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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASO DO ESTOJO / Fred Hercey
O CASO DO ESTOJO / Fred Hercey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Jack Howard olhou com nostalgia para as nuas paredes do quarto que acabara de alugar por três semanas no hotel de veraneio "Águia", perto de Londres.

Estivera ali uma vez e sempre desejara voltar. Fora durante a guerra. Uma breve licença de quinze dias, que ele e Stan haviam aproveitado para passarem na solidão daquele afastado canto da Inglaterra.

Stan era um atlético rapaz de Kansas. Seu melhor camarada da guerra. Três semanas de­pois de ter partido para a linha de frente, Stan caíra para não mais levantar-se, quase partido pelo meio por uma rajada de metralhadora. E ali se acabaram os belos planos que ambos haviam imaginado para o futuro, na solidão daquele hotel.

Terminada a guerra, Howard ingressara no FBI, onde se destacara por sua inteligência e coragem na luta contra o crime. E aproveitara o mês de licença que lhe fora concedido como prêmio especial por seu estafante trabalho na so­lução do último caso no qual interviera, para passar umas férias naquele canto da velha In­glaterra.

E em paradoxal era o seu caso. Buscava na lembrança do passado o esquecimento do pre­sente.

Atiçou o alegre fogo que ardia na lareira, co­meçando logo a esvaziar a mala e a colocar as roupas no armário. Em último lugar tirou a fotografia de uma bela moça, relendo as pala­vras escritas no ângulo inferior direito do retra­to. "Para Jack Howard, carinhosamente. Sua Helen Ferris".

Com um gesto brusco jogou-a para o fundo do armário, fechando a porta a chave. Estar sempre contemplando-a não seria o melhor modo de esquecê-la, mesmo que fosse numa insensível imagem fotográfica.

Correu as cortinas do balcão e olhou o céu cin­zento e a desolada campina que cercava o hotel.

As raquíticas arvorezinhas, disseminadas no pe­lado campo, sacudiam-se impelidas pelo gélido vento, que arrastava consigo minúsculos flocos de neve.

Viu, de súbito, os fachos luminosos dos faróis de um carro, que se aproximava numa velocidade vertiginosa.

Ouviu o brusco rangido dos freios ao parar em frente à entrada e o fato de ter de compartilhar o solitário hotel com um hóspede desconhecido causou-lhe certa contrariedade.

A campainha da portaria soou com insistência e sentiu as pisadas de mister Davidson, o pro­prietário, que baixava ao vestíbulo para atender o recém-chegado.

Foi ao subirem a escada, mister Davidson e o novo hóspede, que Howard teve um sobressalto. Precisamente quando a pessoa que havia chegado respondeu a uma das perguntas do hoteleiro.

Aproximou-se da porta tremendo de emoção, concentrando todos os seus sentidos nos ouvidos.

- Claro que é no verão que isso se torna ani­mado - ouviu Davidson dizer. - Mas, tão pouco faltam os que gostam de invernar e assim nós vamos vivendo.

Respondeu-lhe uma voz de inflexões argentinas. Uma voz feminina que ele reconheceria entre mi­lhares. A voz de Helen Ferris! Aquela mulher que surgira misteriosamente em sua vida, fazen­do-o sonhar com a felicidade de um amor correspondido, para desaparecer depois da mesma for­ma enigmática como viera.

Perguntou-se que destino a teria trazido à ve­lha Inglaterra e, ainda mais, ao solitário hotel "Águia", onde ele pensara encontrar a tranquilidade de espirito pela qual ansiava, longe do rebuliço das cidades e dos lugares que poderiam re­cordar-lhe a moça.

Sorriu com sarcasmo ao comprovar que David­son trazia a mulher para o quarto contíguo ao seu.

Dedicou-se a andar de um lado para o outro, ruminando seus pensamentos, todo o tempo que Davidson gastou em acender a lareira do quarto ao lado.

Quando este se afastou em direção à cozinha, Howard saiu para o corredor, indo bater na por­ta de Helen.

Sentiu que as forças lhe faltavam à vista da esbelta figura da moça e daquele par de grandes olhos que o miravam com assombro.

- Boa-noite, Helen - saudou, dando à voz um tom de irônica indiferença.

- Jack! - exclamou a moça. - Você... aqui! Empurrou-a para dentro com suavidade, en­costando a porta.

- Nós dois, aqui, Helen - disse, acentuando as palavras.

- Estou vendo - velada pela emoção. respondeu ela, com a voz - Mas o hotel "Águia" seria o último lugar do mundo onde eu poderia imaginar que você estivesse.

- Não precisa jurar, Helen. O mesmo me acontece. Foi tudo tão inesperado... Não faz nem uma hora que cheguei, com a esperança de... Bom, o que é que importa isso agora?

- Tinha esperança de me encontrar aqui? - perguntou ela, olhando-o com desconfiança.

- Bem ao contrário, Helen.

Sorriu ao dizer isso. De súbito, viu-a levar o dorso da mão à boca e olhar, de olhos arregala­dos, para algo que devia estar às suas costas.

Uma vos masculina, estranhamente rouca, soprou-lhe aos ouvidos:

- Erga os braços, irmão. E trate de não fa­zer o menor gesto suspeito, se não quiser uma carga de chumbo.

Howard fez o que o outro lhe indicava, voltando-se lentamente para ele. O indivíduo tinha a parte inferior do rosto coberta com um lenço, mantendo um chapéu de abas largas jogado para a frente, ocultando-lhe a cor dos olhos. A mão que empunhava a pistola, oscilava levemente da esquerda para a direita, cobrindo-os de maneira constante.

Jack obsequiou-o com um sorriso de desprezo, sem dar muita importância à sua atitude amea­çadora. A única coisa que o preocupava era a intriga que via, novamente, envolvendo a moça.

- Posso saber o que significa tudo isso? - perguntou, com aprumo. - Porque previno-o de que não tenho nada que possa despertar a cobiça de ninguém.

- Cale-se! - trovejou o outro. - Esse ar de ignorante não lhe senta. Sabe tão bem quanto eu o que é que me trouxe aqui. Perde tempo tra­tando distrair-me desse modo. É um truque mui­to conhecido.

Howard não entendeu nada de tudo aquilo. Optou, portanto, por calar-se e aguardar os acon­tecimentos. Porque algo na atitude de Helen re­velava-lhe que ela não estava disposta a dobrar-se à vontade do indivíduo.

Dessa forma transcorreu mais de meia hora, até que ouviram o ronco do motor de um carro, lançado a grande velocidade contra a força do vento gelado e que veio deter-se junto à entrada do hotel.

O rangido dos freios produziu um estremeci­mento em Helen. Percebeu, também, que o mas­carado retezava o corpo e que seus músculos es­tavam tensos como as cordas de um violino.

- Chegou a hora - sussurrou o homem da pistola. - O mínimo ruído ou a menor palavra e eu lhes despejo toda a carga no corpo. Alguém começou a subir ruidosamente a es­cada.

O mascarado afastou-se para um lado, deixan­do livre a porta. Com um gesto intimou-os a baixarem os braços e mantê-los grudados ao corpo.

De repente, Helen gritou com todas as forças de seus pulmões, com um acento dramático que impressionou a Jack.

- Fuja, Holland! Perigo!

A moça lançou-se deitada ao chão, de maneira que a cama ficasse interposta entre ela e o amea­çador cano da pistola.

O homem praguejou em voz baixa, ao mesmo tempo em que atirava.

Os vidros do balcão fizeram-se em cacos ao receberem os impactos no ponto onde, uma fra­ção de segundo antes, estivera o corpo de Helen Ferris.

O erro do desconhecido foi avançar para a ca­ma em busca da moça, desinteressando-se, mo­mentaneamente, do agente do FBI.

Howard aplicou-lhe um pontapé na mão direi­ta, fazendo a pistola saltar longe. Cravou-lhe o punho esquerdo no estômago e quase o ergueu no ar com um formidável soco no queixo, quando se encolheu para a frente por causa da dor de estômago.

Recolheu a arma caída e saiu para o corredor, sem se importar com o outro que se retorcia de dor.

No fundo do corredor divisou a trêmula figura de mister Davidson, com o rosto branco como um sudário.

Um grito agudo de Helen reteve-o, indeciso, no primeiro degrau da escada. As armas começaram a crepitar embaixo, ao mesmo tempo em que um carro arrancava a toda a velocidade.

Continuou a descer, tornando a parar ao ou­vir detonar, por duas vezes, uma pistola de pe­queno calibre no quarto da moça, seguindo-se às detonações o baque surdo de um corpo que caía e de uma forte batida da janela do balcão.

Correu para cima, apavorado com o que pode­ria ter acontecido a Helen.

A moça começava a levantar-se, quando ele entrou como uma tromba no quarto. Não viu nem rastros do mascarado e Helen indicou-lhe com um olhar as portas abertas do balcão.

Debruçou-se para fora, distinguindo a silhueta do fugitivo que corria para a estrada próxima, através do campo que cercava o hotel, coxeando espalhafatosamente.

Fora, os tiros haviam cessado.

Os faróis-pilotos do carro dirigido por Holland eram apenas dois pontinhos na distancia. Outro carro emergiu da escuridão, iniciando a perseguição e que diminuiu de velocidade para recolher o ferido fugitivo.

Howard não se moveu até que o segundo carro perdeu-se ao longe, engolido pela densa neblina. Então, fechou o balcão tranquilamente e ficou olhando, por um bom momento, os olhos da mo­ça, antes de perguntar:

- Tinha outra pistola, ou foi você quem ati­rou?

- Fui eu - tardou ela um pouco em respon­der. - Ele se levantou e procurou agarrar-me pelo pescoço, com suas horríveis mãos. Mal tive tempo de tirar a pistola da bolsa.

Ao dizer isso, mostrou uma pequena pistola, caída no tapete, junto a uma bolsa de verniz.

- É quase como um brinquedo, mas se torna muito eficiente a pouca distância.

- Sei. Conheço essa classe de armas. Conser­vo duas marcas de pistolas dessas no corpo. Bem - acrescentou, - você o feriu na perna, mas não o suficiente para impedi-lo de fugir.

- Não cheguei a feri-lo, Jack. Ele me deu um saía não, antes que eu conseguisse atirar. Depois, jogou-me no chão com outro empurrão e despen­cou-se pelo balcão, antes que eu pudesse reagir. Deve ter machucado a perna ao saltar. A al­tura é de quase cinco metros até o chão.

- Claro. Não há a menor dúvida que é um sujeito de sorte. E, talvez, seja melhor que te­nha conseguido escapar. Os "tiras" da Scotland Yard só se preocupam em fazer as pessoas "can­tarem".

- O que é que está insinuando, Jack? - per­guntou ela, com voz trêmula.

- É possível que se aborreça com o que eu disse, mas a verdade é que está mais em condi­ções de dar do que de pedir explicações. A prova está nas consequências desse caso, do qual eu ignoro cem por cento. Um mascarado que surge aqui, de pistola na mão; uma verdadeira batalha campal e uma corrida de carros, capaz de dei­xar em último lugar as de Indianápolis. Uma verdadeira barafunda, cuja chave deve estar em suas mãos. Foi por isso que eu disse que é uma sorte que aquele sujeito tenha conseguido fugir. Você sabe quem era ele e por que falou daquela maneira. E que relação tem você com esse tal de Holland, cuja vida salvou tão providencial-mente?

- Por favor, Jack - interrompeu-o ela, em tom repreensivo. - São perguntas que não posso e nem devo responder... por enquanto. Por ou­tro lado, acho que muito poucas coisas nós nos podemos jogar na cara um do outro.

Howard permaneceu em silêncio, refletindo nas palavras da moça. Não lhe faltava razão para falar assim. Não podia deixar de levar em conta que ela ignorava sua verdadeira identidade de agente do FBI. E tão pouco não lhe convinha revelar-lha... por enquanto.

Helen Ferris estivera intimamente ligada à si­nistra quadrilha de Donald Kane. Conhecera-a, precisamente, quando ele passara a fazer parte do bando de Kane, em missão especial e arriscadíssima. Na sua opinião, Helen Ferris era uma delinquente. E não havia a menor dúvida de que a moça continuava a considerá-lo um fora da lei, tal como o conhecera em Chicago.

- Compreendo seus sentimentos, Jack - disse ela, repentinamente. - Mas me é impossível ex­plicar-lhe os fatos que motivaram o que você viu. São várias as vidas que estão em jogo. E a minha é uma delas, Jack. Pode ser que eu não seja a última vítima desse diabólico caso, se a isto eu estiver predestinada, nem tão pouco a primei­ra. Só uma coisa posso afirmar-lhe: que fui real­mente sincera quando lhe declarei meu amor, lá em Chicago. E continuo querendo-o da mesma maneira. Mas, algo mais forte do que meus sen­timentos obrigou-me a me afastar de você, tal­vez quando mais estivesse precisando de mim.

Sua voz quebrou-se num soluço.

Howard estreitou-a em seus braços. Mas afas­tou-se bruscamente, ao ouvir que batiam à porta.

Era mister Davidson, de pernas trêmulas, ain­da não refeito do susto passado.

- Não lhe aconteceu nada de mal, senhorita? - perguntou, num fio de voz.

- Acalme-se, mister Davidson, tudo já passou.

- Sabe quem eram aqueles homens? Que dia­bos queriam aqui?

- Não sei quem eram, mas sei o que busca­vam. Mister Holland trazia uma valiosa coleção de jóias.

- Jóias?

- Exatamente. Nós dois somos intermediários na compra de jóias. A missão de Holland era trazê-las de Amesterdão para cá e a rainha de levá-las da Inglaterra para os Estados Unidos e pô-las nas mãos de seus donos.

- Nesse caso, acho que o melhor é avisar a Scotland Yard, para que a protejam. É possível que mister Holland tenha sido alcançado no ca­minho.

- Não creio. De qualquer forma, convém aguardar os acontecimentos. Holland sabe arran­jar-se sozinho.

A muda súplica que viu nos olhos de Helen, fêz com que Howard lhe desse apoio.

- Acho que a senhorita Ferris tem razão. Se os assaltantes conseguiram alcançar mister Hol­land, ele é quem deve dar parte à policia. E se conseguiu escapar à perseguição... Bem, esse aviso foi o bastante para tornar precavido o mais pneumático dos homens.

- De acordo. Mas quero que...

Cortou a frase ao fixar-se no indivíduo que, de súbito, surgira no saguão, apoiandose numa bengala de ébano, de cabo dourado. Era um ho­mem alto, de aspecto grave, com os cabelos li­geiramente prateados pela neve dos anos.

Helen apressou-se em ir ao encontro dele, tomando-o pelo braço.

- Meu irmão Edgar - apresentou. - Esqueci-me de preveni-lo de sua chegada. Quer preparar-lhe outro quarto?

Howard, desconcertado, mas consciente de que sua presença era um estorvo, despediu-se do par, disposto a pôr em prática o plano de ação que lhe havia ocorrido de súbito, e que poderia contri­buir para esclarecer o profundo mistério que en­volvia a presença ali de Helen Ferris. Howard era um homem cem por cento prático e não gos­tava de aprofundar-se demais em teorias.

Abriu o balcão, procurando não fazer o me­nor ruído. Passou para a parte exterior do avarandado de ferro, não sem se certificar, antes, que o que pertencia ao quarto da moça permane­cia sumido na escuridão.

Deixou-se cair para a frente, com o corpo rígido, agarrando-se com ambas as mãos no avarandado imediato, antes de soltar os pés da cornija do seu. Içou-se com movimentos elásticos, compro­vando que Helen fechara os postigos.

O som das vozes era perfeitamente audível atra­vés dos furos dos vidros, quebrados pelos tiros do mascarado.

- Foi bastante providencial a presença aqui de Jack Howard - ouviu o homem dizer. - Nem quero pensar no que poderia ter-lhe acontecido, se ele não estivesse a seu lado, quando gritou para prevenir Holland do perigo.

- Eu sei, Edgar. Mas, de qualquer forma, eu teria procedido assim. Foi um impulso irresistível.

- É uma pena que Howard seja o que é. Eu gostaria de poder confiar nele. Vamos precisar de muitos homens de sua tempera, para podermos levar a um bom porto a frágil barquinha na qual vamos embarcar.

- Howard era o homem da confiança de Kane. E você bem conhece a que atividades Kane se dedicava. Assaltos, entorpecentes, espionagem.

Transcorreu uma pausa, rompida pelo próprio Edgar:

- Estivemos falando de tudo, menos do que realmente nos interessa. Você acha que Holland terá conseguido refugiar-se na Clínica de Grant, conservando em seu poder o estojo de costura?

- Acredito que sim.

- Simples palpite?

- Um pouco mais do que isso. A distância até Londres é pequena e eles perderam um tempo precioso ao recolherem o homem que nos esteve ameaçando.

- Holland estava ferido. Vi claramente quan­do recebeu um balaço no ombro esquerdo, enquan­to protegia sua fuga, disparando do outro lado da estrada. Foi uma boa idéia de permanecer ali, vigiando, enquanto se procedia à entrega do ob­jeto.

- O melhor que se pode fazer, é telefonar para a Clínica.

- Tem razão. Espere um momento.

Edgar tardou quase meia hora para voltar. Pelo tom com que começou a falar, Howard compreendeu que tudo tinha saído relativamente bem para Holland, apesar dos transtornos.

- Holland está a salvo na Clínica - disse. - O ferimento não tem grande importância. Grant guardou o "estojo" no cofre do gabinete e Siles ficará montando guarda durante toda a noite. Amanhã, se a sorte nos ajudar um pouco, passa­rá para nosso poder.

Howard voltou a seu quarto, compreendendo que havia sido dito tudo quanto poderia encerrar algum valor positivo para a solução do caso.

E no quarto permaneceu o tempo justo de colo­car a pistola no coldre que usava sob o braço e de munir-se de uma potente lanterna e de um jogo de chaves-mestras.

A clínica do doutor Grant, instalada nos arre­dores da grande cidade, tinha um aspecto sinistro atrás da cortina de neblina que a envolvia.

O edificio constava de três andares, providos de amplos janelões, com uma espécie de parque na parte inferior, oculto atrás de um alto muro de tijolos. A Clínica era dedicada a doenças men­tais e Howard pesou com ironia que não lhe se­ria difícil tornar-se inteiramente louco, se tivesse que passar algumas semanas encerrado no pré­dio sombrio.

Foi seguindo o curso do muro até alcançar a parte posterior do mesmo.

Para seus músculos treinados foi um brinque­do subir para o alto do muro, valendo-se dos in­terstícios dos tijolos para apoiar seus braços e pernas.

O parque, coberto com uma grama rala, com algumas árvores disseminadas, desordenadamen­te, e alguns bancos presos ao solo, aparecia-lhe deserto.

Deixou-se cair ao solo, flexionando as pernas para amortecer o golpe, e empreendeu o caminho para o casarão, em passos de lobo.

Mal havia percorrido alguns metros quando percebeu o som de rítmicas batidas no solo, à sua direita, e que se aproximavam com vertigino­sa rapidez.

