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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASO GARDEN / S. S. Van Dine
O CASO GARDEN / S. S. Van Dine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O terrível e, em muitos aspectos, incrível Caso Garden foi um episódio peculiar e improvável. De qualquer maneira, foi tão habilmente planejado que só por acaso ou, melhor, por uma fortuita intervenção, foi ele desvendado.
Isso talvez dê a impressão de que a ação de Philo Vance não foi decisiva para a solução do caso. Seria, porém, uma impressão absolutamente errônea. Na verdade, o Caso Garden foi um dos maiores triunfos entre os muitos que assinalaram a carreira de Philo Vance e pode ser até considerado um dos mais portentosos êxitos de todos os tempos na história da investigação e da dedução criminal.
Foram as conclusões rápidas e quase fantásticas de Philo Vance, a sua capacidade de conhecer a natureza humana e o seu tremendo instinto para sentir e interpretar as correntes subterrâneas dos fatos comuns da vida que o encaminharam à descoberta da verdade.
O caso foi uma curiosa e estranha mistura de paixão, avareza, ambição e corridas de cavalos, assombroso nas suas sutilezas, na audácia e na habilidade de seu planejamento e no seu puro interesse psicológico.
Houve um leitor dos romances policiais de S. S. Van Dine que se queixou paradoxalmente de que os mesmos fossem tão bons, pois, quando iniciava a leitura de um, não conseguia mais largá-lo antes da última página. Faça a experiência com este e, para não se queixar depois, escolha um bom fim-de-semana.

 

 

 

 

 

 

I

Os Cavalos de Troia

(Sexta-feira, 13 de abril — 22h)

Havia duas razões para que o terrível e, até certo ponto, incrível caso do crime no jardim — que aconteceu no início da primavera, logo após o caso do crime do Cassino — fosse assim denominado.

Em primeiro lugar, o cenário da tragédia foi a cobertura do professor Ephraim Garden, o grande pesquisador de química da Universidade de Stuyvesant; e, em segundo lugar, o situs criminis foi exatamente o lindo jardim privativo situado em cima do apartamento.

Era um caso ao mesmo tempo peculiar e inverossímil e, tão inteligentemente planejado, que apenas por mera casualidade — ou talvez fosse melhor chamarmos de intervenção fortuita — foi esclarecido. Apesar de as circunstâncias que precederam o crime serem inteiramente a favor de Philo Vance, eu não posso deixar de considerar o caso como um dos seus maiores triunfos de dedução e investigação criminal, porque foi o seu rápido e quase sobrenatural discernimento, sua capacidade de compreender a natureza humana e seu tremendo faro para discernir as camadas profundas do chamado trivial cotidiano, que o levaram a triunfar.

O assassinato dos Gardens reuniu uma curiosa e anômala mistura de paixão, avareza, ambição e... corridas de cavalos.

Havia também uma dose de ódio, mas este elemento vigoroso e ao mesmo tempo ofuscante era, imagino eu, uma compreensível decorrência dos outros fatores. Entretanto, o caso era surpreendente por suas sutilezas, seu mecanismo elaborado e seu clima de grande excitação psicológica.

O caso começou na noite de 13 de abril. Era uma daquelas noites suaves que geralmente acontecem no início de uma primavera após uma temporada de desagradável umidade quando todos os restos do inverno finalmente capitulam diante da inevitável mudança de estação. Havia uma suave tranqüilidade no ar, um súbito perfume que brotava da natureza — o tipo da atmosfera que nos torna apáticos e sonhadores e, ao mesmo tempo, estimula a nossa imaginação.

Menciono este fato aparentemente sem importância, porque acredito que essas condições meteorológicas muito têm a ver com os surpreendentes acontecimentos que pairavam no ar aquela noite e que deveriam brotar subitamente em todo o seu horror, antes que fossem decorridos 24 horas.

E eu acredito que a estação, com todas as suas sutis insinuações, era verdadeira explicação para a mudança que se fez no próprio Vance enquanto investigava o crime. Até àquela época eu não considerava Vance como um homem capaz de qualquer emoção pessoal profunda, exceto no que dizia respeito às crianças, animais e suas amizades íntimas do sexo masculino. Ele sempre me parecera um homem tão grandemente mentalizado, tão cínico e tão impessoal em suas atitudes diante da vida, que uma irracional fraqueza humana, do tipo de um romance, deveria ser inteiramente estranho à sua natureza. Mas no decorrer de sua habilidosa investigação dos crimes ocorridos na cobertura do professor Garden, pela primeira vez eu vi um outro aspecto maleável de seu caráter. Vance nunca foi um homem feliz no sentido convencional da palavra; mas, depois do caso Garden, surgiram evidências de uma solidão ainda mais profunda em sua natureza sensível.

Mas essas especulações sentimentais talvez não importassem ao relato da surpreendente história que estou aqui narrando e eu me pergunto se elas deveriam ter sido mencionadas a não ser pelo fato de que introduziram uma certa dimensão de entusiasmo e inspiração à energia que Vance despendeu, e os riscos que correu para entregar o assassino à justiça.

Mas, como eu disse, o caso teve início — pelo menos no que diz respeito a Vance — na noite de 13 de abril. John F.-X. Markham, na época procurador distrital de Nova York, jantava no apartamento de Vance, na Rua 38, Este. O jantar fora excelente — como aliás todos os que Vance oferecia — e às 10 horas estávamos os três sentados na confortável biblioteca degustando um Napoléon 1809 — o famoso e refinado conhaque do 1º Império*.


*Reconheço que esta afirmação levantará dúvidas enormes, porque o verdadeiro conhaque Napoléon é praticamente desconhecido nos EUA. Mas Vance tinha conseguido uma caixa na França; e Lewton Mackall, um perfeito conhecedor, assegurara-me que se diz entre os peritos no assunto, haver, atualmente, pelo menos 800 caixas dessa bebida num depósito da cidade de Conhaque.

 

 


Vance e Markham conversavam descontraidamente sobre ondas de crimes. Tinha havido uma leve discordância, Vance refutando a teoria de que as ondas de crimes são previsíveis, sustentando que o crime é inteiramente pessoal e, portanto, incompatível com a generalização ou leis. A conversa derivara em seguida para a decadência da entediada jovem geração surgida logo após a Primeira Guerra Mundial, que, por simples prazer, organizara clubes de crime, cujos membros experimentavam suas capacidades em assassinatos onde não havia qualquer espécie de vantagem de ordem material. Foi evidentemente mencionado o caso Loeb-Leopold e também um outro mais recente e igualmente depravado, que acabava de vir à tona em uma das principais cidades do Oeste.

Foi em meio a esta discussão que Currie, o velho mordomo inglês de Vance, surgiu à porta da biblioteca. Pareceu-me nervoso e pouco à vontade enquanto esperava que o patrão terminasse de falar; creio, que Vance pressentiu alguma coisa de estranho na atitude do empregado, porque parou de falar quase que abruptamente e voltou-se: — Que aconteceu, Currie? Você viu algum fantasma ou há ladrões dentro de casa?

— Acabei de receber um telefonema, senhor — respondeu o velho mordomo tentando reprimir em sua voz o tom excitado.

— Espero que não sejam más notícias do exterior? — perguntou Vance com simpatia.

— Ah, não senhor, não era para mim. Havia um cavalheiro ao telefone...

— Um cavalheiro, Currie?

— Ele falava como um cavalheiro, senhor. Certamente não era uma pessoa qualquer. Tinha uma voz educada, senhor e...

— Já que o seu instinto chegou tão longe — interrompeu Vance — talvez você possa dizer-me a idade do cavalheiro?

— Eu diria que era um homem de meia-idade, ou talvez um pouco mais — arriscou Currie. — Sua voz tinha um tom maduro, cheio de dignidade e ponderação.

— Excelente! — Vance esmagou o cigarro. — E qual era o objetivo da chamada desse homem maduro, digno e ponderado? Pediu para falar comigo ou deixou o nome?

Um ar preocupado surgiu no olhar de Currie enquanto negava sacudindo a cabeça: — Não senhor, isto é o mais esquisito. Ele disse que não desejava falar com o senhor pessoalmente e que não me daria o seu nome. Mas pediu-me que lhe transmitisse um recado. Foi bastante exato nesse ponto e até fez-me escrever palavra por palavra e depois repetir tudo. Assim que eu terminei, desligou.

Currie deu um passo à frente.

— Aqui está o recado, senhor. — E estendeu uma das pequenas folhas para anotações que Vance sempre tinha junto ao telefone.

Vance pegou a folha e despachou-o com um aceno. Em seguida ajustou o monóculo e colocou o papel sob a luz da lâmpada que estava sobre a mesa. Tanto Markham quanto eu o examinávamos atentamente porque o incidente era algo de pouco comum, para não dizer mais. Após uma rápida leitura, Vance fitou o espaço vazio e seu olhar tornou-se sombrio. Releu a mensagem, mais cuidadosamente ainda, e voltou a sentar-se na poltrona.

— Palavra de honra! — murmurou. — Que coisa extraordinária. — No entanto, é bastante compreensível, vocês nem imaginem. Mas quero ser mico de circo se eu estiver vendo a relação...

Markham estava aborrecido.

— É algum segredo? — perguntou para experimentar — Ou você está simplesmente em uma das suas fases oraculares? Vance olhou-o com um ar contrito.

— Perdoe-me, Markham. Meu pensamento automaticamente disparou numa espécie de devaneio. Desculpe-me, sinceramente.

E tornou a colocar o papel sob a luz.

— Este é o recado que Currie anotou tão meticulosamente: "No apartamento do professor Ephraim Garden está havendo a mais perturbadora tensão psicológica que resiste a qualquer diagnóstico. Leia alguma coisa sobre sódio radioativo. Veja o Livro XI da Eneida, linha 875. Equanimity* é o essencial"... Curioso, não acham?

 

 

* Equanimity significa serenidade. (N. T.)

 

 

Para mim, soa um tanto aloucado — anuiu Markham. — Você costuma receber telefonemas de maníacos?

— Não, mas este não é um maníaco — assegurou Vance. — É enigmático, admito, mas também bastante lúcido.

Markham fungou cèpticamente.

— Afinal, em nome de Deus, que têm um professor, o sódio e a Eneida a ver com o outro?

Vance tinha o semblante carregado enquanto procurava na cigarreira um dos seus queridos Régies, com uma tal deliberação que indicava tensão mental. Lentamente, acendeu o cigarro. Depois de inalar profundamente, respondeu: — Ephraim Garden, de quem vocês certamente já ouviram falar repetidamente, é um dos homens mais conhecidos neste país no campo da pesquisa química. No momento, se não me engano, ele é professor de química na Universidade de Stuyvesant, o que pode ser verificado no Who's Who. Mas, não importa. Suas últimas pesquisas foram orientadas para o terreno do sódio radioativo. Uma descoberta sensacional, Markham, feita pelo Dr. Ernest O. Lawrence, da Universidade da Califórnia, e dois de seus colegas de lá, os Drs. Henderson e McMillan. Este novo sódio radioativo abriu novos campos de pesquisa na terapêutica do câncer. Realmente, um desses dias pode vir a ser apontado como a tão procurada cura do câncer. A nova radiação gama deste sódio é mais penetrante que qualquer outra jamais obtida. Por outro lado, o rádio e as substâncias radioativas podem ser muito perigosos se difundidos nos tecidos normais do corpo e através do fluxo sangüíneo. A maior dificuldade no tratamento dos tecidos cancerosos por meio de radiação é achar um veículo seletivo que distribua a substância radioativa apenas para o tumor. Mas com a descoberta do sódio radioativo deu-se um enorme passo à frente; é nada mais que uma questão de tempo até que este novo sódio seja aperfeiçoado e possa ser encontrado em quantidades suficientes para uma experimentação intensiva.

— Tudo isso é extremamente fascinante — comentou Markham com sarcasmo. — Mas que tem isso a ver com você ou com o problema na casa dos Gardens? E que possível relação poderia isso ter com a Eneida? No tempo de Ennias não haviam ainda descoberto o sódio radioativo...

— Markham, meu velho, eu não sou um caldeu. E não tenho a mais remota noção de que a situação possa interessar a mim ou a Eneias, a não ser pelo fato de eu conhecer ligeiramente a família Garden. Mas tenho uma vaga idéia desse livro da Eneida, em particular. Se estou bem lembrado, ele contém uma das maiores descrições de uma batalha em toda a literatura antiga. Mas, vejamos: Vance ergueu-se rapidamente e dirigiu-se à seção de sua biblioteca reservada às obras clássicas e, após alguns momentos de procura, dali tirou um pequeno livro vermelho que começou a folhear. Seus olhos percorreram vivamente uma página quase no fim do volume e, após um momento de atenção, voltou à sua cadeira trazendo o livro, meneando a cabeça como quem está compreendendo, como se estivesse respondendo a uma pergunta que se tivesse feito interiormente.

— O trecho mencionado, Markham, — disse ele após um momento — não é exatamente aquilo que eu pensava. Mas pode ser ainda mais significativo. É a famosa onomatopéia "Quadrupedumque putrem cursu quatit ungula campum", que significa aproximadamente "e em seu galope, os cascos dos cavalos estremecem a planície gretada".

Markham tirou o charuto da boca e olhou para Vance com um aborrecimento indisfarçável: — Você está simplesmente fabricando um mistério. Só falta agora contar-me que os troianos tinham uma relação qualquer com esse professor de química e seu sódio radioativo.

— Não, não. — Vance estava com uma disposição desusadamente séria. — Nada a ver com os troianos, mas talvez com a galopada dos cavalos.

Markham rosnou: — Talvez para você isso possa fazer algum sentido.

— Não inteiramente — retrucou Vance contemplando criticamente a extremidade do seu cigarro. — Não obstante há como um vago esboço. Você sabe, o jovem Floyd Garden, único descendente do professor, mais o seu primo, um rapaz insignificante, chamado Woody Swift — se não me engano um assíduo freqüentador da intimidade dos Gardens — são aficionados dos cavalos. Por sinal, uma doença bastante corrente, Markham. Ambos se interessam por esportes em geral, provavelmente a reação normal aos seus antepassados eclesiásticos e mestres: o pai do jovem Swift, que já foi ao encontro do seu Criador, era um completo D. D.* Eu costumava às vezes ver os dois rapazes no Cassino de Kinkaid, mas os cavalos de corrida são a atual paixão dos dois. E eles são o núcleo de um pequeno grupo de jovens aristocratas que passam suas tardes principalmente na fútil expectativa de adivinhar quais os cavalos que vão chegar primeiro nas diferentes pistas.

 


* D. D. — Divinitatis Doctor (Doutor em Teologia) — (N. T.)

 

 

 

— Conhece bem esse Floyd Garden? Vance assentiu: — Regularmente. Ele é sócio do Far Meadows Club e muitas vezes joguei pólo com ele. É um "five goaler" e tem um par dos melhores cavalos do país. Uma vez tentei comprar um deles, mas estava fora de questão**. O fato é que o jovem Garden convidou-me diversas vezes a participar de pequeno grupo que reunia em seu apartamento, quando havia corridas fora da cidade. Parece-me que ele tem um serviço de alto-falantes diretamente da pista, como muitos outros fanáticos por corridas. O professor desaprova até certo ponto, mas não faz objeções severas porque a Sra. Garden também algumas vezes gosta de sentar-se e arriscar um palpite num cavalo.

 

 

** Houve uma época em que Vance era entusiasta do pólo e jogava freqüentemente. Também tinha um escore de 5 pontos.

 

 


— Alguma vez você aceitou esses convites? — perguntou Markham.

— Não — disse Vance. Depois ergueu a cabeça com um olhar distante. — Mas acho que teria sido uma excelente idéia.

— Vamos, vamos, Vance! — protestou Markham. — Mesmo que você veja alguma relação cifrada entre os desconexos itens do recado que você acaba de receber, como, por Deus, pode levá-lo a sério?

Vance aspirou profundamente o cigarro e esperou um momento antes de responder: — Você deixou passar uma frase da mensagem: "Equanimity é essencial" — disse por fim. — Acontece que um dos grandes cavalos de corrida, no momento, chama-se Equanimity. Faz parte do quadro dos imortais do turfe, como Man o'War, Exterminator, Gallant Fox e Reigh Count***. Além do mais, Equanimity estará correndo amanhã no Prêmio Rivermont.

 

 

*** Quando Vance leu a prova desta anotação, acrescentou na margem : "E eu deveria ter mencionado também Sir Barton, Sysonby, Colin, Crusader, Twenty Grand e Equipoise".

 

 


— Continuo não vendo qualquer razão para encarar o assunto com seriedade — objetou Markham.

Vance ignorou o comentário e acrescentou: — Além disso, o Dr. Miles Siefert****disse outro dia no clube que a Sra. Garden esteve bastante doente, durante algum tempo, com um mal misterioso.

 

 

**** Miles Siefert era, na época, um dos principais patologistas de Nova York, com uma extensa clientela entre a sociedade elegante daquela cidade.

 

 


Markham afastou a cadeira e bateu a cinza do charuto.

— Cada minuto que passa, o assunto fica mais confuso — observou irritadamente. — Qual a conexão entre todos esses dados corriqueiros e a sua preciosa mensagem telefônica? — E acenou com desprezo em direção ao papel que Vance ainda conservava na mão.

— Acontece que sei quem me mandou a mensagem — respondeu lentamente Vance.

— Ah, sim? — Markham estava obviamente céptico.

— Claro, foi o Dr. Siefert.

Markham demonstrou um súbito interesse: — Você se incomodaria em esclarecer-me como conseguiu chegar a esta conclusão? — perguntou com uma voz satírica.

— Não foi difícil — respondeu Vance erguendo-se e parando diante da lareira vazia e apoiando um braço na parte superior. — Para início de conversa, não fui chamado pessoalmente ao telefone. Por quê? Porque se tratava de alguém que receava ter sua voz reconhecida por mim. Logo, era alguém que eu conheço. Prosseguindo, a linguagem do recado ostenta a marca registrada da profissão de médico. "Tensão psicológica" e "resiste a qualquer diagnóstico" não são frases normalmente utilizadas por homens da lei, embora sejam palavras bastante correntes. E há na mensagem duas frases de tal maneira identificadoras — um fato que elimina qualquer possibilidade de coincidência. Veja um exemplo ao acaso: a palavra "rotineira" é certamente usada por qualquer classe de pessoas; mas quando vem acompanhada de outra palavra também comum, "recuperação", você pode estar tranqüilamente certo de que apenas um médico usaria a frase. Tem um significado médico bem definido, é um clichê da profissão... Avancemos mais um pouco: a mensagem supõe obviamente que eu esteja mais ou menos relacionado com a família Garden e a paixão que alimenta pelas corridas o jovem Garden. Portanto, chegamos ao resultado: quem enviou o recado é um médico que eu conheço e que está ciente de minhas relações com os Gardens. O único médico que preenche todas essas condições e que, incidentalmente, é de meia-idade, culto e altamente ponderado — não se esqueça da descrição feita por Currie — é Miles Siefert. E, acrescentemos a essa simples dedução, eu sei que Siefert é um estudioso de latim — uma vez encontrei-o nos salões da Sociedade Latina. Um outro ponto a meu favor é o fato de que ele é o médico da família Garden e teria enormes possibilidades de estar informado sobre os cavalos de corrida — e talvez sobre Equanimity em particular — no que diz respeito à família Garden.

— Sendo este o caso — protestou Markham — por que você não telefona para ele e descobre exatamente o que está por baixo de toda essa criptografia?

— Meu caro Markham, oh, meu caro Markham! — Van-ce caminhou até a mesa e pegou seu copo de conhaque temporariamente esquecido. — Siefert não somente iria repudiar com indignação qualquer conhecimento do recado, como também tornar-se-ia automaticamente o primeiro obstáculo a qualquer veleidade de indagação que eu pudesse ter. A ética da profissão médica é das mais fantásticas; e Siefert, de acordo com sua posição, é um fanático do assunto. Baseado no fato de ele comunicar-se comigo por um caminho tão sinuoso, começo a suspeitar de que esteja envolvido nisso algum ponto de honra algo grotesco. Talvez sua consciência o tenha vencido por um momento, e ele tenha temporariamente cedido em sua estreita adesão ao que ele considera seu código de honra... Não, não. Esta atitude não levaria a nada, em absoluto. Será preciso investigar o assunto por mim mesmo, como ele certamente deseja que eu o faça.

— Mas qual é o assunto que você acha estar sendo chamado a investigar? — insistiu Markham. — Admitindo tudo o que você disse, mesmo assim eu não vejo como você pode encarar a situação como tendo alguma seriedade.

— Nunca se sabe, não é? — murmurou Vance. — Além disso, eu também gosto muito de cavalos, como é do seu conhecimento.

Markham pareceu descontrair-se e ajustar seu humor à mudança de atitude de Vance.

— E que pretende você fazer? — perguntou bem humoradamente.

Vance bebeu seu conhaque e suspendeu o copo. Ergueu então o olhar desafiadoramente: — O promotor distrital de Nova York, o nobre defensor dos direitos do povo, o Meritíssimo John F.-X. Markham deve conceder-me imunidade e proteção antes que eu consinta em responder ao que me pergunta.

As pálpebras de Markham desceram um pouco enquanto observava Vance. Ele estava familiarizado com o sério significado que, às vezes, se escondia sob as mais frívolas observações do amigo.

— Você está pretendendo infringir a lei? — perguntou. Vance pegou novamente o copo em forma de lótus e o fez girar docemente entre o polegar e o indicador.

— Sim, inteiramente — admitiu com indiferença. — Ofensa passível de prisão, creio.

Markham estudou-o durante mais alguns momentos.

— Está bem — disse sem o menor indício de leviandade — farei o que puder por você. De que se trata?

Vance tomou mais um trago do Napoléon.

— Bem, Markham, meu caro — anunciou com um meio sorriso. — Vou à cobertura dos Gardens amanhã à tarde e jogarei nos cavalos com a jovem guarda.

 

 

 

 

II

 

Revelações Domésticas

 

 


(Sábado, 14 de abril — 12:00 horas)

 

 

Naquela noite, assim que Markham nos deixou, mudou a disposição de Vance. Um olhar preocupado velou seus olhos e ele pôs-se a caminhar pensativamente, de um lado para o outro da sala.

— Isto não me agrada, Van — murmurou ele, como se falando com os seus botões. — Isto não me agrada. Siefert não é o tipo de homem capaz de dar um telefonema misterioso como esse, a menos que tenha uma excelente razão para fazê-lo. É inteiramente fora do seu gênero, entende? Ele é um sujeito extremamente conservador e exageradamente amante da ética. Deve haver alguma coisa que o está preocupando profundamente. Mas, por que o apartamento dos Gardens? A atmosfera doméstica de lá sempre me pareceu ser pelo menos superficialmente normal, e agora um sujeito tão digno de crédito como Siefert fica todo excitado a ponto de servir-se de uma técnica de folhetim. É diabolicamente esquisito.

Ele parou de caminhar e olhou para o relógio: — Acho que vou tomar algumas providências. Uma certa dose de bisbilhotice é altamente indicada.

Dirigiu-se à antessala e um momento depois eu o ouvi discando um número de telefone. Quando voltou à biblioteca parecia ter jogado fora a depressão. Sua atitude era quase petulante.

— Estamos convidados para um abominável almoço amanhã, Van — anunciou servindo-se de outra dose de conhaque. — E teremos que nos torturar com os comestíveis na hora mais revoltante possível: meio-dia. Que hora para ingerir até mesmo a melhor das iguarias! — suspirou. — Vamos almoçar com o jovem Garden em seu apartamento. Woody Swift estará lá e também uma criatura insuportável chamada Lowe Hammle, um rústico cavalheiro de alguma remota propriedade em Long Island. Mais tarde, virão juntar-se a nós diversos componentes da classe esportiva e, juntos, nos deleitaremos com o antigo e fascinante passatempo de apostar nos puros-sangues. Isto pelo menos, haja o que houver, poderá ser realmente divertido...

Tocou a campainha chamando Currie e enviou-o à rua para buscar um exemplar de The Morning Telegraph.

— Temos que estar preparados, pelo menos um pouco. Já faz muito tempo que não jogo nos cavalos. Ah, juventude ingênua! Mas há alguma coisa com os potros que parece entrar no sangue das criaturas e brinca de destruir os mais sadios conselhos da inteligência*. Acho que vou vestir um roupão.

 

 

* Houve uma época em que Vance possuiu vários excelentes cavalos de corrida. Seus Magic Mirror, Smoke Maiden e Aldeen eram todos bem conhecidos em seu tempo; Magic Mirror, com 3 anos, ganhou três dos mais importantes prêmios das pistas do Leste. Mas no famoso Elmswood Special, quando este cavalo quebrou uma perna ao entrar na reta final e teve de ser destruído, Vance pareceu perder todo o interesse pelas corridas e desfez-se de todo o haras. Ele provavelmente não é um autentico criador de cavalos da mesma forma que também não é para Scottish Terriers, porque seus sentimentos estão constantemente interferindo com as severas e geralmente implacáveis regras de jogo.

 

 

 


Ele terminou seu Napoléon fazendo-o render com satisfação, e desapareceu no quarto de dormir.

Embora eu estivesse perfeitamente ciente de que Vance tinha em vista algum objetivo sério para querer almoçar com o jovem Garden no dia seguinte e participar das apostas nos páreos, naquela ocasião eu nem sequer suspeitava dos horrores que iam acontecer dali em diante. Na tarde de 14 de abril aconteceu o primeiro ato repugnante de um dos mais atrozes crimes múltiplos desta geração. E ao Dr. Siefert deve ser dado o maior crédito na identificação do criminoso, porque, se ele não tivesse mandado a Vance mensagem cifrada e pretensamente anônima, a verdade provavelmente jamais seria conhecida.

Nunca esquecerei aquela fatal tarde de sábado. E, além do brutal assassínio de Garden, aquela tarde será sempre relembrada por mim, porque marcou o primeiro episódio sentimental na vida adulta de Vance de que eu tivesse conhecimento. Pela primeira vez, a fria atitude impessoal de seu espírito analítico dissolveu-se frente a uma mulher atraente.

Vance estava acabando de voltar à biblioteca vestindo seu roupão de seda vermelho-escuro quando Currie trouxe o Telegraph. Pegou o jornal e abriu-o na escrivaninha, diante de si. Tudo indicava que estava num estado de espírito despreocupado.

— Alguma vez você apostou nos potros, Van? — perguntou tomando de um lápis e pegando um pequeno bloco.

— É uma ocupação tão absorvente quanto fútil. Pelo menos um conjunto de considerações técnicas entram nos cálculos: a categoria do cavalo, idade, filiação, peso que deve levar, um resumo de suas atuações anteriores, o tempo feito em outras corridas, o jóquei que o vai montar, o tipo de páreo com que está acostumado, as condições da pista, se o cavalo é lameiro ou não, sua posição na largada, a distância do páreo, o valor do prêmio e uma dezena de outros fatores, que, quando somados, subtraídos, colocados frente à frente, e eventualmente comparados por meio de um complicado sistema matemático de verificação e contraverificação, dão a você o que se supõe serem as exatas possibilidades de um cavalo vencer a corrida. Entretanto, tudo isso é completamente inútil. Menos de 40% dos favoritos — isto é, de cavalos que devem vencer no papel — confirmam o resultado desses cálculos. Jim Dandy, por exemplo, bateu Gallant Fox nos Travers e pagou 100 por um; e o teoricamente invencível Man o'War perdeu uma corrida para um pangaré chamado Upset. Depois de todas as complicadas interpretações, as corridas de cavalos continuam sendo um simples caso de sorte, tão imprevisível como a roleta. Mas nenhum aficionado comprará uma só pule enquanto não tiver verificado toda a maravilhosa conversa fiada dos informantes. É um pouco mais que abracadabra, mas é três vezes mais divertido.

Ele me lançou um olhar divertido: — E é por isso que eu vou ficar aqui sentado por mais uma ou duas horas, no mínimo, satisfazendo uma das minhas velhas fraquezas. Irei amanhã à casa dos Gardens com todos os páreos perfeitamente estudados, e você provavelmente fará uma escolha ao acaso e colherá os louros da inocência. — Acenou a mão com satisfação: — Ciao!

Voltei para casa com uma sensação de mal-estar.

Na manhã seguinte, pouco antes do meio-dia, chegamos ao lindo apartamento dos Gardens, onde fomos cordial e um tanto exuberantemente saudado por Floyd.

Ele era um homem com pouco mais de 30 anos, ereto e de compleição atlética. Deveria ter cerca de 1,90 m, ombros largos e cintura fina. O cabelo era quase preto e a pele morena. Suas maneiras, embora simples e não afetadas e com uma ponta de basófia, não eram de modo algum ofensivas. Não era um homem simpático: suas feições muito grosseiras, os olhos muito próximos um do outro, orelhas demasiado salientes, e lábios excessivamente finos. Mas tinha um encanto inegável, possuindo reações mentais rápidas. Certamente não era um intelectual e, mais tarde, quando conheci sua mãe, verifiquei imediatamente que os traços hereditários lhe tinham sido legados pelo lado materno.

— Somos apenas nós cinco para o almoço, Vance — observou calmamente. — O meu velho está na Universidade remexendo em seus tubos de ensaio e bicos de Bunsen; a Mama está divertindo-se à grande, fingindo-se doente, com médicos e enfermeiras correndo como loucos para cá e para lá, arrumando seus travesseiros e acendendo-lhe os cigarros. Mas Pop Hammle virá; é uma ave bastante rara, mas boa praça; e nós também seremos amolados pelo meu amado primo Woody que tem a fronte de alabastro e o coração de um esquilo. Vance, você conhece Swift, eu creio. Se me recordo bem, vocês uma vez passaram toda uma noite aqui discutindo sobre o verde Ming. Um chato divertido, esse Woody.

Meditou um instante fazendo uma careta:

— Não posso conceber como é que ele se adapta à família. Papai e Mamãe parecem gostar dele excessivamente, azar o dele, talvez. Ou talvez ele seja o tipo de rapaz sério, sensato que eles gostariam que eu fosse. Não desgosto de Woody, mas temos pouquíssimas coisas em comum, exceto cavalos. Só tem que, para o meu gosto, ele leva suas apostas demasiadamente a sério: bem, ele não tem muito dinheiro, e suas perdas e ganhos significam muito para ele. Naturalmente, no final estará falido, mas eu duvido que venha a fazer muita diferença para ele. Meus queridos pais, pelo menos um deles, alisarão sua fronte com uma das mãos, enquanto com a outra encherão seus bolsos. Se eu viesse a quebrar em conseqüência deste vício por cavalos, eles me diriam para tratar de ir dando o fora e arranjar trabalho.

 

 

 

 

 

 

 

Riu de bom grado, mas com um certo laivo de amargura.

— Mas, puxa vida! Vamos entornar um copo antes da comida.

Apertou um botão perto do arco que dava para o salão e um mordomo muito corpulento e correto apareceu com uma bandeja de prata guarnecida com garrafas, copos e gelo.

Vance estivera disfarçadamente observando Garden durante aquele incoerente recital de intimidades domésticas. Pude ver que ele estava tanto desnorteado como aborrecido com as confidencias: eram de um mau gosto evidente. Depois de servidas as bebidas, Vance voltou-se friamente para ele: — Diga, Garden, — perguntou de um modo casual — para que todo esse mexerico doméstico? Você sabe, realmente, isso não se costuma fazer.

— Minha rata social, velho — desculpou-se prontamente Garden. — Mas eu queria que você compreendesse a situação para que pudesse ficar à vontade. Sei que você detesta mistérios e é bem possível que algumas coisas engraçadas aconteçam aqui esta tarde. Se você estiver familiarizado com o ambiente, elas não o incomodarão tanto.

— Muitíssimo grato e tudo o mais — murmurou Vance — talvez eu compreenda a sua idéia.

— Nas duas últimas semanas, Woody vem agindo de uma maneira estranha — continuou Garden — como se uma tristeza secreta estivesse roendo o seu espírito. Parece mais pálido que nunca. De repente torna-se mal-humorado e desatento, sem nenhuma razão aparente. Quero dizer que ele age como se fosse um lunático. Talvez esteja apaixonado. Mas ele é um pateta muito fechado. Ninguém jamais saberá, nem mesmo o objeto de sua afeição.

— Algum sintoma psicopático específico? — perguntou Vance brincando.

— Na-ão — Garden apertou os lábios e franziu a testa pensativamente. — Mas ele pegou uma mania curiosa de subir para o terraço imediatamente após ter feito uma grande aposta e lá fica sozinho até que seja comunicado o resultado do páreo.

— Nada de muito extraordinário nisso — Vance fez um gesto de protesto. — Muitos jogadores são assim, você sabe. O elemento emocional, entende? Não suportam §er observados quando chega o resultado. Têm medo de desabar. Preferem recompor a aparência antes de enfrentar a multidão. Simples sensibilidade. É, é isso. Especialmente se o resultado da aposta significa muito para eles... Não, não... Eu não diria que o fato de seu primo retirar-se para o terraço em tais momentos de tensão seja digno de nota, depois de tudo o que você contou a seu respeito. Na realidade é bastante lógico.

— Você provavelmente está certo — admitiu Garden com relutância — mas eu gostaria que ele apostasse com moderação em vez de se atirar de cabeça, como um louco, cada vez que ele se entusiasma por um cavalo.

— Por falar nisso — perguntou Vance — por que você espera especialmente que haja estranhas ocorrências esta tarde?

Garden sacudiu os ombros.

— O fato é que — explicou após uma pequena pausa — Woody vem tendo pesadas perdas ultimamente e hoje é o dia do Grande Prêmio Rivermont. Tenho o pressentimento de que vai botar até o seu último dólar em Equanimity, que, indubitavelmente, é o seu favorito... Equanimity — bufou, com indisfarçável desprezo. — Aquele pangaré cerqueiro! Provavelmente o segundo grande cavalo dos tempos modernos, mas, de que serve? Quando ele entra, está pronto para ser desclassificado. Tem madeira no cérebro: é louco por cercas. Ponham uma cerca no meio da pista, a uma milha de distância, sem barreiras à direita ou à esquerda, e ele é bem capaz de cobrir a distância em minuto e meio, fazendo com que Jamestown, Roamer e Wise Ways pareçam aleijados*. Teve que ceder a vitória para Vanderveer no Youthful Stakes. Em Bellaire, ele cortou a frente de Persian Bard, em direção à cerca; e foi desclassificado pela mesma razão no Colorado, entregando o páreo para Grand Score. No Prêmio Urban, tentou o mesmo mergulho para a cerca, resultando na vitória de Roving Flirt por meia cabeça... Como se pode saber como Equanimity vai comportar-se? Não é mais um cavalo novo, tendo perdido ao todo dezoito páreos. Hoje, ele vai competir com alguns potros duros, alguns dos maiores corredores nacionais e estrangeiros. Eu diria que ele é um azar e, no entanto, sei que esse maluco do meu primo vai arriscar nele tudo o que possui. — E Floyd ergueu o olhar solenemente: — E isto, Vance, significa problemas, se Equanimity não vencer. Será um tremendo golpe. Faz uma semana que estou sentindo a coisa se aproximando. Tenho estado preocupado. Para dizer a verdade, estou satisfeito por você ter escolhido este dia para vir jogar conosco.

 

 

* Esses três cavalos eram os melhores, com diferenças de fração de segundo para o recorde de Jack High na milha de Belmont.

 

 

 


Vance, que estivera ouvindo atentamente e observando Garden bem de perto enquanto falava, caminhou até à janela, onde ficou a fumar pensativamente com os olhos em Riverside Park, situado 30 andares abaixo.

— Situação muito interessante — comentou por fim. — De um modo geral, concordo com o que você diz sobre Equanimity. Mas acho que está sendo muito rigoroso; além disso, não estou muito convencido de que seja um pangaré cerqueiro só porque tem uma paixão imoderada pelos paus. Equanimity sempre teve pés rachados, com uma ou duas fendas e, em conseqüência disse, freqüentemente perde as ferraduras. Ainda por cima, teve uma perna direita muito prejudicada e que, quando começou a doer, no final de um páreo bastante duro, obrigou-o a ir de encontro à cerca. Mas é um grande cavalo. Faz sempre o que o jóquei exige, em qualquer percurso e tipo de pista. Aos dois anos de idade, foi o vencedor de sua classe, aos três já apresentava problemas com uma das patas e só três vezes tomou a dianteira. Aos quatro anos, voltou de pata nova e ganhou dez corridas importantes. O que há de notável em Equanimity é que ele tanto podia sair disparado e ganhar o Prêmio Bill Daly, como podia vir lá de trás e ganhar na reta final. No Prêmio Futurity, quando ele se manteve na traseira e entrou na reta final em último lugar, perdeu duas ferraduras e, apesar disso, ultrapassou Grand Score e Sublimate para vencer disparado. Era uma pata doente que o impedia de ser o mais notável campeão.

— Bem, e daí? — retrucou dogmaticamente Garden. — Desculpas são fáceis de se achar e sei, como você afirma, ele tem uma pata doente, aí está mais uma razão para não se jogar nele.

— Exatamente — concordou Vance. — Eu próprio não gastaria um centavo com ele neste páreo. Ontem à noite, depois que falei com você, passei algum tempo estudando os prognósticos e resolvi deixar Equanimity de lado na corrida de hoje. Meu sistema de fazer apostas é, sem dúvida alguma, tão idiota quanto qualquer outro, mas não levo fé nele.

— Que cavalo prefere você? — perguntou Garden interessado.

— Azure Star.

— Azure Star! — Garden parecia tão desdenhoso quanto admirado. — Ora, ele é praticamente um azar. Pagará 12 ou 15 por 1. Dificilmente se encontrará no país um selecionador que lhe dê uma oportunidade. Um ex-saltador dos pântanos da Irlanda! Suas pernas estão tão cansadas de saltar que agora tem dificuldade em regular a andadura. Ainda mais para a milha e quarto de hoje! Impossível! Pessoalmente, prefiro arriscar meu dinheiro em Risky Lad. Aí está um cavalo com grandes possibilidades.

— Risky Lad não merece crédito — disse Vance. — Azure Star derrotou-o facilmente este ano em Santa Anita. Risky Lad entrou liderando na reta final e se cansou, terminando em quinto lugar. E ele certamente não correu uma boa milha na mesma pista quando chegou novamente em quinto lugar num páreo de sete. Se bem me recordo, ele decepcionou no Clássico do ano passado. Sua resistência é muito instável, no que me parece...

Vance suspirou e sorriu: — Bom, bom, chacun à son cheval... Mas como você estava dizendo, a situação psicológica aqui nas vizinhanças deixou você preocupado. Aposto que há uma atmosfera super-carregada aqui neste encantador ninho de águias.

— E isso mesmo — respondeu Garden quase com impaciência. — Super-carregada é a expressão exata. Quase que diariamente a Mama pergunta: "Como está Woody?", e à noite, quando o velho volta do seu laboratório ele me cumprimenta de um modo meio esquerdo: "Alô, meu rapaz, você viu Woody hoje?"... Agora eu, poderia morrer coberto de lepra e nem sequer suscitaria a menor preocupação nos meus ancestrais mais próximos.

Vance não comentou essas palavras. Ao contrário, perguntou com uma voz particularmente sem expressão: — Você considera esta recente hipertensão no ambiente doméstico como sendo inteiramente devido aos apuros financeiros do seu primo e em sua determinação de arriscar tudo o que tem nos cavalos?

Garden começou a erguer-se e então deixou-se cair novamente na poltrona. Depois de tomar um outro gole, limpou a garganta.

— Não, bolas! — respondeu com veemência. — E isto é outra coisa que me aborrece. Uma boa parte das chateações que temos tido ultimamente são por causa das maluquices do Woody; mas há outros estranhos animais invisíveis saltando para cima e para baixo pelos corredores. Não posso imaginar o que seja. A doença da Mama também não tem razão de ser, e o Dr. Siefert age como um pomposo Buda quando eu abordo o assunto. Cá entre nós, eu não creio que ele próprio saiba o que fazer. E há ainda encrencas com a gang que se reúne aqui quase todas as tardes para jogar nas corridas. São rapazes corretos, sem dúvida, pertencem ao "nosso meio", como se costuma dizer, e são oriundos de ambientes eminentemente respeitáveis, se bem que...

Nesse instante, ele ouviu o som de passos leves aproximando-se no corredor e sob o arco que constituía a separação entre o vestíbulo e a sala de estar, surgiu um pálido e delgado rapaz, de aproximadamente 30 anos, a cabeça enterrada nos ombros levemente encurvados e com uma expressão melancólica e ressentida em seu rosto triste e sensível. Um pince-nez de lentes grossas aumentava ainda mais a impressão de fraqueza física. Garden acenou alegremente para o recém-chegado.

— Salve, Woody. Bem na hora para um gole antes do almoço. Você conhece Vance, o eminente perdigueiro; e este é o Sr. Van Dine, seu paciente e reservado cronista.

Woody Swift tomou conhecimento de nossa presença de um modo tenso, porém agradável, e distraidamente apertou a mão do primo. Em seguida, apanhou a garrafa de Bourbon, serviu-se de uma dose dupla que bebeu de uma só vez.

— Santo Deus! — exclamou Garden bem-humorado. — Como você mudou, Woody!... Quem é a dama do momento?

Os músculos do rosto de Swift contorceram-se como se ele tivesse tido uma dor repentina: — Deixe-se de tolices, Floyd! — respondeu irritado. Garden deu de ombros com indiferença.

— Desculpe. Qual é a sua preocupação de hoje, além de Equanimity?

— Isto já é mais que suficiente para um dia — Swift conseguiu dar um sorriso encabulado; depois acrescentou com agressividade: — Não posso perder de jeito algum — e serviu-se de uma outra dose. — Como vai Tia Marta?

Garden entrecerrou os olhos.

— Vai muito bem. Nervosa como o diabo esta manhã e fumando um cigarro atrás do outro. Mas está-se levantando. Provavelmente virá mais tarde para arriscar um ou dois palpites nos cavalinhos saltitantes...

A esta altura chegou Lowe Hammle. Era um homem corpulento, baixo, cerca de 50 anos, com uma cara redonda e corada, cabelo grisalho cortado rente. Usava terno xadrez preto e branco, uma camisa cinzenta, uma gravata borboleta de um verde brilhante, um colete cor de chocolate com botões de couro e botinas marrom com solas demasiadamente grossas.

— O mestre dos caçadores! — saudou-o Garden efusivamente.

— Aqui está seu uísque com soda. E aqui também estão o Sr. Philo Vance e o Sr. Van Dine.

— Encantado, encantado! — exclamou calorosamente Hammle avançando em nossa direção. Estendeu a mão efusivamente para Vance. — Já faz bastante tempo desde que o vi pela última vez, Sr. Vance... vejamos... Ah, sim. Broadbank. O senhor estava caçando comigo naquela manhã. Que tombo feio levou. Eu bem o avisei de início que aquele cavalo não sabia vencer as cercas. Mas o senhor estava lá na hora do sacrifício, puxa vida! Lembra-se?

— Perfeitamente. Bela caçada. Uma bela raposa. Nunca esperei que o senhor a desalojasse daquele fosso para atirá-la aos dentes da matilha depois de todo o prazer que ela nos proporcionou*. — A atitude de Vance era glacial, evidentemente ele não gostava do indivíduo; voltou-se imediatamente para Swift e começou a tagarelar alegremente sobre o grande prêmio do dia. Hammle tratou de ocupar-se com o copo de uísque.

 

 

 

*Nos EUA, onde as tocas não são obstruídas, de cada vinte raposas apenas uma é sacrificada e é muito mal visto e até mesmo considerado como falta de espírito esportivo obrigar uma raposa a sair da toca em que se refugiou para matá-la. Mas isto se faz comumente na Inglaterra, por diversas razões. Eventualmente, um mestre norte-americano imita os ingleses com o fim de vangloriar-se de que matou a raposa e não apenas pensou tê-lo feito.

 

 

 


Pouco depois, o mordomo anunciou o almoço. A refeição foi pesada e insípida, assim como o vinho era de uma safra duvidosa. Vance estava bem certo no seu prognóstico.

A conversa foi quase que inteiramente dedicada aos cavalos, à história do turfe, o Grande Prêmio Nacional, e as possibilidades dos vários concorrentes ao Prêmio Rivermond. Garden foi dogmático, porém especialmente agradável e informativo ao externar suas opiniões: ele havia feito um cuidadoso estudo dó turfe moderno e, além disso, tinha uma memória surpreendente.

Hammle era loquaz e amável, e voltava ao assunto das velhas glórias do turfe e das famosas corridas empatadas: Attila e Acrobat no Prêmio Travers; Springbok e Preakness na Taça Saratoga, St. Gatien e Harvester no Derby Inglês, Pardee e Joe Cotton em Sheepshead Bay, Kingston e Yum-Yum em Gravesen, Los Angeles e White no Derby Letônia*, Domino e Dobbins em Sheepshead Bay, novamente Domino e Henri de Navarre em Gravesend, Arbuckle e George Kessler no Hudson Stakes, Sysonby e Race King no Prêmio Metropolitano, Macaw e Nedana em Aqueduct e Morshion e Mate, também em Aqueduct. Ele falou das grandes quedas nas pistas — tanto aqui como no estrangeiro — e da remota conquista do Derby de Epson por um desconhecido sem nome, denominado "Fidget Colt"; da única vitória de Amato sobre Grey Momus, quarenta e um anos depois; da feliz vitória de Aboyeur em 1913, quando Craganour foi desclassificado; e da recente vitória de 5 de abril. Discutiu também o Derby de Kentucky — o inesperado sucesso de Day Star como resultado do fraco desempenho apresentado por Himyar, e o trágico fracasso de Proctor Knott. E falou também da grande estratégia de Snapper Garrison em trazer para casa o Boundless no Derby da Feira Mundial de 1893, e as duas felizes carreiras de Plucky Play quando venceu Equipoise no Prêmio Arlington e sobre Faireno no Hawthorne Gold Cup. Ele mencionou a fatal corrida de Coltiletti montando Sun Beau em Água Caliente, perdendo a carreira para Mike Hall. Tinha um fundo de informações históricas e, apesar de seus preconceitos, conhecia bem o assunto.

 

 

 

* Lucky Baldwin, o proprietário de Los Angeles, insistiu em uma disputa final (que em 1932 era privilégio dos proprietários de cavalos empatados em primeiro lugar) e Los Angeles venceu.

 

 

 


Swift, nervoso e um tanto impaciente, tinha pouca coisa a dizer e, embora parecendo estar atento, deu-me a impressão que outros assuntos mais importantes o estavam preocupando. Comeu pouco e bebeu vinho demais.

Vance contentou-se principalmente em ouvir e estudar os outros componentes da mesa. Quando por fim falou, foi para lamentar alguns grandes cavalos que recentemente haviam sido sacrificados por motivo de acidente. Black Cold, Springstell, Chase Me, Dark Secret e outros. Comentou a trágica e inesperada morte de Victorian, após sua corajosa recuperação e o acidental envenenamento do grande australiano Phar Lap.

Estávamos chegando ao fim do almoço quando uma mulher alta e bem feita de corpo, aparentemente saudável, e que não parecia ter mais de quarenta anos (embora mais tarde eu viesse a saber que há muito passara dos cinqüenta), entrou na sala. Usava um tailleur, uma estola de raposa prateada e um chapéu de feltro preto.

— Alô — exclamou Garden. — Julguei que ainda estivesse na cama. Qual a razão dessa explosão de saúde e energia?

E então apresentou-me sua mãe; Vance e Hammle já eram seus conhecidos.

— Estou cansada de ficar na cama — disse ela para seu filho, depois de acenar cortesmente para os outros. — Agora, rapazes, estejam à vontade. Vou fazer umas compras; passei aqui apenas para ver se tudo estava em ordem... Acho que vou tomar um creme de menthe frappée, já que estou aqui.

O mordomo colocou uma cadeira para ela ao lado de Swift e dirigiu-se à copa.

A Sra. Garden tocou levemente o braço do sobrinho: — Como vão as coisas, Woody? — perguntou-lhe com ternura, e sem esperar resposta, voltou-se novamente para Garden. — Floyd, quero que aposte para mim no grande páreo de hoje, caso eu não volte a tempo.

— Diga o nome do seu "azar" — sorriu Garden.

— Grand Score, ponta e placê; os cem do costume.

— Fechado, Mama, — Garden olhou sardonicamente para o primo — apostas menos inteligentes que esta já foram feitas aqui nos últimos tempos... Está certa de que não quer Equanimity, Mama?

— As chances são muito desfavoráveis — replicou a Sra. Garden, com um sorriso perspicaz.

— No jornal de ontem, ele estava cotado a cinco para dois.

— Mas não vai ficar assim — havia autoridade e segurança no tom e nas maneiras daquela mulher. — E eu terei oito ou dez por um com Grand Score. Ele foi um dos maiores nos seus primeiros tempos e a velha chama ainda pode existir, se ele não mancar como aconteceu no mês passado.

— Absolutamente certa — riu Garden. — Você está no páreo com cem para placê e vencedor.

O mordomo trouxe o creme de menthe; a Sra. Garden tomou-o e ergueu-se.

— Agora vou indo — anunciou prazenteiramente; deu uma pancadinha nas costas do sobrinho: — Cuide-se bem, Woody... Boa tarde, senhores.

E saiu com um passo firme e masculino.

Após um meloso baba au rhum, Garden abriu caminho em direção à sala de estar e o mordomo seguiu-o em busca de instruções.

— Sneed — ordenou Garden — prepare o ambiente como de costume.

Olhei para o relógio elétrico em cima da lareira: eram exatamente uma hora e dez minutos da tarde.

 

 

 

 

III

 

 

As Corridas de Rivermont

 

 


(Sábado, 14 de abril — 13:10 horas)

 

 

"Preparar o ambiente" era processo relativamente simples, porém uma operação mais ou menos misteriosa para qualquer pessoa não familiarizada com o objetivo da coisa. De um pequeno armário embutido, Sneed fez sair uma pesada estante de madeira, montada sobre rodinhas, medindo cerca de setenta centímetros. Sobre a estante colocou um telefone ligado a um alto-falante que mais parecia um pequeno aparelho de rádio. Como vim a saber mais tarde, tratava-se de um amplificador especialmente feito de modo a permitir que os presentes ouvissem perfeitamente tudo o que estava sendo transmitido pelo telefone.

Em um dos lados do amplificador estava instalada uma pequena caixa de metal com uma chave de duas posições. Quando voltada para cima, a chave cortava o som na outra extremidade da linha, sem interferir com a ligação; e abaixando-se a chave, voltava a voz novamente.

— Eu costumava usar fones individuais para a turma — contou-nos Garden, enquanto Sneed empurrava a estante de encontro à parede ao lado do arco e ligava as extensões dos fios nas tomadas instaladas no rodapé.

Em seguida o mordomo trouxe uma bem feita mesa de jogo, portátil, que abriu ao lado da estante. Sobre a mesa, colocou um outro telefone de tipo francês, ou seja, manual. Esse aparelho, de cor cinza, foi ligado numa outra tomada no rodapé. O telefone cinza não foi ligado ao outro dotado de um amplificador, mas tinha uma linha independente.

Após instalar e testar os dois aparelhos, Sneed trouxe mais quatro mesas de jogar e distribuiu-as por toda a sala de estar. Ao lado de cada mesa, ele abriu duas cadeiras de armar. Depois, de uma pequena gaveta escondida na estante, retirou um grande envelope de papel pardo, que evidentemente viera pelo correio e, rasgando um dos lados, dele extraiu um certo número de grandes folhas impressas, de aproximadamente 0,23 x 0,40 cm. Havia quinze dessas folhas que na linguagem do turfe são chamadas de fichas; depois de arrumá-las, distribuiu três em cada mesa. Dois lápis bem apontados, uma caixa de cigarros bem provida, fósforos e cinzeiros completavam o equipamento de cada mesa. Havia um item extra na mesa onde estava o telefone cinzento: um livro-registro com marcas de ter sido muito folheado.

A última tarefa de Sneed em sua função de "preparar o ambiente" foi abrir as portas de um amplo e baixo móvel situado em um dos cantos do salão, e que revelou uma miniatura de bar.

Uma palavra a respeito das fichas; essas folhas eram praticamente uma duplicata do programa que se recebe num hipódromo, com a diferença de que, em lugar de estar cada páreo em uma página separada, todos os páreos corridos em uma mesma pista estavam impressos um a um, numa só página. Naquele mês havia apenas três pistas em funcionamento e as três fichas dispostas em cada mesa eram o equivalente dos três programas correspondentes. Cada uma das colunas impressas abrangia uma corrida, dando a posição dos cavalos*, o nome de cada inscrição e o peso de cada um. No alto de cada coluna estava o número e a distância de cada páreo e embaixo havia linhas em branco para anotações dos jogadores. À esquerda de cada coluna havia um espaço para os palpites; e entre os nomes dos cavalos havia espaço suficiente para escrever os nomes dos jóqueis, à medida que iam sendo anunciados.

 

 

*Nas "fichas" do Estado de Nova York, entretanto, os números não correspondem às posições no starting-gate, enquanto que aqui essas posições são sorteadas pouco antes do início das corridas, exceto nas corridas onde há apostas.

 

 


Depois de ter arrumado tudo, Sneed preparava-se para deixar a sala, mas hesitou de maneira bem significativa. Garden sorriu amplamente e, sentando-se à mesa onde estava o telefone cinza, abriu o pequeno registro à sua frente e pegou um lápis.

— Está bem, Sneed, — disse — em que cavalo você quer perder hoje o seu dinheiro ganho tão facilmente?

Sneed tossiu discretamente.

— Se não se incomodar, senhor, eu gostaria de arriscar cinco dólares em Roving Flirt.

Garden fez uma anotação no livro.

— Está bem, Sneed, você fica com cinco em Roving Flirt.

Com um "obrigado, senhor" em tom de escusa, o mordomo desapareceu na sala de estar. Depois que ele saiu, Garden olhou para o relógio e apanhou o telefone ligado ao amplificador.

— O 19 páreo de hoje — disse — é às 14:30 e eu acho melhor fazer a ligação já. Lex* vai entrar dentro de alguns minutos; e o pessoal gostará de saber tudo e mais alguma coisa ao chegar com suas costumeiras grandes esperanças e ilusões.

 

 

 

* Alexis Flint era o locutor da central de informações.

 

 


Levantou o fone do gancho e discou um número. Após uma pausa, falou no transmissor: — Alô, Lex. B.2-9-8. Estamos à espera das informações. — E deixando o fone sobre a estante, moveu a chave para frente.

Uma voz nítida e clara fez-se ouvir no amplificador: "O.K., B-2-9-8."

Depois houve um estalido seguido de diversos minutos de silêncio. Finalmente, a mesma voz começou a falar: "Fiquem todos a postos. Hora exata: 1 hora, trinta minutos e quinze segundos. Três pistas hoje, na seguinte ordem: Rivermont, Texas e Cold Springs. Exatamente como estão nas fichas. Aí vão: Rivermont, tempo claro, pista leve. Claro e leve. Primeira partida, 2:30. E agora, seguindo a linha. 1º páreo: 20, Barbour; 4, Gates; 5, Lyon; 3, Shea; 2, forfaits; 3, Denham; 20, Z. Smythe. Eu disse S-m-y-t-h-e-; 10, Gilly; 10, Deel, 15, Carr. E o 2º páreo: 4, Elkind; 20, Barbour; 4, Carr; 20, Hunter; 10, Shea; forfait nº 6; 20, Gedney e com o peso de 116; forfait nº 8; 3 a 5 Lyon; 4, Martinson. E o 3? páreo: O favorito é 10, com Huron; dois forfaits; 20, Denham; 20, J. Briggs — quer dizer Johnny Briggs; 20, Hunter; 4, Gedney; paga o mesmo, Deel; 20, Landseer. E agora o 4? páreo, o Prêmio Rivermont. O favorito é o 8, com Shelton; 15, Denham; 10, Redman; 6, Baroco; 20, Gates; 20, Hunter; 6, Cressy; 5, Barbour; 12, J. Briggs — isto é, Johnny Briggs; 5, Elkind; 4, Martinson; forfait ri? 12; 20, Gilly; 2/12, Birken. E o 5?: 6, Littman; 12, Huron"...

A voz incisiva continuou com os palpites, os jóqueis os forfaits das outras corridas em Rivermont. À medida que iam sendo anunciados, Garden preenchia suas fichas rapidamente. Quando a última linha do páreo final de Rivermont foi preenchida, houve uma ligeira pausa. Depois continuaram as informações: "Agora vamos para o Texas. No Texas, tempo encoberto e pista pesada. Encoberto e pesada. No 1?: 4, Burden; 10, Lansing..."

Garden inclinou-se e desligou a chave do amplificador e fez-se um silêncio na sala.

— Quem está ligando para o Texas? — observou negligentemente, erguendo-se da cadeira e espreguiçando-se. — De qualquer forma, aqui ninguém joga naqueles pangarés. Mais tarde pegarei as informações de Cold Springs. Se eu não o fizer, certamente alguém virá perguntar, só para contrariar. — Virou-se para o primo: — Por que você não leva Vance e o Sr. Van Dine para cima e mostra-lhes o jardim? Eles podem estar interessados em seu retiro solitário no telhado, onde você vai ouvir o seu destino — acrescentou com um certo sarcasmo bem humorado. — Sneed, provavelmente, já arrumou tudo para você.

Swift ergueu-se com vivacidade.

— Tremendamente honrado com a oportunidade — retrucou asperamente. — Sua atitude hoje me aborrece bastante, Floyd. — E dirigiu-se através do vestíbulo e escada acima até o terraço, seguido por mim e Vance. Hammle, que se instalara em uma poltrona, armado de um uísque com soda, ficou para trás com o nosso anfitrião.

A escada era estreita e semicircular e começava no vestíbulo perto da porta de entrada. Olhando lá de cima em direção à sala de estar, notei que parte alguma da sala podia ser vista da extremidade superior da escada. Naquela ocasião fiz a observação, descuidadamente, mas agora eu o menciono aqui porque o fato representou um papel definitivo nos trágicos acontecimentos que viriam a seguir.

 

 

 

 

 

 

 

No topo da estreita escada, viramos à esquerda em um corredor, com pouco mais de um metro de largura, em cuja extremidade havia uma porta que conduzia a uma larga sala: a única do terraço.

O espaçoso e bem decorado estúdio, com amplas janelas nos quatro lados, era usado pelo professor Garden, segundo informação de Swift, como biblioteca e laboratório experimental.

Próximo à porta desta sala, na parede esquerda do corredor, havia uma outra, que, eu soube mais tarde, dava para um pequeno depósito, construído pelo professor para guardar seus documentos.

Na metade do corredor, à direita, havia uma outra porta, que dava para o terraço. Esta porta fora aberta de par em par porque fazia um tempo ótimo. Swift precedeu-nos em um dos mais lindos jardins de cobertura que vi em toda a minha vida. Cobria uma área de cerca de treze metros quadrados e estava situado exatamente em cima da sala de estar, da saleta e do hall de entrada. No centro, havia um lindo lago de pedras. Ao longo da baixa amurada de tijolos havia fileiras de alfenas e sempre-vivas. Do outro lado, havia canteiros de flores, onde os crocus, tulipas e jacintos já estavam floridos, numa explosão de cores. A parte do jardim mais próxima ao estúdio era coberta por alegre toldo fixo, e diversos e confortáveis móveis de jardim estavam colocados à sua sombra.

Passeamos tranqüilamente pelo jardim, fumando. Vance parecia profundamente interessado em duas ou três sempre-vivas de uma espécie rara, e conversava despreocupadamente sobre o assunto. Finalmente virou-se, caminhou em direção ao toldo e sentou-se em uma cadeira voltada para o rio. Swift e eu fomos ao seu encontro. A conversa era desconexa. Swift era um homem difícil de se conversar e, à medida que o tempo passava, ele se tornava cada vez mais distrait. Depois de algum tempo, levantou-se nervosamente e caminhou até à outra extremidade do jardim. Apoiando os cotovelos na amurada, ele olhou durante diversos minutos para o Riverside Park lá embaixo; depois, com um movimento brusco e repentino, quase como se tivesse sido atingido por alguma coisa, endireitou-se e voltou até nós. Deu uma olhadela preocupada para o relógio.

— Acho melhor irmos descendo agora — disse. — Dentro em pouco estarão saindo para o primeiro páreo.

Vance deu um olhar de aprovação e levantou-se.

— Que me diz do seu sanctum sanctorum mencionado por seu primo?

— Ora, isto... — Swift forçou um sorriso embaraçado. — É a poltrona vermelha lá de encontro à parede, próximo à mesinha... Mas eu não sei por que Floyd precisa andar falando por aí. O pessoal lá embaixo sempre me goza quando perco, e isso me irrita. Prefiro mil vezes estar sozinho quando chegam os resultados.

— É perfeitamente compreensível — concordou Vance com simpatia.

— Vocês estão vendo — prosseguiu Woody quase pateticamente — para ser franco eu jogo nos cavalos pelo dinheiro; os outros lá embaixo podem dar-se ao luxo de sofrer grandes perdas, mas acontece que eu estou precisando do dinheiro agora. Evidentemente, sei que essa é uma maneira cretina de tentar ganhar dinheiro. Mas, ou você ganha tudo de uma vez, ou perde tudo de uma vez. Então, qual é a diferença?

Vance dirigiu-se à pequena mesa onde estava um telefone que, em lugar do receptor habitual, tinha aquilo que é chamado de fone de cabeça, isto é, um fone em forma de disco plano preso a uma haste curva de metal que passava sobre a cabeça.

— Seu retiro está bem equipado — comentou Vance.

— Ah, está! Isto é um extensão do telefone informativo lá de baixo; e há também uma tomada para rádio e outra para uma chapa elétrica. E refletores. — Ele mostrou-os na parede do estúdio. — Todo o conforto de um hotel, acrescentou com sarcasmo.

Tirou o fone do gancho e, ajustando a haste metálica na cabeça, ficou um instante escutando.

— Nada de novo em Rivermont, por enquanto — murmurou. Removeu o fone com uma impaciência nervosa e atirou-o sobre a mesa. — De qualquer forma, é melhor descermos. — E caminhou em direção à porta que nos levara ao jardim.

Quando chegamos ao salão, encontramos dois recém-chegados: um homem e uma mulher, sentados a uma das mesas, examinando as fichas e fazendo anotações. Vance e eu fomos apresentados sem maiores cerimônias.

O homem era Cecil Kroon, aparentando trinta e cinco anos, imaculadamente vestido e lustroso, com feições suaves, regulares e um bigode muito fino e encerado. Seu cabelo era louro e os olhos de um frio azul de aço. A mulher, cujo nome era Madge Weatherby, tinha aproximadamente a mesma idade de Kroon, alta e esbelta, com uma marcante tendência teatral, tanto em sua maneira de vestir-se como em sua maquilagem. As faces estavam fortemente coloridas e os lábios, escarlate. As pálpebras, carregadas de sombra verde; as sobrancelhas haviam sido inteiramente depiladas e substituídas por um fino traço de lápis. Embora um tanto espetacular, não era desprovida de atrativos.

Hammler mudou-se de sua poltrona para uma das mesas de jogo na extremidade da sala, próximo à entrada, e estava ocupado em conferir os forfaits da tarde.

Swift foi para a mesma mesa e, fazendo um sinal à Hammle, sentou-se à sua frente. Tirou os óculos, limpou-os cuidadosamente, pegou uma das fichas e olhou os páreos anotados.

Garden ergueu os olhos em nossa direção, segurando junto ao ouvido o receptor do telefone preto.

— Escolha uma mesa, Vance, e veja se seus cálculos estão perfeitos. Dentro de dez minutos eles se estarão encaminhando para o alinhamento do primeiro páreo e daqui a pouco vamos receber novas, informações.

Vance dirigiu-se à mesa mais próxima de Garden e, sentando-se, tirou do bolso uma folha de papel onde estavam as anotações feitas na véspera, com as fichas das atuações anteriores dos cavalos inscritos naquele dia. Ajustou o monóculo, acendeu um cigarro e pareceu absorver-se naquilo. Na realidade, entretanto, ele estava observando com mais atenção os ocupantes da sala que os dados turfísticos.

— Agora falta pouco — anunciou Garden, ainda com o receptor no ouvido. — Lex está repetindo as informações de Cold Springs e Texas para alguns retardatários.

Kroon dirigiu-se ao pequeno bar e preparou duas bebidas que levou de volta à sua mesa, colocando uma delas diante da Srta. Weatherby.

— Diga-me Floyd — gritou para Garden — Zalia vem hoje?

— É claro — respondeu Garden. — Hoje de manhã quando telefonou, ela estava toda agitada. Cheia de palpites. Estourando com barbadas diretamente de treinadores, jóqueis e cavalariços e toda espécie de informações malucas.

— Então, que é que tem isso? — fez-se ouvir uma voz feminina lá embaixo no vestíbulo; e logo depois uma linda e elegante garota aparecia sob o arco, as mãos apoiadas em suas cadeiras musculosas de rapaz. — Cheguei à conclusão de que posso descobrir sozinha os meus ganhadores, então por que deixar que outras pessoas o façam por mim? Alô, pessoal! — exclamou num cumprimento geral. — Mas, Floyd, meu velho, tenho realmente uma barbada para o primeiro de Rivermont hoje. E o palpite não vem de um cavalariço; foi um dos garçons, um amigo de papai. E eu vou cobrir aquele pangaré.

— Está bem, Cara-de-Anjo — riu Garden. — Aproxime-se.

Ela deu um passo à frente mas hesitou momentaneamente ao deparar com Vance e comigo.

— Ah, por falar nisso, Zalia, — Garden largou o receptor e levantou-se — deixe-me apresentar-lhe o Sr. Vance e o Sr. Van Dine... Srta. Graem.

A moça deu um passo atrás, titubeando dramaticamente e ergueu os braços acima da cabeça em fingido pânico: — Que os céus me protejam! — exclamou. — Philo Vance, o detetive! Que é isso, uma batida?

Vance curvou-se delicadamente: — Não tenha medo, Srta. Graem — disse ele sorrindo. — Sou apenas mais um dos rapazes do crime. E, como pode ver, estou arrastando comigo o Sr. Van Dine.

A garota atirou-me um olhar curioso: — Mas isto não é justo para com o Sr. Van Dine. Que seria do senhor sem ele?

— Reconheço que eu seria anônimo e ignorado — retrucou Vance. — Mas seria talvez um homem mais feliz: um espírito obscuro, porém livre. E nunca teria sido a inconsciente inspiração da obra poética de Ogden Nash*.

 

 

*Vance referia-se ao famoso refrão de Nash: "Philo Vance merece um chute na pança."

 

 


Zalia Graem sorriu com prazer e depois fez um ar de enfado.

— Foi horrível da parte de Nash fazer aquele jingle — disse. — Pessoalmente, acho o senhor adorável — acrescentou dirigindo-se à mesa desocupada.

Nesse instante, Garden, que estava novamente à escuta, anunciou: — Aí vem as novas informações. Tomem nota, se estiverem interessados.

E ele empurrou para a frente a chave de controle e logo depois voltamos a ouvir a mesma voz no amplificador.

"Saindo para Rivermont e aqui estão as novas informações: 20, 6, 4, 8, para 5, dois forfaits. Quem pediu Texas?...

Garden desligou o amplificador.

— Muito bem pessoal — disse puxando o livro-registro para mais perto. — Que é que vocês estão pensando? Sejam mais rápidos. Faltam só dois minutos para a largada. Alguém vai? Que tal a sua barbada, Zalia?

— Ah, estou nela é claro — respondeu seriamente a Srta. Graem. — E ele está pagando 10 por 1. Eu quero cinqüenta em Topspede para vencedor e... setenta e cinco no placê.

Garden escreveu rapidamente no registro.

— Então você não confia 100% em sua barbada? — gozou ele. — Garantindo-se como sempre... Quem mais?

— Estou apostando em Sara Bellum — falou Hammle — vinte e cinco firmes.

— E eu quero Moondash: vinte em Moondash placê. — Essa aposta foi feita pela Srta. Weatherby.

— Quem mais? É agora ou nunca — disse Garden.

— Põe para mim Miss Construe... cinqüenta para vencedor — disse Kroon.

— E você, Vance? — perguntou Garden.

— Tenho Fisticuffs e Black Revel em condições iguais, por isso vou ficar com o que tem melhores prognósticos, mas não para vencedor. Ponha cem em Black Revel no placê.

Garden voltou-se para o primo: — E você, Woody?

Swift sacudiu a cabeça: — Não jogo neste páreo.

— Guardando tudo para Equanimity, hem? OK. Eu também fico de fora neste páreo — Garden pegou o telefone cinza e discou um número. Alô, Hannix*. Fala Garden... Tudo ótimo. Aqui vai o pedido para o primeiro em Rivermont: Topspede, cinqüenta — zero — setenta e cinco. Sara Bellum, vinte e cinco. Moondash, vinte, placê. Miss Construe, cinqüenta no vencedor. Black Revel, cem no placê. Certo.

 

 

*Hannix era o bookmaker de Floyd Garden.

 

 


Pendurou o fone e desligou o alto-falante. Houve um silêncio e depois: "Eu os tenho no starter, em Rivermont. No starter, Rivermont. Topspede está inquieto. Mudaram-no de lugar... E lá vão eles! Largada em Rivermont às 2 e 32 e meio minuto... Na curva Topspede com um corpo; Sara Bellum, uma cabeça; e Miss Construe... Na metade: Sara Bellum meio corpo; Black Revel, um corpo; e Topspede... Na reta final: Black Revel, um corpo, Fisticuffs, uma cabeça e avançando, e Sara Bellum... O ganhador de Rivermont: Fisticuffs. O vencedor é Fisticuffs, Black Revel é o segundo. Sara Bellum em 3º. Os números são 4, 7 e 3. O vencedor fechou a oito por cinco. Aguardem a confirmação e o resultado do totalizador."


— Bem, bem, bem — gritou Garden. — Foi uma grande corrida para Hannix, com relação a essa turma aqui. Eles entraram bem, como uns anjinhos. Até mesmo os nossos dois ganhadores aqui não agarraram grande coisa. Pop Hammle fez bonito, mas vai ter que deduzir cinqüenta dólares. E Vance provavelmente pegou o mesmo dinheiro no placê de Black Revel... E a sua barbada, Zalia? Minha ingênua criança, você nunca vai aprender?

— Bem, de qualquer forma — protestou a moça, bem-humoradamente — Topspede não estava um corpo à frente no quarto de milha? E ainda estava bem colocado no meio da corrida. Eu estava bem informada.

— Claro — retorquiu Garden. — Topspede fez um nobre esforço mas eu suspeito que ele seja irmão de Morestone e namorado de Nevade Queen*. Provavelmente fará sucesso nos 600 metros em Nursery Course.

 

 

*David Alexander, o cronista de turfe, recentemente escreveu umas linhas sobre esses dois cavalos: "Morestone" disse o Sr. Alexander "pode correr muito rápido até 1.200 metros. Mas além dos 1.200, ele chama a ambulância". Morestone podia largar em tempo recorde. Nada de semelhante havia sido visto desde que tentaram que Nevada Queen fizesse mais de 1/2 milha há alguns anos atrás. Havia dois mistérios com Morestone. Um deles era pomo podia correr tão rápido e o outro como se cansava também tão depressa.

 

 


— E daí? — retrucou Zalia Graem. — Eu ainda sou jovem e cheia de saúde...

A voz no amplificador voltou novamente: "Tudo certo em Rivermont. Partida às 2:32 e 1/2. Vencedor: nº 4, Fisticuffs; em 2º, nº 7, Black Revel; em 3º nº 3, Sara Bellum. O tempo da corrida foi de 1 minuto e 24 segundos... E aqui estão os rateios: Fisticuffs pagou $ 5.60 — 13.70 — $2.90. Black Revel pagou $3.90 e $3.20. Sara Bellum pagou $5.80... Partida para o 2° páreo às 3:05. A ordem: 3, 15, 5, 20, 12, forfait, 15, forfait, 4 para 5, 6... Estão saindo em Cold Springs. E aqui está uma nova informação..."


Garden cortou novamente o amplificador.

— Bem, Vance, — disse — você é o único ganhador no primeiro páreo. Você fez 95 dólares, tudo lançado no livro. E você, Pop, perdeu 2 dólares e meio*.

 

 

* Os rateios são calculados na base de uma aposta de 2 dólares feita na pista, e é paga ali. Portanto, fora da pista, onde o dinheiro apostado não foi realmente entregue, os $ 2 são subtraídos do rateio e o que sobra é dividido por 2 para garantir exatamente o que o cavalo pagou com $1. Aqui no caso, o cavalo de Vance pagou 3.90 para entrar em 2º ou placê. $ 2 subtraídos daí, sobram 1.90, e isto dividido por 2 dá 95 centavos, isto é, na colocação em que Vance apostou nele. Black Revel pagou 95 centavos o dólar. Daí, Vance que apostara 100 dólares no placê, ganhou 95. No caso de Hammle, o cavalo pagou 5.80 em 3° lugar, de modo que os lucros foram 1.90 para o dólar naquela posição. E desde que ele apostou 25 no cavalo que chegou em 3º, ganhou 47.50. Mas ainda precisa deduzir os 25 que jogou no vencedor e os 25 que jogou no 2º. Tendo perdido nos dois casos, isso o deixou com menos 2.50.

 

 


Já que nenhum dos presentes estava interessado nas corridas de Texas ou Cold Springs, havia aproximadamente um intervalo de meia hora entre os páreos. Durante esses intervalos os membros do grupo iam de uma mesa para outra, conversando, discutindo sobre cavalos e deliciando-se na troca de palpites; havia também um considerável movimento de idas e vindas ao bar. De vez em quando Garden pegava o receptor para pôr-se a par do que estava ocorrendo.

Vance circulava entre os grupos, disfarçadamente atento a tudo o que estava acontecendo. Eu podia ver muito bem que ele estava muito menos interessado nas corridas que nas relações humanas e psicológicas dos presentes.

Apesar da animação superficial daquela reunião, eu podia sentir uma sensação de extrema tensão e expectativa; mentalmente, anotei as diversas pequenas ocorrências durante a 1ª hora. Notei, por exemplo, que de vez em quando Zalia Graem reunia-se a Cecil Kroon e Madge Weatherby e entabulava com eles uma conversa séria e à meia voz. Num determinado momento os três dirigiram-se até o estreito balcão que acompanhava o lado nordeste da sala de estar.

Swift alternava uma alegria histérica com depressão e fazia freqüentes viagens até o bar. Sua atitude inconsistente impressionou-me de maneira desagradável; diversas vezes notei que Garden o observava com um interesse agudo.

Um incidente relacionado com Swift impressionou-me grandemente. Eu percebera que, durante todo o tempo em que estavam no salão, Zalia Graem e ele não haviam trocado uma palavra. Uma vez, roçaram um no outro próximo à mesa de Garden e, como que instintivamente, afastaram-se bruscamente. Garden havia meneado a cabeça com irritação e disse: — Vocês dois ainda não se estão falando? Ou isso vai ficar assim para sempre? Por que não se beijam e fazem as pazes deixando que a alegria da reunião seja total?

A Srta. Graem fez como se nada tivesse acontecido e Swift simplesmente deu uma olhadela rápida e indignada para o primo; Garden então sorriu amargamente, dando de ombros.

Hammle manteve sua atitude complacente e jovial durante toda a tarde; porém até ele, por vezes, parecia pouco à vontade, e seu olhar vagava repetidamente de Kroon para a Srta. Weatherby. Uma vez, quando Zalia Graem estava na mesa deles, Hammle para lá se dirigiu e, confiadamente, deu um tapa nas costas de Kroon. A conversa cessou de repente e Hammle preencheu o silêncio repentino com uma anedota sem graça sobre a corrida de Salvator contra o relógio em Monmouth Park, em 1890.

Garden não abandonou seu lugar junto dos telefones e, a não ser por um eventual e furtivo exame de seu primo, pouca atenção deu a seus convidados...

O 2º páreo de Rivermont Park, cuja partida foi dada oito minutos após as 3 horas, trouxe para o grupo resultados melhores que o anterior. Apenas Kroon perdeu. Já a terceira, foi um desastre, pois a maioria havia jogado no favorito Invulnerable, no vencedor; e Invulnerable, embora liderando na reta final, foi ultrapassado e só pegou um terceiro lugar. O vencedor, um novato de nome Ogowan, pagou 86,50. Felizmente nenhum dos presentes havia jogado alto neste páreo. Swift, casualmente, não fizera apostas em qualquer dos três primeiros páreos.

O páreo seguinte, o quarto — cujo alinhamento foi anunciado para as 4:10 — era o Prêmio Rivermont; e mal havia Garden cortado o som do amplificador após o 3º páreo, ficou evidenciando que a atmosfera estava-se eletrizando.

 

 

 

 

IV

 

A Primeira Tragédia

 

 


(Sábado, 14 de abril — 15:45 horas)

 

 

— Está chegando o grande momento! — e embora Garden falasse com uma alegria pomposa, eu pude discernir alguns sinais de tensão em sua atitude. — O telefone de Hannix vai estar um bocado ocupado durante os últimos dez minutos desse importante intervalo e eu aconselho vocês todos a estarem com as apostas prontas antes que seja dado o alinhamento. De qualquer forma não haverá mudanças substanciais, portanto peço aos amigos que se apressem.

Houve um instante de silêncio, que Swift interrompeu: — Pegue os últimos forfaits, Floyd. Ainda não recebemos nenhuma informação desde a primeira, e pode ter havido alguma alteração ou um forfait de última hora.

— Tudo o que você quiser, meu caro primo — concordou Garden com um tom cínico embora perturbado, enquanto abaixava a chave para desligar o amplificador e pegava o telefone preto. Aguardou uma pausa nas informações de Texas e Cold Springs e então falou: — Alô, Lex. Dê os forfaits do Grande Prêmio de Rivermont.

No amplificador veio a voz, já agora familiar: "Acabei de dar a última informação. Onde andou você? Está bem, vá lá, mas vê se ouve desta vez. 6, 12, 12, 5, 20, 20,10, 6, 10, 6, 4, forfait, 20, 2. Largada: 4:10."

Garden desligou o amplificador e olhou para a nova fileira de algarismos que havia apressadamente rabiscado ao lado dos primeiros palpites.

— Não faz muita diferença dos de hoje pela manhã, — comentou. — Heat Lightning, menos dois; Train Time, menos 3; Azure Star, mais dois; Roving Flirt, menos um; Grand Score subiu de 6 para 10: que farra se ele entrar! Risky Lad, mais um e isto é bom para mim. Head Start, menos dois; Sarah Dee, mais um; o resto não mudou. Exceto Equanimity. — E deu uma olhadela para o primo. — Equanimity passou de 2 e meio para dois. E eu duvido que pague tudo isso.

Garden ergueu-se para preparar um highball* que levou para a mesa. Depois de tê-lo tomado, girou na cadeira: * Coquetel. (N. do T.)

— Bem, nenhum dos grandes cérebros presentes se decidiu até agora? — ele estava ficando impaciente.

Kroon levantou-se, terminou a bebida que estava sobre a mesa à sua frente, e enxugando a boca com um muito bem dobrado lenço que tirou do bolso superior do paletó, falou: — Já me decidi desde ontem. Anote-me no seu fatídico livrinho com cem em Hyjinsk para vencedor e duzentos no placê. E pode acrescentar 200 em Head Start, no placê. Tudo somado, dá meio milhar. Esta é a minha contribuição para os festejos do dia.

— Head Start porta-se mal no starter — aconselhou Garden enquanto lançava as apostas no livro.

— Ah, está bem — suspirou Kroon. — Talvez hoje ele se porte como um menino bem educado e corte a linha de chegada. — E dirigiu-se para o hall.

— Não nos está abandonando, Cecil, ou está? — gritou Garden para ele.

— Lamento tremendamente — respondeu Kroon olhando para trás. — Eu adoraria ficar para a corrida, mas uma reunião legal em casa de uma tia solteirona está marcada para as 4:30 e eu tenho que estar lá. Papéis para assinar e toda essa chateação. Vou tentar voltar, caso não precise ler todos os malditos documentos — acenou com a mão e dizendo "Ciao" continuou rumo à saída.

Madge Weatherby imediatamente pegou suas fichas e mudou-se para a mesa de Zalia Graem, onde começaram a cochichar.

O olhar inquisidor de Garden percorreu todos os componentes do grupo.

