuel Stafford pudesse ter feito tal coisa?
Charlotte piscou e respirou fundo a fim de aplacar as emoções que fervilhavam em seu interior.
—Não, absolutamente – respondeu - Em troca parece haver várias razões pelas quais algumas pessoas poderiam ter desejado sua morte.
—Seriamente? Quais? Trata-se de algo tão insuportavelmente tedioso como o dinheiro?
—Absolutamente. Diz-se que sua esposa tinha uma aventura e que ela ou seu amante poderiam ter desejado sua morte. Ambos tiveram a oportunidade de lhe jogar algo no cantil esse dia. Mas o assunto que me traz até aqui é muito mais sórdido.
Vespasia arregalou os olhos.
—Ah sim? Este já me parece bastante sórdido. Pensei que fosse me perguntar se conhecia a senhora Stafford. Não a conheço.
—Não... Conhece alguém relacionado com Kingsley Blaine?
Vespasia refletiu por um momento, plenamente concentrada.
—Não; temo que esse sobrenome, Blaine, não me diz nada - respondeu por fim com evidente decepção.
—Godman? - Charlotte fez um último intento, embora em realidade não abrigasse nenhuma esperança de que Vespasia conhecesse o Aaron Godman, salvo atrás das luzes.
Vespasia franziu o sobrecenho enquanto caía na conta lentamente.
—Minha querida Charlotte, não referirá a aquele atroz assunto de Farrier"s Lane? Que demônios pode ter isso que ver com a morte do juiz Stafford no teatro faz duas noites? Aquilo acabou em oitenta e quatro.
—Não, não acabou - afirmou Charlotte em voz baixa - Ao menos pode ser que não tenha acabado. Ao que parece o senhor Stafford estava investigando-o de novo.
Vespasia enrugou a fronte.
—O que significa "ao que parece"?
—As opiniões diferem - explicou Charlotte - O que resulta indiscutível é que no dia em que morreu recebeu a visita de Tamar Macaulay, a irmã do Godman, e quando ela partiu o senhor Stafford foi ver o Adolphus Pryce, o promotor do caso; o juiz Livesey, outro dos juízes que se encarregaram da apelação junto com ele, e Devlin O'Neil e Joshua Fielding, dois dos suspeitos iniciais.
—Céus! -Vespasia estava absorta, de seu rosto tinham desaparecido a diversão e a dúvida - Então qual é a pergunta?
—Se tinha a intenção de voltar a abrir o caso ou simplesmente de demonstrar uma vez mais que o veredicto foi correto.
—Entendo. - Vespasia assentiu com a cabeça - Sim, compreendo que isso poderia suscitar numerosas interrogações a respeito de quem quereria que deixasse o assunto e, em caso de que não o fizesse, o qual parece claro, precipitar sua conclusão matando-o.
Charlotte engoliu em seco.
—O assunto se complica ainda mais, já que minha mãe conheceu ao senhor Fielding e tomou partido por sua causa.
—Entendo. - Um tênue resplendor iluminou os olhos de Vespasia, embora não fizesse comentário algum a respeito - De modo que você quer… tomar parte. – Vacilou só um instante antes de pronunciar as palavras. Incorporou-se um tanto - Lamento não conhecer, nem tão sequer de vista, à senhora Stafford, ao juiz Livesey ou ao senhor Pryce. Sem dúvida não me seria difícil travar amizade com o senhor Fielding, mas agora pareceria supérfluo. - Nem sequer olhou Charlotte ao dizê-lo, mas seu benévolo regozijo era evidente - Entretanto, conheço juiz que levou o primeiro julgamento. - interrompeu-se, meditabunda-. O senhor Thelonius Quade.
—Conhece-o? - Charlotte estava muito satisfeita para perceber a inflexão da voz da Vespasia e não se daria conta de sua importância até mais tarde-. Conhece-o o bastante para ir vê-lo? Poderia falar do assunto... ou... ou seria... pouco delicado?
Aos lábios de Vespasia apareceu um sorriso.
—Acredito que poderia fazer-se com delicadeza - respondeu-. Estou certa. ao concluir que o assunto tem certa pressa?
—Oh, sim - respondeu Charlotte - Acredito que sim está certa. Obrigado, tia
Vespasia.
A anciã sorriu, desta vez com verdadeiro afeto.
—Não há de que, minha querida.
A gente não podia ir ver um juiz sem razão e esperar que tivesse tempo para agradar a uma visita puramente social. Em conseqüência, Vespasia escreveu uma breve nota:
Querido Thelonius:
Desculpe este pedido, um tanto brusco e possivelmente de duvidoso gosto, de que me receba esta tarde, mas nossa amizade jamais esteve regida pelas convenções, nem o pensamento ou a emoção se viram nunca ocultos por desculpas educadas. Surgiu um assunto que corresponde a uma muito querida amiga minha, uma jovem a quem considero da família, e acredito que você poderia ajudar com suas lembranças, do domínio público, mas não do meu.
A menos que me faça saber a inconveniência de dita visita, irei ver-te no Piccadilly esta tarde às oito.
Afetuosamente, VESPASIA
Selou-a e fez soar a campainha para que acudisse seu lacaio. Quando chegou, deu-lhe a nota com instruções de levá-la imediatamente ao escritório do juiz Thelonius Quade, no Inner Tempere, e aguardar a resposta.
Retornou uma hora mais tarde com uma nota que rezava assim:
Querida Vespasia:
É um prazer ter notícias tuas de novo, seja qual for o motivo. Estarei no tribunal todo o dia, mas não tenho nenhum compromisso importante esta noite, de modo que me agradará vê-la, especialmente se tivesse a bondade de jantar comigo enquanto me conta o que tanto preocupa a sua amiga.
Não tenha a menor duvida de que farei tudo que esteja em minha mão para ajudar; será uma honra para mim. Conto, pois com sua presença às oito? Sempre seu, THELONIUS
Vespasia a dobrou de novo e a introduziu em uma das gavetas de sua escrivaninha. Ainda não a poria com as demais, de há quase vinte anos. O espaço entre elas tinha sido muito. Sua mente se encheu de lembranças, delicadas, já sem pesar. Aceitaria o convite para jantar. Seria muito agradável dispor de tempo para falar de outras coisas também, para levar a conversa lentamente, desfrutar de sua companhia, de seu engenho, da complexidade de seus pensamentos, da sutileza de seu julgamento. E reinaria o bom humor, sempre o tinha havido, além da honestidade.
Vestiu-se com primor, não só para ela mesma, mas também para ele. Fazia tempo que não vestia algo para agradar a outra pessoa. Sempre tinha gostado das cores pálidas, os tons sutis. Escolheu seda marfim, lisa no quadril e com discretas e lindas anquinhas, renda no pescoço, e pérolas, muitas pérolas. Ele sempre tinha preferido seu brilho ao brilho dos diamantes, que considerava duro e ostentoso.
Desembarcou de sua carruagem as oito e cinco, bastante próxima à hora para ser educada e, entretanto, não tão pontual para ser vulgar. O mordomo que abriu a porta era um ancião. Seu cabelo branco resplandecia à luz do saguão e seus ombros se viam mais que carregados. Olhou-a um instante antes que o rosto lhe iluminasse com um sorriso:
—boa noite, lady CummingGould - saudou com manifesto agrado. As lembranças afluíam - É um prazer vê-la. O senhor Quade a espera, se tiver a bondade de me seguir. Permite-me guardar sua capa?
Thelonius Quade se apaixonara por ela fazia vinte anos e, para ser franco, também ela o tinha amado muito mais do que pretendia quando começou seu romance. Em seus quarenta e poucos anos, ele era um brilhante advogado, enxuto e miúdo, com um rosto de sonhador ascético de atraentes feições, casado com sua profissão e com o amor pela justiça.
Ela tinha sessenta, ainda conservava a grande beleza que a fizera famosa e estava casada com um homem a quem tinha carinho, mas a quem nunca tinha amado. Seu marido era mais velho que ela, um homem frio, com escasso senso de humor, que naquela época se estava retirando da vida a uma velhice austera, em busca de um conforto físico cada vez maior e de um menor contato com as demais pessoas, à exceção de alguns amigos de igual parecer e de um grande número de conhecidos com os que mantinha avultada correspondência sobre a calamitosa situação do Império, a ruína da sociedade e a decadência da religião.
Agora, quando estava a ponto de voltar a ver Thelonius Quade, sentia-se ridiculamente nervosa. Tudo era muito absurdo. Ela passava dos oitenta, era uma anciã; o próprio Thelonius devia ter mais de sessenta. Havia-se sentido perfeitamente tranqüila quando sugeriu a idéia à Charlotte, mas à medida que seguia ao mordomo pelo familiar saguão, o coração lhe palpitava atropeladamente e tinha as mãos duras, e quase tropeçou ao passar do chão de assoalho ao tapete Aubusson do salão.
—Lady Vespasia CummingGould - anunciou o mordomo lhe abrindo as portas e dando um passo atrás.
Vespasia engoliu em seco, ergueu um pouco mais a cabeça e entrou.
Thelonius Quade se achava em pé junto à lareira, de frente a ela. Parecia mais enxuto do que ela recordava, e possivelmente mais alto. Inclusive o rosto era magro, seus sensíveis traços tinham adquirido maior relevo. As marcas da idade lhe tinham outorgado um atrativo que bem mereceria o apelativo de beleza, tal era a fortaleza de caráter que transcendia.
Sorriu ao vê-la e cruzou a estadia devagar lhe estendendo as mãos com as palmas para cima.
Sem pensar, ela posou suas mãos nas dele, sorrindo por sua vez.
Ele não se aproximou mais, mas permaneceu a certa distância, esquadrinhando seu rosto e achando nele o que esperava.
—Suponho que terá mudado - sussurrou. Ela tinha esquecido quão bondosa soava sua voz, quão clara - Mas não o vejo... e tampouco desejo vê-lo.
—Tenho vinte anos mais, Thelonius - respondeu ela com um leve movimento da cabeça.
—Ah, eu também, querida - disse ele com suavidade - E isso o compensa. Vamos, nos aproximemos do fogo. A noite é fria e seria precipitado começar a jantar quando não fez mais que entrar. Não é possível recuperar vinte anos em um breve encontro, de modo que não finjamos. - Conduziu-a até a lareira enquanto falava - me diga o que é isso que tanto se preocupa. Não é preciso que joguemos de manter uma conversa corriqueira e nos andar com rodeios. Nunca o fizemos. E a menos que seja outra pessoa completamente distinta, não descansará até que tenhamos tratado esse assunto tão importante.
—Sou tão direta? - perguntou Vespasia com um sorriso triste.
—Sim - respondeu ele sem concessões. Observou seu rosto com atenção. Ela não recordava que os olhos de Thelonius fossem azuis, nem tão perspicazes – Não parece muito inquieta. Tenho que supor que não se trata de nenhuma desgraça?
Ela ergueu um ombro com elegância e as pérolas de seu peito resplandeceram com a luz.
—No momento só é interesse, um interesse que poderia converter-se em preocupação. Tenho muito carinho a jovem.
—Dizia em sua nota que a considerava parte da família. - achava-se junto à lareira, de frente a ela. Vespasia também estava de pé, tinha passado sentada a maior parte do dia, e todo o trajeto até ali, e se sentia confortável. Apesar de sua idade, mantinha-se reta, erguida, e era quase tão alta como ele.
—É a irmã de uma sobrinha, por afinidade.
—Detecto uma dúvida, Vespasia... uma evasiva?
—É muito rápido - respondeu ela com secura, embora sem rastro de irritação. Antes bem, resulta vagamente reconfortante que ainda a conhecesse tão bem e que estivesse disposto a demonstrá-lo - Sim, é de uma família muito moderada e optou por horrorizá-la casando-se abaixo de suas possibilidades, para falar a verdade muito por baixo de suas possibilidades: com um policial.
Ele arregalou os olhos, mas não disse nada.
—A quem também aprecio muito - acrescentou Vespasia na defensiva.
Ele se absteve de fazer comentário algum e se limitou a observá-la.
—Ela... ela freqüentemente toma parte nos casos de seu marido. - Agora lhe era difícil explicar de forma que não soasse de péssimo gosto – Atrás da verdade - acrescentou com cautela, esquadrinhando seu rosto sem saber o que lia nele - É uma mulher inteligente e singular.
—E está... tomando parte na atualidade? - inquiriu Thelonius com tom divertido.
—Isso depende.
—De que?
—De se houver alguma maneira de que conheça algum dos implicados no assunto de modo que sua intervenção seja produtiva.
Quade parecia confuso.
—Seriamente, Thelonius - prosseguiu ela na hora. - Investigar não é questão de passear trazendo um chapéu de feltro, fazendo perguntas impertinentes e anotando em uma caderneta o que diz todo mundo. A melhor investigação se efetua observando às pessoas quando estas não percebem de que alguém está interessado nela ou conhece o assunto melhor que ela mesma... e, é claro, deixando cair um comentário aqui e lá que provoque uma reação no culpado. - interrompeu-se ao ver que ele a olhava com surpresa e crescente diversão.
—Vespasia?
—E por que não? - perguntou ela.
—Querida! Por nada, por nada - respondeu Thelonius. Logo, quando soou o gongo, pegou seu braço e, cruzou com ela o arco que conduzia à sala de jantar.
A mesa de mogno tinha sido disposta para dois, a prata resplandecente à luz das velas, crisântemos de cor leonina de aroma intenso e tenro, guardanapos brancos com o monograma à vista.
Retirou-lhe a cadeira antes que o fizesse o mordomo e a seguir tomou assento. Tacitamente o mordomo começou a desempenhar suas funções.
—E qual é o caso dessa amiga sua? Tem nome?
—Charlotte... Charlotte Pitt.
—Pitt? - Thelonius ergueu as sobrancelhas e seu rosto refletiu um profundo interesse - Há um inspetor de considerável talento chamado Thomas Pitt. Por acaso não será ele essa pessoa por quem sente tal estima?
—Sim, é ele.
—Um homem excelente, conforme soube. - Estendeu o guardanapo e o colocou no regaço - Um homem íntegro. Qual é esse assunto pelo que se interessa sua esposa? Por que acha que eu posso saber algo?
O mordomo serviu vinho branco a Thelonius. Este o provou e, continuando, o ofereceu a Vespasia. Ela aceitou.
—Se for do domínio público – continuou - com toda segurança o inspetor Pitt saberá ao menos tanto como eu. E deduzo que ele não deseja que sua esposa participe do assunto.
—Por favor, Thelonius - o reprovou Vespasia, divertida - Acha que poria Charlotte contra seu marido? Pois claro que não! Não... o assunto tem uns cinco anos e seu conhecimento será superior ao de quase todo mundo, já que você mesmo tomou parte nele.
—No que? - Começou a comer a sopa, um delicado creme de verduras de inverno.
Ela respirou profundamente. Não era muito bom introduzir um assunto tão desagradável em um jantar tão prazeroso, mas eles nunca se restringiram ao meramente prazeroso. Sua relação se fortaleceu ao compartilhar o trágico e o desagradável, assim como o atraente.
—O assassinato Blaine/Godman… em Farrier"s Lane, em oitenta e quatro – disse com seriedade. A leveza se desvaneceu - Parece mais que possível que a repentina morte do juiz Stafford há duas noites no teatro guarde relação com seu interesse pelo caso.
O rosto de Thelonius se endureceu, sua expressão era de preocupação, e ficou quieto, a colher no ar.
—Não sabia que continuasse interessado. De que modo?
—Bom, as opiniões diferem a esse respeito - respondeu ela, consciente da mudança operada nele: uma longínqua nota de desdita. Também se escureceu o semblante de Vespasia, mas era muito tarde para retroceder. Thelonius a olhava com intensidade, à espera - A senhora Stafford e o senhor Pryce se achavam presentes quando o senhor Stafford morreu – prosseguiu - Ambos afirmam que tinha a intenção de voltar a abrir o caso, embora nenhum deles saiba com que motivo. Por outra parte, o juiz Livesey, que também se achava ali, está totalmente seguro de que pretendia demonstrar de uma vez por todas que o veredicto foi legítimo e correto em todo ponto, de forma que cessassem as conjeturas inclusive por parte da irmã do enforcado, que estava encabeçando uma cruzada para lavar o nome de seu irmão.
Os pratos fundos foram retirados e se serviu a mousse de salmão.
—O que está fora de toda dúvida - acrescentou Vespasia - é que o senhor Stafford estava interrogando de novo a muitos que estiveram implicados a princípio. No dia em que morreu, viu Tamar Macaulay, Joshua Fielding, Devlin O'Neil e Adolphus Pryce, assim como ao juiz Livesey.
—Seriamente? - perguntou Thelonius com calma, deixando o garfo no prato e fazendo caso omisso do salmão por um momento - Mas suponho que morreu antes de esclarecer o assunto.
—Assim é... e parece... -Odiava ter que dizê-lo - Parece que morreu envenenado. Ópio, para ser exata.
—Daí o interesse de seu inspetor Pitt - disse ele com secura.
—Com efeito. Mas o interesse de Charlotte é mais pessoal.
—Ah sim? -Thelonius tomou o garfo de novo.
Ela sorriu.
—Não sei como dizer isto delicadamente, de modo que serei direta.
—Extraordinário! - exclamou ele com o mais benévolo dos sarcasmos. Mostrava-se risonho, e ela recordou de novo o muito que o tinha querido. Era um dos poucos homens que não só estava a sua altura intelectualmente, mas não se deixava intimidar por sua beleza ou sua reputação. Tomara se tivessem conhecido quando... mas ela nunca tinha sido dada às lamentações infrutíferas, e não ia começar agora.
—A mãe de Charlotte tomou afeto ao ator Joshua Fielding - esclareceu com um sorriso hermético -. Preocupa-a que se dele suspeite, tanto pelo assassinato de Farrier"s Lane como pelo envenenamento de Stafford.
Thelonius pegou sua taça de vinho.
—Vejo isso pouco provável - assegurou sem deixar de olhá-la - se isso for o que deseja me ouvir dizer. Acredito que é muito possível que Livesey tenha razão; ou a senhora Stafford e o senhor Pryce estão equivocados em sua interpretação das observações de Stafford ou se trata de algo pior.
Vespasia não teve que lhe perguntar a que se referia, as possibilidades eram evidentes.
—E se for Livesey quem se equivoca? - inquiriu.
O rosto do juiz se escureceu. Vacilou uns instantes antes de responder.
Ela esteve a ponto de desculpar-se por ter ventilado o assunto, mas nunca antes tinham evitado a verdade. Fazê-lo agora seria uma espécie de renúncia, fechar uma porta que ela desejava de todo coração manter aberta.
—Foi um caso extremamente desagradável - afirmou Thelonius com lentidão esquadrinhando o rosto de sua amiga - Um dos mais angustiantes que presidi. Não se trata só de que o crime em si fosse horripilante, um homem pregado à porta de uma cavalariça, uma brincadeira da crucificação de Cristo, mas sim do ódio que engendrou no cidadão da rua. - Em seus lábios se desenhou um leve sorriso de irônica indulgência. - É assombrosa a quantidade de gente que demonstra ter suscetibilidades religiosas quando se dá esse tipo de afronta, gente que não costuma pôr os pés em uma igreja.
—É mais simples - respondeu Vespasia com franqueza - e freqüentemente emocionalmente mais satisfatório, sentir-se ofendido em nome de seu Deus que servi-lo alterando seu estilo e sua forma de vida... e em um espaço reduzido, não cabe dúvida de que é muito mais cômodo. A pessoa pode sentir-se piedosa, parte da comunidade, e exigir ao mesmo tempo a cabeça dos pecadores. Custa muito menos que entregar tempo ou dinheiro aos pobres.
Ele terminou o salmão e lhe ofereceu mais vinho.
—Está se tornando cínica, minha querida - comentou.
—Sempre o fui - disse ela aceitando o vinho - no que respeita aos que se proclamam piedosos. Seriamente esse caso foi tão diferente da maioria?
—Sim. - Afastou o prato e, como uma sombra, o mordomo o retirou – Havia uma inequívoca cultura alheia a que poder culpar - continuou Thelonius com tom grave, os olhos tristes e zangados - Godman era judeu e os sentimentos anti-semitas resultantes foram algumas das manifestações do comportamento humano mais desagradáveis que jamais tenha visto: pichações anti-semitas nas paredes, panfletos histéricos por toda parte, inclusive gente arrojando pedras pelas ruas a quem tomava por judeus... janelas quebradas nas sinagogas, uma inclusive incendiada. O julgamento se celebrou com as emoções tão exaltadas que temi que escapasse a meu controle. - Empalideceu a medida que a lembrança cobrava nitidez em sua mente. Vespasia viu em seus olhos o muito que lhe doía.
Serviu-se em silêncio um cordeiro ao que não prestaram a menor atenção. O mordomo levou a mesa veio tinto.
—Sinto muito, Thelonius - disse ela amavelmente - Não teria revivido essa época por gosto.
—Não se trata de você, Vespasia. – Suspirou - Parecem ser as circunstâncias. Ignoro o que pôde averiguar Stafford. Talvez realmente haja novas provas. - Torceu o gesto, meio divertido, meio ressentido - Não pode ser nada relacionado com o modo em que se desenvolveu o julgamento. - Seu sorriso se tornou mais íntimo e aflito. - Pela primeira vez em minha vida me expus passar por cima deliberadamente algo incorreto, algum ponto que permitisse a um advogado diligente achar motivos para solicitar a anulação do julgamento, ou ao menos exigir uma mudança de jurisdição. Envergonhei-me de mim mesmo por pensar nisso. - Seus olhos escrutinaram o rosto da anciã em busca de uma reação, temeroso de que se envergonhasse dele. Mas só percebeu um vivo interesse-. Entretanto, o ódio era tão evidente no ambiente... – prosseguiu - Temia que o homem não tivesse um julgamento justo nesse tribunal. Tentei-o, me acredite Vespasia, passei muitas noites em claro naquela época, dando voltas e mais voltas, mas nunca encontrei nenhuma palavra ou ato concreto que pudesse questionar. - Baixou a vista por um instante, logo voltou a erguê-la - Pryce esteve excelente, como sempre, e, entretanto nunca se excedeu em suas obrigações. Barton James, a defesa, atuou de forma adequada. Não pressionou muito, parecia acreditar na culpa de seu cliente, mas duvido que tivesse podido achar um advogado em toda a Inglaterra que não acreditasse. Foi...
Quase parecia repudiar a si mesmo, e Vespasia era perfeitamente consciente de que a lembrança ainda lhe causava dor. Mas não o interrompeu.
—Foi tão... precipitado - prosseguiu Thelonius tomando a taça de vinho e fazendo-a virar pelo pé. A luz atravessava brilhante, o líquido vermelho - Não se omitiu nada, e, entretanto tinha a crescente sensação de que todo mundo desejava que Godman fosse declarado culpado o antes possível, e enforcado. As pessoas exigiam um sacrifício pela atrocidade cometida, era como um animal faminto rondando atrás das portas da sala. - Olhou a sua amiga de repente - Estou sendo melodramático?
—Um pouquinho.
Ele sorriu.
—Você não estava ali, do contrário saberia o que quero dizer. No ar se apalpava uma crueldade... uma emoção que é perigosa quando se tenta fazer justiça. Assustava-me.
—Nunca antes tinha ouvido você dizer tal coisa. - Estava surpreendida. Não se parecia com o homem que ela recordava, mostrava-se mais vulnerável e, curiosamente, mais forte ao mesmo tempo.
Thelonius negou com a cabeça.
—Nunca a havia sentido - reconheceu. Sua voz se tornou mais baixa ainda, encheu-se de surpresa e dor-. Vespasia expus-me seriamente cometer eu mesmo um ato imprudente que proporcionasse motivos para que o caso pudesse julgar-se de novo no tribunal de apelação, sem histeria, quando as emoções se acalmassem. – Suspirou - Me torturei me perguntando se era irresponsável, arrogante, desonesto. E se me limitava a deixar que prosseguisse, acaso era um covarde amante da pompa e aparências da lei mais que da justiça?
Se se tivesse tratado de outro homem, Vespasia possivelmente se teria apressado a negá-lo, mas isso teria vulgarizado a conversa, teria marcado uma distância entre eles que não desejava. Seria o correto, o claro, mas não absolutamente verdadeiro. Ele era um homem de profunda integridade, mas sua alma podia sentir tanto medo e confusão como qualquer outra, e não era impossível que se equivocara que tivesse sucumbido. Insinuá-lo seria abandoná-lo, deixá-lo de certo modo desesperadamente só.
—Conseguiu chegar a uma conclusão da qual estivesse seguro - perguntou em seu lugar.
—Suponho que é uma questão de fins e meios - respondeu ele com ar pensativo. - Sim o certo é que é impossível separá-los. Não existe nenhum fim que não se veja afetado pelos meios que se utilizaram para obtê-lo. Olhava-a nos olhos. - Com efeito, perguntava-me se ia invalidar intencionalmente um julgamento porque estivesse envolvido em uma paixão e uma urgência que pessoalmente não passava. Entenda-me, eu não achava que Aaron Godman fosse inocente, nem acredito agora. Tampouco achava que qualquer das provas apresentadas estivesse viciada ou fosse falsa. Simplesmente tinha a sensação de que a polícia tinha agido levada mais pela emoção que pela imparcialidade. -interrompeu-se por um instante, talvez duvidando se devia continuar - Tinha a absoluta certeza de que ao Godman haviam dado uma surra enquanto esteve detido - disse por fim - Apresentava machucados e lacerações quando compareceu ante o tribunal, e as feridas eram muito recentes para haver-se produzido antes da detenção. Sopravam ventos de indignação e urgência que nada tinham que ver com a busca da verdade nem com sua demonstração. Entretanto, Barton James não o mencionou. Eu não podia prejudicar fazendo vir à tona a questão. Não conhecia a explicação, e continuo sem conhecê-la. É minha hipótese.
—Uma surra? Quem a deu, Thelonius?
—Não sei. A polícia ou os carcereiros, presumo, mas é possível que ele mesmo se infligisse as feridas, suponho.
—E a defesa? - perguntou ela.
Ele começou a comer de novo.
—Apoiava-se em provas não de todo explicadas, algo relacionado com o exame médico do corpo. A princípio o doutor em questão, Humbert Yardley, afirmou que as feridas eram mais profundas do que corresponderiam aos pregos de ferrador que o promotor assegurou se utilizaram não só para pregá-lo mais tarde à porta das cavalariças, mas em realidade para matá-lo, com uma perfuração em um flanco. Graças a Deus, estava morto quando o crucificaram.
—Quer dizer que Godman poderia ter utilizado alguma outra arma? - Vespasia estava desconcertada - Em que medida isso afeta ao veredicto? Não o entendo.
—Em Farrier"s Lane não se achou nenhuma outra arma, e tampouco nas imediações - explicou ele - Além disso, a gente que o viu sair do beco com sangue na roupa estava completamente certa de que não levava nenhuma consigo; tampouco quando o detiveram, nem acharam nada em sua casa.
—Não pôde haver-se desfeito dela?
—É claro... mas não entre o pátio das cavalariças e o final do beco onde foi visto na noite do crime. O beco se achava flanqueado pelas paredes nuas dos edifícios. Não havia nenhum lugar onde esconder nada absolutamente. Tampouco se achou algo no pátio em si.
—O que disseram a respeito os juízes do tribunal de apelação?
—Que Yardley não tinha certeza, e depois, depois do exame, não negou que um longo prego de ferrador pudesse ter provocado a lesão fatal.
—E isso foi tudo? - Vespasia sentia curiosidade, preocupação.
—Isso - respondeu ele - Solucionaram isso com rapidez e opinaram que o julgamento era em todo ponto correto e que a sentença era válida. – estremeceu - Ao Aaron Godman enforcaram três semanas e meia depois. Depois sua irmã esteve tentando trazer a luz o assunto de novo, sem êxito. Tem escrito a membros do Parlamento, aos jornais, publicou panfletos, falou em reuniões e inclusive do cenário. Tudo foi em vão, a menos, claro está, que a senhora Stafford esteja certa e Samuel Stafford tivesse a intenção de reabrir o caso antes de que a morte o impedisse.
—Não parece que houvesse motivo - murmurou ela. Elevou a vista e a posou nos serenos e claros olhos do Thelonius - Tem certeza de que era culpado?
—Sempre o pensei -respondeu ele - Eu não gostei nada da forma em que se levou a cabo a investigação, mas o julgamento foi correto e não acredito que os juízes do tribunal de apelação pudessem ter falhado de outro modo. - Franziu o sobrecenho - Não obstante, se Stafford averiguou algo da morte de Godman, então é possível... não sei...
—E se não foi Aaron Godman, então quem matou Blaine? - perguntou ela.
—Não sei. Joshua Fielding? Devlin O'Neil? Ou alguém a quem ainda não conhecemos? Possivelmente soubéssemos mais se averiguássemos quem matou Samuel Stafford e por que. É um assunto extremamente desagradável, toda resposta é trágica.
—As respostas a um assassinato costumam sê-lo. Obrigada por sua franqueza.
Thelonius relaxou por fim, afrouxou os ombros, e a tensão e a dúvida se desvaneceram de seu sorriso.
—Achava que ia ficar com rodeios com você?
—Não me teria dito nada que queria ouvir - assegurou ela, e soube imediatamente que não era certo. Havia outras coisas, mas eram indiscretas... ridículas.
—Não me adule, Vespasia - disse secamente - Isso é para os conhecidos. Os amigos devem dizer a verdade, ou no pior dos casos guardar silêncio.
—Oh, por favor! Quando fui eu capaz de guardar silêncio?
Ele esboçou um sorriso repentino, deslumbrante.
—Sobre determinado tema, sempre que quer. Mas me diga o que a ocupa neste momento além de sua amiga, a senhora Pitt. Seria impossível relatar tudo o que fez desde a última vez que falamos com franqueza.
De modo que lhe falou de suas cruzadas para reformar as leis dos pobres, a legislação sobre educação, sobre moradia, do teatro e a ópera de que tinha desfrutado, e de algumas das pessoas pelas quais mais ou menos afeto sentia. A noite transcorria à medida que as novas atuais eram substituídas pelas lembranças, voltavam a risada e a tristeza, e não foi senão passada a meia-noite quando ele a acompanhou até sua carruagem, reteve suas mãos nas suas por um instante e se despediu dela até a próxima vez como ambos sabiam, não por muito tempo.
Micah Drummond não podia deixar de pensar no caso Blaine/Godman. É claro era possível, muito possível, que ao Samuel Stafford o tivesse envenenado sua esposa, ou o amante desta, embora não parecia haver uma necessidade que os impulsionasse a cometer um ato tão violento e perigoso. Se se conduziam com discrição, e tudo indicava que assim tinha sido, era de esperar que pudessem seguir vendo-se de vez em quando quase indefinidamente. Não cabia pensar no divórcio; era socialmente ruinoso. Pryce nunca poderia casar-se com uma mulher divorciada e continuar exercendo a advocacia como até a data. A sociedade se escandalizaria. Stafford não só era seu amigo, era um juiz de considerável prestígio. Mas uma aventura era algo muito diferente, desde que não fizessem ornamento dela. Por que iriam fazer algo tão desagradável - e perigoso - como assassiná-lo? Não era necessário. Juniper Stafford aproximava-se dos cinqüenta. Dificilmente podia esperar casar-se com Pryce e ter filhos. Os prazeres de uma vida doméstica juntos nunca tinham sido uma possibilidade, a menos que estivessem preparados para renunciar a toda aceitação social e reduzir seu estilo de vida até roçar a penúria, em comparação com sua situação atual. Ao menos Pryce nunca toleraria que ela fizesse tal coisa, mesmo que ele estivesse disposto a fazê-lo.
Era isso motivo suficiente para recorrer ao assassinato?
Ele sabia o que era amar de tal modo a uma mulher que esta se apoderasse de todos os momentos íntimos; todo o prazer se resumia na lembrança dela, no desejo de compartilhar; toda a solidão, toda a dor não eram mais que o reflexo da separação. Entretanto nunca, nem sequer nos momentos mais sombrios ou lacerantes, tinha imaginado que a felicidade residisse em forçar a situação ou em recorrer à violência física ou emocional.
Se Juniper e Pryce se rebaixaram a viver uma aventura e enganar Stafford, Micah Drummond desprezava sua debilidade e sua duplicidade, mas também sentia uma inegável compaixão.
Inclinava-se a pensar que Livesey tinha interpretado mal as intenções do Stafford de reabrir o caso Blaine/Godman ou que Stafford o tinha avoado intencionadamente, pelo motivo que fosse. Tinha sido um caso mais desagradável do que o habitual. As emoções se dispararam, tinham superado os limites da histeria. Não lhe surpreenderia inteirar-se de que parte dessa emoção tinha permanecido viva até agora, mesmo que não pudesse suspeitar sequer quem tinha matado Stafford ou qual era o fim a que isso obedecia.
Stafford não tinha deixado notas que indicassem as provas que estava investigando, nem o que achava que era a verdade, nem quem eram suspeitos, quando menos, de ter mentido, por para falar de ter assassinado Kingsley Blaine.
A única forma de averiguar isso seria investigando de novo o caso eles mesmos. Pitt provavelmente começaria pelas testemunhas e os suspeitos iniciais. Drummond podia começar por cima, pelo oficial de polícia a cargo dos homens que tinham levado a cabo as pesquisas: um subcomissário e superior dele. Por conseguinte, enviou uma breve nota para solicitar uma entrevista.
Foi concedida, e Drummond se achou no ornado e profusamente mobiliado escritório do subcomissário Aubrey Winton as dez em ponto da manhã seguinte. Winton era um homem de estatura média, cabelo crespo loiro com ligeiras entradas nas têmporas e uma expressão de calma, de confiança satisfeita.
—Bom dia, Drummond - saudou cortesmente - Entre. - Deu-lhe um breve aperto de mão e a seguir voltou para seu assento atrás da escrivaninha. Reclinou-se e se situou de frente a Drummond lhe indicando outra cadeira - Por favor, sente-se. Um charuto? -apontou com a mão uma caixa de prata ricamente lavrada que havia em cima da escrivaninha - No que posso lhe ajudar?
Drummond não andou com rodeios, não havia tempo. Eram colegas, não amigos.
—O caso Blaine/Godman – respondeu - Ao que parece poderia ser a causa de outro crime em minha zona.
Winton franziu o sobrecenho:
—Isso é muito pouco provável. Já se solucionou há cinco anos - Sua voz denotava profunda incredulidade. Não ia aceitar algo tão desagradável sem provas irrefutáveis. O ambiente se tornou mais frio.
—O juiz Stafford - explicou Drummond lamentando ter que fazê-lo – foi assassinado no teatro há três noites. Havia dito que pensava voltar a abrir o caso. - Olhou Winton nos olhos e viu que seu semblante se endurecia.
—Então só posso supor que achou algo incorreto na condução do julgamento - afirmou Winton com cautela - As provas eram concludentes.
—Eram mesmo? - perguntou Drummond com interesse, como se a questão ainda continuasse pendente - Não conheço bem o caso. Talvez pudesse me pôr a par.
Winton mudou de postura, mas seu rosto permaneceu imóvel, o olhar fixo no rosto de Drummond.
—Se insistir… mas não vejo que tenha sentido. O caso está fechado, Drummond. Não há nada mais que acrescentar. Stafford devia ir atrás de algo do julgamento.
—Por exemplo? - Drummond arqueou as sobrancelhas em um gesto inquisitivo.
—Não tenho nem ideia. Eu não sou advogado.
—Tampouco eu. - Drummond reprimiu com muita dificuldade seus desejos de mostrar-se abertamente crítico - Mas Stafford o era... e esteve presente na apelação. O que poderia ter surgido agora a que não tivesse acesso então? Ele e os outros juízes do tribunal de apelação tiveram que estudar todo o julgamento em sua época.
O rosto do Winton se inflamou de ira. Fechou os punhos sobre a escrivaninha.
—O que quer Drummond? Está insinuando que não investigamos o caso a fundo? Aconselho-lhe que se abstenha de fazer observações tão ofensivas e desinformadas sobre um caso de que sabe muito pouco.
A prontidão e a beligerância de sua resposta delataram uma sensibilidade que tomou Drummond de surpresa. Esperava uma justificação, mas não semelhante defesa. Claramente Winton seguia experimentando certa culpa, ou ao menos se sentia acusado.
Drummond teve que fazer um esforço para não perder o controle.
—Tenho que investigar o assassinato de um juiz - disse com severidade e cautela - Se estivesse você em meu lugar e ouvisse que a vítima se propusera voltar a abrir um velho caso e que se entrevistou de novo com as principais testemunhas no mesmo dia em que o assassinaram, e que estas foram algumas das poucas pessoas que tiveram a oportunidade de matá-lo, não analisaria você as provas do caso?
Winton respirou fundo e seu rosto relaxou um tanto, como se tivesse caído na conta de que sua reação tinha sido desmesurada, revelando sua própria vulnerabilidade.
—Sim... sim, suponho que o faria, por muito inútil que resultasse. Bem, o que posso lhe dizer? - ruborizou-se levemente - A investigação foi muito conscienciosa. Devia sê-lo. Foi um crime espantoso, todo o país estava pendente de nós, começando pelo ministro do Interior.
Drummond não efetuou as observações de rigor a que convidava o comentário. O fato em si de que Winton se defendera com tal ferocidade indicava que albergava dúvidas a respeito.
Winton trocou de postura de novo.
—O oficial a cargo era Charles Lambert, um homem excelente, o melhor – explicou - Naturalmente as pessoas gritaram ao céu. O caso aparecia em primeira página dos jornais cada dia e o ministro do Interior nos chamava com regularidade, nos pressionando para que déssemos com o assassino no prazo de uma semana no máximo. Não sei se alguma vez se ocupou você de um caso assim. - Seus olhos esquadrinharam o rosto do Drummond em busca de compreensão - experimentou na própria carne a pressão, o clamor popular, a ira, o medo das pessoas, sua ânsia por demonstrar seu valor? O ministro do Interior inclusive veio aqui, à delegacia de polícia, todo paletó, calças de listas e perneiras brancas.
A lembrança lhe endureceu a expressão, e Drummond imaginou a cena: o ministro do Interior colérico, nervoso, percorrendo a estadia de cima abaixo e dando ordens impossíveis, sem pensar em como seriam obedecidas, mas só na pressão da Câmara dos Comuns e do povo. Se não resolvesse o assassinato e se julgava e enforcava ao responsável com prontidão, sua própria reputação política perigaria. Outros ministros do Interior tinham caído antes e ninguém estava seguro se o clamor popular era o suficiente. O medo faria que o primeiro-ministro o sacrificasse, jogasse-o aos lobos.
—Pusemos a trabalhar no caso a todos os homens que pudemos – prosseguiu Winton com tom severo por causa da lembrança - E aos melhores! - Emitiu um grunhido - Mas afinal não foi especialmente difícil. Não se tratava de um lunático qualquer; o motivo era bastante claro e o tipo não foi muito inteligente. Inclusive o viram sair de Farrier"s Lane na ocasião, com sangue nas roupas.
—Viram-no sair de Farrier"s Lane? - interrompeu-o Drummond, desconfiado. Se fosse isso certo, como podia duvidar Tamar Macaulay de sua culpa? Podia sequer o amor familiar ser tão cego - Quem o viu?
—Um grupo de homens que rondavam por ali - respondeu Winton.
Drummond percebeu certa inflexão em sua voz, certa falta de força que o fazia parecer dúbio.
—Viram o Godman… ou viram alguém? - perguntou.
Por um instante Winton pareceu menos seguro.
—Não o identificaram com total segurança – respondeu - mas a florista sim o fez. Achava-se umas ruas mais à frente, mas não albergava dúvida alguma. Ali não havia sombras, e ele inclusive se deteve e falou com ela justo depois que o relógio desse a hora, brincou, conforme afirmou a mulher. De modo que não só lhe viu o rosto e ouviu sua voz, mas, além disso, sabia a hora.
—Saía de Farrier"s Lane ou se dirigia ali? - inquiriu Drummond.
—Saía.
—Assim, foi depois do assassinato. E ele parou a falar com uma florista? Extraordinário! Não viu ela o sangue? Se a viram os, saqueadores, devia ser muito evidente.
Winton vacilou enquanto a ira aparecia em seus olhos expressivos.
—Bom... não, não a viu, mas isso é fácil de explicar. Quando saiu de Farrier"s Lane o homem levava um capote. Quando chegou onde estava a florista já se desfizera dele. É natural! Não podia permitir que o vissem com um casaco cheio de sangue. E com um assassinato como aquele, devia haver muito.
—Por que não o deixou em Farrier"s Lane, em lugar de sair com ele posto e arriscar-se a que o vissem? - Drummond expôs a pergunta óbvia.
—Sabe Deus! - exclamou Winton com veemência - Possivelmente caísse na conta quando o viram os malfeitores. Talvez nem sequer se percebesse até então. Pelo amor de Deus, era um tipo possuído de uma ira insana, bastante demente para assassinar a outro homem e crucificá-lo. Não espere dele um pensamento lógico.
—Entretanto, comportou-se como uma pessoa perfeitamente normal umas ruas mais à frente, brincando com uma florista. Encontraram o casaco? Não havia muitos lugares onde olhar.
—Não, não o encontramos - replicou Winton - Mas não é estranho, não? Um bom casaco não dura muito em uma fria noite nas ruas de Londres, com ou sem sangue. Não esperaria encontrá-lo dias depois do acontecimento, suponho.
—Aonde se dirigiu depois de que o visse a florista?
—Para casa. Demos com o cocheiro que o levou. Recolheu-o no Soho Square e o deixou em Pimlico. Isso não muda nada. Então já se cometera o assassinato.
Pouco mais podia acrescentar Drummond. Compreendia Winton, para falar a verdade a todos os homens que trabalharam no caso. A pressão devia ser constante e intensa enquanto os jornais publicavam manchetes de horror e atrocidade, os cidadãos comuns criticavam, reclamavam que a polícia fizesse o trabalho pelo que lhe pagava a contra gosto e com o dinheiro dos impostos. E certamente o pior, o mais poderoso e incômodo, proviria de seus próprios superiores, dando ordens, exigindo que se achassem soluções e se demonstrassem em questão de dias de horas inclusive.
E depois havia a outra pressão, a que se mascava entre eles em tácito entendimento, sem necessidade de palavras, menos ainda de explicações. Drummond era membro do Círculo Interior, uma irmandade secreta dedicada a obras de caridade - discretos presentes para ajudar a organizações benéficas - e à promoção da carreira de determinados membros de forma que pudessem obter influência e poder. A militância era clandestina. Um homem podia conhecer alguns outros pelo nome ou pela contra-senha, mas não a todos. A lealdade ao Círculo era primitiva, anulava todos outros afetos e lealdades, todas outras chamadas à honra.
Drummond ignorava se Aubrey Winton pertencia ao Círculo Interior, mas achava muito provável. E essa pressão seria a maior de todas, já que estaria oculta e não haveria súplicas nem ajuda.
Sua compaixão pelo Winton aumentou. A sua não era uma posição invejável, nem então nem agora, salvo pela circunstância de que parecia que tinha feito tudo que estava em sua mão e seu comportamento tinha sido irrepreensível.
—Não sei atrás do que andava Stafford - disse - Mesmo que se produzisse alguma irregularidade no julgamento ou na apelação, a culpa de Aaron Godman parece fora de toda dúvida. Carece de sentido ventilar de novo o assunto. Começo a pensar que a resposta está em outra parte.
Winton sorriu pela primeira vez.
—Não é uma idéia atraente – observou - Entendo por que tenta procurar outra resposta, mas temo que não esteja no caso Blaine/Godman. Sinto muito.
—Certamente - respondeu Drummond - Obrigado por seu tempo. - ficou em pé - Referirei a meu homem tudo que me disse.
—Não há de que. Um assunto muito delicado - disse Winton atenuando sua gravidade - Às vezes nossa posição não é fácil.
Drummond sorriu com amargura e lhe desejou um bom dia.
Era uma tarde agradável, o forte vento arrastava as nuvens e permitia que os brilhantes raios do sol outonal iluminassem as ruas. As árvores das calçadas, as praças e os parques se despojavam de suas últimas folhas. Começava a notar o frio, o que recordou a Drummond a fumaça da madeira, os bagos amadurecidos nos arbustos, os jardineiros removendo a terra molhada e erguendo e rompendo os maciços de flores perenes prontas para ser replantadas na primavera. No passado, quando sua esposa ainda vivia e suas filhas eram pequenas, antes que vendesse a casa e se mudasse a um piso em Piccadilly, os crisântemos tinham florescido nos jardins, grandes flores peludas, de cabeça leonina, que cheiravam à terra e à chuva.
Ansiava compartilhar esses pensamentos. Como vinha lhe acontecendo ultimamente, sua mente evocou a Eleanor Byam. Via-a muito pouco desde o escândalo. Tinha desejado visitá-la muitas vezes, mas então recordava como ele e Pitt... Não; não era verdade, tinham sido Pitt e Charlotte quem o tinham feito tinha sido sua investigação, persistência e inteligência que tinham revelado a verdade, e essa verdade tinha arruinado a Eleanor, tinha-a convertido em uma viúva e uma proscrita quando antes seu marido era honrado, e ela, objeto de respeito e apreço.
Eleanor tinha vendido sua grande casa em Belgrave e se retirou para a umas pequenas habitações no Marylebone, seus ganhos se desvaneceram e seu nome unicamente se cochichava em sociedade com sobressalto e compaixão. Acabaram-se os convites, escassas eram as chamadas. Drummond não era responsável. Nada tinha tido que ver com o crime ou a tragédia acontecida em Sholto Byam, e, entretanto tinha a sensação de que só sua visão traria para a Eleanor dolorosos pensamentos e comparações.
Mesmo assim se surpreendeu caminhando para Milton Street e apertando o passo de modo inconsciente.
Era já tarde e os faroleiros erguiam suas longas varas para acender o gás e dar vida à repentina sensação de calidez ao longo da rua em penumbra quando chegou à casa de Eleanor. Se parasse para pensar agora, a coragem o abandonaria. Caminhou diretamente para a porta e fez soar a campainha. Era uma casa muito normal, as cortinas corridas em pró de uma séria respeitabilidade, um cuidado jardinzinho iluminado por umas quantas margaridas tardias e folhas douradas.
Uma criada de meia idade e rosto suspicaz abriu a porta.
—Sim, senhor? - o de "senhor" lhe tinha ocorrido ao ver seu casaco e o punho de prata de sua bengala.
—Boa noite - saudou ele tirando o chapéu ligeiramente - Eu gostaria de ver a senhora Byam, se estiver em casa. -Rebuscou no bolso e tirou um cartão-. Me chamo Drummond, Micah Drummond.
—Espera sua visita, senhor Drummond?
—Não, mas - acrescentou adornando um tanto a verdade - somos velhos amigos e passava pelo bairro. Seria amável de lhe perguntar se pode me receber?
—Darei-lhe sua mensagem - afirmou a criada com certa secura - mas não posso fazer mais. Trabalho para a senhora Stokes, a proprietária desta casa, não para as damas dos aposentos. - E sem aguardar comentário algum, deixou o visitante na escada e foi transmitir o recado.
Drummond olhou ao redor com uma sensação de opressão pela mudança das antigas circunstâncias. Fazia muito pouco Eleanor tinha sido a senhora de uma elegante e espaçosa mansão na melhor zona de Londres, com todo um séquito de criados. Agora dispunha de uns poucos aposentos na casa de outra, e sua porta a abria a criada de outra, a qual não parecia lhe dever lealdade alguma nem muita cortesia. Ele desconhecia se tinha pessoal permanente a seu serviço. Em sua visita anterior, pouco depois que ela mudara, só tinha visto uma criada.
A criada retornou, com a desaprovação escrita no rosto.
—A senhora Byam o receberá senhor, se tiver a bondade de me seguir.
E sem esperar a ver se ele a seguia deu meia volta e enfiou o corredor para a parte traseira da casa. Bateu com firmeza a uma porta de vidro.
Abriu-a a própria Eleanor. Tinha um aspecto muito diferente do de seus dias na Belgrave. Levava o mesmo penteado, o cabelo recolhido para trás da fronte, de um negro azeviche com salpicados prateadas agora maiores nas têmporas, mas uma nervura. Seu rosto continuava sendo o mesmo, a tez azeitonada e os grandes olhos cinza. Mas havia traços de cansaço, a certeza e a serenidade se desvaneceram fazendo-a vulnerável. Não usava nenhuma jóia e seu vestido azul marinho era muito simples. De bom corte, mas desprovido de renda ou bordados. Drummond lhe pareceu muito mais jovem que antes e, apesar de tudo o que havia entre eles, mais imediata, cálida e real.
—Boa noite, Micah - saudou abrindo a porta de par em par - É muito atenção de sua parte. Entre, por favor. Tem bom aspecto. – voltou-se para a criada, que se achava no meio do corredor, morta de curiosidade - Obrigada, Myrtle, isso é tudo.
Myrtle se retirou com um gesto de desdém.
Eleanor sorriu quando Drummond entrou.
—Não é a criatura mais encantadora do mundo - comentou com tom zombador enquanto tomava seu chapéu e sua bengala para deixá-los no cabide. – Venha a sala de estar, rogo-lhe. - Tomou a dianteira e lhe ofereceu assento na pequena estadia, modestamente mobiliada.
Drummond nunca tinha passado dali e supunha que mais à frente provavelmente não haveria mais que um dormitório, o quarto da criada, uma cozinha e, talvez, um banheiro ou um quarto de vestir.
Não lhe perguntou por que tinha ido visitá-la, mas Drummond tinha que lhe oferecer alguma explicação. Uma pessoa não se apresenta sem mais na porta de alguém. E não podia lhe dizer a verdade: que desejava, acima de tudo, vê-la de novo, estar a seu lado.
—Eu... - Esteve a ponto de dizer "passava por aqui". Era absurdo, um insulto que ela não merecia. Seria estúpido fingir que a visita era casual. Ambos sabiam. Devia ter pensado o que dizer antes de chegar, mas, se tivesse parado a sopesá-lo, não se teria atrevido a bater. Tentou-o de novo - tive um dia longo e difícil. - Sorriu e viu que a cor afluía às faces de Eleanor - Queria fazer algo prazeroso. Pensei em crisântemos sob a chuva, no aroma da terra molhada, em folhas e fumaça de madeira azulada, e não me ocorreu ninguém mais com quem compartilhá-lo.
Ela afastou o olhar e piscou várias vezes. Ele demorou um instante em dar-se conta de que havia lágrimas em seus olhos. Não sabia se desculpava-se ou era discreto e fingia que não percebera. Mas se o fizesse, acharia-o ela de uma frieza insuportável? E se fizesse alguma observação, não seria uma intromissão ofensiva? A indecisão o atormentava, ardia-lhe o rosto.
—Não podia haver dito nada mais amável. - A voz de Eleanor era suave e um tanto rouca. Engoliu saliva, logo outra vez - Lamento que tenha tido um dia difícil. Algum caso complicado? Suponho que será confidencial.
—Não... em realidade não, mas é muito desagradável.
—Sinto muito. Suponho que a maioria o é.
Drummond queria perguntar por ela, como se sentia, a que dedicava seus dias, se estava bem, se havia algo que ele pudesse fazer por ela, mas não cabia dúvida de que seria uma intromissão e, pior ainda, poderia parecer que o fazia impulsionado pela pena, como se sua visita respondesse a um sentido da obrigação e compaixão, e ela o odiaria.
Eleanor estava sentada de frente a ele, esperando, o interesse refletido no semblante. Entre eles, o débil fogo ardia com o carvão justo para mantê-lo vivo.
Drummond se surpreendeu falando de si mesmo, e não era isso o que queria, além da má educação que denotava. Preocupava-lhe ela, não ele, mas tinha que encher o silêncio e temia parecer condescendente. Queria falar de música ou de passeios sob a chuva, do aroma das folhas molhadas, da luz vespertina no céu, mas então Eleanor o acharia muito premente... muito direto, sendo ela tão vulnerável.
De modo que lhe contou sobre o juiz Stafford e o que Aubrey Winton lhe tinha explicado do caso Blaine/ Godman.
Fora reinava o silêncio, a chuva caía na escuridão. O relógio do saguão tinha dado as oito quando, de repente, Drummond percebeu o tempo que levava ali e de que já era hora de ir-se. Dado que se tratava de uma visita social, excedera-se.
Agora era difícil voltar para a cortesia e desculpar-se. O mundo exterior se intrometia de novo. Ficou em pé.
—Retive-a muito tempo; por um momento esqueci minhas maneiras e me limitei a desfrutar. Rogo-lhe que me desculpe.
Ela também se levantou, com elegância, mas a crua realidade voltou a escurecer seu rosto.
—Não há nada que desculpar - respondeu. Era o indicado, embora ele tivesse a sensação de que o dizia a sério. Apesar de todos os afetados formalismos, entre eles existia um bom entendimento. Esteve a ponto de lhe perguntar se podia voltar a vê-la, mas mudou de opinião. Se negava, e bem poderia sentir a necessidade de fazê-lo, ele mesmo se teria fechado a porta. Era melhor voltar sem mais.
-Obrigado por me receber - disse com um sorriso - boa noite.
—Boa noite, Micah.
Hesitou um só instante, depois tomou seu chapéu e sua bengala, e saiu ao corredor principal e de volta à rua molhada, à luz dos lampiões, que confortavam e iluminavam sua solidão, embora a aguçassem.
Não havia nada que Pitt pudesse fazer no domingo. Os comércios não estavam abertos, e tinha a certeza de que nenhum dos particulares com os que queria entrevistar estaria disponível ou sequer disposto a recebê-lo, para não falar de lhe prestar o tempo e a atenção que precisaria para, solicitar a informação, ou as impressões, que desejava.
De modo que pôde desfrutar de um magnífico dia em casa com Charlotte, Jemima e Daniel. Era o melhor momento do outono, o tempo não podia ser mais agradável: sem gota de vento, com um sol cálido, uma suave luz dourada e uma sensação de amplitude no céu que permitia esquecer que se achava em Londres e imaginar que mais à frente do muro só havia árvores e campos semeados.
Pitt não dispunha de muito tempo para dedicar-se ao jardim, mas o pouco que tinha era estranho e precioso, e o valorizava sobremaneira. Logo que soltou a faca e o garfo do café da manhã, saiu e começou a cavar vestido com umas calças velhas, as mangas arregaçadas. Elevava a escura terra e a removia com grande satisfação, desfazendo os torrões, separando as raízes emaranhadas das plantas perenes e dividindo-as em novas plantas para a primavera. Os ásteres se erguiam em torres azuis e púrpuras, e os crisântemos exibiam grandes cabeças cor cereja e lilás, dourado, vermelho, branco e rosa. As rosas tardias eram escassas e preciosas. Era a última vez que cortava a grama e no ar flutuava sua fragrância, junto com o aroma a húmus e o sol sobre folhas molhadas.
Jemima, que contava sete anos, trazia um aventalzinho do ano anterior e estava meio acocorada a seu lado, o rosto cheio de barro, imersa em feliz concentração, as mãos entretidas desembaraçando raízes, tirando as ervas daninhas. A uns metros Daniel, dois anos mais novo, estava ajoelhado escutando Charlotte, que tentava lhe explicar que folhas eram frescas e quais flores.
Pitt se virou, olhou por cima de Jemima e se encontrou com o olhar de Charlotte. Esta lhe sorriu, o cabelo sobre os olhos, uma face melada de terra, e ele se sentiu mais orgulhoso que nunca. Havia alguns momentos tão preciosos que a necessidade de aferrar-se a eles era algo físico. Tinha que obrigar-se a ter fé em que chegariam outros igualmente bons, deixá-los partir devia ser simples, pois do contrário se romperiam no mesmo ato de agarrar-se a eles.
Às cinco o sol declinava lentamente, ao pé dos muros se desenhavam já profundas sombras e a escura terra estava suave e cheia de maciços recém plantados. Sentiam-se todos eles cansados, imundos e extraordinariamente satisfeitos.
Daniel ficou adormecido enquanto tomavam o chá, e a cabeça da Jemima se inclinava mais e mais à medida que seu pai lhe lia um conto depois. Às seis e meia a casa estava em silêncio, o fogo aceso; junto a ele Pitt dormitava com os pés apoiados na tela, e Charlotte costurava botões em uma camisa distraidamente. Na segunda-feira pela manhã parecia outro mundo.
Com a luz do dia retornou com nitidez o dever, e as nove em ponto Pitt desembarcava de uma carruagem em Markham Square, Chelsea, com a intenção de entrevistar-se com a outra testemunha com quem Stafford tinha falado no dia em que morreu e a quem Pitt ainda não conhecia: Devlin O'Neil.
Tinham-lhe dado seu endereço no escritório de Stafford, e depois de pagar ao cocheiro subiu pelos degraus que conduziam à porta principal de uma abastada casa encostada com amplos pórticos, uma maçaneta de latão em forma de cabeça de grifo e um montante de leque com uma vidraça de cores. A moradia parecia ter ao menos a largura de três janelas a cada lado da porta, e quatro plantas de altura. Se Devlin O'Neil era seu proprietário, isso significava que ia muito bem e que não tinha motivos para brigar com seu amigo Kingsley Blaine por uma aposta de uns poucos guinéus.
Abriu a porta uma elegante criada vestida com um vestido escuro e uma touca e um avental impecáveis guarnecidos de renda. Era alegre e gotejava confiança em si mesma.
—Sim, senhor?
—Bom dia. Meu nome é Thomas Pitt. - Estendeu-lhe seu cartão - Lhe rogo que me desculpe por vir a uma hora tão inoportuna, mas eu gostaria de ver o senhor O'Neil antes de que saia para atender os assuntos do dia. Tem a ver com a morte de um amigo dele e há certa pressa.
—Oh, céus! Asseguro-lhe que eu não sei quem morreu. Será melhor que entre, e direi ao senhor O'Neil que está aqui. - Abriu-lhe a porta de par em par, deixou o cartão em uma bandejinha de prata e o fez entrar a saleta da manhã. Era escura e não havia fogo, mas estava imaculada, decorada em um estilo extremamente conservador e tradicional. O mobiliário era volumoso, de carvalho esculpido em sua maior parte, e estava repleto de toda sorte de fotografias e adornos, lembranças de cada visita, parente e acontecimento familiar ao menos as últimas quatro décadas. O espaldar das cadeiras se achava protegido por toalhinhas bordadas, rematadas com um desgastado trabalho de crochê. Os altos tetos tinham um painel de profundos quadriculados que dotavam à estadia de uma aparência clássica, desmentida pelos ornados spots de latão. Não havia flores no console, mas uma doninha dissecada sob uma lanterna de cristal. Era um objeto de decoração doméstica muito habitual, mas ao olhar seus olhos brilhantes, artificiais, Pitt o achou repulsivo e triste. Tinha crescido em uma grande propriedade no campo em que seu pai era guarda-florestal, de modo que não foi difícil visualizar a criatura em liberdade, ferozmente viva. Essa relíquia imóvel e um tanto poeirenta de seu ser era em excesso ofensiva.
A porta se abriu enquanto contemplava a doninha. Pitt deu a volta e viu o educado rosto da criada.
—Se for amável de me seguir, o senhor Ou"Neil lhe espera.
—Obrigado.
Pitt a seguiu e cruzaram o saguão até chegar a uma sala quadrada, de altos tetos, que dava a um jardim extremamente cuidado onde cresciam flores outonais em fileiras.
Na sala, o mobiliário era volumoso e pesado, com um aparador de uns dois metros e meio de altura repleto de toda classe de pratos, sopeiras e molheiras. Os ricos cortinados caíam em uma cascata de cores veio e dourado. Fotografias da família em molduras de prata cobriam as outras mesas e escrivaninhas, e nas paredes pendiam vários bordados emoldurados.
Devlin O'Neil, que se achava de pé junto à janela, virou-se logo que ouviu abrir a porta. Era esbelto, de estatura um tanto superior à média, e tinha um traje informal, mas caro, consistente em uma jaqueta de quadros de suave lã e uma ligeira camisa de algodão egípcio. O preço de suas botas teria alimentado a uma família pobre durante uma semana. Tinha o cabelo castanho e os olhos escuros, e seu rosto transbordava de humor e imaginação indisciplinada, embora nesse momento sua expressão fosse de preocupação.
—Pitt, não é certo? Gwyneth diz que vem pela morte de alguém. É assim?
—Sim, senhor O'Neil - respondeu o inspetor - O juiz Stafford. Morreu repentinamente no teatro a semana passada. Sem dúvida estará informado.
—Ah, não posso dizer que o esteja. Suponho que o terei lido nos jornais. Naturalmente que o lamento, mas não conhecia esse homem. - Tinha um leve sotaque, pouco mais que uma ligeira musicalidade na voz, que Pitt se esforçava por localizar.
—Entretanto, esteve com ele no dia em que morreu - indicou o inspetor.
O'Neil parecia incomodado, mas seus olhos escuros não afastavam o olhar do rosto de Pitt.
—Com efeito, mas veio para ver-me por um assunto de... suponho que poderia dizer-se de negócios. Era a primeira vez que o via, e não voltei a vê-lo mais. - Sorriu fugazmente - Eu não o chamaria um amigo, senhor Pitt.
Pitt localizou o sotaque. Era do condado de Antrim.
—Lamento ter causado uma falsa impressão a sua criada. - Devolveu-lhe o sorriso - Só queria dizer que era alguém de quem você poderia ter informação relevante.
O'Neil ergueu as sobrancelhas, altas e arqueadas.
—Não falou de sua saúde comigo. E tenho que dizer que tinha muito bom aspecto. Não era um homem jovem, é claro, e sem dúvida lhe sobravam alguns quilos, mas nada importante.
—Do que falou com você, senhor O'Neil?
Este vacilou, a seguir relaxou e se mostrou abertamente divertido. Afastou-se da janela e observou ao inspetor com curiosidade.
—Suspeito que já saiba senhor Pitt, do contrário não estaria aqui. Ao que parece continuava interessado na morte do pobre Kingsley Blaine, cinco anos atrás. Não consigo dizer por que, salvo que essa infeliz, a senhorita Macaulay, não o deixava estar. E não me surpreenderia que ele quisesse pôr fim à discussão e às perguntas sobre o caso de uma vez por todas. Cinzas às cinzas e todo isso, não está de acordo?
—É isso o que lhe disse?
—Bem, não me disse isso exatamente assim, se me compreende. - O'Neil caminhava pela sala, a calma de seu porte denotava segurança. Sentou-se de lado no braço de uma poltrona e olhou Pitt com correto interesse - Me perguntou por todo o assunto, claro está, e lhe repeti o mesmo que disse à polícia e ante os tribunais na ocasião. Não posso dizer mais. - Indicou ao inspetor uma cadeira para que tomasse assento - Tudo foi muito cortês, muito agradável – continuou - mas não mencionou por que me perguntava isso, embora suponha que os cavalheiros de sua posição não costumam confiar-se a gente como nós, pobres cidadãos da rua. - Disse todo isso com um sorriso, mas Pitt percebeu que estava inquieto porque se tornou a trazer a luz esse assunto e ignorava o porquê. Por força teria sido doloroso. Se Stafford estava tentando enterrar o caso, não lhe teria importado dizer-lhe a O'Neil. Em troca, se tinha pensado voltar a abri-lo, possivelmente não queria mencionar.
—Importaria-se de me explicar o que lhe disse o senhor Stafford? - Pitt terminou por sentar-se, convidado expressamente a fazê-lo.
—Bem, certamente que não tenho inconveniente em que você saiba – respondeu O'Neil observando com atenção o rosto de Pitt apesar de sua atitude calma - Mas possivelmente tenha a gentileza de me dizer por que, você compreende. Ficaria-lhe muito agradecido.
—É claro. - Pitt cruzou as pernas e sorriu olhando-o diretamente nos olhos – assassinaram o senhor Stafford essa mesma noite.
—Céu santo! Não é possível!
Se O'Neil não estava surpreso, era um excelente ator.
—Algo lamentável - acrescentou o inspetor - Ocorreu no teatro.
—Seriamente? A ele? Um juiz do tribunal supremo nada menos. Que classe de canalha mataria a um juiz, a um homem idoso ou ao menos um homem mais velho com respeito a você e a mim? - O'Neil fez uma careta - Então foi um roubo?
—Não... Envenenaram-no.
—Envenenaram-no! - Seus olhos escuros refletiram uma surpresa ainda maior. - Por todos os Santos, que coisa mais insólita. Por que o envenenaram? Acredita que se trata de algum caso no qual estivesse trabalhando?
—Não sei, senhor O'Neil. Essa é uma das razões pelas quais eu gostaria de saber o que disse a você aquela tarde.
O olhar de O'Neil não evidenciou a menor vacilação. Controlava seu rosto inteligente, volátil, muito mais do que Pitt observara a princípio; apesar de todo seu encanto natural, nele não havia nada de ingênuo.
—É lógico - respondeu de pronto - Eu em seu lugar também quereria sabê-lo. Terei muito gosto em lhe agradar, senhor Pitt. - revolveu-se ligeiramente em seu assento - Em primeiro lugar me perguntou se recordava a noite em que assassinaram Kingsley Blaine. Tudo isso uma vez trocadas as cortesias de rigor, naturalmente. Respondi que claro que a recordava, como se pudesse esquecê-la, por muito que o tente! Então me pediu que a referisse, coisa que fiz.
—Importaria-lhe me referir isso também, senhor O'Neil? - interrompeu-o Pitt.
—Se o desejar. Bem, foi a princípios de outono, mas estou certo de que isso já sabe. Kingsley e eu havíamos resolvido ir ao teatro. - Deu de ombros, de um modo exagerado, expressivo, ao mesmo tempo em que tendia as mãos com as palmas para cima - Ele estava casado; eu, sem compromisso. Apesar de tudo, ele estava muito apaixonado pela atriz Tamar Macaulay, e depois da atuação tinha a intenção de ir vê-la aos camarins. Tinha um presente que pensava lhe dar e não cabe dúvida de que achava que lhe estaria convenientemente agradecida.
—Do que se tratava? - interrompeu o inspetor de novo.
—De um colar. Não sabia? - Parecia surpreso - É claro que sabe! Sim, uma jóia muito formosa. Pertenceu a sua sogra, que em paz descanse. Certamente não deveria tê-la entregue a outra mulher, mas todos fazem tolices às vezes. O pobre diabo está morto e já teria respondido por isso. - Fez uma breve pausa e olhou Pitt com interesse.
—Certamente. - O inspetor se sentiu obrigado, quando menos, a confirmar que o escutava.
—Então ele e eu tivemos uma espécie de desacordo... nada importante, me entende, só uma aposta sobre o resultado de uma briga. - Esboçou um sorriso zombador-. Uma exibição da nobre arte do pugilato, entre nós, senhor Pitt. Não nos pusemos de acordo em quem tinha ganhado e ele se negou a me pagar embora, segundo as normas, o dinheiro era meu. -Adiantou o lábio inferior com tristeza-. Abandonei o teatro cedo, com certo mau humor, e fui a uma casa de trato. – Sorriu com ingenuidade, mascarando a vergonha que pudesse sentir - Kingsley ficou com Tamar Macaulay e partiu muito tarde, ou isso acredito. Ao menos esse foi o testemunho do porteiro. A Kingsley, pobre infeliz, deram-lhe o recado, supostamente de minha parte, de que se reunisse comigo na casa de jogo que ambos freqüentávamos por aqueles dias. - Fez uma careta de dor - Para chegar até ali tinha que passar por Farrier"s Lane, e todos sabemos o que ocorreu ali.
—O recado foi escrito ou verbal?
—Oh, verbal, tudo de palavra.
—Então não voltou a ver o senhor Blaine?
—Não, vivo não, pobre infeliz.
—Foi isso tudo o que lhe perguntou o juiz?
—O juiz? - O'Neil arregalou seus olhos escuros.. - Oh… se refere ao pobre senhor Stafford? Sim, acho isso. Francamente, pareceu-me uma perda de tempo. O caso está fechado. Pronunciou-se um veredicto e não existiam dúvidas a respeito. A polícia deu com o tipo em questão. O pobre diabo perdeu a cabeça, enlouqueceu. - Fez uma leve careta - Não era cristão, já sabe. Distintas idéias do bem e o mal, sem dúvida. Enforcaram-no, não havia escolha. As provas eram concludentes. Isso devia ser o que se propunha o senhor Stafford: demonstrá-lo para que inclusive a senhorita Macaulay não tivesse mais remédio que admiti-lo e deixasse de importunar a todo mundo.
Bem poderia ser a verdade. Pitt tinha ido ver o senhor O'Neil porque uma de suas obrigações mais óbvias consistia em voltar sobre os passos de Stafford. Naquela tarde, alguém tinha jogado ópio líquido em seu cantil, do contrário Livesey e seu amigo se teriam se envenenado quando beberam dela antes. Entretanto, também abrigava a esperança de averiguar algo que lhe indicasse se Stafford tinha a intenção de reabrir o caso ou de fechá-lo para sempre. Talvez uma esperança vã? O'Neil foi um dos suspeitos iniciais. Dificilmente quereria que o assunto voltasse a sair à luz.
Pitt olhou O'Neil, ajeitado comodamente na poltrona. Se estava nervoso, ocultava-o melhor que ninguém. Parecia despreocupado, triste, correto, um homem tratando generosamente um tema muito desagradável, submetendo-se a uma obrigação socialmente exigida que ele compreendia sem ressentimento.
—Perguntou-lhe algo novo em algum sentido, senhor O'Neil? - Pitt esboçou um sorriso sério, tentando aparentar que sabia algo que ainda não tinha revelado.
O'Neil piscou.
—Não, nada que recorde. Tudo me pareceu terreno trilhado. Oh... sim me perguntou se Kingsley levava bengala ou algum tipo de bastão, mas não me disse por que queria sabê-lo.
—E levava bengala o senhor Blaine?
—Não. -O'Neil torceu o gesto - Não era a classe de homem que se enceta em uma briga com qualquer um. Foi um assassinato por motivos pessoais, senhor Pitt. Se alguém tenta dizer que foi uma briga, uma briga cara a cara com alguém, são imaginações. - Perdeu a luminosidade de sua expressão e se inclinou - Foi brutal, rápido e contundente. Eu vi o corpo. Empalideceu - Fui eu quem foi identificá-lo. Não tinha mais família que sua esposa e seu sogro. Pareceu-me o adequado. O corpo não apresentava nenhuma outra marca senhor Pitt. Só a punhalada que o matou, no flanco e em direção ao coração e os pregos nas mãos e pés. - Meneou a cabeça - Não... não, é impossível que se tratasse de uma briga entre dois homens armados. Ele não se defendeu.
—Não mencionou o senhor Stafford por que lhe interessava sabê-lo?
—Não; perguntei-lhe, mas evitou a resposta.
Pitt não conseguia compreender por que motivo Stafford tinha exposto essa pergunta. Teria que ver com as provas médicas que tinha questionado? Devia achar Humbert Yardley e perguntar-lhe.
—Como era Kingsley Blaine, senhor O'Neil? – prosseguiu - Por desgraça não sei absolutamente nada dele. Era alto?
—Oh. -O'Neil parecia desconcertado - Bom mais alto que eu, mas ágil, já me entende. - Olhou Pitt com expressão inquisitiva - Não era um atleta, mas sim um bom, não se deve falar mal dos mortos, e, além disso, era meu amigo, mas um sonhador sabe? -levantou-se com certo garbo-. Gostaria de ver uma fotografia sua? Há algumas na casa.
—Seriamente? - Pitt estava surpreso, embora certamente era algo razoável. Ambos tinham sido amigos.
—Claro - respondeu O'Neil na hora. - Além de tudo, esteve vivendo aqui durante toda sua vida de casado, que, Deus lhe benza, durou só um par de anos.
Pitt se surpreendeu. Nas notas que tinha lido não se mencionava nada a respeito.
—Esta casa era de Kingsley Blaine?
—Ah, não. - Era evidente que a O'Neil lhe divertia a confusão do inspetor – A casa pertence a meu sogro, o senhor Prosper Harrimore. E naturalmente minha avó por afinidade, a senhora Adah Harrimore, também vive aqui. - Voltou a sorrir com absoluta candura - Me casei com a viúva de Kingsley. Não sabia?
—Não - admitiu Pitt ficando também em pé - Não sabia. Falou o senhor Stafford com algum dos membros de sua família?
—Não, Veio tarde, perto das quatro. Eu acabava de chegar a casa de um excelente almoço tardio, ele me tinha feito chegar uma mensagem ao clube e preferi vê-lo aqui que ali. - Foi até a porta e a abriu - Então não sabia o que queria, à exceção de que tinha que ver com o Kingsley. Era algo que eu não desejava tratar em público nem recordar a meus amigos, se é que fosse bastante afortunado para que o tivessem esquecido.
—E os outros membros da família não estavam em casa? - O inspetor saiu ao saguão.
O'Neil o seguiu.
—Não, minha esposa estava de visita em casa de uns amigos, minha avó por afinidade tinha ido dar um passeio em carruagem e meu sogro se achava em seu escritório. Tem interesses em uma sociedade mercantil no centro.
Pitt retrocedeu para deixar que O'Neil o precedesse pelo bonito saguão, com chão de lajotas brancas e negras, de onde partia uma magnífica escada que conduzia a uma ampla galeria.
—Agradaria-me muito ver uma fotografia - assegurou. Não sabia com exatidão o que poderia tirar claro dela, mas queria ver Kingsley Blaine, ter ao menos uma impressão do protagonista dessa tragédia que, ao parecer, continuava perigosamente viva depois de cinco anos da morte do próprio Blaine e do enforcamento de Aaron Godman por seu assassinato.
—Ah, bem - disse O'Neil alegremente, claramente com um recuperado bom humor - A mostrarei, não faltava mais.
Abriu a porta e levou ao Pitt a outra estadia maior e mais quente, em que ardia um fogo na lareira que crepitava ruidosamente, de chamas crepitantes. Uma moça de cabelo castanho claro e maçãs do rosto inusitadamente proeminentes estava sentada em uma banqueta acolchoada, e a seu lado havia um menino moreno, de cabelo crespo, de uns dois anos. Uma menina, que Pitt calculou teria uns quatro anos, achava-se sentada no tapete, frente à mulher, nas mãos um livro fino, de brilhante colorido. Seu aspecto era bastante diferente: tinha o cabelo de um loiro cinzento, só levemente ondulado, e uns solenes olhos azuis.
—Olá, preciosa - saudou Ou"Neil com tom alegre, lhe acariciando a cabecinha.
—Olá, papai – respondeu contente - Estou lendo um conto a mamãe e ao James.
—Caramba! - disse O'Neil com admiração, sem questionar sua veracidade - E do que trata?
—De uma princesa - respondeu a menina sem vacilar - e de um príncipe encantado.
—Vá, é estupendo, tesouro.
—Deu-me isso o avô. - Mostrou-o com orgulho - Me disse que se for boa serei uma princesa como ela.
—Pois claro que o será, querida - assegurou O'Neil - Kathleen, querida -acrescentou dirigindo-se à mulher-, este é o senhor Pitt. Veio por um assunto de negócios. Senhor Pitt, me permita que o apresente a minha esposa.
—Encantado de conhecê-la, senhora O'Neil - saudou o inspetor educadamente. De modo que essa era Kathleen Blaine O'Neil. Era formosa, muito feminina, e, entretanto seus traços revelavam força, uma força que não se via mascarada pelo suave queixo e os doces olhos.
—Encantada de conhecê-lo, senhor Pitt - saudou ela sem expressão alguma, salvo uma ligeira curiosidade.
—Ao senhor Pitt lhe interessa a fotografia - afirmou O'Neil dando as costas a Kathleen e olhando ao inspetor - Temos algumas boas fotografias que desejaria lhe mostrar.
—Naturalmente. - Kathleen sorriu ao inspetor - Seja bem-vindo, senhor Pitt. Espero que lhe sejam úteis. Toma você muitas fotografias? Penso que terá conhecido gente interessante.
Pitt hesitou só um instante.
—Sim, senhora O'Neil, não há dúvida de que conheci gente muito interessante, com rostos bastante singulares, tanto bons como maus.
Ela continuou olhando-o sem fazer nenhum outro comentário.
—Talvez goste desta - disse O'Neil com naturalidade.
Pitt se aproximou e viu uma grande moldura de prata com uma fotografia de uma jovem mulher em que não demorou a reconhecer Kathleen O'Neil vestida na moda. Atrás dela havia um homem de aproximadamente a mesma idade, alto, ainda com a esbelteza da juventude, loiro, de cabelos ondulados que lhe caíam ligeiramente sobre a sobrancelha esquerda. Possuía um rosto atraente, afável, sentimental, transbordante de uma sensualidade romântica, natural. O inspetor não precisou perguntar se era Kingsley Blaine. Depois, em privado, perguntaria a O'Neil se Blaine era o pai da menina, a maior, a de cabelo loiro, mas seria uma mera formalidade; a resposta era evidente.
—Sim - disse pensativo - Uma foto excelente. Estou-lhe muito agradecido, senhor O'Neil.
Kathleen o olhava com interesse.
—Foi-lhe de ajuda, senhor Pitt? Ele era meu primeiro marido. Morreu faz uns cinco anos.
Pitt se sentiu um hipócrita. As palavras se amontoavam em sua cabeça. Devia lhe dizer que sabia, mas como fazê-lo sem pôr em um apuro a O'Neil?
Este o resgatou.
—O senhor Pitt já sabe, querida explicou a sua esposa - Já o contei.
—Oh. Entendo. - Entretanto era claro que não entendia.
A situação ficou salva quando uma porta se abriu e entrou um homem. Olhou primeiro a O'Neil, depois a Pitt, com uma interrogação marcada no rosto poderoso, de nariz afiado. Era corpulento, robusto de tórax, e caminhava com uma acusada claudicação. Contemplou por um instante as crianças com intenso orgulho nos olhos, antes de voltar-se para Pitt.
—Ah, bom dia, papai - saudou O'Neil com um sorriso encantador - Este é o senhor Pitt, um conhecido meu dos negócios.
—Bom! - Harrimore dirigiu a Pitt um olhar cortês, mas com expressão cautelosa. Tinha um rosto notável: por um momento era de uma força quase amedrontadora, e, entretanto, quando se movia e a inteligência iluminava seus olhos, também era vulnerável. Tinha a boca um tanto torcida, mas era impossível dizer se de crueldade ou de dor - Me alegro de que tenha vindo a nossa casa, senhor Pitt, e nos tenha economizado a moléstia de nos deslocar a esta hora. Almoçou ou podemos lhe oferecer um refrigério?
—Muito amável de sua parte, senhor Harrimore, mas já almocei obrigado - respondeu Pitt. Kathleen talvez aceitasse que o motivo de que se encontrasse ali fosse o interesse pela fotografia, mas não achava que Prosper Harrimore se deixasse enganar com tanta facilidade.
—Devlin estava mostrando ao senhor Pitt a fotografia do Kingsley e eu em nossas bodas - esclareceu Kathleen com um sorriso.
—Seriamente? - perguntou Harrimore sem tirar olho do inspetor.
—Uma excelente amostra de arte - adulou Pitt, olhando O'Neil.
—Com efeito - concordou este voltando-se para sua esposa - Será melhor que se ocupe das crianças, querida, e de seu passeio matinal, agora que o tempo é tão agradável.
Ela se levantou obedientemente - reconhecia uma ordem quando a ouvia - apresentou suas desculpas a Pitt e a seu pai, saiu ao saguão seguida dos dois pequenos e fechou a porta.
—O senhor Pitt veio pela morte recente e repentina do juiz Stafford – explicou O'Neil imediatamente. Seu rosto tinha recuperado sua antiga gravidade - Vi o pobre homem no mesmo dia em que morreu, de forma que é natural que me pergunte.
Muito discreto por sua parte, senhor Pitt - disse Harrimore pausadamente, olhando-o de cima abaixo-. E por que se interessa você por esse assunto? Não parece policial.
Pitt não estava certo de se tratasse de um cumprimento ou de uma queixa.
—Às vezes é uma vantagem - respondeu com tranqüilidade - mas não enganei ao senhor O'Neil a esse respeito.
—Não... não, suponho que não. - Um humor incerto apareceu nos olhos de Harrimore - E por que se interessa a polícia pela morte do senhor Stafford?
—Porque temo que não foi uma morte natural.
Harrimore ficou tenso.
—Isso não é nosso assunto. Esta casa já teve mais que suficiente com um assassinato, como sem dúvida sabe. Meu finado genro morreu violentamente. Agradeceria-lhe que não trouxesse à tona este tema e atormentasse de novo a minha família. Minha filha já sofreu bastante e farei tudo que esteja em minha mão para proteger a todos de uma maior aflição. - Olhou Pitt com severidade, inconfundível a tácita ameaça.
—Essa é a razão pela qual me abstive de mencionar o autêntico motivo de minha visita em presença de sua filha - respondeu Pitt com calma - A senhora O'Neil não podia saber nada do senhor Stafford, já que não estava em casa quando este veio, de forma que achei que o melhor seria ser discreto.
—Isso é algo - concedeu Harrimore a contra gosto-. Embora não sei o que pôde lhe dizer Devlin.
—Pouca coisa - interveio este com delicadeza - Só o que o senhor Pitt já sabe por outros, papai. Mas suponho que o pobre tem ante si uma árdua tarefa.
Harrimore soprou.
A porta voltou a abrir-se e entrou uma anciã de peito proeminente, ombros estreitos e quadris largos, mas de porte erguido e uma deliciosa cabeleira. Sua semelhança com Harrimore era bastante pronunciada para fazer desnecessárias as apresentações, salvo por cortesia.
—Encantado de conhecê-la, senhora Harrimore - disse Pitt depois da fria saudação dela.
Adah Harrimore o observava com seus brilhantes olhos escuros afundados como os de seu filho e extremamente inteligentes.
—Inspetor - disse com cautela - do que se trata desta vez? Aqui não houve nenhum crime. O que quer de nós?
—É algo sobre a morte do juiz Stafford, pobre homem - explicou O'Neil enquanto afofava uma almofada na cadeira contígua à anciã - Morreu a outra noite, no teatro.
—Pelo amor de Deus, deixa isso em paz! - replicou Adah olhando de esguelha a cadeira - Não preciso me sentar ainda. Estou perfeitamente! E o que tem que morreu? Os velhos morrem a cada minuto. Não estranharia que bebesse muito e lhe desse uma apoplexia. - voltou-se para Pitt e o olhou de cima abaixo. -. Veio aqui só porque um juiz morreu no teatro? Será melhor que tenha uma boa explicação, jovem.
—A sua não foi uma morte natural, senhora - afirmou Pitt olhando-a no rosto – O senhor Stafford veio a esta casa nesse dia para ver o senhor O'Neil. Queria saber qual era seu estado de ânimo, assim como o que o senhor O'Neil recorda de sua conversa.
—Seu estado de ânimo é relevante para sua morte? Está dizendo que se tirou a vida - inquiriu Adah.
—Não. Lamento lhe dizer que o assassinaram.
As narinas da anciã se moveram levemente ao exaltar, e ao redor de sua boca a pele empalideceu de forma quase imperceptível.
—Assassinaram-no? É uma desgraça, mas não tem nada que ver com esta família, senhor Pitt. Veio aqui uma vez, por uma investigação, conforme soube. Não o vimos nunca mais, nem antes nem depois. Lamentamos sua morte, mas, além disso, não há nada que possamos fazer. - voltou-se para O'Neil - Devlin? Suponho que esse homem não lhe confiou nenhuma dúvida a respeito de sua segurança.
O'Neil a olhou com os olhos muito abertos.
—Não, avó. Pareceu-me perfeitamente tranqüilo, controlando a situação.
A mulher estava pálida e tinha um ligeiro tique na pálpebra direita.
—Seria uma rabugice perguntar por que motivo veio vê-lo um juiz nesta casa? Que eu saiba a família não tem causa alguma ante o tribunal de apelação.
O'Neil vacilou só um instante, fugindo o olhar de Pitt.
—Absolutamente, avó - assegurou com um sorriso relaxado - Não o mencionei na ocasião para não inquietá-la, mas Tamar Macaulay não deixava de importunar ao pobre homem para que reabrisse o caso da morte do Kingsley, que em paz descanse. O senhor Stafford queria lhe demonstrar de uma vez por todas que está fechado. O veredicto foi correto e ela não vai mudá-lo, pobre mulher, por muito que se empenhe. Deixemos que as pessoas esqueçam e siga com sua vida.
—Isso digo eu - afirmou a anciã com veemência - A pobre desgraçada deve estar demente para insistir em desenterrar esse assunto. Isso acabou! - Tinha os olhos brilhantes, com uma expressão de dureza - Sangue ruim - acrescentou com amargura-. Impossível escapar a ela. - ficou olhando fixamente o rosto de O'Neil - Kingsley está em sua tumba, assim como esse maldito judeu. Que nos deixem viver em paz. - Seu rosto era severo, destilava um antigo ódio, uma terrível dor.
—Assim é, avó - murmurou O'Neil - Não permita que siga atormentando-a. Agora o pobre senhor Stafford também está na tumba, ou a ponto de estar. Esperemos que seja suficiente inclusive para a senhorita Macaulay.
Adah se estremeceu e em seus olhos se acrescentou o ódio.
Prosper adquiriu vida de repente, como se tivesse estado congelado e despertasse nesse preciso instante.
—Acabou-se! Senhor Pitt, não há nada que possamos fazer para ajudá-lo - disse bruscamente-. Desejamos-lhe o melhor, mas terá que procurar em outra parte quem quer que matou ao senhor Stafford. Não cabe dúvida de que tem inimigos pessoais... -Calou o resto, deixando-o no ar. Não ia falar mal dos mortos, era vulgar, mas as conclusões estavam implícitas.
—Obrigado por ter tido a gentileza de me receber, senhora. - Pitt se dirigiu à rígida figura de Adah, e a seguir a do Harrimore. Aceitou o inevitável. De todo modo não ia averiguar nada mais da boca de O'Neil. A resposta de que Stafford só pretendia demonstrar a verdade sem lugar a dúvidas era muito satisfatória e muito acreditável, para que ele pudesse dizer algo diferente. E dado que ao parecer não havia ninguém mais na casa quando se apresentou o juiz Stafford, não podiam ser suspeitos… e tampouco tinham motivo para assassiná-lo. Eles não tinham estado implicados no assassinato de Kingsley Blaine, a investigação inicial nunca os teve em conta.