Sentiu, mais do que viu, a negra silhueta de um cão, cortando a neblina em sua direção. Só quan­do ia iniciar o salto para atacá-lo foi que o cão deixou escapar um rouco latido.

Howard, com a serenidade que o caracterizava nos momentos de perigo iminente, introduziu a mão direita no bolso da gabardina, em busca do punhal de fina lâmina que sempre trazia consigo, protegendo sua garganta com o antebraço es­querdo.

O vulto negro deu um salto prodigioso no ar e Howard sentiu a carícia das presas em suas carnes, rasgando-lhe roupa e pele numa assom­brosa facilidade.

O animal lançou um lastimoso uivo quando o aço penetrou-lhe no corpo.

Jack acionou o braço, projetando-o contra o tronco de uma árvore. E antes que o animal pudesse voltar à carga, lançou-se em prancha so­bre ele, mergulhando-lhe o punhal no peito e na garganta.

- Sinto muito, amigo - murmurou, limpando a lâmina na grama.

Um dos amplos janelões do andar térreo ofe­receu-lhe o que desejava. Depois de várias tenta­tivas infrutíferas, conseguiu levantar o trinco que mantinha as duas folhas semicerradas.

Penetrou no quarto, onde permaneceu longo tempo imóvel, habituando seus olhos à escuridão.

Um armário esmaltado em branco, uma cami­nha de rodas e um moderno aparelho de impri­mir radiografias, era tudo quanto o quarto con­tinha.

Abriu a porta com cuidado, comprovando que dava para um longo corredor iluminado fraca­mente por uma lâmpada embutida no teto, que conduzia à porta de entrada. De ambos os lados do corredor abriam-se várias portas, das quais pendiam cartazes com letras douradas em relevo, indicando as diferentes seções a que estavam de­dicadas.

Saiu andando corredor a fora, detendo-se em frente à porta cujo cartaz dizia: "Doutor Grant. Privado."

Era o gabinete particular do doutor. Ali, no cofre, devia encontrar-se o "estojo" que estivera a ponto de custar a vida de Holland e da própria Helen.

Retesou os músculos ao recordar-se, de súbito, que Siles, o ajudante do doutor, devia estar mon­tando guarda no interior. O mais estranho era que o gabinete encontrava-se sumido na mais profunda escuridão.

Sobressaltou-se levemente, quando alguém co­meçou a cantarolar uma canção, em tom baixo, bem perto dali. Desviou o olhar para a porta do "toilette", que aparecia apenas encostada. Era ali que se encontrava Siles.

Não pensou duas vezes. Chegou à entrada do "toilette", colocando-se, num salto, no interior.

Siles, que estava distraído na tarefa de lavar as mãos, em frente ao espelho preso à parede, não teve tempo de ver o rosto do intruso. Howard enviou-o para o mundo dos sonhos com uma coronhada, segurando-o pelos braços para evitar o ruído do corpo ao cair. Depois, tratou de atá-lo e amordaçá-lo, empregando para isso algumas toa­lhas.

Tranquilo por esse lado, introduziu-se no gabi­nete, iluminando-o com a potente lanterna de bol­so. Retirou o quadro, instalado imediatamente atrás da cadeira giratória, deixando a descoberto o cofre, embutido na parede.

Mal havia começado a manipular nas fechadu­ras em busca da combinação, quando seu ouvido apurado percebeu um ruído no corredor. Alguém se aproximava do gabinete.

Pendurou o quadro e apagou a lanterna, ocultando-se atrás da pesada cortina de veludo ver­melho que separava o gabinete do consultório particular do médico.

Franziu o cenho ao perceber que o homem, que acabara de penetrar ali, também se valia de uma lanterna para sua incursão.

Sorriu divertido quando o homem retirou, por sua vez, o quadro e começou a manipular na fe­chadura do cofre.

Produziu-se um estalido, seguido de um suspiro de alívio.

Quando Howard espiou através das cortinas, o desconhecido havia deixado sobre a mesa um pacote retangular, pequeno, envolto em papel celofane e atado com uma fita azul.

Deixou que tornasse a fechar o cofre e pusesse todas as coisas em ordem, antes de sair para disputar-lhe a presa. Mas aconteceu algo que o fez continuar imóvel, aguardando os aconteci­mentos. A porta do gabinete se estava abrindo lentamente.

Distinguiu um vulto com avental e gorro bran­cos e formulou-se uma pergunta, que logo teria resposta. Outro intruso, ou um autêntico enfer­meiro, a serviço do doutor Grant?

O recém-chegado avançou para o centro da peça, sem que o outro percebesse sua presença. Apontou-lhe para as costas o longo cano da pis­tola que empunhava, avisando-o em tom duro, não isento de uma sutil ironia:

- Volte-se devagar, Lecreq e não tente agar­rar sua arma. Seria o mesmo que um suicídio.

O outro obedeceu com uma exclamação de pro­funda surpresa, que acabou num gemido deses­perado.

- Maldito Lewis - murmurou. - Tinha que ser você quem viria se interpor entre o triunfo e eu.

- Claro - respondeu Lewis, dando uma gar­galhada. - Tinha que ser eu quem iria descobrir, entre outras coisas, que o fiel enfermeiro René Lecreq, antigo membro do "maquis", está sendo reclamado pela polícia francesa. E não só isso, mas que é um membro ativo de certa organiza­ção internacional dedicada ao tráfico ilegal de entorpecentes, roubos, espionagem e contrabando de divisas em grande escala. Eu o controlava e, por fim, consegui agarrá-lo com as mãos na mas­sa. É isso o que deve estar pensando, mas está redondamente enganado, Lecreq. Até agora eu ignorava que vocês andavam atrás desse estojo de costura. Porque eu estou aqui para levá-lo. O mesmo propósito nos guiou, seguindo cada qual seus próprios interesses.

Lecreq deixou escapar, num sopro, o ar contido em seus pulmões.

- Se for assim, Lewis, podemos entrar num acordo. Diz o ditado que mais vale a terça parte de alguma coisa do que a metade de nada.

- Não há nenhum acordo, Lecreq. Eu sou de opinião que é melhor a metade do que um terço.

- Você é americano, Lewis - acrescentou o francês. - Um traidor da pátria, portanto.

- Não seja ingênuo, Lecreq. Sou um membro ativo do movimento "Mundo Novo". Nós não co­nhecemos fronteiras. E agora, volte-se, porque es­tamos perdendo um tempo precioso. Siles tinha ordem para cuidar disso e pode aparecer de um momento para outro. Terei que deixá-lo atado e amordaçado. Assim você não poderá me causar aborrecimentos. Vai poder, inclusive, passar por vítima e conservar sua privilegiada posição na Clínica, espionando Grant e seus satélites.

Howard sentiu que a cabeça lhe dava voltas. Aquele assunto era mais complicado do que ima­ginara a princípio. Que espécie de organização seria a de Lecreq e o que seria aquele misterioso movimento de "Mundo Novo"? E que classe de tesouro conteria o estojo, para que tantos ho­mens se arriscassem dessa forma para apodera­rem-se dele?

Esperou que Lewis tivesse completado seu tra­balho. Quando o viu guardar o precioso objeto no bolso do avental de enfermeiro e encaminhar-se com passos sigilosos para a saída, saltou para o centro da sala, encostando-lhe o cano da "Luger" nas costas.

- Não dê mais nem um passo - disse em tom decidido. - E não volte a cabeça e nem tente mover os braços. Atirarei sem vacilar.

O assombro paralisara Lewis. Howard passou o braço em torno de sua cin­tura, apoderando-se do est-jo.

- Agora, gire lentamente para a direita e ca­minhe para onde está Lecreq.

- É amigo dele, não? - pôde pronunciar, por fim, com mal contida ira.

- Isso pouco lhe importa. Obedeça e cale a boca.

Lewis girou, deu dois passos para a frente, cer­to de que o misterioso personagem ia mandá-lo li­bertar Lecreq e, de repente, teve a sensação que sua cabeça arrebentava-se em mil fragmentos, que tudo em sua volta estava povoado de brilhan­tes luzinhas que o cegavam e que a sala dava vol­tas numa velocidade prodigiosa. A última sensa­ção que teve, antes de mergulhar na inconsciência, foi de que o solo subia reto a seu encontro e que lhe batia na cara com incrível violência.

Howard retrocedeu para o corredor, buscando o quarto de cuja janela se servira para penetrar na Clínica.

Atravessou o pátio sem contratempos, saltan­do o muro com facilidade. Logo encontrou-se na rua, passando em frente à fachada do edifício, em seu caminho de volta para o hotel.

As idéias cruzavam-lhe pela mente, num ir e vir que lhe fatigavam o cérebro. Que papel cor­respondia a Helen Ferris naquela alucinante aven­tura? E a Holland e ao doutor Grant e aos in­fiéis Lecreq e Lewis? Trabalhariam alguns des­tes para os homens que esperavam a chegada de Holland no hotel, ou seriam três forças dis­tintas, em luta pela posse do estojo?

Apertou o passo, deixando a resposta para mais tarde. Talvez pudesse obter a resposta para alguma delas depois de conhecer o que continha o cobiçado objeto.

Era visível, ao longe, a negra silhueta da casa, quando percebeu que alguém caminhava atrás de si.

A neblina ali era pouco densa e pôde distinguir o vulto encurvado de um homem, com um cigarro nos lábios, poucos metros atrás.

Parou, esperando que o outro o alcançasse. O homem cumprimentou-o em voz baixa, parando a seu lado.

- Desculpe - disse. - Pode me dar fogo?

Howard interpretou o acento do outro como peculiar aos povoados rurais dos arredores de Londres e, por um momento, abandonou a pre­caução que adotara.

Apertou a mola do isqueiro, aproximando a chama da ponta do cigarro. O outro aspirou com força, dizendo-lhe repentinamente:

- Não se mova. Tenho a pistola empunhada no bolso e nunca vacilo na hora de apertar o gatilho.

Jack viu o vulto do cano da arma no bolso di­reito do sobretudo, onde desaparecia a mão de seu novo adversário e não disse nada.

- Se ficar quieto, não lhe farei nenhum mal. Vou revistá-lo. Eu o vi saltar o muro da Clínica do doutor Grant e quero certificar-me se minhas suspeitas são certas ou não. Quero ver se leva um objeto que me interessa muitíssimo, se é só um vulgar ladrão em busca de dinheiro ou, tal­vez, um romântico Romeu.

Howard limitou-se a levantar os braços, estirando-os para cima, de um modo inverossímil. E quando o outro se aprumou e começou a revis­tá-lo com a mão esquerda, desceu o braço direito com incrível velocidade, desferindo-lhe um golpe fulminante na nuca com o canto da mão.

O homem caiu com um surdo grunhido, ficando imóvel, a metade do corpo tombando para a sar­jeta.

Revistou-o, examinando seus documentos à luz da lanterna.

Os papéis estavam ao nome de M. Dany Haniot, e o passaporte era do tipo comum, faltan­do-lhe poucos meses para caducar.

Outro sócio de René Lecreq, pensou. Sem dúvi­da, esperava-o fora para ajudá-lo e viu um des­conhecido saltar o muro em lugar de seu com­panheiro. Devia ser de vital importância para alguém o segredo que guardava em suas entra­nhas aquele estojo de costura.

Apalpou-o, quase com reverência, e prosseguiu seu caminho, imperturbável, sem dar demasiada importância ao homem que ficava para trás sem sentidos, tombado entre a sarjeta e a rua.

Iria passar um mau bocado por causa do frio, se alguém não o recolhesse logo, mas ele mesmo procurara aquilo e não iria comprometer-se por alguém em quem pressentia um futuro adver­sário.

A calha do telhado serviu-lhe de magnífica es­cada para subir a seu quarto.

Uma vez ali, apressou-se em tirar o envoltório de celofane, examinando o objeto. Um estojo de costura em forma de livro, preso por uma pe­quena correia. Mas a maior surpresa da noite, apesar de tudo quanto acontecera, estava-lhe re­servada para o final. Porque no interior, ele só continha os objetos apropriados ao mesmo. Al­guns carreteis de linha, tesouras, uma fita mé­trica e uma caixa de plástico, com agulhas e al­finetes.

Qual seria, pois, o segredo que encerrava o estojo de costura em suas entranhas?

Edgar ferris correu escadas abaixo, quando mister Davidson anunciou-lhe que alguém o chamava com urgência ao telefone. Apanhou o aparelho, perguntando o que desejavam.

Uma voz excitada respondeu-lhe:

- Edgar, é Grant. Aconteceu uma verdadeira catástrofe. Alguém roubou, esta noite, o estojo de costura.

Edgar permaneceu atônito alguns instantes, incapaz de pronunciar a menor palavra.

- Mas... - balbuciou. - E Siles?

- Não se pode culpar ninguém. O ladrão deu provas de uma audácia inaudita. Foi como se tivesse passado um ciclone pela Clinica. Plutão, o fiel cão, recebeu três punhaladas. Siles foi posto fora de combate com uma coronhada na cabeça, enquanto estava no "Toilette". René Lecreq, que descera para falar com Siles, foi encontrado atado e amordaçado. E Lewis, que acudira pouco depois, com idêntico propósito, recebeu o mesmo tratamento que Siles. Segundo as declarações de René e Lewis, deve tratar-se de um compatriota nosso. Foi a única coisa que conseguiu tirar a limpo.

- É assombroso e desolador. Fracassamos como novatos, Grant.

- É ainda cedo para afirmar isso. Tenho uma suspeita que me permite conservar as esperanças.

- Identificou alguém?

- Nao é isso. Mas começo a acreditar que se trata a um autêntico ladrão, alheio aos interesses que se chocam pela posse do objeto. Se assim for, é possível que recebamos logo uma oferta em troca da devolução.

- Isso é tudo por agora, Grant?

- Holland deve chegar aqui. de um momento para outro, acompanhado por Maxwell. Sabe bem como ele é. Não consegui retê-lo. Espero-os à hora do almoço. É preciso que estudemos juntos o caminho a seguir.

Howard ouviu parar, em frente à entrada, o carro em que Holland e Maxwell acabavam de chegar, sem dar maior importância a esse pormenor. Em compensação, interessou-se muito em escutar tudo quanto se dizia embaixo, ao ver que Edgar e Helen dirigiam-se para o "hall", para receberem os recém-chegados.

- Não devia ter vindo, Holland - ouviu a moça dizer. - O caso é desesperante, compreen­do, mas pouco se conseguirá, se seu ferimento piorar.

Vestiu um abrigo e o chapéu e desceu a esca­da, quando o grupo começava a subi-la. Queria ver de perto as feições dos dois homens e apro­veitou o pretexto da viagem a Londres, que pro­jetara efetuar naquela mesma manhã.

O gorducho Maxwell era-lhe vagamente fami­liar. Mas o que mais o impressionou foi a luz que ardia nas pupilas do cadavérico Holland que, com o braço numa tipóia e os cabelos brancos como a neve, tinha o aspecto de um maestro ou de um concertista famoso que se vê obrigado a suspender um concerto transcendental, por causa de um acidente fortuito.

O ônibus deixou-o a dois quarteirões de seu destino.

Com passos decididos atravessou várias ruelas do Soho, até chegar à loja de tecidos de Jerry Nolan.

Este recebeu-o em seu escritório. Sentou-se e foi direto ao assunto:

- Escute, Jerry. Venho pedir-lhe dois favores e estou disposto a torcer-lhe o pescoço se se ne­gar a ajudar-me.

Jerry sorriu. Haviam crescido juntos, num po­voado de Dakota Meridional e suas travessuras ainda eram recordadas pelos velhos do lugar, como coisas extraordinárias.

Nolan apaixonara-se por uma mocinha inglesa durante a guerra, casara-se e instalara-se na In­glaterra. Mas a distância não arrefecera a ami­zade.

- Fale.

- Preciso do "Austin" que você tem de reserva, por prazo indefinido. Esqueça-se dele por um tempo. E esqueça-o por completo, se acontecer alguma coisa e ele nunca mais possa andar. O segundo favor, é que guarde isso no cofre e não revele a ninguém que o tem, mesmo que o sub­metam às mais horríveis torturas - ao dizer isso, mostrou o estojo de costura, deixando-o sobre a mesa. - Nem mesmo sua mulher deve saber, en­tendeu? E não me pergunte o que é, porque não penso responder-lhe. Talvez eu me decida a con­tar-lhe, quando tudo estiver acabado. Concorda, Nolan?

- Está bem, Jack. Pode contar com ambas as coisas. Com o carro e com o meu silêncio. Mas quero dar-lhe um bom conselho.

- Conheço seus conselhos. Aposto que sei o que vai me dizer: que eu não me meta nessas confusões e que...

- Pois, perdeu. Pouco me importa que se meta nas confusões que quiser. Mas, cuide para que não aconteça nada do que insinuou, com o "Austin", porque, então, eu é que lhe torcerei o pescoço.

- Isso, se for só o carro a sofrer o acidente. E agora, vou deixá-lo, porque tenho muitas coi­sas para fazer em pouco tempo. Meus cumpri­mentos a Elma.

Entrou no restaurante "Americain", ocupando uma mesa junto à pista. A iluminação fluores­cente era intensa e contrastava com a acinzentada escuridão do entardecer, que se apoderava das ruas de Londres, onde começava a estender-se numa ligeira neblina, aumentando, progres­sivamente, à medida que a noite fosse caindo so­bre a grande cidade.

Passeou o olhar pelo local, enquanto o obsequioso "maitre" tomava nota dos pratos e dos vinhos escolhidos.

- Um momento - disse ele ao "maitre". - Acabo de ver alguns amigos e vou jantar na mesa deles. A segunda à esquerda, junto da pis­ta. Pode servir-me ali. E não esqueça de nos le­var duas garrafas de champanhe. Vamos feste­jar o encontro.

Helen teve um fugaz lampejo de alegria quan­do Jack lhes comunicou seu desejo de jantar na companhia dos três, mas, em seguida, voltou a estender-se por seu belo rosto o véu de intensa preocupação que o cobria.

Maxwell parecia a imagem da desolação. Só Holland conservava a mesma expressão imper­turbável de quando o vira, no hotel, pela manhã.

Mal haviam tocado nos apetitosos pratos e Jack deduziu, facilmente, qual devia ser o estado de ânimo deles, depois do misterioso desapareci­mento do estojo de costura. Mas não fez o menor esforço para devolver-lhes uma parte da tran­quilidade de que careciam, porque não conside­rava ainda chegado o momento de tomar, aberta­mente, sua posição no caso.

Perguntou-se se já teriam recebido o aviso que lhes mandara naquela mesma tarde, pelo cor­reio, endereçado a mister John W. Grant, e por meio do qual prevenia-os da classe de homens que eram os enfermeiros René Lecreq e Lewis.

Provaram, também, o champanhe que lhes ofereceu.

Era latente o desânimo que oprimia os compo­nentes do grupo.

Convidou a moça para dançar e começaram a falar, mal haviam dado os primeiros passos na pista, abraçados.

- Por que Edgar não está com vocês? - per­guntou, procurando um meio de fazer com que fosse ela quem começasse a pisar no terreno que o interessava.