— Esta é a única aposta que eu vou dar à Hannix? — perguntou com impaciência. — Estou avisando a vocês para não esperarem demais.

— Ponha aí o meu nome em Train Time — tonitroou Hammle pesadamente. — Sempre gostei desse baio. Ele é grande na reta final, mas não creio que ganhe hoje. Por isso, quero só placê, cem.

— Já está lançado — respondeu Garden com um movimento de cabeça. — Quem é o próximo?

Nesse exato momento, uma jovem de excepcional encanto mostrou-se na porta, olhando hesitante para Garden. Usava um uniforme de enfermeira, de um branco imaculado, meias e sapatos brancos; na cabeça uma touca branca engomada, que se equilibrava num ângulo absurdo. Não devia ter mais de trinta anos, porém havia um certo ar de maturidade em seus tranqüilos olhos castanhos e uma evidência de grande capacidade em sua expressão reservada e no contorno firme do queixo. Seu rosto estava sem maquilagem e o cabelo castanho claro, repartido ao meio penteado com simplicidade cobrindo-lhe as orelhas. Ela fazia um contraste impressionante com as duas outras mulheres presentes.

— Alô, Srta. Beeton — saudou-a Garden com satisfação. — Pensei que estivesse de folga esta tarde, já que a Mama está tão bem que saiu para fazer compras... Em que lhe posso ser útil? Gostaria de se reunir a esta turma de loucos e ouvir as corridas?

— Ah, não, tenho muito o que fazer — e moveu levemente a cabeça indicando os fundos da casa. — Mas se não se importa, Sr. Garden — acrescentou com timidez — eu gostaria de apostar dois dólares em Azure Star, no vencedor, em segundo e em terceiro.

Todos sorriram disfarçadamente e Garden riu alto.

— Pelo amor de Deus, Srta. Beeton, — reprovou ele — quem lhe pôs na cabeça este palpite?

— Na verdade, ninguém — respondeu ela com um sorriso de desafio. — Mas hoje pela manhã estive lendo o noticiário das corridas e achei que Azure Star era um nome lindo. Gostei dele.

— Bem, essa é uma das maneiras de se escolher — sorriu Garden com indulgência. — Provavelmente tão boa quanto qualquer outra. Mas acredito que seria muito melhor que esquecesse o lindo nome. Este cavalo não tem a menor chance. E além disso, o meu bookmaker não aceita apostas abaixo de cinco dólares.

Vance, que estivera observando a moça com mais interesse do que normalmente mostrava por qualquer mulher, interveio: — Um momento, Garden — falou abruptamente. — Acho que a escolha da Srta. Beeton é excelente, não importa como tenha chegado a ela. Srta. Beeton, eu teria muito prazer que sua aposta em Azure Star fosse feita. — Virou-se novamente para Garden. — Seu bookmaker aceitaria duzentos dólares em Azure Star?

— Ele? Ele agarraria com as duas mãos — respondeu Garden. — Mas, por quê?

— Então está decidido — disse rapidamente Vance. — Esta é a minha aposta. E dois dólares em cada colocação pertence à Srta. Beeton.

— Para mim está ótimo, Vance — e Garden lançou a aposta no livro.

Notei que, durante os breves instantes em que Vance estivera falando com a enfermeira e fazendo sua aposta em Azure Star, Swift olhava fixamente para ele através das pálpebras semicerradas. Somente muito mais tarde é que eu entendi o significado daquele olhar.

A enfermeira deu uma rápida olhadela em Swift e depois falou com uma simplicidade sincera: — É muito gentil, Sr. Vance. — Depois acrescentou: — Não vou fingir que não sei quem é o senhor, mesmo que o Sr. Garden não lhe tivesse dito o nome. — E ficou parada fitando Vance com uma calma admiração; depois deu meia-volta e desapareceu no vestíbulo.

— Oh, meu Deus! — exclamou Zalia Graem com um exagerado arrebatamento. — O nascer de um romance! Dois corações em um só cavalo. Como é sensacionalmente emocionante!

— Deixe para lá essa zombaria ciumenta. Escolha o seu cavalo e diga quanto — reprovou Garden com impaciência.

— Está bem, posso ser prática já que me intimam — replicou a moça. — Quero Roving Flirt para vencedor, digamos, duzentos. E lá se vai meu vestido novo! E como posso também perder meu casaco esporte, ponha mais duzentos no placê. E agora, acho que vou precisar de um pouco de apoio líquido. — E caminhou para o bar.

— E você, Madge — perguntou Garden. — Você entra neste páreo?

— Sim, eu estou nessa — respondeu ela com afetação. — Quero cinqüenta em Sublimate.

— Ninguém mais? — perguntou Garden enquanto fazia a anotação. — Quanto a mim, caso possa interessar a alguém, estou pendurando toda a esperança de minha juventude em Risky Lad. Cem, duzentos e trezentos. — Olhou apreensivamente para seu primo do outro lado da sala. — E você, Woody? Swift estava curvado em sua cadeira, estudando a ficha que tinha diante dos olhos e fumando intensamente.

— Pode dar a Hannix as apostas que você recebeu — respondeu sem levantar a cabeça. — Não se preocupe comigo, não vou perder a corrida. São apenas 4 horas.

Garden olhou-o um momento e franziu a testa.

— Por que você não desabafa logo? — como não obtivesse resposta, tirou o telefone do gancho e discou um número. Logo em seguida começou a transmitir ao bookmaker as diversas apostas lançadas em seu livro. Swift ergueu-se e caminhou para o bar com seu sortimento de garrafas. Encheu de Bourbon um copo de uísque e virou-o de uma vez. Depois, caminhou lentamente até a mesa onde estava o primo. Garden acabava de telefonar para Hannix.

— Vou dizer-lhe agora a minha aposta, Floyd — disse Swift roucamente. — Comprimiu a mesa com um dedo, como para dar mais ênfase. — Quero dez mil dólares em Equanimity para vencedor.

Os olhos de Garden moveram-se ansiosamente para o outro.

— Eu estava receando isto, Woody — disse com um tom preocupado. — Mas se eu fosse você...

— Não estou pedindo sua opinião — interrompeu Swift com uma voz fria e firme. — Estou-lhe pedindo para fazer o jogo.

Garden não tirava os olhos do rosto do outro. Disse apenas: — Acho que você é um perfeito idiota.

— A opinião que você tem a meu respeito também não me interessa. — As pálpebras de Swift fecharam-se ameaçadoramente e um olhar duro velou sua face. — A única coisa que me interessa agora é saber se você vai ou não fazer essa aposta. Se não vai, diga logo, e eu o farei pessoalmente.

Garden capitulou.

— É o seu enterro — disse e dando às costas ao primo pegou novamente o telefone cinza e discou com determinação.

Swift voltou ao bar e serviu-se novamente de uma generosa dose de uísque.

— Alô, Hannix — disse Garden no telefone. — Aqui estou de volta, com mais uma aposta. Segure-se na cadeira para não cair. Quero dez pacotes com Equanimity na ponta... Sim, é isso mesmo, dez pacotes dos grandes. Você pode fazer o jogo? As chances provavelmente serão de 2 para 1. Certo.

Ao largar o telefone, Swift vinha saindo do bar, rumo ao hall.

— E agora, suponho eu — Garden observou sem qualquer indício de zombaria — você vai lá para cima para aguardar o resultado sozinho.

— Se isso não lhe parte o coração, a resposta é sim. — Havia um tom de ressentimento nas palavras de Swift. — E apreciaria não ser incomodado. — Seus olhos percorreram um tanto ameaçadoramente as pessoas presentes. Lentamente, virou-se e desapareceu sob o arco da porta.

Garden, parecendo profundamente emocionado, conservava os olhos fitos no vulto que ia desaparecendo. Depois, como movido por um impulso repentino, ergueu-se de um salto e chamou: — Só um instante, Woody. Tenho uma palavra a lhe dizer. — E seguiu-lhe os passos.

Eu vi Garden colocar o braço em torno dos ombros de Swift, enquanto os dois desapareciam no vestíbulo.

Garden esteve ausente cerca de cinco minutos e durante este tempo muito pouco foi dito, a não ser algumas observações de constrangimento. Uma espécie de tensão parecia ter invadido cada um dos presentes: havia uma sensação geral de que alguma tragédia inesperada estava iminente ou, pelo menos, que algum sensacional fator humano estava em jogo. Todos nós sabíamos que Swift não podia agüentar aquela aposta extravagante que, na realidade, provavelmente representava tudo o que ele possuía. E nós sabíamos também, ou suspeitávamos, que um acontecimento grave dependeria do resultado de sua aposta. Já não havia mais alegria, nem sombra da despreocupada atmosfera anterior. O ambiente tornou-se carregado.

Quando Garden retornou à sala seu rosto mostrava uma certa palidez e seu olhar estava abatido. Quando chegou à mesa, sacudiu a cabeça desanimado.

— Tentei argumentar com ele — comentou Vance — mas foi inútil; ele nada quis ouvir, ficou até zangado... Pobre diabo! Se Equanimity não vencer, estará liquidado. — Olhou diretamente para Vance. — Fico pensando se fiz bem em transmitir aquela aposta. Mas, afinal de contas, ele é maior de idade.

Vance concordou.

— Sim, exatamente como você diz — murmurou secamente. — Realmente, você não tinha alternativa.

Garden inspirou profundamente e, sentando-se à mesa, tomou o telefone preto e ficou à escuta. Uma campainha soou em algum lugar do apartamento e alguns minutos mais tarde surgiu Sneed no hall.

— Perdoe-me, senhor, — disse ele a Garden — porém a Srta. Graem está sendo chamada no outro telefone.

Zalia Graem levantou-se rapidamente, ergueu a mão até a testa em sinal de desalento.

— Quem nesse mundo ou no outro poderá ser? — seu rosto abriu-se. — Ah, já sei — depois caminhou em direção a Sneed. — Atenderei no telefone lá da saleta. — E saiu da sala apressadamente.

Garden não prestara muita atenção àquela interrupção: ele estava quase indiferente a tudo que não fosse o telefone negro, aguardando o momento de ligar o amplificador. Alguns momentos mais tarde, girou na cadeira e anunciou: — Estão preparando-se em Rivermont. Façam suas orações, crianças. Você aí, Zalia, diga ao fascinante cavalheiro no telefone para ligar mais tarde. O grande páreo vai começar.

Não houve resposta, embora a saleta estivesse apenas a alguns passos do vestíbulo.

Vance levantou-se e, cruzando a sala, olhou ao longo do corredor, mas regressou imediatamente à sua mesa.

— Pensei que pudesse avisar à moça — murmurou — mas a porta da saleta está fechada.

— Zalia provavelmente vai voltar, ela sabe que horas são — comentou Garden tranqüilamente, inclinando-se para ligar o amplificador.

— Floyd, querido, — falou a Srta. Weatherby — por que não ouvimos este páreo no rádio? Está sendo transmitido pela WXZ. Não acha que assim seria mais emocionante? Gil McElrey é o locutor.

— Magnífica sugestão — secundou Hammle, ligando o rádio que estava bem às suas costas.

— Woody poderá ouvir lá de cima? — perguntou Madge Weatherby a Garden.

— Claro — respondeu ele. — Esta chave de amplificador não interfere com nenhuma das extensões telefônicas.

Quando as válvulas do rádio se aqueceram, a bem conhecida voz de McElrey cresceu de volume no amplificador: "...e Equanimity está dando trabalho na largada. Atrapalhando Head Start... Agora estão ambos de volta aos boxes; está parecendo que vamos ter uma... Pronto! Largaram! E foi uma boa partida. Hyjinx tomou a dianteira; Azure Star vem em seguida; Heat Lightning logo atrás. Os outros estão embolados, ainda não os posso distinguir. Esperem um segundo. Agora estão passando aqui à nossa frente: estamos no alto da tribuna principal, olhando diretamente para eles — e lá vai Hyjinx à frente, com dois corpos atrás dele vem Train Time; e... sim, é Sublimate, com uma cabeça ou um focinho ou um pescoço, não importa, é Sublimate, de qualquer forma. E lá vem Risky Lad avançando lentamente sobre Sublimate... Agora estão fazendo a primeira curva com Hyjinx ainda na dianteira. As posições relativas aos outros não foram mudadas... Estão agora na reta oposta continua ainda à frente com meio corpo. Train Time avançou e mantém seu segundo lugar com corpo e meio à frente de Roving Flirt, que está em 39 lugar. Azure Star está um corpo atrás de Roving Flirt. Equanimity está embolado mas está vindo por fora agora; está muito atrás mas vem ganhando terreno; e logo atrás dele vem Grand Score, jazendo um esforço desesperado para sair do bolo"...


Nesse ponto da irradiação Zalia Graem apareceu repentinamente na porta e ficou parada com os olhos fixos no rádio, as mãos enfiadas no bolso de seu casaco. Balançava um pouco o corpo para frente e para trás, a cabeça levemente inclinada para um lado, inteiramente absorta na descrição do páreo.


"... Estão jazendo a grande curva. Equanimity melhorou sua posição e está dando o seu famoso galope. Hyjinx recuou e Roving Flirt tomou a dianteira por um corpo, com Train Time em segundo, com um corpo, em frente de Azure Star que está correndo em terceiro e jazendo um grande esforço... E agora estão na reta final. Azure Star tomou a dianteira e está um corpo inteiro na liderança. Train Time está jazendo uma grande tentativa neste clássico e ainda está em segundo lugar, um corpo atrás de Azure Star. Roving Flirt está logo em seguida. Hyjinx caiu de posição e parece não mais ser um sério competidor. Equanimity vem jazendo força e está agora em sexto lugar. Não tem muito tempo, mas está fazendo uma linda corrida e ainda pode chegar às primeiras colocações. Grand Score está perdendo terreno pela lateral. Sublimate está bem à frente dos dois mas não está avançando. E creio que o resto está fora de competição... E agora chegam ao final. Os líderes estão alinhados, não haverá grandes mudanças. Esperem um instante. Lá vem eles... E... o vencedor é Azure Star com dois corpos. Em seguida Roving Flirt e um corpo atrás dele vem Train Time. Upper Shelf terminou em quarto... Um momento... Aqui está o resultado afixado. Sim, eu estava certo. É 3, 4 e 2. Azure Star venceu o grande Prêmio Rivermont. O segundo é Roving Flirt e o terceiro, é Train Time"...


Hammle deu uma volta em sua cadeira e desligou o rádio.

— Bem — disse, soltando um profundo suspiro — eu tinha uma parte de razão nessa história.

— Não foi uma corrida tão boa — observou a Srta. Graem com um muxoxo. Por mim nada perdi, nem ganhei. Mas, de qualquer forma, não vou precisar entrar para uma colônia de nudistas esta primavera. Agora vou terminar o meu telefonema. — E voltou para a saleta.

Garden pareceu pouco à vontade e, pela segunda vez naquela tarde, serviu-se de um highball.

— Equanimity nem sequer pagou o mesmo dinheiro — comentou como se estivesse falando sozinho. — Mas ainda não temos os resultados oficiais. Não deixem suas esperanças crescerem muito, e também não se desesperem. Os ganhadores serão confirmados dentro de alguns minutos e nunca se sabe o que pode acontecer. Vocês se lembram daquela corrida final em Saratoga, quando os três primeiros colocados foram desclassificados?*

 

 

*Garden referia-se ao páreo final do último dia de uma temporada recente em Saratoga, quando Anna V. L., Noble Spirit e Semaphore terminaram a corrida nessa mesma ordem, e foram todos desclassificados ; Anna V. L. por desviar-se completamente na partida, obrigando outros cavalos a fazerem o mesmo, Noble Spirit por desviar-se a altura do 8* mastro, e Semaphore por uma pretensa interferência com Anna V. L. A classificação oficial, após as desclassificações foi: Just Cap, em primeiro; Celiza, em segundo, e Bahadur em terceiro, os únicos que restaram naquela corrida.

 

 


Exatamente nesse instante, a Sra. Garden irrompeu na sala, ainda com as luvas, o chapéu e a estola de raposa, e dois pequenos pacotes sob o braço.

— Não me digam que estou atrasada! — desculpou-se excitadamente. — O trânsito estava intolerável: três quartos de hora da esquina da Rua 50 com a 5ª Avenida... Já acabou o grande páreo?

— Tudo acabado, exceto a confirmação, Mama — informou Garden.

— E que foi que eu fiz? — perguntou ela deixando-se cair pesadamente em uma cadeira.

— O de costume — sorriu Garden. — Grand Score! Seu nobre corcel não fez escore algum. Minhas condolências. Mas ainda não temos a confirmação.

— Ah, meu Deus! — suspirou a Sra. Garden com desânimo. — A única falta acusada em um páreo que eu jogo é contra o meu cavalo, se ele ganha; e é sempre anotada. Nada me pode salvar agora. E acabei de gastar uma fortuna numa toalha de renda de Bruxelas.

Garden ligou o amplificador. Houve alguns minutos de silêncio e em seguida:

"Resultados oficiais em Rivermont. Confirmação em Rivermont. Largada às 4:16. O vencedor é o nº 3, Azure Star. Número 4, Roving Flirt é o segundo colocado; e o nº 2, Train Time, é o terceiro. O tempo da corrida foi de dois minutos e dois décimos de segundo. Um novo recorde nessa pista. E os rateios: Azure Star pagou $ 26,80, $9.00 e $6.60. Roving Flirt $5.20 e $4.60. Train Time $8.40. Nova largada às 4:40"...


— Bem, aí está — disse Garden sombriamente, desligando a chave e fazendo rápidas anotações em seu registro. — Sneed, nosso admirável Crichton, ganhou seis dólares. O Sr. Kroon, que está ausente, perdeu quinhentos; e a Sra. Weatherby, aqui presente, perdeu cento e cinqüenta. Nosso velho caçador de raposas está ganhando duzentos e vinte dólares, com o que ele poderá oferecer-me um magnífico jantar amanhã. E você, Mama, perdeu seus duzentos dólares. Sinto muito. Eu mesmo fui aliviado em seiscentos mangos. Zalia, a tal que consegue sensacionais dicas do amigo de um amigo de um parente distante da esposa morganática de um velho corredor, ganhou cento e vinte dólares... o suficiente para comprar sapatos, um chapéu e uma bolsa para combinar com a sua toalete de verão. E o Sr. Vance, o eminente decifrador de crimes e potros, pode agora tirar umas férias de alto luxo. Ele é o feliz possuidor de três mil, seiscentos e quarenta dólares — dos quais trinta e seis dólares e quarenta centavos são para nossa querida enfermeira. E Woody, naturalmente... — Sua voz morreu.

— Que aconteceu a Wood? — perguntou a Sra. Garden, sentando-se rígida na cadeira.

— Lamento enormemente, Mama, — e o filho procurava as palavras — mas Woody não usou a cabeça. Tentei dissuadi-lo, mas não houve jeito...

— Bem, mas o que fez Woody? — insistiu a Sra. Garden. — Ele perdeu muito?

Garden hesitou e, antes que pudesse formular uma resposta, um som paralisante, como o de um tiro de pistola, rompeu o silêncio.

Vance foi o primeiro a ficar de pé. Seu rosto estava sombrio e ele moveu-se rapidamente em direção ao hall. Eu o segui e logo atrás veio Garden. Quando eu fiz a curva no corredor, vi os outros no salão erguerem-se e avançarem. Se o estampido não tivesse sido precedido por uma atmosfera tão eletrizante, eu duvido que tivesse causado qualquer perturbação; porém, naquelas circunstâncias, creio que cada um teve o mesmo pensamento quando se ouviu a detonação.

Quando nos apressávamos corredor afora, Zalia Graem abriu a porta da saleta.

— Que foi isso? — perguntou, fitando-nos com um olhar assustado.

— Ainda não sabemos — respondeu Vance.

À porta do quarto de dormir, na outra extremidade do corredor, vimos aparecer a enfermeira, com o espanto substituindo a placidez dos seus olhos.

— É melhor vir conosco, Srta. Beeton — disse Vance, enquanto começava a subir a escada de dois em dois degraus. — Podemos precisar da senhora.

Vance saltou no corredor de cima e parou momentaneamente na porta da direita que levava ao terraço. Esta continuava aberta de par em par e, após uma apressada inspeção preliminar, Vance entrou rapidamente no jardim.

A visão que nesse momento tivemos não foi de todo inesperada. Lá, na cadeira baixa que nos mostrara naquela tarde, estava sentado Woody Swift, derreado, com a cabeça caída para trás, fazendo um ângulo pouco natural de encontro ao espaldar de palhinha e as pernas estendidas à sua frente. Ainda estava com o fone preso à cabeça. Seus olhos estavam abertos e fixos; os lábios ligeiramente entreabertos, e seus grossos óculos haviam saltado para a ponta do nariz.

Na têmpora direita havia um pequeno e feio orifício abaixo do qual haviam-se formado duas ou três gotas de sangue já coagulado. O braço direito pendia inerte sobre o lado da cadeira e sobre os ladrilhos coloridos, exatamente embaixo de sua mão, estava um pequeno revólver com cabo de madre-pérola.

Vance imediatamente aproximou-se do corpo imóvel e todos nós o circundamos. Zalia Graem, que abrira caminho e agora estava parada ao lado de Vance, cambaleou repentinamente e agarrou-se a seu braço. Seu rosto tornara-se pálido e os olhos pareciam esgazeados. Vance virou-se rapidamente, passou-lhe o braço pela cintura e levou-a quase carregada para o largo divã de vime. E fez um aceno de cabeça para a enfermeira.

— Tome conta dela um instante. — Depois voltou para onde estava Swift. — Por favor, recuem — ordenou. — Ninguém deve tocar nele.

Puxou o monóculo e ajustou-o cuidadosamente. Depois inclinou-se sobre o vulto na cadeira. Cuidadosamente investigou a ferida, o alto da cabeça e os óculos deslocados. Quando terminou o exame, ajoelhou-se no chão e pareceu procurar alguma coisa. Aparentemente não encontrou o que procurava porque ergueu-se com um ar desanimado e encarou os outros.

— Morto — anunciou com um tom involuntariamente sombrio. — Vou, temporariamente, assumir a direção das coisas.

Zalia Graem erguera-se do divã, e a enfermeira a estava sustentando numa demonstração de carinho. A perturbada moça estava aparentemente indiferente a essa atenção e permanecia com os olhos fixados no morto. Vance encaminhou-se para ela de maneira a impedir a visão que parecia mantê-la num fascínio de horror.

— Por favor, Srta. Beeton, — disse ele — leve a jovem para baixo, imediatamente. — Depois acrescentou: — Estou certo de que ela ficará bem em alguns minutos.

A enfermeira anuiu, passou o braço em torno da Srta. Graem com firmeza e levou-a em direção à entrada.

Vance esperou até que as duas mulheres se fossem, depois voltou-se para os outros: — Vocês todos vão ter a gentileza de descer e lá ficar até novas ordens.

— Mas que vai fazer, Sr. Vance? — perguntou a Sra. Garden com um tom assustado. Estava de pé, rigidamente encostada à parede, com os olhos semicerrados fixos em mórbido fascínio no corpo imóvel do sobrinho. — Precisamos manter isto o mais secreto possível! Meu pobre Woody!

— Receio, minha senhora, que não poderemos manter as coisas em segredo — falou Vance com a mais honesta das intenções.

— Meu primeiro dever é telefonar para o procurador distrital e para o Departamento de Homicídios.

A Sra. Garden ofegou e seus olhos arregalam-se de emoção.

— Procurador? Departamento de Homicídios? — repetiu automaticamente. — Ah, não!... Por que o senhor precisa fazer isso? É claro que qualquer um pode ver que esse pobre rapaz liquidou a própria vida.

Vance sacudiu lentamente e olhou diretamente para a desesperada senhora.

— Lamento muito, minha senhora, — disse — mas isto não é um caso de suicídio. É assassinato!


V

 

A Busca no Cofre

 

 


(Sábado, 14 de abril — 16:00 horas)

 

 

Após a inesperada declaração de Vance seguiu-se um demorado silêncio. Todos, um por um, encaminharam-se relutantemente para a saída. Apenas Garden ficou para trás.

— Eu acho, Vance, — disse ele num tom chocado — que isto é realmente apavorante. Tem certeza de que não está dando largas à sua imaginação? Quem poderia desejar matar o pobre Woody? Ele deve ter feito isso sozinho. Sempre foi um fraco, e mais de uma vez falou em suicídio.

Vance encarou-o friamente por um instante: — Tremendamente agradecido pela informação, Garden. — Sua voz era tão fria quanto o olhar. — Mas ela agora não nos ajuda em nada, você sabe, não? Swift foi assassinado e eu quero a sua ajuda e não o seu cepticismo.

— Tudo o que eu puder fazer, é claro — murmurou Garden apressadamente e parecendo envergonhado com a atitude de Vance.

— Há algum telefone por aqui? — perguntou Vance.

— Sim, claro, há um no estúdio.

Garden passou por nós com uma energia nervosa, como se estivesse agradecendo a oportunidade de agir. Escancarou a porta na extremidade do corredor e ficou de lado, esperando que entrássemos no estúdio.

— Por aqui — disse apontando para a escrivaninha na outra extremidade da sala, onde havia um telefone. — Esta é uma linha direta. Não tem comunicação com a que usamos para os cavalos, embora seja uma extensão de telefone da saleta. — Dirigiu-se rapidamente para trás da escrivaninha e ligou uma chave preta na caixa de contato que estava presa a um dos lados da mesa. — Deixando a chave nesta posição, você corta a extensão lá embaixo, de modo que a linha fica inteiramente sua.

— Oh, está bem — Vance meneou a cabeça com um leve sorriso. — Eu uso o mesmo sistema no meu apartamento. Muitíssimo grato por sua atenção... E agora, por favor, junte-se aos outros lá embaixo e procure manter o equilíbrio das coisas por algum tempo.

Garden aceitou de bom grado a dispensa e dirigiu-se à porta.

— Ah, a propósito, Garden, — chamou Vance — gostaria de ter uma pequena conversa com você, em particular, daqui a pouco.

Garden voltou-se com uma expressão alterada.

— Suponho que você esteja querendo que eu desenterre todos os esqueletos da família para você... Mas, está bem. Quero ser o mais útil possível; espero que você creia nisso. Estarei às suas ordens a qualquer momento. Estarei lá embaixo derramando azeite sobre as águas agitadas e quando você estiver pronto para me atender, basta que aperte a campainha lá na estante, logo atrás da escrivaninha. — Ele indicou um pequeno botão branco situado exatamente no centro de uma pequena caixa. — Isto faz parte do sistema de comunicação interna entre este quarto e a saleta. Vou deixar aberta a porta da saleta, de modo a poder ouvir a campainha onde quer que eu me encontre.

Vance concordou secamente e Garden, após uma leve hesitação, deu meia volta e saiu.

Assim que Garden se fez ouvir descendo a escada Vance fechou a porta e foi imediatamente para o telefone. Logo depois falava com Markham.

— Os cavalos galopantes, meu caro — disse. — Os troianos estão em disparada... Equanimity falhou; entrou muito atrás. Resultado: um assassinato. O jovem Swift está morto. E foi a atuação mais inteligente que já vi em toda a minha vida... Não, Markham. — Sua voz repentinamente tornou-se grave. — Eu não estou brincando. Acho que você faria bem em vir imediatamente. E avise Heath*, se puder encontrá-lo, e o médico legista. Enquanto você não chega, vou controlando a situação...

 

 

 

*O sargento Ernest Heath do Departamento de Homicídios, que se encarregara de diversas investigações criminais a que Vance estivera ligado.

 

 


Lentamente recolocou o fone no gancho. Tirando a cigarreira do bolso, acendeu um Régie com aquela deliberação, que, fruto de uma longa observação, eu chegara a identificar como o sinal de um estado de espírito desorientado e tateante.

— Este é um crime sutil, Van, — meditava ele — demasiado sutil para a paz do meu espírito. Não estou gostando, não estou gostando nada mesmo. E também não me agrada essa mistura com corridas de cavalos. Um recurso um tanto transparente...

Depois examinou o ambiente. Era uma sala de aproximadamente oito metros quadrados, cercada de livros, folhetos e arquivos. Em algumas das prateleiras, nos arquivos e em cima de toda e qualquer peça de mobiliário, havia exemplares de uma particular coleção de velhos utensílios farmacêuticos: pilões e almofarizes de porcelana, bronze ou latão, com cinzeladuras típicas — máscaras, hernas, folhagens, querubins, arabescos da Renascença, pássaros e flores de lis. Os estilos eram os mais diversos: gótico, espanhol, francês e flamengo, muitos deles anteriores ao século XVI. Antigas balanças de boticário em latão e marfim, com colunas em plintos, com urnas em florões, sustentando pratos de balança em relevo com braços de aço ou encurvados — muitos deles no estilo francês dos fins do século XVIII; inúmeros potes antigos de farmácia nas mais diversas formas: cilíndrica, oval, de barril com aro; octogonal encurvado, ovóide, e uma pêra de cabeça para baixo, em faiança, majólica, porcelanas de alto preço, cuidadosamente decoradas com inscrições; diversos outros artigos farmacêuticos raros e artísticos; uma coleção que revelava anos de viagens e pesquisas laboriosas*.

 

 

*Mais tarde essa coleção foi vendida em leilão e muitos dos objetos estão agora nos museus americanos.

 

 


Vance percorreu o aposento, parando aqui e ali, diante de algum vaso ou pote raro.

— Uma coleção interessante — murmurou. — E não desprovida de significado, Vance. Dá uma visão da natureza do homem que a reuniu — uma mistura de artista e cientista; um amante da beleza e também alguém em busca da verdade. Aliás, você sabe, os dois deveriam ser sinônimos. Entretanto...

E lá se foi ele pensativamente em direção à janela do lado norte que dava para o jardim. A cadeira de vime com seu horrível ocupante não podia ser vista do estúdio, porque estava bem à esquerda da janela, perto da amurada oeste.

— Os açafrões estão morrendo — murmurou — dando lugar aos jacintos e palmas; e as tulipas estão progredindo. A cor sucede à cor. Um lindo jardim. Mas a toda hora há morte aqui, Van, senão o próprio jardim não viveria. Eu fico pensando...

Deu as costas à janela, bruscamente, e voltou à escrivaninha.

— Algumas palavras com o atrapalhado Garden é o indicado antes que cheguem os servidores da lei.

Colocou o dedo sobre o botão branco da campainha e apertou. Depois dirigiu-se à porta e abriu; decorreram vários instantes, porém Garden não apareceu e Vance apertou novamente o botão. Depois de passados dois bons minutos sem qualquer resposta aos seus chamados, Vance desceu o corredor em direção à escada, recomendando-me que o seguisse.

À altura do cofre que havia do lado direito, Vance parou bruscamente. Examinou durante alguns minutos a pesada porta de calamina. À primeira vista ela parecia estar fechada hermeticamente, mas quando olhei mais de perto, verifiquei que estava aberta uma fração de polegada, como se o fecho da mola que a fechava automaticamente, não estivesse funcionando na ocasião em que a porta foi trancada. Vance empurrou a porta levemente, com a ponta dos dedos, e ela cedeu, abrindo-se lenta e pesadamente.

— É estranho demais — comentou ele. — Um cofre para guardar documentos de valor e a porta destrancada. Dá o que pensar...

A luz do corredor iluminava o interior sombrio da caixa-forte e quando Vance empurrou mais a porta, apareceu um fio branco pendente de uma lâmpada no teto. Na extremidade do fio estava preso um pilão de ferro em miniatura que funcionava como peso. Vance imediatamente entrou, puxou o fio e o cofre foi inundado pela luz.

Cofre é uma palavra que descreve mal o pequeno depósito, a não ser por suas paredes desusadamente espessas e obviamente fora construído como um compartimento à prova de roubo. Tinha aproximadamente 1,70 m x 2,40 e o teto era tão alto quanto o corredor. As paredes de alto a baixo, estavam cobertas de largas prateleiras e nelas haviam pilhas de toda sorte de documentos, papéis, folhetos, pastas, tubos de ensaio e frascos rotulados com símbolos misteriosos. Três das prateleiras estavam destinadas a uma série de fortes caixas de aço e caixas de segurança. O chão era revestido de pequenos ladrilhos de cerâmica preta e branca.

Embora houvesse espaço suficiente para nós dois dentro da caixa-forte, eu fiquei no corredor, observando Vance que olhava à sua volta.

— Egoísmo, Van — observou sem se virar para mim. — Provavelmente não há aqui uma só coisa que um ladrão se digne roubar. Fórmulas suponho, o resultado de pesquisas e experiências, sem qualquer valor ou interesse para alguém a não ser o próprio professor. E no entanto ele constrói um compartimento especial para mantê-lo trancados e fora do alcance do resto do mundo.

Vance curvou-se e apanhou uma resma de folhas datilografadas espalhadas pelo chão e que certamente haviam sido derrubadas de uma das prateleiras exatamente em frente à porta.

Olhou-as por um momento e colocou-as cuidadosamente no espaço vazio em frente à porta.

Muito interessante essa desarrumação — observou. — Evidentemente o professor não foi a última pessoa a entrar aqui porque ele jamais deixaria seus papéis no chão... — Deu uma volta. — Sim senhor! — exclamou com voz abafada.

— Esses papéis caídos e a porta destrancada... Bem que poderia ser... — Havia uma excitação reprimida em sua voz.

— Olhe, Van, não entre aqui; e principalmente, não toque na maçaneta.

Puxou do monóculo e ajustou-o cuidadosamente. Depois ajoelhou-se no chão de azulejo e começou uma severa inspeção dos pequenos quadrados, como se os estivesse contando. Sua atitude fez-me lembrar quando estivera examinando o piso do terraço próximo à cadeira onde havíamos encontrado o jovem Swift. Ocorreu-me que ele estava tentando encontrar aqui o que não achara no jardim. Suas palavras confirmaram a minha suposição.

— Deveria estar aqui — murmurou para si próprio. — Isto explicaria muitas coisas, formaria o primeiro e vago esboço de um esquema inicial.

Depois de procurar durante mais de um minuto, Vance parou de repente e inclinou-se para a frente com avidez. Em seguida, tirou do bolso um pequeno pedaço de papel e cuidadosamente colocou nele alguma coisa que estava no chão.

Embrulhando o papel com cuidado, colocou-o no bolso do colete. Embora eu estivesse distante apenas alguns passos e olhando diretamente para ele, não pude ver o que havia encontrado.

— Acho que é tudo por enquanto — disse erguendo-se e puxando o fio para apagar a luz. Voltando ao corredor, fechou a porta do cofre segurando cuidadosamente a haste do trinco. Depois moveu-se rapidamente pelo corredor, atravessou a porta que dava para o jardim e encaminhou-se diretamente ao morto. Apesar de ele estar de costas para mim quando se curvou sobre o corpo, eu pude ver que tirou do bolso do colete o papel dobrado e abriu-o. Olhou repetidas vezes o papel que segurava e o flácido vulto na cadeira. Finalmente meneou a cabeça enfaticamente e reuniu-se a mim no corredor. Descemos as escadas que conduziam ao apartamento.

Exatamente quando chegávamos ao vestíbulo de baixo, abriu-se a porta de entrada e Cecil Kroon entrou. Pareceu surpreendido de nos encontrar ali e perguntou de um modo um tanto vago, enquanto atirava o chapéu sobre o banco: — Algo de novo?

Vance perscrutou-o atentamente e não deu resposta; Kroon prosseguiu: — Suponho que o grande páreo tenha terminado, arre! Quem ganhou? Equanimity?

Vance sacudiu a cabeça lentamente, os olhos fixos no interlocutor.

— Venceu Azure Star. Acho que Equanimity chegou em 5º ou 6º.

— E Woody se lançou nele de corpo e alma, como havia ameaçado?

— Receio que sim — assentiu Vance.

— Meu Deus! — Kroon prendeu a respiração. — Isto é um baque para o rapaz. Como o está suportando? — Desviou o olhar de Vance, como se preferisse não ouvir a resposta.

— Não está suportando coisa nenhuma — retrucou calmamente Vance. Swift está morto.

— Não! — Kroon inspirou ruidosamente e seus olhos contraíram-se pouco a pouco. Depois de se ter aparentemente recuperado do choque, falou quase num murmúrio: — Então ele enfiou uma bala no corpo, não foi?

Vance ergueu levemente as sobrancelhas.

— Esta é a impressão geral — retrucou suavemente. — Você não é adivinho, não? Eu não disse como Swift morreu, mas o fato é que isso aconteceu devido a um tiro de revólver. Superficialmente, admito, isto parece um suicídio — Vance sorriu com frieza. — Sua reação é das mais interessantes. Por exemplo, por que você supõe que ele se tivesse matado com um tiro em vez de, digamos, se atirar do terraço?

A boca de Kroon transformou-se numa linha reta e em seus olhos apertados passou um olhar de raiva. Remexeu no bolso à procura de um cigarro e finalmente tartamudeou: — Não sei exatamente... a não ser que... a maioria das pessoas se matam com um tiro.

— É, realmente. — Os lábios de Vance continuavam armados num sorriso de pedra. — Não é uma maneira fora do comum de abandonar este mundo atormentado. Por que você achou lógico que a morte tenha sido voluntária?

Kroon tornou-se agressivo.

— Ele gozava de plena saúde quando eu saí! Ninguém vai fazer saltar os miolos de alguém assim em público.

— Saltar os miolos? — repetiu Vance. — Como você sabe que o tiro não foi no coração?

Kroon estava agora evidentemente desconcertado.

— Eu... eu simplesmente supus...

Vance interrompeu o embaraço do outro, sem afrouxar o exame que fazia: — Entretanto, suas conclusões acadêmicas concernentes a um assassinato mais ou menos público não são desprovidas de uma certa lógica. Mas o fato é que realmente alguém matou Swift com um tiro na cabeça e, praticamente, em público. Coisas assim também acontecem, você sabe. A lógica tem muito pouco a ver com a vida e a morte... e com corridas de cavalos. A lógica é o mais perfeito meio artificial de se chegar a uma conclusão falsa. — E ele acendeu o cigarro de Kroon.

— Não obstante, eu gostaria de saber onde você esteve e exatamente quando voltou para cá.

O olhar de Kroon vagueou e ele puxou duas tragadas antes de responder.

— Penso ter dito antes de sair — disse numa tentativa de serenidade — que eu ia à casa de um parente, assinar alguns documentos sem importância.

— E posso eu saber o nome e endereço de seu parente... uma tia, creio que disse? — interrogou amavelmente Vance.

— Estou tomando conta das coisas até a chegada dos funcionários.

Kroon tirou o cigarro da boca com um ar de displicência forçada e empertigou-se com arrogância.

— Eu não vejo — respondeu com dureza — em que essa informação possa interessar a alguém que não eu.

— Também não — admitiu alegremente Vance. — Estive simplesmente esperando por um pouco de franqueza. Mas posso assegurar-lhe, em vista do que aconteceu aqui esta tarde, que a polícia gostará de saber com precisão quando você voltou de sua misteriosa assinatura de documentos.

Kroon sorriu com afetação.

— Você certamente não pensa que eu estive perambulando no corredor, não é? Cheguei há poucos minutos e vim direto para cá.

— Imensamente grato — murmurou Vance. — Agora devo pedir-lhe que se reúna aos outros no salão e que lá espere a chegada da polícia. Espero que não faça objeções.

— De espécie alguma, garanto-lhe — retrucou Kroon com uma demonstração de cinismo divertido. — A polícia regular será um alívio após esta mistificação de amador. — Ele percorreu o vestíbulo em direção à porta, com as mãos enterradas nos bolsos das calças.

Quando Kroon desapareceu no salão, Vance dirigiu-se imediatamente à porta da frente, abriu-a silenciosamente e caminhando pelo corredor externo apertou o botão do elevador. Pouco depois abriu-se a porta corrediça e apareceu um rapaz magro e moreno, de olhar inteligente, vestindo um uniforme azul e que olhou para fora interrogando respeitosamente: — Vai descer?

— Não vou descer — replicou Vance. — Simplesmente queria fazer-lhe algumas perguntas. Eu tenho ligação com o escritório do procurador distrital.

— Eu o conheço, Sr. Vance — fez o rapaz com vivacidade.

— Aconteceu uma coisa aqui esta tarde — disse Vance — e creio que você me possa ajudar.

— Direi tudo o que sei — concordou o rapaz.

— Excelente! Você conhece um certo Sr. Kroon que freqüenta o apartamento dos Gardens? Ele é louro e tem um bigode encerado.

— Claro que conheço — retrucou prontamente o rapaz.

— Ele vem aqui quase todas as tardes. Eu o trouxe hoje.

— A que horas foi isso?

— Duas ou três, creio eu. — O rapaz franziu a testa.

— Ele não está aí?

Vance respondeu à pergunta fazendo uma outra.

— Você esteve no elevador a tarde toda?

— Claro que sim. Desde o meio-dia. Eu só sou substituído às 7 horas.

— E você não viu o Sr. Kroon desde que o trouxe aqui no início da tarde?

O rapaz sacudiu a cabeça.

— Não senhor, não vi.

— Eu tinha a impressão de que o Sr. Kroon havia saído há cerca de uma hora e que acabava de voltar.

A cigarra tocou e Vance rapidamente pôs na mão do rapaz uma nota dobrada.

— Muito obrigado — disse. — Era tudo o que eu queria saber.

O rapaz embolsou o dinheiro e fechou a porta do elevador, enquanto nós voltávamos ao apartamento.

Quando regressávamos da porta principal, a enfermeira estava parada à entrada do quarto de dormir, à direita. Seus olhos tinham uma expressão preocupada e interrogadora.

Vance fechou a porta suavemente e preparava-se para subir o corredor, mas hesitou e voltou em direção à moça.

— Parece perturbada, Srta. Beeton — disse com bondade. — Mas, afinal de contas, deve estar acostumada com a morte.

— Estou acostumada com ela — respondeu em voz baixa. — Mas isto agora é diferente. Veio tão de repente, sem aviso... Embora — acrescentou — o Sr. Swift sempre me tenha parecido ser do tipo que comete suicídio.

Vance olhou-a apreciativamente.

— Sua impressão pode ser correta, mas acontece que Swift não cometeu suicídio.

Os olhos da moça arregalaram-se, ela prendeu a respiração e encostou-se ao umbral. Seu rosto empalideceu perceptivelmente.

— O senhor quer dizer que atiraram nele? — Suas palavras eram quase inaudíveis. — Mas quem... quem?

— Nós não sabemos. — A voz de Vance era calma. — Mas precisamos descobrir. Gostaria de ajudar-me, Srta. Beeton?

Ela empertigou-se; suas feições descontraíram-se e novamente voltou a ser a imperturbável e eficiente enfermeira.

— Sim, gostaria. — Havia mais que uma ponta de ansiedade na voz.

— Então eu gostaria que a senhorita montasse guarda como de costume — disse Vance com um pálido sorriso amistoso. — Desejo falar com Garden e não quero que ninguém vá lá em cima. Poderia instalar-se nesta cadeira e avisar-me imediatamente se alguém quisesse tentar ir lá em cima?

— É tão pouco o que me pede — replicou a moça, enquanto se sentava numa cadeira ao pé da escada.

Vance agradeceu-lhe e encaminhou-se à saleta. Lá estavam Garden e Zalia Graem, sentados bem juntinhos num sofá e falando num tom baixo e confidencial. Um rumor indistinto de vozes, vindo do outro lado da arcada, indicava que o restante do grupo estava no salão.

Garden e a Srta. Graem afastaram-se imediatamente quando entramos na saleta. Vance ignorou seu evidente embaraço e dirigiu-se a Garden como se não tivesse percebido haver interrompido um tête à tête.

— Chamei o procurador distrital e ele notificou a polícia: dentro de alguns minutos estarão aqui. Enquanto isso, gostaria de falar-lhe a sós. — Voltando a cabeça para a Srta. Graem, acrescentou: Espero que isso não a aborreça.

A jovem ergueu-se e arqueou as sobrancelhas.

— Peço-lhe, não se preocupe comigo. O senhor pode ser tão misterioso quanto quiser.

Garden repreendeu-a com irritação.

— Nunca se preocupe com o hauteur, Zalia. — Depois voltou-se para Vance: — Por que não tocou a campainha chamando-me? Eu teria ido. Fiquei na saleta propositalmente porque achei que deveria precisar de mim.

— Eu chamei — respondeu Vance. — Duas vezes, aliás. Mas como você não subiu, eu desci.

— Aqui não houve sinal — assegurou-lhe Garden. — E eu vim diretamente para cá desde que desci.

— Posso confirmar isso — acrescentou a Srta. Graem. Os olhos de Vance pousaram nela um instante e nos cantos de sua boca surgiu um sorriso sardônico.

— Estou emocionado e agradecido pela confirmação — murmurou.

— Tem certeza de que apertou o botão? — perguntou Garden. — É muito engraçado; este sistema nunca falhou em seis anos. Espere um minuto...

Dirigindo-se à porta gritou para Sneed e o mordomo entrou na sala quase que imediatamente.

— Vá lá em cima no estúdio, Sneed, e aperte o botão da campainha.

— A campainha não está funcionando, senhor — disse-lhe o imperturbável mordomo. — Já notifiquei a companhia e pedi-lhe que mandassem um homem para consertá-la.

— Quando você descobriu isso? — perguntou Garden irritado.

A enfermeira que ouvira a conversa, deixou a cadeira em que estava e veio até a porta.

— Eu descobri hoje à tarde que a campainha não estava funcionando — explicou — por isso falei com Sneed e sugeri que ele tomasse providências.

— Ah, compreendo. Obrigado, Srta. Beeton. — Garden voltou-se novamente para Vance. — Podemos subir agora?

A Srta. Graem, que estivera olhando a cena com uma expressão cínica e um tanto divertida, preparou-se para sair da sala.

— Para que subir? Desaparecerei no salão e vocês poderão abrir seus corações aqui mesmo.

Vance estudara a moça por alguns instantes e depois curvou-se ligeiramente.

— Muito obrigada — disse. — Isto será muito melhor.

— Afastou-se enquanto ela se encaminhava displicentemente para a saída e fechava a porta atrás de si.

Vance deixou cair o cigarro em um pequeno cinzeiro que se achava sobre a mesinha diante do sofá e, movendo-se suavemente até à porta, reabriu-a. De onde eu estava, pude ver que a Srta. Graem, em vez de ir para o lado do salão, caminhava rapidamente na direção oposta.

— Um momento, Srta. Graem! — A voz de Vance era peremptória. — Por favor, espere no salão. Ninguém pode ir lá em cima agora.

Ela deu meia volta.

— E por que não? — Seu rosto estava vermelho de raiva e o queixo levantado, em desafio. — Tenho o direito de subir — proclamou com animosidade.

Vance nada disse, mas sacudiu a cabeça negando e sustentando o seu olhar.

Ela o devolveu mas não pôde resistir à força daquele olhar. Lentamente voltou até onde ele estava.

— Mas o senhor não compreende — protestou com uma voz quebrada. — Sou eu a culpada desta tragédia, não foi a corrida. Se não fosse por mim, Woody estaria vivo agora. Eu... eu sinto horrivelmente. E eu quero subir... para vê-lo.

Vance pousou a mão no ombro dela.

— Na verdade — disse suavemente — nada indica que a culpa seja sua.

Zalia Graem ergueu o olhar para Vance interrogativamente.

— Então o que Floyd estava tentando dizer-me é verdade? Que Woody não se matou com um tiro?

— Pura verdade.

A jovem inspirou profundamente e seus lábios tremeram. Deu um passo rápido e impulsivo em direção a Vance e, descansando a cabeça em seu braço, rompeu em lágrimas.

Vance colocou as mãos nos braços dela e manteve-a afastada de si.

— Vamos, pare com essa tolice — advertiu-a duramente — e não tente ser tão diabolicamente inteligente. Vá para o salão e tome um highball. Ele a tornará alegre por tempo indeterminado.

O rosto da moça tornou-se subitamente cínico e ergueu os ombros num movimento exagerado.

— Bien, Monsieur Lecoq — retrucou sacudindo a cabeça. E passando por ele, percorreu altivamente o vestíbulo em direção ao salão.

 

 

 

 

VI

 

Uma Entrevista Interrompida

 

 


(Sábado, 14 de abril — 16:50 horas)

 

 

Vance observou-a enquanto se afastava. Depois virou-se e deparou com o olhar ansioso da Srta. Beeton. Ele lhe sorriu graciosamente e encaminhou-se para a saleta. Nesse momento a Sra. Garden apareceu, tão ressentida quão agressiva.

— Zalia acabou de me contar — disse zangada — que o senhor a proibiu de subir. É um ultraje! Mas é claro que eu vou subir. Esta casa é minha, lembre-se. O senhor não tem o direito de me impedir de passar esses últimos momentos com meu sobrinho.

Vance encarou-a. Havia em seu rosto uma expressão de sofrimento, mas seus olhos eram frios e duros.

— Tenho todos os direitos, senhora — disse ele. — A situação é da maior gravidade; e se não quiser aceitar o fato, serei forçado a fazer valer minha autoridade.

— É inacreditável! — protestou ela zangada. Garden chegou à porta da saleta.

— Pelo amor de Deus, Mama, — suplicou — seja razoável. O Sr. Vance está inteiramente certo. E, de qualquer forma, que espécie de razão poderia ter a senhora para desejar estar com Woody agora? Já temos escândalo de sobra. Para que envolver-se ainda mais?

A senhora encarou bem o filho e eu tive a sensação de que alguma mensagem telepática passou entre eles.

— Realmente não faz nenhuma diferença em particular — concordou com calma resignação; mas quando voltou os olhos para Vance, o seu ressentimento ressurgiu. — Senhor — perguntou — onde prefere que eu fique até a chegada dos seus policiais?

— Eu não quero parecer demasiado exigente, senhora, — retrucou mansamente Vance — mas eu apreciaria imensamente se permanecesse no salão.

A senhora ergueu as sobrancelhas, sacudiu os ombros e, girando com ar indiferente, voltou para o corredor.

— Lamento profundamente, Vance — desculpou-se Garden. — A Mama é uma "rainha-mãe". Não está acostumada a receber ordens. E ela se ressente. Duvido de que ela deseje sentar-se ao lado do corpo quase rígido de Woody. Mas detesta que lhe digam o que deve e o que não deve fazer. Ela provavelmente teria passado o dia na cama se o Dr. Siefert não lhe tivesse firmemente recomendado que não se levantasse.

— Está tudo certo — falou Vance com indiferença, fitando numa perplexa meditação a ponta do cigarro. Depois ele foi rapidamente até a porta da saleta. — Vamos então ter a nossa conversinha, sim? — E afastou-se para que Garden pudesse entrar; seguiu-o e fechou a porta.

Garden deixou-se cair numa das extremidades do sofá e tirou um cachimbo de uma pequena gaveta na mesa baixa. Encheu lentamente o cachimbo, enquanto Vance caminhava até à janela, onde parou olhando a cidade lá embaixo.

— Garden, — começou ele — há algumas coisas que eu gostaria de ter esclarecido antes da chegada do procurador distrital e da polícia. — Girou tranqüilamente e veio sentar-se diante da escrivaninha, encarando Garden. Este parecia encontrar alguma dificuldade em acender o cachimbo. Quando finalmente o conseguiu, ergueu o olhar abatido e encontrou o de Vance.

— Tudo o que eu puder fazer para ajudar — murmurou, pitando o cachimbo.

— Algumas perguntas necessárias, sabe como é — prosseguiu Vance. — Acredito que elas não vão perturbá-lo. Mas o fato é que o Sr. Markham certamente quererá que eu participe da investigação, já que fui uma testemunha do preâmbulo desta horrível tragédia.

— Espero que sim — retrucou Garden. — É um caso escabroso e eu gostaria de ver o machado cair, não importa quem seja o decapitado. — Seu cachimbo continuava causando problema. — A propósito Vance, — prosseguiu ele calmamente — como coincidiu de você estar aqui hoje? Tantas vezes eu o convidei a participar de nossas tardes turfísticas e só neste dia de tragédia é que aceitou meu convite.

Vance manteve os olhos fixos em Garden durante uns momentos.

— O caso é — disse por fim — que eu recebi um telefonema anônimo a noite passada, vagamente delineando a situação e mencionando Equanimity.

Garden sacudiu o corpo para prestar uma atenção mais apurada. Seus olhos arregalaram-se e tirou o cachimbo da boca.

— Que diabo você está dizendo! — exclamou. — Essa é muito boa. Homem ou mulher?

— Ah, era um homem — respondeu tranqüilamente Vance.

Garden apertou os lábios e depois de meditar durante uns momentos, disse calmamente: — Bem, de qualquer forma, fico muito satisfeito que você tenha vindo... Que informação poderei prestar-lhe? Pergunte o que quiser, velho.

— Primeiro de tudo — começou Vance — você reconhece o revólver? Eu o vi olhando para ele com um ar apreensivo quando chegamos ao terraço.

Garden franziu a testa, ocupou-se durante um certo tempo com o cachimbo e finalmente respondeu, como se numa resolução súbita.

— Sim! Eu o reconheci, Vance. Pertence ao velho...

— Seu pai?

Garden assentiu sombriamente.

— Ele o tem há muitos anos. Mas não sei por que razão o comprou; certamente sem nenhuma intenção determinada.

— Por falar nisso — indagou Vance — a que horas normalmente costuma seu pai voltar da Universidade?

— Bem, bem... — Garden depois continuou. — Nos sábados, ele sempre chega aqui no começo da tarde; raramente depois das três. Ele se permite e ao seu pessoal um semi-feriado... Mas meu pai é homem de venetas e variável. — Sua voz desafinou nervosamente.

Vance deu duas tragadas em seu cigarro: examinava Garden atentamente. Depois perguntou em tom macio: — Em que está você pensando? A menos que, evidentemente, você tenha alguma razão para não me contar.

Garden inspirou profundamente e ergueu-se. Parecia estar profundamente perturbado.

— A verdade é, Vance, — disse, sentando-se de novo — que eu nem sequer sei onde está papai esta tarde. Assim que eu desci após a morte de Woody, telefonei para dar-lhe a notícia. Pensei que ele desejasse estar aqui o mais depressa possível, em vista das circunstâncias. Mas disseram-me que ele havia trancado o laboratório e deixado a Universidade por volta das duas horas. — Garden levantou os olhos. — Provavelmente foi à biblioteca para algum trabalho de pesquisa. Ou está lá pela Universidade ainda.

Eu não podia entender a perturbação do rapaz, e pude notar que isso intrigava Vance, que se dedicou a pô-lo à vontade.

— Isto realmente não tem importância — disse como que abandonando o assunto. — Pode ter acontecido que seu pai só venha a ter conhecimento da tragédia mais tarde. — Fumou durante uns instantes. — Mas, voltando ao revólver: onde é que ele costumava ficar guardado?

— Na gaveta central da escrivaninha, lá em cima — respondeu Garden prontamente.

— E esse fato era do conhecimento geral dos outros moradores da casa, ou do próprio Swift?

Garden assentiu.

— Ah, sim. Não era segredo. Muitas vezes caçoávamos do velho a respeito do seu "arsenal". A semana passada, durante o jantar, ele pensou ter ouvido alguém no jardim e correu lá em cima para ver quem era. A Mama chamou-o brincando: "Finalmente você vai ter uma oportunidade de usar o seu precioso revólver." O velho voltou alguns minutos depois um tanto encabulado. Durante todo o resto do jantar nós brincamos com ele.

— E o revólver estava sempre carregado?

— Ao que me conste, sim.

— E havia uma reserva de cartuchos?

— Não posso responder com precisão, mas creio que não. —i E agora uma pergunta muito importante, Garden — prosseguiu Vance. — Quantas, dentre as pessoas aqui presentes no dia de hoje, poderiam ter conhecimento de que seu pai guardava o revólver carregado na gaveta da escrivaninha? Responda com precisão.

Garden meditou por um bom momento. Os olhos perdidos no espaço, pitando firmemente o seu cachimbo.

— Estou tentando lembrar exatamente — disse — quem estava aqui no dia em que Zalia descobriu o revólver...

—' Que dia foi esse? — interrompeu vivamente Vance.

— Foi há cerca de três meses — explicou Garden. — Como você sabe, nós costumávamos ter o sistema de telefone ligado com o estúdio lá em cima. Mas algumas das corridas do oeste eram tão tarde que isso interferia com a rotina do velho quando ele voltava da Universidade. Então removemos toda aquela confusão para baixo, no salão. Na realidade, era mais conveniente, e a Mama não fez objeção; na realidade até gostou da coisa...

— Mas o que aconteceu naquele determinado dia? — insistiu Vance.

— Estávamos lá em cima no estúdio, acompanhando toda aquela ladainha das corridas que você pôde apreciar esta tarde, quando Zalia Graem, que sempre se sentava à escrivaninha do velho, começou a abrir as gavetas procurando um pedaço de papel de rascunho onde pudesse anotar as apostas.

Finalmente, ela abriu a gaveta central e viu o revólver. Tirou-o de lá com um grande gesto e, rindo como uma colegial, apontou-o para nós. Depois ela fez alguns comentários sobre a perfeição de nossas instalações para o jogo, estabelecendo um paralelo entre a presença do revólver e a sala dos suicidas em Monte Cario. "Todas as comodidades da Riviera." Ou qualquer coisa no mesmo gênero. "Quando você tiver perdido a camisa, pode estourar os miolos." Eu a repreendi — até um tanto rudemente, receio — e ordenei-lhe que pusesse o revólver outra vez no lugar, porque estava carregado. Mas como nesse momento o amplificador começasse a transmitir um páreo, o episódio ficou nisso.

— Muito interessante — murmurou Vance. — E você pode lembrar-se das pessoas de hoje que presenciaram a esse pequeno show da Srta. Graem?

— Creio que estavam todos, se não me falha a memória.


Vance suspirou.

— Um tanto difícil, não é? Nenhuma possibilidade de eliminação.

Garden ergueu os olhos, perplexo: — Eliminação? Não compreendo. Estávamos todos lá embaixo esta tarde quando foi dado o tiro, com exceção de Kroon, mas ele havia saído.

— Certo, certo — concordou Vance, reclinando-se na cadeira. — Esta é a parte mais intrigante e desesperante do caso. Ninguém poderia ter feito aquilo e no entanto alguém o fez. Mas não nos vamos demorar no assunto. Há ainda um ou dois pontos sobre os quais quero interrogá-lo.

Nesse instante houve uma pequena agitação no corredor. Parecia como se estivesse havendo algum tipo de tumulto e uma voz penetrante e de protesto misturava-se ao tom calmo, porém determinado, da enfermeira. Vance foi imediatamente até a porta e abriu-a completamente. Ali, bem à porta da saleta, apenas a poucos passos da escada, estavam a Srta. Weatherby e a Srta. Beeton. A enfermeira mantinha firmemente a outra e discutia calmamente com ela. Quando Vance se encaminhou para ambas, a Srta. Weatherby voltou-se para encará-lo e empertigou-se arrogantemente.

— Que significa tudo isso? — perguntou. — Será que tenho de ser maltratada por uma doméstica só porque quero ir lá em cima?

— A Srta. Beeton recebeu ordens de não deixar ninguém ir lá em cima — disse Vance com dureza. — E não me consta que ela seja uma doméstica.

— Mas, por que eu não posso subir? — perguntou ela com uma ênfase dramática. — Quero ver o pobre Woody. A morte é tão bela e eu gostava muito de Woody. Por ordens de quem, pergunto eu, está-me sendo negado esta última comunhão com aquele que partiu?

— Por ordens minhas — disse-lhe friamente Vance. — Além disso, essa morte aqui está longe de ser bela, eu lhe garanto. Infelizmente, não estamos vivendo na era de Maeterlinck. A morte de Swift é bastante sórdida, creia-me. A polícia não tardará a chegar. Até lá, ninguém tem permissão para ir lá em cima.

Os olhos da Srta. Weatherby faiscaram.

— Então, por que — perguntou com indignação teatral — estava esta... esta mulher — e olhou com desprezo para a enfermeira — descendo as escadas quando eu entrei no corredor?

Vance não procurou esconder um sorriso divertido.

— Não tenho idéia. Posso perguntar a ela depois. Mas acontece que ela recebeu instruções para não deixar ninguém subir. Vai ter a gentileza, Srta. Weatherby, — acrescentou quase que asperamente — de voltar para o salão e lá permanecer até que cheguem as autoridades?

A mulher olhou com arrogância para a enfermeira e depois, com um movimento de cabeça, caminhou para a escada. De lá voltou-se, com um sorriso cínico, gritou para nós em tom artificial: — Minhas bênçãos, crianças. — E com o que desapareceu no salão.

A enfermeira, obviamente embaraçada, voltou-se para regressar a seu posto, mas Vance interrompeu-a: — Esteve lá em cima, Srta. Beeton? — perguntou com um tom bondoso.

Ela estava parada, ereta, sua face ligeiramente ruborizada. Mas, para toda a sua aparente perturbação, ela era como um símbolo de equilíbrio. Fitou Vance franca e firmemente e depois sacudiu a cabeça devagar.

— Não deixei o meu posto, Sr. Vance — disse com calma. — Eu sei qual é o meu dever.

Vance devolveu-lhe o olhar por um instante e, em seguida inclinou levemente a cabeça.

— Obrigado, Srta. Beeton — disse.

Vance retornou à saleta e, fechando a porta, dirigiu-se novamente a Garden.

— Agora que nos livramos temporariamente da dramática rainha — sorriu sombriamente — acho que podemos continuar a nossa conversa.

Garden riu de leve e recomeçou a encher o cachimbo.

— Garota estranha a Madge, sempre agindo como uma atriz; mas não creio que ela algum dia tenha realmente feito teatro. Ambição dramática reprimida e tudo o mais. Sonha que e uma segunda Nazimova... e sonhos mórbidos. A não ser isso, ela é bastante normal. Aceita suas derrotas como um velho general... e nos últimos meses ela tem perdido um bocado...

— Você ouviu quando ela me disse gostar muito de Swift — observou Vance. — Que queria ela dizer com isso, exatamente?

Garden deu de ombros.

— Nada, em minha opinião. Ela nem sequer ligava para a existência dele, por assim dizer. Porém morto, Woody torna-se uma possibilidade dramática.

— É, é isso — murmurou Vance. — Isto me faz lembrar: qual era a discórdia entre Swift e a Srta. Graem? Percebi suas atividades pacificadoras hoje à tarde.

Garden tornou-se sério.

— Eu mesmo não consegui entender a situação. Sei que há algum tempo atrás eles estiveram bastante ternos um com o outro, isto é, Woody estava muito interessado nos acontecimentos desde que Zalia participasse, pairava à volta dela o tempo todo e aceitava os seus gracejos amistosos sem um murmúrio. Depois, de repente, o caso amoroso em embrião — ou o que quer que fosse — azedou. Do tipo "nunca mais falarei com você". Como duas crianças. Evidentemente deve ter acontecido alguma coisa, mas eu nunca soube ao certo. Pode ter sido uma nova paixão por parte de Woody; estou certo de que foi algo no gênero. Quanto à Zalia, ela nunca levou a coisa a sério. E tenho uma idéia aqui comigo de que Woody insistiu naquela cartada por algum motivo relacionado com Zalia...

— Garden parou abruptamente de falar e deu um tapa na coxa: — Puxa vida! Eu não ficaria admirado se aquela jogadorazinha de uma figa tivesse desprezado Woody porque ele era relativamente duro. Com essas garotas de hoje nunca se sabe. Elas são tão interesseiras como o diabo em pessoa.

Vance assentiu com a cabeça pensativamente.

— Suas observações coincidem um pouco com o que ela me disse há poucos instantes. Também ela queria ir lá em cima ver Swift. Seu pretexto era o fato de se sentir culpada por todo esse sórdido negócio.

Garden sorriu.

— Bem, aí tem você — depois acrescentou ponderadamente: — Mas com as mulheres nunca se sabe. Às vezes Zalia dá a impressão de ser superficial, mas no minuto seguinte ela faz um comentário que o levaria a crer estar ouvindo um filósofo octogenário. Uma garota especial. Ali estão muitas possibilidades.

— Estou vendo. — Vance fumou em silêncio por alguns instantes, depois prosseguiu. — Há um outro ponto relativo a Swift que você talvez pudesse esclarecer. Você poderia sugerir algum motivo pelo qual Swift me olhou com ganas de ódio na ocasião em que fiz a aposta em Azure Star para a Srta. Beeton?

— Eu também notei isso — concordou Garden. — Mas não posso dizer que signifique muita coisa. Woody sempre foi um fracalhão com as mulheres. Um nada o fazia crer que estava apaixonado. Ele pode ter-se interessado pela enfermeira; afinal há alguns meses que ele a vê aqui. E agora que você mencionou o fato, em diversas ocasiões ele se mostrou feroz comigo porque a Srta. Beeton me tratava mais cordialmente do que a ele. Mas quanto a Woody, eu acho o seguinte: se ele se interessou pela Srta. Beeton, o gosto dele estava melhorando. Ela é uma garota diferente... fora de série.

Vance meneou a cabeça lentamente e fixou a janela com especial concentração.

— Sim — murmurou — muito diferente. — Depois, como regressando de algum pensamento distante, esmagou o cigarro e inclinou-se para a frente: — Vamos deixar de lado a especulação, por agora. Suponhamos que você me diga alguma coisa sobre a caixa-forte lá em cima.

Garden encarou-o com surpresa evidente.

— Nada há a dizer sobre aquele velho bazar. E na realidade aquilo não é uma caixa forte. Há alguns anos papai descobriu que havia acumulado uma porção de papéis privados e dados experimentais que ele não gostaria de ver os visitantes comuns bisbilhotando. Então mandou construir aquele depósito à prova de fogo para abrigar os seus tesouros científicos. A caixa-forte, como você chama, foi feita mais na intenção de mero isolamento que de segurança. É apenas uma salinha com estantes toda à volta.

— Todos na casa têm acesso a ela? — perguntou Vance.

— Qualquer um que o deseje — replicou Garden. — Mas quem, em nome dos céus, poderia querer ir lá?

— Realmente, eu não sei; não tenho a mais remota idéia — retorquiu Vance — exceto que, quando eu desci há pouco, encontrei a porta destrancada.

Garden sacudiu os ombros despreocupadamente, como se o assunto fosse normal e sem importância.

— Provavelmente — sugeriu — papai não a fechou bem quando saiu hoje de manhã. Ela tem um fecho de mola.

— E a chave?

— A chave é mais uma formalidade. Fica pendurada em um prego ao lado da porta.

— Então, segundo o que diz, o cofre é facilmente acessível a qualquer morador que ali.queira entrar.

— Exatamente — concordou o outro. — Mas, onde está você querendo chegar, Vance? Que tem o cofre a ver com a morte do pobre Woody?

— Não estou certo — respondeu Vance lentamente, erguendo-se e voltando à janela. — Gostaria de saber. Estou simplesmente tentando não desprezar qualquer possibilidade.

— Sua linha de interrogatório parece-me um bocado forçada — comentou Garden com indiferença.

— Nunca se sabe, não é? — murmurou Vance indo em direção à porta. — Srta. Beeton, — chamou — poderia ter a gentileza de ir lá em cima e ver se a chave da caixa-forte está no lugar?

Minutos depois regressava a enfermeira e informava a Vance que a chave estava onde sempre fora guardada.

Vance agradeceu e, fechando a porta da saleta, voltou-se para Garden: — Há um outro ponto também importante que você poderá esclarecer para mim; isto pode ter uma definida influência na situação — sentou-se em uma cadeira baixa de couro verde e tirou a cigarreira. — O jardim tem acesso pela saída de incêndio do terraço?

— Sim, claro! — O outro sentou-se com animação. — Há um portão na grade do lado este do jardim, exatamente ao lado da cerca de alfenas que conduz ao terraço, para onde se abre a saída de incêndio do prédio. Quando fizemos a grade, tivemos de botar um portão devido às leis de segurança contra incêndio. Mas é raramente usado, exceto nas noites quentes de verão. Assim, se alguém subiu a escada principal até o telhado, e saiu pela porta de emergência, essa pessoa poderia facilmente entrar em nosso jardim através do portão na grade.

— Vocês não mantêm a porta trancada? — Vance estudava com extrema atenção a ponta de seu cigarro.

— Os regulamentos de incêndio não permitem. Temos lá apenas uma velha tramela do tipo de porta de estábulo.

— Isto é muito interessante — comentou Vance em voz baixa. — Então, segundo eu compreendo, qualquer pessoa que subisse a escada principal poderia entrar no terraço pela porta de incêndio e daí para o jardim. E, naturalmente, voltar pelo mesmo caminho.

— Certo — Garden apertou os olhos interrogativamente. — Você realmente crê que alguém possa ter entrado no jardim por ali e abatido o pobre Woody enquanto estávamos todos aqui embaixo?

— Eu por enquanto estou pensando o menos possível — respondeu Vance em evasiva. — Estou tentando reunir material para pensar, sabe como é?

Pudemos ouvir a campainha da entrada vibrar e abrir-se uma porta. Vance foi até o corredor. Um momento após o mordomo introduziu o procurador distrital Markham e o sargento Heath, acompanhado de Snitkin e Hennessey *.

 

 

 

*Snitkin e Hennessey eram dois detetives do Departamento de Homicídios que trabalharam em colaboração com o sargento Heath em vários processos criminais com que Vance estivera relacionado.

 

 

 

 

VII

 

Evidência de Assassinato

 

 

 

(Sábado, 14 de abril — 17:10 horas)

 

 

— Bom, qual é o problema, Vance? — perguntou asperamente Markham. — Telefonei para Heath como você pediu e trouxe-o comigo.

— É um negócio feio — respondeu Vance. — Exatamente como eu lhe disse. Receio que você vá encontrar algumas dificuldades; não é um crime comum. Tudo o que consigo colher é logo destruído por um fato novo. — Ele passou o olhar por Markham e acenou amistosamente para Heath. — Desculpe-me dar-lhe todo esse trabalho, sargento.

— Não há problema, Sr. Vance. — Heath estendeu-lhe a mão numa solene simpatia. — Fico satisfeito por estar lá na hora em que o Chefe telefonou. Que está acontecendo e que devemos fazer?

A Sra. Garden irrompeu alvoroçadamente pelo corredor.

— O senhor é o procurador distrital? — perguntou encarando ferozmente Markham. Sem esperar pela resposta, prosseguiu: — Tudo isto é um ultraje. Meu pobre sobrinho matou-se e este homem aqui — olhou para Vance com supremo desprezo — está tentando fazer um escândalo. — Seu olhar percorreu Heath e os dois detetives. — E suponho que vocês sejam da polícia. Não há razão alguma para que estejam aqui.

Markham olhou-a com firmeza e pareceu compreender imediatamente a situação.

— Minha senhora, se as coisas são como diz — prometeu ele num tom apaziguador porém grave — não precisa recear qualquer escândalo.

— Deixo o caso inteiramente em suas mãos, senhor — retrucou a senhora com calma dignidade. — Estarei no salão à sua disposição para o que seja necessário. — Ela deu meia volta e caminhou pelo corredor afora.

— Um negócio bastante complicado e desagradável, Markham. — Vance levantou novamente a questão. — Admito que o camarada lá em cima aparenta ter-se matado. Mas isso, creio eu, é o que se espera que todos acreditem. Um quadro superficialmente correto. Encenação e cenário bastante bons porém tudo está longe da perfeição; observei discrepâncias. Na realidade, o rapaz não se matou. E há aqui diversas pessoas que deverão ser interrogadas mais tarde. Estão todos no salão agora; exceto Floyd Garden.

Garden, que estivera de pé à porta da saleta, avançou e Vance apresentou-o a Markham e Heath. Depois Vance voltou-se para o sargento.

— Acho que você deveria mandar Snitkin ou Hennessey ficarem aqui embaixo e verificar que ninguém deixe o apartamento por enquanto. — Dirigiu-se a Garden: — Espero que você não se importe.

— Em absoluto — replicou Garden complacentemente.

— Vou juntar-me aos outros que estão no salão. Estou mesmo precisando de um highball. — Saudou a todos de cabeça e retirou-se.

— Seria melhor que fôssemos lá para o terraço, Markham — disse Vance. — Vou recapitular tudo com você. Há alguns aspectos estranhos no caso. Não estou gostando nada disso. Lamento bastante ter vindo aqui hoje. Poderia ter passado por um lindo e elegante suicídio sem qualquer suspeita... Todos muito aliviados. Mas, cá estou eu. E no entanto...

Ele avançou pelo corredor, e Markham, Heath e eu o seguimos. Mas antes de subir as escadas ele parou e dirigiu-se à enfermeira.

— Não mais precisa ficar de guarda aqui, Srta. Beeton — disse. — E obrigado pela ajuda. Mais um favor ainda: quando chegar o médico legista, por favor, traga-o diretamente para cima.

A jovem inclinou a cabeça em sinal de aquiescência e entrou no quarto de dormir.

Subimos imediatamente para o jardim. Quando chegamos ao terraço, Vance indicou o corpo de Woody derreado na cadeira.

— Aqui está o cara — disse. — Exatamente como eu o encontrei.

Markham e Heath aproximaram-se mais do vulto caído e o examinaram durante instantes. Finalmente, Heath ergueu os olhos com um ar perplexo.

— Bem, Sr. Vance, — anunciou desafiador — parece mesmo suicídio. — E mudou o charuto de um canto para o outro.

Markham também voltou-se para Vance e meneou a cabeça em sinal de concordância com a observação do sargento.

— É exato que tem aparência de suicídio, Vance — observou.

— Não, não — suspirou Vance. — Não é suicídio. Um crime diabolicamente brutal e extremamente inteligente.

Markham fumou durante algum tempo, ainda fitando cepticamente o corpo; depois sentou-se encarando Vance.

— Vamos ver a história toda antes que Doremus* chegue aqui — pediu com uma acentuada irritação.

 

 

 

*Dr. Emanuel Doremus, o legista-chefe da cidade de Nova York.

 

 

 


Vance permaneceu de pé, seus olhos percorrendo o jardim sem se fixarem. Após um instante, ele contou outra vez, sucinta porém cuidadosamente, toda a seqüência dos acontecimentos da tarde, com todas as interrelações e explosões temperamentais; os diferentes páreos e apostas; a retirada de Swift para o jardim a fim de aguardar os resultados do grande prêmio; e, finalmente, o tiro que fizera todos erguerem-se e subirem. Quando terminou, Markham cocou o queixo durante algum tempo.

— Ainda não encontrei um único fato — objetou — que não aponte logicamente um suicídio.

Vance encostou-se à parede vizinha à janela do estúdio e acendeu um Régie.

— Evidentemente, nada há no esboço que eu fiz que possa indicar um assassinato. Não obstante, foi assassinato; e o esboço é exatamente a concatenação exata de fatos que o assassino nos quer fazer aceitar. Deveríamos chegar à óbvia conclusão de suicídio. Suicídio como o resultado de perder dinheiro nas corridas não é, de forma alguma, um acontecimento raro, e bem recentemente tem havido notícias nos jornais sobre o assunto*. Não é impossível que o plano do assassino tenha sido influenciado por esses relatos. Mas há outros fatores, psicológicos e reais, que desmentem toda essa estrutura superficial e enganadora.

 

 

 

*Vance referia-se ao suicídio de um homem em Houston, Texas, que deixou o seguinte bilhete: "Ao público: As corridas de cavalo fizeram isto. A melhor coisa que os juristas do Texas poderiam fazer é revogar e tornar mais severa a atual legislação do jogo."

 

 

 


Deu umas tragadas no cigarro e ficou observando o anel azulado da fumaça desfazer-se na leve brisa que vinha do rio.

— Para início de conversa — prosseguiu — Swift não era do tipo de gente que se suicida. Uma observação trivial, que muitas vezes pode não ser verdadeira. Mas, nas circunstâncias atuais, não há motivo para duvidar de sua veracidade, a despeito de o jovem Garden ter-se dado muito trabalho para me convencer do contrário. Em primeiro lugar, Swift era uma criatura fraca e altamente imaginativa. Além disso, ele era demasiado esperançoso e ambicioso, muito seguro de seu próprio discernimento e boa sorte, para colocar-se fora deste mundo simplesmente por ter perdido todo o dinheiro que tinha. A possibilidade de Equanimity não vencer a corrida era uma eventualidade que, em sua condição de experimentado jogador, ele teria considerado de antemão. Além disso, sua natureza é tal que, se ele estivesse grandemente desapontado, o resultado seria autocomiseração e ódio dos outros. Ele poderia, em uma emergência, ter cometido um crime, mas isto nunca seria contra si próprio. Como todos os jogadores, ele era confiante e crédulo; e acho que foram essas qualidades temperamentais que provavelmente o tornaram uma presa fácil para o assassino.

— Mas olhe aqui, Vance — Markham inclinou-se para a frente, protestando. — Nenhuma espécie de simples análise psicológica pode fabricar um crime de uma situação tão aparentemente óbvia como a presente. Afinal de contas, estamos em um mundo prático e eu sou o representante de uma profissão prática. Necessito de motivos mais definidos que os apresentados por você antes de me sentir justificado a descartar a idéia de suicídio.


— Ah, eu acredito — anuiu Vance. — Mas tenho evidências mais tangíveis de que o camarada aqui não eliminou a própria vida. Entretanto, as implicações psicológicas do indivíduo — as contradições, digamos assim, entre o seu caráter e a situação atual foram o que primeiro me levaram a procurar uma evidência específica e clara de que ele não estava sem ajuda em sua morte.

— Bem, vejamos — Markham tamborilou impacientemente com os dedos na cadeira.

— Imprimis, meu caro Justiniano, um buraco de bala na têmpora, indubitavelmente, provocaria mais sangue que o encontrado na fronte do falecido. Como você pode ver, há apenas algumas gotas parcialmente coaguladas, enquanto que os vasos do cérebro não podem ser perfurados sem uma enorme perda de sangue. E também não há sangue em suas roupas ou nos azulejos embaixo de sua cadeira. Isto significa que o sangue talvez tenha sido derramado em outro lugar antes que eu chegasse ao local, o que foi, digamos, trinta segundos após termos ouvido o tiro...

— Mas, por Deus, homem!

— Sim, sim, já sei o que você vai dizer. E minha resposta é que o cavalheiro não recebeu a bala na têmpora enquanto estava sentado em sua cadeira de vime e usando o fone de cabeça. Ele foi morto em outro lugar e trazido para cá.

— Uma teoria bastante remota — murmurou Markham — nem todas as feridas sangram da mesma maneira.

Vance ignorou a objeção do procurador distrital.

— E por favor dê uma boa olhada no pobre coitado que está sentado aí, livre de todos os horrores da luta pela existência. Suas pernas estão estendidas para a frente em um estranho ângulo. As calças estão fora do lugar, retorcidas, e parecem inconfortáveis; seu paletó, apesar de abotoado, está fora do lugar, de maneira que o colarinho está pelo menos dez centímetros acima de sua bonita camisa lilás. Nenhum homem admitiria ter suas roupas tão ultrajantemente retorcidas, mesmo à beira do suicídio; ele as teria ajeitado quase que inconscientemente. O corpo de delito dá todas as indicações de que Woody foi arrastado e sentado naquela cadeira.

Os olhos de Markham iam examinando o cadáver de Swift enquanto Vance falava.

— Até mesmo esse argumento não é muito convincente — disse dogmaticamente, embora seu tom estivesse levemente modificado — especialmente em vista do fato de ele ainda usar o fone de cabeça.

— Ah, exatamente! — Vance interrompeu rápido. — Este é um outro ponto para o qual eu queria chamar a sua atenção. O assassino exagerou um pouco; havia um quê de perfeição demais na preparação do cenário. Caso Swift se tivesse matado naquela cadeira, acho que o seu primeiro impulso teria sido o de arrancar o fone da cabeça, pois esse facilmente teria interferido em seu objetivo. E também o fone não mais lhe seria útil após ter ouvido o resultado das corridas. Além do mais... tenho sérias dúvidas de que ele tenha ido lá em cima para ouvir as corridas, já decidido a cometer suicídio, caso o seu cavalo não chegasse primeiro. E, como já lhes expliquei, o revólver pertence ao Sr. Garden e costumava ser guardado na escrivaninha do estúdio. Conseqüentemente, se após corrido o páreo Swift tivesse decidido matar-se, dificilmente teria ido até o estúdio procurar a arma, para depois voltar à sua cadeira no terraço e colocar serenamente o fone antes de dar cabo à vida. Indubitavelmente, ele se teria matado lá mesmo no estúdio, perto da escrivaninha de onde teria tirado o revólver.