—Não há de que - respondeu a anciã com uma frieza atenuada unicamente pelas exigências da urbanidade - Que tenha um bom dia, senhor Pitt.
Prosper olhou de esguelha a sua mãe, logo a Pitt, esboçou um sorriso forçado e a seguir tomou a campainha para chamar uma criada que acompanhasse ao inspetor até a porta.
Fora, na tranqüila rua, Pitt começou a dar voltas na cabeça ao assunto. Parecia cada vez mais provável que tinham sido Juniper Stafford ou Adolphus Pryce quem verteu o ópio na cigarreira. Para falar a verdade, por muito inútil e desnecessário que fosse ao olhá-lo à fria luz da razão, possivelmente no calor da paixão imaginassem que, com o Stafford morto, podiam achar uma felicidade que lhes escaparia enquanto ele vivesse. A obsessão nem sempre vê mais à frente do momento, nem dos desejos que consomem e enchem o pensamento até que se satisfazem, custe o que custar.
Era realmente isso o que sentiam? Era algo que teria que considerar, só a idéia lhe fez torcer o gesto. Era uma intromissão que detestava. As pessoas tinham debilidades que ninguém devia conhecer, e essa classe de necessidade desequilibrada e de substância absorvente de outra pessoa era uma delas. Não engrandecia ao que a sentia, diminuía-o e no final o destruía, como aparentemente tinha destruído a Juniper Stafford e à sua amante.
Não obstante, antes de começar a procurar provas a esse respeito acabaria com o caso Blaine/Godman. Já sabia muito dele, mas podia haver outras coisas - detalhes que só conhecesse a polícia - que alterassem o panorama. Deste modo desejava formar sua própria opinião dos homens que tinham levado a cabo a investigação inicial, conhecer as pressões a que estiveram submetidos então, a margem de engano, e a ser possível as impressões de tais homens.
Em conseqüência, caminhou devagar até a via principal, as mãos nos bolsos, imerso em seus pensamentos. Não gostava de julgar as investigações de outros, mas não tinha escolha. Mesmo assim, trataria de fazê-lo com a máxima discrição, de modo que lhe levou algum tempo escolher as palavras com as que começaria.
Chegou à delegacia de polícia de Shaftesbury Avenue pouco antes de meio-dia.
—Sim, senhor? -perguntou, educado, o sargento de recepção, o rosto adequadamente inexpressivo.
—Inspetor Pitt, de Bow Street - se apresentou - Tenho um problema com o qual acredito poderia me ajudar, se for amável de me conceder um minuto.
—É claro. Estou certo de que faremos o que pudermos. Do que se trata?
—Tenho um caso difícil entre mãos cujos antecedentes talvez conheça. Agradeceria poder falar com o oficial responsável por um caso do qual se ocuparam vocês há uns cinco anos. Um assassinato em Farrier"s Lane.
O rosto do sargento sombreou.
—Isso já se esclareceu na época, senhor Pitt. Está liquidado. Eu mesmo estava aqui e sei tudo a respeito.
—Sim, sei - concordou o inspetor com tom conciliador - Não se trata de quem era o culpado, mas sim de um assunto que se deriva de sua conclusão. Preciso falar com o oficial responsável, se for possível. Continua no corpo?
—É claro... o promoveram depois. Fez um bom trabalho. - O sargento se endireitou inconscientemente e ergueu um tanto o queixo - É o inspetor chefe Lambert. Não tenho dúvida de que se pode lhe ajudar com seu problema estará encantado de fazê-lo. Com muito gosto o perguntarei, inspetor. - E pondo em seu lugar Pitt com semelhante firmeza, dirigiu-se ao fundo do escritório e voltou uns minutos depois para lhe dizer que, se não se importava esperar uns dez minutos, o senhor Lambert o atenderia.
Pitt aceitou de bom grado, mesmo que ardia em desejos de desforrar-se.
Permaneceu de pé cinco minutos, depois se sentou no banco de madeira e aguardou impaciente, outros dez mais, depois voltou a levantar-se. Por fim apareceu um jovem polícia que o conduziu até um pequeno e desordenado escritório onde um impetuoso fogo esquentava claustrofobicamente a estadia em comparação com o escritório de fora, mais frio. Charles Lambert o recebeu com um olhar de circunspeta urbanidade. Aproximava nas cinqüenta, apresentava uma avançada calvície e tinha uns traços nobres e olhos claros.
—Bom dia... Pitt, não é assim? Sente-se. - Indicou a única cadeira que havia. - Lamento havê-lo feito esperar. Estou muito ocupado. Um montão de roubos desagradáveis. O sargento diz que necessita ajuda. O que posso fazer por você?
—Estou trabalhando no assassinato do juiz Samuel Stafford...
Lambert arqueou as sobrancelhas.
—Não sabia que o tivessem assassinado. Pensava que tinha morrido em seu camarote do teatro.
—Assim foi. Envenenado.
Lambert meneou a cabeça e adiantou o lábio inferior.
—O sargento mencionou Farrier"s Lane. O que tem isso que ver com a morte do Stafford? - Sua voz era cautelosa - Isso acabou há cinco anos e, de todo modo, ele não era o juiz. Foi Quade, Thelonius Quade. Não houve dúvida alguma sobre o veredicto ou sobre o desenvolvimento do julgamento.
—Mas houve uma apelação - disse Pitt com a maior suavidade possível. Devia ter presente todo o tempo que não conseguiria nada se provocava ao Lambert e este ficava na defensiva - Nenhuma prova nova, suponho.
—Nenhuma. Só uma desesperada tentativa de salvar ao homem da forca. Compreensível, suponho, mas inútil.
Pitt respirou fundo. Não estava conseguindo nada. O tato tinha suas limitações.
—Stafford estava investigando o caso de novo. No dia em que morreu entrevistou a maioria dos suspeitos iniciais.
O rosto de Lambert se endureceu, e se endireitou um tanto na cadeira.
—Não sei para que! - Sua voz já delatava uma atitude defensiva - A menos que a irmã conseguisse persuadi-lo de algum modo. - deu de ombros, expressando com clareza o rechaço que lhe produzia semelhante ideia-. É uma mulher atraente e está obcecada em que seu irmão era inocente. É uma insinuação desagradável, sei. - A brutalidade voltou de novo para seu tom, em guarda frente a um esperado ataque - Mas assim são as coisas. Não seria o primeiro homem que perde a cabeça por uma mulher bonita e resoluta.
Pitt estava irritado, mas tratou de ocultá-lo.
—Não... é claro que não. E pode ser que isso fosse tudo, mas compreenderá que se tiver que dizer isso, devo ter boa prova. Sua viúva não o aceitará de qualquer jeito; e tampouco seus companheiros da magistratura. - esforçou-se por esboçar um sorriso que não sentia - Estaremos pondo em dúvida a virtude e o bom julgamento de todos eles se dissermos que simplesmente tinha perdido a cabeça por um rosto bonito, e que se esqueceu de sua inteligência e de sua experiência até o ponto de reabrir o caso por esse motivo. Encontrarei-me em uma situação muito pouco invejável se afirmar isso e não puder prová-lo.
Lambert lhe devolveu o sorriso, relaxando um tanto à medida que sua mente saltava de suas próprias dificuldades às de Pitt.
—Disso não cabe dúvida - concordou com uma sensação próxima ao entusiasmo. - Suas senhorias levarão a mal. Acabará perseguindo ladrões e jogadores profissionais.
—Exatamente. - Pitt se remexeu um pouco em seu assento. A sala era asfixiante - assim, poderia me dizer tudo o que recorda do assassinato de Farrier"s Lane? Assim poderei dizer a meus superiores que não pode ser que Stafford estivesse investigando por qualquer motivo razoável. - desculpou-se mentalmente ante Micah Drummond pela calúnia implícita.
—Se acreditar que isso lhe ajudará - respondeu Lambert - Foi tudo muito simples, embora na época não cabia esperá-lo.
—Desagradável, atreveria-me a pensar - murmurou Pitt - Um imenso clamor popular.
—Nunca vi um caso igual - afirmou Lambert reclinando-se em sua poltrona, ficando mais cômodo. Agora compreendia o que o inspetor queria e, mais importante ainda, por que - Salvo os assassinatos do Whitechapel, mas naturalmente eles nunca apanharam o estripador, pobres diabos. Umas quantas demissões graças a ele.
—Em troca, você sim apanhou a seu homem.
Os olhos do Lambert, de uma cor avelã clara e nítida, enfrentavam os do Pitt conscientes de tudo que ficava sem dizer, assim como da conversa superficial entre ambos.
—Apanhamos... e me promoveram. Tudo foi legítimo. - A brutalidade voltou para sua voz uma vez mais - As provas eram incontrovertíveis. Não posso negar que tivemos sorte, certamente, mas também fizemos um excelente trabalho. Meus homens estiveram fantásticos: disciplinados, entregues e contidos em situações complicadas. Muita histeria. Muito terror. Alguns incidentes muito desagradáveis no East End. Um par de sinagogas assaltadas, janelas destroçadas, um prestamista moído a pauladas. Pôsteres por toda parte e pichações nas paredes. Alguns jornais inclusive pediram que se expulsasse a todos os judeus da cidade. Muito desagradável... mas não pode culpá-los. Foi um dos piores assassinatos de Londres. - Estava observando atentamente ao Pitt, estudando seu rosto, interpretando sua expressão.
Este tentava manter sob controle suas emoções, parecer impassível, e estava quase certo de que não o conseguia.
—Sim? - perguntou cortesmente - Sei que acharam o corpo de Kingsley Blaine em Farrier"s Lane… quem o achou?
Lambert fez um esforço por recordar os detalhes.
—O menino do ferreiro, de manhã cedo - respondeu-. O pobre moço levou um susto que não conseguiu superar em todo o tempo que o tratamos. Ouvi que depois do julgamento deixou Londres e foi para o campo. Para Sussex.
—Não passou ninguém mais por Farrier"s Lane essa noite? Estranho, para um lugar de passagem habitual, não acha - observou Pitt.
—Bem, digamo-lo assim: se passou alguém, ou não viu Blaine pregado à porta das cavalariças ou não o notificou. Suponho que qualquer das duas possibilidades é bastante plausível. As pessoas iriam pendente de seu caminho e não o veria na escuridão...
—As cavalariças não ficavam na passagem?
—Não... não, foi no outro lado do pátio.
—De forma que quem quer que matou Blaine o atraiu para que cruzasse esse pátio ou era bastante forte para levá-lo até ali -raciocinou Pitt.
—Suponho que é o lógico - admitiu Lambert - Em qualquer caso Blaine conhecia Godman; não seria difícil convencê-lo de que abandonasse o beco e se dirigisse ao pátio...
—Não seria difícil? Eu não iria só ao pátio de umas cavalariças na escuridão com um homem cuja irmã estivesse seduzindo, e você?
Lambert o olhou de cima a baixo, o rosto corado pela confusão e irritação.
—Acredito que extraiu uma conclusão equivocada. Kingsley Blaine era um jovem de aparência agradável, educado, um tanto ingênuo, que se apaixonou por uma atriz com talento, em realidade nenhuma beleza, mas magnética, uma mulher que sabe como manipular aos homens. - Havia em sua voz certeza e desprezo - Se houve algum seduzido, foi Blaine, não ela. Godman talvez se sentisse mortalmente ofendido, mas sabia que era verdade. - Negou com a cabeça - Não, Pitt, Tamar Macaulay não era uma jovenzinha inocente seduzida por um canalha. Ninguém que conhecesse os implicados o teria imaginado assim. Em minha opinião, é bastante fácil acreditar que Blaine iria com Godman acreditando-se totalmente seguro.
Pitt refletiu um instante e despojou sua voz de todo ceticismo.
—Pode ser que Tamar Macaulay levasse a voz cantante em sua aventura, que fora a sedutora, se assim o desejar… mas presume você que deixou que Blaine se desse conta disso?
—Não tenho nem idéia. - Lambert se mostrou depreciativo - Acaso importa?
O inspetor trocou de postura na cadeira. Teria gostado que Lambert abrisse uma janela. Na sala mal havia ar.
—Bem, certamente o que importa não é a realidade da relação, a não ser o que Blaine pensava que era - apontou-. Se se achava um mau tipo por ter uma aventura com uma atriz, então se teria sentido culpado e teria agido com cautela, por muito ridículo que fosse.
—Duvido - replicou Lambert, no rosto o vivo reflexo do rancor ao compreender o raciocínio - Godman não era um homem de estatura ou constituição poderosa. Blaine não era corpulento, mas sim alto. Não acredito que temesse por sua integridade física.
Pitt se remexeu em seu assento, desconfortável, puxando instintivamente a gola da camisa para impedir que o afogasse.
—Bem, se Blaine era um homem alto e Godman bastante miúdo, é pouco provável que este último fosse capaz de arrastar Blaine já morto e segurá-lo contra a porta enquanto lhe pregava as mãos e os pés –raciocinou - Por certo, como conseguiu fazer isso? Sabe?
Lambert corou mais ainda.
—Não. Nem sei nem me importa inspetor Pitt. O estado de ira em que devia achar-se para fazer algo assim... Possivelmente assim achasse a força. Dizem que os dementes possuem uma força sobre-humana quando lhes sobrevém um ataque de loucura.
—Talvez - disse Pitt com grandes duvidas.
—Que demônios importa isso agora - replicou Lambert com aspereza - Se fez. E foi ele quem o fez... isso está fora de toda dúvida. Ao Blaine, pobre diabo, pregaram-no à porta das cavalariças. - Tinha empalidecido, sua voz gotejava emoção - Vi-o com meus próprios olhos. - Percorreu-lhe um calafrio-. Parecido com pregos de ferrador nas mãos e os pés… os braços estendidos como a imagem de Cristo, os pés juntos, e tudo cheio de sangue. Godman foi visto saindo do beco e manchado de sangue. Conseguiu erguer o corpo, provavelmente lhe pregasse primeiro uma mão e depois a outra.
—Tentou alguma vez levantar um corpo morto, Lambert? - perguntou Pitt com tom equânime.
—Não... e também nunca tentei crucificar ninguém, nem montar bicicleta pela corda bamba! - exclamou Lambert - Mas o fato de que eu não possa fazê-lo não significa que não possa fazer-se. O que está tratando de dizer, Pitt? Que não foi Godman?
—Não. Simplesmente pretendo entender o que ocorreu e no que podia estar pensando o juiz Stafford quando voltou a interrogar todas as testemunhas. Ao que parece lhe preocupava o informe do legista. Pergunto-me se teria algo que ver com isso.
—O que lhe faz pensar que tinha algo que ver com isso? Acaso o disse? - perguntou Lambert.
—Disse muito pouco. Não foram as provas médicas a base da apelação?
—Sim, mas não havia nada nelas. A apelação foi desprezada.
—Possivelmente isso fosse o que perturbava ao Stafford - apontou o inspetor.
—Então se trata de uma questão legal, não relativa às provas - afirmou Lambert com absoluta certeza. Inclinou-se um tanto, de novo concentrado no rosto de seu interlocutor, a expressão dura, o sobrecenho franzido - Olhe Pitt, foi um caso muito difícil de investigar, não pelas provas, que estavam bastante claras e havia testemunhas, mas sim pelo ambiente. Meus homens estavam tão horrorizados como o resto da gente... mais inclusive. Vimos o corpo, pelo amor de Deus. Vimos o que esse monstro fez ao pobre diabo.
Pitt experimentou uma repentina opressão. Tinha visto cadáveres, e sentiu o lacerante horror e a compaixão, imaginou o medo, o momento em que lhes sobreveio a morte, a demência do ódio que devia ter refletido no rosto do assassino ou o terror que os invadiu, que, embora breve, fez-lhes perder a razão e parte de sua humanidade.
Lambert deve lhe ter lido o pensamento.
—Pode culpá-los se lhes resultou duro? - perguntou na hora.
—Não - respondeu Pitt - Não, é claro que não.
—Para cúmulo tínhamos o subcomissário em cima todos os dias, às vezes várias vezes ao dia, exigindo que déssemos com o autor e encontrássemos provas. - estremeceu inclusive em tão esquentada habitação, o gesto torcido em uma careta de dor - Não tem nem idéia de como foi. Contava-nos cada dia o que diziam os jornais, os distúrbios anti-semitas nas ruas, as frases borradas nas paredes, as pessoas jogando pedras e lixo aos judeus, as janelas destroçadas das sinagogas. Relatava-o uma e outra vez como se não nos tivéssemos informado. Dizia que tínhamos que resolvê-lo em quarenta e oito horas. - O desprezo aflorou a seu rosto - É claro não dizia como! Fizemos quanto pudemos isso posso assegurar-lhe E o fizemos bem. Interrogamos a todo mundo... ao porteiro que recebeu a mensagem do menino...
—Que menino - interrompeu-lhe Pitt.
—Oh, Godman deu a um garoto da rua uma mensagem para que o entregasse a Blaine - explicou Lambert - De palavra... nada escrito. Ao menos estava suficientemente lúcido e cordato para isso. É de supor que Godman aguardou na escuridão, do outro lado da rua, até que viu apagar as luzes do teatro e sair Blaine; justo então enviou ao garoto para que lhe desse o recado. Desse modo se asseguraria de que lhe chegava. Depois Blaine se dirigiu para o norte, ao Soho. Temos o testemunho do porteiro que o confirma. E é de supor que Godman o seguiu, chegado a um ponto tomou um atalho, adiantou-o e o pegou em Farrier"s Lane, onde o matou.
—Tudo planejado? - perguntou Pitt com curiosidade - Acredita que sabia que os pregos de ferrador estavam ali? Ou foi casualidade?
—Isso não importa - respondeu Lambert dando de ombros - O fato de que levasse Blaine até ali com uma suposta mensagem do Devlin O'Neil demonstra que suas intenções não eram boas. Continua sendo um assassinato premeditado.
—Segundo o testemunho do porteiro? - inquiriu o inspetor.
—E do garoto.
—Continue.
—Também temos o testemunho dos tipos que rondavam pela entrada de Farrier"s Lane e viram Godman sair. Quando passou sob a luz, viram sangue em seu casaco. Claro está que naquele momento simplesmente pensaram que era um bêbado fazendo esses e que o sangue era de alguma ferida que ele mesmo se fizera ao cair, ou que lhe sangrava o nariz, Não lhe deram importância.
—Ia fazendo esses? - perguntou Pitt com curiosidade.
—Suponho. Provavelmente estivesse esgotado depois do esforço, e mais que enlouquecido.
—Entretanto, conseguiu refazer-se por completo, para parar e brincar quando chegou onde estava a florista, duas ruas mais à frente.
—Isso parece - corroborou Lambert com irritação - Então tinha conseguido controlar-se. O testemunho dessa mulher foi muito concreto. Foi isso o que realmente o levou a forca. - Voltava a estar na defensiva, rígido em sua poltrona - Paterson, o sargento que deu com ela, é muito bom.
—Com a florista?
—Sim.
—Poderia falar com ele?
—Naturalmente, se assim o desejar, mas só lhe dirá o que eu já lhe disse.
—E o que há sobre o casaco ensangüentado?
—Desfez-se dele em algum ponto entre o final de Farrier"s Lane e Soho Square, onde se encontrou com a florista. Nunca o achamos, mas não é de estranhar. Nenhum casaco duraria muito em uma rua londrina. Se não ficou alguém, venderia-o aos trapeiros pelo equivalente a uma semana de alojamento ou mais.
Pitt sabia que era verdade. Por um bom casaco de cavalheiro podia tirar o suficiente para um mês em algum tugúrio de má morte, além de sopa e pão. Para alguns podia supor a diferença entre a vida e a morte. Um pouco de sangue não importaria nada absolutamente.
—E o colar? - perguntou.
—O colar? - Lambert estava surpreso - Pelo amor de Deus, está claro que ela ficou com ele. Valia muito, segundo sua ajudante de camarim, capaz de reconhecer um diamante quando o via. Suponho que por ser a ajudante de uma atriz via muitas imitações, e também peças reais. - Houve certa inflexão em sua voz, uma sombra no rosto que expressava desprezo pelo artifício, fosse profissional ou aficionado. Não fazia distinção entre a ilusão destinada a entreter, ou a transmitir uma verdade mais profunda, e a simples falsificação com ânimo de enganar.
—Buscaram-no? - perguntou Pitt.
—Sim, naturalmente, mas ela teria uma centena de lugares onde escondê-lo se quisesse. Não foi roubado, dificilmente podíamos efetuar um registro policial. Simplesmente pôde levá-lo a casa de empenhos mais próxima até que passasse a exaltação popular.
—Viu-a com ele depois?
—Não tenho nem idéia! - Lambert levantou a voz, exasperado - Blaine está morto, enforcaram Godman. A quem ia importar?
—À viúva de Blaine. Ao que parece deveria ser seu.
—Bom, atreveria-me a dizer que tinha perdas maiores que lamentar – replicou Lambert - Era uma mulher muito decente, pobre criatura.
Pitt manteve a compostura com muita dificuldade, e só porque lhe interessava. Não conseguiria nada com uma disputa, e o certo era que, embora Lambert não fosse muito de seu agrado, compreendia-o. Devia ter sido uma época horrível, terrível, entristecedora, de histeria coletiva e oficiais superiores perseguindo-o, olhando por cima do ombro cada um de seus atos e exigindo resultados impossíveis.
—E o que há sobre a arma? - quis saber Pitt.
Lambert ficou tenso de novo.
—Nada concludente. Utilizou- meia dúzia de pregos de ferrador largos para crucificá-lo. O legista concluiu que provavelmente fora algum deles.
—Poderia ver agora o sargento Paterson? -perguntou Pitt- Acredito que já me disse tudo o que preciso saber. Não me ocorre nada mais que você pudesse ter feito, e duvido que alguém o faça no caso Stafford. Até agora as provas contra Godman parecem concludentes. Ignoro o que estava investigando Stafford. Ninguém achou nem o casaco nem o colar. Ninguém mudou seu testemunho. Não tornou a ver a florista ou o garoto que deu a mensagem ao Blaine?
—Não, como você diz, não há nada. - Lambert se apaziguou - Sinto muito - desculpou-se. - Suponho que fui bastante descortês. - Fez uma ameaça de sorrir - São más lembranças, e essa mulher, Macaulay, empenhada em remover o tema, insistindo em que nos equivocamos de homem resulta duro de aceitar. Se Stafford tentava sossegá-la de uma vez por todas, desejaria com toda minha alma que o tivesse conseguido.
—Talvez eu possa fazê-lo - afirmou Pitt com um sorriso.
Lambert suspirou. Por fim seus olhos deixavam de lançar faíscas.
—Nesse caso lhe desejo boa sorte. Irei procurar Paterson. - ficou em pé e passou ante Pitt, deixando-o só enquanto saía ao corredor e este ouvia afastar seus passos.
O inspetor se levantou imediatamente para abrir a janela e aspirou o ar frio com alívio. Ao cabo de um momento voltou a fechá-la quase de tudo e retornou a seu assento justo quando se abria a porta e aparecia um sargento de uniforme, a jaqueta imaculada, os botões reluzentes. Tinha pouco mais de trinta anos e era de estatura e compleição média. Seu rosto era pouco comum, o nariz largo e muito aquilino, boca bem pequena, mas o anódino de seus traços ficava redimido por uns bonitos olhos escuros e um delicioso cabelo ondulado penteado para trás de uma ampla fronte.
—Sargento Paterson, senhor - se apresentou erguido, mão firme, mas em atitude receosa.
—Obrigado por vir - disse Pitt agradavelmente. - Sente-se. - Indicou-lhe a poltrona de Lambert com a mão.
—Obrigado, senhor - aceitou Paterson - O senhor Lambert me disse que queria falar comigo do caso Blaine/Godman. - Seu rosto se escureceu, mas não havia nele nada evasivo.
—Assim é - reconheceu o inspetor. Não devia ao sargento nenhuma explicação, mas a deu de todo modo - Parece guardar relação com um assassinato que estou investigando. O senhor Lambert me contou muitas coisas, mas eu gostaria de ouvir de sua boca tudo o que averiguou sobre os movimentos de Godman aquela noite.
O semblante de Paterson refletia suas emoções com transparência. Só a lembrança lhe fez reviver a cólera e o asco que sentiu então. Estava tenso, os ombros duros, e sua voz mudou logo que iniciou o relato.
—Eu fui um dos primeiros a chegar ao pátio de Farrier"s Lane. Blaine era um homem bastante alto, jovem. - interrompeu-se. A pena se desenhava em seu rosto. Saltava à vista que era capaz de recordar cada detalhe. Respirou fundo e continuou, o olhar fixo nos olhos do inspetor, tratando de averiguar se compreendia a magnitude do horror-. Estava algum tempo morto. Era uma noite fria, pouco faltava para que gelasse, e estava rígido. - Tremia-lhe a voz, mal conseguia controlá-la - Preferiria não descrever-lhe senhor, se não for necessário.
—Não o é - disse Pitt imediatamente, tendo piedade do homem.
Paterson engoliu em seco.
—Obrigado, senhor. Não é que não tivesse visto cadáveres antes, vi muitos, mas este era diferente. Este era uma blasfêmia. - A voz se espessou ao pronunciar a palavra, e ficou tenso.
—Você tem idéia de como um homem miúdo como Godman pôde erguê-lo de tal modo? - inquiriu o inspetor.
Paterson se concentrou, deixando a um lado suas emoções. Enrugou a fronte, pensativo.
—Não, senhor. Eu mesmo me perguntei isso, mas nunca houve nenhum indício de que alguém o tivesse ajudado. Não cabe dúvida de que estava só, pelo que sabemos. Saiu de Farrier"s Lane só. Não é a classe de coisa que alguém faz com outra pessoa. Acredito que Godman devia saber como levantar alguém. Possivelmente fizesse parte de seu trabalho de ator. Como os bombeiros.
—Pode ser-admitiu Pitt - Continue. Como seguiu a pista de seus movimentos uma vez fora de Farrier"s Lane?
—Com paciência, senhor. Perguntei às pessoas dos arredores, aos camelôs da rua, aos varredores que me cruzava, aos vendedores ambulantes e demais. Dei com uma florista que o viu claramente. Estava à luz de um lampião no Soho Square e ele parou para falar com ela. Não cabe dúvida de que era Godman, ele mesmo o admitiu. Disse que eram doze e quinze da noite. Ela disse que assim era, a princípio; depois, quando a interrogamos mais a fundo, afirmou que em realidade era uma menos quarto, que se equivocara a primeira vez. Ao parecer ele tentou lhe dizer que eram as doze e quinze. Há um relógio justo em cima, em uma casa, e ela o ouviu dar a hora. Toca uma só badalada aos quartos e duas à meia, a diferença da maioria, que dá três a menos quarto.
—Era importante? - perguntou Pitt, dúbio - Vocês não sabiam a que hora tinham matado Blaine, ou sim? Com exatidão? Com certeza os que rondavam por Farrier"s Lane não sabiam a hora.
—Não - reconheceu Paterson - mas tínhamos uma idéia aproximada porque sabíamos a hora a que Blaine tinha saído do teatro, que foi passadas as doze e quinze. Se Godman tivesse estado a essa hora com a florista e afastando-se de Farrier"s Lane, não poderia ter entregue a mensagem nem matado Blaine no pátio das cavalariças, já que tomou uma carruagem justo depois e o cocheiro jurou que o recolheu no Soho Square e o levou até sua casa do Pimlico, que está a uns quilômetros. E quando chegou ao Soho Square, onde a florista, já se tinha desfeito do casaco. A esse respeito não conseguimos fazer mudar de opinião o cocheiro. Justo depois este recolheu a outros passageiros que sabiam a hora exata. - A repugnância semeou de rugas o rosto de Paterson, quase como se tivesse cheirado algo que lhe revolvesse o estômago - Foi uma boa tentativa de álibi, e se a florista tivesse acreditado o que lhe disse e ele se manteve firme, poderia ter funcionado.
—Mas não o fez...
—Não... para falar a verdade a florista não olhou o relógio. Estava a suas costas, só o ouviu e aceitou a palavra do jovem de que eram as doze e quinze, não a uma menos um quarto. E naturalmente havia os vagabundos de Farrier"s Lane.
—Parece um bom trabalho, sargento - felicitou Pitt com sinceridade.
Paterson se ruborizou.
—Obrigado, senhor. Nunca um caso me preocupou tanto.
—Admitiu-o Godman em algum momento, quando o detiveram ou mais adiante?
—Não, nunca o admitiu - afirmou Paterson desolado - Manteve em todo tempo que era inocente. Parecia estupefato quando fomos atrás dele.
—Opôs resistência? Lutou?
Pela primeira vez Paterson evitou o olhar do inspetor.
—Bom, sim, se... é... chateou bastante. Mas pudemos com ele.
—Imagino - disse Pitt, repentinamente desconfortável. - Obrigado, sargento. Não me ocorre nada mais que lhe perguntar.
—Serve-lhe de ajuda para seu caso, senhor?
—Não acredito, mas o esclarece. Ao menos sei todo o possível sobre o assunto Blaine/Godman. Acredito que talvez meu caso não tenha nada que ver com ele, talvez seja mera coincidência. Obrigado por sua franqueza.
—Obrigado, senhor. - Paterson se levantou e se retirou.
Dado que ali não se podia averiguar nada mais, Pitt se dirigiu ao sargento de recepção, agradeceu-lhe por sua cortesia e saiu à ventosa rua. Acabava de começar a chover, e um menino com uma boina inclinada retirava esterco de cavalo do meio-fio para que duas mulheres com grandes chapéus a cruzassem sem manchar as botas.
Pitt viu Micah Drummond no meio da tarde. Chovia copiosamente, a água golpeava as janelas e corria formando riachos, voltando-as tão opacas que era impossível ver nada mais que a silhueta imprecisa dos edifícios. Drummond estava sentado atrás da escrivaninha de seu escritório e Pitt descansava inquieto, na cadeira de frente. Escurecia cedo e o gás chiava suavemente nos spots da parede.
—O que averiguou sobre Stafford? - perguntou Drummond reclinando um pouco.
—Nada - respondeu o inspetor com franqueza - falei com sua viúva, que logicamente diz que acredita que o mataram porque tinha a intenção de voltar a abrir o caso Blaine/Godman. E Adolphus Pryce opina o mesmo.
—Dei-me conta de que falou "diz que acha" - observou Drummond – Uma escolha de palavras muito cuidadosa. Duvida dela?
Pitt fez uma careta.
—Sua relação com o senhor Pryce é bastante mais íntima do devido.
Drummond contraiu o rosto.
—Assassinato? Não tem muito sentido. Pode ser que sejam imorais, embora não tem prova disso. De todo modo há um grande trecho entre apaixonar-se por uma mulher casada e assassinar seu marido. São pessoas civilizadas.
—Sei. - Pitt não entrou em discussões sobre se as pessoas civilizadas cometiam semelhantes atos ou se estes estavam reservados aos bárbaros, fosse por família ou por classe social. Drummond não se referia a isso e ele sabia – Passei bastante mais tempo me inteirando dos detalhes do caso Blaine/Godman – explicou - tentando averiguar exatamente o que Stafford pretendia fazer.
—Vá. - A voz de Drummond denotou cansaço. Em seu rosto apareceu uma careta de desagrado - Com certeza só estava tentando resolver o assunto de uma vez por todas. Eu mesmo o investiguei. Godman era culpado, e não fará nenhum bem que você o traga à luz de novo. Por desgraça ao pobre Stafford o mataram antes que pudesse demonstrar à senhorita Macaulay quão equivocada estava, o que é uma tragédia, não só para ela, mas para a reputação da lei na Inglaterra. - revolveu-se em seu assento e franziu o sobrecenho-. Essa mulher está um pouco louca, e me dá pena, mas está fazendo muito dano. Pelo amor de Deus, não me faça acreditar, nem sequer por descuido, que existe a mais mínima possibilidade de que vá se reabrir o caso.
—Estou investigando a morte do Samuel Stafford - afirmou Pitt olhando-o nos olhos - Chegarei até onde for preciso, nada mais. Falei com O'Neil e sua família, que não é suspeita, é claro, e com Charles Lambert, que dirigiu a investigação inicial. No meu entender não há nada a que Stafford pudesse agarrar-se. - Meneou a cabeça-. Mesmo que tivesse encontrado alguma das provas materiais que faltavam, algo muito pouco provável ao cabo de tantos anos continuaria sem demonstrar nada diferente. Foi uma sórdida tragédia na época, e agora é um desagradável capítulo da história. Suponho que poderia falar com os outros juízes do tribunal de apelação, se por acaso Stafford lhes confiou algo...
—Eu não o faria-replicou Drummond bruscamente - Deixe-o estar. Não há nada salvo velhas feridas e novas dúvidas de todo injustificadas. Estará pondo em tecido de julgamento a integridade profissional e o ofício de homens bons que não o merecem.
—Limitarei-me a ver um par de magistrados, se por acaso...
—Não! Repito-lhe que o deixe estar, Pitt.
—Por quê? - perguntou este, teimoso - Quem quer que o deixemos estar?
Drummond ficou sério.
—O ministro do Interior – respondeu - Se faz público que está você voltando a investigar isso, dará pé a muitas conjeturas estúpidas. A gente concluirá que há alguma dúvida sobre a condenação, o que não é certo, e de novo porá o grito no céu. - inclinou-se sobre a escrivaninha - Para falar a verdade, os sentimentos estavam a flor da pele na época. Se der a impressão de que vamos dizer que talvez nos equivocamos de homem ou de que poderia haver uma espécie de desculpa, originarão-se um forte protesto e um grande sentimento anti-semita. E não é justo para Tamar Macaulay. Dará-lhe esperanças absolutamente infundadas. Pelo amor de Deus, deixe que esse pobre desgraçado continue enterrado na escuridão e que sua família aprenda a viver em paz.
Pitt não disse nada.
—Pitt? - disse Drummond com tom premente - me escute!
—Estou escutando-o, senhor. - O inspetor sorriu com desolação.
—Sei que me está escutando. Quero sua palavra de que compreendeu e de que me obedecerá.
—Não, não estou certo de compreender nada - disse lentamente - Por que teria que importar ao ministro do Interior que investigue o caso se isso for o que Stafford estava fazendo antes de morrer? Algum motivo teria, não era um homem volúvel nem irresponsável. Quero saber que razões tinha.
O rosto do Drummond se escureceu.
—Bem, quero que averigue quem o matou, e infelizmente tudo parece indicar que se trata de uma questão pessoal. Não sei quem nem por que, e você não tem tempo para colocar o nariz em velhos casos quando deveria estar procurando alguma inimizade bastante inflamada para recorrer ao assassinato. Possivelmente estivesse informado de algum outro delito, mas não viveu para denunciá-lo às autoridades. - O semblante de Drummond se iluminou – Possivelmente averiguasse algo e fosse nos comunicar logo que tivesse provas, mas o criminoso, quem quer que fosse, percebeu que sabia e o matou antes que pudesse falar com alguém.
Pitt fez um gesto educado que dava a entender às claras sua absoluta incredulidade.
—Bem, saia daqui e investigue - ordenou Drummond com aspereza.
Pitt ficou em pé. Não estava zangado. Sabia das pressões a que estava submetido Drummond, do férreo jugo secreto do Círculo Interior, detestado e temido ao mesmo tempo. Já havia sentido seu poder antes e sabia que Drummond lamentava o dia que se unira a ele, quando a inocência o cegou e nem sequer foi capaz de perceber a possibilidade de que homens de sua própria classe e condição perseguissem e fizessem uso desse poder.
—Sim, senhor - sussurrou ao mesmo tempo em que dava meia volta e se dirigia para a porta.
—Pitt?
O inspetor sorriu e fez pouco caso.
—Trata-se outra vez do Círculo Interior? -perguntou Charlotte com gravidade enquanto tirava as forquilhas do cabelo e o penteava com os dedos, aliviada por soltá-lo. Era como se tivesse posto meia loja de ferragens para manter os pesados cachos de cabelo em seu lugar.
Seu marido estava de pé a suas costas, hesitando entre pendurar a jaqueta ou deixá-la sem mais no espaldar da cadeira.
—Provavelmente –respondeu - De qualquer modo não posso culpar Lambert por não querer trazer todo o assunto à luz de novo. É penoso que se reabra um caso que levou e se questione se atuou devidamente, sobretudo se enforcaram ao homem. Pior ainda se não tem certeza completa de ter feito todo o possível e duvida de sua própria honestidade no momento em que aconteceu. - Optou por deixá-la na cadeira - É tão fácil cometer enganos quando todo mundo pede a gritos uma solução e a gente teme por sua própria reputação, teme que se pense que não é bastante bom, que não está à altura das circunstâncias. - sentou-se na beira da cama e continuou despindo-se-. E se seus homens estão aterrorizados porque as testemunhas mintam, e estão assustados e cheios de ódio...
—Comportam-se assim sobre o juiz Stafford? -perguntou Charlotte, voltando-se na banqueta da penteadeira para olhá-lo.
—Não, não acredito. - Pitt se levantou, tirou a camisa, deixou-a igualmente na cadeira e colocou em cima a camiseta. Verteu água quente do jarro na bacia e lavou as mãos, o rosto e o pescoço, alcançou a camisola e o pôs pela cabeça, tentando achar as cavas - Começa a parecer que poderia tratar-se de algo pessoal, que não tenha nada que ver com o caso de Farrier"s Lane - acrescentou quando por fim conseguiu tirar a cabeça.
—Refere a sua esposa? - Charlotte deixou a escova, olhou um instante a pilha de roupa da cadeira e decidiu deixá-la onde estava sem dizer nada. Não era momento de ficar a discutir - Juniper? Por que ia matá-lo?
—Porque estava apaixonada pelo Adolphus Pryce - respondeu ele metendo-se na cama. Não era muito consciente das roupas que tinha deixado esparramadas pelo quarto, pelo menos isso pensou ela.
—Ah, sim? - perguntou dúbia - Tem certeza?
—Não, ainda não, mas não entendo por que ia Livesey dizer isso se não fosse verdade. Terei que investigá-lo.
—Parece um tanto extremo. - Charlotte deixou de escovar o cabelo e se levantou para apagar o gás do spot da parede antes de deitar-se. Os limpos lençóis estavam frios, e se ajeitou contra seu marido - Não acredito.
—Não pensava que fosse acreditar nisso. - Rodeou-a com o braço - Entretanto, não parece haver nada no assassinato de Farrier"s Lane que mereça a pena ser investigado, claramente nada pelo que pudessem matar Stafford.
—Mas não sabe o que averiguou - objetou ela.
—Sei o que eu averiguei. Nada absolutamente. Viram Godman sair de Farrier"s Lane com o casaco ensangüentado, e uma florista do Soho Square o identificou duas ruas mais à frente. Ele nem sequer o negou, tão só a hora, e resultou não ser certo. Sinto muito, meu amor, mas parece incontestável que o fez. Sei que você gostaria que fosse inocente, por Tamar Macaulay, mas aparentemente não é possível.
—Então por que quer o Círculo Interior que o deixem estar? - perguntou ela - Se não há nada que averiguar, por que ia importar lhes que investigue? - escorregou um pouco mais para baixo e soube que, a seu lado, Pitt sorria na escuridão - Para falar a verdade – acrescentou - deveriam alegrar-se se demonstrasse que estavam certos.
Ele não disse nada, estendeu o braço e lhe acariciou o cabelo com ternura.
—Só que talvez não estejam certos - acrescentou Charlotte - vai deixá-lo estar?
—Vou dormir.
—Mas de verdade está fechado o caso de Farrier"s Lane, Thomas? - insistiu Charlotte.
—Por esta noite... sim.
—E amanhã?
Atraiu-a ainda mais para si, entre risadas, e ela não teve mais remédio que deixar o assunto.
Pela manhã Pitt tomou o café a toda pressa, levantara-se tarde - beijou longa e delicadamente Charlotte e saiu correndo para tomar um ônibus com o propósito de ver o legista de novo.
Charlotte pôs mãos à obra com os afazeres domésticos do dia, começando por um montão de roupa para engomar, enquanto Gracie esfregava os pratos do café da manhã e, continuando, lustrava a lareira da sala, preparava a lenha para a noite, varria o chão, limpava o pó e fazia as camas.
Às onze ambas interromperam sua tarefa para tomar uma taça de chá e mexericar um pouco.
—Continua o senhor no caso do homem que crucificaram no pátio das cavalariças? - perguntou a criada com um ar de elaborada despreocupação, enquanto mexia o chá em fingida concentração.
—Em realidade não tenho certeza - respondeu Charlotte sem pretensão alguma. - Você não colocou açúcar.
Gracie esboçou um sorriso zombador e deixou de mexer o líquido.
—Não lhe conta nada?
—Oh, sim, mas quanto mais o investiga, menos parece que o juiz Stafford pudesse ter averiguado algo novo a respeito. E se não o fez, então não há nenhum motivo pelo qual algum dos implicados no caso pudesse querer matá-lo.
—Então quem o assassinou? Sua esposa? - Gracie estava decepcionada. Um assassinato doméstico era muito menos interessante, em particular se se tratava de uma simples relação amorosa e conheciam a outra parte implicada, e nada escandaloso.
—Suponho, ou talvez o senhor Pryce.
Gracie ficou olhando-a fixamente, esquecendo o chá.
—O que ocorre, senhora? Não acredita que o fizesse ela?
Charlotte sorriu.
—Não sei. Suponho que poderia ser. Não posso esquecer como me senti ao observá-la na noite em que morreu seu marido. Possivelmente seja vaidade pensar que não posso estar tão equivocada.
—Talvez fosse seu amante, senhora, e ela não sabia nada – aventurou Gracie tentando ser de ajuda.
—Talvez... mas também gosto dele. - Charlotte bebeu um gole de chá e captou o olhar de Gracie por cima da taça.
—De quem não gosta? - Gracie sempre era prática.
—Ninguém, no momento, mas já gostei antes de gente que era culpada.
—Ah, sim? Seriamente? - Gracie arregalou os olhos, interessada e surpreendida.
—Depende de por que. -Charlotte pensou que tinha que explicar-se.
Estava a ponto de fazê-lo, recordando alguns dos casos de Pitt nos que ela tinha participado, quando soou a campainha e Gracie, tomada por surpresa, deixou a xícara na mesa, levantou-se, arrumou as saias e saiu correndo pelo corredor para abrir a porta.
Retornou um instante depois com Caroline, que vinha elegantemente vestida, embora saltasse à vista que se vestira com certa pressa, sem prestar sua habitual atenção aos detalhes. Uma vez trocados as saudações de rigor e confirmado que todos desfrutavam de uma excelente saúde, Caroline se sentou à mesa da cozinha, aceitou o chá que Gracie lhe ofereceu e passou a explicar o motivo de sua visita. Tomou ar e se lançou.
—Como vai Thomas com o assassinato do pobre senhor Stafford? Averiguou algo?
—Que matreira e indireta é, mamãe - disse Charlotte, divertida.
—-O que?
—Costumava me criticar por ser muito franca - explicou Charlotte alegremente-. Dizia que às pessoas não gostavam e que sempre se deviam enfocar as coisas um pouco de soslaio, para dar a outros a oportunidade de evitar o tema se assim o desejassem.
—Bobagens! - protestou Caroline, com as faces rosadas - Em qualquer caso, isso era com os desconhecidos e com os cavalheiros e eu não sou nenhuma dessas duas coisas. E o que dizia era que é indiscreto ser muito direta, é...
—Sei, sei. - Charlotte gesticulou com a mão tirando importância – Temo que não descobriu nada novo sobre o assassinato de Farrier"s Lane. Não tem nem idéia de por que o juiz Stafford estava investigando-o de novo. Parece estar fora de toda dúvida que Aaron Godman era culpado.
—Oh, Oh, vá. Pobre senhorita Macaulay. - Caroline meneou a cabeça com expressão de lástima - Acredito que estava convencida de que seu irmão era inocente. Será muito duro para ela.
Charlotte pôs a mão sobre a de sua mãe.
—Só disse que não averiguou nada de novo até o momento. Não acredito que vá dar-se por vencido, a menos que fosse a senhora Stafford ou o senhor Pryce, ou ambos.
—E se não foram eles?
—Então terá que voltar para o caso de Farrier"s Lane, a menos que haja algo mais.
—O que? - A inquietação cinzelou profundas rugas no rosto de Caroline, que agora se inclinava ainda mais sobre a mesa, esquecendo o chá - Que mais?
—Não sei... alguma outra inimizade pessoal. Algo relacionado com dinheiro possivelmente, ou outro delito de que estivesse informado.
—Existem provas de algo disso?
—Não... não acredito. Não até a data.
—Não parece... - Caroline esboçou um sorriso de desolação - Não parece provável, não é verdade? Terá que voltar ao caso de Farrier"s Lane. Eu o faria.
—Sim - concordou Charlotte - É o que o senhor Stafford estava fazendo no dia em que o mataram. Devia ter algum motivo. Mesmo que tudo o que pretendesse fosse demonstrar de uma vez por todas que o fez Aaron Godman, talvez alguém pensasse de forma distinta.
—Isso não é muito lógico, querida - indicou Caroline com tristeza - Se Aaron Godman era culpado, ninguém mataria agora ao senhor Stafford para evitar que o demonstrasse. Pode ser que a senhorita Macaulay lamentasse não poder seguir alimentando a esperança de lavar o nome de seu irmão, mas não ia assassinar ao Stafford porque acreditasse que seu irmão era culpado. Além de que seria ridículo, todos outros o consideram culpado. Não pode matá-los a todos. E por que ia fazê-lo? Não foi culpa do Stafford. -mordeu o lábio - Não, Charlotte, se Godman era culpado, não havia motivo algum para matar ao juiz Stafford. Mas se o culpado é outro, as razões eram muitas se ele sabia ou se o verdadeiro assassino pensava que ele sabia.
—Outro como quem, mamãe? Como Joshua Fielding? É isso o que teme?
—Não! - Negou energicamente com a cabeça, ruborizada - Poderia ser qualquer um.
—E agora, quem não está sendo lógica? - inquiriu Charlotte com suavidade - As únicas pessoas que viu o juiz naquele dia foram sua esposa, o senhor Pryce, o juiz Livesey, Devlin O'Neil, a senhorita Macaulay e Joshua Fielding. O senhor Pryce, a senhora Stafford e o juiz Livesey não tinham nada que ver com o Kingsley Blaine. O senhor Pryce só entrou no caso quando chegou o julgamento, e o juiz Livesey, unicamente quando se apresentou a apelação. É impossível que sejam culpados desse crime.
Caroline empalideceu.
—Então temos que fazer algo! Eu não acredito que fosse Joshua e devemos demonstrá-lo. Talvez possamos averiguar algo antes que comece Thomas, enquanto continua investigando a senhora Stafford e ao senhor Pryce.
Charlotte sentiu uma repentina compaixão por ela, mas não lhe ocorria nada que servisse de ajuda. Conhecia a sensação de temor pelo fato de que alguém com o que se está afeiçoado pudesse estar comprometido, ficar ferido, inclusive ser culpado.
—Não sei o que poderíamos averiguar - disse com voz vacilante, observando o rosto de Caroline e a ansiedade que gotejava, consciente da vulnerabilidade de sua situação. Era tão fácil ficar em ridículo-. Se Thomas tiver tratado... – Deu de ombros - Não sei por onde começar. Não conhecemos a senhora Stafford embora, certamente, suponho que poderia visitá-la... - sabia que sua reticência a fazê-lo se manifestava claramente em sua voz e em sua expressão - É... - Se esforçou por procurar palavras que não fossem muito bruscas - Compreenderá que é por curiosidade; sabe que sou a esposa de um policial. E se for inocente e está chorando a perda de seu marido, independentemente do que sinta pelo senhor Pryce (e não sabemos quais são seus sentimentos, é só um rumor), seria tão ofensivo...
—E se houvesse gente inocente em perigo? - insistiu Caroline inclinando-se sobre a mesa - Está claro que isso tem que ser o mais urgente, o mais importante.
—Esse ainda não é o caso, mamãe, possivelmente nunca o seja.
—Quando o for, será muito tarde - afirmou Caroline com crescente inquietação. - Não se trata unicamente de acusações e detenções, Charlotte... mas sim de suspeitas e reputações arruinadas. Isso pode bastar para destruir a alguém.
—Sei.
—O que disse lady CummingGould? Não me comentou isso.
—Para falar a verdade não sei. Não a vi depois, e ela não me enviou nenhuma nota, de modo que suspeito que não descobriu nada que estimasse de valor. - Sorriu-. Talvez realmente o caso fosse concludente.
—Poderia averiguá-lo, por favor?
—É claro - assegurou Charlotte com alívio. Não seria difícil.
—Pode utilizar minha carruagem de novo, se o deseja - ofereceu Caroline, que imediatamente se ruborizou por sua própria insistência e pela urgência com que estava seguindo o caso - Se servir de ajuda, naturalmente - acrescentou.
—Oh, sim - aceitou Charlotte com o mais leve dos sorrisos - Ajudaria muito. - ficou em pé, a risada em seus olhos inequívoca agora - É muito mais elegante chegar de carruagem que ir caminhando desde a parada do ônibus.
Caroline abriu a boca para dizer algo, depois mudou de opinião.
Vespasia estava fora quando Charlotte chegou a sua casa. A criada lhe informou que não demoraria mais de meia hora em voltar e, se Charlotte fosse amável, podia esperá-la tomando chá na saleta. Lady Vespasia desgostaria-se sobremaneira não vê-la.
Charlotte aceitou e se viu sentada na elegante sala da Vespasia bebendo seu chá e contemplando as chamas da lareira. Tinha tempo para dar uma olhada ao redor, algo que não tinha feito antes, pois teria parecido uma curiosidade impertinente. A estadia levava a estampagem do caráter da Vespasia. Havia dois candelabros altos, esbeltos, sobre a lareira, não nos extremos, como caberia esperar, mas ambos um tanto à esquerda, assimetricamente dispostos. Eram de prata georgiana, muito elegantes e simples. Na mesa Sheraton próxima à janela havia um arranjo floral em uma vasilha de porcelana de Worcester: três crisântemos rosa muito baixos que ocupavam o centro, e multidão de folhas de haja acobreadas, assim como alguns casulos de um escuro vermelho púrpura cujo nome desconhecia.
Perdeu o interesse pelo chá e se levantou para ver mais de perto as escassas fotografias que repousavam sobre a escrivaninha em simples molduras. que primeiro atraiu sua atenção foi uma sépia apagada até um nada nas bordas: uma mulher de uns quarenta anos, de pescoço esbelto, maçãs do rosto proeminentes e nariz delicado, aquilino. Largas pálpebras emolduravam os grandes olhos sob uma fronte perfeita. Era um rosto formoso, embora, em que pese a todo seu orgulho e seus traços clássicos, possuía personalidade, e a romântica pose não conseguia mascarar por completo nem a paixão nem a força.
Charlotte demorou uns minutos em dar-se conta de que se tratava da própria Vespasia. Acostumara-se tanto a vê-la como uma velha dama que tinha esquecido que pudesse ser tão diferente em jovem e, entretanto, ao olhá-la pela segunda vez, tão igual.
As outras fotografias eram de uma menina de uns vinte anos, muito formosa, mas de feições mais contundentes, maior queixo e nariz mais Romano. A semelhança era evidente, e também parte do encanto, mas não assim a têmpera, não o fogo da imaginação. Devia ser Olivia, a filha da Vespasia, quem tinha se casado com o Eustace March e havia falecido depois de lhe dar numerosos filhos. Charlotte não chegou a conhecê-la, mas recordava Eustace com total nitidez, com ira e compaixão ao mesmo tempo.
A última fotografia era de um ancião aristocrático de traços marcados, semblante amável e olhos que olhavam ao longe, além da câmara, a algum mundo próprio. A semelhança com a Vespasia era suficiente para que Charlotte deduzisse, pelo apagado da imagem, o modo de vestir e o estilo da fotografia, que se tratava do pai de Vespasia.
Era interessante que tivesse decidido conservar em sua sala favorita uma lembrança de seu pai, não de seu marido.
Charlotte estava olhando os tomos da livraria de madeira esculpida quando ouviu um murmúrio no saguão e passos pelo assoalho. Virou-se rapidamente e se dirigiu para a janela, de forma que quando a porta se abriu e entrou Vespasia ela estava de frente, sorrindo.
Vespasia parecia transbordante de energia, como se estivesse a ponto de ir a algum lugar que prometia ser excitante, não como se já houvesse voltado. O forte vento lhe tinha avermelhado a tez, caminhava erguida, as costas bem retas, e vestia um traje de suave azul uva, uma cor delicada, nem marinho nem púrpura, e tampouco prateado. Era sutil, caro e extremamente favorecedor. Mal tinha anquinhas, seguindo a moda mais avançada, e o corte era lindo. Não cabia dúvida de que tinha deixado um majestoso chapéu de aba no saguão.
—Bom dia, tia Vespasia - saudou Charlotte com surpresa e autêntico prazer. Não a via tão saudável desde antes da morte do primeiro marido de Emily, sobrinho de Vespasia e único motivo pelo qual podiam considerá-la da família. Parecia haver se despojado dos anos que a dor lhe tinha acrescentado e ser a mulher enérgica que antigamente fora - Tem um aspecto excelente.
—Um comentário bastante justo - respondeu Vespasia com evidente satisfação - Estou extraordinariamente bem. - Olhou Charlotte com atenção - Parece um tanto nervosa, querida. Ainda continua preocupada com esse lamentável assunto de Farrier"s Lane? Pelo amor de Deus, sente-se! Dá a impressão de que vai sair correndo. E não é certo, não?
—Não, não é claro que não. Vim vê-la e não tenho nada imediato que fazer. Mamãe está em casa e se encarregará de algo que possa surgir.
—Bem. - Vespasia se sentou com elegância, arrumando a saia com um golpe da mão - Ainda continua apaixonada por esse ator?
Charlotte sorriu com tristeza e se sentou frente a ela.
—Sim, é isso que temo.
Vespasia arqueou as sobrancelhas.
—Teme? Tanto importa? É livre de fazer o que lhe agrade, não? Por que não ia ter um pequeno namorico?
Charlotte respirou fundo, com a mente cheia de toda sorte de excelentes razões pelas quais não deveria ter. Entretanto, quando se dispunha a enumerá-las, apesar da intensidade das emoções que despertavam nela, desejou muito que, ao dizê-las em voz alta, resultassem tolas e sem valor.
Vespasia parecia divertida.
—É assim – afirmou - mas se preocupa que esse infeliz possa ser suspeito de estar comprometido na morte de Kingsley Blaine.
—Sim, ao menos... não. Thomas parece acreditar que não há nada mais que investigar a esse respeito, e que Stafford simplesmente tentava reunir muitas provas para persuadir Tamar Macaulay de que deixasse estar o assunto de uma vez.
—Mas você não acredita nisso - aventurou Vespasia.
Charlotte deu de ombros.
—Não sei. Suponho que poderia ter sido sua viúva, mas me custa aceitá-lo. Eu estava com ela, segurando sua mão, quando ele morreu. Custa-me acreditar que se aferrasse de tal modo, sem deixar de olhá-lo, e que o envenenasse ela mesma. Além disso, seria tão estúpido... e tão desnecessário...
—De novo o assassinato de Farrier"s Lane - comentou Vespasia, pensativa - falei com o juiz Quade a respeito. fui descuidada ao não lhe fazer saber o que averiguei. - Suas faces se tingiram de um débil tom rosado, e Charlotte percebeu isso com estranheza. Nunca antes tinha visto o acanhamento em Vespasia. Esperou uma explicação, mas não recebeu nenhuma. Em seu lugar, Vespasia passou a lhe referir os resultados de suas pesquisas como se tal coisa importasse, embora pusesse extremo cuidado em cada palavra. - Na opinião do juiz Quade, o caso foi muito angustiante, não só pelas circunstâncias do assassinato, mas sim porque as emoções estavam tão exaltadas e tudo foi tão desagradável que o assunto foi levado a cabo de uma forma febril e apressada, assim não foi simples garantir que a lei se aplicasse honestamente, não digamos que se fizesse justiça.
—Acha ele que não se fez justiça? - perguntou Charlotte ao ponto, esperançada e temerosa a um tempo.
Os olhos cinzas de Vespasia refletiam absoluta serenidade.
—Acredita que se fez justiça - respondeu com gravidade - mas não se fez bem.
—Quer dizer que Aaron Godman era culpado?
—Receio que sim. Era o ambiente o que preocupava ao Thelonius, o fato de que inclusive Barton James, o advogado defensor, parecesse acreditar que seu cliente era culpado e levasse o caso de um modo adequado, mas nada mais. A cidade inteira tinha chegado a albergar tal ódio que se desatou uma grande violência nas ruas contra judeus que não tinham nada que ver com ele, simplesmente por ser judeus. Teria sido impossível dar com um jurado imparcial.
—Então como pôde ser justo o julgamento? - inquiriu Charlotte.
—Não estranharia que não o fosse.
—E por que permitiu que continuasse? Por que não fez algo?
Por uma vez nos olhos da Vespasia não havia indício de humor ou indulgência. Apressou-se a defendê-lo.
—Segundo você, o que deveria ter feito?
—Não... não tenho certeza. - Charlotte reparou na mudança de tom da anciã, na sutil diferença em seus olhos. Não podia suportar brigar com ela e recordou que Thelonius Quade era um velho amigo. Sem querer, tinha questionado a honra de um homem a quem Vespasia tinha em certa estima. Talvez em grande estima - Sinto muito - acrescentou imediatamente - Suponho que não podia fazer nada. Tinha que cumprir a lei, não é verdade? Dificilmente poderia declarar um julgamento nulo se não se fizera nada incorreto.
A expressão de Vespasia se suavizou, seus olhos recuperaram o brilho.
—Expôs fazer algo ele mesmo para provocar a defesa a fazer justamente isso. Logo decidiu que seria desonroso para seu cargo e uma declaração de que não acreditava na própria lei que era sua obrigação aplicar.
—Oh. - Charlotte franziu o sobrecenho, vivamente impressionada pela extrema gravidade do que Vespasia lhe estava dizendo - Se um juiz alberga tais pensamentos, deve ser realmente desagradável. Que delicado de sua parte havê-lo sopesado com tanta imparcialidade e ter se preocupado bastante para expor-se algo assim.
—É um homem pouco comum - afirmou Vespasia, que baixou a vista por um instante, afastando a de Charlotte.
Esta se surpreendeu a si mesma sorrindo enquanto se perguntava que classe de amizade tinha existido entre a Vespasia e o juiz Quade. Não tinha nem idéia de quando tinha começado. Tinha sido mais que amizade, talvez afeto? Era uma idéia agradável, e esboçou um amplo sorriso.
Contemplou as costas erguidas e a elegante cabeça de Vespasia. Imaginou-se dizendo: "E o que é isso que achara tão divertido, se pode saber?", mas não houve palavra alguma. Tão só o rubor nas faces da anciã.
—Muitíssimo obrigado, tia Vespasia - disse Charlotte com doçura – Lhe agradeço que tomou o trabalho de interessar-se, mesmo que pareça que em realidade não há nada mais que averiguar.
—Sim, sim há - argüiu Vespasia, apanhando de novo sua atenção - Não muito, e possivelmente nada revelador, mas o juiz Quade disse que estava seguro de que deram uma surra em Aaron Godman, enquanto esteve detido. Quando apareceu no julgamento apresentava machucados e lacerações muito recentes para haver-se produzido quando se cometeu o assassinato. E antes de sua detenção estava ileso.
—Oh, céus. É terrível. Acredita que os carcereiros o golpearam enquanto esteve na prisão?
—Possivelmente. Ou a polícia quando o deteve - respondeu Vespasia observando o rosto de Charlotte com preocupação - Sinto muito, mas cabe essa possibilidade.
—Quer dizer que brigou com eles?
—Não, querida. O policial em questão não tinha nem um arranhão.
—Oh. - Charlotte respirou fundo - Em qualquer caso, isso não demonstra nada, não? Salvo que, como você diz, as emoções eram fortes e estavam a flor da pele. Tia Vespasia...
A anciã aguardou.
—Acredita que o senhor Quade estava dando a entender, de um modo eufemístico, que em sua opinião a polícia estava tão desesperada por obter uma condenação e satisfazer os desejos das pessoas que acusou, sabendo, o homem equivocado?
—Não - respondeu Vespasia com total segurança - Não. Preocupava-lhe a forma como se levava a investigação, a urgência e as emoções que despertou, e a indiferença da defesa, mas achava que as provas eram autênticas, e o veredicto, correto.
—Oh... entendo. - Charlotte suspirou - Então parece que, depois de tudo, o juiz Stafford só pretendia demonstrar de uma vez por todas que o assunto tinha sido concluído, e certamente ninguém o mataria por isso. Depois de tudo deve tratar-se de sua esposa ou do senhor Pryce.
—Receio que parece isso.
Charlotte a olhou. Havia nela algum rastro de dúvida?
—Sim?
—É possível que alguém tenha algo que ocultar, algo tão desagradável para temer a investigação do senhor Stafford, sem estar a par de sua natureza ou inclusive estando a par dela. - Vespasia franziu ainda mais o sobrecenho - E se por acaso era muito consciencioso, matou-o. Admito que não parece provável...
—Não - concordou Charlotte, embora o tom de sua voz contradizia a palavra - mas não é impossível. Em realidade não. Acredito que poderíamos investigar isso, não acha? Quero dizer... - Se interrompeu. - Podemos? - perguntou medindo.
—Oh, não vejo por que não. - Vespasia sorriu, divertida e satisfeita ao mesmo tempo. - Não vejo por que não. Não sei como - arqueou suas finas sobrancelhas em um gesto inquisitivo.
—Tampouco eu - admitiu Charlotte - mas tenha por certo que pensarei nisso.
—Perguntava-me se poderia - murmurou Vespasia - Se posso te ajudar em algo, estarei encantada de fazê-lo.
—Perguntava-me se poderia - respondeu Charlotte com tom zombador.
Charlotte hesitava em mencionar a Pitt sua visita à tia avó Vespasia. Se o fizesse, com certeza lhe perguntaria por que lhe interessava tanto o assunto. Não lhe custaria muito deduzir que se devia à estima que Caroline sentia pelo Joshua Fielding e a possível implicação deste no assassinato de Kingsley Blaine e, portanto, no do juiz Stafford. Charlotte sempre podia tentar convencê-lo de que era porque Caroline se achava presente no teatro, pelo que estava profundamente implicada na emoção do crime. Entretanto, sabia que Pitt seria capaz de ver mais à frente, e talvez a achasse ridícula, uma mulher entrada em anos, viúva e sozinha, apaixonada de um homem mais jovem, encantador, que não pertencia em modo algum a sua classe nem tinha sua experiência, um homem que lhe oferecia um último sopro de juventude.
Dito assim era absurdo e um tanto patético. Pitt não seria cruel nem crítico, mas talvez sentisse uma discreta, irônica lástima. Não podia submeter Caroline a semelhante humilhação. Surpreendeu-se de como se sentia protetora, pronta a defender sua extraordinária vulnerabilidade.
De modo que só comentou com seu marido que tinha visitado Vespasia, e quando ele ergueu a vista rapidamente, ela baixou a sua e se concentrou no trabalho.
—Como vai? - perguntou Pitt sem deixar de olhá-la.
—Oh, desfruta de uma excelente saúde. - Levantou a vista para ele e lhe dedicou um breve sorriso. Pitt suspeitaria se se detivesse aí. Conhecia-a muito bem - Não a via tão animada desde a morte do pobre George. Tornou a ser a que era, com toda a energia que costumava ter quando a conhecemos.
—Charlotte?
—Sim? - Olhou-o com os olhos bem abertos, inocentes, mantendo a agulha no ar.
—Que mais - perguntou ele.
—Do que? A tia Vespasia parecia desfrutar de uma excelente saúde e estava muito animada. Pensei que você gostaria de saber.
—E eu gosto, naturalmente, mas quero saber que mais descobriu que tão bem a faz sentir-se.
—Ah. - Estava encantada. Tinha-o enganado à perfeição. Dirigiu-lhe um amplo sorriso, desta vez sem malícia - visitou um velho amigo, e para falar a verdade acredito que é possível que lhe tenha muito carinho. Não é estupendo?
Ele se endireitou.
—Quer dizer um romance?
—Bom... dificilmente! Tem mais de oitenta anos!
—Que demônios importa isso? - Pitt ergueu a voz com incredulidade – O coração nunca deixa de sentir.
—Bom, não... suponho que não. - Sopesou a idéia com surpresa, depois com crescente agrado - Não. Por que não? Sim, acredito que talvez fora um romance quando se conheceram, suponho que poderia sê-lo de novo.
—Excelente. - Pitt sorria abertamente - De quem se trata?
—O que? - Pegou-a de surpresa.
—De quem se trata? - repetiu ele com suspeita.
—Oh... - Charlotte reatou a costura, os olhos fixos na agulha e no tecido – Um amigo de alguns anos. Thelonius... Thelonius Quade.
—Thelonius Quade - repetiu Pitt lentamente - Charlotte?
—Sim? - O olhar cravado no tecido.
—Disse Thelonius Quade?
—Acredito que sim.
—O juiz Thelonius Quade?
Ela vacilou só um instante.
—Sim...
-Que casualmente presidiu o julgamento de Aaron Godman pelo assassinato de Kingsley Blaine...
Não tinha sentido mentir. Charlotte tentou evadir-se.
—Acredito que naquela época sua amizade se esfriara.
Pitt meneou a cabeça com expressão irônica.
—Isso é irrelevante. Por que de repente retoma sua amizade agora?
Charlotte não respondeu.
—Porque você o pediu? - prosseguiu Pitt.
—Bem, interessa-me - indicou ela - Eu estava presente quando o pobre homem morreu. Para ser exato, agarrada à mão de sua viúva.
—E não acredita que ela o matou - disse Pitt com dureza. Não estava zangado, para falar a verdade se mostrava divertido, mas Charlotte sabia que seu marido não aceitaria discussões.
—Não, não, em realidade não acredito - reconheceu ela olhando-o no rosto por fim-. O caso é que o juiz Quade se sentiu satisfeito com o veredicto, embora não com o modo em que se desenvolveu o julgamento. -Sorriu a seu marido com ingenuidade - Tudo aponta a que o pobre Godman era culpado, mesmo que não o demonstrassem da melhor forma. De todo modo, Thomas, não é certo que o fato de que o juiz Stafford estivesse investigando o caso de novo poderia ter assustado alguém o bastante, por algum outro motivo, algum outro pecado, para matá-lo? - Aguardou com impaciência, esquadrinhando seu rosto.
—É possível - afirmou com gravidade-, mas não provável. Que pecado?
—Não sei. Terá que averiguá-lo.
—Possivelmente... mas primeiro vou voltar sobre o assassinato do Stafford… e a investigar se Juniper Stafford ou Adolphus Pryce puderam obter ópio de algum modo. Há muitas coisas mais que preciso saber sobre eles.
—Sim, claro, mas não esquecerá o caso Blaine/Godman, não é certo? Quero dizer... - De repente teve uma idéia - Thomas! E se houvesse algum assunto, algo fraudulento no caso, suborno, violência, algum outro assunto que afete a alguém poderoso, que pudesse arruinar a alguém? Essa poderia ser uma razão para matar ao juiz Stafford antes que o averiguasse... mesmo que não trocasse a culpa de Godman, não lhe parece?
—Sim - afirmou Pitt com cautela - Sim, é possível...
—Então o investigará?
—Depois de Juniper e Adolphus. Não antes.
Ela sorriu.
—Estupendo. Você gostaria de tomar uma xícara de chocolate antes de ir para cama, Thomas?
No dia seguinte Charlotte delegou à Gracie o cuidado dos assuntos do lar e tomou um ônibus em Cater Street para visitar Caroline. Chegou algo depois das onze e soube que sua mãe tinha saído a fazer um recado. Sua avó estava sentada no amplo e velho salão, junto ao fogo, completamente indignada.
—Bem - disse olhando para Charlotte, as costas muito retas, as mãos estragadas fechadas como garras em torno do punho da bengala-. De modo que por fim dignou-se a vir ver-me. Por fim compreendeu qual é sua obrigação. Um pouco tarde, jovenzinha.
—Bom dia, vó - saudou Charlotte com calma - Como se encontra?
—Estou doente - disse a anciã, mordaz - Não faça perguntas estúpidas, Charlotte. Como ia estar senão doente, com sua mãe comportando-se como uma perfeita idiota? Nunca foi muito inteligente, mas agora parece ter perdido por completo o juízo. A morte de seu pai a transtornou. - Soprou zangada -. Suponho que era de se esperar. Algumas mulheres são incapazes de assumir a viuvez. Sem aguentar... sem sentido do que é conveniente. De qualquer modo, nunca teve muito disso. Meu pobre Edward sempre tinha que encarregar-se de tudo.
Em outra ocasião Charlotte possivelmente teria passado por cima o insulto. Formava parte do padrão de conduta de sua avó e ela se acostumara a ele, mas nesse momento se sentia protetora com sua mãe.
—Ora, tolices! - replicou energicamente, sentando-se na cadeira em frente - Mamãe sempre teve perfeito sentido do que é apropriado.
—Não se atreva a me dizer que são tolices! - replicou a avó - Nenhuma mulher com a mais mínima noção do decoro casaria a sua filha com um policial, embora fosse feia como um cavalo e boba como uma galinha. - Esperava que Charlotte se ofendesse e, como não o fez, continuou a contra gosto - E agora se está pondo em evidência ao procurar a amizade de gente do teatro. Pelo amor de Deus, isso não diz muito em seu favor! Pode ser que saibam declamar em perfeito inglês, mas sua moralidade é a do arroio. Não há nenhum bom. E a metade são judeus... sei com certeza. - Olhou Charlotte de soslaio, em atitude provocadora.
—E isso o que tem que ver? - soltou Charlotte tratando de que parecesse uma autêntica pergunta.
—O que? O que disse? - A anciã padecia uma surdez seletiva e agora tinha decidido fazer que Charlotte repetisse o comentário com a esperança de acovardá-la ou, no pior dos casos, dar-se tempo a si mesmo para pensar uma resposta esmagadora.
—Perguntava-lhe o que tinha isso que ver - repetiu Charlotte sorridente.
—O que tem que ver com o que? -inquiriu a sua vez a avó, zangada - Do que está falando, jovenzinha? Às vezes solta autênticos disparates. Isso é por te mesclar com as classes baixas, que carecem de educação, não sabem expressar-se. Disse-lhe que ocorreria. Também o adverti a sua mãe... mas acaso me escuta alguma vez? vai ter que fazer algo com ela.
—Não há nada que eu possa fazer vó - raciocinou Charlotte, paciente – Não posso obrigá-la a que a escute se não desejar fazê-lo.
—Agora me escute bem, jovenzinha estúpida. De verdade, às vezes tenho que ter com você mais paciência que um santo.
—Nunca me teria ocorrido que você fosse uma Santa, avó.
—Não seja impertinente! - A anciã brandiu a bengala procurando as pernas de Charlotte, mas estava muito longe para fazer mais que lhe dar nas saias ruidosamente.
—Sabe se voltará logo? - perguntou Charlotte.
A anciã ergueu as tênues sobrancelhas até quase tocar o grisalho cabelo.
—Acaso supõe que me diz isso? - replicou com voz estridente, indignada - Entra e sai a todas as horas do dia... e da noite, isso é quão único sei. Vestida como um personagem de melodrama, a muito néscia. Em meus tempos as viúvas vestiam-se de negro e sabiam qual era seu lugar. Isto é de tudo indecente. Seu pai, pobre homem, não está morto nem há cinco anos, e aí tem Caroline brincando de correr por Londres como uma jovem de vinte anos atordoada tentando pescar marido em sua atividade, antes que seja muito tarde.
—Disse algo?
—A respeito do que? Nunca me conta nada importante. Acredito que não se atreveria.
—A respeito de quando ia voltar. - A Charlotte custava manter um tom cortês.
—E se o tivesse feito, do que supõe que lhe serviria? De nada! Nada absolutamente!
—De qualquer forma, o que lhe disse?
—Que ia ao chapeleiro e que estaria de volta em meia hora. Fofocas! Poderia estar em qualquer parte.
—Obrigada, vó. Tem muito bom aspecto. - E para falar a verdade assim era. Estava exultante, tinha a tez rosada e seus olhinhos negros possuíam uma incrível vivacidade. Nada a revivia tanto como uma briga.
—Necessita de óculos - replicou a avó com crueldade - Me dói todo... todo o corpo. Sou uma anciã que precisa cuidados e uma vida sem penas nem preocupações.
—Morreria de aborrecimento sem algo pelo que sentir-se ofendida – afirmou Charlotte com uma franqueza da qual uns quantos anos atrás não teria sido capaz, com toda segurança não quando seu pai vivia.
A anciã soltou um grunhido e a olhou irada. Só recordava que estava surda quando era muito tarde.
—O que? O que disse? Sua pronúncia se está tornando muito descuidada, jovenzinha!
Charlotte sorriu. Pouco depois ouviu os passos de sua mãe no saguão, ficou em pé e se desculpou. Deixou a anciã se queixando porque a excluía de tudo e chegou ao saguão justo quando sua mãe estava a meio caminho escada acima.
—Mamãe!
Caroline deu meia volta. Seu rosto transbordava de satisfação.
—Mamãe. - Charlotte começou a subir as escadas.
Caroline levava um formoso chapéu, a ampla aba adornada com penas e flores de seda. Era luxuoso, extravagante e absolutamente feminino. Charlotte teria se encantado de ter um assim, embora de qualquer modo não teria tido ocasião de usá-lo.
—Sim? - respondeu Caroline com impaciência - Soube e algo?
—Não muito, temo. - sentia-se culpada por alimentar suas esperanças, por pouco que fosse, e experimentava um intenso desejo de protegê-la da dor - Mas ao menos é um princípio.
—Há algo que possamos fazer? - Caroline se virou, disposta a descer de novo - Do que se inteirou? Por boca de quem? Thomas?
—Da tia Vespasia, mas em realidade não é muito.
—Não importa! O que podemos fazer?
—Averiguar mais, dos implicados, se por acaso existe algum outro delito ou segredo pessoal, como você suspeitava, que alguém temesse que o juiz Stafford pudesse desentranhar.
—Oh, excelente - exclamou Caroline com tom alegre - Por onde começamos?
—Talvez pelo Devlin O'Neil - propôs Charlotte.
—Mas o que tem sobre a senhora Stafford e o senhor Pryce? - O rosto do Caroline refletia preocupação e certa culpa, já que desejava que fizessem parte da tragédia.
—Não os conhecemos - indicou Charlotte com razão - Comecemos por onde possamos. Ao menos a senhorita Macaulay e o senhor Fielding possam nos ajudar a este respeito.
—Sim... sim, naturalmente. - Caroline olhou Charlotte de cima a baixo – Está muito elegante. Está pronta para sair agora mesmo?
—Se acha que podemos receber primeiro um convite...
—Oh, sim, estou certa de que a senhorita Macaulay nos receberá se formos esta mesma manhã. À tarde têm ensaio, e nos apresentar então seria inoportuno.
—Ah sim? - perguntou Charlotte com surpresa e certo sarcasmo. Não tinha caído na conta de quão familiarizada estava sua mãe com os hábitos cotidianos de atores e atrizes. Custou-lhe trabalho morder a língua e abster-se de fazer comentários.
Caroline afastou o olhar e começou a organizar-se. Chamou o lacaio para que mandasse trazer de novo a carruagem e informou ao pessoal de que não comeria em casa.
Vários membros da companhia de teatro tinham alugado uma grande casa em Pimlico. O diretor, o senhor Iñigo Passmore, era um velho cavalheiro que em sua época tinha sido uma "estrela", mas que agora preferia representar só papéis secundários. Sua esposa também tinha sido atriz, mas raramente aparecia em cena na atualidade, pois desfrutava de uma posição de honra e de considerável poder: encarregava-se do vestuário, dos adereços e, quando era preciso, da música. O casal ocupava o andar térreo e, portanto, o jardim.
Joshua Fielding dispunha dos aposentos da parte dianteira do primeiro andar, e uma jovem atriz de grande futuro, Clio Farber, dos da parte traseira. No segundo piso Tamar Macaulay e sua filha.
—Não sabia que tinha uma filha - disse Charlotte, surpreendida, enquanto Caroline comentava com ela os planos no trajeto de Cater Street ao Pimlico - Não sabia que era casada. Trabalha seu marido no teatro?
—Não seja inocente - replicou Caroline com resolução, a vista à frente.
—Desculpa? Oh. - Charlotte se sentia perturbada. - Quer dizer que não é casada? Sinto muito.
—Seria melhor não mencioná-lo - disse Caroline secamente.
—É claro. Quem mais vive ali?
—Não sei. Um par de ingênuas na água-furtada.
—Um par do que?
—Atrizes muito jovens que se fazem de garotas inocentes.
—Oh.
Não falaram mais até que chegaram a Claverton Street, em Pimlico, e apearam.
Abriu-lhes a porta uma moça de uns dezesseis anos, muito atraente, que tinha um traje muito mais colorido que o de qualquer outra criada que Charlotte tivesse visto. Em lugar do habitual vestido de pano escuro e o avental e a touca brancos, levava um vestido rosa bastante favorecedor e um avental que parecia haver posto apressadamente. Não trazia touca em sua abundante e escura cabeleira.
—Oh, bom dia, senhora Ellison - saudou com alegria - Suponho que quererá ver o senhor Fielding. Ou acaso à senhorita Macaulay? Acredito que os dois estão em casa. - Abriu a porta de par em par.
—Obrigado, Miranda - respondeu Caroline. Subiu os degraus e entrou no saguão.
Charlotte ia bem atrás, assombrada pela familiaridade com a que a garota tinha saudado sua mãe.
—Esta é minha filha, Charlotte Pitt - apresentou Caroline - Miranda Passmore. O senhor Passmore é o diretor da companhia.
—Encantada de conhecê-la, Miranda - disse Charlotte ordenando suas idéias a toda pressa e esperando que fossem as palavras corretas para alguém de tão extraordinária posição. Em nenhuma outra parte tinha conhecido uma criada tão singular que fosse filha do diretor do que fosse.
Miranda esboçou um amplo sorriso. Possivelmente já tinha vivido essa situação muitas vezes.
—Encantada de conhecê-la, senhora Pitt. Subam, por favor. Não têm mais que bater na porta ao chegar.
Charlotte e Caroline cruzaram o saguão, no que à primeira teria gostado de deter-se ao menos uns minutos. Assim como na estadia do teatro em que tinha estado muito ocupada para olhar, estava decorado por completo com velhos pôsteres de teatro, e viu nomes fabulosos que evocavam imagens de focos e drama, sonoras vozes e a emoção da paixão e do dramatismo: George Conquest, Beerbohm Tree, Ellen Terry, a senhora Patrick Campbell, a imponente e maravilhosa figura de sir Henry Irving como Hamlet e Sarah Bernhardt em uma pose magnificamente dramática. Havia outros personagens que não teve tempo de ver, e seguiu Caroline a contra gosto.
No primeiro patamar havia mais pôsteres, desta vez das óperas do Gilbert e Sullivan Iolanthe, Paciência e Os alabarderos da Casa Real.
Para Caroline não interessavam; além de que já os tinha visto, estava decidida a levar a cabo sua missão, e para ela o drama atrás das lanternas não encerrava magia alguma em comparação com o da realidade. Vacilou só um instante no primeiro patamar e a seguir seguiu até o segundo. Este só estava decorado com um grande pôster do rosto dinâmico e sensível de Sarah Bernhardt.
Bateu na porta que pouco depois abriu a própria Tamar Macaulay. Charlotte esperava que tivesse um aspecto diferente à luz da manhã - mais implacável - e sem atuação alguma em um futuro imediato, mas, para sua surpresa, seu aspecto continuava sendo o mesmo: o cabelo, de um negro fúnebre, sem os habituais toques e reflexos de castanho que inclusive os mais escuros cabelos ingleses costumam possuir; os olhos, profundos e vivazes, com um brilho de diversão apesar da tensão e do conhecimento da dor. Vestia-se com grande simplicidade, mas, em lugar de resultar apagado, seu traje ressaltava o dramatismo de seu rosto.
—Bom dia, senhora Ellison, senhora Pitt. Alegro-me muito de vê-las.
—Bom dia, senhorita Macaulay - respondeu Caroline - Desculpe que tenha vindo sem avisar e haja trazido minha filha, mas acredito que o assunto é importante, ou poderia sê-lo, e não há tempo que perder.
—Nesse caso será melhor que entrem. - Tamar se fez a um lado para deixá-las entrar na espaçosa e diáfana estadia.
Tinha o mobiliário de uma sala de estar, embora talvez fosse um dormitório quando a casa a ocupava uma única família. Apresentava uma interessante mescla de estilos. A um lado se erguia um antigo biombo chinês de seda que devia ser de uma beleza extraordinária, agora cortada a armação de madeira arranhada em algumas partes - mas que conservava ainda uma elegância que o dotava de certo encanto e considerável graça. Havia um samovar russo sobre um console, cristal veneziano na vitrine, um relógio de cobre francês no suporte da lareira e uma mesa de mogno de estilo georgiano tardio de absoluta simplicidade e pureza de linhas que, na opinião de Charlotte, era o objeto mais lindo da sala. As cores eram suaves, cremes e verdes, e cheios de luminosidade.
Caroline estava tratando de lhe explicar sua missão.
O olhar de Charlotte continuou vagando pela estadia, em busca de provas da menina da qual Caroline lhe tinha falado. Reinava uma desordem acidental, própria do lugar que ocupa o centro da vida de uma casa: um xale no chão, um livro aberto, um montão de pôsteres de teatro e um guia em um console, algumas almofadas à boa de Deus. Então viu a boneca, que tinha caído do sofá e se achava meio escondida entre o babado de flores. Invadiu-lhe uma repentina e irracional sensação de tristeza, tão aguda que lhe cortou a respiração e lhe pôs um nó na garganta. Uma menina sem pai, uma mulher sozinha. Era possível que Tamar Macaulay tivesse amado de verdade Kingsley Blaine? Ou acaso era só um capricho, passando por cima os fatos? Não tinha nenhum motivo para supor que ele fosse o pai. Podia ser qualquer um... inclusive Joshua Fielding. Rogou a Deus que não fosse ele. Para Caroline seria intolerável.
—É claro - estava dizendo Tamar - Rogo, sente-se, senhora Pitt. Obrigado por interessar-se por este assunto. Levamos bastante tempo lutando sozinhas, e agora parece que se tornou mais perigoso, possivelmente necessitemos de muita ajuda. Ao que parece alguém se assustou e reagiu violentamente de novo. - Empalideceu.
Charlotte não tinha ouvido a conversa, mas adivinhou do que se tratava. Aceitou o convite.
—Nós estávamos presentes quando o juiz Stafford morreu - explicou com um vislumbre de sorriso - É normal que desejemos participar da busca de quem o matou e ter a absoluta certeza de que se trata da pessoa correta e não se produz nenhum engano judiciário.
A expressão de Tamar era uma mescla de ironia, ira e dor, amém de humor amargo. Se ainda ficava algum indício de esperança, Charlotte não o percebia. Como tinha conseguido aquela mulher conservar a coragem durante todos esses anos, depois de tão horrenda perda? A morte de um próximo sempre é dura, mas a ignomínia popular, o ódio, a tortura lenta da pessoa pela lei é muitíssimo pior. E depois havia a certeza de que um dia em concreto, a determinada hora, viriam levar essa pessoa, ainda jovem, ainda saudável, para lhe quebrar o pescoço no extremo de uma corda, deliberadamente, com objetivo de satisfazer a uma multidão entusiasmada. Como se sentiria o pobre homem na noite anterior? É a escuridão infinita... ou possivelmente muito breve? Poderia alguém temer mais a luz do dia?
Tamar estava olhando-a fixamente.
—Está pensando em Aaron? - perguntou com absoluta franqueza.
Charlotte ficou desconcertada por um instante, logo se deu conta de quão simples seria falar de um tema tão angustiante abertamente, em lugar de com rodeios, procurando um modo de expressar-se sem utilizar as palavras precisas e de compreender o que alguém queria dizer atrás dos eufemismos.
—Sim - afirmou com uma ameaça de sorriso.
—Contempla a possibilidade de que se cometesse uma injustiça? - inquiriu Tamar.
—É claro - respondeu Charlotte com veemência - Sei a ciência certa de homens inocentes aos quais não enforcaram por milagre. Poderia acontecer facilmente, e estou certa de que acontece às vezes. Tomara fosse impossível, mas não o é.
—É uma idéia perigosa - expôs Tamar com ironia - as pessoas não gostam. Não pode viver com a idéia de que possamos ser culpados de tal engano. É muito melhor convencer-se de que Aaron era culpado e ir dormir.
—Eu não tive nada que ver nisso, senhorita Macaulay - indicou Charlotte - Não me sinto culpada por pensar que talvez fosse inocente, só sinto pesar. A culpa virá se não fizer o que puder agora para averiguar a verdade, tanto a da morte de Kingsley Blaine como a do juiz Stafford.
Tamar sorriu abertamente pela primeira vez. Era um gesto cheio de encanto, que lhe iluminava o rosto e mudava todo seu aspecto.
—Que criatura mais extraordinária é você. Mas suponho que teria que sê-lo para casar-se com um policial.
Charlotte ficou surpreendida. Não tinha percebido que Tamar pudesse ter conhecimento de seus assuntos nem do que estes implicavam.
—Oh... Joshua me disse isso - explicou Tamar com regozijo - Deduzo que sua mãe o contou. - Olhou e percebeu que Caroline se ausentara - Suponho que foi a seus aposentos. Talvez por tato... ou... -deu de ombros em um gesto expressivo, mas não disse mais.
Charlotte se sentiu desconfortável por um momento, perguntando-se se Caroline se estava pondo em evidência ao mostrar-se tão ousada, mas não havia modo de desculpar o engano sem comprometer ainda mais a situação de sua mãe. Não havia nada proveitoso que fazer, salvo seguir com o caso.
—Sabe algo da morte de Kingsley Blaine que não veio à luz no tribunal? - perguntou com franqueza - Algo que você contou ao juiz Stafford que o tivesse incitado a voltar a abrir o caso?
Tamar negou com a cabeça.
—Nada que não estivesse na apelação. As provas médicas eram pouco firmes. Humbert Yardley, o legista, começou dizendo que a ferida que matou Kingsley... - A tensão se refletiu em seu rosto, a suave pele ao redor da boca se tornou quase branca. Conseguiu manter o tom de voz com muita dificuldade - Que a provocou algo mais longo que um prego de ferrador. Mais adiante disse que podia ter sido um prego pouco comum.