- Teve que partir repentinamente para a Ale­manha. Obrigações de negócios.

- Suponho que seus negócios na Alemanha não sejam tão perigosos quanto os do joalheiro daqui - respondeu ele, com certa ironia.

- O que é que você sabe sobre isso, Jack?

- Mais do que imagina. Por exemplo: que as jóias, ou o que quer que seja, foram, por fim, roubadas de mister Holland, sem que lhe servisse de nada o grito de aviso, que tão caro poderia ter-lhe custado.

- E quem foi que lhe disse que... ?

- Pura dedução, Helen. Tenho meu lado de psicólogo. E adivinhei tudo no primeiro olhar. Como vocês três estão sombrios! Você, mister Holland e mais ainda Maxwell.

- Foi, também, por dedução que descobriu que esse é mister Holland e que o outro se chama Maxwell?

Havia um tom de prevenção na voz de Helen ao dizer isso. Howard não se perturbou.

- Em "nossa" profissão - acentuou, - deve­mos estar sempre de sentidos bem alertas, se quisermos subsistir. Ouvi você pronunciar esses dois nomes, hoje de manhã, quando chegaram ao hotel e tratei de encontrá-los para estudar suas fisionomias.

- Kane sabia o que fazia, quando o transfor­mou em seu homem de confiança. E o pior é que você tem razão. Refiro-me ao roubo das jóias.

- Das jóias, Helen?

- De seja o que for. Lembre-se do que eu lhe disse ontem à noite. Não depende de mim des­vendar o mistério. E, garanto-lhe que o faria com muito prazer, se soubesse que você, no fun­do... Bem, conheço suas aptidões e sua ajuda nos seria muito valiosa. Mas não me atrevo... apesar de tudo.

- Por que não se atreve, Helen? Seria um se­gredo nosso. Não é imprescindível que nosso pac­to seja conhecido, de momento, por mister Grant e...

Sentiu a emoção que suas palavras produziam na moça. Cometera um erro.

- Que é que sabe de mister Grant?

- Minha mercadoria também tem preço. Se­gredo contra segredo. E se o assunto valer a pena, é possível que eu me decida a reclamar minha parte no negócio.

- Por fim, começo a entendê-lo. Quando o co­nheci, no bando de Kane, pareceu-me um homem totalmente diferente do resto dos componentes da quadrilha de Donald. Inclusive mais inteligente que o próprio Kane. Havia momentos em que eu me dizia que você não possuía os instintos depra­vados, que caracterizavam os "gangsters" co­muns que, no fundo, era um cavalheiro que ha­via escolhido esse modo de vida apenas em busca de emoções fortes. Agora, vejo que me enganei. Você é idêntico a eles. Ambicioso e mau.

- Obrigado pelo elogio. Mas tenha isso bem presente: se se decidir a revelar-me o segredo, que tão zelosamente guarda, é bem possível que eu possa colocar em suas mãos o objeto roubado, no prazo de algumas horas. Não faça essa cara de espanto e nem pare de dançar - acrescentou. - Holland parece ter o dom de ler os pensa­mentos e prefiro que isso continue sendo um se­gredo entre nós.

Helen fechou a porta do quarto e ergueu a mão em busca do comutador da luz.

Antes que podesse alcançá-lo, uma mão calosa fechou-se em torno de sua boca, enquanto era abraçada por braços fortes.

- Acenda a luz, Peter - murmurou uma voz, perto dela.

Peter torceu a chave e Helen pôde ver os rostos dos quatro homens que, durante sua au­sência, tinham entrado no quarto do hotel, aguar­dando sua chegada.

Ouviu Howard cantarolar no quarto contíguo mas desta vez não se atreveu a gritar para que Holland, que naquela noite ocupava o quarto de Edgar, não tivesse conhecimento do perigo que estava correndo. Era demasiado clara a ameaça que lia nos olhos do homem, que apoiava o cano da pistola em seu estômago.

Amordaçaram-na e manietaram-na fortemente. Depois, começaram a descê-la pelo balcão, com o auxilio de uma corda que passaram sob seus braços.

Foram descendo todos, adotando as maiores precauções para não despertar a atenção dos ou­tros hóspedes, ficando Peter em último lugar.

Acabava de jogar aos companheiros a corda da qual se haviam servido para descer, quando soa­ram fracas batidas na porta.

- Helen! - chamou Holland em voz baixa, do corredor.

Peter fez um sinal aos de baixo, que se afasta­ram com a prisioneira, e foi situar-se junto à por­ta, grudado à parede. Tirou um punhal e um cas­setete de borracha, ao mesmo tempo em que Hol­land tornava a pronunciar o nome da moça, desta vez um tanto assustado.

- Estava trocando de roupa. Pode entrar, agora.

A imitação da voz de Helen foi perfeita. Holland empurrou a porta, sem o menor receio.

Sentiu um calafrio intenso quando a afiada lâ­mina atravessou-lhe o peito, cortando carne e músculos, e o mundo mergulhou sob seus pés ao receber na cabeça o golpe com o cassetete.

Ao voltar a si, as primeiras sensações que teve foram de violentas náuseas e de cansaço infini­to. O sangue empapava suas roupas e formava um charco sob suas roupas. Sentiu na boca o desagradável sabor do vermelho líquido.

Teve consciência da morte que já o espreitava de perto e começou a arrastar-se com um esfor­ço sobre-humano, até conseguir situar-se junto à parede que o separava do quarto de Jack Howard.

Mordeu os lábios para reprimir Os gemidos que a dor lhe arrancava da garganta e teve um se­gundo de depressão ao ver o rastro sangrento que deixava atrás de si.

Bateu várias vezes com o punho na fina pa­rede, recebendo, com um suspiro de alivio, a resposta do jovem.

Jack, de pijama e calçando chinelos de pano, apresentou-se, rapidamente, no quarto, com o susto refletido em suas feições.

Lançou uma exclamação de surpresa à vista do quadro tétrico, ajoelhando-se junto ao ferido e erguendo-lhe a cabeça, que apoiou em uma de suas pernas.

- O que foi que aconteceu aqui? - balbuciou, ainda não refeito da surpresa. - E Helen? Onde está Helen?

- Eles a levaram.

- Levaram? Quer dizer que ela foi raptada?

- Exato.

- Bem, isso aqui deve ser tratado em primeiro lugar. Aguente um pouco, amigo, enquanto tele­fono pedindo uma ambulância. Você precisa, ur­gentemente, de um médico. Avisarei o doutor Grant.

- Não faça isso - reteve-o o ferido, agarrando-lhe a mão. - Já estou perdido e poderia ser tarde demais quando voltasse. Ouça-me e procure cumprir fielmente o que lhe vou dizer. Faça-o como americano e como noivo da senhorita Ferris. Ponha-se em contato com o doutor Grant acho que já o conhece e diga-lhe que Helen foi aprisionada pelos homens de mister Holloday. Que a procure no "Sport-Club" e que a tire da lá, mesmo que tenha que arrasar tudo a sangue e fogo. Que comece a agir com a máxima rapidez, porque há o perigo que a levem para longe da Inglaterra, se a ação do resgate demorar. Diga-lhe que fui eu quem mandou dizer-lhe isso.

- Uma pergunta, Holland. Como conseguiram levá-la, sem o menor ruído e como foi que você veio parar aqui?

- Já estavam aqui, quando chegamos ao hotel. Tive uma suspeita do que estava acontecendo e quis certificar-me. Bati na porta e alguém me mandou entrar, imitando a voz de Helen. Agre­diu-me sem me dar tempo de nada, nem mesmo de gritar para o chamar.

- Diga-ma uma coisa, Holland: qual é o mis­tério que há por trás desse negócio?

- Mister Holloday... chefe do movimento "Mundo Novo" na Inglaterra. Helen lhe contará melhor tudo... Eu... não... posso. O doutor... Grant...

A voz foi-se enfraquecendo, até acabar num estertor de agonia.

Howard deitou-o com piedosa suavidade, ao compreender que já era um cadáver.

Vestiu-se apressadamente, partindo do hotel a toda a velocidade, em direção a Londres, no "Austin" de Jerry Nolan, sem se preocupar com o sus­to que levaria mister Davidson. E, tão pouco, quis pôr o doutor Grant a par dos fatos. Tinha to­mado a firme determinação de que seria só ele quem resgataria Helen das garras dos homens que a mantinham prisioneira. Estava disposto a arriscar tudo e não lhe passava pela mente a idéia de um possível fracasso. E não descansaria antes de a por a salvo das sinistras sombras que a ameaçavam. A ela e ao estojo de costura.

Estacionou o carro num deserto beco sem saída, fazendo a pé o resto do caminho. Passou em frente à fachada do grande prédio, onde estava instalada a sociedade esportiva, per­cebendo que ela tinha acesso por três ruas dis­tintas.

Atravessou em frente à entrada dos ginásios e dobrou a esquina para estudar a fachada lateral do edifício.

Grandes janelões abriam-se ao longo da parede e pôde ver, fugazmente, animadas partidas de bilhar em várias mesas.

A fachada posterior dava para uma estreita ruela, em frente a uma série de desmantelados pavilhões, utilizados como depósitos de uma em­presa colonial madeireira.

A única porta que havia nessa parte, estava fechada e, pelas janelas encostadas escapava paia o exterior o característico cheiro das co­zinhas.

Despertou-lhe a atenção uma lâmpada presa, verticalmente, ao chão e abaixou-se tentando son­dar as trevas do interior. O olfato revelou-lhe que se tratava de uma adega.

Fez pressão contra as grades, só para compro­var que seria quase impossível conseguir uma passagem por ali.

Ajoelhou-se, enfiou a cara entre as grades e pronunciou o nome da moça em voz alta.

- Jack! É você, Jack?

A voz parecia vir do fundo de uma profunda fossa.

Julgou que devia ser considerável a distância do chão da adega ao pavimento da rua onde ele se encontrava.

- Sim, sou eu. Vim para tirá-la daqui, Helen. Tenha um pouco de paciência que tudo dará cer­to. Não me responda. Vou começar a agir, agora mesmo.

Ergueu-se, sorrindo satisfeito. Sua intuição não lhe falhara daquela vez e considerava isso um bom augurio para principiar.

Mas seu fino instinto falhou-lhe, de súbito.

Foi uma desagradável surpresa o duro contato da arma em suas costas, mal havia tido tempo de erguer-se.

- Não se mova. Desta vez não terá tempo para tentar nenhum de seus truques.

Reconheceu a voz do indivíduo que os ameaçara no quarto de Helen, na noite em que chegara ao hotel.

Não disse nada e deixou que o outro lhe tirasse a pistola. Foi obrigado a entrar no prédio, pela mesma porta em que pensara fazê-lo, embora em condi­ções bem diferentes, sendo levado por um estreito corredor para um gabinete discretamente mobi­lado.

O homem apertou a campainha instalada so­bre a mesa, surgindo logo um rosto de pronun­ciados traços orientais, que pousou seus olhos oblíquos nos dois homens.

- Diga a mister Holloday que venha aqui, imediatamente.

Howard cravou seu olhar na figura ereta de mister Holloday, que chegou acompanhado de outro sujeito de atitudes grosseiras.

Impressionou-o o imperturbável rosto de mister Holloday. Representava uns quarenta anos, mais pelos fios prateados que havia em seus cabelos do que pelos impenetráveis traços: nariz adunco, pômulos ligeiramente salientes, queixo pontiagu­do e lábios sensuais e cruéis ao mesmo tempo.

Ocupou o assento que lhe ofereciam, olhando irônico para os dois homens que se situaram de ambos os lados, empunhando pistolas.

-Este é o homem que acompanhava a moça americana, ontem, no hotel "Aguia". Eu o sur­preendi tentando entabular conversa com ela, através das grades. Eu o reconheci, logo que apa­receu na rua. Mas, achei que era melhor vigiá-lo um pouco mais, antes de agarrá-lo. Tenho a im­pressão de que veio sozinho.

Com um simples olhar, mister Holloday elo­giou o comportamento de seu homem.

- De maneira que você é Jack Howard, antigo membro da "gang" de Donald Kane.

Jack compreendeu que se encontrava diante de um desses raros homens, que convencem as mul­tidões com a palavra.

- Como soube?

- Eu sei de muitas coisas, moço. Minha fonte de informações é ampla. Posso garantir-lhe que abarca os cinco continentes. E sinto especial interesse pelas pessoas que vivem na ilha, proce­dentes dos Estados Unidos. De momento, seus compatriotas são o maior obstáculo para a cria­ção de nosso "Mundo Novo". Por outro lado, você é um personagem popular em Chicago. Como conseguiu safar-se da polícia, quando o bando foi aniquilado? É a única parte de seu histórico que desconheço.

- O que é uma sorte para mim - ironizou Howard.

- Você ama miss Ferris - prosseguiu. - Já a amava, antes de sua viagem para a Inglaterra. Ignoro as causas que o levaram ao hotel "Águia", mas me inclino a crer que foi simples fruto da casualidade.

- Sabe também quem me indicou que no "Sport-Club" eu poderia encontrar miss Ferris?

- Esta é a parte mais fácil de deduzir. Deve ter sido Holland, antes de morrer, supondo-se que já esteja morto.

- Sim, com efeito, foi ele quem me disse an­tes de morrer, porque o ferimento que um de seus homens lhe causou, traiçoeiramente, foi mortal. Foi um crime sem proveito, mister Holloday.

- Essa é a sua opinião. Mas a minha é bem diferente. Sabe o que penso fazer com vocês dois?

- Não é preciso ser-se muito esperto para adi­vinhar. Miss Ferris será submetida a intermi­náveis interrogatórios para que confesse o que na realidade ignora. E eu serei sepultado no Tâmisa, com uma grande pedra atada aos pés. É o que costumam fazer pessoas de sua categoria.

- Você é de uma penetração extraordinária.

Howard acolheu com sangue frio aquele co­mentário, que era a confirmação de sua sentença de morte.

- Cometerá um grave erro, mister Holloday. Com minha morte terá fechado o único caminho que pode conduzi-lo à meta desejada. O senhor sabe muitas coisas, mas ainda lhe falta o dobro para chegar a saber tudo. Por exemplo: ignora por completo onde se encontra atualmente o estojo de costura.

Sorriu ao ver como seu antagonista se trans­formava.

- Você, então...

- Exatamente. Sou o possuidor do tal estojo. A única pessoa que sabe onde ele se encon­tra. Ouvi, casualmente, Holland dizer o lugar on­de o havia guardado, depois de ter escapado ao ataque de seus homens, e me apoderei dele, sem contar com ninguém mais do que com minha própria pessoa. Miss Ferris ignora esse pormenor e, portanto, nada poderá arrancar-lhe. E isso me coloca em vantajosa posição para poder fazer-lhe uma proposta.

- Julga verdadeiramente que está em condi­ções de fazer qualquer proposta?

- Por acaso o senhor não é da mesma opi­nião?

- Não, é claro. Isso só o salva de morrer... por enquanto. Vamos levá-lo para o lado da moça. E depois teremos tempo de falar com mais va­gar.

Howard não deu atenção às últimas palavras de mister Holloday.

- O estojo de costura, em troca da liberdade de Miss Ferris e da minha.

- Nós o teremos de qualquer forma, sem ne­cessidade de libertá-los. A moça nos interessa por algo mais do que por esse objeto. Conhece muitas outras coisas, que terá que nos dizer, de bom grado ou pela força. Negócios são negócios. E quanto a você... Bem, será melhor aguardar os acontecimentos. O tempo será testemunha de que, tarde ou cedo, saberemos de seus lábios onde poderemos recolher o estojo, com seu precioso conteúdo.

- Torna a se enganar de caminho, mister Holloday. Esquece minha profissão. A soberba o torna cego e este é um grande defeito. O estojo de costura está com alguém que, se eu não apa­recer para recolhê-lo, transcorridos dois dias, o entregará à polícia com uma carta minha, na qual eu declaro que me procurem no "Sport-Club", em caso de "extravio".

- Obrigado pelo aviso, Howard. Apressaremos as diligências para obrigá-lo a revelar o que nos interessa saber.

Pôs-se em pé e ordenou a seus homens:

- Algemem-no de mãos nas costas e levem-no para junto da moça. Redobrem a vigilância no beco e não deixem ninguém aproximar-se. Vamos adiantar a hora do fechamento do clube. Mister Howard e eu temos muito que conversar e será melhor que comecemos o quanto antes.

O moço limitou-se a sorrir com desprezo, antes de dizer:

- Está bem, por enquanto, o senhor sai ga­nhando. Mas não esqueça de que quem ri por últi­mo ri melhor e eu ainda tenho muitas garga­lhadas para dar com este caso.

O inspetor Dene, da Scotland Yard, esperou que os homens da morgue tivessem partido com a maca na qual transportavam o corpo de Holland, antes de entabular conversa com o perito em datiloscopia, que guardava o fruto de seu trabalho em uma pasta de couro.

- Alguma coisa de especial?

- Sim e não. Recolhi marcas em abundância, mas não creio que nenhuma delas possa trazer alguma luz à solução do mistério. Há cinco ou seis características distintas. E nenhuma a do assassino, com toda a certeza. Não existe hoje um só que se descuide, ao cometer um crime, de vestir umas belas luvas. E este foi tão precavido, que nem sequer nos deixou a arma homicida. Bem, dentro de algumas horas poderá dispor de uma descrição pormenorizada de tudo quanto foi encontrado.

- Está bem. Assim que tiver pronto o relató­rio, pode mandá-lo a meu despacho. Não convém que nos afastemos da rotina. As pistas mais ines­peradas surgem sempre das coisas que mais sim­ples parecem. Todo crime traz consigo um erro, o próprio crime em si já o é, e a nós compete encontrar esse erro do criminoso.

Voltou-se para o perito, que já se dispunha a partir, terminada a sua participação no caso, para dizer-lhe:

- Disse que a morte desse homem data de umas três horas?

- Exatamente. São cinco da madrugada - consultou seu relógio de pulso. - Por conseguin­te, calculo que a morte deve ter sobrevindo entre uma e meia e duas. Não preciso dizer-lhe nada sobre as causas da morte. A única coisa, é que o ferimento atingiu o pulmão esquerdo e é dos que nós denominamos necessariamente mortais. Embora, a julgar pelo que vi, o homem devesse ter uma natureza de ferro. Foi ferido junto à porta, ao mesmo tempo em que lhe desferiam um forte golpe na cabeça, entre o parietal esquerdo e o temporal. Deve ter permanecido um bom momento sem sentidos e depois, arrastou-se até a parede e bateu com os nós dos dedos na divisão. Já deve ter observado o rastro de sangue que ele foi deixando atrás de si, Com as marcas, tam­bém sangrentas, das falanges, no ponto dá pare­de onde bateu.

- Esses detalhes não me passaram desperce­bidos. A que horas, mais ou menos, poderei dis­por dos resultados da autópsia?

- Pelas onze. Talvez um pouco mais tarde, mas espero tê-la pronta a essa hora.