Vance avançou um pouco como para dar ênfase às suas palavras.

— Um outro ponto a respeito do fone de cabeça. O que primeiro me deu uma pista do crime, é o fato que agora o fone está na orelha direita de Swift. Hoje cedo eu vi Swift colocar o fone e observei que ele tinha o cuidado de colocar o receptor na orelha esquerda, isto é, na maneira habitual. Veja, Markham, o receptor do telefone sempre é colocado à esquerda da caixa que contém o aparelho, a fim de deixar a mão direita livre para qualquer anotação ou outras emergências. O resultado disso é que o ouvido esquerdo adaptou-se a ouvir mais distintamente pelo aparelho que o direito. E, em conseqüência disso, a humanidade acostumou-se a segurar o fone junto à orelha esquerda. Swift estava simplesmente agindo de acordo com um hábito e instinto, quando colocou a extremidade receptora do fone no lado esquerdo da cabeça. Mas, agora, o fone está em posição inversa e, portanto, fora do normal. Estou certo, Markham, de que o fone foi colocado em sua cabeça após a morte.

Markham meditou no caso durante alguns momentos.

— Ainda assim, Vance, — disse ele por fim — poderíamos erguer objeções razoáveis a todos os pontos que você apresentou. Eles são baseados quase que inteiramente em teoria e não em fatos demonstráveis.

— Do ponto de vista legal, você está certo — concordou Vance — e se estas fossem as minhas únicas razões para acreditar que foi cometido um crime, eu não o teria convocado aqui, nem ao valente sargento. Mas, mesmo assim, Markham, posso garantir-lhe que as poucas gotas de sangue que você vê nas têmporas aqui do nosso amigo não teriam engrossado ao ponto em que estavam quando eu vi o corpo pela primeira vez; elas deviam já estar expostas ao ar por alguns minutos. E, como eu digo, cheguei aqui em cima aproximadamente trinta segundos após ouvirmos o tiro.

— Mas se é assim — retrucou Markham surpreendido — como pode você explicar o caso?

Vance esticou-se um pouco e olhou para o procurador distrital com uma gravidade involuntária: — Swift não morreu do tiro que ouvimos.

— Isto para mim não faz sentido, Sr. Vance — interpôs Heath, carrancudo.

— Um momento, sargento. — Vance fez-lhe um gesto frio. — Quando notei que o tiro que acabou com a existência aqui do nosso rapaz não fora o que ouvíramos, eu tentei imaginar onde poderia ter sido feito o disparo fatal de modo a não ser ouvido lá embaixo. E eu descobri o lugar. Foi no depósito que parece uma caixa-forte e, poderíamos dizer, é quase a prova de som e fica do outro lado do corredor que leva ao estúdio. Achei a porta destrancada e procurei evidência de alguma atividade naquele local...

Markham erguera-se e dava algumas passadas nervosas à volta do pequeno lago em meio do terraço.

— Você achou alguma evidência para confirmar a sua teoria? — perguntou.

— Sim, evidência inequívoca. — Vance caminhou até a figura imóvel na cadeira e apontou para os óculos de grossas lentes colocados quase na ponta do nariz. — Para início de conversa, Markham, você vai notar que os óculos de Swift estão numa posição que não é normal, indicando que foram colocados apressadamente e sem cuidado por outra pessoa, da mesma forma que o fone da cabeça.

Markham e Heath inclinaram-se e estudaram os óculos.

— Bem, Sr. Vance, — concordou o sargento — eles certamente não parecem ter sido colocados pelo próprio dono.

Markham ergueu-se, apertou os lábios e concordou lentamente com a cabeça: — Está certo — disse. — Que mais?

— Reflita, Markham. — Vance apontou com o cigarro.

— A lente esquerda dos óculos, a que está mais afastada da têmpora perfurada, está quebrada no canto e falta um pedacinho em forma de V onde começa o rachado: uma indicação de que os óculos caíram e racharam. Posso garantir-lhe que as lentes não estavam quebradas nem rachadas quando vi Swift vivo pela última vez.

— Ele não poderia ter deixado cair os óculos aqui no terraço? — perguntou Heath.

— É possível, sem dúvida, sargento — retrucou Vance. — Mas não o fez. Procurei cuidadosamente nos ladrilhos à volta da cadeira e o pedaço que falta não estava aí.

Markham olhou para Vance sobranceiro.

— Talvez você saiba onde se encontra.

— E o achei — disse Vance — no chão de ladrilho da caixa-forte, do outro lado do corredor. E estava próximo a alguns papéis espalhados que é bem possível tenham sido derrubados no chão por alguém que neles bateu ao cair.

Os olhos de Markham arregalaram-se com incredulidade; voltou-se e estudou novamente o cadáver com atenção. Finalmente, respirou fundo e mordeu os lábios.

— Estou começando a ver por que você queria a mim e ao Sargento Heath aqui — disse devagar. — Mas, o que não compreendo, Vance, é o segundo tiro que você ouviu. Como você o explica?

Vance deu uma profunda tragada.

— Markham, — respondeu com uma seriedade tranqüila — quando soubermos como e por quem foi dado o segundo tiro, que, obviamente, destinava-se a ser ouvido por nós, saberemos quem matou Swift...

Nesse instante a enfermeira apareceu na porta que levava ao terraço. Com ela estavam o Dr. Doremus e, atrás do legista, o capitão Dubois e o detetive Bellamy, os homens das impressões digitais, e também Peter Quackenbush, o fotógrafo oficial da polícia.


VIII

 

Fios Desligados

 

(Sábado, 14 de abril — 17:30 horas)

 

 

 

Com um gesto profissional, a Srta. Beeton indicou nossa presença no terraço e afastou-se para o lado; o médico legista caminhou vivamente em nossa direção com um "Obrigado, querida" atirado à enfermeira por cima do ombro.

— Se eu puder ajudar em alguma coisa — ofereceu a jovem.

— Por enquanto, não — replicou Vance com sorriso amável — embora possamos chamá-la mais tarde.

Com uma inclinação de cabeça ela indicou ter compreendido e voltou a descer.

Doremus responde à nossa saudação conjunta com um jovial aceno de mão e estacou airosamente diante de Heath.

— Parabéns, sargento — disse ele num falsete de zombaria. — Parabéns, mesmo!

O sargento imediatamente pôs-se em guarda, pois já conhecia de há muito a língua apimentada do legista.

— Bem, que está acontecendo, doutor? — riu Heath.

— Pela primeira vez em sua vida — prosseguiu jocosamente Doremus — você achou a hora certa para me chamar. Positivamente surpreendente, como diria o Sr. Vance aqui presente. Eu não estava nem comendo nem dormindo, quando chegou o seu chamado. Nada tinha a fazer; realmente estava meio chateado. Pela primeira vez na história, você não me tirou da mesa, nem me arrancou de sob os cobertores. Por que este repentino surto de caridosa consideração? Pela primeira vez vou fazer um serviço de bom humor... Tragam todos os cadáveres e eu os examinarei sem rancor.

Heath divertia-se apesar de estar aborrecido.

— Eu não estou providenciando assassínios de acordo com a sua conveniência. Mas se desta vez o encontrei à toa, fico satisfeito. Há um cara na cadeira ali. É um achado do Sr. Vance e ele tem algumas idéias a respeito.

Doremus empurrou o chapéu bem para trás, enfiou as mãos nos bolsos das calças e caminhou tranqüilamente até a cadeira de vime e seu ocupante sem vida. Fez um rápido exame do flácido vulto, inspecionou o orifício da bala, testou os braços e pernas com relação ao rigor mortis e, em seguida, deu meia volta para encarar-nos.

— Então, qual é o problema? — perguntou com seu modo quase cínico. — Ele está morto; um tiro na cabeça com uma bala de pequeno calibre e o chumbo provavelmente se alojou no cérebro. Não há buraco de saída. Dá a impressão que ele decidiu matar-se com um tiro. E nada há que contradiga essa suposição. A bala entrou na têmpora, no ângulo certo. Além disso, há marcas de pólvora mostrando que a arma foi colocada bem perto, quase um tiro à queima-roupa, eu diria. Há um indício de chamusco à volta do orifício.

Ele balançou-se na ponta dos pés e olhou de soslaio para o sargento: — Você não me precisa perguntar há quanto tempo ele está morto, porque não posso dizer. O máximo que eu lhe posso adiantar é que ele morreu entre mais ou menos 30 minutos e 2 horas. Ainda não está frio e o rigor mortis ainda não se instalou. O sangue da ferida está apenas levemente coagulado, porém as variações desse processo, especialmente ao ar livre, não permitem um cálculo apurado do tempo decorrido. Que mais quer que eu lhe diga?

Vance tirou o cigarro da boca e dirigiu-se a Doremus: — Diga-me, doutor: falando do sangue na têmpora do nosso amigo aqui, que me diz da quantidade?

— Um bocado reduzida, eu diria — Doremus respondeu prontamente. — Mas os ferimentos de bala têm, às vezes, umas reações estranhas. De qualquer forma, deve ter havido bastante mais sangue derramado.

— Precisamente — anuiu Vance. — Minha teoria é que ele foi alvejado em outro lugar e trazido para esta cadeira.

Doremus fez uma careta e inclinou a cabeça para um lado.

— Foi alvejado? Então você não acha que foi suicídio? — ponderou o legista por uns instantes. — Poderia ser, é claro — decidiu-se finalmente. — Não há razão que impeça um cadáver de ser carregado de um lugar para o outro. Ache o resto de sangue e você provavelmente saberá onde ocorreu a morte.

— Imensamente grato, doutor — Vance sorriu palidamente. — Isto também me passou pela idéia, entende, mas acho que o sangue foi limpo. Eu estava simplesmente desejando que suas descobertas consubstanciassem a minha teoria de que ele não se matou sentado naquela cadeira, sem qualquer pessoa à sua volta.

Doremus deu de ombros com indiferença.

— Esta é uma suposição bastante razoável — disse. — Na realidade, deveria haver mais sangue. E posso dizer-lhe que ele não o enxugou após ser disparado o tiro. Ele morreu instantaneamente.

— Tem mais algumas sugestões? — perguntou Vance.

— Poderei ter quando tiver examinado o corpo mais cuidadosamente, depois que esses rapazes — ele indicou com um gesto o fotógrafo e o datiloscopista — tenham terminado a sua bagunça.

O capitão Dubois e Bellamy já haviam dado início ao seu trabalho de rotina, começando pela mesa do telefone; quanto a Quackenbush, estava ajustando o seu pequeno tripé metálico.

Vance dirigiu-se a Dubois: — Por favor, capitão, dê sua especial atenção ao fone de cabeça, ao revólver e aos óculos. E também à maçaneta da porta da caixa-forte lá no corredor interno.

Dubois anuiu com um grunhido e continuou suas delicadas funções.

Quackenbush, tendo instalado sua câmara, tirou as fotografias e depois esperou à porta do corredor por outras instruções dos datiloscopistas.

Depois que os três homens acabaram, Doremus deu um suspiro exagerado e falou impacientemente com Heath.

— Que tal levar o seu corpus delicti para o sofá? Será mais fácil examiná-lo lá.

— O.K., doutor.

O sargento comandou Snitkin com um movimento de cabeça e os dois homens ergueram o flácido corpo de Swift e colocaram-no no mesmo divã onde Zalia Graem estivera reclinada quando desmaiou à vista do cadáver.

Doremus entrou em ação com sua habitual maneira rápida e eficiente. Quando terminou sua tarefa, atirou uma manta sobre o cadáver e fez um sucinto relatório a Vance e Markham.

— Nada há que indique luta violenta, se era isto que você estava esperando. Mas há uma leve arranhadura no osso do nariz, como se os óculos tivessem saltado fora, e há um pequeno galo no lado esquerdo da cabeça, sobre a orelha, que pode ter sido causado por pancada de qualquer tipo, embora a pele não esteja rompida.

— Então, doutor — falou Vance — como se enquadraria em seus achados a seguinte teoria: o homem foi alvejado em outro lugar qualquer, caiu em um piso ladrilhado, batendo fortemente com a cabeça de encontro ao mesmo; na queda os óculos foram arrancados e a lente esquerda bateu no chão; depois, ele foi carregado àquela cadeira e os óculos recolocados em seu nariz?

Doremus apertou os lábios e inclinou a cabeça meditando.

— Isto seria uma explicação bastante razoável para o galo na cabeça e o arranhão no osso do nariz. — Atirou com a cabeça para trás, ergueu as sobrancelhas e ironizou: — Então esse é mais um de seus crimes estrambólicos, hem? Bem, para mim, não há problema. Mas vou dizer-lhe desde já, você não terá um relatório de autópsia esta noite. Estou aborrecido e preciso de distração. Vou ao Madison Square Garden para ver Strangler Lewis e Londos se destruírem na lona. — O legista atirou o queixo para a frente numa beligerância bem humorada para com Heath. — E também não vou deixar o número da minha cadeira na portaria, sargento. Pode adiar as suas eventuais futuras ocorrências para amanhã ou, então, incomode um de meus assistentes.

Em seguida, redigiu uma ordem para a remoção do corpo; reajustando o chapéu, deu um aceno incluindo todos nós e desapareceu rapidamente pela porta que dava para o corredor.

Vance abriu caminho em direção ao estúdio e nós o seguimos. Mal havíamos sentado quando o capitão Dubois entrou e informou que não havia qualquer espécie de impressões digitais em quaisquer dos objetos que Vance enumerara.

— Usaram luvas — concluiu laconicamente — ou então limparam depois.

Vance agradeceu e acrescentou: — Isto em nada me surpreende.

Dubois reuniu-se a Bellamy e Quackenbush no corredor e os três desceram a escada.

— Então, Vance, está satisfeito? — perguntou Markham. Vance fez que sim.

— Eu não esperava que encontrassem impressões. Um crime muito bem planejado. E o que Doremus encontrou preenche alguns claros da minha teoria. Rapaz decidido, esse Doremus. Com todas as suas manias, ele entende do negócio. Sabe o que se quer e procura por aquilo. Não há mais dúvidas de que Swift estava na caixa-forte quando foi alvejado; de que caiu ao chão, derrubando alguns papéis; que bateu com a cabeça no chão de ladrilho e quebrou a lente esquerda dos óculos, e que ele foi arrastado até o jardim e colocado na cadeira. Swift era um homem pequeno, esbelto, provavelmente não pesava mais que sessenta quilos, não deve ter sido necessário muita força para transportá-lo após a morte...

Ouviram-se alguns passos no corredor e quando nossos olhos involuntariamente voltaram-se para a porta, vimos a digna e idosa figura do Prof. Ephraim Garden: eu o reconheci imediatamente pelas fotografias que vira.

Era um homem alto, apesar de seus ombros encurvados e, embora muito magro, possuía uma capacidade de resistência que fazia as pessoas sentirem que ele havia conservado uma grande parte da força física que certamente tivera na juventude. Havia benevolência naquele rosto um tanto perturbado, mas havia também perspicácia em seu olhar; o contorno de sua boca indicava uma firmeza latente. O cabelo, escovado para trás, era quase branco e parecia acentuar a tristeza do conjunto. Os olhos escuros e a expressão do rosto eram como os de seu filho, porém ele era um tipo mais sensível e estudioso que Garden.

O professor curvou-se para nós com uma graça um tanto antiquada e deu alguns passos entrando no estúdio.

— Meu filho acabou de informar-me — disse numa voz levemente belicosa — da tragédia que aconteceu aqui hoje à tarde. Lamento não ter voltado para casa mais cedo, como é meu desejo aos sábados, porque nesse caso a tragédia poderia talvez ter sido evitada. Da minha parte, eu estaria no estúdio, e certamente teria exercido alguma vigilância sobre o meu sobrinho. E, de qualquer forma, ninguém poderia ter-se apossado do meu revólver.

— Eu não teria tanta certeza, doutor Garden, — respondeu tristemente Vance — de que sua presença aqui esta tarde pudesse ter evitado a tragédia. Não é um assunto tão simples como parece à primeira vista.

O Prof. Garden sentou-se em uma cadeira antiga, trabalhada à mão, que estava próximo à porta e, entrecruzando os dedos firmemente, inclinou-se para a frente.

— É, eu sei. Compreendo. E quero ouvir mais alguma coisa sobre o caso. — Era evidente a tensão em sua voz. — Floyd disse que a morte de Woody tinha toda a aparência de suicídio, mas que o senhor não aceita essa conclusão. Pode dar-me as suas razões, Sr. Vance?

— Não tenho a menor dúvida, senhor, de que seu sobrinho foi assassinado — respondeu calmamente Vance. — Há um sem-número de indicações que contradizem a teoria de suicídio. Mas seria pouco aconselhável, assim como igualmente desnecessário, entrar em detalhes no momento. Nossa investigação mal começou.

— É preciso haver uma investigação? — perguntou o professor num trêmulo protesto.

— O senhor não deseja que o criminoso seja entregue à justiça? — perguntou Vance friamente.

— Sim, sim, naturalmente. — A resposta do professor foi quase involuntária, mas, enquanto falava, seus olhos vagueavam sonhadoramente através da janela que dominava o rio. Depois, ele se acomodou melhor na cadeira. — É bastante desagradável isso — murmurou. — Mas o senhor está bem seguro de que não vai provocar um escândalo desnecessário?

— Completamente — assegurou Vance. — Quem quer que cometeu o crime, fez graves erros de cálculo. A sutileza do crime não se estendeu a todas as suas fases. Na realidade, acredito que alguma situação ou incidente fortuito exigiram certas modificações de última hora. Por falar nisso, doutor, posso perguntar-lhe o que o deteve esta tarde? Concluí do que me disse seu filho, que nos sábados geralmente o senhor volta para casa muito antes desta hora.

— É claro que pode — respondeu ele com aparente franqueza, mas havia uma expressão atônita em seu olhar enquanto encarava Vance. — Eu precisava dar uma vista em alguns dados um tanto obscuros antes de prosseguir com as experiências que estou fazendo; achei que hoje era um dia excelente para fazê-lo, visto que, aos sábados à tarde, fecho o laboratório e dispenso meus assistentes.

— E onde esteve o senhor — prosseguiu Vance — entre o momento em que deixou o laboratório e a hora de sua chegada aqui?

— Para ser bem específico — respondeu o Prof. Garden — deixei a Universidade por volta das duas horas e fui para a biblioteca municipal onde permaneci até meia hora atrás. Depois, peguei um táxi e vim diretamente para casa.

— O senhor foi para a biblioteca sozinho? — perguntou Vance.

— Naturalmente que fui só — respondeu o professor acidamente. — Não levo comigo meus assistentes quando tenho uma pesquisa a fazer. Ele interrompeu-se de repente: — Mas que significa todo esse interrogatório? Estarei eu, por acaso, sendo chamado para fornecer um alibi.

— Meu caro Doutor! — disse Vance apaziguadoramente.

— Um sério crime foi cometido em sua casa e é essencial que saibamos, como é de rotina, as atividades das diferentes pessoas de alguma forma relacionadas com a triste situação.

— Eu compreendo o que quer dizer. — O Prof. Garden inclinou a cabeça cortesmente e foi até a janela fronteira onde permaneceu olhando as montanhas azuladas do outro lado do rio onde começavam a chegar as primeiras sombras do crepúsculo.

— Fico satisfeito que o senhor compreenda as nossas dificuldades — disse Vance — e acredito que o senhor também terá a mesma consideração quando eu lhe perguntar quais eram exatamente as relações entre o senhor e seu sobrinho?

O homem voltou-se lentamente e apoiou-se à larga soleira.

— Nós éramos muito ligados — respondeu sem hesitação nem ressentimento. — Minha mulher e eu considerávamos Woody quase um filho desde que seus pais morreram. Moralmente, ele não era uma pessoa forte e precisava de amparo material e espiritual. Talvez devido a essa fundamental fraqueza de sua natureza, nós fomos mais condescendentes com ele que com nosso próprio filho. Em comparação com Woody, Floyd é um homem capaz, de cabeça firme, inteiramente apto a tomar conta de si mesmo.

Vance balançou a cabeça em sinal de compreensão.

— Sendo assim, suponho que tanto o senhor como a Sra. Garden não esqueceram do jovem Swift em seus testamentos.

— É verdade — respondeu o Prof. Garden após uma leve pausa. — Na realidade, nós fizemos Woody e nosso filho beneficiários com partes iguais.

— Seu filho tem alguma renda própria? — perguntou Vance?

— De espécie alguma — disse o professor. — Ele tem feito um pouco de dinheiro aqui e ali; em diversos empreendimentos, todos eles ligados ao esporte, mas depende inteiramente da pensão que eu e minha mulher lhe damos. Ela é bem larga, larga demais talvez, se julgarmos de acordo com os padrões convencionais. Mas eu não vejo razão para não ser indulgente com o rapaz. Não é sua culpa se não tem o temperamento para exercer uma profissão e não tem faro para negócios. E eu não vejo motivo para ele seguir qualquer rotina comercial à qual não se adapta, uma vez que não há necessidade disso. A Sra. Garden e eu herdamos nosso dinheiro; embora eu tenha sempre lamentado que Floyd não tivesse interesse em aspectos mais importantes da vida, nunca estive inclinado a privá-lo das coisas que aparentemente constituem a sua felicidade.

— Uma atitude muito liberal, doutor, — murmurou Vance — especialmente da parte de alguém como o senhor, tão dedicado às coisas sérias da vida... Mas, e Swift? Ele tinha uma renda independente?

— O pai dele — explicou o professor — deixou-lhe uma soma bastante razoável, mas eu imagino que ele esbanjou ou perdeu no jogo a maior parte da mesma.

— Há ainda uma pergunta que eu gostaria de fazer — continuou Vance — em relação ao seu testamento e ao da Sra. Garden, Seu filho e seu sobrinho estavam ambos cientes das disposições testamentárias?

— Não sei dizer. É bem possível que sim; nem eu nem a Sra. Garden encaramos o assunto como segredo... Mas, pergunto eu — e o Prof. Garden lançou um olhar intrigado em direção à Vance — que tem isso a ver com a horrível situação atual?

— Esteja certo de que não tenho a menor idéia — admitiu francamente Vance. — Estou simplesmente tateando no escuro, na esperança de encontrar algum pequeno raio de luz.

Hennessey, o detetive a quem Vance ordenara ficar de guarda embaixo, surgiu ruidosamente no corredor.

— Há um sujeito lá embaixo, sargento, — informou — dizendo que é da companhia de eletricidade e tem que consertar uma campainha ou coisa semelhante. Ele já fuçou por toda parte lá embaixo nada encontrando de errado e então o mordomo disse-lhe que poderia ser aqui. Mas achei melhor vir perguntar-lhe antes de deixá-lo subir. Então?

Heath deu de ombros e interrogou Vance com o olhar.

— Está tudo certo, Hennessey, — disse Vance ao detetive — deixe-o subir.

Hennessey saudou aliviado e foi-se.

— Você sabe, Markham — disse Vance lentamente, acendendo meticulosamente outro cigarro. — Eu gostaria de que essa campainha dos infernos não se tivesse desarranjado exatamente agora. Eu detesto coincidências...

— Você se refere — interrompeu o Prof. Garden — à campainha interna entre esta sala aqui e a saleta lá embaixo?... Esta manhã funcionava perfeitamente; Sneed chamou-me para o café da manhã, como de hábito.

— Sim, sim — anuiu Vance. — É exatamente a mesma. E evidentemente ela deixou de funcionar depois que o senhor saiu. A enfermeira o descobriu e informou a Sneed que chamou o eletricista.

— Não é de muita importância — retrucou o professor, fazendo com a mão um gesto lânguido. — Entretanto, é bastante cômodo, pois evita muitas viagens para baixo e para cima.

— De qualquer forma, podemos deixar o homem examiná-la já que aqui está! Ele não nos vai incomodar. — Vance ergueu-se: — Doutor, o senhor teria a fineza de reunir-se aos outros que estão embaixo? Nós também vamos descer.

O professor inclinou a cabeça numa aquiescência silenciosa e, sem uma palavra, saiu da sala.

Nesse momento, um rapaz alto e pálido surgiu à porta do estúdio, carregando uma pequena maleta de ferramentas.

— Mandaram-me aqui verificar uma cigarra — anunciou com uma indiferença rabugenta. — Não achei o problema lá embaixo.

— Talvez a dificuldade esteja do lado de cá — sugeriu Vance. — Há uma cigarra atrás da escrivaninha. — E apontou para a pequena caixa preta e seu botão.

O homem dirigiu-se até ela, abriu a maleta de ferramentas e, tirando uma pequena lanterna e uma chave de fenda, removeu a tampa da caixa. Tocando os fios com os dedos, ele olhou para Vance com uma expressão de desprezo.

— Não se pode esperar que a cigarra toque quando os fios estão desligados — comentou.

Vance tornou-se subitamente interessado. Ajustando seu monóculo, ajoelhou-se e olhou para a caixa.

— Estão ambos desligados, hem? — observou.

— Claro que estão — resmungou o homem. — E também não me parece que eles tenham afrouxado sozinhos.

— Você acha que foram soltos propositadamente? — perguntou Vance.

— Bem, é o que parece. — O homem ocupava-se religando os fios. — Ambos os parafusos estão soltos e os fios não estão encurvados, parece que foram arrancados.

— Isto é muito interessante. — Vance ergueu-se e recolocou o monóculo no bolso, meditando. — Poderia ser, evidentemente. Mas não vejo por que alguém o poderia ter feito... Desculpe-me tê-lo incomodado.

— Ah, isto são coisas do trabalho — murmurou o homem reajustando a tampa da caixa. — Eu gostaria de que todas as minhas tarefas fossem tão fáceis quanto esta. — Após alguns instantes, ele ergueu-se. — Vamos ver se a cigarra funciona agora. Há alguém lá embaixo para responder se eu apertar?

— Vou-me ocupar disso — interpôs Heath e dirigiu-se a Snitkin. — Dê um pulo lá na saleta e se ouvir a campainha lá, toque de volta.

Snitkin saiu depressa e alguns momentos depois, quando o botão foi apertado, chegaram dois sinais de resposta.

— Está legal agora — disse o eletricista, guardando suas ferramentas e dirigindo-se à porta. — Até à vista. — E desapareceu no corredor.

Markham estivera examinando meticulosamente Vance durante alguns minutos.

— Você tem alguma idéia em mente — disse sério. — Qual é o problema com essa campainha desligada?

Vance fumou em silêncio durante algum tempo, olhando para o chão. Depois caminhou até à janela e fitou o jardim, pensativo.

— Não sei, Markham. É um bocado enganador. Mas tenho a sensação de que a mesma pessoa que deu o tiro ouvido por nós desligou aqueles fios...

Repentinamente, ele deu um passo em direção à parte de trás dos reposteiros e abaixou-se, ainda perscrutando o jardim cuidadosamente. Ergueu a mão em sinal de advertência para que ficássemos fora da vista.

— Diabolicamente estranho! — disse tensamente. — Aquele portão lá na extremidade da grade está-se abrindo... Meu Deus! — E ele atirou-se pelo corredor afora, em direção ao jardim, falando para que o seguíssemos.

 


IX

 

Duas Pontas de Cigarro

 

(Sábado, 14 de abril — 18:00 horas)

 

 

Vance passou pelo corpo de Swift no divã e cruzou o terraço rumo ao portão do jardim. Quando lá chegou, deparou com a altiva e majestosa figura de Madge Weatherby. Evidentemente sua intenção era entrar no jardim, mas recuou bruscamente quando nos viu. Nossa presença, entretanto, não pareceu embaraçá-la nem surpreendê-la.

— Muito gentil de sua parte em subir, Srta. Weatherby — disse Vance. — Mas dei ordens para que todos permanecessem lá embaixo.

— Eu tinha o direito de vir aqui! — retrucou ela, empertigando-se com uma dignidade quase real.

— Ah — murmurou Vance. — Sim, é claro. Pode ser que sim. Mas poderia explicar-nos?

— Pois não. — Sua expressão permaneceu imutável e a voz era oca e artificial. — Eu quis certificar-me se ele poderia ter feito realmente isso.

— E quem é esse misterioso ele?

— Quem? — repetiu ela, atirando a cabeça para trás sarcasticamente. — Ora, Cecil Kroon!

As pálpebras de Vance caíram e ele estudou bem de perto a mulher, durante alguns momentos. Depois, disse despreocupadamente: — Muito interessante. Mas vamos deixar isso um pouco de lado. Como conseguiu chegar aqui?

— Isto foi muito simples. — Ela inclinou negligentemente a cabeça. — Fingi sentir-me mal e disse à sua guarda que ia à copa beber água. Saí pela porta da copa para o corredor externo do edifício, subi a escada principal e daí saí neste terraço.

— Mas como sabia que por este caminho alcançaria o telhado?

— Eu não sabia. — Sorriu enigmàticamente. — Estava apenas conjeturando. Estava ansiosa por provar a mim mesma que Cecil Kroon poderia ter alvejado o pobre Woody.

— E está convencida de que ele poderia ter feito isto?

— perguntou mansamente Vance.

— Ah, sim — replicou ela com amargura. — Fora de dúvidas. Já há algum tempo eu sei que mais cedo ou mais tarde Cecil o mataria. Quando o senhor disse que Woody havia sido assassinado, tive certeza absoluta de que Cecil havia feito isso. Mas eu não compreendi como ele teria chegado aqui, após ter-nos deixado esta tarde. Por isso, eu me empenhei em descobrir.

— E por que motivo, se posso perguntar — disse Vance — desejaria o Sr. Kroon dar fim à vida de Swift?

A mulher apertou as mãos teatralmente de encontro ao peito. Dando um passo à frente, disse com uma voz dramática e sepulcral: — Cecil estava enciumado, terrivelmente enciumado. Ele está loucamente apaixonado por mim. Tem-me torturado com suas atenções... — Levou uma das mãos à testa em sinal de desespero. — Nada posso fazer. E quando ele soube que eu me interessava por Woody, ficou desesperado. Ameaçou-me. Fiquei horrivelmente apavorada. Eu não ousava terminar tudo com ele, não sei o que poderia fazer. Então resolvi fazer-lhe a vontade; eu continuei com ele, esperando, esperando que essa loucura se desvanecesse. Durante algum tempo, pensei que ele estivesse ficando normal e razoável. E então hoje... este horrível crime! — Sua voz desapareceu num exagerado suspiro.

O olhar agudo de Vance não demonstrava a simpatia que o pomposo recital estava a exigir, nem o cinismo que eu sabia ele estar sentindo. Havia apenas um interesse estudado em sua expressão.

— Triste, muito triste — murmurou.

A Srta. Weatherby atirou a cabeça para trás e seus olhos flamejaram.

— Eu vim aqui em cima para ver se era possível que Cecil pudesse ter feito isso. Eu vim aqui em nome da justiça!

— Muita amabilidade. — As maneiras de Vance mudaram subitamente. — Nós ficamos muito gratos e tudo o mais. Mas preciso insistir, entende, que a senhora volte para baixo e espere lá com os outros. E vai ter a fineza de regressar pelo jardim e descer pela escada do apartamento.

Ele estava brutalmente realista quando fechou o portão e encaminhou a senhora até à porta do corredor. Aí ela hesitou um momento e depois seguiu o dedo indicador de Vance. Ao passar diante do divã de vime, ela parou de repente e pôs-se de joelhos.

— Oh, Woody, Woody! — Soluçou dramaticamente. — Tudo por minha culpa! — Cobriu o rosto com as mãos e inclinou a cabeça bem para a frente numa atitude de mísera abjeção.

Vance deixou escapar um profundo suspiro, atirou longe o cigarro e, pegando-a firmemente pelo braço, colocou-a de pé.

— Realmente, Srta. Weatherby, — disse ele bruscamente, conduzindo-a até à porta — isto não é um melodrama.

Ela endireitou-se com um soluço reprimido e foi pelo corredor em direção à escada.

Vance voltou-se para o detetive e acenou em direção à entrada.

— Snitkin, — disse num tom fatigado — vá lá embaixo e diga a Hennessey para ficar de olho nessa Sarah Bernhardt até que precisemos dela.

Snitkin sorriu e seguiu Miss Weatherby. Quando voltamos ao estúdio, Vance mergulhou em uma poltrona e bocejou.

— Palavra! O caso já é bastante difícil sem todos esses dramáticos amadores.

Markham, percebi, havia ficado impressionado e divertido com o incidente.

— Talvez não seja apenas drama — sugeriu. — Aquela senhora fez algumas afirmações bem definidas.

— Ah, sim. Ela pode. Ela é desse tipo. — Vance tirou a cigarreira. — Afirmações definidas, sim. E enganadoras, também. Realmente, nem por um minuto acreditei que ela encare Kroon como o culpado.

— Bem, então o quê? — saltou Markham.

— Nada, na verdade — Vance suspirou. — Vaidade e futilidade. A senhora, vaidade; nós, futilidade. Nada conduz à parte alguma.

— Mas ela certamente tem alguma idéia — protestou Markham.

— E nós também. Fico pensando... Mas se pudéssemos ler inteiramente o pensamento de alguém, provavelmente compreenderíamos o universo. Prontos para a onisciência e todas essas coisas.

— Deus do céu! — Markham ergueu-se e colocou-se beligerantemente em frente a Vance: — Você não pode ser racional?

— Ora, Markham... meu querido Markham! — Vance sacudiu a cabeça tristemente. — Que é a racionalidade? Entretanto... como você diz. Há alguma coisa por trás do dramalhão de nossa amiga. Ela tem idéias, mas é confusa. E quer que nós sejamos como aqueles deuses chineses que só podiam andar em linha reta. Triste. Mas vamos tentar fazer um rodeio. A situação é mais ou menos esta: uma infeliz senhora esgueira-se pela copa e apresenta-se no terraço esperando atrair nossa atenção. Tendo conseguido o que desejava, ela nos informa ter provado conclusivamente que um certo Sr. Kroon acabou com a vida de Swift devido a ciúmes. Esta é a linha reta, a maior distância entre dois pontos. Agora, a curva. A própria senhora, suponhamos, é a desprezada e não quem despreza. Ela sofre com isso, é temperamental e vingativa, e vem aqui ao terraço apenas com a finalidade de convencer-nos de que Kroon é o culpado. Ela ficaria feliz da vida em ver Kroon sofrer, culpado ou não.

— A história dela é bastante plausível — disse Markham agressivamente. — Por que então tentar encontrar significados ocultos em fatos evidentes? Kroon poderia ter feito a coisa. E, no entanto, a sua análise psicológica da mulher põe de lado a hipótese.

— Meu caro Markham! Não põe de lado coisa nenhuma. Este incidente apenas tende a envolver a dama em um tipo de chicana bastante desagradável. O fato é que seu pequeno ato dramático aqui no terraço pode vir a ser bastante esclarecedor.

Vance espichou as pernas para a frente e afundou ainda mais na cadeira.

— Curiosa situação. Sabe, Markham, Kroon abandonou a reunião cerca de quinze ou vinte minutos antes do grande páreo: assuntos legais a resolver para uma tia solteirona, segundo explicou ele; não voltou a aparecer até que tudo estivesse consumado. Admiti imediatamente ser ele o criminoso. Esse pensamento levou-me a conversar com o ascensorista. Daí fiquei sabendo que Kroon não havia saído nem descido no elevador desde que chegou aqui no início da tarde...

— Essa é boa! — exclamou Markham. — Isto é mais que suspeito principalmente se juntarmos ao que acabamos de ouvir da Srta. Weatherby.

— Certamente. — Vance não se deixou impressionar. — A mentalidade legal em ação. Mas para meu humilde ponto de vista de amador, eu preciso de mais, muito mais. — Vance ergueu-se e meditou durante um certo tempo. — Entretanto, admito que uma pontinha de comunhão amorosa com o Sr. Kroon está definidamente indicada. — Voltou-se para Heath. — Mande o cara subir, sim sargento? E seja gentil com ele, não o aborreça. La politesse. Não vamos deixar que ele se ponha em guarda.

Heath concordou e caminhou para a porta: — Sargento, — interrompeu-o Vance — você pode interrogar o ascensorista e verificar se existe mais alguém no prédio a quem Kroon tenha o hábito de visitar. Se assim for, prossiga com uma pesquisa discreta.

Heath desapareceu escada abaixo; um ou dois minutos depois, Kroon estava no estúdio com um ar de quem está aborrecido e bastante contrariado.

— Acho que estou sendo chamado para mais algumas perguntas astuciosas — comentou lançando a Markham e Snitkin um leve olhar de desprezo e deixando seus olhos descansar em Vance com um certo ressentimento. — Querem apanhar-me sentado ou de pé?

— Como quiser — respondeu docemente Vance. Kroon, após dar uma olhada à sua volta, sentou-se descontraidamente na extremidade do sofá. A atitude do homem, segundo pude ver, enfureceu Markham, que, inclinando-se para a frente, perguntou com uma raiva fria.

— O senhor tem quaisquer razões para objetar contra o fato de necessitarmos de seu depoimento neste inquérito?

Kroon ergueu as sobrancelhas e alisou as extremidades enceradas de seu bigode.

— Absolutamente nenhuma — disse com calma superioridade. — Eu talvez até possa dizer-lhes quem alvejou Woody.

— Isto é muito interessante — murmurou Vance estudando-o com indiferença. — Mas, nós preferimos mil vezes descobrir sozinhos. Muito mais divertido, não? E há sempre a possibilidade de que nossa descoberta venha a ser mais exata que os palpites de terceiros.

Kroon deu de ombros maliciosamente e nada disse.

— Quando o senhor desertou da reunião desta tarde, Sr, Kroon, — Vance prosseguiu de uma maneira quase afetada — gratuitamente informou-nos de que destinava-se a uma espécie de conferência legal com uma tia solteirona. Sei que já falamos nisso antes, mas eu pergunto novamente: o senhor faria alguma objeção em nos fornecer, para uma simples questão de rotina, o nome e o endereço de sua tia e a natureza dos documentos que o privaram tão bruscamente de acompanhar o Grande Prêmio Rivermont após ter apostado quinhentos dólares?

— é claro que faço objeção — retrucou Kroon friamente. — Pensei que vocês estivessem investigando um assassinato e eu garanto que a minha tia nada tem a ver com ele. Não consigo entender por que vocês estão interessados em meus assuntos de família.

— A vida é cheia de surpresas, sabe? — murmurou Vance. — Nunca se sabe quando assunto de família e crime se entrelaçam.

Kroon riu jovialmente, porém recompôs-se pigarreando.

— Nas atuais circunstâncias, tenho o prazer de informar que, no que me concerne, eles não se entrelaçam em absoluto.

Markham voltou-se para ele com vivacidade.

— Isto somos nós que decidimos! — exclamou. — O senhor pretende responder à pergunta do Sr. Vance?

Kroon sacudiu a cabeça.

— Não. Considero esta pergunta como incompetente, irrelevante e imaterial. E frívola também.

— Sim, sim — Vance sorriu para Markham. — Poderia ser, compreende? Mas deixemos passar isto, Markham. Situação atual: nome e endereço da tia, desconhecidos; natureza dos documentos, desconhecida; razões para a reticência do cavalheiro, também desconhecidas.

Markham, ressentido, murmurou algumas palavras ininteligíveis e voltou a fumar seu charuto, enquanto Vance continuava o interrogatório.

— Diga, Sr. Kroon, consideraria irrelevante e todo o resto do palavrório legal, se eu lhe perguntasse como o senhor saiu e voltou do apartamento dos Gardens?

Kroon pareceu altamente divertido.

— Eu o consideraria irrelevante, sim; mas desde que existe uma única maneira normal pela qual eu poderia ter ido e voltado, estou inteiramente disposto a confessar-lhe que tomei um táxi para ir e voltar da casa de minha tia.

Vance fitou o teto enquanto fumava.

— Suponhamos — disse — que o ascensorista negasse tê-lo conduzido para cima ou para baixo desde a sua primeira chegada aqui esta tarde. Que diria o senhor?

Kroon contraiu-se e ficou atento.

— Eu diria que ele perdeu a memória ou está mentindo.

— Sim, naturalmente. Perfeitamente. — Os olhos de Vance moveram-se lentamente para o homem no sofá. — O senhor terá certamente a oportunidade de dizer isso perante o júri.

Os olhos de Kroon estreitaram e seu rosto ficou vermelho. Antes que ele pudesse falar, Vance prosseguiu.

— E o senhor terá também a oportunidade legal de fornecer ou negar o nome e endereço de sua tia. O fato é que o senhor poderá encontrar-se na mais triste necessidade de apresentar um álibi.

Kroon recostou-se novamente no sofá com um sorriso arrogante.

— Vocês são muito divertidos — comentou airosamente. — Que mais? Se me fizerem uma pergunta razoável, terei o maior prazer em responder. Sou um cidadão altamente considerado dos Estados Unidos, sempre desejoso, para não dizer ansioso, em auxiliar as autoridades, ajudar em nome da justiça e toda essa espécie de asneira. — Havia uma intenção de veneno em seu tom insolente.

—- Bem, vamos ver em que ficamos. — Vance reprimiu o sorriso divertido. — O senhor deixou o apartamento aproximadamente às 3:45, tomou o elevador para baixo e em seguida um táxi; foi à casa de sua tia para lidar com alguns documentos legais, voltou noutro táxi, e subiu no elevador. Esteve ausente pouco mais de meia hora. Durante sua ausência, Swift foi alvejado. Correto?

— Sim — Kroon foi breve.

— Como explica o fato de que, quando o encontrei no corredor, no momento em que regressava, o senhor parecia miraculosamente ciente dos detalhes do passamento de Swift?

— Já vimos isso também. Nada sei a esse respeito. O senhor me disse que Swift estava morto e eu simplesmente deduzi o resto.

— Sim, perfeitamente. Não há crime sem suposições apuradas. Diabolicamente estranhas coincidências, entretanto, iguaizinhas a uma acumulada de cinco. Extraordinário.

— Estou ouvindo com grande interesse — Kroon reassumira o seu ar de superioridade. — Por que vocês não deixam de rodeios?

— Sugestão muito útil. — Vance esmagou o cigarro e, endireitando-se na cadeira, inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — Aonde eu queria chegar é que alguém o acusou definitivamente de assassinar Swift.

Kroon assustou-se e empalideceu. Depois de alguns instantes ele forçou um ruído áspero e gutural que pretendia ser uma risada.

— E quem, se posso perguntar, acusou-me?

— A Srta. Madge Weatherby.

Um dos cantos da boca de Kroon ergueu-se num escárnio raivoso.

— Ela seria bem capaz! E provavelmente lhes disse que foi um crime passional, causado por um ciúme incontrolável.

— Exatamente — concordou Vance. — Parece que o senhor andou abusando de suas não desejadas atenções para com ela, até ameaçando-a; enquanto isso, ela estava apaixonada do Sr. Swift. E assim, quando a tensão ficou muito grande, o senhor eliminou seu rival. Casualmente, ela tem uma teoria muito boa, que se ajusta aos fatos conhecidos e que a sua própria recusa em responder às minhas perguntas reforça consideravelmente.

— Bem, que os diabos me levem! — Kroon ergueu-se lentamente e enterrou as mãos nos bolsos. — Estou vendo aonde querem chegar. Por que não me disseram isso desde o início?

— Esperando pelas probabilidades finais — retrucou Vance. — O senhor ainda não havia feito seu jogo. Mas agora que já lhe contei, incomoda-se em nos dar o nome e endereço de sua velha tia e a natureza dos documentos que devia assinar?

— Tudo isso é uma grande bobagem — disse Kroon precipitadamente. — Não preciso de álibi. Quando chegar o momento...

Nesse instante, Heath surgiu na porta e, caminhando diretamente até Vance, estendeu-lhe uma página arrancada de seu caderninho onde estavam diversas linhas escritas.

Vance leu rapidamente a nota enquanto Kroon o olhava com um ressentimento virulento. Depois dobrou o papel e enfiou-o no bolso.

— Quando chegar a ocasião... — murmurou Vance. — Sim, é isso. Quando chegar a ocasião. E ela chegou, Sr. Kroon.

O homem empertigou-se, mas nada disse. Pude notar que ele estava agressivamente em guarda.

— Por acaso, conhece o senhor alguém de nome Stella Fruemon? Tem um apartamento bastante aconchegante no 17º andar deste edifício, dois andares apenas abaixo deste. Ela diz que o senhor a esteve visitando hoje, por volta das 4 horas. Deixou-a exatamente às 4:15. O que pode explicar o senhor não ter usado o elevador. Também a sua relutância em nos dar o nome e o endereço de sua tia... O senhor se incomodaria em fazer uma revisão em sua narrativa?

Kroon parecia estar pensando a toda velocidade. Caminhou nervosamente para cima e para baixo no aposento.

— Situação divertida e surpreendente — prosseguiu Vance. — Um cavalheiro deixa este apartamento... digamos, às 3:50. Documentos familiares a assinar. Não entra no elevador. Aparece num apartamento dois andares abaixo poucos minutos depois... é um freqüentador habitual do mesmo. Lá permanece até às 4:15. Em seguida, vai embora. Aparece novamente neste apartamento aqui às 4:30. No intervalo, Swift é alvejado na cabeça: a hora exata não sabemos. O cavalheiro parece estar familiarizado com vários detalhes do crime. Recusa-se a dar informações sobre suas atividades durante o tempo em que esteve ausente. Uma dama acusa-o de assassinato e demonstra como ele o poderia ter executado. Também, generosamente, fornece o motivo. E há quinze minutos da vida desse cavalheiro, isto é, de 4:15 a 4:30, que ele não sabe explicar. Vance tirou uma tragada do cigarro.

— Uma fascinante combinação de fatos. Some-os todos. Matematicamente falando, eles perfazem um total. Diga-me, Sr. Kroon, alguma sugestão?

Kroon parou de repente e deu meia volta: — Não! — explodiu. — Para o diabo a sua matemática. E vocês usam de qualquer coisa para enforcar um homem! — Respirou ruidosamente e fez um gesto desesperado. — Está bem, lá vai a história. Acredite se quiser. No ano passado, tive uma certa ligação com Stella Fruemon. Ela não passa de uma prostituta e chantagista. Madge Weatherby veio a saber do caso. E ela é a parte ciumenta desta combinação, não eu. Ela ligava tanto para Woody Swift quanto eu. De qualquer forma, tive um caso com Stella Fruemon. Quando chegou ao final eu tive que pagar muito caro, a fim de evitar um escândalo para minha família, evidentemente. Se não fosse por isso, eu a teria atirado pela janela e chamaria isso de minha boa ação do dia. Seja como for, chamamos nossos respectivos advogados e chegamos a um acordo. Finalmente, ela exigiu uma gorda soma e concordou em assinar uma desistência final das outras exigências. Naquelas circunstâncias eu não tinha alternativa. Dezesseis horas de hoje, foi a ocasião que ela escolheu para terminar a transação. Meu advogado e o dela deveriam estar no apartamento. O cheque visado e os documentos estavam prontos. Assim, eu desci um pouco antes das 4 para clarear todo esse sujo negócio. Liquidei tudo e saí. Desci a pé os dois andares até o seu apartamento e, às 4:15, quando terminou o assalto, mandei-a para o inferno e subi de volta a escada.

Kroon respirou fundo e franziu a testa.

— Eu estava tão furioso, e aliviado também, que continuei caminhando sem saber o que estava fazendo. Quando abri a porta que eu pensava conduzisse ao corredor externo do apartamento de Garden, descobri que estava no terraço. — Ele piscou um olho para Vance. — Suponho que o fato também é suspeito: subir três andares em vez de dois, após tudo aquilo por que eu passei?

— Não, não — Vance sacudiu a cabeça. — Muito natural. Espíritos exuberantes. Tirou o peso das costas, e tudo o mais, três andares a pé, parecem dois. Imposto leve, podemos dizer. Os cavalos até correm melhor. Não sentem a milha extra. Muito compreensível. Mas, prossiga, por favor.

— Talvez o senhor acredite... e talvez não — Kroon falou com truculência. — De qualquer forma, esta é a realidade. Quando vi onde me encontrava, pensei em atravessar o jardim e descer a escada interna. Era realmente a coisa mais natural a ser feita...

— O senhor então sabia da existência do portão que dá para o jardim?

— Há anos que eu sei. Todos aqueles que já estiveram aqui em cima também sabem. Nas noites quentes de verão, Floyd costumava deixar o portão aberto e nós passeávamos para cá e para lá no terraço. Algo de mal no fato de eu saber do portão?

— Não, perfeitamente normal. E então o senhor abriu o portão e entrou no jardim?

— Sim.

— E isto teria sido entre 4:15 e 4:20?

— Não tinha um cronômetro comigo, mas creio que isto é bem possível... Quando entrei no jardim, vi Swift derreado na cadeira. Sua posição pareceu-me engraçada, mas não liguei para isso até que falei com ele e não tive resposta. Então aproximei-me e vi o revólver no chão e o buraco na cabeça dele. Puxa, foi um choque bárbaro, vou-lhe contar, e eu comecei a correr para baixo para dar o alarma. Mas aí me dei conta de que ficaria mal para mim. Eu ali, sozinho no terraço, com um homem morto...

— Ah, sim. Discrição. E o senhor então agiu com segurança. Não posso dizer que eu o recrimino inteiramente. Então, suponho, o senhor voltou à escadaria externa e entrou no apartamento de Garden pela porta principal.

— Foi exatamente isto que eu fiz. — O tom de Kroon era tão vigoroso quanto ressentido.

— Em que momento, durante o curto período em que esteve no telhado, ou mesmo quando voltou à escada do prédio, o senhor ouviu um tiro?

Kroon olhou para Vance com evidente surpresa.

— Um tiro? Eu disse que o rapaz já estava morto quando o vi.

— Não obstante — disse Vance — houve um tiro. Não o que o matou, mas aquele que nos fez correr até o terraço. Houve dois tiros; embora ninguém pareça ter ouvido o primeiro.

Kroon refletiu.

— Céus! Ouvi alguma coisa, agora que você está falando. Naquele instante eu não liguei, visto que Woody já estava morto. Mas exatamente quando eu voltava à escada de serviço, houve uma explosão lá fora. Pensei que fosse um automóvel lá na rua e não prestei maior atenção ao fato.

Vance balançou a cabeça com ar intrigado.

— Isto é muito interessante. — Seus olhos vaguearam no espaço. — Fico pensando... — Um momento depois fitou Kroon: — Mas, continue sua história. O senhor diz que deixou o terraço imediatamente e desceu. Mas decorreram pelo menos dez minutos entre o momento em que o senhor deixou o jardim e a hora que eu o encontrei entrando no apartamento pela porta principal. Como e onde o senhor passou esses dez minutos de intervalo?

— Fiquei no patamar da escada e fumei uns dois cigarros. Estava tentando acalmar-me. Depois de tudo aquilo por que passara e ainda encontrar Woody morto, eu estava com a cabeça em pandarecos.

Heath ergueu-se imediatamente, uma das mãos no bolso interno do colete, e avançou belicosamente o maxilar em direção do agitado Kroon: — Qual a marca de cigarro que o senhor fuma? — vociferou.

O homem olhou para o sargento com espanto e depois disse: — Fumo cigarros turcos de ponta dourada. Por quê? Heath retirou a mão do bolso e olhou para algo que continha na palma da mão.

— Está certo — resmungou. Depois dirigiu-se a Vance: — Achei as pontas de cigarro lá. Apanhei-as no patamar, quando voltava do apartamento daquela moça. Pensei que talvez pudessem ter alguma relação.

— Bravos, bravos — caçoou Kroon. — Então a polícia realmente encontrou alguma coisa!... Que mais deseja o senhor? — perguntou a Vance.

— No momento, nada obrigado — retrucou Vance com exagerada cortesia. — O senhor sozinho já fez bastante por hoje, Sr. Kroon. Não vamos precisar mais do senhor... Sargento, diga a Hennessey que o Sr. Kroon pode deixar o apartamento.

Kroon foi até à porta sem uma palavra.

— Espere. — Vance interrompeu-o no limiar. — Por acaso o senhor tem uma tia solteirona?

Kroon olhou por cima do ombro com um sorriso cheio de vivacidade.

— Não, graças a Deus! — E fechou ruidosamente a porta às suas costas.


X

 

A Aposta de 10.000 Dólares

 

(Sábado, 14 de abril — 18:15 horas)

 

 

 

— Uma boa história — comentou secamente Markham quando Kroon se foi.

— Sim, boa sim. Mas não me satisfaz. — Vance parecia perturbado.

— Você acredita nela?

— Meu caro Markham, fico com o espírito alerta, nunca acreditando ou desacreditando. Esperando pelos fatos, mas ainda não há fatos. Drama por toda a parte, porém sem substância. A história de Kroon tem pelo menos alguma consistência e esta é uma das razões pelas quais eu sou céptico. Sempre desconfio da consistência, é muito fácil de elaborar. E a sagacidade de Kroon não tem limites.

— Ainda assim — acrescentou Markham — as pontas de cigarro encontradas por Heath conferem com sua história.

— Sim, sim — Vance anuiu e suspirou. — Não duvido que ele tenha fumado dois cigarros no patamar. Mas ele os pode ter fumado mesmo que tenha executado o nosso amigo. Atualmente, suspeito de todos aqui. Há um bocado de ângulos brotando deste caso.

— Por outro lado — objetou Markham — com aquela entrada da escadaria principal dando para a porta do terraço que está aberta a qualquer um, por que não poderia um estranho qualquer ter assassinado Swift?

Vance encarou-o com um olhar melancólico.

— Ah, Markham, meu caro Markham! A inteligência a serviço da lei! Sempre procurando por uma evasão. O advogado da acusação à procura do melhor. Não, um estranho, não. Há sem-número de objeções bem fundamentadas. O crime foi demasiadamente bem cronometrado. Somente alguém presente poderia tê-lo executado de maneira tão exata. Além disso, foi cometido na caixa-forte. Somente alguém muitíssimo familiarizado com a vida doméstica dos Gardens e com a real situação aqui esta tarde poderia ter feito aquilo.

Houve um tumulto no corredor e Madge Weatherby entrou correndo no estúdio com Heath em seu encalço, protestando vigorosamente. Era óbvio que ela havia subido as escadas como uma fecha antes que alguém pudesse interferir.

— Qual o significado de tudo isso? — perguntou imperiosamente. — Vocês estão permitindo que Kroon se vá, depois de tudo que lhes contei? E eu — ela indicou a si própria com um gesto dramático — eu sou retida aqui, como uma prisioneira.

Vance ergueu-se desanimado e ofereceu-lhe um cigarro. Ela afastou a carteira que lhe era estendida e sentou-se rígida.

— O fato, Srta. Weatherby, — disse Vance voltando à sua cadeira — é que o Sr. Kroon explicou sua breve ausência esta tarde de maneira bastante lúcida e com uma lógica convincente. Ao que parece, ele nada estava fazendo de repreensível em companhia da Srta. Stella Fruemon e um monte de advogados.

— Ah! — Os olhos dela dardejaram veneno.

— Exatamente. Ele estava rompendo com a dama por todos os séculos dos séculos. Obtendo também uma dispensa por parte dela e de seus herdeiros, executores, administradores e procuradores, desde o início do mundo até à presente data; acredito ser esta a fraseologia legal correta. Na realidade, sabe, ele nunca ligou para ela. Foi bastante veemente a este respeito. Jamais mulher alguma o dominará nem fará chantagem com ele. É o lema de Cézanne, modificado: Pas une gonzesse ne me mettra le grappin dessus.

— Isto é verdade? — exclamou a Srta. Weatherby, endireitando-se na cadeira.

— Sim, sim, sem subterfúgios. Kroon disse que a senhorita estava com ciúme de Stella.

— Por que então ele não me falou?

— Há sempre a possibilidade de que a senhorita não lhe tenha dado oportunidade para tal.

A mulher meneou a cabeça vigorosamente.

— Sim, é certo. Não falei com ele depois da sua volta.

— Gostaria de rever sua teoria anterior? — perguntou Vance. — Ou ainda pensa que Kroon é o culpado?

— Eu... eu realmente não sei — respondeu hesitante — da última vez que falei com o senhor, eu estava terrivelmente transtornada... talvez fosse tudo imaginação minha.

— Imaginação, sim. Coisa terrível e perigosa. Provoca mais dramas que a realidade. Especialmente a imaginação estimulada pelo ciúme. "Nem o ópio, nem a mandrágora, nem todos os entorpecentes do mundo." — Encarou-a enigmaticamente. — Já que não está muito certa de que foi Kroon quem fez a coisa, tem outras sugestões?

Houve um silêncio tenso. A face da Srta. Weatherby pareceu contrair-se e ela mordeu os lábios; seus olhos quase se fecharam.

— Sim! — explodiu, inclinando-se para Vance com um novo entusiasmo. — Foi Zalia Graem quem matou Woody! Ela tinha o motivo, como diz o senhor. Além disso, é bem capaz de uma coisa dessas. Por fora, ela é alegre e descuidada, mas por dentro é um demônio. Nada a impediria. Houve alguma coisa entre ela e Woody, depois ela o chutou, mas ele não a deixava, continuava aborrecendo-a e ela o ignorava. Ele não tinha dinheiro suficiente para agradar a ela. O senhor viu como agiam os dois hoje.

— Tem alguma idéia de como fez ela para cometer o crime? — perguntou Vance mansamente.

— Ela estava bastante tempo ausente do salão, não foi? Aparentemente telefonando. Mas, pode alguém saber realmente onde ela estava e o que fazia?

— Pergunta dolorosa. Situação muito misteriosa. — Vance ergueu-se devagar e curvou-se diante da moça. — Imensamente grato, estamos muito agradecidos. E não a manteremos prisioneira mais tempo. Se precisarmos de sua presença mais tarde, mandaremos chamá-la.

Quando ela se foi, Markham sorriu amargamente.

— A dama está muito bem equipada com suspeitos. Que vai fazer com essa nova acusação?

Vance tinha a testa franzida.

— Animosidade transferida de Monsieur Kroon para La Graem. Sim. Situação estranha. Logicamente falando, esta nova acusação é mais razoável que a primeira. Tem seus pontos... Se ao menos eu pudesse tirar da cabeça aquela campainha desligada... e o segundo tiro, aquele que todos nós ouvimos.

— Não poderia ter sido algum tipo de mecanismo? — sugeriu Markham. — Não é difícil reproduzir o efeito de uma detonação por meio de fios elétricos.

Vance moveu a cabeça pateticamente.

— Já pensei nisso. Mas na campainha não há indícios de ter sido instalado qualquer dispositivo do gênero. — Quando o eletricista trabalhava, olhei cuidadosamente.

Vance foi novamente até a campainha e examinou-a com cuidado. Depois dedicou sua atenção às estantes que a rodeavam. Afastou alguns livros e inspecionou as estantes vazias e os montantes. Finalmente sacudiu a cabeça e voltou à sua cadeira.

— Nada. Aqui nada. A poeira atrás dos livros é muita e não mostra sinais recentes de algum contato, não há marcas de pó. E também nenhuma indicação de qualquer mecanismo.

— Poderia ter sido removido antes da chegada do eletricista — propôs Markham sem entusiasmo.

— Sim, uma outra possibilidade. Também havia pensado nisso. Mas faltou a oportunidade. Entrei aqui imediatamente após ter encontrado o rapaz alvejado... — Tirou o cigarro da boca e endireitou o corpo. — Bolas! Alguém pode ter entrado aqui enquanto nós todos corríamos lá para cima após o tiro. É uma chance remota, mas... Uma outra coisa curiosa, Markham: três ou quatro pessoas diferentes tentaram penetrar neste recinto enquanto eu estava na saleta com Garden. Todas elas pretextavam estar com o cadáver para uma comunhão post-mortem, este tipo de conversa mórbida. Fico só imaginando... Entretanto, é tarde demais para agir sob esse ponto de vista. Nada a fazer, exceto guardar esses fatos para uma futura referência.

— A campainha se comunica com qualquer outra peça além da saleta?

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, é a única ligação.

— Você não disse que havia alguém na saleta no momento em que ouviu o tiro?

O olhar de Vance passou por Markham, e decorreram alguns minutos antes que ele respondesse.

— Sim, Zalia Graem estava aqui, telefonando ostensivamente.

A voz de Vance, pensei eu, estava um pouco amargurada, e eu pude perceber que seu espírito partira numa nova linha de idéias.

Heath piscou e moveu a cabeça para cima e para baixo.

— Bem, Sr. Vance, isto nos conduz a alguma coisa. Vance encarou-o.

— É mesmo, sargento? Aonde? Isto só emaranha o caso, até que consigamos mais informações no mesmo sentido.

— Poderíamos conseguir mais informações da própria moça — adiantou Markham com sarcasmo.

— É, é isso mesmo. Procedimento óbvio. Mas eu tenho algumas perguntinhas a fazer a Garden antes. Preparando o caminho, por assim dizer. Sargento, procure Floyd Garden e traga-o aqui.

Garden entrou na sala parecendo pouco à vontade com ar um tanto assustado.

— Que confusão! — suspirou atirando-se pesadamente em uma cadeira. Encheu o cachimbo com mão trêmula. — Alguma luz no caso?

— Algumas luzes vacilantes — disse-lhe Vance. — Aliás, parece que os seus convidados entram e saem pela porta da frente sem a formalidade de serem anunciados ou tocarem a campainha. Isso é um costume da casa?

— Sim. Mas somente nos dias de corridas. É muito mais prático. Poupa aborrecimentos e interrupções.

— E uma outra coisa: quando a Srta. Graem estava telefonando na saleta e você sugeriu que ela dissesse ao cavalheiro para chamar mais tarde, você realmente sabia que ela estava falando com um homem?

Garden arregalou os olhos um tanto surpreso.

— Ora, não. Eu estava apenas brincando com ela, não tinha a menor idéia. Mas, se isto faz alguma diferença, estou certo de que Sneed pode dar a informação, caso a Srta. Graem não a dê. Foi Sneed que atendeu o telefone, lembra-se?

— Não tem importância. — Vance deixou o assunto de lado. — Todavia, talvez lhe interesse saber que a campainha deixou de funcionar porque alguém se deu ao trabalho de desligar os fios.

— Que diabo está você dizendo!

— É, é isso mesmo. Vance fitou Garden com um olhar cheio de significação. — Se bem entendo, esta campainha funciona apenas na saleta, e quando ouvimos o tiro a Srta. Graem estava lá. Acontece que esse tiro que todos nós ouvimos não foi o que matou Swift. O tiro fatal foi disparado pelo menos cinco minutos antes. Swift nunca chegou a saber se havia ganho ou não a aposta.

Os olhos de Garden estavam arregalados com expressão de pavor e fixos em Vance. Uma exclamação abafada escapou de seus lábios entreabertos. Rapidamente ele recompôs-se e seus olhos vaguearam pela sala.

— Meu Deus! — Sacudiu a cabeça desanimado. — Este negócio está ficando infernal. Compreendo sua dedução sobre a campainha e o tiro que ouvimos. Mas não consigo entender como foi feita a coisa. Voltou-se para Vance num apelo: Você está certo desses fios desligados e o que chama de segundo tiro?

— Inteiramente certo. — A voz de Vance era despreocupada. — Aliás, a Srta. Weatherby tentou convencer-nos de que Zalia Graem atirou em Swift.

— E ela tem algum fundamento para essa acusação?

— Apenas que a Srta. Graem tinha uma aversão qualquer a Swift, detestando-o profundamente, e também o fato de no momento do crime ela se achar ausente do salão. Duvido que ela estivesse todo o tempo telefonando na saleta. Penso que estivesse aqui em cima, inteiramente ocupada com o crime.

Garden aspirou rápido o cachimbo e pareceu estar refletindo.

— É claro que Madge conhece Zalia muito bem — admitiu com relutância. — Elas andam sempre juntas. Madge pode conhecer por dentro a história do atrito entre Zalia e Woody. Eu não sei. Zalia pode ter pensado que tinha razões suficientes para pôr fim à carreira de Woody. Ela é uma garota surpreendente. Nunca se sabe exatamente o que ela vai fazer.

— Você pessoalmente considera a Srta. Graem como capaz de um crime à sangue-frio, habilmente planejado?

Garden moveu os lábios e franziu a testa, tossiu uma ou duas vezes, como para ganhar tempo, depois falou: — Bolas, Vance! Não posso responder a esta pergunta. Francamente, não sei quem é ou não capaz de cometer um crime. A turma jovem de hoje vive entediada a ponto de morrer, não tolera a menor restrição, vive além de suas possibilidades, procurando escândalo, sensações de todo o tipo. Zalia difere um pouco do resto, até onde eu sei. Ela sempre parece estar acelerando ao máximo e ultrapassando os limites de velocidade, mas eu não sei até onde pode chegar realmente. E alguém sabe? Talvez seja uma reação violenta à respeitabilidade. Sua família é muito austera. Sua educação foi estrita, até obrigaram-na a entrar num convento durante dois anos, creio eu. Depois ela estourou e agora está tendo suas aventuras...

— Um esboço de caráter bastante brilhante mas nada suave — murmurou Vance. — Poder-se-ia concluir que você a admira mas não a aprova.

Garden riu desajeitadamente.

— Não posso dizer que não gosto de Zalia. A maioria dos homens gosta dela, embora eu não creia que qualquer um deles possa entendê-la. Eu sei que não posso. Há um muro impenetrável à sua volta. O mais curioso é que os homens a apreciam embora não faça o menor esforço para conquistar a estima ou afeição deles. Ela os trata sem consideração; na realidade parece estar aborrecida com as atenções deles. Uma venenosa e passiva Dolores, poderíamos dizer.

— Sim, algo assim, eu diria. Ela pode ser ou tremendamente superficial ou profunda como o inferno; não consigo decidir-me qual dos dois. Quanto à sua situação no caso atual... bem, eu não sei. Não me surpreenderia em absoluto se Madge tivesse razão. Zalia tem-me confundido diversas vezes, não posso explicar direito. Lembra-se? Quando você me perguntou a respeito do revólver de meu pai, contei-lhe que Zalia o havia descoberto na escrivaninha e montara toda uma cena nesta mesma sala. Vance, naquele dia meu sangue gelou nas veias. Havia um quê na maneira como Zalia fez a coisa e no tom de sua voz que me fez realmente temer que ela fosse capaz de atirar no grupo e depois passear pela sala e rir dos cadáveres. Não havia razão para esses sentimentos, talvez, mas, acredite-me, fiquei loucamente aliviado quando ela botou o revólver no lugar e fechou a gaveta. Tudo o que posso dizer — acrescentou — é que não a consigo entender inteiramente.

— Não, é claro que não. Ninguém pode compreender inteiramente uma outra pessoa. Se pudesse, entenderia tudo, o que não é um pensamento muito reconfortante... Muitíssimo obrigado pelo recital de suas impressões e temores. Dê uma olhada nas coisas lá embaixo, por uns momentos, sim?

Garden pareceu respirar com mais facilidade após ser dispensado e com uma aquiescência apenas murmurada, dirigiu-se para a saída.

— Ah, a propósito — chamou Vance — há uma outra coisa que eu lhe queria perguntar.

Garden esperou polidamente.

— Por que razão — disse Vance enviando para o teto um anel de fumaça — você não fez a aposta de Swift em Equanimity?

O homem deu um salto e seu queixo caiu. Mal teve tempo de impedir que o cachimbo caísse no chão.

— Você não fez, não é? — prosseguiu Vance suavemente. — Um ponto muito interessante, considerando-se o fato que seu primo não estava destinado a viver tempo suficiente para recolher o prêmio, caso Equanimity houvesse ganho. E, nas circunstâncias, se tivesse feito o jogo, agora estaria às voltas com uma dívida de 10.000 dólares, visto que Swift não estaria em condições de saldá-la.

— Por Deus do céu, Vance, pare com isso! — explodiu Garden, atirando-se na cadeira como um peso morto. — Como é que você sabe que eu não coloquei a aposta de Woody?

Vance olhou perscrutadoramente.

— Nenhum bookmaker aceitaria uma aposta daquela monta cinco minutos antes da largada. Ele não a poderia bancar, teria que colocar uma boa parte da mesma em outro lugar, talvez até fora da cidade: Chicago ou Detroit. E para isso, você sabe que precisa tempo. Uma aposta de 10.000 dólares tem que ser feita pelo menos uma hora antes de correr o páreo. Eu já lidei muito com bookmakers e homens de corridas.

— Mas Hannix...

— Não transforme Hannix num financista de Wall Street — advertiu mansamente Vance. — Conheço tão bem quanto você esses cavalheiros de giz e apagador. E outra coisa: aconteceu eu estar sentado numa posição estratégica perto de sua mesa quando você fingiu a aposta de Swift. Você habilidosamente esticou o fio sobre o gancho do telefone quando pegou o aparelho. Você estava falando num telefone desligado.

Garden contraiu-se e capitulou com um movimento de ombros desalentados.

— Está certo, Vance — disse. — Não fiz o jogo. Mas, se por um só momento você pensa que eu tinha qualquer suspeita de que Woody ia ser assassinado esta tarde, você está redondamente enganado!

— Meu caro amigo — suspirou Vance aborrecido — eu não estou pensando. A maior das inteligências não está trabalhando no momento. O cérebro está vazio, apenas tentando somar alguns algarismos. 10.000 dólares são uma grande soma. Isto muda o nosso total, não?... Mas você não me disse porque não fez o jogo. Poderia tê-lo feito. Você tinha indicações em número suficiente de que Swift ia apostar uma vasta soma em Equanimity e bastaria apenas tê-lo informado que a aposta deveria ser feita cedo.

Garden ergueu-se zangado, mas sob a sua raiva havia uma grande agitação.

— Eu não queria que ele perdesse o dinheiro — afirmou com agressividade. — Eu sabia o que aquilo significaria para ele.

— Sim, sim. O Bom Samaritano. Muito tocante. Mas suponhamos que Equanimity ganhasse e seu primo sobrevivesse: e o pagamento?

— Eu estava completamente preparado para correr o risco. Não seria muita coisa. Que poderia pagar aquele comedor de aveia? Menos que dois por um. Um dólar e oitenta centavos cada dólar, para ser exato, teriam sido dezoito mil dólares. Mas não havia a menor chance de Equanimity se colocar; eu tinha certeza absoluta disso. Corri o risco para o bem de Woody. Eu estava sendo decente, ou fraco, não sei qual dos dois. Se o cavalo tivesse ganho, eu teria pago Woody do meu bolso e ele nunca viria a saber que não era o dinheiro de Hannix.

Vance olhou-o pensativamente.

— Obrigado pela emocionante confissão — murmurou por fim. — Acho que é tudo por agora.

Enquanto ele falava, dois homens com uma cesta de vime com aspecto de um caixão surgiram no corredor. Heath foi-lhes ao encontro.

— A Saúde Pública veio buscar o corpo — anunciou por cima do ombro.

Vance ergueu-se.

— Sargento, diga-lhes para descer pela escada externa, não é necessário voltar por dentro do apartamento. — Dirigiu-se novamente a Garden. — Poderia mostrar-lhes o caminho?

Garden concordou de má vontade e saiu para o terraço.

Alguns momentos depois, os dois carregadores, precedidos por Garden, desapareciam pelo portão do jardim levando seu triste fardo.

 


XI

 

O Segundo Revólver

 

(Sábado, 14 de abril — 18:25 horas)

 

 

Markham encarou Vance com uma sombria ansiedade.

— Que significa essa história de Garden não ter colocado a aposta?

Vance suspirou.

— Qual é o significado das coisas? No entanto, é exatamente de tais fatos estranhos que podem surgir algumas hipóteses esclarecedoras.

— Eu, francamente, não consigo imaginar qual a influência que a atitude de Garden pode ter nesse caso, a menos que...

Vance interrompeu-o de chofre.

— A situação é embaraçosa. Tudo que aprendemos até agora deve ter algum significado. É necessário, evidentemente, que o saibamos interpretar. Quem sabe se a chave não está no amor?

— Não seja tão diabolicamente enigmático — disse Markham. — Que é que você está pretendendo?

— Meu caro Markham! Você está sendo demasiado lisonjeiro. Não há nada disso. Estou à procura de alguma coisa tangível, como, por exemplo, a outra arma, a que ouvimos detonar em algum lugar quando o cara já estava morto. Deveria estar aqui ou nas vizinhanças... — Voltou-se para Heath. — Diga-me, sargento, poderia juntamente com Snitkin procurar a arma? Itinerário sugerido: o jardim lá do terraço, os canteiros, a escadaria do prédio, o vestíbulo inferior. Depois, o próprio apartamento. Conjectura: qualquer um dos presentes pode ter estado com ela. Sigam todos os itinerários internos conhecidos de cada uma das pessoas que estão lá embaixo. Se está aqui, provavelmente será em algum esconderijo provisório, à espera de uma outra providência. Não precisam pôr as coisas de pernas para o ar e não sejam exageradamente oficiais. A doçura e o esclarecimento fazem as coisas.

Heath riu:

— Eu sei o que quer, Sr. Vance.

— E, sargento, antes de começar o reconhecimento, traga-me o Hammle. Você certamente o encontrará no bar lá embaixo tomando um uísque com soda.

Depois que Heath se afastou, Vance dirigiu-se a Markham.

— Hammle pode ou não ter algum bom conselho a dar. Não gosto dele: é do tipo pegajoso. Poderíamos também livrar-nos dele, pelo menos temporariamente. O local está tremendamente superlotado...

Hammle entrou pomposamente no estúdio e foi sumariamente apresentado a Markham. Através da janela, à luz do crepúsculo, eu podia distinguir os vultos de Heath e Snitkin movimentando-se ao longo dos canteiros.

Vance fez um gesto para que Hammle pegasse uma cadeira e estudou-o durante alguns instantes com um ar melancólico, como se estivesse fazendo um esforço para achar uma razão que justificasse a existência daquele homem.

A entrevista foi culta e, como provou, de particular importância. Esta não estava tanto no que Hammle disse quanto no resultado da curiosidade que as perguntas de Vance despertaria no homem. Foi esta curiosidade que mais tarde o capacitou a fornecer uma importante informação a Vance.

— Não é do nosso desejo reter o senhor aqui além do necessário, Sr. Hammle, — começou Vance com evidente má vontade — mas ocorreu-me perguntar-lhe se o senhor teria alguma idéia que ajudasse a solucionar o assassínio de Swift.

Hammle tossiu estrepitosamente e pareceu dar ao assunto uma grande atenção.

— Não, não tenho — admitiu finalmente. — Absolutamente. Mas é claro que com essas coisas nunca se sabe. Os fatos mais insignificantes podem ser interpretados seriamente desde que se dê a eles suficiente atenção. Quanto a mim, no momento, não dediquei ainda bastante atenção ao assunto.

— É claro — concordou Vance. — Ainda não houve muito tempo para profunda reflexão sobre a situação. Mas pensei que pudesse haver algo nas relações entre as diferentes pessoas aqui presentes esta tarde; suponho que o senhor esteja bastante familiarizado com todas elas, o que poderia inspirá-lo a dar uma sugestão.

— Tudo o que posso dizer — respondeu Hammle cuidadosamente pesando as palavras — é que havia muitos elementos adversários na reunião, isto é, muitas combinações peculiares. Oh, nada de criminoso. — E ele abanou rapidamente a mão, desculpando-se. — Eu gostaria que o senhor compreendesse isso totalmente. Mas havia uma combinação disto e daquilo que poderia levar a... bem, a qualquer coisa.

— A um crime, por exemplo? Hammle franziu a testa.

— Bem, crime é um assunto muito, muito sério. — Seu tom era quase sentencioso. — Mas, Sr. Vance, acredite em mim, com toda a solenidade, eu não imputaria um assassinato a nenhuma das pessoas aqui presentes hoje. Não, por Deus!

— Esta é uma surpreendente indicação — murmurou Vance — mas estou satisfeito em ouvir sua opinião e a tomaremos em consideração... A propósito, o senhor não percebeu alguma coisa de irregular quando Garden colocou a enorme aposta de Swift em Equanimity à última hora?

O autocontrole de Hammle desapareceu como por encanto. Durante alguns instantes ele apresentou a Vance uma perfeita "cara de jogador de pôquer". Depois, incapaz de suportar o exame direto do frio olhar de Vance, ele contraiu a boca num sorriso desajeitado.

— Por que negar — disse rindo. — O lançamento daquela aposta não foi apenas irregular; foi praticamente impossível. Não conheço um só bookmaker em Nova York que aceitasse uma soma tão grande quando nem sequer havia tempo suficiente para descarregar parte dela. O tal de Hannix teria passado um aperto tentando equilibrar seus livros com uma tempestade deste tipo à última hora! A transação toda pareceu-me loucamente estranha. Não podia conceber o que Garden estava fazendo.

Vance inclinou-se para a frente e seus olhos entrecerraram-se enquanto ele fixava Hammle.

— Isto poderia facilmente ter tido alguma influência na situação de hoje e eu gostaria muito de saber por que o senhor não mencionou o fato.

Durante um certo tempo o homem pareceu desconcertado, mas logo depois ele voltou a se instalar na cadeira com um ar complacente e estendeu as mãos com as palmas voltadas para cima.

— Por que razão deveria eu me intrometer? — perguntou com uma cínica suavidade. — Eu nunca me preocupei muito com os problemas dos outros. Já tenho muitos dos meus com que me preocupar.

— Esta é uma maneira de encarar a vida — falou descansadamente Vance. — E tem seus aspectos positivos. No entanto... E ele contemplou a ponta do cigarro, perguntando em seguida: — Sua discrição lhe permitiria fazer alguns comentários sobre Zalia Graem?

Hammle iluminou o rosto.

— Ah! — meneou a cabeça significativamente. — Isto é uma coisa para se pensar. Há várias possibilidades nessa moça. Vocês podem estar na pista certa. Um muito provável suspeito para o crime. De qualquer forma com as mulheres nunca se pode saber. E, cheguei a pensar nisso, o tiro deve ter ocorrido durante o período em que ela esteve ausente da sala. E ela é boa no tiro, também. Lembro-me uma vez que ela veio à minha propriedade em Long Island; naquela tarde praticou um bocado de tiro ao alvo. Ah, ela entende de armas como outras mulheres entendem de rendas, e também ela é tão selvagem quanto uma potranca de dois anos em seu primeiro obstáculo.

Vance concordou e esperou.

— Mas, nem por um momento imaginem — acrescentou Hammle às pressas — que estou sugerindo que ela tivesse alguma coisa a ver com a morte de Swift. Absolutamente, não! Mas o fato de seu nome ter sido mencionado faz-me pensar... — Enquanto terminava, ele meneava a cabeça com ar de quem sabe.

Vance ergueu-se com um bocejo reprimido.

— É bastante evidente que o senhor não está com disposição para ser mais específico. Eu não estava à procura de generalidades, compreende. Conseqüentemente, posso querer uma outra entrevista com o senhor. Onde poderá ser encontrado mais tarde, caso venhamos a precisar do senhor?

— Se tenho permissão para ir-me agora, voltarei para Long Island imediatamente — respondeu logo Hammle, olhando para o relógio. — É tudo o que deseja por enquanto?

— É tudo, obrigado.

Hammle mais uma vez olhou para o relógio, hesitou um pouco e depois deixou-nos.

— Não é uma pessoa agradável, esse Hammle — comentou Vance pesaroso quando o outro se foi. — Não é, em absoluto, uma pessoa agradável. Como você deve ter percebido, para ele todos servem para o papel de assassino; todos, exceto ele, é evidente. Uma criatura vil. E aquele colete horrível! E os sapatos de solas tão grossas, as roupas amarrotadas! Tão descuidado e esportivo: verdadeiramente britânico. O uniforme da elite dos cães de raça e cavalos. Os animais na realidade merecem melhores associados.

Deu de ombros tristemente e, dirigindo-se à campainha, apertou o botão.

— Estranhas informações sobre a moça Graem — voltou morosamente à sua cadeira. — Chegou a hora de entrar em contato com a própria dama...

Garden surgiu na porta.

— Chamou-me, Vance?

— Sim. A campainha agora está funcionando. Desculpe-me incomodá-lo, mas eu gostaria de ver a Srta. Graem. Você poderia fazer o favor?

Garden hesitou, seus olhos plantados em Vance. Ele ia começar a dizer alguma coisa, mudou de idéia e, com um resmungado "está bem", deu meia volta e desceu.

Zalia Graem entrou com um ar fanfarrão, as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta e olhou-nos com um alegre cinismo.

— Já fiz a maquilagem para a inquirição — anunciou com um sorriso de banda. — Vai demorar muito?

— É melhor sentar-se — disse Vance com fria polidez.

— É obrigatório? — perguntou ela.