—Achou-se o dito prego?
—Não, mas a polícia afirmou que Aaron bem pôde desfazer-se dele em qualquer parte, jogá-lo em uma boca-de-lobo. Apresentamos a apelação nos apoiando tão só na incerteza. Provamos com outras coisas: o casaco que ninguém achou, o colar. Mas acabaram encontrando uma explicação. Disseram que o casaco o recolheu um vagabundo e que eu fiquei com o colar.
—Não mudou também de opinião a florista? - perguntou Charlotte.
—Sim, mas isso foi antes do julgamento, não uma vez no estrado. Deus a perdoe; era uma pessoa simples e tinha muito medo da polícia para discutir.
—Senhorita Macaulay - disse Charlotte olhando-a com amabilidade, tentando transmitir com a expressão de seu rosto que só perguntava porque tinha que fazê-lo-, além de por amor a seu irmão, por que acredite, em vista de tantas coisas, que era inocente?
—Porque Aaron não tinha motivo algum para matar Kingsley – respondeu Tamar, os olhos brilhantes, irônicos, francos - Disseram que Kingsley me tinha seduzido e que estava brincando com meus sentimentos, e que Aaron o matou para me vingar, mas isso era um disparate. Kingsley me amava e ia casar se comigo. - Disse-o com bastante tranqüilidade, como se fosse um fato e não lhe importasse se Charlotte acreditava ou não.
Charlotte ficou pasmada, embora sua reação imediata não fosse de incredulidade. Se Tamar se mostrou mais exaltada, mais pronta a convencê-la, talvez tivesse duvidado, mas a mera afirmação, como se se tratasse de algo muito familiar para ela, arrebatou-lhe o instinto combativo.
—Mas já estava casado - observou, não para refutar sua asseveração, a não ser em busca de uma explicação - O que ia fazer a esse respeito?
Tamar mordeu o lábio, enquanto a vergonha aflorava a seu rosto pela primeira vez.
—Então eu não sabia. - Baixou a vista - A princípio não tomei a sério. - deu de ombros - Essas coisas não se tomam a sério. Ao teatro vêm centenas de homens jovens e mulherengos com tempo de sobra. Só procuram um pouco de diversão, de animação, para depois ir para casa com suas esposas tal e como a sociedade espera deles. Demorei meses em acreditar que Kingsley fosse diferente. Mas então já tinha aprendido a amá-lo e era muito tarde para mudar meus sentimentos. - Elevou o olhar rapidamente, em atitude defensiva – Naturalmente você dirá que deveria lhe ter perguntado se estava casado, e é certo, mas não queria sabê-lo.
—O que pensava fazer com respeito a sua esposa? - quis saber Charlotte, que se absteve de emitir julgamentos.
—Não sei. - Tamar meneou a cabeça sem deixar de olhar ao Charlotte – Não me inteirei de que estava casado até depois de sua morte. Se tinha a intenção de casar-se comigo, suponho que ia deixá-la. Ou possivelmente não tinha a intenção de casar-se comigo e só prometeu fazê-lo para não me perder. Em todo caso, o importante é que Aaron tampouco sabia. Pensava que Kingsley estava livre e que se casaria comigo.
—Tem certeza? - perguntou Charlotte com suavidade - Não seria possível que se inteirasse de que o senhor Blaine estava casado e que o matasse por isso? Seria um excelente motivo.
—Seria, se fosse verdade. Vi o Aaron justo antes que abandonasse o teatro, e então não sabia nada que eu não soubesse.
—Sinceramente, o teria dito a você?
—É provável que não, mas não teria falado com Kingsley como o fez. Era bom ator, mas não o bastante para me enganar. Conhecia-o muito.
—Você não disse isso no julgamento, não é certo?
Tamar soltou um risinho amargo, bem mais um som abafado.
—Não. O senhor James disse que ninguém acreditaria que Kingsley realmente pretendesse casar-se comigo e que só me faria parecer ridícula, e mais vítima que se eu fingisse ser a sedutora e estar jogando com ele. Desse modo pareceria menos vulnerável e Aaron teria menos motivos para me vingar.
Charlotte lhe via sentido, e o admitiu a contra gosto.
—Acredito que se eu tivesse estado em seu lugar teria feito o mesmo. Não teria servido de nada dizer a verdade.
Tamar torceu o gesto.
—Obrigada.
—Contou isso ao juiz Stafford?
—Sim. Ignoro se me acreditou. Tinha esse tipo de rosto e de maneiras que uma pessoa não é capaz de ler.
—A quem mais o disse?
Tamar se levantou e caminhou para a janela. O sol severo, ao incidir em seu rosto, revelava cada plano e cada linha, e, entretanto a fazia aparecer mais formosa pela sinceridade de sua emoção.
—A todos os que importavam, a todos os que queriam escutar. A Barton James, o advogado defensor, e antes dele a Ebenezer Moorgate, o procurador de Aaron. - Olhou pela janela, à frente. - Inclusive acudi a Adolphus Pryce. Disse-me o mesmo que Barton James. Se tivesse explicado isso no julgamento, lhe teria tirado partido. Acreditei. - Também fui ver os juízes do tribunal de apelação, a todos, mas nenhum me escutou, salvo o juiz Stafford, pobre homem.
—Por que foi diferente o senhor Stafford? - perguntou Charlotte com curiosidade - por que estava disposto a investigar de novo o caso ao cabo de cinco anos?
Tamar se afastou da janela e a olhou fixamente.
—Não tenho certeza. Suponho que acreditou o que lhe contou sobre Kingsley, coisa que ninguém mais fez. E me interrogou sobre a hora em que Aaron saiu do teatro e a hora em que saiu Kingsley, mas não me disse por que. Acredite-me, senhora Pitt, tenho espremido os miolos pensando em por que ia reabri-lo. Se soubesse, poderia apresentar as provas ao juiz Oswyn. Alguma vez me pareceu que poderia ter escutado, mas lhe abandonou a coragem.
—A coragem?
Tamar riu, uma risada com profunda e dura aspereza.
—Dificilmente ganharia popularidade defendendo agora a inocência de Aaron. Pense nisso. A ignomínia, a vergonha, a gente que se equivocou, as coisas que não se podem mudar. E pior que todo isso, o desprestígio da lei. - O pesar substituiu à Isso ira é o pior da morte do Stafford: era um homem valente e honrado. Morreu por isso.
Charlotte contemplou seu rosto apaixonado e sua tremenda segurança. Era isso o que tinha comovido ao Stafford: o poder de sua convicção mais que as provas? Ou simplesmente desejava sossegá-la de uma vez por todas, economizar ao mundo a vergonha de que falava, o desprestígio da lei?
—Se não foi Aaron - disse Charlotte - quem o fez?
O rosto de Tamar refletiu sarcasmo e dor a mesmo tempo.
—Não sei. Não posso acreditar que o fizesse Joshua, embora ele e eu estivemos uma vez tão... unidos. - Utilizou a palavra com delicadeza, permitindo que se subentendesse um significado mais profundo - Mas então já tinha terminado. Para ser sincera, não foi mais que proximidade e juventude. A polícia suspeitou que podia ter cometido o assassinato por ciúmes, mas não posso acreditar, não dele. Suponho que a única pessoa seria Devlin O'Neil, mas a briga teria que ter sido por algo muito maior que a aposta de uns quantos guinéus de que se falou.
—Casou-se com Kathleen Blaine - indicou Charlotte – Possivelmente estava apaixonado por ela então.
—Talvez. Não é impossível.
—Ela tinha dinheiro?
—Que prática é você! - Tamar arqueou as sobrancelhas - Sim, acredito nisso, ou ao menos muito boas expectativas. Acredito que é filha única, e o velho Prosper Harrimore é rico comparado conosco.
—Tinha dinheiro o senhor O'Neil?
—Céu santo, não, só o bastante para manter um estilo de vida esplêndido por um tempo. - Retornou ao sofá e se sentou de novo olhando Charlotte - Vivia de aluguel e tinha dívidas com seu alfaiate e com seu vinhateiro, como a maioria dos homens jovens de aparência agradável e ociosos.
—De modo que foi muito que ganhou com a morte de seu amigo.
Tamar vacilou só um instante.
—Sim, é certo, embora desagradável e possivelmente não relevante. Em qualquer caso, não sei de ninguém mais, a menos que se tratasse de um perfeito desconhecido... um ladrão... - Não terminou a frase, sabendo do pouco provável que era.
—Que crucificava suas vítimas? - perguntou Charlotte com ceticismo.
—Não, isso foi obsceno - admitiu Tamar - Não sei. Não sei por que O'Neil ia fazer algo assim, salvo para tentar culpar a um judeu.
—Conhece Devlin O'Neil?
—Não. Por quê?
—Bem, o melhor modo de averiguar algo mais ao respeito seria através dele mesmo.
—Dificilmente nos diria algo que o incriminasse.
—Não de propósito, é claro - concordou Charlotte - mas só podemos saber a verdade da boca de quem a conhece.
O rosto de Tamar se animou repentinamente, um sopro de esperança iluminou seus olhos escuros.
—Estaria disposta a fazer isso?
—Certamente - assegurou Charlotte sem pensar nem um minuto.
—Nesse caso faremos que Clio a leve. Ainda conhece a Kathleen, e não seria complicado.
—Faremos não - se apressou a corrigir Charlotte - Tem que fazer-se como por acaso. Eles não devem saber que estou interessada no caso.
—Oh, sim, é claro. Que estúpido de minha parte. Apresentarei a Clio. Não está aqui esta manhã, mas da próxima vez, logo. Ela a levará.
—Excelente! Explique-lhe o que necessitamos e por que, e eu farei tudo que puder.
Quando Charlotte e Tamar começaram a falar do caso com franqueza, Caroline se deu conta de que sua presença era desnecessária, de modo que deu meia volta em silêncio e se dirigiu à porta, abriu-a e saiu. Desceu pelas escadas e se achava já no saguão, ante a porta da habitação de Joshua Fielding, a mão no alto para bater , quando percebeu de quão atrevida estava sendo, do descortês de seu proceder, impróprio do que lhe tinham ensinado e que ela mesma tinha tentado ensinar a suas próprias filhas. Se Charlotte se conduzisse desse modo, lhe teria horrorizado e assim o haveria dito.
Sobreveio-lhe o acanhamento e retrocedeu. Pareceria estranho, ridículo, mas teria que voltar para cima e esperar que ninguém lhe pedisse uma explicação. Deu meia volta e, quando se dispunha a subir pelas escadas, Miranda Passmore chegou correndo do piso de baixo.
—Olá, senhora Ellison. O senhor Fielding não está? Achava que estava, de fato estava certa. Espere, deixe que bata de novo. - E sem aguardar uma resposta, interpretando mal o som entrecortado que proferiu Caroline, cruzou o patamar e golpeou a porta da habitação.
Houve um momento de desesperado silencio. Caroline tomou ar, preparando-se para protestar.
A porta se abriu e apareceu Joshua Fielding sorridente. Olhou primeiro para Caroline, depois para Miranda.
—Ah, Joshua, sabia que estava aí - disse Miranda alegremente - A senhora Ellison veio vê-lo, mas não a ouviu. - Sorriu, pôs-se a correr escada acima e desapareceu.
—Sinto não havê-la ouvido - se desculpou Joshua.
—Oh, é natural - respondeu Caroline com presteza - Não cheguei a bater.
Ele parecia perplexo.
—Vim com minha filha para ver a senhorita Macaulay sobre... sobre a morte do juiz Stafford. Pensei... - Se interrompeu, consciente de que estava falando muito, dando uma explicação que ninguém lhe tinha pedido.
—Me alegro de que intervenham no assunto. - O ator esboçou um sorriso em que havia calidez e certo acanhamento - Deve ter sido muito angustiante para vocês achar-se ali e ver morrer o pobre homem, e depois inteirar-se de que foi um assassinato. Lamento que tenha acontecido a vocês.
—Também me inquieta que se cometa alguma injustiça - disse ela imediatamente. Não queria que acreditasse fraca, preocupada simplesmente pelo desagradável do fato para si mesmo e indiferente a outros.
—Não acredito que possa fazer nada - disse ele com uma careta - O juiz Stafford ia reabrir o caso da morte de Kingsley Blaine, mas, dado que parece não ter deixado nota alguma a respeito, é de supor que ao final seguirá fechado, A menos que possamos descobrir o que pretendia.
—Isso é o que temos que tentar - disse ela com tom premente - Não só para lavar seu nome, mas também para proteger a você e à senhorita Macaulay.
Fielding sorriu, mas se tratava de uma expressão cheia de brincadeira e de dor.
—Você acredita que também nos culparão por essa morte?
—Não é impossível - asseverou Caroline com voz baixa. Um repentino calafrio a percorreu ao dar-se conta da verdade do que acabava de dizer. - Não terão outra escolha se nem a viúva do Stafford nem o amante desta são culpados. Será natural.
—Não penso como um policial - admitiu ele com tristeza. - Por favor, rogo-lhe que não fique aí fora. Seria-lhe muito indecoroso entrar? A casa está cheia de gente.
—Naturalmente que não - se apressou a responder Caroline, que sentiu como o rubor lhe abrasava o rosto. - Ninguém poderia suspeitar... - Se interrompeu. O que ia dizer teria sido grosseiro. Estava se excedendo, já que os pensamentos que se amontoavam em sua cabeça eram absurdos. - Ninguém poderia suspeitar que se tratasse de outra coisa a não ser cortesia - concluiu sem convicção, passando ante Joshua ao lhe abrir este a porta.
A habitação era em extremo pessoal, a primeira olhada a surpreendeu. Até agora só tinha visto Fielding no teatro ou embaixo, na grande sala de estar dos Passmore, junto com Tamar Macaulay. Esta peça era marcadamente dela. Um enorme retrato do ator Edmund Keene, pintado em sépia e negro, decorava a parede do fundo. A pose era dramática e ia do chão até uma altura por cima da cabeça. Dominava a sala com sua presença e lhe fez dar-se conta, com bastante mais intensidade que antes, do muito que ele amava sua arte.
Estantes cheias de livros percorriam outra das paredes. Havia uma mesinha cheia de papéis que ela pensou seriam guias. Várias poltronas ocupavam o diáfano espaço, como se costumasse receber a muitas pessoas, e lamentou tremendamente não ser uma delas, não poder sê-lo. Um abismo de posição social e idade os afastava. De repente se sentiu muito só e excluída de toda a risada, de toda a calidez.
—Tomara soubesse o que fazer. - O ator reatou a primeira conversa ao mesmo tempo em que punha ao seu dispor uma poltrona e esperava que se sentasse. Era um gesto elegante, embora Caroline recordasse com clareza que provavelmente fosse quinze ou dezesseis anos mais velha que ele, pouco menos que uma geração.
Temos que contra-atacar - disse resolvida, combatendo seu próprio sofrimento com ira - Temos que averiguar a verdade que eles desconhecem. Está aí, eles simplesmente se conformaram aceitando a resposta mais fácil. Nós não.
Fielding a olhou com crescente assombro e admiração.
—Lhe ocorre como fazê-lo?
—Tenho alguma idéia - respondeu ela com bastante mais segurança do que sentia. Falava como Charlotte, e era espantoso e emocionante - Começaremos travando amizade com os implicados. Quem são? Quero dizer, quais poderiam saber a verdade ou parte dela?
—Suponho que Tamar e eu mesmo - respondeu o ator, sentando-se frente a ela. - Mas falamos tanto disso que não acredito que fique nada que não tenhamos tomado em consideração.
—Bem, se nenhum de vocês matou ao senhor Blaine, e Aaron Godman tampouco o fez, tem que haver alguém mais comprometido - raciocinou ela. Veio-lhe à cabeça o rosto irônico, inteligente de Pitt e se perguntou se seria assim como pensava - Quem acredita que o matou?
Fielding refletiu um instante, com a mão no queixo. Poderia ter parecido uma pose teatral em qualquer outro, mas nele era de todo natural. Caroline era perfeitamente consciente de sua presença, do sol que entrava pela janela para posar no espesso cabelo ondulado. Era muito jovem para que o cinza tingisse seu brilho castanho. Entretanto, finas rugas sulcavam a pele em torno dos olhos; não era um rosto isento de experiência, de dor. Nada restava da impetuosidade ou do espírito indômito da juventude. Possivelmente não estivesse tão longe dos quarenta.
Em todo caso ela tinha cinqüenta e três. Só lhe pensá-lo produzia dor.
—Suponho que tem que ser Devlin O'Neil - disse o ator olhando-a por fim – A menos que seja alguém a quem não conheçamos. Acredito que é impensável que a esposa de Kingsley soubesse que pretendia deixá-la por Tamar e que contratasse a alguém para assassiná-lo. - Um humor amargo iluminou seus olhos por um instante, logo se tornou em ira-. Se é que de verdade tinha a intenção de deixá-la, claro está. Não acredito que tivesse muito dinheiro próprio e teria tido que renunciar a uma vida muito cômoda e a toda sua reputação. Nunca o disse ao Tamar mas, sinceramente, acredito que era pouco provável que tivesse feito tal coisa. Pode ser que o dissesse porque realmente a amava e não podia suportar perdê-la, de modo que mentiu com a esperança de que continuasse todo o tempo possível. Nunca saberemos.
Caroline decidiu lhe fazer a pergunta mais dolorosa. Rondava-lhe a cabeça e assim acabaria com isso de repente.
—E ela se teria casado com ele? Acaso não é judia? O que tem sua fé, de casar-se com pessoas de outra religião? - Detestou essas palavras no mesmo instante em que as pronunciou.
—Não seria conveniente - admitiu ele olhando-a nos olhos-, mas não somos muito estritos. Teria feito.
—E a seu irmão não importava? - Caroline levou a questão ao limite.
—Ao Aaron? - Deu levemente de ombros - Não lhe era grato. E naturalmente ao Passmore tampouco teria sido grato que ela tivesse abandonado o cenário e se convertesse em uma matrona respeitável; possivelmente respeitável teria sido impossível, já que Blaine teria deixado a sua esposa por ela, mas ao menos a caseira, fundando uma família. É a melhor atriz da cena londrina atual com a possível exceção da Bernhardt.
—De modo que não lhe teria importado que Blaine se fosse a outra parte.
Fielding esboçou um amplo Sorriso.
—Certamente... se tivesse tido conhecimento disso. Mas não o tinha. Pensava que Blaine não era mais que outro desses que rondam os camarins. Eram bastante discretos. E ela tinha outros admiradores, já sabe.
—Sim, é claro. Suponho que é natural. - alisou a saia maquinalmente.
—Muito natural.
—Então voltamos para o Devlin O'Neil - afirmou Caroline com resolução -Temos que nos arrumar para conhecê-lo e averiguar tudo que dele possamos. Se não pudermos demonstrar a inocência do Aaron, temos que demonstrar a culpa de outro.
Fielding exclamou com aberta admiração:
—É claro! Levamos cinco anos tentando demonstrar que Aaron não o fez; deveríamos ter tratado de demonstrar que o fez outro. Mas não tínhamos a habilidade necessária. - Se reclinou em seu assento - E é claro não pode dizer-se que fossemos muito simpáticos a O'Neil nem que ignorasse nossa intenção.
—Naturalmente que não. Mas não me conhece, e tampouco a minha filha, que tem bastante prática nestas coisas.
—Ah sim? Que família tão extraordinária. Nunca mais voltarei a julgar às pessoas tão ligeiro. Parecem vocês tão respeitáveis... Peço desculpas. - Riu alegremente-. Supunha que passavam as manhãs visitando costureiras e chapeleiros, escrevendo formosas cartas a amigos do campo e pondo ordem em seus lares. E às tardes visitariam suas amizades ou as receberiam, tomariam chá e sanduíches de pepino preparados por sua cozinheira e fariam boas obras em pró dos mais desfavorecidos, ou elaborariam delicados bordados. Imaginava suas noites nos melhores eventos sociais ou sentadas ao amor do lar lendo instrutivos livros e mantendo conversas apropriadas, edificantes para a mente. Sinto-o seriamente. Recebo um banho de humildade. - A risada iluminava seu rosto-. Nunca estive mais equivocado! As mulheres são as criaturas mais desconcertantes do mundo, freqüentemente completamente distintas do que parecem. Todo este tempo estiveram vocês investigando crimes atrozes e desentranhando horríveis segredos.
Caroline notou que a cor subia às faces, mas mentiu com todo descaramento.
—Não sairíamos graciosas se atuássemos abertamente - afirmou com a voz entrecortada pelo nervosismo-. A arte da investigação reside em parecer inofensivo.
—Ah sim? - disse ele com curiosidade - tivemos tão pouco êxito... possivelmente esse fosse um de nossos problemas. Tratávamos de parecer muito inteligentes.
—Bom, tinham a enorme desvantagem de que todo mundo estava à corrente de seus interesses - indicou Caroline - me diga, como era Aaron? E Kingsley Blaine?
Fielding falou dos dois homens durante uma meia hora. Conhecia ambos e lhes tinha afeto. Referiu-lhe anedotas amavelmente, entre risadas, mas todo o tempo Caroline foi perfeitamente consciente de que os dois tinham morrido, e com eles sua juventude, suas esperanças e suas debilidades. O ator falava com voz baixa, sua voz tingia as palavras de pesar, como se fossem mais que simples lembranças. Refletia uma emoção que a fazia desejar rir com ele e chorar a mesmo tempo.
—Teria gostado de Aaron - assegurou. Era um cumprimento, e Caroline o recebeu com entusiasmo. Não o havia dito porque Aaron Godman fora uma pessoa em extremo encantadora, mas sim porque o tinha tido em tal estima que não podia imaginar que ela estivesse cega ante umas qualidades em sua opinião tão evidentes - Era uma das pessoas mais generosas que conheci. Alegrava-se do êxito de outros. - Fez essa careta é uma das coisas mais difíceis, mas para ele era natural. E podia ser tremendamente divertido. - A lembrança suavizou seu rosto. Depois, de repente, a tristeza o invadiu com tal virulência que esteve a ponto de chorar - Acredito que não tornei a rir desse modo desde que se foi.
—E Kingsley Blaine? - perguntou ela com doçura, desejando consolá-lo, até sabendo que era impossível.
—Oh, era boa pessoa. Um sonhador, pouco realista. Amava o teatro, sua imaginação. Não tinha paciência com o ofício. Mas também era generoso. Não era absolutamente um homem rancoroso. Perdoava com facilidade. – mordeu o lábio. Isso é o pior, o mais estúpido. Ambos simpatizavam. Tinham tanto em comum que era simples. -Olhou-a em silêncio, como se se desculpasse pela emoção.
Caroline lhe dirigiu um sorriso e se acharam cômodos, sem necessidade de explicações.
O sol inundou a estadia de um breve resplendor e logo se nublou.
Tinha passado a hora do almoço, e ela nem sequer se dera conta, quando Charlotte bateu na porta e a devolveu ao presente e a seu papel de visitantes que deviam ficar em pé, despedir-se e sair à ocupada e ruidosa rua com todo seu premente estrondo.
-Suponho que esteve perseguindo essa gente do teatro outra vez! - exclamou a avó logo que Caroline pisou no saguão. A anciã estava de pé na soleira do salão, pois tinha ouvido chegar a carruagem. Apoiava-se firmemente na bengala, e a curiosidade e a desaprovação lhe azedavam o gesto - Não são bons, todos imorais, dissolutos e excessivamente vulgares!
—Oh, às vezes eu gostaria que mordesse a língua - replicou Caroline estendendo a capa à criada - Não sabe o que diz. Volte para o salão para ler um livro. Coma um pão-doce. Escreva a algum amigo.
—Tenho a vista muito fraca para ler. Só são duas, muito cedo para comer um pão-doce. E todos meus amigos estão mortos - replicou a anciã com rancor-. E minha nora se está pondo em evidência, me envergonhando profundamente.
—Você já tem muitas loucuras próprias para envergonhar-se - respondeu Caroline na hora, por uma vez sem lhe importar um nada o que pensasse a anciã – Não é necessário que se preocupe com as minhas!
—Caroline! - A anciã lhe dirigiu um olhar feroz quando cruzou como uma flecha o saguão e começou a subir pelas escadas - Caroline! Volta aqui imediatamente! Como se atreve a me falar assim! Não sei o que lhe passa! - ficou olhando as costas retas, a cabeça erguida de Caroline até que desapareceu escada acima. Depois proferiu uma imprecação.
Enquanto Charlotte e Caroline se ocupavam do caso Blaine/Godman e do perigo para Tamar Macaulay e Joshua Fielding, Pitt estava sentado no ônibus concentrando sua atenção na morte do juiz Stafford. Ignorava se o assassinato de Farrier"s Lane tinha sido a causa ou se a conexão era acidental - mera casualidade que Stafford tivesse estado investigando no dia em que morreu - e de todo ponto enganosa. Não cabia dúvida de que se tinha alguma prova que justificasse a reabertura do caso o teria comentado com outros, com a polícia, seus colegas ou ao menos teria deixado notas.
O cobrador abriu caminho entre os assentos e a multidão de passageiros e tomou o dinheiro, perdendo o equilíbrio quando o veículo se detinha e arrancava.
Um homem gordo tossiu em um lenço vermelho e pediu desculpas a ninguém em particular.
A maioria dos assassinatos eram tragicamente simples e seus protagonistas eram as paixões das relações íntimas - amor, ciúmes, cobiça, medo- ou as reações do ladrão pilhado em flagrante.
O melhor era começar pelo próprio crime e, no momento, passar por cima do motivo. Alguém tinha jogado ópio no cantil de uísque do Stafford depois que ele e Livesey beberam dele no escritório deste último. Mais tarde o juiz tinha visto o Joshua Fielding, Tamar Macaulay, Devlin O'Neil e Adolphus Pryce, qualquer dos quais poderia haver tocado no cantil antes da noite, quando Stafford foi ao teatro, bebeu dele e, continuando, entrou em coma e faleceu. As únicas pessoas que tiveram essa oportunidade foram aqueles a quem viu e sua esposa, Juniper Stafford. Tomar em consideração aos empregados de seu escritório ou os criados de sua casa parecia absurdo. Não existia o menor motivo para supor tal coisa.
O ônibus se deteve de novo atrás de uma grande carroça carregada de cerveja. O tráfico avançava lentamente por uma ladeira, os cavalos se esforçavam, impacientavam-se. Em frente, em alguma parte, quebraram-se os arreios de uma carruagem. Os lacaios transportavam lançando pragas. Um mascate gritava. Alguém estava fazendo soar uma campainha e um dálmata ladrava histérico. Todo mundo tinha frio e andava com falta de paciência.
—Está pior cada dia - disse zangado o homem que estava junto a Pitt – dentro de um par de anos não haverá quem se mova. Londres será uma grande aglomeração de cardagens e carruagens, e nem uma alma poderá dar um passo. Deveriam retirar a metade dessas intrigas. Proibi-los.
—E onde os poria? - interveio o homem de frente, o rosto iracundo – Têm tanto direito a circular como você.
—Nas vias férreas - respondeu o primeiro endireitando-a gravata com um beliscão - Nos canais. O que tem de mau o rio? Olhe essa maldita carga daí. - Agitou a mão apontando a janela justo quando passava uma carruagem carregada de caixas e fardos de seis metros de altura - Vergonhoso! Terão que enviá-la rio acima em uma barcaça.
—Possivelmente não vá a nenhum lugar que esteja perto do rio - aventurou o segundo.
—Pois deveria! Olhe que tamanho!
O ônibus se pôs em movimento com uma sacudida e reatou seu lento avanço, e a conversa terminou. Pitt voltou a concentrar-se no caso. Deixou a um lado o motivo no momento. A oportunidade era óbvia. E o que tinha os meios? Nunca tinha tido ocasião de investigar a disponibilidade de ópio. Ao igual a qualquer outro policial, sabia que havia fumódromos em determinadas partes de Londres onde os viciados em tal substância podiam obtê-la e, continuando, jazer em fileiras estreitas e fumar até sumir-se em seu efêmero esquecimento particular. Naturalmente, também sabia algo sobre as guerras do ópio contra China, acontecidas entre 1839 e 1842, e depois, de novo, entre 1856 e 1860. Começaram devido à tentativa a China de adotar medidas contra os comerciantes britânicos que estavam dentro do negócio do ópio. Era uma página negra da história britânica, mas Pitt desconhecia que relação guardava com a atual disponibilidade da droga para os londrinos comuns, salvo que aparentemente os comerciantes de ópio, com o espaldar da poderosa potência naval do Império, tinham ganhado a batalha.
Talvez o melhor fosse tratar de adquirir droga ele mesmo e ver como ia. Deixaria a visita ao juiz Livesey para mais tarde. O ônibus se tornou a deter devido ao tráfego, de modo que ficou em pé, pediu desculpas e abriu passagem com muita dificuldade entre os passageiros sentados de ambos os lados do corredor, tentando não pisá-los. Apeou-se entre resmungos pelo atraso, ruídos, estupidez e gente que não sabia aonde ia, e esquivou-se de um landau conduzido por um cocheiro mal-humorado. Salvou de um salto um montão de esterco fumegante e um deságüe transbordante, e percorreu a grandes passadas a calçada até avistar uma farmácia.
Achou uma a pouco menos de um quilômetro, mas era pequena e sombria, e quando entrou de pouco lhe serviram a jovem só atrás do balcão e os montões de potes e pacotes que faziam equilíbrio nele. A moça lhe ofereceu uns pós para a dor de dente -lhe recomendou um dentista inclusive - e outros tantos remédios patenteados para dores várias, mas não parecia saber onde podia achar ópio. Tinha uma mistura adequada para sossegar o pranto das crianças e fazê-los dormir que, em sua opinião, poderia conter ópio, mas não estava segura, já que os ingredientes não constavam no frasco.
Pitt lhe agradeceu, rechaçou o produto e saiu disposto a reatar sua busca. Caminhava com tanto vigor como lhe permitiam os redemoinhos de gente que comprava, vendia, fazia recados e mexericava na calçada e em meio do meio-fio brigando com o tráfego, gritando-se uns aos outros entre o ruído dos cascos e o barulho das rodas, o tinido dos arreios e os relinchos dos cavalos.
A segunda farmácia que achou era um estabelecimento muito maior, e quando entrou os balcões estavam livres, as estantes a suas costas repletas de uma maravilhosa coleção de frascos de cores cheias de toda sorte de líquidos, cristais, folhas secas e pós, todos eles etiquetados com seus nomes químicos em latim. Outra estante estava abarrotada de pacotes e, de quando em quando, intercalavam-se armários, as portas ostentosamente fechadas com chave. O homem à frente deste paraíso do alquimista era baixo, calvo, os óculos apoiados no meio do nariz e uma expressão geral de interesse desenhada no rosto.
—Sim, senhor? O que posso fazer por você? - perguntou logo que entrou Pitt - É para você, senhor, ou para sua família? Você é pai de família, não é assim?
—Sim - respondeu o inspetor sorrindo sem saber por que, salvo que lhe agradava que o considerassem parte de uma família. Entretanto, admiti-lo alterava um tanto o que pretendia dizer sobre o ópio.
—Supunha-o - continuou o farmacêutico com satisfação - Presumo de poder julgar a um homem bastante bem por sua aparência. Rogo-lhe desculpe minha familiaridade, senhor, mas se precisa uma boa esposa para virar uma gola de camisa desse modo.
—Oh. - Pitt não sabia que alguém pudesse perceber que a gola e os punhos de sua camisa tinham sido dados a volta para que as partes desgastadas ficassem no interior a fim de prolongar a vida do objeto. Levou a mão ao pescoço maquinalmente e se deu conta de que levava a gravata torcida, com o que ficava à vista o impecável trabalho de Charlotte. A endireitou um tanto ruborizado.
—E então, senhor, o que posso fazer por você? - inquiriu o farmacêutico com tom jovial.
Agora carecia de sentido faltar à verdade. Seria um insulto para o homenzinho com olhos de lince andar-se com destrezas, e provavelmente o pescaria se mentisse.
—Sou policial - explicou Pitt lhe mostrando sua identificação.
—Seriamente? -perguntou o farmacêutico com interesse. Não havia rastro de nervosismo em seu franco rosto.
—Eu gostaria de saber algo mais sobre a disponibilidade de ópio - indicou Pitt-. Não para fumar, isso já sei. Estou investigando sua forma líquida. Poderia me dar alguma informação?
—Deus santo, senhor, naturalmente que posso. - O farmacêutico parecia surpreso - É fácil de conseguir. As mães o utilizam para tranqüilizar as crianças travessas. As pobrezinhas precisam dormir e dão à criatura o suficiente para evitar que passe meia noite chorando e tenha toda a casa acordada. - Assinalou uma fileira de frascos em uma das prateleiras que havia atrás dele - Cordial do Godfrey, vende-se muito bem. Feito a base de melaço, água, especiarias… e ópio. Vai muito bem, isso dizem. Depois há os pós de Steedman. E é muito popular o reconstituinte infantil Atkinson"s Royal. - Meneou a cabeça-. Não sei se é o nome ou a mescla, mas as pessoas gostam. É claro que no East Anglia e no Fens pode comprar ópio em barrinhas de pennies ou em pastilhas quase em qualquer loja.
—Legalmente? - perguntou Pitt com surpresa.
—É claro! Recomendado para toda classe de doenças. - O farmacêutico ficou a contar com os dedos - Reumatismo, diabetes, tísica, sífilis, cólera, diarréia, constipação ou insônia.
—E funciona? - inquiriu Pitt, desconfiado.
—Acalma a dor - respondeu o farmacêutico com tristeza - Não cura, mas quando alguém está sofrendo é algo. Eu não o uso, mas não negaria a um doente um pouco de alivio, sobretudo se não houver remédio para seu sofrimento. E Deus sabe que há muitos desses. Ninguém se cura da tísica ou cólera nem da sífilis, embora demore mais em acabar com um.
—Acaso o ópio não mata?
—Aos bebês sim, é o mais provável. - O farmacêutico se ruborizou e seus olhos refletiram fadiga - Não o ópio em si, compreende? Terminam passando quase todo o tempo adormecidos e não comem, pobrezinhos. Morrem de inanição.
Pitt experimentou uma repentina náusea. Pensou na Jemima e no Daniel, recordou que uma vez foram criaturas diminutas, terrivelmente indefesas, com tanta vida, e sentiu um nó na garganta e uma dor tal que não foi capaz de dizer nada.
O farmacêutico o olhava com pesar, o rosto compungido.
—Não tem sentido persegui-las – murmurou - Não conhecem outra coisa. A maioria são mulheres doentias, que trabalham até a extenuação e já não sabem o que fazer. Tem um filho cada ano, contando os que se malogram... não há forma de detê-lo, salvo dizendo a seus maridos que não... se é que aceitam um não por resposta. E que homem o aceita? Apenas ficam prazeres, e consideram que esse lhes corresponde por direito. - Meneou a cabeça - Não há suficiente comida, nem suficiente espaço, nem suficiente de nada, pobres diabos.
—Não tinha intenção de persegui-las - indicou Pitt engolindo em seco com dificuldade - Estou procurando a alguém que envenenou a um homem adulto jogando droga no uísque.
—Alguma pobre mulher que já não agüentava mais? - aventurou o farmacêutico mordendo o lábio e olhando a Pitt como se já conhecesse a resposta.
—-Não - respondeu o inspetor com um tom mais alto do que pretendia – Uma mulher que já não está em idade de ter filhos, e um marido perfeitamente judicioso. Ela tinha um amante...
—Oh... Oh, céus. - O farmacêutico ficou de uma peça. Meneou a cabeça lentamente - Oh, céus. E você quer saber se ela poderia ter conseguido o ópio com o que o envenenaram? Temo que sim. Qualquer um poderia obtê-lo. Não é absolutamente difícil, e tampouco é preciso dar o nome para comprá-lo. Terá muita sorte se achar a alguém que recorde haver o vendido a ela ou a seu amante, em caso de que ele seja o culpado.
—Ou a qualquer outro, imagino - acrescentou Pitt com preocupação.
—Oh, céus… havia outros que não queriam bem a esse pobre homem?
—É possível. Era um homem com grandes conhecimentos e autoridade. – Dado que tinha expressado suas suspeitas a respeito da viúva e de seus assuntos íntimos, decidiu não nomear a juiz Stafford. Se se tratava de Juniper, logo seria do domínio público, e se não fosse assim, já tinha ela muitas penas tal como estavam as coisas.
O farmacêutico moveu a cabeça pesaroso.
—Uma substância perigosa, o ópio. Uma vez que se começa, não se pode parar, e são poucos os que conseguem viver sem doses cada vez maiores - Um vislumbre de ira apareceu em seus traços doces, inteligentes - Durante a guerra civil dos Estados Unidos médicos insensatos o deram a seus pacientes acreditando que seria menos aditivo que o éter ou o clorofórmio, em particular se administrava por meio do novo invento, a seringa de injeção hipodérmica, em veia em lugar de através do estômago. Folgo em dizer que estavam em um engano. E agora têm quatrocentos mil pobres diabos escravizados. - Suspirou - Essa é uma guerra em que ganhamos tanto como perdemos, acredito. Talvez perdêssemos mais.
—A guerra civil americana? - Pitt estava confuso.
—Não, senhor, a guerra do ópio contra China. Possivelmente não me expressei bem.
—Não o fez, não - afirmou Pitt com amabilidade - mas tem toda a razão. Obrigado por sua ajuda.
—Não há de que. Lamento que não lhe sirva de muito. Temo que qualquer que tivesse alguns pennies pôde adquirir suficientes barrinhas de ópio, dissolvê-las e jogá-las na bebida do pobre homem, e não ficaria pista alguma, e tampouco haveria nada ilegal em sua compra. - Dirigiu-lhe um olhar desalentador - Poderia passar um ano percorrendo todas as farmácias e as lojas em cinqüenta quilômetros ao redor ou mais longe ainda, se a dama de quem suspeita dispõe dos meios e da ocasião para viajar. Como lhe disse, o ópio se pode adquirir facilmente em todo East Anglia e Fens, só são cento e cinqüenta quilômetros de Londres.
—Nesse caso me verei obrigado a recorrer a outros meios para averiguar a verdade - indicou Pitt - Obrigado e bom dia.
—Bom dia, senhor, e que tenha sorte em sua busca.
Pitt não conseguiu ter uma entrevista com o juiz Ignatius Livesey até o meio da tarde, quando o fizeram entrar em seu escritório. Começava a refrescar e agradeceu a calidez da sala, com o fogo bem alimentado e os suntuosos tapetes, as cortinas de veludo ricamente drapeadas que a isolavam do mundo exterior, a cornija ornada da lareira que falava de solidariedade, os livros encadernados em couro, as figuras de bronze e os pratos de porcelana de Meissen que acrescentavam um toque de elegância e luxo.
—Boa tarde, Pitt - saudou Livesey cortesmente - Como vai no assunto da morte do pobre Stafford?
—Boa tarde, senhor - saudou Pitt por sua vez - Não muito bem até a data. Ao que parece qualquer um pode conseguir ópio por uns poucos pennies. Para falar a verdade, compra-o muito a gente mais pobre, conforme me informaram, para acalmar as crianças insones e tratar doenças extremamente diversas, em ocasiões inclusive contraditórias.
—É verdade isso? - Livesey arqueou as sobrancelhas - Que tragédia. A sanidade pública é um de nossos maiores problemas, junto com a ignorância e a pobreza. De modo que seu empenho por averiguar de onde provinha o ópio resultou pouco frutífero?
—Nada frutífero - corrigiu Pitt.
—Por favor, sente-se, fique a vontade - convidou Livesey - Fora faz frio, ao menos isso me disse meu secretário. É um pouco cedo, mas gostaria de tomar uma taça de chá?
—Sim, muito - aceitou o inspetor enquanto se sentava em uma grande poltrona de couro frente a Livesey, que estava em sua escrivaninha.
Livesey fez soar uma campainha que havia na parede, a seu lado, e pouco depois apareceu um empregado que perguntou o que desejava. O juiz pediu chá para dois, a seguir se reclinou em seu assento e olhou Pitt com curiosidade.
—O que o traz por aqui de novo, senhor Pitt? Agradeço sua cortesia ao me fazer partícipe de seus progressos, ou da ausência deles, mas suponho que não veio por isso.
—Eu gostaria que me contasse tudo que recorde da noite em que morreu o juiz Stafford. Desde o momento em que o viu no teatro.
—É claro, embora não esteja seguro de que vá ser de utilidade. - Livesey se reclinou na poltrona e descansou as mãos no estômago; seu poderoso rosto tranqüilo - Cheguei ao teatro uns vinte minutos antes que desse começo a função. Estava abarrotado, naturalmente. Esses lugares costumam estar se a peça é boa, e esta era muito popular e contava com um elenco excelente. - Sorriu com uma expressão de indulgência e de muito ligeiro desprezo - Folgo em dizer que ali estavam as prostitutas de costume, de uma ou outra classe, exibindo-se na platéia e na galeria, na parte de trás, embelezadas com uma magnífica demonstração de cores. Esplêndidas, a certa distância. E os homens as comiam com os olhos, muitos deles foram ainda mais longe. De todos os modos isso é bastante habitual, e não cabe dúvida de que já o terá observado você mesmo.
O empregado voltou com uma bandeja em que havia um bule e um jarrinha de leite, ambos de prata, um de açúcar com pinças, duas xícaras e dois pratos de porcelana, uma terrina e um coador de prata. Os cabos das duas colherinhas de prata tinham incrustações de madrepérola. Livesey agradeceu distraidamente e, logo que partiu, fechando a porta em silencio atrás de si, serviu chá para ambos.
—Vi um par de conhecidos - prosseguiu Livesey olhando Pitt com ar divertido - Acredito que saudei algum de longe, depois me dirigi a meu camarote. Com freqüência tenho convidados, mas nesta ocasião minha esposa não pôde assistir e eu não tinha convidado a ninguém. Estava só, o que, suponho, foi um dos motivos pelos que me expus me unir ao Stafford no entreato. Entretanto, limitamo-nos a trocar as cortesias de rigor e o deixei só. - Bebeu o chá com distraído prazer. Era Earl Grei, delicado e caro.
—E isso por quê? - Pitt se endireitou ligeiramente.
—Stafford foi ao salãozinho de fumantes - explicou Livesey meneando um tanto a cabeça e sorrindo - Um lugar muito público, senhor Pitt. O lugar ao que os cavalheiros podem retirar-se juntos para fumar, se o desejarem, ou para escapar da companhia feminina por uns minutos, e possivelmente para cochichar ou despachar algum assunto se o estimam apropriado. Havia muitíssima gente, parte da qual eu achava aborrecida, e não queria estragar minha noite. Dei uma olhada, mas não fiquei.
—Viu se o senhor Pryce estava ali?
O rosto do Livesey se escureceu.
—Sei por onde vai, senhor Pitt. É lamentável, mas temo que inevitável para um homem judicioso. Sim, estava ali e falou com Stafford. Isso é tudo que vi. Não posso dizer se teve oportunidade de tocar o cantil. - Seus olhos serenos não se afastavam do rosto do inspetor-. Não vi o Stafford beber dele. Duvido muito que a tirasse durante o entreato. Acredito que é mais provável que bebesse dele discretamente, na escuridão e na intimidade de seu próprio camarote. Isso é o que eu faria, em lugar de deixar que me vissem beber de meu próprio cantil em um lugar público onde podem se comprar refrescos de todo tipo. - Contemplou Pitt com um sorriso pesaroso; um comentário sobre a debilidade de um homem não muito diferente dele mesmo e pelo que agora sentia certa compaixão - Compreende?
—Sim - admitiu Pitt, antes de tomar um gole de chá. Tinha perfeito sentido. Ele nunca tinha tido cantil (era uma idéia peregrina), mas se o tivesse feito teria bebido discretamente, na intimidade de um camarote do teatro, não em um espaço público, no salãozinho de fumantes - Que aspecto tinha?
—Pensativo - respondeu Livesey depois de parar a pensar um momento, como se revivesse uma lembrança. Franziu o sobrecenho - Um tanto preocupado. Acredito que Pryce diria o mesmo, se estava em situação de perceber.
Pitt vacilou, sopesando se devia mostrar-se escuro ou direto; optou pela franqueza.
—Acredita que poderia ter envenenado ao Stafford?
Livesey inspirou profundamente e soltou o ar pouco a pouco.
—Lamento dizê-lo, mas é uma possibilidade nada desdenhável - respondeu olhando a seu interlocutor com os olhos entreabertos. - Não há dúvida de que alguém o fez, não é verdade? - Tomou outro gole de chá.
—Sim, não cabe dúvida... ao menos não uma dúvida razoável - asseverou Pitt. - Nenhum homem tomaria essa dose para acalmar uma dor ou tratar uma enfermidade, e tampouco para evadir-se das adversidades e decepções da realidade. E ninguém tomaria ópio por acidente. - Bebeu um gole de chá, não de todo seguro se gostava. As grossas cortinas amorteciam os ruídos da rua. Ouvia o tictac do relógio da estante. - A única alternativa é o suicídio - continuou-. Ocorre-lhe algum motivo pelo qual o juiz Stafford pudesse tirar a vida, em um lugar público, em seu camarote do teatro, sem deixar nota alguma e causando semelhante consternação a sua esposa? Seria insólito fazer algo assim, inclusive caso o desejasse.
—É claro - concordou Livesey fazendo uma careta - Sinto muito. Estava tratando de evitar o inevitável. É claro que foi assassinado, e agradeço enormemente que não seja trabalho meu averiguar quem o fez, embora pode estar seguro de que farei tudo que esteja em minha mão para ajudá-lo. - Deslocou um tanto o peso em seu assento, entrelaçou as mãos e olhou Pitt - Não, o aspecto do Samuel Stafford me pareceu normal. Mostrou-se educado, mas distante. Assim era habitualmente. - Apertou os lábios-. Não notei nada estranho nele, sem dúvida nem rastro de tensão nem sensação de desastre iminente. Não acredito que temesse a morte, nem que a esperasse, e menos ainda que a planejasse.
—E não o viu beber do cantil?
—Não. Mas, como disse, não fiquei no salãozinho de fumantes.
—Senhor Livesey, tem idéia de se o senhor Stafford estava a par da relação de sua esposa com o senhor Pryce ou se suspeitava algo?
—Ah. - O rosto de Livesey se escureceu e sua expressão refletiu tristeza e desagrado. - Essa é uma questão muito mais difícil. E é natural que você me pergunte se ter conhecimento de uma coisa assim o faria desesperar o bastante para tirar a vida. Não posso responder à primeira pergunta; às vezes o conhecimento é algo muito sutil, senhor Pitt, não é questão de sim ou não. - Olhou Pitt atentamente, como se sopesasse sua percepção - Há diversos agrados de conhecimento - prosseguiu, a dicção precisa, a escolha das palavras exata - É indiscutível que sabia que sua esposa se mostrava claramente fria com ele. Esse sentimento em sua relação era mútuo. Conservava certa estima por ela, certo respeito que se converteu em um hábito com os anos, mas já não estava apaixonado por ela se é que alguma vez o esteve. - Respirou fundo - Exigia que ela se comportasse com decoro e desempenhasse o papel de esposa de um juiz que a sociedade esperava dela, e pelo que eu sei assim o fazia. - Franziu ainda mais o sobrecenho de seu imponente rosto. Saltava à vista que o tema lhe era desagradável, e falava com ternura - Entretanto, e para falar a verdade, não desejava que ela o mesclasse em emoções profundas ou lhe proporcionasse permanente companhia. Não afastava o olhar do rosto de Pitt, e este não se movia-. Igual a numerosos matrimônios que são os mais convenientes e não de todo desagradáveis com os anos, no seu não havia indício de paixão, de posse mútua. Se ela se comportasse de forma indiscreta, ele se teria zangado. Se tivesse infringido abertamente todas as convenções sociais e protagonizado um escândalo, a teria repudiado, enviando-a ao campo ou, em caso de que tivesse demonstrado ser radicalmente teimosa, como último recurso, e se ela com suas ações tivesse justificado uma medida tão extrema, divorciando-se. Isso teria suposto um embaraço que ele teria tratado de evitar. -Encolheu os robustos ombros-. Mas isso não ocorreu. Se tivesse estado a par de que ela dava de presente seus favores a outro homem – acrescentou torcendo o gesto - teria olhado a outra parte e fingido não dar-se conta. De fato, talvez pusesse tanto empenho em fazê-lo que não chegasse mais que a roçar a periferia de sua consciência. Não é nada estranho, em particular entre quem leva bastante tempo casados e já estão - se fez uma pausa para procurar uma palavra que não fosse muito indecorosa - acostumado o um ao outro.
—Nesse caso é pouco provável, a seu julgamento, que tivesse caído no desespero ao descobrir que sua esposa tinha uma aventura com o senhor Pryce, não é certo? - perguntou Pitt.
—É inconcebível - respondeu Livesey com franqueza, os olhos arregalados.
—Se realmente era tão complacente a respeito - pressionou o inspetor - por que ia a senhora Stafford fazer algo tão extremo como assassiná-lo?
Livesey esboçou um gesto fatigado e amargo que não demorou em desaparecer.
—Suponho que sua paixão pelo senhor Pryce é tão desesperada – respondeu - que não se contentou com uma mera aventura. Com o Stafford morto, ela seria uma viúva com consideráveis meios e livre para casar-se com Pryce. Imagino que em seu trabalho, inspetor, topou-se com numerosas relações que começaram como um capricho e terminaram de forma sórdida, e em algum caso em assassinato, não é certo? Por desgraça, trata-se de uma história que eu mesmo presenciei com muito mais freqüência do que gostaria, em geral egoísta, um tanto vil e profundamente trágica. Afeta a todas as classes e idades, lamento dizê-lo.
Pitt não podia negá-lo.
—Sim - reconheceu a contra gosto - topei-me com elas.
—É possível que o desejo de Pryce já não fosse o mesmo - continuou Livesey - E que ela temesse perdê-lo por uma mulher mais jovem. Quem sabe? – encolheu um tanto os ombros - Todo o assunto é escuro e absolutamente trágico. Se o pobre Stafford não estivesse morto, o teria considerado tão pouco provável que teria descartado a possibilidade, mas está morto, e temos que confrontar as conclusões lógicas. Lamento não poder dizer nada de mais utilidade ou menos terminante.
—Foi-me de grande ajuda. - Pitt se levantou - Investigarei a natureza deste lamentável assunto e averiguarei tudo o que possa.
—Não o invejo. - Livesey fez soar a campainha para que acudisse seu empregado - Pode começar por minha esposa, que é tão observadora como discreta. Mantinha uma boa amizade com Juniper Stafford, mas lhe dirá a verdade, sem fofocas que danifiquem reputações desnecessariamente.
—Obrigado, senhor - disse Pitt com sincera gratidão - Será um excelente lugar para começar.
Aceitou o conselho do Livesey e se pôs em marcha depois de comer, a primeira hora da tarde. Endireitou a gravata, arrumou a jaqueta e passou vários artigos de um bolso a outro para equilibrá-los e reduzir as protuberâncias, deu às botas uma rápida passada contra as pernas das calças e passou os dedos pelo cabelo, esforço este último que piorou as coisas grandemente. Desta vez tomou uma carruagem, não o ônibus, apeou-se na muito em moda Eaton Square e se apresentou ante a porta do número 5. A sua chamada respondeu um elegante lacaio, alto e esbelto, de excelentes pernas, bem exibidas graças às calças de seda de sua libré.
—Sim, senhor? - Tinha justo o toque adequado de arrogância que raiava a ofensivo. Achava-se empregado em uma casa muito distinta e se assegurava de fazer saber aos visitantes.
—Boa tarde - saudou Pitt com um sorriso que não sentia, mas que lhe proporcionou a considerável satisfação de desconcertar ao homem. As pessoas não sorriam aos lacaios. Ele sorriu inclusive amplamente, mostrando os dentes – Me chamo Thomas Pitt. - Tirou seu cartão e o colocou na bandejinha de prata que o outro lhe estendeu - O juiz Livesey teve a amabilidade de me sugerir que talvez a senhora Livesey possa me proporcionar certa informação que preciso em pró da justiça. Você teria a bondade de lhe perguntar se pode me receber a tal efeito?
A serenidade do lacaio se viu profundamente perturbada. Quem demônios era esse tipo impertinente que estava na escada com um sorriso de orelha a orelha e uma segurança em si mesmo que não devia ter? Seriamente o tinha enviado o juiz? Teria gostado de despachá-lo com umas quantas palavras bem escolhidas, mas não se atreveu. Não havia dúvida de que a sociedade estava em franca decadência e os valores se estavam estragando.
—Sim, senhor - respondeu com aspereza - Com muito gosto o perguntarei, mas não posso lhe dizer qual será a resposta.
—Naturalmente que não - se adveio Pitt, razoável - Ao menos não até que o pergunte.
O lacaio soltou um grunhido, deu meia volta e desapareceu, deixando Pitt na escada. No extremo oposto do saguão havia um menino, um engraxate, que olhava com suspeita para assegurar-se de que Pitt não entrasse de repente e roubasse os ornamentos ou as bengalas do bengaleiro.
O lacaio apareceu de novo em pouco, deixou a bandeja dos cartões na mesa do saguão e se dirigiu para o Pitt olhando-o com desagrado.
—A senhora Livesey se encontra em casa e o receberá, se tiver a amabilidade de me seguir. - Estendeu a mão para tomar o casaco e o chapéu do inspetor.
—Obrigado - respondeu este lhe entregando ambos os objetos. Não estava especialmente surpreso. A curiosidade costumava ser mais poderosa que as sutilezas sociais, sobretudo no que respeita a esposas de certo nível que não tinham muitas preocupações com as quais ocupar seu tempo, e menos ainda com as que ocupar sua mente. Algo inesperada ou nova era valiosa precisamente por esse motivo.
A casa era sólida, antiga e extremamente confortável. A estadia a que foi conduzido Pitt era espaçosa, com janelas ao longo de uma parede, embora a primeira vista não parecesse grande. A enorme lareira dominava outra parede, e se achava ladeada por estantes de livros que chegavam até o teto. As poltronas, de tapeçaria escura, viam-se complementadas por umas formosas cadeiras, muito retas, com espaldares de madeira esculpida como janelas de igreja. Havia adornos, tapeçarias, vasos de barro em qualquer parte, mas o elemento mais interessante era um abajur de transição que pendia do centro do teto. Tinha sido desenhada para que funcionasse tanto com eletricidade como com gás; os braços para o gás apontavam para cima, e as lâmpadas para a eletricidade, para baixo. Era o segundo que via em sua vida.
Mariah Livesey era uma mulher atraente de espessa cabeleira cã e ondulada, que trazia penteada para trás de um modo muito favorecedor. Tinha uns traços bem proporcionais e agradáveis. De fato, ao olhá-la Pitt pensou que provavelmente fosse mais parecida agora que em sua juventude, época em que bem poderia ter sido relativamente comum. Os anos de comodidade e de prestígio assegurado lhe tinham conferido um ar tranqüilo, e as roupas caras de refinado gosto lhe tinham contribuído com distinção. Olhou-o com curiosidade contida com muita dificuldade.
—Sim, senhor Pitt? Meu lacaio me comentou que meu marido lhe recomendou que viesse me visitar para obter certa informação, não é assim?
—Sim, senhora - respondeu Pitt erguido, mas não firme - Abandonei seu escritório pouco antes da hora de comer e me aconselhou que começasse minha investigação por você. É um assunto muito delicado que, se fosse tratado com estupidez, arruinaria a reputação de uma dama, talvez injustificadamente. Disse-me que seria franca e discreta a mesmo tempo.
Os olhos da mulher brilhavam de interesse e suas faces se tingiram de uma tímida vermelhidão.
—Vá, muito generoso de sua parte. Esforçarei-me por estar à altura do que disse de mim. Que deseja me perguntar, senhor Pitt? Ignorava que soubesse algo de semelhante assunto.
—Estou investigando a morte do juiz Stafford.
—Céus. - Seu rosto se escureceu - Algo espantoso. Rogo-lhe que se sente senhor Pitt. Não podemos tratar este assunto em uns minutos, embora o certo é que não me ocorre como poderia lhe ser de ajuda. Não sei nada absolutamente.
—Tenho certeza disso, pois do contrário já nos teria informado - respondeu o inspetor sentando-se em uma poltrona frente a ela - mas conhece o senhor e à senhora Stafford, e não cabe dúvida de que se movem nos mesmos círculos sociais.
A surpresa se desenhou no rosto da senhora Livesey.
—Não insinuará que o matou alguém de seu círculo social, não é verdade? Isso é absurdo! Deve ter interpretado mal as palavras de meu marido. É a única explicação possível.
—Temo que não. - Pitt meneou a cabeça e sorriu com tristeza - Foi bastante claro. Permite-me que lhe faça umas perguntas?
—Naturalmente. - Parecia perplexa.
—O senhor e a senhora Stafford estavam casados há certo tempo, não é assim? - perguntou.
—Oh, sim, ao menos vinte anos, provavelmente mais. - Elevou a voz, surpreendida.
—Como descreveria sua relação?
A perplexidade da senhora Livesey aumentou.
—Oh... afável, diria eu. Não cabe dúvida de que entre eles não houve nunca animosidade alguma, ao menos pelo que eu sei. Se estiver pensando em uma briga, tenho que lhe dizer que acho muito difícil de acreditar, se não impossível. - Meneou a cabeça para ressaltar essa observação.
—Por que diz isso, senhora Livesey? - insistiu o inspetor.
—Bem... - Olhou-o com expressão concentrada.
Seus olhos não eram nem azuis nem cinzas, e transbordavam de perspicácia. Pitt percebeu que não era uma mulher inteligente, mas sim com considerável critério na hora de julgar outros de seu próprio círculo social, e com um excelente sentido do conveniente.
—Sim? Apreciaria em muito sua franqueza, senhora.
A mulher vacilou só um instante, mas, em opinião dele sopesando as palavras, mais que deliberando se respondia ou não.
—Não era uma relação em que as emoções de nenhuma das duas partes fossem bastante profundas para discutir - acabou dizendo. A julgar por sua expressão, Pitt pensou que estava medindo cuidadosamente as palavras. - Fazia já tempo que se convertera em uma situação mais cômoda – prosseguiu - em que o respeito e o costume tinham substituído toda implicação importante na vida cotidiana do outro. Juniper sempre se conduzia com discrição e cumpria com suas obrigações sociais. É uma anfitriã excelente, de porte atraente, bem vestida, de delicadas maneiras. - Algo lhe passou pela cabeça, e apertou os lábios por um instante. A Pitt ocorreu que se estava concentrando para dizer coisas nas quais mal acreditava. - E pelo que sei Samuel Stafford era um homem honrado, nada dado aos excessos nem pessoais nem financeiros - continuou, relaxando um tanto sua expressão. - Nunca lhe faltou nada. Se... se em sua vida havia outras mulheres, o levava com tal discrição que eu, até agora, não sabia. - Olhou o inspetor esperando um comentário por sua parte.
—Sim. Isso é o que me disseram outros - afirmou ele. - E o que tem sobre as outras relações da senhora Stafford?
—Oh, bem... suponho que se refere ao senhor Pryce. - ruborizou-se, incômoda, embora não se podia dizer se era confusão ou culpa por mencioná-lo.
—Havia algum outro? - inquiriu Pitt.
—Não! Não, é claro que não! - O rubor se tornou mais vivo até.
—Sabe quando conheceu o senhor Pryce?
A senhora Livesey suspirou e olhou pela janela.
—Acredito que o conheceu há alguns anos, embora a amizade fosse superficial, pelo que sei. Começaram a conhecer-se melhor, muito melhor, no último ano e meio. - interrompeu-se abruptamente, sem saber quanto mais devia dizer. Era consciente de que tinha falado com uma veemência imprópria, temia ter traído algo em seu interior, como para falar a verdade tinha feito. Olhou Pitt com o sobrecenho franzido, à espera.
—Em sua opinião, senhora Livesey, o que sente a senhora Stafford pelo senhor Pryce? - perguntou ele com gravidade - Lhe rogo que seja sincera comigo. Não revelarei a ninguém suas palavras, só necessito a informação para averiguar a verdade. Tenho que sabê-lo, em interesse da justiça.
Ela mordeu o lábio e refletiu um instante antes de responder com tom severo.
—Estava apaixonada por ele. Esforçava-se por ser discreta, mas para alguém que a conhecesse tanto como eu era bastante claro.
—Em que sentido?
—Oh, algo em sua conduta, em seu modo de vestir, nas coisas pelas que mostrava interesse. - de repente se se pôs a rir, como se agora que tinha começado não fosse capaz de conter a corrente de seus sentimentos - As coisas pelas que perdeu todo interesse. As fofocas que já não gostava de ouvir, as trivialidades que um ano atrás lhe teriam fascinado e às que agora não prestava atenção. Começou a comportar-se como se fosse muito mais jovem. - A vermelhidão de suas faces se intensificou. - Quando uma mulher está apaixonada, senhor Pitt, as outras mulheres sabem. Os sinais não são precisamente sutis; são bastante inconfundíveis.
Pitt se sentiu incômodo sem ter sabor de ciência certa por que.
—E em sua opinião, correspondia o senhor Pryce a esse sentimento? – Anotou mentalmente não esquecer perguntar à Charlotte se ela achava que notaria tais coisas em outra mulher.
—Não sei muito bem por que acredito assim, mas sim, certamente. - Voltou a soar cortante - Sua gentileza por ela era de uma aparência muito pessoal. O olhar em seus olhos era inconfundível. Toda mulher deseja ver esse olhar no rosto de um homem alguma vez em sua vida. - Disse-o com um leve sorriso. - É melhor que todos os diamantes ou todos os perfumes do mundo, e mais embriagador que o champanha. Sim, senhor Pitt, o senhor Pryce chegou a corresponder a seus sentimentos.
—Chegou a correspondê-los? - O inspetor esquadrinhou seu rosto e viu a emoção e a ira refletidas nele antes que as mascarasse. - Devo entender que os sentimentos dela precederam aos dele?
A senhora Livesey não fugiu seu olhar.
—Se se referir a se o perseguiu, senhor Pitt, sim, lamento dizê-lo, mas sim o fez. Um fim de semana de fato, estávamos todos convidados em uma casa de campo. Foi impossível não dar-se conta.
—Entendo. - Pitt trocou de postura na poltrona - Senhora Livesey, pode me dizer o que poderiam fazer um homem e uma mulher em semelhante situação? Quais seriam suas opções? E as conseqüências de ser indiscretos?
—É claro. Suas opções se tivessem a intenção de permanecer em sociedade, seriam muito escassas - respondeu ela com resolução - Ou se conduzem com absoluta correção moral e não se vêem salvo quando for inevitável, e em tal caso só em presença de outras pessoas adequadas... - prosseguiu, os ombros tensos - A gente tende à malevolência, sabe? Não se podem desafiar as convenções sociais e sair ileso. - Seguia observando Pitt, calibrando se compreendia. - Ou dão rédea solta a suas paixões, mas em casa de amigos comuns, com uma partida de campo nos fins de semana e em ocasiões similares, mas com suficiente discrição para que ninguém se veja forçado a dar-se conta.
—Isso é tudo?
—Tudo? - A mulher enrugou a fronte - Que mais ia haver?
—O que há sobre o matrimônio?
—Juniper Stafford já está casada, senhor Pitt.
—Divórcio?
—Impensável. Oh... - de repente a senhora Livesey empalideceu - Não estará pensando que Juniper ou o senhor Pryce envenenaram deliberadamente ao juiz Stafford?
—Não acha possível?
A senhora Livesey refletiu uns instantes antes de responder com total tranqüilidade. A preocupação pela sociedade, os pequenos protocolos e as invejas se desvaneceram.
—Sim... sim, é possível. Eu...
Pitt aguardou.
—Eu... lamento dizer uma coisa assim - acrescentou ela sem convicção. Parecia em extremo desconfortável. - Juniper não é judiciosa no que corresponde a suas emoções.
—Acredita que o senhor Stafford estava a par de sua relação? - perguntou o inspetor.
A senhora Livesey apertou os lábios, pensativa.
—Oh... Oh, duvido. Não é a classe de coisas que os homens costumam perceber, a menos que estejam predispostos ao ciúme. E indubitavelmente sua natureza não era tal. Essas coisas se notam. - De novo olhou-o para ver se compreendia - Não a vigiava nem parecia estar à corrente de quem via. Há diferenças de comportamento que não resultam óbvias a um homem, a menos que ele também esteja apaixonado. Se acabassem de casar-se, talvez... - Sua voz se foi enfraquecendo com tristeza.
—Você acha que outras mulheres entre suas amizades eram mais observadoras?
—Sem dúvida - respondeu ela com um amargo sorriso. - Adolphus Pryce é um homem muito atraente, e solteiro. Monopoliza muita atenção. O mais insignificante de seus atos é objeto de comentários e análise. São muitas as mulheres que têm postos os olhos nele.
—Nesse caso a senhora Stafford não gozará de muita popularidade – observou Pitt com uma mescla de humor e lástima.
—Dificilmente - concordou ela com veemência, depois do qual a assaltou o acanhamento e se apressou a lhe oferecer uma explicação. - Não há muitos cavalheiros que sejam um bom partido. Que uma mulher tenha dois supõe uma absoluta falta de justiça.
Pitt contemplou sua terminante figura e seu rosto envelhecido, e se perguntou que pensamentos sobre o Adolphus Pryce ou seus semelhantes lhe teriam passado pela cabeça. Até que ponto lhe contrariavam as paixões às quais Juniper tinha dado rédea solta e as que tinha suscitado nele?
—Você não disse nada ao senhor Stafford que pudesse havê-lo induzido a dar-se conta da estima que sua esposa professava ao senhor Pryce? – perguntou – Nem sequer por descuido ou por compaixão?
A ira iluminou os olhos da mulher, para logo apagar-se uma vez que o inspetor se explicou.
—Não - respondeu com decisão - Opino que é melhor não misturar-se nos assuntos de outros. Nunca serve para nada.
—Não, suponho que não - concordou ele.
Provavelmente tinha averiguado já todo o que era possível. A aventura durou entre um e dois anos, e foi discreta, mas não passou inadvertida a outras mulheres. Havia a possibilidade de que alguma língua afiada o tivesse contado ao juiz Stafford, mas em tal caso não era provável que ele tivesse reagido violentamente ou com grande aflição. Cada novo dado o levava de volta a Juniper ou a Adolphus Pryce, ou possivelmente a ambos.
—Obrigado, senhora Livesey - disse educado, obrigando-se a sorrir. - Me foi de grande ajuda. Espero que continue mantendo com respeito a este assunto a discrição que a caracterizou até agora. Seria perverso difamar à senhora Stafford ou ao senhor Pryce se forem inocentes de todo o relacionado com a morte do juiz. Há muitas outras possibilidades; esta é só uma em que, por desgraça, vejo-me obrigado a indagar.
—Naturalmente - se apressou a dizer ela - O entendo bem, asseguro. Tratarei-o com a máxima confidencialidade.
Ele esperava que assim o fizesse e que fosse tão judiciosa como achava seu marido, mas, quando se levantou e se despediu, já não se sentia de todo seguro.
Percebia se nela a infelicidade que provoca o desejo de algo que está fora do alcance de uma pessoa. E Pitt sabia que não gostava de Juniper Stafford. Quanto a sua percepção sobre Samuel Stafford, quanto provinha em realidade do conhecimento de seu próprio marido?
A pessoa seguinte que queria ver era o juiz Granville Oswyn, outro dos membros do tribunal de apelação que tinham levado o caso de Aaron Godman. Sua opinião sobre este assunto poderia servir para esclarecê-lo mais e, como colega de Samuel Stafford, possivelmente estivesse a par de suas relações pessoais. Pitt precisava saber se Stafford tinha conhecimento da teimosia de sua esposa e se talvez lhe importava mais do que Livesey ou a senhora Livesey pensavam. Talvez fosse uma busca inútil, mas devia empreendê-la.
Entretanto, quando chegou a Curzon Street, ao domicílio do juiz Oswyn, a criada que abriu a porta lhe informou que o juiz estava em viagem de negócios e não lhe esperavam até a semana seguinte, e a senhora Oswyn tinha ido visitar umas amigas. Não obstante, essa noite não jantava em casa, de modo que não cabia dúvida de que não demoraria muito em chegar e, se Pitt era amável, podia esperá-la na saleta de manhã.
Pitt decidiu esperá-la. Não tinha nada importante que fazer, de maneira que passou uns agradáveis quarenta e cinco minutos tomando chá na cômoda saleta de manhã até que o chamaram e o conduziram ao salão, uma delicada sala em suaves tons sépia e ouro onde a senhora Oswyn lhe observou com moderado interesse. Era uma mulher alhada, de cabelo castanho claro e figura roliça. Seu rosto, que provavelmente fora formoso em sua juventude, agora estava iluminado por uma afabilidade que o tinha suavizado até dotar o de uma doçura extraordinária.
—A criada me informou que está investigando a morte do juiz Stafford, estou certa? - perguntou arqueando as sobrancelhas. - Não consigo compreender no que posso ajudá-lo, mas estou totalmente disposta a tentá-lo. Rogo-lhe que se sente senhor Pitt. O que acredita que posso lhe contar? Conhecia-o, naturalmente. Meu marido presidiu o tribunal de apelação com ele em numerosas ocasiões, de modo que conhecíamos tanto ao senhor Stafford como a sua esposa, pobre criatura.
Pitt observou sua expressão e pensou que havia nela uma compaixão mais profunda que as simples palavras que qualquer pudesse dizer de uma mulher que tinha enviuvado tão recentemente.
—Sente muito por ela, não é assim? - perguntou olhando-a nos olhos.
Demorou uns segundos em responder, talvez sopesando quanto ele já sabia. Decidiu-se.
—Assim é. A culpa é um sentimento muito doloroso, em particular quando é muito tarde para emendá-la.
Ele ficou de pedra, não só pela idéia, mas sim por sua extraordinária franqueza.
—Acredita que ela foi responsável de algum modo da morte de seu marido? - Tentou manter a serenidade.
Sua interlocutora parecia assombrada e um tanto envergonhada.
—Céu santo, não! Rotundamente, não! Rogo-lhe me desculpe se lhe dei essa impressão. Estava obcecada com o Adolphus, e ele com ela, mas não foi de modo algum responsável pela morte do Samuel. O que lhe faz pensar algo tão terrível?
—Deve haver algum responsável, senhora Oswyn.
—Certamente - reconheceu ela, juntando as mãos no regaço - Não se pode fingir que o assassinato não existe, por muito que a gente queira, mas não seria a pobre Juniper quem fizesse algo tão espantoso. Não, não, não. É culpada de lhe haver sido infiel, de sentir uma paixão ilícita, luxúria, se você quiser, e de lhe dar rédea solta em lugar de dominá-la. Já é bastante culpa.
—Estava o senhor Stafford à corrente de seu desenfreio?
—Oh, acredito que sabia perfeitamente que havia algo. - A senhora Oswyn olhou Pitt com atenção. - Além de tudo, a gente não pode estar completamente cego, mesmo que haja vezes nas quais preferiria estar por seu próprio bem. Mas ele optou por não olhar com muita atenção. Não lhe teria feito nenhum bem. - Fixou em Pitt o olhar de seus olhos redondos, doces. - Não via o que era melhor não ver. E assim, quando tudo tivesse acabado, teria sido muito mais fácil perdoar e esquecer ao não conhecer os detalhes. Um homem sábio, Samuel. - Meneou ligeiramente a cabeça - Agora Juniper, pobre mulher, nunca achará esse perdão, e quando a paixão morrer (não cabe dúvida de que morrerá, como costumam morrer essas paixões) não ficará nada salvo a culpa. Tudo isto é muito triste. O disse, mas quando uma mulher está apaixonada com semelhante obsessão, semelhante desejo, não escuta.
Pitt estava surpreso. No rosto da senhora Oswyn havia ingenuidade, quase inocência e, entretanto falava de violência e de adultério como um menino poderia falar de coisas cujos nomes tivesse ouvido, mas cujo significado não compreendesse. Sua perspicácia, apesar de sua inocência, assombrou-lhe, ao igual a sua capacidade para sentir compaixão.
—Sim - disse Pitt com voz baixa. - Sim, sentirá uma dor da qual lhe será difícil recuperar-se, pois haverá muita culpa. A menos que...
—Não - o interrompeu ela com firmeza. - Eu não acredito que o matasse. E tampouco acredito que o fizesse o senhor Pryce. É um homem imprudente, caprichoso, e perdeu sua honra por uma mulher, o que significa que é fraco. Entretanto, não cairia tão baixo para assassinar o seu amigo nem sequer por isso. - Olhou Pitt com gravidade - Nem me passa pela imaginação. É imprudente, como o são muitos homens, mas a culpa é dela. Uma mulher quase sempre pode rechaçar a um cavalheiro com bastante elegância e mesmo assim deixar claro seu desinteresse. Mas ela fez justo o contrário. Ambos pagarão por isso, não esqueça minhas palavras.
Pitt não a contradisse. Pelo que tinha observado, inclinava-se a pensar que bem poderia estar certa.
—Senhora Oswyn, acha possível que se casem agora que são livres de fazê-lo?
—Poderia ser, mas não serão felizes. A morte do pobre Samuel o impedirá, se é que alguma vez foi possível. Mas terá que procurar em outra parte seu assassino.
—Possivelmente.
—Oh, sem dúvida - assegurou ela com absoluta certeza - Suponho que já estará investigando esse lamentável assunto de Farrier"s Lane. Sim, é claro. Não me surpreenderia que tivesse algo que ver com isso. Ao Samuel não saia da cabeça, sabe? Veio aqui para falar com o Granville em mais de uma ocasião. Meu marido tentou lhe persuadir de que o deixasse estar, de que não havia nada mais que averiguar e de que, com toda segurança, nada bom podia sair daí. Mas Samuel não se deixou convencer.
Pitt se endireitou.
—Quer dizer que o juiz Stafford tinha a intenção de reabrir o caso? Está segura?
—Bem, vejamos. - A senhora Oswyn desenlaçou as mãos. - Eu não disse que estivesse segura, compreende? Só sei que falou disso com o Granville, meu marido, várias vezes e que discutiram sobre esse assunto. Samuel queria investigá-lo e Granville, não. Não sei se ao final meu marido conseguiu persuadi-lo da inutilidade de fazê-lo ou se Samuel ainda desejava continuar.
—O juiz Oswyn não achava que houvesse nada mais que averiguar? Nenhum engano judicial? - inquiriu Pitt.
—OH não, absolutamente - respondeu ela com convicção - embora não estivesse satisfeito com o caso. Sempre teve a sensação de que houve certa urgência e muitas emoções extremamente desagradáveis. Contudo, isso não alterava a correção do veredicto, e isso foi o que disse ao Samuel.
—Suponho que não saberá qual foi o motivo que induziu ao juiz Stafford a seguir com o caso. - Pitt se inclinou, olhando-a fixamente. - Sabe se descobriu algo novo, alguma prova?
—Santo céu, não. Meu marido nunca trata nada dessa natureza comigo. Não é adequado, sabe? Absolutamente. - Meneou a cabeça, rechaçando a idéia de plano. - Não. Temo que não tenha nem idéia do que disseram; só sei que guardava relação com o caso e que o discutiram de um modo muito acalorado.
Assaltou a Pitt a confusão. Tinha afastado o assassinato de Farrier"s Lane de seus cálculos e agora parecia que se precipitara. Ou simplesmente esta mulher tinha perdido o contato com a realidade, negando-se a acreditar que a gente que conhecia e era amiga sua pudesse ser culpada de algo mais que dos pecados infelizmente comuns do adultério e engano? Olhou-a com mais atenção e se topou com seus amáveis olhos, tão conhecedores de seu mundo mais imediato, tão ignorantes de algo que não fosse este.
—Muito obrigado, senhora Oswyn - disse com grande cortesia - foi de grande ajuda e muito generosa com seu tempo.
—Não há de que, senhor Pitt - respondeu ela sorrindo-lhe com doçura - Espero que tenha sorte em sua busca. Deve ser muito complicado.
—Às vezes. - ficou em pé, desculpou-se e se despediu dela.
Pitt foi ao escritório de Micah Drummond para falar do assunto com ele, mas este tinha saído e não o esperavam até a manhã seguinte, de modo que não pôde vê-lo até então.
Era um dia frio, a intensa umidade penetrava pela jaqueta de lã que tinha bastado a noite anterior, de forma que Pitt se alegrou de achar-se no quente escritório de Drummond, no qual ardia o fogo.
Este se achava ante a lareira, de costas a esta, esquentando-as pernas. Claramente também ele acabava de chegar. A expressão de seu magro rosto era grave, e olhou Pitt com expectativa, mas sem maior interesse.
—Bom dia, Pitt - saudou com tom solene. - Alguma novidade?
O inspetor mudou de opinião, não sobre o que ia dizer, mas sim sobre a forma de dizê-lo.
—Não, senhor. Estou atrás da senhora Stafford e do senhor Pryce para averiguar todo o possível sobre sua relação, mas ainda não dei com nada que pareça ser um bom motivo para matar ao Stafford.
—Amor - replicou Drummond. - Não é preciso procurar mais à frente. Ou se deseja ser mais preciso, obsessão amorosa. Pelo amor de Deus, Pitt, cometeram-se mais crimes movidos pelo desejo que por qualquer outra coisa, salvo possivelmente o dinheiro. Que problema tem? Não o vê?
—A sociedade está cheia de aventuras e desejos obsessivos similares – afirmou o inspetor, resolvido a não ceder terreno. - Muito poucos terminam em assassinato, e os que o fazem costumam ser aqueles nos quais alguém foi enganado e o averiguou de repente, e a seguir assassinou aos culpados no calor do momento.
—Por que se empenha em discutir? - Drummond enrugou a fronte enquanto o olhava - É claro que essa é a causa de muitos deles, mas tampouco é novo que dois amantes assassinem ao marido ou à esposa que se interpõe entre eles. por que não acredita que seja isso o que aconteceu neste caso? -afastou-se do fogo quando começou a ter muito calor. Sentou-se em uma poltrona e indicou ao Pitt com um movimento da mão que se acomodasse na outra.
—Poderia ser - admitiu Pitt a contra gosto - mas parece um tanto histérico. Stafford não se interpunha em seu caminho. Ao que parece quase consentia na aventura.
—Estava à corrente? - perguntou Drummond bruscamente - Tem certeza?
Pitt tomou ar. Queria dizer "é claro", mas se exagerava se veria obrigado a retratar-se mais adiante, e então Drummond se perguntaria em que mais tinha carregado as tintas.
—A esposa de Livesey afirmou que ao Stafford era indiferente, e a esposa do juiz Oswyn disse que estava segura de que sabia no fundo, mas que preferia não conhecer os detalhes. Desde que Juniper Stafford fosse discreta e não protagonizasse nenhum escândalo público, ele estava disposto a tolerá-lo. Com toda certeza não era um ciumento apaixonado. Foi muito categórica a respeito. - Estava a ponto de acrescentar que Stafford rondava os sessenta anos, mas se deu conta de que o próprio Drummond devia passar dos cinqüenta, e o comentário pecaria por falta de tato.
—Sim? - perguntou Drummond ao intuir que o inspetor calou algo.
—Nada. -Pitt deu de ombros - Só que aparentemente Stafford não era um homem impulsivo. Mantinha com sua esposa uma relação educada, afável, mas não íntima, e um tanto apagada pelo costume. Seja como for, não foi Stafford quem matou a sua esposa ou ao amante desta. Stafford foi a vítima. Eles não tinham necessidade de assassiná-lo, pois ele não punha em perigo sua aventura.
—Possivelmente queriam casar-se - propôs Drummond com certa brutalidade - Possivelmente não lhes bastava uma aventura. Talvez um momento roubado aqui e lá era muito pouco para as emoções e a necessidade que sentiam. Bastaria a você, Pitt, se amasse a uma mulher intensamente?
Este tentou imaginar-se em semelhante situação. Detestaria o engano, a constante certeza de que todo o tempo que passassem juntos iria sempre unido a despedidas, à incerteza, à necessidade de mentir.
—Não – admitiu. - Sempre quereria mais.
—E não lhe estorvaria o marido? -continuou Drummond.
—Sim - reconheceu também.
—Nesse caso pode entender por que um homem tão apaixonado como Adolphus Pryce poderia cair no assassinato. - A aversão se fez patente no rosto de Drummond-. É algo monstruoso, e não me surpreende que procure outra resposta, mas não pode evitar a verdade nem seu dever por ela. Não é próprio de você.
Pitt abriu a boca para desmenti-lo, depois voltou a fechá-la sem pronunciar palavra.
Drummond se levantou e se dirigiu à janela. Olhou a rua, pesadas carruagens rangendo, um mascate gritando a outro que ficara parado no meio do caminho. Não deixava de chover.
—Compreendo que tudo isto lhe esteja cansando - prosseguiu de costas para Pitt - A mim mesmo cansa. Não estou certo de poder seguir muito mais. Possivelmente requeira uma mente mais perspicaz, um homem com maior conhecimento do crime, em um praticamente, do que eu tenho. Sempre disse que prefere trabalhar na rua a dar ordens a outros homens, mas em casos graves poderia fazer ambas as coisas... - Deixou no ar, indefinido.
Pitt ficou olhando-o enquanto as idéias se amontoavam em sua cabeça, duvida com respeito ao que Drummond queria dizer, se se tratava tão só de uma queixa infundada porque era um dia frio, sombrio e o caso o deprimia, ou se na verdade estava pensando em dedicar-se a qualquer outra atividade, talvez fora do alcance dos tentáculos do Círculo Interior e de suas opressivas e insaciáveis exigências secretas. Ou se em realidade tudo isso tinha que ver com Eleanor Byam. Depois do escândalo, se Drummond tivesse a intenção de casar-se com ela, não poderia continuar mantendo a posição social de que agora gozava e com toda probabilidade tampouco a profissional. As emoções de Pitt eram poderosas e contraditórias. Sentia por Drummond, embora lhe surpreendeu o muito que desejava o posto. O coração lhe pulsava mais às pressas. Uma nova energia fluía em seu interior.
—Isso é algo que não poderia dizer até que chegue o momento. - Pitt escolheu cuidadosamente as palavras. Não devia delatar-se - E hoje não é o caso. - Fez um esforço por manter o tom de sua voz. - Voltarei ao assassinato de Stafford. Obrigado por seus conselhos. - E antes que Drummond pudesse dizer algo mais, desculpou-se e partiu.
Apesar de haver-se mostrado de acordo com Drummond a respeito de Adolphus Pryce, Pitt decidiu entrevistar-se com os outros juízes que estudaram a apelação de Aaron Godman e o assassinato de Farrier"s Lane. A Livesey já o tinha visto, Oswyn não estava em Londres nesse momento, mas não foi difícil averiguar o endereço do juiz Edgar Boothroyd, mesmo que estivesse retirado da magistratura.
Para chegar à tranqüila, labiríntica e velha casa dos subúrbios do Guildford Pitt empregou toda a manhã: primeiro tomou um trem até a localidade e depois uma charrete aberta que o levou até ali sob um vento borrascoso. Uma governanta entrada em anos o conduziu a uma sala de estar com as paredes revestidas de madeira que, se houvesse permitido o tempo, teria se aberto a um terraço e a uma extensão de grama. Agora o vento arrastava folhas mortas pela descuidada erva, muitos ramos de crisântemos pendiam, peludas, nos arbustos, e os estorninhos brigavam no pedregoso atalho, disputando pedaços de pão que alguém tinha deixado para eles.
O juiz Boothroyd estava sentado em uma grande poltrona junto à janela, de costas à luz, e piscou indeciso, ao ver Pitt. Era um homem enxuto que se tornara pançudo, o colete enrugado sobre o estômago, os estreitos ombros jogados para diante.
—Disse Pitt, não é verdade? - Pigarreou quase antes de terminar de falar. – Estou disposto a lhe agradar, claro está, mas duvido que haja algo que eu possa fazer. Aposentado, já sabe. Não o disseram? Nada que ver com a magistratura. Já não sei nada dela. Só cuido do jardim, leio algo. Pouca coisa.
Pitt olhou-o com uma sensação de infelicidade. Havia alguma coisa de rançoso na estadia, como se de algum modo se encontrasse abandonada. Estava bastante ordenada, mas a ordem era estéril, imposto por uma mão falta de carinho. Na mesa, junto à janela, havia uma bandeja de prata com três licoreiras, todas elas quase vazias, e algumas manchas como causadas por uma mão torpe.
As cortinas, abertas, estavam torcidas, e faltava uma braçadeira. O lugar estava isento de doçura.
—Não se trata de um caso atual, senhor. - Pitt acrescentou o de "senhor" para demonstrar ao homem um respeito que desejava sentir por ele e não podia - Se remonta a faz uns cinco anos.
Boothroyd não o olhou.
—Esse é aproximadamente o tempo que estou retirado – respondeu - E minha memória já não é a de antes.
Pitt se sentou sem que o convidassem. De perto podia ver o rosto de Boothroyd com maior clareza. Tinha os olhos chorosos, os traços apagados, não pela idade, mas sim pela bebida. Era um homem profundamente infeliz e a escuridão de seu ser impregnava o aposento.
—O caso de Farrier"s Lane - disse Pitt-. Você foi um dos juízes do tribunal de apelação.
—Oh. - Boothroyd suspirou. - Sim... sim, mas agora não o recordo bem. Um caso desagradável, mas não... não há muito de que falar. Tivemos que cumprir com as formalidades, isso é tudo. – Soprou - Para falar a verdade não tenho nenhum comentário a respeito. - Não perguntou por que interessava a Pitt, uma curiosa omissão.
—Recorda qual foi a base da apelação?
—Não... não; agora mesmo não o recordo. Tomei parte em um montão de apelações, sabe você? Não posso recordá-las todas. - Boothroyd lhe olhou com olhos escrutinadores, o sobrecenho franzido. Estava atento pela primeira vez e levava a ansiedade escrita no rosto.
—Deve ter sido um de seus últimos casos. - Pitt tentou lhe facilitar a lembrança mas, apenas o disse, soube que não havia muito que fazer. Não era só que a mente do Boothroyd estivesse confusa, aturdida pelo tempo, a desdita e, Pitt suspeitava, a bebida, mas além disso o inspetor tinha a poderosa impressão de que não queria recordar. O que tinha ocorrido a aquele homem? Devia ter sido douto; seu porte, imponente; sua mente, incisiva. Devia ter sido capaz de sopesar as provas, as questões de direito e tomar decisões acertadas. Agora parecia ter perdido todo interesse na vida, o amor próprio, a dignidade, a capacidade de raciocinar com imparcialidade. Entretanto, Pitt duvidava que passasse os sessenta e cinco anos.