O inspetor mascou, pensativo, o charuto que tinha entre os dentes, enquanto andava de um lado para outro, de mãos às costas. Voltou-se para o sargento Curtis, que permanecia junto à cama, em atitude respeitosa, e mandou-o ir em busca de mister Davidson.

Dene observou o homem que estava a sua fren­te, pálido e nervoso, olhando para a enorme mancha de sangue do chão, como o infeliz pás­saro para os olhos hipnóticos de uma serpente, e não pode evitar que um sorriso irônico lhe dis-tertdesse os lábios.

- Há quantos dias mister Holland estava hos­pedado aqui? - perguntou. - Neste quarto, mais precisamente.

- Hoje era seu primeiro dia como hóspede. Mas este quarto não era o dele. Este pertencia a Miss Helen Ferris. O do... morto, é o número oito, do outro lado do corredor.

- Há algum hóspede no quarto ao lado? - mostrou a parede com as marcas dos dedos en­sangüentados de Holland.

- Sim, senhor. Um norte-americano. Parece que esteve aqui durante a guerra e que, por isso, teve a idéia de voltar. Naquela época, o proprie­tário do hotel era outro.

- Alguma coisa importante a declarar? - perguntou, vendo-o hesitar.

- Sim, acho que é, mesmo, importante.

O inspetor Dene abanou a cabeça pensativo, depois de ouvir dos lábios de Davidson um sucin­to relato dos acontecimentos do dia anterior no hotel, logo após a chegada da moça.

O fio de seus pensamentos foi cortado pela presença do empertigado policial.

- Alguém está perguntando pelo senhor. Diz que é urgente e importantíssimo.

Mandou que os dois homens se retirassem. E seus olhos adquiriram um estranho brilho opaco à vista do indivíduo de rosto enigmático, parado diante dele.

- Bom dia, inspetor Dene. Encontro-o muito atarefado. Já descobriu essa pista oculta, que é o pesadelo de todos os policiais do mundo?

- Ainda não. Mas a encontrarei.

- Não tenho duvidas sobre isso. Conheço seu histórico, inspetor. Desde seus primeiros passos até hoje, passando pela época em que foi oficial dos prisioneiros na Austrália.

Dene empalidecera intensamente.

- O que é que está querendo, agora, de mim, Tarrant? Aquela fase de minha vida ficou para trás, sepultada pelo tempo.

- É claro. Mas, se alguém levantasse essa pe­dra, que oculta boa parte de seu passado, ficaria a descoberto algo que... Bem, você compreende o que eu quero dizer, Dene.

- Você, tão pouco, iria sair-se muito bem, Tarrant.

- Devo reconhecer que tem razão nesse ponto. Mas eu nada tenho a perder. Você, em troca, tem um prestigio que gostaria de conservar.

O inspetor pareceu meditar nas palavras do outro.

- Será melhor que ponha as cartas na mesa, Tarrant - disse, por fim. - Qual é o seu jogo?

- No meio disso, há algo que pode valer uma boa fortuna para cada um de nós. Naturalmente, que sendo bem trabalhado o assunto. Você pode ajudar-me a levá-lo para frente, com a privilegia­da posição que ocupa. A investigação do crime servirá de desculpa para que ninguém suspeite de sua participação extra-oficial no caso. Se fracas­sarmos, prometo-lhe, solenemente, que de minha boca ninguém ficará sabendo o que aconteceu na Austrália, há quinze anos. Falando mais concretamente: revistou o quarto?

- Sim, mas alguém adiantou-se a nós.

- Não encontrou uma coisa que se parece a um livro, envolto num papel celofane e que é, na realidade, um estojo de costura?

- Claro que não.

Em seguida relatou-lhe o que Davidson lhe ha­via contado. Ao terminar, Tarrant abanou a ca­beça para dar a entender que compreendia toda a situação.

- Não existem tais jóias, inspetor. Foi uma história que inventaram para o hoteleiro. Não é má ideia, fazer-se uma revisão nos quartos do tal de Howard e do assassinado. E, no caso de aparecer o objeto do qual lhe falei, guarde-o cui­dadosamente até que ou volte a entrar em conta­to com você. Sua vida não valeria um fiapo, du­rante o tempo em que permanecesse com o estojo. Esse é o autêntico móvel do crime que foi perpe­trado aqui e é a segunda morte que provoca no transcurso de uma semana. Creio que isso é tudo, por enquanto. Até a vista, inspetor Dene.

Tarrant entrou no ginásio do "Sport-Club" di­rigindo-se para um dos ringues de treinamento, onde dois jovens faziam evoluções na lona, tro­cando golpes com relativa suavidade.

O "managsr" profissional, contratado pela so­ciedade esportiva, um homem alto e robusto, com o nariz retorcido de forma estranha, quase calvo e totalmente brancos os poucos cabelos que lhe restavam, estreitou a mão que o outro lhe esten­dia, sem deixar de observar as evoluções de seus pupilos no quadrilátero.

- Como vão esses golpes, velha raposa? - saudou, acrescentando em voz baixa: - Preciso falar a sós com você. Urgente e confidencial.

Joe Goldwin soltou uma gargalhada, como se acabasse de ouvir alguma graça e deu umas pal­madas de aviso para que suspendessem o treino.

- Basta por hoje, rapazes - despediu-os. - Uma ducha e para casa, os dois.

Passaram para o bar, ocupando uma mesa iso­lada a um canto.

O treinador era um velho delinquente, inscrito na organização internacional que Tarrant dirigia e que conseguira introduzir-se no clube na quali­dade de espião, já que Tarrant, conhecedor das atividades fraudulentas de mister Holloday em prol do movimento "Mundo Novo", pensava tirar partido disso.

Tarrant foi direto ao assunto:

- Prepare-se para tomar parte ativa no as­sunto do estojo de costura, Joe - disse-lhe. - Grave bem na memória tudo o que lhe vou di­zer: esta noite, Holland foi assassinado. Ao mes­mo tempo, raptaram Helen Ferris e parece que a um tal de Jack Howard, antigo membro da "gang" de Donald Kane, em Chicago. Não há a menor dúvida de que foram os homens de Hollo­day que praticaram a façanha. O mais lógico é que os tenham trazido para o "Sport-Club". Isso é o que você tem que descobrir, procurando não se meter em confusões. Se conseguir algo de po­sitivo, mande-me um bilhete ao lugar de costume. Se nos apoderarmos do casal, teremos avança­do mais da metade do caminho. Começo a acre­ditar que o sotaque americano do homem que ar­rebatou o estojo de Lecreq, na Clínica de Grant, bem podia pertencer ao antigo "gangster".

 

O homem abriu a porta da adega, fazendo um sinal ao algemado Howard para que en­trasse.

O agente do FBI deu dois passos para a escuri­dão, que se estendia à sua frente.

O empurrão colheu-o desprevenido e rolou es­cadas abaixo, até o frio solo do subterrâneo.

Sofreu uma forte luxação no cotovelo esquerdo, e o violento choque da testa contra a ponta de um dos degraus salientes quase o fez perder os sentidos.

O homem de Holloday riu com força, ao gritar-lhe de cima:

- Isso é pelos socos no hotel.

Ficou estendido, sem forças para mover-se, en­quanto sentia o sangue escorrer-lhe do ferimento da cabeça.

Notou, em seguida, o roçar de umas mãos que o acariciavam suavemente e a voz de Helen che­gou-lhe aos ouvidos, com um tom de lástima:

- Jack, meu pobre Jack. Eu sou a única cul­pada dessa situação lamentável em que você está.

Ajudou-o a erguer-se um pouco. Depois, sen­tou-se no último degrau da escada e apoiou a ca­beça do agente em seu colo, enquanto lhe limpa­va o sangue com um lenço.

- A culpa é toda minha, Helen. Não se preo­cupe por isso. Vim meter a cabeça na boca do lobo. Eu devia ter agido de outra maneira mais sensata e não confiar só em minha própria iniciativa. Imagine que eu pretendia entrar no clube pela porta dos fundos e tirá-la daqui sã e salva. Mas o inimigo é perigoso. Muito perigoso. Bem, nem sequer me deram tempo de chegar à porta. Espionavam meus passos, desde que apare­ci na rua de trás. Deviam estar escondidos nos barracões de madeira que há ali, porque não vi ninguém que me fizesse desconfiar do que iria acontecer.

- Eles não fazem nada pela metade, Jack. Os barracões são tanto deles como do clube. Pensa que nos iriam manter num lugar como esse, onde poderíamos gritar a despertar a atenção das pessoas que passassem pela rua?

- Eu devia ter imaginado isso. Agi como um colegial que brinca de detetive e ladrão e não como um... - deteve-se a tempo, acrescentan­do: - No fim de contas, talvez seja melhor as­sim. O que mais me interessava era chegar perto de você e isso eu consegui. Agora, falta a parte mais difícil. Mas não fique muito preocupada, He­len. É muito pouco esse punhado de ratos, para se meterem no meu caminho e me vencerem - e ao ouvi-la soluçar baixinho, perguntou: - Por que isso agora, menina? Por acaso, duvida do que estou dizendo?

- É que você se mostra assim... tão decidi­do, tão otimista... Não compreende, Jack, que nós dois nos encontramos na situação mais críti­ca que jamais poderíamos atravessar? Talvez que, a estas horas, nossa morte já tenha sido de­cretada. Em tal caso, nossas vidas têm tanto va­lor como um centavo falso. Somos um estorvo e essa gente tem por norma eliminar os estorvos da maneira mais rápida e contundente.

Howard observou a moça em silêncio, antes de dizer-lhe:

- Aperte o prego do centro do salto de meu sapato direito e puxe-o para o lado. Do furo, tire um jogo de chaves e experimente abrir as al­gemas com uma delas. O resto deixe por minha conta.

Helen obedeceu as ordens dele.

Deu um suspiro de alívio quando a fechadura das algemas cedeu com um rangido e ajudou-o a esfregar os braços dormentes para restabe­lecer a circulação.

Foi sentar-se numa caixa, colocada no chão, junto a um tonel, convidando Helen a fazer o mesmo. Tomou uma garrafa de outra caixa, ao lado da que lhes servia de assento, e ergueu-a no alto, tentando ler o rótulo, à luz da tênue cla­ridade que se filtrava através das grades.

- É conhaque Napoleon - disse ela sorrindo, inteiramente tranquilizada.

- Não se privam de nada, esses tipos, hem? - brincou ele. - Bem, seu Waterloo chegou.

Arrebentou a garrafa contra a parede e atraiu a moça para si, passando-lhe o braço pelos om­bros. Ela aninhou-se em seu peito, buscando a proteção de que tanto necessitava depois da de­pressão nervosa.

- Sabe, Helen? Esperei muito tempo por esse momento - começou a dizer, com voz terna, cons­ciente da confiança que ela depositava em sua força física e em sua inteligência. - Depois de seu súbito desaparecimento, eu sempre sonhava encontrá-la novamente, tornar a senti-la perto de mim, rever seus olhos e estreitá-la em meus bra­ços. Claro que nunca cheguei a supor que nosso encontro fosse ser num ambiente tão misterioso e tão cheio de perigos e, exatamente, no lugar escolhido por mim para tentar esquecê-la. Mas, agora, sinto-me inteiramente feliz, mesmo que a incerteza seja a principal característica do retor­no. Não sei o que nos terá reservado o Destino, mas quero confessar-lhe toda a minha participa­ção nessa caso. Antes de mais nada, sabe que Holland foi assassinado no seu quarto do hotel?

- Assassinado! - a exclamação brotou com um tom não isento de incredulidade. - E no meu quarto?

- Sim, Helen. Um dos homens de Holloday despachou-o com uma punhalada. Mas não mor­reu logo. Teve tempo de me chamar, batendo na parede, e de me dizer que a haviam trazido para cá. Recomendou-me que eu avisasse o dou­tor Grant. Não lhe dei ouvidos, quis agir por mi­nha conta e... Bem, já vê o resultado.

- Pobre Holland - murmurou ela, sem nem se dar conta das últimas palavras do agente. -Era um dos melhores homens que conheci. Leal, corajoso, cavalheiro... Oh, Jack! Esse é o caso mais horrível e mais sinistro, que poderia ter sido concebido! E parecia tudo tão simples, a princípio... Primeiro Curtis, o alegre e temerá­rio Curtis. Agora, Holland, assassinado dessa ma­neira covarde... e nós...

Howard apertou-a mais contra o peito, ao ver que estava a ponto de rebentar em soluços.

- Helen - falou, depois de deixar passar um tempo. - O que é que contém esse estojo de costura, em forma de livro, pelo qual estão dis­postos a matar e a morrer, nem sei quantas pes­soas? Holland não teve tempo de revelar-me isso. Mas me encarregou de dizer-lhe que poderia con­fiar em mim.

Helen ficou olhando-o fixamente, antes de per­guntar, por seu turno:

- O que é que você sabe sobre esse estojo?

- Lembra-se do que eu lhe disse no "Americain", enquanto dançávamos? Pois, creio que che­gou a hora das confidencias. O estojo, tenho-o eu. Fui eu quem o roubou da Clinica Grant, depois de pôr três homens fora de combate. Ouvi a conversa que você manteve com seu irmão, na noite em que chegaram ao hotel. Por isso, decidi apropriar-me dele e ver o que continha. Assim, fiquei sabendo que o enfermeiro Lewis perten­cia a não sei que movimento de um Mundo Novo, no qual Holloday parece ser uma figura impor­tante; e René Lecreq a certa organização inter­nacional do crime.

Em seguida, relatou-lhe toda sua participação no caso, desde a chegada ao hotel até sua violen­ta entrada na adega do clube, omitindo, unica­mente, sua condição de agente federal.

- Que planos tem a respeito do estojo? - per­guntou a moça, repentinamente séria. - Isso, na­turalmente, no caso em que consigamos livrar-nos das garras de Holloday.

- Antes disso, Você terá que me esclarecer uma coisa. Ou melhor, dizer-me se estou enga­nado ou não, na hipótese que formulei. Você per­tence ao Serviço Secreto norte-americano?

- Sim.

- Era o que eu imaginava. E também Grant, Maxwell, Holland e seu irmão Edgard, não é?

- Claro - e, depois de uma pausa, ela pergun­tou: - Revistou o interior do estojo de costura?

- Sim. Qual é o segredo que encerra?

- O que fará com ele, depois de saber que eu...

- "Gangster" ou não, sou um cidadão ameri­cano que ama sua pátria e que arriscou volunta­riamente a vida na guerra, para defender sua honra. Tão logo tivermos saído daqui, eu lhe en­tregarei o estojo e, se me permitirem, ajudá-los-ei a levá-lo para os Estados Unidos.

A fisionomia de Helen iluminou-se.

- Merece saber toda a verdade.

- Conte-a, então.

- Curtis, um de nossos melhores agentes, efe­tuou uma missão de reconhecimento em uma das regiões mais inexploradas do Tibete. Não sei até que ponto você estará informado do desapareci­mento de determinados homens de ciência, em vários países do mundo. Pelas confidencias de um sacerdote ficamos sabendo que alguns deles tinham sido vistos naquele misterioso país. Jul­gamos que fosse obra dos comunistas, mas Curtis, que conseguiu infiltrar-se dentro da organização, descobriu que se trata de uma espécie de movi­mento, que pretende revolucionar o mundo com novas idéias. Um verdadeiro perigo para a paz. Parece que estão implicados nele homens de todo o mundo. É tudo quanto eu conheço dessa parte do assunto.

- E o estojo de costura?

- Curtis foi descoberto, antes que pudesse abandonar aquela inóspita região. Sabendo-se per­seguido, ocultou seu segredo, de forma que não pudesse ser encontrado facilmente e lançou um desesperado SOS a Washington. Holland acudiu ao encontro de Curtis e conseguiu apoderar-se do precioso objeto. No dia seguinte, Curtis foi en­contrado morto em seu quarto de um hotel de Labore, com várias punhaladas. Holland foi cer­cado, por sua vez, e não podendo transferir-se para os Estados Unidos, via China, optou por atravessar a Turquia, chegando até a Alemanha Ocidental.

- Acho que posso adivinhar o resto. Mas há algo que não consigo entender. Por que, sendo Grant membro do Serviço Secreto, Holland não foi, diretamente, para a Clinica com o estojo?

- Porque estávamos certos de que, conhecen­do como conhecem a dupla personalidade de Grant, a Clínica seria o ponto mais vigiado. Por isso foi combinada a entrega no hotel "Águia". Um lugar escolhido ao azar.

Howard voltou-se para Helen, para dizer-lhe em tom comovido:

- Agora compreendo a razão do silêncio de to­dos, quando tratei de interceder por você, ao ser aniquilado o bando de Donald Kane.

A moça olhou-o perplexa.

- Você tratou de interceder por mim? Quer me esclarecer melhor isso?

Como resposta, Howard apanhou seu "carnet" de agente federal.

- Sou um agente do FBI.

Helen riu com vontade. Depois, suspirou com força, como se tivesse tirado um grande peso do coração.

- Terá que perdoar-me, Jack. A verdade é que eu chegara a pensar coisas terríveis a seu res­peito.

- Então, estamos quites, Helen. Confesso que eu...

- Kane dedicava-se à espionagem.

- Eu sei. Mas isso já são águas passadas. Diga-me: qual é o papel de Lecreq e de sua or­ganização nesse caso?

- A organização é dirigida por um tal de Tar­rant, a quem não conheço pessoalmente. Ignoro qual a fonte informativa que os pôs a par dos fa­tos. A verdade é que qualquer potência pagaria uma fortuna para apoderar-se do tal objeto. E a ambição leva os homens a realizarem as mais ar­riscadas empresas. O Tibete já está sob as fronteiras comunistas. Eu não estranharia que ten­tassem negociar com eles a venda do estojo de costura.

- E o segredo?

- O fio dos carreteis é um fio especial, mag­nético, onde estão todas as declarações de Curtis sobre o que viu. Nomes, dados, datas e lugares. E a fita métrica, submergida em ácidos especiais, revelará uma centena de fotografias que com­pletam seu enorme trabalho. Curtis pensou que ninguém repararia num objeto, que possui a de­licadeza de um regalo feminino.

- Isso agora é mais claro. O que lhe disse Holloday?

- Submeteu-me a um breve interrogatório, an­tes de chegar ao clube. Está obcecado pela idéia de que eu conheço o lugar exato onde se encontra o estojo.

- Pois a mim, em compensação, ameaçou-me abertamente.

Um ruído, vindo do outro lado da porta, redu­ziu-os ao silêncio. Ouviram murmúrios e com­preenderam que havia chegado o momento deci­sivo.

Howard deixou-se cair no chão e Helen ajoe­lhou-se a seu lado, enquanto a pesada porta era aberta pelos mesmos homens que ali haviam con­duzido o agente, e que desciam a escada íngreme, empunhando pistolas.

- Vamos, preguiçoso, levante-se de uma vez! - disse um deles, aplicando-lhe um pontapé.

Howard deixou escapar um gemido.

- Não seja estúpido - reclamou Helen, erguendo-se. - Não vê que está ferido na cabeça? E com uma perna machucada. Nem sei se não está quebrada. Não pode movê-la.