— Estamos investigando um crime, Srta. Graem. — A voz de Vance era cortês porém firme. — E será necessário fazer-lhe algumas perguntas, às quais a senhorita talvez faça objeções. Mas acredite que será muito melhor para si mesma respondê-las francamente.

— Sou suspeita? Que emocionante!

— Até aqui, todos aqueles com quem falamos são dessa opinião. — E ele olhou a moça significativamente.

— Ah, então é assim que são as coisas! Eu é que vou pagar o pato! Que coisa mais cretina! Bem que me pareceu notar um vago olhar de medo nos outros. É, acho melhor eu me sentar. — Atirou-se numa cadeira e fitou-nos com um desânimo simulado. — Vão prender-me?

— Não imediatamente. Mas alguns pontos precisam ser esclarecidos. Não perderá seu tempo em nos ajudar.

— Isto soa horrível. Mas, continue.

— Primeiramente, gostaríamos de saber algumas coisas a respeito de sua rixa com Swift.

— Ah, diabos! — exclamou com raiva. — Isto precisa ser remexido? Na realidade não era nada de especial. Woody preocupava-se demais comigo. Tive pena dele e andei um pouco com ele quando me implorou e ameaçou-me recorrer a todas as formas conhecidas de suicídio, se eu não o fizesse. Depois, achei que já não agüentava mais e decidi virar a página. Mas receio não ter agido da melhor maneira. Disse a ele que eu era extravagante e só ligava para o luxo e que nunca me casaria com um homem pobre. Eu tive a triste idéia que isto o faria sair de sua esperançosa adoração. Funcionou, mas de certo modo. Ele ficou furioso, disse coisas horríveis, que, francamente, não pude perdoar. E assim, ele foi por um caminho e eu por outro.

— Dessa forma, a conclusão que podemos tirar é que ele jogava tão alto nos cavalos como a última esperança de reunir uma fortuna suficiente para vencer a sua aversão à pobreza, e que a aposta de hoje em Equanimity foi o último recurso...

— Não diga isso! — gritou a moça segurando com força os braços da cadeira. — É uma idéia horrível, mas bem que poderia ser verdade. Não quero ouvir isto.

Vance continuou a estudá-la com ar crítico.

— É como diz. Poderia ser verdade. Entretanto... bom, vamos deixar de lado... — Depois, perguntou rapidamente: — Quem lhe telefonou hoje, pouco antes do Grande Prêmio Rivermont?

— Tartarin de Tarascon — replicou com sarcasmo.

— E a senhorita havia dito a esse eminente aventureiro que lhe telefonasse exatamente naquela hora?

— Que tem isso a ver com o resto?

— E por que estava tão ansiosa em atender o telefone na saleta e fechou a porta?

A moça inclinou-se para a frente e desafiou o olhar de Vance.

— Onde está querendo chegar? — perguntou furiosa.

— A senhorita tem conhecimento — prosseguiu Vance — de que a saleta lá embaixo é a única peça diretamente ligada com fios a esta sala aqui?

A moça pareceu incapacitada de falar. Ficou pálida e rígida, os olhos fixos em Vance.

— E sabe também — continuou na mesma entonação — que os fios do lado de cá foram desligados? E sabe ainda que o tiro que ouvimos lá embaixo não foi o que pôs fim à vida de Swift; que ele foi alvejado na caixa-forte do corredor, muitos minutos antes de ouvirmos a detonação?

— O senhor está sendo medonho — gritou a moça. — Está fabricando pesadelos para me assustar. Está concluindo coisas horríveis. Tentando torturar-me, fazendo-me admitir coisas que não são verdadeiras, só porque eu não estava na sala quando Woody foi morto.

Vance ergueu a mão para interromper as reclamações.

— Está interpretando mal minha atitude, Srta. Graem — disse suavemente. — Há poucos momentos atrás, pedi-lhe que respondesse francamente às minhas perguntas. Recusou-se. Nessas circunstâncias, deveria saber como os fatos se apresentam para as outras pessoas. — Fez uma pausa. — A senhorita e Swift não estavam em bons termos; sabia, como todos os outros, que geralmente ele subia para o terraço antes de cada páreo. Sabia onde o Prof. Garden guardava o revólver. Está acostumada a armas e atira bem. Chamam-na ao telefone bem naquela hora. A senhorita desaparece. Nos cinco minutos que se seguem, Swift é morto atrás daquela porta de aço. Mais cinco minutos se passam; acabou a corrida e ouve-se um tiro. Este tiro podia perfeitamente ter sido disparado por um mecanismo qualquer. Os fios da campainha daqui foram desligados, obviamente com alguma finalidade específica. No momento do segundo disparo, a senhorita estava na outra extremidade do fio; quase desmaiou quando viu Swift. Depois tentou vir cá em cima... somando tudo isso: a senhorita tinha um motivo, um conhecimento amplo da situação, tinha acesso à arma, capacidade para agir e a oportunidade. — Vance fez nova pausa. — Está agora pronta para ser franca ou tem realmente alguma coisa a esconder?

Produziu-se uma mudança nela. Afrouxou, como se atacada subitamente de fraqueza. Não despregou os olhos dos de Vance, parecendo perplexa, sem saber que rumo tomar.

Antes que ela conseguisse falar, Heath entrou ruidosamente no corredor e abriu a porta do estúdio. No braço, ele trazia um casacão de mulher de tweed preto e branco. Piscou um olho para Vance triunfantemente: — Já vi tudo, sargento — falou lentamente Vance. — Sua busca teve sucesso. Pode falar. — Voltou-se para Zalia Graem e explicou: — O sargento Heath estava à procura do revólver que disparou o segundo tiro.

A jovem imediatamente animou-se e inclinou-se para a frente, toda atenção.

— Segui o caminho que sugeriu, Sr. Vance — informou Heath. — Depois de percorrer o terraço, as escadas e o vestíbulo do apartamento, pensei em dar uma olhada nas roupas penduradas no armário da entrada. O revólver estava no bolso deste aqui. — Atirou o casaco no sofá e tirou do próprio bolso um revólver de metal, calibre 38, mostrando-o a Vance e Markham.

— Cheio de cápsulas e uma delas foi disparada.

— Muito bem, sargento — cumprimentou Vance. — E de quem é o casaco?

— Ainda não sei, Sr. Vance; mas vou descobri-lo imediatamente.

Zalia Graem erguera-se e aproximara-se.

— Posso dizer de quem é. Pertence à Srta. Beeton, a enfermeira. Eu a vi com ele ontem.

— Muito grato pela identificação — retrucou Vance com os olhos sonhadoramente pousados nela.

A jovem deu-lhe um sorriso oblíquo e voltou à cadeira de onde saíra.

— Mas ainda há uma questão pendente, Srta. Graem. Quero saber: está pronta agora para falar francamente?

— Está certo. Lemmy Merrit, um dos vários rebentos da aristocracia turfista que infesta o nosso litoral, pediu-me para ir com ele de carro assistir a uma partida de pólo em Lands Point, amanhã. Achei que isso poderia proporcionar alguma sensação e disse-lhe que me chamasse esta tarde aqui, às 3:30 para uma decisão final. Marquei a hora de propósito, de modo a não perder o Grande Prêmio. Como o senhor sabe, ele só telefonou às 4 horas, desculpando-se por não ter conseguido um telefone. Tentei livrar-me dele depressa, mas ele era insistente, aliás a única virtude que eu conheço nele. Deixei-o pendurado no fio enquanto saí para ouvir a corrida e depois voltei para despedir-me e dispensá-lo. Exatamente quando desliguei, ouvi alguma coisa parecida com um tiro e cheguei na porta a tempo de ver todo o mundo se precipitando pelo corredor afora. Veio-me a idéia de que Woody se tivesse suicidado e foi aí que eu dei uma da era vitoriana e quase desmaiei quando o vi. E isso é tudo. Nada sei a respeito de fios, campainhas, ou dispositivos mecânicos; há uma semana que eu não entrava nesta sala. Todavia, eu chego ao ponto de admitir que não gostava de Woody e que, em muitas ocasiões, tive vontade de lhe estourar os miolos. E, como o senhor disse, atiro muito bem.

Vance ergueu-se e fez um reverência.

— Muito obrigado por sua franqueza final, Srta. Graem. Estou imensamente triste por tê-la torturado para obter o que desejava. E, por favor, ignore os pesadelos que me acusou de estar fabricando. Estou-lhe realmente muito grato por ter-me ajudado a completar o esboço.

A jovem franziu a testa e seu olhar intenso pousou em Vance.

— Estou-me perguntando se realmente o senhor não sabe mais sobre este caso do que finge.

— Minha querida Srta. Graem! Não finjo saber coisa alguma.

Vance abriu a porta para ela.

— Pode ir agora, mas provavelmente amanhã vamos querer vê-la outra vez e eu preciso pedir-lhe que me prometa ficar em casa, onde será facilmente encontrada.

— Não se preocupe, estarei em casa. — Deu de ombros e acrescentou: — Estou começando a pensar que talvez Ogden Nash estivesse certo.

Quando ela saía, a Srta. Beeton vinha subindo o corredor em direção ao estúdio. As duas mulheres cruzaram-se sem se falar.

— Lamento incomodá-lo, Sr. Vance, — desculpou-se a enfermeira — mas o Dr. Siefert acabou de chegar e pediu-me para informá-lo que deseja vê-lo o mais depressa possível. O Sr. Garden — acrescentou — contou a ele a morte do Sr. Swift.

Naquele instante o olhar dela pousou no casaco de tweed e uma ruga de espanto riscou sua testa. Antes que ela pudesse falar, Vance disse: — O sargento trouxe seu casaco até aqui. Ele não sabia de quem era, estávamos procurando alguma coisa. — Depois ele acrescentou rapidamente: — Por favor, diga ao Dr. Siefert que eu gostaria muito de vê-lo agora mesmo. E peça-lhe para ter a gentileza de vir até aqui ao estúdio.

A enfermeira fez que sim e saiu fechando suavemente a porta atrás de si.


XII

 

Gás Venenoso

 

 


(Sábado, 14 de abril — 18:40 horas)

 

 

Vance foi até à janela e, durante algum tempo, ficou em silêncio olhando para fora. Era evidente que ele estava profundamente perturbado. Markham respeitou seu sentimento e permaneceu calado. Foi o próprio Vance quem, por fim, rompeu o silêncio.

— Markham, — disse ele com os olhos fitos no brilhante pôr-de-sol do outro lado do rio — quanto mais penetro neste caso, menos gosto dele. Todo o mundo parece estar tentando pregar no próximo a etiqueta de culpado. Para qualquer lado que eu me vire, sinto que há medo. As consciências culpadas estão em ação.

— Mas todos — retrucou Markham — parecem concordar plenamente que Zalia Graem tem um dedo nesta história.

Vance inclinou a cabeça.

— É, sim — murmurou. — Também observei este fato. Só fico pensando...

Markham analisou Vance durante algum tempo.

— Você acha que o Dr. Siefert possa ser de alguma utilidade?

— Poderá ser, é claro — replicou Vance. — Evidentemente ele quer ver-me. Mas acredito que seja mais curiosidade que outra coisa. Na verdade, há muito pouca coisa que alguém que não estivesse aqui possa contar-nos. A dificuldade deste caso, Markham, reside em tentar eliminar uma multiplicidade de itens que só fazem confundir...

Ouviu-se uma leve batida e Vance deixou a janela para deparar com Garden que abriu a porta sem esperar que o atendessem.

— Perdão, Vance, — desculpou-se Garden — mas o Dr. Siefert está lá embaixo dizendo que gostaria de vê-lo antes de ir embora.

Vance ficou olhando para ele e franziu a testa.

— Faz alguns minutos que a Srta. Beeton me informou isso mesmo. Pedi-lhe que dissesse ao doutor que eu desejava vê-lo imediatamente. Não entendo por que ele mandou você também. A enfermeira não deu o recado?

— Receio que não. Sei que Siefert mandou a Srta. Beeton aqui e eu supus, e creio que Siefert também, que você a havia retido. — Olhou à volta da sala com expressão intrigada.

— Na verdade, pensei que ela ainda estivesse aqui.

— Você quer dizer que ela não voltou lá para baixo? — perguntou Vance.

— Não, ela ainda não desceu. Vance deu um passo à frente.

— Você tem certeza disso, Garden?

— Sim, absoluta — respondeu acenando vigorosamente com a cabeça. — Eu estava no corredor de entrada próximo a escada desde a chegada do Dr. Siefert.

Vance caminhou pensativamente até uma mesinha e lá bateu a cinza do cigarro.

Você viu os outros descerem? — perguntou.

— Sim, claro. Kroon desceu e foi embora. Depois Madge Weatherby também desceu e se foi. Pouco depois de a enfermeira subir com o recado do Dr. Siefert, Zalia desceu e roí embora às pressas. Mas isso é tudo. Como já disse, estive todo o tempo no corredor de entrada.

— E Hammle?

— Hammle? Não, não vi sinal dele. Pensei que ainda estivesse aqui com vocês.

— Isso é mais que esquisito. — Vance caminhou lentamente ate uma cadeira e sentou com um ar perplexo. — É possível que você não o tenha visto. Não tem importância, peça ao doutor para subir, sim?

Quando Garden nos deixou, Vance permaneceu sentado e fumando com os olhos no teto. Por suas palavras pude sentir que ele estava perturbado. Moveu-se, inquieto na cadeira e finalmente inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

— Infernalmente estranho — murmurou de novo.

— Por Deus do céu, Vance, — comentou Markham com irritação — é perfeitamente possível que Garden não estivesse controlando a escada tão bem quanto imagina.

— É, é mesmo — meneou a cabeça. — Todo o mundo preocupado; ninguém atento. Os mecanismos normais não estão funcionando. Ainda assim, a metade da escada é visível do corredor e este não é muito espaçoso...

— É bem possível que Hammle tenha descido pela escada externa através do terraço, talvez desejando evitar os outros.

— Ele estava sem chapéu quando veio aqui — respondeu Vance sem levantar os olhos. — Ele teria precisado ir até o corredor de entrada e passar por Garden para pegá-lo. Não há razão para umas manobras tão tolas... Mas não é em Hammle que estou pensando. É na Srta. Beeton. Não estou gostando... — Levantou-se devagar e pegou outro cigarro. — Ela não é o tipo de pequena que deixaria de dar o meu recado ao Dr. Siefert imediatamente, a menos que tivesse boa razão para tal.

— Algumas coisas podem ter acontecido... — começou Markham, porém Vance cortou.

— Sim, é claro. É exatamente isto. Já aconteceram coisas demais aqui hoje. — Dirigiu-se até à janela do lado norte e olhou para o jardim. Depois voltou ao centro da sala e parou durante uns instantes, mergulhado em profunda meditação. — Como você disse, Markham, — sua voz era quase inaudível — alguma coisa pode ter acontecido. — De repente, ele atirou o cigarro num cinzeiro e girou nos calcanhares: — Deus! Estou pensando se... Venha, sargento. Vamos ter que dar uma busca imediatamente.

Abriu a porta rapidamente e saiu pelo corredor. Nós o seguimos com uma vaga apreensão, sem saber o que ele tinha em mente e sem poder prever o que viria em seguida. Vance espiou pela porta do jardim. Depois, voltou sacudindo a cabeça.

— Não, não poderia ter sido aqui. Nós teríamos visto.

— Seus olhos moviam-se curiosamente para cima e para baixo do corredor, e depois uma expressão estranha e de surpresa tomou conta deles. — Pode ser! Ai, meu Deus! — exclamou.

— Estão acontecendo coisas malditas aqui. Esperem um segundo.

Vance rapidamente retrocedeu até à porta da caixa-forte. Segurando a maçaneta, puxou-a com violência, mas agora a porta estava trancada. Tirando a chave do prego, enfiou-a apressado, no buraco. Quando a porta se abriu com um estalido, um cheiro forte e penetrante atacou nossas narinas. Vance recuou logo.

— Para fora! — gritou por cima do ombro, em nossa direção. — Vocês todos!

Instintivamente corremos para a porta do jardim.

Cobrindo o nariz e a boca com uma das mãos, Vance empurrou a porta do cofre.

— Srta. Beeton! Srta. Beeton! — chamou. Não veio resposta; e eu vi Vance abaixar a cabeça e avançar através de uma densa fumaça que emanava da porta aberta. Ajoelhando-se no limiar, inclinou-se para dentro do cofre. No momento seguinte, ele se endireitava e puxava para o corredor o corpo sem forças da enfermeira.

Todo esse episódio demorou menos que o tempo necessário para contá-lo. Na realidade não haviam decorrido mais de dez segundos desde que ele enfiara a chave na fechadura. Eu sabia o esforço que ele estava fazendo, pois até mesmo eu, que ficara do lado de fora da porta do jardim onde a fumaça era relativamente pouco densa, estava meio sufocado, enquanto Markham e Heath estavam tossindo e soluçando.

Assim que a moça ficou fora da caixa-forte, Vance tomou-a nos braços e carregou-a vacilantemente para o jardim onde colocou-a gentilmente no sofá de vime. O rosto dele estava mortalmente pálido; seus olhos choravam e tinha a respiração difícil. Quando soltou a moça, Vance encostou-se pesadamente em um dos postes de ferro que suportavam o toldo. Abriu amplamente a boca e aspirou o ar fresco.

A enfermeira estava ofegando em estertores e agarrando a garganta. Embora seu peito subisse e descesse em convulsões, todo o seu corpo era flácido e sem vida.

Naquele momento, o Dr. Siefert entrou pela porta do jardim, com uma expressão atônita no rosto. Ele tinha toda a aparência exterior do tipo de médico que Vance nos descrevera na noite anterior. Possuía cerca de 60 anos, vestido de maneira conservadora porém na moda, e com um porte estudadamente digno e auto-suficiente.

Com um grande esforço Vance endireitou o corpo.

— Depressa, doutor — chamou. — É gás de bromo. — E fez um gesto trêmulo em direção ao vulto prostrado da enfermeira.

Siefert avançou rapidamente, moveu o corpo da jovem para uma posição mais confortável e abriu-lhe a gola do uniforme.

— Somente o ar pode ajudá-la — disse, enquanto puxava uma das extremidades do divã de modo a expô-la melhor à brisa que vinha do rio. — Como se sente, Vance?

Vance enxugava os olhos com um lenço; piscou uma ou duas vezes e sorriu levemente.

— Estou bem — dirigiu-se ao divã e olhou um instante para a moça. — Foi por pouco — murmurou.

Siefert inclinou a cabeça gravemente. Neste instante Hammle surgiu de um canto escuro do jardim.

— Por Deus! — exclamou. — Que aconteceu?

Vance voltou-se para o homem com ar colérico, dizendo: — Bem, bem, a lista de presenças está completa. Direi mais tarde o que está acontecendo. Ou talvez o senhor esteja em condições de me dizer. Espere aqui mesmo. — E apontou com a cabeça em direção a uma cadeira que se achava próxima.

Hammle fitou-o com ressentimento e começou a protestar, mas Heath, que acorrera ao seu encontro, pegou-o firmemente pelo braço e levou-o diplomaticamente até à cadeira indicada por Vance. Hammle sentou-se humildemente e tirou um cigarro.

— Eu quisera ter tomado o primeiro trem para Long Island — murmurou.

— Teria sido melhor mesmo, sabe — disse Vance, afastando-se dele.

A tosse estrangulada da enfermeira diminuíra um pouco. Sua respiração era mais profunda e regular e os soluços haviam cedido parcialmente. Pouco depois ela esforçou-se para sentar.

Siefert ajudou-a.

— Respire o mais fundo e rápido que puder — disse. — É de ar que você precisa.

A jovem fez um esforço para seguir as instruções, uma das mãos apoiadas no encosto do sofá e a outra repousando no braço de Vance.

Mais alguns minutos e ela já estava em condições de falar, porém com grande dificuldade.

— Estou melhor agora, a não ser o ardor no nariz e na garganta.

Siefert mandou Heath buscar água e quando a trouxe, a enfermeira bebeu um copo cheio, em meio a soluços estrangulados. Mais dois ou três minutos e ela pareceu recuperar-se consideravelmente. Olhou para Vance com um ar amedrontado.

— Que aconteceu? — perguntou.

— Ainda não sabemos. — Vance devolveu-lhe o olhar com evidente aflição. — Sabemos apenas que você foi envenenada com gás de bromo no cofre onde Swift foi alvejado. Estávamos esperando que você nos pudesse dizer.

Ela sacudiu a cabeça vagamente e seu olhar era de pasmo.

— Receio não ter muito o que contar. Tudo aconteceu de maneira tão inesperada, tão de repente. Tudo o que sei é que quando eu fui dizer ao Dr. Siefert que ele podia subir, bateram-me na cabeça por trás, exatamente quando eu passava pela porta do jardim. O golpe não me deixou inteiramente inconsciente mas atordoou-me de modo que fiquei sem saber o que havia em torno de mim. Depois, senti que me pegavam por trás, giravam meu corpo e empurravam-me de volta pelo corredor até à caixa-forte. Tenho uma vaga lembrança da porta ter sido fechada às minhas costas, embora eu não tivesse condições para protestar ou mesmo dar-me conta do que estava acontecendo. Mas eu estava consciente de que lá dentro havia um pavoroso e sufocante cheiro. Estava encostada à parede e tinha dificuldade em respirar. Senti que ia afundando e isto é a última coisa de que me lembro... — Ela estremeceu. — Isto é tudo o que eu sabia, pelo menos até agora.

— É. Uma experiência desagradável. Mas poderia ter sido muito pior — Vance falou em voz baixa e sorriu gravemente para a jovem. — Tem uma feia mancha roxa em sua cabeça, atrás. Isto também poderia ter sido pior, mas a sua touca engomada provavelmente evitou um mal maior.

A moça pusera-se de pé e vacilou um pouco ao mesmo tempo que procurava firmar-se de encontro a Vance.

— Agora sinto-me bem de verdade. — Olhou para Vance ansiosamente. — E tenho que lhe agradecer, não é?

Siefert falou asperamente.

— Mais alguns minutos daquele gás de bromo teriam sido fatais. Aquele que a encontrou, seja lá quem for, o fez bem a tempo.

A moça não tirava os olhos de Vance.

— Como pode ter-me encontrado tão depressa? — perguntou.

— Raciocínio atrasado — respondeu ele. — Eu a deveria ter encontrado muitos minutos antes, no momento em que soube que não havia voltado lá para baixo. Mas no início foi difícil imaginar que algo de sério poderia ter-lhe acontecido.

— Ainda agora não consigo compreender — disse ela com um ar intrigado.

— Nem eu, inteiramente — retrucou Vance. — Mas talvez ainda venha a saber de mais alguma coisa.

Encaminhando-se rapidamente para o jarro d'água trazido por Heath, mergulhou nele o lenço e apertando este de encontro ao rosto, desapareceu no corredor. Breve regressava. Trazia na mão um caco de vidro fino e curvo, de uns dez centímetros de comprimento.

Era um pedaço de um frasco quebrado que ainda trazia pendurado uma pequena etiqueta onde estava impresso o símbolo "Br".

— Encontrei isto no chão, no fundo da caixa-forte. Estava exatamente ao pé de uma das prateleiras onde o professor Garden mantém o seu sortimento de produtos químicos. Havia um espaço vazio na prateleira, mas este frasco de bromo não pode ter caído acidentalmente. Só pode ter sido retirado deliberadamente e quebrado no momento exato. — Estendeu o fragmento a Heath. — Tome isto, sargento, e procure cuidadosamente por impressões digitais. Mas se, como eu suspeito, foi manipulado pela mesma pessoa que matou Swift, duvido que encontre aí quaisquer marcas expressivas. Em todo o caso...

Heath aceitou cuidadosamente o caco, enrolou-o no lenço que colocou no bolso.

— Se tiver impressões — resmungou — serão as primeiras encontradas aqui.

Vance voltou-se para Markham, que durante toda a cena estivera parado à beira do pequeno lago de pedras, observando com espanto agressivo.

— O bromo — explicou — é um reagente comum. Encontra-se em qualquer laboratório. É um dos halógenos e, embora nunca seja encontrado em liberdade, aparece em vários compostos. Aliás, seu nome vem do grego Bromos, que significa mau cheiro. Não tem sido usado com freqüência como arma de crime, embora haja numerosos casos de envenenamento acidental com ele. Mas, durante a guerra, foi amplamente usado na confecção de bombas de gás, porque torna-se volátil em contato com o ar. E o gás de bromo é sufocante e mortal. Quem quer que tenha planejado esta câmara letal para a Srta. Beeton, não é desprovido de crueldade.

— Foi uma coisa ignóbil, Vance — explodiu Siefert com os olhos flamejantes.

Vance concordou e olhou para a enfermeira.

— Sim. Isso mesmo, doutor. E assim foi a morte de Swift... Como se sente agora, Srta. Beeton?

— Um pouquinho trêmula — respondeu com um sorriso fraco. — Porém nada mais.

— Então podemos prosseguir, não?

— Claro — retrucou em voz baixa.

Nesse instante, Floyd saiu do corredor para o terraço. Ao mesmo tempo que tossia, piscava os olhos e tinha uma expressão interrogativa.

— Que maldito cheiro é este no corredor? — perguntou. — Chegou até lá embaixo e Sneed já está chorando como uma criança que se perdeu. Algo errado?

— Agora não — respondeu Vance. — Foi um vidro de bromina que se quebrou há alguns minutos, mas dentro em breve o ar já estará limpo. Nada de grave. Está tudo indo bem.

— Queria ver-me?

Garden percorreu com ar intrigado o grupo reunido no terraço.

— Sinto muito interrompê-lo Vance, mas eu vim por causa do doutor. — Seus olhos pararam em Siefert e sorriu secamente. — O mesmo de sempre, doutor. A Mama parece a ponto de ter um colapso, ela me assegurou com todo o vigor que não tem mais um grama de forças. Eu a pus na cama, com o que ela pareceu estar perfeitamente de acordo, mas insiste em vê-lo imediatamente. Nunca sei quando ela quer realmente ou não. Em todo o caso, este é o recado.

Siefert mostrou um ar preocupado e inspirou profundamente antes de responder.

— Vou imediatamente, é claro. — Olhou para a enfermeira e depois para Vance. — Podem desculpar-me?

Vance curvou-se: — Certamente, doutor. Mas eu penso que a Srta. Beeton deveria ficar aqui ao ar livre por mais algum tempo.

— Ah, é indispensável. Se precisar dela, mandarei chamar. Mas creio que não será necessário. — E Siefert deixou o terraço seguido por Garden.

Vance acompanhou-os com o olhar até entrarem no corredor, depois falou à enfermeira: — Por favor, Srta. Beeton, sente-se aqui alguns minutos, vamos conversar um pouco. Mas, primeiro, preciso de um ou dois minutos com o Sr. Hammle.

A enfermeira fez que sim e sentou-se um tanto pesadamente no sofá. Vance fez um pequeno sinal a Hammle.

— Que tal se entrássemos um instante? Hammle ergueu-se vivamente.

— Eu estava pensando por quanto tempo ainda os senhores iam-me deter aqui.

Vance abriu caminho até o estúdio; Markham e eu seguimos, logo atrás de Hammle.

— Que estava fazendo no terraço, Sr. Hammle? — perguntou Vance. — Faz algum tempo, após nossa breve entrevista, eu lhe disse que poderia ir embora.

Hammle agitou-se. Era evidente que estava apreensivo e alerta.

— Não é crime ir um pouco até o jardim, ou é? — perguntou com uma truculência sem efeito.

— Absolutamente, não — respondeu normalmente Vance.

— Só estava imaginando por que o senhor preferiu o jardim a ir para casa. Aconteceram tantas coisas infernais neste jardim hoje à tarde.

— Como eu lhe disse, desejava ir para casa. Como poderia saber...

— Este é o ponto, Sr. Hammle — cortou Vance. — Isto não responde à minha pergunta.

— Bom, olhe aqui — explicou detalhadamente Hammle. — Eu acabava de perder o trem para Long Island e para o seguinte faltava mais de uma hora. Quando saí daqui e comecei a descer, disse para mim mesmo: será muito mais agradável esperar no jardim do que na estação da Pennsylvania. Então saí para o terraço e fiquei por lá. E aqui estou eu.

Vance olhou-o com perspicácia e balançou a cabeça.

— Sim, como diz o senhor. Aqui está, mais ou menos em evidência. Aliás, Sr. Hammle, que viu o senhor no jardim enquanto esperava pelo próximo trem?

— Nada, absolutamente nada! — O tom do homem era agressivo. — Caminhei ao longo dos canteiros e vasos, fumando, e estava debruçado no parapeito perto do portão olhando a cidade, quando o ouvi chegar carregando a enfermeira.

Vance apertou os olhos: era evidente que ele não estava satisfeito com a explicação de Hammle.

— E o senhor não viu mais ninguém no jardim ou no terraço?

— Nem uma alma — assegurou-lhe o homem.

— Também nada ouviu?

— Nada, até que apareceram os senhores.

Vance ficou parado olhando Hammle durante um bom momento. Depois voltou-se e caminhou até à janela que dava para o jardim.

— É tudo por enquanto — disse bruscamente. — Mas provavelmente amanhã vamos querer vê-lo outra vez.

— Estarei em casa o dia inteiro. Grato por ser útil. — Hammle deu um olhar para Vance, despediu-se rapidamente e saiu pelo corredor.

 

 

 

 

XIII

 

Azure Star

 

 


(Sábado, 14 de abril — 19:00 horas)

 

 

Vance regressou logo ao jardim. A Srta. Beeton ergueu-se um pouco quando ele se aproximou.

— Está em condições de responder a algumas perguntas? — perguntou Vance.

— Ah, sim. — Sorriu a moça, agora com mais segurança, e levantou-se.

O crepúsculo começava a cair rapidamente sobre a cidade. Um tom cinzento opaco estava substituindo a névoa azulada sobre o rio. Acima das colinas de Jersey, o céu estava iluminado com as cores fortes do pôr-do-sol e, a distância, pequenos focos de luz amarela começavam a surgir às janelas do aglomerado de edifícios. Uma leve brisa soprava do norte e o ar estava frio.

Quando atravessamos o jardim até à amurada, a Srta. Beeton respirou fundo e estremeceu levemente.

— Seria melhor que pusesse o casaco — sugeriu Vance; e voltando ao estúdio, trouxe o casaco para ela. Depois que a ajudou a vesti-lo, a moça voltou-se para ele de repente e perguntou: — Por que trouxeram meu casaco para o estúdio? Isto me está preocupando horrivelmente... juntamente com todas as coisas abomináveis que têm acontecido hoje aqui.

— Por que preocupar-se? — sorriu Vance. — Um casaco fora do lugar certamente não é uma coisa séria. — Seu tom era reconfortante. — Mas, na verdade, nós lhe devíamos uma explicação. Como sabe, dois revólveres participaram da morte de Swift. Um deles, nós vimos aqui no terraço; foi o que matou nosso amigo. Mas ninguém lá embaixo ouviu o tiro porque o rapaz teve fim na caixa-forte do Prof. Garden.

— Ah! Então foi por isso que o senhor queria saber se a chave estava no lugar — disse ela meneando a cabeça.

— O disparo que todos nós ouvimos — prosseguiu Vance — foi feito por outro revólver depois do corpo de Swift ter sido carregado da caixa-forte e colocado na cadeira aqui fora. Nós estávamos naturalmente ansiosos por descobrir essa outra arma e o sargento Heath deu uma busca e...

— Mas... e meu casaco? — Ela agarrou a manga de Vance ao mesmo tempo que uma luz de compreensão passava em seus olhos.

— Sim — respondeu Vance. — O sargento encontrou o revólver no bolso de seu casaco. Alguém teve de colocá-lo lá como esconderijo temporário.

Ela recuou inspirando profundamente.

— Que horror! — Suas palavras eram quase inaudíveis. Vance pôs a mão em seu ombro.

— Se a senhorita não tivesse vindo ao estúdio naquela ocasião e visto o casaco, nós o teríamos devolvido ao guarda-roupa lá embaixo e poupado esse aborrecimento.

— Mas, é terrível demais... e depois, este atentado contra mim. Não posso entender, estou apavorada.

— Vamos, vamos — exortou Vance. —i Agora já passou e precisamos de sua ajuda.

Ela encarou-o por um momento. Depois deu-lhe um leve sorriso de confiança.

— Sinto muito — disse com simplicidade. — Mas esta casa, esta família... eles andam fazendo umas coisas muito estranhas que têm afetado meus nervos desde o mês passado. Não posso explicar o que é, mas há alguma coisa de completamente errado aqui. Durante seis meses eu fui encarregada de uma sala de operação num hospital de Montreal, atendendo a seis ou oito operações por dia; mas isto nunca me afetou como esta casa aqui. Lá, pelo menos, eu podia saber o que ia acontecer; eu podia ajudar e saber que estava ajudando. Mas aqui tudo se passa nos cantos escuros, e nada do que eu faço parece ter qualquer utilidade. Podem imaginar um cirurgião ficando cego em meio a uma laparotomia e tentando continuar sem a visão? É assim que eu me sinto neste estranho lugar. Mas, por favor, não pensem que não estou pronta a ajudar, a fazer o que puder pelos senhores. Os senhores, também, sempre trabalham no escuro, não é?

— Todos nós não temos que trabalhar no escuro? — murmurou Vance sem despregar os olhos dela. — Diga-me: quem você acha possa ser o culpado de todas essas coisas horríveis que estão acontecendo aqui?

Todo o medo e a dúvida pareceram abandoná-la. Caminhou em direção à amurada e parou olhando para o rio com uma impressionante calma e autoconfiança.

— Realmente, eu não sei — respondeu com uma calma reserva. — Há uma série de possibilidades, segundo todas as expectativas. Mas não tive tempo de pensar no assunto com clareza. Tudo aconteceu tão de repente...

— Sim, é exato — disse Vance. — Coisas como esta sempre acontecem subitamente e sem aviso prévio.

— A morte de Woody Swift não foi em absoluto o que esperei que acontecesse aqui — prosseguiu a moça. — Eu não teria ficado surpreendida com algum ato de violência impulsiva, mas este crime premeditado, tão sutil e cuidadosamente planejado, parece estranho à atmosfera daqui. Além disso, não é uma família amorosa, a não ser na superfície. Psicologicamente, cada um parece ter objetivos opostos, cheios de ódios ocultos. Ausência de comunicação, quero dizer, comunicação... entendimento. Floyd Garden é mais sadio que os outros. Seus interesses são restritos, evidentemente; mas em seu próprio nível mental, ele sempre me impressionou como sendo um homem para a frente e enormemente humano. É também digno de confiança, creio eu. É intolerante com sutilezas e profundidades, e sempre adotou o caminho de ignorar a existência daquelas qualidades que causaram atrito entre os outros membros da família. Talvez eu esteja errada, mas esta é a minha impressão.

Ela fez uma pausa e franziu a testa.

— Quanto à Sra. Garden, acho que ela é oca por natureza e está criando para si mesma um modo de vida mais profundo e complexo que ela mesma não compreenda. Isto, naturalmente, a torna pouco razoável e perigosa. Nunca tive uma paciente tão pouco razoável. Ela não tem em absoluto um pingo de consideração com os outros. Sua afeição pelo sobrinho, nunca me pareceu autêntica. Ele era como um pequeno boneco de argila feito por ela e a quem estimava muito. Se ela tivesse idéia de outro modelo, acho que molharia a argila e remodelaria tudo outra vez, criando outro objeto de adoração.

— E o professor Garden?

— Ele é um pesquisador e um cientista e, portanto, não completamente humano no sentido convencional do termo. Algumas vezes até pensei que ele não fosse inteiramente racional. Para ele, as pessoas e as coisas são apenas elementos que devem ser convertidos numa combinação química. Entendem o que estou querendo dizer?

— Sim, muito bem — tranqüilizou-a Vance. — Todo cientista considera-se um Ubermensch*. O poder é o seu deus. Muitos dos grandes cientistas da humanidade têm sido considerados como loucos. Talvez fossem. Sim, um difícil problema. A detenção do poder conduz à fraqueza. Conceito tolo, não é? A atividade mais perigosa do mundo é a ciência. Especialmente perigosa para o próprio cientista. Todo grande descobridor da ciência é um Frankstein em potencial. Entretanto... Qual é a sua impressão dos convidados hoje presentes?

* Super-homem. (N. do T.)

— Não me julgo competente para julgá-los — respondeu seriamente. — Não os compreendo totalmente. Mas cada um deles me impressiona como sendo perigoso à sua moda. Estão todos jogando uma partida e parece ser um jogo sem regras. Para eles, os fins justificam os meios que empregam. Parecem que estão simplesmente à busca de sensações, tentando correr o véu da ilusão sobre as realidades da vida porque não são bastante fortes para encarar os fatos.

— Sim, certo. Você tem uma visão clara. — Vance examinava a moça a seu lado. — E escolheu a profissão de enfermeira porque é capaz de enfrentar a realidade. Você não tem medo da vida... nem da morte.

A jovem pareceu embaraçada.

— O senhor está exagerando a minha profissão. Afinal de contas, eu precisava ganhar a minha vida e a enfermagem atraiu-me.

— Sim, naturalmente. Devia mesmo. Mas, diga-me, você não preferiria não ter que trabalhar para viver?

Ela olhou para ele.

— Talvez. Mas não é normal que toda mulher prefira o luxo e a segurança à luta e incerteza?

— Sem dúvida — disse Vance. — E falando de enfermagem, que me diz das condições da Sra. Garden?

A moça hesitou antes de responder.

— Realmente, não sei o que dizer. Não entendo. E quase suspeito de que o próprio Dr. Siefert também está confuso. É evidente que a Sra. Garden é uma pessoa doente. Ela mostra muitos sintomas daquele temperamento nervoso e errático exibido pelas pessoas que sofrem de câncer. Embora em alguns dias ela esteja melhor que outros, sei que sofre bastante. O Dr. Siefert disse que ela é realmente um caso neurológico; mas, às vezes, sinto que a coisa vai muito mais longe; que uma condição fisiológica obscura está produzindo os sintomas neurológicos que ela apresenta.

— Isto é muito interessante. Há alguns dias atrás o Dr. Siefert mencionou alguma coisa a esse respeito. — Vance aproximou-se da moça. — Poderia contar-me algo sobre os seus contatos com os membros da família?

— Há muito pouco a dizer. O Prof. Garden praticamente me ignora; a maior parte do tempo eu me pergunto se ele sabe que estou aqui. A Sra. Garden alterna entre períodos de irritada admoestação e confidencias íntimas; Floyd Garden tem sido sempre agradável e atencioso. Ele tem procurado fazer-me feliz aqui e freqüentemente se desculpa pelo abominável tratamento que sua mãe, às vezes, me dispensa. Eu o tenho apreciado bastante por esta atitude.

— E sobre Swift: você o via bastante?

Ela pareceu relutar em responder e desviou o olhar mas finalmente voltou-se para Vance.

— A verdade é que, diversas vezes, o Sr. Swift convidou-me para jantar e ir ao teatro com ele. Nunca pude fazer objeção às suas iniciativas, mas, eventualmente, ele me aborrecia bastante. Fiquei, porém, com a impressão de que ele era um desses homens infelizes que sentem sua inferioridade e procuram apoiar-se na afeição das mulheres. Acho que ele estava realmente interessado na Srta. Graem e voltava-se para mim por ressentimento.

Vance fumou uns instantes em silêncio. Depois disse: — E sobre a grande corrida de hoje? Houve muita discussão a respeito?

— Ah, sim. Durante toda a semana eu quase nada ouvi sobre outro assunto. Havia uma curiosa tensão crescendo aqui em casa. Uma noite ouvi o Sr. Swift observar a Floyd Garden que o Grande Prêmio Rivermont era a sua última esperança e que ele acreditava na vitória de Equanimity. Imediatamente travaram uma furiosa discussão com relação às possibilidades de Equanimity.

— Eram do conhecimento dos outros participantes das reuniões da tarde os sentimentos de Swift com relação a esta corrida de Equanimity?

— Sim, o assunto foi livremente discutido durante vários dias. Sabe — acrescentou à guisa de explicação — é impossível para mim deixar de ouvir algumas dessas discussões da tarde; a própria Sra. Garden muitas vezes participava delas e depois as comentava comigo.

— Por falar nisso — perguntou Vance — como veio a apostar em Azure Star?

— Francamente — confessou a moça envergonhada — desde que estou aqui tenho-me interessado um pouco pelas corridas, embora nunca antes tivesse pensado em fazer uma aposta. Mas escutei o senhor dizer ao Sr. Garden que havia escolhido Azure Star e o nome agradou-me tanto que pedi a ele que apostasse para mim. Foi a primeira vez em que joguei num cavalo.

— E Azure Star ganhou — Vance suspirou. — É pena. Na realidade, você jogou contra Equanimity, compreende; ele era o favorito. Um grande cavalo. É uma pena que você tenha ganho. A sorte do principiante é sempre fatal.

O rosto da moça ensombreceu e ela fitou fixamente Vance durante diversos minutos antes de voltar a falar.

— O senhor realmente acha que será fatal?

— Sim. É sim. Inevitável. Você não resistirá à vontade de jogar novamente. Ninguém pára quando ganha da primeira vez. E, invariavelmente, perde no final.

Novamente ela deu um longo e perturbado olhar a Vance; depois desviou para o céu que escurecia sobre nossas cabeças.

— Mas Azure Star é um lindo nome, não é? — Apontou para cima. — Lá está uma estrela azul.

Todos nós olhamos para cima. Bem no alto vimos uma única estrela brilhando com uma luminosidade azulada no céu sem nuvens. Depois de alguns instantes, Vance dirigiu-se até o parapeito e olhou por cima das águas do rio para as colinas arroxeadas e as cores ainda luminosas do crepúsculo. As formas pontiagudas dos grandes edifícios sombrios do lado sul cortavam a abóbada celeste como silhuetas irreais em uma cena dramática.

— Nenhuma cidade do mundo é tão linda como Nova York vista de um ângulo como este no início do crepúsculo. (E eu fiquei pensando nesta súbita mudança de humor.) Ele subiu ao parapeito e olhou lá embaixo o grande abismo de profundas sombras e luzes bruxuleantes bem ao longe. Um curioso arrepio de medo correu pelas minhas costas, o tipo de medo que eu sempre senti ao ver acrobatas balançando perigosamente sobre uma arena de circo. Eu sabia que Vance não tinha medo de altura e que possuía um senso de equilíbrio fora do comum. Mas, apesar disso, involuntariamente prendi a respiração; meus pés e membros inferiores começaram a tremer; e durante um instante eu realmente pensei que ia desmaiar.

A Srta. Beeton estava parada junto a Vance; e ela, também, deve ter experimentado alguma coisa de parecido com a sensação que eu tive porque empalideceu subitamente. Seus olhos estavam fixos em Vance com uma expressão de horror e apreensão; ela agarrou o braço de Markham procurando apoio.

— Vance! — Foi a voz dura de Markham que rompeu o silêncio. — Desça daí!

Vance pulou para dentro e voltou-se para nós.

— Mil desculpas — disse. — A altura realmente afeta muita gente. Eu não havia pensado. — Olhou para a moça. — Pode perdoar-me?

Enquanto falava, Floyd surgiu no terraço vindo do corredor.

— Desculpe, Vance, mas o Dr. Siefert quer a Srta. Beeton lá embaixo, se ela se achar em condições. A Mama está fazendo uma de suas cenas.

A enfermeira saiu correndo e Garden caminhou até Vance. Mais uma vez ele estava às voltas com o cachimbo.

— Uma boa confusão — murmurou. — E você certamente pôs o temor de Deus e da destruição no coração dos piedosos rapazes e moças que aqui estiveram hoje. Todos eles ficaram em cócegas depois que falaram com você. O fato, Vance, é que, se por qualquer razão você quiser ver Kroon, Zalia Graem ou Madge Weatherby esta noite, eles estarão aqui. Todos pediram para vir. Precisam voltar à cena do crime ou coisa semelhante. Precisam apoio mútuo. E, para ser franco, eu estou bem satisfeito que eles venham. Pelo menos poderemos falar na coisa e tomar alguns highballs; e isso é bem melhor que ficar matutando e preocupando-se sozinho.

— Perfeitamente natural — concordou Vance. — Compreendo o que sentem... e você também... perfeitamente. Uma bruta confusão, como você diz. E agora, se nós descêssemos?

O Dr. Siefert veio ao nosso encontro no pé da escada.

— Eu estava justamente vindo ao seu encontro, Sr. Vance. A Sra. Garden insiste em vê-lo. — Depois acrescentou em voz baixa: — Ela é biruta. Um tanto histérica. Não levem muito a sério o que ela disser.

Entramos no quarto. A Sra. Garden, vestida com um peignoir de seda rosa-salmão, estava na cama, recostada em uma pilha de travesseiros. Seu rosto estava abatido e, à luz do quarto, parecia flácido e pouco saudável. Seus olhos flamejaram demoniacamente quando nos viu e seus dedos agarraram-se nervosamente à coberta. A enfermeira ficou de pé na extremidade oposta do quarto, olhando sua paciente com um calmo interesse; o Prof. Garden estava pesadamente encostado ao peitoril da janela em frente; seu rosto era uma máscara de ansiosa solicitude.

— Eu tenho uma coisa a dizer e quero que vocês todos ouçam. — A voz da Sra. Garden era aguda e estridente. —. Meu sobrinho foi assassinado hoje... e eu sei quem o fez! — Ela olhou venenosamente para Floyd Garden que estava de pé, junto à cama, com o cachimbo frouxamente pendurado no canto da boca. — Você! — E apontou um dedo acusador para seu filho. — Você sempre odiou Woody. Sempre teve ciúmes dele. Ninguém mais tinha razões para fazer essa coisa mesquinha. Suponho que eu deveria mentir e proteger você. Mas com que fim? Para que você pudesse matar mais alguém? Talvez... talvez a mim, ou a seu pai. Não! Chegou a hora da verdade. Você matou Woody, e eu sei que você o matou. E sei também por que o fez...

Durante toda esta tirada, Floyd Garden permaneceu de pé, sem se mover, e sem emoção perceptível. Mantinha os olhos fitos na mãe com uma cínica indiferença. Quando ela fez uma pausa, ele tirou o cachimbo da boca e com um triste sorriso, perguntou: — E por que eu fiz isso Mama?

— Porque você tinha ciúmes dele. Porque você sabia que eu dividi meus bens igualmente entre vocês dois e você queria tudo para si. Sempre sentiu o fato de que eu gostasse tanto de Woody quanto de você. E agora pensa que, tendo tirado Woody do caminho, vai ficar com tudo quando eu morrer. Mas, engana-se. Você não terá nada! Está-me ouvindo? Nada! Amanhã, vou mudar meu testamento. — Seus olhos estavam cheios de uma frenética e maldosa excitação; ela parecia uma mulher que de repente tivesse enlouquecido. — Vou mudar meu testamento, compreende? A parte de Woody irá para seu pai, com a condição de que você nunca receba ou herde um dólar da mesma. E a sua parte irá para instituições de caridade. — Ela ria historicamente e batia na cama com os punhos cerrados.

O Dr. Siefert estivera observando atentamente a senhora. Aproximou-se um pouco da cama.

— Um saco de gelo, imediatamente — disse para a enfermeira; e esta saiu logo do quarto. Depois ele remexeu em sua maleta e cuidadosamente preparou uma injeção.

— Não vou deixar que você me dê isso — gritou a mulher acamada. — Não tenho nada. Estou cansada de tomar suas drogas.

— Sim, eu sei. Mas vai tomar isso, Sra. Garden. — O Dr. Siefert falava com uma calma segurança.

A senhora descontraiu-se diante do paciente e ditatorial exame e deixou que ele lhe desse a injeção. Descansou nos travesseiros, olhando absorta para o filho. A enfermeira voltou e arrumou o saco de gelo para a paciente.

O Dr. Siefert escreveu uma receita e virou-se para a Srta. Beeton.

— Mande aviar imediatamente. Uma colher de chá de duas em duas horas até que a Sra. Garden adormeça.

Floyd Garden deu um passo à frente e pegou a receita.

— Vou telefonar para a farmácia — disse. — Em alguns minutos eles a mandarão trazer. — E saiu do quarto.

Após algumas últimas instruções à Srta. Beeton, o doutor dirigiu-se ao salão e todo nós o seguimos, deixando a enfermeira ajeitando os travesseiros da Sra. Garden. O professor, que durante a dolorosa cena se mantivera de costas para nós, olhando pela janela, ainda continuava lá, parecendo uma gárgula enquadrada pelo caixilho.

Quando passamos pela porta da saleta, ouvimos a voz de Garden ao telefone.

— Penso que a Sra. Garden se acalmará agora — observou o Dr. Siefert a Vance quando chegamos ao salão.

— Como já lhe disse, não devemos levar a sério suas observações enquanto ela não estiver em condições. Amanhã, já terá esquecido tudo.

— Sua mordacidade, entretanto, não parece inteiramente desprovida de racionalismo — retrucou Vance.

Siefert franziu a testa mas não fez comentário à declaração de Vance. Ao contrário, ele disse em sua voz calma, bem modulada, enquanto sentava-se descansadamente na cadeira mais próxima.

— Todo esse caso é muito chocante. Floyd Garden deu-me apenas alguns detalhes quando eu cheguei. Poderia esclarecer-me um pouco mais?

Vance imediatamente fez-lhe a vontade. Num relato sucinto, Vance repassou todo o caso, a começar do telefonema anônimo que recebera na noite anterior. (O Doutor não demonstrou o mais leve conhecimento da chamada telefônica. Ficou ali sentado, olhando para Vance com uma serena atenção, como um especialista ouvindo a descrição feita por um paciente.) Vance não ocultou nenhum detalhe importante. Explicou tudo sobre os páreos e as apostas, a retirada de Swift para o terraço, as atitudes dos outros membros do grupo, o tiro, o encontro do corpo de Swift, a descoberta feita na caixa-forte, a história dos fios da campainha, o essencial das várias entrevistas que teve com os membros da família Garden e, finalmente, a descoberta do segundo revólver no bolso do casaco da enfermeira.

— O resto — concluiu Vance — o senhor mesmo testemunhou.

Siefert meneou a cabeça bem vagarosamente duas ou três vezes como para indicar haver recebido um claro e satisfatório quadro dos acontecimentos da tarde.

— Uma situação muito séria — comentou gravemente como se estivesse fazendo um diagnóstico. — Algumas das coisas que o senhor me contou parecem-me altamente significativas. Um assassinato perspicazmente arquitetado... e requintado. Especialmente ao esconderem o revólver no bolso da Srta. Beeton e o atentado contra ela na caixa-forte. Não entendo esta fase da situação.

Vance ergueu os olhos vivamente.

— O senhor entende qualquer outra fase da situação?

— Não, não, eu não quis dizer isto — apressou-se Siefert a responder. — Eu estava pensando simplesmente que, enquanto a morte de Swift poderia ser facilmente explicável em planos racionais, não consigo ver qualquer razão possível para este covarde atentado de revólver a Srta. Beeton e depois dar fim à sua vida.

— Mas eu duvido seriamente que o revólver tenha sido posto no bolso da Srta. Beeton com qualquer intenção de incriminá-la. Imagino que tenha ido parar ali temporariamente, enquanto não pudesse ser tirado da casa. Mas concordo com o senhor que o episódio do gás de bromo é altamente desorientados — Vance, sem demonstrar, vigiava atentamente o doutor. — Quando pediu para ver-me hoje à tarde, eu estava esperando que o senhor pudesse ter alguma sugestão que, vindo de alguém familiarizado com a situação doméstica aqui, poderia colocar-nos na pista certa.

Siefert sacudiu a cabeça solenemente várias vezes.

— Não, não. Lamento, mas eu mesmo estou completamente perdido. Quando pedi para lhe falar e ao Sr. Markham, foi porque, evidentemente, eu estava muitíssimo interessado na situação e ansioso por ouvir o que o senhor poderia ter a dizer sobre o assunto. — Fez uma pausa, afastou de leve a cadeira e depois perguntou: — Os senhores já formaram alguma opinião sobre o que conseguiram apurar?

— Sim, sim. — O olhar de Vance derivou do doutor até o lindo cavalo Tang que estava sobre um móvel próximo. Francamente, entretanto, detesto a minha própria opinião. Lamentarei se acertar. Uma conclusão sinistra, pouco natural, está vindo ao meu encontro. Ê o horror absoluto — Vance falou com uma intensidade involuntária.

Siefert permaneceu silencioso e Vance tornou a voltar-se para ele.

— Diga-me, doutor, o senhor está especialmente preocupado com o estado da Sra. Garden?

Uma nuvem velou o semblante de Siefert e ele não respondeu de imediato.

— É um caso estranho — disse finalmente, com uma evidente tentativa de evasão. — Como lhe disse há pouco, estou profundamente intrigado. Vou trazer o Dr. Kattelbaum* amanhã, para uma conferência.

 

 

 

*Hugo Kattelbaum, embora relativamente jovem, era, na época, uma das principais autoridades em câncer; suas pesquisas sobre o efeito do rádio nas vísceras humanas haviam merecido uma considerável atenção das principais revistas médicas.

 

 

 


— Sim, o senhor tem razão. Kattelbaum — Vance olhou sonhadoramente para o doutor. — A mensagem telefônica anônima que recebi a noite passada falava em sódio radioativo. Mas Equanimity era essencial. Sim. Exatamente. Não é um caso bonito, doutor, em absoluto. E agora acho que vamos ficar andando em círculos. — Vance ergueu-se e fez uma reverência brusca e formal. Siefert também ergueu-se.

— Se há qualquer coisa, de qualquer espécie, que eu possa fazer...

— Nós o chamaremos mais tarde — respondeu Vance e dirigiu-se ao hall.

Siefert não nos seguiu, mas deu meia volta e foi lentamente até uma das janelas da frente, onde ficou olhando para fora, com as mãos cruzadas atrás das costas.

Voltamos ao vestíbulo e encontramos Sneed esperando para nos ajudar a vestir os casacos.

Acabávamos de alcançar a porta de saída do apartamento quando os sons estridentes da voz da Sra. Garden nos chegaram aos ouvidos. Floyd Garden permanecia de pé dentro do quarto, encarando sua mãe.

— Sua solicitude não lhe servirá de nada, Floyd gritava a Sra. Garden. — Está sendo bonzinho para mim agora? Telefonando para aviarem a receita. Todo atenção e bondade. Mas não pense que está colocando uma venda em meus olhos. Não fará diferença alguma. Amanhã vou alterar meu testamento! Amanhã!...

Continuamos nosso caminho e nada mais ouvimos. Mas a Sra. Garden não mudou o testamento. Não manhã seguinte, encontraram-na morta na cama.


XIV

 

Sódio Radioativo

 

(Domingo, 15 de abril — 9:00 horas)

 

 

Na manhã seguinte, pouco depois das nove horas, o Dr. Siefert telefonou. Vance ainda estava deitado quando o telefone tocou e eu atendi. (Havia várias horas que eu estava de pé: os acontecimentos do dia anterior haviam-me agitado sobremaneira e não fui capaz de dormir.) A voz do doutor era de quem tinha urgência e parecia perturbado quando pediu que chamasse imediatamente Vance. Quando o acordei, foi com uma intuição de mais alguma desgraça. Vance parecia relutante em erguer-se e queixava-se cinicamente das pessoas que se levantavam de manhã cedo. Por fim, enfiou seu robe chinês e os chinelos e, acendendo um Régie, foi protestando até à saleta.

Decorreram aproximadamente dez minutos antes que ele voltasse. Seu ressentimento se desvanecera, e quando ele se dirigiu à mesa e chamou por Currie, havia um ar de agudo interesse em seu rosto.

— Café imediatamente — ordenou quando apareceu o velho mordomo. — E prepare um terno escuro e o meu Homburg* preto. E, por falar nisso, Currie, mais um lugar à mesa. O Sr. Markham vai chegar e pode querer tomar uma xícara de café.

*Chapéu de feltro. (N. do T.)

Currie saiu e Vance regressou a seu quarto. Quando chegou na porta parou e olhou para mim com uma curiosa expressão.

— A Sra. Garden foi encontrada morta em sua cama esta manhã — falou. — Algum tipo de veneno. Telefonei a Markham e vamos ao apartamento dos Gardens assim que ele chegar. Um caso feio, Van, muito feio. Há muito jogo acontecendo naquela casa. — E entrou no quarto.

Markham chegou meia hora depois. Enquanto isso, Vance vestira-se e terminava sua segunda xícara de café.

— Qual é o problema agora? — perguntou Markham com irritação, entrando na biblioteca. — Talvez agora, que estou aqui, você será bastante gentil para esquecer seu ar enigmático.

— Meu caro Markham; oh, meu caro Markham! — suspirou Vance erguendo os olhos. — Sente-se aqui, tome uma xícara de café e aprecie este cigarro. Na verdade, sabe, é um bocado difícil ser lúcido ao telefone. — Serviu o café e Markham sentou-se com relutância. — Por favor, não adoce o café; ele tem um gosto deliciosamente sutil e seria uma pena estragá-lo com sacarina.

Markham, o cenho franzido desafiadoramente, pôs três colheres de açúcar no café.

— Por que estou aqui? — resmungou.

— Uma pergunta profundamente filosófica — sorriu Vance. — Impossível de responder, também. Por que estamos aqui? Por que tudo? Mas, uma vez que aqui estamos todos, sem sabermos o motivo disso, vou servir seu pragmatismo. — Deu uma grande tragada no cigarro e sentou-se outra vez preguiçosamente.

— Siefert telefonou-me esta manhã, pouco antes que eu ligasse para você. Explicou que não sabia o seu número de casa e por isso teve que falar comigo, ao invés de avisá-lo diretamente.

— Avisar-me? — Markham largou a xícara.

— Sobre a Sra. Garden. Ela está morta. Assim foi encontrada esta manhã, na cama. Provavelmente assassinada.

— Meu Deus!

— Sim, exatamente. Não é uma situação agradável. A senhora morreu em algum momento durante a noite; a hora exata ainda é desconhecida. O médico diz que pode ter sido causada por uma dose excessiva do remédio para dormir que ele havia receitado. Foi-se todo. E ele diz que havia uma quantidade suficiente para fazer a coisa. Por outro lado, ele admite que pode ter sido outra coisa; está muito reticente. Não há sinais externos que lhe permitam um diagnóstico; solicita a nossa opinião e apoio. Daí o seu apelo.

Markham afastou a xícara com um ruído e acendeu um charuto.

— Onde está Siefert agora?

— Em casa dos Gardens. Muito correto. Sempre a postos e tudo o mais. A enfermeira telefonou para ele pouco depois das oito horas de hoje; foi ela quem fez a descoberta ao levar o café da manhã para a Sra. Garden. Siefert apressou-se e, após ver o que ocorrera e depois de sondar um pouco, telefonou-me. Disse que, em vista dos acontecimentos de ontem, ele não quis prosseguir até que chegássemos.

— Bem, então por que não prosseguimos? — exclamou Markham erguendo-se.

Vance suspirou e levantou-se lentamente.

— Na verdade não há pressa. A senhora não nos pode escapar. E Siefert não abandonará o navio. Além disso, é uma hora impossível de se tirar alguém da cama. Sabe, Markham, poder-se-ia escrever uma interessante monografia sobre a total falta de consideração por parte dos assassinos. Eles só pensam em si próprios. Não têm sentimento de fraternidade. Sempre alterando a rotina normal. E nunca declaram um dia livre, nem mesmo um domingo de manhã. Entretanto, como diz você, vamos levando.

— Não seria melhor avisarmos Heath? — sugeriu Markham.

— Sim, exato — respondeu Vance quando saíamos. — Chamei o sargento logo depois de telefonar a você. Ele esteve acordado a noite inteira trabalhando na rotina habitual da polícia. Grande cara, Heath. Uma atividade surpreendente. Mas muito inútil. Se ao menos tanta energia servisse a alguma coisa mais que encher arquivos de aço. Sempre pensei com ternura em Heath como um conservador de arquivos...

A Srta. Beeton fez-nos entrar no apartamento dos Gardens. Parecia cansada e preocupada, mas saudou Vance com um sorriso amável.

— Estou começando a acreditar que este pesadelo jamais terá fim — disse ela.

Vance concordou sombrio, e entramos no salão onde o Dr. Siefert, o Prof. Garden e seu filho estavam à nossa espera.

— Estou contente por terem vindo, senhores — saudou-nos o doutor vindo ao nosso encontro.

O Prof. Garden estava sentado numa das extremidades do longo divã, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto oculto nas mãos. Mal tomou conhecimento da nossa presença, Floyd Garden levantou-se e fez um vago aceno em nossa direção. Uma tremenda mudança parecia ter-se produzido nele. Parecia muitos anos mais velho que quando o havíamos deixado na noite anterior, e seu rosto, apesar de queimado pelo sol, mostrava uma palidez esverdeada. Seus olhos vagueavam pela sala; ele estava visivelmente abalado.

— Que situação dos infernos! — murmurou, focalizando os olhos úmidos em Vance. — A noite passada a Mama acusa-me de ter tirado Woody do caminho e depois ameaça de me tirar de seu testamento. E agora ela está morta! E fui eu quem se encarregou da receita. O doutor diz que pode ter sido o remédio que a matou.

Vance olhou-o agudamente.

— Sim, sim — disse numa voz baixa e de simpatia. — Pensei em tudo isso, também, sabe? Mas isto evidentemente não impede que você tenha sentimentos mórbidos. Que tal um Tom Collins?

— Já tomei quatro — respondeu Garden desanimado, afundando novamente na cadeira. Mas quase imediatamente ficou de pé outra vez. Apontou um dedo para Vance, os olhos cheios de apreensão e súplica. — Pelo amor de Deus — explodiu — é você quem tem de descobrir a verdade. Estou na berlinda; com a minha saída da sala com Woody ontem, o fato de eu não ter colocado sua aposta, depois a acusação de Mama, e seu maldito testamento, e o remédio. Você tem que descobrir quem é o culpado...

Quando ele estava falando, tocou a campainha da porta e Heath avançou pelo corredor.

— É claro, nós vamos descobrir — disse a belicosa voz do sargento vindo do hall. — E não vai ser nada bom para o senhor quando o fizermos.

Vance rapidamente deu meia volta.

— Ora, vamos sargento. Menos animação, por favor. Ainda é de manhã cedo. — Dirigiu-se a Garden e colocando a mão em seu ombro, fez com que ele voltasse à cadeira onde estivera sentado. — Vamos, — animou — precisaremos de seu auxílio e se você der um fricote agora não nos vai servir de nada.

— Mas você não vê até que ponto eu estou complicado? — protestou fracamente Garden.

— Você não é o único a estar envolvido nisso — respondeu calmamente Vance, voltando-se para Siefert. — Acho, doutor, que podemos conversar um pouco. Provavelmente tiraremos a limpo a morte de sua paciente, sem maiores dificuldades. Que tal se subíssemos até o estúdio, hem?

Quando atravessamos o hall, olhei para trás. O jovem Garden continuava a olhar em nossa direção com uma expressão dura e determinada. O professor não se movera e não tomou conhecimento da nossa saída assim como não fizera com a nossa entrada.

Chegando ao estúdio, Vance foi diretamente ao assunto.

— Doutor, chegou o momento em que precisamos ser perfeitamente francos um com o outro. As costumeiras considerações convencionais de sua profissão devem ser temporariamente postas de lado. Um assunto muito mais urgente está em pauta agora e requer um exame muito mais sério que a conhecida relação entre doutor e paciente. Portanto, serei totalmente sincero com o senhor, e confiarei em que dará um jeito de ser igualmente sincero comigo.

Siefert, que pegara uma cadeira próxima à porta, olhou para Vance um tanto desajeitado.

— Lamento não entender o que está dizendo — falou ele com o seu modo mais suave.

— Eu simplesmente queria dizer — replicou friamente Vance — que estou inteiramente ciente de que foi o senhor o autor do telefonema anônimo de sexta-feira à noite.

Siefert ergueu levemente as sobrancelhas.

— Realmente! Isto é muito interessante.

— Não apenas interessante — disse lentamente Vance — mas verdadeiro. Como vim a saber, não interessa no momento. Apenas lhe peço para admitir que é isso mesmo e agir de acordo com a idéia. O fato tem uma influência direta neste trágico caso, e a menos que o senhor nos assista com uma franca declaração, será cometida uma grave injustiça, uma injustiça, que não se enquadraria em qualquer dos códigos de ética existentes.

Siefert hesitou durante diversos momentos. Desviou apressadamente os olhos de Vance e fitou pensativamente o horizonte.

— Supondo-se, em nome da razão — disse — que o senhor adivinharia quem a estava mandando e compreenderia que eu estava tentando comunicar consigo. Mas agora percebo que nada ganharei em não usar de franqueza... A situação nesta casa tem-me perturbado desde algum tempo, e ultimamente eu tinha a sensação de um desastre iminente. Todos os fatores vinham amadurecendo para chegar a este resultado final. E a sensação era tão forte que eu não pude resistir a enviar-lhe uma mensagem anônima na esperança de que as vagas eventualidades que eu previa pudessem ser evitadas.

— Há quanto tempo o senhor vinha tendo esses vagos pressentimentos? — perguntou Vance.

— Desde os últimos três meses, posso dizer. Embora há anos eu venha sendo o médico dos Gardens, foi somente no último outono que comecei a notar uma alteração no estado da Sra. Garden. No princípio, não dei muita atenção ao fato, mas, à medida que foi ficando pior e que me vi incapaz de fazer um diagnóstico satisfatório, uma estranha suspeita me invadia de que a mudança não era inteiramente natural. Comecei a vir aqui com muito mais freqüência, durante os dois últimos meses senti muitas correntes subterrâneas nas várias relações entre os habitantes desta casa, e que eu nunca antes havia percebido. Naturalmente, eu sabia que Floyd e Swift nunca se deram especialmente bem; que havia uma profunda animosidade e ciúme entre eles. Sabia também dos termos do testamento da Sra. Garden. Além disso, eu estava a par das apostas nos cavalos, o que era parte da rotina diária da casa. Floyd e Woody nunca me esconderam, o senhor compreende, eu sempre fui confidente e médico de ambos, e suas reações com relação aos casos particulares, que infelizmente incluíram as corridas de cavalos, eram bem minhas conhecidas.

Siefert fez uma pausa e franziu a testa.

— Como estava dizendo, foi apenas recentemente que senti algo mais profundo e mais significativo em toda essa interpolação de temperamentos, e este sentimento assumiu tais proporções que realmente receei um clímax de alguma forma violento; especialmente quando Floyd contou-me, alguns dias atrás, que seu primo pretendia apostar seus últimos recursos em Equanimity no grande prêmio de ontem. Tão avassalador foi o meu sentimento em relação a toda essa situação que decidi fazer alguma coisa, desde que pudesse agir sem divulgar aquelas confidencias profissionais. Mas o senhor viu através do meu subterfúgio e, para ser totalmente sincero, estou até satisfeito com isso. Vance concordou.

— Aprecio seus escrúpulos no caso, doutor. Apenas lamento que eu não tenha sido capaz de impedir essas tragédias. Isto, da maneira que aconteceu, estava além do poder humano. — Vance ergueu vivamente os olhos. — Aliás, o senhor tinha alguma suspeita bem definida quando me telefonou na sexta-feira à noite?

Siefert sacudiu a cabeça com ênfase.

— Não, eu estava desnorteado. Apenas senti que, de alguma forma, a explosão estava iminente. Mas eu não tinha a menor idéia de que lado ia acontecer.

— Poderia dizer de que lado surgiram as causas de sua apreensão?

— Não. Também não sei dizer se minha sensação tinha alguma coisa a ver apenas com o estado da Sra. Garden, ou se eu também fui influenciado pelo sutil antagonismo existente entre Floyd e Woody Swift. Muitas vezes me perguntei isso, sem encontrar uma resposta satisfatória. Entretanto, em algumas ocasiões, não pude resistir à impressão de que os dois fatores estavam de certa forma relacionados. Daí o meu recado telefônico, onde, por linhas indiretas, chamei sua atenção tanto para a estranha doença da Sra. Garden como para a tensa atmosfera que se desenvolvia em meio às apostas diárias.

Vance permaneceu um momento em silêncio, fumando.

— E agora, doutor, quer ter a gentileza de nos dar todos os detalhes sobre esta manhã?

Siefert endireitou-se na cadeira.

— Não há, praticamente, nada a acrescentar à informação que lhe dei ao telefone. A Srta. Beeton chamou-me pouco após as oito horas e informou-me que a Sra. Garden morrera durante a noite. Pediu instruções e eu lhe disse que viria imediatamente. Cheguei aqui cerca de meia hora mais tarde. Não encontrei causa determinada para a morte da Sra. Garden, e supus que poderia ter sido o coração até que a enfermeira chamou minha atenção para o fato de que o vidro de remédio enviado pela farmácia estava vazio...

— Por falar nisso, qual foi a receita que o senhor deu para sua paciente ontem?

— Uma simples solução de barbitúrico.

— Por que não receitou um dos conhecidos compostos de barbitúricos?

— Por que razão? — perguntou Siefert evidentemente enfadado. — Sempre prefiro saber exatamente o que meus pacientes estão tomando. Sou bastante antiquado para me fiar em medicamentos já preparados.

— E, se não me engano, o senhor me disse ao telefone que na receita havia barbital em dose suficiente para causar a morte.

— Sim, — concordou o doutor. — Se tomada de uma só vez.

— E a morte da Sra. Garden teve relação com o envenenamento por barbital?

— Nada havia para contradizer tal conclusão — respondeu Siefert. — E nada havia que indicasse outra causa.

— Quando a enfermeira descobriu o vidro vazio?

— Creio que só na ocasião em que me telefonou.

— O gosto da solução poderia ser reconhecido se fosse dado a alguém sem o seu conhecimento?

— Sim e não — replicou ponderadamente. — O gosto é um pouco ácido, mas é uma solução incolor, com água, e se for bebida depressa, o gosto passa despercebido.

— Portanto, se a solução fosse colocada em um copo d'água a Sra. Garden poderia perfeitamente tê-lo bebido sem reclamar do gosto amargo?

— Isto é inteiramente possível — disse-lhe o doutor —. Não posso deixar de sentir que alguma coisa desta espécie aconteceu a noite passada. Foi devido a esta conclusão que chamei o senhor imediatamente.

Vance, fumando preguiçosamente, vigiava Siefert por baixo das pálpebras semicerradas. Movendo-se lentamente na cadeira e esmagando o cigarro em um pequeno cinzeiro de jade, disse: — Fale-me alguma coisa da doença da Sra. Garden, doutor, e por que o sódio radioativo poderia ter-lhe sido sugerido.

Siefert fitou agudamente Vance: — Eu receava que o senhor me perguntasse isso. Mas este não é o momento para suscetibilidades. Tenho que confiar totalmente em sua discrição. — Fez uma pausa como se estivesse determinando qual a melhor maneira de abordar um assunto que lhe era evidentemente desagradável. — Como já disse anteriormente, não sei a natureza exata da doença da Sra. Garden. Os sintomas eram muito semelhantes aos que acompanham o envenenamento com rádio. Mas nunca receitei para ela qualquer medicamento à base de rádio; na realidade, sou profundamente céptico no que diz respeito à sua eficácia. Como o senhor deve saber, temos tido muitos resultados infelizes devido à administração não científica e acidental desses preparados à base de rádio.

Ele pigarreou antes de prosseguir.

— Uma noite, enquanto estava lendo os relatórios das pesquisas feitas na Califórnia com sódio radioativo, também chamado de rádio artificial, que tem sido alardeado como a cura do câncer, imediatamente me dei conta de que o Prof. Garden estava ativamente interessado nesta determinada linha de pesquisa, tendo realizado a respeito alguns trabalhos dignos de crédito. Esta idéia era apenas um caso de associação e, a princípio, não dei muita importância. Mas ela resistiu, e nunca mais deixei de pensar no assunto.

Mais uma vez o doutor fez uma pausa, com o olhar perturbado.

— Há cerca de dois meses, sugeri ao Prof. Garden que, se fosse possível, ele pusesse a Srta. Beeton à cabeceira de sua esposa. Eu já chegara à conclusão de que a Sra. Garden requeria um cuidado e atenção mais constantes do que eu lhe poderia proporcionar; e a Srta. Beeton, que é enfermeira diplomada, esteve trabalhando no ano passado no laboratório do professor. Na realidade, fui eu quem a enviou para lá quando ele mencionou a necessidade de um auxiliar de laboratório. Eu estava particularmente ansioso para que ela tomasse conta da Sra. Garden, preferivelmente a qualquer outra enfermeira, porque eu achava que algumas sugestões úteis poderiam decorrer de suas observações. A moça já atendera diversos casos meus, bastante difíceis, e eu estava inteiramente habituado à sua competência e discrição.

— E as observações subseqüentes da Srta. Beeton foram-lhe muito úteis, doutor? — perguntou Vance.

— Não, não posso dizer que tenham sido — admitiu Siefert. — A não ser pelo fato que, eventualmente, o Prof. Garden ainda se utilizava de seus serviços no laboratório, permitindo-lhe assim uma oportunidade extra de estar atenta à situação geral. Mas, por outro lado, essas observações não serviram para dissipar minhas suspeitas.

— Diga-me, doutor, — perguntou Vance após um momento — este novo sódio radioativo poderia ser administrado a alguém sem que a pessoa o soubesse?

— Ah, muito facilmente — garantiu Siefert. — poderia, por exemplo, substituir num saleiro o sal comum, sem despertar a menor suspeita.

— E em quantidades suficientes para produzir os efeitos do envenenamento pelo rádio?

— Indubitavelmente.

— E quanto tempo decorreria até que os efeitos dessa administração se mostrassem fatais?

— Isto é impossível dizer.

Vance estudava a ponta do cigarro. Depois perguntou: — A presença da enfermeira na casa resultou em qualquer informação relativamente à situação geral aqui?

— Nada que eu ainda não soubesse. De fato, suas observações apenas consubstanciaram minhas próprias conclusões. É bem possível, também, que ela própria possa involuntariamente ter aumentado a animosidade existente entre o jovem Garden e Swift, porque ela me confidenciou uma ou duas vezes que Swift a aborrecera com suas atenções; e tenho uma forte suspeita de que ela está pessoalmente interessada em Floyd Garden.

O interesse de Vance aumentou.

— Especificamente, doutor, o que lhe deu essa impressão?

— Nada de específico. Entretanto, tenho-os observado diversas vezes quando estão juntos e a minha impressão é de que ali existia algum sentimento. Nada de palpável, porém. Mas, uma noite, quando eu caminhava por Riverside Drive eu os vi no parque, indubitavelmente estavam passeando juntos.

— A propósito, doutor, o jovem Garden e a enfermeira conheceram-se apenas quando ela veio para cá cuidar da mãe dele?

— Ah, não — disse Siefert. — Mas seu conhecimento anterior era mais ou menos vago. Sabe como é, durante o tempo em que a Srta. Beeton era assistente de laboratório do Prof. Garden, ela teve freqüentes oportunidades de vir até aqui trabalhar com o professor em sua pesquisa: notas taquigráficas, transcrição, registro, etc. E ela, naturalmente, fez conhecimento com Floyd, Woody Swift e a própria Sra. Garden...

Naquele instante, a enfermeira chegou à porta para anunciar a chegada do médico legista, e Vance pediu-lhe que fizesse subir o Dr. Doremus.

— Eu gostaria de sugerir — disse Siefert rapidamente — com o seu consentimento, a possibilidade de fazer com que o legista aceite o meu veredicto de morte causada por uma acidental dose excessiva de barbital, com o que evitaríamos a autópsia.

— Sim, perfeitamente — concordou Vance. — Esta era a minha intenção. — Dirigiu-se ao procurador distrital: — Considerando bem os fatos, Markham, creio que isto será melhor. Nada podemos ganhar com uma autópsia. Já temos fatos suficientes para continuar sem recorrer a isso. Sem dúvida, a morte da Sra. Garden foi causada pela solução de barbital. O sódio radioativo é um caso à parte e diferente.

Markham aquiesceu com relutância, enquanto Doremus era introduzido pela Srta. Beeton. O legista estava de mau humor e reclamava amargamente por ter sido convocado num domingo pela manhã. Vance acalmou-o um pouco e apresentou-o ao Dr. Siefert. Após uma breve troca de explicações e comentários, Doremus prontamente concordou com a sugestão de Markham de que o caso fosse considerado como resultado de uma dose excessiva de barbital.

O Dr. Siefert ergueu-se e olhava hesitantemente para Vance: — O senhor não precisa mais de mim, espero.

— Por enquanto não, doutor. — Vance levantou-se também e fez uma reverência formal. — Naturalmente, depois entraremos em contato com o senhor. Mais uma vez gratos nela sua ajuda e sinceridade. Sargento, queira acompanhar os Drs. Siefert e Doremus até lá embaixo... E, Srta. Beeton por favor, sente-se um momento. Há algumas perguntas quê lhe quero fazer.

A jovem entrou e sentou-se na cadeira mais próxima enquanto os três homens dirigiam-se para o corredor.

 


XV

 

Três Visitas

 

(Domingo, 15 de abril — 10:45 horas)

 

 

— Não tenho a menor intenção de aborrecê-la desnecessariamente, Srta. Beeton — disse Vance. — Mas gostaríamos de ter uma narrativa em primeira mão das circunstâncias que cercaram a morte da Sra. Garden.

— Eu gostaria de ter alguma coisa bem definida para lhes contar — replicou a enfermeira com um tom profissional — mas tudo o que sei é que, quando acordei esta manhã, pouco depois das sete horas, a Sra. Garden parecia estar dormindo tranqüilamente. Depois de me vestir, fui até à sala de jantar e tomei café; em seguida levei uma bandeja para a Sra. Garden. Ela sempre tomava chá com torrada às 8 horas, qualquer que fosse a hora em que se deitasse na véspera. Só depois que corri as cortinas é que senti alguma coisa errada. Falei com ela, mas não me respondeu; e quando tentei erguê-la, não senti reação. Então vi que estava morta. Chamei imediatamente o Dr. Siefert, e ele veio o mais depressa que pôde.

— Se não me engano, a senhorita dorme no quarto da Sra. Garden?

Ela inclinou a cabeça.

— Sim. O senhor sabe, ela freqüentemente precisa de algum pequeno serviço durante a noite.

— Durante a noite ela lhe pediu algum serviço?

— Não. A injeção que o Dr. Siefert lhe deu antes de sair acalmou-a, e, quando saí, ela dormia calmamente.

— A senhorita saiu ontem à noite? A que horas?— perguntou Vance.

— Cerca de nove horas. Foi o Sr. Floyd Garden quem sugeriu, garantindo que ele estaria aqui e também achava que eu precisava descansar um pouco. Fiquei muito contente com a oportunidade, porque eu estava realmente cansada e amedrontada.

— A senhorita não teve escrúpulos profissionais em deixar um paciente àquela hora?

— Normalmente, eu teria tido — respondeu ressentida a jovem — mas a Sra. Garden nunca teve qualquer consideração comigo. Ela era a pessoa mais egoísta que já conheci. De qualquer forma, expliquei ao Sr. Floyd Garden que deveria dar a sua mãe uma colher das de chá do remédio caso ela acordasse e mostrasse qualquer sinal de agitação. E aí, fui até o parque.

— A que horas voltou, Srta. Beeton?

— Deve ter sido lá pelas onze — respondeu. — Eu não pretendia demorar tanto, mas o ar estava tão agradável e eu caminhei ao longo do rio quase até o túmulo de Grant. Quando voltei, deitei-me imediatamente.

— A Sra. Garden estava dormindo quando entrou?

— Eu... eu pensei... que ela estava dormindo — disse hesitante. — Sua cor estava normal. Mas talvez... mesmo então...

— Sim, sim. Eu sei — cortou rapidamente Vance. — Entretanto... — E ele inspecionou o próprio cigarro durante algum tempo. — Por falar nisso, notou alguma coisa diferente, qualquer coisa, digamos, fora do lugar, quando voltou ao quarto?

Ela sacudiu a cabeça lentamente.

— Não. Tudo me pareceu como antes. As janelas e as cortinas estavam como eu as havia deixado e... Espere, havia sim. O copo d'água que eu havia deixado na mesa de cabeceira estava vazio. Tornei a enchê-lo antes de deitar-me.

Vance ergueu os olhos vivamente.

— E o vidro de remédio?

— Nada notei de particular; mas devia estar como eu o havia deixado, porque me lembro de ter tido uma fugaz sensação de alívio por ela não ter necessidade do mesmo.