—É possível - afirmou Boothroyd meneando a cabeça - É possível que fosse um dos últimos. Mesmo assim não o recordo. Uma questão médica, acredito, mas não posso lhe dizer mais. Ou talvez tivesse que ver com um casaco... ou um bracelete ou algo. Não sei. Não me lembro.
—Visitou-lhe o juiz Stafford recentemente?
—Stafford? - O rosto de Boothroyd se desencaixou, os olhos fixos em Pitt, algo próximo ao medo no olhar aquoso, perdido. Engoliu em seco - Por que o pergunta?
—Temo que morreu - respondeu o inspetor, inesperadamente brutal. As palavras lhe escaparam antes de sopesá-las. - Lamento.
—Morto? - Boothroyd respirou fundo. Algo em seu rosto se suavizou, abandonou-o uma sombra, como se tivesse desaparecido sem piedade algum medo. - Um acidente de tráfego, suponho. A cidade cada vez está pior. Precisamente no mês passado vi um pobre diabo atropelado por uma carruagem que se desenfreou. Os cães começaram a brigar, o cavalo empinou. Uma confusão terrível. Por sorte só morreu uma pessoa.
—Não, temo que não. Foi assassinado. - Pitt observou o rosto de Boothroyd. Viu-o engolir em seco de modo convulsivo, ficar boquiaberto. Respirava com dificuldade. O inspetor sentiu uma lástima que ia inextricavelmente unida à repugnância. Ao menos devia tentar indagar na aturdida mente do Boothroyd, por pouca fé que tivesse nisso - Veio vê-lo recentemente? Receio que tenho que sabê-lo.
—Eu... é... - Boothroyd olhou Pitt com ar indefeso, procurando uma escapatória, dando-se conta ao final de que não a havia - é... sim, sim, sim veio. Colegas, já sabe. Muito amável de sua parte.
—Comentou algo do caso de Farrier"s Lane? - O inspetor observou de novo Boothroyd, em cujos olhos percebeu a evasão e o sofrimento.
—Acredito que o mencionou. Natural. Foi a última apelação que presidimos juntos. Velhas lembranças, sabe? Não, suponho que não sabe. Muito jovem. – Olhou a um lado - Gostaria de tomar um uísque?
—Não, obrigado.
—Importa-lhe se eu o faço? -ficou em pé e se dirigiu pesadamente para as três licoreiras da mesa.
Não era um homem corpulento, nada que ver com a contundência do Livesey; entretanto, seus movimentos eram torpes, como se lhe fossem complicados. Serviu-se de uma licoreira, enchendo o copo quase até o bordo e bebeu a metade ainda de pé, junto à mesa, antes de retornar à poltrona. Pitt podia cheirar o aroma do álcool em sua pesada respiração.
—Mencionou-o - repetiu Boothroyd - Não recordo o que disse. Não era muito importante, pelo que eu sei. Quem o matou? Um roubo? - Parecia esperançoso de novo, os olhos bem abertos, as sobrancelhas arqueadas.
—Não, senhor Boothroyd. Envenenaram-no. Temo que não sei quem. Estou tentando averiguá-lo. Comentou que tinha a intenção de voltar a abrir a investigação do caso de Farrier"s Lane? De achar provas de que Aaron Godman não era culpado?
—Céu santo, não! - exclamou Boothroyd. - Isso é um disparate! Quem lhe disse isso? Disse alguém isso? É um disparate!
Possivelmente teria sido mais produtivo dizer que sim, mas a sensação de sobressalto e de lástima que embargou Pitt o impediu.
—Não senhor, não a mim - respondeu o inspetor com calma - Só pensei que era possível.
—Não - disse Boothroyd de novo. -. Não... foi uma visita rápida, questão de gentileza. Passava por aqui. Lamento não poder ajudá-lo, senhor Pitt. - bebeu o que restava do uísque em dois goles. - Lamento - repetiu.
Pitt ficou em pé, agradeceu e fugiu da úmida e insalubre estadia, de seu ar viciado, sua confusão, sua infelicidade.
O juiz Morley Sadler era um homem tão diferente como coubesse imaginar; de rosto liso, com desordenados retalhos de cabelo loiro e umas costeletas loiras salpicadas de cinza que lhe ladeavam as faces. Vestia à última moda e seu traje mostrava uma excelente confecção, sem uma ruga na queda; parecia estar por completo ao comando de sua vida e de qualquer situação que pudesse surgir. Sorriu com afabilidade quando Pitt foi anunciado e se levantou da escrivaninha para saudá-lo, lhe dar a mão e lhe oferecer uma ampla poltrona de couro.
—Bom dia, senhor Pitt... inspetor Pitt, não é assim? Muito bom dia. No que posso ajudá-lo? - Retornou à escrivaninha e se sentou em sua poltrona de alto espaldar, deste modo enorme. - Não quero ser descortês, inspetor, mas tenho outra entrevista dentro de uns vinte minutos que minha honra me obriga a manter. Obrigações, me entende. A gente tem que fazer todo o possível em todos os assuntos. Vejamos, qual é o tema sobre o que deseja saber minha opinião?
Pitt tinha sido advertido de que tinha pouco tempo, de modo que foi diretamente ao ponto.
—A apelação de Aaron Godman faz uns cinco anos, senhor Sadler. Recorda o caso?
O suave rosto de Sadler ficou tenso. Um diminuto músculo bateu as asas na extremidade do olho. Ficou olhando Pitt fixamente, o sorriso congelado.
—Naturalmente que o recordo, inspetor. Um caso muito desagradável... mas se resolveu em sua época. Não há nada mais que acrescentar. - Olhou a esfera dourada do relógio da lareira, depois Pitt-. O que lhe preocupa depois de tanto tempo? Não será essa pobre desgraçada, a senhorita Macaulay? Temo que a dor a transtornou. Está obcecada. -Apertou os lábios - Ocorre às vezes, sobretudo às mulheres. Seus cérebros não foram criados para suportar essas tensões. Uma criatura um tanto desequilibrada, para começar, histérica por natureza, uma atriz, o que se pode esperar? É muito triste, mas também um aborrecimento para outros.
—Ah sim? - disse Pitt sem comprometer-se. Observou Sadler com crescente interesse. Era evidente que ao homem ia muito bem: o mobiliário de sua escrivaninha era opulento, do teto até o tapete Aubusson do chão. As superfícies brilhantes, a tapeçaria nova.
O próprio Sadler parecia gozar de boa saúde e estar bastante satisfeito com a posição que tinha alcançado na vida. Entretanto, a menção do caso lhe incomodava. Era simplesmente devido aos constantes esforços de Tamar Macaulay por fazer que voltassem a investigá-lo, com a implicação óbvia de que o veredicto foi, se não incorreto, ao menos questionável? Isso bastaria para pôr a prova a paciência de qualquer um. Pitt se sentiria desconcertado se alguém arrojasse essas dúvidas sobre um caso que ele tivesse investigado até chegar a uma conclusão tão irreparável.
—Não - disse em voz alta ao ver que Sadler se impacientava - Não, não tem que ver com a senhorita Macaulay. Guarda relação com a morte do juiz Samuel Stafford.
—Stafford? - Sadler piscou -. Não o entendo.
—O senhor Stafford estava investigando de novo o caso e viu as principais testemunhas no dia em que morreu.
—Coincidência - asseverou Sadler levantando ambas as mãos da escrivaninha e as agitando-as para desprezar o assunto - Lhe asseguro que Samuel Stafford era um homem muito judicioso para que o desconcertasse uma mulher persistente. Sabia bem, assim como sabemos todos nós, que não havia nada que investigar. A polícia fez todo o possível na ocasião. Um caso extremamente desagradável, mas levado de forma admirável por parte de todos os implicados: a polícia, o tribunal do julgamento original e o da apelação. Pergunte a qualquer que esteja a par dos acontecimentos, senhor Pitt. Todos lhe dirão o mesmo. - Esboçou um amplo sorriso e voltou a olhar o relógio. - E agora, se isso for tudo, tenho uma entrevista com o lorde chanceler esta tarde e devo prepará-la. Tenho a oportunidade de lhe fazer um pequeno favor e estou certo de que você não quererá que me descuide.
Pitt permaneceu sentado.
—É claro que não - afirmou, embora não fez gesto algum de partir - Veio o juiz Stafford vê-lo algumas semanas antes que morresse?
—Naturalmente que o vi. Isso ocorre no curso normal de nosso trabalho, inspetor. Vejo muita gente: advogados, procuradores, outros juízes, diplomatas, membros da Câmara dos Lordes e da Câmara dos Comuns, membros da família real e da maior parte das grandes famílias da nação, mais cedo ou mais tarde. - Sorriu com franqueza, olhando Pitt nos olhos.
—Mencionou-lhe o caso o senhor Stafford? - perguntou Pitt, tenaz.
—Refere-se ao caso de Farrier"s Lane? - Sadler arqueou suas pálidas sobrancelhas - Não que eu recorde. Não haveria motivo algum para fazê-lo. O assunto está fechado cinco anos ou mais. por que quer sabê-lo, inspetor, se me permitir que o pergunte?
—Eu gostaria de saber no que se apoiava para pretender reabrir o caso - se arriscou Pitt.
Sadler ficou pálido, seu rictus se endureceu.
—Isso não é verdade, inspetor. Não pretendia fazê-lo. Do contrário, tenho certeza de que me haveria dito isso, tendo em conta meu papel na apelação. Informaram-lhe mal... maliciosamente, devo lhe dizer. - Olhou-o de cima a baixo. - Asseguro que não fez menção alguma do caso, nada absolutamente. E agora, se me desculpar, estou esperando minha próxima entrevista, um homem de considerável distinção que deseja me referir um assunto em extremo delicado. - Dirigiu-lhe um amplo sorriso, um gesto forçado. Levantou-se e lhe estendeu a mão - bom dia, inspetor. Lamento não poder lhe ser de ajuda.
E Pitt se viu conduzido à sala de espera sem pigarrear, incapaz de pensar em algo mais que dizer.
Pitt passou vários dias tratando de seguir a pista à aventura amorosa de Juniper Stafford e Adolphus Pryce sem contar a Charlotte mais que alguns breves detalhes.
Esta pensava freqüentemente no caso, mas sempre acabava voltando para o assassinato original de Farrier"s Lane e a questão de se era concebível que Aaron Godman fosse inocente. E se o fosse, quem poderia ser o culpado? Joshua Fielding?
Qual tinha sido sua relação com Tamar Macaulay? Era ele o pai de sua filha? Ou era Kingsley Blaine? Se Joshua ainda seguisse apaixonado por ela, isso teria sido um motivo. Acaso compreendeu o que ela sentia pelo Blaine, deu-se conta de que se estava afastando dele e, em um arrebatamento de ciúmes, matou Blaine?
O que tinha ocorrido realmente no camarim do teatro aquela noite? Kingsley Blaine tinha dado à Tamar um valioso colar, uma jóia familiar que deveria ter pertencido a sua esposa. Ninguém havia tornado a vê-lo depois. Devolveu-o a atriz ao Blaine? Nesse caso, quem o tinha roubado dele?
Era isso o que o juiz Stafford tinha investigado e pelo que o tinham matado? Não era mais que uma possibilidade. Pitt ainda parecia estar indagando as vistas de Juniper e Adolphus Pryce. Entretanto, devido ao Caroline, o medo oprimia a mente de Charlotte como uma gelada carga.
Embora Joshua Fielding fosse inocente, o problema dificilmente ficava resolvido. Caroline, que sempre tinha sido tão sensata, tão obediente com respeito a todo aquilo que a sociedade esperava, tão decorosa, comportava-se como uma menina atordoada. Ao Charlotte ofendia amargamente que a avó dissesse que sua mãe era uma imprudente, mas seus comentários lhe provocavam autêntico pavor. Até onde ia chegar Caroline? Tratava-se simplesmente de um pequeno namorico, uma preocupação pelo bem-estar de alguém a quem apreciava? Ou podia ser bastante cabeça-de-vento para sentir algo mais?
E se o era, como ia fazer frente à situação? Daria-se conta de sua terminante impropriedade, de que seria ruinoso ter algo mais que um efêmero e discreto namorico, com toda certeza não uma aventura? Não, Caroline não! Tinha cinqüenta e três anos, e netos! Era sua mãe! Só a idéia desgostava Charlotte e a fazia sentir-se estranhamente sozinha.
Em caso de que parecesse ir-se o das mãos, deveria mandar procurar Emily? Emily saberia o que dizer, saberia como apelar ao sentido da medida de Caroline, da sobrevivência inclusive.
Não obstante, antes de dar um passo tão radical talvez Charlotte devesse assegurar-se de qual era a situação. Talvez estivesse assustando-se sem motivo. Com certeza não podia ser algo tão absurdo. Iria ver Caroline de novo e lhe expor a situação com franqueza. Ela compreenderia sua preocupação.
Tudo isto pensou na cama, acordada na escuridão, e ao chegar a manhã se despediu de Pitt sem sequer lhe perguntar aonde ia ou a que hora pensava chegar a casa. Não é que fossem questões que ele pudesse responder, mas era seu costume expor-lhe tão só para demonstrar seu interesse.
Depois informou a Gracie de que ia sair por algo relacionado com o assassinato de Farrier"s Lane, com a promessa implícita de que, a sua volta, contaria-lhe tudo que averiguasse.
A criada sorriu alegremente e ficou a esfregar o chão da cozinha com um vigor e um entusiasmo bastante desproporcionados com respeito a seu interesse pela tarefa.
Charlotte tomou o ônibus com direção a Cater Street e chegou pouco depois das dez, uma hora nada adequada para ir de visita. Encontrou Caroline ocupada classificando a roupa branca para a criada. A avó ainda não tinha saído de seu dormitório, onde costumavam lhe servir o café da manhã em uma bandeja.
—Bom dia - saudou Caroline surpreendida. A preocupação lhe fez franzir um tanto o sobrecenho.
Levava um simples vestido marrom, sem mais adorno que uma gola de renda de algodão, e o cabelo recolhido com naturalidade, sem os cachos ou as tranças de moda. Parecia mais jovem que de costume, e mais formosa. Fazia anos que Charlotte não a via tão informal e ficou boquiaberta ao encontrá-la tão esplêndida, com traços e pele tão belos. Sem os aditamentos da moda, objetos custosos e penteados elaborados, era mais original, mais delicada, distinta de qualquer outra mulher de sociedade de meia idade. Esteve a ponto de dizer-lhe, mas temeu pecar de falta de tato.
—Bom dia, mamãe - disse alegre. - Tem muito bom aspecto.
—Certo. - Caroline enrugou a fronte - O que a traz por aqui tão cedo? Inteirou-se Thomas de algo?
—Não acredito. E se for assim, não me disse. - Charlotte pegou maquinalmente o outro extremo do lençol que Caroline estava examinando e o olhou de perto, viu que não necessitava cerzido algum e a ajudou a dobrá-lo de novo - vim porque considero que é hora de que nós averigüemos algo mais, não acha?
—Certamente - concordou Caroline com tal rapidez que sua filha se perguntou se era algo no que ela já tinha estado pensando ou se só o considerava outra oportunidade de fazer algo e, com toda probabilidade, de voltar a ver o Joshua Fielding.
—O que sabemos dos implicados? - perguntou agarrando um almofadão e tentando ser discreta.
—Refere a seus atos na noite do assassinato? - inquiriu por sua vez Caroline sem olhar Charlotte, a não ser ao montão de roupa ainda por examinar.
—Bom, isso estaria bem para começar - afirmou Charlotte sem entusiasmo algum. A coisa ia ser difícil - Mas precisamos saber muito mais sobre sua personalidade do que eu, ao menos, sei. Sabe você algo mais?
—Sim, suponho que sim. - Caroline estudou o bordado dos extremos dos almofadões em busca de lugares nos que estivesse frouxo, desprendendo da malha.
Charlotte se odiou a si mesma por ser tão matreira.
—O que sabe sobre Tamar Macaulay? Sabe quem é o pai de sua filha?
Caroline tomou ar para protestar, logo o soltou lentamente à medida que caía na conta da necessidade de ser realista.
—Kingsley Blaine, acredito. Tamar sentia um grande afeto por ele, já sabe. Não se tratava de um amor passageiro, nem dos presentes que ele pudesse lhe fazer.
—Dava muitos presentes?
—Não... não, não acredito.
—Não é possível que alguém mais estivesse apaixonado por ela e se sentisse bastante ciumento de Kingsley Blaine para matá-lo?
Caroline ergueu a vista, o rosto rosado, na defensiva.
—Refere ao Joshua, não é?
—Refiro a qualquer candidato - respondeu Charlotte com tanta equanimidade como foi possível - Isso inclui o Joshua?
—Esteve apaixonado por ela uma vez - confessou Caroline engolindo em seco e olhando de novo a roupa. Sacudiu um almofadão com um golpe seco e lhe escorregou das mãos - Maldito seja! - exclamou com irritação.
—Mamãe, não acha que deveríamos averiguar algo mais? Além de tudo não seria de estranhar, não? Se duas pessoas forem atraentes e se vêem muito, o mais provável é que acabem sentindo algo a uma pela outra, ao menos durante um tempo. Depois talvez passe e encontram à pessoa adequada, não a alguém meramente familiar. Isso não significa que Joshua continue sentindo algo por ela salvo um afeto de amigo.
—Você acha? - Caroline se agachou e recolheu o almofadão, o olhar ainda baixo - Sim... sim, suponho que sim. Naturalmente que tem razão. Precisamos saber mais. Vou perder o juízo se ficar aqui pensando. Mas como podemos fazê-lo sem ser intrometidas? - Franziu o sobrecenho enquanto olhava a sua filha com impaciência.
A avó apareceu na porta e golpeou o batente com a bengala. Elas se assustaram e retrocederam imediatamente. Nenhuma das duas tinha ouvido seus passos.
—É uma intrometida - replicou a Caroline - o que é socialmente imperdoável, como já deveria saber. Bem sabe Deus que lhe disse bastante freqüentemente. Entretanto, é muitíssimo pior ainda que esteja dando a absurda impressão de que está apaixonada por esse... esse... ator. -Soltou um grunhido -. Não só é ridículo, é repugnante! Dobra-lhe a idade... e além disso é judeu! Parece que perdeu o juízo. Bom dia, Charlotte. O que faz aqui? Não terá vindo dobrar a roupa?
Caroline engoliu em seco. Seu peito subia e descia em um esforço por controlar-se.
Sua filha abriu a boca para replicar, mas em seguida julgou que seria mais sensato deixar que Caroline se defendesse sozinha, do contrário, a avó pensaria que era incapaz e depois, quando Charlotte partisse, Caroline seria mais vulnerável ainda.
—Você é a única pessoa que pensa isso. - Caroline ficou olhando à avó, as faces de um vermelho subido - E isso é porque tem uma mente cruel e totalmente equivocada.
—Ah sim? - respondeu a avó com delicioso sarcasmo - Vai por aí com roupa nova, extravagante, ao Pimlico nada menos. Ninguém vai ao Pimlico! Para que foram? - apoiou-se pesadamente na negra bengala, o rosto tenso. - E tudo porque de repente não tem nada melhor que fazer. Asseguro-lhe que eu poderia achar algo. O jantar de ontem foi totalmente improvisado. Não sei no que estava pensando Cook. Pudim nesta época do ano? E alcachofras! Ridículo! O que perdeu no Pimlico, se pode saber-se?
—As alcachofras tardias não têm nada de mau - replicou Caroline – Estão deliciosas.
—Alcachofras? -A avó golpeou o chão com a bengala - O que têm que ver nisto as alcachofras? Como já disse, está perseguindo um homem bastante jovem para casar-se com sua filha... e judeu, além disso. Você bebe Caroline?
—Não, mamãe - respondeu Caroline, o rosto imóvel e cada vez mais pálido - Parece ter esquecido que eu me achava no teatro na noite em que o juiz Stafford morreu e, como é natural, estou interessada em comprovar que se faz justiça e que não se causa uma dor desnecessária a pessoas inocentes.
—Fofocas! -exclamou a anciã com ferocidade - Esse miserável farsante te tem o miolo sorvido. E a diversão. Pelo amor de Deus, o que vai ser o seguinte?
Charlotte começou a dobrar a roupa em silêncio e a colocá-la na prateleira.
—Parece ter esquecido seu próprio interesse pelo assassinato do Highgate - atacou Caroline à anciã - Abusou da amizade de Celeste e Angeline...
—Não é verdade! - exclamou a avó com indignação, a voz trêmula pela ofensa - Só fui lhes dar os pêsames. Conhecia-as de toda a vida.
—Foi movida pela curiosidade - replicou Caroline, cruel, divertida – Estava há trinta anos sem vê-las nem pensar nelas.
Nenhuma das duas mulheres prestava atenção a Charlotte, era como se não existisse.
—Mas não eram atrizes que fizessem tolices em um palco. - A avó tomou a briga a sério - Eram as filhas solteiras de um bispo. Dificilmente se pode ser mais respeitável. E eu nunca persegui a um homem em minha vida. E menos ainda a um que lhe dobrasse a idade!
Caroline perdeu a calma.
—Para sua desgraça - replicou depois de deixar o montão de almofadões na prateleira de qualquer modo. - Se tivesse conhecido a alguém tão interessante, encantador e cheio de engenho e imaginação como Joshua, possivelmente não seria a velha amargurada que é agora, sem outra satisfação que fazer infelizes a outros. E irei ao Pimlico tantas vezes quanto me agradar. - Arrumou as saias bruscamente e se ergueu - Para falar a verdade, Charlotte e eu nos dirigimos ali agora mesmo... não para ver o senhor Fielding, mas para averiguar algo mais sobre quem matou Kingsley Blaine e por que. - E dito isto passou como uma ventania diante da avó, enquanto esta e Charlotte a olhavam boquiabertas.
A anciã se voltou e olhou a sua neta com ferocidade.
—Você é a culpada de tudo isto. Se não se tivesse casado com um policial e tivesse acostumado a se intrometer em assuntos repugnantes dos que nenhuma mulher decente deveria ouvir falar jamais, nem digamos preocupar-se com eles, sua mãe não teria perdido o juízo agora nem se comportaria desse modo.
—Desta vez não podemos levá-la, vó, diga o que disser. - Charlotte lhe dirigiu um sorriso hermético, olhando-a diretamente aos negros olhos-. O assunto é muito delicado. Sinto muito.
—Não sei do que está falando - replicou a anciã - por que demônios ia eu querer ir ao Pimlico?
—Pela mesma razão pela que foi ver Celeste e Angeline, é claro – respondeu Charlotte. - Para satisfazer sua curiosidade.
Por um instante a anciã se sentiu tão zangada que ficou sem fala.
Charlotte sorriu com doçura, deu meia volta, cruzou o patamar e desceu pelas escadas atrás de sua mãe.
—Charlotte! - A voz da anciã a perseguiu, aguda e lastimosa. - Charlotte! Como se atreve a me falar assim? Volta aqui! Ouve-me? Charlotte!
Charlotte desceu correndo os últimos degraus e alcançou Caroline.
—Vamos a Pimlico? - perguntou tranqüilamente.
—É claro - respondeu Caroline procurando sua capa. - Não há outro lugar por onde começar.
—Tem certeza de que é sensato? Não tem sentido ir só para lhes fazer as mesmas perguntas de novo.
—Claro que tenho certeza - afirmou Caroline com tom premente. - A esta hora podemos ver Clio Farber. A gente do teatro se levanta tarde, em comparação com a maioria, toma um bom almoço ao que chama refeição e ensaia à tarde. - Charlotte ia dizer algo, mas Caroline a apurou. - Ela está a par da situação, pode ser que tenha dado com um modo de que conheçamos esse Devlin O'Neil. É a única pessoa que sabemos que é um claro suspeito. Essa é a palavra adequada, não?
—Sim... é. - Charlotte jogou mão da capa e a segurou enquanto Caroline a punha sobre os ombros. Depois ela mesma pôs seu casaco. - Como sabe que a senhorita Farber está a par da situação?
—Maddock! - chamou Caroline. - Maddock! Faça trazer a carruagem, por favor. Não, não, pensando bem não se preocupe. Tomarei um do ponto. - Olhou para cima, o patamar, de onde a séria figura da anciã as contemplava enquanto golpeava o tapete com a bengala.
—Caroline! – exclamou. - Caroline!
—Vou sair - anunciou esta pegando Charlotte pelo braço. - Vamos, Charlotte. Não podemos perder tempo ou não os pegaremos.
—Não irá perseguir a esse ator de novo? - perguntou a avó, que tinha descido até a metade das escadas. - A esse judeu!
Caroline se voltou, já na porta.
—Não, mamãe, vou ver a senhorita Farber. Por favor, não fique em evidência erguendo a voz diante dos criados. Comerei fora. - E sem mais demora tomou Charlotte novamente pelo braço e saiu, deixando que Maddock fechasse a porta atrás dela.
Caminharam a bom passo pela calçada durante dez minutos, cruzando-se com amizades às que Caroline saudava brevemente com uma leve inclinação da cabeça e umas palavras.
—Bom dia, senhora Ellison. - Uma volumosa dama vestida de verde e com uma capa de peles estava plantada justo em meio da calçada, de modo que era impossível continuar sem lhe dirigir a palavra. - Como está você? - perguntou.
Viram-se obrigadas a deter-se.
—Muito bem, obrigada, senhora Parkin - respondeu Caroline. - E você?
—Pensando-o bem, estupendamente, obrigada. - A senhora Parkin olhou Charlotte com expressão inquisitiva.
Caroline não teve mais remédio que fazer o mesmo.
—Me permita que apresente a minha filha, a senhora Pitt. A senhora Parkin.
—Como está você, senhora Parkin? - saudou Charlotte, obediente.
—Como está você, senhora Pitt? - A senhora Parkin sorriu enquanto olhava de cima a baixo o casaco um tanto simples e as botas da temporada passada de Charlotte. - Não nos vimos antes? - inquiriu.
Charlotte lhe devolveu o sorriso, radiante e igualmente insossa.
—Tenho certeza de que não, senhora Parkin. Do contrário me lembraria.
—Oh. - A senhora Parkin ficou sem fala momentaneamente. Não era essa a resposta que esperava. - Muito amável de sua parte. Vive por esta zona?
Charlotte sorriu mais radiante ainda.
—Agora não, mas, como é natural, antes sim. - Ao ver a expressão resoluta da senhora Parkin e dar-se conta de que o interrogatório continuaria, decidiu contra-atacar. - E você, leva muito tempo vivendo aqui, senhora Parkin?
A outra ficou surpresa. Pensava que era ela quem levava a conversa e só procurava respostas educadas e verídicas, que correspondiam a uma mulher mais jovem e socialmente inferior. Olhou com desagrado o rosto do Charlotte, que refletia um ávido interesse.
—Uns cinco anos, senhora Pitt.
—Ah - disse Charlotte com presteza, antes que a senhora Parkin pudesse continuar. - Muito agradável, não acha? Sei que mamãe opina assim. Espero que tenha um bom dia. Parece que o tempo vai melhorar, não acha? Necessita de uma carruagem?
—Como diz? - disse friamente a senhora Parkin.
—Em tal caso nos desculpará se tomarmos essa. - Charlotte fez um vago gesto. - Temos um encontro um pouco longe. Encantada de conhecê-la, senhora Parkin. - E dito isto, pegou o braço de Caroline com firmeza e puseram-se a andar a toda pressa, deixando à senhora Parkin, que as olhava estupefata, com a palavra na boca.
Caroline não sabia se ria ou sentia-se horrorizada. Debatia-se entre o instinto natural e toda uma vida de adestramento. Venceu o instinto e soltou um risinho feliz conforme caminhavam com indecorosa urgência para uma carruagem que aguardava junto ao meio-fio.
Apearam-se em Pimlico e fizeram-nas passar ao amplo salão dos Passmore. Joshua Fielding, Tamar Macaulay e várias pessoas mais estavam sentadas em grandes poltronas de vime, entretidos em animada conversa. Havia alguns guias em cima das mesas e outros amontoados no chão. Miranda Passmore se achava sentada em umas almofadas; desta vez a porta tinha sido aberta por um jovem de cabelo encaracolado que lhe aparecia enormemente.
Logo que Caroline e Charlotte entraram, Joshua se levantou e lhes deu as boas vindas. Charlotte observou, com uma extraordinária mescla de emoções, um repentino prazer em seu rosto e uma amabilidade única ao olhar Caroline. Se era possível que o ator sentisse por ela algo mais que amizade ou gratidão por preocupar-se ela tanto por seu bem-estar, Caroline não seria tão vulnerável, não estaria tão exposta a um rechaço em extremo humilhante. Charlotte experimentou uma sensação de calor que fez desaparecer parte de seu próprio medo.
Mesmo assim, se era isso o que Fielding sentia, isso só conduziria ao desastre. Sendo otimistas, a uma triste despedida, já que o seu era impossível; sendo pessimistas, a uma aventura, com o conseguinte sofrimento quando terminasse, quando ele se cansasse dela ou ela recuperasse o juízo. E existia o risco, sempre presente, do mais terrível dos escândalos. Na avó não havia rastro de amabilidade, de ternura, mas seus temores não eram infundados. A sociedade não perdoava. Estava cheia de mulheres como a senhora Parkin, com suas perguntas indiscretas, seus olhos intrometidos, maliciosos. A quem infringia as regras não estava permitido retornar nunca. Depois disso não haveria lugar para Caroline.
Joshua estava falando com Charlotte e esta não tinha escutado uma só palavra. O ator estava frente a ela, sorrindo, com uma sombra de ansiedade no olhar. Tinha um rosto extremamente vivaz e expressivo, cheio de possibilidades para o humor, a paixão, a dor e uma introspecção irônica, desumana. Seria muito difícil não sucumbir a seus encantos, por muito que a transtornasse imaginá-lo com Caroline.
—Sinto muito - se desculpou Charlotte. - Estava pensando na morte da bezerra.
—Duvido - disse ele com franqueza. - Acredito que lhe preocupa este lamentável assunto, o que é muito generoso de sua parte, e se está perguntando o que é quão seguinte podemos fazer que seja de utilidade, estou certo?
Charlotte aproveitou a oportunidade sem vacilar.
—Sim, está certo - mentiu olhando-o nos olhos e esforçando-se por lhe devolver o sorriso. - Acredito que é hora de que conheçamos senhor Devlin O'Neil, se é que a senhorita Farber pode nos ajudar.
Fielding se voltou e fez gestos para que se aproximasse de uma jovem de uns trinta anos que se vestia de maneira informal com uma espécie de blusão de artista. Tinha o cabelo loiro muito encrespado e, em lugar de incomodar-se em penteá-lo, tinha-o amontoado na cabeça e assegurado com um par de forquilhas e uma parte de brilhante tecido vermelho. Era bastante bonita e seu rosto, de amplas maçãs do rosto, via-se favorecido por uns olhos azuis e uma boca grande e suave. Um rosto que agradou Charlotte imediatamente. Uma vez efetuadas as apresentações de rigor e depois de saudar as demais pessoas da estadia, dirigiu-se a Clio.
—Falou-lhe o senhor Fielding de nosso assunto? - "Assunto" era uma palavra tão insossa, mas não lhe ocorreu nada melhor, ao menos não até que tivesse um maior conhecimento da situação.
—Oh, sim - respondeu Clio - E me alegro tanto de que vão fazer algo! Nenhum de nós acreditou nunca que fosse Aaron. Simplesmente não conseguimos que ninguém mais aceitasse essa idéia. A pobre Tamar leva lutando sozinha todos estes anos. É estupendo que agora possa contar com alguém realmente capaz.
Charlotte abriu a boca para dizer que em realidade ela não era tão capaz, mas trocou de idéia. Não serviria de nada, embora fosse certo. Desalentaria Tamar e faria que Clio Farber estivesse menos disposta a confiar nela.
—Bem, necessitamos de toda a ajuda que você possa conseguir - disse em seu lugar. - Já sabe, tudo depende de que sejamos capazes de observar às pessoas sem que se dê conta de que estamos interessadas no assunto.
—Oh, sim, já entendi - concordou Clio. - Tamar me explicou isso com bastante clareza. Arquitetarei para criar uma situação em que possa conhecer Kathleen O'Neil de tal forma que seja muito natural. Dou-me bem com essas coisas. - Seu rosto se escureceu, e se moveu um tanto para voltar as costas a outros da sala-. Não sei se Joshua o disse - prosseguiu - mas conheço... – Hesitou levemente, mas não havia nada malicioso nela, nenhuma insinuação. - Conheço o juiz Oswyn, que esteve na apelação. - Uma sombra lhe cruzou o rosto. - Com o pobre juiz Stafford.
—Conhecia o juiz Stafford? - perguntou Charlotte. - Quero dizer, pessoalmente?
Clio ficou pensativa, mas respondeu em seguida, como se já se expusesse a questão e a inquietasse.
—Certamente que o conhecia, mas ignoro em que medida sua relação era pessoal, não puramente profissional. Tenho a sensação de que poderia ser. Granville, quer dizer, o juiz Oswyn, parecia sentir certa hostilidade por ele. Mas acredito que era uma espécie de vergonha. Ou possivelmente não seja isso, talvez fosse uma espécie de ira mesclada com desconforto. Quando lhe perguntei por que, mostrou-se evasivo, algo muito pouco habitual nele.
Charlotte estava perplexa. Tinha suposto que a relação de Clio com o juiz Oswyn era superficial, social, mas pela franqueza com a que claramente lhe falava de temas muito indiscretos, possivelmente fosse muito mais. Era sua amante? Perguntar seria de uma estupidez imperdoável. Como podia formular suas perguntas de modo que obtivesse a informação e fosse razoavelmente diplomática ao mesmo tempo?
—Acredita que teria falado do assunto de forma diferente se não o preocupasse? - perguntou.
—Estou certa - respondeu Clio com um sorriso. - É um homem muito franco e amável. Gosta de ser aberto, falar livremente, rir das coisas, não com crueldade; gosta de - acrescentou dando de ombros, um gesto elegante e expressivo - estar com os amigos. Já sabe, a amizade é menos freqüente do que alguém poderia pensar, em particular para um homem de sua posição.
—E ele não mantinha essa amizade com o juiz Stafford?
—Não... não acredito. Deu-me a impressão de que havia algum assunto entre eles no qual o juiz Stafford não deixava de insistir e que Granville não desejava discutir mais.
—Aaron Godman?
Clio franziu o sobrecenho.
—Não tenho certeza. Sei que a Granville não agradava e detestava falar disso. O julgamento foi perfeitamente correto, é claro, mas tinha a sensação de que não se levara de todo bem. Era motivo de confusão para ele.
—Por parte do juiz Quade? - perguntou Charlotte surpreendida.
Clio negou com a cabeça.
—Oh, não, absolutamente. Por parte da polícia, acredito. Em realidade não estou certa. Não queria falar disso comigo, o que é bastante natural, já que eu conhecia Aaron e lhe tinha um grande apreço. Era um homem encantador.
—Ah sim? Ninguém fala muito dele como pessoa, só do caso. Me conte algo dele - pediu Charlotte.
Clio desceu a voz ainda mais, de forma que Tamar, que se achava só a uns metros, não a ouvisse.
—Tinha dois anos menos que Tamar, vinte e oito quando morreu, faz cinco anos. - Seu rosto mostrava uma curiosa mescla de doçura e dor. - Era magro como ela, mas não tão moreno, e naturalmente muito mais alto. Para falar a verdade, parecia-se um tanto com Joshua. Às vezes se valiam disso no palco. Tinha um maravilhoso senso de humor. adorava representar aos mais terríveis vilãos e arrancar gritos do público. - Sorriu ao dizê-lo. De repente os olhos lhe alagaram de lágrimas, respirou fundo e voltou a cabeça por um instante.
—Sinto muito - disse Charlotte com voz baixa. - Rogo, não continue se lhe é doloroso. Foi desconsiderado por minha parte perguntar. É de Devlin O'Neil de quem temos que averiguar coisas.
Clio soprou.
—Isso não esteve bem por minha parte - afirmou com dureza. - Pensei que tinha melhor controle de mim mesma. Rogo-lhe me desculpe. Sim, é claro. Disporei tudo para que conheça a Kathleen O'Neil. - Procurou um lenço. - Já sei como fazê-lo. Gosta muito de música romântica, e depois de amanhã há um recital em casa de lady Blenkinsop, no Eaton Square. Conheço bem ao pianista e ele nos convidará. Você pode vir?
Charlotte se propôs perguntar a Clio se estava certa de que isso era socialmente aceitável, depois decidiu que em realidade não lhe importava.
—Sem dúvida - assegurou com firmeza. - Desfrutarei muito. Diga-me quem se supõe que sou. Não posso ser eu mesma, pois não me dirão nada. De fato provavelmente me peçam que vá.
—Claro - reconheceu Clio com tom jovial. - Será melhor que seja uma prima de Bath que está de visita.
—Nunca estive em Bath - argüiu Charlotte. - Pareceria ridícula se entabulasse conversa com alguém que o conhecesse bem. Melhor que seja de Brighton; ao menos estive lá.
—Claro! - Clio sorriu e guardou o lenço. - Então ficamos assim? Se vier aqui primeiro, podemos ir juntas. Direi que está de visita porque lhe interessa o mundo do teatro. Sabe cantar?
—Não. Absolutamente.
—Bem, não cabe dúvida de que sabe atuar. Ao menos isso diz sua mãe. Relatou a Joshua algumas de suas aventuras há dois ou três dias; e ele nos contou isso. Divertimo-nos muito... Oh, e ficamos muito impressionadas, claro está.
—Oh, céus. - Charlotte estava desconcertada. Sabia que Caroline não aprovava sua participação nos casos de Pitt. Quanto tinha mudado, ao menos a primeira vista, se agora obsequiava a seus novos amigos com seus relatos. Quanto estava negando seu anterior eu para agradar. Era uma idéia muito incômoda, e a rechaçou. Agora não havia tempo para isso.
—Acredito que é muito emocionante - continuou Clio entusiasmada. – Mais dramático que as coisas que nós fazemos porque é real. Lembre-se de não vestir muito na moda. Supõe-se que é uma prima de província.
—Oh, sem dúvida - disse Charlotte com seriedade. Quanto supunha Clio que ganhavam os policiais para que suas esposas pudessem usar a moda atual?
Para tal ocasião, sem Emily a quem poder pedir algo emprestado e não se atrevendo a dirigir-se a Vespasia para nada que não fosse uma recepção ou um baile, Charlotte perguntou a Caroline se podia provar algo seu da temporada passada, ou inclusive da anterior. Seu pedido foi atendido com a maior prontidão e com considerável decepção pelo fato de que não fosse recomendável que acudisse também ela. O certo era que se arriscavam a chamar a atenção se apareciam as três em semelhante ato, e a Kathleen não resultaria o encontro fortuito que pretendia ser.
Entretanto, não recusou a oferta de que a carruagem de Caroline a recolhesse em sua casa, em Bloomsbury.
Deixou a Pitt uma nota na mesa da cozinha.
Querido Thomas:
Fui convidada a um recital com uma amiga de mamãe e vou aceitar porque estou um pouco preocupada com ela. Está tomando muito carinho a gente que desconheço e esta ocasião me proporcionará uma excelente oportunidade para conhecê-la melhor. Não demorarei muito, só é uma hora de música, duas ao máximo.
O jantar está no forno; guisado de cordeiro com batatas e muita cebola.
Quero-o muito, CHARLOTTE
Primeiro foi a Pimlico recolher Clio Farber. Chegaram a Eaton Square, apearam-se entre risadas nervosas e subiram pelos largos degraus que conduziam a uma imponente porta ladeada por lacaios em libré que lhes perguntaram seus nomes.
Clio se fez responsável pela situação informando de que era amiga do solista que ia atuar para desfrute de seus convidados e que ia acompanhada de sua prima. O lacaio hesitou um instante, olhou a seu colega, depois inclinou gentilmente a cabeça e deixou-as passar.
O saguão era impressionante, pavimentado com ladrilhos de mármore branco e negro, como um tabuleiro de xadrez. Havia uma grande estatua de estilo grego de um jovem em um nicho próximo ao pé da escada, a qual subia descrevendo um arco até o patamar e a balaustrada que ladeava uma galeria ao longo de quase a metade de sua extensão.
Já estava cheio de gente vestida com a maior elegância, as mulheres com vestidos de brilhantes bordados, montões de ombros nus que resplandeciam a luz dos lustres.
Não me havia dito que ia ser tão formal - sussurrou Charlotte a Clio. Sentia-se não só uma prima de província, mas uma prima muito pobre, sem lugar a dúvidas. . Quando o pôs em casa, pensou que o vestido de Caroline era bastante apropriado, mas agora não só era de há duas temporadas, mas parecia muito pouco imaginativo, vulgar. O tom brandy escuro era muito conservador. Com ele devia aparentar cinqüenta anos.
—Se tiver que ser sincera, ignorava que seria - murmurou Clio. - Reggie disse que só viria uma vintena de amigos. Devem haver-se somado muito mais depois. Bem cuidadoso, assim será mais simples tropeçar com a Kathleen sem que seja muito claro. Vamos. É uma aventura.
Charlotte tinha mais experiência com aventuras e sabia que podiam tornar-se desagradáveis muito facilmente se tomava à ligeira. Mesmo assim, seguiu Clio pelo vasto salão no qual uns sessenta assentos se achavam dispostos artisticamente em grupos, de forma que as pessoas pudessem manter conversas inteligentes e edificantes entre as peças musicais.
Durante uns minutos Charlotte e Clio rodearam a multidão de pessoas tratando de aparentar que procuravam a alguém. Clio apresentou ao Charlotte a seu amigo Reggie, o qual se achava em graciosa pose na zona do piano, disposto a tocar quando lhe dessem o sinal e a anfitriã o apresentasse.
Conversaram animadamente, possivelmente pelo nervosismo. Contaram um par de anedotas divertidas. Charlotte se pôs a rir e Clio se levou ambas as mãos à boca para reprimir um risinho. Várias pessoas lhes dirigiram olhares de severa desaprovação. Uma aristocrática jovem as observava com atenção por cima do leque, que agitava ruidosamente.
—Quem são essas pessoas? - perguntou a sua vizinha com voz penetrante. - Não acredito conhecer a do vestido rosa, e você?
—Certamente que não - respondeu a outra com desdém. - O que a faz supor que poderia conhecê-la? Sério, Mildred, não conheço ninguém que vista assim.
—Oh, refere-se ao marrom? Sim, extraordinário, não é certo? Juraria que Jane Digby-Jones tinha algo assim há dois anos.
Charlotte estava desejando desforrar-se. Olhou Clio e viu como lhe subia a cor às faces.
—Quem é a dama que fala tão alto? -perguntou ao pianista com um sorriso erguendo a voz para que cobrisse ao menos a distância que os afastava delas. - A do colar de cristal. -Sabia perfeitamente que eram diamantes, e escutou com satisfação o grito sufocado de indignação.
—Uma tal senhorita Cartwright, acredito - respondeu o pianista tentando manter a compostura-. Ou acaso é Wheelright?
—Waggoner - corrigiu Clio com um sorriso.
—Algo assim - acrescentou Reggie. - Algo que ver com algum tipo de transporte. Por quê?
—Por quê? - Charlotte estava confusa.
—Por que o pergunta? Você gostaria de saber quem é sua costureira?
—Não! - exclamou Charlotte. - Quero dizer, não, obrigada – retificou. – Para falar a verdade, temos que...
—Naturalmente. Tudo está controlado - afirmou Clio. - Sinto muito. – Pegou o braço de Charlotte e ambas passaram ante a senhorita Waggoner com um deslumbrante sorriso.
Continuaram abrindo caminho entre a multidão até que Clio se deteve junto a uma jovem mulher de cabelos loiros recolhidos com muito estilo, rosto muito pessoal, maçãs do rosto proeminentes e olhos castanhos.
—Boa tarde, Kathleen - saudou Clio fingindo grande surpresa. - Me alegro muito de vê-la de novo. Tem muito bom aspecto. Permite-me que lhe apresente a minha querida amiga Charlotte? Para falar a verdade é uma espécie de prima, veio passar uma temporada conosco. Estava certa de que esta seria uma noite excelente para ela, duplamente agora que teve a oportunidade de conhecê-la. Faz tanto tempo... Como está?
Kathleen O'Neil não tinha mais alternativa que aceitar uma apresentação tão ingenuamente solicitada, mas não se mostrou contra.
—Como está você? - Não pôde acrescentar o sobrenome de Charlotte porque Clio não o tinha proporcionado; claramente uma omissão deliberada para evitar a mentira. - Encantada de conhecê-la. Espero que desfrute de sua estadia. Vem você de longe?
—Oh, não muito - respondeu Charlotte, engolindo sua culpa e afastando a de si. - Tenho certeza de que isto será muito interessante e divertido. Muito amável de sua parte. Suponho que estará acostumada a noitadas como esta, mas para mim é algo muito especial.
—Ah sim? - Kathleen a salvou de ter que dar com algo mais que dizer a chegada de um homem que, imediatamente, Charlotte soube que era Devlin O'Neil.
Era muito moreno, seus traços delatavam humor e uma imaginação caprichosa que Charlotte só tinha visto nos irlandeses. Não era o que se diz bonito, havia algo incerto em seu rosto, talvez debilidade, ou mais provavelmente só ambivalência. Entretanto, irradiava segurança e encanto. Respondeu com calidez à saudação de Clio e à apresentação de Charlotte.
—É um prazer vê-la de novo. - Sorriu a Clio. - Faz tanto tempo... Ultimamente conhecemos pessoas muito orgulhosas. - Rodeou a sua esposa com o braço em atitude protetora e se colocou a seu lado. - Desculpa querida. - Fez uma ligeira careta e olhou ao redor. Seu comentário era fácil de entender. A companhia era inusitadamente afetada, inclusive para semelhante evento.
Charlotte se lançou. Ao menos devia tentar inteirar-se de algo. Não estava ali só para entreter-se com a observação social sem fim algum.
—Está aqui mais por dever que por inclinação, senhor O'Neil? - perguntou com doçura.
Dirigiu-lhe um sorriso.
—Por puro dever. Para acompanhar a meu sogro e a sua mãe, que é aficionada aos serões musicais ao menos é aficionada a que a vejam junto a aqueles que as freqüentam. E a estar em dia dos acontecimentos.
—É lógico - comentou Charlotte. - Não há nada mais interessante que as fofocas se se conhece às pessoas de quem se fala e se tem a alguém a quem transmitir que aprecie plenamente todos seus matizes.
—Meu deus, não teme dizer o que pensa - respondeu ele com um nítido brilho de diversão nos olhos.
Duas mulheres jovens passaram junto a eles olhando O'Neil por cima de seus leques e fazendo ranger suas saias com ostentosa elegância.
—Não acha assim, senhora O'Neil? - Charlotte se dirigiu a Kathleen.
Esta sorriu, mas se tratava do gesto circunspeto de alguém a quem tinham ferido precisamente tais atos irrefletidos.
—Tenho que confessar que só me interessam de vez em quando. Acredito que as pessoas podem ser extremamente malévolas às vezes.
Charlotte se perguntou se de repente, em meio de toda essa tagarelice corriqueira, não acabava de ouvir palavras de verdadeira emoção. Caiu na conta de que diante de si tinha a uma mulher a cujo marido tinham assassinado depois de manter uma aventura com outra. Dizia muito em favor da Kathleen O'Neil que conservasse sua amizade com Clio Farber, uma mulher tão próxima à origem de tal mistério: não só outra atriz, mas amiga e colega da própria Tamar Macaulay. Charlotte sentiu admiração por ela e antipatia por seu próprio papel, o de alguém que pretendia carregar a culpa sobre seu segundo marido. Só a duplicidade era ofensiva, e a diversão que tinha experimentado por um instante desapareceu.
—Sem dúvida - disse com repentina sobriedade. - Quando é prejudicial, é um assunto bem diferente. Suponho que grande parte o é. Muita gente está mal informada e seria melhor que se economizasse seus comentários. Estava pensando só em trivialidades, e de todos os modos possivelmente tenha falado com muita ligeireza. - Aceitou um copo de limonada de um lacaio que passava por ali, assim como fizeram outros.
—Oh não, sou eu quem deve desculpar-se - disse Kathleen, ruborizada. – Não pretendia lhe contrariar. É só que conheço pessoas a quem feriram a repetição irrefletida de assuntos que não eram de todo certos, ou cuja natureza era profundamente privada. E é claro essas são as coisas nas que mais se deleita a fofoca.
Um murmúrio de expectativa percorreu a sala, logo se fez o silêncio. Aparentemente algo estava a ponto de começar. Voltaram-se instintivamente para o piano, onde uma volumosa dama com um vestido de titilantes miçangas no peito tratava de atrair a atenção dos reunidos.
—Damas e cavalheiros - começou. Produziu-se um murmúrio de educados aplausos. O espetáculo vespertino tinha começado.
Charlotte sorriu a Kathleen e deliberadamente tomou assento a seu lado, consciente de que Clio a olhava e, continuando, voltava a cabeça para entabular uma conversa em sussurros com Devlin O'Neil.
O pianista começou a tocar, sem floreios, tão só um olhar furtivo a seu auditório. Parecia absorto em sua música, que fazia surgir de seu instrumento como por arte de magia para seu próprio desfrute. Ou possivelmente "desfrute" não era a palavra adequada. Observando-o, Charlotte teve a sensação de que era uma necessidade para ele, mais um sustento para sua alma do que os deliciosos sanduíches e os bolos o eram para os corpos dos ouvintes ali reunidos. Os conhecimentos musicais de Charlotte não eram muitos, mas não necessitava ser um crítico experiente para dar-se conta de que aquele jovem era excelente, muito superior ao que tão elegante auditório seria capaz de apreciar.
Quando terminou a última peça anterior ao intervalo, colheu um educado aplauso. Ele se levantou, fez uma leve reverencia não mais do necessário para agradecer a presença do público e partiu cruzando a grandes passadas o arco que conduzia à sala contígua.
O silêncio deu lugar de novo ao falatório, e apareceram atraentes criadas com toucas brancas e aventais de renda passando bandejas de doces e lacaios em libré com champanha gelado. Charlotte não gostava de modo algum nenhuma coisa nem a outra, mas aceitou maquinalmente, pois era mais simples que a recusa contínua. Estava muito encantada com a glória da música para desejar fazer algum comentário que, possivelmente, não lhe faria justiça.
—Muito bom, não acha? - disse Devlin O'Neil, muito perto dela.
Não o tinha ouvido aproximar-se. Sorria de novo. Charlotte estimou que se tratava de uma expressão que lhe sobrevinha com facilidade, movida por uma natureza bondosa e pela esperança de agradar, mais que por um prazer concreto.
—Brilhante - opinou ela, esperando não parecer muito efusiva.
Antes que ele pudesse acrescentar algo mais, lhes uniu um homem corpulento, de peito poderoso, que aparentava uma força pouco comum. Tinha um rosto notável, com um grande nariz afiado e olhos pequenos, muito brilhantes, inteligentes. De seu braço, segurando-o em busca de apoio puramente físico, assim como com certo ar de posse, ia uma mulher de uma geração anterior. A grande semelhança dos olhos e da testa pôs de manifesto imediatamente que devia tratar-se de sua mãe.
—Oh, vó - disse Devlin O'Neil, o sorriso mais amplo. - Desfrutou da música? Permita-me lhe apresentar a... - Vacilou um instante ao perceber que desconhecia o nome completo de Charlotte. Salvou o inconveniente olhando Clio e apresentando-a em primeiro lugar. Foi tão discreto que, se Adah Harrimore o percebeu, não o deu a entender.
—Como está você, senhorita Farber? - A anciã inclinou a cabeça graciosamente, embora seu rosto não delatasse o menor interesse. - Como está você, senhorita Pitt? -acrescentou uma vez que Clio proporcionou o sobrenome que faltava.
Charlotte não se incomodou em corrigir o tratamento, algo que normalmente se teria apressado a fazer, pois devia evitar toda possível relação com o Thomas.
—Como está você, senhora Harrimore? - saudou por sua vez olhando a anciã com curiosidade. Seu semblante era notável, poderoso, embora refletisse um conhecimento do medo, uma circunspeção que ao mesmo tempo desmentia seu descaramento. Denotava uma vontade férrea, mas também ansiedade, uma busca de segurança em seu filho. Estava cheio de contradições. - desfrutei muito da música. - Charlotte voltou para o presente. - Não acha que o pianista esteve excelente?
—Muito talentoso - concedeu Adah franzindo levemente o sobrecenho. – Muitos o são nesse campo.
Charlotte estava perdida.
—Desculpe-me, a quem se refere senhora Harrimore?
—Aos judeus, naturalmente - respondeu Adah, mais carrancuda à medida que olhava com maior vagar à Charlotte, esquadrinhando seu rosto forte, sua tez de cor viva, seu cabelo castanho brilhante. - Não é que acho que tem algo que ver - acrescentou inconseqüente.
Charlotte tinha ao menos algumas noções de história a esse respeito.
—Poderia ter. Não lhes negamos no passado a maior parte das ocupações, à exceção da medicina e artes?
—Não sei o que quer dizer lhes negando! - replicou Adah bruscamente. - Gostaria você de ter aos judeus em toda partes? Já é bastante que estejam nas finanças de toda a nação, não me surpreenderia que de todo o Império, para que também estejam em outros lugares. Sabemos o que fazem na Europa.
Devlin O'Neil dirigiu um leve sorriso à Adah, depois a seu sogro. Estava muito perto de sua esposa.
—Tão mau como os irlandeses, não é certo? - apontou alegremente. - Deixamos que entrassem para construir as vias férreas e agora os vê em qualquer parte. Um inclusive se vê obrigado de quando em quando a achar-lhe nas reuniões sociais. E apostaria que até na política.
—Isso não é o mesmo - interveio Prosper Harrimore sem o mais leve rastro de humor no rosto. - Os irlandeses são como nós, meu querido moço. Como bem sabe.
—Oh, é certo - concordou O'Neil, rodeando Kathleen com o braço. – Para alguns, inclusive são nós. Acaso não era irlandês o próprio grande duque de Wellington?
—Anglo irlandês - corrigiu Prosper, desta vez com um vislumbre de sorriso nos finos lábios. - Como você. Não é o mesmo, Devlin.
—Bem, não cabe dúvida de que ele não era judeu - atravessou Adah com decisão. - Era de boa família, a melhor. Um de nossos melhores dirigentes. Sem ele agora estaríamos todos falando francês. - Percorreu-lhe um calafrio. - E comendo obscenidades do jardim, e só Deus sabe que mais, com a moralidade de Paris. Melhor não mencionar o que está acontecendo ali.
Charlotte não sabia o que a levou a dizê-lo, salvo talvez um desejo de romper o cuidadoso verniz das boas maneiras e suscitar uma emoção mais profunda:
—Folgo em dizer que o senhor Disraeli era judeu - indicou claramente no meio do silêncio. - E foi um dos melhores primeiros ministros que tivemos. Sem ele ainda seguiríamos bordeando os limites da África para chegar à Índia ou a China, para não falar de trazer de volta nosso chá. Ou o ópio.
—Como diz? - Adah ergueu as sobrancelhas, e inclusive Devlin O'Neil ficou estupefato.
—Oh. - Charlotte reagiu com rapidez. - Estava pensando em diversos remédios para aliviar a dor e tratar determinadas enfermidades, por cuja obtenção... cujo comércio lutamos contra China com grande êxito, conforme soube.
Kathleen parecia cortês, mas desconcertada.
—Possivelmente se não tivéssemos ido colocar o nariz em lugares estranhos - assegurou Adah com aspereza - tampouco teríamos contraído suas enfermidades. Onde melhor está uma pessoa é no país onde Deus a trouxe para o mundo. A origem da metade dos problemas do mundo radica em que a gente não está em seu lugar.
—Acredito que Sua Majestade lhe professava autêntica devoção - acrescentou Charlotte, inconseqüente.
—A quem? - Kathleen estava de todo perdida.
—Ao senhor Disraeli, querida - explicou O'Neil. - Acredito que a senhorita Pitt está zombando de nós.
—Nunca duvidei que fossem inteligentes. - Adah lançou a Charlotte um olhar brilhante, crispado. - Entretanto, isso não significa que os queiramos em nossas casas. -Experimentou uma leve sacudida convulsiva, minúscula, mas de uma repugnância tão intensa que se assemelhava ao medo.
Kathleen olhou Charlotte com expressão de desculpa.
—Lamento senhorita Pitt. Estou certa de que o que a avó queria dizer não era tão desagradável como pudesse parecer. A nossa casa são bem-vindas toda classe de pessoas, se forem amigos, e espero que você se considere uma deles.
—Eu adoraria - se apressou a dizer Charlotte aproveitando a oportunidade. – É muito generoso de sua parte, sobre tudo tendo em conta meus comentários, que foram tudo menos judiciosos, tenho que admitir. Tendo a falar com o coração, não com a cabeça. Desfrutei tanto com o pianista que me lancei a defendê-lo, quando estou certa de que não era necessário.
Kathleen sorriu.
—Compreendo - afirmou com voz baixa, de forma que não a ouvisse sua avó - Por um momento transportou a uma esfera mais elevada e me fez pensar em toda sorte de coisas nobres. Isso não é inteiramente mérito do compositor, mas também do intérprete. Pôs voz aos sonhos.
—Que bem o expressou. Não lhe caiba a menor duvida de que conservarei sua amizade, se me permite - assegurou Charlotte com sinceridade, assim como com o desejo de saber mais de Kingsley Blaine, da classe de homem que era. Na verdade tinha a intenção de abandonar a esta mulher aparentemente cálida e impulsiva por Tamar Macaulay, sabendo do que lhe custaria? Ou simplesmente tinha sido fraco e, ao dar rédea solta a suas paixões físicas, colocara-se em uma situação em que não podia decidir-se a deixar a nenhuma das duas? Que extraordinário que duas mulheres assim lhe professassem tão profundo amor. Devia ter um encanto único. Cada vez cobrava maior importância que desse com o modo de contemplá-lo com a máxima objetividade possível, através dos olhos de alguém que não estivesse tão cegado pelo amor. Talvez se visitasse o lar de Kathleen O'Neil teria mais oportunidade de falar com Prosper Harrimore. Seu rosto era perspicaz, circunspeto. Kingsley Blaine era o pai de sua neta, mas Charlotte supunha que um homem assim não sucumbiria facilmente ao encanto. O modo em que olhava Devlin O'Neil sugeria certa capacidade de distanciamento, um afeto não isento de critério. Ele podia ser a chave de um ponto de vista menos emocional, uma percepção que captasse também o perigo e as debilidades.
O pianista voltou e começou a segunda metade da velada, durante a qual Charlotte esqueceu todo o relativo a Kingsley Blaine, a sua família e à morte de Samuel Stafford. A voz apaixonada, poesia lírica, universal da experiência humana assumiu o controle, e se deixou transportar por ela a em qualquer lugar que a conduzisse.
Depois os O'Neil e os Harrimore conversaram com outros conhecidos. Prosper se encetou em uma discussão com um homem que tinha o ar solene de um banqueiro, e Adah escutava com grande atenção a uma mulher magra, entrada em anos, que dissertava pomposamente a certa distância e não permitia interrupção alguma. Em uma ocasião Charlotte captou o olhar de Kathleen e sorriu, recebendo um brilho de humor e compreensão por resposta. Além desse momento isolado, Charlotte e Clio partiram sem voltar a vê-los.
Micah Drummond estava em seu escritório, junto à janela, olhando a rua, onde dois homens discutiam por algo. O vento da tarde e a chuva que começava a golpear de vez em quando o vidro impediam-no de ouvir suas vozes. A cena parecia longínqua, separada de qualquer realidade que importasse, cada vez menos importante para ele. Viu-se obrigado a admitir que com a morte de Samuel Stafford lhe estava ocorrendo o mesmo.
Deveria lhe importar. Stafford tinha sido um bom homem, consciencioso, honrado, diligente. E embora não o tivesse sido, nenhuma pessoa decente podia tolerar o assassinato. Seu cérebro lhe dizia que deveria sentir-se indignado, em alguma parte longínqua de sua mente lhe enfureciam a arrogância do crime, a destruição de uma vida, a dor, mas na superfície em que se achava sua concentração quão único importava de verdade era Eleanor Byam. Tudo o que fazia só tinha valor se guardava relação com ela. Não saia da cabeça a imagem de seu rosto em todas suas disposições de ânimo, a luz e a sombra cada vez que ria, e quando voltava a tristeza, a lembrança da dor e sua solidão agora que tinha desaparecido todo seu mundo, que se tinha reduzido à casa de hóspedes de Marylebone e aos poucos comerciantes com os que tinha entendimentos.
Ansiava poder lhe dar mais, embora tivesse certeza de que o que sentia não era compaixão; para falar a verdade, aplicada a ela, achava a palavra ofensiva. Eleanor tinha muito valor, muita dignidade para que ele se atrevesse a albergar um sentimento tão íntimo e indiscreto.
Mesmo assim era consciente com pesar do muito que tinha mudado a vida dessa mulher.
Entretanto, a emoção mais poderosa nele continuava sendo o desejo de estar a seu lado, de compartilhar seus pensamentos, suas idéias, a experiência das coisas que ele amava. Imaginava caminhando por uma extensa pradaria junto a ela, o aroma da brisa do amanhecer procedente do mar, as nuvens amontoadas e esmiuçadas em véus de luz. A formosura do momento o invadiria até que mal pudesse contê-la, então se voltaria para ela e saberia que ela o via com o mesmo coração cheio. E ao compartilhar isso se desvaneceria a solidão.
Perguntou-se se Adolphus Pryce havia sentido essa mesma emoção esmagadora por Juniper Stafford e durante anos talvez o houvesse desprovido de todo sentido da medida e, em último termo, da moralidade. Entretanto, tal pensamento não durou muito nem se traduziu em idéias coerentes.
Em lugar de estar com a Eleanor, estava ali, em Bow Street, aguardando os informes de um assassinato que sabia que não resolveria. Se depois de todo resolvesse, seria coisa de Pitt. Seriam a ira de Pitt pela morte e injustiça, junto com sua intuição, ajudada não cabia dúvida, pela curiosidade de Charlotte, que dariam com a resposta, tanto com Drummond como sem ele.
Drummond tinha perdido por completo o gosto pelo trabalho e compreendeu com pessimismo de que corria o perigo de cometer um engano estúpido, desnecessário, que estragaria sua reputação e poria ponto final a sua carreira com desonra em lugar de honra.
Afastou-se da janela e se dirigiu para o cabide, de onde tomou o chapéu e a bengala, desprendeu o casaco e saiu ao corredor.
—Poulteney, vou sair. Deixe os informes em minha mesa quando chegarem. Verei-os pela manhã. Se voltar o inspetor Pitt, lhe diga que o verei amanhã.
—Sim, senhor. Vai voltar esta noite, senhor?
Mas Drummond já se afastara e não ouviu a pergunta.
Já na rua, percorreu a pé a escassa distância que mediava entre Bow Street e Drury Lane, à volta da esquina, onde tomou uma carruagem. Deu ao cocheiro a direção de Eleanor e se recostou tentando ordenar a mente e preparar o que ia dizer. Trocou as palavras uma dúzia de vezes entre Oxford e Baker Street, mas quando se apeou em Milton Street e pagou ao cocheiro, tudo dava a impressão de ser menos do que ele sentia. Inclusive pensou em parar outra carruagem e partir dali. Entretanto, se o fizesse a situação não melhoraria. Não estaria senão adiando o que para ele era inevitável. Tinha que perguntar-lhe e adiando-o não mudava nem conseguia nada.
Abriu a porta a mesma criada áspera, e quando lhe informou que desejava ver a senhora Byam, ela o conduziu a contra gosto pelo saguão até sua porta.
—Obrigado - se limitou a dizer, e esperou enquanto lhe olhava com expressão furiosa antes de dar meia volta e afastar-se.
Ergueu a aldrava e a deixou cair com o coração acelerado e a boca seca.
Ao cabo de uns minutos percebeu seus passos ao outro lado e ouviu virar a maçaneta. A porta se abriu. Era a própria Eleanor; era de supor que sua criada estaria ocupada em alguma outra coisa. Parecia surpreendida de vê-lo. Por um instante seu rosto refletiu autêntico prazer, logo o nublou a ansiedade, quase um pressentimento, quando olhou nos olhos. Possivelmente visse neles suas emoções, nu como se sentia, e não fosse aceitável. Drummond se sentiu perturbado imediatamente. Ainda não havia dito nada e, entretanto, tinha começado mal.
—Boa tarde, senhor Drummond - disse ela, e se ruborizou por sua torpe formalidade. Não cabia dúvida de que nenhum deles tinha por que fingir desse modo. Ocultar-se detrás certa elegância social estava bem, mas em excesso deixava de ser um escudo para converter-se em uma máscara. - É muito amável por sua parte ter vindo - acrescentou a toda pressa. - Rogo que entre. Faz um pouco de frio, não acha? É muito tarde para lhe oferecer um chá?
—Não, obrigado - aceitou entrando atrás dela. - Quero dizer que não, que não é muito tarde. Eu adoraria tomar uma xícara de chá. - A saleta era exatamente como a recordava, estreita, de janelas estreitas, tapetes pobres e puídos no centro, móveis díspares; só a faziam especial as escassas posses que conservava da casa da Belgrave: um tecido das Hébridas, uma figura de bronze de um cavalo, umas poucas almofadas bordadas.
Eleanor fez soar a campainha e, quando apareceu sua única criada, solicitou chá com uma cortesia que poucas pessoas utilizavam com a criadagem. Ele não foi capaz de recordar se eram suas maneiras habituais ou se era algo novo, dada a estreiteza em que vivia. Fosse como fosse, sua amabilidade o regozijou ridiculamente e sua necessidade lhe infundiu uma nova tristeza.
Eleanor se achava junto à lareira, olhando esta, que não estava acesa. A estação fria não estava bastante avançada para que alguém que tinha que ser prudente com o carvão mantivesse o fogo aceso todo o dia.
—Espero que não esteja preocupado por mim - disse ela com voz baixa. - Não há necessidade, asseguro-lhe. Tenho suficientes meios. E em realidade não desejo entrar de novo em sociedade. - Olhou-o de repente, os olhos graves.
—Não vim movido pela inquietação - respondeu Drummond olhando-a nos olhos.
Ela se ruborizou, uma escura onda de cor subiu às faces.
Drummond se sentiu de novo exposto. Era consciente de que levava as emoções escritas no rosto e não sabia como as esconder.
—Como vai seu caso? - apressou-se a perguntar ela. - Algum progresso?
Tinha mudado o tema do que não falavam, embora fosse tão claro como se se empregaram palavras. Ele se sentiu um tanto aborrecido, embora também agradecido.
—Não. Temo que não sabemos mais do que sabia a última vez que estive aqui -respondeu com tristeza. - Pitt está convencido de que não é nem a esposa nem seu amante, mas acredito que se equivoca. O certo é que não há provas que demonstrem nada.
—Então por que suspeita que foram eles? - perguntou Eleanor, que por fim se sentou, permitindo assim que ele fizesse o mesmo.
—Por trágico que pareça, continua sendo o mais provável - respondeu ele. – A única alternativa parece ter que ver com o caso de Farrier"s Lane. E se fechou faz cinco anos. Eleanor...
A mulher ergueu a vista, na expectativa, a respiração contida como se também ela fosse falar.
—Eleanor, em realidade não me preocupa o caso, nem nenhum outro caso em particular. Ultimamente todo isso me importa cada vez menos...
—Sinto muito, mas suponho que o superará. A todos invade o aborrecimento de vez em quando. As coisas familiares se tornam tediosas durante um tempo. Talvez precise se afastar de Londres. Pensou em passar uns dias fora? Inclusive um par de semanas talvez?
Ao Drummond veio à cabeça toda sorte de respostas. Não podia deixar Bow Street até que o caso estivesse resolvido; o assassinato de um juiz era muito importante e daria a impressão de que não lhe importava, mesmo que não houvesse nada que ele pudesse fazer que Pitt não fizesse melhor. Não desejava transmitir seu desassossego a suas filhas, que esperariam que se unisse a sua vida familiar; quinze dias com qualquer de seus genros seria tudo menos repousante, e detestava estar em casa alheia quando não tinha nem a categoria de verdadeiro convidado nem a independência do residente. Aborreceria-se e se sentiria só em um hotel, e os largos passeios pela solidão outonal das montanhas não solucionariam seu problema.
Em lugar disso, disse sinceramente a verdade:
—O que sinto não tem nada que ver com Londres nem com a morte do juiz Stafford. Isso não fez mais que aguçar a consciência do que devo fazer.
No rosto de Eleanor apreciou um indício de medo que poderia significar algo. Lançou-se, sentindo um frio vazio no estômago, temendo sua resposta, embora resolvido a não fugir ao tema. Podia sentir mais dor do que nunca teria pensado, mas não era um covarde.
Ela esperava, aceitando agora que não podia dissuadi-lo.
—Devo reconhecer que minha felicidade está em suas mãos. – Drummond sentia o sangue em suas faces. - E lhe perguntar se quereria me fazer a honra de se converter em minha esposa.
Até antes de terminar viu a negativa em seu rosto, a aflição em seus olhos.
—Seria uma honra, Micah, mas deve saber que não posso.
—Por que não? - Ouviu sua própria voz e se odiou por sua falta de dignidade, sua infantilidade, como se falar disso fosse mudar as coisas. Por que tinha sido bastante presunçoso para imaginar que a gratidão de Eleanor, sua inata amabilidade era algo semelhante ao amor?
—Já conhece a resposta. - Sua voz era débil e destilava dor. O rosto refletia o desconcerto de alguém a quem se golpeou inesperadamente.
—Não me tem afeto. - Drummond se esforçou por pronunciar as palavras. Preferia ser ele mesmo quem as dissesse a ouvi-las de seus lábios.
Ela baixou a vista ao chão.
—Sim lhe tenho afeto - afirmou com grande tranqüilidade, um vislumbre de sorriso na boca, um suave gesto. - Tenho-lhe muito afeto... muito para permitir que se case com uma mulher proscrita socialmente, pois a aliança com ela o arruinaria.
Ele tomou ar para falar. Eleanor lhe ouviu e ergueu o olhar com presteza.
—Sim, arruinaria-o. O escândalo que rodeia Sholto nunca se esquecerá. Estou inextricavelmente unida a ele, e sempre o estarei. Eu era sua esposa. Sempre haverá quem o recorde.
—A mim não... - começou Drummond.
—Cale-se, querido - o interrompeu. - É muito nobre de sua parte dizer que não o preocupa a sociedade, mas deveria. Como iria manter a posição que ostenta, dirigindo a investigação de casos delicados nos que se precisam discrição política e um imenso tato, escândalos nos que se vêem envoltas nossas maiores famílias, se sua própria esposa estivesse unida tão estreitamente ao pior deles? - Seu olhar era intenso. - Sei muito pouco da polícia, mas isso eu vejo. Agradeço a honra que me faz, sei que não retiraria uma oferta feita, sem importar o que pudesse lhe dizer sua grande sabedoria, mas, por favor... fomos amigos. Ao menos sejamos honrados. Arruinaria-o, e eu não posso permitir que isso aconteça.
Drummond desejou falar, rebater seus argumentos, mas sabia que ela tinha razão. Não poderia seguir em seu cargo se se casava com Eleanor Byam. Alguns escândalos se esqueciam, mas aquele não... não em dez anos, nem em vinte. O absurdo era que se fosse seu amante haveria cochichos, algumas risadas, talvez certa inveja - era uma mulher formosa, - mas todo mundo passaria por cima sua aventura. Em troca, se fizesse o que era muito mais honesto e se casava com ela, a gente recearia dele e acabaria lhe dando as costas.
—Sei - sussurrou ele. Queria tocá-la. Desejava-o com tal intensidade que teve que fazer um esforço físico para não sucumbir, pois sabia que estaria mau, resultaria torpe e um tanto indecoroso. - Mas sua companhia é para mim maior felicidade que qualquer posição social ou profissional.
Eleanor afastou o olhar imediatamente e pela primeira vez se veio abaixo. As lágrimas afluíram a seus olhos. Levantou-se e se dirigiu para a lareira.
—É muito generoso, e admiro-o enormemente por isso, mas isso não muda nada. Não posso deixar que faça tal coisa. - Voltou-se e se obrigou a sorrir, as lágrimas nos olhos - Que classe de amor sentiria por você se consentisse em que pagasse semelhante preço por meu bem-estar? Não seria felicidade.
Ao Drummond não lhe ocorria nenhum argumento. O que Eleanor dizia era certo. Todo o material que pudesse lhe oferecer se desvaneceria quando ela o aceitasse. E ele nunca se teria casado com ela se, ao fazê-lo, tivesse-a arruinado.
Ficou em pé com lentidão e certa rigidez, mesmo que não levasse muito tempo ali.
—Sinto muito - sussurrou ela com voz rouca.
Por um momento Drummond pensou em ir para ela e tomá-la em seus braços, mas seria inoportuno, uma injustiça, e não mudaria nada. Não sabia o que dizer. Despedir-se formalmente agora, como se só tivesse ido tomar chá, seria ridículo. Seus olhares se encontraram e soube que seu próprio rosto delatava todas suas emoções. Por um instante permaneceu imóvel, depois deu meia volta e se foi, passando ante a criada no saguão. A bandeja do chá estava na mesa. Era uma mulher discreta e tinha entendido mais do que ele supôs na ocasião. Abriu-lhe a porta e vacilou um instante antes de dizer:
—Espero que volte nos visitar, senhor.
Drummond a olhou e leu em sua expressão tensa que não se tratava de palavras vãs, nem de uma forma habitual de despedida.
—Oh, sim - assegurou ele com firmeza - Não lhe tenha dúvida de que voltarei.
O dia de Pitt não tinha sido muito satisfatório. Tinha passado bastante tempo indagando na relação de Juniper Stafford e Adolphus Pryce, averiguando todo o possível sobre como se tornara mais íntimo de uma amizade social a raiz do contato profissional de Pryce com o juiz Stafford. Tinha sido extremamente difícil fazê-lo sem dar a entender em nenhum momento quem não o sabia que era uma relação imoral e poderia ter conduzido ao assassinato. As pessoas com as que falou sentiam avidez pela fofoca e insinuações. Se não fosse assim, de pouco lhe teriam servido em sua busca de fatos, mas sua própria suscetibilidade implicava que ele devia ser mais cuidadoso. Como conseqüência, tinha obtido uma imagem pouco clara, cheia de sombras e implicações de paixão, mas sem substância.
Chegou em casa cansado e desalentado, com a sensação de que perseguia algo de cuja realidade nunca teria uma certeza fora de toda dúvida, e que certamente nunca poderia demonstrar.
Charlotte lhe tinha preparado um jantar excelente: delicioso cordeiro guisado com batatas e nada doce enfeitado com romeiro. Comeu devagar e com mais satisfação do que tinha experimentado em todo o dia. Tinha terminado e estavam sentados no salão, ao amor da luz, os pés na tela, ajeitando-se mais e mais na poltrona, quando se deu conta de que ela estava preocupada e, de quando em quando, parecia um pouco inquieta.
—Do que se trata? - perguntou contra sua vontade, desejando que não fosse nada, alguma trivialidade doméstica da qual ele não tivesse que preocupar-se.
Charlotte mordeu o lábio e deixou a mesa de costura onde tinha estado desembaraçando fios.
—A relação entre mamãe e Joshua Fielding.
—Sentir-se-á muito afetada se ele estiver comprometido no assassinato de Farrier"s Lane? - perguntou Pitt. Apreciava a sua sogra, embora lhe impusesse certo respeito, e certamente não desejava que lhe fizessem mal. Entretanto, levar uma decepção de vez em quando fazia parte do afeto, e o único modo de evitá-lo era não sentir afeto por ninguém, o que era uma espécie de morte. - Não vejo por que deveria estar comprometido – continuou. - Tudo o que averigüei indica que foi Aaron Godman, justo como se decidiu no julgamento original.
Charlotte fez uma careta.
—Quase desejaria que estivesse comprometido.
—Isso não tem sentido. - Pitt estava perplexo.
Charlotte enrugou ainda mais o rosto e fechou os olhos.
—Thomas, acredito que está realmente apaixonada por ele. Sei que é absurdo, mas... mas acredito que é assim.
—Certamente que é absurdo - afirmou ele, ansioso por desprezar a idéia. Afundou-se ainda mais na poltrona, até pôr os tornozelos na tela e os pés tão perto do fogo que tinha as solas das sapatilhas quentes-. É uma viúva de boa família e muito respeitável, Charlotte. Ele é ator, judeu e vinte anos mais jovem que ela. Está tirando as coisas de gonzo. Provavelmente esteja aborrecida, como o está Emily a metade do tempo, e procure algo no que implicar-se. Isto é mais emocionante, e mais dramático, que ir tomar o chá e interessar-se pela moda. Esquecerá quando se tiver demonstrado sua inocência.
—Você acha? - Charlotte se mostrou esperançosa, os olhos bem abertos e muito escuros.
Sua expressão, longe de alegrar o seu marido, fez-lhe reformular de repente o assunto. Recordou o rosto de Caroline ao olhar Joshua Fielding, a cor subida, o tom alterado de sua voz, a freqüência com a que mencionava seu nome. E Charlotte era muito mais sensível que ele a tão delicadas mudanças. As mulheres entendiam às demais mulheres como um homem jamais poderia.
—Não acha isso, não é certo? - desafiou-o Charlotte, quase como se lhe tivesse lido os pensamentos.
Pitt vacilou, esteve a ponto de negá-lo, mas venceu a sinceridade entre eles.
—Não sei... possivelmente não. Parece ridículo, mas suponho que o amor freqüentemente o é. Eu mesmo pensei que era ridículo por me apaixonar por você.
De repente o rosto de Charlotte estava radiante, como se o sol o tivesse iluminado.
—Oh, foi-o - disse feliz. - Bastante ridículo. Igual a mim. - E por um instante se esqueceu de Caroline, deixou a um lado sua dor, sua imprudência.
Não obstante, aos olhos da velha senhora Ellison era o assunto mais urgente do mundo, que excluía todo o resto: a edição semanal do London Illustrated News, as últimas aventuras do príncipe de Gales com suas diversas amizades femininas, as opiniões da rainha, sabidas ou supostas, os pecados do governo, os caprichos do tempo, a incapacidade geral do serviço, a decadência das boas maneiras e da moralidade, inclusive suas diversas doenças e seus sintomas. Nada era tão importante, ou tão potencialmente desastroso, como a teimosia de Caroline com aquele malfadado ator. Um ator. Não podia ser mais absurdo. Mais inapropriado.
Para falar a verdade "inapropriado" era uma palavra muito suave, era inaceitável. E quanto a sua idade... era vinte anos mais jovem que ela... ou pelo menos quinze, sendo otimista. E isso era algo mais que mau gosto: era repugnante.
Tinha que dizer-lhe Era seu dever de sogra.
—Graças a Deus que o pobre Edward está morto e enterrado - afirmou resolutamente logo que Caroline chegou à mesa da sala de jantar.
Houve um tempo em que a mesa da sala de jantar reuniu ao redor Caroline, Edward, suas três filhas e seu genro, Dominic Corde, assim como à avó. Agora só estava disposta para elas duas, uma em cada extremo, isoladas, olhando-se através da longa extensão de carvalho. Cada uma necessitava umas cangalhas, a distância era muita para passá-la.
—Como diz? - Caroline se obrigou a prestar atenção a tão extraordinário comentário.
—Dizia que graças a Deus que Edward está morto e em sua tumba - repetiu a anciã erguendo a voz. - Está ficando surda, Caroline? Pode acontecer à medida que alguém se faz mais velha. Dei-me conta de que sua vista já não é a que era. Agora olha as coisas entreabrindo os olhos. Não é muito favorecedor. Faz sair rugas onde a gente não desejaria. É de supor que não se desejam em lugar algum, mas na nossa idade é inevitável.
—Eu não tenho sua idade - replicou Caroline com aspereza. - Nem sequer estou perto.
—A grosseria não lhe servirá de nada - replicou a avó com um sorriso forçado. Controlava a seu desejo a conversa. - Vai a seu encontro. Nada escapa à garra do tempo, querida. Os jovens costumam pensar que em seu caso será diferente, mas nunca o é, me acredite.
—Não sei do que está falando - disse Caroline lacônica; acrescentou sal à sopa e descobriu que não a necessitava - Não sou jovem, mas tampouco tenho sua idade. Você é minha sogra e Edward era vários anos mais velho que eu.
—Um excelente acerto - aprovou a avó assentindo com a cabeça. - Um homem deveria ser um pouco mais velho que sua esposa. É bom para a responsabilidade e a harmonia doméstica.
—Ah, uma solene tolice. - Caroline jogou pimenta à sopa e se deu conta de que tampouco a necessitava. - Se um homem é um irresponsável, casar-se com uma mulher mais jovem não servirá para curá-lo. De fato, provavelmente acontecerá o contrário. Se ela tampouco tiver muito juízo, ambos estarão nas mesmas.
A avó passou por cima sua opinião.
—Se um homem for um pouco mais velho que sua esposa - asseverou depois de sorver a sopa ruidosamente. - ela o obedecerá com mais facilidade e no lar reinarão a paz e a felicidade. Uma esposa de maior idade pode ser obstinada. - Continuou sorvendo a sopa. - Por outro lado, pode ser que seja tão imprudente para permitir que ele leve as rédeas, quando não possui maturidade, discernimento nem, sem lugar a dúvidas, autoridade. Em suma, será um desastre e acabará na ruína.
—Não são mais que frescuras. - Caroline afastou a sopa e fez soar a campainha para que o mordomo a levasse. - Uma mulher judiciosa fará sua vontade e deixará que seu marido acredite que é a dele. Desse modo ambos serão felizes e prevalecerá o melhor critério. - Apareceu o mordomo. - Maddock faça o favor de servir o segundo prato. Troquei de opinião com respeito à sopa. Diga ao Cook que estava excelente, se é que tem que lhe dizer algo.
—Sim, senhora. Comerá peixe?
—Por favor, mas só uma pequena porção.
—Muito bem, senhora. - Olhou inquisitivo à anciã. - E para você, senhora?
—Naturalmente. Não me passa nada.
—Sim, senhora - disse o mordomo, e se retirou.
—Deveria comer como Deus manda - aconselhou a avó a Caroline antes que se fechasse a porta. - Não tem sentido que pense em sua figura. As mulheres de certa idade que ficam esquálidas não são nada atraentes. Tem o pescoço como o dos perus. Vi coisas melhores mortas na cozinha do Cook.
—Muito melhores - replicou Caroline. - Ao menos têm a boca fechada!
A avó estava furiosa. O comentário estava totalmente desconjurado e era imprevisto.
—Nunca teve o que se diz boas maneiras - disse com rancor, - mas vai a pior. Seria para mim perturbador levá-la ante pessoas importantes.
Maddock entrou e serviu o peixe, depois do qual voltou a retirar-se.
—Não recordo que alguma vez me tenha levado a parte alguma - replicou Caroline - E faz anos que não trata com ninguém importante.
—Essa é a sorte das viúvas - afirmou a anciã com um repentino ar triunfal. - E se tivesse dignidade ou bom senso, ou a mínima noção de qual é seu lugar, tampouco você o faria. - Atacou o peixe com entusiasmo. - E certamente não andaria vadiando Por Deus sabe onde, perseguindo um homem a quem dobra a idade e com uma ocupação que melhor não mencionar. Toda a gente decente que não ri às suas costas está ocupada compadecendo-se de você, e de mim, já que minha nora se está pondo na maior das evidências. -Soprou ruidosamente e arpoou o peixe com o garfo-. Utilizará você como a uma prostituta qualquer. E depois rirá disso com seus horríveis amigos. Será tema de graças de taverna e...
Não pôde continuar. Caroline se levantou da mesa e a olhou com ferocidade.
—É você uma velha mesquinha e egoísta com uma língua viperina e uma mente absolutamente suja. Eu não fiz nem farei nada que me converta na fofoca de ninguém, exceto daqueles que, como você, não tem vida própria nem tema de que falar salvo da demais gente. Termine-se seu jantar só. Não desejo jantar com você. - E saiu disparada pela porta justo quando entrava Maddock, deixando à avó boquiaberta e, por uma vez, despreparada por completo.
Não obstante, quando chegou a seu dormitório, Caroline tinha os olhos inundados de lágrimas e a garganta lhe doía tanto que foi um alívio fechar a porta com chave, deitar-se na cama e dar rédea solta ao pranto.
Tudo isso era certo. Estava-se pondo em ridículo. Estava apaixonada como nunca antes o tinha estado de um homem quinze anos mais novo que ela, o qual era socialmente impossível. Que fosse impossível o mesmo lhe dava, não lhe importava um nada. O que a mortificava igual a uma dor física era que fosse igualmente impossível a ele.
Caroline demorou três dias mais em reunir toda sua coragem e visitar Charlotte para que unissem seus esforços e tentassem desentranhar o assunto da morte de Kingsley Blaine. Fosse o que fosse que ocorresse entre ela e Joshua Fielding, por muito absurdo e desesperado que resultasse, ele continuava em perigo de ver-se comprometido de novo na suspeita, com todo o sofrimento e a perda que isso conduziria.
—Iremos visitar Kathleen O'Neil - propôs Charlotte olhando Caroline com expressão preocupada.
—Excelente. - Caroline voltou a rosto para ocultar o olhar por temor a que Charlotte percebesse sua vulnerabilidade e o fato de que, apesar de todo o sentido de seus argumentos, era incapaz de se separar de si a emoção ou o muito pequeno sopro de esperança. - Temos que nos inteirar de muito mais coisas sobre o senhor Blaine se pretendemos averiguar quem o matou. E por que - prosseguiu com resolução. - Tamar Macaulay parece estar segura de que não foi seu irmão. Joshua também acredita e duvido que o diga movido por um simples afeto.
—Bem - concedeu Charlotte com uma amabilidade pouco habitual nela, tratando-se de um assunto tão prosaico como uma visita vespertina. - Iremos hoje. Devo me trocar, naturalmente, e comeremos aqui, se quiser.
—Sim... sim - aceitou Caroline. - E pensaremos no que vamos dizer.