- Vamos ver isso - disse o outro, abaixando-se para apalpar a perna do agente.

Obrigou-o a movê-la com brusquidão, entre abafados gemidos de Howard e, por fim, levan­tou-se, dizendo:

- Não é nada de mais. Não fraturou nenhum osso. Vamos, amiguinho - acrescentou, guar­dando a pistola e agarrando Howard por baixo dos braços, para ajudá-lo a levantar-se. - Você tem que vir, seja como for. O chefe quer falar com você e só depois de morto poderia negar-se a conceder-lhe a entrevista. - E dirigindo-se ao outro: - Encarregue-se da dama, que eu vou aju­dar esse aqui a andar.

- Vamos, belezinha - disse o homem, agar­rando o braço da moça, que o repeliu com nojo.

Howard começou a andar, penosamente, atrás dos dois, arrastando a perna, como se não a pu­desse mover. E esperou alcançar a metade da escada, antes de entrar em ação.

De repente, fingiu que a suposta perna ferida lhe falhava. Deu um passo para trás, como se tentasse restabelecer o equilíbrio, ao mesmo tem­po em que deixava cair as algemas. Girou sobre a perna esquerda e, subitamente, disparou o pu­nho contra o queixo do tipo desprevenido.

Pos toda sua força no golpe e o queixo do homem partiu-se com um eletrizante estalo.

Não se preocupou mais com aquele inimigo, que caiu como uma massa inerte, escadas abaixo.

Saltou para a frente, tratando de evitar, a todo custo, que o outro pudesse efetuar algum disparo e espalhar o alarme pelo clube.

Sorriu ao ver como Helen lhe jogava a pistola ao chão, com um forte golpe desferido com o canto da mão, ao mesmo tempo em que lhe apli­cava uma cotovelada no baixo ventre.

Howard não teve mais do que sujeitá-lo pelas lapelas, descarregando-lhe um soco em pleno ros­to, mergulhando-o na inconsciência.

Recolheu as duas pistolas, entregando uma à moça.

Saíram para o corredor escuro e dobraram para a esquerda, desembocando em um amplo salão, onde se apinhavam caixas de bebidas e refrescos.

Foram parar nas cozinhas, desertas e às es­curas, e saíram para um grande corredor, que formava um cotovelo, dez metros adiante.

Tomaram pela bifurcação, para se encontrarem com outro corredor, fechado ao fundo por uma cortina vermelha de veludo, avançando nessa direção.

Já iam na metade do corredor, quando senti­ram abrir-se uma porta às suas costas. Olharam naquela direção e viram aparecer três homens, em mangas de camisa, que ficaram um instante parados, observando a estranha atitude do par fugitivo.

Aquele segundo de hesitação foi a perdição de­les, porque o agente não lhes deu tempo para reagir.

Começou a disparar contra o grupo, conse­guindo só. um deles escapar indene, o qual, num prodigioso salto, lançou-se para a sala que aca­bava de abandonar. Seus dois companheiros fi­caram estendidos no chão, gemendo de dor.

A mão armada do terceiro assomou no vão da porta, abrindo fogo contra eles.

Os projéteis assobiaram perigosamente perto e o iminente perigo obrigou-os a abandonar o plano de alcançarem a cortina vermelha do fundo.

Helen pareceu adivinhar seu pensamento. En­quanto Howard tratava de alvejar a mão arma­da, ela torceu o trinco da porta mais próxima de onde se encontravam.

Entraram numa vasta sala, na qual estavam enfileiradas umas vinte mesas de bilhar.

Jack deixou escapar uma exclamação de ale­gria à vista dos amplos janelões, que davam para a fachada lateral do clube. Olhou para a rua através dos grandes vidros e abandonou to­das as precauções, para se dedicar a abrir um deles.

Mal havia começado a tarefa quando lhe apareceu, às suas costas, um abafado grito de aviso de Helen, seguido pela áspera imprecação de um homem.

Howard jogou-se para trás, a tempo de ver tombar o corpo jà sem vida do terceiro homem, que os surpreendera na fuga pelo corredor.

Helen entregou-lhe, então, a pistola. Assoprou o cano antes de guardá-la no bolso e ajudou a moça a descer para a segurança da rua.

Afastaram-se em direção à ruela onde Jack deixara estacionado o "Austin", sem que ninguém os molestasse. Entretanto, ao lançar um último. Olhar para o edifício que ficava atrás, não pôde evitar que um estremecimento lhe percorresse o corpo, dos pês à cabeça, ao ver a descomposta fisionomia de Mister Holloday, grudada a uma das janelas do bar do clube, observando o último capítulo da fuga.

- Vamos para o "Águia"? - perguntou Helen, quando o agente pôs o "Austin" em marcha.

- Ainda não. O cadáver de Holland já deve ter sido descoberto e os homens da Scotland Yard devem estar rondando por lá. Por enquanto, não nos interessa entrar em contato com eles. Não podem acusar-nos de nada, mas nos submeteriam a uma estreita vigilância, o que, de modo algum, nos convém. Vamos ver Jerry Nolan. È um compatriota, amigo de infância. É ele quem guar­da o estojo de costura. Poderá encarregar se de entregá-lo ao doutor Grant sem que ninguém suspeite, pois é certo que a Clínica deve estar vigiada. Depois iremos para o hotel.

Jerry recebeu-os em seu escritório. Jack entrou direto no assunto que o interessava.

- Acabou-se sua tarefa de cão de guarda, Jerry - disse-lhe. - Pode me devolver o objeto que lhe entreguei.

Nolan abriu o cofre embutido na parede, re­mexendo em seu interior, em busca do estojo. De repente, viram-no voltar-se com uma expres­são assustada e com uma luz de incredulidade brilhando-lhe no fundo dos olhos. Havia empalidecido e Howard saltou da cadeira ao ver a sú­bita mudança que se operara em seu antigo camarada.

- O que foi, Jerry? - perguntou, suspeitando da verdade.

- Não está aqui. Alguém o roubou e... - retorceu as mãos com raiva.

- Acalme-se, Jerry - disse o agente, domi­nando a situação com sua habitual serenidade.

- De nada adiantarão as lamentações. Procure puxar pela memória e responder-me. Pode recordar-se quando foi a última vez que o viu no cofre, ao abri-lo por qualquer motivo?

- Esta manhã... não... ontem... é isso. Ontem de tarde. Pelas cinco horas, mais ou me­nos. Lembro-me de que o abri para entregar ao caixeiro dois pacotes de notas, para o troco.

- E viu então o que eu lhe havia deixado?

- Vi, tão certo quanto estar eu aqui.

- Havia alguém presente, enquanto você ti­rava os pacotes de dinheiro?

- Só meu gerente. Mas posso jurar que é uma pessoa de inteira confiança.

- Isso o comprovaremos em seguida. Quer chamá-lo um momento?

O chefe dos empregados permaneceu rígido em frente à mesa de seu patrão, retorcendo o nó da gravata com evidente nervosismo.

- Escute, Hyde - disse-lhe Nolan. - Este meu amigo quer lhe fazer uma pergunta. É pre­ciso que você responda, como se fosse eu quem a fizesse. É um assunto da maior importância.

O homem olhou na direção de Howard, assentindo.

- Pode dizer-me se Mister Nolan ausentou-se do escritório, ontem de tarde?

- Sim. Ausentou-se entre seis e seis e meia.

- Está bem. Poderia recordar-se qual dos em­pregados teria podido entrar no escritório, du­rante essa meia hora de ausência de mister Nolan?

O homem ficou um instante pensativo, depois disse:

- Acho que posso, senhor. Boriet, Jean Boriet. Um francês que entrou para a casa, há pouco mais de um mês. Senti falta dele, pouco depois de mister Nolan ter saído, mas não demorou a voltar para seu posto. Em seguida procurou-me para me dizer que não estava se sentindo bem. Pediu licença para ir para casa. A verdade é que estava pálido e me pareceu que tinha febre. Consenti que saísse e hoje não veio trabalhar.

Howard apanhou, precipitadamente, o chapéu que havia deixado sobre a mesa.

- Temos que ir procurá-lo imediatamente - disse. - Pode ser que ainda cheguemos a tempo. Onde mora Jean Boriet?

- Bem perto daqui - respondeu Jerry, levantando-se. - Vou acompanhá-lo. E o seguirei, até que veja em suas mãos o objeto que me en­tregou para guardar.

Nolan parou o "Austin" em frente a uma casa do Soho, de três andares, e cujo exterior ainda conservava as marcas das balas alemãs.

Helen permaneceu no carro, enquanto os dois amigos entravam.

Howard fez soar a campainha que havia sobre uma simples mesinha de centro e acudiu logo uma mulher de idade avançada, secando as mãos num avental de cozinha.

- Em que posso servi-los, cavalheiros?

- Queríamos ver Jean Boriet. ele está nos es­perando. Poderia ter a amabilidade de nos indicar seu quarto?

A mulher guiou-os até uma porta sem numera­ção, do segundo andar. Howard esperou que se apagasse o ruído dos passos, para depois bater. Chamou, então, e esperou pela resposta.

Alguém moveu-se dentro, antes que uma voz trêmula perguntasse o motivo da visita.

O agente recordou-se do nome que havia no passaporte do homem a quem atacara na rua, na noite do roubo do estojo da Clínica e pro­curou imitar da melhor maneira possível a voz fanhosa que ouvira.

- É Dany. Dany Haniot. Abra um momento. Tenho uma coisa importante para lhe dizer.

- Trouxe o passaporte? - Havia ansiedade na pergunta.

- Sim, está aqui.

Ouviu a chave girar na fechadura e empurrou a porta com força.

Boriet olhou-os com olhos espantados, enquan­to uma palidez cadavérica estendia-se por seu rosto.

- Mister Nolan! - pôde, por fim, balbuciar.

- Sim, rapaz. É mister Nolan que vai lhe en­sinar a não roubar nunca mais. Embora eu ache que não se pode ensinar nada mais a um homem que foi convertido em picadinho. Porque é isso que vamos fazer com você.

Howard conteve seu amigo e segurou o homem aterrorizado pelas lapelas. Sentou-o na cama e intimou o:

- Agora, amiguinho, antes de mais nada, vai nos dizer onde está o objeto que roubou do cofre de Jerry. Se se portar como um bom menino, é possível que o perdoemos. Mas, se se obstinar a negar ou a se fingir de inocente, vai experi­mentar em seu corpo os mais refinados suplí­cios orientais. Já ouviu falar neles? Bem, então comece. Onde o guardou?

- Eu... eu não o tenho.

- Não? Passe-me uma caixa de fósforos, Jerry. São muitos úteis para refrescar a memória. E ajude-me a descalçá-lo.

Sorriu levemente ao vê-lo suando de angústia.

- Esperem, por favor. Eu não tenho culpa. Roubei-o do cofre, é verdade, mas... Será me­lhor que lhes conte tudo, desde o princípio.

Jack guardou os fósforos e intimou-o a ex­plicar-se.

- Ontem recebi a visita de um homem, um compatriota, que se apresentou com o nome de Dany Hahiot. Eu nunca o vira, em toda minha vida. E nunca ouvira falar nele. Falou-me da minha mãe doente e de meu irmão cego e... Bem, ele me disse que o patrão guardava no cofre um objeto que lhe interessava muito. Era um livro, envolto em papel celofane e atado com uma fita azul. Ofereceu-me três mil libras, se eu me apoderasse dele e lho entregasse e um passaporte para que, hoje mesmo, eu pudesse embarcar para a França. Esta manhã levei o objeto para ele, em troca do dinheiro prome­tido e ficou de voltar esta tarde com o passa­porte. Juro-lhes que eu não queria fazer isso, mas ele insistiu, lembrando-me as dificuldades de minha mãe doente e de meu irmãozinho e...

De súbito, o agente impôs-lhe silêncio, com um gesto imperioso. Alguém se aproximava.

Quando bateram à porta, Howard indicou a Boriet que fosse abri-la, enquanto Jerry e ele se situavam aos lados, grudados à parede.

Haniot entrou sem recear nada e sobressaltou-se ao sentir contra os rins o contato do cano da pistola que Howard empunhava.

- Bem, mister Haniot - disse-lhe com sarcas­mo - esta é a segunda vez que nos encon­tramos.

Desarmou-o, obrigando-o a sentar-se numa pol­trona.

- De maneira que me seguiu os passos, hem? Viu quando eu levava o estojo para o loja de Jerry e imaginou que devíamos tê-lo guardado no cofre. Um bom trabalho. Embora não seja muito decente ter coagido a um desgraçado como Boriet, valendo-se das necessidades de sua família. Isso rescende a sujeira por todos os lados. Você é quem devia ter-se arriscado, en­trando na loja, fosse como fosse, e roubado com a classe de um Arsène Lupin. Resumindo: onde guardou o estojo?

O francês sorriu com marcado cinismo.

- Está muito enganado, se pensa que vou lhe dizer. Além disso, tenho uma conta pendente com você.

- Não esqueça que fui eu o provocado.

- É claro. Recobrei os sentidos a tempo de evitar a morte por congelação. E jurei que o faria pagar caro por aqueles horríveis momentos. Precisei fazer um esforço sobre-humano para vencer o torpor do frio.

- Terá que esperar outra ocasião para se vingar, Haniot. Então, poderá vingar-se de duas coisas ao mesmo tampo. Por aquilo e pelo de hoje. Porque ainda sou eu quem domina a situação. Quer me dizer onde está o estojo?

Haniot apertou os lábios, como resposta.

- Está bem, você foi quem escolheu. Ajude-me, Jerry. Vamos atá-lo e amordaçá-lo.

Deitaram-no na cama, retirando-lhe o sapato esquerdo. Howard acendeu um cigarro, indicou a Jerry que o voltasse de barriga para cima e que o sujeitasse e começou a fazer-lhe cócegas na planta do pé.

O acesso de riso quase o afogou, por impedir a mordaça sua livre expansão. Então, Howard apli­cou-lhe a brasa do cigarro.

O grito de dor foi contido pelo lenço que lhe tapava a boca, e Jerry teve que fazer uso de todas suas energias para contê-lo.

O agente retirou-lhe a mordaça para que pu­desse respirar e enxugou o suor, que lhe escorria pelo rosto congestionado.

- Bem, vamos continuar, ou prefere dizer o que nos interessa?

Vou falar - balbuciou, respirando entrecortadamente. - Maldito "gangster" do inferno!

- Onde está o estojo?

- É René Lecreq quem o tem. Hotel Lahore, quarto número 23. Na margem direita do Tâmisa.

- Conheço-o - interveio Jerry. - Tem o nome de hotel, mas é uma espelunca das piores.

- Uma pergunta a mais, Haniot: porque é que mister Tarrant não se encarregou do objeto? Ouvi dizer que é o chefe da organização à qual vocês dois pertencem.

- Tarrant queria negociar com os comunis­tas. Com os russos ou chineses. Convenci Lecreq a prescindirmos do chefe, ao menos desta vez. Prefiro negociar com qualquer outro país do mundo livre.

Deixaram o carro na entrada da estreita ruela, com Helen ao volante e dirigiram-se para o maltratado edifício de dois andares, em cuja fachada sobressaía uma placa de ferro, onde ape­nas eram visíveis as letras da palavra "Hotel".

Penetraram no "hall", carregado de extrava­gantes adornos alegóricos do Oriente Próximo e cumprimentaram o porteiro que lia um livro, tendo um turbante a lhe cobrir a cabeça.

Mal lhes prestou atenção e eles procuraram a porta marcada com o número 23.

Howard parou com o braço no alto, antes de bater. Jerry consultou-o com os olhos e prepa­rou-se para entrar em ação, logo que percebeu o ar assustado do rosto do agente do FBI.

A um sinal de Howard, Jerry retrocedeu alguns passos, investindo ambos contra a porta, que estalou estrepitosamente ao receber o impacto, cedendo a fechadura de fortes molas.

A força da inércia precipitou-os até quase o centro da peça, onde permaneceram imóveis por uma fração de segundo, contemplando a cena que se oferecia a seus olhos.

Lecreq encontrava-se sobre o leito, em pija­ma, e um filête de sangue escorria de um fe­rimento na testa, indo perder-se no travesseiro, em baixo da cabeça.

Junto a ele, dois indivíduos de péssima cata-dura, estavam começando a amarrá-lo sobre as roupas revoltas da cama. Dois homens de Hol­loday!

Jack viu o espanto pintado nos rostos de seus antagonistas e lançou-se contra eles, antes que seus músculos tivessem tempo de obedecer aos ditames do cérebro.

Disparou o pé como um projétil, indo a ponta do sapato bater nas costelas do que lhe esta­va mais próximo, que caiu retorcendo-se de dor.

Voltou-se furioso ao sentir um soco na orelha e lançou-se contra seu novo inimigo.

Aplicou-lhe uma série de golpes no rosto, con­seguindo derrubá-lo com um supercilio aberto. Abaixou-se para revistá-lo e recebeu uma joelhada na virilha que o abateu, enquanto era as­saltado por violentas náuseas.

Conseguiu livrar-se do adversário, lançando-se por cima de sua cabeça, num elástico jogo de pernas, privando-o dos sentidos, mediante um violento soco no plexo solar.

Correu em auxilio de Jerry, que lutava para derrubar seu vigoroso adversário. Desferiu-lhe uma coronhada no crânio, dedicando-se, em se­guida, a revistar os bandidos.

Com um suspiro de alívio retirou o estojo de costura do bolso do sobretudo do que lutara com Jerry. Depois, olharam surpreendidos, para o pálido porteiro que, paralisado, observava-os da porta.

Jack tirou uma placa do bolso, uma placa que o identificava como sócio do "Clube Darlings" de Nova Iorque e aproximou-a dos olhos do empre­gado, retendo-a na palma da mão, quase oculta pelos dedos arqueados.

- Scotland Yard - murmurou, tornando a guardá-la.

Temia que o homem percebesse o logro e obser­vou suas reações com grande interesse. Mas o porteiro estava demasiado nervoso para dar-se conta da verdade.

Howard entregou-lhe a pistola de um dos ho­mens de Holloday.

- Vigie-os, amigo. Vamos descer para chamar uma ambulância.

Saíram rápido e não respiraram tranquilos, enquanto o carro não começou a rodar pelas ruas principais da grande cidade, longe do Hotel Labo­re, do espantado porteiro e das sórdidas ruelas.

- O que pensa fazer agora? - perguntou Jerry.

- Há poucos caminhos a seguir. Não podemos ir para o hotel com o estojo, porque seria o mesmo que pô-lo nas mãos dos que estão inte­ressados nele. E tão pouco podemos levá-lo para a Clínica de Grant, pelo menos por enquanto. Acho que o melhor é que você continue a guar­dá-lo. Eles não irão pensar que vamos continuar a deixá-lo num lugar, onde pode ser roubado com tanta facilidade. Procuraremos, logo, uma maneira de nos comunicarmos com você. Quan­do chegar em casa, chame sua mulher e peça-lhe que se encarregue de libertar Boriet e Ha­niot. Não tenha nenhum receio por esse lado. Os dois guardarão um silêncio de túmulo.