Vance pareceu profundamente perplexo e nada disse durante algum tempo. Depois ergueu os olhos de repente.

— Qual o tipo de luz que havia no quarto?

— Apenas uma lâmpada de cabeceira bem fraca.

— Nesse caso, a senhorita poderia perfeitamente ter confundido um vidro vazio com um cheio de algum líquido incolor.

— Sim, é claro — respondeu com relutância a enfermeira. — Poderia ter sido isso... A menos que... — E a sua voz morreu.

Vance balançou a cabeça e terminou a frase.

— A menos que a Sra. Garden tomasse deliberadamente o remédio mais tarde. — Ele estudou a moça durante algum tempo. — Mas isto não é muito razoável. Não me preocupo com teorias. E a senhorita?

Ela lhe devolveu o olhar com absoluta franqueza e fez uma leve negativa com a cabeça.

— Não — disse. — Mas eu gostaria que fosse verdade.

— Exato — concordou Vance. — Seria um pouco menos terrível.

— Sei o que o senhor quer dizer. — Ela respirou trêmula e profundamente, estremecendo.

— Diga-me, quando descobriu que o remédio tinha desaparecido?

— Pouco antes que o Dr. Siefert chegasse esta manhã. Mexi no vidro quando estava arrumando a mesa e verifiquei que estava vazio.

— Acho que por enquanto é tudo, Srta. Beeton. — Vance olhou-a com ar sombrio e depois afastou-se. — Na realidade, compreendo, lamento muito. Mas aconselho-a a não fazer planos para sair daqui por enquanto. Sem dúvida alguma ainda vamos precisar de vê-la hoje.

Quando ela se levantou, pousou um olhar enigmático em Vance. Parecia a ponto de dizer alguma coisa, porém, ao contrário, deu meia volta e saiu.

Heath deveria estar esperando no corredor que a moça fosse dispensada, porque, exatamente quando ela saía, ele entrou para informar que Siefert e Doremus haviam ido embora e que Floyd Garden havia feito o necessário para a remoção do corpo de sua mãe.

— E que fazemos agora, Sr. Vance? — perguntou Heath.

— Vamos continuar, sargento. — Vance estava mais sério que de hábito. — Quero falar com Floyd Garden em primeiro lugar. Faça-o subir. E chame um de seus homens, mas fique de serviço lá embaixo até que ele chegue. Talvez possamos esclarecer esse caso ainda hoje.

— Isto não me deixaria triste, Sr. Vance — respondeu fervorosamente Heath, dirigindo-se à porta.

Markham erguera-se e caminhava de um lado para o outro, fumando vigorosamente o charuto.

— Evidentemente, você consegue ver alguma luz nesta droga de situação — resmungou ele para Vance. — Eu gostaria que acontecesse o mesmo comigo. — Ele parou e virou-se. — Você está falando sério quanto à possibilidade de ficar tudo esclarecido ainda hoje?

— Inteiramente. Pode ser, não é? — Vance maliciosamente piscou um olho para Markham. — Não legalmente, é claro. Não um caso para a justiça. Não. As técnicas legais são quase inúteis em emergências como esta. Há soluções mais profundas, soluções humanas, compreende?

— Você está falando asneiras — murmurou Markham. — Você e suas malditas predisposições pseudo-sutis!

— Posso mudar a predisposição — propôs alegremente Vance. — Devo ser franco e confessar que gosto desta situação ainda menos que você. Mas não há um outro procedimento indicado. A lei nada pode fazer na situação atual. E, francamente, não estou interessado na lei. Eu quero justiça.

Markham bufou.

— E que pretende você fazer exatamente?

Com os olhos pregados em Markham, Vance fitou um mundo remoto de sua imaginação.

— Vou tentar encerrar um drama trágico — disse calmamente. — Poderá ser eficaz. Se falhar, acho que nada mais poderemos fazer.

Markham bufou de novo.

— Philo Vance: empresário!

— Exato — concordou Vance. — Empresário, como você diz. E não o somos todos?

Markham encarou-o durante um momento.

— E quando sobe o pano?

— A qualquer momento.

Soaram passos no corredor e Floyd Garden entrou no estúdio. Parecia profundamente abalado.

— Hoje não estou agüentando muito. Que querem vocês? — Seu tom estava evidentemente ressentido. Ele sentou-se e pareceu ignorar-nos completamente, enquanto remexia, nervoso, no cachimbo.

— Nós entendemos como se sente — disse Vance. — Minha intenção não era aborrecê-lo desnecessariamente. Mas se queremos chegar até à verdade, precisamos de sua cooperação.

— Então vá dizendo — resmungou Garden ainda às voltas com o cachimbo.

Vance esperou até que o cachimbo acendesse.

— Precisamos obter o maior número possível de detalhes sobre a noite passada. Seus convidados vieram?

Garden balançou a cabeça alegremente.

— Ah, sim. Zalia Graem, Madge Weatherby e Kroon.

— E Hammle?

— Não, graças a Deus!

— Isto não lhe parece um tanto estranho?

— Não me pareceu estranho em absoluto — resmungou Garden. — Ao contrário, foi um alívio. Hammle é boa gente, mas incrivelmente chato: frio, auto-suficiente. Tenho a sensação de que ele não tem sangue nas veias. Cavalos, cães, raposas, jogo: tudo menos seres humanos. Se um dos seus malditos cães houvesse morrido, ele sentiria muito mais que a morte de Woody. Adorei que não viesse.

Vance meneou a cabeça em sinal de compreensão.

— Havia mais alguém aqui?

— Não, só esses.

— Qual dos convidados chegou primeiro?

Garden tirou o cachimbo da boca e ergueu os olhos com vivacidade.

— Zalia Graem. Chegou às oito e meia, creio. Por quê?

— Simplesmente reunindo os fatos — replicou Vance com indiferença. — E quanto tempo depois dela chegaram Madge Weatherby e Kroon?

— Cerca de meia hora. Poucos minutos após a saída da Srta. Beeton.

Vance devolveu-lhe o olhar de inspeção.

— A propósito, por que você permitiu que a enfermeira saísse ontem à noite?

— Ela parecia estar precisando de ar fresco — respondeu Garden num tom de franqueza absoluta. — Ela teve um dia duro. Além disso, eu não achava que houvesse alguma coisa de extraordinário com a Mama. E como eu ia ficar aqui, poderia cuidar do que fosse necessário. — Seus olhos estreitaram-se levemente. — Eu não deveria tê-la deixado sair?

— Sim, sim... bastante humano até! Foi um dia muito difícil para ela.

Garden deixou seus olhos vaguearem através da janela, mas Vance prosseguiu observando-o atentamente.

— A que horas se foram as visitas? — perguntou.

— Pouco após à meia-noite. Cerca de onze e meia, Sneed trouxe uns sanduíches. Aí tomamos mais uma rodada de highballs... — O homem voltou subitamente o olhar para Vance: — Isto tem alguma importância?

— Não sei; talvez não. Poderia, quem sabe... Saíram todos ao mesmo tempo?

— Sim. Kroon estava com o carro lá embaixo e ofereceu-se para deixar Zalia em casa.

— A Srta. Beeton a essa altura já havia voltado, não?

— Sim, muito antes. Eu a ouvi entrar por volta das 11 horas.

— E depois que as visitas foram embora, que fez você?

— Permaneci sentado mais ou menos meia hora, fumando e bebendo; depois fechei a frente da casa e recolhi-me.

— Seu quarto é vizinho ao de sua mãe, creio.

— Sim. Papai o está compartilhando comigo desde que a enfermeira chegou.

— Seu pai já se havia recolhido quando você foi para o quarto?

— Não. Ele raramente se deita antes das 2 ou 3 da manhã. Trabalha aqui no estúdio até altas horas.

— Ele estava aqui em cima, a noite passada?

— Suponho que sim. Não podia estar em outra parte e duvido que tivesse saído.

— Percebeu quando ele entrou e se deitou?

— Não.

Vance acendeu outro cigarro, tirou várias baforadas e mergulhou ainda mais fundo na poltrona.

— Voltando atrás, o remédio prescrito pelo Dr. Siefert parece constituir o ponto crucial da situação. Teve você oportunidade de fazê-la tomar o remédio enquanto a enfermeira esteve fora?

Garden aprumou-se na cadeira, subitamente inquieto.

— Absolutamente não, — rosnou entredentes. Vance não deu mostras de haver notado a mudança.

— A enfermeira devia ter-lhe dado instruções a respeito desse remédio. Onde foi que ela lhe deu essas instruções?

— No hall, — respondeu Garden com ar espantado. — Perto da cabina. Eu havia deixado Zalia na sala de estar e fora dizer a Srta. Beeton que podia sair por algum tempo. Ajudei-a a vestir o capote. Foi nesse momento que recebi suas instruções quanto ao remédio.

— E voltou à sala depois que ela saiu?

— Imediatamente. Logo depois Madge e Kroon chegaram.

Fez-se um curto silêncio, durante o qual Vance fumou pensativamente.

— Diga-me, Garden, — disse ele por fim — alguma das visitas entrou no quarto de sua mãe?

Os olhos de Garden arregalaram-se; seu rosto enrubesceu e ele ficou de pé com um salto.

— Por Deus, Vance. Zalia esteve no quarto de mamãe! Vance balançou a cabeça devagar.

— Muito interessante. Sim, bastante... Sente-se. Acenda essa droga de cachimbo e conte-nos como foi.

Garden hesitou um momento. Deu uma risada áspera e voltou ao seu lugar.

— Diabos! Você leva na brincadeira — reclamou. — Isto pode explicar tudo.

— Nunca se sabe, não é? — respondeu Vance com indiferença. — Continue.

Mais uma vez Garden teve dificuldade em fazer funcionar o cachimbo. Ficou sentado uns instantes com o olhar velado e reminiscente, fitando através da janela.

— Deve ter sido por volta das dez horas. A Mama tocou a pequena campainha que fica na mesinha ao lado da cama e eu ia atender, quando Zalia, de um salto, disse que ia ver o que ela queria. Francamente, foi com prazer que eu a deixei ir depois da cena que vocês testemunharam aqui ontem; eu tinha a impressão que eu continuava sendo uma persona non grata. Zalia voltou alguns minutos depois e normalmente disse que a Mama apenas desejava que tornassem a encher o seu copo com água.

— E você, mesmo durante a ausência de Srta. Beeton, não foi nenhuma vez ao quarto de sua mãe?

— Não, não fui — disse Garden com olhar de desafio.

— E você tem certeza de que mais ninguém entrou no quarto de sua mãe durante a ausência da enfermeira?

— Absolutamente.

Eu podia ver pela expressão de Vance que ele não estava satisfeito com as respostas de Garden.

Com uma lenta deliberação ele bateu a cinza do cigarro. Suas pálpebras baixaram um pouco numa especulação intrigada. Sem erguer os olhos, perguntou: — Durante o tempo em que estiveram aqui, Madge Weatherby e Kroon permaneceram no salão?

— Sim... com exceção de dez minutos ou coisa semelhante, quando foram até à sacada.

— Você e a Srta. Graem permaneceram no salão?

— Sim. Eu não estava particularmente disposto a apreciar a paisagem noturna e, aparentemente, Zalia também não.

— Que horas eram quando a Srta. Weatherby e Kroon foram até à sacada?

Garden refletiu um momento.

— Eu disse que foi pouco antes da volta da enfermeira.

— E quem foi a primeira pessoa a sugerir que voltassem para casa?

Garden ponderou a resposta.

— Creio que foi Zalia. Vance ergueu-se.

— Foi muito gentil de sua parte, Garden, permitir que o incomodássemos com perguntas a essa hora — disse com bondade. — Somos imensamente gratos... Você pretende sair hoje?

Garden sacudiu a cabeça levantando-se.

— Dificilmente — disse. — Vou ficar com papai. Ele está um bocado abalado. Por falar nisso, você gostaria de vê-lo?

Vance agitou a mão negativamente.

— Não. Agora não é necessário.

Garden deixou a sala lentamente, a cabeça baixa, como um homem que carrega um grande peso na cabeça.

Quando ele saiu, Vance parou um momento à frente de Markham, olhando-o com um bom humor um tanto cínico.

— É um caso sério, Markham. É o que eu digo. Falando francamente, você vê algum motivo para que a lei ponha os dentes aqui?

— Não, com os demônios! — explodiu zangado Markham. — Não há duas coisas que combinem. Não há uma linha reta em direção alguma. Cada fio do caso está emaranhado num outro. Só Deus é quem sabe como há motivos e oportunidades. Mas qual nós vamos escolher como ponto de partida? E ainda assim — acrescentou azedo — poder-se-ia criar um caso com...

— É exato — interrompeu Vance. — Um caso contra qualquer um das diferentes pessoas. E cada um tão bom ou tão mau quanto o outro. Todos agiram da maneira perfeita para tornar-se suspeito — suspirou. — Uma doce situação.

— E diabólica — acrescentou Markham. — Se não fosse por isso, eu estaria mais inclinado a chamar a coisa de dois suicídios e deixar assim mesmo.

— Impossível — contestou Vance. — Nem você nem eu poderíamos fazer tal coisa. Na realidade, sabe, esta não é a maneira humana de ser. — Foi até à janela e olhou para fora. — Mas eu tenho o controle da situação. O desenho está começando a tomar forma. Já reuni todas as peças, Markham, exceto uma. Eu a tenho em mão, porém ainda não sei onde entra ou como se ajusta ao conjunto.

Markham ergueu os olhos.

— Qual é a peça que o está atrapalhando, Vance?

— Os fios desligados da campainha. Eles me atrapalharam demais. Sei que eles têm um papel nas terríveis coisas que têm acontecido aqui. — Afastou-se da janela e caminhou de um lado para outro da sala, a cabeça baixa, as mãos enterradas nos bolsos. — Por que foram aqueles fios desligados? — murmurou como se estivesse falando sozinho. — Como podem eles se relacionar com a morte de Swift e o tiro que ouvimos? Não havia mecanismo. Não, disso estou convencido. Afinal de contas, os fios apenas ligavam duas cigarras... um sinal... um sinal ligando os dois andares... uma chamada, uma linha de comunicação.

De repente ele interrompeu o passeio. Agora estava de frente para a porta do corredor e olhava para ela como se nunca a tivesse visto.

— Deus do céu! É óbvio demais. — Correu até Markham, com uma expressão de auto-incriminação. — A resposta estava aqui o tempo todo — disse. — Era tão simples... e eu procurando dificuldades... O quadro agora está completo, Markham. Tudo se ajusta. Aqueles fios desligados significam que há um outro assassinato em perspectiva; um crime que fora planejado desde o início mas que não aconteceu — respirou profundamente. — Este caso tem que ser esclarecido hoje. Sim... — Vance desceu e nós o seguimos. Heath fumava melancolicamente no corredor interno.

— Sargento, — disse Vance — telefone à Srta. Graem, Srta. Weatherby, Kroon e Hammle. Faça-os todos vir aqui no fim da tarde, digamos seis horas. Floyd Garden pode ajudá-lo a entrar em contato com eles.

— Eles estarão aqui sem falta, Sr. Vance — garantiu Heath.

— E, sargento, assim que tiver feito isso, telefone-me. Quero vê-lo esta tarde. Estarei em casa. Mas espere aqui por Snitkin e deixe-o de guarda. Ninguém deverá vir aqui, exceto aqueles que mandei chamar e ninguém deverá deixar o apartamento. E, acima de tudo, ninguém tem permissão para ir lá em cima, quer seja no estúdio ou no jardim. Agora vou indo.

— Quando estiver chegando em casa, Sr. Vance, eu já estarei telefonando para o senhor.

Vance dirigiu-se à porta da frente mas parou com a mão na maçaneta.

— Acho que antes de sair é melhor falar com Garden sobre a reunião. Onde está ele, sargento?

— Quando ele desceu foi para a saleta — disse Heath com um movimento de cabeça.

Vance caminhou pelo corredor e abriu a porta da saleta. Eu estava bem atrás dele. Quando a porta se abriu deparamos com um quadro inesperado. A Srta. Beeton e Garden estavam de pé diante da escrivaninha, desenhados em silhueta contra a janela. A enfermeira tampava o rosto com as mãos e apoiava-se em Garden soluçando. Ele tinha os braços em torno dela.

Com a nossa chegada os dois se afastaram rapidamente. A jovem voltou a cabeça em nossa direção e eu pude ver seus olhos vermelhos e cheios de lágrimas. Ela prendeu a respiração e, girando de golpe, saiu correndo pela porta que dava para o quarto vizinho.

— Lamento profundamente — murmurou Vance. — Pensei que estivesse só.

— Ora, não tem importância — disse Garden, embora fosse bastante evidente o seu embaraço. — Mas espero, Vance, — acrescentou com um sorriso forçado — que você não vá interpretar errado. Aqui está tudo emocionalmente transtornado. Acho que a Srta. Beeton agüentou mais do que podia suportar ontem e hoje; quando a encontrei aqui, ela parecia a ponto de ter um colapso nervoso, e... eu deitei a cabeça dela em meu ombro. Estava simplesmente tentando reconfortá-la. Não posso deixar de ter pena dela.

Vance ergueu a mão numa indiferença bem-humorada.

— Ah, está certo, Garden. Uma mulher atormentada sempre agradece um forte ombro masculino onde possa chorar. A maioria delas deixa pó de arroz na lapela da gente... Mas estou certo de que a Srta. Beeton não poderia ser acusada disso... Mil desculpas por interrompê-lo, mas eu queria dizer-lhe antes de ir embora que dei instruções a Heath para convocar todos os seus convidados de ontem para estarem aqui hoje às seis da tarde. É claro que você e seu pai também estão incluídos. Se não se opõe, poderia dar os números dos telefones ao sargento.

— Com prazer, Vance — respondeu Garden, pegando o cachimbo e voltando a enchê-lo. — Alguma idéia diferente?

Vance virou para a porta.

— Sim. Espero liquidar o caso hoje. Agora, vou andando. Adeus.

Na saída, Vance disse um tanto tristemente a Markham: — Espero que meu plano funcione. Não gosto muito dele, mas também não gosto de injustiças...


XVI

 

 

Pela Porta do Jardim

 

 


(Domingo, 15 de abril — à tarde)

 

 

Mal havíamos chegado, quando o sargento Heath telefonou conforme prometera. Vance dirigiu-se à sala de espera para atender e fechou a porta atrás de si. Alguns minutos mais tarde voltou e, chamando Currie, pediu o chapéu e a bengala.

— Vou sair um pouco, meu velho — disse ele a Markham. — Na verdade, vou ao encontro do bravo sargento no Departamento de Homicídios. Mas não demorarei. Enquanto isso, já encomendei um almoço para nós aqui.

— Para os diabos o almoço — rosnou Markham. — Por que você vai se encontrar com Heath?

— Estou precisando de um colete novo — disse-lhe jovialmente Vance.

— Esta explicação ajuda muito — resmungou Markham.

— Lamento. É a única que posso dar presentemente. Markham fixou-o durante vários minutos, desapontado.

— Por que todo esse mistério? — perguntou.

— Realmente, Markham, é necessário. — Vance falou com sinceridade. — Tenho a esperança de liquidar hoje à noite esse caso monstruoso.

— Pelo amor de Deus, Vance, que está você planejando? — Markham ergueu-se num desespero inútil.

Vance tomou um trago de brandy e acendeu um Régie. Depois olhou afetuosamente para Markham.

— Estou pensando em induzir o assassino a fazer mais uma aposta... uma aposta para perder. Adeus. — E se foi.

Durante a ausência de Vance, Markham permaneceu encolerizado. Não estava com disposição para conversar e eu o deixei à vontade. Ele tentou interessar-se pela biblioteca de Vance, mas, evidentemente, nada encontrou que atraísse sua atenção. Finalmente, acendeu um charuto e instalou-se em uma poltrona diante da janela, enquanto eu me ocupava com algumas notas que estava preparando.

Passava um pouco das duas e meia quando Vance regressou.

— Está tudo em ordem — anunciou ao entrar. — Não há cavalos correndo hoje, é claro, mas, não obstante, estou encarando uma grande aposta que vai ser feita esta noite. Se o jogo não for feito, Markham, nós é que pagaremos o pato. Entretanto, todos estarão presentes. O sargento, com o auxílio de Garden, entrou em contato com todos os que estiveram lá ontem, e eles irão reunir-se novamente no salão de Garden às 6 horas. Eu, pessoalmente, deixei um recado ao Dr. Siefert e espero que ele o receba a tempo de vir ao nosso encontro. Acho que ele deveria estar presente... — Olhou para o relógio e, chamando Currie, pediu uma garrafa de Montrachet 1919 gelado para o nosso almoço.

— Se não nos demorarmos por demais à mesa, poderemos ouvir a segunda parte do concerto da Filarmônica. Melinoff estará tocando o concerto para piano de Grieg e creio que isto fará um grande bem aos nossos espíritos. Um lindo clímax, Markham; um dos mais excitantes de toda a música: simples, melodioso, magistral. É uma coisa curiosa com relação a Grieg: o mundo levou muito tempo para descobrir a magnitude de seu gênio... Um dos verdadeiros grandes compositores.

Mas Markham não foi conosco ao concerto. Pretextou um urgente encontro político no Stuyvesant Club; prometendo, porém, encontrar-nos às 6 horas da tarde no apartamento de Garden. Como por um acordo tácito, durante o almoço não se falou uma palavra relativa ao caso.

Quando acabamos, Markham escusou-se e partiu para o clube, enquanto Vance e eu fomos para o Carnegie Hall. Melinoff teve uma bela atuação; e, quando fomos para casa, Vance parecia estar mais descontraído.

O sargento Heath esperava-nos quando chegamos ao apartamento.

— Tudo pronto, senhor — disse a Vance. — Está aqui. Vance deu um sorriso triste.

— Excelente, sargento. Venha comigo enquanto tiro essa roupa da missa.

Heath pegou um pequeno embrulho enrolado em papel pardo, que evidentemente havia trazido consigo, e seguiu Vance até o quarto. Dez minutos depois, voltaram os dois à biblioteca. Vance agora usava um pesado paletó de tweed escuro; na cara de Heath havia um ar de auto-satisfação.

— Até logo, Sr. Vance — disse ele, apertando nossas mãos. — Boa sorte. — E saiu pesadamente.

Chegamos ao apartamento dos Gardens poucos minutos antes das seis. Os detetives Hennessey e Burke estavam no corredor de entrada. Este último aproximou-se e, colocando a mão sobre a boca, murmurou à meia voz: — O sargento Heath recomendou-me que lhe dissesse estar tudo em ordem. Ele e Snitkin estão em ação.

Vance meneou a cabeça e começou a subir.

— Espere por mim aqui embaixo, Van — disse por cima do ombro. — Volto já.

Dirigi-me à saleta cuja porta estava escancarada e caminhei a esmo pela peça, olhando os diversos quadros e gravuras. Uma delas, atrás da porta, chamou minha atenção: creio que era um Blampied. Mas Vance não se demorou; abriu a porta inopinadamente, quase me imprensando de encontro à parede. Quando eu ia falar com ele, entrou Zalia Graem.

— Philo Vance. — Ela pronunciou o nome com uma voz trêmula e baixa.

Vance voltou-se e encarou-a com ar zombeteiro.

— Estive esperando no salão — disse ela. — Quero vê-lo antes que fale com os outros.

Pelo tom de voz, percebi imediatamente que minha presença não fora notada e meu primeiro impulso foi de sair do meu canto. Mas, naquelas circunstâncias, achei que nada podia haver nas suas palavras que eu não pudesse ouvir e decidi não os interromper.

Vance continuou a encará-la mas não falou.

Ela aproximou-se bem dele.

— Diga-me por que me fez sofrer tanto — disse ela.

— Sei que a magoei — retrucou Vance. — Mas as circunstâncias assim o exigiram. Por favor, acredite que eu entendo mais desse caso do que você imagina.

— Não estou certa de entender — ela falava com hesitação. — Mas quero que saiba que confio em você. — Ergueu os olhos para ele e eu pude ver que seus olhos estavam reluzindo. Lentamente, ela inclinou a cabeça. — Nunca me interessei por homem algum — prosseguiu com um tremor na voz. — Todos os homens que conheci fizeram-me infeliz e pareciam sempre afastar-me das coisas de que eu gostava... — Ela prendeu a respiração. — Você é o único homem, de todos os que conheci, por quem eu poderia interessar-me.

Esta surpreendente confissão veio de maneira tão repentina que eu não tive tempo de fazer sentir a minha presença e, depois que a Srta. Graem terminou de falar, eu permaneci onde estava a fim de não lhe causar embaraço.

Vance colocou as mãos nos ombros da moça e manteve-a afastada.

— Minha cara, — disse com uma voz curiosamente reprimida — sou o único homem por quem você não se deve interessar. — A finalidade das suas palavras era clara.

Atrás de Vance abriu-se subitamente a porta que dava para o quarto de dormir e a Srta. Beeton imobilizou-se no limiar. Ela não mais usava o uniforme de enfermeira e sim um tailleur de tweed de corte severo.

— Lamento — desculpou-se. — Pensei que Floyd... o Sr. Garden estivesse aqui.

Vance olhou-a vivamente.

— É evidente que estava enganada, Srta. Beeton.

Zalia Graem encarava a enfermeira com um ressentimento zangado.

— Quanto ouviu você até se decidir a abrir a porta? Os olhos da Srta. Beeton entrecerraram-se; havia uma expressão de desprezo em seu olhar firme.

— Talvez você tenha alguma coisa a esconder — respondeu friamente, enquanto atravessava a saleta em direção à porta do corredor e dali dirigiu-se ao salão.

Os olhos de Zalia Graem seguiram-na como que fascinados, e depois ela voltou-se para Vance.

— Esta mulher me apavora — disse. — Não confio nela. Há alguma coisa de sombrio e cruel por trás dessa calma auto-suficiência... e você foi tão bom para ela, enquanto que a mim fez sofrer.

Vance sorriu melancolicamente.

— Poderia ter a gentileza de aguardar um pouco no salão?

Ela olhou-o perscrutadoramente e, sem falar, voltou-se e saiu da saleta.

Vance permaneceu algum tempo fitando o soalho com um ar indeciso, como se relutante em prosseguir com quaisquer planos que tivesse engendrado. Depois voltou-se para a janela.

Aproveitei essa oportunidade para sair do meu canto e, exatamente nesse momento, surgiu Floyd Garden na porta do corredor.

— Alô, Vance — disse. — Eu não sabia que você estava de volta até que Zalia me disse. Alguma coisa em que eu possa ser útil?

Vance deu meia volta rapidamente.

— Eu ia justamente chamar você. Estão todos aqui? Garden fez que sim, gravemente.

— Sim, e estão todos com um medo tremendo; todos exceto Hammle. Para ele tudo é uma farsa. Gostaria que alguém o tivesse acertado no lugar de Woody.

— Mande-o aqui, por favor — pediu Vance. — Quero falar com ele. Irei ter com os outros daqui a pouco.

Garden caminhou pelo corredor e, naquele momento, ouviu Burke falando com Markham na porta principal. Markham logo se juntou a nós na saleta.

— Espero não o ter feito esperar — disse.

— Não. — Vance encostou-se à escrivaninha. — Bem na hora. Estão todos aqui, exceto Siefert. E estou à espera de Hammle para uma conversinha. Penso que ele estará em condições de corroborar uma idéia que tenho. Até agora ele nada nos contou. E posso precisar do seu apoio moral.

Markham mal acabava de sentar-se quando Hammle irrompeu na saleta com ar jovial. Vance fez-lhe um rápido aceno e omitiu todos os preâmbulos convencionais.

— Sr. Hammle, — disse — nós já conhecemos de sobra a sua filosofia de cuidar apenas dos seus interesses e manter silêncio para evitar quaisquer complicações. Uma atitude louvável, mas não nas circunstâncias atuais. Este é um caso de crime e, no interesse da justiça para com todos os interessados, precisamos obter toda a verdade. Ontem à tarde, o senhor era a única pessoa no salão que gozava de uma visão parcial do corredor. E precisamos saber tudo o que o senhor viu, por mais trivial que lhe possa parecer.

Hammle, assumindo sua expressão de jogador de pôquer, permaneceu em silêncio; Markham inclinou-se para a frente, olhando-o fixamente.

— Sr. Hammle, — disse com uma calma fria e mortal — se não nos quiser dar agora qualquer informação, será levado diante do tribunal e falará sob juramento.

Hammle cedeu. Falou precipitadamente, abanando os braços.

— Estou pronto a lhes dizer tudo o que sei. Não precisam ameaçar-me. Mas, para dizer a verdade, não pensei que a coisa fosse tão séria. — Sentou-se com pomposa dignidade e adotou um ar que, obviamente, pretendia indicar que, naquele momento, ele era a personificação da lei, da ordem e da verdade.

— Então, em primeiro lugar — disse Vance sem abandonar seu ar frio — quando a Srta. Graem saiu da sala, ostensivamente para atender um chamado telefônico, o senhor observou exatamente onde ela foi?

— Não exatamente, — retrucou Hammle — mas ela virou à esquerda em direção à saleta. Vocês compreendem, naturalmente, que me era impossível ver muito longe no corredor, mesmo de onde eu estava sentado.

— Exato — concordou Vance. — E quando ela voltou ao salão?

— Primeiramente, eu a vi do lado oposto ao da saleta. Ela se dirigiu ao armário de parede onde se guardam os chapéus e agasalhos e depois voltou para ficar parada na entrada até a corrida terminar. Depois disso não a vi ir nem vir, porque eu me voltara para desligar o rádio.

— E quanto a Floyd Garden? — perguntou Vance. — Lembra-se de que ele acompanhou Swift até fora da sala? Percebeu para onde foram ou o que fizeram?

— Se me lembro bem, Garden pôs o braço nos ombros de Swift e guiou-o até à sala de jantar. Depois de alguns momentos eles saíram. Swift parecia estar afastando Garden e depois desapareceu pelo corredor em direção à escada. Floyd ficou parado alguns minutos à porta da sala de jantar, acompanhando o primo, e depois o seguiu pelo corredor; mas deve ter mudado de idéia porque logo voltou ao salão.

— E não viu ninguém mais no hall?

Hammle sacudiu a cabeça pesadamente.

— Não. Ninguém mais.

— Muito bem — Vance aspirou profundamente o cigarro. — E agora vamos para o jardim do terraço, figurativamente falando. O senhor estava no jardim, esperando um trem, quando a enfermeira quase foi asfixiada na caixa-forte com gás de bromo. A porta para o corredor estava aberta e, se o senhor estivesse olhando naquela direção, poderia facilmente ter percebido quem passou para cima e para baixo no corredor. — Vance olhou-o significativamente. — E tenho a intuição de que o senhor estava olhando por aquela porta, Sr. Hammle. Sua reação de espanto, quando saímos no terraço, foi um pouco exagerada. E, de onde estava, o senhor não poderia ver muito da cidade, não é?

Hammle pigarreou e sorriu.

— Adivinhou, Sr. Vance — admitiu bem humorado. — Já que eu não podia pegar o meu trem, achei que poderia satisfazer um pouco a minha curiosidade e ficar ali a ver o que acontecia. Saí para o terraço e lá fiquei parado, onde podia ver pela porta do corredor; eu queria ver quem seria apertado em seguida.

— Obrigado pela sua honestidade. — O rosto de Vance estava formalmente frio. — Por favor, diga-nos exatamente o que viu por aquela porta enquanto esperava, segundo confessou, que acontecesse alguma coisa.

Mais uma vez Hammle pigarreou.

— Bem, Sr. Vance, para dizer a verdade, não foi muita coisa. Apenas gente indo e vindo. Primeiro, vi Garden passar no corredor em direção ao estúdio; quase em seguida ele desceu a escada. Depois Zalia Graem passou também em direção ao estúdio. Cinco ou dez minutos depois o detetive Heath — creio que este é o nome — passou pela porta carregando no braço um sobretudo. Um pouco mais tarde, dois ou três minutos, diria eu, Zalia Graem e a enfermeira cruzaram-se no corredor; Zalia em direção à escada e a enfermeira rumo ao estúdio. Dois minutos depois, Floyd Garden passou novamente pela porta em direção ao estúdio...

— Um minuto — interrompeu Vance. — O senhor não viu a enfermeira voltar para baixo depois de ter cruzado com a Srta. Graem no corredor.

Hammle sacudiu a cabeça enfaticamente.

Não. A primeira pessoa que eu vi depois das duas moças toi Floyd Garden dirigindo-se ao estúdio. E ele passou de volta um ou dois minutos depois...

— O senhor tem certeza de que sua cronologia é precisa?

— Absolutamente.

Vance pareceu satisfeito e meneou a cabeça.

— Isto coincide perfeitamente com os fatos de que tenho conhecimento — disse. — Mas tem certeza de que ninguém passou pela porta, quer indo ou vindo, durante aquele intervalo?

— Eu poderia jurar.

Vance deu mais uma vigorosa tragada no cigarro.

— Mais uma coisa, Sr. Hammle: enquanto estava no jardim, alguém entrou no terraço pelo portão de grade?

— Absolutamente não. Não vi ninguém ali.

— E depois que Garden voltou para baixo, que aconteceu?

— Vi você chegar à janela e olhar para o jardim. Tive medo de ser visto e, no momento em que você se virou, fui para a extremidade oposta do jardim, perto do portão. O que vi em seguida foram vocês entrando no terraço com a enfermeira.

Vance deixou a escrivaninha onde estivera até então apoiado.

— Muito obrigado. Sr. Hammle. Disse exatamente o que eu queria saber. Pode interessar-lhe saber que a enfermeira informou ter sido agredida na cabeça ao passar no corredor deixando o estúdio, e arrastada para a caixa-forte que estava cheia de gás de bromo.

O queixo de Hammle caiu e seus olhos arregalaram-se. Agarrou-se aos braços da cadeira e lentamente ficou de pé.

— Meu Deus! — exclamou. — Então foi isso que aconteceu! E quem o poderia ter feito?

Uma pergunta cabível — respondeu calmamente Vance. — Realmente, quem o poderia ter feito? Entretanto, os detalhes de sua observação secreta lá do jardim corroboram as minhas suspeitas e é possível que eu possa responder à sua pergunta dentro em breve. Sente-se novamente, por favor.

Hammle lançou um olhar apreensivo a Vance e sentou-se de novo. Vance voltou-se para olhar o céu que escurecia. Depois, virou-se para Markham. Uma súbita mudança surgira em sua expressão e, pelo seu olhar, eu sabia que se estava debatendo interiormente com algum conflito.

— Chegou o momento de agir, Markham — disse resolutamente. Depois foi até à porta e chamou Garden.

Este veio imediatamente do salão. Parecia nervoso e olhou Vance com ansiedade.

— Tenha a fineza de dizer a todos que venham para a saleta — solicitou Vance.

Com um aceno quase imperceptível, Garden regressou pelo corredor; Vance atravessou a sala e sentou-se à escrivaninha.

 

 

 

 

XVII

 

Um Tiro Inesperado

 

 


(Domingo, 15 de abril —18:20 horas)

 

 

Zalia Graem foi a primeira a entrar na saleta. Havia uma expressão tensa, quase trágica, em seu rosto cansado. Olhou para Vance como num apelo e sentou-se sem uma palavra. Foi seguida pela Srta. Weatherby e Kroon, que, pouco à vontade, sentaram-se a seu lado no sofá. Floyd Garden e seu pai entraram juntos. O professor parecia atordoado e as rugas de seu rosto como que se haviam tornado mais profundas durante as últimas vinte e quatro horas. A Srta. Beeton veio logo atrás deles e parou hesitante no limiar, olhando vacilante para Vance.

— O senhor também me quer? — perguntou desconfiada.

— Creio que seria melhor, Srta. Beeton — disse Vance. — Podemos precisar de sua ajuda.

Ela fez um sinal de aquiescência e, entrando, sentou-se próximo à porta.

Naquele momento tocou a campainha da porta de entrada e Burke introduziu o Dr. Siefert.

— Acabei de receber seu recado, Sr. Vance, e vim direto para cá. — Percorreu o salão com um olhar inquisidor e depois fitou Vance.

— Achei que o senhor gostaria de estar presente, na hipótese de chegarmos a alguma conclusão sobre este caso. Sei que o senhor está pessoalmente interessado. Senão, não lhe teria telefonado.

— Agrada-me que o tenha feito — respondeu mansamente Siefert, dirigindo-se a uma cadeira diante da escrivaninha.

Vance acendeu um cigarro com lenta deliberação, seus olhos vagueando pela sala. Havia uma tensão em todo o grupo ali reunido. Mas, como indicaram os acontecimentos futuros, ninguém poderia ter sabido o que havia na cabeça de Vance nem as suas razões para reunir todos ali.

O tenso silêncio foi quebrado pela voz de Vance. Ele falou normalmente, porém com uma curiosa ênfase: — Pedi a todos que comparecessem aqui esta tarde na esperança de que pudéssemos esclarecer a realmente trágica situação existente. Ontem, Woody Swift foi assassinado na caixa-forte lá em cima. Algumas horas mais tarde, encontrei a Srta. Beeton trancada no mesmo lugar, meio sufocada. A noite passada, como todos sabem, a Sra. Garden morreu devido ao que todos nós acreditamos tenha sido uma dose excessiva do barbitúrico receitado pelo Dr. Siefert. Está fora de dúvida de que esses três acontecimentos estão estreitamente relacionados; a mesma mão agiu em todos eles. O sistema e a lógica da situação apontam indiscutivelmente para essa hipótese. Sem dúvida, havia uma razão diabólica para cada ato do criminoso; e ela foi fundamentalmente a mesma em cada caso. Infelizmente, o cenário preparado para esse crime múltiplo foi tão confuso que facilitou cada etapa do plano criminoso e, ao mesmo tempo, dispersou as suspeitas sobre muitas pessoas que estavam inteiramente inocentes.

Vance fez uma pausa.

— Felizmente, eu estava presente quando foi cometido o primeiro crime e, desde então, tenho podido isolar os vários fatos relacionados com o crime. Neste processo de triagem, tenho parecido pouco razoável e até, talvez, duro para com muitos dos presentes. E durante o decorrer de minha breve investigação, foi-me necessário reprimir qualquer expressão de minhas opiniões pessoais por receio de fornecer ao agente criminoso uma advertência inoportuna. Isto, é evidente, teria sido fatal, pois a trama foi tão inteligentemente urdida, tão fortuitas eram as muitas circunstâncias a ela ligadas, que nunca teríamos conseguido colocar o libelo do crime no verdadeiro culpado. Conseqüentemente, era essencial uma multiplicidade de suspeitas recíprocas entre os inocentes membros e convidados desta família. Se eu ofendi ou fui injusto com alguém, confio que, em vista das anormais e terríveis circunstâncias, serei perdoado...

Ele foi interrompido pelo surpreendente som de um tiro identicamente semelhante ao do dia anterior. Todos, na sala, ergueram-se rapidamente, aterrorizados com a súbita detonação. Todos, exceto Vance. E, antes que alguém pudesse falar, sua voz calma e autoritária dizia: — Não há necessidade de alarme. Por favor, sentem-se. Providenciei este tiro para que todos vocês ouvissem; ele terá uma importante implicação no caso.

Burke surgiu na porta: — Estava bem, Sr. Vance?

— Perfeito — disse-lhe Vance. — O mesmo revólver e os mesmos cartuchos?

— Claro. Exatamente como o senhor me disse. E de onde mandou. Não estava como o senhor queria?

— Sim, precisamente — concordou Vance. — Obrigado, Burke.

O detetive deu um amplo sorriso e afastou-se.

— Este tiro, acredito, — prosseguiu Vance passeando os olhos preguiçosamente pelos presentes — foi semelhante ao que ouvimos ontem à tarde — o que nos fez todos correr até o corpo de Swift. Pode ser que lhes interesse saber que o tiro recém-disparado pelo detetive Burke saiu do mesmo revólver, com os mesmos cartuchos usados ontem pelo assassino e exatamente do mesmo local.

— Mas este tiro pareceu ter sido disparado de algum lugar aqui embaixo — interrompeu Siefert.

— Exatamente — disse Vance com satisfação. — Foi disparado de uma das janelas deste andar.

— Mas eu havia compreendido que o tiro de ontem havia sido disparado lá em cima — Siefert parecia perplexo.

— Esta foi a suposição geral, porém errônea — explicou Vance. — Na realidade, não foi assim. Ontem, devido à porta do terraço estar aberta, devido à escada e também estar fechada a porta do quarto onde foi feito o disparo e, principalmente, porque nós estávamos psicologicamente ligados à idéia de um tiro no terraço, isso deu a todos nós a impressão de que o ruído veio dali. Nós fomos induzidos ao erro por nossos medos manifestos e não formulados.

— É mesmo, você tem razão, Vance — falou Floyd Garden excitado. — Eu me lembro de que, na ocasião do tiro, fiquei pensando de onde ele teria vindo, mas naturalmente meu pensamento foi logo para Woody e então admiti que tivesse sido no jardim.

Zalia Graem voltou-se rapidamente para Vance.

— O tiro de ontem não soou para mim como proveniente do terraço. Quando saí da saleta, fiquei me perguntando por que estavam todos correndo para cima.

Vance devolveu-lhe o olhar diretamente.

— Não, para a senhorita deve ter parecido muito mais perto. Mas por que não mencionou este importante fato ontem, quando falamos sobre o crime?

— Eu... eu não sei — tartamudeou a moça. — Quando vi Woody morto lá em cima, naturalmente pensei ter-me enganado.

— Mas a senhorita não podia ter-se enganado — replicou Vance quase num suspiro; seus olhos fitaram novamente o espaço. — E após o revólver ter sido disparado ontem de uma janela de baixo, ele foi sorrateiramente colocado no bolso do sobretudo da Srta. Beeton, que estava no armário do corredor. Se ele tivesse sido disparado do andar de cima, teria sido muito mais vantagem escondê-lo em algum lugar do terraço ou no estúdio. O sargento Heath, que tinha dado busca tanto em cima como embaixo, encontrou-o mais tarde no armário do corredor. — Dirigindo-se novamente à moça: — Por falar nisso, Srta. Graem, não foi até esse armário após ter respondido ao telefone aqui da saleta?

A jovem reprimiu um grito.

— Como... como soube?

— Foi vista lá — explicou Vance. — Deve lembrar-se de que o armário do corredor é visível de uma das extremidades do salão.

Zalia Graem voltou-se furiosa para Hammle: — Então foi você quem contou a ele?

— Era meu dever — respondeu Hammle empertigando-se.

A jovem virou-se para Vance com os olhos chamejantes.

— Vou-lhe dizer por que fui até ao armário. Fui buscar um lenço que havia deixado em minha bolsa. Isto faz de mim uma assassina?

— Não. — Vance balançou a cabeça e suspirou. — Obrigado pela explicação... Poderia ter a gentileza de nos contar exatamente o que fez a noite passada, quando atendeu ao chamado da Sra. Garden?

O professor Garden, que permanecia sentado com a cabeça baixa, aparentemente sem prestar atenção a quem quer que fosse, de repente levantou a vista e pousou seus olhos fundos na moça com um pequeno sinal de animação.

Zalia Graem assumiu um ar de desafio endereçado a Vance.

— Perguntei à Sra. Garden em que lhe podia ser útil e ela pediu-me que enchesse novamente o copo com água que estava sobre a mesinha ao lado da cama. Fui até ao banheiro e enchi o copo; depois arrumei os travesseiros e perguntei-lhe se precisava de mais alguma coisa. Ela agradeceu-me e fez que não; e eu voltei ao salão.

Os olhos do Prof. Garden velaram-se novamente e ele voltou a afundar na cadeira, mais uma vez ignorando o que estava à sua volta.

— Obrigado — disse Vance com um aceno para a Srta. Graem. E voltando-se para a enfermeira: — Srta. Beeton, quando voltou à noite, a janela do quarto que dá para o balcão estava trancada?

A enfermeira ficou surpresa com a pergunta. Mas, quando respondeu, foi num tom calmo e profissional.

— Não reparei; mas sei que estava trancada quando eu saí; a Sra. Garden sempre insistiu nisso. Lamento não ter olhado a janela quando voltei. Isso tem muita importância?

— Não; especialmente, não — Vance dirigiu-se então a Kroon. — Creio que o senhor levou a Srta. Weatherby até à sacada ontem à noite. Que estiveram fazendo durante os dez minutos que passaram lá fora?

Kroon irritou-se: — Se quer saber mesmo, estávamos brigando por causa de Stella Fruemon...

— Não estávamos. — A voz aguda da Srta. Weatherby o interrompeu. — Estava simplesmente perguntando a Cecil...

— Está tudo certo — Vance interrompeu-a vivamente e fez um gesto de súplica. — Brigas ou recriminações, isto realmente não nos interessa. — Dirigiu-se a Floyd Garden: — Diga-me, Garden, ontem à tarde quando você deixou o salão para seguir Swift, como um bom samaritano, após ele ter apostado em Equanimity, onde foram vocês?

— Levei-o até à sala de jantar. — Mais uma vez Garden se mostrava perturbado e apreensivo. — Discuti com ele durante alguns instantes, depois ele saiu para o corredor em direção à escada. Fiquei observando-o durante um ou dois minutos, tentando pensar o que poderia fazer por ele porque, para dizer a verdade, eu não queria que ele ouvisse o resultado da corrida lá em cima. Eu estava absolutamente certo de que Equanimity perderia e ele ignorava que eu não havia feito o jogo. Eu estava bastante preocupado com o que ele pudesse vir a fazer. Durante um minuto pensei em acompanhá-lo lá em cima, mas mudei de idéia. Decidi que nada mais havia a fazer a não ser esperar pelo melhor. E então voltei ao salão.

Vance pousou os olhos na escrivaninha e permaneceu calado durante vários minutos, fumando e meditando.

— Estou seriamente embaraçado — murmurou finalmente, sem erguer os olhos. — Mas o fato é que não estamos chegando à parte alguma. Há explicações plausíveis para tudo e para todos. Por exemplo, no momento do primeiro crime, o Prof. Garden estava, presumivelmente, na biblioteca ou num táxi. Floyd Garden, de acordo com suas próprias declarações e com a parcial corroboração do Sr. Hammle aqui presente, estava no salão e no corredor inferior. O próprio Sr. Hammle, assim como a Srta. Weatherby, estavam no salão. O Sr. Kroon explica que estava fumando lá fora na sacada externa e lá deixou como evidência duas pontas de cigarro. A Srta. Graem, até onde podemos crer, estava telefonando aqui da saleta. Portanto, supondo-se, simplesmente uma hipótese, de que ninguém aqui poderia ser culpado da morte de Swift, da aparente tentativa de assassinato da Srta. Beeton e do possível assassinato da Sra. Garden, nada há de tangível para consubstanciar uma acusação individual. A atuação do criminoso foi por demais inteligente, bem concebida, e as pessoas inocentes parecem haver formado, inconsciente e involuntariamente, uma conspiração para ajudar e encorajar o criminoso.

Vance prosseguiu erguendo os olhos.

— Além disso, quase todos agiram de uma maneira que, concebivelmente, fazia com que cada um parecesse culpado. Houve um surpreendente número de acusações. O Sr. Kroon foi a primeira vítima de uma dessas acusações não consubstanciadas. Diversas pessoas me apontaram a Srta. Graem como culpada. A Sra. Garden indiretamente acusou seu filho ontem à noite. De fato, tem havido uma tendência generalizada para envolver diversas pessoas nas atividades criminosas. Do ponto de vista humano e psicológico, a solução foi ao mesmo tempo deliberada e inconscientemente velada, até que a confusão tornou-se tal que não restava mais um único contorno definido. E isto criou uma atmosfera que servia com perfeição às maquinações do assassino, porque tornou a investigação extremamente difícil e as provas positivas, quase impossíveis de se obter... E, ainda assim — acrescentou Vance — alguém nesta sala é o culpado.

Eu não podia entender sua atitude: era completamente diferente do homem que eu sempre havia conhecido. Toda a sua segurança parecia haver desaparecido, e senti que ele relutava em admitir a derrota. Voltando-se para a janela, ele observou o crepúsculo que se avizinhava. Depois, com uma brusca meia volta, seus olhos varreram furiosamente a sala, demorando-se um instante em cada um dos presentes.

— Além disso — e havia uma tensão no staccato de suas palavras — eu sei quem é o culpado!

Houve um movimento de mal-estar no ambiente, seguido de um silêncio que foi rompido pela voz educada do Dr. Siefert.

— Se este é o caso, Sr. Vance, e eu não duvido da veracidade de sua afirmação, creio que é seu dever dizer o nome dessa pessoa.

Vance encarou pensativamente o doutor durante vários minutos antes de responder. Depois, disse em voz baixa: — Acho que o senhor tem razão, doutor.

Mais uma vez fez uma pausa e, acendendo um novo cigarro, moveu-se de um lado para outro em frente à janela.

— Primeiramente, — disse parando de chofre — há alguma coisa lá em cima que eu preciso ver novamente, para ter certeza. Por favor, permaneçam aqui durante alguns instantes. — Disse e encaminhou-se para a porta. Súbito, entreparou, para dizer à enfermeira: — Por favor, Srta. Beeton, venha comigo. Creio que poderá ajudar-me.

A enfermeira ergueu-se e seguiu Vance até o corredor. Ouvimos quando subiam as escadas.

Uma agitação instalou-se nos que haviam permanecido embaixo. O Prof. Garden levantou-se lentamente, foi até à janela, onde ficou olhando para fora. Kroon abriu a cigarreira e ofereceu um cigarro à Srta. Weatherby. Quando acendiam os cigarros, murmuraram alguma coisa entre si que não pude distinguir. Floyd Garden moveu-se desajeitadamente na cadeira e voltou a seu hábito nervoso de encher o cachimbo. Siefert andou pela sala, fingindo examinar as gravuras, e os olhos de Markham seguiram todos os seus movimentos. Hammle pigarreou bem alto diversas vezes, acendeu um cigarro e remexeu em diversos papéis que tirou da sua agenda de bolso. Somente Zalia Graem permaneceu tranqüila. A cabeça recostada no sofá, os olhos fechados, ela fumava tranqüilamente. Eu poderia jurar que havia um leve sorriso no canto de seus lábios...

Passaram-se cinco bons minutos e então o silêncio da sala foi cortado por um desvairado e terrível grito de mulher pedindo socorro, vindo lá de cima. Quando chegamos ao corredor, a enfermeira vinha às pressas pela escada, segurando o corrimão com as duas mãos. Seu rosto estava fantasmagoricamente pálido e havia uma expressão selvagem e amedrontada em seu olhar.

— Sr. Markham! Sr. Markham! — gritava a moça historicamente. — Oh, meu Deus! Uma coisa horrível vem de acontecer...

Markham avançou ao seu encontro.

— Foi o Sr. Vance — arquejou excitadamente. — Ele se foi!

Um arrepio de horror percorreu meu corpo e todos pareciam estupefatos. Notei, como se fora algo inteiramente fora de minha percepção imediata, que Heath, Snitkin e Peter Quackenbush, o fotógrafo oficial da polícia, acudiram correndo da porta principal. Quackenbush trazia consigo a câmara e o tripé; os três homens ficaram parados calmamente junto à porta, destacando-se do aturdido grupo ao pé da escada. Vagamente fiquei imaginando por que estariam eles aceitando a situação com uma indiferença tão complacente.

Em frases rotas, entremeadas de soluços, a enfermeira explicava a Markham: — Ele caiu lá embaixo! Oh! meu Deus, foi horrível! Ele disse que me queria perguntar alguma coisa e me levou até o jardim. Começou a fazer perguntas sobre o Dr. Siefert, o Prof. Garden, a Srta. Graem. E enquanto falava, subiu no parapeito... lembra-se como ele fez ontem à noite. Tive medo, assim como tive ontem. E então... então... enquanto eu falava com ele... ele inclinou-se... oh, meu Deus!... ele perdeu o equilíbrio. — Ela fitou Markham com ar assustado. — Tentei alcançá-lo... e de repente ele já não estava mais ali... ele caiu!

Subitamente, os olhos dela ergueram-se acima de nossas cabeças e ficaram pasmos. Uma mudança brusca operou-se nela; o rosto contorceu-se numa horrenda máscara. Acompanhando seu olhar horrorizado, instintivamente voltamo-nos e focalizamos o corredor próximo ao salão...

Lá, calmamente olhando para nós, estava Philo Vance.

Tenho tido muitas experiências angustiantes, mas, naquele momento, a visão de Vance após o horror por que eu acabava de passar, afetou-me mais que qualquer outro choque de que me recorde. Uma tonteira envolveu-me e eu senti um suor frio brotando em todo o meu corpo. O som da voz de Vance só servia para me perturbar ainda mais.

— Eu lhe falei a noite passada, Srta. Beeton, — dizia ele com os olhos friamente pousados na enfermeira — que nenhum jogador desiste quando vence pela primeira vez e que, no fim, ele sempre perde. — Ele avançou de alguns passos. — A senhorita ganhou sua primeira aposta, com muitas vantagens, ao matar Swift. E o envenenamento da Sra. Garden com o barbital também demonstrou ser um jogo ganho. Mas quando tentou acrescentar-me à sua lista de vítimas, porque suspeitava que eu sabia demais, a senhorita perdeu. Este páreo estava combinado... a senhorita não teria uma única chance.

Markham olhava Vance com um ar irritado.

— Que significa tudo isso? — gritou, apesar do óbvio esforço que fazia para ocultar sua excitação.

— Significa simplesmente, Markham, que eu dei à Srta. Beeton a oportunidade de me empurrar do parapeito, o que, normalmente, teria sido uma morte certa. E ela aproveitou essa oportunidade. Esta tarde, eu combinei com Heath e Snitkin para testemunharem o episódio e também consegui que fosse documentado de modo permanente.

— Documentado? — Meus Deus! Que quer você dizer?

Markham parecia meio tonto.

— Exatamente isso — retrucou calmamente Vance. — Uma fotografia oficial tirada com lentes especiais adaptadas à meia-luz, para os arquivos do sargento. — Seu olhar passou de Markham para Quackenbush. — Espero que tenha conseguido.

— Claro que sim — respondeu o homem com um sorriso satisfeito. — E no ângulo exato. Um colosso.

A enfermeira, que estivera olhando Vance como que petrificada, de repente largou o corrimão onde estava agarrada e cobriu o rosto com um gesto de desespero e desilusão. Depois as mãos caíram, deixando ver uma expressão de derrota.

— Sim! — gritou para Vance. — Eu tentei matá-lo. E por que não? O senhor estava a pique de arrancar tudo... tudo... de mim.

Virou-se bruscamente e subiu correndo. Quase que simultaneamente, Vance pulou para a frente.

— Rápido, rápido — chamou ele. — Parem-na antes que chegue ao jardim.

Mas antes que qualquer um de nós se desse conta do significado de suas palavras, o próprio Vance já estava na escada. Heath e Snitkin estavam bem atrás dele, e nós, estupefatos, os seguimos. Quando cheguei ao terraço, pude ver a Srta. Beeton correndo em direção à extremidade oposta do jardim, com Vance imediatamente em seu encalço. O crepúsculo havia praticamente terminado e uma sombra profunda instalara-se sobre a cidade. Quando a moça subiu no parapeito, exatamente no mesmo ponto em que Vance estivera de pé na noite anterior, ela parecia uma silhueta espectral contra o céu levemente iluminado. E aí ela" desapareceu no fundo abismo de sombras, exatamente no momento em que Vance ia alcançá-la...

 

 

 

 

XVIII

 

A Folha de Apostas

 

 


(Domingo, 15 de abril — 19:15 horas)

 

 

Meia hora mais tarde estávamos todos sentados outra vez na saleta. Heath e os detetives saíram imediatamente após a catástrofe final para atender aos desagradáveis detalhes decorrentes do suicídio da Srta. Beeton.

Vance estava de novo na cadeira da escrivaninha. O fim trágico do caso parecia tê-lo entristecido. Durante algum tempo ele fumou sorumbático. Depois falou: — Pedi a todos vocês que ficassem porque achei que mereciam uma explicação sobre os terríveis acontecimentos que ocorreram nesta casa e também para ouvirem por que me foi necessário conduzir a investigação da maneira que eu fiz. Para começar, eu sabia desde o início que estava lidando com uma pessoa muito ardilosa e sem escrúpulos, e sabia também tratar-se de alguém que estaria na casa ontem à noite. Portanto, até que eu tivesse alguma prova convincente da culpa daquela pessoa, era imperativo que eu parecesse duvidar de cada um dos presentes. Somente em uma atmosfera de suspeita mútua e recriminação, na qual até eu parecia estar tão desnorteado quanto os outros, seria possível suscitar ao criminoso aquela sensação de segurança que eu sentia conduzir ao seu erro fatal.

— Desde o início estava inclinado a duvidar da Srta. Beeton, porque, embora todos aqui tivessem, de alguma forma, atraído para si próprios uma suspeita, apenas a enfermeira havia tido o tempo e a oportunidade de, sem qualquer estorvo, cometer o crime inicial. Quando pôs o seu plano em ação, ela estava inteiramente livre de qualquer observação; e estava tão amplamente familiarizada com todas as disposições domésticas que não teve dificuldade em cronometrar cada etapa, de modo a assegurar a discrição essencial. As circunstâncias e fatos subseqüentes aumentaram enormemente as minhas suspeitas. Por exemplo, quando o Sr. Floyd Garden informou-me onde era guardada a chave da caixa-forte, eu mandei que ela fosse verificar se estava no devido lugar, sem indicar onde era esse lugar, com o fim de confirmar se ela tinha conhecimento onde permanecia a chave. Somente alguém sabendo exatamente como entrar no cofre em um determinado momento poderia ser culpado da morte de Swift. É claro que o fato de ela saber não era uma prova definida da culpa, porque outras pessoas também sabiam; mas, no mínimo, era um fator contra ela. Não tivesse ela sabido onde se guardava a chave, e teria sido automaticamente eliminada. O pedido que lhe fiz para procurar a chave foi feito de maneira tão normal e indiferente que, aparentemente, não deu a ela um indício do meu motivo ulterior.

Casualmente, uma das minhas maiores dificuldades no caso foi agir de tal modo, em todos os momentos, que as suspeitas dela nunca seriam levantadas. Isto era essencial, porque, como já disse, eu só poderia esperar concretizar minha teoria sobre a culpa da Srta. Beeton fazendo-a sentir-se suficientemente segura para dizer ou fazer alguma coisa que a comprometesse.

Suas razões de início não foram bem claras e, infelizmente, eu pensei que, com a morte de Swift, ela tivesse alcançado seus objetivos. Porém, após a minha conversa desta manhã com o Dr. Siefert, pude compreender inteiramente o medonho plano que ela havia engendrado. O Dr. Siefert apontou de modo bem definido o interesse que ela tinha por Floyd Garden, embora eu já tivesse tido alguns indícios anteriormente. Por exemplo, Floyd Garden foi a única pessoa da casa de quem ela me falou com admiração. Seu motivo era baseado em uma ambição colossal: o desejo de segurança financeira, conforto e luxo; e misturado com tudo isso, um amor fora do comum. Somente hoje esses fatos se tornaram claros para mim.

Vance olhou para o jovem Garden.

— Era você que ela queria — continuou. — E eu acredito que a autoconfiança dela era tão grande que, nem por um minuto, ela duvidou que seria bem sucedida em seu objetivo.

Garden ergueu-se de um pulo.

— Por Deus, Vance! Você está certo. Agora é que estou vendo. Ela vinha dando em cima de mim já há algum tempo e, para ser honesto, posso ter dito ou feito coisas que ela pode ter considerado como um encorajamento. Deus me ajude! — E ele sentou-se novamente com um embaraço desanimado.

— Ninguém pode recriminá-lo — disse Vance com bondade. — Ela era uma das mulheres mais perspicazes que já conheci. Mas o ponto é que ela não queria apenas você; queria também a fortuna dos Gardens. Aí está por que, tendo sabido que Swift partilharia da herança, ela decidiu eliminá-lo e fazer de você o único beneficiário. Mas, de modo algum, este assassinato não constituía todo o seu plano.

Mais uma vez Vance dirigiu-se a todos em geral.

— Toda a terrível trama foi esclarecida por alguns fatos que o Dr. Siefert revelou esta manhã na conversa que tivemos. Agora ou mais tarde, a morte da Sra. Garden também era um ponto importante do plano; durante algum tempo, as condições físicas da Sra. Garden mostraram certos sintomas de envenenamento. Ultimamente, esses sintomas aumentaram de intensidade. O Dr. Siefert informou-nos de que a Srta. Beeton fora assistente de laboratório do Prof. Garden durante suas experiências com sódio radioativo e que também viera muitas vezes aqui ao apartamento com o fim de datilografar notas e executar algumas tarefas que não poderiam ser convenientemente desempenhadas na Universidade. O Dr. Siefert também informou-me de que ela realmente entrou na casa há dois meses atrás para encarregar-se pessoalmente do caso da Sra. Garden. Entretanto, ela continuava assistindo o Dr. Garden em seu trabalho e, naturalmente, tinha acesso ao sódio radioativo que ele começara a produzir. Desde que ela veio para cá, o estado físico da Sra. Garden começou a piorar, indubitavelmente resultante do fato de que a Srta. Beeton tinha oportunidades maiores e mais freqüentes de administrar o sódio radioativo à pobre senhora. Sua decisão de eliminar a Sra. Garden, de modo a que o filho herdasse o dinheiro, certamente foi tomada pouco após ela ter-se tornado a assistente do professor e, graças às suas visitas ao apartamento, ter-se tornado relacionada com Floyd Garden e familiarizada com os diversos arranjos domésticos.

Vance dirigiu-se ao Prof. Garden.

— E o senhor também, professor, era uma de suas pretendidas vítimas. Quando ela planejou matar Swift, creio que planejara um duplo crime, isto é, o senhor e Swift deveriam ser mortos ao mesmo tempo. Mas, felizmente, ontem à tarde o senhor não voltou ao seu estúdio na hora fixada para o duplo crime e o plano original teve que ser modificado.

— Mas, mas — gaguejou o professor — como poderia ela ter-me matado e a Swift ao mesmo tempo?

— Os fios desligados da campainha deram-me a resposta essa manhã — explicou Vance. — O seu esquema era, ao mesmo tempo, simples e ousado. Ela sabia que, se acompanhasse Swift lá em cima antes do grande prêmio, não teria dificuldade em atraí-lo até à caixa-forte com um pretexto qualquer, especialmente considerando o fato de que ele mostrara um marcado interesse por ela. Sua intenção era matá-lo no cofre, exatamente como fez, e depois ir ao estúdio e matar o senhor. O corpo de Swift seria então colocado no estúdio com o revólver na mão. Pareceria assassinato e suicídio. Quanto à possibilidade de o tiro no estúdio ser ouvido lá embaixo, imagino que ela deve ter experimentado antecipadamente nas verdadeiras condições havidas ontem à tarde. Pessoalmente, sou de opinião que um tiro no estúdio não poderia ser ouvido aqui embaixo com o ruído e a excitação da transmissão de um páreo, tendo a porta e janelas do estúdio fechadas. Quanto ao resto, seu plano original teria prosseguido. Ela teria apenas disparado dois cartuchos vazios da janela do quarto em vez de apenas um. Para prevenir a hipótese de que o professor percebesse qualquer coisa e tentasse chamar por socorro, ela previamente desligou os fios da campainha atrás da cadeira de sua escrivaninha.

— Mas, por Deus! — exclamou Floyd Garden com um tom amedrontado. — Foi ela mesma quem disse a Sneed que a campainha não estava funcionando.

— Precisamente. Ela fez questão de ser a pessoa que descobriu o fato com o fim de afastar inteiramente quaisquer suspeitas: ela raciocinou que a suposição normal seria esta: a pessoa que desligasse os fios com intenções criminosas, seria a última a chamar a atenção para o fato. Foi um ato ousado, porém perfeitamente condizente com sua técnica em toda a extensão.

Vance fez uma pausa, depois prosseguiu.

— Como estava dizendo, seu plano teve de sofrer uma alteração porque o Prof. Garden não voltou. Ela escolhera o Grande Prêmio Rivermont como o pano de fundo de suas manobras, porque sabia que Swift estava colocando uma grande aposta naquele páreo e, se ele perdesse, daria maior crédito à versão de suicídio. Quanto ao disparo no Prof. Garden, isso seria naturalmente atribuído à sua tentativa de impedir o suicídio do sobrinho. E, de certa forma, a ausência do professor ajudou-a, embora isso exigisse de sua parte um rápido raciocínio para preencher aquela lacuna em seu plano delineado. Em lugar de colocar Swift no estúdio onde havia inicialmente planejado, levou-o para o terraço. Cuidadosamente limpou o sangue na caixa-forte de modo a que nada restasse no chão. Uma enfermeira com prática de sala de cirurgia, de remover o sangue das esponjas, instrumentos, mesa de operações e chão, saberia como agir. Depois ela desceu e disparou um cartucho vazio da janela do quarto, exatamente quando foi dado o resultado oficial da corrida, confirmando o suicídio. Naturalmente, uma das suas principais dificuldades foi como desfazer-se do segundo revólver, o que ela disparou aqui embaixo. Ela se viu diante da necessidade de livrar-se da arma, o que era quase impossível nas circunstâncias, ou escondê-lo em lugar seguro até que pudesse removê-lo do apartamento, porque havia sempre o perigo de ele ser descoberto e todo o plano ser desmascarado. Desde que, aparentemente, ela era a pessoa menos suspeita, é provável que tenha considerado que colocá-lo temporariamente no bolso de seu próprio sobretudo seria bastante seguro. Não era um esconderijo ideal, mas creio que ela foi frustrada em alguma tentativa de escondê-lo em algum lugar do terraço ou no jardim, até que pudesse convenientemente levá-lo sem ser observada. Ela não teve oportunidade de esconder o revólver lá em cima depois que subimos pela primeira vez e descobrimos o corpo de Swift. Todavia, penso que era sua intenção fazer exatamente isso quando a Srta. Weatherby a viu na escada e, aborrecida, chamou minha atenção para o fato. Naturalmente, a Srta. Beeton negou totalmente ter estado na escada. O significado disso escapou-me completamente na ocasião, mas creio que ela trazia o revólver quando a Srta. Weatherby a viu. Evidentemente, ela pensou ter bastante tempo enquanto eu estava na saleta para correr lá em cima e esconder o revólver. Porém, mal ela havia começado a subir, a Srta. Weatherby saiu inesperadamente do salão, também com intenção de ir até o jardim. Deve ter sido imediatamente após isso que ela colocou o revólver no bolso de seu casaco no armário do corredor...

— Mas — perguntou o Prof. Garden — por que ela não disparou primeiro o revólver lá em cima; certamente teria ressoado de modo mais real e depois escondido no jardim antes de descer?

— Meu caro senhor! Isto teria sido impossível como já vai verificar. Como teria ela voltado para aqui? Poucos segundos após ouvirmos o tiro, todos nós estávamos subindo as escadas e teríamos encontrado com ela descendo. É claro que ela poderia ter voltado pela escada externa e entrado novamente no apartamento pela porta principal sem ser vista; mas, nessa eventualidade, ela não poderia ter estabelecido sua presença aqui embaixo no momento em que foi feito o disparo e isto era da maior importância para ela. Quando chegamos ao pé da escada, a Srta. Beeton estava parada à porta do quarto da Sra. Garden e tornou evidente que havia ouvido o tiro. Foi, é claro, um álibi perfeito, desde que a técnica do crime não tivesse sido revelada pela evidência que ela deixou na caixa-forte. Não... O tiro não poderia ter sido disparado no andar de cima. O único local em que ela o poderia ter disparado e ainda ter estabelecido o seu alibi, era do quarto de dormir.

Vance voltou-se para Zalia Graem.

— Agora compreendo por que a senhorita sentiu de modo tão definido que o tiro parecia vir do jardim. Foi porque, estando na saleta, era a pessoa mais próxima do tiro e podia mais ou menos avaliar a direção de onde veio. Lamento não ter podido explicar o fato, quando a senhorita o mencionou, mas a Srta. Beeton estava presente e não era aquele o momento de revelar a ela o que eu já sabia.

— Bem, de qualquer forma, o senhor foi horrível — reclamou a moça. — Agiu como se acreditasse que a minha razão para ter ouvido o tiro tão distintamente era que eu mesma o havia disparado.

— A senhorita não podia ler nas entrelinhas de minhas observações? Eu esperava que sim.

Ela sacudiu a cabeça: — Não, no momento, eu estava por demais ocupada; mas confesso que, quando o senhor pediu à Srta. Beeton para acompanhá-lo ao terraço, a verdade raiou para mim.

(Na ocasião em que ela fez esse comentário, lembrei-me de que ela havia sido a única pessoa na sala a ficar inteiramente à vontade enquanto Vance subia.) Houve um outro breve silêncio no aposento que foi quebrado por Floyd Garden.

— Há um outro ponto que me incomoda, Vance — disse ele. — Se a Srta. Beeton esperava que aceitássemos a teoria de suicídio, que teria acontecido se Equanimity ganhasse?

— Isto teria modificado todos os seus cálculos — respondeu Vance. — Mas ela era uma grande jogadora. E, lembrem-se, ela estava fazendo um jogo de alto gabarito. Estava praticamente jogando a própria vida. Garanto que esta foi a maior aposta já feita em Equanimity.

— Por Deus! — murmurou Floyd Garden. — E eu que achava enorme a aposta de Woody!

— Mas, Sr. Vance, — disse o Dr. Siefert — sua teoria não considera a tentativa que ela fez contra a própria vida.

Vance sorriu levemente.

— Não houve atentado, doutor. Quando a Srta. Beeton deixou o estúdio, um ou dois minutos após a Srta. Graem, para levar-lhe a mensagem, ela entrou na caixa-forte, fechou a porta e desta vez assegurou-se de que o trinco correra e golpeou-se levemente na cabeça. É claro que ela tivera razão para acreditar que decorreria pouco tempo até que déssemos por sua falta. Ela esperou até ouvir o ruído da chave na fechadura antes de quebrar o frasco de bromo. É possível que ao sair do estúdio ela tenha começado a recear que eu pudesse ter alguma idéia da verdade e então encenou aquele pequeno melodrama para tirar-me da pista. Seu objetivo era certamente lançar as suspeitas na Srta. Graem.

Vance olhou com simpatia para a jovem.

— Creio que, quando foi chamada no salão para atender ao telefone, Srta. Graem, exatamente no momento em que a Srta. Beeton subia para matar Swift, ela decidiu usá-la, se fosse necessário, para salvar-se. Indubitavelmente, ela sabia de sua rusga com Swift e capitalizou-a; também, sem dúvida alguma, percebeu que a senhorita seria suspeita aos olhos dos que estavam aqui presentes ontem. Eis aí por que, minha cara, pensei em dar-lhe corda, fingindo considerá-la culpada. E isto fez efeito... Espero que encontre em seu coração um modo de perdoar-me por tê-la feito sofrer.

A jovem não falou, parecia estar lutando com as próprias emoções.

Siefert inclinara-se para a frente e estudava atentamente Vance.

— Como teoria, pode ser lógica — disse com um cepticismo grave. — Mas, afinal, não passa de uma teoria.

Vance sacudiu lentamente a cabeça.

— Ah, não, doutor. É mais que uma teoria. E o senhor deveria ser a última pessoa a dar-lhe esse nome. A própria Srta. Beeton, em sua presença, traiu-se. Não somente ela nos mentiu, mas se contradisse quando o senhor e eu estávamos no terraço e ela se recuperava dos efeitos do bromo; efeitos, aliás, que ela era capaz de exagerar com perfeição em conseqüência de seus conhecimentos de medicina. — Certamente, doutor, o senhor recorda o que ela nos contou. Segundo o seu relatório do episódio, ela foi agredida na cabeça e empurrada para a caixa-forte; desmaiou imediatamente em conseqüência do gás de bromo; depois, a primeira coisa de que teve conhecimento foi de estar deitada no divã do terraço, onde eu e o senhor estávamos inclinados sobre ela.

Siefert inclinou a cabeça.

— Isto é perfeitamente correto — disse franzindo a testa.

— E estou certo de que também se lembra, doutor, de que ela olhou para mim e agradeceu-me por tê-la trazido para o jardim e salvo sua vida, e também perguntou-me como a havia encontrado tão depressa.

Siefert continuava de testa franzida.

— Isto também é correto — admitiu. — Mas não compreendo onde ela se traiu.

— Doutor, — perguntou Vance — se, como disse ela, estivesse inconsciente desde o momento em que foi empurrada para a caixa-forte até o momento em que falou conosco no jardim, como poderia ter sabido quem a encontrou e salvou do cofre? E como poderia saber que eu a encontrei logo após ela ter entrado lá? Como vê, doutor, ele nunca esteve inconsciente: ela nunca se arriscaria a morrer envenenada com o bromo. Como eu já disse, foi somente quando comecei a abrir a porta do cofre que ela quebrou o frasco do gás; e ela estava perfeitamente ciente de quem entrara lá e a carregava para o jardim. Para mim, essas palavras foram um erro fatal de sua parte.

Siefert relaxou e recostou-se na cadeira com um sorriso amarelo.

— Tem toda a razão, Sr. Vance. Esse ponto me escapou completamente.

— Mas — continuou Vance — mesmo que a Srta. Beeton não tivesse cometido o erro de nos mentir de uma maneira tão óbvia, havia uma outra prova de que ela era a única pessoa interessada naquele episódio. O Sr. Hammle aqui presente confirmou nossa opinião. Quando ela nos contou aquela história de ter recebido uma pancada na cabeça e ser empurrada para a caixa-forte, ela não sabia que o Sr. Hammle estivera no jardim observando todos os que iam e vinham pelo corredor. E ela estava sozinha no corredor no momento do suposto ataque. A Srta. Graem, é certo, acabava de passar por ela e descera; e a enfermeira contou com esse fato para tornar plausível sua história, esperando, evidentemente, que produziria o efeito desejado, isto é, fazer parecer que a Srta. Graem a havia atacado.

Vance fumou em silêncio por um instante.

— Quanto ao sódio radioativo, doutor, a Srta. Beeton o vinha administrando à Sra. Garden, satisfazendo-se em fazê-la morrer lentamente com seu efeito cumulativo. Mas a Sra. Garden ameaçou de riscar o nome do filho do testamento e isso precisava uma ação urgente; então a esperta moça decidiu-se por uma superdose de barbital a noite passada. Ela previu, é claro, que esta morte poderia facilmente ser considerada um acidente ou outro suicídio. Da maneira como as coisas aconteceram, foi-lhe tudo ainda mais propício, porque os fatos da noite passada só fizeram lançar suspeitas sobre a Srta. Graem. Desde o início, percebi quão difícil, se não impossível, seria fazer prova contra a Srta. Beeton; e durante toda a investigação eu estava à procura de algum meio de apanhá-la. Com este objetivo em vista, ontem à noite eu subi no parapeito na presença dela, esperando que isto poderia sugerir ao seu espírito cruel e sagaz um possível meio de me remover de seu caminho, se ela se convencesse de que eu já sabia demais. Meu plano para pegá-la era, afinal de contas, muito simples. Pedi a todos que comparecessem aqui esta tarde, não como suspeitos, mas para desempenhar os respectivos papéis no meu melancólico drama.

Vance suspirou profundamente antes de prosseguir.

— Combinei com o sargento Heath para equipar o poste situado na extremidade do jardim com um forte cabo de aço como se faz nos teatros para os truques de vôo e levitação. Este fio deveria ter o comprimento suficiente para atingir a altura do balcão deste andar e a ele estava preso a garra da mola que normalmente se prende ao equipamento de couro usado pelo artista. Este equipamento consiste em um pesado colete de couro de boi que, na forma e no talhe, parece com os espartilhos usados pelas jovens nos dias da era vitoriana e até mesmo depois. Esta tarde, o sargento Heath levou ao meu apartamento esse colete ou o que é tecnicamente conhecido nos meios teatrais como "colete voador" e eu o vesti antes de chegar aqui... Vocês talvez queiram ver como ele é. Tirei-o faz poucos instantes, porque ele é incrivelmente incômodo.

Vance ergueu-se e dirigiu-se ao quarto de dormir. Momentos depois, ele voltou com o colete de couro. Era feito de um couro marrom bastante pesado, com um acabamento de veludo e reforçado com lona. Os lados, em lugar de serem costurados, eram reunidos por fortes lingüetas de couro que passavam por dentro de ilhoses de metal. A parte central era fechada por uma fileira de tiras de couro de três centímetros de largura e fivelas de aço que ajustavam o colete ao corpo da pessoa que o vestia. Havia também alças de couro para os ombros e tiras para as coxas, protegidas com grossos rolos de borracha.

Vance exibiu o estranho acessório.

— Aqui está — disse. — Normalmente as fivelas e tiras ficam na frente e a presilha para a garra da mola fica nas costas. Mas no caso aqui a coisa teve que ser invertida. Eu precisava dos anéis na frente, porque ali seria preso o cabo quando eu estivesse de costas para a Srta. Beeton. — E ele apontou para dois pesados anéis de ferro com cerca de cinco centímetros de diâmetro, mantidos por parafusos e porcas numa tira de lona muito espessa, na parte frontal do colete.

Vance atirou o colete na escrivaninha.

— Este espartilho, ou colete, é usado sob a roupa do ator; no meu caso, vesti hoje um paletó largo de tweed de modo que não se notasse a ligeira saliência dos anéis.

Quando levei a Srta. Beeton para cima, eu a conduzi até o jardim e a confrontei com sua culpa. Enquanto ela protestava, subi no parapeito, de costas para ela, ostensivamente olhando para a cidade, como eu fizera a noite passada. Na semi-obscuridade, prendi o cabo aos anéis na parte anterior do meu colete de couro sem que ela o visse. A Srta. Beeton chegou bem perto de mim enquanto falava, mas, durante um momento, receei que ela não se aproveitasse da situação. Depois, em meio a uma de suas frases, ela avançou para mim com as duas mãos estendidas e o impacto lançou-me por sobre o parapeito. Era uma coisa simples lançar-me por cima do parapeito do balcão. Eu havia providenciado para que a porta do salão estivesse destrancada e eu simplesmente soltei o cabo de aço, entrei e apareci no corredor. Quando a Srta. Beeton viu que eu tinha testemunha de seu ato, e também uma fotografia, compreendeu que o jogo terminara... Admito, entretanto, que eu não previra que ela tentasse o suicídio. Mas talvez seja melhor assim. Ela é uma dessas mulheres que, por algum desvio da natureza, alguma perversidade profundamente enraizada, personificam o mal. Foi talvez essa tendência pervertida que a fez escolher a profissão de enfermeira, onde ela poderia ver e até mesmo participar do sofrimento humano.

Vance ficou a fumar, com ar abstrato. Parecia profundamente afetado, assim como todos nós. Pouco mais foi dito; cada um de nós, creio eu, estava por demais ocupado com os próprios pensamentos para continuar a discutir o caso. Houve algumas perguntas incoerentes, alguns comentários, e depois um longo silêncio.

O Dr. Siefert foi o primeiro a partir. Pouco depois, os outros ergueram-se inquietos.

Sentia-me abalado pelo súbito afrouxamento da tensão por que passara e dirigi-me ao salão para tomar um gole. A única luz existente provinha do lustre do corredor e do reflexo do céu que fracamente iluminava as janelas, mas era suficiente para permitir que eu visse o caminho até o bar situado em um canto. Servi-me de uma dose de brandy e, bebendo rapidamente, permaneci de pé um momento, olhando pela janela para as escuras águas do Hudson.

Ouvi alguém entrar e passar em direção à sacada, mas não olhei em volta imediatamente. Quando me voltei, vi a obscura silhueta de Vance parada em frente à porta aberta da sacada, um vulto solitário e pensativo. Já ia-lhe dirigir a palavra, quando Zalia Graem entrou suavemente e aproximou-se dele.

— Adeus, Philo Vance — disse.

— Sinto muito — murmurou Vance, tomando da mão que ela lhe estendia. — Estava aqui desejando que a senhorita me perdoe quando vier a compreender tudo.

— Eu já o perdoei — disse ela. — Isto é o que lhe vim dizer.

Vance curvou-se e ergueu os dedos dela até seus lábios. Então a moça retirou lentamente a mão e, voltando-se, saiu da sala.

Vance seguiu-a com o olhar até que ela tivesse deixado o aposento. Depois ele foi até à porta e saiu para a sacada.

Depois que Zalia Graem se foi, entrei na saleta onde Markham estava sentado conversando com o professor Garden e seu filho. Quando eu entrei, Markham olhou-me e depois verificou as horas.