—Se o desejar, embora acredite que os planos não costumam servir muito, já que outros nunca dizem aquilo em que você estava pensando.
No meio da tarde Charlotte e Caroline desembarcaram da carruagem desta última ante a casa de Prosper Harrimore, em Markham Square. Apresentaram o cartão de Caroline na porta para que se informasse à senhora O'Neil de que tinham ido visitá-la, se fosse amável de recebê-las. Então mantiveram um repentino e extremamente apressado debate sobre como iriam explicar que o sobrenome de Caroline fosse Ellison e o do Charlotte, Pitt. Concluíram que a única resposta segura seria uma viuvez e um segundo matrimônio, se é que se viam obrigadas a dar explicações.
Em pouco retornou a criada para lhes anunciar que a senhora O'Neil estaria encantada de recebê-las e que se achava no salão, onde podiam unir-se a ela se assim o desejassem.
Kathleen O'Neil não estava sozinha, mas lhes deu as boas-vindas cortesmente e com evidente prazer antes de apresentá-las às duas senhoritas Fothergill, que deste modo estavam de visita. A conversa se reatou, uma conversa tão corriqueira que nem Charlotte nem Caroline lhe prestaram mais que a mínima atenção necessária para não fazer um comentário áspero. Charlotte percebeu que inclusive Kathleen tinha as vezes o olhar perdido.
Salvou-as a chegada de Adah Harrimore, que tinha um vestido de lã de uma intensa cor ameixa e tinha um aspecto majestoso. Sua presença, um tanto austera, pareceu coibir às senhoritas Fothergill, que se despediram pouco depois. Depois a própria Adah recebeu a visita de um ancião clérigo ao que preferiu tratar com atenção em privado, de modo que se desculpou e se retirou com ele a saleta de manhã.
—Oh, graças a Deus - disse Kathleen com sincero alívio. - As intenções das senhoritas Fothergill são boas, mas são terrivelmente aborrecidas.
—Receio que às vezes a mais amável das pessoas pode ser muito difícil de tratar com atenção - afirmou Caroline com os olhos bem abertos. – depois que morrera meu marido houve muita gente não muito diferente das senhoritas Fothergill que vinha para ver-me disposta a aliviar minha dor e suponho que, a seu modo, conseguia-o, ao menos enquanto estava ali. - Sorriu a Kathleen e se sentiu culpada por sua arte.
—Sinto muito - se apressou a dizer Kathleen - foi recente sua perda?
—Oh, não. Faz já alguns anos, e não foi repentina. - Caroline se desculpou mentalmente ante Edward, mas se sentia menos culpada com ele que com Kathleen. Durante os últimos anos tinham vivido com certa comodidade, mas grande parte da confiança se desvanecera. Tinha havido tolerância e entendimento paulatino, mas não a intimidade que ela ansiava. Nem sequer podia recordar ter conhecido a risada e a ternura que sabia compartilhavam Pitt e Charlotte.
—Mesmo assim estou certa de que o sentiria muito. - Kathleen a olhava com compaixão. - Eu perdi meu primeiro marido nas piores circunstâncias possíveis e sempre tive a sensação de que a gente como as senhoritas Fothergill ainda o tem em mente quando vem ver-me. Acredito que essa é a razão de que se mostrem tão afetadas. Ainda não sabem bem o que me dizer. Suponho que dificilmente se pode culpá-las.
Caroline queria continuar com o assunto, mas era muito descarado e não soube que mais dizer. Claramente Charlotte não sentia tais escrúpulos.
—Como é evidente que é muito feliz com o senhor O'Neil me surpreende que elas ainda continuem pensando em seu primeiro marido. - Elevou a voz ao final para que fosse uma pergunta pela metade.
Kathleen baixou a vista.
—Se estivesse a par das circunstâncias o compreenderia - disse com voz muito baixa, quase em um sussurro. - Não sei se estão ao corrente de que o assassinaram. Foi um grande escândalo na época, e se celebrou um divulgado julgamento quando apanharam ao homem que o matou. Depois, embora o declarassem culpado, ele apelou. -retorceu as mãos no regaço. - Naturalmente a apelação foi desprezada e o enforcaram pouco depois. Houve um grande rebuliço; às pessoas pareciam se importar muito. -mostrou-se um pouco surpreendida, como se inclusive a posteriori continuasse sendo incompreensível. - Gente que não sabia nada de nós escreveu cartas ao Time. Membros do Parlamento falaram a respeito na Câmara dos Comuns para exigir a execução da condenação e que semelhante barbaridade recebesse o castigo máximo pelo bem de todos nós. Foi muito doloroso. Parecia que não podíamos escapar disso nem sequer um segundo.
—Deve ter sido espantoso - concordou Charlotte. - Mal posso imaginar algo assim. - Lançou um breve olhar a Caroline, esperando que compreendesse a desculpa pelo que ia dizer. - A minha irmã mais velha também assassinaram faz alguns anos, de modo que a entendo perfeitamente.
Kathleen pareceu sobressaltar-se e logo sentir uma profunda compaixão. Olhou para Charlotte com expressão preocupada.
—Possivelmente soe cruel, mas não se pode chorar uma perda com tal intensidade todo o tempo. Alguém acaba tão cansada, tão tremendamente fatigada... Precisa ser capaz de pensar em outra coisa por algum tempo, para recordar que há uma vida normal além da perda. - Sorriu timidamente e em seguida recuperou a gravidade. - Já vê, toda Londres parecia estar obcecada com nossa tragédia, com o horror. Falava-se disso dia e noite.
—Entretanto, em nosso caso o julgamento terminou rapidamente - explicou Charlotte-, e não houve apelação. A pobre criatura estava louca. - Franziu o sobrecenho. por que demônios apelou esse homem? Com certeza o único motivo era prolongar a agonia de outros.
—Sustentou em todo momento que não era culpado. - Kathleen mordeu o lábio-. Até nos próprios degraus da forca, pelo que soube. - olhou as mãos, enlaçadas no regaço. - Às vezes tenho pesadelos nos quais é certo, que morreu tão injustamente como o pobre Kingsley e, de algum modo, inclusive de uma forma muito mais terrível, posto que foi a sangue frio, se é que se pode dizer isso de semelhante clamor popular. - Olhou Charlotte. - lamento. É algo muito atroz para falar disso com pessoas que mal se conhece e que veio tomar o chá. Envergonho-me de mim mesma, mas o entendeu tão logo... e seriamente que o aprecio.
—Rogo, não se desculpe - se apressou a dizer Charlotte. -Prefiro falar da realidade. Asseguro-lhe que não me interessa o mais mínimo o tempo, não estou a par das fofocas de sociedade e me preocupam ainda menos. E não posso permitir ir na moda.
Em qualquer outra ocasião Caroline lhe teria dado um pontapé por debaixo da saia por tão indiscreta franqueza, mas esta vez lhe preocupava muito o assunto real que motivava sua presença.
Kathleen sorriu com tristeza.
—Realmente falar com você é muito estimulante, senhorita Pitt. Agradeço-lhe muito que tenha vindo.
Charlotte sentiu uma pontada de culpa, depois pensou em Aaron Godman e a superou imediatamente.
—Não deveria permitir que o ocorrido a transtorne - disse com amabilidade. - Algumas pessoas protestarão, mesmo que sejam as responsáveis pelo acontecido. Por que se supõe que fez algo assim? Roubo? Ou acaso se conheciam?
—Conheciam-se -afirmou Kathleen com total tranqüilidade. - Kingsley, meu marido, tinha uma aventura com a irmã desse homem, e ela achava que meu marido se casaria com ela, o que naturalmente era um disparate. Mas ela estava ofuscada, como costumam estar as mulheres quando estão apaixonadas. - Um sorriso pesaroso se posou em seus lábios, sem indício de amargura-. Todos temos nossos sonhos, e alguns são tão preciosos que não é fácil deixá-los escapar.
—Que espantoso para você. - Charlotte dizia convencida. Só a idéia de que Pitt albergasse algum desejo por outra mulher lhe provocava uma profunda dor. Como tomaria se soubesse que tinha uma aventura era algo que ignorava. - Lamento muitíssimo!
Caroline guardava silêncio, deixando que Charlotte levasse a conversa.
Kathleen percebeu a angústia na voz de Charlotte e meneou a cabeça como se pretendesse separar de si o sofrimento.
—Oh, Kingsley era encantador, divertido e generoso - disse suavemente. - Nunca o vi de mau humor, mas sempre soube que era fraco. Gostava de agradar, o que pode ser um defeito e uma virtude ao mesmo tempo. Suponho que ele também a amava e nunca teve a coragem de feri-la lhe dizendo a verdade. - Olhou Charlotte com os olhos muito abertos, escuros. Continuando, como se lhe lesse os pensamentos, acrescentou. - A questão é que tinha muito pouco dinheiro próprio. Vivíamos bastante bem porque Kingsley fazia trabalhinhos para papai, em seu negócio. Era tão encantador que era excelente tratando com atenção às pessoas e consolidando entendimentos. Mas, se me tivesse deixado, a sociedade o teria condenado ao mais absoluto ostracismo e papai se teria assegurado de desbaratar qualquer possibilidade que lhe tivesse surgido. - Seu olhar se adoçou. - Papai pode ser um homem tão amável... não consigo imaginar a ninguém mais paciente nem mais preocupado que ele por meus filhos, e sempre se mostra carinhoso comigo e com a avó. Entretanto, pode ser muito diferente quando percebe crueldade ou falsidade na pessoa. Detesta o mal e se Kingsley me tivesse abandonado o teria considerado malvado. E apesar de toda sua calma e simpatia, Kingsley sabia.
—Não pôde tratar-se de um roubo? - Charlotte tentou tingir seu tom de preocupação, como se a essas alturas não soubesse mais de quais fatos a própria Kathleen.
—Duvido. - Kathleen compôs uma careta de dor. - Foi algo muito terrível e absurdo se o que se pretendia era simplesmente roubar a alguém. E realmente parecia... parecia obra de um judeu. Acredito que essa é a razão pela qual a avó tem sentimentos tão inflamados contra eles. Tinha muito carinho ao Kingsley.
—Oh, vá... você deve ter sofrido muito. - Charlotte sentia o que dizia. – Não deveria importuná-la mais com dúvidas sobre... - se interrompeu bem a tempo de não mencionar seu nome - o homem a quem enforcaram. Depois de tudo, se não foi ele, quem pôde fazê-lo?
—Não sei. - Kathleen deu ligeiramente de ombros. - Me perguntava se não seria o outro ator, mencionei que o homem ao que enforcaram era ator? Não. Bem, pois o era. Veja, Kingsley tinha uma aventura com uma atriz. Em que pese a toda sua franqueza, continuava evitando dizer que estava apaixonado.
Charlotte engoliu em seco.
—O outro ator?
—Sim, Joshua Fielding. Também é judeu e estava apaixonado pela atriz de Kingsley.
—Acredita que estava com ciúmes? - perguntou Charlotte com um nó na garganta, dolorosamente consciente de que Caroline estava rígida a uns poucos metros dela, as mãos crispadas em suas elegantes luvas.
—Possivelmente sabia que Kingsley nunca se casaria com ela – aventurou Kathleen - e o odiava por fazer mal a essa mulher, embora sem pretendê-lo em realidade. Kingsley teve uma terrível briga com ele uns dias antes que o matassem.
—Com Joshua Fielding? - interveio Caroline pela primeira vez, o rosto branco e a voz rouca.
Kathleen se voltou para ela, como se só agora tomasse plena consciência de sua presença.
—Sim. Chegou em casa muito alterado e com a roupa enrugada e suja. Deve ter sido muito violenta.
—Disse-lhe ele isso? - Caroline não queria admitir o fato.
—Sim... terei que conhecê-lo - explicou Kathleen interpretando mal a inquietação de Caroline. - Ele não dizia a verdade se fosse dolorosa, mas tampouco mentia deliberadamente. Eu sabia que tinha acontecido algo e, como é lógico, perguntei-lhe. Contou-me que tinha tido uma violenta briga com Joshua Fielding, mas quando lhe perguntei o motivo disse que eu não gostaria de sabê-lo, beijou-me e foi trocar se antes de retirar-se. - Meneou a cabeça. - É claro, quando sua relação com... com sua amante saiu a luz no julgamento, caí na conta do motivo da briga.
—Sim - se apressou a dizer Charlotte, sentindo por Caroline, apalpando a dor como se fosse algo tangível. Tinha o coração em um punho e se sentia um tanto indisposta. - Sim, compreendo. - Procurou algo mais que dizer. Desejou poder partir, mas seria uma amostra de má educação e faria impossível sua volta. E precisavam voltar. Estava convencida de que ainda podiam averiguar muito mais coisas de Kingsley Blaine que conduziriam a seu assassino, mesmo que isto fosse o que mais temiam ouvir. Deixá-lo agora seria pior que se nunca tivessem começado. - Mesmo assim... - Tentou infundir ânimo a sua voz, mas era tal o nó que tinha na garganta que mais pareceu um chiado. - Mesmo assim sigo pensando que não deveria sentir remorsos. Não foi culpa sua. Recebeu um julgamento justo.
—Mas não contei a ninguém sobre a briga - confessou Kathleen, olhando para Caroline, depois para Charlotte e voltando de novo para Caroline, pálido o semblante - Ninguém me perguntou, e eu não o disse. Acredita que teria mudado algo?
—Não - mentiu Charlotte. - Nada absolutamente. Não desejo importuná-la mais. A última coisa que quereria é que pensasse que minha visita lhe causou ansiedade e serviu para reabrir velhas feridas.
Estava mentindo, e mesmo assim era certo que não desejava ferir Kathleen, menos agora que a conhecia melhor. Veio-lhe à cabeça o rosto irônico, amável de Joshua Fielding, e tentou imaginá-lo deformado por um ódio capaz de fazê-lo matar a punhaladas a um homem e depois crucificá-lo. Era impossível. E, entretanto era ator. Sua arte e seu modo de vida consistiam em transmitir paixões que não sentia e em ocultar as que experimentava.
E mais poderoso que sua própria dúvida ou infelicidade ao respeito era a aguda dor que sentia por Caroline. A ferida seria tão profunda, tão desproporcionada para o escasso tempo que fazia que o conhecia... Mas as emoções pouco têm que ver com o tempo, e o amor, nada absolutamente.
Kathleen estava falando de novo, mas Charlotte não ouviu suas palavras. Passaram o resto da visita em uma conversa mais agradável. Charlotte se viu obrigada a arrancar de sua mente os pensamentos e a concentrar-se. Caroline só foi capaz de permanecer sentada olhando, fazendo algum ou outro comentário quando a urbanidade o fazia absolutamente necessário.
Quando se despediram, tudo foram sorrisos e agradecimentos, e saíram ao tempestuoso vento com as saias formando redemoinhos ao redor de seus tornozelos e uma desoladora infelicidade em seu interior, como se o sol se eclipsara.
Pitt voltou de novo para Juniper Stafford. Tudo que tinha averiguado sobre ela e sua relação com Adolphus Pryce seguia sem lhe proporcionar a certeza de se suspeitava ou não dela. Possivelmente sua relutância fosse puramente emocional, já que se achava presente enquanto ela via morrer a seu marido. Então não a acreditou culpada, só sentiu lástima por ela. Nunca duvidou de sua dor. Não percebeu nela nenhum rastro de falsidade.
Era vaidade o que o fazia tão difícil mudar de opinião, ou acaso havia um instinto certeiro, alguma observação inconsciente, que lhe dizia que a dor de Juniper era real? Ou era porque ele desejava que Aaron Godman fosse inocente? Era uma idéia inquietante. Suporia uma tragédia para todos os implicados salvo Tamar Macaulay, a tragédia real, acreditável, da desonra.
Achava-se à porta da casa dos Stafford, ergueu a aldrava e a deixou cair. Ainda havia braçadeiras de luto negro nas janelas, as cortinas estavam meio corridas. Flutuava um ar de desolação, de abatimento.
A porta se abriu e um lacaio com bracelete negro o olhou inquisitivamente.
—Lamento incomodar à senhora Stafford - disse Pitt com mais autoridade do que sentia, - mas há algumas questões mais sobre a morte do juiz que preciso tratar com ela. -Tirou seu cartão - Poderia lhe perguntar se seria amável de me receber?
—Sim, senhor - respondeu o lacaio com uma obediência falta de sentimento.
Cinco minutos depois, Pitt se achava na fria saleta da manhã quando entrou Juniper Stafford. Vestia-se de negro, mas sua indumentária delatava um formoso corte, moderno e reluzente. Trazia umas jóias cor Azeviche com discretos aljôfares engastados nas orelhas e pescoço, e sua pele desprendia certa luz, um tênue rubor. Os olhos eram doces e vivazes. O inspetor se surpreendeu, e soube imediatamente que era certo o que afirmava Livesey, que estava apaixonada.
—Bom dia, senhor Pitt - saudou ela com um leve sorriso, detendo-se ao entrar-. Tem feito algum progresso?
—Bom dia, senhora Stafford -respondeu ele com seriedade - Temo que muito pouco. Para falar a verdade, quanto mais averiguo, menos consigo ver a solução.
Ela avançou pela sala e a Pitt chegou um sutil perfume, agradável, menos doce que a lavanda. Juniper se movia com um frufru de seda semelhante ao ranger das folhas, e entretanto o vestido parecia grosso. Se chorava por Samuel Stafford, tratava-se de uma emoção a que subjugava essa outra que tanto a regozijava e fazia que seu sangue fluísse mais às pressas, que tingisse de vermelho suas faces. Mesmo assim, isso não significava necessariamente que fosse culpada da morte de seu marido.
—Não sei que mais posso lhe dizer para ajudá-lo - olhava-o diretamente. - Não sei nada de seus casos, só o que podem ler os cidadãos comuns. Ele não os comentava comigo. - Sorriu com uma expressão de perplexidade-. Os juízes não o fazem, já sabe. Não é ético. E duvido que qualquer homem fale de tais coisas com sua esposa.
—Sei senhora - concedeu Pitt-, mas as mulheres são muito observadoras. Compreendem muito do que não se diz, sobre tudo no referente aos sentimentos.
Ela deu ligeiramente de ombros como toda resposta.
—Rogo, sente-se - disse.
Juniper se sentou primeiro, com elegância, um tanto de lado, em uma das grandes poltronas, e as saias lhe caíram com naturalidade desenhando um arco ao redor. A arte de ser totalmente feminina lhe era tão simples que cuidava desses detalhes sem ser consciente disso.
O inspetor tomou assento frente a ela.
—Estaria-lhe muito agradecido se me dissesse tudo o que recorda do dia em que morreu seu marido - solicitou.
—De novo?
—Se tiver a bondade. Possivelmente a posteriori veja algo novo, ou eu possa compreender a relevância de algo que não percebi a primeira vez.
—Se acreditar que servirá de algo... - Juniper fez expressão de resignação. Se havia nela nervosismo, Pitt não o percebeu, e esquadrinhara seu doce rosto em busca de algo mais que tristeza e confusão pela lembrança.
Relatou-lhe exatamente o mesmo que a primeira vez: como se levantaram e tomaram o café da manhã; que Stafford passou algum tempo em seu estúdio com diversas cartas; a visita de Tamar Macaulay; as vozes levantadas, não iradas, mas veementes; a partida da atriz e, pouco depois, a do próprio Stafford depois de dizer que desejava falar de novo com os implicados no assassinato de Farrier"s Lane. Juniper não voltou a vê-lo até que retornou pela tarde, imerso em seus pensamentos, preocupado e parco em palavras.
Jantaram juntos, tomaram a mesma comida das mesmas fontes, depois mudaram sua indumentária por uma mais formal e foram ao teatro.
No entreato Stafford se desculpou e foi ao salãozinho de fumantes, para retornar ao camarote justo antes que se erguesse de novo o pano de fundo. O que ocorreu depois Pitt sabia tão bem como ela.
—Não acredita que devia ser alguém comprometido no assassinato de Farrier"s Lane, senhor Pitt? - aventurou Juniper franzindo o sobrecenho. - É repugnante acusar a alguém, mas neste caso parece inevitável. O pobre Samuel descobriu algo, não tenho idéia do que, e quando se deram conta, o mataram. Que outra possibilidade há?
—Tudo que averigüei indica que o veredicto foi absolutamente correto – afirmou o inspetor. - Pode ser que o caso se levasse com urgência, e não cabe dúvida de que suscitou emoções excessivas e nada agradáveis, mas o resultado segue sendo o mesmo.
Pela primeira vez percebeu um vislumbre de ansiedade nos escuros olhos de Juniper.
—Então tem que haver algo que Samuel descobriu, algo oculto. Depois de tudo -argüiu a mulher, demorou muitos anos em dar com isso. Nem sequer o tribunal de apelação foi capaz de fazê-lo, de modo que não pode ser simples. Não é de estranhar que você não o tenha averiguado em tão pouco tempo.
—Se tivesse estado certo a respeito, senhora Stafford, não o teria contado a alguém? - perguntou Pitt, olhando-a nos olhos. - Teve mais de uma ocasião. Viu o juiz Livesey a sós nesse dia, e, entretanto não lhe disse nada.
De novo as faces de Juniper adquiriram um tênue rubor.
—Falou disso com o senhor Pryce.
—Isso é o que afirma o senhor Pryce - indicou Pitt.
Ela respirou profundamente, vacilou e esteve a ponto de dizer algo, mas mudou de opinião. Olhou as mãos, no regaço, e logo ergueu a vista para o Pitt.
—Possivelmente o juiz Livesey mente. - Sua voz era rouca, e a cor da tez mais forte.
—Por que ia fazê-lo? - perguntou o inspetor, equânime.
—Porque se depois de tudo o tribunal de apelação se equivocou, sua reputação estaria em perigo. - Juniper falava agora com urgência, as palavras se atropelavam como se a língua não a obedecesse. - Foi um caso muito infame. Ele obteve muito prestígio pela forma em que o levou, a dignidade e a segurança de sua atuação. As pessoas se sentiam mais seguras com sua presença na magistratura. me perdoe, inspetor, mas você não entende o que significa para um juiz do tribunal de apelação retratar-se de seu veredicto. Estaria admitindo que se equivocara, que não descobriu todos os fatos do caso; ou pior ainda, que sua avaliação dos mesmos foi incorreta, e que consentiu inconscientemente em uma terrível injustiça. Duvido que houvesse alguma censura oficial, mas não é isso o que importa. É a vergonha pública, a perda de toda confiança nele o que resultaria espantoso. Suas sentenças nunca voltariam a ser as mesmas; nem sequer os casos passados teriam o peso costumeiro.
—Isso também se poderia aplicar ao juiz Stafford, se o veredicto fosse revogado por algum motivo que pudessem ter conhecido na época - raciocinou Pitt - E se se tratasse de algo que não tivessem podido saber, não seriam culpados de modo algum.
Juniper ia argüir algo; a certeza, a paciência para explicar-lhe se refletiam em seu rosto. Entretanto a assaltou a confusão.
—Bom, suponho... suponho que sim. Mas por que ia mentir o senhor Pryce? Ele era o promotor. Seu dever era obter uma sentença condenatória se pudesse. Ele não tem a culpa se a defesa não foi adequada ou se a sentença foi errônea.
Pitt a observou com atenção.
—Sempre cabe a possibilidade de que não tivesse nada que ver com o assunto de Farrier"s Lane, senhora Stafford.
Ela piscou. A sombra do medo apareceu em seus olhos.
—Nesse caso ainda teria menos motivos para mentir - argumentou.
—A menos que o motivo fosse pessoal - Pitt detestava fazer isso. Era como um animal divertindo-se com sua presa. Apesar da gravidade do crime, não experimentava satisfação alguma na finalidade da caçada. Era incapaz de sentir a ira que lhe teria facilitado a tarefa - Estou informado, senhora Stafford, de que o senhor Pryce está profundamente apaixonado por você. - Viu desaparecer a cor de seu rosto, que ficou pálido, e captou o alarme em seus olhos. Se não existisse culpa nem temesse pelo Pryce (ou talvez por ela mesma), esse comentário a teria feito ruborizar. - Temo que seu motivo está muito claro - concluiu.
—Oh, não! - exclamou quase contra sua vontade, o corpo tenso, as mãos crispadas no regaço. - Quero dizer... que... - Mordeu o lábio. - Seria absurdo negar agora que o senhor Pryce e eu sentimos - Olhou Pitt com intensidade, tentando calcular o que sabia, o que tão só estava adivinhando. - Que sentimos um afeto mútuo, mas...
O inspetor esperou a que negasse que tinham tido uma aventura. Observou a luta em seu semblante, o crescente medo, o intento de sopesar o que ele acreditaria e logo a derrota.
—Confesso que desejei ser livre para me casar com o senhor Pryce, e ele me deu motivos para supor que sente o mesmo. - Juniper respirou fundo. - Mas é um homem honesto. Jamais teria recorrido a semelhante... a semelhante iniqüidade, a...matar meu marido. - Elevou a voz, desesperada, para acrescentar. - Acredite-me, senhor Pitt, amávamo-nos, aceitamos que era impossível que chegasse a ser algo mais que uns poucos momentos roubados, algo que possivelmente você desaprove. - Meneou a cabeça com energia. - Pode ser que quase todo mundo o desaprove, mas não é um crime como o assassinato; é um infortúnio que aflige a muitos de nós. Não sou a única mulher de Londres que achou o verdadeiro amor junto a um homem que não é seu marido.
—Naturalmente que não, senhora Stafford, mas tampouco seria a única mulher protagonista de um crime passional, se é que foi isso.
Juniper se inclinou para ele com urgência, demandando sua atenção.
—Não é isso! Adolphus… o senhor Pryce... não... ele nunca...
—Deixaria se levar por suas paixões até o ponto de recorrer à violência para estar com a mulher amada. - Pitt terminou a frase por ela-. Como pode estar certa disso?
—Conheço-o. - Juniper afastou o olhar - Soa absurdo, não é certo? Dei-me conta antes que o diga.
—Absurdo não - corrigiu Pitt com presteza - Só muito comum. Todos acreditam na inocência de quem nos importa, e a maioria de nós acredita que conhece bem às pessoas. - Sorriu consciente de que falava por si mesmo assim como por ela. - Suponho que parte de apaixonar-se tem que ver com a sensação de que compreendemos, possivelmente de um modo especial. Aí radica em grande medida essa intimidade, a idéia de que achamos algo nobre e o percebemos como ninguém mais o faz.
—Parece achar as palavras com facilidade. - Juniper voltou a olhar as mãos, crispadas no regaço. - Entretanto, explicá-lo não o priva de verdade. Tenho certeza de que Adolphus não matou meu marido. Jamais me fará pensar o contrário.
—E presumo que ele está igualmente seguro de que você não o fez – apontou Pitt.
Desta vez Juniper ergueu o olhar de repente e ficou olhando-o fixamente, como se a tivesse ferido.
—O que? O que disse? Você... Oh, Meu deus... disse ... tudo isto a ele? Fez ele pensar que eu...?
—Que você era culpada? - O inspetor terminou a frase por ela, - Ou que o tinha culpada a ele?
Ficou branca, os olhos lhe brilhavam com um medo repentino, febril. Era pelo Pryce ou por ela mesma?
—Com certeza não lhe preocupa que ele pudesse pensar semelhante coisa de você, não é certo? -acrescentou Pitt.
—Naturalmente que não - replicou ela, e nesse instante ambos souberam que não era verdade. Aterrorizava-lhe que Pryce pensasse que tinha sido ela; a humilhação e o horror eram claros.
Voltou a cabeça para ocultar seu rosto.
—Esteve com o senhor Pryce? - perguntou de novo controlando apenas a voz.
—Ainda não - respondeu o inspetor, - mas terei que fazê-lo.
—E tentará lhe convencer de que eu assassinei o meu marido, desejosa de estar livre para poder me casar com ele. - Tremia-lhe a voz-. É monstruoso! Como se atreve a ser tão... a me descrever como um ser... tão... insaciável... - Se interrompeu, com lágrimas de ira e medo nos olhos. Começou de novo-. Ele pensaria...
—Que você poderia havê-lo feito? - aventurou Pitt. - Com certeza não, se é que a conhece como aparentemente você o conhece.
—Não. - Com grande dificuldade Juniper recuperou o controle, ao menos da voz-. ia dizer que pensaria que eu era muito presunçosa, que dava muitas coisas por sentado. É o homem quem tem que falar de matrimônio, senhor Pitt, não a mulher! - Tinha as faces brancas, com dois pontos de cor nas maçãs do rosto.
—Devo entender que o senhor Pryce alguma vez lhe falou que matrimônio? - perguntou ele.
Juniper engoliu em seco.
—Como ia fazê-lo? Já sou casada... ao menos era. Naturalmente que não! -sentou-se muito erguida, e ele soube outra vez que estava mentindo. Deviam ter falado freqüentemente de matrimônio. Como não iriam fazer? Ela ergueu um tanto o queixo. - Não conseguirá que o culpe, senhor Pitt.
—Está você muito segura, senhora Stafford - disse ele com ar pensativo. - Admiro sua confiança. Entretanto, leva-me a um pensamento tremendamente desagradável.
Ela o olhava de cima a baixo, à espera.
—Se foi um de vocês, e está você tão segura de que não foi o senhor Pryce... -Não foi preciso que terminasse.
Juniper ficou sem fôlego. Trato de rir e se engasgou. Quando se recuperou, foi incapaz de negá-lo.
—Está você equivocado, senhor Pitt - disse em seu lugar. - Não foi nenhum de nós dois. Juro-lhe que não fui eu. É certo que às vezes desejei ser livre, mas o desejei, isso é tudo. Nunca teria feito mal ao Samuel.
Pitt não disse nada. Olhou-a no rosto, viu as finas pérolas de suor no lábio, a palidez de sua tez, quase exangue.
—Sentia-me... me sentia tão segura. Não, ainda não posso acreditar que Adolphus...
—Acaso os sentimentos do senhor Pryce não eram bastante fortes? - expôs Pitt com amabilidade. - Não o eram? Está você certa disso, senhora Stafford?
Observou as diversas expressões que afloravam ao rosto da mulher: medo, orgulho, negação, regozijo, medo de novo.
Ela baixou a vista a fim de evitar o olhar penetrante do inspetor. Resultava-lhe intolerável negar a paixão de Pryce; seria a negação do amor em si.
—Talvez não - concedeu com tom vacilante-. Não poderia suportar ser a culpada de provocar tal... - Levantou a cabeça bruscamente, os escuros olhos brilhantes e audazes. - Não tinha conhecimento. Deve me acreditar! Mesmo assim continuo sem acreditar de tudo. Terá que demonstrá-lo fora de toda dúvida ou continuarei dizendo que se equivoca. Só eu sei, ante Deus, que não fui eu.
Não havia prazer na vitória. Pitt ficou em pé.
—Obrigado, senhora Stafford. Sua franqueza me foi que grande ajuda.
—Senhor Pitt... - Juniper voltou a interromper-se. O que queria dizer era inútil. Era muito tarde para negar a culpa de Pryce. Já se tinha comprometido e não havia volta atrás -. O lacaio lhe indicará a saída - acrescentou - bom dia.
—Bom dia, senhora Stafford.
Sua entrevista com o Adolphus Pryce teve lugar no escritório deste e começou com bastante comodidade para Pitt, que se sentou na grande poltrona dos clientes. Pryce ficou em pé junto à janela, de costas à estante de livros, uma figura esbelta de elegância inata.
—Não sei que mais posso dizer, inspetor - assegurou dando ligeiramente de ombros-. Certamente sei que o ópio se vende em todo tipo de estabelecimentos, assim é de supor que se pode adquirir com certa facilidade. Eu nunca fiz uso dele, de modo que se trata de uma dedução de minha parte. Mas com certeza isso inclui todo mundo. Aos desafortunados membros do círculo de Aaron Godman tanto como a mim ou a qualquer outra pessoa a que o juiz Stafford visse aquele dia.
—Certamente - asseverou Pitt-. A pergunta era uma mera formalidade. Nunca pensei que pudesse reportar nada de valor.
Pryce sorriu e se afastou um tanto da janela, virou sua cadeira atrás da escrivaninha e se sentou cruzando as pernas com elegância.
—Assim o que posso lhe dizer, inspetor? Tudo o que sei do caso de Farrier"s Lane é do domínio público. achei na época que foi Aaron Godman, e não averigüei o que induziu ao juiz Stafford a duvidar disso. Não me disse nada concreto.
—Não o acha surpreendente senhor Pryce? - perguntou Pitt o mais ingenuamente que pôde. - Tendo em conta seu próprio papel no caso.
—Não se só albergava suspeitas - respondeu Pryce. Sua voz cultivada denotava sensatez. Se estava inquieto conseguia mascará-lo. Pitt teria jurado que o tema não lhe produzia nenhuma preocupação pessoal, só o interesse profissional a que estava obrigado. - Suponho que esperaria ter provas irrefutáveis antes de voltar a abrir um caso tão notório e pôr em tecido de julgamento um veredicto já ditado pelo tribunal inicial e, posteriormente, corroborado por cinco juízes do tribunal de apelação. -reclinou-se um tanto na cadeira. - Talvez você não seja consciente da tremenda exaltação reinante no momento. Foi muito desagradável. Numerosas reputações estavam em jogo, possivelmente inclusive a da própria justiça inglesa. Não, estou convencido de que o senhor Stafford teria que ter estado muito seguro de suas provas antes de comentar com a alguém. Inclusive na mais estrita confiança.
Pitt o observou com a maior atenção possível sem que o parecesse. A Juniper a tinha invadido o terror. Pryce parecia por completo seguro de si mesmo. Tratava-se simplesmente de um maior autocontrole, ou tinha a consciência limpa e nem sequer lhe passava pela cabeça que poderia ter sido ela quem envenenasse ao Stafford?
Pitt tratou de romper a calma.
—Compreendo seu raciocínio, senhor Pryce, mas como é lógico, também tenho que considerar outras opções. É muito possível que não tivesse nada que ver com o caso de Farrier"s Lane, mas sim se tratasse de um assunto pessoal.
—Suponho que é possível - admitiu Pryce com cautela, embora o tom de sua voz tivesse sofrido uma ligeira modificação. Não perguntou em que sentido. Não era tão fácil de desconcertar como Juniper.
—Lamento ter que ser tão direto, senhor Pryce - continuou Pitt - mas estou a par de sua relação com a senhora Stafford. Para muitos isso seria um motivo.
Pryce tomou ar e o soltou lentamente antes de falar. Descruzou as pernas.
—É muito possível, mas não para mim. É isso o que veio me perguntar?
—Entre outras coisas - reconheceu o inspetor dando um tanto de ombros. – Está me dizendo que não se sentiu tentado a fazê-lo? Seguro que não desejou que o juiz Stafford desaparecesse? Ou acaso julguei mal a profundidade de seus sentimentos pela senhora Stafford?
—Não. - Pryce pegou uma barrinha de lacre e começou a brincar com ela distraidamente, evitando o olhar de Pitt. - Não, é claro que não, mas nenhum sentimento, por profundo que seja, desculpa o assassinato.
—E o que o desculpa? - perguntou Pitt com amabilidade, mesmo que suas palavras fossem duras.
—Não tenho certeza de entendê-lo - disse Pryce cauteloso. A confiança em si mesmo se esfumou, e agora brincava nervosamente com o lacre e sua respiração era mais agitada.
Pitt aguardou, negando-se a lhe ajudar ou a dar por concluído o assunto.
—O amor - Pryce se revolveu um tanto na cadeira - explica muitas coisas, é claro, mas não desculpa nada.
—Estou de acordo, senhor Pryce. - Pitt seguia observando seu rosto. - Não o engano, a sedução, a traição de um amigo, o adultério...
—Pelo amor de Deus! - Pryce rompeu o lacre. Tinha o rosto branco. Acomodou- se no assento, rígido, procurando algo que dizer, depois se afundou de repente. - É... é certo - admitiu com voz baixa e algo rouca-. E nunca saberá o muito que o lamento. Fui extremamente imprudente, perdi o juízo e me deixei levar... - Fez uma pausa. Ergueu a vista de repente e olhou Pitt nos olhos. - Mas isso não é um assassinato.
O inspetor permaneceu em silencio sem deixar de lhe observar com atenção.
Pryce respirou lenta, profundamente, o rosto quase branco, embora começasse a recuperar parte de sua serenidade. O esforço tinha sido tremendo.
—Naturalmente me faço consciente de que deve considerar a possibilidade. A lógica o requer. Não obstante, asseguro-lhe que não tive nada que ver com sua morte. Nada absolutamente. Não... - Mordeu o lábio - Não sei como demonstrá-lo, mas é a verdade.
Pitt sorriu.
—Não esperava que fosse confessá-lo, senhor Pryce... não mais que a senhora Stafford.
O rosto de Pryce se crispou de novo, o corpo rígido na cadeira.
—Disse isto mesmo à senhora Stafford? Isso é... - Então se interrompeu, como se novos pensamentos ocupassem sua mente.
—Certamente - respondeu o inspetor com calma. - Me inclino a pensar que os sentimentos dela por você são muito profundos. Deve ter desejado freqüentemente ser livre.
—Desejar não é... - Pryce fechou os punhos. Respirou fundo. - É claro. Seria descortês de minha parte dizer que eu não o esperava, além de falso. Ambos desejávamos que ela fosse livre, mas pouco tem isso que ver cometendo um assassinato. Haverá de ter dito o mesmo. - Calou à espera da resposta de Pitt.
—A senhora Stafford o negou - concordou o inspetor. - E negou, claro está, que você tivesse algo que ver com isso.
Pryce voltou o rosto e emitiu um risinho, um som rouco, nervoso.
—Isto é ridículo, inspetor. Admito que a senhora Stafford e eu temos uma relação que era indecorosa... mas não... -acrescentou sem olhar Pitt - não um simples devaneio, não um mero... - Fez uma pausa e voltou a começar. - Se trata de um sentimento muito profundo. A tragédia de algumas pessoas reside em apaixonarem-se perdidamente por alguém quando é impossível que possam casar-se. Isso é o que nos aconteceu. - Suas palavras eram muito formais, e Pitt não sabia se Pryce acreditava nelas ou se estava dizendo o que esperava que fosse a verdade.
—Estou certo - admitiu Pitt, consciente de que estava pinçando na ferida – do contrário dificilmente teria arriscado sua reputação e sua honra por uma aventura.
Pryce ergueu a vista com brutalidade e o olhou.
—Existem alguns círculos sociais nos que algo assim se passa por cima - continuou Pitt, implacável - se as pessoas forem bastante discretas, mas duvido que a magistratura seja um deles. Não acredita que as esposas dos juízes, ao igual à do César, têm que estar livres de toda suspeita?
Pryce ficou em pé e se dirigiu para a janela, de costas para Pitt. Demorou alguns segundos em responder; quando falou, sua voz soou apagada.
—As esposas dos juízes são humanas, inspetor. Se seu conhecimento da alta burguesia fosse um pouco mais profundo que a capacidade superficial de citar algum pensamento de Shakespeare, não seria preciso que eu lhe dissesse isso. Pode ser que os códigos de conduta sejam ligeiramente diferentes de uma classe social a outra, mas as emoções são as mesmas.
—O que tenta me dizer, senhor Pryce? Que sua paixão pela senhora Stafford levou-o a verter ópio no cantil de Samuel Stafford?
Pryce se voltou.
—Não! Não... eu não o matei! Não lhe fiz nenhum dano nem contribuí a isso de modo algum. Não... não tenho conhecimento disso nem antes nem depois.
Pitt mantinha uma máscara de incredulidade.
Pryce engoliu em seco com dificuldade, como se se afogasse.
—Sou culpado de adultério, mas não de assassinato.
—Custa-me acreditar que desconheça quem o fez - afirmou Pitt, embora não fosse certo.
—Eu... eu... que espera que lhe diga? - Pryce ofegava entre palavra e palavra, como se tivesse que obrigar-se a falar-. Que Juniper… a senhora Stafford… o matou? Terá que esperar toda vida. Não vou dizê-lo.
Entretanto o havia dito, e a ironia se refletia em seus olhos. Sua mente tinha albergado tal pensamento e agora seus lábios o deixavam escapar.
Pitt se levantou.
—Obrigado, senhor Pryce. Foi muito franco. O agradeço.
Pryce estava visivelmente enojado consigo mesmo.
—Quer dizer que lhe permiti ver que minha defesa da senhora Stafford é fraca e que temo por ela? Continuo sem acreditar que tivesse algo que ver na morte de seu marido, e a defenderei até o final.
—Se teve algo que ver senhor Pryce, o final chegará logo - respondeu Pitt encaminhando-se para a porta. - Obrigado por seu tempo.
—Pitt!
Este se virou com expressão inquisitiva.
Pryce engoliu saliva e se umedeceu os lábios.
—É uma mulher muito emocional, mas realmente não... não. - interrompeu-se. Sua honradez lhe impedia de desculpá-la depois do que tinha confessado.
—Bom dia - se despediu Pitt com calma antes de sair ao frio corredor.
—Não, senhor, duvido-o - disse mais tarde a Micah Drummond.
Este estava frente ao fogo de seu escritório, os pés um pouco separados, as mãos às costas. Olhou ao Pitt com o sobrecenho franzido.
—Por que não? Por que não agora mais que antes?
Pitt estava ajeitado na melhor poltrona, as pernas estiradas comodamente.
—Porque quando a vi, para começar defendeu ao senhor Pryce – respondeu - Estava certa de que era impossível que o tivesse feito ele. Não acredito que nem sequer o expôs. Seus sentimentos não o permitiriam. Depois, quando lhe comentei que parecia pouco provável que Aaron Godman fora inocente e que existisse algum motivo pelo que algum comprometido no caso de Farrier"s Lane queria matar ao juiz, não pôde evitar por mais tempo pensar que fosse ela mesma ou Pryce. – Olhou Drummond. - Seu temor mais imediato foi que tivesse sido Pryce. Vi-o em seu rosto no momento em que lhe passou pela cabeça.
Drummond cravou a vista no tapete, pensativo.
—Não é o bastante inteligente para lhe fazer acreditar precisamente isso?
—Não acredito que nem a própria Tamar Macaulay pudesse atuar tão bem para ter o aspecto que ela tinha - disse Pitt com sinceridade. - Atuar é questão de gestos exagerados, movimentos das mãos e do corpo, tons de voz, inflexões; nem sequer o ator mais brilhante pode fazer que o sangue desapareça do rosto.
—Então talvez fosse Pryce - propôs Drummond, quase esperançado. - Talvez a impaciência o consumisse; não lhe bastasse com uma aventura, desejasse o matrimônio. -encolheu os ombros. - Ou lhe pusesse nervoso uma relação ilícita prolongada. Possivelmente ela se tornasse indiscreta ou lhe exigisse mais cuidados.
—De modo que Pryce recorreu ao assassinato? - inquiriu Pitt com certo sarcasmo. - Pryce não me parece um homem histérico. Imprudente em suas paixões, irrefreável, egoísta, capaz de permitir que a obsessão por uma mulher destrua seu sentido da moralidade, não cabe dúvida; mas não até o ponto de jogar tudo pela amurada para não ganhar nada. Conhece a jurisprudência muito bem para imaginar que se sairia com a sua.
—por que não? - interrompeu-o Drummond. - Tão grande é a distância que separa o adultério e a traição a um homem que confiava nele, que era seu amigo, do assassinato do tal homem?
—Sim, acredito nisso - respondeu Pitt inclinando-se. - Além disso, Pryce é advogado. O adultério é um pecado, mas não um delito. É possível que a sociedade lhe volte as costas por um tempo se for muito descarado. Por um assassinato, enforcam-no. Pryce o viu muito freqüentemente para passar isso por alto.
Drummond afundou as mãos nos bolsos e não disse nada. Sua mente não estava tão concentrada nisso como a de Pitt, e este sabia. Tinha ido a ele porque era seu dever e necessitava o consentimento de Drummond para indagar no caso de Farrier"s Lane.
—A isso terá que acrescentar – continuou - que quando fui vê-lo e mencionei que ele era o suspeito mais claro, assustou-se e desviou minha atenção para a senhora Stafford.
Pela primeira vez a expressão de Drummond delatou uma profunda emoção. Desenhou uma careta de repugnância e a dor lhe inundou os olhos.
—Que espetáculo mais trágico - disse com voz baixa. - Duas pessoas apaixonadas tentando evitar a suspeita mediante o expediente de fazê-la recair sobre os ombros do outro. Isso demonstra que seu suposto amor não era mais que um capricho, que nasce depressa e morre logo que aparece o interesse próprio. Você demonstrou que era desejo, luxúria. - Contemplou o fogo. - Não demonstrou você que não fosse bastante forte para provocar um assassinato. Como resposta basta o instinto de conservação. Mais de um criminoso trairá a seus cúmplices para salvar-se.
—Não é isso o que eu disse - esclareceu Pitt com certa brutalidade. O fato de que a mente de Drummond carecesse de sua habitual acuidade lhe dificultava as coisas. - A princípio Pryce estava seguro de que não pôde ter sido a senhora Stafford, depois se deu conta de que poderia ter sido ela. Temia por si mesmo, não cabe dúvida, mas pela primeira vez temia por ela, não porque a culpassem erroneamente, mas sim porque, com efeito, tivesse podido fazê-lo.
—Tem certeza? - Drummond baixou as sobrancelhas. - Parece insinuar que em realidade nenhum dos dois o fez. É isso o que quer dizer?
—Sim. - Pitt controlava com muita dificuldade sua impaciência. - São culpados de egoísmo, de confundir obsessão com amor e enganar-se pensando que este tudo desculpa, quando não desculpa nada. O desejo incontrolado é compreensível, mas não há nada nobre nele. É egoísta e, em último termo, destrutivo - inclinou-se ainda mais olhando Drummond fixamente. -. Nenhum deles se preocupava verdadeiramente pelo bem-estar do outro, do contrário nunca teriam permitido que a paixão ditasse sua conduta. - Olhou Drummond nos olhos. - Soa pomposo, não é certo? – admitiu. - Mas a justificação me zanga tanto! Se tivessem sido honrados não teriam causado tanta destruição nem acabariam ao final sem nada.
Drummond tinha o olhar perdido.
—Sinto muito. - Pitt se ergueu - Devo voltar para Farrier"s Lane.
—O que? - Drummond lhe lançou um olhar penetrante.
—Se não foram nem Juniper Stafford nem Pryce, então devo voltar para Farrier"s Lane - repetiu Pitt. - Foi alguém a quem Stafford viu esse dia, já que o cantil estava limpo quando Livesey e seu companheiro de mesa beberam dela. O qual nos deixa só aos implicados no caso.
—Mas já analisamos isso - argüiu Drummond. - Tudo o que investigamos continua indicando que Godman era culpado e, se o era, por que ia alguém matar ao Stafford porque queria reabrir o caso? Além disso, não há provas de que pretendesse fazê-lo. Livesey disse que não tinha a menor intenção.
—Livesey disse que não tinha conhecimento de que fosse fazê-lo - corrigiu o inspetor. - Aceito que Livesey opine que o caso está fechado, mas isso não significa que Stafford não encontrasse nada esse dia. Bem poderia ter decidido guardar para si até que tivesse provas.
—Do que? - perguntou Drummond exasperado - De que não foi Godman quem matou Blaine? Quem, pelo amor de Deus? Fielding? Não há provas. Não as houve em seu momento, e o que acredita que poderia achar agora alguém, e menos ainda Stafford?
—Não sei - admitiu Pitt - mas quero voltar a investigar todo o caso. Tenho que fazê-lo para averiguar quem matou Stafford.
Drummond suspirou.
—Então suponho que será melhor que o faça.
—Com seu consentimento? Lambert não gostará.
—Naturalmente que não. Gostaria você?
—Não. Mas uma vez que me perguntasse se me equivoquei, teria que sabê-lo.
—Ah, sim - disse Drummond com ironia. Afastou-se do fogo e se dirigiu à escrivaninha. - Sim, é claro que com meu consentimento. Não obstante, terá que ser diplomático se espera obter algo. Lambert não é o único a quem não vai gostar. Está ofendendo a muitas pessoas. O subcomissário me esteve importunando para que resolvamos o assassinato de Stafford o antes possível, e sem remexer no caso de Farrier"s Lane, intranqüilizar a população e questionar o veredicto original. Já há muitas pessoas tratando de provocar mal-estar tal como está. Não devemos lhes dar argumentos para que continuem minando a jurisprudência. Os assassinatos do Whitechapel fizeram muito dano à polícia, já sabe.
—Sim, sei - concordou Pitt. Conhecia de sobra as demissões que dito assunto tinha provocado e as questões suscitadas no Parlamento, o ressentimento popular contra um policial a quem se pagava com os impostos. Continuava havendo muitas pessoas, algumas com notável influencia, que achavam que um corpo de polícia era má idéia e com gosto teriam voltado para os oficiais e aos detetives do Bow Street.5
—E o ministro do Interior também a tomou conosco - continuou Drummond, olhando Pitt e mordendo o lábio - Não quer um escândalo.
Pitt pensou no Círculo Interior, mas não disse nada. Drummond era tão impotente como ele para lutar contra isso. Poderiam adivinhar quem formava parte dele; não saberiam a menos que se pedissem favores, e então seria muito tarde.
—Pelo amor de Deus, tome cuidado, Pitt - urgiu Drummond. - Assegure-se de que está certo.
—Sim, senhor - respondeu Pitt obediente, e ficou em pé. - Obrigado.
Pitt viu Lambert na primeira hora da manhã, quando este ainda parecia algo sonolento e tudo menos agradado com a visita.
—Não posso lhe dizer nada mais - assegurou antes que Pitt perguntasse algo.
—Suponho que se soubesse algo me teria dito na ocasião - respondeu o inspetor. Esperava parecer despreocupado, não condescendente, mas lhe passou pela cabeça se acaso Lambert não seria também membro do Círculo Interior. Não obstante, odiava revisar o trabalho de outro homem como se esperasse achar nele um engano de grande magnitude, embora sentisse que não tinha alternativa. Contemplou o rosto estragado, zangado de Lambert. Em seu lugar o teria levado a mal, mas, como havia dito a Drummond, também teria querido saber a verdade. A incerteza teria sido pior, jazer acordado na cama dando voltas uma e outra vez na cabeça até que cada possível engano lhe parecesse muito real e a culpa pusesse tudo a perder, desaparecesse a confiança, todas as demais decisões parecessem errôneas.
Voltou a olhar Lambert, incômodo em sua cadeira.
—Acaso não precisa sabê-lo? - perguntou Pitt com franqueza.
—Já sei. - Lambert fugiu seu olhar. - As provas foram concludentes. Agora mesmo tenho entre mãos muitos casos para investigar casos passados que estão fechados. - Elevou a vista, com a culpa e a ira escritas no rosto - Nos ocupamos dele com certa urgência, admito-o. Não vou dizer que todas as decisões fossem as que eu tomaria se tivesse que voltar a fazê-lo, com mais tempo para pensar, sem ninguém me acossando dia e noite a fim de que efetuasse uma detenção. Mas também é muito possível que você levasse alguns de seus casos de forma diferente se tivesse uma segunda oportunidade. Começando pelo caso do Highgate.
—É certo - concedeu Pitt com calma, recordando a segunda morte com tristeza insalubre - Entretanto, tenho a intenção de voltar sobre o caso de Farrier"s Lane. Não quero fazê-lo sem você, mas o farei se me obrigar. - Cravou a vista nos olhos penalizados de Lambert - Se estiver seguro de que procedeu com correção no essencial, tudo o que farei é demonstrá-lo. - inclinou-se - Pelo amor de Deus, não pretendo achar falhas em sua atuação. Só quero verificar os fatos. Sei o que é trabalhar sob pressão, com os jornais exigindo uma detenção em cada edição, a gente gritando nas ruas, o subcomissário pedindo informe diariamente e o ministro do Interior fazendo frente a pergunta na Câmara dos Comuns.
—Não como neste caso - disse Lambert com amargura, embora um tanto apaziguado.
—Poderia ver os expedientes e pedir ao Paterson que me ajude a localizar as testemunhas? - solicitou Pitt.
—Pode falar com o Paterson, mas não posso prescindir dele para que vá por aí com você. Dirá-lhe o que recorda. Obterá os nomes dos arquivos e terá que averiguar onde estão agora. Não lhe servirá de nada - acrescentou Lambert ao mesmo tempo em que se levantava - Nunca dará com os malfeitores que viram o Godman sair do beco. A metade deles provavelmente tenha morrido. O porteiro lhe dirá exatamente o mesmo, e o garoto, que é o único que o viu, não é de confiar absolutamente, isso se pode lhe jogar a luva. A florista, em troca, poderá lhe ser de ajuda, e farei chamar o Paterson.
—Obrigado - disse Pitt.
Lambert se dirigiu à porta e a abriu. Chamou um sargento e lhe indicou que fosse procurar os arquivos do caso de Farrier"s Lane, depois voltou para a sala e olhou Pitt com expressão carrancuda.
—Se achar algo eu gostaria que me dissesse.
—Naturalmente.
O sargento entrou sem que mediassem mais palavras. Pitt lhe agradeceu e levou os arquivos para lê-los na pequena sala que lhe ofereceu Lambert.
Tinha lido as declarações de Joshua Fielding e Tamar Macaulay, e estava a meio caminho com a do porteiro do teatro, quando entrou o sargento Paterson. Parecia nervoso, mas não havia rastro de ira nele nem dava a impressão de estar ofendido.
—Deseja ver-me, senhor?
—Sim, o rogo. - Pitt lhe indicou a cadeira frente a ele, e Paterson se sentou a contra gosto, o rosto inquisitivo.
—Volte a me contar tudo que recorda do caso de Farrier"s Lane - pediu Pitt. - Comece com o primeiro que ouviu a respeito.
Paterson emitiu um suave suspiro antes de começar.
—Entrei de serviço cedo. Um agente enviou uma mensagem para informar que o menino do ferreiro de Farrier"s Lane tinha encontrado um cadáver espantoso no pátio, de modo que me mandaram ali para ver do que se tratava. - Não afastava a vista do rosto de Pitt - Às vezes nos chegam essa classe de informe e logo resulta ser um bêbado ou alguém que há falecido de morte natural. Fui imediatamente e encontrei o agente Madsen na entrada de Farrier"s Lane, branco como o papel e com aspecto de ser ele quem estivesse preparado para seu enterro. - Sua voz era de uma monotonia tensa, como se tivesse relatado esses mesmos feitos várias vezes e seguisse odiando-os com igual intensidade - Estava amanhecendo. Conduziu-me até o pátio das cavalariças, junto à ferraria, pelo beco, e logo que entrei no pátio e dava a volta, ali estava. - Titubeou e logo seguiu falando - Parecido à porta das cavalariças como... peço me desculpe, senhor, como o Cristo dos crucifixos, com grandes pregos que lhe atravessavam as mãos e os pés e os pulsos. Suponho que para que agüentassem o peso. - O próprio Paterson estava muito pálido, e o suor molhava o lábio - Não o esquecerei enquanto viva. É a coisa mais terrível que vi em minha vida. Continuo sem entender como alguém pôde fazer algo assim a outro ser humano.
—Segundo o legista já estava morto quando o fizeram - disse Pitt com amabilidade.
Dois pontos rosados ardiam nas faces de Paterson.
—Insinua que isso melhora as coisas? - perguntou com voz apagada – Continua sendo uma blasfêmia!
Pitt pensou em todos os argumentos segundo os quais não se tratava de uma blasfêmia para um judeu e soube que não lhe serviriam de nada a esse jovem zangado, ainda ultrajado ao cabo de cinco anos pela violência física e mental do que tinha presenciado. Tanto ódio o tinha ferido de uma forma impossível de esquecer.
—Sei - concordou o inspetor. - Mas ao menos a dor foi menor. Para falar a verdade possivelmente morreu depressa, o que supõe certo consolo para quem o amava.
—Talvez. - Paterson tinha o rosto tenso; o corpo, rígido - Não vejo que isso mude o fato de que só um monstro faria algo assim. Se estiver tentando dizer que isso o desculpa em certo modo, acredito que se equivoca. - estremeceu ao reviver toda a ira e o medo - Se tivéssemos podido enforcá-lo duas vezes, o teríamos feito.
Pitt não disse nada.
—Como acredita que Godman, ou quem quer que o fizesse, conseguiu pregá-lo assim? - perguntou em seu lugar - Carregar um corpo morto é muito difícil, para não falar de levantá-lo e sustentá-lo enquanto lhe prega pelas mãos ou pulsos.
—Não tenho nem idéia. - Paterson enrugou a rosto enquanto olhava Pitt com uma mescla de perplexidade e aversão - Eu mesmo pensei nisso freqüentemente e me perguntei. Inclusive o perguntei a ele quando o apanhamos. Mas se limitou a dizer que não tinha sido ele. -Fez uma careta de desprezo-. Talvez os loucos tenham a força de dez homens, como se costuma dizer. O certo é que o fez. Talvez você acredite que alguém lhe ajudou. É isso o que está procurando, um cúmplice?
—Não sei - respondeu Pitt - me diga o que ocorreu depois? Kingsley Blaine era um homem bastante corpulento, não é assim?
—Sim, um metro oitenta, mais ou menos. Mais alto que eu. Eu não teria podido levantá-lo, um peso morto, e sustentá-lo.
—Entendo. O que fez a seguir?
Paterson continuava tenso, o rosto branco e crispado.
—Mandei o agente em busca do senhor Lambert. Sabia que era muito para me encarregar sozinho. A meia hora que estive esperando sua volta foi a mais longa de minha vida.
Pitt não duvidou. Sua imaginação lhe desenhou a figura do jovem recortada contra a claridade diurna, cada vez maior, sobre os paralelepípedos reluzentes, a respiração tênue no ar gelado, a fria forja que o aterrorizado moço não teria acendido e o horrível cadáver de Kingsley Blaine ainda crucificado na porta, as feridas de suas mãos vermelhas e úmidas.
Paterson devia estar vendo-o de novo. Tinha o rosto cadavérico, a boca torcida em um esforço por controlar-se.
—Continue - insistiu Pitt. - Chegou o senhor Lambert, e depois o legista, suponho.
—Sim, senhor.
—Tocou em algo o menino do ferreiro?
Em outras circunstâncias o rosto de Paterson teria sido cômico. Agora tão só acrescentava à tragédia o urgente absurdo, humano.
—Céu santo, não! O pobre diabo estava como louco, atemorizado. Para encerrá-lo no Bedlam, assim é como estava. Não haveria tocado o cadáver embora lhe tivesse posto a vida nisso.
Pitt sorriu.
—Não, suponho que não. Quem o desceu?
Paterson engoliu saliva. Estava tão branco que Pitt temia que fora a vomitar.
—Eu, senhor, com ajuda do legista. Os pregos estavam tão afundados que necessitamos uma alavanca para tirá-los. Usamos uma da forja. Então já tinha chegado o ferreiro. Parecia muito indisposto quando viu o que tinha ocorrido. Vendeu tudo e retornou ao povoado de onde tinha vindo. - estremeceu-. Não tornou a ser uma forja depois. Agora é uma casa de tijolos, embora o lugar continue se chamando Farrier"s Lane. Talvez daqui a uns anos passe a ser Brick Lane.
Pitt detestava voltar a abordar o tema que claramente seu interlocutor preferia esquecer, mas não tinha escolha.
—O que lhe disse então o legista, antes que procedesse ao exame em si? Com certeza você o perguntou.
—Sim, senhor. Disse que o homem, então não sabíamos seu nome, isso foi antes que... que olhássemos em seus bolsos. Sei que deveria havê-lo feito imediatamente, mas não fui capaz. - Seu semblante era desafiante e denotava arrependimento ao mesmo tempo. Pitt podia imaginar suas tumultuosas emoções. - Disse que o tinham matado antes de pregá-lo - continuou Paterson - Que as mãos não tinham sangrado muito, e tampouco os pés. Foi a ferida do flanco que o matou.
—Disse o que achava que a tinha causado? - interrompeu-o Pitt.
—Bom, sim, supunha-o - respondeu Paterson a contra gosto - mas depois disse que sua hipótese era errônea.
—Não importa, o que era o que supunha? O que disse?
—Disse que achava que provavelmente se tratasse de algum tipo de faca, uma muito longa e fina, como uma adaga, desses italianos de folha estreita. - Paterson meneou a cabeça - Mas depois, quando examinou bem, afirmou que provavelmente fora um desses pregos largos de ferrador, como os que usaram para pregá-lo à porta.
—Disse a que hora tinha morrido?
—A meia-noite ou ao redor de meia-noite. Estava morto algum tempo, estava frio. O legista estava seguro de que não tinha morrido nas últimas duas ou três horas. Então eram já seis e meia. Disse que devia ter ocorrido antes das duas da manhã. - O rosto de Paterson se tingiu de impaciência - Mas sabemos a hora, senhor, pelo testemunho do porteiro do teatro e pelos homens que rondavam por Farrier"s Lane, que viram Godman sair depois que o fez.
—Isso então não sabia - indicou Pitt.
—Não.
—O que puderam averiguar do cadáver?
—Que era um cavalheiro - respondeu Paterson, todo seu corpo rígido à medida que recordava a imagem - Estava claro por seu traje, por suas mãos; nunca tinha trabalhado duro. Suas roupas eram caras e tinha estado em algum tipo de festa, já que vestia de gala: fraque negro, camisa com séries, botões dourados, cachecol de seda, tudo isso. E uma capa. - Voltou a estremecer - primeiro que fizemos foi procurar gente que tivesse estado pela zona essa noite. Demos com alguns mendigos e bêbados que tinham adormecido na rua, no extremo sul de Farrier"s Lane, e começamos a interrogá-los. - relaxou um tanto ao passar do cadáver às circunstâncias - Tinham estado acordados a metade da noite ao redor de uma pequena fogueira no meio-fio, um braseiro para assar castanhas ou algo assim, bebendo provavelmente. Disseram que tinham visto esse cavalheiro entrar em Farrier"s Lane ao redor das doze e meia, um cavalheiro alto com uma cartola, cabelo loiro, não puderam vê-lo bem, mas algumas mechas lhe caíam no rosto. Ninguém o seguiu ao entrar. Perguntei-lhes isso em particular e se mostraram bastante seguros. De forma que quem quer que o fez lhe esperava dentro. - Paterson estremeceu convulsivamente.
—Continue - pediu Pitt. Podia ver a cena mentalmente, de igual modo que sabia que Paterson a via. Não queria que se espraiasse nesse ponto de novo, pois a emoção lhe paralisaria o pensamento. - Como descreveram o homem que viram sair de Farrier"s Lane? Tenho que supor que só era um?
—Oh, sim! - exclamou Paterson com veemência. - Não passou nenhum outro em uma hora ou mais. Deus sabe como devia sentir-se quando ouviu o que tinha ocorrido. Este passou furtivamente, disseram.
—Disseram isso? - perguntou Pitt, a quem a surpresa fez elevar a voz – Parece pouco habitual que esses homens utilizem uma palavra assim.
—Bom... - Paterson se ruborizou ligeiramente - Em realidade disseram que parecia assustado, como se preferisse que ninguém o visse. Chegou ao extremo do beco, saiu das sombras, permaneceu imóvel por um momento para ver se passava alguém, depois se ergueu e pôs-se a andar bastante depressa pela calçada, sem olhar a esquerda ou a direita.
—E onde estavam eles?
—Ao redor de um braseiro, meio na sarjeta.
—Sim, mas em que lado da rua? Passou Godman diante deles?
—Oh, não. Do outro lado, mas perto da entrada de Farrier"s Lane. Viram-no bastante bem - afirmou Paterson.
—Do outro lado da rua, passada a meia-noite, um grupo de vagabundos e bêbados. Há algum lampião perto desse extremo do beco?
O semblante do policial se tornou mais grave.
—A uns dezoito metros. Passou por debaixo dele. Justo por debaixo!
—Como o descreveram? - inquiriu Pitt - Alto, baixo, magro, corpulento? O que disseram? Como ia vestido?
—Bem... - Paterson fez uma careta - Disseram que parecia bastante corpulento, que ia vestido com um capote pesado, escuro, mas que talvez o tivesse desabotoado e isso o fizesse parecer um pouco mais volumoso. Não estavam tão perto e não lhe prestaram muita atenção. Por que iriam fazê-lo?
—E sobre o sangue? Seu informe menciona o sangue, e devia ter muito. Não se pode cometer um assassinato assim sem que haja sangue por toda parte.
Paterson desenhou uma careta de dor e olhou Pitt com ódio.
—Disseram que tinham visto uma mancha escura, mas pensaram que brigara ou que lhe sangrava o nariz.
—De forma que em realidade não houve descrição alguma - recalcou Pitt.
—Não - admitiu Paterson a contra gosto - Não minuciosa, mas sim bastante boa. Não é que saísse precisamente mais de um homem do beco durante o tempo que estiveram ali. E há uma luz no pátio. Nenhum homem inocente teria saído desse lugar e se teria afastado sem razão.
—Não - concedeu Pitt. Isso tem que ser certo. O que fizeram vocês a seguir?
—O legista nos disse quem era - prosseguiu Paterson - Encontrou seu nome em algumas coisas de seus bolsos, e também havia o bilhete da entrada do teatro para essa noite. De modo que sabíamos onde tinha estado até uma hora e assim antes que o matassem. Naturalmente fomos lá.
—A quem viram?
—Bem, as únicas pessoas que puderam nos dizer algo foram a ajudante de camarim da senhorita Macaulay, uma tal senhorita Primrose Walker, e o porteiro, agora não recordo seu nome.
—Alfred Wimbush - recordou Pitt - O que disseram?
—O porteiro explicou que o senhor Blaine assistia ao teatro com certa regularidade e que depois sempre ia aos camarins com a senhorita Macaulay - relatou Paterson - ficava para jantar bastante freqüentemente. Ela não disse nada, mas era evidente que se tinham carinho, para dizê-lo finamente. - Havia um tom zombador em sua voz, e a Pitt custou trabalho passá-lo por alto - Foi um duro golpe para ela - acrescentou Paterson com mais amabilidade - Tomou mal. Disse que o senhor Blaine tinha estado ali aquela noite e ficara com ela até tarde. Depois admitiu que lhe tinha dado um precioso colar que, segundo ele, tinha sido propriedade da família de sua esposa durante anos. E a senhorita Macaulay lhe havia dito que o colocaria no jantar, mas que depois ele teria que levá-lo já que não estava bem que ela ficasse com ele. Ao menos isso contou a senhorita Walker, mas não parece que ele o levou, já que não o tinha em cima quando o encontramos.
—De modo que Kingsley Blaine ficou até tarde com a senhorita Macaulay. Quando partiu?
—Por volta de meia-noite, ou muito pouco depois, digamos as doze e cinco - respondeu Paterson - Disse-nos isso Wimbush. Viu sair o senhor Blaine e depois fechou a porta. Disse que logo que pôs Blaine um pé na rua se aproximou um moço que vinha correndo do outro lado e lhe deu uma mensagem, algo de reunir-se com alguém em um clube para arrumar as coisas. Blaine pareceu entendê-lo, disse que assim o faria, subiu a gola do casaco e se dirigiu para Farrier"s Lane… ou nessa direção, ao norte, para o Soho.
—Viu o porteiro o moço que deu a mensagem? - perguntou Pitt.
Paterson deu levemente de ombros.
—Uma silhueta, não muito mais. Disse que pensava que era alguém bastante corpulento, mas logo mudou de opinião e não tinha certeza de se o era porque estava imerso na sombra. Não há dúvida de que o porteiro não lhe viu o rosto.
—Então, pelo que respeita a isso poderia haver-se tratado de Aaron Godman ou de quase qualquer outro, não? - observou o inspetor.
—De qualquer de uma estatura mais ou menos media - concordou Paterson - Mas se foi Godman, teria tomado cuidado de que não o vissem, não é certo? - Arqueou as sobrancelhas - Porque saberia que o porteiro o reconheceria e se lembraria.
—Certo. Você achou o moço. O que disse?
Paterson se mostrou menos seguro.
—Como lhe disse, não era uma testemunha muito boa. Só um garoto que mendigava, roubava e sobrevivia como podia. Odiava à polícia, como todos os de sua índole. - Soprou e se remexeu um tanto em seu assento - Disse que o homem que lhe deu a mensagem era velho, depois que era jovem. Disse que era grande, depois normal. Francamente, senhor, não acredito que soubesse. Só lhe importavam os seis pennies que o tipo lhe pagou. Disse que tinha nariz de judeu e que parecia muito alterado. Mas é normal que o estivesse. Estava pensando em matar um homem.
—Mostrou-se inseguro em todo momento ou trocou de opinião? - inquiriu Pitt olhando-o nos olhos.
Paterson hesitou.
—Bom... trocou de opinião mas, francamente, não acredito que soubesse. Não foi de nenhuma ajuda desde o começo. Era desses… e a metade das vezes não sabe se o que dizem é verdade ou mentira.
—Identificou Aaron Godman?
—Não, não exatamente. Disse que não tinha certeza. Mas os tipos como esse não costumam ajudar a polícia.
—O que os fez pensar no Godman? Por que não O''Neil ou Fielding?
—Oh, pensamos neles, bastante. - A voz de Paterson era brusca agora; seu semblante, irado - E admito que freqüentemente me passou pela cabeça que talvez o senhor Fielding soubesse mais do que dizia. Entretanto, demonstrou-se sem lugar a dúvidas que foi Godman quem o fez.
—Acaso não brigaram Blaine e O'Neil?
—Sim, e soubemos por alguns cavalheiros que ouviram a briga por acaso que foi bastante dura na ocasião, mas é a classe de discussões acaloradas que têm os jovens quando abusaram do champanha e acreditam que se pôs em dúvida sua honra. - Olhou Pitt com irritação, como se este estivesse tirando a importância do assunto. - Foi por uma aposta e só havia em jogo umas quantas libras, algo que poderia parecer muito a você e a mim, mas que não o era para os de sua classe. Só um louco mataria a seu amigo por umas libras. - Torceu a boca ao recordá-lo, e de novo a raiva e o horror superaram sua momentânea irritação com o Pitt - Rogo que me perdoe, senhor, mas você não viu o corpo. Um homem teria que estar louco de ódio para fazer isso a alguém. Isso não foi conseqüência de uma briga por uma aposta, quem quer que o fez albergava um ódio persistente, profundo, antes de chegar a essa noite.
Pitt não discutiu. A ferocidade na voz de Paterson e a lembrança doentia em seus olhos abafaram suas palavras antes que chegasse à pronunciá-las.
—O'Neil está casado com a viúva de Blaine, sabe não é? - disse em seu lugar.
—Sim - afirmou o outro entre dentes - E não acredite que não me perguntei se não o teria na mente antes que morresse Blaine - acrescentou com brusquidão. - Poderia ser. Mas isso não quer dizer que matasse Blaine. Não, senhor, Godman o fez. - Havia dureza em seu rosto, um brilho de asco em seus olhos azuis - Blaine estava brincando com sua irmã. Deixou-a grávida e prometeu casar-se com ela, coisa que não pretendia fazer - disse com amargura - E quando Godman se inteirou, perdeu a cabeça. Você sabe que os judeus não gostam que toquemos a suas mulheres mais do que nós gostamos que eles toquem às nossas. Acreditam que não somos tão bons como eles, que somos inferiores, se você quiser. Eles são os escolhidos do Senhor, nós não - ficou tenso e se remexeu um tanto, inquieto - Acreditam que Cristo era um blasfemo e o crucificaram. Receio que alguns ainda continuam nos odiando. E Godman era um deles. Quando averiguou o que tinha passado a sua irmã se tornou louco - estremeceu e soltou todo o ar de repente, sem deixar de olhar Pitt.
Este podia mascar a emoção que flutuava na sala. De repente se deu conta, como não o tinha feito antes, pelo que tinha sido a investigação inicial, o horror que tinha impregnado tudo, o medo à violência e à loucura, e logo a ira. Sentiu-o, posou nele como um frio doentio. Tinha estado tratando de entender com a mente. Deveria ter utilizado sua imaginação, seu instinto.
—Por que está tão certo de que foi Godman? - perguntou tão tranqüilo como pôde, embora percebesse o tremor de sua própria voz - Além do motivo.
—Viram-no - respondeu Paterson sem duvidar, os ombros retos, o queixo erguido. - Com segurança. Sem sombras, sem dúvida. Parou para comprar flores, bastardo arrogante! Uma espécie de celebração do que tinha feito. - Sua voz gotejava fúria - Permaneceu justo debaixo da luz. Seja como for, a mulher o conhecia. Tinha visto seu rosto em um pôster e o reconheceu imediatamente. No Soho Square, a menos de meio quilômetro de Farrier"s Lane e alguns minutos depois de que acontecesse. Godman mentiu. Disse que foram trinta minutos antes.
—Entendo. Você conseguiu dar com a florista, não é certo? Bom trabalho.
—Obrigado, senhor.
—O que estava fazendo O'Neil à hora do assassinato?
—Jogando em um clube a perto de dois quilômetros de distância.
—Testemunhas?
Paterson ergueu um ombro.
—Mais ou menos. Pode ser que saísse, mas o teriam visto voltar. Depois de um assassinato assim haveria sangue por toda parte. - De novo seu rosto refletia todo o horror e a ira que ainda sentia.
—E Fielding?
—Foi para casa. Não há provas, naturalmente. - deu de ombros - Mas não há motivo para suspeitar dele, já que não cabe dúvida de que Godman estava só. Os homens que se achavam à saída de Farrier"s Lane o juraram. Possivelmente Fielding soubesse ou imaginasse depois, mas sem lugar a dúvidas não se achava ali naquele momento.
—Obrigado. Está tudo muito claro.
—Isso é tudo, senhor?
—Acredito que sim.
Paterson ficou em pé.
—Ah, só uma coisa mais - se apressou a acrescentar o inspetor.
—Sim, senhor?
—Quando Godman compareceu no tribunal apresentava graves machucados, como se alguém lhe tivesse dado uma surra. Quem o fez?
Paterson ficou vermelho.
—Eu... é... bom, não era um detento fácil.
Pitt arqueou exageradamente as sobrancelhas.
—Opôs resistência?
O policial gaguejou e depois guardou silêncio.
—Sim - insistiu Pitt.
A dureza voltou a instalar-se no rosto do Paterson.
—Se tivesse visto o que fez ao Blaine, senhor, não perguntaria, porque você sentiria o mesmo.
—Entendo. Obrigado, Paterson. Isso é tudo.
—Sim, senhor. - Paterson se endireitou bruscamente, depois se virou e saiu.
Durante os dois dias seguintes Pitt seguiu paciente, os passos de Paterson. Deu com Primrose Walker, a ajudante de camarim de Tamar Macaulay, com grande facilidade. Ainda continuava na companhia e continuava desempenhando o mesmo trabalho. Repetiu o que havia dito a princípio, que Kingsley Blaine visitava a senhorita Macaulay com freqüência e que essa noite lhe tinha dado um colar muito caro. Descreveu-o com grande precisão: uma espiral de diamantes e turquesas. Explicou que a senhorita Macaulay o tinha aceitado a contra gosto e só para usá-lo essa noite, que depois o devolveria. Tinha visto a senhorita Walker devolvê-lo? Não, naturalmente que não. Ela não serviu o jantar com champanha. Não podia acrescentar mais.
As perguntas de Pitt eram uma mera formalidade. Este já tinha concluído que a ajudante de camarim repetiria o que havia dito antes e que respaldaria Tamar Macaulay e, portanto, a Aaron Godman. O único que lhe surpreendeu um tanto foi que, ao falar de Kingsley Blaine, seu rosto se suavizou e ficou claro que conservava dele uma grata lembrança. Nela não havia, nem sequer agora, rastro de antipatia nem sensação de que tivesse traído a sua senhora.
Wimbush, o porteiro do teatro, também repetiu seu testemunho original. Era um homem baixinho, lúgubre, de nariz largo.
—Não, não o vi de todo bem - respondeu quando Pitt lhe perguntou pelo homem do outro lado da rua que tinha enviado ao menino com a mensagem - Parecia um tipo corpulento na sombra da parede de frente.
—Recorda algo dele - inquiriu o inspetor - Feche os olhos e trate de evocar a cena. Repasse-a mentalmente, o modo exato em que ocorreu. Estava você na porta, assegurando-se de que saísse todo mundo para fechar. Saiu Kingsley Blaine. Foi o último?
—Oh, sim, senhor.
—E o que tem sobre a senhorita Macaulay?
—Saiu uns minutos antes - respondeu Wimbush - O senhor Blaine voltou para procurar suas luvas, tinha deixado na mesa. Pedi uma carruagem para a senhorita Macaulay e partiu antes que saísse o senhor Blaine. Dava ao senhor Blaine boa noite, e se dispunha a procurar uma carruagem quando este menino fraco, de uns onze ou doze anos, se aproxima e lhe puxa a manga. Ia dizer lhe que fosse embora quando disse que tinha uma mensagem de um tal senhor O'Neil, que dizia que sentia sobre a briga que tinham tido e que, depois de tudo, o senhor Blaine tinha razão. E que se o senhor Blaine se reunisse já mesmo com ele no clube Dauro"s, fariam as pazes. - Elevou seus miúdos ombros - Assim que o senhor Blaine disse que sim, que é claro que o faria, agradeceu ao menino e deu uns pennies, depois se dirigiu para Farrier"s Lane, pobre diabo. Essa foi a última vez que o vi com vida.
—E o homem que enviou a mensagem? Você acredita que era o senhor O''Neil?
Wimbush fez uma careta.
—Não posso dizer que sim. Tampouco posso dizer que fosse o senhor Godman. Era só uma silhueta na sombra, grande, com um casaco pesado. Mas lhe direi algo, ou era um janota ou vestia-se como tal.
—De modo que todo mundo supôs que era alguém que conhecia o senhor Blaine - raciocinou Pitt o mais cortesmente possível. Não deveria sentir-se decepcionado, mas estava.
—Pediu-me que lhe contasse o que recordava - replicou Wimbush, a sensibilidade ferida - Disse-lhe que era um janota. Cartola, cachecol de seda.
Lembro tê-lo visto a luz, todo branco ao redor do pescoço.
—Usava o senhor Godman cartola e cachecol de seda?
—Não, a menos que fosse a algum lugar especial. - Nos lábios do Wimbush se desenhou um sorriso de desprezo - Vinha aqui trabalhar. Nem sequer os cavalheiros vão trabalhar com cartola e cachecol de seda.
—E aquela noite? - inquiriu Pitt tentando que sua voz não delatasse urgência. Lambert já o teria perguntado, mesmo que Paterson não o tivesse feito.
—Não - respondeu o porteiro - Mas então dirão que os tirou de vestuário ou algo. Isso disseram na ocasião. Embora ninguém se incomodou em perguntar por que ia fazer isso. Só para chamar mais a atenção, diria eu. Os malandros não pensam como gente normal. - Pigarreou como se fosse cuspir, a seguir olhou Pitt nos olhos e trocou de idéia.
—Você viu sair o senhor Godman essa noite?
—Não. Tomara o tivesse visto. De todo modo suponho que o vi, mas não me fixei.
—Entendo. Obrigado.
Pitt anotou mentalmente que devia lembrar-se de perguntar se Godman levava cachecol quando o prenderam.
Voltou a falar com Tamar Macaulay, que repetiu o que já tinha contado. Ao inspetor lhe incomodou a crueldade de ter que lhe recordar de novo um ato que lhe tinha arrebatado de repente seu irmão e o homem que amava. No meio do pó dos bastidores, as nuas e frias tábuas, os enormes panos de fundo de foro que pendiam das polias sobre suas cabeças, os focos apagados, seu semblante moreno era impenetrável. Só a via luz amarelada de um spot de gás do corredor que conduzia aos camarins. Alguns teatros já tinham eletricidade, mas este não era um deles.
Observou seu ar enérgico, a concha de seus olhos, o perfeito equilíbrio do nariz, as faces e o queixo que outorgava essa força a seu rosto. Devia valer a pena esperar para receber sua ternura, sua risada, ganhá-las. Como tinha imaginado Kingsley Blaine que podia brincar com uma mulher assim e depois esperar afastar-se sem razão? Devia ser um iludido, um sonhador, um completo e irresponsável iludido. Ela seria capaz de sentir uma paixão bastante intensa para crucificar. Defendia a seu irmão com tanta ferocidade, e com tanto sacrifício, porque achava que Blaine o merecia? O teria feito ela mesma se tivesse tido a fortaleza física? Era a culpa o que a movia agora?
—Senhorita Macaulay - disse, rompendo o misterioso silêncio velado de sua ilha de irrealidade. Ao redor deles o teatro tinha vida com os sons dos preparativos – Se não foi o senhor Godman quem matou Kingsley Blaine, quem então?
Ela se voltou e o olhou com um repentino brilho de humor nos olhos. Na penumbra era exagerado e, estranhamente, sem malícia alguma.
—Não sei. Suponho que Devlin O'Neil.
—Por causa da briga por uma aposta? - Pitt deixou transparecer sua incredulidade.
—Por Kathleen Harrimore - corrigiu ela - Possivelmente a paixão surgisse do que sentia por ela e de saber que Kingsley a enganava comigo. - Uma sombra de remorso aflorou a seu rosto, uma dor inconfundível - E possivelmente lhe passasse pela cabeça que Kathleen seria a herdeira dos bens de Prosper Harrimore, que são muito consideráveis. E que, naturalmente, enquanto isso teria a vida assegurada, uma vida excelente. - voltou-se para olhá-lo nos olhos - Considera que é cruel de minha parte acusá-lo? Eu não acredito, você me perguntou quem poderia havê-lo feito. Não acredito que fosse Aaron. Nunca acreditarei.
Pitt não discutiu. Não havia mais que dizer. Agradeceu e partiu com o propósito de procurar o garoto, a única pessoa que tinha visto o rosto do assassino - embora na escuridão - e ouvido sua voz.
Entretanto, embora procurasse em todas as avenidas que lhe ocorreram e nos expedientes policiais, perguntou aos agentes da delegacia de polícia de Lambert e a seus próprios contatos nas ruas e nos bairros pobres, não teve êxito. Havia rumores, falsas pistas, informação que resultou não ser certa ou que chegou muito tarde. Ao parecer Joe Slater não desejava ser localizado.
Finalmente no terceiro dia, cinza e frio, com um vento cortante do este, deu com ele em Seven Dials, junto a um posto de botas usadas. Era largo e de cabelos loiros, o rosto circunspeto e receoso.
—Não me lembro - assegurou; os olhos entreabertos. - Já disse tudo o que sabia quando me perguntaram isso a outra vez. Agora me deixem em paz! Penduraram ao pobre diabo. Que mais querem? Não sei nada mais.
Isso foi a única coisa que Pitt pôde lhe tirar. Negou-se a voltar a falar do tema. Estava zangado, a amargura inundava seu rosto.
O inspetor subia pelas escadas da delegacia de polícia quando se encontrou com Lambert, que descia com o rosto branco, o olhar perdido, desconfiado. Deteve-se bruscamente, quase chocando contra Pitt.
—Paterson morreu - informou com voz apagada; as palavras se atropelavam - Enforcado! Alguém o enforcou. O juiz Livesey acaba de encontrá-lo.
Pitt seguiu Lambert até a carruagem e ficou sentado junto a ele, transtornado e horrorizado, enquanto abriam passagem com muita dificuldade entre o tráfego, cruzando a ponte de Battersea caminho de Sleaford Street e da casa em que se hospedava Paterson.
—Por quê? - perguntou Lambert dirigindo-se mais a si mesmo que a Pitt. Estava curvado, com o pescoço completamente subido, o rosto meio oculto, como se fizesse um vento glacial no interior do veículo - Por quê? Não tem sentido! Por que matar ao pobre Paterson? Por que agora?
Pitt não respondeu. A resposta que lhe ocorria era que Paterson tinha achado, ou recordado, provas que alteravam o veredicto do caso de Farrier"s Lane. É claro, havia a possibilidade de que fosse outra coisa, outro caso, ou inclusive algo pessoal, mas essa era só uma idéia que lhe rondava a cabeça, tão vaga que mal roçava seus pensamentos.
A carruagem se deteve bruscamente e nele penetrou uma gritaria que interrompeu os pensamentos e impossibilitou o diálogo.
Lambert se movia inquieto em seu assento. O atraso começava a lhe crispar os nervos. Inclinou-se e exigiu saber o que os retinha, mas ninguém o ouviu.
A carruagem virou. Um dos cavalos proferiu um gemido. De novo começaram a avançar a sacudidas.
Lambert lançou uma maldição.
Agora se moviam a um trote constante.
—Por que Paterson? - perguntou Lambert de novo - por que não eu? Eu estava encarregado do caso. Paterson só fazia o que lhe ordenava, pobre diabo. - Sua voz era áspera e seu rosto estava crispado por uma ira que não podia controlar e uma funda e dilaceradora pena. Olhava fixamente à frente apertando os punhos - por que agora, Pitt? Por que ao cabo de todos estes anos? O caso está fechado!
—Não acredito que esteja - respondeu Pitt com gravidade - Ao menos para o juiz Stafford ainda ficava algo por resolver.
—Godman era culpado - afirmou Lambert entre dentes - Era! Tudo apontava para ele. Todos o viram, o garoto a quem deu a mensagem, os homens da entrada de Farrier"s Lane e a florista. Tinha motivos, mais que qualquer um. E era judeu. Só um judeu teria feito isso! Foi Godman. O julgamento inicial o demonstrou e o tribunal de apelação o confirmou, por unanimidade!
Pitt guardou silêncio. Nada podia dizer que respondesse à verdadeira pergunta de Lambert ou pudesse aplacar suas tribulações.
Chegaram a Sleaford Street. Lambert abriu a portinhola de repente e quase se jogou sobre a calçada, deixando que Pitt pagasse o cocheiro. Pitt o alcançou nas escadas. A porta estava entreaberta e havia uma mulher branca como o papel no corredor, o cabelo recolhido em um desalinhado coque, as mangas arregaçadas.
—O que ocorreu? – exclamou - São vocês da polícia? O cavalheiro daí acima mandou Jackie procurar à polícia, mas não quis nos dizer o que acontecia. - Agarrou Lambert pela manga quando este passou a seu lado - Roubaram-no? Não fomos nós! Nunca roubamos a ninguém! Esta é uma casa decente!
—Onde está? - Lambert escapou da mulher - Em que quarto? Vamos?
Agora ela estava realmente assustada.
—O que aconteceu? - choramingou erguendo a voz. Em algum lugar atrás dela um menino se pôs a chorar.