 

O inspetor Dene ordenou a colocação de alguns agentes nas esquinas das ruas imediatas, para evitar a aglomeração dos curiosos. De­pois, voltou-se para Tarrant para dizer-lhe:

- O resto deixo em suas mãos, Tarrant. Cer­camos o edifício?

- Acho que não vai ser preciso. Aqui está acontecendo alguma coisa estranha - retrucou, olhando com atenção para as portas e janelas fechadas do "Sport-Club". - Venha, entraremos pelo ginásio.

Ergueram a cortina de ferro, arrebentando a fechadura da porta, com vigorosos empurrões.

A primeira coisa que avistaram foi o corpo de um homem enforcado, que pendia de uma corda, presa ao teto.

Tarrant deixou escapar uma maldição, ao re­conhecer no pêndulo humano a familiar figura de Joe Goldwin.

Afastou o olhar do macabro espetáculo, inca­paz de suportar a visão daqueles olhos saltados, das feições descompostas do "manager" e da­quele palmo de língua de fora, como se tivesse pretendido zombar de seus verdugos.

O inspetor viu-o tornar-se lívido e pousou-lhe a mão no braço.

- É muito desagradável - disse. - Por mais acostumado que eu esteja a ver a morte todos os dias, sempre impressiona a horrível visão de um homem enforcado. Uma bebida poderá aju­dá-lo a refazer-se.

- Obrigado, Dene, você é muito amável. Mas não foi, precisamente, a visão de um homem enforcado que me impressionou. É que o morto... era um amigo.

- Por acaso, pertencia também a... ?

- Sim - respondeu Tarrant, sem deixá-lo acabar a frase. - Trabalhava para nós.

Dene mandou que retirassem o cadáver e passou para as outras dependências do clube, seguido por vários agentes.

Descobriram o corpo do pistoleiro, morto à entrada da sala de bilhar, assim como as manchas de sangue na outra extremidade do corre­dor, onde Howard ferira seus dois companheiros.

Abriram a porta para seguir o rastro de lí­quido vermelho e viram outro homem caído so­bre uma cama, com o peito da camisa empapado de sangue. Certificaram-se que já havia deixado de existir e olharam-se, por um momento, perplexos. O que teria acontecido ali, antes de sua chegada?

- Quem é que você acha que foi o autor des­ta carnificina?

- É cedo para aventurar qualquer hipótese, inspetor. Talvez Goldwin, quando sentiu que ha­viam descoberto seu jogo. Mas é, também, pos­sível que aquele "gangster" americano, não es­teja alheio ao que aconteceu aqui. Mande que seus homens façam um meticuloso exame em todas as dependências do clube e nós vamos nos encarregar do escritório de Mister Holloday.

Tarrant olhou contrariado para os montes de papéis espalhados sem ordem por cima da mesa e pelo chão.

- Total, zero - disse. - Trabalhamos como negros, remexendo em todo esse papelório e es­tamos no mesmo ponto que antes.

- Você pensa, mesmo, assim? Pois não so­mos da mesma opinião. Encontramos provas para deter umas vinte pessoas, pelo menos.

- É porque você, Dene, vê as coisas de um ponto de vista meramente policial. A verdade é que Mister Holloday só deixou o que lhe in­teressava deixar. De um modo ou de outro, esses desgraçados deixaram de ser-lhe úteis e desem­baraçou-se deles, com a maior astúcia do mundo.

O sargento Curtis apresentou-se para dar as novidades:

- Encontramos mais dois cadáveres, inspetor. Estão na adega. Nenhum ferimento de bala nem de arma branca. Alguém deve lhes ter dado um golpe muito violento. Um deles tem o queixo partido e deve ter rompido o crânio ao bater contra o chão. O outro está desnucado. Nem ras­tro da moça e do americano. E muito menos ain­da do tal livro, envolto em celofane.

A campainha do telefone tirou-os da abstração em que estavam.

- Atenda, Dene. Talvez seja Mister Holloday, que quer nos dizer alguma coisa. O homem tam­bém tem senso de humor.

Tarrant não pôde entender o que dizia a voz do outro lado, mas percebeu que o interesse de Dene ia aumentando à medida que escutava o que lhe diziam. Desligou o aparelho e explicou:

- Não era mister Holloday. Era o sargento Helmes. Helen Ferris e o "gangster" americano estão detidos. Apresentaram-se no hotel e o po­licial que deixamos ali, montando guarda, deteve-os. Estão nos esperando na Scotland Yard.

- Sendo assim, é melhor irmos logo para lá.

Mas não acredito que consigamos algum escla­recimento com o que eles vão nos dizer.

Howard sentou-se na cadeira que o inspetor Dene lhe oferecia e olhou para seus interlocuto­res com aprumo.

Estava serenamente preparado para não cair na armadilha e sabia que os agentes oficiais nun­ca chegariam a fazer com ele o que haviam feito com Haniot, para arrancar-lhe o que pretendiam.

- Bem, Mister Howard - começou a dizer Tarrant, - prevejo que o senhor e eu vamos che­gar, rapidamente, a uma mútua compreensão. O que foi que o trouxe à velha Inglaterra?

- Vim por motivos que prefiro calar. São de­licadamente pessoais, compreende? E hospedei-me no "Águia", porque o julguei o lugar mais in­dicado para conseguir meus fins.

- Conhecia Helen Ferris, antes de encontra-la no hotel?

- Sim. Foi em... Bem, ela é minha noiva.

- Agora, chegamos à parte mais importante do caso. Sinto-me obrigado a apelar para a sua sinceridade e espero ser atendido. No fim de contas, isso redundará em favor seu e no de Miss Ferris. Diga-me: como foi parar no "Sport-Club" e que foi que aconteceu lá? Antes que responda, quero esclarecer-lhe várias coisas. Sa­bemos que os irmãos Ferris esperavam a chega­da do infeliz Holland, que devia entregar-lhes um objeto de incalculável valor. Inclino-me a pensar que, acidentalmente, o senhor se encon­tra metido no caso.

- Permita-me uma pergunta, inspetor - in­terrompeu-o Howard. - Vejo que seu interesse volta-se, de maneira especial, para o "objeto", que Holland devia pôr nas mãos dos Ferris. Vou confessar-lhe que ignoro, inteiramente, o conteúdo desse objeto. E, também, que Miss Fer­ris guarda uma absoluta reserva a esse respei­to. Que segredo encerra ele? Tem que tratar-se, forçosamente, de algo muito importante, para que a Scotland Yard mostre tamanho interesse por ele.

- Miss Helen Ferris falou em uma valiosa co­leção de jóias, para o hoteleiro - explicou Tar­rant. - E queremos comprovar se estas coinci­dem com as que foram roubadas em Amesterdão.

Howard franziu as sobrancelhas de modo sig­nificativo. Era óbvio que Tarrant, a quem jul­gava um inspetor da Scotland Yard, estava men­tindo descaradamente. E dispôs-se a seguir a corrente.

Por um momento pensara revelar-lhe sua ver­dadeira personalidade e fazer um minucioso re­lato do caso, conforme ele o via. Mas decidiu, de pronto, seguir com a versão deformada dos fatos, conforme combinara com Helen antes de voltarem ao hotel, porque pressentia algum tur­vo manejo em tudo aquilo.

- Terão que buscar Mister Holloday. Seus ho­mens apoderaram-se do objeto, logo depois de assassinarem Holland. Helen pediu-me que a acompanhasse ao escritório daquele senhor, no "Sport-Club", porque desejava tentar um acor­do com ele. Holloday reteve-nos como prisionei­ros durante toda a noite. Quando nos libertou, essa manhã, disse-nos que o objeto estava a sal­vo e que nada poderíamos fazer para resgatá-lo. Isso é tudo o que sei.

Tarrant tentou romper a reserva do outro, sem conseguir. Vendo que nada conseguiria por aque­le lado, fez um sinal a Dene, dando por termi­nado o interrogatório.

Uma vez a sós, o bandido distendeu os lábios num amplo sorriso.

- O que foi que conseguiu descobrir? - per­guntou Dene.

- Que eles ainda têm o costureiro.

- E o que é que vamos fazer para arrancá-lo?

- Empregar a astúcia, meu caro amigo. São sete e vinte e dois - continuou, consultando seu relógio. - Acerte seu relógio pelo meu. Dentro de duas horas, ponha esses pássaros em liber­dade. Disporei uns quantos homens que seguirão seus passos, sem que eles notem, por mais es­pertos que sejam. Eles mesmos porão o objeto em nossas mãos. Quanto ao que aconteceu no "Sport-Club", pode fazer o relatório, informando que se tratou de uma luta entre dois bandos rivais. Recolheu provas suficientes para denunciar as atividades ilegais de mister Holloday. Isso a tudo, por enquanto.

 

Jack estacionou o pequeno "Austin" junto à calçada e entrou na loja de Nolan, acom­panhado por Helen. Mister Hyde ficou ner­voso ao ver o agente e mal conseguiu balbuciar algumas breves palavras de saudação,

- Mister Nolan está no escritório?

- Sim... sim, senhor.

- Não se incomode em nos anunciar. Não é preciso.

Jerry deixou de lado os papéis das contas que estava examinando, recebendo-os com cordia­lidade.

- É hoje que devo exercer o trabalho de mensageiro? - perguntou.

- Você já desempenhou sua parte no negócio, Jerry. Amanhã é que levaremos o objeto. Mas nos deverá entregá-lo, agora mesmo.

- Não será perigoso? Ignoro do que se trata, mas tive ocasião de comprovar que andar com ele é estar exposto a um sério desgosto. Não seria melhor que eu, ou outra pessoa de con­fiança ...

- Aí é que está o erro - atalhou-o Howard. - Nós estamos sendo estreitamente vigiados. Há vários elementos pendentes de nossos menores gestos.

- Você poderia ter-me telefonado.

- E eles teriam sabido, palavra por pala­vra, toda a nossa conversa. Estou certo de que esperam que seja uma terceira pessoa quem se encarregará de transportá-lo para certo lugar de Londres. Por isso é que quero levá-lo eu. Suspei­tarão de qualquer pessoa, menos de nós. Não vão acreditar que nos atrevamos a carregá-lo, depois do que aconteceu. Compreende o que que­ro dizer? Tenho palpite que tudo acontecerá como digo e que ninguém nos molestará. Em tro­ca, é bem possível que seu cofre receba a vi­sita de qualquer estranho.

- Como quiser. Bom, aqui está o objeto. E, felicidades!

De uma gaveta da mesa tirou o estojo, entre­gando-o a Jack. O jovem apressou-se a guar­dá-lo num dos amplos bolsos de sua gabardina.

Helen sentiu que o coração lhe batia com mais força, à vista do cobiçado objeto.

- Será melhor nos despedirmos agora, Jerry, porque é possível que não nos vejamos por al­gum tempo. Escreverei para que venha ao nosso casamento, em companhia de sua esposa.

- De acordo, Jack. E reservo-me o direito de ser o padrinho.

Rodavam em direção à Clinica do doutor Grant, quando Helen percebeu o largo sorriso que distendia os lábios de seu companheiro.

- Olhe pelo espelho retrovisor - disse à moça. - Está vendo o táxi que vem atrás de nós? Está nos seguindo desde o hotel. Ontem, da Scotland Yard até a loja de Jerry, vinham num "Packard" moderno. Da loja ao hotel, uti­lizaram um "Ford" e agora, esse táxi. Trocam de veículo, para tentarem passar despercebidos. Vê-se que sabem trabalhar direito.

- Acha que nos abordarão, antes de chegar­mos à Clínica?

- Não o farão os homens da Scotland Yard. Nem tão pouco Lecreq e Haniot. Mas não estou tão seguro de Mister Holloday. É o pior de todos e o mais ousado também. Deve estar furioso e um homem de seu temperamento é capaz de qualquer coisa. Daria, com gosto, metade da vida para apoderar-se do estojo e a outra meta­de para poder vingar-se de nós. Nós estragamos todo o seu plano. E se isso ainda fosse pouco, tem que permanecer oculto, porque se encontra fora da Lei no país. E é muito desagradável perseguir alguém, sempre sob a ameaça de sa­ber-se também perseguido.

Entraram na West Avenue e Howard aumen­tou a velocidade do "Austin", desejoso de chegar o quanto antes a seu imediato ponto de destino. Não ficaria tranquilo enquanto não se visse longe da Inglaterra... embora se reservasse uma importante jogada para o final, que só ele co­nhecia e que, estava seguro, seria a que iria decidir a partida em seu favor.

Já eram visíveis as fachadas da Clínica quan­do viram que, em direção contrária, vinha um luxuoso "Cadillac", a toda a velocidade. Jack pressentiu o perigo e ordenou à moça:

- Abaixe-se, Helen! Pode ser que eu me enga­ne, mas o olfato me diz que não. É provável que tentem nos atingir, daquele carro. Olhe, está com as cortinas baixadas.

Não se enganou ao predizer o perigo, embora esse viesse em forma bem distinta da que ima­ginara.

O "Cadillac" fez, de súbito, uma rápida ma­nobra, lançando-se contra o pequeno "Austin". Jack foi tornado desprevenido pela manobra e teve uma leve hesitação, que durou como a luz de ura relâmpago.

Torceu o volante com tempo justo de evitar a colisão, apertando até o fundo o pedal do freio.

O "Cadillac" passou a poucos centímetros do carro que eles ocupavam. Jack teve a fugaz visão de dois olhos de expressão demoníaca, espiando através das cortinas que ocultavam a parte traseira. E concentrou toda a atenção em dominar seu próprio automóvel.

Evitou, milagrosamente, o choque contra a fa­chada pitoresca do chalé imediato à Clinica, em­bora não pudesse evitar que o pára-lama fosse bater violentamente contra a parede, ao virar em sentido contrário.

O carro patinou, com um estridente rangido, sobre o molhado asfalto, acusou uma brusca sa­cudida ao abordar a calçada, tornou a sacudir-se ao descer dela, inclinou-se muito de lado, a ponto de derrapar, ao realizar a pronunciada curva e deteve-se quase no centro da calçada, enquanto vários curiosos corriam em direção a eles.

Um homem ruivo, de elevada estatura, com cara de menino grande, foi o primeiro a chegar e o fez sair do carro puxando-o pelo braço, enquanto perguntava, com voz estranhamente rouca:

- Algum dos dois está ferido? Presenciei tudo. A culpa foi do outro carro.

Livrou-se do indivíduo, voltando-se para He­len. Haviam-na feito sair pelo lado oposto e dois homens ajudavam-na a manter-se em pé.

- Por favor, Jack - pediu ela. - Ajude-me a chegar até a Clínica. Sinto uma dor muito forte no joelho esquerdo.

Howard chegou junto a Helen e deteve-se ao ouvir um apito da Polícia. Viu um agente uni­formizado da Scotland Yard correr para eles. Também o táxi que os seguira, estava parado a uns cem metros da Clínica, mas pouca atenção deu a este pormenor.

- O que aconteceu aqui? - perguntou o po­licial, examinando o par.

- Espere um momento. A moça sofreu uma contusão. Na Clínica, enquanto a atenderem, conversaremos com mais calma.

- Posso andar sozinha, Jack. E você tem que estacionar o carro. Não pode deixá-lo no meio da rua.

O homem ruivo tomou-a pelo braço e saíram andando em direção à Clínica, ao mesmo tempo em que dois enfermeiros do doutor Grant vinham-lhes ao encontro.

Howard achou um pouco estranho tudo aquilo, mas estava acostumado a não se espantar com nada e não opôs a menor objeção.

E enquanto narrava os fatos ao policial, apoia­do por várias testemunhas, sentiu que a voz se lhe estrangulava na garganta ao perceber que o estojo havia desaparecido do bolso onde o guardara.

- O senhor está sentindo alguma coisa?

- Não, não é nada. É que foi tudo tão ines­perado ... O choque...

- Compreendo - e guardando a caderneta, onde fizera alguns apontamentos, o policial con­tinuou: - Buscaremos o "Cadillac", mas sem saber o número e nem a cor exata, isso vai ser bem difícil.

- Não tem importância. No fim de contas, só o que há para lamentar é o susto.

Siles, o ajudante do médico, recebeu-o sorri­dente no vestíbulo. Trazia uma atadura na ca­beça, no lugar em que ele lhe desferira o golpe e levou a mão à parte atingida, enquanto se ampliava o sorriso de simpatia que lhe ilumi­nava o rosto.

- Bem-vindo, mister Howard - saudou-o.

- Obrigado, Siles - e mostrando a atadura: - Pode acreditar que eu o lamento, deveras.

- Não tem importância. Não sou rancoroso. E não há mal que não venha para bem. Isso me serviu para gozar uns dias de descanso.

Conduziu-o ao gabinete do médico.

Howard fixou seu olhar nos penetrantes olhos do homem que permanecia sentado atrás da mesa de escritório e comparou-o, imediatamen­te, com Holloday, tanto em astúcia quanto em inteligência. tão pouco seria agradável tê-lo co­mo inimigo.

O ruivo fumava, sentado familiarmente na pon­ta da mesa, e Helen andava de um lado para outro.

Howard estreitou a mão de Grant e ocupou a poltrona que lhe ofereciam.

- Não conhece Banister - disse-lhe Helen, mostrando o ruivo. - É um de nossos melho­res homens.

- Prazer em conhecê-lo, Banister - e fran­zindo as sobrancelhas: - Foi você quem tirou o estojo do meu bolso, não foi?

- Com efeito. Percebeu quando eu o tirava ou só o notou depois?

- Se eu tivesse percebido que estava revistan­do meus bolsos, agora não estaria aqui, fuman­do tranquilamente

- É inútil explicar-lhe o que, no fundo, oculta­va a manobra do "Cadillac".

- Foi um golpe de audácia, muito próprio de Holloday. E teria tido êxito, se não fosse pela rapidez dos reflexos de Banister.

- Exato - terminou Helen. - Previram sua reação ao volante, ante o atropelamento. Te­mos que reconhecer que eles também se ex­puseram, porque uma indecisão sua, na veloci­dade em que vinham, teria tido como conse­qüência uma terrível colisão entre os dois carros.

- Depois, vários homens de Holloday corre­ram para nós, simulando prestar-nos socorro, mas, na realidade, dispostos a se apoderarem do objeto que trazíamos. Mas Banister adiantou-se

- Sinto muito tê-lo feito passar esse mau mo­mento - interveio o ruivo.

- Não se preocupe com isso, Banister. Tudo está bem quando termina bem. E a propósito: quem vai atíçar o gato no rato? Ou, dito de outro modo: como pensa tirar o objeto da In­glaterra?

- Esse é, precisamente, o "x" da questão - respondeu Grant. - Porque, pelas últimas in­formações recebidas, Tarrant, por motivos que desconheço, trabalha neste caso. Intimamente li­gado ao Inspetor Dene e, portanto, com as for­ças da Scotland Yard. Não obstante, preparei um plano que desejo expor á sua consideração depois das provas de sagacidade que nos deu.