— Acho melhor irmos embora, Van. Onde está Vance?

Voltei relutantemente ao salão a fim de buscá-lo. Ele ainda permanecia de pé na sacada, fitando sem ver a cidade com suas estruturas espectrais e suas luzes tremulantes.

 

 

Até hoje Vance não perdeu sua profunda afeição por Zalia Graem. Raramente menciona seu nome, mas notei uma sutil alteração em sua maneira de ser, o que eu atribuo à influência desse sentimento. Quinze dias após o caso Garden, Vance foi para o Egito, onde ficou diversos meses; e acho que essa viagem solitária foi motivada por seu interesse pela Srta. Graem. Uma noite, após regressar do Cairo, ele me disse: "As afeições de um homem incluem uma grande responsabilidade. As coisas que um homem deseja, a maioria das vezes, precisam ser sacrificadas devido à sua severa responsabilidade."

Creio ter entendido o que ele queria dizer. Com a multiplicidade de interesses intelectuais que o ocupavam, ele duvidava (e penso que com razão) de sua capacidade em tornar qualquer mulher feliz no sentido convencional.

Quanto à Zalia Graem, ela casou com Floyd Garden no ano seguinte e agora estão vivendo em Long Island, apenas a alguns quilômetros da propriedade de Hammle. A Srta. Weatherby e Kroon ainda são vistos juntos; de vez em quando corre um boato de que ela vai assinar um contrato com um produtor de cinema de Hollywood. O professor Garden continua morando em sua cobertura, uma figura solitária e um tanto patética, completamente absorvido por suas experiências.

Aproximadamente um ano após as tragédias no apartamento dos Gardens, Vance encontrou Hannix, o bookmaker, em Bowie. Foi um encontro casual e duvido que Vance o tenha lembrado depois. Mas o outro sim. Um dia, muitos meses mais tarde, quando Vance e eu estávamos sentados no salão-restaurante do clube Empire, Hannix aproximou-se e puxou uma cadeira.

— Que aconteceu a Floyd Garden, Sr. Vance? — perguntou. — Há mais de um ano que não sei dele. Desistiu dos cavalos?

— É possível, não sei — retrucou Vance com um pálido sorriso.

— Mas, por quê? — perguntou Hannix. — Ele era uma boa praça e sinto sua falta.

— Acredito. — Vance abanou a cabeça com indiferença. — Talvez ele esteja cansado de contribuir para sustentá-lo.

— Vamos, vamos, Sr. Vance. — Hannix adotou um ar ofendido e estendeu as mãos num gesto de apelo. — Esta foi uma observação cruel. Nunca tratei com o Sr. Garden nas bases do máximo habitual. Acredite-me, pagava-lhe prêmios em qualquer aposta até meia centena. Por falar nisso, Sr. Vance, — Hannix inclinou-se confidencialmente — o Prêmio Buller vai correr dentro de alguns minutos e as listas estão cotando Only One com oito. Se quiser o palpite, dou-lhe dez nele. Tem uma ótima chance de ganhar.

Vance fitou-o friamente e sacudiu a cabeça.

— Não, obrigado, Hannix. Já estou com Discovery.

Discovery ganhou por corpo e meio. Only One, casualmente, terminou num difícil segundo lugar.

O terrível e, em muitos aspectos, incrível Caso Garden foi um episódio peculiar e improvável. De qualquer maneira, foi tão habilmente planejado que só por acaso ou, melhor, por uma fortuita intervenção, foi ele desvendado.
Isso talvez dê a impressão de que a ação de Philo Vance não foi decisiva para a solução do caso. Seria, porém, uma impressão absolutamente errônea. Na verdade, o Caso Garden foi um dos maiores triunfos entre os muitos que assinalaram a carreira de Philo Vance e pode ser até considerado um dos mais portentosos êxitos de todos os tempos na história da investigação e da dedução criminal.
Foram as conclusões rápidas e quase fantásticas de Philo Vance, a sua capacidade de conhecer a natureza humana e o seu tremendo instinto para sentir e interpretar as correntes subterrâneas dos fatos comuns da vida que o encaminharam à descoberta da verdade.
O caso foi uma curiosa e estranha mistura de paixão, avareza, ambição e corridas de cavalos, assombroso nas suas sutilezas, na audácia e na habilidade de seu planejamento e no seu puro interesse psicológico.
Houve um leitor dos romances policiais de S. S. Van Dine que se queixou paradoxalmente de que os mesmos fossem tão bons, pois, quando iniciava a leitura de um, não conseguia mais largá-lo antes da última página. Faça a experiência com este e, para não se queixar depois, escolha um bom fim-de-semana.

 

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I

Os Cavalos de Troia

(Sexta-feira, 13 de abril — 22h)

Havia duas razões para que o terrível e, até certo ponto, incrível caso do crime no jardim — que aconteceu no início da primavera, logo após o caso do crime do Cassino — fosse assim denominado.

Em primeiro lugar, o cenário da tragédia foi a cobertura do professor Ephraim Garden, o grande pesquisador de química da Universidade de Stuyvesant; e, em segundo lugar, o situs criminis foi exatamente o lindo jardim privativo situado em cima do apartamento.

Era um caso ao mesmo tempo peculiar e inverossímil e, tão inteligentemente planejado, que apenas por mera casualidade — ou talvez fosse melhor chamarmos de intervenção fortuita — foi esclarecido. Apesar de as circunstâncias que precederam o crime serem inteiramente a favor de Philo Vance, eu não posso deixar de considerar o caso como um dos seus maiores triunfos de dedução e investigação criminal, porque foi o seu rápido e quase sobrenatural discernimento, sua capacidade de compreender a natureza humana e seu tremendo faro para discernir as camadas profundas do chamado trivial cotidiano, que o levaram a triunfar.

O assassinato dos Gardens reuniu uma curiosa e anômala mistura de paixão, avareza, ambição e... corridas de cavalos.

Havia também uma dose de ódio, mas este elemento vigoroso e ao mesmo tempo ofuscante era, imagino eu, uma compreensível decorrência dos outros fatores. Entretanto, o caso era surpreendente por suas sutilezas, seu mecanismo elaborado e seu clima de grande excitação psicológica.

O caso começou na noite de 13 de abril. Era uma daquelas noites suaves que geralmente acontecem no início de uma primavera após uma temporada de desagradável umidade quando todos os restos do inverno finalmente capitulam diante da inevitável mudança de estação. Havia uma suave tranqüilidade no ar, um súbito perfume que brotava da natureza — o tipo da atmosfera que nos torna apáticos e sonhadores e, ao mesmo tempo, estimula a nossa imaginação.

Menciono este fato aparentemente sem importância, porque acredito que essas condições meteorológicas muito têm a ver com os surpreendentes acontecimentos que pairavam no ar aquela noite e que deveriam brotar subitamente em todo o seu horror, antes que fossem decorridos 24 horas.

E eu acredito que a estação, com todas as suas sutis insinuações, era verdadeira explicação para a mudança que se fez no próprio Vance enquanto investigava o crime. Até àquela época eu não considerava Vance como um homem capaz de qualquer emoção pessoal profunda, exceto no que dizia respeito às crianças, animais e suas amizades íntimas do sexo masculino. Ele sempre me parecera um homem tão grandemente mentalizado, tão cínico e tão impessoal em suas atitudes diante da vida, que uma irracional fraqueza humana, do tipo de um romance, deveria ser inteiramente estranho à sua natureza. Mas no decorrer de sua habilidosa investigação dos crimes ocorridos na cobertura do professor Garden, pela primeira vez eu vi um outro aspecto maleável de seu caráter. Vance nunca foi um homem feliz no sentido convencional da palavra; mas, depois do caso Garden, surgiram evidências de uma solidão ainda mais profunda em sua natureza sensível.

Mas essas especulações sentimentais talvez não importassem ao relato da surpreendente história que estou aqui narrando e eu me pergunto se elas deveriam ter sido mencionadas a não ser pelo fato de que introduziram uma certa dimensão de entusiasmo e inspiração à energia que Vance despendeu, e os riscos que correu para entregar o assassino à justiça.

Mas, como eu disse, o caso teve início — pelo menos no que diz respeito a Vance — na noite de 13 de abril. John F.-X. Markham, na época procurador distrital de Nova York, jantava no apartamento de Vance, na Rua 38, Este. O jantar fora excelente — como aliás todos os que Vance oferecia — e às 10 horas estávamos os três sentados na confortável biblioteca degustando um Napoléon 1809 — o famoso e refinado conhaque do 1º Império*.


*Reconheço que esta afirmação levantará dúvidas enormes, porque o verdadeiro conhaque Napoléon é praticamente desconhecido nos EUA. Mas Vance tinha conseguido uma caixa na França; e Lewton Mackall, um perfeito conhecedor, assegurara-me que se diz entre os peritos no assunto, haver, atualmente, pelo menos 800 caixas dessa bebida num depósito da cidade de Conhaque.

 

 


Vance e Markham conversavam descontraidamente sobre ondas de crimes. Tinha havido uma leve discordância, Vance refutando a teoria de que as ondas de crimes são previsíveis, sustentando que o crime é inteiramente pessoal e, portanto, incompatível com a generalização ou leis. A conversa derivara em seguida para a decadência da entediada jovem geração surgida logo após a Primeira Guerra Mundial, que, por simples prazer, organizara clubes de crime, cujos membros experimentavam suas capacidades em assassinatos onde não havia qualquer espécie de vantagem de ordem material. Foi evidentemente mencionado o caso Loeb-Leopold e também um outro mais recente e igualmente depravado, que acabava de vir à tona em uma das principais cidades do Oeste.

Foi em meio a esta discussão que Currie, o velho mordomo inglês de Vance, surgiu à porta da biblioteca. Pareceu-me nervoso e pouco à vontade enquanto esperava que o patrão terminasse de falar; creio, que Vance pressentiu alguma coisa de estranho na atitude do empregado, porque parou de falar quase que abruptamente e voltou-se: — Que aconteceu, Currie? Você viu algum fantasma ou há ladrões dentro de casa?

— Acabei de receber um telefonema, senhor — respondeu o velho mordomo tentando reprimir em sua voz o tom excitado.

— Espero que não sejam más notícias do exterior? — perguntou Vance com simpatia.

— Ah, não senhor, não era para mim. Havia um cavalheiro ao telefone...

— Um cavalheiro, Currie?

— Ele falava como um cavalheiro, senhor. Certamente não era uma pessoa qualquer. Tinha uma voz educada, senhor e...

— Já que o seu instinto chegou tão longe — interrompeu Vance — talvez você possa dizer-me a idade do cavalheiro?

— Eu diria que era um homem de meia-idade, ou talvez um pouco mais — arriscou Currie. — Sua voz tinha um tom maduro, cheio de dignidade e ponderação.

— Excelente! — Vance esmagou o cigarro. — E qual era o objetivo da chamada desse homem maduro, digno e ponderado? Pediu para falar comigo ou deixou o nome?

Um ar preocupado surgiu no olhar de Currie enquanto negava sacudindo a cabeça: — Não senhor, isto é o mais esquisito. Ele disse que não desejava falar com o senhor pessoalmente e que não me daria o seu nome. Mas pediu-me que lhe transmitisse um recado. Foi bastante exato nesse ponto e até fez-me escrever palavra por palavra e depois repetir tudo. Assim que eu terminei, desligou.

Currie deu um passo à frente.

— Aqui está o recado, senhor. — E estendeu uma das pequenas folhas para anotações que Vance sempre tinha junto ao telefone.

Vance pegou a folha e despachou-o com um aceno. Em seguida ajustou o monóculo e colocou o papel sob a luz da lâmpada que estava sobre a mesa. Tanto Markham quanto eu o examinávamos atentamente porque o incidente era algo de pouco comum, para não dizer mais. Após uma rápida leitura, Vance fitou o espaço vazio e seu olhar tornou-se sombrio. Releu a mensagem, mais cuidadosamente ainda, e voltou a sentar-se na poltrona.

— Palavra de honra! — murmurou. — Que coisa extraordinária. — No entanto, é bastante compreensível, vocês nem imaginem. Mas quero ser mico de circo se eu estiver vendo a relação...

Markham estava aborrecido.

— É algum segredo? — perguntou para experimentar — Ou você está simplesmente em uma das suas fases oraculares? Vance olhou-o com um ar contrito.

— Perdoe-me, Markham. Meu pensamento automaticamente disparou numa espécie de devaneio. Desculpe-me, sinceramente.

E tornou a colocar o papel sob a luz.

— Este é o recado que Currie anotou tão meticulosamente: "No apartamento do professor Ephraim Garden está havendo a mais perturbadora tensão psicológica que resiste a qualquer diagnóstico. Leia alguma coisa sobre sódio radioativo. Veja o Livro XI da Eneida, linha 875. Equanimity* é o essencial"... Curioso, não acham?

 

 

* Equanimity significa serenidade. (N. T.)

 

 

Para mim, soa um tanto aloucado — anuiu Markham. — Você costuma receber telefonemas de maníacos?

— Não, mas este não é um maníaco — assegurou Vance. — É enigmático, admito, mas também bastante lúcido.

Markham fungou cèpticamente.

— Afinal, em nome de Deus, que têm um professor, o sódio e a Eneida a ver com o outro?

Vance tinha o semblante carregado enquanto procurava na cigarreira um dos seus queridos Régies, com uma tal deliberação que indicava tensão mental. Lentamente, acendeu o cigarro. Depois de inalar profundamente, respondeu: — Ephraim Garden, de quem vocês certamente já ouviram falar repetidamente, é um dos homens mais conhecidos neste país no campo da pesquisa química. No momento, se não me engano, ele é professor de química na Universidade de Stuyvesant, o que pode ser verificado no Who's Who. Mas, não importa. Suas últimas pesquisas foram orientadas para o terreno do sódio radioativo. Uma descoberta sensacional, Markham, feita pelo Dr. Ernest O. Lawrence, da Universidade da Califórnia, e dois de seus colegas de lá, os Drs. Henderson e McMillan. Este novo sódio radioativo abriu novos campos de pesquisa na terapêutica do câncer. Realmente, um desses dias pode vir a ser apontado como a tão procurada cura do câncer. A nova radiação gama deste sódio é mais penetrante que qualquer outra jamais obtida. Por outro lado, o rádio e as substâncias radioativas podem ser muito perigosos se difundidos nos tecidos normais do corpo e através do fluxo sangüíneo. A maior dificuldade no tratamento dos tecidos cancerosos por meio de radiação é achar um veículo seletivo que distribua a substância radioativa apenas para o tumor. Mas com a descoberta do sódio radioativo deu-se um enorme passo à frente; é nada mais que uma questão de tempo até que este novo sódio seja aperfeiçoado e possa ser encontrado em quantidades suficientes para uma experimentação intensiva.

— Tudo isso é extremamente fascinante — comentou Markham com sarcasmo. — Mas que tem isso a ver com você ou com o problema na casa dos Gardens? E que possível relação poderia isso ter com a Eneida? No tempo de Ennias não haviam ainda descoberto o sódio radioativo...

— Markham, meu velho, eu não sou um caldeu. E não tenho a mais remota noção de que a situação possa interessar a mim ou a Eneias, a não ser pelo fato de eu conhecer ligeiramente a família Garden. Mas tenho uma vaga idéia desse livro da Eneida, em particular. Se estou bem lembrado, ele contém uma das maiores descrições de uma batalha em toda a literatura antiga. Mas, vejamos: Vance ergueu-se rapidamente e dirigiu-se à seção de sua biblioteca reservada às obras clássicas e, após alguns momentos de procura, dali tirou um pequeno livro vermelho que começou a folhear. Seus olhos percorreram vivamente uma página quase no fim do volume e, após um momento de atenção, voltou à sua cadeira trazendo o livro, meneando a cabeça como quem está compreendendo, como se estivesse respondendo a uma pergunta que se tivesse feito interiormente.

— O trecho mencionado, Markham, — disse ele após um momento — não é exatamente aquilo que eu pensava. Mas pode ser ainda mais significativo. É a famosa onomatopéia "Quadrupedumque putrem cursu quatit ungula campum", que significa aproximadamente "e em seu galope, os cascos dos cavalos estremecem a planície gretada".

Markham tirou o charuto da boca e olhou para Vance com um aborrecimento indisfarçável: — Você está simplesmente fabricando um mistério. Só falta agora contar-me que os troianos tinham uma relação qualquer com esse professor de química e seu sódio radioativo.

— Não, não. — Vance estava com uma disposição desusadamente séria. — Nada a ver com os troianos, mas talvez com a galopada dos cavalos.

Markham rosnou: — Talvez para você isso possa fazer algum sentido.

— Não inteiramente — retrucou Vance contemplando criticamente a extremidade do seu cigarro. — Não obstante há como um vago esboço. Você sabe, o jovem Floyd Garden, único descendente do professor, mais o seu primo, um rapaz insignificante, chamado Woody Swift — se não me engano um assíduo freqüentador da intimidade dos Gardens — são aficionados dos cavalos. Por sinal, uma doença bastante corrente, Markham. Ambos se interessam por esportes em geral, provavelmente a reação normal aos seus antepassados eclesiásticos e mestres: o pai do jovem Swift, que já foi ao encontro do seu Criador, era um completo D. D.* Eu costumava às vezes ver os dois rapazes no Cassino de Kinkaid, mas os cavalos de corrida são a atual paixão dos dois. E eles são o núcleo de um pequeno grupo de jovens aristocratas que passam suas tardes principalmente na fútil expectativa de adivinhar quais os cavalos que vão chegar primeiro nas diferentes pistas.

 


* D. D. — Divinitatis Doctor (Doutor em Teologia) — (N. T.)

 

 

 

— Conhece bem esse Floyd Garden? Vance assentiu: — Regularmente. Ele é sócio do Far Meadows Club e muitas vezes joguei pólo com ele. É um "five goaler" e tem um par dos melhores cavalos do país. Uma vez tentei comprar um deles, mas estava fora de questão**. O fato é que o jovem Garden convidou-me diversas vezes a participar de pequeno grupo que reunia em seu apartamento, quando havia corridas fora da cidade. Parece-me que ele tem um serviço de alto-falantes diretamente da pista, como muitos outros fanáticos por corridas. O professor desaprova até certo ponto, mas não faz objeções severas porque a Sra. Garden também algumas vezes gosta de sentar-se e arriscar um palpite num cavalo.

 

 

** Houve uma época em que Vance era entusiasta do pólo e jogava freqüentemente. Também tinha um escore de 5 pontos.

 

 


— Alguma vez você aceitou esses convites? — perguntou Markham.

— Não — disse Vance. Depois ergueu a cabeça com um olhar distante. — Mas acho que teria sido uma excelente idéia.

— Vamos, vamos, Vance! — protestou Markham. — Mesmo que você veja alguma relação cifrada entre os desconexos itens do recado que você acaba de receber, como, por Deus, pode levá-lo a sério?

Vance aspirou profundamente o cigarro e esperou um momento antes de responder: — Você deixou passar uma frase da mensagem: "Equanimity é essencial" — disse por fim. — Acontece que um dos grandes cavalos de corrida, no momento, chama-se Equanimity. Faz parte do quadro dos imortais do turfe, como Man o'War, Exterminator, Gallant Fox e Reigh Count***. Além do mais, Equanimity estará correndo amanhã no Prêmio Rivermont.

 

 

*** Quando Vance leu a prova desta anotação, acrescentou na margem : "E eu deveria ter mencionado também Sir Barton, Sysonby, Colin, Crusader, Twenty Grand e Equipoise".

 

 


— Continuo não vendo qualquer razão para encarar o assunto com seriedade — objetou Markham.

Vance ignorou o comentário e acrescentou: — Além disso, o Dr. Miles Siefert****disse outro dia no clube que a Sra. Garden esteve bastante doente, durante algum tempo, com um mal misterioso.

 

 

**** Miles Siefert era, na época, um dos principais patologistas de Nova York, com uma extensa clientela entre a sociedade elegante daquela cidade.

 

 


Markham afastou a cadeira e bateu a cinza do charuto.

— Cada minuto que passa, o assunto fica mais confuso — observou irritadamente. — Qual a conexão entre todos esses dados corriqueiros e a sua preciosa mensagem telefônica? — E acenou com desprezo em direção ao papel que Vance ainda conservava na mão.

— Acontece que sei quem me mandou a mensagem — respondeu lentamente Vance.

— Ah, sim? — Markham estava obviamente céptico.

— Claro, foi o Dr. Siefert.

Markham demonstrou um súbito interesse: — Você se incomodaria em esclarecer-me como conseguiu chegar a esta conclusão? — perguntou com uma voz satírica.

— Não foi difícil — respondeu Vance erguendo-se e parando diante da lareira vazia e apoiando um braço na parte superior. — Para início de conversa, não fui chamado pessoalmente ao telefone. Por quê? Porque se tratava de alguém que receava ter sua voz reconhecida por mim. Logo, era alguém que eu conheço. Prosseguindo, a linguagem do recado ostenta a marca registrada da profissão de médico. "Tensão psicológica" e "resiste a qualquer diagnóstico" não são frases normalmente utilizadas por homens da lei, embora sejam palavras bastante correntes. E há na mensagem duas frases de tal maneira identificadoras — um fato que elimina qualquer possibilidade de coincidência. Veja um exemplo ao acaso: a palavra "rotineira" é certamente usada por qualquer classe de pessoas; mas quando vem acompanhada de outra palavra também comum, "recuperação", você pode estar tranqüilamente certo de que apenas um médico usaria a frase. Tem um significado médico bem definido, é um clichê da profissão... Avancemos mais um pouco: a mensagem supõe obviamente que eu esteja mais ou menos relacionado com a família Garden e a paixão que alimenta pelas corridas o jovem Garden. Portanto, chegamos ao resultado: quem enviou o recado é um médico que eu conheço e que está ciente de minhas relações com os Gardens. O único médico que preenche todas essas condições e que, incidentalmente, é de meia-idade, culto e altamente ponderado — não se esqueça da descrição feita por Currie — é Miles Siefert. E, acrescentemos a essa simples dedução, eu sei que Siefert é um estudioso de latim — uma vez encontrei-o nos salões da Sociedade Latina. Um outro ponto a meu favor é o fato de que ele é o médico da família Garden e teria enormes possibilidades de estar informado sobre os cavalos de corrida — e talvez sobre Equanimity em particular — no que diz respeito à família Garden.

— Sendo este o caso — protestou Markham — por que você não telefona para ele e descobre exatamente o que está por baixo de toda essa criptografia?

— Meu caro Markham, oh, meu caro Markham! — Van-ce caminhou até a mesa e pegou seu copo de conhaque temporariamente esquecido. — Siefert não somente iria repudiar com indignação qualquer conhecimento do recado, como também tornar-se-ia automaticamente o primeiro obstáculo a qualquer veleidade de indagação que eu pudesse ter. A ética da profissão médica é das mais fantásticas; e Siefert, de acordo com sua posição, é um fanático do assunto. Baseado no fato de ele comunicar-se comigo por um caminho tão sinuoso, começo a suspeitar de que esteja envolvido nisso algum ponto de honra algo grotesco. Talvez sua consciência o tenha vencido por um momento, e ele tenha temporariamente cedido em sua estreita adesão ao que ele considera seu código de honra... Não, não. Esta atitude não levaria a nada, em absoluto. Será preciso investigar o assunto por mim mesmo, como ele certamente deseja que eu o faça.

— Mas qual é o assunto que você acha estar sendo chamado a investigar? — insistiu Markham. — Admitindo tudo o que você disse, mesmo assim eu não vejo como você pode encarar a situação como tendo alguma seriedade.

— Nunca se sabe, não é? — murmurou Vance. — Além disso, eu também gosto muito de cavalos, como é do seu conhecimento.

Markham pareceu descontrair-se e ajustar seu humor à mudança de atitude de Vance.

— E que pretende você fazer? — perguntou bem humoradamente.

Vance bebeu seu conhaque e suspendeu o copo. Ergueu então o olhar desafiadoramente: — O promotor distrital de Nova York, o nobre defensor dos direitos do povo, o Meritíssimo John F.-X. Markham deve conceder-me imunidade e proteção antes que eu consinta em responder ao que me pergunta.

As pálpebras de Markham desceram um pouco enquanto observava Vance. Ele estava familiarizado com o sério significado que, às vezes, se escondia sob as mais frívolas observações do amigo.

— Você está pretendendo infringir a lei? — perguntou. Vance pegou novamente o copo em forma de lótus e o fez girar docemente entre o polegar e o indicador.

— Sim, inteiramente — admitiu com indiferença. — Ofensa passível de prisão, creio.

Markham estudou-o durante mais alguns momentos.

— Está bem — disse sem o menor indício de leviandade — farei o que puder por você. De que se trata?

Vance tomou mais um trago do Napoléon.

— Bem, Markham, meu caro — anunciou com um meio sorriso. — Vou à cobertura dos Gardens amanhã à tarde e jogarei nos cavalos com a jovem guarda.

 

 

 

 

II

 

Revelações Domésticas

 

 


(Sábado, 14 de abril — 12:00 horas)

 

 

Naquela noite, assim que Markham nos deixou, mudou a disposição de Vance. Um olhar preocupado velou seus olhos e ele pôs-se a caminhar pensativamente, de um lado para o outro da sala.

— Isto não me agrada, Van — murmurou ele, como se falando com os seus botões. — Isto não me agrada. Siefert não é o tipo de homem capaz de dar um telefonema misterioso como esse, a menos que tenha uma excelente razão para fazê-lo. É inteiramente fora do seu gênero, entende? Ele é um sujeito extremamente conservador e exageradamente amante da ética. Deve haver alguma coisa que o está preocupando profundamente. Mas, por que o apartamento dos Gardens? A atmosfera doméstica de lá sempre me pareceu ser pelo menos superficialmente normal, e agora um sujeito tão digno de crédito como Siefert fica todo excitado a ponto de servir-se de uma técnica de folhetim. É diabolicamente esquisito.

Ele parou de caminhar e olhou para o relógio: — Acho que vou tomar algumas providências. Uma certa dose de bisbilhotice é altamente indicada.

Dirigiu-se à antessala e um momento depois eu o ouvi discando um número de telefone. Quando voltou à biblioteca parecia ter jogado fora a depressão. Sua atitude era quase petulante.

— Estamos convidados para um abominável almoço amanhã, Van — anunciou servindo-se de outra dose de conhaque. — E teremos que nos torturar com os comestíveis na hora mais revoltante possível: meio-dia. Que hora para ingerir até mesmo a melhor das iguarias! — suspirou. — Vamos almoçar com o jovem Garden em seu apartamento. Woody Swift estará lá e também uma criatura insuportável chamada Lowe Hammle, um rústico cavalheiro de alguma remota propriedade em Long Island. Mais tarde, virão juntar-se a nós diversos componentes da classe esportiva e, juntos, nos deleitaremos com o antigo e fascinante passatempo de apostar nos puros-sangues. Isto pelo menos, haja o que houver, poderá ser realmente divertido...

Tocou a campainha chamando Currie e enviou-o à rua para buscar um exemplar de The Morning Telegraph.

— Temos que estar preparados, pelo menos um pouco. Já faz muito tempo que não jogo nos cavalos. Ah, juventude ingênua! Mas há alguma coisa com os potros que parece entrar no sangue das criaturas e brinca de destruir os mais sadios conselhos da inteligência*. Acho que vou vestir um roupão.

 

 

* Houve uma época em que Vance possuiu vários excelentes cavalos de corrida. Seus Magic Mirror, Smoke Maiden e Aldeen eram todos bem conhecidos em seu tempo; Magic Mirror, com 3 anos, ganhou três dos mais importantes prêmios das pistas do Leste. Mas no famoso Elmswood Special, quando este cavalo quebrou uma perna ao entrar na reta final e teve de ser destruído, Vance pareceu perder todo o interesse pelas corridas e desfez-se de todo o haras. Ele provavelmente não é um autentico criador de cavalos da mesma forma que também não é para Scottish Terriers, porque seus sentimentos estão constantemente interferindo com as severas e geralmente implacáveis regras de jogo.

 

 

 


Ele terminou seu Napoléon fazendo-o render com satisfação, e desapareceu no quarto de dormir.

Embora eu estivesse perfeitamente ciente de que Vance tinha em vista algum objetivo sério para querer almoçar com o jovem Garden no dia seguinte e participar das apostas nos páreos, naquela ocasião eu nem sequer suspeitava dos horrores que iam acontecer dali em diante. Na tarde de 14 de abril aconteceu o primeiro ato repugnante de um dos mais atrozes crimes múltiplos desta geração. E ao Dr. Siefert deve ser dado o maior crédito na identificação do criminoso, porque, se ele não tivesse mandado a Vance mensagem cifrada e pretensamente anônima, a verdade provavelmente jamais seria conhecida.

Nunca esquecerei aquela fatal tarde de sábado. E, além do brutal assassínio de Garden, aquela tarde será sempre relembrada por mim, porque marcou o primeiro episódio sentimental na vida adulta de Vance de que eu tivesse conhecimento. Pela primeira vez, a fria atitude impessoal de seu espírito analítico dissolveu-se frente a uma mulher atraente.

Vance estava acabando de voltar à biblioteca vestindo seu roupão de seda vermelho-escuro quando Currie trouxe o Telegraph. Pegou o jornal e abriu-o na escrivaninha, diante de si. Tudo indicava que estava num estado de espírito despreocupado.

— Alguma vez você apostou nos potros, Van? — perguntou tomando de um lápis e pegando um pequeno bloco.

— É uma ocupação tão absorvente quanto fútil. Pelo menos um conjunto de considerações técnicas entram nos cálculos: a categoria do cavalo, idade, filiação, peso que deve levar, um resumo de suas atuações anteriores, o tempo feito em outras corridas, o jóquei que o vai montar, o tipo de páreo com que está acostumado, as condições da pista, se o cavalo é lameiro ou não, sua posição na largada, a distância do páreo, o valor do prêmio e uma dezena de outros fatores, que, quando somados, subtraídos, colocados frente à frente, e eventualmente comparados por meio de um complicado sistema matemático de verificação e contraverificação, dão a você o que se supõe serem as exatas possibilidades de um cavalo vencer a corrida. Entretanto, tudo isso é completamente inútil. Menos de 40% dos favoritos — isto é, de cavalos que devem vencer no papel — confirmam o resultado desses cálculos. Jim Dandy, por exemplo, bateu Gallant Fox nos Travers e pagou 100 por um; e o teoricamente invencível Man o'War perdeu uma corrida para um pangaré chamado Upset. Depois de todas as complicadas interpretações, as corridas de cavalos continuam sendo um simples caso de sorte, tão imprevisível como a roleta. Mas nenhum aficionado comprará uma só pule enquanto não tiver verificado toda a maravilhosa conversa fiada dos informantes. É um pouco mais que abracadabra, mas é três vezes mais divertido.

Ele me lançou um olhar divertido: — E é por isso que eu vou ficar aqui sentado por mais uma ou duas horas, no mínimo, satisfazendo uma das minhas velhas fraquezas. Irei amanhã à casa dos Gardens com todos os páreos perfeitamente estudados, e você provavelmente fará uma escolha ao acaso e colherá os louros da inocência. — Acenou a mão com satisfação: — Ciao!

Voltei para casa com uma sensação de mal-estar.

Na manhã seguinte, pouco antes do meio-dia, chegamos ao lindo apartamento dos Gardens, onde fomos cordial e um tanto exuberantemente saudado por Floyd.

Ele era um homem com pouco mais de 30 anos, ereto e de compleição atlética. Deveria ter cerca de 1,90 m, ombros largos e cintura fina. O cabelo era quase preto e a pele morena. Suas maneiras, embora simples e não afetadas e com uma ponta de basófia, não eram de modo algum ofensivas. Não era um homem simpático: suas feições muito grosseiras, os olhos muito próximos um do outro, orelhas demasiado salientes, e lábios excessivamente finos. Mas tinha um encanto inegável, possuindo reações mentais rápidas. Certamente não era um intelectual e, mais tarde, quando conheci sua mãe, verifiquei imediatamente que os traços hereditários lhe tinham sido legados pelo lado materno.

— Somos apenas nós cinco para o almoço, Vance — observou calmamente. — O meu velho está na Universidade remexendo em seus tubos de ensaio e bicos de Bunsen; a Mama está divertindo-se à grande, fingindo-se doente, com médicos e enfermeiras correndo como loucos para cá e para lá, arrumando seus travesseiros e acendendo-lhe os cigarros. Mas Pop Hammle virá; é uma ave bastante rara, mas boa praça; e nós também seremos amolados pelo meu amado primo Woody que tem a fronte de alabastro e o coração de um esquilo. Vance, você conhece Swift, eu creio. Se me recordo bem, vocês uma vez passaram toda uma noite aqui discutindo sobre o verde Ming. Um chato divertido, esse Woody.

Meditou um instante fazendo uma careta:

— Não posso conceber como é que ele se adapta à família. Papai e Mamãe parecem gostar dele excessivamente, azar o dele, talvez. Ou talvez ele seja o tipo de rapaz sério, sensato que eles gostariam que eu fosse. Não desgosto de Woody, mas temos pouquíssimas coisas em comum, exceto cavalos. Só tem que, para o meu gosto, ele leva suas apostas demasiadamente a sério: bem, ele não tem muito dinheiro, e suas perdas e ganhos significam muito para ele. Naturalmente, no final estará falido, mas eu duvido que venha a fazer muita diferença para ele. Meus queridos pais, pelo menos um deles, alisarão sua fronte com uma das mãos, enquanto com a outra encherão seus bolsos. Se eu viesse a quebrar em conseqüência deste vício por cavalos, eles me diriam para tratar de ir dando o fora e arranjar trabalho.

 

 

 

 

 

 

 

Riu de bom grado, mas com um certo laivo de amargura.

— Mas, puxa vida! Vamos entornar um copo antes da comida.

Apertou um botão perto do arco que dava para o salão e um mordomo muito corpulento e correto apareceu com uma bandeja de prata guarnecida com garrafas, copos e gelo.

Vance estivera disfarçadamente observando Garden durante aquele incoerente recital de intimidades domésticas. Pude ver que ele estava tanto desnorteado como aborrecido com as confidencias: eram de um mau gosto evidente. Depois de servidas as bebidas, Vance voltou-se friamente para ele: — Diga, Garden, — perguntou de um modo casual — para que todo esse mexerico doméstico? Você sabe, realmente, isso não se costuma fazer.

— Minha rata social, velho — desculpou-se prontamente Garden. — Mas eu queria que você compreendesse a situação para que pudesse ficar à vontade. Sei que você detesta mistérios e é bem possível que algumas coisas engraçadas aconteçam aqui esta tarde. Se você estiver familiarizado com o ambiente, elas não o incomodarão tanto.

— Muitíssimo grato e tudo o mais — murmurou Vance — talvez eu compreenda a sua idéia.

— Nas duas últimas semanas, Woody vem agindo de uma maneira estranha — continuou Garden — como se uma tristeza secreta estivesse roendo o seu espírito. Parece mais pálido que nunca. De repente torna-se mal-humorado e desatento, sem nenhuma razão aparente. Quero dizer que ele age como se fosse um lunático. Talvez esteja apaixonado. Mas ele é um pateta muito fechado. Ninguém jamais saberá, nem mesmo o objeto de sua afeição.

— Algum sintoma psicopático específico? — perguntou Vance brincando.

— Na-ão — Garden apertou os lábios e franziu a testa pensativamente. — Mas ele pegou uma mania curiosa de subir para o terraço imediatamente após ter feito uma grande aposta e lá fica sozinho até que seja comunicado o resultado do páreo.

— Nada de muito extraordinário nisso — Vance fez um gesto de protesto. — Muitos jogadores são assim, você sabe. O elemento emocional, entende? Não suportam §er observados quando chega o resultado. Têm medo de desabar. Preferem recompor a aparência antes de enfrentar a multidão. Simples sensibilidade. É, é isso. Especialmente se o resultado da aposta significa muito para eles... Não, não... Eu não diria que o fato de seu primo retirar-se para o terraço em tais momentos de tensão seja digno de nota, depois de tudo o que você contou a seu respeito. Na realidade é bastante lógico.

— Você provavelmente está certo — admitiu Garden com relutância — mas eu gostaria que ele apostasse com moderação em vez de se atirar de cabeça, como um louco, cada vez que ele se entusiasma por um cavalo.

— Por falar nisso — perguntou Vance — por que você espera especialmente que haja estranhas ocorrências esta tarde?

Garden sacudiu os ombros.

— O fato é que — explicou após uma pequena pausa — Woody vem tendo pesadas perdas ultimamente e hoje é o dia do Grande Prêmio Rivermont. Tenho o pressentimento de que vai botar até o seu último dólar em Equanimity, que, indubitavelmente, é o seu favorito... Equanimity — bufou, com indisfarçável desprezo. — Aquele pangaré cerqueiro! Provavelmente o segundo grande cavalo dos tempos modernos, mas, de que serve? Quando ele entra, está pronto para ser desclassificado. Tem madeira no cérebro: é louco por cercas. Ponham uma cerca no meio da pista, a uma milha de distância, sem barreiras à direita ou à esquerda, e ele é bem capaz de cobrir a distância em minuto e meio, fazendo com que Jamestown, Roamer e Wise Ways pareçam aleijados*. Teve que ceder a vitória para Vanderveer no Youthful Stakes. Em Bellaire, ele cortou a frente de Persian Bard, em direção à cerca; e foi desclassificado pela mesma razão no Colorado, entregando o páreo para Grand Score. No Prêmio Urban, tentou o mesmo mergulho para a cerca, resultando na vitória de Roving Flirt por meia cabeça... Como se pode saber como Equanimity vai comportar-se? Não é mais um cavalo novo, tendo perdido ao todo dezoito páreos. Hoje, ele vai competir com alguns potros duros, alguns dos maiores corredores nacionais e estrangeiros. Eu diria que ele é um azar e, no entanto, sei que esse maluco do meu primo vai arriscar nele tudo o que possui. — E Floyd ergueu o olhar solenemente: — E isto, Vance, significa problemas, se Equanimity não vencer. Será um tremendo golpe. Faz uma semana que estou sentindo a coisa se aproximando. Tenho estado preocupado. Para dizer a verdade, estou satisfeito por você ter escolhido este dia para vir jogar conosco.

 

 

* Esses três cavalos eram os melhores, com diferenças de fração de segundo para o recorde de Jack High na milha de Belmont.

 

 

 


Vance, que estivera ouvindo atentamente e observando Garden bem de perto enquanto falava, caminhou até à janela, onde ficou a fumar pensativamente com os olhos em Riverside Park, situado 30 andares abaixo.

— Situação muito interessante — comentou por fim. — De um modo geral, concordo com o que você diz sobre Equanimity. Mas acho que está sendo muito rigoroso; além disso, não estou muito convencido de que seja um pangaré cerqueiro só porque tem uma paixão imoderada pelos paus. Equanimity sempre teve pés rachados, com uma ou duas fendas e, em conseqüência disse, freqüentemente perde as ferraduras. Ainda por cima, teve uma perna direita muito prejudicada e que, quando começou a doer, no final de um páreo bastante duro, obrigou-o a ir de encontro à cerca. Mas é um grande cavalo. Faz sempre o que o jóquei exige, em qualquer percurso e tipo de pista. Aos dois anos de idade, foi o vencedor de sua classe, aos três já apresentava problemas com uma das patas e só três vezes tomou a dianteira. Aos quatro anos, voltou de pata nova e ganhou dez corridas importantes. O que há de notável em Equanimity é que ele tanto podia sair disparado e ganhar o Prêmio Bill Daly, como podia vir lá de trás e ganhar na reta final. No Prêmio Futurity, quando ele se manteve na traseira e entrou na reta final em último lugar, perdeu duas ferraduras e, apesar disso, ultrapassou Grand Score e Sublimate para vencer disparado. Era uma pata doente que o impedia de ser o mais notável campeão.

— Bem, e daí? — retrucou dogmaticamente Garden. — Desculpas são fáceis de se achar e sei, como você afirma, ele tem uma pata doente, aí está mais uma razão para não se jogar nele.

— Exatamente — concordou Vance. — Eu próprio não gastaria um centavo com ele neste páreo. Ontem à noite, depois que falei com você, passei algum tempo estudando os prognósticos e resolvi deixar Equanimity de lado na corrida de hoje. Meu sistema de fazer apostas é, sem dúvida alguma, tão idiota quanto qualquer outro, mas não levo fé nele.

— Que cavalo prefere você? — perguntou Garden interessado.

— Azure Star.

— Azure Star! — Garden parecia tão desdenhoso quanto admirado. — Ora, ele é praticamente um azar. Pagará 12 ou 15 por 1. Dificilmente se encontrará no país um selecionador que lhe dê uma oportunidade. Um ex-saltador dos pântanos da Irlanda! Suas pernas estão tão cansadas de saltar que agora tem dificuldade em regular a andadura. Ainda mais para a milha e quarto de hoje! Impossível! Pessoalmente, prefiro arriscar meu dinheiro em Risky Lad. Aí está um cavalo com grandes possibilidades.

— Risky Lad não merece crédito — disse Vance. — Azure Star derrotou-o facilmente este ano em Santa Anita. Risky Lad entrou liderando na reta final e se cansou, terminando em quinto lugar. E ele certamente não correu uma boa milha na mesma pista quando chegou novamente em quinto lugar num páreo de sete. Se bem me recordo, ele decepcionou no Clássico do ano passado. Sua resistência é muito instável, no que me parece...

Vance suspirou e sorriu: — Bom, bom, chacun à son cheval... Mas como você estava dizendo, a situação psicológica aqui nas vizinhanças deixou você preocupado. Aposto que há uma atmosfera super-carregada aqui neste encantador ninho de águias.

— E isso mesmo — respondeu Garden quase com impaciência. — Super-carregada é a expressão exata. Quase que diariamente a Mama pergunta: "Como está Woody?", e à noite, quando o velho volta do seu laboratório ele me cumprimenta de um modo meio esquerdo: "Alô, meu rapaz, você viu Woody hoje?"... Agora eu, poderia morrer coberto de lepra e nem sequer suscitaria a menor preocupação nos meus ancestrais mais próximos.

Vance não comentou essas palavras. Ao contrário, perguntou com uma voz particularmente sem expressão: — Você considera esta recente hipertensão no ambiente doméstico como sendo inteiramente devido aos apuros financeiros do seu primo e em sua determinação de arriscar tudo o que tem nos cavalos?

Garden começou a erguer-se e então deixou-se cair novamente na poltrona. Depois de tomar um outro gole, limpou a garganta.

— Não, bolas! — respondeu com veemência. — E isto é outra coisa que me aborrece. Uma boa parte das chateações que temos tido ultimamente são por causa das maluquices do Woody; mas há outros estranhos animais invisíveis saltando para cima e para baixo pelos corredores. Não posso imaginar o que seja. A doença da Mama também não tem razão de ser, e o Dr. Siefert age como um pomposo Buda quando eu abordo o assunto. Cá entre nós, eu não creio que ele próprio saiba o que fazer. E há ainda encrencas com a gang que se reúne aqui quase todas as tardes para jogar nas corridas. São rapazes corretos, sem dúvida, pertencem ao "nosso meio", como se costuma dizer, e são oriundos de ambientes eminentemente respeitáveis, se bem que...

Nesse instante, ele ouviu o som de passos leves aproximando-se no corredor e sob o arco que constituía a separação entre o vestíbulo e a sala de estar, surgiu um pálido e delgado rapaz, de aproximadamente 30 anos, a cabeça enterrada nos ombros levemente encurvados e com uma expressão melancólica e ressentida em seu rosto triste e sensível. Um pince-nez de lentes grossas aumentava ainda mais a impressão de fraqueza física. Garden acenou alegremente para o recém-chegado.

— Salve, Woody. Bem na hora para um gole antes do almoço. Você conhece Vance, o eminente perdigueiro; e este é o Sr. Van Dine, seu paciente e reservado cronista.

Woody Swift tomou conhecimento de nossa presença de um modo tenso, porém agradável, e distraidamente apertou a mão do primo. Em seguida, apanhou a garrafa de Bourbon, serviu-se de uma dose dupla que bebeu de uma só vez.

— Santo Deus! — exclamou Garden bem-humorado. — Como você mudou, Woody!... Quem é a dama do momento?

Os músculos do rosto de Swift contorceram-se como se ele tivesse tido uma dor repentina: — Deixe-se de tolices, Floyd! — respondeu irritado. Garden deu de ombros com indiferença.

— Desculpe. Qual é a sua preocupação de hoje, além de Equanimity?

— Isto já é mais que suficiente para um dia — Swift conseguiu dar um sorriso encabulado; depois acrescentou com agressividade: — Não posso perder de jeito algum — e serviu-se de uma outra dose. — Como vai Tia Marta?

Garden entrecerrou os olhos.

— Vai muito bem. Nervosa como o diabo esta manhã e fumando um cigarro atrás do outro. Mas está-se levantando. Provavelmente virá mais tarde para arriscar um ou dois palpites nos cavalinhos saltitantes...

A esta altura chegou Lowe Hammle. Era um homem corpulento, baixo, cerca de 50 anos, com uma cara redonda e corada, cabelo grisalho cortado rente. Usava terno xadrez preto e branco, uma camisa cinzenta, uma gravata borboleta de um verde brilhante, um colete cor de chocolate com botões de couro e botinas marrom com solas demasiadamente grossas.

— O mestre dos caçadores! — saudou-o Garden efusivamente.

— Aqui está seu uísque com soda. E aqui também estão o Sr. Philo Vance e o Sr. Van Dine.

— Encantado, encantado! — exclamou calorosamente Hammle avançando em nossa direção. Estendeu a mão efusivamente para Vance. — Já faz bastante tempo desde que o vi pela última vez, Sr. Vance... vejamos... Ah, sim. Broadbank. O senhor estava caçando comigo naquela manhã. Que tombo feio levou. Eu bem o avisei de início que aquele cavalo não sabia vencer as cercas. Mas o senhor estava lá na hora do sacrifício, puxa vida! Lembra-se?

— Perfeitamente. Bela caçada. Uma bela raposa. Nunca esperei que o senhor a desalojasse daquele fosso para atirá-la aos dentes da matilha depois de todo o prazer que ela nos proporcionou*. — A atitude de Vance era glacial, evidentemente ele não gostava do indivíduo; voltou-se imediatamente para Swift e começou a tagarelar alegremente sobre o grande prêmio do dia. Hammle tratou de ocupar-se com o copo de uísque.

 

 

 

*Nos EUA, onde as tocas não são obstruídas, de cada vinte raposas apenas uma é sacrificada e é muito mal visto e até mesmo considerado como falta de espírito esportivo obrigar uma raposa a sair da toca em que se refugiou para matá-la. Mas isto se faz comumente na Inglaterra, por diversas razões. Eventualmente, um mestre norte-americano imita os ingleses com o fim de vangloriar-se de que matou a raposa e não apenas pensou tê-lo feito.

 

 

 


Pouco depois, o mordomo anunciou o almoço. A refeição foi pesada e insípida, assim como o vinho era de uma safra duvidosa. Vance estava bem certo no seu prognóstico.

A conversa foi quase que inteiramente dedicada aos cavalos, à história do turfe, o Grande Prêmio Nacional, e as possibilidades dos vários concorrentes ao Prêmio Rivermond. Garden foi dogmático, porém especialmente agradável e informativo ao externar suas opiniões: ele havia feito um cuidadoso estudo dó turfe moderno e, além disso, tinha uma memória surpreendente.

Hammle era loquaz e amável, e voltava ao assunto das velhas glórias do turfe e das famosas corridas empatadas: Attila e Acrobat no Prêmio Travers; Springbok e Preakness na Taça Saratoga, St. Gatien e Harvester no Derby Inglês, Pardee e Joe Cotton em Sheepshead Bay, Kingston e Yum-Yum em Gravesen, Los Angeles e White no Derby Letônia*, Domino e Dobbins em Sheepshead Bay, novamente Domino e Henri de Navarre em Gravesend, Arbuckle e George Kessler no Hudson Stakes, Sysonby e Race King no Prêmio Metropolitano, Macaw e Nedana em Aqueduct e Morshion e Mate, também em Aqueduct. Ele falou das grandes quedas nas pistas — tanto aqui como no estrangeiro — e da remota conquista do Derby de Epson por um desconhecido sem nome, denominado "Fidget Colt"; da única vitória de Amato sobre Grey Momus, quarenta e um anos depois; da feliz vitória de Aboyeur em 1913, quando Craganour foi desclassificado; e da recente vitória de 5 de abril. Discutiu também o Derby de Kentucky — o inesperado sucesso de Day Star como resultado do fraco desempenho apresentado por Himyar, e o trágico fracasso de Proctor Knott. E falou também da grande estratégia de Snapper Garrison em trazer para casa o Boundless no Derby da Feira Mundial de 1893, e as duas felizes carreiras de Plucky Play quando venceu Equipoise no Prêmio Arlington e sobre Faireno no Hawthorne Gold Cup. Ele mencionou a fatal corrida de Coltiletti montando Sun Beau em Água Caliente, perdendo a carreira para Mike Hall. Tinha um fundo de informações históricas e, apesar de seus preconceitos, conhecia bem o assunto.

 

 

 

* Lucky Baldwin, o proprietário de Los Angeles, insistiu em uma disputa final (que em 1932 era privilégio dos proprietários de cavalos empatados em primeiro lugar) e Los Angeles venceu.

 

 

 


Swift, nervoso e um tanto impaciente, tinha pouca coisa a dizer e, embora parecendo estar atento, deu-me a impressão que outros assuntos mais importantes o estavam preocupando. Comeu pouco e bebeu vinho demais.

Vance contentou-se principalmente em ouvir e estudar os outros componentes da mesa. Quando por fim falou, foi para lamentar alguns grandes cavalos que recentemente haviam sido sacrificados por motivo de acidente. Black Cold, Springstell, Chase Me, Dark Secret e outros. Comentou a trágica e inesperada morte de Victorian, após sua corajosa recuperação e o acidental envenenamento do grande australiano Phar Lap.

Estávamos chegando ao fim do almoço quando uma mulher alta e bem feita de corpo, aparentemente saudável, e que não parecia ter mais de quarenta anos (embora mais tarde eu viesse a saber que há muito passara dos cinqüenta), entrou na sala. Usava um tailleur, uma estola de raposa prateada e um chapéu de feltro preto.

— Alô — exclamou Garden. — Julguei que ainda estivesse na cama. Qual a razão dessa explosão de saúde e energia?

E então apresentou-me sua mãe; Vance e Hammle já eram seus conhecidos.

— Estou cansada de ficar na cama — disse ela para seu filho, depois de acenar cortesmente para os outros. — Agora, rapazes, estejam à vontade. Vou fazer umas compras; passei aqui apenas para ver se tudo estava em ordem... Acho que vou tomar um creme de menthe frappée, já que estou aqui.

O mordomo colocou uma cadeira para ela ao lado de Swift e dirigiu-se à copa.

A Sra. Garden tocou levemente o braço do sobrinho: — Como vão as coisas, Woody? — perguntou-lhe com ternura, e sem esperar resposta, voltou-se novamente para Garden. — Floyd, quero que aposte para mim no grande páreo de hoje, caso eu não volte a tempo.

— Diga o nome do seu "azar" — sorriu Garden.

— Grand Score, ponta e placê; os cem do costume.

— Fechado, Mama, — Garden olhou sardonicamente para o primo — apostas menos inteligentes que esta já foram feitas aqui nos últimos tempos... Está certa de que não quer Equanimity, Mama?

— As chances são muito desfavoráveis — replicou a Sra. Garden, com um sorriso perspicaz.

— No jornal de ontem, ele estava cotado a cinco para dois.

— Mas não vai ficar assim — havia autoridade e segurança no tom e nas maneiras daquela mulher. — E eu terei oito ou dez por um com Grand Score. Ele foi um dos maiores nos seus primeiros tempos e a velha chama ainda pode existir, se ele não mancar como aconteceu no mês passado.

— Absolutamente certa — riu Garden. — Você está no páreo com cem para placê e vencedor.

O mordomo trouxe o creme de menthe; a Sra. Garden tomou-o e ergueu-se.

— Agora vou indo — anunciou prazenteiramente; deu uma pancadinha nas costas do sobrinho: — Cuide-se bem, Woody... Boa tarde, senhores.

E saiu com um passo firme e masculino.

Após um meloso baba au rhum, Garden abriu caminho em direção à sala de estar e o mordomo seguiu-o em busca de instruções.

— Sneed — ordenou Garden — prepare o ambiente como de costume.

Olhei para o relógio elétrico em cima da lareira: eram exatamente uma hora e dez minutos da tarde.

 

 

 

 

III

 

 

As Corridas de Rivermont

 

 


(Sábado, 14 de abril — 13:10 horas)

 

 

"Preparar o ambiente" era processo relativamente simples, porém uma operação mais ou menos misteriosa para qualquer pessoa não familiarizada com o objetivo da coisa. De um pequeno armário embutido, Sneed fez sair uma pesada estante de madeira, montada sobre rodinhas, medindo cerca de setenta centímetros. Sobre a estante colocou um telefone ligado a um alto-falante que mais parecia um pequeno aparelho de rádio. Como vim a saber mais tarde, tratava-se de um amplificador especialmente feito de modo a permitir que os presentes ouvissem perfeitamente tudo o que estava sendo transmitido pelo telefone.

Em um dos lados do amplificador estava instalada uma pequena caixa de metal com uma chave de duas posições. Quando voltada para cima, a chave cortava o som na outra extremidade da linha, sem interferir com a ligação; e abaixando-se a chave, voltava a voz novamente.

— Eu costumava usar fones individuais para a turma — contou-nos Garden, enquanto Sneed empurrava a estante de encontro à parede ao lado do arco e ligava as extensões dos fios nas tomadas instaladas no rodapé.

Em seguida o mordomo trouxe uma bem feita mesa de jogo, portátil, que abriu ao lado da estante. Sobre a mesa, colocou um outro telefone de tipo francês, ou seja, manual. Esse aparelho, de cor cinza, foi ligado numa outra tomada no rodapé. O telefone cinza não foi ligado ao outro dotado de um amplificador, mas tinha uma linha independente.

Após instalar e testar os dois aparelhos, Sneed trouxe mais quatro mesas de jogar e distribuiu-as por toda a sala de estar. Ao lado de cada mesa, ele abriu duas cadeiras de armar. Depois, de uma pequena gaveta escondida na estante, retirou um grande envelope de papel pardo, que evidentemente viera pelo correio e, rasgando um dos lados, dele extraiu um certo número de grandes folhas impressas, de aproximadamente 0,23 x 0,40 cm. Havia quinze dessas folhas que na linguagem do turfe são chamadas de fichas; depois de arrumá-las, distribuiu três em cada mesa. Dois lápis bem apontados, uma caixa de cigarros bem provida, fósforos e cinzeiros completavam o equipamento de cada mesa. Havia um item extra na mesa onde estava o telefone cinzento: um livro-registro com marcas de ter sido muito folheado.

A última tarefa de Sneed em sua função de "preparar o ambiente" foi abrir as portas de um amplo e baixo móvel situado em um dos cantos do salão, e que revelou uma miniatura de bar.

Uma palavra a respeito das fichas; essas folhas eram praticamente uma duplicata do programa que se recebe num hipódromo, com a diferença de que, em lugar de estar cada páreo em uma página separada, todos os páreos corridos em uma mesma pista estavam impressos um a um, numa só página. Naquele mês havia apenas três pistas em funcionamento e as três fichas dispostas em cada mesa eram o equivalente dos três programas correspondentes. Cada uma das colunas impressas abrangia uma corrida, dando a posição dos cavalos*, o nome de cada inscrição e o peso de cada um. No alto de cada coluna estava o número e a distância de cada páreo e embaixo havia linhas em branco para anotações dos jogadores. À esquerda de cada coluna havia um espaço para os palpites; e entre os nomes dos cavalos havia espaço suficiente para escrever os nomes dos jóqueis, à medida que iam sendo anunciados.

 

 

*Nas "fichas" do Estado de Nova York, entretanto, os números não correspondem às posições no starting-gate, enquanto que aqui essas posições são sorteadas pouco antes do início das corridas, exceto nas corridas onde há apostas.

 

 


Depois de ter arrumado tudo, Sneed preparava-se para deixar a sala, mas hesitou de maneira bem significativa. Garden sorriu amplamente e, sentando-se à mesa onde estava o telefone cinza, abriu o pequeno registro à sua frente e pegou um lápis.

— Está bem, Sneed, — disse — em que cavalo você quer perder hoje o seu dinheiro ganho tão facilmente?

Sneed tossiu discretamente.

— Se não se incomodar, senhor, eu gostaria de arriscar cinco dólares em Roving Flirt.

Garden fez uma anotação no livro.

— Está bem, Sneed, você fica com cinco em Roving Flirt.

Com um "obrigado, senhor" em tom de escusa, o mordomo desapareceu na sala de estar. Depois que ele saiu, Garden olhou para o relógio e apanhou o telefone ligado ao amplificador.

— O 19 páreo de hoje — disse — é às 14:30 e eu acho melhor fazer a ligação já. Lex* vai entrar dentro de alguns minutos; e o pessoal gostará de saber tudo e mais alguma coisa ao chegar com suas costumeiras grandes esperanças e ilusões.

 

 

 

* Alexis Flint era o locutor da central de informações.

 

 


Levantou o fone do gancho e discou um número. Após uma pausa, falou no transmissor: — Alô, Lex. B.2-9-8. Estamos à espera das informações. — E deixando o fone sobre a estante, moveu a chave para frente.

Uma voz nítida e clara fez-se ouvir no amplificador: "O.K., B-2-9-8."

Depois houve um estalido seguido de diversos minutos de silêncio. Finalmente, a mesma voz começou a falar: "Fiquem todos a postos. Hora exata: 1 hora, trinta minutos e quinze segundos. Três pistas hoje, na seguinte ordem: Rivermont, Texas e Cold Springs. Exatamente como estão nas fichas. Aí vão: Rivermont, tempo claro, pista leve. Claro e leve. Primeira partida, 2:30. E agora, seguindo a linha. 1º páreo: 20, Barbour; 4, Gates; 5, Lyon; 3, Shea; 2, forfaits; 3, Denham; 20, Z. Smythe. Eu disse S-m-y-t-h-e-; 10, Gilly; 10, Deel, 15, Carr. E o 2º páreo: 4, Elkind; 20, Barbour; 4, Carr; 20, Hunter; 10, Shea; forfait nº 6; 20, Gedney e com o peso de 116; forfait nº 8; 3 a 5 Lyon; 4, Martinson. E o 3? páreo: O favorito é 10, com Huron; dois forfaits; 20, Denham; 20, J. Briggs — quer dizer Johnny Briggs; 20, Hunter; 4, Gedney; paga o mesmo, Deel; 20, Landseer. E agora o 4? páreo, o Prêmio Rivermont. O favorito é o 8, com Shelton; 15, Denham; 10, Redman; 6, Baroco; 20, Gates; 20, Hunter; 6, Cressy; 5, Barbour; 12, J. Briggs — isto é, Johnny Briggs; 5, Elkind; 4, Martinson; forfait ri? 12; 20, Gilly; 2/12, Birken. E o 5?: 6, Littman; 12, Huron"...

A voz incisiva continuou com os palpites, os jóqueis os forfaits das outras corridas em Rivermont. À medida que iam sendo anunciados, Garden preenchia suas fichas rapidamente. Quando a última linha do páreo final de Rivermont foi preenchida, houve uma ligeira pausa. Depois continuaram as informações: "Agora vamos para o Texas. No Texas, tempo encoberto e pista pesada. Encoberto e pesada. No 1?: 4, Burden; 10, Lansing..."

Garden inclinou-se e desligou a chave do amplificador e fez-se um silêncio na sala.

— Quem está ligando para o Texas? — observou negligentemente, erguendo-se da cadeira e espreguiçando-se. — De qualquer forma, aqui ninguém joga naqueles pangarés. Mais tarde pegarei as informações de Cold Springs. Se eu não o fizer, certamente alguém virá perguntar, só para contrariar. — Virou-se para o primo: — Por que você não leva Vance e o Sr. Van Dine para cima e mostra-lhes o jardim? Eles podem estar interessados em seu retiro solitário no telhado, onde você vai ouvir o seu destino — acrescentou com um certo sarcasmo bem humorado. — Sneed, provavelmente, já arrumou tudo para você.

Swift ergueu-se com vivacidade.

— Tremendamente honrado com a oportunidade — retrucou asperamente. — Sua atitude hoje me aborrece bastante, Floyd. — E dirigiu-se através do vestíbulo e escada acima até o terraço, seguido por mim e Vance. Hammle, que se instalara em uma poltrona, armado de um uísque com soda, ficou para trás com o nosso anfitrião.

A escada era estreita e semicircular e começava no vestíbulo perto da porta de entrada. Olhando lá de cima em direção à sala de estar, notei que parte alguma da sala podia ser vista da extremidade superior da escada. Naquela ocasião fiz a observação, descuidadamente, mas agora eu o menciono aqui porque o fato representou um papel definitivo nos trágicos acontecimentos que viriam a seguir.

 

 

 

 

 

 

 

No topo da estreita escada, viramos à esquerda em um corredor, com pouco mais de um metro de largura, em cuja extremidade havia uma porta que conduzia a uma larga sala: a única do terraço.

O espaçoso e bem decorado estúdio, com amplas janelas nos quatro lados, era usado pelo professor Garden, segundo informação de Swift, como biblioteca e laboratório experimental.

Próximo à porta desta sala, na parede esquerda do corredor, havia uma outra, que, eu soube mais tarde, dava para um pequeno depósito, construído pelo professor para guardar seus documentos.

Na metade do corredor, à direita, havia uma outra porta, que dava para o terraço. Esta porta fora aberta de par em par porque fazia um tempo ótimo. Swift precedeu-nos em um dos mais lindos jardins de cobertura que vi em toda a minha vida. Cobria uma área de cerca de treze metros quadrados e estava situado exatamente em cima da sala de estar, da saleta e do hall de entrada. No centro, havia um lindo lago de pedras. Ao longo da baixa amurada de tijolos havia fileiras de alfenas e sempre-vivas. Do outro lado, havia canteiros de flores, onde os crocus, tulipas e jacintos já estavam floridos, numa explosão de cores. A parte do jardim mais próxima ao estúdio era coberta por alegre toldo fixo, e diversos e confortáveis móveis de jardim estavam colocados à sua sombra.

Passeamos tranqüilamente pelo jardim, fumando. Vance parecia profundamente interessado em duas ou três sempre-vivas de uma espécie rara, e conversava despreocupadamente sobre o assunto. Finalmente virou-se, caminhou em direção ao toldo e sentou-se em uma cadeira voltada para o rio. Swift e eu fomos ao seu encontro. A conversa era desconexa. Swift era um homem difícil de se conversar e, à medida que o tempo passava, ele se tornava cada vez mais distrait. Depois de algum tempo, levantou-se nervosamente e caminhou até à outra extremidade do jardim. Apoiando os cotovelos na amurada, ele olhou durante diversos minutos para o Riverside Park lá embaixo; depois, com um movimento brusco e repentino, quase como se tivesse sido atingido por alguma coisa, endireitou-se e voltou até nós. Deu uma olhadela preocupada para o relógio.

— Acho melhor irmos descendo agora — disse. — Dentro em pouco estarão saindo para o primeiro páreo.

Vance deu um olhar de aprovação e levantou-se.

— Que me diz do seu sanctum sanctorum mencionado por seu primo?

— Ora, isto... — Swift forçou um sorriso embaraçado. — É a poltrona vermelha lá de encontro à parede, próximo à mesinha... Mas eu não sei por que Floyd precisa andar falando por aí. O pessoal lá embaixo sempre me goza quando perco, e isso me irrita. Prefiro mil vezes estar sozinho quando chegam os resultados.

— É perfeitamente compreensível — concordou Vance com simpatia.

— Vocês estão vendo — prosseguiu Woody quase pateticamente — para ser franco eu jogo nos cavalos pelo dinheiro; os outros lá embaixo podem dar-se ao luxo de sofrer grandes perdas, mas acontece que eu estou precisando do dinheiro agora. Evidentemente, sei que essa é uma maneira cretina de tentar ganhar dinheiro. Mas, ou você ganha tudo de uma vez, ou perde tudo de uma vez. Então, qual é a diferença?

Vance dirigiu-se à pequena mesa onde estava um telefone que, em lugar do receptor habitual, tinha aquilo que é chamado de fone de cabeça, isto é, um fone em forma de disco plano preso a uma haste curva de metal que passava sobre a cabeça.

— Seu retiro está bem equipado — comentou Vance.

— Ah, está! Isto é um extensão do telefone informativo lá de baixo; e há também uma tomada para rádio e outra para uma chapa elétrica. E refletores. — Ele mostrou-os na parede do estúdio. — Todo o conforto de um hotel, acrescentou com sarcasmo.

Tirou o fone do gancho e, ajustando a haste metálica na cabeça, ficou um instante escutando.

— Nada de novo em Rivermont, por enquanto — murmurou. Removeu o fone com uma impaciência nervosa e atirou-o sobre a mesa. — De qualquer forma, é melhor descermos. — E caminhou em direção à porta que nos levara ao jardim.

Quando chegamos ao salão, encontramos dois recém-chegados: um homem e uma mulher, sentados a uma das mesas, examinando as fichas e fazendo anotações. Vance e eu fomos apresentados sem maiores cerimônias.

O homem era Cecil Kroon, aparentando trinta e cinco anos, imaculadamente vestido e lustroso, com feições suaves, regulares e um bigode muito fino e encerado. Seu cabelo era louro e os olhos de um frio azul de aço. A mulher, cujo nome era Madge Weatherby, tinha aproximadamente a mesma idade de Kroon, alta e esbelta, com uma marcante tendência teatral, tanto em sua maneira de vestir-se como em sua maquilagem. As faces estavam fortemente coloridas e os lábios, escarlate. As pálpebras, carregadas de sombra verde; as sobrancelhas haviam sido inteiramente depiladas e substituídas por um fino traço de lápis. Embora um tanto espetacular, não era desprovida de atrativos.

Hammler mudou-se de sua poltrona para uma das mesas de jogo na extremidade da sala, próximo à entrada, e estava ocupado em conferir os forfaits da tarde.

Swift foi para a mesma mesa e, fazendo um sinal à Hammle, sentou-se à sua frente. Tirou os óculos, limpou-os cuidadosamente, pegou uma das fichas e olhou os páreos anotados.

Garden ergueu os olhos em nossa direção, segurando junto ao ouvido o receptor do telefone preto.

— Escolha uma mesa, Vance, e veja se seus cálculos estão perfeitos. Dentro de dez minutos eles se estarão encaminhando para o alinhamento do primeiro páreo e daqui a pouco vamos receber novas, informações.

Vance dirigiu-se à mesa mais próxima de Garden e, sentando-se, tirou do bolso uma folha de papel onde estavam as anotações feitas na véspera, com as fichas das atuações anteriores dos cavalos inscritos naquele dia. Ajustou o monóculo, acendeu um cigarro e pareceu absorver-se naquilo. Na realidade, entretanto, ele estava observando com mais atenção os ocupantes da sala que os dados turfísticos.

— Agora falta pouco — anunciou Garden, ainda com o receptor no ouvido. — Lex está repetindo as informações de Cold Springs e Texas para alguns retardatários.

Kroon dirigiu-se ao pequeno bar e preparou duas bebidas que levou de volta à sua mesa, colocando uma delas diante da Srta. Weatherby.

— Diga-me Floyd — gritou para Garden — Zalia vem hoje?

— É claro — respondeu Garden. — Hoje de manhã quando telefonou, ela estava toda agitada. Cheia de palpites. Estourando com barbadas diretamente de treinadores, jóqueis e cavalariços e toda espécie de informações malucas.

— Então, que é que tem isso? — fez-se ouvir uma voz feminina lá embaixo no vestíbulo; e logo depois uma linda e elegante garota aparecia sob o arco, as mãos apoiadas em suas cadeiras musculosas de rapaz. — Cheguei à conclusão de que posso descobrir sozinha os meus ganhadores, então por que deixar que outras pessoas o façam por mim? Alô, pessoal! — exclamou num cumprimento geral. — Mas, Floyd, meu velho, tenho realmente uma barbada para o primeiro de Rivermont hoje. E o palpite não vem de um cavalariço; foi um dos garçons, um amigo de papai. E eu vou cobrir aquele pangaré.

— Está bem, Cara-de-Anjo — riu Garden. — Aproxime-se.

Ela deu um passo à frente mas hesitou momentaneamente ao deparar com Vance e comigo.

— Ah, por falar nisso, Zalia, — Garden largou o receptor e levantou-se — deixe-me apresentar-lhe o Sr. Vance e o Sr. Van Dine... Srta. Graem.

A moça deu um passo atrás, titubeando dramaticamente e ergueu os braços acima da cabeça em fingido pânico: — Que os céus me protejam! — exclamou. — Philo Vance, o detetive! Que é isso, uma batida?

Vance curvou-se delicadamente: — Não tenha medo, Srta. Graem — disse ele sorrindo. — Sou apenas mais um dos rapazes do crime. E, como pode ver, estou arrastando comigo o Sr. Van Dine.

A garota atirou-me um olhar curioso: — Mas isto não é justo para com o Sr. Van Dine. Que seria do senhor sem ele?

— Reconheço que eu seria anônimo e ignorado — retrucou Vance. — Mas seria talvez um homem mais feliz: um espírito obscuro, porém livre. E nunca teria sido a inconsciente inspiração da obra poética de Ogden Nash*.

 

 

*Vance referia-se ao famoso refrão de Nash: "Philo Vance merece um chute na pança."

 

 


Zalia Graem sorriu com prazer e depois fez um ar de enfado.

— Foi horrível da parte de Nash fazer aquele jingle — disse. — Pessoalmente, acho o senhor adorável — acrescentou dirigindo-se à mesa desocupada.

Nesse instante, Garden, que estava novamente à escuta, anunciou: — Aí vem as novas informações. Tomem nota, se estiverem interessados.

E ele empurrou para a frente a chave de controle e logo depois voltamos a ouvir a mesma voz no amplificador.

"Saindo para Rivermont e aqui estão as novas informações: 20, 6, 4, 8, para 5, dois forfaits. Quem pediu Texas?...

Garden desligou o amplificador.

— Muito bem pessoal — disse puxando o livro-registro para mais perto. — Que é que vocês estão pensando? Sejam mais rápidos. Faltam só dois minutos para a largada. Alguém vai? Que tal a sua barbada, Zalia?

— Ah, estou nela é claro — respondeu seriamente a Srta. Graem. — E ele está pagando 10 por 1. Eu quero cinqüenta em Topspede para vencedor e... setenta e cinco no placê.

Garden escreveu rapidamente no registro.

— Então você não confia 100% em sua barbada? — gozou ele. — Garantindo-se como sempre... Quem mais?

— Estou apostando em Sara Bellum — falou Hammle — vinte e cinco firmes.

— E eu quero Moondash: vinte em Moondash placê. — Essa aposta foi feita pela Srta. Weatherby.

— Quem mais? É agora ou nunca — disse Garden.

— Põe para mim Miss Construe... cinqüenta para vencedor — disse Kroon.

— E você, Vance? — perguntou Garden.

— Tenho Fisticuffs e Black Revel em condições iguais, por isso vou ficar com o que tem melhores prognósticos, mas não para vencedor. Ponha cem em Black Revel no placê.

Garden voltou-se para o primo: — E você, Woody?

Swift sacudiu a cabeça: — Não jogo neste páreo.

— Guardando tudo para Equanimity, hem? OK. Eu também fico de fora neste páreo — Garden pegou o telefone cinza e discou um número. Alô, Hannix*. Fala Garden... Tudo ótimo. Aqui vai o pedido para o primeiro em Rivermont: Topspede, cinqüenta — zero — setenta e cinco. Sara Bellum, vinte e cinco. Moondash, vinte, placê. Miss Construe, cinqüenta no vencedor. Black Revel, cem no placê. Certo.

 

 

*Hannix era o bookmaker de Floyd Garden.

 

 


Pendurou o fone e desligou o alto-falante. Houve um silêncio e depois: "Eu os tenho no starter, em Rivermont. No starter, Rivermont. Topspede está inquieto. Mudaram-no de lugar... E lá vão eles! Largada em Rivermont às 2 e 32 e meio minuto... Na curva Topspede com um corpo; Sara Bellum, uma cabeça; e Miss Construe... Na metade: Sara Bellum meio corpo; Black Revel, um corpo; e Topspede... Na reta final: Black Revel, um corpo, Fisticuffs, uma cabeça e avançando, e Sara Bellum... O ganhador de Rivermont: Fisticuffs. O vencedor é Fisticuffs, Black Revel é o segundo. Sara Bellum em 3º. Os números são 4, 7 e 3. O vencedor fechou a oito por cinco. Aguardem a confirmação e o resultado do totalizador."


— Bem, bem, bem — gritou Garden. — Foi uma grande corrida para Hannix, com relação a essa turma aqui. Eles entraram bem, como uns anjinhos. Até mesmo os nossos dois ganhadores aqui não agarraram grande coisa. Pop Hammle fez bonito, mas vai ter que deduzir cinqüenta dólares. E Vance provavelmente pegou o mesmo dinheiro no placê de Black Revel... E a sua barbada, Zalia? Minha ingênua criança, você nunca vai aprender?

— Bem, de qualquer forma — protestou a moça, bem-humoradamente — Topspede não estava um corpo à frente no quarto de milha? E ainda estava bem colocado no meio da corrida. Eu estava bem informada.

— Claro — retorquiu Garden. — Topspede fez um nobre esforço mas eu suspeito que ele seja irmão de Morestone e namorado de Nevade Queen*. Provavelmente fará sucesso nos 600 metros em Nursery Course.

 

 

*David Alexander, o cronista de turfe, recentemente escreveu umas linhas sobre esses dois cavalos: "Morestone" disse o Sr. Alexander "pode correr muito rápido até 1.200 metros. Mas além dos 1.200, ele chama a ambulância". Morestone podia largar em tempo recorde. Nada de semelhante havia sido visto desde que tentaram que Nevada Queen fizesse mais de 1/2 milha há alguns anos atrás. Havia dois mistérios com Morestone. Um deles era pomo podia correr tão rápido e o outro como se cansava também tão depressa.

 

 


— E daí? — retrucou Zalia Graem. — Eu ainda sou jovem e cheia de saúde...

A voz no amplificador voltou novamente: "Tudo certo em Rivermont. Partida às 2:32 e 1/2. Vencedor: nº 4, Fisticuffs; em 2º, nº 7, Black Revel; em 3º nº 3, Sara Bellum. O tempo da corrida foi de 1 minuto e 24 segundos... E aqui estão os rateios: Fisticuffs pagou $ 5.60 — 13.70 — $2.90. Black Revel pagou $3.90 e $3.20. Sara Bellum pagou $5.80... Partida para o 2° páreo às 3:05. A ordem: 3, 15, 5, 20, 12, forfait, 15, forfait, 4 para 5, 6... Estão saindo em Cold Springs. E aqui está uma nova informação..."


Garden cortou novamente o amplificador.

— Bem, Vance, — disse — você é o único ganhador no primeiro páreo. Você fez 95 dólares, tudo lançado no livro. E você, Pop, perdeu 2 dólares e meio*.

 

 

* Os rateios são calculados na base de uma aposta de 2 dólares feita na pista, e é paga ali. Portanto, fora da pista, onde o dinheiro apostado não foi realmente entregue, os $ 2 são subtraídos do rateio e o que sobra é dividido por 2 para garantir exatamente o que o cavalo pagou com $1. Aqui no caso, o cavalo de Vance pagou 3.90 para entrar em 2º ou placê. $ 2 subtraídos daí, sobram 1.90, e isto dividido por 2 dá 95 centavos, isto é, na colocação em que Vance apostou nele. Black Revel pagou 95 centavos o dólar. Daí, Vance que apostara 100 dólares no placê, ganhou 95. No caso de Hammle, o cavalo pagou 5.80 em 3° lugar, de modo que os lucros foram 1.90 para o dólar naquela posição. E desde que ele apostou 25 no cavalo que chegou em 3º, ganhou 47.50. Mas ainda precisa deduzir os 25 que jogou no vencedor e os 25 que jogou no 2º. Tendo perdido nos dois casos, isso o deixou com menos 2.50.

 

 


Já que nenhum dos presentes estava interessado nas corridas de Texas ou Cold Springs, havia aproximadamente um intervalo de meia hora entre os páreos. Durante esses intervalos os membros do grupo iam de uma mesa para outra, conversando, discutindo sobre cavalos e deliciando-se na troca de palpites; havia também um considerável movimento de idas e vindas ao bar. De vez em quando Garden pegava o receptor para pôr-se a par do que estava ocorrendo.

Vance circulava entre os grupos, disfarçadamente atento a tudo o que estava acontecendo. Eu podia ver muito bem que ele estava muito menos interessado nas corridas que nas relações humanas e psicológicas dos presentes.

Apesar da animação superficial daquela reunião, eu podia sentir uma sensação de extrema tensão e expectativa; mentalmente, anotei as diversas pequenas ocorrências durante a 1ª hora. Notei, por exemplo, que de vez em quando Zalia Graem reunia-se a Cecil Kroon e Madge Weatherby e entabulava com eles uma conversa séria e à meia voz. Num determinado momento os três dirigiram-se até o estreito balcão que acompanhava o lado nordeste da sala de estar.

Swift alternava uma alegria histérica com depressão e fazia freqüentes viagens até o bar. Sua atitude inconsistente impressionou-me de maneira desagradável; diversas vezes notei que Garden o observava com um interesse agudo.

Um incidente relacionado com Swift impressionou-me grandemente. Eu percebera que, durante todo o tempo em que estavam no salão, Zalia Graem e ele não haviam trocado uma palavra. Uma vez, roçaram um no outro próximo à mesa de Garden e, como que instintivamente, afastaram-se bruscamente. Garden havia meneado a cabeça com irritação e disse: — Vocês dois ainda não se estão falando? Ou isso vai ficar assim para sempre? Por que não se beijam e fazem as pazes deixando que a alegria da reunião seja total?

A Srta. Graem fez como se nada tivesse acontecido e Swift simplesmente deu uma olhadela rápida e indignada para o primo; Garden então sorriu amargamente, dando de ombros.

Hammle manteve sua atitude complacente e jovial durante toda a tarde; porém até ele, por vezes, parecia pouco à vontade, e seu olhar vagava repetidamente de Kroon para a Srta. Weatherby. Uma vez, quando Zalia Graem estava na mesa deles, Hammle para lá se dirigiu e, confiadamente, deu um tapa nas costas de Kroon. A conversa cessou de repente e Hammle preencheu o silêncio repentino com uma anedota sem graça sobre a corrida de Salvator contra o relógio em Monmouth Park, em 1890.

Garden não abandonou seu lugar junto dos telefones e, a não ser por um eventual e furtivo exame de seu primo, pouca atenção deu a seus convidados...

O 2º páreo de Rivermont Park, cuja partida foi dada oito minutos após as 3 horas, trouxe para o grupo resultados melhores que o anterior. Apenas Kroon perdeu. Já a terceira, foi um desastre, pois a maioria havia jogado no favorito Invulnerable, no vencedor; e Invulnerable, embora liderando na reta final, foi ultrapassado e só pegou um terceiro lugar. O vencedor, um novato de nome Ogowan, pagou 86,50. Felizmente nenhum dos presentes havia jogado alto neste páreo. Swift, casualmente, não fizera apostas em qualquer dos três primeiros páreos.

O páreo seguinte, o quarto — cujo alinhamento foi anunciado para as 4:10 — era o Prêmio Rivermont; e mal havia Garden cortado o som do amplificador após o 3º páreo, ficou evidenciando que a atmosfera estava-se eletrizando.

 

 

 

 

IV

 

A Primeira Tragédia

 

 


(Sábado, 14 de abril — 15:45 horas)

 

 

— Está chegando o grande momento! — e embora Garden falasse com uma alegria pomposa, eu pude discernir alguns sinais de tensão em sua atitude. — O telefone de Hannix vai estar um bocado ocupado durante os últimos dez minutos desse importante intervalo e eu aconselho vocês todos a estarem com as apostas prontas antes que seja dado o alinhamento. De qualquer forma não haverá mudanças substanciais, portanto peço aos amigos que se apressem.