—Não houve nenhum roubo - interveio Pitt com tranqüilidade, embora também ele começasse a sentir-se um pouco mal. Fazia só uns dias, tão pouco tempo, tinha estado sentado na delegacia de polícia falando com Paterson - Onde está o homem que mandou chamar à polícia?
—Vamos. - A mulher fez um movimento brusco com a cabeça - Número quatro no primeiro piso. O que ocorreu?
—Ainda não sabemos. - Pitt seguiu Lambert, que subia pelas escadas de dois em dois. Ao chegar em cima se voltou, lançou uma olhada às portas, esmurrou com irritação a número quatro e, imediatamente, fez virar o trinco. Logo que se abriu, irrompeu no quarto, com Pitt lhe pisando os calcanhares.
Era uma estadia ampla, antiga, como tantas outras habitações de solteiro, com um papel anódino, mobiliário pesado, todo isso um tanto opaco, mas imaculado. Não tinha muita personalidade. Tudo tinha sido escolhido por sua utilidade e, embora não carecia de conforto, tampouco refletia o gosto pessoal do homem que tinha vivido ali.
Ignatius Livesey se achava sentado na melhor poltrona. Estava muito pálido; seus olhos, sombrios e um tanto vácuos pela impressão. Quando ficou em pé, esteve a ponto de perder o equilíbrio. Por um momento lhe tremeram as pernas e teve que apoiar-se duas vezes no assento para não cair.
—Me alegro de que tenham vindo cavalheiros. - Sua voz soava rouca – Me envergonha dizer que permanecer aqui só não me resultou nada fácil. Está no dormitório, onde o encontrei. - Respirou fundo - Além de me assegurar de que está morto, um fato do que não cabe nenhuma dúvida, não toquei nada.
Lambert o olhou por um breve instante, depois se dirigiu para a porta do dormitório e a abriu. Deteve-se abafando um grito involuntário.
Pitt se aproximou com ar resoluto. Paterson estava pendurado do gancho que devia sustentar o pequeno e feio lustre que agora jazia de lado no chão. Pendia de uma corda, uma corda normal e comum de uns quatro metros como a que usaria qualquer carreteiro, salvo que em um dos extremos havia um nó corrediço. Seu corpo estava rígido; seu rosto, quando Pitt se adiantou para vê-lo, violáceo; os olhos, exagerados; a língua, torcida, aparecia entre os lábios abertos.
Lambert permanecia imóvel, cambaleando ligeiramente como se fosse desmaiar.
Pitt o pegou pelo braço e teve que puxá-lo para obrigá-lo a sair do quarto.
—Venha - lhe indicou com severidade - Não há nada que possa fazer por ele. Senhor Livesey!
De repente este percebeu que podia ser de ajuda e avançou para eles, tomou Lambert pelo outro braço e o conduziu até a poltrona.
—Sente-lhe disse com tom grave - Respire fundo. Um duro golpe para você, que tanto conhecia esse pobre homem. Sinto não trazer brandy comigo, e duvido que Paterson tivesse algo.
Lambert meneou a cabeça e abriu a boca como se quisesse falar, mas não foi capaz de pronunciar palavra.
Pitt os deixou ali e retornou ao dormitório. As mesmas perguntas que se amontoaram na mente de Lambert acudiam agora à sua, mas antes de ocupar-se delas devia analisar os fatos.
Tocou a mão de Paterson. O corpo balançou levemente. Estava frio; o braço, rígido. Estava morto há várias horas. Vestia calça e jaqueta de uniforme negros, lisos; este último estava rasgado, e a insígnia de sargento tinha sido arrancada. Ainda tinha postas as botas. Era quase meio-dia. Provavelmente era o que levava quando retornou a casa do último serviço, no dia anterior. Se tivesse adormecido, teria se levantado pela manhã e vestido para sair, o corpo ainda conservaria um pouco de calor e estaria flácido. Devia ter morrido em algum momento da tarde do dia anterior ou durante a noite. Tinha sido quase com toda segurança pela tarde. Por que iria ter vestido o uniforme toda a noite?
O gancho estava no centro do teto, a apenas três metros e meio de altura, de onde era de supor que estaria pendurada o lustre. Não havia nenhum móvel o suficientemente perto para que pudesse haver subido a ele. Tinha que ter sido um homem forte que levantou Paterson e depois o deixou cair dessa altura. Devia ter usado a corda a modo de polia, fazendo-a passar pelo gancho. Não havia forma humana de que Paterson tivesse podido fazê-lo só, até no caso de que tivesse tido motivo ou acreditado o ter.
Pitt deu uma olhada em redor por simples rotina para ver se havia alguma carta, embora soubesse que tinha que ser um assassinato. O suicídio era materialmente impossível.
Não havia nada. Era um dormitório simples, ordenado, sem personalidade. Uma cama com uma cabeceira de madeira ocupava o extremo oposto à porta. Uma janela de guilhotina dava a um estreito beco com alguns abrigos e o que parecia ser uma cavalariça.
Havia um armário à direita, e a menos de um metro e meio dele, uma cômoda. Três cadeiras, uma delas almofadada, as outras duas de assento duro e espaldar reto. Todas elas estavam de pé e contra a parede. Se Paterson as tivesse utilizado para subir em cima, teriam estado sob o lustre e, provavelmente, caídas.
Aproximou-se delas e examinou-as uma por uma. Não observou nenhuma marca. Mas se o homem tirara os sapatos, não teria por que havê-la.
Então ouviu os passos de Livesey e deu meia volta.
—averiguou algo? - perguntou Livesey em voz baixa.
—Não muito - respondeu Pitt erguendo-se e voltando a olhar o quarto. Sua impessoalidade lhe era ofensiva, como se Paterson tivesse vivido e morrido sem deixar rastro. Entretanto, se tivesse visto livros, fotografias, cartas, objetos artesanais escolhidos com intenção e esmero, possivelmente lhe teria ofendido mais. Em todo caso havia uma sensação de futilidade, de solidão, como se alguém escapuliu sem ser visto e sua perda fora percebida só quando já era muito tarde. Paterson não devia ter mais de trinta e dois ou trinta e três anos. Sua vida não tinha feito mais que começar. E agora não havia nada.
A pergunta de Lambert ressoou em sua cabeça. Por quê? Quem podia ter feito isso? E por que agora?
—Acredito que levava bastante tempo morto quando eu cheguei - sussurrou Livesey - Tomara tivesse vindo quando recebi sua nota ontem à noite. Poderia havê-lo salvado.
—Enviou-lhe uma mensagem? - inquiriu Pitt assombrado, e imediatamente se sentiu ridículo. Deveria ter perguntado a Livesey que fazia ali. Os juízes do tribunal de apelação não costumavam visitar agentes de polícia em seu domicílio - Sinto muito - se desculpou - ia perguntar lhe por que estava aqui.
—Mandou-me uma nota ontem. - A voz do magistrado soava ainda rouca, como se tivesse a boca seca - Dizia que tinha averiguado algo que o preocupava enormemente e me desejava contar isso - Rebuscou no bolso e tirou um pedaço de papel dobrado. Estendeu-o a Pitt.
O inspetor leu os garranchos, que inclusive com a pressa e a emoção deixavam entrever sua caligrafia.
Sua senhoria:
Perdoe-me por lhe escrever assim, mas averigüei algo terrível que tenho que lhe contar ou não poderei dormir tranqüilo uma noite mais. Sei que é você um homem muito ocupado, mas isto é mais importante que qualquer outra coisa, juro. Não me atrevo contar a ninguém mais.
Por favor, me diga quando posso falar com você sobre este assunto. Seu seguro servidor,
—Não sabe o que tanto o preocupava nem por que não se limitou a contar ao inspetor Lambert? - perguntou Pitt.
—Não, receio que não - respondeu Livesey baixando ainda mais a voz para que Lambert não o ouvisse da habitação contígua - Mas a insinuação implícita não é muito agradável. Devo dizer que o pobre Lambert parece muito afetado. Suponho que se trata de algum caso que Paterson se achava trabalhando atualmente e que resultou ser muito mais sério do que presumia a princípio. - Fez uma careta de dor, o rosto pesaroso, cansado e emocionado - Temo que possa tratar- se de algum caso de conduta improcedente ou corrupção. Nego-me a seguir lançando conjeturas e, provavelmente, cometer uma terrível injustiça com alguém.
—Por que escolheu a você, senhor Livesey? - inquiriu Pitt, que se esforçou por utilizar um tom tão cortês que despojasse às palavras de toda grosseria. - Conhecia-o?
—De ouvir sobre ele, suponho - respondeu Livesey com profundo pesar - Que eu saiba, nunca o tinha visto. É claro conhecia seu nome, já que li seu testemunho no julgamento de Aaron Godman. Deste modo ele podia saber que eu formava parte do tribunal de apelação. Mas não, pessoalmente não nos conhecíamos.
Pitt continuava desconcertado.
—Realmente isso não responde à pergunta.
—Estou de acordo - afirmou Livesey meneando a cabeça. - É assombroso. O único que me ocorre é que esse pobre homem descobriu, ou acreditou ter descoberto algo que não se atrevia a revelar a seus próprios superiores e escolheu alguém cujo nome conhecia e que tinha a posição e a integridade necessárias para ajudá-lo. Sinto-me terrivelmente culpado por não ter vindo ontem à noite, quando podia lhe haver salvado a vida.
Não havia nada que Pitt pudesse dizer para confortá-lo. Não podia negá-lo. Fazê-lo seria condescendente e nenhum dos dois acreditaria. Livesey não merecia isso.
O inspetor se dirigiu para o corpo, que continuava pendurado pela corda, contemplou o nó, a seguir aproximou uma cadeira a fim de ver se podia alcançar a altura suficiente para descer o corpo de uma vez e colocá-lo onde pudesse descansar decentemente até que acudisse o legista e o levasse.
Isso era algo que Lambert podia fazer, encarregar-se de que avisassem às pessoas adequadas. Era de supor que Livesey não o tinha feito. Voltou-se para ele.
—Precisa... necessita ajuda? - perguntou o juiz engolindo em seco e dando um passo adiante - Eu... - Limpou a voz - O que quer que faça?
—Ia perguntar lhe se tinha chamado o legista - respondeu Pitt.
—Não, não. Simplesmente mandei o menino procurar à polícia. Pensei que...
—Lambert pode fazê-lo - se apressou a dizer Pitt - Não consigo desfazer o nó, o peso o terá apertado. Necessitarei de uma faca.
—É... - Livesey começava a ter rugas no rosto, como se os anos pudessem mais que ele - irei ver se a patroa tem um. Terá que ficar com a corda, suponho. Como prova.
—Obrigado. Seria amável de pedir ao Lambert que faça vir ao legista?
—Sim, sim, é claro. - E como se fugisse do quarto e de sua espantosa carga, Livesey deu meia volta e saiu. Um instante depois, Pitt ouviu seu passo firme no corredor, depois nas escadas.
O inspetor voltou sobre seus passos e permaneceu no dormitório até que Livesey retornou com a faca.
O magistrado estava muito impressionado para tocar o cadáver. Estava pálido, o suor o molhava a testa e o lábio, e movia as mãos com estupidez, como se já não fosse capaz de coordená-las. Pitt levantou o corpo tanto quanto pôde para aliviar o peso. Livesey cortou a corda, demorou uns segundos em consegui-lo. Então o inspetor notou como lhe vinha em cima de repente todo o peso de Paterson.
Livesey proferiu uma imprecação, a voz abafada, e juntos deixaram o corpo no chão.
—Não há nada mais que fazer aqui - afirmou Pitt com voz baixa, movido pela compaixão por Livesey e temeroso de que não fosse capaz de suportar aquele horror por mais tempo - Vamos. Esperaremos ao legista na sala do lado.
Duas horas mais tarde Pitt já tinha interrogado à patroa, que agora alternava os gritos de indignação com o mutismo provocado pelo medo, e a outros inquilinos, sem ter tirado nada claro de nenhum deles. O legista tinha estado ali e partira, levando o corpo consigo na carruagem do necrotério; o cavalo deu pulos e soprou ao perceber o medo dos transeuntes. Livesey, o rosto ainda rosado, de repente tremendo de frio, desculpou-se e retirou-se. Pitt e Lambert estavam no patamar diante da porta, as chaves na fechadura.
Lambert sacudiu a cabeça.
—Não entendo - repetiu uma vez mais - Que demônios poderia querer dizer ao Livesey? Por que não a nós? Se não a mim, por que não a você? - Tirou as chaves da fechadura e as deu a Pitt. Desceram pelas escadas um atrás do outro.
A patroa seguia de pé no saguão, o rosto abatido e os olhos acesos.
—Um assassinato! - exclamou furiosa - Em minha própria casa! Sempre disse que nunca deveria ter admitido policiais. Nunca mais! Juro, nunca mais!
Lambert se voltou para ela, o rosto branco como o papel, os olhos cintilantes.
—Um jovem policial é assassinado em sua casa e você tem a desfaçatez de culpá-lo? Possivelmente se não tivesse vindo parar aqui, agora estaria vivo. Que tipo de casa é a sua?
—Como se atreve? - replicou ela, vermelha de indignação - por que...?
—Vamos. - Pitt tomou pelo braço Lambert, ainda encarado com a mulher, em atitude combativa, puxou-o para a porta. Lambert precisava descarregar em alguém a ira e a dor que aninhavam em seu interior, culpar a alguém ou a algo.
—Vamos - repetiu Pitt - Temos muito que fazer.
A contra gosto Lambert obedeceu-o. Fora o céu estava nublado e tinha começado a chover. Os transeuntes iam encolhidos, a gola subida, ocultando o rosto do intenso frio.
—O que? - perguntou Lambert entre dentes - Quem matou ao pobre Paterson? Nem sequer averiguamos quem assassinou ao juiz Stafford! Não sabemos por que! Sabe você, Pitt? - Saltou da calçada à sarjeta e logo voltou a subir - Tem você ao menos alguma idéia? E não me diga que Godman não era culpado, isso não tem nenhum sentido. Se não o era, por que ia alguém remexer agora no passado? Conseguiram sair-se com a sua. Foi o crime perfeito. Godman foi enforcado e o caso está fechado.
—Em que outro assunto estava trabalhando Paterson? -inquiriu Pitt, que ficou à altura de Lambert enquanto caminhavam pela Battersea Park Road para algum lugar onde pudessem tomar uma carruagem de volta à delegacia de polícia.
—Um caso de incêndio intencional. Um par de roubos - respondeu Lambert - Nada do outro mundo. Nada pelo qual alguém pudesse querer matá-lo. Estrangulá-lo em um beco escuro possivelmente, ou apunhalá-lo se fosse efetuar uma detenção, mas não ir a sua casa e pendurá-lo por uma corda. É uma loucura. É essa maldita senhorita Macaulay. Está decidida a vingar-se. - De repente se deteve e se voltou para o Pitt, com os olhos brilhantes e penalizados. - Está louca! Vai atrás de quem considera responsável pelo enforcamento de seu irmão!
—Não está sozinha - afirmou Pitt tratando de manter a calma – Nenhuma mulher por si só seria capaz de pendurar ao Paterson. Era um homem corpulento e gozava de boa saúde.
—Está bem - interrompeu Lambert com brusquidão. - A ajudaram. É uma mulher inteligente, bela, e tem essa classe de personalidade. Algum pobre diabo se apaixonou pela senhorita Macaulay, e ela conseguiu que se obcecasse de tal modo que a ajudou a fazê-lo. - Falava muito depressa e Pitt podia perceber a histeria que se apoderava de sua voz - Ou possivelmente ele o fizesse em seu lugar - continuou. - Encontre-o, Pitt. Demonstre-o! Paterson era um bom homem. Muito bom para morrer por alguém como ela. Faça-o! Demonstre-o! - escapou da mão estendida de Pitt e pôs-se a andar pela calçada molhada para a ponte da Battersea, onde as carruagens e os coches de aluguel rangiam acima e abaixo.
Pitt empreendeu a longa e penosa tarefa de investigar o assassinato do agente Paterson. No informe do legista se afirmava que a morte se produziu por estrangulamento provocado por enforcamento, exatamente o que parecia. Havia falecido em algum momento da tarde anterior; seus cálculos indicavam que tinha sido mais cedo que tarde.
Por simples hábito, Pitt comprovou onde tinha estado o juiz Livesey a essa hora, e não o surpreendeu averiguar que tinha assistido a um jantar organizado por vários de seus colegas e que tinha sido visto ao menos por uma vintena de pessoas durante todo o tempo. Não é que Pitt pensasse nem por um instante que ele pudesse ser o culpado, tratava-se de uma mera comprovação ordinária.
Sua mente estava muito mais ocupada pensando o que poderia ter descoberto Paterson que tão desesperadamente desejasse contar ao juiz. Tinha algo que ver com o caso de Farrier"s Lane, como tinha suposto instintivamente, ou se tratava de algo diferente?
Deixou que Lambert se ocupasse das provas materiais: as testemunhas que pudessem ter visto alguém entrar na pensão; a procedência da corda; os possíveis sinais deixados pelo intruso, um rastro, uma pedaço de tecido; qualquer indício de resistência.
Ele mesmo tratou de procurar um sentido, um motivo que justificasse um ato aparentemente tão estúpido. Se tinha que ver com um caso no que Paterson se encontrasse trabalhando naquele momento ou com algum aspecto de sua vida privada, então seria Lambert quem poderia lhe proporcionar os antecedentes para averiguá-lo. Em troca, se tinha que ver com o caso de Farrier"s Lane, só investigando este último conseguiria achar a resposta.
Tinha tratado Paterson de ficar em contato com alguém mais além do juiz Livesey? Havia a possibilidade de que o tivesse tentado também com algum dos outros magistrados? Era muito tarde para tentar com Stafford, já estava morto. Sadler tinha abandonado toda responsabilidade e não lhe teria proporcionado nenhuma resposta. Boothroyd estava muito ocupado com sua ostentosa filantropia, sua busca de amizades e influências, para ter participado de um assunto tão extremamente impopular como a reabertura do caso de Farrier"s Lane.
Isso deixava só ao juiz Oswyn, ou possivelmente aos letrados do caso. O procurador de Aaron Godman e o advogado que o defendeu no julgamento. Não havia dúvida de que o mais natural teria sido começar por eles, se em realidade havia algo novo, algo que apontasse a um veredicto diferente, ou a um cúmplice.
Por que Livesey? Acaso atribuía a ele uma integridade ou um poder que os outros não tinham?
Pitt começou por solicitar uma entrevista com o juiz Granville Oswyn em seu escritório e se viu gratamente surpreso quando a concederam quase imediatamente.
O escritório era espaçoso, caótico e desordenado, cheio de livros, alguns em caixas, outros empilhados nas mesas e aglomerados sobre tamboretes. Havia várias poltronas grandes de veludo, nenhuma das quais fazia jogo com nada, mas juntas formavam um todo confortável. Velhos pôsteres de teatro adornavam uma parede, e de outra pendiam caricaturas de políticos do Rowlandson. Oswyn era um homem de gostos católicos, interessantes. Havia uma formosa figura de bronze de um cão de caça na estante e um peso de papeis de cristal de rocha e jaspe na escrivaninha.
O juiz era um homem corpulento, cordial, com um traje nada favorecedor. Tinha esse tipo de rosto que, de algum modo, era familiar, embora Pitt soubesse perfeitamente que não se conheciam. Um sorriso lhe iluminou o semblante, como se de verdade se alegrasse de ver o inspetor.
—Meu querido amigo, entre, entre. - ficou em pé atrás da escrivaninha e indicou a melhor poltrona - Por favor, sente-se. Fique a vontade. O que posso fazer por você? Não tenho a menor ideia, mas me diga. - Voltou a acomodar-se em sua cadeira, ainda com o sorriso nos lábios.
Não valia a pena andar com rodeios, e não jogava com a vantagem da surpresa.
—Estou investigando a morte do juiz Stafford - começou Pitt.
O rosto do Oswyn se escureceu.
—Um assunto muito feio - disse franzindo o sobrecenho – Verdadeiramente feio, Não entendo qual pôde ser o motivo. Um homem honrado. Nunca pensei que pudesse ter um inimigo neste mundo. Ao que parece me enganei. - reclinou-se e cruzou as pernas com parcimônia - O que posso lhe dizer que não saiba já?
Pitt se acomodou ligeiramente.
—Estava voltando a estudar o caso de Farrier"s Lane, sabia?
O rosto do Oswyn perdeu sua cordialidade, e uma careta de inquietação ocupou seu lugar.
—Não. Tem certeza de que não se equivoca? Não havia nada que estudar. Revisamo-lo tudo com atenção durante a apelação. - Olhou Pitt com expressão preocupada, reclinou-se um pouco mais e apoiou os cotovelos nos braços da cadeira, juntando a ponta dos dedos-. O mais provável é que estivesse tratando de satisfazer a pobre senhorita Macaulay. Não estava disposta a deixar o assunto, sabe você? É triste. Era muito unida a seu irmão e simplesmente se negava a acreditar que tivesse sido ele. Mas não havia lugar a dúvidas. Absolutamente. Na época tudo foi correto.
—Quais foram os fundamentos da apelação? - perguntou Pitt, como se não tivesse nem a menor ideia.
—Oh, médicos. Uma formalidade, na verdade. Tinha que haver algo.
—E assim foi como a trataram? Como uma formalidade?
Oswyn estava horrorizado. Deixou cair as mãos imediatamente.
—Deus santo, não! Claro que não. Estava em jogo a vida de um homem, e ainda diria mais, os mesmos princípios da justiça britânica. Não só deve fazer-se, mas sim deve se ver que se faz, e para satisfação de todos. Do contrário, perde-se o respeito à justiça e já não funciona para ninguém. Oh, claro que estudamos o caso minuciosamente. Não havia nada duvidoso, nada absolutamente. - Entrecerrou os olhos e olhou Pitt com certo nervosismo.
—Comentou-lhe algo o juiz Stafford, ultimamente? - Pitt media o terreno procurando o momento de intercalar a pergunta desejada entre as obviedades.
Oswyn hesitou apenas um instante, um segundo de indecisão, mas ali estava, e Pitt o viu. Oswyn sorriu ao perceber a expressão do rosto de Pitt, que delatou que o tinha visto.
—Bom sim, algo me disse. Deu de ombros - Mas não foi nada sério, compreende-me?
—Não - disse Pitt pouco serviçal - Como pode um assunto assim não ser sério?
Oswyn já tinha tido tempo de refletir. Sua resposta denotava segurança.
—Era um aborrecimento! A pobre senhorita Macaulay seguia importunando-o tentando achar alguém que acreditasse e reabrisse o caso. E Stafford, pobre diabo, era o homem em quem ela estava concentrando seus esforços. - Deu de ombros e sorriu tratando de parecer relaxado - Só mencionou isso. Era uma situação muito embaraçosa. Estou certo de que compreende, não é verdade, inspetor? - Deixou escapar um risinho, em que não havia nervosismo nem rastro de humor.
—Se por acaso havia se produzido uma omissão ou um engano? - perguntou o inspetor.
—Não! - Oswyn se endireitou ao mesmo tempo em que golpeava a escrivaninha com a mão. Tinha o rosto um tanto rosado, o olhar sério - Não houve... - Meneou a cabeça - Não houve nenhum engano. O assunto era muito simples. - Olhou Pitt fixamente, com expressão grave-. A apelação se expôs apoiando-se nas provas médicas. Em princípio Yardley disse que achava que a ferida que matou ao Blaine tinha sido causada por algum tipo de adaga. Depois, ao examiná-lo, admitiu que podia ter sido um prego de ferrador especialmente largo.
—Os pregos dos ferradores têm uma longitude determinada - argumentou Pitt - Têm que entrar nos cascos dos cavalos. Têm uma longitude limitada, embora depois os cortem.
—Sim, é claro. - Oswyn rechaçou a idéia com impaciência - Está bem, então um prego normal. Esse homem é cirurgião, não ferreiro. Possivelmente só fora um pedaço de metal que havia pelo pátio. O caso é que não tinha que ser necessariamente uma adaga.
—Havia pregos desse tipo ou partes longas de metal pelo pátio? - perguntou Pitt. - Com certeza não teria sido difícil achar um pedaço de metal manchado de sangue.
Oswyn pareceu sobressaltar-se.
—Não tenho nem idéia. Pelo amor de Deus, estávamos no tribunal de apelação. Isso foi várias semanas depois do julgamento, que por sua vez se celebrou várias semanas depois do crime. A essas alturas qualquer um poderia ter passado pelo pátio, e provavelmente assim fosse.
—De modo que qualquer que fosse a arma jamais se achou?
—Suponho que não. Possivelmente fosse um dos pregos que utilizou para pregá-lo. - Fazendo um esforço Oswyn baixou o tom de voz - Mas fosse o que fosse inspetor, agora é muito tarde para que nada nem ninguém possa arrojar alguma luz sobre o assunto. É muito pouco provável que o pobre Stafford estivesse investigando-o, não é certo? - Isso era lógico, e sabia.
—Não obstante - argüiu Pitt - se Yardley trocou de opinião, então havia um componente de incerteza nas provas. Parece que bastou para levar o caso ante o tribunal de apelação.
—Um ato de desespero. - Oswyn torceu o gesto, e a tristeza apareceu em sua boca, ampla e expressiva - Um homem é capaz de fazer algo para evitar a corda, quem pode culpá-lo?
—Recorda do agente Paterson? - Pitt trocou repentinamente de tema.
—Agente Paterson? - Oswyn repetiu o nome, pensativo - Acredito que não, por quê?
—Foi o agente que levou a cabo grande parte da investigação.
—Ah sim. Não foi ele o que achou a prova definitiva? A florista que viu Godman no Soho Square justo depois do crime? Bom trabalho. O herói do momento, esse Paterson. Por quê?
—Foi assassinado na terça-feira de noite.
A surpresa e o pesar do Oswyn pareciam extremamente reais.
—Oh, Deus meu... quanto o sinto! É uma verdadeira lástima. Um jovem muito promissor. - Meneou a cabeça - Uma profissão perigosa, a de polícia. Embora suponha que você já sabe.
—Não foi em ato de serviço. Assassinaram-no em sua própria casa. Enforcaram-no, para ser exato.
—Deus santo! - Oswyn estava atônito. Seu rosto perdeu a cor, ficou branco, e toda a sensação de bem-estar e cordialidade que tinha formado parte de sua pessoa a princípio se desvaneceu. - Que horror! Como... quem o fez?
—Não temos nem idéia, no momento.
—Nem idéia! Mas certamente... - Se interrompeu de repente, confuso e profundamente contrariado. - Não acreditará que teve algo que ver com Kingsley Blaine? Quero dizer… - De maneira instintiva se levou a mão à garganta e puxou a gola da camisa até afrouxá-la um tanto - meu Deus, por quê?
—Isso é o que trato de determinar. - Pitt lhe observou atentamente - Interroguei Paterson com bastante vagar sobre a investigação original do caso. Pergunto-me se algo do que disse poderia lhe haver impulsionado a fazer algo, a dizer a alguém algo que provocasse seu assassinato.
Oswyn passou uma mão pela fronte ocultando momentaneamente o rosto.
—Insinua que Godman não era culpado e que a pessoa que na verdade cometeu o crime está assassinando a todo aquele que pareça ter intenção de reabrir o caso? Isso não tem sentido, inspetor. Atentaram contra você?
—Não - admitiu Pitt - Mas eu continuo tão confuso como a princípio. Não descobri prova alguma que indique que Godman não fosse culpado. De fato, quanto mais averiguo, mais me convenço de que o era.
Oswyn respirou fundo e se remexeu um tanto em seu assento, como se de repente se sentisse imensamente aliviado.
—Entendo. - Engoliu em seco. - Entendo. Um caso trágico e em extremo desagradável, mas resolvido na ocasião. - mordeu o lábio - servi à lei toda minha vida, inspetor. Não... é... não suportaria pensar que cometemos tal engano. Isso... poria em perigo muitas coisas que considero de incomensurável valor para o povo britânico. Para falar a verdade, coisas que constituem um modelo para o mundo. - Falava de um modo estranhamente empolado, como se não estivesse de todo convencido do que dizia-. Grande parte da legislação dos Estados Unidos da América está apoiada em nosso direito consuetudinário. Suponho que é consciente disso, sim, é claro que sim. A lei está acima de todos nós, é mais importante que qualquer indivíduo.
—Suponho que a lei só se pode medir por sua forma de tratar ao indivíduo, não é verdade, senhor Oswyn?
—Oh. Acho que essa afirmação é muito... muito cortante, muito simplista, se me permitir que o diga. Há em jogo questões muito profundas. - interrompeu-se de forma repentina, o rosto rosado - Mas isso não lhe servirá de nada em seu intento de averiguar quem assassinou ao senhor Stafford ou a esse desafortunado agente. No que posso lhe ajudar eu?
—Não tenho certeza de que possa -reconheceu Pitt - Quão último fez Paterson antes que o matassem foi enviar uma nota ao juiz Livesey para lhe informar de que tinha averiguado algo terrível e desejava contar-lhe o antes possível. Por desgraça... - Fez uma pausa. Oswyn havia tornado a perder a cor, parecia achar-se mau.
—Oh... é... -balbuciou o juiz - escreveu uma nota ao Livesey? O que... o que tinha averiguado? Dizia-o? Sabe você?
Pitt estava a ponto de dizer que não, mas logo mudou de opinião.
—A carta ia dirigida ao juiz Livesey. Foi ele quem o achou quando foi a sua casa no dia seguinte.
—Mas o que dizia a nota? - perguntou Oswyn com tom premente, inclinando-se sobre a escrivaninha e aproximando-se do inspetor - Livesey deve...
—Por isso vim vê-lo - disse Pitt em honra à verdade, sabendo de que uma mentira não passaria inadvertida - O caso de Farrier"s Lane…
—Não sei nada! Achava que Godman era culpado. Ainda acredito. - Agora o suor o molhava o lábio - Não posso dizer outra coisa. Não sei nada, e formular conjeturas seria extremamente irresponsável de minha parte. - Sua voz subia de tom e voltava a tingir-se de nervosismo - Um homem de minha posição não pode aventurar-se a fazer insinuações desatinadas a respeito de enganos judiciais. Tenho responsabilidades... Considero... -Respirou fundo. - Estou em dívida... tenho obrigações para com a lei a que sirvo. Tenho deveres. É claro, se tiver provas, isso seria diferente. -ficou olhando fixamente ao Pitt, os olhos muito abertos, aflitos, esperando um comentário.
—Não. Ainda não há provas.
—Ah. - Oswyn deixou escapar um prolongado suspiro. - Então, quando puder lhe ajudar, não duvide em voltar e fazer-me saber.
Era uma forma educada de despedi-lo, e o inspetor a aceitou como tal. De todo modo, já não podia averiguar nada mais de boca de Oswyn. Não tinha fatos, tão só uma profusão de impressões.
—Muito obrigado. - ficou em pé. - Sim, pode estar certo de que o farei. Logo que tenha averiguado exatamente o que dizia a nota.
—Sim... sim, é claro.
Até a manhã seguinte Pitt não conseguiu consertar uma entrevista com Ebenezer Moorgate, o procurador que levou o caso de Aaron Godman. Moorgate preferiu não encontrar-se com ele em seu escritório, que compartilhava com vários companheiros, mas em uma taverna a uns dois quilômetros e meio de distância. Era um local reduzido, abarrotado de simples empregados de escritório, pequenos comerciantes e ociosos. Havia cerveja derramada pelo chão, coberto de serra, e o aroma de verduras fervidas se mesclava com o da cerveja rançosa, a sujeira e o excesso de gente.
Moorgate parecia deslocado com seu elegante traje, sua impoluta camisa branca com gola de passarinha engomado e seu rosto deliciosamente barbeado. Tinha uma jarra de cerveja na mão, mas não a havia tocado.
—Chega tarde, inspetor Pitt - observou logo que este, depois de abrir caminho a empurrões entre a multidão, sentou-se à pequena mesa situada em um canto. - De qualquer modo não consigo compreender o objetivo desta reunião. O caso ao que se refere se encerrou faz muito tempo. Apelamos e perdemos. Voltar a abri-lo só pode causar mais dor, em vão.
—Por desgraça deixou que ser um caso antigo, senhor Moorgate. Morreram outras duas pessoas.
—Não o entendo - afirmou Moorgate com cautela, agarrando a jarra com mais força - Não pode ter que ver com o caso. Você perdoe, mas isso é um disparate.
—Primeiro o juiz Stafford, e agora o agente Paterson.
—Paterson? - Moorgate arregalou os olhos. - Não sabia. Pobre homem. Mas é uma coincidência. Trágica, mas uma coincidência. Tem que sê-lo.
—Escreveu ao juiz Livesey justo antes de ser assassinado para informá-lo de que tinha algo urgente para contar-lhe... urgente e terrível.
Moorgate engoliu e seco.
—Você não mencionou que o tinham assassinado.
Um homem se voltou na mesa contígua, o rosto cheio de curiosidade. Mais à frente, outro deixou de falar e ficou olhando.
Moorgate se umedeceu os lábios.
—Que insinua inspetor? Que alguém do caso de Farrier"s Lane está assassinando as pessoas? Por quê? Para vingar o Godman? Isso é ridículo. - Tinha elevado a voz e falava mais depressa, alheio ao rebuliço que estava provocando-. Pelo que você diz, parece que Paterson poderia ter descoberto quem matou Stafford. Ou achava havê-lo feito. É evidente, não acha? Poderia ser essa mulher, a senhorita Macaulay. A perda de seu irmão, todo esse escândalo e um final tão espantoso a transtornaram. - Olhava Pitt fixamente. - Vi mulheres se tornarem loucas por menos que isso. O envenenamento é um método feminino a maioria das vezes. Atreveria-me a pensar que você poderia prová-lo. - Seu tom denotava irritação e parecia um tanto acusador.
—É possível. - concordou Pitt - Entretanto, dado que Stafford parecia estar expondo-se reabrir o caso, não consigo ver que motivo poderia ter ela. Seria a primeira pessoa a que a senhorita Macaulay desejaria continuar vendo com vida.
—Tolices! - Moorgate desprezou a idéia com um movimento da mão que tinha livre. - Nada mais que tolices, meu querido amigo – repetiu. - Não há nenhum motivo para reabrir o caso. Estou muito familiarizado com ele, já sabe. Eu fui quem o levou na época. Se alguma vez vi um caso perdido, era este. Fizemos tudo que pudemos, claro está. É nossa obrigação. Mas nunca houve nenhuma possibilidade. - Meneou a cabeça veementemente - Estava claro que esse pobre diabo era culpado. - de repente recordou sua cerveja e bebeu um gole enquanto olhava em redor ao volumoso grupo de pessoas que o observavam agora - A senhorita Macaulay não pôde aceitá-lo. Costuma lhe passar à família. É natural, suponho. Provavelmente foi isso o que Stafford lhe disse esse dia, e não estranharia que em um arrebatamento de decepção e frustração o matasse. Consideraria-o uma espécie de traição. É uma mulher muito apaixonada, já sabe, muito exaltada. Suponho que assim são as atrizes... um tanto desequilibradas. Uma profissão pouco apropriada para uma mulher... mas suponho que nenhuma dama a escolheria, e aí tem o resultado.
—Ela não matou Paterson - assegurou Pitt com um irracional desagrado que o surpreendeu.
—Tem certeza? - Moorgate nem sequer se incomodou em ocultar seu ceticismo.
—Totalmente - afirmou o inspetor com azedume - O penduraram no teto, em sua própria casa. Nenhuma mulher poderia fazer tal coisa. Teve que ser um homem forte o que o fez. Assim como teve que ser um homem forte o que levantou Kingsley Blaine e o segurou enquanto lhe pregava os pulsos à porta das cavalariças.
Moorgate se estremeceu e deixou a jarra de cerveja na mesa como se de repente se tornasse azeda, não bebível. Agora todo mundo em seis metros ao redor estava calado, olhando.
—Não sei se o compreendo bem, inspetor. O que sugere? – perguntou Moorgate visivelmente zangado, com o rosto aceso.
—Os fatos o sugerem, senhor Moorgate não eu - respondeu Pitt com calma.
—Me sugerem uma disputa pessoal. - Moorgate engoliu em seco. - Tinha alguma aventura amorosa ou algo parecido? Possivelmente fosse algum marido ciumento.
—Quem o pendurou? - Pitt arqueou as sobrancelhas - É isso o que lhe diz sua experiência, senhor Moorgate?
—Eu não tenho nenhuma "experiência" - replicou Moorgate com frieza – Sou procurador, não advogado criminalista. E lhe rogo que baixe a voz. Está dando espetáculo! Os assassinatos são pouco comuns em meu escritório. E não tenho nem idéia do que fazem os maridos ou os amantes ciumentos quando descobrem que estão sendo enganados.
Coisas apaixonadas ou violentas - afirmou Pitt com um sorriso torcido, consciente da multidão que os rodeava. Não era sua voz que tinha despertado seu interesse - Disparar se tiverem uma arma – prosseguiu - Apunhalar se tiverem à mão uma faca, que não é difícil de achar. Se se desatar uma briga espontânea, então golpeiam, ou inclusive estrangulam. Mas ir à casa de um homem com uma corda, desprender o lustre (é de supor que antes que chegue ou enquanto está inconsciente ou amarre) pendurá-lo pelo pescoço e enforcá-lo...
—Pelo amor de Deus, homem! - exclamou Moorgate furioso - Não tem um mínimo de consideração?
—Requer um elevado grau de premeditação e desumano planejamento - concluiu o inspetor, implacável.
—Então foi por outro motivo - replicou Moorgate - Seja como for, não tem nada que ver com nenhum de meus casos e não posso ajudá-lo. - Deixou por fim na mesa a jarra de cerveja, que se derramou com grande desgosto seu - Recomendaria que estudasse atentamente a vida privada desse pobre desgraçado. Talvez tivesse dívidas. Os agiotas podem ficar violentos se os engana. A verdade é que não tenho nem idéia, mas é seu dever, não o meu, descobrir a verdade. Agora, se não tem nada mais que acrescentar, devo retornar a meu escritório. Breve haverá clientes me aguardando. - E sem preocupar-se de se Pitt tinha alguma pergunta mais, ficou em pé e, ao fazê-lo, golpeou a mesa e derramou ainda mais cerveja. Fez uma leve e forçada inclinação da cabeça e partiu.
Barton James, o advogado defensor, era um homem muito diferente, mais alto e enxuto, de um porte mais diferente e aprumado. Recebeu inspetor em seu escritório e se interessou cortesmente por sua saúde, depois do que o convidou a tomar assento.
—O que posso fazer por você, senhor Pitt? - perguntou com interesse – Tem algo que ver com a morte do pobre Samuel Stafford?
—Indiretamente, sim. - Pitt tinha decidido mostrar-se mais circunspeto esta vez, ao menos para começar.
—Seriamente? - James arqueou as sobrancelhas - No que posso ajudar? Conhecia-o, é claro, mas não muito. Era juiz do tribunal de apelação, passou algum tempo desde que presidia julgamentos. Faz quinze ou dezesseis anos que não levo um caso ante ele.
—Você recorreu um de seus casos mais célebres ante ele.
—Vários - concordou James - Isso não constitui uma relação. Não acredito que saiba nada absolutamente que tenha que ver com sua morte. Mas, por favor, não é preciso mais, me pergunte o que deseja. - reclinou-se sorrindo amavelmente. Sua atitude era segura; sua voz, excelente. A Pitt não custava imaginar dirigindo-se à sala, atraindo a atenção do jurado com a força de sua personalidade. Com que veemência tinha defendido Aaron Godman? Com que paixão ou convicção tinha intercedido em seu favor?
Pitt teve que fazer um esforço para que sua mente voltasse para o presente, à lenta formulação de suas perguntas.
—Obrigado, senhor James. Verá, não é só o assassinato do senhor Stafford o que estou investigando; parece haver outro relacionado com o assunto. - Pitt percebeu que James abria desmesuradamente os olhos - O do agente Paterson.
—Paterson? Não é esse o jovem que trabalhou no caso de Farrier"s Lane? - perguntou James; um diminuto músculo lhe batia as asas na pálpebra.
—Sim.
—Oh, Meu deus. Está certo de que guarda relação? O ofício de polícia pode ser muito perigoso, suponho que não é preciso que o diga. Não poderia ser uma coincidência? O caso de Farrier"s Lane se encerrou faz aproximadamente cinco anos. Bom, já sei que a senhorita Macaulay segue tentando reavivar o interesse por ele, mas temo que a sua é uma causa perdida. É tão só sua devoção por seu irmão o que a impulsiona. Não tem nenhuma possibilidade de êxito.
—Está completamente certo de que era culpado?
James se remexeu um tanto em seu assento.
—Oh, é claro, completamente seguro. Temo que não houve nenhuma dúvida.
—Isso pensou na época?
—Como diz?
—Isso pensou na época? - repetiu Pitt observando o rosto do James, o largo e aristocrático nariz, a boca ao bordo da comicidade, os prudentes olhos.
James adiantou o lábio inferior com expressão triste.
—Teria gostado de acreditá-lo inocente, claro está, mas tenho que confessar que à medida que avançava o caso me era cada vez mais difícil.
—Acredita que o veredicto foi correto?
—Assim é. E o mesmo teria acreditado você se tivesse estado ali, senhor Pitt.
—Entretanto apelou.
—Naturalmente. Era o que Godman e sua família queriam. É normal esgotar todos os recursos disponíveis quando vão enforcar a um homem, por muito escassas que sejam as probabilidades de êxito. Adverti-lhes que era muito pouco provável que admitissem a apelação. Não quis alimentar falsas esperanças; não obstante fiz tudo que pude, como é lógico. Como você sabe, foi desprezada.
—Os motivos eram insuficientes?
James deu de ombros.
—Ao que parece o legista, Humbert Yardley, um homem de total confiança, sem dúvida o conhecerá, mudou de opinião em relação à arma. Não é próprio dele fazer tal coisa. Provavelmente o horror de todo este assunto (foi um crime horripilante, como suponho que saberá) o fizesse perder temporariamente sua habitual serenidade. - reclinou-se de novo em seu assento, o gesto um tanto áspero - Foi uma atrocidade de dimensões extraordinárias, como já sabe. A esse homem não só assassinaram, além disso foi crucificado. Os jornais o anunciaram em primeira página. Suscitaram-se emoções muito profundas e violentas. Em alguns bairros houve distúrbios anti-semitas. Assaltaram-se e destroçaram casas de penhores. Os judeus foram agredidos nas ruas. Tudo foi extremamente desagradável. - Sorriu com amargura - Eu mesmo fui o alvo de numerosas injúrias por defendê-lo. Tive que viver a custosa e embaraçosa experiência de que me jogassem fruta podre e ovos ao passar pelo Covent Garden. Graças a Deus que não foi no Billingsgate!
Pitt reprimiu um sorriso. Tinha visitado o mercado de peixe em um dia de calor.
—Em algum momento acreditou que fosse inocente, senhor James?
—Presumi que era inocente. É meu dever. Que não é o mesmo. Mas o que eu acredite é irrelevante. - Olhou ao inspetor com gravidade - Fiz tudo o que pude por ele, e acredito que nenhum advogado do país teria obtido a absolvição. As provas eram esmagadoras. Foi visto menos de um quilômetro do lugar, à hora do crime e com total clareza por alguém que o conhecia de vista. Depois havia o testemunho do garoto que entregou ao Blaine a mensagem que o levou a Farrier"s Lane, e o dos malfeitores que o viram abandonar o beco coberto de sangue.
—Identificou-o o garoto? - perguntou Pitt imediatamente - Achava que não estava seguro.
James apertou os lábios em atitude pensativa.
—Sim... suponho que, estritamente, não o estava. E mais estritamente ainda, tampouco o estavam os malfeitores. E em realidade é possível que exagerassem com o do sangue. É difícil saber o que um homem vê em uma ocasião e o que a imaginação acrescenta depois, a posteriori. -Meneou a cabeça, sorrindo de novo - Entretanto, a florista o conhecia de vista e não teve nenhuma dúvida. Godman inclusive se deteve e falou com ela, o que demonstra um extraordinário sangue-frio ou uma arrogância vizinha à demência.
—E não tem você nenhuma dúvida de sua culpa - insistiu Pitt.
James franziu o sobrecenho.
—Fala como se você a tivesse. Descobriu algo que não estivesse a nosso alcance na ocasião?
Era uma curiosa escolha de palavras. James se tinha assegurado de proteger-se da insinuação de que poderia ter sido negligente. Com discrição, de maneira implícita mais que abertamente, estava-se defendendo.
—Não - respondeu o inspetor com prudência - Nada do que esteja seguro. Não obstante, parece inevitável concluir que Paterson talvez se expôs novamente sua investigação depois de que eu o interrogasse a respeito e que, ao fazê-lo, descobrisse algo ou achasse uma interpretação diferente do assunto. Na nota que enviou ao Livesey mencionava...
—A nota que enviou ao Livesey? - James estava assustado e subitamente alarmado, o corpo duro, a voz tensa - Ao juiz Ignatius Livesey?
—Sim... não o havia dito? - Pitt fingiu confusão que não sentia-. Rogo que me desculpe. Sim, antes que o assassinassem; por certo, foi enforcado, com uma corda, penduraram-no no gancho do lustre de seu quarto. - O rosto de James refletiu certa repugnância e uma crescente consternação - antes de ser assassinado - prosseguiu Pitt - enviou uma nota ao juiz Livesey para lhe dizer que tinha descoberto algo terrível que devia lhe contar o antes possível. Foi o pobre Livesey quem o achou na manhã seguinte. Por desgraça, não pôde ir vê-lo essa mesma noite.
James permaneceu em silêncio uns instantes, o rosto sério. Por fim falou:
—Não me havia dito isso. Agora as coisas tomam uma aparência muito diferente e inquietante. - Meneou ligeiramente a cabeça - Receio que não me ocorre nada que possa lhe ser de utilidade; para falar a verdade, nada nem remotamente relevante.
—Nem Paterson nem o juiz Stafford ficaram em contato com você para tratar deste assunto?
—Com toda certeza, Paterson não. Não voltei a falar com ele depois do julgamento. - James se remexeu um tanto em seu assento - Stafford veio ver-me faz algumas semanas. A senhorita Macaulay lhe tinha escrito várias vezes, assim como muitas outras pessoas, para tratar de despertar seu interesse pelo caso. Ainda espera lavar o sobrenome Godman, o que é de todo impossível, claro está, mas não está disposta a aceitá-lo. - Falava cada vez mais depressa - A senhorita Macaulay tinha avançado enormemente no assunto. Mas eu não me tomei a sério. Já estava a par de sua obsessão. Era de esperar que assediasse Stafford. Surpreende-me que lhe prestasse atenção, mas é uma mulher muito eloqüente e possui essa classe de atrativo que alguns homens não podem resistir.
—O que queria o juiz Stafford que fizesse você, senhor James? Perdoe que o pergunte, mas ele não me pode dizer isso e poderia me ajudar a averiguar quem o matou.
—Virtualmente o mesmo que me está pedindo você, inspetor. E lamento não poder ajudar a nenhum dos dois. Não sei nada que não soubesse, e dissesse, na época.
—É isso tudo? Tem certeza?
—Bom... - James seguia sentindo-se incômodo, mas não evitou a questão. - Me perguntou pelo Moorgate, o procurador que se encarregou do caso, por sua reputação e isso. - Parecia perturbado. - O pobre Moorgate decaiu bastante depois. Ignoro por que. Em todo caso continua sendo perfeitamente capaz, e naquele tempo era um excelente profissional.
—O senhor Moorgate, assim como você, acreditava Godman culpado - indicou Pitt.
O rosto de James se escureceu.
—Com as provas de que dispúnhamos, as quais continuam sendo indiscutíveis, não se podia extrair nenhuma outra conclusão razoável, senhor Pitt. Você mesmo não contribuiu nada até o momento que o refute. Não tenho nem idéia de quem matou ao Stafford ou ao Paterson, e admito que tudo indica que sua relação com o caso de Farrier"s Lane tem algo que ver, mas ignoro do que se trata. Acaso você sabe?
Era um desafio.
—Não - reconheceu o inspetor com tranqüilidade - Ainda não. - Jogou para trás a poltrona - Mas tenho a intenção de averiguá-lo. Paterson só tinha trinta e dois anos. Proponho-me descobrir quem o enforcou e por que. - ficou em pé.
James também se levantou, sempre educado. Estendeu-lhe a mão.
—Desejo-lhe muita sorte, senhor Pitt. Espero que tenha muito êxito. Bom dia.
—Só uma coisa mais. - O inspetor hesitou. - Deram em Godman uma grande surra enquanto esteve detido. Sabe como ocorreu?
Uma sombra de profundo desagrado apareceu no rosto do James.
—Disse que um policial lhe golpeou – respondeu - Não tenho nenhuma prova, mas acreditei nele.
—Entendo.
—Ah sim? -Era um desafio, não isento de ira - Não o mencionei na época porque não podia demonstrá-lo. Além disso, não teria feito mais que predispor ainda mais ao jurado a considerar que estava difamando às forças da ordem e, portanto, indiretamente, às pessoas em geral. Além disso, não era pertinente. - As faces de James se tingiram de vermelho. - Não teria mudado o veredicto.
—Sei - afirmou Pitt com sinceridade. - Só queria sabê-lo, por mim mesmo. Explica um tanto a atitude de Paterson.
—Foi Paterson? - quis saber James.
—Acredito que sim.
—Que desagradável! Suponho que você pensaria automaticamente na vingança, não é assim?
—Não por parte de Tamar Macaulay. Não pela forma em que assassinaram ao Paterson. Teve que ser um homem com muita força.
—Com ajuda de Fielding? Não? Bom, é uma possibilidade que deverá ter em conta. Obrigado por sua franqueza, inspetor Pitt. Bom dia.
—Bom dia, senhor James.
Pitt informou ao Micah Drummond, não porque esperasse algum comentário por sua parte, nem certamente ajuda alguma, mas sim porque era seu dever.
—O que você estime apropriado - disse Drummond distraído enquanto contemplava o tamborilar da chuva contra a janela - Está pondo-lhe travas Lambert?
—Não - respondeu Pitt com franqueza - Ao pobre diabo afetou muito a morte de Paterson.
—É terrível que matem a um de seus homens - observou Drummond, com os lábios apertados - É uma experiência a que você ainda não enfrentou. Se algum dia se der o caso, sentirá mais compaixão pelo Lambert, asseguro. - Mantinha a vista cravada no vidro molhado - Sentirá exatamente a mesma dor, as mesmas dúvidas, culpa inclusive. Repassará tudo o que disse ou fez procurando algum engano em suas ordens, algum descuido, algo que tivesse podido fazer de forma distinta para evitá-lo. Ficará deitado acordado na cama, atormentado, sentirá náuseas, até se perguntará se está capacitado para estar no comando.
—Eu não estou no comando - afirmou Pitt com um leve sorriso, não porque lhe preocupasse o fato em si, mas sim porque percebia o cansaço na voz de Drummond, conhecia a dor de Lambert.
—O que disse o legista? - perguntou Drummond - Enforcamento, o que parecia?
—Sim - respondeu o inspetor com cautela. Isso é tudo, simples enforcamento. Isso é o que o matou.
Drummond se voltou por fim para ele, carrancudo.
—O que quer dizer com "simples enforcamento. Isso basta para matar a qualquer um. Que mais esperava você?
—Veneno, estrangulamento, um golpe na cabeça...
—Para que, pelo amor de Deus? Não acredito que precise envenenar a um homem para depois enforcá-lo.
—Ficaria você de braços cruzados enquanto alguém lhe põe uma corda ao redor do pescoço, passa-a pelo gancho do lustre e iça-o? - perguntou Pitt.
No rosto do Drummond apareceram diversas expressões: compreensão, ira, impaciência consigo mesmo e curiosidade.
—Ataduras nos pulsos? – perguntou - Nos tornozelos?
—Não... nada. Requer uma explicação, não é verdade?
O gesto do Drummond se voltou ainda mais sério.
—Qual é o passo seguinte? Será melhor que faça algo. O subcomissário tornou a passar por aqui. Ninguém quer que este assunto continue por mais tempo.
—Está dizendo que não querem que se investigue mais o caso de Farrier"s Lane, não é isso? disse Pitt com amargura.
O rosto do Drummond se crispou.
—Naturalmente que não. É muito delicado.
—Investigarei os últimos dias de Paterson, desde que falei com ele até que morreu. - Pitt respondeu assim a urgente pergunta.
—Me faça saber o que averiguar.
—Sim, senhor, é claro.
Lambert foi de pouca utilidade. Como Drummond supunha, ainda estava muito afetado pela terrível morte de um de seus homens. Tinha interrogado a toda a pensão, às pessoas da rua, a todos os homens que tinham trabalhado com Paterson ou o conheciam pessoalmente. Estava muito longe de saber quem o tinha matado.
Lambert informou a Pitt dos deveres policiais de Paterson durante sua última semana de vida e, depois de atar tediosamente todos os fios dos testemunhos, as horas e os lugares, Pitt se deu conta de que no relato de seus dias havia consideráveis lacunas nas quais ninguém sabia onde tinha estado.
Pitt supôs que havia tornado sobre os passos de sua investigação inicial do assassinato de Farrier"s Lane.
O inspetor começou sua própria investigação sobre Paterson voltando ao porteiro do teatro. O local estava curiosamente apagado a essa hora do dia; sem colorido, tão só a cinzenta luz do dia, sem risadas, sem a espera que antecede uma função, sem atores nem músicos entretendo a multidão, só umas quantas mulheres com criadas sentadas nos degraus com os restos de uma xícara de chá, lendo os sedimentos.
Pitt achou Wimbush em seu pequeno quarto, na zona dos camarins.
—Sim. O senhor Paterson voltou outra vez. - Wimbush ficou pensativo. - Fará uns seis dias, possivelmente cinco.
—Do que falou com você?
—Do assassinato do senhor Blaine. Justo igual a você. E lhe disse exatamente o mesmo que disse a você.
—O que disse ele?
—Nada. Só me agradeceu e logo partiu.
—Aonde? Sabe?
—Não, não me disse.
De qualquer modo Pitt não necessitava que o dissesse o porteiro. Falou com a ajudante de camarim de Tamar Macaulay, que lhe disse o mesmo. Paterson tinha ido vê-la e lhe tinha feito as perguntas que já conhecia. Tinha-lhe dado as mesmas respostas.
Pitt saiu do teatro e se dirigiu para o norte, para Farrier"s Lane. Caía a tarde de um dia frio e cinza, a chuva brilhava nas calçadas e o vento perseguia o lixo pelas sarjetas.
Topou com mendigos, vendedores ambulantes, camelôs, com quem não tem outra coisa que fazer a não ser vagar pela cidade, apinhados na rua para defender-se do frio, em busca de proteção para passar a noite, de portais onde poder dormir. Um braseiro no que um homem maneta vendia castanhas assadas lhe desejou muito uma luz de boas-vindas na penumbra, uma pequena ilha de calidez. Havia uma dúzia de homens ao redor.
Pitt recordou dos indivíduos que rondavam pelas proximidades de Farrier"s Lane a noite em que assassinaram Kingsley Blaine. Conhecia seus nomes. Estavam nos arquivos que tinha lido ao princípio. Havia tornado a lê-los para refrescar a memória.
As possibilidades de que voltasse a dar com algum deles agora eram escassas. Podiam ter ido a outras zonas, achado uma forma de vida melhor, ou talvez pior. Podiam estar doentes, mortos, na prisão. A mortalidade era elevada e cinco anos eram muito tempo.
Teria se incomodado Paterson em buscá-los? Ou em procurar Joe Slater, o garoto?
Com certeza a primeira coisa que fez foi ir ver a florista. Se é que ainda continuava ali.
Entretanto, quando estava a tão só umas centenas de metros do lugar, Pitt se surpreendeu encaminhando-se para Farrier"s Lane.
Avivou o passo, percorrendo a passadas a úmida pavimentação, como se temesse perder algo se vacilasse. Dobrou a última esquina e viu ao longe, à esquerda, a estreita abertura de Farrier"s Lane, uma negra fenda no muro. Diminuiu o passo. Queria ver o lugar, e ao mesmo tempo lhe repugnava. Fez-lhe um nó no estômago, tinha os pés intumescidos.
Deteve-se frente ao beco. Tal como havia dito Paterson, a luz se achava a uns dezoito metros. O vento assobiava nos beirais dos telhados sobre sua cabeça, arrastava um jornal velho pela rua. O dia chegava a seu fim e já tinham acendido as luzes de gás. Assim e tudo, Farrier"s Lane era um escuro abismo impenetrável.
Parou mais ou menos ali onde os malfeitores se achavam aquela noite e ficou olhando o outro lado da rua. Poderia ter visto uma pessoa com clareza, a silhueta de um homem caminhando teria sido inconfundível. Entretanto, a menos que se detivesse e se voltasse para ele, sob a luz, não lhe teria visto o rosto.
Cruzou a rua a toda pressa e, com o pulso acelerado e um nó na garganta, entrou em Farrier"s Lane.
Era estreito, o chão era uniforme, mas mal via nada ante si salvo o contorno do último muro que precedia ao pátio das cavalariças. Devia haver uma luz; o resplendor era inconfundível desde os primeiros metros. Imaginou Kingsley Blaine escolhendo esse caminho para chegar antes ao clube em que esperava reunir-se com Devlin O'Neil. Acaso pensou se haveria alguém quando deixou atrás a incerta luz da rua e entrou nas sombras do beco? Pilhou-lhe o ataque por surpresa?
Os passos de Pitt ressoavam nas pedras, prementes, atemorizados. A névoa lhe cobria a garganta e sua respiração era irregular. Agora via o lampião do muro, que iluminava o pátio que tinha ante si. Antes era uma ferraria; agora, um olaria. Entrou nele devagar, tratando de imaginar o que aconteceu aquela noite. O que viu Kingsley Blaine? Quem o estava esperando? Aaron Godman, o ator, magro, vivaz, vestido para ir ao teatro, um cachecol de seda branca resplandecente à luz do lampião das cavalariças, um prego longo, afiado na mão? Ou acaso uma adaga que ninguém tinha encontrado? Com certeza não era importante? Seria bastante simples perder algo assim. Naturalmente a polícia tinha rastreado o lugar e não tinha achado nada. Bastava um deságüe.
Ou acaso tinha sido outra pessoa? Joshua Fielding? Ou a própria Tamar o tinha ajudado, insistido a fazê-lo.
Era uma idéia horrível que se apressou a desprezar sem saber por que.
Permaneceu imóvel, olhando atentamente ao redor. Ali, à esquerda, deveria estar as antigas cavalariças. Meia dúzia de cubículos. Uma das portas era distinta das demais, mais nova.
Sentiu um ligeiro enjôo, um suor frio por todo o corpo.
Deu meia volta e retornou à escuridão do beco quase à corrida. Saiu à rua sem fôlego, o coração acelerado, depois se deteve de repente e permaneceu quieto por um minuto. Em seguida retornou caminhando ao Soho Square, onde tinha seu posto a florista.
Andava tão depressa que chocava com as pessoas, seus passos ressoavam na calçada, a respiração forte.
A florista estava ali, uma mulher baixa, gorda, envolta em um xale marrom avermelhado. Ofereceu-lhe imediatamente um buquê de flores variadas e se apressou a entoar a sabida cantilena.
—Flores frescas, senhor? Compre um buquê a sua dama. Recém cortadas. Olhe ainda viçosas. Aspire o aroma do campo, senhor.
Pitt rebuscou no bolso e tirou uma moeda de três pennies.
—Sim, me dê um.
Não lhe perguntou se queria a mudança, limitou-se a tomar a moeda e lhe tender dois ramos de flores, com o rosto iluminado pelo alívio. Conforme o dia declinava, o frio era mais intenso, e parecia que não tinha tido uma boa jornada.
—Está há muito tempo aqui? - perguntou Pitt.
—Desde as seis da manhã, senhor - respondeu ela com expressão carrancuda.
Passou um casal de caminho a uma festa, a barra do longo vestido dela umedecida do contato com a calçada, resplandecente o chapéu de seda dele.
—Refiro-me a estar a muitos anos neste posto - esclareceu Pitt.
—Oh, sim, uns quatorze. - Entreabriu os olhos - por quê?
—Então foi você quem viu o Aaron Godman depois do assassinato de Farrier"s Lane, não é assim?
Do outro lado da praça, em alguma parte, escutaram-se o gemido de um cavalo e as imprecações de um cocheiro.
—Perdoe senhor, mas isso o que lhe importa? -perguntou ela olhando-o com os olhos ainda mais entrecerrados.
—Tinha visto você antes o senhor Godman?
—Tinha visto sua fotografia.
—O que levava aquela noite? Recorda-o?
—Um casaco, naturalmente. A essas horas da noite, que outra coisa ia levar?
—Cartola? Cachecol de seda branca?
—Não diga bobagens! Era um ator, não um janota, pobre diabo.
—Parece que o sente.
—E se for assim? Esse mal nascido do Blaine brincou bem com sua irmã, pobre desgraçada. De qualquer modo enforcaram o pobre diabo.
—Levava um cachecol branco?
—Já o disse, levava a roupa do trabalho.
—Nada de cachecóis. Tem certeza?
—Sim. Quantas vezes tenho que dizer-lhe Nada de cachecóis!
—Viu você ultimamente o agente Paterson?
—E se o vi?
Pitt pôs a mão no bolso e tirou uma moeda de seis pennies.
—Comprarei mais flores.
A mulher tomou os seis pennies sem pronunciar palavra e lhe entregou quatro ramalhetes. Eram tantos que Pitt se viu obrigado a colocar parte deles no bolso esquerdo. Um par de cavalheiros vestidos de gala passaram diante, as cartolas resplandecentes, e o olharam divertidos.
—Viu você Paterson nos últimos dias? - perguntou de novo.
—Sim. Veio anteontem - respondeu ela - Me fez as mesmas perguntas outra vez, isso é o que fez. E eu lhe respondi o mesmo. Depois soou o relógio. - Jogou a cabeça para trás, em direção ao edifício que ficava as suas costas. - E me perguntou por isso.
—Por que exatamente? Não foi esse o relógio que indicou a você que Aaron Godman esteve aqui à uma menos quarto?
—Isso é o que o senhor Paterson me disse. Ele estava seguro de que era essa hora. Impossível fazê-lo mudar de opinião. Ao final eu mesma pensei que assim seria. Mas a princípio disse que eram as doze e quinze, porque isso achava. Sabe você... - Olhou-o de soslaio para assegurar-se de que lhe prestava toda sua atenção - Sabe você... esse é um relógio muito curioso. Não soa uma vez a e quarto, duas a e meia, e três a menos quarto, como a maioria, mas só uma vez a menos quarto. Ele disse que tinha que ser e quarto, pelo muito que eu tinha vendido. Mas ao princípio eu pensei que seria a uma menos quarto, porque quando limpam o relógio, como agora, soa estranho. Faz uma espécie de ronrom a menos quarto. Aquela noite não o fez. - Arregalou os olhos e, de repente, sobressaltou-se - Isso quer dizer que eram as doze e quinze, não?
—Sim... - corroborou Pitt lentamente, e lhe invadiu uma estranha sensação, quase de sufoco, nervosismo, horror e assombro ao mesmo tempo - Sim, isso é o que quer dizer, se estiver você segura. Está completamente segura? Viu-o subir à carruagem?
—Sim, naquela esquina dali - respondeu a florista assinalando-a.
—Tem certeza?
—Pois claro que tenho! Disse isso ao senhor Paterson e fez má cara. Pensei que ia desmaiar aqui mesmo. Esse pobre diabo parecia a ponto de cair morto.
—Sim. - Pitt tirou do bolso a caldeirinha que ficava e a ofereceu a florista, uns dois xelins e nove pennies e meio.
A mulher observou as moedas com incredulidade, logo jogou mão delas e as meteu no bolso, deixando a mão dentro.
—Sim, não estranho - murmurou Pitt - Se Aaron Godman lhe comprou flores às doze e quinze e tomou uma carruagem diretamente a sua casa, em Pimlico, não pôde ser ele quem assassinou Kingsley Blaine em Farrier"s Lane às doze e meia.
—Não - confirmou ela meneando ligeiramente a cabeça - Visto assim, não acredito que pudesse, pobre desgraçado. De qualquer forma o enforcaram e ninguém pode lhe devolver a vida. Que Deus o acolha em seu seio.
Pitt chegou a casa um pouco antes das onze, impregnado até os ossos devido à incessante chuva, o rosto branco, o cabelo caindo murcho pela frente. tirou as roupas externas no saguão e pendurou-as no cabide, mas o peso da água as fez cair e ficaram sobre o linóleo formando um volume molhado. Desentendeu-se delas e enfiou-se pelo corredor para a cozinha e o calor da lareira, onde poderia se despojar de suas empapadas botas e esquentar os pés.
Charlotte topou com ele na porta da cozinha, com expressão sobressaltada e o cabelo solto sobre os ombros. Claramente tinha ficado adormecida na cadeira de balanço enquanto esperava seu marido.
—Thomas? Oh, está encharcado. Que demônios esteve fazendo? Passa, passa... - Então viu seu rosto, a expressão de seus olhos-. O que acontece? O que passou? Há... morreu alguém mais?
—De certo modo. - Pitt se deixou cair pesadamente sobre a cadeira junto à lareira e começou a desatar uma bota.
Charlotte se ajoelhou frente a ele e se ocupou da outra.
—O que quer dizer com "de certo modo"?
—Aaron Godman. Não matou Blaine - respondeu.
Ela se deteve, os dedos enredados nos cordões úmidos, e olhou-o fixamente.
—Quem o fez?
—Não sei, mas não foi ele. A florista se equivocou com a hora, e Paterson descobriu isso no dia que morreu. Possivelmente soubesse de quem se tratava e por isso o mataram.
—Como pôde equivocar-se com a hora? Acaso não a interrogaram adequadamente?
Contou-lhe sobre o relógio, o de seu mau funcionamento quando o limpavam. Charlotte terminou de desatar os cordões, tirou-lhe as botas, que deixou junto à lareira para que secassem, depois as meias, e lhe friccionou os gelados pés com uma toalha quente. Ele moveu os dedos com delicioso alívio ao mesmo tempo em que lhe explicava o mal-entendido de Paterson, o modo em que insistiu até que sua convicção da culpa do Godman anulou à mulher e esta cedeu.
—Pobre Paterson - sussurrou Charlotte - Deve ter se sentido mal. Suponho que foi o sentimento de culpa o que o fez conduzir-se com temeridade, arriscando sua própria segurança. Devia desejar desesperadamente arrumar as coisas. - dirigiu-se à chaleira, que assobiava quedamente no fogão, e adiantou à placa quente para que entrasse em ebulição ao mesmo tempo em que pegava o bule e a lata do chá com a outra mão - por que escreveu ao juiz Livesey, em lugar de você ou a seu próprio inspetor? - perguntou.
—Não sei. - Pitt seguia esfregando-os frios pés depois de ter arregaçado as calças para manter a umidade da malha longe das pernas. - Suponho que pensou que Livesey tinha poder para reabrir o caso. Estava claro que eu não a tinha, a menos que possuísse provas absolutamente concludentes, e inclusive assim só poderia levá-lo ante os tribunais. Livesey podia fazer o de forma muito mais direta. E tinha tomado parte na apelação inicial; para falar a verdade estava a cargo dela. Foi ele quem pronunciou a sentença.
Charlotte verteu a água fervendo sobre o chá e fechou a coberta do bule.
—Suponho que não foi culpa sua, não é certo?
—Ele não teve nada que ver com o caso inicial - explicou Pitt - Certamente não pôde matar Kingsley Blaine e tampouco ao Paterson. Essa noite a passou em sua maior parte em um jantar, até as tantas. Mas então já tinham matado Paterson. Podemos demonstrá-lo com as provas médicas e também com o testemunho da patroa sobre a hora em que fecharam a porta da rua.
Charlotte levou o bule à mesa, junto com xícaras, leite da despensa e uma grande fatia de pão moreno, manteiga e embutidos. Serviu o chá, entregou uma xícara a seu marido e se sentou frente a ele, que começou a comer com avidez.
—Suponho que o fez quem matou ao Blaine - conjeturou ela, pensativa. - Paterson deve lhe ter dito que sabia, o que significa que tinha desentranhado o mistério. Pergunto-me como. - Franziu o sobrecenho - Não entendo como sabendo que não pôde ser Godman averiguou quem o fez.
—Tampouco eu - reconheceu Pitt com a boca cheia - me acredite, levo todo este tempo espremendo os miolos sobre o que pôde ter visto ou deduzido que lhe desse a resposta e não me ocorre nada. – Suspirou - Tomara o tivesse contado a alguém. Só voltando sobre seus passos pude descobrir que tinha averiguado que Godman não era culpado.
Charlotte segurava a xícara de chá com ambas as mãos.
—A quem o disse? - sussurrou.
—Ao Drummond… só ao Drummond - respondeu ele observando seu rosto. - Não é algo o que todo mundo deseje saber. Significa que todos se enganaram: a polícia, os advogados, o juiz e o jurado iniciais, os juízes da apelação... todo mundo. Inclusive o verdugo executou a um homem inocente. Imagino que o verá em seus pesadelos durante algum tempo. - estremeceu e adiantou os ombros como se na cozinha fizesse frio, a pesar da lareira. - E os jornais, pessoas... todo mundo salvo Joshua Fielding e Tamar Macaulay.
—O que disse o senhor Drummond?
—Não muito. Sabe tão bem como eu qual vai ser a reação.
—Qual será? Não podem negá-lo, ou acaso sim?
—Não sei. - Pitt deixou a xícara na mesa com ar fatigado - Estalará a ira, provavelmente serão muitos os que carregam com a culpa, todo mundo dirá que algum outro deveria havê-lo sabido, que deveria ter sido mais competente, que deveria ter feito algo de um modo diferente. - Sorriu com amargura - Acredito que Adolphus Pryce é o único que sairá gracioso, sem que o culpem de nada. Supunha-se que tinha que encarregar-se da acusação, e assim o fez. Mas Moorgate, o procurador de Godman, sentirá-se culpado por não ter acreditado em seu cliente, faça o que faça agora a respeito, e Barton James, por não ter pressionado mais a florista embora achasse que Godman era culpado, de modo que não veria o sentido. Contudo, seu cliente era inocente e deixou que o enforcassem. - Voltou a pegar a xícara, que estava quase vazia - E Thelonius Quade, qual viu a causa, não terá mais remédio que perguntar-se se poderia ou deveria ter feito algo diferente e averiguado a verdade. Lambert se sentirá culpado por acusar o homem equivocado, e deste modo por deixar escapar ao autêntico culpado, por deixá-lo não só em liberdade, mas também livre de toda suspeita, para matar de novo.
—E os juízes do tribunal de apelação - acrescentou Charlotte lançando mão da xícara de seu marido e enchendo-a - Rechaçaram a apelação e confirmaram o veredicto errôneo. Não voltarão atrás facilmente. - Devolveu-lhe a xícara. - Quando pensa dizer à Tamar Macaulay?
—Não sei. Ainda não me expus isso. - Pitt se passou a mão pelos olhos, esfregou-os e meneou a cabeça - Talvez amanhã. Talvez mais adiante. Em realidade eu gostaria de ter uma idéia mais clara de quem o fez antes de dizer-lhe. Não estou seguro do que fará.
—Em todo caso - observou Charlotte com um sorriso de tristeza - não vai ser esta noite. Pela manhã as coisas se verão distintas, talvez com maior clareza.
Ele se terminou o chá.
—Duvido-o. -ficou em pé - Mas no momento não me importa. Vamos à cama antes que esteja muito cansado para subir pelas escadas.
—Poderia tratar-se de Joshua Fielding? - perguntou Charlotte no café da manhã, O rosto pálido de ansiedade, olhando ao Pitt, que passava numa torrada a geléia-. Thomas, se for ele, o que vou fazer com mamãe?
Pitt se obrigou a abordar o problema. Não queria confrontá-lo. Tinha o bastante ocupando sua energia mental e emocional na morte de Paterson e no fato de que Godman fosse inocente, mas notou o medo na voz de Charlotte e sabia que estava justificado.
—Para começar, não lhe diga que Godman era inocente - advertiu lentamente, pensando à medida que falava - Se tiver sido Fielding, Caroline estará muito mais segura se ele não tiver motivo para pensar que suspeitamos dele.
—Mas e se o fez ele? - apressou sua esposa, presa do pânico - Se assassinou Blaine e ao juiz Stafford e ao Paterson... Thomas é... é um ser absolutamente desumano. Matará a mamãe se acreditar que precisa sentir-se... sentir-se seguro.
—Essa é precisamente a razão pela qual não dirá ao Caroline que Godman era inocente - afirmou Pitt com resolução - Charlotte! Escute-me, não tem nenhum sentido lhe contar que Fielding poderia ser culpado. Está apaixonada por ele.
—Oh, bobagens! - exclamou ela com veemência, experimentando uma estranha sensação de sufoco, de solidão, quase de traição, como se a tivessem abandonado. Era absurdo, e, entretanto lhe formava um nó na garganta só em pensar que Caroline estivesse de verdade apaixonada, como ela o estava de Pitt: emocional, intimamente. Respirou fundo e tentou acalmar-se - Isso é uma tolice, Thomas. Sente-se atraída por ele, não cabe dúvida. Fielding é interessante, a classe de pessoa com a qual nem sequer estamos acostumados a nos encontrar normalmente. E a mamãe preocupava-se que se fizesse justiça.
Pitt a interrompeu.
—Charlotte! Não tenho tempo para discutir com você. Sua mãe está apaixonada pelo Joshua Fielding. Sei que se nega a aceitá-lo, mas terá que fazê-lo. É um fato, por muito que lhe desgoste.
—Não, não o é. - Charlotte afastou de si a idéia - Naturalmente que não o é. Thomas, mamãe passa dos cinqüenta. - Experimentava de novo o sufoco, repugnavam-lhe as imagens que sua imaginação lhe proporcionava. Thomas devia entender. - É amizade, isso é tudo. - Sua voz era cada vez mais estridente. Sabia que não era justo, mas lhe desagradava o fato de que Emily estivesse no campo e se livrasse de tudo isto. Deveria estar aí para ajudar. Tratava-se de uma crise.
Pitt a olhava fixamente, irritado.
—Charlotte, não há tempo para ser egoísta. A gente não deixa de apaixonar-se porque tenha cinqüenta ou sessenta anos, ou qualquer outra idade.
—Naturalmente que sim.
—Quando vai deixar de me querer? Quando tiver cinqüenta anos?
—Isso é diferente - protestou ela.
—Não o é. Às vezes nos tornamos mais cuidadosos com nossos atos porque conhecemos alguns dos perigos, mas seguimos sentindo o mesmo. Por que não ia apaixonar se sua mãe? Quando cumprir cinqüenta, Jemima pensará que é tão velha e permanente como o mundo, porque isso é o que é a seus olhos: o mundo que conhece e que lhe proporciona segurança e identidade. Mas você, em seu interior, continuará sendo a mesma mulher que é agora, capaz de sentir as mesmas paixões: indignação, aborrecimento, risada, ira, ridículo e amor.
Charlotte piscou com força. Era estúpido sentir tanta vontade de chorar, e, entretanto não podia evitá-lo.
Pitt pôs uma mão sobre a de sua esposa. Charlotte tinha os dedos rígidos e em seguida retirou a sua.
—O que vou fazer com ela? - perguntou com brutalidade, soprando sonoramente - Se Fielding matou Kingsley Blaine, por não falar do juiz Stafford e agora do pobre Paterson, é um homem muito perigoso. Não duvidaria em matá-la se acreditasse que ela representa uma ameaça. - Soprou de novo - E se não foi ele, o que posso fazer para que mamãe deixe de ficar em evidência? A gente o faz quando se apaixona. Deveria ter tratado de dissuadi-la antes. Deveria lhe ter advertido, lhe haver feito ver os defeitos do Fielding. E não pode casar-se com ele, embora seja completamente inocente. - Meneou a cabeça, furiosa - Embora ele o pedisse... o que, é claro, não fará.
—Se lhe pedir que se case com ele você não fará nada - respondeu Pitt com tal firmeza que Charlotte ficou perplexa.
—Nada? – protestou - Mas, Thomas...
—Nada - repetiu ele - Charlotte, contarei-lhe o que sabemos do caso dentro de uns dias, quando tiver sopesado melhor as provas. E ela tomará suas próprias decisões a respeito.
—Mas, Thomas...
—Não! - De novo sentia a mão de Pitt, cálida e dura, sobre a sua - Sei o que vai dizer, mas não serviria de nada. Querida, desde quando escuta alguém apaixonado os bons conselhos de sua família? Quando mencionar que possivelmente ele seja perigoso, culpado, inapropriado, indigno, qualquer outra coisa que lhe ocorra; mais inclinada se sentirá ela a lhe ser fiel, inclusive contra o que lhe aconselhe seu bom julgamento.
—Faz com que mamãe pareça tão ridícula... - Charlotte tratou de escapar, mas ele não o permitiu.
—Ridícula não, só apaixonada.
Ela o olhou com ferocidade, a beira das lágrimas.
—Nesse caso tem que averiguar se matou Kingsley Blaine. E se não o fez ele, quem foi?
—Não sei. Suponho que Devlin O'Neil.
Charlotte afastou a cadeira arrastando-a pelo chão e se levantou.
—Nesse caso vou averiguar mais sobre eles. - Tomou ar antes de acrescentar: - E não se atreva a me dizer que não o faça. Serei muito discreta. Ninguém terá a menor ideia de por que me interessa, nem de que albergo a mais leve suspeita de nada, nem sequer imoral, para não falar de criminoso. - E antes que ele pudesse dizer algo saiu, majestosa, e se precipitou escada acima com a intenção de revolver entre seus vestidos e decidir o que vestiria para visitar Caroline, Clio Farber, Kathleen O'Neil ou a qualquer que pudesse ser útil para a resolução do caso de Farrier"s Lane.
O certo é que não pôde dispor nada até o dia seguinte, e isso com grandes dificuldades e com a ajuda de Clio Farber. Tratava-se de uma espécie de estratagema. Clio convidou a Kathleen O'Neil para que se reunisse com ela no Museu Britânico, um lugar de cuja visita Adah Harrimore desfrutava sobremaneira. Dava-lhe a oportunidade de passear lentamente (sua saúde continuava sendo excelente), de mexericar e de olhar a outros, e tudo isso com a sensação ao mesmo tempo de estar cultivando a mente, sem obrigação alguma para com uma anfitriã, sem a necessidade de receber um convite nem de corresponder à hospitalidade. Alguém podia ficar no que gostasse, ir a qualquer hora e partir quando estimasse conveniente. Era a resposta perfeita às intrincadas normas e restrições da hierarquia e as etiquetas sociais.
Clio informou a Charlotte do plano e esta última se encontrou com elas por acaso na sala egípcia, exatamente às três menos quarto, com uma demonstração de surpresa e prazer. Tinha pensado em dizer a Caroline que a acompanhasse, opção que tinha rechaçado já que não estava bastante segura de ser capaz de não revelar seu conhecimento da inocência de Aaron Godman e seu conseguinte temor de que Joshua fosse culpado. Devlin O'Neil era farinha de outro saco. Charlotte simpatizava com Kathleen e se sentiria aflita por demonstrá-la culpa de seu marido, mas sua arte da dissimulação lhe permitia fazer frente a tal possibilidade.
—Encantada de vê-la - saudou com o grau preciso de surpresa - bom dia, senhora Harrimore. Espero que você esteja bem.
Adah Harrimore trazia um vestido marrom escuro guarnecido de marta e um chapéu que tinha sido extremamente elegante fazia um par de temporadas e, depois, tinha sofrido certas modificações destinadas a mascarar o ano em que esteve em voga.
—Desagrada-me o inverno, mas estou bastante bem, obrigada - respondeu com ar elegante - E você, senhorita Pitt?
—Muito bem, obrigada. Estou de acordo com você, o frio pode ser muito desagradável. Entretanto, tampouco acredito que pudesse suportar um calor como o que faz no Egito. - Observou com atenção as peças que se expunham na vitrine que tinham diante: instrumentos de cobre, fragmentos de cerâmica e formosas contas de turquesa e lápis-lazúli. Chamou sua atenção em concreto uma jarrinha de cristal - Faz a gente perguntar-se como seria a vida da gente que lavrou e luziu tudo isto, não é certo? -comentou com entusiasmo - você crê que eram tão diferentes de nós? Ou que seus sentimentos eram mais ou menos os mesmos?
—Muito diferentes - respondeu Adah resoluta. - Eles eram egípcios, nós somos ingleses.
—Isso afetará nossos hábitos e às roupas que vestimos, a nossas casas, ao que comemos, mas acredita que muda o modo como sentimos, o que valorizamos? - inquiriu Charlotte o mais educadamente possível. Era uma pergunta bastante sincera, mas a resposta veemente e instantânea de Adah a surpreendeu, e viu algo no rosto da anciã que a inquietou. Não era só uma opinião irredutível, era um indício de medo, como se houvesse algo perigoso na natureza estranha dessa gente de outras terras que tanto tempo estavam mortas.
Adah olhou as peças, depois à Charlotte.
—Desculpe que o diga, senhorita Pitt, mas é muito jovem e, em conseqüência, ingênua. Sem dúvida tem escassa experiência com gente de outras raças. Mesmo que tenham nascido aqui, na Inglaterra, e crescido entre nós, continuam conservando um elemento que as faz diferentes. O sangue manda. Pode ensinar a um menino tanto como deseje, ao final sua herança virá à luz.
Adiantaram-nas duas damas vestidas à última moda que inclinaram a cabeça graciosamente e prosseguiram seu caminho.
Adah sorriu com frieza.
—Como pode esperar que quem tem nascido em outra parte - continuou falando com Charlotte - e crescido com crenças completamente distintas tenham algo em comum conosco, salvo as mais superficiais maneiras? Não, minha querida senhorita Pitt, não acredito que sintam como nós a respeito de nada... ao menos a respeito de nada que tenha que ver com a sensibilidade ou os valores morais. por que iriam fazê-lo?
Charlotte abriu a boca para responder, mas se deu conta de que não lhe ocorria comentário algum que não soasse corriqueiro ou grosseiro.
—Adoravam a deuses terríveis, com cabeças de animais. - Adah se entusiasmou com o tema - E tratavam de conservar os cadáveres de seus mortos! Pelo amor de Deus! Pode ser que nos sejam muito interessantes para aprender deles, que seja edificante conhecer o passado, estou certa, e reconfortante nos dar conta da superioridade de nossa cultura. Mas acreditar que temos algo em comum com eles é um disparate.
Charlotte escavou em sua memória em busca de alguma vaga lembrança de seus livros escolares.
—Não havia um faraó que acreditava em um único deus? - perguntou.
Adah arqueou as sobrancelhas.
—Não tenho nem idéia. Mas não era nosso Deus. Isso está fora de toda dúvida. O faraó tratou de matar Moisés, e a todo seu povo! Algo claramente perverso. Ninguém que acreditasse no Deus verdadeiro faria tal coisa.
—Às vezes a gente faz coisas terríveis a seus inimigos, em particular quando tem medo.
Uma sombra cruzou o rosto de Adah, algo em seus olhos se gelou por um instante. Depois, com um supremo esforço, foi vencido e desapareceu.
—Isso é verdade, certamente - concordou a anciã - mas é em momentos de pânico quando se revela nossa natureza mais íntima, e então comprovará que os estrangeiros se comportam de forma muito distinta de nós, já que no fundo são diferentes. Isso não significa que alguns não sejam capazes de criar as obras mais belas, nem que não saibam multidão de coisas das que possamos nos beneficiar.
Uma preceptora com um simples vestido marrom se achava ante a seguinte vitrine. A menina de doze anos de quem estava a cargo ria bobamente do busto de uma rainha morta há tempo.
—Acredito que isso é especialmente certo no caso dos gregos – acrescentou Adah erguendo a voz - Parte de sua arquitetura é maravilhosa. Claro está que eram um povo esquisitamente disciplinado, e com um grande sentido da proporção. Meu neto por afinidade, o senhor O'Neil, a quem já conhece, esteve em Atenas. Diz que o Parthenon é de uma beleza indescritível. Acha os gregos muito edificantes. Admira a obra de lorde Byron, que em minha opinião é um tanto questionável. Prefiro sem lugar a dúvidas a nosso lorde Tennyson. Com o Tennyson sabe-se a que ater-se.
Charlotte optou por capitular. Seguir discutindo lhe reportaria mais perdas que lucros. E aquele olhar nos olhos de Adah ainda continuava perseguindo-a.
—Deve ter sido uma experiência fabulosa – disse. - Há aqui bons exemplos da arte grega?
—Sem dúvida. Vamos ver algumas urnas e vasilhas. É por aqui, acredito. - E com um gesto dramático Adah tomou a dianteira, saiu da sala egípcia e entrou na seguinte.
Charlotte adiantou-se a Clio e a Kathleen nas escadas. Sorriu e pôs-se a correr atrás de Adah, a quem alcançou justo quando entravam na sala em que se expunham as peças gregas.
—Que sorte a do senhor O'Neil por ter podido ir a Grécia – comentou - Foi recentemente?
—Fará uns sete anos - respondeu a anciã.
—Acompanhou-o a senhora O'Neil? - perguntou Charlotte com interesse e tom educado, embora soubesse que naquela época Kathleen estava casada com Kingsley Blaine.
—Não - respondeu Adah secamente - Foi antes que contraíssem matrimônio. Mas não há dúvida de que acabarão indo. Suponho que você não esteve na Grécia, equivoco-me, senhorita Pitt?
—Não, receio que não. Essa é a razão pela qual é estupendo vir ao museu para ver tantas coisas formosas. Esteve ali, senhora Harrimore?
—Não, eu nunca viajei. Meu marido não gostava. - Uma expressão de desolação e tristeza apareceu em seu rosto, a pele e os músculos suspenderam como se tivesse reaparecido uma dor mais intensa que o mero pesar.
—Não agrada a todo mundo - se apressou a dizer Charlotte, que pronunciou as palavras porque o sentimento era muito pessoal para reconhecê-lo, muito sutil para entendê-lo - Algumas pessoas inclusive adoecem, sobretudo no mar.
—Isso soube - respondeu Adah entre dentes.