Fez uma breve pausa. prosseguindo: - Temos que recorrer ao disfarce, se qui­sermos contar com determinadas probabilidades de êxito. Miss Swanson adotará a personalidade de Helen. Sairá acompanhada por mister Ho­ward e partirão juntos para o hotel. Amanha, tomarão passagens para Nova Iorque, pelo avião da tarde. E Banister e Helen, com o estojo...

- Um momento - interrompeu-o Howard. - Quer dizer que Banister e Helen correrão todos os riscos, enquanto a senhorita Swanson e eu ficaremos eliminados do negócio? Não estou de acordo. Ouça, doutor Grant, eu sou dos que quando começam um trabalho não o largam até o fim. Mas, pelo caminho direto, compreen­de? Portanto, modifique seu plano de ponta a ponta. Procure outro Mister Swanson, para que faça o papel de Jack Howard.

Grant sorriu satisfeito ao ouvi-lo.

- Era isso o que eu esperava do senhor. De outra maneira, o senhor teria me decepcionado. O que eu queria era que se oferecesse espon­taneamente, para nos prestar sua inestimável ajuda até o fim.

Siles acabou de dar os últimos retoques no dis­farce do agente.

A caracterização estava completa e convidou-o a olhar-se no espelho.

- Você fez uma obra de arte. Nem minha pró­pria mãe seria capaz de me reconhecer. Mas estes cosméticos fazem um pouco de cócega.

- É só a princípio. Essa sensação desaparecerá logo e acabará por convencer-se que fazem par­te de sua própria epiderme.

Enquanto o ajudava a vestir um avental de enfermeiro, disse-lhe, pondo-se repentinamente sério:

- O senhor acha que conseguiremos burlar a vigilância de Holloday e dos outros, com esse procedimento?

- Acredito que sim. Se a mim me custa tra­balho convencer-me de que esse que se olha no espelho sou eu mesmo, creio que, para os outros, ainda será mais difícil perceber a verdade.

- É claro. Mas eu acho que, desta vez, sua sa­gacidade lhe valerá de bem pouco, ante a clara evidência do que vão presenciar. A não ser que se trate de autênticos agentes do diabo. Às vezes penso que esse disfarce não conseguirá enga­nar homens como mister Holloday e Tarrant.

- Se encararmos os fatos desse ponto de vis­ta pessimista, estaremos perdidos de antemão, Siles. Não esqueça que, sob esse disfarce, escon­de-se um homem com tanta astúcia quanto a deles.

- Não era minha intenção ferir seu amor-pró­prio, Howard. Nós já tivemos boa prova de sua sagacidade - ao dizer isso apalpou a atadura que lhe cobria a cabeça.

Só com grande esforço Jack conseguiu reco­nhecer Helen naquela enfermeira com tipo de solteirona amargurada. E deu sua aprovação à magnífica caracterização do par que descia a escada em direção à rua, representando Helen Ferris e Jack Howard e que se pareciam a eles como duas gotas de água.

De uma das janelas do andar superior viram-nos dirigirem-se para o pequeno "Austin", esta­cionado junto à calçada. A moça coxeava leve­mente e era visível a atadura que lhe cobria o joelho esquerdo e parte da perna.

O suposto Howard pôs o motor em marcha, partindo, pouco depois, para o Hotel onde haviam reservado quartos, na noite anterior.

Imediatamente saiu atrás deles um "Morris", enquanto que o táxi que os seguira, partia em direção oposta.

A manobra fez os verdadeiros Jack e Helen sorrirem, porque aquilo significava que poderiam considerar-se livres da vigilância de um dos mais sagazes adversários.

Minutos depois, era tirada da garagem a am­bulância da Clínica e estacionada em frente à entrada, em resposta a um chamado telefônico. Desconfiavam que a linha devia estar contro­lada e não queriam deixar nenhum cabo solto.

Helen foi a primeira a sair, ocupando o banco da frente. E Howard e Siles, transportando uma padiola fechada, iniciaram a descida para a am­bulância. Antes de saírem, o doutor Grant en­tregou o estojo a Jack e estreitou-lhe calorosa­mente a mão ao dizer-lhe:

- Depositamos no senhor todas as nossas esperanças. Já sabe o que deve fazer. Banister estará esperando-os a bordo do "Dakota". Fe­licidades e... até a vista!

A ambulância deteve-se em frente a um edifício de Piccadilly Circus, de aspecto luxuoso, su­bindo os três para o segundo andar.

Siles apertou a campainha e uma velha de rosto enrugado abriu-lhes a porta.

No vestíbulo esperavam duas pessoas: um en­fermeiro e uma enfermeira, exatamente iguais a caracterização adotada por eles. Só que estes não usavam nenhum disfarce, pois eram os ori­ginais das cópias que acabavam de chegar.

Siles e o legítimo enfermeiro abriram a padiola, onde se deitou um novo personagem de idade avançada e aspecto doentio, pertencente, também, ao Serviço Secreto.

Duas horas depois de sua entrada no luxuoso apartamento, Howard e Helen, transformados em mister Cecil Hamilton e Mistress Margaret Ha­milton, chamavam um táxi, preparado de ante­mão pelo doutor Grant, para dirigirem-se a um hotel de Trafalgar Square, onde tinham quar­tos reservados, com antecedência, do cais onde acabavam de desembarcar, depois de uma longa travessia vindo da Austrália.

 

Maxwell desligou o motor e aplicou, suave­mente, os freios no táxi que dirigia. Abriu a porta e ajudou Helen a descer do veículo, enquanto Howard o fazia pelo outro lado.

- Chegamos - disse e acrescentou, mostran­do os pinheiros que se alinhavam à beira da es­trada. - Atrás das árvores, a menos de cem metros, encontra-se Membury. Não preciso dar-lhes explicações porque, passando as árvores, até um cego seria capaz de ver nosso "Dakota" e o hangar meio em ruínas deste abandonado aerôdromo, improvisado durante a guerra.

Despediram-se dele, atravessando as árvores em passos apressados.

Detiveram-se em frente à linha formada pelas sebes, contemplando a imponente silhueta do "Dakota". Depois deitaram a correr em direção ao avião, sem fazerem caso dos espinhos que rasgavam as elegantes roupas que vestiam.

Passaram por um campo arado, endurecido pela neve que brilhava ao receber os impactos do sol nascente, penetrando na pista cimentada, bas­tante estragada, sem se deterem para pensar na possibilidade de que mister Banister, ou qual­quer outro tripulante do avião, saísse para re­cebê-los.

Alguém abriu a porta da fuselagem, mostrando a escadinha para que subissem.

Howard ajudou Helen, subindo ele logo depois. E, de repente, assaltou-lhe a idéia de que haviam deparado com uma armadilha, habilmente pre­parada para apanhá-los.

Dany Haniot, com casaco e calças de couro, um capacete de piloto tapando-lhe a cabeça, apon­tava-lhes uma pistola, sorrindo maliciosamente. Um pouco mais adiante, junto à mesa do nave­gador, René Lecreq, com uma vendagem na testa, tentava esboçar um sorriso.

- E Banister e o navegador?

- Não se preocupe por eles - disse Haniot. - Estão no hangar, atados de pés e mãos. Foram bons meninos e não nos vimos na obrigação de golpeá-los. Não somos assassinos profissionais.

- Está claro.

Soltou uma gargalhada ao ver a desconfiança que se refletia no rosto de Haniot, ante a tran­quilidade com que ele acolhia as circunstâncias adversas.

- Como vão seus desejos de vingança, com respeito a mim?

- Eu já os havia esquecido. Mas aproveita­rei o fato de ter sido você mesmo quem nos re­cordou. Prometo-lhe, porém, esquecer tudo novamente, se se limitar a fazer o que ordenarmos, sem usar de nenhum de seus truques.

Fez uma pausa, adotando um ar ameaçador ao prosseguir:

- Sabe muito bem o que nos trouxe aqui. E pode acreditar que deixarei de lado toda clas­se de escrúpulos se teimar em pôr obstáculos em nosso caminho. Entregue-nos o estojo e prometo-lhe todas as garantias com respeito à sua in­tegridade física.

- Não era preciso que empenhasse sua pala­vra, Haniot. Sei reconhecer um cavalheiro. E, também sei quando chegou minha vez de per­der. Reconheço que foi mais esperto do que eu imaginava. Todas as nossas precauções esta­vam destinadas a despistar os bandos restantes, ignorando, por completo, sua participação no caso. A Lecreq não dei a menor importância desde o principio, e a você considerei um trapa­ceiro indecente, depois do seu negócio com Jean Boriet. E é aqui que estava nosso erro. Em ter menosprezado a parte mais inteligente de to­das as que estavam empenhadas no caso. Acho que Tarrant vai sentir muita falta de vocês, daqui por diante. E, a propósito: o que foi feito do infeliz Boriet?

- Partiu para sua casa, com o dinheiro ga­nho num bom trabalho. Cumpriu bem sua parte e não teve culpa que você torcesse os fatos.

- Fico contente por sua mãe e pelo irmãozinho cego - e tirando o estojo do bolso: - Re­tiro o que eu disse em certa ocasião. Você é um autêntico Arsène Lupin. Como souberam que nós é que iríamos partir nesse "Dakota", com o cobiçado objeto?

- Foi muito simples. Lecreq e eu nos aproxi­mamos, disfarçados, do casal que ocupou o "Austin", no qual vocês dois chegaram à Clínica e percebemos todo o jogo. Não esqueça que Le­creq havia trabalhado na Clínica como enfer­meiro e que conhecia a todos muito bem. Dessa forma, pode identificá-los, quando saíam na qua­lidade de simples enfermeiros. E aconteceu que, durante algum tempo, Lecreq teve relações amo­rosas com Miss Swanson. Eu me encarreguei de vigiá-los depois, enquanto René seguia os pas­sos de Banister. Assim descobrimos tudo e tra­çamos um plano de ação que deu bom resultado.

E rindo, ao mesmo tempo em que recolhia o objeto das mãos de Howard:

- Lecreq fez uma perfeita imitação de Miss Ferris para chegar ao avião e eu adotei sua personalidade.

O agente riu com vontade à vista das roupas amontoadas no avião. Eles haviam usado seus mesmos processos.

Haniot pôs-se repentinamente sério, e disse:

- Escute, Howard. Eu preferia não ser obri­gado a recorrer ã violência. Vou encerrá-los no hangar. E não os atarei, como a seus companhei­ros. Mas devem prometer-me, solenemente, que nada tentarão contra nós, num prazo de quinze minutos. Passados estes, podem agir como me­lhor lhes parecer. Deixarei suas armas no avião. Pode ser que as necessitem mais tarde. Acho que saberá agradecer essa minha delicadeza. Um com­patriota seu salvou-me a vida durante a guerra, com grave risco da própria e...

- Não fale mais, Haniot. Conte com nossa promessa formal de que nada tentaremos contra vocês, durante esse quarto de hera.

Deixaram as armas sobre a mesa do navega­dor e despiram as roupas de vôo, que haviam ves­tido para recebê-los. Em seguida, os quatro des­ceram para a pista de decolagem.

Lecreq empurrou para o lado a porta corrediça do hangar, que rangeu ao patinar sobre os tri­lhos enferrujados. Convidou-os a entrar, tornando a correr a porta, depois que estavam todos dentro.

Os amplos janelões, de forma retangular, es­tavam desprovidos de vidros e ali fazia um frio intenso. A corrente estabelecida entre os vãos das paredes laterais aumentava o frio do re­cinto e Banister e o outro homem, deitados no chão, impossibilitados cie fazerem o menor mo­vimento, tinham os restes e as mãos lívicias por causa da temperatura.

Perceberam as explosões de um potente mo­tor de motociclo, ao ser posto em marcha.

Cortaram as ataduras que imobilizaram os dois homens e friccionaram seus membros inchados.

O agente partiu para o "Dakota" em busca das armas. Antes que alcançasse o avião, acon­teceu algo que o obrigou a deter-se e prestar atenção.

O motociclo havia parado e chegou-lhe o eco de alguns vozes, gritando em tom peremptório. Não pôde entender as palavras, mas compreen­deu que intimavam alguém a obedecer.

Uma suspeita assaltou-o de súbito. Seria pos­sível que mister Holloday tivesse chegado a descobrir o projeto de fuga e estivesse surgin­do com seus homens?

Se assim fosse, suas vidas corriam sério peri­go. Não se limitaria a ficar com o estojo de costura, como haviam feito Haniot e Lecreq, pois pretendia um objetivo infinitamente mais importante.

Recordou suas palavras no "Sport-CIub"; "A moça nos interessa por algo mais, do que só pelo estojo".

E tão pouco podia esquecer o intenso ódio que vira em seus olhos, quando conseguiram es­capar do clube.

Estes pensamentos acudiram-lhe e venceu, cor­rendo, a distância que o separava do "Dakota".

Tornou a parar, antes de atravessar a porta da fuselagem. Ouviu o crepitar de armas de fogo, que cessaram sua canção de morte, após vários segundos de intenso tiroteio.

O motociclo deixou de emitir suas roucas ex­plosões e um silêncio de túmulo estendeu-se por todos os cantos do abandonado aeródromo.

Entrou como uma flecha no avião, ouvindo vozes que gritavam algo em tom peremptório. Tinha o tempo justo para apoderar-se do que tinha ido buscar. E não pôde evitar um leve sorriso ao perceber uma metralhadora portátil perto do assento do piloto. Tomou-a e empreen­deu uma carreira veloz para o hangar.

Helen esperava-o no saguão, com claros si­nais de preocupação em seu belo rosto.

- Ouviu? - perguntou-lhe.

- Sim. Devem ser os homens de Holloday. Acho que Lecreq e Haniot chegaram ao fim da suas carreiras. Talvez se trate de Tarrant e de seus capangas, mas duvido - e voltando-se para os outros: - Não temos tempo a perder. Se for o que eu imagino, correremos o sério perigo de seguir o mesmo caminho dos franceses. Te­mos que chegar ao avião e levantar vôo, antes que eles nos impeçam.

Banister deixou de esfregar os tornozelos para dizer-lhe:

- Não acredito que nenhum de nós dois es­teja em condições de pilotar o "Dakota"... por enquanto. Talvez dentro da um momento - e acrescentou com desalento: - Tentamos andar e não conseguimos dar um só passo. O senhor seria capaz de fazer voar esse calhambeque?

- Posso tentar, mas é a primeira vez na minha vida que vou dirigir um avião.

Estendeu-lhes uma garrafa de uísque.

- Bebam um gole. Helen vai ajudar a andar o que estiver melhor dos dois e eu me encarre­garei do outro. Temos que tentar chegar sãos e salvos ao avião. Lá vamos agir, conforme as circunstâncias.

Repartiu as armas de fogo, reservando-se a metralhadora. Encostou um banco à parede e examinou a estrada, através da janela.

Não viu nada suspeito.

Desceu, voltando para o lado de seus com­panheiros.

- O caminho ainda está livre. Mas um se­gundo de atraso pode ser definitivo. Se Holloday não veio com eles, é possível que se conformem com o estojo. Mas, de qualquer forma, nós te­mos que partir, imediatamente, para os Esta­dos Unidos.

E acrescentou, com energia, ao ver o desalento dos outros, pela perda do precioso objeto:

- É exatamente o que ouviram. Temos que partir o quanto antes para a América. Ainda não foi jogada a última cartada dessa impor­tante partida e nossa última possibilidade de ganhá-la está em podermos voar com o "Dakota".

Ajudou Banister a erguer-se e encaminhou-se para a saída, sustentando-o pelos braços.

Rangeu os dentes ao ouvir a seca detonação de uma pistola, procedente do arvoredo e em­purrou o ruivo para dentro, quando viu o pro­jétil arrancar um pedaço de gesso, a poucas polegadas de sua cabeça.

- Já é tarde - murmurou. - Eles nos cer­caram e não nos resta outra alternativa do que vendermos caro nossas vidas.

- Mas, que diabos, querem agora, se já têm o estojo?

- Querem Miss Ferris. E, com toda a certeza, a você também, Banister.

- Sim? Pois, então, que venham buscar-nos - e retirando a trava da arma: - Querem me ajudar a tomar posição em uma das janelas? Vamos preparar-lhes uma calorosa recepção.

Kolmes, o "navegador" situou-se numa das ja­nelas laterais do hangar. Banister foi para a que ficava em frente e Helen ocupou-se da dos fundos. Howard reservou-se a porta e deu as últimas instruções, enquanto procurava desco­brir algum vuíto suspeito nas sebes que rodea­vam o aeroporto.

- Procurem mirar com segurança. Temos pou­cas munições.

De súbito, viram erguer-se um homem, pelo lado oposto ao que eles haviam chegado ao cam­po de Membury, com um lenço branco atado na ponta de um galho de pinheiro.

- Olhem - brincou. - Estão nos mandan­do um emissário. Vê-se que Mister Holloday tomou as coisas a sério. Porque, agora, já não se pode mais duvidar que foram seus homens que liquidaram os franceses.

Deixou-o avançar até a borda da faixa de cimento. Antes que penetrasse na pista, gritou-lhe:

- Pare, amigo! Já basta. Diga o que tem a dizer. Daqui podemos ouvi-lo perfeitamente.

- Mister Holloday quer fazer lhe uma pro­posta. O estojo está em seu poder. Mas é a moça quem lhe interessa e há de apoderar-se dela, seja como for. Se concordarem em entre­gá-la, os três podem partir livremente. Era caso contrário, irão sofrer as consequências.

- Todos teremos que sofrer as consequên­cias. Se quiser Miss Ferris, que venha buscá-la.

E volte já, porque estou me sentindo com muito más intenções.

O outro não esperou que lhe repetissem a or­dem. Retrocedeu para seu lugar de origem, com passos medidos, perdendo-se atrás do arvoredo.

Segundos depois, uma saraivada de balas arre­bentava-se, de modo sistemático, contra as pa­redes do hangar e contra o "Dakota", avariando-o seriamente.

Maxwell deteve o táxi duzentos metros além dos pinheiros, saltando do veículo. Estava muito nervoso e cheio de amargas apreensões.

As ordens de Grant eram que voltasse imedia­tamente à Clínica, logo depois de tê-los trans­portado a Membury. Se houvesse algum perigo, seria no trajeto de Londres ao aeroporto. Pois ninguém poderia suspeitar que um "Dakota", habilitado para o transporte de carvão, durante a existência da Ponte Aérea para a Alemanha, fosse o meio de transporte escolhido para por a salvo o estojo de costura. Mas ele estava des­confiado ...

Consultou várias vezes seu relógio de pulso e estranhou que o avião tardasse tanto a decolar.

Ficou tenso ao ouvir as explosões do motociclo de Haniot. Teria jurado que partira de um lu­gar bem perto do aeroporto e isso não podia augurar nada de bom. E compreendeu o que sucedera, quando as detonações cortaram as explosões do potente motor.

Empunhou a pistola, metendo-se, com pre­caução, por entre os pinheiros.

Pôde contar até doze os homens que tornavam posição para cercar o hangar e compreendeu que nada poderia fazer, ele sozinho, em favor de seus companheiros.