Houve um instante de silêncio, que Swift interrompeu: — Pegue os últimos forfaits, Floyd. Ainda não recebemos nenhuma informação desde a primeira, e pode ter havido alguma alteração ou um forfait de última hora.

— Tudo o que você quiser, meu caro primo — concordou Garden com um tom cínico embora perturbado, enquanto abaixava a chave para desligar o amplificador e pegava o telefone preto. Aguardou uma pausa nas informações de Texas e Cold Springs e então falou: — Alô, Lex. Dê os forfaits do Grande Prêmio de Rivermont.

No amplificador veio a voz, já agora familiar: "Acabei de dar a última informação. Onde andou você? Está bem, vá lá, mas vê se ouve desta vez. 6, 12, 12, 5, 20, 20,10, 6, 10, 6, 4, forfait, 20, 2. Largada: 4:10."

Garden desligou o amplificador e olhou para a nova fileira de algarismos que havia apressadamente rabiscado ao lado dos primeiros palpites.

— Não faz muita diferença dos de hoje pela manhã, — comentou. — Heat Lightning, menos dois; Train Time, menos 3; Azure Star, mais dois; Roving Flirt, menos um; Grand Score subiu de 6 para 10: que farra se ele entrar! Risky Lad, mais um e isto é bom para mim. Head Start, menos dois; Sarah Dee, mais um; o resto não mudou. Exceto Equanimity. — E deu uma olhadela para o primo. — Equanimity passou de 2 e meio para dois. E eu duvido que pague tudo isso.

Garden ergueu-se para preparar um highball* que levou para a mesa. Depois de tê-lo tomado, girou na cadeira: * Coquetel. (N. do T.)

— Bem, nenhum dos grandes cérebros presentes se decidiu até agora? — ele estava ficando impaciente.

Kroon levantou-se, terminou a bebida que estava sobre a mesa à sua frente, e enxugando a boca com um muito bem dobrado lenço que tirou do bolso superior do paletó, falou: — Já me decidi desde ontem. Anote-me no seu fatídico livrinho com cem em Hyjinsk para vencedor e duzentos no placê. E pode acrescentar 200 em Head Start, no placê. Tudo somado, dá meio milhar. Esta é a minha contribuição para os festejos do dia.

— Head Start porta-se mal no starter — aconselhou Garden enquanto lançava as apostas no livro.

— Ah, está bem — suspirou Kroon. — Talvez hoje ele se porte como um menino bem educado e corte a linha de chegada. — E dirigiu-se para o hall.

— Não nos está abandonando, Cecil, ou está? — gritou Garden para ele.

— Lamento tremendamente — respondeu Kroon olhando para trás. — Eu adoraria ficar para a corrida, mas uma reunião legal em casa de uma tia solteirona está marcada para as 4:30 e eu tenho que estar lá. Papéis para assinar e toda essa chateação. Vou tentar voltar, caso não precise ler todos os malditos documentos — acenou com a mão e dizendo "Ciao" continuou rumo à saída.

Madge Weatherby imediatamente pegou suas fichas e mudou-se para a mesa de Zalia Graem, onde começaram a cochichar.

O olhar inquisidor de Garden percorreu todos os componentes do grupo.

— Esta é a única aposta que eu vou dar à Hannix? — perguntou com impaciência. — Estou avisando a vocês para não esperarem demais.

— Ponha aí o meu nome em Train Time — tonitroou Hammle pesadamente. — Sempre gostei desse baio. Ele é grande na reta final, mas não creio que ganhe hoje. Por isso, quero só placê, cem.

— Já está lançado — respondeu Garden com um movimento de cabeça. — Quem é o próximo?

Nesse exato momento, uma jovem de excepcional encanto mostrou-se na porta, olhando hesitante para Garden. Usava um uniforme de enfermeira, de um branco imaculado, meias e sapatos brancos; na cabeça uma touca branca engomada, que se equilibrava num ângulo absurdo. Não devia ter mais de trinta anos, porém havia um certo ar de maturidade em seus tranqüilos olhos castanhos e uma evidência de grande capacidade em sua expressão reservada e no contorno firme do queixo. Seu rosto estava sem maquilagem e o cabelo castanho claro, repartido ao meio penteado com simplicidade cobrindo-lhe as orelhas. Ela fazia um contraste impressionante com as duas outras mulheres presentes.

— Alô, Srta. Beeton — saudou-a Garden com satisfação. — Pensei que estivesse de folga esta tarde, já que a Mama está tão bem que saiu para fazer compras... Em que lhe posso ser útil? Gostaria de se reunir a esta turma de loucos e ouvir as corridas?

— Ah, não, tenho muito o que fazer — e moveu levemente a cabeça indicando os fundos da casa. — Mas se não se importa, Sr. Garden — acrescentou com timidez — eu gostaria de apostar dois dólares em Azure Star, no vencedor, em segundo e em terceiro.

Todos sorriram disfarçadamente e Garden riu alto.

— Pelo amor de Deus, Srta. Beeton, — reprovou ele — quem lhe pôs na cabeça este palpite?

— Na verdade, ninguém — respondeu ela com um sorriso de desafio. — Mas hoje pela manhã estive lendo o noticiário das corridas e achei que Azure Star era um nome lindo. Gostei dele.

— Bem, essa é uma das maneiras de se escolher — sorriu Garden com indulgência. — Provavelmente tão boa quanto qualquer outra. Mas acredito que seria muito melhor que esquecesse o lindo nome. Este cavalo não tem a menor chance. E além disso, o meu bookmaker não aceita apostas abaixo de cinco dólares.

Vance, que estivera observando a moça com mais interesse do que normalmente mostrava por qualquer mulher, interveio: — Um momento, Garden — falou abruptamente. — Acho que a escolha da Srta. Beeton é excelente, não importa como tenha chegado a ela. Srta. Beeton, eu teria muito prazer que sua aposta em Azure Star fosse feita. — Virou-se novamente para Garden. — Seu bookmaker aceitaria duzentos dólares em Azure Star?

— Ele? Ele agarraria com as duas mãos — respondeu Garden. — Mas, por quê?

— Então está decidido — disse rapidamente Vance. — Esta é a minha aposta. E dois dólares em cada colocação pertence à Srta. Beeton.

— Para mim está ótimo, Vance — e Garden lançou a aposta no livro.

Notei que, durante os breves instantes em que Vance estivera falando com a enfermeira e fazendo sua aposta em Azure Star, Swift olhava fixamente para ele através das pálpebras semicerradas. Somente muito mais tarde é que eu entendi o significado daquele olhar.

A enfermeira deu uma rápida olhadela em Swift e depois falou com uma simplicidade sincera: — É muito gentil, Sr. Vance. — Depois acrescentou: — Não vou fingir que não sei quem é o senhor, mesmo que o Sr. Garden não lhe tivesse dito o nome. — E ficou parada fitando Vance com uma calma admiração; depois deu meia-volta e desapareceu no vestíbulo.

— Oh, meu Deus! — exclamou Zalia Graem com um exagerado arrebatamento. — O nascer de um romance! Dois corações em um só cavalo. Como é sensacionalmente emocionante!

— Deixe para lá essa zombaria ciumenta. Escolha o seu cavalo e diga quanto — reprovou Garden com impaciência.

— Está bem, posso ser prática já que me intimam — replicou a moça. — Quero Roving Flirt para vencedor, digamos, duzentos. E lá se vai meu vestido novo! E como posso também perder meu casaco esporte, ponha mais duzentos no placê. E agora, acho que vou precisar de um pouco de apoio líquido. — E caminhou para o bar.

— E você, Madge — perguntou Garden. — Você entra neste páreo?

— Sim, eu estou nessa — respondeu ela com afetação. — Quero cinqüenta em Sublimate.

— Ninguém mais? — perguntou Garden enquanto fazia a anotação. — Quanto a mim, caso possa interessar a alguém, estou pendurando toda a esperança de minha juventude em Risky Lad. Cem, duzentos e trezentos. — Olhou apreensivamente para seu primo do outro lado da sala. — E você, Woody? Swift estava curvado em sua cadeira, estudando a ficha que tinha diante dos olhos e fumando intensamente.

— Pode dar a Hannix as apostas que você recebeu — respondeu sem levantar a cabeça. — Não se preocupe comigo, não vou perder a corrida. São apenas 4 horas.

Garden olhou-o um momento e franziu a testa.

— Por que você não desabafa logo? — como não obtivesse resposta, tirou o telefone do gancho e discou um número. Logo em seguida começou a transmitir ao bookmaker as diversas apostas lançadas em seu livro. Swift ergueu-se e caminhou para o bar com seu sortimento de garrafas. Encheu de Bourbon um copo de uísque e virou-o de uma vez. Depois, caminhou lentamente até a mesa onde estava o primo. Garden acabava de telefonar para Hannix.

— Vou dizer-lhe agora a minha aposta, Floyd — disse Swift roucamente. — Comprimiu a mesa com um dedo, como para dar mais ênfase. — Quero dez mil dólares em Equanimity para vencedor.

Os olhos de Garden moveram-se ansiosamente para o outro.

— Eu estava receando isto, Woody — disse com um tom preocupado. — Mas se eu fosse você...

— Não estou pedindo sua opinião — interrompeu Swift com uma voz fria e firme. — Estou-lhe pedindo para fazer o jogo.

Garden não tirava os olhos do rosto do outro. Disse apenas: — Acho que você é um perfeito idiota.

— A opinião que você tem a meu respeito também não me interessa. — As pálpebras de Swift fecharam-se ameaçadoramente e um olhar duro velou sua face. — A única coisa que me interessa agora é saber se você vai ou não fazer essa aposta. Se não vai, diga logo, e eu o farei pessoalmente.

Garden capitulou.

— É o seu enterro — disse e dando às costas ao primo pegou novamente o telefone cinza e discou com determinação.

Swift voltou ao bar e serviu-se novamente de uma generosa dose de uísque.

— Alô, Hannix — disse Garden no telefone. — Aqui estou de volta, com mais uma aposta. Segure-se na cadeira para não cair. Quero dez pacotes com Equanimity na ponta... Sim, é isso mesmo, dez pacotes dos grandes. Você pode fazer o jogo? As chances provavelmente serão de 2 para 1. Certo.

Ao largar o telefone, Swift vinha saindo do bar, rumo ao hall.

— E agora, suponho eu — Garden observou sem qualquer indício de zombaria — você vai lá para cima para aguardar o resultado sozinho.

— Se isso não lhe parte o coração, a resposta é sim. — Havia um tom de ressentimento nas palavras de Swift. — E apreciaria não ser incomodado. — Seus olhos percorreram um tanto ameaçadoramente as pessoas presentes. Lentamente, virou-se e desapareceu sob o arco da porta.

Garden, parecendo profundamente emocionado, conservava os olhos fitos no vulto que ia desaparecendo. Depois, como movido por um impulso repentino, ergueu-se de um salto e chamou: — Só um instante, Woody. Tenho uma palavra a lhe dizer. — E seguiu-lhe os passos.

Eu vi Garden colocar o braço em torno dos ombros de Swift, enquanto os dois desapareciam no vestíbulo.

Garden esteve ausente cerca de cinco minutos e durante este tempo muito pouco foi dito, a não ser algumas observações de constrangimento. Uma espécie de tensão parecia ter invadido cada um dos presentes: havia uma sensação geral de que alguma tragédia inesperada estava iminente ou, pelo menos, que algum sensacional fator humano estava em jogo. Todos nós sabíamos que Swift não podia agüentar aquela aposta extravagante que, na realidade, provavelmente representava tudo o que ele possuía. E nós sabíamos também, ou suspeitávamos, que um acontecimento grave dependeria do resultado de sua aposta. Já não havia mais alegria, nem sombra da despreocupada atmosfera anterior. O ambiente tornou-se carregado.

Quando Garden retornou à sala seu rosto mostrava uma certa palidez e seu olhar estava abatido. Quando chegou à mesa, sacudiu a cabeça desanimado.

— Tentei argumentar com ele — comentou Vance — mas foi inútil; ele nada quis ouvir, ficou até zangado... Pobre diabo! Se Equanimity não vencer, estará liquidado. — Olhou diretamente para Vance. — Fico pensando se fiz bem em transmitir aquela aposta. Mas, afinal de contas, ele é maior de idade.

Vance concordou.

— Sim, exatamente como você diz — murmurou secamente. — Realmente, você não tinha alternativa.

Garden inspirou profundamente e, sentando-se à mesa, tomou o telefone preto e ficou à escuta. Uma campainha soou em algum lugar do apartamento e alguns minutos mais tarde surgiu Sneed no hall.

— Perdoe-me, senhor, — disse ele a Garden — porém a Srta. Graem está sendo chamada no outro telefone.

Zalia Graem levantou-se rapidamente, ergueu a mão até a testa em sinal de desalento.

— Quem nesse mundo ou no outro poderá ser? — seu rosto abriu-se. — Ah, já sei — depois caminhou em direção a Sneed. — Atenderei no telefone lá da saleta. — E saiu da sala apressadamente.

Garden não prestara muita atenção àquela interrupção: ele estava quase indiferente a tudo que não fosse o telefone negro, aguardando o momento de ligar o amplificador. Alguns momentos mais tarde, girou na cadeira e anunciou: — Estão preparando-se em Rivermont. Façam suas orações, crianças. Você aí, Zalia, diga ao fascinante cavalheiro no telefone para ligar mais tarde. O grande páreo vai começar.

Não houve resposta, embora a saleta estivesse apenas a alguns passos do vestíbulo.

Vance levantou-se e, cruzando a sala, olhou ao longo do corredor, mas regressou imediatamente à sua mesa.

— Pensei que pudesse avisar à moça — murmurou — mas a porta da saleta está fechada.

— Zalia provavelmente vai voltar, ela sabe que horas são — comentou Garden tranqüilamente, inclinando-se para ligar o amplificador.

— Floyd, querido, — falou a Srta. Weatherby — por que não ouvimos este páreo no rádio? Está sendo transmitido pela WXZ. Não acha que assim seria mais emocionante? Gil McElrey é o locutor.

— Magnífica sugestão — secundou Hammle, ligando o rádio que estava bem às suas costas.

— Woody poderá ouvir lá de cima? — perguntou Madge Weatherby a Garden.

— Claro — respondeu ele. — Esta chave de amplificador não interfere com nenhuma das extensões telefônicas.

Quando as válvulas do rádio se aqueceram, a bem conhecida voz de McElrey cresceu de volume no amplificador: "...e Equanimity está dando trabalho na largada. Atrapalhando Head Start... Agora estão ambos de volta aos boxes; está parecendo que vamos ter uma... Pronto! Largaram! E foi uma boa partida. Hyjinx tomou a dianteira; Azure Star vem em seguida; Heat Lightning logo atrás. Os outros estão embolados, ainda não os posso distinguir. Esperem um segundo. Agora estão passando aqui à nossa frente: estamos no alto da tribuna principal, olhando diretamente para eles — e lá vai Hyjinx à frente, com dois corpos atrás dele vem Train Time; e... sim, é Sublimate, com uma cabeça ou um focinho ou um pescoço, não importa, é Sublimate, de qualquer forma. E lá vem Risky Lad avançando lentamente sobre Sublimate... Agora estão fazendo a primeira curva com Hyjinx ainda na dianteira. As posições relativas aos outros não foram mudadas... Estão agora na reta oposta continua ainda à frente com meio corpo. Train Time avançou e mantém seu segundo lugar com corpo e meio à frente de Roving Flirt, que está em 39 lugar. Azure Star está um corpo atrás de Roving Flirt. Equanimity está embolado mas está vindo por fora agora; está muito atrás mas vem ganhando terreno; e logo atrás dele vem Grand Score, jazendo um esforço desesperado para sair do bolo"...


Nesse ponto da irradiação Zalia Graem apareceu repentinamente na porta e ficou parada com os olhos fixos no rádio, as mãos enfiadas no bolso de seu casaco. Balançava um pouco o corpo para frente e para trás, a cabeça levemente inclinada para um lado, inteiramente absorta na descrição do páreo.


"... Estão jazendo a grande curva. Equanimity melhorou sua posição e está dando o seu famoso galope. Hyjinx recuou e Roving Flirt tomou a dianteira por um corpo, com Train Time em segundo, com um corpo, em frente de Azure Star que está correndo em terceiro e jazendo um grande esforço... E agora estão na reta final. Azure Star tomou a dianteira e está um corpo inteiro na liderança. Train Time está jazendo uma grande tentativa neste clássico e ainda está em segundo lugar, um corpo atrás de Azure Star. Roving Flirt está logo em seguida. Hyjinx caiu de posição e parece não mais ser um sério competidor. Equanimity vem jazendo força e está agora em sexto lugar. Não tem muito tempo, mas está fazendo uma linda corrida e ainda pode chegar às primeiras colocações. Grand Score está perdendo terreno pela lateral. Sublimate está bem à frente dos dois mas não está avançando. E creio que o resto está fora de competição... E agora chegam ao final. Os líderes estão alinhados, não haverá grandes mudanças. Esperem um instante. Lá vem eles... E... o vencedor é Azure Star com dois corpos. Em seguida Roving Flirt e um corpo atrás dele vem Train Time. Upper Shelf terminou em quarto... Um momento... Aqui está o resultado afixado. Sim, eu estava certo. É 3, 4 e 2. Azure Star venceu o grande Prêmio Rivermont. O segundo é Roving Flirt e o terceiro, é Train Time"...


Hammle deu uma volta em sua cadeira e desligou o rádio.

— Bem — disse, soltando um profundo suspiro — eu tinha uma parte de razão nessa história.

— Não foi uma corrida tão boa — observou a Srta. Graem com um muxoxo. Por mim nada perdi, nem ganhei. Mas, de qualquer forma, não vou precisar entrar para uma colônia de nudistas esta primavera. Agora vou terminar o meu telefonema. — E voltou para a saleta.

Garden pareceu pouco à vontade e, pela segunda vez naquela tarde, serviu-se de um highball.

— Equanimity nem sequer pagou o mesmo dinheiro — comentou como se estivesse falando sozinho. — Mas ainda não temos os resultados oficiais. Não deixem suas esperanças crescerem muito, e também não se desesperem. Os ganhadores serão confirmados dentro de alguns minutos e nunca se sabe o que pode acontecer. Vocês se lembram daquela corrida final em Saratoga, quando os três primeiros colocados foram desclassificados?*

 

 

*Garden referia-se ao páreo final do último dia de uma temporada recente em Saratoga, quando Anna V. L., Noble Spirit e Semaphore terminaram a corrida nessa mesma ordem, e foram todos desclassificados ; Anna V. L. por desviar-se completamente na partida, obrigando outros cavalos a fazerem o mesmo, Noble Spirit por desviar-se a altura do 8* mastro, e Semaphore por uma pretensa interferência com Anna V. L. A classificação oficial, após as desclassificações foi: Just Cap, em primeiro; Celiza, em segundo, e Bahadur em terceiro, os únicos que restaram naquela corrida.

 

 


Exatamente nesse instante, a Sra. Garden irrompeu na sala, ainda com as luvas, o chapéu e a estola de raposa, e dois pequenos pacotes sob o braço.

— Não me digam que estou atrasada! — desculpou-se excitadamente. — O trânsito estava intolerável: três quartos de hora da esquina da Rua 50 com a 5ª Avenida... Já acabou o grande páreo?

— Tudo acabado, exceto a confirmação, Mama — informou Garden.

— E que foi que eu fiz? — perguntou ela deixando-se cair pesadamente em uma cadeira.

— O de costume — sorriu Garden. — Grand Score! Seu nobre corcel não fez escore algum. Minhas condolências. Mas ainda não temos a confirmação.

— Ah, meu Deus! — suspirou a Sra. Garden com desânimo. — A única falta acusada em um páreo que eu jogo é contra o meu cavalo, se ele ganha; e é sempre anotada. Nada me pode salvar agora. E acabei de gastar uma fortuna numa toalha de renda de Bruxelas.

Garden ligou o amplificador. Houve alguns minutos de silêncio e em seguida:

"Resultados oficiais em Rivermont. Confirmação em Rivermont. Largada às 4:16. O vencedor é o nº 3, Azure Star. Número 4, Roving Flirt é o segundo colocado; e o nº 2, Train Time, é o terceiro. O tempo da corrida foi de dois minutos e dois décimos de segundo. Um novo recorde nessa pista. E os rateios: Azure Star pagou $ 26,80, $9.00 e $6.60. Roving Flirt $5.20 e $4.60. Train Time $8.40. Nova largada às 4:40"...


— Bem, aí está — disse Garden sombriamente, desligando a chave e fazendo rápidas anotações em seu registro. — Sneed, nosso admirável Crichton, ganhou seis dólares. O Sr. Kroon, que está ausente, perdeu quinhentos; e a Sra. Weatherby, aqui presente, perdeu cento e cinqüenta. Nosso velho caçador de raposas está ganhando duzentos e vinte dólares, com o que ele poderá oferecer-me um magnífico jantar amanhã. E você, Mama, perdeu seus duzentos dólares. Sinto muito. Eu mesmo fui aliviado em seiscentos mangos. Zalia, a tal que consegue sensacionais dicas do amigo de um amigo de um parente distante da esposa morganática de um velho corredor, ganhou cento e vinte dólares... o suficiente para comprar sapatos, um chapéu e uma bolsa para combinar com a sua toalete de verão. E o Sr. Vance, o eminente decifrador de crimes e potros, pode agora tirar umas férias de alto luxo. Ele é o feliz possuidor de três mil, seiscentos e quarenta dólares — dos quais trinta e seis dólares e quarenta centavos são para nossa querida enfermeira. E Woody, naturalmente... — Sua voz morreu.

— Que aconteceu a Wood? — perguntou a Sra. Garden, sentando-se rígida na cadeira.

— Lamento enormemente, Mama, — e o filho procurava as palavras — mas Woody não usou a cabeça. Tentei dissuadi-lo, mas não houve jeito...

— Bem, mas o que fez Woody? — insistiu a Sra. Garden. — Ele perdeu muito?

Garden hesitou e, antes que pudesse formular uma resposta, um som paralisante, como o de um tiro de pistola, rompeu o silêncio.

Vance foi o primeiro a ficar de pé. Seu rosto estava sombrio e ele moveu-se rapidamente em direção ao hall. Eu o segui e logo atrás veio Garden. Quando eu fiz a curva no corredor, vi os outros no salão erguerem-se e avançarem. Se o estampido não tivesse sido precedido por uma atmosfera tão eletrizante, eu duvido que tivesse causado qualquer perturbação; porém, naquelas circunstâncias, creio que cada um teve o mesmo pensamento quando se ouviu a detonação.

Quando nos apressávamos corredor afora, Zalia Graem abriu a porta da saleta.

— Que foi isso? — perguntou, fitando-nos com um olhar assustado.

— Ainda não sabemos — respondeu Vance.

À porta do quarto de dormir, na outra extremidade do corredor, vimos aparecer a enfermeira, com o espanto substituindo a placidez dos seus olhos.

— É melhor vir conosco, Srta. Beeton — disse Vance, enquanto começava a subir a escada de dois em dois degraus. — Podemos precisar da senhora.

Vance saltou no corredor de cima e parou momentaneamente na porta da direita que levava ao terraço. Esta continuava aberta de par em par e, após uma apressada inspeção preliminar, Vance entrou rapidamente no jardim.

A visão que nesse momento tivemos não foi de todo inesperada. Lá, na cadeira baixa que nos mostrara naquela tarde, estava sentado Woody Swift, derreado, com a cabeça caída para trás, fazendo um ângulo pouco natural de encontro ao espaldar de palhinha e as pernas estendidas à sua frente. Ainda estava com o fone preso à cabeça. Seus olhos estavam abertos e fixos; os lábios ligeiramente entreabertos, e seus grossos óculos haviam saltado para a ponta do nariz.

Na têmpora direita havia um pequeno e feio orifício abaixo do qual haviam-se formado duas ou três gotas de sangue já coagulado. O braço direito pendia inerte sobre o lado da cadeira e sobre os ladrilhos coloridos, exatamente embaixo de sua mão, estava um pequeno revólver com cabo de madre-pérola.

Vance imediatamente aproximou-se do corpo imóvel e todos nós o circundamos. Zalia Graem, que abrira caminho e agora estava parada ao lado de Vance, cambaleou repentinamente e agarrou-se a seu braço. Seu rosto tornara-se pálido e os olhos pareciam esgazeados. Vance virou-se rapidamente, passou-lhe o braço pela cintura e levou-a quase carregada para o largo divã de vime. E fez um aceno de cabeça para a enfermeira.

— Tome conta dela um instante. — Depois voltou para onde estava Swift. — Por favor, recuem — ordenou. — Ninguém deve tocar nele.

Puxou o monóculo e ajustou-o cuidadosamente. Depois inclinou-se sobre o vulto na cadeira. Cuidadosamente investigou a ferida, o alto da cabeça e os óculos deslocados. Quando terminou o exame, ajoelhou-se no chão e pareceu procurar alguma coisa. Aparentemente não encontrou o que procurava porque ergueu-se com um ar desanimado e encarou os outros.

— Morto — anunciou com um tom involuntariamente sombrio. — Vou, temporariamente, assumir a direção das coisas.

Zalia Graem erguera-se do divã, e a enfermeira a estava sustentando numa demonstração de carinho. A perturbada moça estava aparentemente indiferente a essa atenção e permanecia com os olhos fixados no morto. Vance encaminhou-se para ela de maneira a impedir a visão que parecia mantê-la num fascínio de horror.

— Por favor, Srta. Beeton, — disse ele — leve a jovem para baixo, imediatamente. — Depois acrescentou: — Estou certo de que ela ficará bem em alguns minutos.

A enfermeira anuiu, passou o braço em torno da Srta. Graem com firmeza e levou-a em direção à entrada.

Vance esperou até que as duas mulheres se fossem, depois voltou-se para os outros: — Vocês todos vão ter a gentileza de descer e lá ficar até novas ordens.

— Mas que vai fazer, Sr. Vance? — perguntou a Sra. Garden com um tom assustado. Estava de pé, rigidamente encostada à parede, com os olhos semicerrados fixos em mórbido fascínio no corpo imóvel do sobrinho. — Precisamos manter isto o mais secreto possível! Meu pobre Woody!

— Receio, minha senhora, que não poderemos manter as coisas em segredo — falou Vance com a mais honesta das intenções.

— Meu primeiro dever é telefonar para o procurador distrital e para o Departamento de Homicídios.

A Sra. Garden ofegou e seus olhos arregalam-se de emoção.

— Procurador? Departamento de Homicídios? — repetiu automaticamente. — Ah, não!... Por que o senhor precisa fazer isso? É claro que qualquer um pode ver que esse pobre rapaz liquidou a própria vida.

Vance sacudiu lentamente e olhou diretamente para a desesperada senhora.

— Lamento muito, minha senhora, — disse — mas isto não é um caso de suicídio. É assassinato!


V

 

A Busca no Cofre

 

 


(Sábado, 14 de abril — 16:00 horas)

 

 

Após a inesperada declaração de Vance seguiu-se um demorado silêncio. Todos, um por um, encaminharam-se relutantemente para a saída. Apenas Garden ficou para trás.

— Eu acho, Vance, — disse ele num tom chocado — que isto é realmente apavorante. Tem certeza de que não está dando largas à sua imaginação? Quem poderia desejar matar o pobre Woody? Ele deve ter feito isso sozinho. Sempre foi um fraco, e mais de uma vez falou em suicídio.

Vance encarou-o friamente por um instante: — Tremendamente agradecido pela informação, Garden. — Sua voz era tão fria quanto o olhar. — Mas ela agora não nos ajuda em nada, você sabe, não? Swift foi assassinado e eu quero a sua ajuda e não o seu cepticismo.

— Tudo o que eu puder fazer, é claro — murmurou Garden apressadamente e parecendo envergonhado com a atitude de Vance.

— Há algum telefone por aqui? — perguntou Vance.

— Sim, claro, há um no estúdio.

Garden passou por nós com uma energia nervosa, como se estivesse agradecendo a oportunidade de agir. Escancarou a porta na extremidade do corredor e ficou de lado, esperando que entrássemos no estúdio.

— Por aqui — disse apontando para a escrivaninha na outra extremidade da sala, onde havia um telefone. — Esta é uma linha direta. Não tem comunicação com a que usamos para os cavalos, embora seja uma extensão de telefone da saleta. — Dirigiu-se rapidamente para trás da escrivaninha e ligou uma chave preta na caixa de contato que estava presa a um dos lados da mesa. — Deixando a chave nesta posição, você corta a extensão lá embaixo, de modo que a linha fica inteiramente sua.

— Oh, está bem — Vance meneou a cabeça com um leve sorriso. — Eu uso o mesmo sistema no meu apartamento. Muitíssimo grato por sua atenção... E agora, por favor, junte-se aos outros lá embaixo e procure manter o equilíbrio das coisas por algum tempo.

Garden aceitou de bom grado a dispensa e dirigiu-se à porta.

— Ah, a propósito, Garden, — chamou Vance — gostaria de ter uma pequena conversa com você, em particular, daqui a pouco.

Garden voltou-se com uma expressão alterada.

— Suponho que você esteja querendo que eu desenterre todos os esqueletos da família para você... Mas, está bem. Quero ser o mais útil possível; espero que você creia nisso. Estarei às suas ordens a qualquer momento. Estarei lá embaixo derramando azeite sobre as águas agitadas e quando você estiver pronto para me atender, basta que aperte a campainha lá na estante, logo atrás da escrivaninha. — Ele indicou um pequeno botão branco situado exatamente no centro de uma pequena caixa. — Isto faz parte do sistema de comunicação interna entre este quarto e a saleta. Vou deixar aberta a porta da saleta, de modo a poder ouvir a campainha onde quer que eu me encontre.

Vance concordou secamente e Garden, após uma leve hesitação, deu meia volta e saiu.

Assim que Garden se fez ouvir descendo a escada Vance fechou a porta e foi imediatamente para o telefone. Logo depois falava com Markham.

— Os cavalos galopantes, meu caro — disse. — Os troianos estão em disparada... Equanimity falhou; entrou muito atrás. Resultado: um assassinato. O jovem Swift está morto. E foi a atuação mais inteligente que já vi em toda a minha vida... Não, Markham. — Sua voz repentinamente tornou-se grave. — Eu não estou brincando. Acho que você faria bem em vir imediatamente. E avise Heath*, se puder encontrá-lo, e o médico legista. Enquanto você não chega, vou controlando a situação...

 

 

 

*O sargento Ernest Heath do Departamento de Homicídios, que se encarregara de diversas investigações criminais a que Vance estivera ligado.

 

 


Lentamente recolocou o fone no gancho. Tirando a cigarreira do bolso, acendeu um Régie com aquela deliberação, que, fruto de uma longa observação, eu chegara a identificar como o sinal de um estado de espírito desorientado e tateante.

— Este é um crime sutil, Van, — meditava ele — demasiado sutil para a paz do meu espírito. Não estou gostando, não estou gostando nada mesmo. E também não me agrada essa mistura com corridas de cavalos. Um recurso um tanto transparente...

Depois examinou o ambiente. Era uma sala de aproximadamente oito metros quadrados, cercada de livros, folhetos e arquivos. Em algumas das prateleiras, nos arquivos e em cima de toda e qualquer peça de mobiliário, havia exemplares de uma particular coleção de velhos utensílios farmacêuticos: pilões e almofarizes de porcelana, bronze ou latão, com cinzeladuras típicas — máscaras, hernas, folhagens, querubins, arabescos da Renascença, pássaros e flores de lis. Os estilos eram os mais diversos: gótico, espanhol, francês e flamengo, muitos deles anteriores ao século XVI. Antigas balanças de boticário em latão e marfim, com colunas em plintos, com urnas em florões, sustentando pratos de balança em relevo com braços de aço ou encurvados — muitos deles no estilo francês dos fins do século XVIII; inúmeros potes antigos de farmácia nas mais diversas formas: cilíndrica, oval, de barril com aro; octogonal encurvado, ovóide, e uma pêra de cabeça para baixo, em faiança, majólica, porcelanas de alto preço, cuidadosamente decoradas com inscrições; diversos outros artigos farmacêuticos raros e artísticos; uma coleção que revelava anos de viagens e pesquisas laboriosas*.

 

 

*Mais tarde essa coleção foi vendida em leilão e muitos dos objetos estão agora nos museus americanos.

 

 


Vance percorreu o aposento, parando aqui e ali, diante de algum vaso ou pote raro.

— Uma coleção interessante — murmurou. — E não desprovida de significado, Vance. Dá uma visão da natureza do homem que a reuniu — uma mistura de artista e cientista; um amante da beleza e também alguém em busca da verdade. Aliás, você sabe, os dois deveriam ser sinônimos. Entretanto...

E lá se foi ele pensativamente em direção à janela do lado norte que dava para o jardim. A cadeira de vime com seu horrível ocupante não podia ser vista do estúdio, porque estava bem à esquerda da janela, perto da amurada oeste.

— Os açafrões estão morrendo — murmurou — dando lugar aos jacintos e palmas; e as tulipas estão progredindo. A cor sucede à cor. Um lindo jardim. Mas a toda hora há morte aqui, Van, senão o próprio jardim não viveria. Eu fico pensando...

Deu as costas à janela, bruscamente, e voltou à escrivaninha.

— Algumas palavras com o atrapalhado Garden é o indicado antes que cheguem os servidores da lei.

Colocou o dedo sobre o botão branco da campainha e apertou. Depois dirigiu-se à porta e abriu; decorreram vários instantes, porém Garden não apareceu e Vance apertou novamente o botão. Depois de passados dois bons minutos sem qualquer resposta aos seus chamados, Vance desceu o corredor em direção à escada, recomendando-me que o seguisse.

À altura do cofre que havia do lado direito, Vance parou bruscamente. Examinou durante alguns minutos a pesada porta de calamina. À primeira vista ela parecia estar fechada hermeticamente, mas quando olhei mais de perto, verifiquei que estava aberta uma fração de polegada, como se o fecho da mola que a fechava automaticamente, não estivesse funcionando na ocasião em que a porta foi trancada. Vance empurrou a porta levemente, com a ponta dos dedos, e ela cedeu, abrindo-se lenta e pesadamente.

— É estranho demais — comentou ele. — Um cofre para guardar documentos de valor e a porta destrancada. Dá o que pensar...

A luz do corredor iluminava o interior sombrio da caixa-forte e quando Vance empurrou mais a porta, apareceu um fio branco pendente de uma lâmpada no teto. Na extremidade do fio estava preso um pilão de ferro em miniatura que funcionava como peso. Vance imediatamente entrou, puxou o fio e o cofre foi inundado pela luz.

Cofre é uma palavra que descreve mal o pequeno depósito, a não ser por suas paredes desusadamente espessas e obviamente fora construído como um compartimento à prova de roubo. Tinha aproximadamente 1,70 m x 2,40 e o teto era tão alto quanto o corredor. As paredes de alto a baixo, estavam cobertas de largas prateleiras e nelas haviam pilhas de toda sorte de documentos, papéis, folhetos, pastas, tubos de ensaio e frascos rotulados com símbolos misteriosos. Três das prateleiras estavam destinadas a uma série de fortes caixas de aço e caixas de segurança. O chão era revestido de pequenos ladrilhos de cerâmica preta e branca.

Embora houvesse espaço suficiente para nós dois dentro da caixa-forte, eu fiquei no corredor, observando Vance que olhava à sua volta.

— Egoísmo, Van — observou sem se virar para mim. — Provavelmente não há aqui uma só coisa que um ladrão se digne roubar. Fórmulas suponho, o resultado de pesquisas e experiências, sem qualquer valor ou interesse para alguém a não ser o próprio professor. E no entanto ele constrói um compartimento especial para mantê-lo trancados e fora do alcance do resto do mundo.

Vance curvou-se e apanhou uma resma de folhas datilografadas espalhadas pelo chão e que certamente haviam sido derrubadas de uma das prateleiras exatamente em frente à porta.

Olhou-as por um momento e colocou-as cuidadosamente no espaço vazio em frente à porta.

Muito interessante essa desarrumação — observou. — Evidentemente o professor não foi a última pessoa a entrar aqui porque ele jamais deixaria seus papéis no chão... — Deu uma volta. — Sim senhor! — exclamou com voz abafada.

— Esses papéis caídos e a porta destrancada... Bem que poderia ser... — Havia uma excitação reprimida em sua voz.

— Olhe, Van, não entre aqui; e principalmente, não toque na maçaneta.

Puxou do monóculo e ajustou-o cuidadosamente. Depois ajoelhou-se no chão de azulejo e começou uma severa inspeção dos pequenos quadrados, como se os estivesse contando. Sua atitude fez-me lembrar quando estivera examinando o piso do terraço próximo à cadeira onde havíamos encontrado o jovem Swift. Ocorreu-me que ele estava tentando encontrar aqui o que não achara no jardim. Suas palavras confirmaram a minha suposição.

— Deveria estar aqui — murmurou para si próprio. — Isto explicaria muitas coisas, formaria o primeiro e vago esboço de um esquema inicial.

Depois de procurar durante mais de um minuto, Vance parou de repente e inclinou-se para a frente com avidez. Em seguida, tirou do bolso um pequeno pedaço de papel e cuidadosamente colocou nele alguma coisa que estava no chão.

Embrulhando o papel com cuidado, colocou-o no bolso do colete. Embora eu estivesse distante apenas alguns passos e olhando diretamente para ele, não pude ver o que havia encontrado.

— Acho que é tudo por enquanto — disse erguendo-se e puxando o fio para apagar a luz. Voltando ao corredor, fechou a porta do cofre segurando cuidadosamente a haste do trinco. Depois moveu-se rapidamente pelo corredor, atravessou a porta que dava para o jardim e encaminhou-se diretamente ao morto. Apesar de ele estar de costas para mim quando se curvou sobre o corpo, eu pude ver que tirou do bolso do colete o papel dobrado e abriu-o. Olhou repetidas vezes o papel que segurava e o flácido vulto na cadeira. Finalmente meneou a cabeça enfaticamente e reuniu-se a mim no corredor. Descemos as escadas que conduziam ao apartamento.

Exatamente quando chegávamos ao vestíbulo de baixo, abriu-se a porta de entrada e Cecil Kroon entrou. Pareceu surpreendido de nos encontrar ali e perguntou de um modo um tanto vago, enquanto atirava o chapéu sobre o banco: — Algo de novo?

Vance perscrutou-o atentamente e não deu resposta; Kroon prosseguiu: — Suponho que o grande páreo tenha terminado, arre! Quem ganhou? Equanimity?

Vance sacudiu a cabeça lentamente, os olhos fixos no interlocutor.

— Venceu Azure Star. Acho que Equanimity chegou em 5º ou 6º.

— E Woody se lançou nele de corpo e alma, como havia ameaçado?

— Receio que sim — assentiu Vance.

— Meu Deus! — Kroon prendeu a respiração. — Isto é um baque para o rapaz. Como o está suportando? — Desviou o olhar de Vance, como se preferisse não ouvir a resposta.

— Não está suportando coisa nenhuma — retrucou calmamente Vance. Swift está morto.

— Não! — Kroon inspirou ruidosamente e seus olhos contraíram-se pouco a pouco. Depois de se ter aparentemente recuperado do choque, falou quase num murmúrio: — Então ele enfiou uma bala no corpo, não foi?

Vance ergueu levemente as sobrancelhas.

— Esta é a impressão geral — retrucou suavemente. — Você não é adivinho, não? Eu não disse como Swift morreu, mas o fato é que isso aconteceu devido a um tiro de revólver. Superficialmente, admito, isto parece um suicídio — Vance sorriu com frieza. — Sua reação é das mais interessantes. Por exemplo, por que você supõe que ele se tivesse matado com um tiro em vez de, digamos, se atirar do terraço?

A boca de Kroon transformou-se numa linha reta e em seus olhos apertados passou um olhar de raiva. Remexeu no bolso à procura de um cigarro e finalmente tartamudeou: — Não sei exatamente... a não ser que... a maioria das pessoas se matam com um tiro.

— É, realmente. — Os lábios de Vance continuavam armados num sorriso de pedra. — Não é uma maneira fora do comum de abandonar este mundo atormentado. Por que você achou lógico que a morte tenha sido voluntária?

Kroon tornou-se agressivo.

— Ele gozava de plena saúde quando eu saí! Ninguém vai fazer saltar os miolos de alguém assim em público.

— Saltar os miolos? — repetiu Vance. — Como você sabe que o tiro não foi no coração?

Kroon estava agora evidentemente desconcertado.

— Eu... eu simplesmente supus...

Vance interrompeu o embaraço do outro, sem afrouxar o exame que fazia: — Entretanto, suas conclusões acadêmicas concernentes a um assassinato mais ou menos público não são desprovidas de uma certa lógica. Mas o fato é que realmente alguém matou Swift com um tiro na cabeça e, praticamente, em público. Coisas assim também acontecem, você sabe. A lógica tem muito pouco a ver com a vida e a morte... e com corridas de cavalos. A lógica é o mais perfeito meio artificial de se chegar a uma conclusão falsa. — E ele acendeu o cigarro de Kroon.

— Não obstante, eu gostaria de saber onde você esteve e exatamente quando voltou para cá.

O olhar de Kroon vagueou e ele puxou duas tragadas antes de responder.

— Penso ter dito antes de sair — disse numa tentativa de serenidade — que eu ia à casa de um parente, assinar alguns documentos sem importância.

— E posso eu saber o nome e endereço de seu parente... uma tia, creio que disse? — interrogou amavelmente Vance.

— Estou tomando conta das coisas até a chegada dos funcionários.

Kroon tirou o cigarro da boca com um ar de displicência forçada e empertigou-se com arrogância.

— Eu não vejo — respondeu com dureza — em que essa informação possa interessar a alguém que não eu.

— Também não — admitiu alegremente Vance. — Estive simplesmente esperando por um pouco de franqueza. Mas posso assegurar-lhe, em vista do que aconteceu aqui esta tarde, que a polícia gostará de saber com precisão quando você voltou de sua misteriosa assinatura de documentos.

Kroon sorriu com afetação.

— Você certamente não pensa que eu estive perambulando no corredor, não é? Cheguei há poucos minutos e vim direto para cá.

— Imensamente grato — murmurou Vance. — Agora devo pedir-lhe que se reúna aos outros no salão e que lá espere a chegada da polícia. Espero que não faça objeções.

— De espécie alguma, garanto-lhe — retrucou Kroon com uma demonstração de cinismo divertido. — A polícia regular será um alívio após esta mistificação de amador. — Ele percorreu o vestíbulo em direção à porta, com as mãos enterradas nos bolsos das calças.

Quando Kroon desapareceu no salão, Vance dirigiu-se imediatamente à porta da frente, abriu-a silenciosamente e caminhando pelo corredor externo apertou o botão do elevador. Pouco depois abriu-se a porta corrediça e apareceu um rapaz magro e moreno, de olhar inteligente, vestindo um uniforme azul e que olhou para fora interrogando respeitosamente: — Vai descer?

— Não vou descer — replicou Vance. — Simplesmente queria fazer-lhe algumas perguntas. Eu tenho ligação com o escritório do procurador distrital.

— Eu o conheço, Sr. Vance — fez o rapaz com vivacidade.

— Aconteceu uma coisa aqui esta tarde — disse Vance — e creio que você me possa ajudar.

— Direi tudo o que sei — concordou o rapaz.

— Excelente! Você conhece um certo Sr. Kroon que freqüenta o apartamento dos Gardens? Ele é louro e tem um bigode encerado.

— Claro que conheço — retrucou prontamente o rapaz.

— Ele vem aqui quase todas as tardes. Eu o trouxe hoje.

— A que horas foi isso?

— Duas ou três, creio eu. — O rapaz franziu a testa.

— Ele não está aí?

Vance respondeu à pergunta fazendo uma outra.

— Você esteve no elevador a tarde toda?

— Claro que sim. Desde o meio-dia. Eu só sou substituído às 7 horas.

— E você não viu o Sr. Kroon desde que o trouxe aqui no início da tarde?

O rapaz sacudiu a cabeça.

— Não senhor, não vi.

— Eu tinha a impressão de que o Sr. Kroon havia saído há cerca de uma hora e que acabava de voltar.

A cigarra tocou e Vance rapidamente pôs na mão do rapaz uma nota dobrada.

— Muito obrigado — disse. — Era tudo o que eu queria saber.

O rapaz embolsou o dinheiro e fechou a porta do elevador, enquanto nós voltávamos ao apartamento.

Quando regressávamos da porta principal, a enfermeira estava parada à entrada do quarto de dormir, à direita. Seus olhos tinham uma expressão preocupada e interrogadora.

Vance fechou a porta suavemente e preparava-se para subir o corredor, mas hesitou e voltou em direção à moça.

— Parece perturbada, Srta. Beeton — disse com bondade. — Mas, afinal de contas, deve estar acostumada com a morte.

— Estou acostumada com ela — respondeu em voz baixa. — Mas isto agora é diferente. Veio tão de repente, sem aviso... Embora — acrescentou — o Sr. Swift sempre me tenha parecido ser do tipo que comete suicídio.

Vance olhou-a apreciativamente.

— Sua impressão pode ser correta, mas acontece que Swift não cometeu suicídio.

Os olhos da moça arregalaram-se, ela prendeu a respiração e encostou-se ao umbral. Seu rosto empalideceu perceptivelmente.

— O senhor quer dizer que atiraram nele? — Suas palavras eram quase inaudíveis. — Mas quem... quem?

— Nós não sabemos. — A voz de Vance era calma. — Mas precisamos descobrir. Gostaria de ajudar-me, Srta. Beeton?

Ela empertigou-se; suas feições descontraíram-se e novamente voltou a ser a imperturbável e eficiente enfermeira.

— Sim, gostaria. — Havia mais que uma ponta de ansiedade na voz.

— Então eu gostaria que a senhorita montasse guarda como de costume — disse Vance com um pálido sorriso amistoso. — Desejo falar com Garden e não quero que ninguém vá lá em cima. Poderia instalar-se nesta cadeira e avisar-me imediatamente se alguém quisesse tentar ir lá em cima?

— É tão pouco o que me pede — replicou a moça, enquanto se sentava numa cadeira ao pé da escada.

Vance agradeceu-lhe e encaminhou-se à saleta. Lá estavam Garden e Zalia Graem, sentados bem juntinhos num sofá e falando num tom baixo e confidencial. Um rumor indistinto de vozes, vindo do outro lado da arcada, indicava que o restante do grupo estava no salão.

Garden e a Srta. Graem afastaram-se imediatamente quando entramos na saleta. Vance ignorou seu evidente embaraço e dirigiu-se a Garden como se não tivesse percebido haver interrompido um tête à tête.

— Chamei o procurador distrital e ele notificou a polícia: dentro de alguns minutos estarão aqui. Enquanto isso, gostaria de falar-lhe a sós. — Voltando a cabeça para a Srta. Graem, acrescentou: Espero que isso não a aborreça.

A jovem ergueu-se e arqueou as sobrancelhas.

— Peço-lhe, não se preocupe comigo. O senhor pode ser tão misterioso quanto quiser.

Garden repreendeu-a com irritação.

— Nunca se preocupe com o hauteur, Zalia. — Depois voltou-se para Vance: — Por que não tocou a campainha chamando-me? Eu teria ido. Fiquei na saleta propositalmente porque achei que deveria precisar de mim.

— Eu chamei — respondeu Vance. — Duas vezes, aliás. Mas como você não subiu, eu desci.

— Aqui não houve sinal — assegurou-lhe Garden. — E eu vim diretamente para cá desde que desci.

— Posso confirmar isso — acrescentou a Srta. Graem. Os olhos de Vance pousaram nela um instante e nos cantos de sua boca surgiu um sorriso sardônico.

— Estou emocionado e agradecido pela confirmação — murmurou.

— Tem certeza de que apertou o botão? — perguntou Garden. — É muito engraçado; este sistema nunca falhou em seis anos. Espere um minuto...

Dirigindo-se à porta gritou para Sneed e o mordomo entrou na sala quase que imediatamente.

— Vá lá em cima no estúdio, Sneed, e aperte o botão da campainha.

— A campainha não está funcionando, senhor — disse-lhe o imperturbável mordomo. — Já notifiquei a companhia e pedi-lhe que mandassem um homem para consertá-la.

— Quando você descobriu isso? — perguntou Garden irritado.

A enfermeira que ouvira a conversa, deixou a cadeira em que estava e veio até a porta.

— Eu descobri hoje à tarde que a campainha não estava funcionando — explicou — por isso falei com Sneed e sugeri que ele tomasse providências.

— Ah, compreendo. Obrigado, Srta. Beeton. — Garden voltou-se novamente para Vance. — Podemos subir agora?

A Srta. Graem, que estivera olhando a cena com uma expressão cínica e um tanto divertida, preparou-se para sair da sala.

— Para que subir? Desaparecerei no salão e vocês poderão abrir seus corações aqui mesmo.

Vance estudara a moça por alguns instantes e depois curvou-se ligeiramente.

— Muito obrigada — disse. — Isto será muito melhor.

— Afastou-se enquanto ela se encaminhava displicentemente para a saída e fechava a porta atrás de si.

Vance deixou cair o cigarro em um pequeno cinzeiro que se achava sobre a mesinha diante do sofá e, movendo-se suavemente até à porta, reabriu-a. De onde eu estava, pude ver que a Srta. Graem, em vez de ir para o lado do salão, caminhava rapidamente na direção oposta.

— Um momento, Srta. Graem! — A voz de Vance era peremptória. — Por favor, espere no salão. Ninguém pode ir lá em cima agora.

Ela deu meia volta.

— E por que não? — Seu rosto estava vermelho de raiva e o queixo levantado, em desafio. — Tenho o direito de subir — proclamou com animosidade.

Vance nada disse, mas sacudiu a cabeça negando e sustentando o seu olhar.

Ela o devolveu mas não pôde resistir à força daquele olhar. Lentamente voltou até onde ele estava.

— Mas o senhor não compreende — protestou com uma voz quebrada. — Sou eu a culpada desta tragédia, não foi a corrida. Se não fosse por mim, Woody estaria vivo agora. Eu... eu sinto horrivelmente. E eu quero subir... para vê-lo.

Vance pousou a mão no ombro dela.

— Na verdade — disse suavemente — nada indica que a culpa seja sua.

Zalia Graem ergueu o olhar para Vance interrogativamente.

— Então o que Floyd estava tentando dizer-me é verdade? Que Woody não se matou com um tiro?

— Pura verdade.

A jovem inspirou profundamente e seus lábios tremeram. Deu um passo rápido e impulsivo em direção a Vance e, descansando a cabeça em seu braço, rompeu em lágrimas.

Vance colocou as mãos nos braços dela e manteve-a afastada de si.

— Vamos, pare com essa tolice — advertiu-a duramente — e não tente ser tão diabolicamente inteligente. Vá para o salão e tome um highball. Ele a tornará alegre por tempo indeterminado.

O rosto da moça tornou-se subitamente cínico e ergueu os ombros num movimento exagerado.

— Bien, Monsieur Lecoq — retrucou sacudindo a cabeça. E passando por ele, percorreu altivamente o vestíbulo em direção ao salão.

 

 

 

 

VI

 

Uma Entrevista Interrompida

 

 


(Sábado, 14 de abril — 16:50 horas)

 

 

Vance observou-a enquanto se afastava. Depois virou-se e deparou com o olhar ansioso da Srta. Beeton. Ele lhe sorriu graciosamente e encaminhou-se para a saleta. Nesse momento a Sra. Garden apareceu, tão ressentida quão agressiva.

— Zalia acabou de me contar — disse zangada — que o senhor a proibiu de subir. É um ultraje! Mas é claro que eu vou subir. Esta casa é minha, lembre-se. O senhor não tem o direito de me impedir de passar esses últimos momentos com meu sobrinho.

Vance encarou-a. Havia em seu rosto uma expressão de sofrimento, mas seus olhos eram frios e duros.

— Tenho todos os direitos, senhora — disse ele. — A situação é da maior gravidade; e se não quiser aceitar o fato, serei forçado a fazer valer minha autoridade.

— É inacreditável! — protestou ela zangada. Garden chegou à porta da saleta.

— Pelo amor de Deus, Mama, — suplicou — seja razoável. O Sr. Vance está inteiramente certo. E, de qualquer forma, que espécie de razão poderia ter a senhora para desejar estar com Woody agora? Já temos escândalo de sobra. Para que envolver-se ainda mais?

A senhora encarou bem o filho e eu tive a sensação de que alguma mensagem telepática passou entre eles.

— Realmente não faz nenhuma diferença em particular — concordou com calma resignação; mas quando voltou os olhos para Vance, o seu ressentimento ressurgiu. — Senhor — perguntou — onde prefere que eu fique até a chegada dos seus policiais?

— Eu não quero parecer demasiado exigente, senhora, — retrucou mansamente Vance — mas eu apreciaria imensamente se permanecesse no salão.

A senhora ergueu as sobrancelhas, sacudiu os ombros e, girando com ar indiferente, voltou para o corredor.

— Lamento profundamente, Vance — desculpou-se Garden. — A Mama é uma "rainha-mãe". Não está acostumada a receber ordens. E ela se ressente. Duvido de que ela deseje sentar-se ao lado do corpo quase rígido de Woody. Mas detesta que lhe digam o que deve e o que não deve fazer. Ela provavelmente teria passado o dia na cama se o Dr. Siefert não lhe tivesse firmemente recomendado que não se levantasse.

— Está tudo certo — falou Vance com indiferença, fitando numa perplexa meditação a ponta do cigarro. Depois ele foi rapidamente até a porta da saleta. — Vamos então ter a nossa conversinha, sim? — E afastou-se para que Garden pudesse entrar; seguiu-o e fechou a porta.

Garden deixou-se cair numa das extremidades do sofá e tirou um cachimbo de uma pequena gaveta na mesa baixa. Encheu lentamente o cachimbo, enquanto Vance caminhava até à janela, onde parou olhando a cidade lá embaixo.

— Garden, — começou ele — há algumas coisas que eu gostaria de ter esclarecido antes da chegada do procurador distrital e da polícia. — Girou tranqüilamente e veio sentar-se diante da escrivaninha, encarando Garden. Este parecia encontrar alguma dificuldade em acender o cachimbo. Quando finalmente o conseguiu, ergueu o olhar abatido e encontrou o de Vance.

— Tudo o que eu puder fazer para ajudar — murmurou, pitando o cachimbo.

— Algumas perguntas necessárias, sabe como é — prosseguiu Vance. — Acredito que elas não vão perturbá-lo. Mas o fato é que o Sr. Markham certamente quererá que eu participe da investigação, já que fui uma testemunha do preâmbulo desta horrível tragédia.

— Espero que sim — retrucou Garden. — É um caso escabroso e eu gostaria de ver o machado cair, não importa quem seja o decapitado. — Seu cachimbo continuava causando problema. — A propósito Vance, — prosseguiu ele calmamente — como coincidiu de você estar aqui hoje? Tantas vezes eu o convidei a participar de nossas tardes turfísticas e só neste dia de tragédia é que aceitou meu convite.

Vance manteve os olhos fixos em Garden durante uns momentos.

— O caso é — disse por fim — que eu recebi um telefonema anônimo a noite passada, vagamente delineando a situação e mencionando Equanimity.

Garden sacudiu o corpo para prestar uma atenção mais apurada. Seus olhos arregalaram-se e tirou o cachimbo da boca.

— Que diabo você está dizendo! — exclamou. — Essa é muito boa. Homem ou mulher?

— Ah, era um homem — respondeu tranqüilamente Vance.

Garden apertou os lábios e depois de meditar durante uns momentos, disse calmamente: — Bem, de qualquer forma, fico muito satisfeito que você tenha vindo... Que informação poderei prestar-lhe? Pergunte o que quiser, velho.

— Primeiro de tudo — começou Vance — você reconhece o revólver? Eu o vi olhando para ele com um ar apreensivo quando chegamos ao terraço.

Garden franziu a testa, ocupou-se durante um certo tempo com o cachimbo e finalmente respondeu, como se numa resolução súbita.

— Sim! Eu o reconheci, Vance. Pertence ao velho...

— Seu pai?

Garden assentiu sombriamente.

— Ele o tem há muitos anos. Mas não sei por que razão o comprou; certamente sem nenhuma intenção determinada.

— Por falar nisso — indagou Vance — a que horas normalmente costuma seu pai voltar da Universidade?

— Bem, bem... — Garden depois continuou. — Nos sábados, ele sempre chega aqui no começo da tarde; raramente depois das três. Ele se permite e ao seu pessoal um semi-feriado... Mas meu pai é homem de venetas e variável. — Sua voz desafinou nervosamente.

Vance deu duas tragadas em seu cigarro: examinava Garden atentamente. Depois perguntou em tom macio: — Em que está você pensando? A menos que, evidentemente, você tenha alguma razão para não me contar.

Garden inspirou profundamente e ergueu-se. Parecia estar profundamente perturbado.

— A verdade é, Vance, — disse, sentando-se de novo — que eu nem sequer sei onde está papai esta tarde. Assim que eu desci após a morte de Woody, telefonei para dar-lhe a notícia. Pensei que ele desejasse estar aqui o mais depressa possível, em vista das circunstâncias. Mas disseram-me que ele havia trancado o laboratório e deixado a Universidade por volta das duas horas. — Garden levantou os olhos. — Provavelmente foi à biblioteca para algum trabalho de pesquisa. Ou está lá pela Universidade ainda.

Eu não podia entender a perturbação do rapaz, e pude notar que isso intrigava Vance, que se dedicou a pô-lo à vontade.

— Isto realmente não tem importância — disse como que abandonando o assunto. — Pode ter acontecido que seu pai só venha a ter conhecimento da tragédia mais tarde. — Fumou durante uns instantes. — Mas, voltando ao revólver: onde é que ele costumava ficar guardado?

— Na gaveta central da escrivaninha, lá em cima — respondeu Garden prontamente.

— E esse fato era do conhecimento geral dos outros moradores da casa, ou do próprio Swift?

Garden assentiu.

— Ah, sim. Não era segredo. Muitas vezes caçoávamos do velho a respeito do seu "arsenal". A semana passada, durante o jantar, ele pensou ter ouvido alguém no jardim e correu lá em cima para ver quem era. A Mama chamou-o brincando: "Finalmente você vai ter uma oportunidade de usar o seu precioso revólver." O velho voltou alguns minutos depois um tanto encabulado. Durante todo o resto do jantar nós brincamos com ele.

— E o revólver estava sempre carregado?

— Ao que me conste, sim.

— E havia uma reserva de cartuchos?

— Não posso responder com precisão, mas creio que não. —i E agora uma pergunta muito importante, Garden — prosseguiu Vance. — Quantas, dentre as pessoas aqui presentes no dia de hoje, poderiam ter conhecimento de que seu pai guardava o revólver carregado na gaveta da escrivaninha? Responda com precisão.

Garden meditou por um bom momento. Os olhos perdidos no espaço, pitando firmemente o seu cachimbo.

— Estou tentando lembrar exatamente — disse — quem estava aqui no dia em que Zalia descobriu o revólver...

—' Que dia foi esse? — interrompeu vivamente Vance.

— Foi há cerca de três meses — explicou Garden. — Como você sabe, nós costumávamos ter o sistema de telefone ligado com o estúdio lá em cima. Mas algumas das corridas do oeste eram tão tarde que isso interferia com a rotina do velho quando ele voltava da Universidade. Então removemos toda aquela confusão para baixo, no salão. Na realidade, era mais conveniente, e a Mama não fez objeção; na realidade até gostou da coisa...

— Mas o que aconteceu naquele determinado dia? — insistiu Vance.

— Estávamos lá em cima no estúdio, acompanhando toda aquela ladainha das corridas que você pôde apreciar esta tarde, quando Zalia Graem, que sempre se sentava à escrivaninha do velho, começou a abrir as gavetas procurando um pedaço de papel de rascunho onde pudesse anotar as apostas.

Finalmente, ela abriu a gaveta central e viu o revólver. Tirou-o de lá com um grande gesto e, rindo como uma colegial, apontou-o para nós. Depois ela fez alguns comentários sobre a perfeição de nossas instalações para o jogo, estabelecendo um paralelo entre a presença do revólver e a sala dos suicidas em Monte Cario. "Todas as comodidades da Riviera." Ou qualquer coisa no mesmo gênero. "Quando você tiver perdido a camisa, pode estourar os miolos." Eu a repreendi — até um tanto rudemente, receio — e ordenei-lhe que pusesse o revólver outra vez no lugar, porque estava carregado. Mas como nesse momento o amplificador começasse a transmitir um páreo, o episódio ficou nisso.

— Muito interessante — murmurou Vance. — E você pode lembrar-se das pessoas de hoje que presenciaram a esse pequeno show da Srta. Graem?

— Creio que estavam todos, se não me falha a memória.


Vance suspirou.

— Um tanto difícil, não é? Nenhuma possibilidade de eliminação.

Garden ergueu os olhos, perplexo: — Eliminação? Não compreendo. Estávamos todos lá embaixo esta tarde quando foi dado o tiro, com exceção de Kroon, mas ele havia saído.

— Certo, certo — concordou Vance, reclinando-se na cadeira. — Esta é a parte mais intrigante e desesperante do caso. Ninguém poderia ter feito aquilo e no entanto alguém o fez. Mas não nos vamos demorar no assunto. Há ainda um ou dois pontos sobre os quais quero interrogá-lo.

Nesse instante houve uma pequena agitação no corredor. Parecia como se estivesse havendo algum tipo de tumulto e uma voz penetrante e de protesto misturava-se ao tom calmo, porém determinado, da enfermeira. Vance foi imediatamente até a porta e abriu-a completamente. Ali, bem à porta da saleta, apenas a poucos passos da escada, estavam a Srta. Weatherby e a Srta. Beeton. A enfermeira mantinha firmemente a outra e discutia calmamente com ela. Quando Vance se encaminhou para ambas, a Srta. Weatherby voltou-se para encará-lo e empertigou-se arrogantemente.

— Que significa tudo isso? — perguntou. — Será que tenho de ser maltratada por uma doméstica só porque quero ir lá em cima?

— A Srta. Beeton recebeu ordens de não deixar ninguém ir lá em cima — disse Vance com dureza. — E não me consta que ela seja uma doméstica.

— Mas, por que eu não posso subir? — perguntou ela com uma ênfase dramática. — Quero ver o pobre Woody. A morte é tão bela e eu gostava muito de Woody. Por ordens de quem, pergunto eu, está-me sendo negado esta última comunhão com aquele que partiu?

— Por ordens minhas — disse-lhe friamente Vance. — Além disso, essa morte aqui está longe de ser bela, eu lhe garanto. Infelizmente, não estamos vivendo na era de Maeterlinck. A morte de Swift é bastante sórdida, creia-me. A polícia não tardará a chegar. Até lá, ninguém tem permissão para ir lá em cima.

Os olhos da Srta. Weatherby faiscaram.

— Então, por que — perguntou com indignação teatral — estava esta... esta mulher — e olhou com desprezo para a enfermeira — descendo as escadas quando eu entrei no corredor?

Vance não procurou esconder um sorriso divertido.

— Não tenho idéia. Posso perguntar a ela depois. Mas acontece que ela recebeu instruções para não deixar ninguém subir. Vai ter a gentileza, Srta. Weatherby, — acrescentou quase que asperamente — de voltar para o salão e lá permanecer até que cheguem as autoridades?

A mulher olhou com arrogância para a enfermeira e depois, com um movimento de cabeça, caminhou para a escada. De lá voltou-se, com um sorriso cínico, gritou para nós em tom artificial: — Minhas bênçãos, crianças. — E com o que desapareceu no salão.

A enfermeira, obviamente embaraçada, voltou-se para regressar a seu posto, mas Vance interrompeu-a: — Esteve lá em cima, Srta. Beeton? — perguntou com um tom bondoso.

Ela estava parada, ereta, sua face ligeiramente ruborizada. Mas, para toda a sua aparente perturbação, ela era como um símbolo de equilíbrio. Fitou Vance franca e firmemente e depois sacudiu a cabeça devagar.

— Não deixei o meu posto, Sr. Vance — disse com calma. — Eu sei qual é o meu dever.

Vance devolveu-lhe o olhar por um instante e, em seguida inclinou levemente a cabeça.

— Obrigado, Srta. Beeton — disse.

Vance retornou à saleta e, fechando a porta, dirigiu-se novamente a Garden.

— Agora que nos livramos temporariamente da dramática rainha — sorriu sombriamente — acho que podemos continuar a nossa conversa.

Garden riu de leve e recomeçou a encher o cachimbo.

— Garota estranha a Madge, sempre agindo como uma atriz; mas não creio que ela algum dia tenha realmente feito teatro. Ambição dramática reprimida e tudo o mais. Sonha que e uma segunda Nazimova... e sonhos mórbidos. A não ser isso, ela é bastante normal. Aceita suas derrotas como um velho general... e nos últimos meses ela tem perdido um bocado...

— Você ouviu quando ela me disse gostar muito de Swift — observou Vance. — Que queria ela dizer com isso, exatamente?

Garden deu de ombros.

— Nada, em minha opinião. Ela nem sequer ligava para a existência dele, por assim dizer. Porém morto, Woody torna-se uma possibilidade dramática.

— É, é isso — murmurou Vance. — Isto me faz lembrar: qual era a discórdia entre Swift e a Srta. Graem? Percebi suas atividades pacificadoras hoje à tarde.

Garden tornou-se sério.

— Eu mesmo não consegui entender a situação. Sei que há algum tempo atrás eles estiveram bastante ternos um com o outro, isto é, Woody estava muito interessado nos acontecimentos desde que Zalia participasse, pairava à volta dela o tempo todo e aceitava os seus gracejos amistosos sem um murmúrio. Depois, de repente, o caso amoroso em embrião — ou o que quer que fosse — azedou. Do tipo "nunca mais falarei com você". Como duas crianças. Evidentemente deve ter acontecido alguma coisa, mas eu nunca soube ao certo. Pode ter sido uma nova paixão por parte de Woody; estou certo de que foi algo no gênero. Quanto à Zalia, ela nunca levou a coisa a sério. E tenho uma idéia aqui comigo de que Woody insistiu naquela cartada por algum motivo relacionado com Zalia...

— Garden parou abruptamente de falar e deu um tapa na coxa: — Puxa vida! Eu não ficaria admirado se aquela jogadorazinha de uma figa tivesse desprezado Woody porque ele era relativamente duro. Com essas garotas de hoje nunca se sabe. Elas são tão interesseiras como o diabo em pessoa.

Vance assentiu com a cabeça pensativamente.

— Suas observações coincidem um pouco com o que ela me disse há poucos instantes. Também ela queria ir lá em cima ver Swift. Seu pretexto era o fato de se sentir culpada por todo esse sórdido negócio.

Garden sorriu.

— Bem, aí tem você — depois acrescentou ponderadamente: — Mas com as mulheres nunca se sabe. Às vezes Zalia dá a impressão de ser superficial, mas no minuto seguinte ela faz um comentário que o levaria a crer estar ouvindo um filósofo octogenário. Uma garota especial. Ali estão muitas possibilidades.

— Estou vendo. — Vance fumou em silêncio por alguns instantes, depois prosseguiu. — Há um outro ponto relativo a Swift que você talvez pudesse esclarecer. Você poderia sugerir algum motivo pelo qual Swift me olhou com ganas de ódio na ocasião em que fiz a aposta em Azure Star para a Srta. Beeton?

— Eu também notei isso — concordou Garden. — Mas não posso dizer que signifique muita coisa. Woody sempre foi um fracalhão com as mulheres. Um nada o fazia crer que estava apaixonado. Ele pode ter-se interessado pela enfermeira; afinal há alguns meses que ele a vê aqui. E agora que você mencionou o fato, em diversas ocasiões ele se mostrou feroz comigo porque a Srta. Beeton me tratava mais cordialmente do que a ele. Mas quanto a Woody, eu acho o seguinte: se ele se interessou pela Srta. Beeton, o gosto dele estava melhorando. Ela é uma garota diferente... fora de série.

Vance meneou a cabeça lentamente e fixou a janela com especial concentração.

— Sim — murmurou — muito diferente. — Depois, como regressando de algum pensamento distante, esmagou o cigarro e inclinou-se para a frente: — Vamos deixar de lado a especulação, por agora. Suponhamos que você me diga alguma coisa sobre a caixa-forte lá em cima.

Garden encarou-o com surpresa evidente.

— Nada há a dizer sobre aquele velho bazar. E na realidade aquilo não é uma caixa forte. Há alguns anos papai descobriu que havia acumulado uma porção de papéis privados e dados experimentais que ele não gostaria de ver os visitantes comuns bisbilhotando. Então mandou construir aquele depósito à prova de fogo para abrigar os seus tesouros científicos. A caixa-forte, como você chama, foi feita mais na intenção de mero isolamento que de segurança. É apenas uma salinha com estantes toda à volta.

— Todos na casa têm acesso a ela? — perguntou Vance.

— Qualquer um que o deseje — replicou Garden. — Mas quem, em nome dos céus, poderia querer ir lá?

— Realmente, eu não sei; não tenho a mais remota idéia — retorquiu Vance — exceto que, quando eu desci há pouco, encontrei a porta destrancada.

Garden sacudiu os ombros despreocupadamente, como se o assunto fosse normal e sem importância.

— Provavelmente — sugeriu — papai não a fechou bem quando saiu hoje de manhã. Ela tem um fecho de mola.

— E a chave?

— A chave é mais uma formalidade. Fica pendurada em um prego ao lado da porta.

— Então, segundo o que diz, o cofre é facilmente acessível a qualquer morador que ali.queira entrar.

— Exatamente — concordou o outro. — Mas, onde está você querendo chegar, Vance? Que tem o cofre a ver com a morte do pobre Woody?

— Não estou certo — respondeu Vance lentamente, erguendo-se e voltando à janela. — Gostaria de saber. Estou simplesmente tentando não desprezar qualquer possibilidade.

— Sua linha de interrogatório parece-me um bocado forçada — comentou Garden com indiferença.

— Nunca se sabe, não é? — murmurou Vance indo em direção à porta. — Srta. Beeton, — chamou — poderia ter a gentileza de ir lá em cima e ver se a chave da caixa-forte está no lugar?

Minutos depois regressava a enfermeira e informava a Vance que a chave estava onde sempre fora guardada.

Vance agradeceu e, fechando a porta da saleta, voltou-se para Garden: — Há um outro ponto também importante que você poderá esclarecer para mim; isto pode ter uma definida influência na situação — sentou-se em uma cadeira baixa de couro verde e tirou a cigarreira. — O jardim tem acesso pela saída de incêndio do terraço?

— Sim, claro! — O outro sentou-se com animação. — Há um portão na grade do lado este do jardim, exatamente ao lado da cerca de alfenas que conduz ao terraço, para onde se abre a saída de incêndio do prédio. Quando fizemos a grade, tivemos de botar um portão devido às leis de segurança contra incêndio. Mas é raramente usado, exceto nas noites quentes de verão. Assim, se alguém subiu a escada principal até o telhado, e saiu pela porta de emergência, essa pessoa poderia facilmente entrar em nosso jardim através do portão na grade.

— Vocês não mantêm a porta trancada? — Vance estudava com extrema atenção a ponta de seu cigarro.

— Os regulamentos de incêndio não permitem. Temos lá apenas uma velha tramela do tipo de porta de estábulo.

— Isto é muito interessante — comentou Vance em voz baixa. — Então, segundo eu compreendo, qualquer pessoa que subisse a escada principal poderia entrar no terraço pela porta de incêndio e daí para o jardim. E, naturalmente, voltar pelo mesmo caminho.

— Certo — Garden apertou os olhos interrogativamente. — Você realmente crê que alguém possa ter entrado no jardim por ali e abatido o pobre Woody enquanto estávamos todos aqui embaixo?

— Eu por enquanto estou pensando o menos possível — respondeu Vance em evasiva. — Estou tentando reunir material para pensar, sabe como é?

Pudemos ouvir a campainha da entrada vibrar e abrir-se uma porta. Vance foi até o corredor. Um momento após o mordomo introduziu o procurador distrital Markham e o sargento Heath, acompanhado de Snitkin e Hennessey *.

 

 

 

*Snitkin e Hennessey eram dois detetives do Departamento de Homicídios que trabalharam em colaboração com o sargento Heath em vários processos criminais com que Vance estivera relacionado.

 

 

 

 

VII

 

Evidência de Assassinato

 

 

 

(Sábado, 14 de abril — 17:10 horas)

 

 

— Bom, qual é o problema, Vance? — perguntou asperamente Markham. — Telefonei para Heath como você pediu e trouxe-o comigo.

— É um negócio feio — respondeu Vance. — Exatamente como eu lhe disse. Receio que você vá encontrar algumas dificuldades; não é um crime comum. Tudo o que consigo colher é logo destruído por um fato novo. — Ele passou o olhar por Markham e acenou amistosamente para Heath. — Desculpe-me dar-lhe todo esse trabalho, sargento.

— Não há problema, Sr. Vance. — Heath estendeu-lhe a mão numa solene simpatia. — Fico satisfeito por estar lá na hora em que o Chefe telefonou. Que está acontecendo e que devemos fazer?

A Sra. Garden irrompeu alvoroçadamente pelo corredor.

— O senhor é o procurador distrital? — perguntou encarando ferozmente Markham. Sem esperar pela resposta, prosseguiu: — Tudo isto é um ultraje. Meu pobre sobrinho matou-se e este homem aqui — olhou para Vance com supremo desprezo — está tentando fazer um escândalo. — Seu olhar percorreu Heath e os dois detetives. — E suponho que vocês sejam da polícia. Não há razão alguma para que estejam aqui.

Markham olhou-a com firmeza e pareceu compreender imediatamente a situação.

— Minha senhora, se as coisas são como diz — prometeu ele num tom apaziguador porém grave — não precisa recear qualquer escândalo.

— Deixo o caso inteiramente em suas mãos, senhor — retrucou a senhora com calma dignidade. — Estarei no salão à sua disposição para o que seja necessário. — Ela deu meia volta e caminhou pelo corredor afora.

— Um negócio bastante complicado e desagradável, Markham. — Vance levantou novamente a questão. — Admito que o camarada lá em cima aparenta ter-se matado. Mas isso, creio eu, é o que se espera que todos acreditem. Um quadro superficialmente correto. Encenação e cenário bastante bons porém tudo está longe da perfeição; observei discrepâncias. Na realidade, o rapaz não se matou. E há aqui diversas pessoas que deverão ser interrogadas mais tarde. Estão todos no salão agora; exceto Floyd Garden.

Garden, que estivera de pé à porta da saleta, avançou e Vance apresentou-o a Markham e Heath. Depois Vance voltou-se para o sargento.

— Acho que você deveria mandar Snitkin ou Hennessey ficarem aqui embaixo e verificar que ninguém deixe o apartamento por enquanto. — Dirigiu-se a Garden: — Espero que você não se importe.

— Em absoluto — replicou Garden complacentemente.

— Vou juntar-me aos outros que estão no salão. Estou mesmo precisando de um highball. — Saudou a todos de cabeça e retirou-se.

— Seria melhor que fôssemos lá para o terraço, Markham — disse Vance. — Vou recapitular tudo com você. Há alguns aspectos estranhos no caso. Não estou gostando nada disso. Lamento bastante ter vindo aqui hoje. Poderia ter passado por um lindo e elegante suicídio sem qualquer suspeita... Todos muito aliviados. Mas, cá estou eu. E no entanto...

Ele avançou pelo corredor, e Markham, Heath e eu o seguimos. Mas antes de subir as escadas ele parou e dirigiu-se à enfermeira.

— Não mais precisa ficar de guarda aqui, Srta. Beeton — disse. — E obrigado pela ajuda. Mais um favor ainda: quando chegar o médico legista, por favor, traga-o diretamente para cima.

A jovem inclinou a cabeça em sinal de aquiescência e entrou no quarto de dormir.

Subimos imediatamente para o jardim. Quando chegamos ao terraço, Vance indicou o corpo de Woody derreado na cadeira.

— Aqui está o cara — disse. — Exatamente como eu o encontrei.

Markham e Heath aproximaram-se mais do vulto caído e o examinaram durante instantes. Finalmente, Heath ergueu os olhos com um ar perplexo.

— Bem, Sr. Vance, — anunciou desafiador — parece mesmo suicídio. — E mudou o charuto de um canto para o outro.

Markham também voltou-se para Vance e meneou a cabeça em sinal de concordância com a observação do sargento.

— É exato que tem aparência de suicídio, Vance — observou.

— Não, não — suspirou Vance. — Não é suicídio. Um crime diabolicamente brutal e extremamente inteligente.

Markham fumou durante algum tempo, ainda fitando cepticamente o corpo; depois sentou-se encarando Vance.

— Vamos ver a história toda antes que Doremus* chegue aqui — pediu com uma acentuada irritação.

 

 

 

*Dr. Emanuel Doremus, o legista-chefe da cidade de Nova York.

 

 

 


Vance permaneceu de pé, seus olhos percorrendo o jardim sem se fixarem. Após um instante, ele contou outra vez, sucinta porém cuidadosamente, toda a seqüência dos acontecimentos da tarde, com todas as interrelações e explosões temperamentais; os diferentes páreos e apostas; a retirada de Swift para o jardim a fim de aguardar os resultados do grande prêmio; e, finalmente, o tiro que fizera todos erguerem-se e subirem. Quando terminou, Markham cocou o queixo durante algum tempo.

— Ainda não encontrei um único fato — objetou — que não aponte logicamente um suicídio.

Vance encostou-se à parede vizinha à janela do estúdio e acendeu um Régie.

— Evidentemente, nada há no esboço que eu fiz que possa indicar um assassinato. Não obstante, foi assassinato; e o esboço é exatamente a concatenação exata de fatos que o assassino nos quer fazer aceitar. Deveríamos chegar à óbvia conclusão de suicídio. Suicídio como o resultado de perder dinheiro nas corridas não é, de forma alguma, um acontecimento raro, e bem recentemente tem havido notícias nos jornais sobre o assunto*. Não é impossível que o plano do assassino tenha sido influenciado por esses relatos. Mas há outros fatores, psicológicos e reais, que desmentem toda essa estrutura superficial e enganadora.

 

 

 

*Vance referia-se ao suicídio de um homem em Houston, Texas, que deixou o seguinte bilhete: "Ao público: As corridas de cavalo fizeram isto. A melhor coisa que os juristas do Texas poderiam fazer é revogar e tornar mais severa a atual legislação do jogo."

 

 

 


Deu umas tragadas no cigarro e ficou observando o anel azulado da fumaça desfazer-se na leve brisa que vinha do rio.

— Para início de conversa — prosseguiu — Swift não era do tipo de gente que se suicida. Uma observação trivial, que muitas vezes pode não ser verdadeira. Mas, nas circunstâncias atuais, não há motivo para duvidar de sua veracidade, a despeito de o jovem Garden ter-se dado muito trabalho para me convencer do contrário. Em primeiro lugar, Swift era uma criatura fraca e altamente imaginativa. Além disso, ele era demasiado esperançoso e ambicioso, muito seguro de seu próprio discernimento e boa sorte, para colocar-se fora deste mundo simplesmente por ter perdido todo o dinheiro que tinha. A possibilidade de Equanimity não vencer a corrida era uma eventualidade que, em sua condição de experimentado jogador, ele teria considerado de antemão. Além disso, sua natureza é tal que, se ele estivesse grandemente desapontado, o resultado seria autocomiseração e ódio dos outros. Ele poderia, em uma emergência, ter cometido um crime, mas isto nunca seria contra si próprio. Como todos os jogadores, ele era confiante e crédulo; e acho que foram essas qualidades temperamentais que provavelmente o tornaram uma presa fácil para o assassino.

— Mas olhe aqui, Vance — Markham inclinou-se para a frente, protestando. — Nenhuma espécie de simples análise psicológica pode fabricar um crime de uma situação tão aparentemente óbvia como a presente. Afinal de contas, estamos em um mundo prático e eu sou o representante de uma profissão prática. Necessito de motivos mais definidos que os apresentados por você antes de me sentir justificado a descartar a idéia de suicídio.


— Ah, eu acredito — anuiu Vance. — Mas tenho evidências mais tangíveis de que o camarada aqui não eliminou a própria vida. Entretanto, as implicações psicológicas do indivíduo — as contradições, digamos assim, entre o seu caráter e a situação atual foram o que primeiro me levaram a procurar uma evidência específica e clara de que ele não estava sem ajuda em sua morte.

— Bem, vejamos — Markham tamborilou impacientemente com os dedos na cadeira.