—E pode ser muito caro - continuou Charlotte, que caminhava ao passo da anciã - sobretudo se a família é grande. A gente às vezes se mostra remissa a deixar as crianças menores durante muito tempo, e, entretanto não acha recomendável levar-lhe ali onde o clima possivelmente não seja saudável, os mantimentos certamente não serão os acostumados e a gente não tem idéia da assistência médica que achará. São muitas as razões para tomar uma decisão deste tipo.
Adah contemplava uma grande estatua de mármore de uma mulher vestida com sutis tecidos o corpo sólido, maciço, embora as próprias linhas da pedra lhe conferissem tal graça, simples e fluída, que dava a sensação de que uma corrente de ar poderia mover a malha insinuada. Estava picada, o rosto desfigurado, e mesmo assim possuía um solene encanto.
—A nossa não era uma grande família - Adah falava com a estátua, não a Charlotte - Só existe Prosper, ninguém mais.
Estavam frente à estátua, muito próximas a ela. Clio e Kathleen as tinham seguido e admiravam umas peças do outro lado da sala, fora do alcance do ouvido. Adah parecia tê-las esquecido, e não havia ninguém salvo dois anciões cavalheiros, um dos quais ao que parecia explicava ao outro os méritos artísticos de uma ânfora. Os sentimentos da anciã a consumiam e tinha achado um lugar de absoluta intimidade no qual poder relaxar sua vigilância interna por uns instantes antes de voltar a pôr no ombro a pesada carga. Parecia fatigada e estranhamente indefesa.
Charlotte desejou tocá-la, lhe proporcionar algum consolo menos áspero que as palavras, mas teria sido uma intromissão, uma rabugice dada a brevidade da amizade e suas respectivas idades. E tinha presente em todo momento Aaron Godman. Era curioso como lhe tinha atribuído um rosto, mesmo que não o conhecesse nem tinha visto nenhum retrato dele.
—Que lástima. O senhor Harrimore é um homem de tanto caráter
—Você não o entende. - Adah permaneceu um instante mais olhando a pétrea estátua que tinha ante si, depois passou a uma delicada vasilha em negro e terracota com figuras ao redor entregues à libertinagem que Charlotte estava segura a anciã não via, apesar de seu olhar fixo. Se as tivesse visto, sua expressão nunca teria mantido essa intensa, dolorosa imobilidade - É muito ingênua, senhorita Pitt, e não cabe dúvida de que suas observações são bem-intencionadas...
Semelhante ataque de uma frase a outra! Não obstante Charlotte reprimiu sua rebeldia instintiva.
—Não... Não acredito que entenda - disse.
—Naturalmente que não - concordou Adah - Não tem por que, e rogo a Deus que não chegue nunca a entendê-lo. Prosper é imperfeito, senhorita Pitt.
Charlotte estava confusa. Era algo extraordinário que uma mulher dissesse algo assim de seu filho, e, entretanto, olhando o rosto de Adah, não cabia dúvida de que estava convencida disso. Não se tratava de um comentário superficial, mas sim de algo que a perturbava tanto para tê-lo sempre presente.
Charlotte procurou algo que dizer.
—Acaso não somos todos imperfeitos de um modo ou outro, senhora Harrimore?
—É claro que ninguém é perfeito. - Adah deixou atrás a vasilha para contemplar uns fragmentos de pratos de um período anterior, de novo sem levar-se deles mais que uma imprecisa impressão. - Isso é evidente. Prosper tem um pé aleijado. Não posso acreditar que não o tenha notado.
—Oh sim, já vejo o que quer dizer.
—O que achava que queria dizer? Não importa. Não é nada sério, nem um defeito muito grave, nada funesto. Mas outras crianças... se houver uma maçã podre... -de repente se deu conta de onde estavam e jogou atrás os ombros bruscamente, como se se endireitasse. - Não deveria ter falado de mim mesma. Dificilmente é a experiência edificante e ilustrativa que você procurava. Falar de meu marido - acrescentou, e de novo a amargura se desenhou em seu rosto - não lhe será reconfortante. Vamos ver algumas obras chinesas. Um povo muito inteligente, embora não seja europeu, e menos ainda inglês, mas acredito muito mais civilizado, a seu modo, e faz muitos anos. Só Deus sabe o que serão agora, naturalmente. Quando era pequena estávamos em guerra com eles por algo. Ganhamos nós, claro está.
—Não se referirá às guerras do ópio? - Charlotte se esforçou por recordar sua história recente - Por volta de 1850?
—É muito provável que esse fosse o nome - concedeu Adah - Sem dúvida foi justo depois da guerra da Crimea, e logo veio a terrível rebelião dos cipayos na Índia. Naquela época parecia que sempre estávamos em guerra com alguém. Claro está que nossa querida rainha só estava no trono há vinte anos. Agora é muito diferente. Todo mundo sabe quem somos e tem o suficiente bom senso para não entrar em guerra conosco.
Era impossível discutir ante tão monumental segurança, e a Charlotte satisfez sobremaneira ver ao longe Clio e Kathleen O'Neil e atrair sua atenção com um sorriso.
Uns trinta minutos depois deixaram as obras de arte e foram tomar o chá e conversar sobre diversos temas tais como a moda, a saúde, o tempo, a princesa de Gales, os livros que tinham lido, todo isso inofensivo e bastante apropriado para a ocasião.
—Como está sua querida mamãe? - perguntou Kathleen com gentileza, olhando Charlotte por cima dos sanduíches de pepino - Espero que possa somar-se a nós, possivelmente para uma noite na ópera ou no teatro.
—Estou certa de que adoraria - afirmou Charlotte com mais sinceridade do que elas podiam supor - Lhe direi que o mencionou. É muito amável de sua parte. Ultimamente lhe interessa muito o teatro. Meu pai faleceu faz alguns anos e depois não freqüentou tais lugares tanto como estava acostumada. Agora começa a desfrutar deles de novo.
—Muito natural. - concordou Adah assentindo com a cabeça - Terá que guardar luto durante certo tempo. É o que se espera. Mas depois se tem que continuar com a própria vida.
—Sei que travou amizade rapidamente com o Joshua. - se apressou a dizer Clio com um sorriso-. Para falar a verdade é bastante romântico.
—Romântico? - inquiriu a anciã com frieza. Em seguida se voltou para Charlotte arqueando as sobrancelhas.
—Bom... - Charlotte vacilou, logo tomou uma decisão que temia pudesse lamentar terrivelmente - Sim... sim, é. Não sei... não estou certa de como me sinto. Possivelmente a palavra seja "apreensão".
Clio continuou comendo e pegou de um bolinho de creme.
Kathleen olhou para Adah, depois para Charlotte, e mudou de assunto.
Quando ficaram em pé para ir-se, Adah pegou Charlotte pelo braço e a levou à parte, o rosto crispado, os olhos inundados de dor.
—Minha querida senhorita Pitt, não sei como lhe dizer isto sem que pareça uma intromissão no que é um assunto muito pessoal, mas não posso ficar parada sem dizer nada. Sua mãe se encontra em uma posição muito vulnerável, privada de seu marido, só no mundo e, naturalmente, desejosa de entrar de novo em sociedade. Mas seriamente... um ator!
Charlotte se mostrou de acordo com ela e ao mesmo tempo se apressou instintivamente a defender Caroline.
—O senhor Fielding é muito agradável - disse engolindo em seco. - E um pilar de sua profissão.
—Isso não importa! - A voz de Adah era furiosa; a garra sobre o braço de Charlotte, dolorosa - É judeu! É de todo ponto impossível que permita que sua mãe tenha... tenha algo mais que... como posso dizer isto com delicadeza? Pelo amor de Deus, querida, não pode permitir que sua mãe tenha relações com ele!
Charlotte notou que se ruborizava. A idéia lhe era repulsiva, não por nada que tivesse que ver com Joshua Fielding, mas sim porque não podia imaginar a sua mãe em semelhante situação. Era profundamente doloroso, ofensivo.
-Vejo que não tinha pensado nisso - continuou a anciã interpretando mal sua reação por completo, pensando tão só na palavra "judeu"-. Naturalmente que não. Você é inocente. Mas, querida, não é impossível e em tal caso sua mãe estaria perdida. Claro que não é como se ainda estivesse em idade de ter filhos, não a vai poluir, mas é o mesmo.
—Poluir? - Charlotte estava desconcertada.
—É claro. - O rosto de Adah estava deformado pela dor, a lástima, a lembrança de algo muito horrível para falar disso - A... - vacilou antes de pronunciar a palavra- união com um judeu muda a uma pessoa. Não é algo que se possa explicar a uma jovem solteira que possua certa sensibilidade, mas tem que me acreditar.
Charlotte tinha ficado sem fala.
Adah interpretou de maneira errônea seu silêncio, tomando-o por dúvida.
—É absolutamente certo - disse com tom premente-. Juro. Deus me perdoe, como se não soubesse eu. - A vergonha e a desdita tingiam sua voz de aspereza - Meu marido, igual a muitos homens, satisfazia seus apetites fora de seu lar, só que ele o fazia com uma judia. Eu estava grávida naquela época. Essa é a razão da deformidade do pobre Prosper.
—Fez uma pausa para tomar fôlego, como se o fato de obrigar-se a pronunciar tais palavras reabrisse uma velha ferida - E de que não tivesse mais filhos.
De repente Charlotte viu os anos estéreis, a vergonha, a sensação de traição, de impureza, que persistia inclusive até agora. Sentiu uma lástima tão intensa que desejou estender a mão e aplicar algum bálsamo a sua ferida. Entretanto também sentia repugnância. Era alheio a todas suas crenças conceber a existência de uma classe de seres humanos tão diferentes que a união com eles fosse impura, não devido à imoralidade ou à enfermidade, mas simplesmente à natureza de sua raça.
Não sabia o que dizer, mas o semblante apaixonado de Adah exigia algum comentário.
—Oh. - sentiu-se estupidamente incapaz - Tenho certeza... tenho certeza de que minha mãe não está a par disso. - Foi o único que lhe ocorreu, e ao menos era verdade.
—Nesse caso, se de verdade se preocupar com ela, deve dizer-lhe a apressou Adah com veemência - Não importa a idade que se tenha – continuou - É o princípio do fim. Quem sabe o que virá depois? Agora temos que nos unir às demais; do contrário se perguntarão o que ocorre. Vamos.
No dia seguinte à excursão ao museu, Charlotte acompanhou Caroline, por convite desta última, a visitar Joshua Fielding e Tamar Macaulay ao teatro, depois dos ensaios e antes da função noturna. Charlotte se sentia muito incômoda. Foi um dos momentos menos prazenteiros que jamais passou em companhia de sua mãe. Desejava lhe dizer que Pitt sabia da inocência de Aaron Godman, mas tinha prometido a seu marido não fazê-lo e sabia que as razões eram excelentes. Entretanto, tinha a impressão de que estava enganando-a e duvidava de que Caroline fosse entendê-lo, inclusive quando se inteirasse de toda a verdade.
Deste modo lhe assustava que Joshua Fielding pudesse ter assassinado e crucificado Kingsley Blaine, e depois envenenado o juiz Stafford por ter a intenção de reabrir o caso e que agora tivesse matado o agente Paterson por averiguar a verdade.
E se ele não fosse culpado e se tratava de Devlin O'Neil ou outra pessoa, o que ocorreria se Caroline efetivamente tinha uma aventura com ele? Como ia controlar Charlotte suas emoções a respeito? Não podia alegrar-se. E nem todos os raciocínios do mundo nem todos os argumentos de Pitt, tão judiciosos, poderiam mudar o que sentia.
De modo que acompanhou Caroline, que se vestia com menos elegância do que costumava fazer há uns meses e parecia muito mais jovem. Não ia na última, mas sim mas tinha o estilo romântico dos prerrafaelistas, o vestido com um estampado de folhas e flores, o cabelo penteado com maior simplicidade e sem chapéu.
Na porta do teatro lhes dispensaram uma calorosa boas-vindas e as deixaram entrar como se fossem antigas amizades, algo que, em si mesmo, inquietou ao Charlotte. Os ensaios estavam a ponto de concluir. Tratava-se de uma comédia, embora com elementos extremamente dramáticos. Até sendo uma aficionada com escassa experiência em teatro, Charlotte percebia a destreza na cadência de um verso, na precisa inflexão de uma voz, no gesto de uma mão, na linha do corpo. Sentiu-se fascinada ao comprovar quão superior era a técnica de Tamar Macaulay a de qualquer outro sobre o palco, e quanto mais se fixavam seus olhos em Joshua Fielding que em outros homens. Não é que lhe interessasse pessoalmente, nem que Caroline não apartasse a vista do ator, mas sim possuía um magnetismo capaz de atrair a qualquer um.
Quando declamaram o último verso, quase antes que o senhor Passmore lhes desse permissão para partir, Tamar se voltou para olhar Charlotte, o expressivo rosto tenso, os olhos inquisidores. A Charlotte tomou por surpresa. Nem sequer tinha pensado que Tamar percebera sua presença; sua concentração parecia absoluta. A atriz não se andou com formalidades.
—Charlotte! Alegro-me de vê-la. Temia que nos tivesse abandonado. Não poderia culpá-la. - Pegou Charlotte pelo braço e a conduziu longe dos bastidores, onde tinham estado esperando, por um corredor de tábuas nuas - Levamos cinco anos tentando e não conseguimos nada. Foi muito injusto por minha parte depositar minhas esperanças em você, e em questão de semanas. Lamento-o seriamente, e o indesculpável do fato é que não vou retroceder em meu empenho. Não posso evitá-lo. - Respirou fundo, olhando Charlotte no rosto. Seus negros olhos brilhavam como brasas - Continuo sem acreditar que Aaron fosse culpado. Não acredito que matasse Kingsley e estou segura de que não lhe teria feito isso depois. - Um sorriso breve, irônico, aflorou a seu rosto, e acrescentou com a voz entrecortada. - E ele não pôde envenenar ao juiz Stafford.
—Nem enforcar o agente Paterson - disse Charlotte de maneira impulsiva.
Tamar piscou.
—Enforcar o agente Paterson? - perguntou perplexa - por que o enforcaram? Foi ele quem matou o juiz Stafford? Mas por quê? E como é que o enforcaram tão logo? Nem sequer tenho lido que se celebrou um julgamento.
—Não o justiçaram - explicou Charlotte - O assassinaram. Não sabemos por que nem quem o fez, mas o mais provável é que tenha que ver com o caso de Farrier"s Lane embora, naturalmente, não há nada certo.
Tamar se adiantou e abriu a porta do pequeno e estreito camarim. Estava cheio de trajes pendurados de uma barra em um canto, um cesto transbordante de anáguas em outro, uma mesa com um espelho, frascos de maquiagem e pós, e três cabides com perucas. Mas por ser ela a primeira atriz, ao menos era privado.
—Me conte - pediu ao entrar. Ofereceu uma cadeira a Charlotte e a seguir se apoiou contra a porta para fechá-la.
—O agente Paterson era o... - começou Charlotte.
—Sei quem era - a interrompeu Tamar. - O que lhe aconteceu?
—Assassinaram-no - se limitou a dizer Charlotte - Alguém irrompeu em sua casa de noite e o enforcou no gancho do lustre de seu próprio dormitório.
—Quer dizer que o atacaram? - Tamar se mostrava desconfiada. - Não se defendeu?
—Ao que parece não. - Charlotte meneou a cabeça - Possivelmente se tratasse de alguém a quem conhecia e não esperava que fosse a lhe fazer mal, e quem quer que fosse arquitetou para colocar-se atrás dele e estrangulá-lo.
—Suponho que pôde ter sido assim - concordou Tamar afastando-se da porta. No aposento havia um aroma estranho, desconhecido, rançoso e excitante a mesmo tempo - É a única coisa que parece ter sentido – prosseguiu - Mas quem? por que? Quando se celebrou o julgamento tenho que admitir que detestei esse homem. - Tinha o rosto crispado por tão dolorosa lembrança - Odiava tanto ao Aaron… Não era imparcial, estava cheio de ira, a voz lhe tremia quando subiu ao estrado. Recordo-o com total nitidez. E suspeito que foi ele quem lhe deu a surra, embora Aaron nunca o disse, ao menos não a mim. Acredito que foi me proteger. - interrompeu-se enquanto se esforçava por manter o controle. Deu a volta em busca de um lenço e tropeçou com um cabide. De repente retornaram o medo e o terror, como se Aaron Godman ainda seguisse vivo, ainda sofresse...
Charlotte apenas podia guardar silêncio. Só a certeza de que Caroline se achava a uns poucos metros, com o Joshua Fielding, lhe impediu de dizer a Tamar que Aaron era inocente e que Pitt terminaria por demonstrá-lo.
Nada que ninguém pudesse dizer faria cicatrizar as feridas do passado, as palavras seriam estúpidas e só delatariam uma absoluta falta de compreensão. O único bálsamo consistia em falar de outra coisa.
—Não perca a esperança - disse com voz baixa à Tamar, que se achava de costas, rígida e trêmula - Nos estamos aproximando do final. Ainda não posso lhe dizer nada, mas não estou falando simplesmente para consolá-la. O final está muito perto... lhe dou minha palavra.
Tamar ficou absolutamente imóvel, depois se voltou com suma lentidão para olhar Charlotte. Não disse nada por uns instantes, dedicou-se a esquadrinhar seu rosto tratando de sopesar sua sinceridade e o que em realidade sabia.
—Não teria sentido lhe perguntar como sabe, não é certo - disse com um fio de voz.
—Não - respondeu Charlotte - Se pudesse dizer-lhe o faria, mas lhe rogo que me acredite... é verdade.
Tamar respirou fundo e engoliu saliva com muita dificuldade.
—Demonstrar-se-á a inocência do Aaron?
—Suplico não me peça que lhe conte nada mais agora... e se deseja que assim ocorra, não diga nada a ninguém, nem sequer ao senhor Fielding. Poderia dizer ou fazer algo por descuido que danificaria tudo. Acredito que Aaron não o fez, mas não sei quem foi.
Tamar sorriu com expressão triste, irônica, e se sentou um tanto inclinada no cesto de roupa.
—O que quer dizer é que acredita que possivelmente tenha sido Joshua - respondeu.
—Acaso é impossível? - sussurrou Charlotte.
Tamar se tornou para trás.
—Eu gostaria de dizer que naturalmente o é, mas suponho que não me está pedindo que fale com o coração, a não ser com a cabeça. Não, não é impossível. Joshua disse que não sabia se Kingsley se teria casado comigo ou não, e que de qualquer modo não teria interferido; e também que aquela noite foi a casa diretamente do teatro. Mas não pode demonstrá-lo. - Elevou um tanto o queixo. - Não acredito que fosse ele, mas imagino que isso não influirá muito em você.
—Não posso permitir que o faça - assegurou Charlotte, sabendo de que não era de tudo certo. Parte dela desejava que fosse Joshua. Isso eliminaria qualquer ameaça para Caroline. Poria fim à incerteza, à estranha mescla de perda e ira, de ternura e ciúmes. Ciúmes! Ao menos tinha reconhecido esse sentimento, e a dor em si de pronunciar uma palavra era em parte reconfortante.
—Não, naturalmente que não. - Tamar se endireitou e sorriu. Ficou em pé de novo, e o vime do cesto deixou escapar um gemido. - Quer de um chá? Estou certa de que terá frio e de que não lhe virá mal sentar-se comodamente e falar de algo mais animado - Vacilou junto à porta.
—Sim - Charlotte aguardava.
—Se posso lhe ser de alguma ajuda me dirá isso, não é assim?. - perguntou Tamar com nervosismo.
—É claro.
Caroline ainda continuava em pé junto ao cenário quando Joshua Fielding deu a volta e lhe sorriu. Devia saber que se achava ali, mesmo que na aparência sua atenção estivesse concentrada nos outros atores. Ela experimentou uma repentina calidez, como se o sol tivesse surgido entre as nuvens. Desejava aproximar-se dele, mas a reserva o impedia.
Fielding se entreteve um instante falando com Clio, depois com uma atriz de mais idade a quem felicitou com um toquezinho no braço. O senhor Passmore se dirigia a toda a companhia salvo a Tamar, que tinha desaparecido, lhes dando instruções de última hora para a função da noite, palavras de fôlego, crítica, elogio, lhes augurando um magnífico êxito, protegendo-se cuidadosamente mediante fórmulas supersticiosas para espantar a má sorte que se deriva do excesso de confiança. Apalparam-se amuletos, as mãos se enfiaram nos bolsos em busca de talismãs para assegurar-se por enésima vez de que continuavam ali. Quando terminou afastou-se, uma imponente figura com paletó, a gravata desfeita, então Joshua se aproximou de Caroline.
Em lugar de saudá-la com palavras de boas-vindas e perguntas conforme aos ditados da cortesia ao uso, limitou-se a olhá-la nos olhos, subentendidos os formalismos. Foi uma familiaridade que a regozijou muito mais do que esperava, deixou-a procurando algo que dizer, mas não achou nada satisfatório.
—Era Charlotte quem estava com você? - murmurou Joshua.
—Sim... sim, quis vir.
Puxou-a pelo braço e a levou longe dos bastidores, para os assentos do pátio de poltronas, fora do alcance do ouvido de outros, na penumbra.
—Continua investigando a morte de Kingsley? - inquiriu em voz muito baixa, cheia de ansiedade.
—É claro - respondeu Caroline olhando-o nos olhos - Dificilmente podem nos render.
—Já não acredito que seja preciso. - O ator falava como se se estivesse abrindo passagem entre complicados pensamentos. - A polícia tomou parte desde que morreu o juiz Stafford. Já não pode esquecer-se, nem dar-se por terminado. Ao pobre Aaron não se poderá culpar disto. Rogo-lhe, Caroline, convence a de que o deixe em mãos de quem se dedica a isso.
—Mas até a data não tiveram muito êxito - raciocinou ela. Experimentou uma pontada de culpa por Pitt, mas seu medo por Joshua pesava mais – Ainda não tiveram êxito. Não parece que suspeitem nem da senhora Stafford nem do senhor Pryce; para falar a verdade é justamente o contrário. Estão persuadidos de sua inocência.
—Tem certeza?
—É claro. Thomas não me mentiria.
Ele sorriu, uma mescla de afeto e diversão.
—Tem certeza, querida? Não poderia lhe dizer verdades pela metade, sabendo de que travou amizade com Tamar - se ruborizou levemente - e comigo, o qual poderia levá-la a não ser imparcial?
Ela sentiu um calor abrasador nas faces.
—Bem poderia me dizer verdades pela metade, mas não inventaria nada gratuitamente – afirmou - cheguei a conhecê-lo bastante bem ao longo dos anos. Não há dúvida de que não era o marido que eu teria escolhido para minha filha, mas aprendi que há ocasiões nas quais um homem socialmente inadequado pode fazer a uma mulher muito mais feliz que qualquer outro que pudessem ter escolhido os amigos ou a família... - Se interrompeu ao cair na conta de que tinha expressado seus pensamentos com excessiva franqueza. Que eram aplicáveis a ela tanto como ao Charlotte.
Fielding parecia dispor-se a dizer algo, depois mudou de opinião, pigarreou e começou de novo, embora a ela não lhe escapou o momentâneo indício de diversão e seus olhos.
—De qualquer modo, acredito que estaria bem que Charlotte deixasse o assunto disse com gravidade - Pode tornar-se perigoso. Se não foi Aaron, teve que ser outra pessoa, alguém que claramente não vacila em voltar a matar uma e outra vez se se sente ameaçado. Não sei se Charlotte se aproximará o bastante para que ele chegue a isso, mas poderia fazê-lo, talvez sem sequer sabê-lo. Ela e Clio se fizeram amigas de Kathleen O'Neil. Só me ocorre que pretendem seguir a pista de Devlin. Se ele se der conta, ou o teme que... –Calou o resto.
Caroline estava desfeita. Seriamente se achava Charlotte em perigo? Mais do que o tinha estado em qualquer dos casos nos que tinha colaborado? Quem suspeitaria de uma mulher, uma esposa e mãe normal e comum?
—Não nego que faz muitas perguntas - disse - Que sua curiosidade é vulgar. Que está tratando de intrometer-se ali onde não tem... não tem direito nem por classe social nem por educação. - Que desleal soava! - Mas isso não é perigoso, tão só indecoroso e possivelmente ridículo.
—O juiz Stafford está morto, igual ao agente Paterson, ou isso li - indicou ele.
—Mas estavam ao serviço da lei - argüiu ela com veemência - E você diz que Charlotte e a senhorita Farber estão sobre a pista do Devlin O'Neil. Entretanto, é mais provável que a polícia persiga a você. Não teme por si mesmo?
—Caroline! - Fielding tomou suas mãos entre as suas com delicadeza, mas segurando-a o bastante para que não pudesse soltar-se - Caroline! Naturalmente que sim, mas que classe de amigo seria se antepusesse meus próprios temores de ser suspeito ao perigo ao que se expõe Charlotte por parte de quem quer que matasse Kingsley Blaine e aos outros? Rogo-lhe isso, lhe diga que deve deixar o caso. Muito temo que possa ter sido Devlin O'Neil. Não me ocorre ninguém mais exceto algum louco. Mas nesse caso certamente outros teriam a mesma sorte, e não foi assim.
—E sobre você? - perguntou Caroline com tom premente. Em seu interior ainda se aferrava à esperança de que Charlotte resolveria como já tinha feito com outros crimes no passado - A polícia se equivocara uma vez e ninguém pôde salvar Aaron.
—Sei querida, mas isso não muda nada. - Sua voz era muito amável; as mãos sobre as suas, cálidas, mas não afrouxava a pressão e não havia vacilação em seus olhos - Sei que a polícia suspeita de mim. Ao menos terei um julgamento e a possibilidade de apelar. Quem quer que seja o assassino não lhe dará tanto a Charlotte.
—Não - sussurrou Caroline - Suponho que não. O direi.
Fielding sorriu e lhe soltou as mãos, embora ao mesmo tempo a pegou pelo braço.
—Por que não vamos a algum lugar agradável tomar o chá? Podemos nos esquecer do mundo e de seus perigos e receios, da função de esta noite, e só pensar no muito que desfrutamos conversando. Há tantas outras coisas - Pôs-se a andar arrastando-a suavemente consigo - Acabo de ler um livro fascinante sobre uma viagem da imaginação. Impossível de converter em uma peça de teatro, certamente, mas sua leitura me foi muito enriquecedora. Suscitou em mim toda sorte de pensamentos e perguntas. Falarei-lhe dele, se você quiser. Desejo saber sua opinião.
Caroline cedeu ante tão imenso prazer. Por que não? Desejava que essa doce intimidade pudesse durar para sempre, mas era o bastante realista para saber que, como não, a avó tinha razão; era um sonho, uma ilusão, e o despertar seria muito mais duro depois. Mas ainda não era depois, e poria todo seu coração nisso enquanto pudesse.
—É claro - aceitou com um sorriso - Fale-me dele, rogo-lhe.
—Faz dias que leva sem dizer nada do assassinato, senhora - comentou Gracie à Charlotte na manhã seguinte, quando estavam atarefadas na cozinha. A criada limpava as facas com o Oakey"s Wellington, um produto composto por esmeril e grafite, e Charlotte fazia o mesmo com as colheres e os garfos com uma mescla caseira de amônia em pó, água e álcool.
—Isso é porque não me inteirei de nada mais - explicou a aludida fazendo uma careta - Sabemos que não foi Aaron Godman, mas continuamos sem saber quem o fez em realidade.
—Não sabemos nada de nada? - insistiu Gracie dando uma olhada à faca que segurava.
—Sabemos algumas coisas, é claro - respondeu Charlotte esfregando os cobertos laboriosamente - Foi alguém que sabia seu nome, estava no teatro e o enviou de propósito a um lugar cujo caminho passava forçosamente por Farrier"s Lane. E para falar a verdade, para fazer o que lhe fez devia odiá-lo muito. - Lançou mão de um pano limpo para dar brilho - Além da aberração da ação, seria perigoso permanecer ali mais do que o necessário depois de matá-lo. A ira deve poder mais que o instinto de conservação.
—Me vai dizer isso! - exclamou Gracie com veemência - Se eu acabasse de matar a alguém, não esperaria para pregá-lo a uma porta... algo que não pôde ser nada fácil. - Verteu mais líquido da lata em um pires - Eu teria posto pés na poeira. Antes que chegasse alguém e me encontrasse ali.
—De modo que foi alguém tão dominado pelo ódio que preferiu correr o risco, ou nem sequer o pensou - concluiu Charlotte.
—Ou... - Gracie limpava a folha da faca vigorosamente. Já estava reluzente - Ou foi alguém que tinha outro motivo para fazê-lo, como culpar a outra pessoa. E tendo em conta que enforcaram o pobre Godman por isso, funcionou bastante bem.
—Mas como culpava Aaron Godman crucificando-o? - perguntou Charlotte ao mesmo tempo em que passava a camurça a Gracie.
—Bom, isso fez que todo mundo pensasse que o assassino era um judeu - raciocinou a criada.
—Mas um cristão não faria isso, não é certo?
—Talvez sim. Talvez isso é exatamente o que faria se odiasse aos judeus e quisesse culpá-los.
—E por que ia alguém odiar tanto aos judeus? - Não obstante, a mente de Charlotte já se concentrara nos Harrimore, nas crenças de Adah, no fato de que Devlin O'Neil sabia que Kingsley Blaine estava apaixonado por Tamar Macaulay, uma judia. Possivelmente, de algum modo retorcido, odiasse não só ao Blaine, mas a toda a gente do teatro, e quando matou Blaine pensasse de repente na forma de implicar outra pessoa no crime.
—Você não acha, não é verdade? - inquiriu Gracie observando-a atentamente. - Continua pensando que foi o senhor Fielding, esse de quem gosta à senhora Ellison.
—Não sei Gracie. Suponho que pôde ser o senhor O'Neil. Parte de mim o deseja. Mamãe se sentirá muito ferida se foi o senhor Fielding. Entretanto, se não foi ele... - Suspirou e se absteve de dizer o que lhe estava passando pela cabeça.
—Não deveria preocupar-se tanto, senhora - aconselhou Gracie, a carinha ansiosa, esquecendo por um momento as facas - A senhora Ellison fará o que lhe agrade, e não há nada que a senhora possa dizer para mudá-lo. Mas entendo que tenha que averiguar quem cometeu o assassinato de Farrier"s Lane. Eu tampouco penso em outra coisa. - Deixou inclusive de fingir que trabalhava e soltou o pano para olhar Charlotte com absoluta concentração - O menino que levou a mensagem ao senhor Blaine à porta do teatro... Se o senhor pudesse falar com ele a sós, longe de outros policiais, talvez lhe contasse algo mais de como era o homem. - Um raio de esperança lhe iluminou o rosto-. Os outros policiais, os que levaram o caso a princípio, disseram-lhe que foi o senhor Godman. Bom, como era um menino da rua suponho que não quereria discutir com eles, não é verdade? Mas se lhe dizem que sabem que não foi o senhor Godman, talvez conte algo que sirva de ajuda.
—O senhor Pitt deu com ele - informou Charlotte com um sorriso de tristeza - Temo que não disse nada que servisse de ajuda. Entretanto é uma boa idéia.
—Oh.
Gracie continuou limpando, embora imersa em graves reflexões, e não disse muito mais durante o resto da manhã. Limitou-se a observar atentamente Charlotte justo antes que começassem a cortar as verduras para o jantar.
—Vai ao teatro amanhã com os Harrimore?
—Sim.
—Bem, tome cuidado, senhora. Se foi esse senhor O'Neil quem o fez, então é um homem malvado, que não se preocupa com ninguém salvo por si mesmo. Não vá por aí fazendo perguntas.
—Terei muito cuidado - prometeu Charlotte. Tinha uma estranha sensação no estômago, um nó na garganta, como se estivesse perto de algo que fosse a resultar terrível.
Charlotte se sentia culpada pelo fato de que Pitt não estivesse incluído na visita vespertina ao teatro, já que se tratava de um acontecimento intenso, excitante, à margem de qualquer informação que pudesse solicitar dos Harrimore ou os O'Neil. Entretanto, se tivesse acudido, quase com toda segurança teria posto fim a qualquer discussão, tão agora como em um futuro.
De modo que, apelando a sua força de vontade, seguiu Caroline escada acima atrás de Kathleen O'Neil, que ia pelo braço de Devlin, e Adah Harrimore, apoiada pesadamente em Prosper, que, embora mancasse um tanto, parecia não sentir dor no pé. Pelo visto a causa da claudicação era a deformidade com que tinha nascido, não uma enfermidade degenerativa.
O foyer estava a transbordar. Os lustres resplandeciam, apenas se se podia olhá-los, arrojavam cascatas de luz. As jóias brilhavam nos delicados penteados, em braços, pescoços, pulsos e dedos. As penas ondeavam ao voltar as cabeças. Os pálidos ombros reluziam entre a exuberância de sedas, tafetás, gazes e veludos de todas as tonalidades, a sutileza dos lírios, a calidez dos pêssegos e as rosas, a vitalidade fulgurante do escarlate, o violáceo e o azul, e atrás deles, o severo branco e negro dos trajes de gala.
Por toda parte se ouviam o frufru e o sussurro dos tecidos, o murmúrio das vozes, entre as explosões de risada.
Charlotte se voltou uma vez nas escadas para contemplar tudo bem e recordá-lo, o pulso acelerado, a transbordante vida, a espera, como se um milhar de pessoas soubesse que algo apaixonante estava a ponto de ocorrer.
Logo Caroline lhe puxou do braço e ela, obediente, continuou a subida e percorreu o amplo lance que as conduziria ao camarote dos Harrimore, onde lhes ofereceram assentos centrais, como convidadas que eram, com o Adah a sua esquerda e Kathleen a sua direita. Os dois homens se sentaram nos extremos, um tanto por detrás. Faltavam uns quinze ou vinte minutos para que desse começo a função. Ver chegar a outros formava parte do prazer de um evento assim, ao igual a, naturalmente, ser visto.
Uma mulher muito atraente percorreu o corredor situado abaixo deles mostrando tonalidades de fúcsia e do rosa mais pálido, a negra cabeleira recolhida em um coque exuberante, o caminhar garboso, embora com certo pavoneio. Olhava a direita e a esquerda, sorrindo levemente.
—Quem é? - sussurrou Charlotte.
—Não sei - respondeu Caroline - Sem dúvida é muito imponente.
Kathleen soltou um risinho que sufocou na hora.
—Ninguém - afirmou Adah secamente - Não é ninguém.
Charlotte estava perplexa.
A anciã se voltou para ela com uma expressão de diversão e repugnância a mesmo tempo.
—Pode ser que tais pessoas passem ante alguém, querida, mas não as vê. Para uma dama, são invisíveis.
—Oh… Oh, entendo. É uma...
—Exatamente. - Adah indicou com discrição um dos camarotes mais afastados no mesmo piso - Por outra parte ou possivelmente não. Aquela é a senhora Langtry, o Lírio de Jersey.
Charlotte não se incomodou em ocultar seu sorriso.
—Viu alguém alguma vez ao senhor Langtry? Nem sequer ouvi falar dele.
—Eu sim - respondeu Adah com secura - Mas não vou repetir o que se disse. pobre homem.
Era claro que o dizia a sério, de forma que Charlotte não perguntou e continuou olhando os outros camarotes em busca de gente interessante. Não demorou muito em descobrir que ao menos a metade de quem ela observava estava interessada em um camarote concreto situado em um extremo, onde havia um considerável ir e vir tanto de homens como de mulheres. A indumentária dos cavalheiros em particular seguia os últimos ditados da moda, embora fosse difícil dizer que moda. Levavam o cabelo muito mais longo do habitual, o rosto bem raspado e da gola de suas camisas transbordavam, murchos, grandes lírios. Não obstante, gotejavam certa elegância, quase uma frouxidão, bastante peculiar.
—Quem são? - quis saber Charlotte, picada pela curiosidade - São críticos?
—Duvido - respondeu Devlin com um sorriso - Os atores costumam vir muito bem vestidos, mas de um modo um pouco mais convencional. Quase seguro que são estetas, um grupo com uma grande sensibilidade artística de espírito, embora não necessariamente de produção. Temo-me que o senhor Gilbert os ridicularizou em sua ópera Paciência. Deveria vê-la, é muito divertida, e a música é deliciosa.
—Farei-o, sem dúvida. - Charlotte lhe devolveu o sorriso com cordialidade, depois recordou de repente o propósito de sua visita. Ficou gelada, a vista ainda pousada nele. Por um momento a situação a golpeou com tudo seu absurdo. Traziam seus melhores ornamentos: ele um traje de gala negro com abotoaduras de ouro e botões de ônix e madrepérola; ela um vestido emprestado do Caroline, com novas guarnições para modernizá-lo, em uma tonalidade vinho que lhe assentava à perfeição, algo que ela sabia, de decote pronunciado e com uma diminuta anquinha. Achavam-se ali em qualidade de convidadas de Prosper Harrimore, aguardando que se elevasse o pano de fundo no palco no qual os tinha unido em virtude de uma soada tragédia iriam representar uma comedia de costumes, todos eles pronunciando palavras nas quais não acreditavam, nem no palco nem fora dele. E durante todo esse tempo ela trataria de determinar se era Devlin quem tinha assassinado e crucificado Kingsley Blaine e permitido que se enforcasse Aaron Godman por isso.
Devlin O'Neil a observava com curiosidade.
Charlotte se obrigou a afastar o olhar. Voltou a cabeça para contemplar a ampla sala, os camarotes, piso por piso, estofados em veludo, agora cheios de gente espectadora, a palidez de seus rostos voltados para o cenário. Tinham esgotado, ou esquecido temporariamente, seus próprios dramas. Lillie Langtry estava muito inclinada em seu assento, não só para ver, mas para ser vista. Inclusive os estetas se esqueceram por uma vez de si mesmos e sua atenção se concentrava no pano de fundo, deixando a um lado seu próprio talento.
Que extraordinária convenção que umas quantas horas de irrealidade precisa e formal os mantiveram encantados, juntos e, entretanto irremediavelmente separados, todo isso graças ao poder da imaginação alimentada por uns homens e mulheres vestidos com roupas emprestadas que pronunciavam palavras deste modo emprestadas.
O murmúrio de vozes morreu, e o silêncio palpitou com respirações contidas, o débil frufru de tecidos e o ranger de espartilhos. Ergueu-se o pano de fundo. Ouviu-se um suspiro, como o som do vento ao revolver as folhas. Os focos iluminaram Tamar Macaulay em pé, sozinha, no centro do palco. Não se movia apesar do que sua figura irradiava tão impressionante poder que nenhum olho podia afastar-se dela. Inclusive Lillie Langtry se desentendeu de seus admiradores e ficou olhando-a fixamente. Tamar não possuía a beleza de Lírio de Jersey, e tampouco sua fama, mas sim uma emoção tão profunda que ultrapassava ambas, e durante esse espaço de tempo o público era seu.
Joshua Fielding apareceu em cena. Junto a Charlotte, Caroline ficou rígida, conteve a respiração e se inclinou um tanto. Começou a peça.
Charlotte também estava pendente do palco, mas se voltava com mais freqüência para olhar às pessoas com quem compartilhava o camarote. Kathleen O'Neil estava sentada com elegância, um sutil sorriso nos lábios, a vista fixa na figura dos atores. Charlotte esquadrinhou sua expressão quando olhava ao Joshua e não viu nada nas suaves faces, nos olhos amendoados, nem rastro de suspeita, de curiosidade. Se se expunha a culpa de Aaron Godman, o papel de Joshua na tragédia, não parecia que tais pensamentos a ocupassem nesse momento.
Tamar voltou para o palco. Os focos iluminavam seu rosto enquanto declamava seus versos, a sonora voz tinta de emoção.
Algo fez que Kathleen franzisse o sobrecenho. Sua boca se estreitou, a língua, tocou seus lábios. Não seria humano se não se perguntasse como era essa mulher, que fogo ardia em seu interior para que seu próprio marido tivesse arriscado tanto para estar a seu lado. Mas nem sequer olhando-a tão abertamente como o fazia viu Charlotte ódio nos olhos da Kathleen, sentimentos violentos, só uma triste curiosidade e, a suas costas, a mão de Prosper aferrando-se mais a sua cadeira, os dedos brancos. Talvez ele pudesse aliviar sua dor mais do que ela mesma era capaz.
Kathleen se voltou, sem ver Charlotte, e sorriu ao Devlin O'Neil, que se achava atrás de Adah. Devolveu-lhe o sorriso, um olhar cálido, amável, e os lábios de Kathleen se curvaram ao voltar a vista de novo ao cenário.
Quanto tempo estava Devlin O'Neil apaixonado por ela? Desde muito antes da morte de Kingsley Blaine? Era uma idéia muito desagradável, e Charlotte lamentou ter que contemplá-la. Gostava dos dois. Uma tragédia era mais que suficiente.
Observou agora o braço de Devlin apoiado na cadeira de Adah. Sua mão era delicada, estava bem arrumado; o gênero de sua jaqueta era excelente gabardina; a camisa, com as abotoaduras de ouro, era de seda. Como teria sido sua vida antes de casar-se com Kathleen?
Charlotte desviou o olhar para Adah, contemplou seu rosto sulcado por marcadas rugas causadas por alguma emoção que a turvava profundamente. Não era nova, não havia urgência nela, só uma velha dor que a afligia desde há tempo. Já tinha enraizado nela; era questão de suportá-la.
Do que se tratava? Decepção? Não, era muito aguda. Tampouco era medo. Era algo mais que pesar.
Charlotte se voltou para observar Prosper, atrás de Caroline, a mão ainda na cadeira da Kathleen. Seu contundente rosto, com os olhos afundados, o nariz afiado, estava fixo no palco, alheio a sua família e seus convidados. Era a ação o que o mantinha absorto, ou acaso Tamar Macaulay, a mulher que tinha roubado o marido de sua filha?
Ninguém mais estava pendente de Charlotte ou dos O'Neil, de Adah ou Prosper Harrimore. Só Joshua Fielding se movia sob os focos.
Charlotte olhou de novo Adah e então soube qual era a emoção que a rasgava: a culpa.
Por quê?
Porque Prosper tinha um pé aleijado e ela se sentia responsável? Aquela ridícula idéia de que seu marido se desonrara a si mesmo com uma judia e depois a tinha poluído a ela, e provocado a deformidade de seu filho nonato?
Adah se voltou e pilhou Charlotte olhando-a. Arregalou os olhos.
Charlotte engoliu em seco e notou que se ruborizava.
—Estou-lhes tão agradecida pelo convite... - Se obrigou a pronunciar essas palavras e se sentiu uma hipócrita abjeta - É uma obra fantástica. Terá que ver o que está sofrendo essa mulher por seu filho. Acho comovente - Se interrompeu ao perceber que lhe travava a língua.
—Me alegro de que esteja desfrutando - respondeu Adah fazendo um esforço-. Sim, é uma obra intensa.
Permaneceram em silêncio uns minutos mais, possivelmente quase um quarto de hora. Logo no palco a ação alcançou um clímax com a entrada do menino na obra. Charlotte não esperava um menino de verdade, de modo que ficou sobressaltada ao vê-lo aparecer, esbelto, de cabelos loiros e rosto melancólico, inocente. Recordou- lhe vivamente a alguém, mas não caía na conta de quem se tratava. Não se parecia em nada a seus próprios filhos; este era mais loiro, seus traços mais suaves.
Em seguida ouviu o grito abafado da Kathleen O'Neil, viu-a levar a mão à boca para sufocar outro mais, e, a suas costas, reparou em que a mão do Prosper Harrimore pegava com tal força o espaldar da cadeira que suas unhas fizeram correr um fino fio de sangue por seu pulso.
O menino guardava uma assombrosa semelhança com a filha da Kathleen, só que se tratava de um menino, ou de alguém vestido para parecê-lo. Devia ter diferença de idade só de uns meses. O pirralho se achava frente à Tamar Macaulay, sua mãe na obra e, com toda segurança, também na vida real.
O filho do Kingsley Blaine - de mãe judia - um menino formoso, de rosto e membros perfeitos. Tamar devia tê-lo concebido quando Kathleen concebeu a sua filha.
Angustiada, Charlotte caiu de repente na conta de qual era a culpa de Adah, o medo que tinha visto nela antes e de qual era a emoção que fez sangrar os punhos fechados de Prosper Harrimore.
Não foi Aaron Godman quem matou Kingsley Blaine, tampouco Joshua Fielding por ciúmes, nem Devlin O'Neil para ganhar a Kathleen. Foi Prosper Harrimore, que odiava e temia o diferente, o que achava responsável por sua própria imperfeição, de sua deformidade. A história havia tornado a repetir-se: sua filha tinha sido enganada por seu marido com uma judia quando estava grávida de seu filho, outra criatura que nasceria disforme, imperfeita.
Não havia provas, nenhum modo de estar segura salvo sua poderosa convicção. Mesmo assim não albergava nenhuma dúvida. Estava ali, escrito no rosto de Adah, no de Prosper quando olhava o menino do palco.
—Harrimore? - disse Drummond desconfiado. - Não tem nenhum sentido, Pitt. Pelo amor de Deus, por quê? - Estava em pé frente à estante de seu escritório. O fogo ardia com vivacidade, seu calor invadia a estadia - Pode ser que descobrisse que Blaine estava enganando a sua filha, mas nenhum homem cordato assassina por algo assim. Podia ter lhe parado os pés só lhe expondo a questão cara a cara. Depois de todo o sustento do Blaine dependia dele. - Lançou a Pitt um olhar penetrante - E não me diga que o expôs no pátio da ferraria de Farrier"s Lane e brigaram. Bobagens! Podia ter enfrentado ele comodamente em seu próprio lar. Esse homem vivia em sua casa. Não tinha necessidade de inventar uma farsa tão complicada para fazer que Blaine acudisse a Farrier"s Lane no meio da noite. E você terá que fazer algo mais que me dizer que Prosper Harrimore está louco. É um reputado membro da comunidade financeira, ao menos tão respeitável como qualquer outro homem de negócios.
Pitt esboçou um leve sorriso.
—Respondeu a todos os argumentos que não expus - observou.
—O que? - Drummond franziu o sobrecenho. Estava de pior humor e mais lento de entender que de costume. Pitt sabia que tinha deixado de pôr a alma no empenho.
—Digo que respondeu a todos os motivos que não lhe dei - repetiu.
—Oh. Então que motivo acredita que tinha Harrimore para assassinar a seu genro? Seja como for, como chegou a essa conclusão? Ainda não me disso isso.
O inspetor mordeu o lábio e se sentiu envergonhado.
—Isso é menos simples. Para falar a verdade foi Charlotte quem chegou a essa conclusão. - apressou-se a olhar Drummond, mas não viu a impaciência que esperava. Agarrou ar e se lançou - Charlotte cultivou a amizade de Adah Harrimore, a mãe de Prosper, e passou algum tempo falando com ela. Sabíamos que albergava um profundo rancor contra os judeus, mas eu supus que nascia de sua crença de que um judeu assassinou ao marido de sua neta de um modo especialmente brutal e ofensivo. -Afundou ainda mais as mãos nos bolsos, um consolo que não teria estimado possível diante de qualquer outro superior – Muitas outras pessoas que nem sequer o conheciam sentiam o mesmo. Mas aparentemente seus sentimentos anti-semitas se remontam muito mais no tempo; provavelmente a sua infância. Ela acredita que os judeus são impuros e que são os responsáveis pela crucificação de Cristo.
—E o são - corroborou Drummond, a perplexidade em seus olhos.
—Certamente que o são - replicou Pitt com tom exasperado - Quase todos os personagens da história, bons, maus e indiferentes, incluindo o próprio Cristo, eram judeus! Como o eram Maria e Maria Madalena e os apóstolos. Como o eram também todos os profetas do Antigo Testamento.
—Isso suponho. - Drummond enrugou a fronte, como se a idéia lhe fosse nova - Mas o que tem isso que ver com Adah Harrimore e com Prosper?
—Ela é da opinião, que compartilha muitas outras pessoas - explicou Pitt com confusão - em particular os criadores de prestígio (vi-o enquanto crescia no campo), de que se uma boa cadela escapar e retorna com um cachorrinho de um vira-lata qualquer...
—Pitt! Pelo amor de Deus! - exclamou Drummond - De que demônios está falando?
—De que a cadela está perdida - terminou Pitt - depois disso todas suas ninhadas estarão poluídas.
—Suponho que sabe do que fala.
—Sim. Adah Harrimore achava que uma mulher que mantivera trato carnal com um judeu ficaria poluída para todo sempre. Qualquer filho que viesse depois se veria afetado.
—Por que ia isso explicar que Prosper Harrimore matasse Kingsley Blaine? - inquiriu Drummond com impaciência.
—Porque o marido de Adah a enganou com uma judia estando ela grávida de Prosper… e ele nasceu com um pé e uma perna disformes - esclareceu Pitt com tom fatigado - Ela acredita que foi conseqüência direta do trato com judeus. Inculcou isso a Prosper, quem atribui sua deformidade aos atos de seu pai. Quando viu que Kingsley Blaine estava enganando a sua filha (também grávida) exatamente do mesmo modo, adotou medidas violentas, apaixonadas para evitá-lo antes que seu neto nascesse disforme e sua filha perpetuasse sua desonra em futuros filhos.
—Santo Deus! - Drummond meneou a cabeça - Não sabia. Há algo de verdade em tudo isto? Pode tornar-se... pode tornar-se a perder o gado de tal modo?
—Não! - exclamou Pitt furioso - São bobagens perversas e supersticiosas, mas há pessoas ignorantes que acreditam nelas, e os Harrimore se encontram entre elas. A velha Adah assim o disse a Charlotte.
Drummond estava envergonhado por ter acreditado, embora fosse por um momento. Suas faces se tingiram de vermelho.
—Ela o admitiu? - perguntou com surpresa.
—Admitiu que os judeus eram impuros, a seu julgamento - explicou Pitt - E que essa era a causa da deformidade do Prosper.
Drummond suspirou.
—Mas não tem provas, não é verdade?
—Não. Ainda não.
—Bem, será melhor que as busque. Acredito que vou abster-me de contar a alguém sobre Aaron Godman até que tenhamos algo concludente.
—Farei o que puder. Voltarei a visitar o porteiro do teatro para ver se recorda algo mais. - Pitt se dirigiu à porta e estava a ponto de abri-la quando Drummond falou de novo.
—Pitt.
Este deu meia volta.
—Sim, senhor?
—Quando o caso estiver encerrado, apresentarei minha demissão. Já o disse ao subcomissário. Vou recomendar lhe você para que ocupe meu lugar. Antes que diga algo me deixe lhe explicar que não será unicamente um trabalho de escrivaninha. Poderá controlar você mesmo grande parte do que faça. - Esboçou um leve sorriso de afeto e respeito - Não terá a ninguém em quem confiar como eu tenho a você. Deverá encarregar-se você mesmo de boa parte da investigação dos casos mais graves, em particular dos especialmente delicados do ponto de vista político. Não o recuse sem ter pensado bem.
Pitt engoliu saliva com dificuldade. Não deveria estar surpreso, mas o estava. Tinha pensado que Drummond superaria esse estado de ânimo, mas agora se dava conta de que tinha que ver com Eleanor Byam, e de que era definitivo.
—Obrigado, senhor – murmurou - Sentirei muito sua falta.
—Obrigado, Pitt. - Drummond parecia perturbado, agradado, vulnerável – Sem dúvida o verei de quando em quando. Eu... - Se interrompeu, sem saber como continuar.
Pitt sorriu.
—Sim, senhor. - Olhou Drummond nos olhos e soube que este compreendia, e que era melhor não dizê-lo - irei ver o porteiro.
Micah Drummond sentiu um profundo alívio, quase euforia, agora que não só tinha tomado a decisão, mas, além disso, se comprometera com ela. Havia dito a Pitt. Não havia forma honrosa de voltar atrás. Economicamente não importaria. Teria menos dinheiro, é claro, já que perderia seu salário de polícia. A Pitt suporia uma imensa melhora, mas para Drummond o salário sempre tinha sido algo que estava bem, mas não necessário de modo algum. Tinha herdado consideráveis meios e lhe correspondia a posição de cavalheiro; não por ascensões, mas sim por nomeação em virtude de sua experiência militar, sua capacidade administrativa e precisamente por ser um cavalheiro, de confiança, com dotes de comando e da mesma classe e natureza que quem o escolheu.
Sobre Pitt seria um assunto completamente diferente, embora tivesse descoberto em conversas delicadas que havia no Ministério do Interior pessoas poderosas que aprovariam sua nomeação.
Também haveria quem estaria em desacordo, quem levaria a mal e receariam de um homem da classe operária, independentemente de quão bem falasse. Nunca seria um deles; isso era algo com o qual devia nascer. Mas já era hora de que os homens encarregados de resolver importantes crimes fossem profissionais, não distinguidos aficionados, por muito respeitados ou agradáveis que fossem.
Quinze minutos depois que Pitt saira do escritório, Drummond pegou o chapéu, o casaco e a bengala, e partiu. No meio da tarde já parecia. Tinha apresentado sua demissão, em um mês a partir desse dia, e tinha sido aceita a contra gosto. Tal e como lhe tinha sido insinuado anteriormente, tinham-lhe assegurado que Thomas Pitt seria nomeado sucessor dele. Tinha tido que brigar, entregar-se a uma politicagem muito mais tortuosa do que nunca antes tinha praticado.
Agora descia pelo Whitehall a grandes passadas, contra o vento inclemente, o passo alegre e a cabeça alta. Ao chegar a Parliament Street chamou uma carruagem, e sua voz ressoou no ar cortante como um desafio.
O cocheiro se deteve.
—Senhor?
Deu-lhe o endereço de Eleanor Byam e subiu ao veículo. Recostou-se no assento com o coração acelerado. Se pedisse a Eleanor agora, a resposta não seria a não ser afirmativa, ou possivelmente ela não sentia o mesmo por ele. Já não valiam as desculpas de que lhe custaria sua posição, fosse profissional ou social. Não deixava de lhe dar voltas e mais voltas na cabeça à medida que a carruagem se dirigia para o este rangendo por entre o tráfico, com muita dificuldade era consciente do trajeto. Pensou em cada um dos argumentos que ela empregaria, em como ele os rebateria, em todas as garantias que lhe ofereceria. E durante todo esse tempo uma parte pequena, corda, de sua mente se empenhava em lhe dizer que as palavras não importavam. Ou ela desejava aceitá-lo, em cujo caso os argumentos eram desnecessários, ou não o desejava, e neste caso de nada serviriam. É impossível convencer a alguém de que ame.
Mesmo assim seu cérebro seguia entregue às palavras. Possivelmente fosse uma espécie de anestésico até que chegasse e a sorte estivesse arremessada. As palavras eram mais fáceis que os sentimentos, menos dolorosas, em muitos sentidos menos reais.
—Chegamos senhor. - A voz do cocheiro se intrometeu, e depois de dar um pulo Drummond devolveu sua atenção ao presente e saiu a toda pressa.
—Obrigado. - Pagou generosamente ao homem, diria uma oferenda supersticiosa à fortuna, e antes que tivesse tempo para pensar e duvidar de si mesmo bateu na porta.
Como as outras vezes, abriu-a a criada mal-humorada.
—Oh... é você - disse torcendo o rosto - Bem, será melhor que entre, embora não sei o que vai dizer a senhora Bridges. Esta é uma casa respeitável e não gosta que suas hóspedes recebam visitas regularmente. Ao menos não o que se diz admiradores.
Drummond se ruborizou.
—As criadas têm admiradores - replicou com aspereza - As damas têm amizades ou, se desejam pedir sua mão em matrimônio, pretendentes. Se quiser conservar seu posto, eu em seu lugar recordaria a diferença e falaria com mais educação.
—Oh! Bom, eu...
A mulher não disse mais. Drummond passou diante e percorreu com urgência o corredor nu em direção à parte de trás, aos aposentos de Eleanor. Uma vez ali bateu com mais força do que pretendia, ao cabo de uns segundos ouviu passos do outro lado e a porta se abriu. Ao vê-lo, o rosto da criada se encheu de satisfação, inclusive de alívio.
—Oh, senhor, me alegro tanto de que tenha vindo. Tinha tanto medo de que não voltasse.
—Prometi-lhe que voltaria - murmurou, apreciando enormemente a lealdade da mulher - Está a senhora Byam?
—Oh, sim, senhor. Não costuma sair muito. Não há nenhum lugar aonde ir.
—Importaria-lhe lhe perguntar se pode me receber?
A criada sorriu e manteve a ficção.
—É claro, senhor. Se for amável de esperar aqui. - Não havia saleta de manhã nem biblioteca, tão só uma diminuta sala de espera, menos que um saguão, mas permaneceu ali tal como lhe tinha pedido enquanto ela desaparecia para retornar um momento depois, o rosto esperançado - Sim, senhor. Se for amável de me seguir. - Tomou o chapéu, o casaco, a bengala e os pendurou, Depois o conduziu até a pequena sala de estar, cheia de coisas de Eleanor. Ele nem sequer a ouviu sair.
Eleanor estava junto à janela e Drummond soube imediatamente que não tinha permanecido sentada porque se sentia em desvantagem. De algum modo sutil lhe tinha medo.
Em lugar de ira sentiu compaixão. Ele também tinha medo, medo da dor que Eleanor pudesse lhe causar se o rechaçava.
—Me alegro muito de ver-te, Micah - saudou ela sorridente - Tem muito bom aspecto, apesar do tempo. Está avançando por fim o caso?
—Sim - respondeu ele com uma ligeira surpresa. - Sim, está avançando. Pitt já sabe quem o fez e por que.
Ela ergueu suas escuras sobrancelhas.
—Quer dizer que não foi Aaron Godman?
—Não... não foi ele.
—Oh, pobre homem. - O rosto de Eleanor refletiu uma imensa tristeza pela dor que imaginava - Que horror. - Olhou pela janela as paredes molhadas do edifício da frente - Sempre pensei que o enforcamento era uma barbaridade. Isto o faz duplamente bárbaro. Como se sentirá sua família?
—Ainda não sabe. Não podemos demonstrar quem o fez. - Drummond desejava aproximar-se dela, mas era muito cedo. Sua força de vontade o fez ficar onde estava - Estou bastante seguro de que Pitt está certo, ou possivelmente deveria dizer Charlotte. Foi ela quem o descobriu. Mas no momento não há provas, nada que pudesse convencer a um jurado.
—Mas Godman é inocente, não?
—Oh, sim. As provas a esse respeito são bastante boas.
Eleanor lhe dirigiu um olhar rápido.
—O que vai fazer?
Desta vez ele sorriu.
—Muito pouco. Será Pitt quem o fará.
—Não entendo. Sei que Pitt se encarregará de interrogar às pessoas. Lembro-me do suficiente para saber isso. Mas não cabe dúvida de que as decisões tomará você, não é certo? - Uma expressão zombadora apareceu em seu rosto, uma onda de lembranças.
—Isso depende de quando chegue a solução, embora espere que não tarde muito. Está bastante zangado, e triste, para lhe dedicar toda sua atenção.
—Continuo sem entender. Parece querer dizer mais do que em realidade está dizendo. - Havia um tom interrogante em sua voz, ansiedade em seus olhos. - Deseja me fazer partícipe ou...? - Não terminou a frase.
—Sim, naturalmente que o desejo. Sinto muito. - Era ridículo brincar com ela, ou consigo mesmo. Devia ter a coragem de pôr a prova. Tomou ar e depois de soltá-lo acrescentou - apresentei minha demissão ante o delegado, entrará em vigor dentro de um mês. E recomendei Pitt como meu sucessor. Acredito que o fará melhor que nenhum outro. Cometerá enganos, mas também será mais provável que consiga mais coisas positivas que qualquer outro.
Eleanor parecia perplexa.
—Demitiu-se? Por quê? Sei que perdeu um pouco de interesse, mas não cabe dúvida de que a coisa mudará. Não pode se dar por vencido sem mais.
—Sim, sim posso quando há outras coisas que me importam muito mais.
Eleanor ficou imóvel, olhando-o com gravidade; em seus olhos uma interrogação.
Agora era o momento. Não tinha sentido andar-se com rodeios ou tentar surpreendê-la.
—Eleanor, sabe que a amo e que desejo me casar com você. Quando lhe pedi isso da outra vez indicou que isso me custaria minha posição e que por essa razão me rechaçava. Agora já nada nos impede isso. me casar com você não me causará nenhum prejuízo, só me dará a maior das felicidades. Agora não pode me rechaçar, a menos que não deseje a mesma felicidade. - Drummond se interrompeu ao dar-se conta de que havia dito tudo que queria dizer, que seria torpe pressionar em excesso, repeti-lo.
Eleanor continuava imóvel, o rosto um tanto corado, os olhos solenes, mas com um leve sorriso nos lábios. Por uns segundos os dois permaneceram muito quietos. Depois lhe estendeu a mão, a palma para baixo, como se quisesse agarrar a sua. Era um convite e, com um estremecimento, ele soube. Sorriu, o coração a ponto de sair do peito. Teve vontade de cantar, de gritar, mas qualquer som teria estragado o momento. Aproximou-se dela e tomou a mão para atraí-la suavemente para si. Incontáveis eram as vezes que tinha desejado fazê-lo, que o tinha imaginado, e agora ali estava ela. Sentia a calidez de seu corpo através do vestido, cheirava seu cabelo, sua pele, mais premente e excitante que todos os perfumes de lavanda ou rosas.
Beijou-a com doçura, logo mais intensamente, por fim com absoluta paixão, e Eleanor lhe respondeu com uma entrega com a que jamais teria sonhado.
Gracie também tinha tomado uma decisão. Ia ajudar a resolver o caso, e sabia como; não exatamente - isso teria que esperar que tivesse averiguado algo mais- mas não cabia dúvida de que sabia por onde começar e o que pretendia conseguir. Daria com esse desgraçado das ruas que se negara falar com o Pitt do homem que deu a mensagem para Kingsley Blaine à porta do teatro. Pelo que havia dito a senhora, Aaron Godman, pobre diabo, parecia-se muito pouco ao senhor Prosper Harrimore. Para começar, Harrimore lhe dobrava a idade e a estatura! O moço não podia ser tão idiota para não dar-se conta de algo assim se parasse para pensar nisso e recordá-lo.
Levaria certo tempo, dois dias quando pouco, e não seria simples dar a sua senhora uma desculpa que fosse acreditável. Não obstante, tinha sido uma boa mentirosa no passado e não cabia dúvida de que podia voltar a sê-lo por uma causa nobre. Já tinha conseguido o nome do moço pela boca de Pitt, assim como seu paradeiro.
—Por favor, senhora - rogou com o olhar baixo - minha mãe está em apuros. Poderia me conceder alguns dias para ir ajudá-la? Tentarei estar de volta o antes possível. Se deixar tudo feito hoje, poderei ir amanhã? Levantarei às cinco e prepararei todos os fogos e esfregarei o chão da cozinha antes de partir. E estarei de volta pela tarde para fazer as verduras e esfregar os pratos depois de jantar e as camas e tudo. Por favor, senhora.
A única coisa que a fez sentir-se culpada no fundo de seu coração foi o olhar de preocupação de Charlotte e a prontidão com que lhe deu permissão. Mas se tratava de uma boa causa. E agora rogava a Deus que pudesse localizar a esse desventurado e lhe inculcar um pouco de bom senso.
Apressou-se a desaparecer antes que lhe fizessem mais perguntas e pôs mãos à obra com resolução.
Na manhã seguinte não faltou a sua promessa. Levantou-se às cinco, tropeçando na escuridão e tremendo de frio. Deslizou-se silenciosa escada abaixo para crivar as cinzas do fogão da cozinha, limpá-lo, lustrar a churrasqueira, prepará-lo, acendê-lo e ir atrás do carvão; depois a lareira do salão. A seguir encheu o balde de água e esfregou a mesa da cozinha, depois o chão, e às sete já tinha varrido o salão e o corredor e deixado tudo preparado para o café da manhã.
As sete e quinze, justo antes que se fizesse de dia, saiu pela porta principal antes que Charlotte descesse para pôr ao fogo a chaleira. Uma vez na rua, o sombrio amanhecer ainda iluminado pela luz amarelada dos lampiões, dirigiu-se a bom passo para a rua principal e a parada de ônibus em que iniciaria seu trajeto até o Seven Dials.
Não estava de todo segura do que pretendia fazer, mas tinha acompanhado Charlotte mais de uma vez quando esta se dedicava a fazer averiguações. Era questão de formular as perguntas adequadas a quem conhecia as respostas e, o mais importante, expô-las de forma correta. Razão pela qual ela era mais indicada para este trabalho que a própria Charlotte ou inclusive Pitt. Conheceria o Joe Slater de igual a igual e estava convencida de que ela o entenderia melhor. Saberia se mentia e, possivelmente, inclusive por que.
Era um dia sem vento, mas de um frio glacial. As calçadas estavam escorregadias e o frio penetrava nos ossos atravessando os finos xales e os vestidos de algodão. Suas velhas botas ofereciam escasso amparo frente às geladas pedras.
Quando o ônibus se deteve, Gracie se apeou junto com outros quantos e olhou ao redor. O lugar que Pitt tinha mencionado ficava a só noventa metros, e ela caminhava a passo vivo. Tratava-se de uma rua estreita cujo lado esquerdo estava cheio de carrinhos de mão e postos que vendiam pequenos artigos, em sua maior parte de tecido e couro. Sabia que muito poucos eram novos; quase todos eram feitos de roupas velhas, das que se recortaram as partes boas para utilizá-las de novo. E o mesmo podia dizer-se dos sapatos. O couro tinha sido descosturado e voltado a cortar e costurar.
Agora devia começar a procurar o Joe Slater. Lentamente, como se estivesse procurando uma ganga, começou a percorrer as fileiras de desconjuntados carrinhos de mão e bancos feitos de tábuas de madeira, ou inclusive mercadorias dispostas sobre o mesmo meio-fio. Não experimentou a culpa do Pitt ao ver os rostos macilentos; os olhos afundados, ansiosos; os magros, trêmulos corpos com suas roupas puídas. Ela tinha sofrido a pobreza em sua própria carne. Seus aromas, seus sons familiares se apoderaram dela e a fizeram desejar dar meia volta, retornar ao ônibus e deixar todo aquilo atrás. No Bloomsbury, em sua casa, havia uma cozinha cálida, e às onze, chá quente, que tomava sentada com os pés junto à lareira, e cheirava a madeira, a farinha e a roupa limpa.
A primeira meia dúzia de vendedores eram homens de meia idade ou mulheres, de modo que continuou avançando, afastando a vista para evitar entrar em regateios. Quando por fim achou a um moço, ficou olhando-o com atenção antes de falar.
—Quer algo ou só veio para olhar? - perguntou ele com irritação - Conheço você?
Gracie deu de ombros e lhe dedicou um meio sorriso.
—Não sei, conhece-me? Como se chama?
—Sid. E você?
—Conhece o Joe Slater?
—Por quê?
—Porque queria comprar algo, claro - respondeu ela.
—Eu tenho muitas coisas boas. Quer umas botas novas? Tenho botas de seu tamanho - anunciou esperançado.
Gracie observou a coleção de botas desdobradas diante do moço. Teria gostado de fazer-se com umas novas, mas o que diria Charlotte se levasse umas dessas, feitas de couro velho, os refugos de outros? Talvez não se desse conta. Quem olhava o calçado sob uma saia longa? E todas as saias do Gracie eram bem longas, já que ela era bastante baixa.
—Possivelmente... - disse pensativa - Quanto?
O menino pegou um par marrom claro.
—Uma e cinco pennies e meio, por ser você.
—Uma e dois pennies e três quartos - ofereceu ela imediatamente. Jamais lhe teria ocorrido pagar o primeiro preço.
—Uma e quatro pennies e um quarto - respondeu o menino.
—Uma e dois pennies e três quartos, ou o deixamos - resolveu ela. Eram umas botas de bonita feitura e boa cor. Só havia um pedaço de couro que parecia realmente desgastado. Fez gesto de partir.
—Está bem! Uma e três pennies - propôs o moço - Que importa um quarto.
Gracie rebuscou em seu grande bolso e tirou o moedeiro. Contou duas moedas de seis pennies e uma de três, mas as manteve na mão.
—Onde posso achar ao Joe Slater?
—O que ocorre? As botas não são bastante boas para você?
—Onde está? - perguntou ela, o punho fechado com o dinheiro.
—Aventais de couro, uns dez postos mais abaixo. - O rapaz estendeu a mão para que lhe pagasse.
Gracie lhe entregou o dinheiro, agradeceu e levou as botas.
Achou Joe Slater aproximadamente onde Sid lhe havia dito. Observou-o com discrição durante uns minutos, pensando no que lhe diria, como começaria. Era um moço fraco, esquálido, de cabelo loiro e cautelosos olhos cinzas. Gostou de seu rosto. Naturalmente se tratava de um julgamento apressado e estava bem disposta a mudá-lo se fosse necessário, mas no momento havia algo em seus traços que lhe agradava.
Decidiu-se. Elevou o queixo, ergueu-se e se dirigiu para ele, os olhos brilhantes, o olhar direto.
—É Joe Slater? - perguntou com tom desenvolto. Sua voz transmitia sua convicção de que o era.
—E você quem é? -inquiriu ele por sua vez com certa suspeita. Terei que ser cuidadoso.
—Sou Gracie Hawkins - respondeu ela - Quero falar com você.
—Estou aqui para vender, não para falar com moças - esclareceu ele, mas não havia brutalidade em sua voz e sua expressão não delatava desagrado.
—Eu não o impeço que venda - assegurou ela. Agora chegava a mentira, ao menos a primeira - Trabalho para uma dama do teatro que poderia ajudar se quisesse.
—E o que tiro eu disso?
—Não sei! Eu não tiro nada, isso asseguro. Mas acredito que você poderia tirar algo bom. Ela não é pobre, e tampouco miserável.
—E por que eu? O que quer que faça por ela? - O moço enrugou o rosto em uma expressão de receio - Está zombando de mim?
—Tenho melhores coisas a fazer que vir até aqui em busca de alguém de quem nunca ouvi falar só para zombar! - exclamou ela entre gargalhadas zombeteiras. - Tem que ser você porque é o único que conhece.
—Que conhece o que? - Malgrado, estava interessado.
—A cara de um tipo que matou a alguém. Assassinou-o de um modo horrível e enforcaram por isso ao homem que não era.
O menino empalideceu e em seus olhos apareceu um olhar inquisitivo, zangado.
—Está falando do que assassinaram em Farrier"s Lane, não? Bom, já disse aos policiais tudo o que sei e não vou dizer nada mais a ninguém. Enviaram-lhe aqui os policiais? Deus, esses filhos da puta não vão deixar me alguma vez em paz? - O moço destilava agora verdadeira amargura e seu corpo estava rígido, os punhos apertados.
—Sim, né? - disse Gracie com sarcasmo, zangada consigo mesma por lhe haver azedado o humor e também com ele - Assim sou da polícia, é isso? E só tenho esta pinta quando estou investigando um caso. Em realidade meço um metro oitenta e sou forte como um touro. Todo um policial... Tirei o uniforme para vir até aqui.
—Ah, é muito esperta - replicou ele com desdém - Assim não é um policial. Então por que quer saber coisas desse tipo? Tudo terminou. Esses malditos policiais me têm encurralado como a um rato depois. Primeiro tentaram me convencer de que vi um homem que não vi. Quase me rompem os braços. - Deu de ombros para ver se ainda lhe doíam - Depois me estiveram doendo durante meses, isso sim. Depois, quando veio o julgamento voltaram por mim de novo. Discuti com eles e me disseram que me meteriam no Coldbath Fields por roubo - explicou com expressão áspera - Sabe quantos morrem ali de febre? Milhares! Que me poriam a trabalhar na roda, um desses artefatos onde não pode respirar porque lhe asfixia e se deixar de andar cai e se faz um dano horrível nas partes. Não vou contar a ninguém nada daquela noite, nem a você nem a sua dama do teatro. E agora vá a incomodar a outro. Saia! - Fez um gesto de rechaço com a mão e, carrancudo, lançou-lhe um olhar zangado, feroz.
Gracie ficou como uma pedra. Não discutiu; sabia o bastante da polícia do outro lado da lei para acreditar no que dizia. Uns tios e seu irmão tinham sofrido sua perseguição, e a um primo longínquo o tinham enviado a prisão. Ela o tinha visto o sair, torpe, consumido pelo tifo, as articulações doloridas, o caminhar inseguro, cambaleante, pela agonia da tortura.
—Saia! - replicou o menino com maior brutalidade - Não posso lhe dizer nada!
Ela retrocedeu um tanto, desconcertada, mas não derrotada, ainda não.
Chegou um cliente e regateou com o moço durante uns minutos até que acabou adquirindo um avental; logo se aproximou outro, estiveram discutindo e não comprou nada. Gracie permaneceu ali, olhando, durante mais de uma hora, cada vez com mais frio, as mãos intumescidas segurando as botas novas.
Joe se dirigiu para um carrinho de mão da rua seguinte para comprar uma empanada de enguia. Gracie foi atrás dele e pediu outra. Estava quente, deliciosa.
—Não vale a pena que me siga - disse Joe ao vê-la - Não vou dizer lhe nada! E tampouco vou à polícia. - Suspirou e lambeu o molho dos lábios - Escuta, estúpida, a polícia jura e perjura que apanhou o tipo que o fez. Prenderam-no e o julgaram. Os inúteis se alegraram. Estiveram discutindo e discutindo como sempre. Disseram que era culpado, faziam bem em jogar a luva, e enforcaram ao pobre canalha. - Deu outra dentada na empanada e acrescentou com a boca cheia: - Se acha que vão dizer agora que se enganaram apoiando-se na palavra de um dom ninguém da rua, é que está louca de atar, asseguro-lhe. - Engoliu a comida - Sua senhora delira e só conseguirá fazer-se dano, e fazer isso a você, se é que é o bastante idiota para escutá-la.
—Não foi ele quem o fez - afirmou Gracie.
—A quem importa? - interrompeu-a o menino, zangado - Escuta idiota, a ninguém importa quem o fez. O que importa agora é quem fica mal por ter enforcado ao tipo que não era. Não vão dizer que erraram, aconteça o que acontecer. - Agitou a mão no ar, com empanada e tudo - Pensa nisso, se é que tem algo mais na cabeça além de minhocas. Qual desses inúteis vai dizer que enforcaram ao tipo que não era? Nenhum aposto o que quiser.
—Não ficará mais impune - replicou Gracie com ferocidade antes de dar uma dentada na sua empanada - A polícia já sabe que não foi o homem a quem enforcaram. Tem provas. E sabe quem o fez, só que disso não tem provas.
—Não acredito em você.
—Eu não minto - afirmou Gracie com fúria. Estava indignada porque desta vez não se tratava de uma patranha, mas sim da pura verdade - Não tem direito a dizer que minto. O que acontece é que não tem garra para enfrentar a eles e dizer o que sabe. - Tratou de expressar-se com o maior dos desprezos, mas nisso se interpôs ter a boca meio cheia.
—É certo, não as tenho - concordou ele - E isso por quê? Porque não servirá de nada. Agora volta com sua senhora e lhe diga que o esqueça. Vá embora!
—Não penso ir até que deva veja ao tipo que em realidade o fez. - Gracie deu outro enorme bocado à empanada - E logo me dirá se foi ele quem falou com você fora do teatro. Além disso, deveríamos dar com os tipos que rondavam por Farrier"s Lane aquela noite e averiguar o que de verdade viram, não o que a polícia lhes disse que viram.
—O que quer dizer com "deveríamos"? - O menino ergueu a voz, falando com gritos - Eu não vou a nenhum lugar. Já tive bastante com a polícia quando o do assassinato... não vou agora procurá-la.
—Claro que virá - afirmou Gracie com exasperação depois de engolir o bocado de empanada - Não tem sentido que vá sozinha. Eu não estava ali. Eu não o vi.
—Bem, eu não penso ir.
—Por favor.
—Não.
—O tipo que em realidade o fez continua aí fora - insistiu ela.
—Isso me importa um nada. Agora vá e me deixe em paz.
—Não. Não o deixarei em paz até que venha comigo, dê uma olhada a esse tipo e diga se foi ele.
—Não pode me seguir a toda parte!
—Sim posso.
—Olhe. - O moço estava exasperado - Não posso fazer nada por você. E eu vou a lugares aos que uma garota como você não deve ir. E agora vá embora!
—Não irei até que veja a esse tipo.
—Bem, então pode esperar sentada. - E dizendo isso lhe deu as costas e começou a falar com um possível cliente fazendo grande alarde de não prestar a menor atenção à Gracie.
Esta o seguiu até seu posto e ali ficou, atendo-se mais o casaco e esperando, observando. Fazia frio e tinha os pés tão gelados que já nem os sentia. Entretanto, não estava disposta a dar-se por vencida, embora tivesse que segui-lo até que se fosse à cama.
A última hora da tarde Joe recolheu o posto e guardou sob chave suas escassas mercadorias; depois partiu. Gracie se ergueu e pôs-se a andar atrás dele. O garoto deu a volta duas vezes, viu-a e lhe lançou um olhar feroz ao mesmo tempo em que a afugentava com a mão. Dedicou-lhe uma careta e continuou seguindo-o.
O menino entrou em uma taverna e abriu caminho até o balcão. Em seguida entrou Gracie, que serpenteou e esquivou às pessoas para tentar achar um lugar junto a ele, desfrutando do calor depois do frio cortante da rua.
—Vá embora! - exclamou Joe com raiva.
Meia dúzia de pessoas se voltaram para olhá-los, primeiro a ele, depois à Gracie.
—Não até que venha ver o tipo que o fez - respondeu ela, teimosa, fungando, já que o repentino calor a tinha feito escorrer.
—Não vai se dar por vencida? - sussurrou ele - Já lhe disse... não me acreditarão, diga o que diga. Perderei o tempo. É idiota de tudo?
Gracie não se incomodou em discutir sobre sua inteligência.
—Só tem que ver a esse tipo. Se foi ele, a polícia lhe acreditará.
—Ah sim? E isso por quê? - Em seu magro rosto se desenhou o ceticismo.
Gracie não ia dizer lhe que Pitt sabia que Harrimore era culpado. Talvez o moço não entendesse que fosse necessário ter provas. Tampouco poderia lhe explicar facilmente como se inteirara ela.
—Não lhe posso explicar isso tudo. - Voltou a inspirar.
—Não sabe.
—Sim sei. E não deixarei de segui-lo até que lhe dê uma olhada. Os policiais não lhe farão nada, se isso for o que o assusta.
—Não se atreva a me falar assim, desgraçada - exclamou furioso. – Você também estaria assustada se tivesse dois dedos de testa. Tem idéia do que os policiais podem lhe fazer se não gostar de você? E isso é o que acontecerá diz que suas provas não são boas. Pergunte-me isso, eu sei!
—Para começar, não tem que dizer aos policiais - esclareceu Gracie triunfante-. Só tem que vir e vê-lo, e me dizer isso. - Ele se deu a volta e lhe puxou a manga-. Juro que então o deixarei em paz. Se não o fizer, irei com você a toda parte.
—Nada de policiais? -perguntou ele com cautela.
—Juro-lhe isso.
—Então nos veremos aqui às seis e iremos vê-lo. Agora saia para que possa tomar uma bebida em paz.
—Esperarei-o fora. - Gracie voltou a inspirar.
—Deus, que mulher. Disse-lhe que irei.
—Sim... e talvez acredite em você ou talvez não.
—Então saia. E deixa de fungar!
Como amostra de boa vontade, Gracie saiu a contra gosto ao cortante frio. Aguardou paciente em meio da escuridão e a lenta garoa, observando atentamente se por acaso o menino tratava de escapar.
Meia hora depois viu sua figura fraca e seu pálido rosto e experimentou um grande alívio, como se se tratasse de um velho amigo. Jogou-se para ele, quase escorregando nas pedras molhadas, dando-se conta de que tinha os pés intumescidos. Estava gelada.
—Então está preparado? - perguntou impaciente.
Olhou-a de esguelha com expressão de aborrecimento, e algo no interior de Gracie lhe disse que o moço esperava que se desse por vencida e partira. Ela soltou um grunhido, resolvida a lhe demonstrar o pouco que lhe importava. Tratava-se de um assunto de negócios. A quem lhe importava o que ele pensasse dela?
Puseram-se a andar pela estreita calçada um ao lado do outro, em silêncio. Os paralelepípedos gelados resplandeciam à luz dos lampiões à medida que passavam por debaixo deles, cada um rodeado de um tênue halo de chuva. Junto a eles, as rodas salpicavam e rangiam no úmido meio-fio. As carruagens surgiam da escuridão e voltavam a sumir nela.
—Não pode seguir o ritmo? - perguntou
Joe lhe agarrando a mão e segurando-a com firmeza enquanto passavam ante grupos de pessoas apinhadas em torno de braseiros de castanhas assadas ou outra comida; outras estavam encolhidas ao abrigo dos portais.
—Temos que tomar um ônibus - indicou Gracie sem fôlego - É para o oeste. É um janota.
—Em que parte do oeste? - perguntou.
—Chelsea, Markham Square.
—Então iremos de trem - afirmou o menino.
—Que trem?
—O trem subterrâneo. Até Sloane Square. Alguma vez montaste no trem subterrâneo?
—Nunca ouvi falar dele. - Gracie se deu conta de quão ignorante esse comentário a fazia parecer - Minha senhora vai em sua carruagem ou na de outros – acrescentou - Não temos necessidade de tomar o trem a menos que pensemos ir longe.
—Pois não é você distinta - disse o moço com sarcasmo - Bem, se tiver dinheiro para uma carruagem estarei encantado de te acompanhar.
—Não seja tolo. - Gracie rechaçou a proposta com idêntico desdém – Iremos no trem. Quanto?
—Depende de tão longe que vamos, mas não muito. Um penny ou assim - respondeu ele - E agora fecha o pico e não fique atrás.
Gracie caminhou a seu lado durante o que lhe pareceram quilômetros, as botas novas sob o braço, embora provavelmente não fosse muito mais de dois quilômetros e meio. Depois desceram por umas escadas e entraram em uma estação de ferrovia cavernosa em que os trens circulavam, como toupeiras, por túneis, rugindo e rangendo de um modo que a teria aterrorizado se tivesse tido tempo para pensar nisso e não tivesse estado em excesso emocionada e muito determinada a igualar ao Joe em inteligência, coragem e qualquer outra qualidade que a ele lhe pudesse ocorrer.
Não gostou da sensação de estar sentada em um vagão que se precipitava por um túnel, veloz como um raio, e teve que concentrar-se em pensar em outra coisa; do contrário teria soltado um chiado quando era sacudida de lado a lado, sabendo quão longe se achava da luz do sol e do ar fresco. Olhou Joe de soslaio algumas vezes e percebeu que a observava, de forma que afastou a vista rapidamente. Entretanto, o coração lhe pulsava a toda pressa de entusiasmo, e seu temor não era excessivo.
Por fim desceram na estação de Sloane Square e ficaram a caminhar de novo, desta vez seguindo as instruções de Gracie, até que, acompanhados por uma chuva fina e fria, chegaram ao Markham Square e se detiveram sob as árvores que havia frente à casa de Prosper Harrimore.
—Muito bem - disse Joe com exagerada paciência - E agora o que? O que há se não sair de casa esta noite? Por que iria fazê-lo? Só os idiotas e os que não têm casa saem quando está chovendo.
Gracie já tinha pensado nisso.
—Então teremos que fazê-lo sair, não?
—Oh, claro. E como vai fazê-lo?
—Baterei na porta.
—E naturalmente a abrirá ele em pessoa, todos seus lacaios têm a noite livre - disse ele com aborrecimento - É a mulher mais idiota que conheci em minha vida, e isso é muito dizer sendo de onde sou.
—Pois eu não sou de onde você é-se apressou a dizer ela, embora provavelmente não fosse verdade - Você só olha-o. - Depois de dizer isto cruzou a rua, com as botas sob o braço, saltou os degraus da casa Harrimore e bateu na porta.
Em realidade não era muito o que sabia das casas da gente rica, só o pouco que conseguia ao ouvir Charlotte e o que ela mesma tinha coligido do recentemente adquirido hábito da leitura. Assim e tudo, esperava-se que a porta fosse aberta por um lacaio, de modo que não lhe surpreendeu que assim fosse.
—Sim, senhorita? - disse este, olhando-a com desagrado. Esteve a ponto de lhe indicar que se dirigisse à entrada de serviço, achando-a uma parente de alguma das criadas, embora nem sequer elas teriam recebido visitas a semelhante hora.
Quando Gracie falou, de sua boca surgiu uma torrente de palavras, e o coração lhe pulsava tão às pressas que quase a asfixiava.
—Por favor, senhor, tenho uma mensagem para o senhor Harrimore, pessoal, e não posso dá-la a ninguém mais.
—O senhor Harrimore não recebe mensagens de pessoas como você. - replicou o lacaio friamente - Se me der isso, eu o direi.
—Impossível - se apressou a dizer ela ao mesmo tempo em que trocava de lugar as botas para segurá-las melhor - Deixaram-me isso bem claro; a ninguém mais que ao senhor Harrimore. Esperarei aqui e você pode ir dizer lhe que tem que ver com um moço que conheceu a entrada de um teatro há cinco anos e a quem deu uma mensagem. Diga-lhe isso e ele sairá pra ver-me.
—Bobagens! Fora daqui, moça.
Gracie ficou onde estava.
—Vá e diga-lhe Então irei.
—Irá agora! -O homem agitou a mão energicamente - Ou avisarei à polícia. Vir aqui para incomodar às pessoas decente com seus contos e suas mensagens! – Fez gesto de fechar a porta.
—Não acredito que queira que venha a polícia - afirmou ela desesperada-. Esta família já teve bastante polícia e bastante tragédia. Vá entregar lhe esta mensagem. Não é seu assunto decidir a quem deve ver o senhor Harrimore. Ou acaso se acha seu guardião?
Talvez fossem seus argumentos, ou possivelmente sua forte personalidade e o olhar resoluto de sua fera carinha; o caso foi que o lacaio decidiu não continuar discutindo mais na rua, fechou a porta com firmeza e levou a mensagem a seu senhor.
Gracie aguardava, engolindo em seco, o corpo trêmulo do frio e tensão. Levava as botas sob o braço; tinha as mãos muito frias para senti-las. Só uma vez se voltou para assegurar-se de que Joe continuava ali, do outro lado da rua, bem escondido entre as sombras, mas olhando para a porta dos Harrimore.