Retrocedeu, entrou no carro e partiu a toda a velocidade. Por duas vezes escapou de ir chocar-se con­tra as árvores.

Decidiu telefonar ao doutor Grant de uma granja, explicando-lhe, minuciosamente, tudo quanto vira.

- Que podemos fazer, chefe? - perguntou, impaciente.

- Muito pouco, Maxwell - o tom do médico refletia um cansaço infinito e uma forçada re­signação ante o destino. - Não dispomos de ho­mens necessários para atacar os capangas de Holloday. Só nos resta uma porta de saída. Con­tar tudo ao inspetor, para que ele jogue contra es­ses bandidos todo o peso da Scotland Yard. E quan­to ao estojo... teremos que deixá-lo nas mãos de Tarrant e Dene, sem perder a confiança na iniciativa própria de Howard e de nossos três agentes em dificuldades. Situe-se perto de Membury e espere ali nossa chegada. Eu próprio me encarregarei de mover Dene e Tarrant. Sei mui­to bem onde encontrá-los.

O inspetor Dene escutou a narração do doutor Grant. sem interrompê-lo. Deu-se conta que ha­via sido logrado pelos homens do médico que, no final, não tinham outra alternativa se não solicitar sua ajuda e isso confortou-o do fra­casso anterior.

Tão pouco lhe disse nada, quando o médico ter­minou a explicação. Limitou-se a chamar o sar­gento e preparar os carros-patrulhas. E ele pró­prio encarregou-se de avisar a Tarrant, para que este os acompanhasse.

Howard voltou-se para olhar Helen. Viu-a con­trolando o terreno desigual que se abria do outro lado do caminho, com a pistola pronta a disparar ao menor indício da presença dos ata­cantes.

Mas não era por ali que estava concentrada a maior parte dos homens de Holloday. Devia haver só um ou dois, para distrair a atenção dos defensores do hangar. Os flancos eram os mais castigados pelos tiros. E pareciam não dar gran­de importância, também, a fachada frontal.

De súbito, o fogo cessou e um silêncio pesa­do estendeu-se pela região.

- Atenção, todos! - preveniu Howard. - Parece que eles se cansaram do inútil tiroteio. Agora tentarão algum golpe que possa resultar-lhes mais vantajoso do que estarem gastando balas em vão.

À direita foi ouvido o ruído do motor de um carro.

O veículo atravessou com dificuldade o cam­po arado, conseguindo, por fim, penetrar na pis­ta de cimento. Percorreu-a diretamente em di­reção ao hangar, passando junto ao imóvel "Da­kota", a toda velocidade.

Howard adivinhou o autêntico móvel que se ocultava atrás da estranha manobra e gritou para os companheiros:

- Vão derrubar a porta, com o carro a toda a velocidade! Em seguida, vão se lançar em trom­ba contra nós, usando o resto dos homens. En­carreguem-se dos ocupantes do carro e deixem o resto por minha conta.

Enviou uma rajada contra o veículo, que lhes vinha em cima com um gemido do motor, for­çado a render tudo quanto podia, quebrando o pára-brisas, furando o radiador e arrebentando os pneus da frente.

O motorista-suicida, encolhido de forma inverossímil no assento, conteve as cabriolas do carro, sem mudar o caminho que se propusera seguir.

Howard teve tempo de lançar-se ao chão, para um dos lados, livrando-se por pouco de morrer esmagado. O choque foi espetacular.

A porta, materialmente arrancada dos gonzos e partida em três pedaços, caiu perto do lugar onde Helen se encontrava, projetada pela força do choque. Dois pedaços da parede, de ambos os lados da entrada, ruíram.

Howard ergueu-se, sem fazer caso das contu­sões nos ombros e nas costas que os tijolos lhe haviam causado, correu para a enorme abertura provocada pelo baque, sem se preocupar com os ocupantes do veículo.

As armas detonaram às suas costas, mas não se voltou para ver o resultado da luta, porque estava certo de que Banister e Holmes eram sufi­cientes para darem conta daqueles inimigos.

Concentrou toda a sua atenção no exterior. Contou até dez os homens que corriam em di­reção ao hangar, partindo de todos os lados da pista, com as armas preparadas e gritando como possessos. Oprimiu o gatilho da metralhadora, fazendo a arma girar em semicírculo.

Enviou algumas rajadas contra o grupo de as­saltantes e soltou uma gargalhada à vista dos resultados. Três homens tinham caído, enquanto os restantes detinham-se indecisos.

Aquilo fez-lhe recordar seus bons tempos da guerra.

Apressou-se a lançar nova rajada contra os capangas de Holloday, mas seu dedo ficou em suspenso, antes de se curvar sobre o gatilho.

As sereias dos carros da Scotland Yard lança­vam aos quatro ventos seus estridentes sons, anunciando a imediata chegada da polícia ao lo­cal da luta.

Notou que os sobreviventes eram tomados de pânico.

Aproveitou o momento para sair para a pista e enviar-lhes outra rajada de metralhadora.

Aquilo acabou desmoralizando-os inteiramente.

Mais quatro caíram, feridos pelos projéteis. Os três restantes fugiram em diversas direções, in­ternando-se entre as sebes e o bosque de pinhei­ros, confiando a salvação à velocidade de suas pernas.

Howard jogou for a metralhadora, empunhan­do a pistola. E correu para a parte traseira do hangar, por onde Haniot e Lecreq haviam par­tido, usando o motociclo.

Seguiu em frente, sem diminuir a carreira ini­cial. Sabia o que buscava e estava certo de en­contrá-lo por aquele lado.

A menos de cem metros de Membury, tropeçou com os cadáveres dos franceses. Estavam no meio do caminho, em trágicas posturas. Haniot com urna perna embaixo do motociclo e Lecreq dois passos mais atrás.

Um tronco de pinheiro obstruía a estrada e Howard saltou-o com facilidade.

Então, ouviu o ruído do "Cadillac", cujo motor fora ligado.

Atalhou a curva do caminho, embrenhou-se em linha reta por entre os pinheiros, para apresen­tar-se a descoberto, a menos de três metros do luxuoso carro de Holloday.

Este era o único ocupante do veículo. Howard abriu a porta, no momento em que o carro adquiria velocidade.

O chefe do movimento ilegal do "Mundo Novo", na Inglaterra, tentou apanhar a arma que porta­va sob o braço. Mas Howard não lhe deu tempo para isso.

Desferiu-lhe uma coronhada na fonte esquerda, ao mesmo tempo em que girava o volante com a outra mão.

O carro investiu contra uma árvore, detendo-se.

Jack arrastou para fora o corpo inconsciente do outro, obrigando-o a pôr-se de pé.

- Agora, você e eu, Holloday - murmurou, - vamos saldar uma conta pendente.

Aplicou-lhe um soco nos olhos, projetando-o contra o veículo. Ia erguê-lo de novo, segurando-o pelas lapelas, mas foi contido pelos apitos da po­lícia.

O inspetor Dene, Tarrant e um agente unifor­mizado, corriam para lá.

Tarrant lançou-se sobre Holloday, sacudindo-o alguns instantes. Quando se ergueu, com o estojo na mão direita, um sorriso de triunfo ilumina-lhe as feições.

O inspetor Dene dirigiu-se ao chefe da quadri­lha, ordenando-lhe em tom firme:

- Levante-se, Holloday. Terá de responder por uma infinidade de turvos manejos, diante dos Tribunais.

Holloday levou, então, a mão à boca, com um sorriso frio.

- Engana-se, Dene, se pensa que eu...

A voz estrangulou-se-lhe na garganta. Dilata­ram-se suas pupilas, adquirindo seu rosto uma palidez cadavérica. Um cheiro de amêndoas amar­gas, que flutuou no ar, fê-los compreender o que sucedera. Holloday envenenara-se.

- Este é o objeto que Holland trazia para Miss Ferris - disse Tarrant com ironia, afas­tando os olhos do cadáver. - Naturalmente lhe será devolvido, depois que a Scotland Yard tiver leito um exame minucioso de seu conteúdo. Acho que o inspetor Dene não verá inconveniente em que continuem desfrutando uma liberdade provi­sória, até que tenham prestado declarações sobre o que aconteceu aqui.

O doutor Grant passou os olhos pelos rostos sombrios das pessoas reunidas em torno de sua mesa.

Só Jack Howard conservava sua habitual se­renidade. Os restantes davam a impressão de que o mundo lhes caíra em cima.

- Bem, fracassamos - disse Grant. - Não obstante, creio que...

- Um momento - interrompeu-o Howard. - Eu não admito a palavra fracasso. Na Academia de Quantico ensinaram-me a não acreditar nela. É algo que me crispa os nervos.

- Não entendo, Jack.

- Pois é muito simples. Depois disso, é possí­vel que me tache de trapaceiro ou de vigarista. Porque guardei os trunfos para o final. E acho que chegou o final.

Tornou-se repentinamente sério, voltando-se para Grant.

- Quanto tempo pensa que levarão para exa­minar, a fundo, os objetos do estojo?

- Duas horas, talvez.

- Pois este é o tempo que dispomos para sair correndo da Inglaterra. Porque a fita métrica e os carreteis, que Dene e Tarrant levaram, não servem para outra coisa do que para medir e co­ser. Foi ontem de noite que essa idéia me ocor­reu e acho que acertei.

Ante os olhos atônitos dos cinco homens e da mulher, colocou sobre a mesa todos os objetos do estojo de costura, que encerravam os cobiça­dos segredos, envoltos num pedaço de jornal.

Grant saltou da poltrona e atravessou o gabi­nete em grandes passos. Voltou-se, antes de en­trar no corredor, para dizer-lhes:

- Siles, desinfete o ferimento de Holmes e po­nha-lhe uma atadura. E você, Maxwell, prepare-se para nos acompanhar também. Não há tempo a perder!

- Aquele maldito inspetor! - murmurou Si­les. - Há dois agentes vigiando o muro dos fun­dos e outros dois andando pela rua eles nos cercaram.

- Não tem importância, Siles - replicou Jack. - Sairemos da forma que havíamos idealizado no princípio. Coloque-se no volante da ambulân­cia e fique preparado para entrar em ação, den­tro de dez minutos. E não se esqueça de pôr em marcha o motor do táxi, antes de mais nada. Isso nos poupará um tempo precioso.

Maxwell saiu em primeiro lugar, ocupando seu posto ao volante do táxi. Holmes seguiu-o a toda pressa, enquanto Banister, Helen e Howard fa­ziam o mesmo, segundos depois, metendo-se os três na parte traseira do veículo.

O carro arrancou a toda a velocidade, antes que tivessem tido tempo de fechar a porta. O carro da Patrulha-Volante da Scotland Yard pôs-se também em movimento, perseguindo os fugitivos.

Não tinham percorrido dez metros quando a ambulância particular da Clínica, dirigida por Siles, brotou pela porta aberta da garagem, atravessando-se no caminho do carro da policia.

O policial apertou os freios e torceu o volante com grande destreza, mas não pôde evitar o cho­que dos dois veículos. Este não foi muito forte, mas o suficiente para impedir que o carro-pa-trulha continuasse a perseguição.

O radiador foi projetado contra o ventilador e as pás tinham deixado suas marcas em forma de um sulco circular, por onde a água escapava em jorros, formando um charco no chão, entre as rodas dianteiras.

A ambulância apresentava-se amassada no guarda-lama traseiro e, também, em boa parte da carroçaria. Mas isso parecia não ter a me­nor importância, a julgar pelo sorriso de triunfo que havia nos lábios do ajudante do médico, quan­do saltou do carro.

- Isso você vai pagar bem caro - gritou-lhe um dos ocupantes do carro policial. - Quero ver sua cara em Scotland Yard.

- Deixe-o, Vickes - interveio o outro. - Não perca tempo com ele. Já não tem remédio. O inspetor Dene vai se encarregar de dar o que ele merece. Ligue o rádio e fale com a Central. Temos o número de matricula e... Espere. Acho que não vai ser preciso.

Desceram da calçada e correram ao encontro do carro oficial da Scotland Yard, que vinha em direção à Clínica, a toda a velocidade.

O veículo parou junto a ele, numa brusca ma­nobra que fez os pneus rangerem, patinando.

Dene saltou do carro, seguido de Tarrant. Um Tarrant pálido como um cadáver, com olheiras impressionantes e uma expressão de loucura desfigurando-lhe as feições.

Agarrou Siles pelas lapelas, sacudindo-o, en­quanto lhe perguntava:

- Onde está esse maldito "gangster" america­no? Muito pouco devo valer, se não conseguir apagá-lo do mundo dos vivos. Onde é que o es­conderam?

O doutor Grant, que acabava de sair da Clíni­ca, pôs-lhe a mão no ombro para dizer-lhe:

- Acalme-se, Tarrant. Nada conseguirá pela violência. Não temos escondido nenhum "gan­gster". De qualquer forma, isso eu lhe responde­rei diante do comissário-chefe da Scotland Yard. Desde quando os delinquentes internacionais têm influência sobre os inspetores da Scotland Yard?

Dene puxou-o pelo braço, para que voltasse ao carro.

- Vamos, Tarrant. Não podemos perder tem­po. Temos que encontrar, rapidamente, o carro fugitivo.

O veiculo empreendeu uma veloz carreira, fa­zendo soar a sereia ininterruptamente, para abrir-se passagem livre pelas ruas que atravessavam.

- Estou com um palpite - disse Dene. - Se falhar, teremos fracassado da maneira mais completa. Mas é nossa única esperança e deve­mos agarrar-nos a ela como um náufrago à tá­bua salvadora.

- Por que não se comunica com a Central e avisa a todos os carros-patrulhas?

- Porque seria inútil. Já é tarde demais para dar o alarme. Chegamos a um extremo no qual só podemos deixar-nos guiar por nossos próprios instintos.

- Farei Grant pagar bem caro por esse golpe da ambulância.

- Terá que fazê-lo "fora de série". Não esque­ça que devemos evitar, de maneira oficial, os conflitos internacionais.

Tarrant não deu atenção ao sarcasmo e per­guntou:

- No que consiste esse seu palpite?

- É muito simples. Se os americanos escolhe­ram a princípio o avião para a travessia para os Estados Unidos, é porque o ar oferece um meio mais rápido de locomoção. E não deverão ter mudado de idéia, nem de tática. Nisso é que se baseia minha confiança. Agora que Membury lhes está vedado, devem ter-se decidido, segura­mente, por Castrell. É outro aeroporto, parecido a Membury, embora bastante maior do que este. Está também abandonado, desde que acabou a guerra. Antes de meia hora teremos esclarecido essa dúvida. Pode ser que cheguemos tarde, mas eu me inclino a pensar que não. Só de uma coisa estou inteiramente certo: é que se me enganei em minha hipótese, ou palpite, como quiser cha­má-lo, e eles desaparecerem por outro lado qual­quer, apresentarei minha demissão e me dedica­rei a cuidar do jardim e a lavar a louça para mi­nha mulher.

O táxi esteve a ponto de derrapar ao atraves­sar a depressão de terreno que cercava a faixa cimentada da pista de decolagem de Castrell, mas voltou à posição normal, depois de manter-se al­guns segundos sobre duas rodas.

Avançaram, moderadamente, até se situarem junto ao enorme bojo do "Tudor", que os espera­va para efetuar o vôo do Atlântico.

Correram pelo cimento, deixando o carro aban­donado num ângulo da pista, atrás da cauda do avião.

Três dos motores estavam funcionando com regularidade, mas o outro roncava ostensivamen­te, produzindo um som parecido à tosse de um asmático.

Entraram na cabina, dirigindo-se Jack para os dois homens, metidos em sujos macacões azuis de mecânico, que manipulavam nos comandos.

- Esse motor está avariado? É de vital im­portância levantarmos vôo, o mais depressa pos­sível. O triunfo ou o fracasso podem depender da perda de um minuto.

- Sabemos muito bem - replicou um deles, sem se voltar. - Por isso mesmo, é que estamos há mais de meia hora trabalhando como negros para localizar o ponto nevrálgico da avaria. Ago­ra, graças a Deus, já o encontramos. Um cabo quase partido. Está ouvindo o motor tossir? As chispas não se produzem com regularidade. Mas, escute agora.

Rompeu a fita isolante, depois de cercar com ela o fio de conduto elétrico, no qual estivera manipulando e apontou para um lado, ao mesmo tempo em que inclinava a cabeça, aguçando os ouvidos.

O motor deixou de tossir, para emitir um ge­mido agudo e regular, que já não se interrompeu.

Os mecânicos saltaram à terra, fazendo gestos com as mãos, em sinal de despedida.

Maxwell e Banister tomaram o comando do avião e Holmes ocupou seu posto na mesa do "navegador". Banister baixou devagar as ala­vancas, com as palmas das mãos, e os quatro mo­tores rugiram em uníssono.

A fuselagem tremeu com violência, sob a pres­são dos freios. Depois, soltou-os e começaram a correr.

Maxwell acionou com o pé esquerdo o pedal do leme para evitar um giro da cauda e concentrou toda a sua atenção na alavanca de comando, en­quanto Maxwell observava o painel de instru­mentos e o indicador da velocidade do ar.

De repente, viram aparecer em frente um car­ro oficial da Polícia, que atravessou rapidamente o pronunciado valo que delimitava a pista, para acabar detendo-se na faixa de cimento, justamen­te no terreno que o avião tinha que percorrer para adquirir o impulso necessário e poder ele­var-se no ar.

Maxwell soltou uma praga ao reconhecer Dene e Tarrant entre os quatro homens que abandona­vam o veículo para se resguardarem atrás da de­pressão do terreno, fazendo-lhes sinais para que se detivessem, evitando a catástrofe preparada com astúcia.

Howard pousou a mão, com suavidade, sobre o ombro de Banister, para o qual convergiam os olhares de todos os ocupantes do "Tudor".

Viu-o apertar os lábios, até formar uma fina linha, e admirou a fibra daquele homem ao ver como descia a alavanca de comando com suas mãos crispadas, quando o choque contra o veí­culo parecia inevitável.

As rodas saltaram bruscamente sobre um pe­daço, que se soltara do cimento, passaram a pou­cas polegadas da capota do carro e o avião ele­vou-se no ar, com suavidade e firmeza.

- Parece que já se acabaram os sustos - disse Howard, secando o suor da testa com um lenço. - A não ser que enviem contra nós uma esquadrilha de caças, para nos obrigarem a aterrar.

- Nem pense nisso - respondeu Banister. - Não se atreveriam a tanto. Triunfamos, graças a você, Howard. O Serviço Secreto deve-lhe uma de suas maiores vitórias. E o mundo livre tam­bém.

- Triunfamos graças ao esforço de todos, Ba­nister.

- Você é muito modesto. Não sei o que tería­mos conseguido fazer, sem sua fabulosa ajuda.

Lançou um olhar para o lugar onde estava o agente do FBI, estranhando não receber resposta.

Holmes, Maxwell e Banister trocaram olhares de compreensão, onde brilhava uma divertida malícia.

Howard abraçara Helen e beijava-lhe, demoradamente, os lábios.

  

 

                                                                  Fred Hercey

 

 

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