Esta demorou alguns minutos em abrir-se e, quando por fim o fez, apareceu um homem corpulento que olhou fixamente ao Gracie. Parecia uma grande torre que enchia todo o espaço da porta. Seu nariz afiado e sua longa fronte eram muito pouco comuns, os olhos afundados destilavam aborrecimento e surpresa.
—Quem é você? – perguntou - Não a vi nunca e não sei de que teatro fala. Quem a manda?
Gracie retrocedeu um degrau, completamente aterrorizada.
Prosper franziu o sobrecenho e avançou para ela.
Gracie seguiu retrocedendo e escorregou no mármore molhado. Teria caído de costas sobre a calçada se não fosse porque Joe tinha cruzado a rua e estava ali para agarrá-la.
Harrimore ficou paralisado, o crescente horror o fez empalidecer.
—Sinto muito, senhor - se desculpou Joe olhando ao Harrimore, devorando com os olhos seus traços, ele próprio branco também. Engoliu em seco e acrescentou com voz tremulante: - Está um pouco tocada – explicou - Não pode evitá-lo. Levarei-a para casa. Boa noite, senhor.
E antes que Harrimore pudesse detê-lo, pegou Gracie pelo braço e a levou a rastros. Baixou o meio-fio precipitadamente, cruzou a rua à corrida e entrou nas sombras do beco em frente. Ali se deteve e a obrigou a voltar-se, ainda de sua mão.
—É ele - disse entrecortadamente. - É o tipo que me deu a mensagem para o senhor Blaine aquela noite. Meu Deus! Deve ser quem o matou e o pregou como em uma cruz. meu deus, o que vamos fazer?
—Dizer à polícia! - O coração de Gracie pulsava acelerado, com tanta força que mal lhe permitia falar. Tinha-o conseguido! Tinha descoberto a um assassino!
—Não seja tola! - exclamou Joe furioso - Não me acreditaram antes e não vão acreditar-me agora, cinco anos depois, quando já enforcaram ao outro pobre diabo.
—Agora há um policial novo no caso, porque envenenaram o juiz Stafford – argüiu ela aferrando-se a suas botas - Ele acreditará, porque já sabe que não foi Godman quem o fez.
—Sim? E como sabe você isso?
—Porque sei. - Ainda não estava disposta a admitir que tinha mentido ao dizer para quem trabalhava.
De repente Joe ficou duro, o corpo rígido, trêmulo, e Gracie sentiu seu terror como uma descarga elétrica. Virou-e viu a enorme sombra de Prosper Harrimore perfilada contra a neblina amarelada das luzes. Sentiu que lhe cortava a respiração e tal debilidade nos joelhos que quase se desabou ali mesmo.
Joe soltou um grito e puxou-a com tanta força que lhe retorceu o braço, e Gracie esteve a ponto de deixar cair as botas. O moço pôs-se a correr arrastando-a atrás de si, enquanto Prosper lhes pisava nos calcanhares, seus passos pesados, desiguais.
Correram beco abaixo até o final, dobraram a esquina e voltaram para a calçada iluminada, Gracie com as longas saias recolhidas para não tropeçar. Depois cruzaram a rua deserta e entraram no beco em frente, desapareceram em um porão escuro e se acocoraram junto aos degraus como dois animais assustados, os corações acelerados, o pulso acelerado, os rostos e as mãos contorcidas.
Não se atreviam a mover-se e menos ainda a levantar a cabeça para olhar, mas ouviram o caminhar pesado, irregular de Prosper, que passava a calçada por cima de suas cabeças e se deteve depois.
Joe pegou com tal força a mão de Gracie que, se não a tivesse insensível pelo frio, lhe teria doído.
Prosper seguiu avançando lentamente, parou de novo, depois seus passos se foram afastando na distância.
Sem dizer uma palavra Joe ficou em pé, em seguida puxou Gracie e subiram pelas escadas, sem deixar de olhar a direita e a esquerda. Prosper, que se achava a uns noventa metros, deu a volta pouco a pouco.
—Vamos - sussurrou Joe, antes de pôr-se a correr pela calçada na outra direção.
Prosper os ouviu e se voltou a toda pressa. Começou a correr com surpreendente agilidade apesar da claudicação.
Percorreram o primeiro beco e desceram pelo seguinte esquivando-se de baldes de lixo, tropeçaram com um velho carrinho de mão e reataram a marcha, saíram à rua mais à frente e foram parar a umas cavalariças, onde passaram por uns estábulos nos quais uma única luz arrojava um feixe amarelado. Os espantados cavalos começaram a bufar e relinchar.
Gracie e Joe saltaram uma grade. Ela tropeçou no alto golpeando-as pernas e enredando-se em suas longas, molhadas saias. Joe a levou meio a rastros por um jardim, pisando em plantas e canteiros, abrindo caminho com muita dificuldade entre arbustos e ramos que lhes açoitavam o rosto, evitando só a densa, espinhosa sebe. Gracie seguia obstinada a suas botas. Atravessaram um caminho de cascalho que, em seus acelerados corações, ressoou como uma avalanche de rochas.
De repente Joe se deteve, Gracie junto a ele. Sua própria respiração era muito ruidosa, não lhes deixava ouvir se Prosper ainda os seguia.
—Gente - disse Gracie entre ofegos - Se pudéssemos achar uma rua com gente estaríamos a salvo. Não se atreveria a nos fazer nada.
—Sim se atreveria - assegurou Joe com amargura - Gritaria " ladrão!" e diria a todo mundo que lhe tínhamos surrupiado o relógio ou algo e eles o ajudariam.
Gracie soube imediatamente que tinha razão.
—Vamos - apressou Joe - Temos que ir ao este. Se entrarmos em nosso próprio território nunca nos achará.
E se pôs em marcha de novo, desta vez caminhando a bom passo. Gracie ia a seu lado, sem fôlego, e dava uma corridinha de quando em quando para alcançá-lo, ainda com as botas sob o braço e a saia recolhida para não tropeçar com ela. Quando voltaram a sair à rua, perceberam que tinham deixado Prosper atrás.
—Bloomsbury - propôs ela quando pôde tomar fôlego - Temos que chegar ao Bloomsbury; então estaremos a salvo.
—Por quê?
—Porque aí é onde vive meu senhor. Ele arrumará tudo - respondeu Gracie.
—Antes disse que tinha uma senhora.
—E assim é... mas será seu marido quem se encarregará do senhor Harrimore. Vamos. Não discuta comigo. Temos que tomar um ônibus até o Bloomsbury.
—Tem dinheiro? - perguntou Joe detendo-se e olhando para trás por cima do ombro.
—Claro. E eu não posso correr mais.
—Não importa, não terá que fazê-lo - disse o moço com doçura - Não está mal para uma garota. Vamos. Pegaremos um ônibus na seguinte parada.
Gracie lhe dedicou um amplo sorriso, transbordante de alívio.
Sem prévio aviso Joe se inclinou para ela e lhe deu um beijo. Seus lábios estavam frios, mas ele era muito delicado, e ao cabo de um momento a calidez a invadiu com uma doçura semelhante ao canto e ao fogo, e Gracie lhe devolveu o beijo, deixando cair as botas sobre a calçada.
De repente ele se afastou, intensamente ruborizado, e se afastou com passo irado; ela recolheu as botas e correu atrás dele. Alcançou-o na esquina da rua por onde passavam os ônibus.
Meia hora mais tarde estavam os dois na cozinha de Charlotte, tremendo de frio, encharcados, maltratados, sujos, as roupas rasgadas, mas a salvo.
Joe ficou horrorizado ao reconhecer Pitt e dar-se conta de que se achava justo no campo do inimigo, mas era muito tarde para dar marcha atrás, e o bendito calor se encarregou de apagar o último rastro de seu instintivo pavor.
—Pelo amor de Deus! Onde estiveste? - inquiriu Charlotte furiosa, a voz cheia de medo e alívio - Estava tão preocupada com você!
Pitt lhe pôs a mão no ombro e sua pressão a fez calar.
—O que aconteceu, Gracie? - perguntou com equanimidade, em pé frente a ela - O que esteve fazendo?
A criada respirou fundo e o olhou nos olhos. Sentia-se em extremo aliviada por estar a salvo. Pitt lhe impunha respeito e sabia que, antes ou depois, teria que enfrentar Charlotte, mas também estava orgulhosa de si mesma.
—Joe e eu fomos ver o senhor Harrimore, que matou o pobre senhor Blaine. E Joe o olhou de cima abaixo e sabe que foi ele o daquela noite, senhor, e o jurará no tribunal.
Joe abriu a boca para objetar, depois observou a pequena, resoluta figura de Gracie e pensou melhor.
Pitt o olhou com ar inquisitivo.
—É isso verdade? Foi o senhor Harrimore a quem viu aquela noite?
—Sim, senhor. Era ele - respondeu Joe.
—Tem certeza?
—Oh, sim, senhor. E ele também sabe. Tinha-o escrito no rosto e nos esteve seguindo. Perseguiu-nos durante mais de três quilômetros. Acredito que se nos tivesse pegado agora estaríamos pregados na porta de algum estábulo. - estremeceu ao pensar nisso, como se um frio glacial o tivesse açoitado inclusive na quente cozinha.
Charlotte abriu a boca para dizer algo, mas em lugar disso ordenou a Gracie que tirasse as botas molhadas e as colocasse junto à lareira. Depois se dirigiu à cozinha para pôr a esquentar a chaleira e tirar um pouco de pão, manteiga e geléia.
—E o jurará agora? - insistiu Pitt.
Joe olhou de esguelha para Gracie.
—Sim, se for necessário.
—Bem. - Pitt se voltou para Gracie. - Foi muito esperta, e muito valente - afirmou com solenidade.
A criada se ruborizou, encantada, e sentiu um formigamento em seus gelados pés.
—Fez um excelente trabalho detetivesco - acrescentou Pitt.
Ela estava mais erguida ainda se fosse possível, olhando-o fixamente.
—E também mentiu à senhora Pitt com respeito aonde foi e por que, pôs sua vida em perigo para não falar da do Joe e possivelmente tenha pego uma pneumonia. Se voltar a me fazê-lo verei obrigado a castigá-la por toda vida. Entendeu-me, Gracie?
Mas não disse quão único ela de verdade temia: que estava despedida. Cuidou-se muito de mencioná-lo.
—Sim, senhor - disse ela em uma tentativa de mansidão que fracassou estrepitosamente - Obrigada, senhor. Não voltarei a fazê-lo, senhor.
Ele expressou suas dúvidas com um grunhido.
A chaleira começou a assobiar e Charlotte preparou chá e o levou a mesa da cozinha junto com o pão e a geléia.
Joe comeu sua parte quase antes de tê-la no prato, e Gracie manteve entre as frias mãos a fumegante xícara, cuja calidez a feria à medida que a vida voltava para seus dedos. Sorriu ao Joe e este lhe devolveu um breve sorriso antes de afastar o olhar.
—Será melhor que lhe busque um pouco de roupa seca. - Charlotte olhou com ar dúbio ao Joe - Embora não sei de onde vou tirá-la. E você irá a sua cama - ordenou a Gracie -Depois direi quando pode se levantar.
—Sim, senhora.
Pitt estava sentado na borda da mesa.
—Vai detê-lo, senhor? - perguntou Gracie.
—Naturalmente.
—Pela manhã?
—Não - respondeu ele aborrecido, dando de ombros e afastando-se da mesa - Agora, antes que se alarme e fuja.
—Não pensará ir só, suponho. - A voz de Charlotte transparecia medo.
—Não, claro que não. Não me espere levantada. - Pitt a beijou fugazmente, deu boa noite à Gracie e a Joe, saiu da cozinha e se deteve no saguão para pegar o casaco, o chapéu e o cachecol.
Quase uma hora depois Pitt e dois policiais tomavam uma carruagem com direção ao Markham Square. Era tarde, fazia um frio penetrante e uma persistente garoa empapava tudo, fazia brilhar as calçadas e desenhava vagos redemoinhos de gotinhas em torno das luzes. As folhas molhadas obstruíam os deságües das avenidas mais elegantes e só o som de alguma carruagem rompia o silêncio de quando em quando. As cortinas estavam fechadas e a luz escapava através de umas quantas finas frestas.
Pitt ergueu a pesada aldrava e a deixou cair sobre a porta. Um agente permaneceu junto às escadas do porão, se por acaso Harrimore decidia escapar por aí. O outro estava apostado na entrada das cavalariças.
Ao cabo de um bom momento um lacaio abriu a porta e olhou com receio a imponente figura de Pitt.
—Sim, senhor?
—Boa noite. Meu nome é Pitt, sou da polícia. Preciso falar com o senhor Prosper Harrimore.
—Lamento-o, mas o senhor Harrimore se retirou a seus aposentos. Terá que voltar pela manhã. - O homem fez gesto de fechar a porta.
Pitt avançou, para surpresa do lacaio.
—Impossível.
—Terá que aceitá-lo, senhor - respondeu o homem - Já o disse, o senhor Harrimore se retirou a seus aposentos.
—Acompanham-me dois agentes - informou o inspetor inexorável - Não me obrigue a armar um escândalo na rua.
A porta se abriu de par em par e o lacaio retrocedeu, completamente pálido. Pitt entrou no saguão depois de fazer gestos à polícia apostada junto às escadas para que o seguisse.
—Será melhor que desperte o senhor Harrimore e lhe peça que desça – sussurrou - Agente, vá com ele.
—Sim, senhor. - O policial obedeceu a contra gosto e o lacaio, com ar compungido, subiu pelas amplas escadas de madeira.
Pitt esperou embaixo. Algumas vezes deixou vagar a vista pelas paredes para observar os quadros, a delicada filigrana das portas, um elegante friso, mas ao pouco voltava a olhar a escada. Reparou no cabide do saguão, dirigiu-se para ele e examinou as bengalas uma por uma. O terceiro estava perfeitamente equilibrado e tinha o punho de prata. Demorou uns segundos em perceber de que também era uma espada. Tirou-a com lentidão, sentindo-se um pouco aturdido. A folha era longa e muito fina, resplandecia com a luz. Estava impoluta, a não ser por uma diminuta marca escura na banda em que se unia ao punho. O sangue deve ter corrido pelo aço ao deixá-la no chão para crucificar Blaine.
Estava de frente à porta da sala de jantar quando ouviu um ruído por cima de sua cabeça e levantou a vista imediatamente. Devlin O'Neil estava no alto da escada, a mão no poste do corrimão. Tinha posto um roupão e parecia nervoso.
—O que lhe traz por aqui a esta hora da noite, inspetor? Não me diga que houve outro assassinato.
—Não, senhor O'Neil. Acredito que será melhor que esteja preparado para cuidar de sua esposa e de sua avó por afinidade.
—Ocorreu- algo a Prosper? - O'Neil começou a descer a toda pressa. O mordomo me há dito que saiu faz já um momento e não o ouvi voltar. O que aconteceu? Um acidente? Está ferido com gravidade? - Deu um tropeção no último degrau e se chocou contra Pitt, e teria caído se não se agarrasse rapidamente ao poste de baixo.
—Lamento-o, senhor O'Neil - disse Pitt, e aquele devia ter percebido a tragédia em sua voz. Seu rosto perdeu todo vestígio de cor e ficou olhando fixamente ao inspetor sem dizer uma palavra. - Receio que vim prender o senhor Harrimore – prosseguiu - pelo assassinato de Kingsley Blaine, faz cinco anos, em Farrier"s Lane.
—Oh, Meu deus! - O'Neil veio abaixo como se as pernas lhe tivessem falhado e desabou no último degrau, a cabeça entre mãos. - Isso é... é... - Possivelmente iria dizer "impossível", mas alguma lembrança ou instinto o impediu, e as palavras morreram em sua garganta.
—Acredito que será melhor que o lacaio lhe traga um bom brandy e que se prepare para fazer-se encarregado da senhora Harrimore e sua esposa - propôs Pitt com amabilidade - vão necessitá-lo.
—Sim. - O'Neil engoliu em seco e tossiu. - Sim... assim o farei. Seria amável de...? Não, farei-o eu mesmo. - Em seguida ficou em pé um tanto trabalhosamente e avançou dando tropeções pelo saguão para fazer soar a campainha.
Imediatamente depois apareceu Prosper no alto da escada, seguido de perto pelo agente. Parecia aturdido, como se estivesse sonâmbulo. Desceu com lentidão, procurando o sustento necessário no corrimão.
—Senhor Harrimore... - começou Pitt. Olhou-o no rosto, curiosamente inexpressivo; só seu olhar era frenético, estava transtornado de escuridão e dor - Senhor Harrimore - repetiu com calma. Detestava isso inclusive mais que informar aos familiares das vítimas - Fica você detido pelos assassinatos de Kingsley Blaine, faz cinco anos, em Farrier"s Lane, do juiz Samuel Stafford e do agente de polícia Derek Paterson em sua casa. Recomendaria-lhe que me acompanhasse sem opor resistência, senhor. Sua família sofrerá mais do que o necessário, e já lhe será bastante duro tal como estão as coisas.
Prosper ficou olhando-o com fixamente, como se não tivesse ouvido ou entendido.
Adah estava descendo pelas escadas, segurando o corrimão, o rosto cinzento. Os longos cabelos cinza lhe caíam pelo ombro em uma fina trança, um xale aberto deixava à vista a grossa malha de sua camisola.
Finalmente Devlin O'Neil voltou para a vida. Moveu-se de onde estava, junto à campainha, e se dirigiu à escada.
—Não deveria estar aqui, vó - disse com amabilidade - Volte para a cama. Logo irei contar lhe o que aconteceu. Agora suba, não vá pegar friagem.
Adah fez distraidamente um gesto com a mão, para afugentá-lo. Tinha a vista cravada em Pitt.
—Vai levá-lo? - perguntou a voz quebrada.
—Sim, senhora. Não tenho alternativa.
—É culpa minha - se limitou a dizer ela - Ele o fez, mas é minha culpa, eu sou culpada ante Deus.
Devlin O'Neil fez gesto de pegá-la, mas ela escapou sem afastar o olhar de Pitt.
—É certo? - Pitt observava seu atormentado rosto. Não precisava sabê-lo, mas era consciente de que a anciã estava decidida a contar-lhe e que era impossível detê-la. Precisava liberar meio século de culpa e agonia.
—Soube que o tinham desonrado antes que nascesse – começou – Meu marido deitou com uma judia e depois comigo quando estava grávida dele. Sabia o que ocorreria. Tratei de me desfazer dele. - Meneou a cabeça. - Provei tudo que conhecia... mas não o consegui. De modo que nasceu, mas disforme, contrafeito, como vê. Não sabia que tinha matado Kingsley, mas temia isso. A história se repetia, entende? - observou o inspetor, esquadrinhou seu rosto para assegurar-se de que a entendia.
—Sim - afirmou Pitt a meia voz, aturdido por tamanha sordidez - Entendo. - Imaginou Adah em jovem, traída, amargurada, acreditando com convicção na superstição que lhe tinham ensinado, detestando ao filho que levava em suas entranhas e aterrorizada por essa contaminação em que acreditava firmemente, só em algum quarto de banho, tentando com desespero que se malograsse o menino em seu ventre.
O inspetor a pegou pelo braço.
—Agora não pode fazer nada. Volte para a cama. Tudo terminou.
Adah se voltou para olhar Prosper e por um instante seus olhares se encontraram. Nenhum dos dois disse nada. Depois, como uma mulher muito velha, obedeceu Pitt: subiu pelas escadas, plúmbeos os pés, as costas curvada. Não se virou nenhuma só vez.
—Eu não matei o juiz Stafford - assegurou Prosper, o olhar fixo em Pitt – Juro Por Deus que não o fiz e tampouco matei ao Paterson. Posso demonstrá-lo.
O inspetor demorou um instante em compreender plenamente o que acabava de dizer, e também que não mentia.
—Mas matou ao Kingsley Blaine.
—Sim... Deus me perdoe. Merecia-o! - Seu rosto voltou por fim à vida, a boca torcida de cólera e dor - Estava enganando a minha filha com essa judia. E fazendo a meus netos o que meu pai me fez. - de repente o ódio se desvaneceu, e Prosper arregalou os olhos. - Mas não matei Stafford! Fazia semanas sem vê-lo quando morreu. E tampouco matei Paterson. Nessa noite estive em casa de um amigo, e há vinte pessoas que podem jurá-lo.
Pitt dava voltas a cabeça. Se Prosper não tinha matado Stafford e tampouco Paterson, quem o tinha feito? E por quê? Pelo amor de Deus, por quê?
Sem mediar palavra tomou Prosper pelo braço, o agente se situou ao outro lado, a sua direita, e se dirigiram para a porta principal, passando ante o Devlin O'Neil, ainda aturdido, o roupão frouxo, sem perceber o frio. O agente abriu a porta e saíram os três. Chovia. Pitt levava consigo a bengala com espada.
Caroline estava eufórica. Tudo tinha terminado e Joshua ficava livre de toda suspeita. Não era culpado de nada, e assim se demonstrou. As preocupações se acabaram, nem sequer o menor temor rondava seus pensamentos. O alívio era entristecedor. Tinha vontade de rir bem alto, de chorar, de correr e gritar.
Olhou para Charlotte e reparou em seus olhos sombrios, as emoções contraditórias que a rasgavam.
—O que? - apressou-se a perguntar, desconcertada - Que mais? Há algo que não me disse. Do que se trata?
—O que vais fazer agora? - quis saber Charlotte. Estavam de pé no salão do Cater Street. Era pela manhã, cedo; o fogo começava a arder e mal se desprendia calor.
—Vou dizê-lo a Joshua, naturalmente - respondeu Caroline, ainda perplexa - E a Tamar, é claro.
—Não referia a agora mesmo...
—A que então?
—Ao Joshua. Agora já não necessita que ninguém se preocupe com ele. - Charlotte se interrompeu sem saber como continuar.
—Não sei - respondeu Caroline com grande calma - Depende dele. Proponho- desfrutar de cada dia e deixar que o que tenha que vir, venha. Charlotte, querida...
—Sim?
—Isso é tudo que estou disposta a dizer sobre o assunto, tanto a você como à avó.
—Oh.
—Agora vou pedir a carruagem para comunicar as boas notícias ao Joshua e à Tamar. Pode me acompanhar se o desejar.
—Sim... sim, eu o direi a Tamar. Eu gostaria de fazê-lo.
—Certamente. Acredito que deveria.
Era muito cedo para achar a alguém no teatro, de forma que Charlotte e Caroline se dirigiram à casa de Pimlico. Recebeu-as uma surpreendida Miranda Passmore, que ao ver seus rostos soube que eram portadoras de boas notícias. Abriu a porta de par em par e as fez passar, tomou Caroline pelo braço e chamou a gritos a seu pai.
-Está a senhorita Macaulay em seus aposentos? - perguntou Charlotte, imersa na sorte do momento em que pese a suas reservas com respeito a Caroline e Joshua.
—Sim, certamente. Nunca sai tão cedo. Quer dizer-lhe você mesma? Deveria. Tudo terminou, não é verdade? - Miranda se voltou para elas - Nem sequer o perguntei, mas vejo que descobriram algo maravilhoso. Aaron era inocente, não é verdade? - disse atropeladamente - Por fim podem demonstrá-lo? Sim podem, não é?
Charlotte se surpreendeu sorrindo, incapaz de negar semelhante dita.
—Sim… e melhor ainda, ontem à noite prenderam o homem que de verdade o fez.
—Oh, é maravilhoso! - Miranda fez uma pequena pirueta de pura felicidade, depois deu um espontâneo abraço em Charlotte - É estupendo! É você brilhante! Teria simpatizado com Aaron, parecia-se um pouco a você. Impulsivo e cheio de idéias. Vamos, tem que dizer também ao Joshua. - Isto último ia dirigido a Caroline - Estará em seus aposentos, provavelmente tomando o café da manhã. Vamos acima.
Charlotte deixou a sua mãe à porta dos aposentos de Joshua. Não precisou ouvir a voz de Caroline presa da agitação e felicidade, o alívio do ator, as lembranças do amigo morto, a sensação de vitória e o pesar porque chegava terrível, tragicamente tarde.
Seguiu Miranda até os aposentos de Tamar e bateu na porta.
Esta a abriu ao cabo de um momento; viu primeiro o rosto resplandecente de Miranda, depois reparou em Charlotte.
—Tudo terminou - anunciou Charlotte com voz baixa. - Na noite passada prenderam Prosper Harrimore, e ele nem sequer o negou. O mundo saberá que Aaron era inocente.
Tamar ficou imóvel, olhando de cima abaixo para Charlotte, esquadrinhando seu rosto para assegurar-se de que não podia estar equivocada; depois, quando o acreditou, os olhos se inundaram de lágrimas e pôs-se a chorar. Elevou as mãos e seguidamente as deixou cair.
Charlotte esqueceu todo vislumbre de comedimento, boas maneiras e regras de etiqueta, e a estreitou entre seus braços ao mesmo tempo em que notava uma ardência nos olhos. Esqueceu-se de Caroline. Se também ela estava nos braços do Joshua e riam ou choravam ou se aferravam o um ao outro não importava, ao menos não agora.
Pitt estava longe de sentir-se ditoso. Resolver o assassinato de Farrier"s Lane emendava uma injustiça antiga e amarga, mas em nada ajudava agora Aaron Godman. Nada podia reparar seu sofrimento ou sua perda. Era um fraco bálsamo para os vivos, mas valia a pena lutar por corrigir os enganos, mesmo que isso trouxesse consigo o sentimento de culpa e as questões que sem dúvida este caso suscitaria, incluindo a ruína de algumas reputações.
Entretanto, também tinha confiado em resolver os assassinatos de Samuel Stafford e do agente Paterson. E não era assim. Além disso, acreditava em Harrimore, só lhe levou uma hora confirmar que lhe seria materialmente impossível cometer qualquer desses dois crimes. Podia demonstrá-lo de maneira inequívoca.
Assim, quem tinha matado ao Stafford? E por quê?
Havia a possibilidade de que não fora nenhuma das pessoas de quem suspeitava até o momento? Não lhe ocorria nenhum motivo que pudesse ter a gente do teatro. Se era verdade que Stafford estava expondo-a reabertura do caso de Farrier"s Lane, para eles era de suma importância que seguisse vivo. Nenhum era culpado. Isso era indiscutível.
Viu-se obrigado a pensar de novo em Juniper e Adolphus Pryce. Não obstante, cada um deles tinha temido que fora o outro.
Quem ficava, pois?
Ninguém.
Não lhe ocorria mais alternativa que voltar uma vez mais sobre os passos de Stafford aquele último dia, falar de novo com quem o viu, comprovar todos os testemunhos e ver se assim podia averiguar algo novo.
Saiu da delegacia de polícia, aonde tinha ido contar a Drummond que tinha confirmado que Harrimore não podia ser culpado das mortes de Stafford e Paterson. O dia era frio e claro. O débil sol se filtrava a rajadas entre as nuvens de fumaça procedente de inumeráveis lareiras, e os paralelepípedos estavam escorregadios pelo gelo. Na rua, o esterco recente de cavalo fumegava mansamente no ar glacial.
Não esperava averiguar nada de boca dos implicados no caso de Kingsley Blaine. Depois de tudo, era como se a morte do Stafford não guardasse mais relação com ele que a coincidência. Nesse dia, O'Neil teria que fazer frente a mais dor do que um homem era capaz de suportar, e não estava disposto a incomodá-lo a menos que se tratasse de algo urgente. Tampouco desejava ver Joshua Fielding ou Tamar Macaulay. Estariam celebrando o final de um pesadelo que tinha durado cinco anos. Não havia nada capaz de lhe devolver seu irmão, mas ao menos a vergonha se esfumara, e embora não tivesse nada que ver com o Pitt - muito ao contrário, tinha sido ele quem havia resolvido-, este se sentia comprometido, já que para eles representava à lei. Era um membro do corpo de polícia que, sem sabê-lo, tinha-os ofendido de modo irreparável.
Caminhava a bom passo pela calçada, caviloso, evitando com muita dificuldade se chocar com as pessoas. O estrondo de rodas e cascos, os gritos dos cocheiros, os vendedores ambulantes e os varredores com que se cruzava formavam muito sons alheios a ele. Quando os jornais vespertinos se ecoassem da detenção de Harrimore, toda Londres saberia. Não pensava mais que no escândalo que isso conduziria. Inclusive se perguntava se deveria contar a Lambert em pessoa, mas como ia dizer se ao Anunciá-lo sem mais soaria a uma bomba e pareceria, além disso, uma crítica ao trágico equívoco de Lambert. Manifestar pesar ou compaixão resultaria de uma condescendência imperdoável. Com certeza Lambert pensaria que tinha ido para saborear sua vitória.
Não. Melhor seria que o lesse nos jornais e se repusera de sua derrota a sós. Possivelmente a intimidade fora o melhor favor que podia lhe fazer.
Ao menos Paterson se economizaria isso, pobre diabo. Não teria que enfrentar o embaraço público, embora o que era isso em comparação com a própria culpa?
E o que tinha sobre os representantes da justiça? Thelonius Quade nunca tinha deixado de albergar dúvidas, até o ponto de que inclusive se expôs invalidar de algum modo o processo para poder declarar o julgamento nulo. Entretanto, ao final tinha prevalecido sua confiança na lei. Quanto se culparia por isso?
E os juízes do tribunal de apelação? Tinha sido alguma suspeita de urgência, de que a emoção tivesse guiado o discernimento, o que tinha impulsionado o juiz Boothroyd a aposentar-se e dar-se à bebida? Ou teria ocorrido de todo modo? Acaso viu algo, descobriu alguma mentira, alguma duvida nas atas do julgamento inicial e não teve a coragem de dizê-lo? Dada a euforia do momento, teria que ser um homem valente o que dissesse à justiça e às pessoas que se enganaram de pessoa, que o caso distava de estar resolvido. Não era possível fechar o expediente e arquivá-lo no passado, dizer que sim, que foi uma tragédia, mas que se resolveu que podia esquecer-se, com honra.
Todo mundo trataria de esquecer em vão, e ninguém seria merecedor de honra alguma.
A primeira pessoa a que Pitt voltou a recorrer foi Juniper Stafford. Encontrou-a ainda de negro, mas desta vez o vestido era simples, apagado inclusive. Continuava sendo um objeto caro e de corte impecável, mas era moderna mais que possuidora de caráter algum e não fazia frufru ao mover-se sua proprietária; seu perfume tampouco era mais que o aroma agradável do esmero. Parecia verdadeiramente desolada em todos os sentidos. Ao ver seu rosto Pitt foi consciente de sua perda, inclusive do fracasso. Não era ao Samuel Stafford a quem chorava, possivelmente nem sequer a Adolphus Pryce. Teve a sensação de que era algo em seu interior, uma crença, um sonho que se frustrara e o próprio conhecimento que tinha ocupado seu lugar era uma fruta amarga.
—Bom dia, inspetor - saudou ela sem interesse - Tem alguma novidade? A criada me disse que os jornais da tarde informam que prendeu a outro homem pelo assassinato de Kingsley Blaine. Suponho que também assassinou Samuel e, por algum motivo, não o mencionaram. Parece uma estranha omissão. - Estava em pé no meio da saleta de manhã. O fogo coloria suas faces, mas não podia infundir vida a seus olhos nem dotar de mobilidade a sua expressão.
—A omissão era precisa, senhora Stafford - respondeu Pitt. Ela tinha acreditado que Harrimore era culpado, como para falar a verdade tinha feito ele mesmo, mas Juniper nem sequer perguntou por que. Supunha que Stafford o tinha ameaçado descobrindo, ou já não lhe importava especialmente - Prosper Harrimore não assassinou o juiz - afirmou.
Juniper franziu levemente o sobrecenho.
—Não entendo. Isso é ridículo. Se não foi ele, então quem foi? E por quê? - Uma faísca de humor iluminou seus olhos, sem medo algum-. Não haverá tornado porque supõe que o fiz eu ou o senhor Pryce. Já demonstrou com grande eficácia que não fomos nós nos ajudando a nos culpar o um ao outro. - afastou-se um tanto do inspetor - Não vou dizer que você seja o responsável, isso seria lhe conceder muito mérito ou culpa. Se tivéssemos sido mais fortes, se houvéssemos sentido o amor que acreditávamos sentir, não teria podido nos fazer tal coisa. -sacudiu-a saia com a mão para retirar um fio-. assim, por que veio?
Pitt sentia lástima por ela, apesar do desprezo que experimentara antes. A desilusão é um dos pesares mais amargos.
—Porque me vejo obrigado a voltar ao princípio - respondeu com franqueza - Toda a informação de que achava dispor de pouco me serve. Depois de tudo a morte do juiz parece não ter nada que ver com o caso de Farrier"s Lane. Ou se tiver algo que ver, trata-se de uma relação que não vi e continuo sem ver. Não posso fazer nada salvo voltar para os detalhes materiais e repassá-los um por um para comprovar se tiver passado algo por alto ou o interpretei mal.
—Que tedioso - comentou ela sem senti-lo - Repetirei tudo o que contei se acreditar que isso pode ajudá-lo. - E sem aguardar sua resposta recitou monotonamente os acontecimentos acontecidos no último dia da vida de seu marido, desde que o vira no café da manhã até que partira para falar de novo com Joshua Fielding e Devlin O'Neil, passando pela visita de Tamar Macaulay e pelo nervosismo do próprio Stafford. Relatou-lhe a volta deste, sua preocupação, que não era de todo incomum, o jantar que compartilharam.
—E se achava bem então? -interrompeu Pitt-. Não estava sonolento, estranhamente distraído? Comeu bem, sem queixar-se de dor ou mal-estar algum?
—Sim, comeu muito bem. E nos serviram dos mesmos pratos. Não houve nada que ele tomasse que não tomasse eu também; em maior quantidade, certamente, mas exatamente os mesmos pratos. Não puderam envenená-lo nesta casa, senhor Pitt.
—Não, já tinha chegado a essa conclusão, senhora Stafford. Além disso, achamos restos de ópio no cantil. Perguntava-me se bebeu dele antes de jantar, isso é tudo. Estou-o comprovando tudo.
—Vejo que está completamente perdido - observou ela com um tênue sorriso.
Pitt não podia culpá-la de tudo, embora sua diversão o ferisse. Era ele quem tinha arrojado luz sobre uma verdade que tinha feito tanto sofrimento à Juniper. Se não fosse por ele, possivelmente nunca se teria dado conta de que seu amor por Pryce não era mais que uma grande paixão. Teria que ter sido uma mulher de grande generosidade para não odiá-lo por isso.
—Poderia falar com o valete? - pediu o inspetor.
—Naturalmente. Ainda continua aqui, embora agora me veja obrigada a despedi-lo. Já não preciso de seus serviços. -Lançou mão da corda, recamada em seda, e fez soar a campainha para que acudisse um criado.
Entretanto, o valete não disse ao inspetor nada que fosse de utilidade. Não viu o cantil aquela tarde e tampouco achava que o juiz tivesse bebido dele. Não costumava utilizá-lo estando em sua própria casa, onde podia conseguir que lhe levassem algo de beber da licoreira só fazendo soar uma campainha.
Nenhum outro criado acrescentou nada ao que já tinham explicado. Pitt podia sentir seu tácito desdém pelo fato de que agora, depois de tanto tempo e de todas as perguntas, visse-se obrigado a repassar velhos fatos que de sobra conhecia e, mesmo assim, continuasse sem dar com uma pauta da qual extrair uma resposta. Ele mesmo estava enojado, desalentado e zangado.
A seguinte pessoa que viu foi o juiz Livesey. Teve que esperar até metade da tarde e entrevistar-se com ele em seu escritório, entre compromisso e compromisso. Livesey pareceu surpreso de vê-lo, mas não desconcertado.
—Boa tarde, inspetor. O que posso fazer por você desta vez? Espero que não venha me informar de novas tragédias.
Disse-o com um sorriso, mas não havia alivio em seu rosto e menos ainda humor. Parecia cansado; as sombras purpúreas sob os olhos e as rugas de seu semblante, do nariz até as comissuras dos lábios, eram mais profundas, a expressão de sua boca se endurecera. Pitt pensou em quão dura devia ser para ele a notícia da detenção do Harrimore. A apelação de Godman tinha constituído um dos lucros de sua carreira. A dignidade e o aprumo com que a tinha levado o tinham feito merecedor de elogios por parte das pessoas em geral e, melhor ainda, de seus iguais. Agora, quando era muito tarde, demonstrara-se seu trágico equívoco.
—Não - disse Pitt a meia voz - Não há nada novo, graças a Deus. Voltei pelo primeiro crime que foi atribuído. Continuo como a princípio, sem saber quem assassinou ao senhor Stafford.
—Frustrante - observou Livesey, quase inexpressivo - Não sei como posso ajudá-lo. Não sei mais do que sabia então.
—Não, senhor, não abrigava a esperança de que assim fosse, mas talvez haja algumas perguntas que não fiz e que poderia lhe expor agora.
—É claro. - Livesey se sentou pesadamente na poltrona próxima ao fogo, que devia estar ardendo desde muito antes que voltasse do tribunal. Assinalou a poltrona em frente, nem tanto um convite como a pedido de que Pitt ficasse a na mesma altura-. Por favor, pergunte o que deseje. Tratarei de lhe ser de alguma ajuda. - Parecia cansado, como se mostrar-se cortês supusesse um considerável esforço.
—Obrigado, senhor. - Pitt não se reclinou o bastante para estar cômodo. Não se incomodou em repassar a visita que Stafford lhe fez no mesmo dia de sua morte, e tampouco a prova de que o cantil estava limpo quando Stafford se fora. Já tinham esgotado ambas as possibilidades. Começou por seu encontro no teatro-. Mencionou que o viu pela primeira vez no foyer, não é assim?
—Com efeito, mas não falei com ele então. Havia muitíssima gente e bastante ruído, como sem dúvida você recordará.
—Sim, é verdade. - Pitt evocou o ambiente de agitação e espera, as vozes, o movimento contínuo, os saracoteios. Teria sido difícil conversar- .Aonde foi depois?
Livesey refletiu um instante.
—Comecei a subir pelas escadas para meu camarote. Depois, no corredor, vi um conhecido e estava a ponto de parar para falar com ele quando foi abordado por uma mulher que, no meu entender, é terrivelmente aborrecida, de modo que mudei de opinião e desci de novo. Ao cabo de uns cinco minutos voltei a subir, e então ambos se foram. A seguir fui a meu camarote e permaneci ali sentado só até que se ergueu o pano de fundo. Deu de ombros - Naturalmente que vi outras pessoas que conheci quando tomavam assento, mas não falei com nenhuma. Não é possível fazê-lo sem ficar em evidência. - Esquadrinhou o rosto de Pitt com curiosidade - Realmente isto lhe serve de algo, inspetor?
—No momento não - admitiu Pitt - mas poderia me servir. De qualquer forma não sei onde mais procurar.
—Será lamentável se se vê obrigado a abandonar o assunto sem resolvê-lo - afirmou Livesey torcendo a boca em um gesto curioso, de amargura-. Suponho que não será isso o que deseja.
—Ainda não cheguei a esse ponto.
Não havia incredulidade na voz do Livesey, nem no muito ligeiro arqueamento de suas sobrancelhas.
—Bem, não terei inconveniente em lhe relatar tudo que lembro daquela noite, se acreditar que pode lhe ajudar. Você estava em um camarote do outro lado do dos Stafford, um par mais à frente, se mal não recordar. Não cabe dúvida de que você viu tudo o que fiz.
—Não refiro ao que ocorreu no camarote - se apressou a dizer Pitt. Depois, ao ver a expressão do Livesey, percebeu e seu engano - Não, isso é ridículo - se corrigiu ele mesmo antes que o fizesse Livesey - Não sei o que é relevante. Se viu algo, rogo-lhe que me diga.
Livesey deu de ombros de novo, e desta vez a seu rosto aflorou o humor: seco, puramente intelectual, mas muito real.
—É claro. Claro está que não passei toda a noite olhando de esguelha o camarote do senhor Stafford, mas sim olhei nessa direção em várias ocasiões. Ele estava sentado para o fundo, um tanto atrás da senhora Stafford. Deduzi que tinha ido principalmente por ela. Sua atenção não parecia estar centrada no cenário, mas em seus próprios pensamentos. Não é de estranhar. levei a minha esposa a numerosos eventos desse tipo só para lhe dar gosto.
—Parecia doente?
—Não, só pensativo. Ao menos é o que me pareceu. Com a perspectiva do tempo me dou conta de que talvez não se encontrasse bem. - Agora Livesey observava Pitt e seus olhos azuis mostravam diversão - Tenta me perguntar se o vi beber do cantil? Não acredito, mas não poderia jurá-lo. Sim levou a mão ao bolso e tirou algo, mas não estava prestando suficiente atenção para ver do que se tratava. Sinto muito.
—Não tem importância. Teve que beber dela em algum momento, disso não há dúvida - asseverou Pitt.
—Certo por desgraça assim é. - Livesey enrugou a fronte - me diga Pitt, que espera averiguar? Se soubesse talvez pudesse lhe responder melhor. Tenho que reconhecer que não tenho nem idéia do que acredita que poderia ajudá-lo. Sabemos que havia veneno no cantil e que morreu envenenado. Do que serviria que alguém o tivesse visto beber? Está claro que o fez.
—Sim, é claro - concedeu o inspetor - Admito que não sei. Simplesmente estou procurando algo que possa achar.
—Bem, não me ocorre nada mais que acrescentar. Vi-o sumir-se no que em seu momento achei um sonho. Não era nada extraordinário. Sem dúvida não seria o primeiro homem em dormir no teatro! - De novo o humor apareceu em seu rosto - Só me dei conta de que estava doente ao perceber o nervosismo da senhora Stafford. Então, naturalmente, levantei-me e dirigi a seu camarote para ver se podia lhes ser de alguma ajuda. O resto já conhece.
—Não de tudo. Fica o entreato. Abandonou você seu camarote?
—Sim. Fui tomar um refresco e estirar as pernas. Ficam intumescidas depois de permanecer tanto tempo sentado.
—Viu Stafford sair de seu camarote?
—Não. Lamento-o.
—Foi ao salãozinho de fumantes?
—Só dei uma olhada e saí imediatamente. Se quiser que lhe diga a verdade, havia algumas pessoas que preferia não ver. Insistem em falar de assuntos legais, e eu queria desfrutar de uma noite à margem de tais coisas.
—E não viu Stafford até que voltou para seu camarote?
—Não. Sinto muito. - Livesey ficou em pé apoiando-se nos braços da poltrona - Temo que não há nada mais que possa lhe dizer, inspetor. Tampouco posso lhe sugerir nenhum outro lugar que lhe sirva de algo em sua investigação, salvo a vida doméstica do pobre Stafford.
—Obrigado por me dedicar seu tempo. - Pitt também se levantou. - Foi muito paciente.
—Sinto não poder ajudá-lo.
Livesey lhe estendeu a mão e Pitt a estreitou. Tratava-se de uma cortesia pouco corrente por parte de um juiz para um policial, e o inspetor o agradeceu.
Depois de almoçar se dirigiu ao escritório do Adolphus Pryce, onde se viu obrigado a esperar durante quase meia hora antes que este pudesse recebê-lo. O escritório era o mesmo: cômodo, elegante e pessoal. O próprio Pryce continuava igualmente elegante, embora seu rosto parecesse fatigado, e seus gestos rotineiros, desprovidos da energia interior que antes possuíam. Também ele se sentia decepcionado: seus sonhos tinham resultado ser frívolos; suas emoções, desonestas, tudo isso lhe causava dor sem que houvesse possibilidade de evasão nem, no momento, de alívio.
—Sim, Pitt? O que posso fazer por você? - perguntou, educado - Por favor, sente-se. - Assinalou-lhe a poltrona em frente - Para falar a verdade tenho a sensação de que já lhe contei tudo o que sei, mas, se houver algo mais, rogo-lhe me pergunte. -Sorriu com tristeza - Deveria felicitá-lo por ter resolvido o caso de Farrier"s Lane. Fez um excelente trabalho. Sem dúvida pôs a todos em evidência. O pobre Godman era inocente. É algo com o que não poderei viver facilmente.
—E tampouco, suponho muitos outros - respondeu Pitt com gravidade - Mas não tem você nada que reprovar-se. Seu dever era acusá-lo. Era a única pessoa do tribunal que era seu inimigo declarado, e o tinha por tal. Outros ou estavam de seu lado ou se supunha que eram imparciais.
—É muito duro com eles. Todo mundo achava que era culpado. As provas eram entristecedoras.
—Por quê? - perguntou Pitt olhando Pryce fixamente com expressão desafiante.
Este piscou.
—Não o entendo. O que quer dizer com "por que"?
—Por que eram entristecedoras? O que veio primeiro, as provas ou a convicção? Começo a pensar que talvez fosse a convicção.
Pryce se sentou. Parecia fatigado.
—Possivelmente. Todos estávamos horrorizados e um pouco assustados. Já sabe que a pessoa é um animal selvagem quando suas mais profundas crenças cambaleiam e despertam seus medos. Não tem nenhum sentido tentar raciocinar com elas, lhe explicar o que se pode fazer e o que não, lhe dizer quão difícil resulta. Não quer mais que resultados. Não lhe preocupa o modo como se obtenham, não quer conhecer os detalhes nem o custo. Você é polícia, deve sabê-lo. Não acredito que se salvou você da crítica nem da perseguição sobre o pobre Stafford.
—Não - admitiu Pitt com tristeza-, embora não se armou nenhum escândalo. Foi um crime mais tranqüilo. Isento de horror. Suponho que a gente tem a sensação de que um juiz é, de algum modo, um ser diferente, de forma que o medo se elimina um tanto, não é pessoal. Não há um monstro irracional aí fora, entre as sombras, crucificando às pessoas. De qualquer modo o ministro do Interior veio nos importunar algumas vezes.
Pryce cruzou as pernas e em sua boca se desenhou um leve gesto de diversão.
—Suas palavras destilam amargura. Como posso ajudá-lo? O certo é que não tenho idéia de quem matou ao Stafford nem por que.
—Tampouco eu - afirmou Pitt com aspereza - Não fica mais remedeio que voltar sobre os fatos uma e outra vez. Você o viu durante o entreato aquela noite?
Pryce pareceu vagamente surpreso, como se esperasse uma pergunta mais difícil.
—Sim. Stafford estava no salãozinho de fumantes, falando com várias pessoas. Não acredito que recorde com quem. Eu mesmo conversei com ele, mas só um instante. De algo sem importância... o tempo ou o último desastre no críquete, acredito. Não o vi beber do cantil, se isso for o que esperava.
—Levava um copo na mão?
Pryce abriu os olhos de par em par.
—Agora que penso nisso, sim levava. Não tem muito sentido, não é certo? por que ia um homem beber de um cantil tendo um copo de uísque na mão?
—Um segundo gole, suponho - aventurou Pitt com ar pensativo - Não cabe dúvida de que bebeu da cigarreira, já que ingeriu o veneno. Ficavam restos quando a analisamos. Esse é um dos poucos fatos incontrovertíveis.
—Bem, o número de pessoas que puderam vertê-lo nela tem que ser limitado tendo em conta fatos puramente físicos - raciocinou Pryce - É possível reduzir o número, não é certo? Passando por cima o móvel, no momento. Deve ser alguém que teve acesso ao cantil depois de que Stafford visse o Livesey, posto que a este e a seu acompanhante os viram tomar um gole dele e ambos gozam de uma invejável saúde. Entretanto, estava no cantil quando Stafford bebeu dele mais tarde, cabe presumir que no teatro. Pôde fazê-lo alguém no entreato, suponho.
—Quem mais estava nesse salão?
—Umas duzentas pessoas.
—Nem todas falaram com Stafford. Recorda o nome de quem esteve bastante perto do Stafford para conversar com ele ou ver o que ocorreu?
Pryce guardou silêncio por um instante olhando ao Pitt com expressão desolada.
—Recordo ao honorável Gerald Thompson - disse por fim - Sua voz poderia fazer saltar em pedaços o cristal, e não pára de falar. Estava perto do Stafford, frente a ele. E também havia Molesworth, da Chancelaria. Conhece-o? Não, suponho que não. Um homem corpulento, calvo, de barba branca.
—É isso tudo o que recorda? - perguntou Pitt.
—Havia muitíssima gente - objetou Pryce - todos abrindo passagem com cotoveladas, tentando não derramar suas bebidas, competindo por chamar a atenção, falando ao mesmo tempo. Além disso, se tinha armado um pequeno revôo porque estava presente Oscar Wilde e ao menos uma dúzia de pessoas queria falar com ele. Não entendo por que. Estava perto do Stafford. - Um olhar malicioso iluminou o rosto de Pryce - Poderia ir lhe perguntar.
—Acredita que pôde ver algo? - inquiriu Pitt.
Pryce arqueou as sobrancelhas.
—Não tenho nem idéia. Atreveria-me a duvidar. Muito ocupado sendo engenhoso.
—Obrigado. - Pitt se levantou. Ao menos Pryce lhe tinha dado algo que investigar, embora não tinha plano algum, além disso, nada mais que indagar, ninguém a quem interrogar.
—Não há de que - respondeu Pryce - Suponho que voltarei a vê-lo. O que lhe proporcionei lhe será de escassa utilidade. Mesmo que alguém o visse beber do cantil, isso não lhe servirá de nada, a menos que surpreendesse a alguém jogando algo nele e isso é algo assim como esperar que alguém diga a alguém quem ganhará o derby antes da corrida.
Pitt partiu sem dizer mais. Já estava tudo dito.
Fora fazia um frio glacial, com um vento procedente do rio que penetrava pela lã de seu casaco e lhe feria a carne. Pôs-se a andar com brio pela calçada, a cabeça encurvada, o cachecol de lã bem rodeado, a gola erguida até as orelhas, em direção à rua principal, onde poderia chamar uma carruagem que o devolvesse a Bow Street. Para poder perguntar a aqueles cavalheiros o que recordavam do salãozinho de fumantes do teatro aquela noite há várias semanas, antes devia averiguar onde viviam.
Desgraçadamente o honorável Gerald Thompson encaixava com a descrição do Pryce com bastante precisão. Sem dúvida o tom de sua voz era pouco comum, um tanto agudo e em extremo penetrante, e tinha uma risada estrondosa que Pitt ouviu antes de vê-lo.
Recebeu-o no vestíbulo de seu clube do Pall Mall, pois preferia não ser visto em companhia de um personagem questionável em um dos salões principais. Desta forma podia fingir, em caso de que alguém lhe perguntasse, que Pitt estava de passagem que não se tratava de modo algum de uma visita pessoal.
—Graças a Deus que teve o bom juízo de vir de patrício - disse com secura - Bem o que posso fazer por você? Não se entretenha muito, estão-me esperando.
Pitt se absteve de replicar como teria gostado de ter sido livre de fazê-lo e foi direto ao ponto.
—Soube que você estava no salãozinho de fumantes do teatro na noite em que morreu o juiz Stafford, não é assim?
—Assim como outras várias centenas de pessoas - concordou Thompson.
—Certamente. Viu você o juiz?
—Acho que sim. Mas ignoro quem verteu veneno em sua cigarreira. Se soubesse, faz tempo que o haveria dito. Meu dever moral.
—Naturalmente. Recorda se o juiz tinha uma bebida na mão quando o viu?
O honorável Gerald torceu o gesto e ao cabo de uns segundos arregalou os olhos.
—Inclinaria-me a pensar que a tinha. Terminou-a enquanto eu o estava olhando. Vi-o erguer a mão para que o garçom lhe trouxesse outra.
—Viu o garçom levá-la
—Não, agora que penso nisso, aquele tipo nem sequer apareceu. Nesses lugares há um terrível tumulto, já sabe. Alguém se pode considerar afortunado se conseguir algo. Suponho que por isso beberia de seu próprio cantil, pobre diabo. Não é que o visse fazê-lo. Não posso ajudá-lo.
—Obrigado, senhor. - Pitt lhe fez algumas perguntas mais sobre outras pessoas que poderiam ter visto algo e não averiguou nada de proveito. Agradeceu ao honorável Gerald e partiu.
O erudito senhor Molesworth foi de menos ajuda inclusive. Sem dúvida tinha visto o Stafford, mas de pé, tratando em vão de chamar a atenção do garçom. Não o tinha visto beber de seu próprio cantil nem pensar em ninguém em particular. Stafford se tinha mostrado ativo, eficiente e claramente pressuroso.
O senhor Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde era tão diferente como se podia ser. Pitt custou certo tempo dar com ele, mas por fim o conseguiu. Estava atrás da escrivaninha em seus próprios aposentos e recebeu ao inspetor com interesse e notável gentileza. Ficou em pé para saudá-lo e o convidou a tomar assento com um movimento da mão. A estadia estava cheia de livros e papéis, e era claro que Pitt o tinha interrompido.
—Lamento incomodá-lo, senhor - se desculpou Pitt sinceramente - Devo estar me tornando louco, do contrário não o teria feito.
—Quando alguém se torna louco é quando se libera e encontra um valor e uma imaginação no desespero que não se dão nas emoções mais confortáveis - respondeu Wilde em cima. - Que acorda em você tal paixão, senhor Pitt? E o que posso fazer eu, além de lhe oferecer minha compaixão, que tem por descontado, apesar de que possivelmente não lhe sirva de nada?
—Estou investigando o assassinato do juiz Stafford.
—Oh, céus. - Wilde fez uma careta - Um gosto execrável. Que incivilizado: assassinar a um homem em seu camarote no teatro! Como vamos nós, pobres dramaturgos, competir com semelhante coisa? Eu sou crítico, senhor Pitt, mas nem sequer meus mais amargos e cáusticos comentários vão tão longe. Pode ser que escreva que uma obra é de escassa qualidade, mas oferecerei minhas observações e deixarei que o aficionado ao teatro tome suas próprias decisões. Isto foi pura sabotagem… e algo indesculpável.
Pitt estava preparado para a surpresa, apesar do que a atitude de Wilde o desconcertava. Era aparentemente insensível e, entretanto, observando seu rosto alongado, os olhos ligeiramente cansados e a ampla boca, não achou crueldade nele, e viu mais inocência que indiferença.
—Soube que se achava no salãozinho de fumantes durante o primeiro entreato, é certo? - perguntou.
—Certo. Um lugar em extremo agradável, cheio de poses e atitudes, todo mundo tratando de aparentar o que gostaria de ser em lugar do que em realidade é. Gosta de observar às pessoas, inspetor?
—Freqüentemente faz parte de meu trabalho - respondeu Pitt com um ligeiro sorriso.
—E do meu - afirmou Wilde imediatamente - Por razões distintas por completo, certamente. O que observei que possa ser de interesse para você? Não vi ninguém verter veneno no cantil do pobre diabo. - Abriu desmesuradamente os olhos - Como vê, leio os jornais, não só as críticas, embora a arte está melhor organizada inclusive que a vida. No crime raramente há comicidade, não acha? No crime real, refiro-me. Aborreço todo o vil. Se a gente tiver que fazer algo desagradável, ao menos deveria fazê-lo com estilo.
—Viu você ao juiz?
—Sim - respondeu Wilde, o olhar fixo no rosto do Pitt. Parecia achá-lo tão interessante como agradável.
Apesar de sua afetação, Pitt não podia evitar simpatizar com aquele homem.
—Viu-o beber do cantil? - perguntou.
—O que lhe vou dizer é absurdo: não o vi beber dele, mas sim estendê-lo a outra pessoa, ao senhor Richard Gibson. Não conheço o juiz mais que pela fotografia da necrologia dos jornais, mas conheço o Gibson. Stafford tirou o cantil do bolso e o passou a seu amigo, o qual lhe agradeceu e bebeu um bom gole antes de devolver-lhe - Arqueou as sobrancelhas e olhou Pitt com curiosidade-. Suponho que isso significa que alguém introduziu o veneno depois, não é certo? Não o invejo, inspetor. Não sabia que o ópio pudesse matar a alguém com tamanha rapidez, mas lhe asseguro que isso é o que ocorreu. - reclinou-se um tanto, concentrado em sua visão interior. - Recordo claramente. Stafford ofereceu o cantil a esse homem, o qual tomou um gole e o devolveu. Em troca Stafford não bebeu dele. Estava fumando um enorme charuto puro. Soou a campainha do segundo ato e Stafford tirou o charuto da boca, fez uma careta como se não gostasse e a seguir se desfez do extremo aceso e meteu o resto no bolso da jaqueta. - Franziu o sobrecenho.
—Quererá dizer no cantil - corrigiu Pitt.
—Não, não -negou Wilde - Quero dizer no bolso, como disse. Um hábito imundo. O caso é que não bebeu do cantil, disso tenho certeza. E Gibson continua vivinho e abanando o rabo. Precisamente o vi o outro dia. Que curiosa circunstância. Como a explica?
Pitt estava pensando no mesmo, dando voltas a uma massa de idéias imprecisas.
—Tem certeza? - insistiu.
—Naturalmente. - Wilde arqueou as sobrancelhas - Qual seria o propósito de inventar algo assim? Só é interessante se for verdade.
Pitt se levantou.
Wilde observou-o com vivo interesse.
—Acaba de lhe ocorrer algo! Vejo-o em seus olhos. Do que se trata? Proporcionei-lhe a pista vital! Tudo se desvelou, conhece a alma do assassino e, menos interessante, mas mais ao caso, conhece seu rosto.
—Pode ser. - Pitt sorriu apesar de si mesmo - Sem dúvida faço uma idéia da arma...
—Alguma coisa no cantil de uísque.
—Talvez não. Obrigado, senhor Wilde. Foi você de enorme ajuda. E agora, se me desculpa, tenho que fazer algo em extremo desagradável.
—Verei-me obrigado a esquadrinhar os jornais para saber do que se trata? - perguntou Wilde com tom lastimoso.
—Sim, lamento. Bom dia.
—Interessantes, frustrantes, interrompidos, a partes do mais estimulante - respondeu Wilde - "Bons" é uma palavra em excesso insípida e prosaica. Não tem você imaginação, homem de Deus?
Pitt lhe sorriu da porta.
—Está ocupada em outros mistérios.
Wilde o despediu com a mão, com absoluta amabilidade, e voltou para seu trabalho.
Pitt tomou uma carruagem para dirigir-se à casa dos Stafford e pediu para ver Juniper.
—Supus que voltaria, senhor Pitt - disse ela com aspereza - devo reconhecê-lo... Mas não tão logo. Percebo que está confuso, mas eu já fiz tudo que pude. O certo é que não posso lhe servir de mais ajuda.
—Sim pode senhora Stafford - se apressou a dizer ele - Poderia ver o valete do senhor Stafford de novo? Tenho que saber sobre as roupas do senhor Stafford.
Juniper empalideceu.
—Naturalmente que pode lhe ver se assim o desejar. As roupas de meu marido continuam aqui. Ainda não tive a coragem de me desfazer delas. Deverei fazê-lo, é claro, mas é algo para o que ainda me falta o ânimo. - Fez soar a campainha, sem perder o inspetor de vista - Posso lhe perguntar que espera averiguar?
—Preferiria não dizer-lhe até estar seguro - respondeu ele - Se pudesse falar com o valete em primeiro lugar...
—Se assim o desejar. - O rosto e a voz de Juniper denotavam escasso interesse. Toda sua vitalidade, antes tão intensa, tinha morrido, assassinada. Queria que tudo aquilo terminasse, mas os detalhes tinham deixado de lhe importar.
Quando o mordomo foi a sua chamada, ordenou-lhe que conduzisse Pitt acima, ao quarto de vestir do senhor, e que se reunisse com ele o valete.
Quando chegou o valete, um tanto sem fôlego, olhou Pitt com perplexidade. Era um homem muito robusto, de cabelo negro e rosto pouco bonito. Não ocultou sua surpresa ao ver de novo ao inspetor.
—Sim, senhor? O que posso fazer por você?
—O traje que levava o juiz Stafford na noite em que morreu. Onde está? - perguntou Pitt.
A comoção do homem era genuína.
—Era o melhor traje do senhor Stafford. O tinham confeccionado fazia tão só uns meses. Lã da melhor qualidade.
—Sim, não me cabe dúvida, mas onde está?
—Enterraram-no com o, senhor. O que esperava?
Pitt proferiu uma imprecação de aborrecimento e exasperação.
O valete ficou olhando-o. Tinham-lhe ensinado muito bem para que nada lhe fizesse perder a calma, a menos, naturalmente, que se tratasse de outro criado, em cujo caso todo mudava.
—E sua cigarreira onde está? - quis saber Pitt.
—Em sua escrivaninha, senhor, onde deve estar. Tirei-lhe todas as coisas dos bolsos, naturalmente.
—Poderia vê-la?
O valete arqueou as sobrancelhas.
—Sim, senhor, é claro. - mostrava-se educado, mas estava claro que considerava Pitt um excêntrico. Foi à escrivaninha e abriu a gaveta superior. Extraiu uma cigarreira de prata e a estendeu.
Pitt a abriu com dedos trêmulos. Estava vazia. Era ridículo, mas se sentia decepcionado.
—O que tirou você daqui? - perguntou em voz baixa, severo.
—Nada, senhor. - O homem estava ofendido.
—Acaso não tirou os melhores charutos para fumar? - insistiu Pitt. Se o valete o tivesse feito, isso daria ao traste com sua teoria - Nem sequer uma bituca?
—Não, senhor. Não havia nada dentro! Juro-lhe Por Deus que estava como agora, vazia.
—O juiz fumou meio charuto puro no teatro aquela noite e meteu o resto no bolso. O que foi que ele?
—Oh, isso. - O alívio se refletiu no rosto do criado - Tirei-a, senhor. Não íamos enterrar ao pobre homem com uma bituca no bolso. Nada bonito, certamente que não.
—Nada bonito? Estava desfeita? - inquiriu Pitt.
—Sim, senhor.
—E o senhor Stafford ainda tem posto esse traje?
—Sim, senhor. - O valete ficou olhando-o fixamente e com crescente alarme.
—Obrigado. Isso é tudo.
E sem mais demora Pitt desceu pelas escadas, pediu ao lacaio da porta que agradecesse à senhora Stafford e se foi.
—O que diz? - perguntou Drummond com incredulidade, o rosto escurecido.
—Quero exumar o corpo de Samuel Stafford - repetiu Pitt com a maior tranqüilidade de que foi capaz, embora com voz trêmula-. É preciso.
—Pelo amor de Deus... por que? Já sabe do que morreu! - Drummond estava horrorizado. Inclinou-se sobre a escrivaninha olhando Pitt com consternação - Com que propósito, além de causar aflição a todo mundo? - perguntou - Isto já despertou suficientes sentimentos de ira e culpa nas pessoas. Não o piore ainda mais, Pitt.
—É a única possibilidade que tenho de resolvê-lo.
—Possibilidade? - Drummond ergueu a voz, exasperado - A possibilidade não basta. Se quiser que peça permissão ao Ministério do Interior para desenterrá-lo, tem que estar seguro. Explique-me exatamente o que conseguirá com isso.
Ainda em pé ante a escrivaninha, como um colegial, Pitt explicou.
—No charuto? -Drummond arregalou os olhos em um gesto de incredulidade-. Além de no cantil? Mas por quê? É absurdo.
—Não "além de no cantil", senhor - esclareceu Pitt com paciência - Em lugar de no cantil. Isso explicaria por que o uísque do cantil não surtiu nenhum efeito no outro homem que o bebeu.
—Acaso esquece que achamos ópio no cantil? - recordou Drummond com ligeiro sarcasmo. Estava muito preocupado para lhe dar rédea solta - E tudo isto nos apoiando na palavra de Oscar Wilde. Não haverá mais gente no mundo? Sei que está desesperado, mas acredito que isto está indo muito longe. Não é sensato. Não acredito que possa lhe conseguir uma ordem de exumação em vista das provas, embora quisesse.
—Se o ópio estava na bituca do charuto, não no cantil, isso muda tudo - argüiu Pitt desesperado - Nesse caso só há uma conclusão.
—Estava no cantil! O legista o achou ali. Isso é um fato. Além disso, seja como for, atiraram a bituca, ou isso me há dito.
—Sei, mas se esteve várias horas no bolso, esmagada, como disse o valete, talvez possam achar-se suficientes restos de ópio.
A dúvida empanou os olhos de Drummond.
—É a única explicação que temos - insistiu Pitt - Não há nada mais que investigar. Está disposto a fechar o caso sem resolvê-lo? Alguém matou o juiz Stafford...
Drummond respirou fundo.
—E ao pobre Paterson - acrescentou com suavidade - Me faz sentir muito mal. Não sei se o Ministério do Interior concederá a permissão, mas tentarei. Será melhor que você esteja certo.
Pitt não disse nada, salvo lhe agradecer. Não tinha certeza alguma com que tranqüilizar a nenhum deles.
Até que Micah Drummond lhe comunicasse se tinha tido êxito, não havia nada mais que Pitt pudesse fazer com respeito à exumação. Não obstante, tinha algo claro: a resposta à morte de Paterson não residia em que se achasse ópio no bolso de Stafford. Seguia sendo um mistério tão grande como o fora naquela manhã em que acharam o corpo. Só uma coisa era segura: Harrimore não o tinha matado.
Sem tomar uma decisão consciente se surpreendeu na rua, em Bow Street, procurando uma carruagem. Quando parou uma, deu o endereço da pensão de Paterson na Batersea e experimentou um crescente desconforto à medida que o veículo avançava rangendo.
Quando chegaram se apeou, pagou ao cocheiro e se dirigiu para a porta. Abriu-a mesma mulher pálida, carrancuda, da primeira vez. Seu rosto se escureceu logo que reconheceu ao Pitt e fez gesto de lhe fechar a porta.
Ele o impediu colocando o pé junto ao batente.
—Eu gostaria de ver os aposentos do agente Paterson de novo, se for amável - pediu.
—Não são os aposentos do agente Paterson - corrigiu ela com frieza – São meus, e os arrendei ao senhor Hobbs. Não posso abri-las a todos os policiais que se deixem cair por aqui e incomodá-lo toda vez.
—Acaso pretende você impedir que averigúe quem assassinou ao Paterson? - perguntou o inspetor endurecendo a voz - Seria-lhe muito desagradável que me visse obrigado a fazer que a polícia vigie a casa dia e noite e interrogue a todos seus hóspedes de novo. Surpreende-me que não compreenda que é muito melhor me deixar entrar e dar uma olhada a um aposento.
—De acordo - replicou ela - Maldita policia. Suponho que não há nada que possa fazer para impedi-lo Mal nascido!
Pitt fez caso omisso da mulher e subiu pelas escadas até chegar à porta dos que fossem os aposentos de Paterson e que aparentemente agora eram do senhor Hobbs. Bateu.
Uns segundos de silêncio, depois um arrastar de sapatos ao longe, e a porta se abriu uns quinze centímetros. Surgiu um rosto uns trinta centímetros mais abaixo da cabeça do inspetor, pálido, circundado por terminantes costeletas cinza. Uns nervosos olhos azuis o olharam.
—O senhor Hobbs? - perguntou Pitt.
—Sss… sim, sss… sim, sou eu. O que posso fazer por você?
—Sou o inspetor Pitt, polícia...
—Oh... Oh, céus! - Hobbs se sobressaltou - Lhe asseguro que não tenho notícia de nenhum delito, senhor. Lamento-o, mas não posso lhe ser de ajuda.
—Justamente o contrário, senhor Hobbs, pode me permitir que entre e dê uma olhada a seus aposentos, os quais, como sem dúvida saberá, foram o cenário de uma tragédia.
—Oh não, senhor, equivoca-se - corrigiu Hobbs grandemente agitado - Foi na porta do lado, asseguro. Sim, sim, na do lado.
—Não, senhor Hobbs, foi aqui.
—Oh! Sem dúvida deve estar equivocado. A patroa me assegurou que...
—Pode ser, mas eu fui um dos que acharam o corpo. Recordo-o bastante bem. - Pitt lamentava a aflição do homem - Ao que parece mentiram-lhe, possivelmente para assegurar-se seu inquilinato. Em qualquer caso os aposentos são muito agradáveis. Eu não deixaria que isso o dissuadisse.
—De verdade... um assassinato, senhor. É terrível! - Hobbs não parava de mover-se.
—Importa-lhe que aconteceu?
—Bem... não, suponho que não, se tiver que fazê-lo. Sou um homem decente, senhor. Não tenho nenhum direito a impedir-lhe.
—Sim o tem, até que obtenha uma ordem judicial, coisa que sem dúvida farei se for necessário.
—Não! Não, absolutamente. Rogo. - O homem abriu tanto a porta que golpeou o batente e ricocheteou.
Pitt entrou. Recordou com nitidez e uma peculiar onda de tristeza a primeira vez que esteve ali; Livesey sentado na poltrona, com aspecto abatido, e o corpo do jovem Paterson ainda pendurado na corda no dormitório.
—Obrigado, senhor Hobbs. Se não há inconveniente, eu gostaria de ver o dormitório.
—O dormitório. Oh, puxa! O dormitório! - Hobbs levou a mão ao rosto. - Oh céus!... Não estará dizendo... não no dormitório. Pobre diabo! Terei que fazer que me troquem a cama. Não posso dormir aí.
—Por que não? Não é distinta da passada noite - assegurou Pitt com menos compaixão do que sentiria se não tivesse tantos outros problemas lhe bulindo no cérebro.
—Oh, meu prezado senhor... está zombando às minhas costas. - Hobbs o seguiu nervoso, até a porta do dormitório - Ou carece da mais mínima sensibilidade.
Pitt não tinha tempo para ocupar-se dele. Sabia que estava mostrando-se brusco, mas devia sopesar todas e cada uma das possibilidades, novas idéias lhe vinham dolorosamente à cabeça. Contemplou o quarto. Não tinha mudado nada desde sua primeira visita, salvo que, é claro, o terrível cadáver de Paterson já não estava ali e haviam tornado a pendurar o lustre. Além disso, parecia intacto.
—Que busca? - perguntou Hobbs da porta - Do que se trata? O que acredita que há aqui?
Pitt permanecia imóvel em meio da estadia. Depois se voltou muito lentamente para a cama, depois para a janela.
—Não estou certo - respondeu distraído. - Não saberei a menos que o veja. Talvez...
Hobbs deixou escapar um gemido e guardou silêncio.
Pitt se virou para a cômoda. Parecia um tanto deslocada, e, entretanto estava certo de que se achava exatamente ali na primeira vez.
—Moveu isso? - perguntou ao Hobbs apontando o móvel.
—A cômoda? - O homem estava alarmado. - Não, senhor. Com certeza, não. Não movi nada absolutamente. Por que ia fazê-lo?
Pitt se aproximou dela. O quadro da parede estava muito perto, mas não o tinham movido. Levantou-o para assegurar-se. Não havia marca alguma no desenho, nenhum orifício. Passou a mão para certificar-se.
—Que busca senhor? - perguntou Hobbs zangado; o alarme lhe fez elevar tanto o tom como o volume da voz.
Pitt se agachou e examinou cuidadosamente as táboas do chão até que por fim o viu: um leve entalhe a uns quinze centímetros do pé dianteiro da cômoda. Havia um segundo entalhe a outros tantos centímetros do pé traseiro. Ali era onde costumava estar! Tinham-na movido! Quando levantou a toalha de mesa e observou a superfície brunida, viu arranhões, como se alguém subira em cima com botas, tivesse escorregado e perdido o equilíbrio. Sentiu-se um tanto aturdido.
—Tem certeza de que não a moveu? - Deu meia volta para olhar fixamente Hobbs.
—Já o disse senhor, não a movi - repetiu o homem furioso – Está exatamente onde estava quando cheguei. Deseja você que preste juramento? Assim o farei.
Pitt se endireitou.
—Não, obrigado, não acredito que seja necessário, mas, se for, virei lhe pedir que o faça.
—Por quê? O que significa isto? -Hobbs estava pálido devido ao nervosismo e ao crescente medo.
—Significa que acredito que o agente Paterson moveu este móvel para encarapitar-se a ele e o lustre, depois passou a corda pelo gancho e saltou - respondeu Pitt.
—Refere-se a seu assassino? - inquiriu Hobbs com voz entrecortada.
—Não, senhor Hobbs - corrigiu o inspetor - Me refiro ao próprio Paterson ao dar-se conta do que tinha feito a Aaron Godman; ao dar-se conta de que tinha permitido que o horror e a ira do momento lhe impedissem de ver não só a verdade, mas também a honra e a justiça. Não só chegou a uma conclusão errônea, mas sim chegou a ela por meios desonestos. Não escutou a florista, formou uma idéia do que tinha acontecido e a obrigou a acreditar nisso. Estava tão seguro de estar tão certo que forçou a situação e se equivocou.
—Pare! - pediu Hobbs atormentado - Não quero ouvi-lo! É terrível! Sei do que está falando... do assassinato de Farrier"s Lane. Lembro quando enforcaram Godman. Se o que diz é certo, que esperança fica? Não pode ser! Godman foi julgado e declarado culpado, todos os juízes estavam de acordo. Deve estar enganado. -retorcia as mãos, consternado - Ainda não condenaram Harrimore e não o farão. Já o verá. A justiça britânica é a melhor do mundo. Eu sei, embora você o ignore.
—Não sei se o é ou não - asseverou Pitt sem alterar-se - Em realidade não importa.
—Como pode dizer isso? - Hobbs estava a seu lado, o rosto branco salvo por dois pontos de cor nas faces - É monstruoso. Se isso não importar, que demônios importa?
—Não importa que a justiça de outros seja melhor ou pior - explicou Pitt fazendo um esforço para mostrar-se paciente-. O que importa é que, neste caso, equivocamo-nos. Talvez lhe pareça doloroso. Também o parecerá a muitos outros. Mas isso não muda nada. Quão único podemos fazer agora é seguir mentindo a respeito e tratar de ocultá-lo, esquecer o acontecido nos tornando cúmplices da morte de Godman, ou descobri-lo e nos assegurar de que não volte a ocorrer… ao menos não com facilidade. Você o que preferiria senhor Hobbs?
—Eu... eu, é... - O homem ficou olhando Pitt fixamente como se este tivesse mudado diante dele e se convertesse em algo horrível. Entretanto, carecia de espírito e de convicção para discutir com ele. Algo lhe dizia que o inspetor tinha razão.
Pitt não acrescentou nada mais. Levou a mão ao chapéu para despedir-se, passou ante o Hobbs, agradeceu e partiu.
—Ainda não consegui a ordem de exumação - se apressou a informar Drummond logo que viu entrar Pitt no escritório - Continuo tentando-o.
Pitt se deixou cair na poltrona junto ao fogo sem esperar o oferecimento.
—Paterson suicidou - disse.
—Você me disse que isso era impossível - recordou Drummond - De qualquer forma, por que demônios ia fazê-lo?
—Não passaria a você pela cabeça se se desse conta de que forjou as provas que levaram a forca a um homem inocente? - inquiriu Pitt, e se afundou ainda mais em seu assento - Paterson não era um mau homem. O assassinato de Farrier"s Lane lhe repugnava. Deixou que suas emoções controlassem seu comportamento. sentia-se furioso e assustado. Tinha que achar ao culpado, não só pela lei, mas sim por ele mesmo, pois não podia viver com a idéia de que quem quer que o tivesse feito estivesse por cima da lei.
—Não é uma debilidade incompreensível - observou Drummond a meia voz, em pé, sem deixar de olhar Pitt - Acredito que alguns de nós a padecemos. Aterra- me pensar que possam ocorrer esses crimes. Precisamos acreditar que podemos dar com os assassinos e demonstrar sua culpa. Precisamos acreditar em nossa própria superioridade, já que a alternativa é muito terrível. - Afundou as mãos nos bolsos - Pobre Paterson.
Pitt não disse nada. A piedade lhe escurecia o pensamento ao imaginar o que deve ter pensado Paterson no último dia de sua vida no dormitório, amargamente só, enfrentando ao último fracasso. Sabia que era algo que jamais teria podido negar, mas desfrutou de um modo perverso colocando o dedo na própria chaga, simplesmente porque era a verdade, não era uma fuga, e lhe adoecia a fuga.
—Ele mesmo arrancou os galões – explicou - Era um símbolo de desonra, seu próprio modo de confessar.
Drummond permaneceu em silêncio um bom tempo.
—Continuo sem ver como pode estar certo - admitiu por fim, irrompendo nos pensamentos de Pitt - Disse que era impossível que Paterson se houvesse suicidado. Não havia nada a seu alcance ao que subir. Então como aconteceu?
—Alguém o arrumou para que parecesse um assassinato - murmurou Pitt.
—Pelo amor de Deus, por quê? Quem?
—Livesey, naturalmente, quando o encontrou, antes de nos chamar.
—Livesey! - Drummond ergueu a voz em sinal de incredulidade - por quê? Por que ia importar lhe que a morte do pobre Paterson aparecesse como um suicídio? Talvez sentisse pena do homem, mas é um juiz do tribunal de apelação. Nunca falsificaria as provas.
Pitt ficou em pé.
—Não tem nada que ver com a pena. Isso foi antes que soubéssemos que Godman era inocente. Avise-me quando tiver a ordem de exumação.
—Nem sequer estou seguro de poder consegui-la. Pitt! Aonde vai?
—Para casa - respondeu este da porta -Não posso fazer nada mais. Eu gostaria de ir a casa, um lugar limpo e inocente, antes de desenterrar Stafford. Contarei a meus filhos um conto antes que se deitem, alguma historia sobre o bem e o mal com final feliz.
Concederam a ordem de exumação a última hora da tarde, embora Micah Drummond a guardasse até o dia seguinte, em que passou a recolher Pitt às sete da manhã, em meio da escuridão que precede ao amanhecer e da garoa. As ruas estavam molhadas, a luz dos lampiões brilhava nas calçadas, o chapinhar e o ranger das rodas na água se mesclavam com o matraquear dos cascos e portadas.
Não havia nada que dizer. Sentados na parte traseira da carruagem, envolvidos em seus capotes, percorreram as ruas até o cemitério, onde desceram ainda em silêncio. Puseram-se a andar um ao lado do outro, chapinhando no lodo, até chegar ao pequeno grupo de homens vestidos com toscas roupas e apoiados em suas pás. Já havia um profundo orifício na fria terra, as lanternas surdas resplandeciam como iradas labaredas mostrando a ferida no escuro chão. Pitt aspirava o aroma da terra úmida, sentia a chuva lhe correndo pela nuca. Havia dispostas duas cordas.
—Olá, chefe - saudou o Drummond um dos homens - Quer que subamos já o ataúde?
—Sim, por favor - respondeu este.
Pitt se achava a seu lado, parado, o vento lhe golpeando o rosto. Mantinham em alto a lanterna, cuja luz feria os úmidos cabos das pás.
Pouco a pouco os homens puxaram as cordas até fazer-se visível o ataúde, os cabos reluzentes ali onde posara uma mão rude. Um homem se inclinou e retirou a terra solta da tampa, que ficou salpicada pela chuva. Conseguiram tirá-lo da cova com muita dificuldade, fez-se a um lado e o deixaram no chão. Um homem escorregou no barro e uma cascata de calhaus caiu rodando na fossa. Alguém blasfemou e se benzeu.
—Abra-o - ordenou Drummond.
O homem tirou uma chave de fenda do bolso do casaco e obedeceu. Um de seus companheiros mantinha a lanterna no alto. O primeiro demorou algo em retirar todos os parafusos e erguer a tampa. Afastou a vista ao fazê-lo, pálido o semblante. Outro estremeceu e pronunciou uma oração.
—Obrigado. - Pitt se adiantou. Ele o tinha solicitado. Ele devia ser quem olharia.
O corpo não estava tão corrompido como se temia, provavelmente porque era inverno e a terra estava fria. Mesmo assim não olhou o cinzento rosto duas vezes. Conseguiu levantar o corpo lasso com considerável dificuldade e experimentou um imenso alívio quando um dos homens foi em sua ajuda. Desabotoou-lhe a jaqueta com supremo cuidado e a tirou, primeiro um braço, depois o outro, a seguir a tirou de debaixo e devolveu o corpo a sua posição com grande delicadeza. Deu uma olhada ao objeto. Tal como havia dito o valete, era de bom gênero. Colocou a mão com suavidade nos bolsos, um por um. Era perfeitamente consciente do horrível aroma, uma doçura que era desagradável. Alegrou-se de que a gelada chuva lhe açoitasse o rosto. No primeiro bolso só havia um lenço limpo. Estranha coisa em semelhante lugar. A idéia lhe resultou curiosamente comovedora, como se alguém o tivesse deixado ali se por acaso Stafford pudesse necessitá-lo.
Respirou fundo e experimentou com o bolso seguinte. Seus dedos deram com restos de tabaco e com algo um tanto pegajoso. Tirou a mão e a levou ao nariz. Desprendia um leve aroma a tabaco. Olhou Drummond.
—Há algo? - perguntou este.
—Acredito nisso. Se isto for ópio, encontramos a resposta. O levarei ao legista. - voltou-se para os cavadores - Obrigado. Podem fechá-lo de novo e devolvê-lo a seu lugar.
—Isso é tudo, chefe? Só queria a jaqueta?
—Sim, obrigado.
—Santo Deus!
Drummond e Pitt deram meia volta depois deste dobrar o objeto para levá-lo com todo o cuidado. Começava a despontar a alvorada pelo este, nublado, anunciando um dia sombrio e plúmbeo. Caminhavam sem pressa, avançando com cautela pelo atalho encharcado até a carruagem, que estava aguardando-os. O cavalo dava pulos no meio-fio e exalava um hálito branco, atemorizado pelo aroma das tumbas.
—Vou com você - comunicou Drummond a Pitt logo que estiveram dentro da carruagem - Quero saber o que diz o legista.
Pitt sorriu com tristeza.
—Ópio - afirmou o legista olhando Pitt com as sobrancelhas elevadas - Massa de ópio.
—O bastante forte para matar a um homem se levasse a boca um charuto com isso? - perguntou Pitt.
—Nessa concentração, sim. Não imediatamente, mas em trinta minutos ou assim poderia ser.
—Obrigado.
—Mas havia ópio no uísque - apressou-se a apontar o legista.
—Sei - concordou Pitt-, mas viram alguém mais beber do cantil no teatro e não lhe fez mal algum.
—Impossível. A concentração que havia nele bastava para matar a qualquer um.
—Pitt? - interveio Drummond.
Ambos os homens olharam o inspetor.
—O ópio que matou Stafford estava no charuto. O da cigarreira jogaram depois que tivesse morrido - explicou aquele.
—Depois... - Drummond permanecia imóvel, pálido o rosto - Fizeram isso para nos confundir. Mas isso significa...
—Exatamente - disse Pitt.
—Por quê? Pelo amor de Deus por quê? - Drummond estava perplexo, angustiado.
—Por uma das razões mais velhas - respondeu o inspetor - Para conservar a imagem pública, a honra e o prestígio que lavrou ao longo dos anos. Que se demonstrasse agora seu equívoco seria um golpe que não poderia suportar. É um homem orgulhoso.
—Mas o assassinato... - objetou Drummond.
—Não me surpreenderia que começasse sendo uma mera coação, uma conspiração tácita entre todos eles. - Pitt afundou as mãos nos bolsos e encolheu os ombros - Pouco a pouco deveram dar-se conta de que havia a possibilidade de que tivessem passado por cima algo, de que se apressaram a aceitar uma solução porque a necessitavam desesperadamente. Começava a escutar o clamor popular. O Ministério do Interior não estava disposto a esperar. Acudissem onde acudissem só achavam histeria, pressão, medo. Formaram um grupinho, respiravam- se entre si, e cada qual achou sua própria escapatória: a aposentadoria, a garrafa, forjar alianças para o dia em que as necessitassem, sossegar a voz da consciência com boas ações, todos salvo Stafford. A consciência o martirizou até que achou a coragem para dar marcha té e investigar o caso de novo. E isso lhe custou a vida.
Drummond, que parecia cansado e triste, não disse nada.
—Foram eles quem mataram Godman - prosseguiu Pitt a meia voz – Sem dúvida acreditaram estar certos na ocasião, prestar um serviço à justiça... e às pessoas, mas ao final Godman lhes destroçou a vida de um modo ou outro. E agora, se me desculparem, tenho que cumprir com meu dever.
—Sim... sim, naturalmente. Pitt!
—Sim, senhor?
—Não me arrependo de deixar o corpo... mas o teria feito se não fosse você quem iria ocupar meu lugar.
Pitt sorriu, ergueu a mão a modo de saudação e a deixou cair.
Entrou no escritório do juiz Livesey sem bater e o achou sentado a sua escrivaninha.
—Bom dia, Pitt - saudou Livesey com aborrecimento - Não o ouvi bater. – Ao observar seu rosto franziu o sobrecenho e a cor desapareceu de suas faces - O que ocorre? - perguntou com voz rouca, articulando com muita dificuldade as palavras.
—Acabo de exumar o corpo de Samuel Stafford.
—Para que, pelo amor de Deus?
—Sua jaqueta. O ópio da parte de charuto que não fumou...
Livesey perdeu a pouca cor que restava. Olhou ao Pitt nos olhos e viu neles o final, igual a um homem que reconhece à morte quando a vê.
—Stafford traiu a lei - explicou em voz tão baixa que Pitt mal podia ouvi-lo, embora as palavras caíssem como uma laje.
—Não - arguiu Pitt com veemência - Foi você quem a traiu.
Livesey ficou em pé como um sonâmbulo.
—Me permita conservar a dignidade e não sair deste lugar escoltado - pediu.
—Não tinha a menor intenção de algemá-lo - respondeu o inspetor.
—Obrigado.
—Não é meu desejo lhe tirar nada. Foi você quem se privou de tudo que valia a pena.
Livesey se deteve e o olhou, os olhos já mortiços. Compreendeu o que Pitt queria dizer, seu desdém.
1 Farrier em inglês significa "ferrador". (N. dos T.)
2 Tribunal central da penitenciária de Londres. (N. dos T.)
3 No original inglês se utilizam os termos barrister (advogado que atua ante um tribunal superior) e solicitor (advogado que defende a seus clientes ante tribunais de menor importância e se encarrega de assuntos civis), respectivamente. O segundo se traduziu como "procurador" para manter a distinção, apesar de não ser figuras coincidentes. (N. dos T.)
4 A autora joga com o significado dos sobrenomes, todos os quais guardam relação com meios de transporte. (N. dos T.)
5 Os Bow Street runners, um pequeno corpo de detetives profissionais criado pelo Henry Fielding com antecedência à aparição do corpo de polícia propriamente dito. (N, dos T.)
6 Brick significa "tijolo" em inglês. (N. dos T.)
Anne Perry
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