— Imprimis, meu caro Justiniano, um buraco de bala na têmpora, indubitavelmente, provocaria mais sangue que o encontrado na fronte do falecido. Como você pode ver, há apenas algumas gotas parcialmente coaguladas, enquanto que os vasos do cérebro não podem ser perfurados sem uma enorme perda de sangue. E também não há sangue em suas roupas ou nos azulejos embaixo de sua cadeira. Isto significa que o sangue talvez tenha sido derramado em outro lugar antes que eu chegasse ao local, o que foi, digamos, trinta segundos após termos ouvido o tiro...

— Mas, por Deus, homem!

— Sim, sim, já sei o que você vai dizer. E minha resposta é que o cavalheiro não recebeu a bala na têmpora enquanto estava sentado em sua cadeira de vime e usando o fone de cabeça. Ele foi morto em outro lugar e trazido para cá.

— Uma teoria bastante remota — murmurou Markham — nem todas as feridas sangram da mesma maneira.

Vance ignorou a objeção do procurador distrital.

— E por favor dê uma boa olhada no pobre coitado que está sentado aí, livre de todos os horrores da luta pela existência. Suas pernas estão estendidas para a frente em um estranho ângulo. As calças estão fora do lugar, retorcidas, e parecem inconfortáveis; seu paletó, apesar de abotoado, está fora do lugar, de maneira que o colarinho está pelo menos dez centímetros acima de sua bonita camisa lilás. Nenhum homem admitiria ter suas roupas tão ultrajantemente retorcidas, mesmo à beira do suicídio; ele as teria ajeitado quase que inconscientemente. O corpo de delito dá todas as indicações de que Woody foi arrastado e sentado naquela cadeira.

Os olhos de Markham iam examinando o cadáver de Swift enquanto Vance falava.

— Até mesmo esse argumento não é muito convincente — disse dogmaticamente, embora seu tom estivesse levemente modificado — especialmente em vista do fato de ele ainda usar o fone de cabeça.

— Ah, exatamente! — Vance interrompeu rápido. — Este é um outro ponto para o qual eu queria chamar a sua atenção. O assassino exagerou um pouco; havia um quê de perfeição demais na preparação do cenário. Caso Swift se tivesse matado naquela cadeira, acho que o seu primeiro impulso teria sido o de arrancar o fone da cabeça, pois esse facilmente teria interferido em seu objetivo. E também o fone não mais lhe seria útil após ter ouvido o resultado das corridas. Além do mais... tenho sérias dúvidas de que ele tenha ido lá em cima para ouvir as corridas, já decidido a cometer suicídio, caso o seu cavalo não chegasse primeiro. E, como já lhes expliquei, o revólver pertence ao Sr. Garden e costumava ser guardado na escrivaninha do estúdio. Conseqüentemente, se após corrido o páreo Swift tivesse decidido matar-se, dificilmente teria ido até o estúdio procurar a arma, para depois voltar à sua cadeira no terraço e colocar serenamente o fone antes de dar cabo à vida. Indubitavelmente, ele se teria matado lá mesmo no estúdio, perto da escrivaninha de onde teria tirado o revólver.

Vance avançou um pouco como para dar ênfase às suas palavras.

— Um outro ponto a respeito do fone de cabeça. O que primeiro me deu uma pista do crime, é o fato que agora o fone está na orelha direita de Swift. Hoje cedo eu vi Swift colocar o fone e observei que ele tinha o cuidado de colocar o receptor na orelha esquerda, isto é, na maneira habitual. Veja, Markham, o receptor do telefone sempre é colocado à esquerda da caixa que contém o aparelho, a fim de deixar a mão direita livre para qualquer anotação ou outras emergências. O resultado disso é que o ouvido esquerdo adaptou-se a ouvir mais distintamente pelo aparelho que o direito. E, em conseqüência disso, a humanidade acostumou-se a segurar o fone junto à orelha esquerda. Swift estava simplesmente agindo de acordo com um hábito e instinto, quando colocou a extremidade receptora do fone no lado esquerdo da cabeça. Mas, agora, o fone está em posição inversa e, portanto, fora do normal. Estou certo, Markham, de que o fone foi colocado em sua cabeça após a morte.

Markham meditou no caso durante alguns momentos.

— Ainda assim, Vance, — disse ele por fim — poderíamos erguer objeções razoáveis a todos os pontos que você apresentou. Eles são baseados quase que inteiramente em teoria e não em fatos demonstráveis.

— Do ponto de vista legal, você está certo — concordou Vance — e se estas fossem as minhas únicas razões para acreditar que foi cometido um crime, eu não o teria convocado aqui, nem ao valente sargento. Mas, mesmo assim, Markham, posso garantir-lhe que as poucas gotas de sangue que você vê nas têmporas aqui do nosso amigo não teriam engrossado ao ponto em que estavam quando eu vi o corpo pela primeira vez; elas deviam já estar expostas ao ar por alguns minutos. E, como eu digo, cheguei aqui em cima aproximadamente trinta segundos após ouvirmos o tiro.

— Mas se é assim — retrucou Markham surpreendido — como pode você explicar o caso?

Vance esticou-se um pouco e olhou para o procurador distrital com uma gravidade involuntária: — Swift não morreu do tiro que ouvimos.

— Isto para mim não faz sentido, Sr. Vance — interpôs Heath, carrancudo.

— Um momento, sargento. — Vance fez-lhe um gesto frio. — Quando notei que o tiro que acabou com a existência aqui do nosso rapaz não fora o que ouvíramos, eu tentei imaginar onde poderia ter sido feito o disparo fatal de modo a não ser ouvido lá embaixo. E eu descobri o lugar. Foi no depósito que parece uma caixa-forte e, poderíamos dizer, é quase a prova de som e fica do outro lado do corredor que leva ao estúdio. Achei a porta destrancada e procurei evidência de alguma atividade naquele local...

Markham erguera-se e dava algumas passadas nervosas à volta do pequeno lago em meio do terraço.

— Você achou alguma evidência para confirmar a sua teoria? — perguntou.

— Sim, evidência inequívoca. — Vance caminhou até a figura imóvel na cadeira e apontou para os óculos de grossas lentes colocados quase na ponta do nariz. — Para início de conversa, Markham, você vai notar que os óculos de Swift estão numa posição que não é normal, indicando que foram colocados apressadamente e sem cuidado por outra pessoa, da mesma forma que o fone da cabeça.

Markham e Heath inclinaram-se e estudaram os óculos.

— Bem, Sr. Vance, — concordou o sargento — eles certamente não parecem ter sido colocados pelo próprio dono.

Markham ergueu-se, apertou os lábios e concordou lentamente com a cabeça: — Está certo — disse. — Que mais?

— Reflita, Markham. — Vance apontou com o cigarro.

— A lente esquerda dos óculos, a que está mais afastada da têmpora perfurada, está quebrada no canto e falta um pedacinho em forma de V onde começa o rachado: uma indicação de que os óculos caíram e racharam. Posso garantir-lhe que as lentes não estavam quebradas nem rachadas quando vi Swift vivo pela última vez.

— Ele não poderia ter deixado cair os óculos aqui no terraço? — perguntou Heath.

— É possível, sem dúvida, sargento — retrucou Vance. — Mas não o fez. Procurei cuidadosamente nos ladrilhos à volta da cadeira e o pedaço que falta não estava aí.

Markham olhou para Vance sobranceiro.

— Talvez você saiba onde se encontra.

— E o achei — disse Vance — no chão de ladrilho da caixa-forte, do outro lado do corredor. E estava próximo a alguns papéis espalhados que é bem possível tenham sido derrubados no chão por alguém que neles bateu ao cair.

Os olhos de Markham arregalaram-se com incredulidade; voltou-se e estudou novamente o cadáver com atenção. Finalmente, respirou fundo e mordeu os lábios.

— Estou começando a ver por que você queria a mim e ao Sargento Heath aqui — disse devagar. — Mas, o que não compreendo, Vance, é o segundo tiro que você ouviu. Como você o explica?

Vance deu uma profunda tragada.

— Markham, — respondeu com uma seriedade tranqüila — quando soubermos como e por quem foi dado o segundo tiro, que, obviamente, destinava-se a ser ouvido por nós, saberemos quem matou Swift...

Nesse instante a enfermeira apareceu na porta que levava ao terraço. Com ela estavam o Dr. Doremus e, atrás do legista, o capitão Dubois e o detetive Bellamy, os homens das impressões digitais, e também Peter Quackenbush, o fotógrafo oficial da polícia.


VIII

 

Fios Desligados

 

(Sábado, 14 de abril — 17:30 horas)

 

 

 

Com um gesto profissional, a Srta. Beeton indicou nossa presença no terraço e afastou-se para o lado; o médico legista caminhou vivamente em nossa direção com um "Obrigado, querida" atirado à enfermeira por cima do ombro.

— Se eu puder ajudar em alguma coisa — ofereceu a jovem.

— Por enquanto, não — replicou Vance com sorriso amável — embora possamos chamá-la mais tarde.

Com uma inclinação de cabeça ela indicou ter compreendido e voltou a descer.

Doremus responde à nossa saudação conjunta com um jovial aceno de mão e estacou airosamente diante de Heath.

— Parabéns, sargento — disse ele num falsete de zombaria. — Parabéns, mesmo!

O sargento imediatamente pôs-se em guarda, pois já conhecia de há muito a língua apimentada do legista.

— Bem, que está acontecendo, doutor? — riu Heath.

— Pela primeira vez em sua vida — prosseguiu jocosamente Doremus — você achou a hora certa para me chamar. Positivamente surpreendente, como diria o Sr. Vance aqui presente. Eu não estava nem comendo nem dormindo, quando chegou o seu chamado. Nada tinha a fazer; realmente estava meio chateado. Pela primeira vez na história, você não me tirou da mesa, nem me arrancou de sob os cobertores. Por que este repentino surto de caridosa consideração? Pela primeira vez vou fazer um serviço de bom humor... Tragam todos os cadáveres e eu os examinarei sem rancor.

Heath divertia-se apesar de estar aborrecido.

— Eu não estou providenciando assassínios de acordo com a sua conveniência. Mas se desta vez o encontrei à toa, fico satisfeito. Há um cara na cadeira ali. É um achado do Sr. Vance e ele tem algumas idéias a respeito.

Doremus empurrou o chapéu bem para trás, enfiou as mãos nos bolsos das calças e caminhou tranqüilamente até a cadeira de vime e seu ocupante sem vida. Fez um rápido exame do flácido vulto, inspecionou o orifício da bala, testou os braços e pernas com relação ao rigor mortis e, em seguida, deu meia volta para encarar-nos.

— Então, qual é o problema? — perguntou com seu modo quase cínico. — Ele está morto; um tiro na cabeça com uma bala de pequeno calibre e o chumbo provavelmente se alojou no cérebro. Não há buraco de saída. Dá a impressão que ele decidiu matar-se com um tiro. E nada há que contradiga essa suposição. A bala entrou na têmpora, no ângulo certo. Além disso, há marcas de pólvora mostrando que a arma foi colocada bem perto, quase um tiro à queima-roupa, eu diria. Há um indício de chamusco à volta do orifício.

Ele balançou-se na ponta dos pés e olhou de soslaio para o sargento: — Você não me precisa perguntar há quanto tempo ele está morto, porque não posso dizer. O máximo que eu lhe posso adiantar é que ele morreu entre mais ou menos 30 minutos e 2 horas. Ainda não está frio e o rigor mortis ainda não se instalou. O sangue da ferida está apenas levemente coagulado, porém as variações desse processo, especialmente ao ar livre, não permitem um cálculo apurado do tempo decorrido. Que mais quer que eu lhe diga?

Vance tirou o cigarro da boca e dirigiu-se a Doremus: — Diga-me, doutor: falando do sangue na têmpora do nosso amigo aqui, que me diz da quantidade?

— Um bocado reduzida, eu diria — Doremus respondeu prontamente. — Mas os ferimentos de bala têm, às vezes, umas reações estranhas. De qualquer forma, deve ter havido bastante mais sangue derramado.

— Precisamente — anuiu Vance. — Minha teoria é que ele foi alvejado em outro lugar e trazido para esta cadeira.

Doremus fez uma careta e inclinou a cabeça para um lado.

— Foi alvejado? Então você não acha que foi suicídio? — ponderou o legista por uns instantes. — Poderia ser, é claro — decidiu-se finalmente. — Não há razão que impeça um cadáver de ser carregado de um lugar para o outro. Ache o resto de sangue e você provavelmente saberá onde ocorreu a morte.

— Imensamente grato, doutor — Vance sorriu palidamente. — Isto também me passou pela idéia, entende, mas acho que o sangue foi limpo. Eu estava simplesmente desejando que suas descobertas consubstanciassem a minha teoria de que ele não se matou sentado naquela cadeira, sem qualquer pessoa à sua volta.

Doremus deu de ombros com indiferença.

— Esta é uma suposição bastante razoável — disse. — Na realidade, deveria haver mais sangue. E posso dizer-lhe que ele não o enxugou após ser disparado o tiro. Ele morreu instantaneamente.

— Tem mais algumas sugestões? — perguntou Vance.

— Poderei ter quando tiver examinado o corpo mais cuidadosamente, depois que esses rapazes — ele indicou com um gesto o fotógrafo e o datiloscopista — tenham terminado a sua bagunça.

O capitão Dubois e Bellamy já haviam dado início ao seu trabalho de rotina, começando pela mesa do telefone; quanto a Quackenbush, estava ajustando o seu pequeno tripé metálico.

Vance dirigiu-se a Dubois: — Por favor, capitão, dê sua especial atenção ao fone de cabeça, ao revólver e aos óculos. E também à maçaneta da porta da caixa-forte lá no corredor interno.

Dubois anuiu com um grunhido e continuou suas delicadas funções.

Quackenbush, tendo instalado sua câmara, tirou as fotografias e depois esperou à porta do corredor por outras instruções dos datiloscopistas.

Depois que os três homens acabaram, Doremus deu um suspiro exagerado e falou impacientemente com Heath.

— Que tal levar o seu corpus delicti para o sofá? Será mais fácil examiná-lo lá.

— O.K., doutor.

O sargento comandou Snitkin com um movimento de cabeça e os dois homens ergueram o flácido corpo de Swift e colocaram-no no mesmo divã onde Zalia Graem estivera reclinada quando desmaiou à vista do cadáver.

Doremus entrou em ação com sua habitual maneira rápida e eficiente. Quando terminou sua tarefa, atirou uma manta sobre o cadáver e fez um sucinto relatório a Vance e Markham.

— Nada há que indique luta violenta, se era isto que você estava esperando. Mas há uma leve arranhadura no osso do nariz, como se os óculos tivessem saltado fora, e há um pequeno galo no lado esquerdo da cabeça, sobre a orelha, que pode ter sido causado por pancada de qualquer tipo, embora a pele não esteja rompida.

— Então, doutor — falou Vance — como se enquadraria em seus achados a seguinte teoria: o homem foi alvejado em outro lugar qualquer, caiu em um piso ladrilhado, batendo fortemente com a cabeça de encontro ao mesmo; na queda os óculos foram arrancados e a lente esquerda bateu no chão; depois, ele foi carregado àquela cadeira e os óculos recolocados em seu nariz?

Doremus apertou os lábios e inclinou a cabeça meditando.

— Isto seria uma explicação bastante razoável para o galo na cabeça e o arranhão no osso do nariz. — Atirou com a cabeça para trás, ergueu as sobrancelhas e ironizou: — Então esse é mais um de seus crimes estrambólicos, hem? Bem, para mim, não há problema. Mas vou dizer-lhe desde já, você não terá um relatório de autópsia esta noite. Estou aborrecido e preciso de distração. Vou ao Madison Square Garden para ver Strangler Lewis e Londos se destruírem na lona. — O legista atirou o queixo para a frente numa beligerância bem humorada para com Heath. — E também não vou deixar o número da minha cadeira na portaria, sargento. Pode adiar as suas eventuais futuras ocorrências para amanhã ou, então, incomode um de meus assistentes.

Em seguida, redigiu uma ordem para a remoção do corpo; reajustando o chapéu, deu um aceno incluindo todos nós e desapareceu rapidamente pela porta que dava para o corredor.

Vance abriu caminho em direção ao estúdio e nós o seguimos. Mal havíamos sentado quando o capitão Dubois entrou e informou que não havia qualquer espécie de impressões digitais em quaisquer dos objetos que Vance enumerara.

— Usaram luvas — concluiu laconicamente — ou então limparam depois.

Vance agradeceu e acrescentou: — Isto em nada me surpreende.

Dubois reuniu-se a Bellamy e Quackenbush no corredor e os três desceram a escada.

— Então, Vance, está satisfeito? — perguntou Markham. Vance fez que sim.

— Eu não esperava que encontrassem impressões. Um crime muito bem planejado. E o que Doremus encontrou preenche alguns claros da minha teoria. Rapaz decidido, esse Doremus. Com todas as suas manias, ele entende do negócio. Sabe o que se quer e procura por aquilo. Não há mais dúvidas de que Swift estava na caixa-forte quando foi alvejado; de que caiu ao chão, derrubando alguns papéis; que bateu com a cabeça no chão de ladrilho e quebrou a lente esquerda dos óculos, e que ele foi arrastado até o jardim e colocado na cadeira. Swift era um homem pequeno, esbelto, provavelmente não pesava mais que sessenta quilos, não deve ter sido necessário muita força para transportá-lo após a morte...

Ouviram-se alguns passos no corredor e quando nossos olhos involuntariamente voltaram-se para a porta, vimos a digna e idosa figura do Prof. Ephraim Garden: eu o reconheci imediatamente pelas fotografias que vira.

Era um homem alto, apesar de seus ombros encurvados e, embora muito magro, possuía uma capacidade de resistência que fazia as pessoas sentirem que ele havia conservado uma grande parte da força física que certamente tivera na juventude. Havia benevolência naquele rosto um tanto perturbado, mas havia também perspicácia em seu olhar; o contorno de sua boca indicava uma firmeza latente. O cabelo, escovado para trás, era quase branco e parecia acentuar a tristeza do conjunto. Os olhos escuros e a expressão do rosto eram como os de seu filho, porém ele era um tipo mais sensível e estudioso que Garden.

O professor curvou-se para nós com uma graça um tanto antiquada e deu alguns passos entrando no estúdio.

— Meu filho acabou de informar-me — disse numa voz levemente belicosa — da tragédia que aconteceu aqui hoje à tarde. Lamento não ter voltado para casa mais cedo, como é meu desejo aos sábados, porque nesse caso a tragédia poderia talvez ter sido evitada. Da minha parte, eu estaria no estúdio, e certamente teria exercido alguma vigilância sobre o meu sobrinho. E, de qualquer forma, ninguém poderia ter-se apossado do meu revólver.

— Eu não teria tanta certeza, doutor Garden, — respondeu tristemente Vance — de que sua presença aqui esta tarde pudesse ter evitado a tragédia. Não é um assunto tão simples como parece à primeira vista.

O Prof. Garden sentou-se em uma cadeira antiga, trabalhada à mão, que estava próximo à porta e, entrecruzando os dedos firmemente, inclinou-se para a frente.

— É, eu sei. Compreendo. E quero ouvir mais alguma coisa sobre o caso. — Era evidente a tensão em sua voz. — Floyd disse que a morte de Woody tinha toda a aparência de suicídio, mas que o senhor não aceita essa conclusão. Pode dar-me as suas razões, Sr. Vance?

— Não tenho a menor dúvida, senhor, de que seu sobrinho foi assassinado — respondeu calmamente Vance. — Há um sem-número de indicações que contradizem a teoria de suicídio. Mas seria pouco aconselhável, assim como igualmente desnecessário, entrar em detalhes no momento. Nossa investigação mal começou.

— É preciso haver uma investigação? — perguntou o professor num trêmulo protesto.

— O senhor não deseja que o criminoso seja entregue à justiça? — perguntou Vance friamente.

— Sim, sim, naturalmente. — A resposta do professor foi quase involuntária, mas, enquanto falava, seus olhos vagueavam sonhadoramente através da janela que dominava o rio. Depois, ele se acomodou melhor na cadeira. — É bastante desagradável isso — murmurou. — Mas o senhor está bem seguro de que não vai provocar um escândalo desnecessário?

— Completamente — assegurou Vance. — Quem quer que cometeu o crime, fez graves erros de cálculo. A sutileza do crime não se estendeu a todas as suas fases. Na realidade, acredito que alguma situação ou incidente fortuito exigiram certas modificações de última hora. Por falar nisso, doutor, posso perguntar-lhe o que o deteve esta tarde? Concluí do que me disse seu filho, que nos sábados geralmente o senhor volta para casa muito antes desta hora.

— É claro que pode — respondeu ele com aparente franqueza, mas havia uma expressão atônita em seu olhar enquanto encarava Vance. — Eu precisava dar uma vista em alguns dados um tanto obscuros antes de prosseguir com as experiências que estou fazendo; achei que hoje era um dia excelente para fazê-lo, visto que, aos sábados à tarde, fecho o laboratório e dispenso meus assistentes.

— E onde esteve o senhor — prosseguiu Vance — entre o momento em que deixou o laboratório e a hora de sua chegada aqui?

— Para ser bem específico — respondeu o Prof. Garden — deixei a Universidade por volta das duas horas e fui para a biblioteca municipal onde permaneci até meia hora atrás. Depois, peguei um táxi e vim diretamente para casa.

— O senhor foi para a biblioteca sozinho? — perguntou Vance.

— Naturalmente que fui só — respondeu o professor acidamente. — Não levo comigo meus assistentes quando tenho uma pesquisa a fazer. Ele interrompeu-se de repente: — Mas que significa todo esse interrogatório? Estarei eu, por acaso, sendo chamado para fornecer um alibi.

— Meu caro Doutor! — disse Vance apaziguadoramente.

— Um sério crime foi cometido em sua casa e é essencial que saibamos, como é de rotina, as atividades das diferentes pessoas de alguma forma relacionadas com a triste situação.

— Eu compreendo o que quer dizer. — O Prof. Garden inclinou a cabeça cortesmente e foi até a janela fronteira onde permaneceu olhando as montanhas azuladas do outro lado do rio onde começavam a chegar as primeiras sombras do crepúsculo.

— Fico satisfeito que o senhor compreenda as nossas dificuldades — disse Vance — e acredito que o senhor também terá a mesma consideração quando eu lhe perguntar quais eram exatamente as relações entre o senhor e seu sobrinho?

O homem voltou-se lentamente e apoiou-se à larga soleira.

— Nós éramos muito ligados — respondeu sem hesitação nem ressentimento. — Minha mulher e eu considerávamos Woody quase um filho desde que seus pais morreram. Moralmente, ele não era uma pessoa forte e precisava de amparo material e espiritual. Talvez devido a essa fundamental fraqueza de sua natureza, nós fomos mais condescendentes com ele que com nosso próprio filho. Em comparação com Woody, Floyd é um homem capaz, de cabeça firme, inteiramente apto a tomar conta de si mesmo.

Vance balançou a cabeça em sinal de compreensão.

— Sendo assim, suponho que tanto o senhor como a Sra. Garden não esqueceram do jovem Swift em seus testamentos.

— É verdade — respondeu o Prof. Garden após uma leve pausa. — Na realidade, nós fizemos Woody e nosso filho beneficiários com partes iguais.

— Seu filho tem alguma renda própria? — perguntou Vance?

— De espécie alguma — disse o professor. — Ele tem feito um pouco de dinheiro aqui e ali; em diversos empreendimentos, todos eles ligados ao esporte, mas depende inteiramente da pensão que eu e minha mulher lhe damos. Ela é bem larga, larga demais talvez, se julgarmos de acordo com os padrões convencionais. Mas eu não vejo razão para não ser indulgente com o rapaz. Não é sua culpa se não tem o temperamento para exercer uma profissão e não tem faro para negócios. E eu não vejo motivo para ele seguir qualquer rotina comercial à qual não se adapta, uma vez que não há necessidade disso. A Sra. Garden e eu herdamos nosso dinheiro; embora eu tenha sempre lamentado que Floyd não tivesse interesse em aspectos mais importantes da vida, nunca estive inclinado a privá-lo das coisas que aparentemente constituem a sua felicidade.

— Uma atitude muito liberal, doutor, — murmurou Vance — especialmente da parte de alguém como o senhor, tão dedicado às coisas sérias da vida... Mas, e Swift? Ele tinha uma renda independente?

— O pai dele — explicou o professor — deixou-lhe uma soma bastante razoável, mas eu imagino que ele esbanjou ou perdeu no jogo a maior parte da mesma.

— Há ainda uma pergunta que eu gostaria de fazer — continuou Vance — em relação ao seu testamento e ao da Sra. Garden, Seu filho e seu sobrinho estavam ambos cientes das disposições testamentárias?

— Não sei dizer. É bem possível que sim; nem eu nem a Sra. Garden encaramos o assunto como segredo... Mas, pergunto eu — e o Prof. Garden lançou um olhar intrigado em direção à Vance — que tem isso a ver com a horrível situação atual?

— Esteja certo de que não tenho a menor idéia — admitiu francamente Vance. — Estou simplesmente tateando no escuro, na esperança de encontrar algum pequeno raio de luz.

Hennessey, o detetive a quem Vance ordenara ficar de guarda embaixo, surgiu ruidosamente no corredor.

— Há um sujeito lá embaixo, sargento, — informou — dizendo que é da companhia de eletricidade e tem que consertar uma campainha ou coisa semelhante. Ele já fuçou por toda parte lá embaixo nada encontrando de errado e então o mordomo disse-lhe que poderia ser aqui. Mas achei melhor vir perguntar-lhe antes de deixá-lo subir. Então?

Heath deu de ombros e interrogou Vance com o olhar.

— Está tudo certo, Hennessey, — disse Vance ao detetive — deixe-o subir.

Hennessey saudou aliviado e foi-se.

— Você sabe, Markham — disse Vance lentamente, acendendo meticulosamente outro cigarro. — Eu gostaria de que essa campainha dos infernos não se tivesse desarranjado exatamente agora. Eu detesto coincidências...

— Você se refere — interrompeu o Prof. Garden — à campainha interna entre esta sala aqui e a saleta lá embaixo?... Esta manhã funcionava perfeitamente; Sneed chamou-me para o café da manhã, como de hábito.

— Sim, sim — anuiu Vance. — É exatamente a mesma. E evidentemente ela deixou de funcionar depois que o senhor saiu. A enfermeira o descobriu e informou a Sneed que chamou o eletricista.

— Não é de muita importância — retrucou o professor, fazendo com a mão um gesto lânguido. — Entretanto, é bastante cômodo, pois evita muitas viagens para baixo e para cima.

— De qualquer forma, podemos deixar o homem examiná-la já que aqui está! Ele não nos vai incomodar. — Vance ergueu-se: — Doutor, o senhor teria a fineza de reunir-se aos outros que estão embaixo? Nós também vamos descer.

O professor inclinou a cabeça numa aquiescência silenciosa e, sem uma palavra, saiu da sala.

Nesse momento, um rapaz alto e pálido surgiu à porta do estúdio, carregando uma pequena maleta de ferramentas.

— Mandaram-me aqui verificar uma cigarra — anunciou com uma indiferença rabugenta. — Não achei o problema lá embaixo.

— Talvez a dificuldade esteja do lado de cá — sugeriu Vance. — Há uma cigarra atrás da escrivaninha. — E apontou para a pequena caixa preta e seu botão.

O homem dirigiu-se até ela, abriu a maleta de ferramentas e, tirando uma pequena lanterna e uma chave de fenda, removeu a tampa da caixa. Tocando os fios com os dedos, ele olhou para Vance com uma expressão de desprezo.

— Não se pode esperar que a cigarra toque quando os fios estão desligados — comentou.

Vance tornou-se subitamente interessado. Ajustando seu monóculo, ajoelhou-se e olhou para a caixa.

— Estão ambos desligados, hem? — observou.

— Claro que estão — resmungou o homem. — E também não me parece que eles tenham afrouxado sozinhos.

— Você acha que foram soltos propositadamente? — perguntou Vance.

— Bem, é o que parece. — O homem ocupava-se religando os fios. — Ambos os parafusos estão soltos e os fios não estão encurvados, parece que foram arrancados.

— Isto é muito interessante. — Vance ergueu-se e recolocou o monóculo no bolso, meditando. — Poderia ser, evidentemente. Mas não vejo por que alguém o poderia ter feito... Desculpe-me tê-lo incomodado.

— Ah, isto são coisas do trabalho — murmurou o homem reajustando a tampa da caixa. — Eu gostaria de que todas as minhas tarefas fossem tão fáceis quanto esta. — Após alguns instantes, ele ergueu-se. — Vamos ver se a cigarra funciona agora. Há alguém lá embaixo para responder se eu apertar?

— Vou-me ocupar disso — interpôs Heath e dirigiu-se a Snitkin. — Dê um pulo lá na saleta e se ouvir a campainha lá, toque de volta.

Snitkin saiu depressa e alguns momentos depois, quando o botão foi apertado, chegaram dois sinais de resposta.

— Está legal agora — disse o eletricista, guardando suas ferramentas e dirigindo-se à porta. — Até à vista. — E desapareceu no corredor.

Markham estivera examinando meticulosamente Vance durante alguns minutos.

— Você tem alguma idéia em mente — disse sério. — Qual é o problema com essa campainha desligada?

Vance fumou em silêncio durante algum tempo, olhando para o chão. Depois caminhou até à janela e fitou o jardim, pensativo.

— Não sei, Markham. É um bocado enganador. Mas tenho a sensação de que a mesma pessoa que deu o tiro ouvido por nós desligou aqueles fios...

Repentinamente, ele deu um passo em direção à parte de trás dos reposteiros e abaixou-se, ainda perscrutando o jardim cuidadosamente. Ergueu a mão em sinal de advertência para que ficássemos fora da vista.

— Diabolicamente estranho! — disse tensamente. — Aquele portão lá na extremidade da grade está-se abrindo... Meu Deus! — E ele atirou-se pelo corredor afora, em direção ao jardim, falando para que o seguíssemos.

 


IX

 

Duas Pontas de Cigarro

 

(Sábado, 14 de abril — 18:00 horas)

 

 

Vance passou pelo corpo de Swift no divã e cruzou o terraço rumo ao portão do jardim. Quando lá chegou, deparou com a altiva e majestosa figura de Madge Weatherby. Evidentemente sua intenção era entrar no jardim, mas recuou bruscamente quando nos viu. Nossa presença, entretanto, não pareceu embaraçá-la nem surpreendê-la.

— Muito gentil de sua parte em subir, Srta. Weatherby — disse Vance. — Mas dei ordens para que todos permanecessem lá embaixo.

— Eu tinha o direito de vir aqui! — retrucou ela, empertigando-se com uma dignidade quase real.

— Ah — murmurou Vance. — Sim, é claro. Pode ser que sim. Mas poderia explicar-nos?

— Pois não. — Sua expressão permaneceu imutável e a voz era oca e artificial. — Eu quis certificar-me se ele poderia ter feito realmente isso.

— E quem é esse misterioso ele?

— Quem? — repetiu ela, atirando a cabeça para trás sarcasticamente. — Ora, Cecil Kroon!

As pálpebras de Vance caíram e ele estudou bem de perto a mulher, durante alguns momentos. Depois, disse despreocupadamente: — Muito interessante. Mas vamos deixar isso um pouco de lado. Como conseguiu chegar aqui?

— Isto foi muito simples. — Ela inclinou negligentemente a cabeça. — Fingi sentir-me mal e disse à sua guarda que ia à copa beber água. Saí pela porta da copa para o corredor externo do edifício, subi a escada principal e daí saí neste terraço.

— Mas como sabia que por este caminho alcançaria o telhado?

— Eu não sabia. — Sorriu enigmàticamente. — Estava apenas conjeturando. Estava ansiosa por provar a mim mesma que Cecil Kroon poderia ter alvejado o pobre Woody.

— E está convencida de que ele poderia ter feito isto?

— perguntou mansamente Vance.

— Ah, sim — replicou ela com amargura. — Fora de dúvidas. Já há algum tempo eu sei que mais cedo ou mais tarde Cecil o mataria. Quando o senhor disse que Woody havia sido assassinado, tive certeza absoluta de que Cecil havia feito isso. Mas eu não compreendi como ele teria chegado aqui, após ter-nos deixado esta tarde. Por isso, eu me empenhei em descobrir.

— E por que motivo, se posso perguntar — disse Vance — desejaria o Sr. Kroon dar fim à vida de Swift?

A mulher apertou as mãos teatralmente de encontro ao peito. Dando um passo à frente, disse com uma voz dramática e sepulcral: — Cecil estava enciumado, terrivelmente enciumado. Ele está loucamente apaixonado por mim. Tem-me torturado com suas atenções... — Levou uma das mãos à testa em sinal de desespero. — Nada posso fazer. E quando ele soube que eu me interessava por Woody, ficou desesperado. Ameaçou-me. Fiquei horrivelmente apavorada. Eu não ousava terminar tudo com ele, não sei o que poderia fazer. Então resolvi fazer-lhe a vontade; eu continuei com ele, esperando, esperando que essa loucura se desvanecesse. Durante algum tempo, pensei que ele estivesse ficando normal e razoável. E então hoje... este horrível crime! — Sua voz desapareceu num exagerado suspiro.

O olhar agudo de Vance não demonstrava a simpatia que o pomposo recital estava a exigir, nem o cinismo que eu sabia ele estar sentindo. Havia apenas um interesse estudado em sua expressão.

— Triste, muito triste — murmurou.

A Srta. Weatherby atirou a cabeça para trás e seus olhos flamejaram.

— Eu vim aqui em cima para ver se era possível que Cecil pudesse ter feito isso. Eu vim aqui em nome da justiça!

— Muita amabilidade. — As maneiras de Vance mudaram subitamente. — Nós ficamos muito gratos e tudo o mais. Mas preciso insistir, entende, que a senhora volte para baixo e espere lá com os outros. E vai ter a fineza de regressar pelo jardim e descer pela escada do apartamento.

Ele estava brutalmente realista quando fechou o portão e encaminhou a senhora até à porta do corredor. Aí ela hesitou um momento e depois seguiu o dedo indicador de Vance. Ao passar diante do divã de vime, ela parou de repente e pôs-se de joelhos.

— Oh, Woody, Woody! — Soluçou dramaticamente. — Tudo por minha culpa! — Cobriu o rosto com as mãos e inclinou a cabeça bem para a frente numa atitude de mísera abjeção.

Vance deixou escapar um profundo suspiro, atirou longe o cigarro e, pegando-a firmemente pelo braço, colocou-a de pé.

— Realmente, Srta. Weatherby, — disse ele bruscamente, conduzindo-a até à porta — isto não é um melodrama.

Ela endireitou-se com um soluço reprimido e foi pelo corredor em direção à escada.

Vance voltou-se para o detetive e acenou em direção à entrada.

— Snitkin, — disse num tom fatigado — vá lá embaixo e diga a Hennessey para ficar de olho nessa Sarah Bernhardt até que precisemos dela.

Snitkin sorriu e seguiu Miss Weatherby. Quando voltamos ao estúdio, Vance mergulhou em uma poltrona e bocejou.

— Palavra! O caso já é bastante difícil sem todos esses dramáticos amadores.

Markham, percebi, havia ficado impressionado e divertido com o incidente.

— Talvez não seja apenas drama — sugeriu. — Aquela senhora fez algumas afirmações bem definidas.

— Ah, sim. Ela pode. Ela é desse tipo. — Vance tirou a cigarreira. — Afirmações definidas, sim. E enganadoras, também. Realmente, nem por um minuto acreditei que ela encare Kroon como o culpado.

— Bem, então o quê? — saltou Markham.

— Nada, na verdade — Vance suspirou. — Vaidade e futilidade. A senhora, vaidade; nós, futilidade. Nada conduz à parte alguma.

— Mas ela certamente tem alguma idéia — protestou Markham.

— E nós também. Fico pensando... Mas se pudéssemos ler inteiramente o pensamento de alguém, provavelmente compreenderíamos o universo. Prontos para a onisciência e todas essas coisas.

— Deus do céu! — Markham ergueu-se e colocou-se beligerantemente em frente a Vance: — Você não pode ser racional?

— Ora, Markham... meu querido Markham! — Vance sacudiu a cabeça tristemente. — Que é a racionalidade? Entretanto... como você diz. Há alguma coisa por trás do dramalhão de nossa amiga. Ela tem idéias, mas é confusa. E quer que nós sejamos como aqueles deuses chineses que só podiam andar em linha reta. Triste. Mas vamos tentar fazer um rodeio. A situação é mais ou menos esta: uma infeliz senhora esgueira-se pela copa e apresenta-se no terraço esperando atrair nossa atenção. Tendo conseguido o que desejava, ela nos informa ter provado conclusivamente que um certo Sr. Kroon acabou com a vida de Swift devido a ciúmes. Esta é a linha reta, a maior distância entre dois pontos. Agora, a curva. A própria senhora, suponhamos, é a desprezada e não quem despreza. Ela sofre com isso, é temperamental e vingativa, e vem aqui ao terraço apenas com a finalidade de convencer-nos de que Kroon é o culpado. Ela ficaria feliz da vida em ver Kroon sofrer, culpado ou não.

— A história dela é bastante plausível — disse Markham agressivamente. — Por que então tentar encontrar significados ocultos em fatos evidentes? Kroon poderia ter feito a coisa. E, no entanto, a sua análise psicológica da mulher põe de lado a hipótese.

— Meu caro Markham! Não põe de lado coisa nenhuma. Este incidente apenas tende a envolver a dama em um tipo de chicana bastante desagradável. O fato é que seu pequeno ato dramático aqui no terraço pode vir a ser bastante esclarecedor.

Vance espichou as pernas para a frente e afundou ainda mais na cadeira.

— Curiosa situação. Sabe, Markham, Kroon abandonou a reunião cerca de quinze ou vinte minutos antes do grande páreo: assuntos legais a resolver para uma tia solteirona, segundo explicou ele; não voltou a aparecer até que tudo estivesse consumado. Admiti imediatamente ser ele o criminoso. Esse pensamento levou-me a conversar com o ascensorista. Daí fiquei sabendo que Kroon não havia saído nem descido no elevador desde que chegou aqui no início da tarde...

— Essa é boa! — exclamou Markham. — Isto é mais que suspeito principalmente se juntarmos ao que acabamos de ouvir da Srta. Weatherby.

— Certamente. — Vance não se deixou impressionar. — A mentalidade legal em ação. Mas para meu humilde ponto de vista de amador, eu preciso de mais, muito mais. — Vance ergueu-se e meditou durante um certo tempo. — Entretanto, admito que uma pontinha de comunhão amorosa com o Sr. Kroon está definidamente indicada. — Voltou-se para Heath. — Mande o cara subir, sim sargento? E seja gentil com ele, não o aborreça. La politesse. Não vamos deixar que ele se ponha em guarda.

Heath concordou e caminhou para a porta: — Sargento, — interrompeu-o Vance — você pode interrogar o ascensorista e verificar se existe mais alguém no prédio a quem Kroon tenha o hábito de visitar. Se assim for, prossiga com uma pesquisa discreta.

Heath desapareceu escada abaixo; um ou dois minutos depois, Kroon estava no estúdio com um ar de quem está aborrecido e bastante contrariado.

— Acho que estou sendo chamado para mais algumas perguntas astuciosas — comentou lançando a Markham e Snitkin um leve olhar de desprezo e deixando seus olhos descansar em Vance com um certo ressentimento. — Querem apanhar-me sentado ou de pé?

— Como quiser — respondeu docemente Vance. Kroon, após dar uma olhada à sua volta, sentou-se descontraidamente na extremidade do sofá. A atitude do homem, segundo pude ver, enfureceu Markham, que, inclinando-se para a frente, perguntou com uma raiva fria.

— O senhor tem quaisquer razões para objetar contra o fato de necessitarmos de seu depoimento neste inquérito?

Kroon ergueu as sobrancelhas e alisou as extremidades enceradas de seu bigode.

— Absolutamente nenhuma — disse com calma superioridade. — Eu talvez até possa dizer-lhes quem alvejou Woody.

— Isto é muito interessante — murmurou Vance estudando-o com indiferença. — Mas, nós preferimos mil vezes descobrir sozinhos. Muito mais divertido, não? E há sempre a possibilidade de que nossa descoberta venha a ser mais exata que os palpites de terceiros.

Kroon deu de ombros maliciosamente e nada disse.

— Quando o senhor desertou da reunião desta tarde, Sr, Kroon, — Vance prosseguiu de uma maneira quase afetada — gratuitamente informou-nos de que destinava-se a uma espécie de conferência legal com uma tia solteirona. Sei que já falamos nisso antes, mas eu pergunto novamente: o senhor faria alguma objeção em nos fornecer, para uma simples questão de rotina, o nome e o endereço de sua tia e a natureza dos documentos que o privaram tão bruscamente de acompanhar o Grande Prêmio Rivermont após ter apostado quinhentos dólares?

— é claro que faço objeção — retrucou Kroon friamente. — Pensei que vocês estivessem investigando um assassinato e eu garanto que a minha tia nada tem a ver com ele. Não consigo entender por que vocês estão interessados em meus assuntos de família.

— A vida é cheia de surpresas, sabe? — murmurou Vance. — Nunca se sabe quando assunto de família e crime se entrelaçam.

Kroon riu jovialmente, porém recompôs-se pigarreando.

— Nas atuais circunstâncias, tenho o prazer de informar que, no que me concerne, eles não se entrelaçam em absoluto.

Markham voltou-se para ele com vivacidade.

— Isto somos nós que decidimos! — exclamou. — O senhor pretende responder à pergunta do Sr. Vance?

Kroon sacudiu a cabeça.

— Não. Considero esta pergunta como incompetente, irrelevante e imaterial. E frívola também.

— Sim, sim — Vance sorriu para Markham. — Poderia ser, compreende? Mas deixemos passar isto, Markham. Situação atual: nome e endereço da tia, desconhecidos; natureza dos documentos, desconhecida; razões para a reticência do cavalheiro, também desconhecidas.

Markham, ressentido, murmurou algumas palavras ininteligíveis e voltou a fumar seu charuto, enquanto Vance continuava o interrogatório.

— Diga, Sr. Kroon, consideraria irrelevante e todo o resto do palavrório legal, se eu lhe perguntasse como o senhor saiu e voltou do apartamento dos Gardens?

Kroon pareceu altamente divertido.

— Eu o consideraria irrelevante, sim; mas desde que existe uma única maneira normal pela qual eu poderia ter ido e voltado, estou inteiramente disposto a confessar-lhe que tomei um táxi para ir e voltar da casa de minha tia.

Vance fitou o teto enquanto fumava.

— Suponhamos — disse — que o ascensorista negasse tê-lo conduzido para cima ou para baixo desde a sua primeira chegada aqui esta tarde. Que diria o senhor?

Kroon contraiu-se e ficou atento.

— Eu diria que ele perdeu a memória ou está mentindo.

— Sim, naturalmente. Perfeitamente. — Os olhos de Vance moveram-se lentamente para o homem no sofá. — O senhor terá certamente a oportunidade de dizer isso perante o júri.

Os olhos de Kroon estreitaram e seu rosto ficou vermelho. Antes que ele pudesse falar, Vance prosseguiu.

— E o senhor terá também a oportunidade legal de fornecer ou negar o nome e endereço de sua tia. O fato é que o senhor poderá encontrar-se na mais triste necessidade de apresentar um álibi.

Kroon recostou-se novamente no sofá com um sorriso arrogante.

— Vocês são muito divertidos — comentou airosamente. — Que mais? Se me fizerem uma pergunta razoável, terei o maior prazer em responder. Sou um cidadão altamente considerado dos Estados Unidos, sempre desejoso, para não dizer ansioso, em auxiliar as autoridades, ajudar em nome da justiça e toda essa espécie de asneira. — Havia uma intenção de veneno em seu tom insolente.

—- Bem, vamos ver em que ficamos. — Vance reprimiu o sorriso divertido. — O senhor deixou o apartamento aproximadamente às 3:45, tomou o elevador para baixo e em seguida um táxi; foi à casa de sua tia para lidar com alguns documentos legais, voltou noutro táxi, e subiu no elevador. Esteve ausente pouco mais de meia hora. Durante sua ausência, Swift foi alvejado. Correto?

— Sim — Kroon foi breve.

— Como explica o fato de que, quando o encontrei no corredor, no momento em que regressava, o senhor parecia miraculosamente ciente dos detalhes do passamento de Swift?

— Já vimos isso também. Nada sei a esse respeito. O senhor me disse que Swift estava morto e eu simplesmente deduzi o resto.

— Sim, perfeitamente. Não há crime sem suposições apuradas. Diabolicamente estranhas coincidências, entretanto, iguaizinhas a uma acumulada de cinco. Extraordinário.

— Estou ouvindo com grande interesse — Kroon reassumira o seu ar de superioridade. — Por que vocês não deixam de rodeios?

— Sugestão muito útil. — Vance esmagou o cigarro e, endireitando-se na cadeira, inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — Aonde eu queria chegar é que alguém o acusou definitivamente de assassinar Swift.

Kroon assustou-se e empalideceu. Depois de alguns instantes ele forçou um ruído áspero e gutural que pretendia ser uma risada.

— E quem, se posso perguntar, acusou-me?

— A Srta. Madge Weatherby.

Um dos cantos da boca de Kroon ergueu-se num escárnio raivoso.

— Ela seria bem capaz! E provavelmente lhes disse que foi um crime passional, causado por um ciúme incontrolável.

— Exatamente — concordou Vance. — Parece que o senhor andou abusando de suas não desejadas atenções para com ela, até ameaçando-a; enquanto isso, ela estava apaixonada do Sr. Swift. E assim, quando a tensão ficou muito grande, o senhor eliminou seu rival. Casualmente, ela tem uma teoria muito boa, que se ajusta aos fatos conhecidos e que a sua própria recusa em responder às minhas perguntas reforça consideravelmente.

— Bem, que os diabos me levem! — Kroon ergueu-se lentamente e enterrou as mãos nos bolsos. — Estou vendo aonde querem chegar. Por que não me disseram isso desde o início?

— Esperando pelas probabilidades finais — retrucou Vance. — O senhor ainda não havia feito seu jogo. Mas agora que já lhe contei, incomoda-se em nos dar o nome e endereço de sua velha tia e a natureza dos documentos que devia assinar?

— Tudo isso é uma grande bobagem — disse Kroon precipitadamente. — Não preciso de álibi. Quando chegar o momento...

Nesse instante, Heath surgiu na porta e, caminhando diretamente até Vance, estendeu-lhe uma página arrancada de seu caderninho onde estavam diversas linhas escritas.

Vance leu rapidamente a nota enquanto Kroon o olhava com um ressentimento virulento. Depois dobrou o papel e enfiou-o no bolso.

— Quando chegar a ocasião... — murmurou Vance. — Sim, é isso. Quando chegar a ocasião. E ela chegou, Sr. Kroon.

O homem empertigou-se, mas nada disse. Pude notar que ele estava agressivamente em guarda.

— Por acaso, conhece o senhor alguém de nome Stella Fruemon? Tem um apartamento bastante aconchegante no 17º andar deste edifício, dois andares apenas abaixo deste. Ela diz que o senhor a esteve visitando hoje, por volta das 4 horas. Deixou-a exatamente às 4:15. O que pode explicar o senhor não ter usado o elevador. Também a sua relutância em nos dar o nome e o endereço de sua tia... O senhor se incomodaria em fazer uma revisão em sua narrativa?

Kroon parecia estar pensando a toda velocidade. Caminhou nervosamente para cima e para baixo no aposento.

— Situação divertida e surpreendente — prosseguiu Vance. — Um cavalheiro deixa este apartamento... digamos, às 3:50. Documentos familiares a assinar. Não entra no elevador. Aparece num apartamento dois andares abaixo poucos minutos depois... é um freqüentador habitual do mesmo. Lá permanece até às 4:15. Em seguida, vai embora. Aparece novamente neste apartamento aqui às 4:30. No intervalo, Swift é alvejado na cabeça: a hora exata não sabemos. O cavalheiro parece estar familiarizado com vários detalhes do crime. Recusa-se a dar informações sobre suas atividades durante o tempo em que esteve ausente. Uma dama acusa-o de assassinato e demonstra como ele o poderia ter executado. Também, generosamente, fornece o motivo. E há quinze minutos da vida desse cavalheiro, isto é, de 4:15 a 4:30, que ele não sabe explicar. Vance tirou uma tragada do cigarro.

— Uma fascinante combinação de fatos. Some-os todos. Matematicamente falando, eles perfazem um total. Diga-me, Sr. Kroon, alguma sugestão?

Kroon parou de repente e deu meia volta: — Não! — explodiu. — Para o diabo a sua matemática. E vocês usam de qualquer coisa para enforcar um homem! — Respirou ruidosamente e fez um gesto desesperado. — Está bem, lá vai a história. Acredite se quiser. No ano passado, tive uma certa ligação com Stella Fruemon. Ela não passa de uma prostituta e chantagista. Madge Weatherby veio a saber do caso. E ela é a parte ciumenta desta combinação, não eu. Ela ligava tanto para Woody Swift quanto eu. De qualquer forma, tive um caso com Stella Fruemon. Quando chegou ao final eu tive que pagar muito caro, a fim de evitar um escândalo para minha família, evidentemente. Se não fosse por isso, eu a teria atirado pela janela e chamaria isso de minha boa ação do dia. Seja como for, chamamos nossos respectivos advogados e chegamos a um acordo. Finalmente, ela exigiu uma gorda soma e concordou em assinar uma desistência final das outras exigências. Naquelas circunstâncias eu não tinha alternativa. Dezesseis horas de hoje, foi a ocasião que ela escolheu para terminar a transação. Meu advogado e o dela deveriam estar no apartamento. O cheque visado e os documentos estavam prontos. Assim, eu desci um pouco antes das 4 para clarear todo esse sujo negócio. Liquidei tudo e saí. Desci a pé os dois andares até o seu apartamento e, às 4:15, quando terminou o assalto, mandei-a para o inferno e subi de volta a escada.

Kroon respirou fundo e franziu a testa.

— Eu estava tão furioso, e aliviado também, que continuei caminhando sem saber o que estava fazendo. Quando abri a porta que eu pensava conduzisse ao corredor externo do apartamento de Garden, descobri que estava no terraço. — Ele piscou um olho para Vance. — Suponho que o fato também é suspeito: subir três andares em vez de dois, após tudo aquilo por que eu passei?

— Não, não — Vance sacudiu a cabeça. — Muito natural. Espíritos exuberantes. Tirou o peso das costas, e tudo o mais, três andares a pé, parecem dois. Imposto leve, podemos dizer. Os cavalos até correm melhor. Não sentem a milha extra. Muito compreensível. Mas, prossiga, por favor.

— Talvez o senhor acredite... e talvez não — Kroon falou com truculência. — De qualquer forma, esta é a realidade. Quando vi onde me encontrava, pensei em atravessar o jardim e descer a escada interna. Era realmente a coisa mais natural a ser feita...

— O senhor então sabia da existência do portão que dá para o jardim?

— Há anos que eu sei. Todos aqueles que já estiveram aqui em cima também sabem. Nas noites quentes de verão, Floyd costumava deixar o portão aberto e nós passeávamos para cá e para lá no terraço. Algo de mal no fato de eu saber do portão?

— Não, perfeitamente normal. E então o senhor abriu o portão e entrou no jardim?

— Sim.

— E isto teria sido entre 4:15 e 4:20?

— Não tinha um cronômetro comigo, mas creio que isto é bem possível... Quando entrei no jardim, vi Swift derreado na cadeira. Sua posição pareceu-me engraçada, mas não liguei para isso até que falei com ele e não tive resposta. Então aproximei-me e vi o revólver no chão e o buraco na cabeça dele. Puxa, foi um choque bárbaro, vou-lhe contar, e eu comecei a correr para baixo para dar o alarma. Mas aí me dei conta de que ficaria mal para mim. Eu ali, sozinho no terraço, com um homem morto...

— Ah, sim. Discrição. E o senhor então agiu com segurança. Não posso dizer que eu o recrimino inteiramente. Então, suponho, o senhor voltou à escadaria externa e entrou no apartamento de Garden pela porta principal.

— Foi exatamente isto que eu fiz. — O tom de Kroon era tão vigoroso quanto ressentido.

— Em que momento, durante o curto período em que esteve no telhado, ou mesmo quando voltou à escada do prédio, o senhor ouviu um tiro?

Kroon olhou para Vance com evidente surpresa.

— Um tiro? Eu disse que o rapaz já estava morto quando o vi.

— Não obstante — disse Vance — houve um tiro. Não o que o matou, mas aquele que nos fez correr até o terraço. Houve dois tiros; embora ninguém pareça ter ouvido o primeiro.

Kroon refletiu.

— Céus! Ouvi alguma coisa, agora que você está falando. Naquele instante eu não liguei, visto que Woody já estava morto. Mas exatamente quando eu voltava à escada de serviço, houve uma explosão lá fora. Pensei que fosse um automóvel lá na rua e não prestei maior atenção ao fato.

Vance balançou a cabeça com ar intrigado.

— Isto é muito interessante. — Seus olhos vaguearam no espaço. — Fico pensando... — Um momento depois fitou Kroon: — Mas, continue sua história. O senhor diz que deixou o terraço imediatamente e desceu. Mas decorreram pelo menos dez minutos entre o momento em que o senhor deixou o jardim e a hora que eu o encontrei entrando no apartamento pela porta principal. Como e onde o senhor passou esses dez minutos de intervalo?

— Fiquei no patamar da escada e fumei uns dois cigarros. Estava tentando acalmar-me. Depois de tudo aquilo por que passara e ainda encontrar Woody morto, eu estava com a cabeça em pandarecos.

Heath ergueu-se imediatamente, uma das mãos no bolso interno do colete, e avançou belicosamente o maxilar em direção do agitado Kroon: — Qual a marca de cigarro que o senhor fuma? — vociferou.

O homem olhou para o sargento com espanto e depois disse: — Fumo cigarros turcos de ponta dourada. Por quê? Heath retirou a mão do bolso e olhou para algo que continha na palma da mão.

— Está certo — resmungou. Depois dirigiu-se a Vance: — Achei as pontas de cigarro lá. Apanhei-as no patamar, quando voltava do apartamento daquela moça. Pensei que talvez pudessem ter alguma relação.

— Bravos, bravos — caçoou Kroon. — Então a polícia realmente encontrou alguma coisa!... Que mais deseja o senhor? — perguntou a Vance.

— No momento, nada obrigado — retrucou Vance com exagerada cortesia. — O senhor sozinho já fez bastante por hoje, Sr. Kroon. Não vamos precisar mais do senhor... Sargento, diga a Hennessey que o Sr. Kroon pode deixar o apartamento.

Kroon foi até à porta sem uma palavra.

— Espere. — Vance interrompeu-o no limiar. — Por acaso o senhor tem uma tia solteirona?

Kroon olhou por cima do ombro com um sorriso cheio de vivacidade.

— Não, graças a Deus! — E fechou ruidosamente a porta às suas costas.


X

 

A Aposta de 10.000 Dólares

 

(Sábado, 14 de abril — 18:15 horas)

 

 

 

— Uma boa história — comentou secamente Markham quando Kroon se foi.

— Sim, boa sim. Mas não me satisfaz. — Vance parecia perturbado.

— Você acredita nela?

— Meu caro Markham, fico com o espírito alerta, nunca acreditando ou desacreditando. Esperando pelos fatos, mas ainda não há fatos. Drama por toda a parte, porém sem substância. A história de Kroon tem pelo menos alguma consistência e esta é uma das razões pelas quais eu sou céptico. Sempre desconfio da consistência, é muito fácil de elaborar. E a sagacidade de Kroon não tem limites.

— Ainda assim — acrescentou Markham — as pontas de cigarro encontradas por Heath conferem com sua história.

— Sim, sim — Vance anuiu e suspirou. — Não duvido que ele tenha fumado dois cigarros no patamar. Mas ele os pode ter fumado mesmo que tenha executado o nosso amigo. Atualmente, suspeito de todos aqui. Há um bocado de ângulos brotando deste caso.

— Por outro lado — objetou Markham — com aquela entrada da escadaria principal dando para a porta do terraço que está aberta a qualquer um, por que não poderia um estranho qualquer ter assassinado Swift?

Vance encarou-o com um olhar melancólico.

— Ah, Markham, meu caro Markham! A inteligência a serviço da lei! Sempre procurando por uma evasão. O advogado da acusação à procura do melhor. Não, um estranho, não. Há sem-número de objeções bem fundamentadas. O crime foi demasiadamente bem cronometrado. Somente alguém presente poderia tê-lo executado de maneira tão exata. Além disso, foi cometido na caixa-forte. Somente alguém muitíssimo familiarizado com a vida doméstica dos Gardens e com a real situação aqui esta tarde poderia ter feito aquilo.

Houve um tumulto no corredor e Madge Weatherby entrou correndo no estúdio com Heath em seu encalço, protestando vigorosamente. Era óbvio que ela havia subido as escadas como uma fecha antes que alguém pudesse interferir.

— Qual o significado de tudo isso? — perguntou imperiosamente. — Vocês estão permitindo que Kroon se vá, depois de tudo que lhes contei? E eu — ela indicou a si própria com um gesto dramático — eu sou retida aqui, como uma prisioneira.

Vance ergueu-se desanimado e ofereceu-lhe um cigarro. Ela afastou a carteira que lhe era estendida e sentou-se rígida.

— O fato, Srta. Weatherby, — disse Vance voltando à sua cadeira — é que o Sr. Kroon explicou sua breve ausência esta tarde de maneira bastante lúcida e com uma lógica convincente. Ao que parece, ele nada estava fazendo de repreensível em companhia da Srta. Stella Fruemon e um monte de advogados.

— Ah! — Os olhos dela dardejaram veneno.

— Exatamente. Ele estava rompendo com a dama por todos os séculos dos séculos. Obtendo também uma dispensa por parte dela e de seus herdeiros, executores, administradores e procuradores, desde o início do mundo até à presente data; acredito ser esta a fraseologia legal correta. Na realidade, sabe, ele nunca ligou para ela. Foi bastante veemente a este respeito. Jamais mulher alguma o dominará nem fará chantagem com ele. É o lema de Cézanne, modificado: Pas une gonzesse ne me mettra le grappin dessus.

— Isto é verdade? — exclamou a Srta. Weatherby, endireitando-se na cadeira.

— Sim, sim, sem subterfúgios. Kroon disse que a senhorita estava com ciúme de Stella.

— Por que então ele não me falou?

— Há sempre a possibilidade de que a senhorita não lhe tenha dado oportunidade para tal.

A mulher meneou a cabeça vigorosamente.

— Sim, é certo. Não falei com ele depois da sua volta.

— Gostaria de rever sua teoria anterior? — perguntou Vance. — Ou ainda pensa que Kroon é o culpado?

— Eu... eu realmente não sei — respondeu hesitante — da última vez que falei com o senhor, eu estava terrivelmente transtornada... talvez fosse tudo imaginação minha.

— Imaginação, sim. Coisa terrível e perigosa. Provoca mais dramas que a realidade. Especialmente a imaginação estimulada pelo ciúme. "Nem o ópio, nem a mandrágora, nem todos os entorpecentes do mundo." — Encarou-a enigmaticamente. — Já que não está muito certa de que foi Kroon quem fez a coisa, tem outras sugestões?

Houve um silêncio tenso. A face da Srta. Weatherby pareceu contrair-se e ela mordeu os lábios; seus olhos quase se fecharam.

— Sim! — explodiu, inclinando-se para Vance com um novo entusiasmo. — Foi Zalia Graem quem matou Woody! Ela tinha o motivo, como diz o senhor. Além disso, é bem capaz de uma coisa dessas. Por fora, ela é alegre e descuidada, mas por dentro é um demônio. Nada a impediria. Houve alguma coisa entre ela e Woody, depois ela o chutou, mas ele não a deixava, continuava aborrecendo-a e ela o ignorava. Ele não tinha dinheiro suficiente para agradar a ela. O senhor viu como agiam os dois hoje.

— Tem alguma idéia de como fez ela para cometer o crime? — perguntou Vance mansamente.

— Ela estava bastante tempo ausente do salão, não foi? Aparentemente telefonando. Mas, pode alguém saber realmente onde ela estava e o que fazia?

— Pergunta dolorosa. Situação muito misteriosa. — Vance ergueu-se devagar e curvou-se diante da moça. — Imensamente grato, estamos muito agradecidos. E não a manteremos prisioneira mais tempo. Se precisarmos de sua presença mais tarde, mandaremos chamá-la.

Quando ela se foi, Markham sorriu amargamente.

— A dama está muito bem equipada com suspeitos. Que vai fazer com essa nova acusação?

Vance tinha a testa franzida.

— Animosidade transferida de Monsieur Kroon para La Graem. Sim. Situação estranha. Logicamente falando, esta nova acusação é mais razoável que a primeira. Tem seus pontos... Se ao menos eu pudesse tirar da cabeça aquela campainha desligada... e o segundo tiro, aquele que todos nós ouvimos.

— Não poderia ter sido algum tipo de mecanismo? — sugeriu Markham. — Não é difícil reproduzir o efeito de uma detonação por meio de fios elétricos.

Vance moveu a cabeça pateticamente.

— Já pensei nisso. Mas na campainha não há indícios de ter sido instalado qualquer dispositivo do gênero. — Quando o eletricista trabalhava, olhei cuidadosamente.

Vance foi novamente até a campainha e examinou-a com cuidado. Depois dedicou sua atenção às estantes que a rodeavam. Afastou alguns livros e inspecionou as estantes vazias e os montantes. Finalmente sacudiu a cabeça e voltou à sua cadeira.

— Nada. Aqui nada. A poeira atrás dos livros é muita e não mostra sinais recentes de algum contato, não há marcas de pó. E também nenhuma indicação de qualquer mecanismo.

— Poderia ter sido removido antes da chegada do eletricista — propôs Markham sem entusiasmo.

— Sim, uma outra possibilidade. Também havia pensado nisso. Mas faltou a oportunidade. Entrei aqui imediatamente após ter encontrado o rapaz alvejado... — Tirou o cigarro da boca e endireitou o corpo. — Bolas! Alguém pode ter entrado aqui enquanto nós todos corríamos lá para cima após o tiro. É uma chance remota, mas... Uma outra coisa curiosa, Markham: três ou quatro pessoas diferentes tentaram penetrar neste recinto enquanto eu estava na saleta com Garden. Todas elas pretextavam estar com o cadáver para uma comunhão post-mortem, este tipo de conversa mórbida. Fico só imaginando... Entretanto, é tarde demais para agir sob esse ponto de vista. Nada a fazer, exceto guardar esses fatos para uma futura referência.

— A campainha se comunica com qualquer outra peça além da saleta?

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, é a única ligação.

— Você não disse que havia alguém na saleta no momento em que ouviu o tiro?

O olhar de Vance passou por Markham, e decorreram alguns minutos antes que ele respondesse.

— Sim, Zalia Graem estava aqui, telefonando ostensivamente.

A voz de Vance, pensei eu, estava um pouco amargurada, e eu pude perceber que seu espírito partira numa nova linha de idéias.

Heath piscou e moveu a cabeça para cima e para baixo.

— Bem, Sr. Vance, isto nos conduz a alguma coisa. Vance encarou-o.

— É mesmo, sargento? Aonde? Isto só emaranha o caso, até que consigamos mais informações no mesmo sentido.

— Poderíamos conseguir mais informações da própria moça — adiantou Markham com sarcasmo.

— É, é isso mesmo. Procedimento óbvio. Mas eu tenho algumas perguntinhas a fazer a Garden antes. Preparando o caminho, por assim dizer. Sargento, procure Floyd Garden e traga-o aqui.

Garden entrou na sala parecendo pouco à vontade com ar um tanto assustado.

— Que confusão! — suspirou atirando-se pesadamente em uma cadeira. Encheu o cachimbo com mão trêmula. — Alguma luz no caso?

— Algumas luzes vacilantes — disse-lhe Vance. — Aliás, parece que os seus convidados entram e saem pela porta da frente sem a formalidade de serem anunciados ou tocarem a campainha. Isso é um costume da casa?

— Sim. Mas somente nos dias de corridas. É muito mais prático. Poupa aborrecimentos e interrupções.

— E uma outra coisa: quando a Srta. Graem estava telefonando na saleta e você sugeriu que ela dissesse ao cavalheiro para chamar mais tarde, você realmente sabia que ela estava falando com um homem?

Garden arregalou os olhos um tanto surpreso.

— Ora, não. Eu estava apenas brincando com ela, não tinha a menor idéia. Mas, se isto faz alguma diferença, estou certo de que Sneed pode dar a informação, caso a Srta. Graem não a dê. Foi Sneed que atendeu o telefone, lembra-se?

— Não tem importância. — Vance deixou o assunto de lado. — Todavia, talvez lhe interesse saber que a campainha deixou de funcionar porque alguém se deu ao trabalho de desligar os fios.

— Que diabo está você dizendo!

— É, é isso mesmo. Vance fitou Garden com um olhar cheio de significação. — Se bem entendo, esta campainha funciona apenas na saleta, e quando ouvimos o tiro a Srta. Graem estava lá. Acontece que esse tiro que todos nós ouvimos não foi o que matou Swift. O tiro fatal foi disparado pelo menos cinco minutos antes. Swift nunca chegou a saber se havia ganho ou não a aposta.

Os olhos de Garden estavam arregalados com expressão de pavor e fixos em Vance. Uma exclamação abafada escapou de seus lábios entreabertos. Rapidamente ele recompôs-se e seus olhos vaguearam pela sala.

— Meu Deus! — Sacudiu a cabeça desanimado. — Este negócio está ficando infernal. Compreendo sua dedução sobre a campainha e o tiro que ouvimos. Mas não consigo entender como foi feita a coisa. Voltou-se para Vance num apelo: Você está certo desses fios desligados e o que chama de segundo tiro?

— Inteiramente certo. — A voz de Vance era despreocupada. — Aliás, a Srta. Weatherby tentou convencer-nos de que Zalia Graem atirou em Swift.

— E ela tem algum fundamento para essa acusação?

— Apenas que a Srta. Graem tinha uma aversão qualquer a Swift, detestando-o profundamente, e também o fato de no momento do crime ela se achar ausente do salão. Duvido que ela estivesse todo o tempo telefonando na saleta. Penso que estivesse aqui em cima, inteiramente ocupada com o crime.

Garden aspirou rápido o cachimbo e pareceu estar refletindo.

— É claro que Madge conhece Zalia muito bem — admitiu com relutância. — Elas andam sempre juntas. Madge pode conhecer por dentro a história do atrito entre Zalia e Woody. Eu não sei. Zalia pode ter pensado que tinha razões suficientes para pôr fim à carreira de Woody. Ela é uma garota surpreendente. Nunca se sabe exatamente o que ela vai fazer.

— Você pessoalmente considera a Srta. Graem como capaz de um crime à sangue-frio, habilmente planejado?

Garden moveu os lábios e franziu a testa, tossiu uma ou duas vezes, como para ganhar tempo, depois falou: — Bolas, Vance! Não posso responder a esta pergunta. Francamente, não sei quem é ou não capaz de cometer um crime. A turma jovem de hoje vive entediada a ponto de morrer, não tolera a menor restrição, vive além de suas possibilidades, procurando escândalo, sensações de todo o tipo. Zalia difere um pouco do resto, até onde eu sei. Ela sempre parece estar acelerando ao máximo e ultrapassando os limites de velocidade, mas eu não sei até onde pode chegar realmente. E alguém sabe? Talvez seja uma reação violenta à respeitabilidade. Sua família é muito austera. Sua educação foi estrita, até obrigaram-na a entrar num convento durante dois anos, creio eu. Depois ela estourou e agora está tendo suas aventuras...

— Um esboço de caráter bastante brilhante mas nada suave — murmurou Vance. — Poder-se-ia concluir que você a admira mas não a aprova.

Garden riu desajeitadamente.

— Não posso dizer que não gosto de Zalia. A maioria dos homens gosta dela, embora eu não creia que qualquer um deles possa entendê-la. Eu sei que não posso. Há um muro impenetrável à sua volta. O mais curioso é que os homens a apreciam embora não faça o menor esforço para conquistar a estima ou afeição deles. Ela os trata sem consideração; na realidade parece estar aborrecida com as atenções deles. Uma venenosa e passiva Dolores, poderíamos dizer.

— Sim, algo assim, eu diria. Ela pode ser ou tremendamente superficial ou profunda como o inferno; não consigo decidir-me qual dos dois. Quanto à sua situação no caso atual... bem, eu não sei. Não me surpreenderia em absoluto se Madge tivesse razão. Zalia tem-me confundido diversas vezes, não posso explicar direito. Lembra-se? Quando você me perguntou a respeito do revólver de meu pai, contei-lhe que Zalia o havia descoberto na escrivaninha e montara toda uma cena nesta mesma sala. Vance, naquele dia meu sangue gelou nas veias. Havia um quê na maneira como Zalia fez a coisa e no tom de sua voz que me fez realmente temer que ela fosse capaz de atirar no grupo e depois passear pela sala e rir dos cadáveres. Não havia razão para esses sentimentos, talvez, mas, acredite-me, fiquei loucamente aliviado quando ela botou o revólver no lugar e fechou a gaveta. Tudo o que posso dizer — acrescentou — é que não a consigo entender inteiramente.

— Não, é claro que não. Ninguém pode compreender inteiramente uma outra pessoa. Se pudesse, entenderia tudo, o que não é um pensamento muito reconfortante... Muitíssimo obrigado pelo recital de suas impressões e temores. Dê uma olhada nas coisas lá embaixo, por uns momentos, sim?

Garden pareceu respirar com mais facilidade após ser dispensado e com uma aquiescência apenas murmurada, dirigiu-se para a saída.

— Ah, a propósito — chamou Vance — há uma outra coisa que eu lhe queria perguntar.

Garden esperou polidamente.

— Por que razão — disse Vance enviando para o teto um anel de fumaça — você não fez a aposta de Swift em Equanimity?

O homem deu um salto e seu queixo caiu. Mal teve tempo de impedir que o cachimbo caísse no chão.

— Você não fez, não é? — prosseguiu Vance suavemente. — Um ponto muito interessante, considerando-se o fato que seu primo não estava destinado a viver tempo suficiente para recolher o prêmio, caso Equanimity houvesse ganho. E, nas circunstâncias, se tivesse feito o jogo, agora estaria às voltas com uma dívida de 10.000 dólares, visto que Swift não estaria em condições de saldá-la.

— Por Deus do céu, Vance, pare com isso! — explodiu Garden, atirando-se na cadeira como um peso morto. — Como é que você sabe que eu não coloquei a aposta de Woody?

Vance olhou perscrutadoramente.

— Nenhum bookmaker aceitaria uma aposta daquela monta cinco minutos antes da largada. Ele não a poderia bancar, teria que colocar uma boa parte da mesma em outro lugar, talvez até fora da cidade: Chicago ou Detroit. E para isso, você sabe que precisa tempo. Uma aposta de 10.000 dólares tem que ser feita pelo menos uma hora antes de correr o páreo. Eu já lidei muito com bookmakers e homens de corridas.

— Mas Hannix...

— Não transforme Hannix num financista de Wall Street — advertiu mansamente Vance. — Conheço tão bem quanto você esses cavalheiros de giz e apagador. E outra coisa: aconteceu eu estar sentado numa posição estratégica perto de sua mesa quando você fingiu a aposta de Swift. Você habilidosamente esticou o fio sobre o gancho do telefone quando pegou o aparelho. Você estava falando num telefone desligado.

Garden contraiu-se e capitulou com um movimento de ombros desalentados.

— Está certo, Vance — disse. — Não fiz o jogo. Mas, se por um só momento você pensa que eu tinha qualquer suspeita de que Woody ia ser assassinado esta tarde, você está redondamente enganado!

— Meu caro amigo — suspirou Vance aborrecido — eu não estou pensando. A maior das inteligências não está trabalhando no momento. O cérebro está vazio, apenas tentando somar alguns algarismos. 10.000 dólares são uma grande soma. Isto muda o nosso total, não?... Mas você não me disse porque não fez o jogo. Poderia tê-lo feito. Você tinha indicações em número suficiente de que Swift ia apostar uma vasta soma em Equanimity e bastaria apenas tê-lo informado que a aposta deveria ser feita cedo.

Garden ergueu-se zangado, mas sob a sua raiva havia uma grande agitação.

— Eu não queria que ele perdesse o dinheiro — afirmou com agressividade. — Eu sabia o que aquilo significaria para ele.

— Sim, sim. O Bom Samaritano. Muito tocante. Mas suponhamos que Equanimity ganhasse e seu primo sobrevivesse: e o pagamento?

— Eu estava completamente preparado para correr o risco. Não seria muita coisa. Que poderia pagar aquele comedor de aveia? Menos que dois por um. Um dólar e oitenta centavos cada dólar, para ser exato, teriam sido dezoito mil dólares. Mas não havia a menor chance de Equanimity se colocar; eu tinha certeza absoluta disso. Corri o risco para o bem de Woody. Eu estava sendo decente, ou fraco, não sei qual dos dois. Se o cavalo tivesse ganho, eu teria pago Woody do meu bolso e ele nunca viria a saber que não era o dinheiro de Hannix.

Vance olhou-o pensativamente.

— Obrigado pela emocionante confissão — murmurou por fim. — Acho que é tudo por agora.

Enquanto ele falava, dois homens com uma cesta de vime com aspecto de um caixão surgiram no corredor. Heath foi-lhes ao encontro.

— A Saúde Pública veio buscar o corpo — anunciou por cima do ombro.

Vance ergueu-se.

— Sargento, diga-lhes para descer pela escada externa, não é necessário voltar por dentro do apartamento. — Dirigiu-se novamente a Garden. — Poderia mostrar-lhes o caminho?

Garden concordou de má vontade e saiu para o terraço.

Alguns momentos depois, os dois carregadores, precedidos por Garden, desapareciam pelo portão do jardim levando seu triste fardo.

 


XI

 

O Segundo Revólver

 

(Sábado, 14 de abril — 18:25 horas)

 

 

Markham encarou Vance com uma sombria ansiedade.

— Que significa essa história de Garden não ter colocado a aposta?

Vance suspirou.

— Qual é o significado das coisas? No entanto, é exatamente de tais fatos estranhos que podem surgir algumas hipóteses esclarecedoras.

— Eu, francamente, não consigo imaginar qual a influência que a atitude de Garden pode ter nesse caso, a menos que...

Vance interrompeu-o de chofre.

— A situação é embaraçosa. Tudo que aprendemos até agora deve ter algum significado. É necessário, evidentemente, que o saibamos interpretar. Quem sabe se a chave não está no amor?

— Não seja tão diabolicamente enigmático — disse Markham. — Que é que você está pretendendo?

— Meu caro Markham! Você está sendo demasiado lisonjeiro. Não há nada disso. Estou à procura de alguma coisa tangível, como, por exemplo, a outra arma, a que ouvimos detonar em algum lugar quando o cara já estava morto. Deveria estar aqui ou nas vizinhanças... — Voltou-se para Heath. — Diga-me, sargento, poderia juntamente com Snitkin procurar a arma? Itinerário sugerido: o jardim lá do terraço, os canteiros, a escadaria do prédio, o vestíbulo inferior. Depois, o próprio apartamento. Conjectura: qualquer um dos presentes pode ter estado com ela. Sigam todos os itinerários internos conhecidos de cada uma das pessoas que estão lá embaixo. Se está aqui, provavelmente será em algum esconderijo provisório, à espera de uma outra providência. Não precisam pôr as coisas de pernas para o ar e não sejam exageradamente oficiais. A doçura e o esclarecimento fazem as coisas.

Heath riu:

— Eu sei o que quer, Sr. Vance.

— E, sargento, antes de começar o reconhecimento, traga-me o Hammle. Você certamente o encontrará no bar lá embaixo tomando um uísque com soda.

Depois que Heath se afastou, Vance dirigiu-se a Markham.

— Hammle pode ou não ter algum bom conselho a dar. Não gosto dele: é do tipo pegajoso. Poderíamos também livrar-nos dele, pelo menos temporariamente. O local está tremendamente superlotado...

Hammle entrou pomposamente no estúdio e foi sumariamente apresentado a Markham. Através da janela, à luz do crepúsculo, eu podia distinguir os vultos de Heath e Snitkin movimentando-se ao longo dos canteiros.

Vance fez um gesto para que Hammle pegasse uma cadeira e estudou-o durante alguns instantes com um ar melancólico, como se estivesse fazendo um esforço para achar uma razão que justificasse a existência daquele homem.

A entrevista foi culta e, como provou, de particular importância. Esta não estava tanto no que Hammle disse quanto no resultado da curiosidade que as perguntas de Vance despertaria no homem. Foi esta curiosidade que mais tarde o capacitou a fornecer uma importante informação a Vance.

— Não é do nosso desejo reter o senhor aqui além do necessário, Sr. Hammle, — começou Vance com evidente má vontade — mas ocorreu-me perguntar-lhe se o senhor teria alguma idéia que ajudasse a solucionar o assassínio de Swift.

Hammle tossiu estrepitosamente e pareceu dar ao assunto uma grande atenção.

— Não, não tenho — admitiu finalmente. — Absolutamente. Mas é claro que com essas coisas nunca se sabe. Os fatos mais insignificantes podem ser interpretados seriamente desde que se dê a eles suficiente atenção. Quanto a mim, no momento, não dediquei ainda bastante atenção ao assunto.

— É claro — concordou Vance. — Ainda não houve muito tempo para profunda reflexão sobre a situação. Mas pensei que pudesse haver algo nas relações entre as diferentes pessoas aqui presentes esta tarde; suponho que o senhor esteja bastante familiarizado com todas elas, o que poderia inspirá-lo a dar uma sugestão.

— Tudo o que posso dizer — respondeu Hammle cuidadosamente pesando as palavras — é que havia muitos elementos adversários na reunião, isto é, muitas combinações peculiares. Oh, nada de criminoso. — E ele abanou rapidamente a mão, desculpando-se. — Eu gostaria que o senhor compreendesse isso totalmente. Mas havia uma combinação disto e daquilo que poderia levar a... bem, a qualquer coisa.

— A um crime, por exemplo? Hammle franziu a testa.

— Bem, crime é um assunto muito, muito sério. — Seu tom era quase sentencioso. — Mas, Sr. Vance, acredite em mim, com toda a solenidade, eu não imputaria um assassinato a nenhuma das pessoas aqui presentes hoje. Não, por Deus!

— Esta é uma surpreendente indicação — murmurou Vance — mas estou satisfeito em ouvir sua opinião e a tomaremos em consideração... A propósito, o senhor não percebeu alguma coisa de irregular quando Garden colocou a enorme aposta de Swift em Equanimity à última hora?

O autocontrole de Hammle desapareceu como por encanto. Durante alguns instantes ele apresentou a Vance uma perfeita "cara de jogador de pôquer". Depois, incapaz de suportar o exame direto do frio olhar de Vance, ele contraiu a boca num sorriso desajeitado.

— Por que negar — disse rindo. — O lançamento daquela aposta não foi apenas irregular; foi praticamente impossível. Não conheço um só bookmaker em Nova York que aceitasse uma soma tão grande quando nem sequer havia tempo suficiente para descarregar parte dela. O tal de Hannix teria passado um aperto tentando equilibrar seus livros com uma tempestade deste tipo à última hora! A transação toda pareceu-me loucamente estranha. Não podia conceber o que Garden estava fazendo.

Vance inclinou-se para a frente e seus olhos entrecerraram-se enquanto ele fixava Hammle.

— Isto poderia facilmente ter tido alguma influência na situação de hoje e eu gostaria muito de saber por que o senhor não mencionou o fato.

Durante um certo tempo o homem pareceu desconcertado, mas logo depois ele voltou a se instalar na cadeira com um ar complacente e estendeu as mãos com as palmas voltadas para cima.

— Por que razão deveria eu me intrometer? — perguntou com uma cínica suavidade. — Eu nunca me preocupei muito com os problemas dos outros. Já tenho muitos dos meus com que me preocupar.

— Esta é uma maneira de encarar a vida — falou descansadamente Vance. — E tem seus aspectos positivos. No entanto... E ele contemplou a ponta do cigarro, perguntando em seguida: — Sua discrição lhe permitiria fazer alguns comentários sobre Zalia Graem?

Hammle iluminou o rosto.

— Ah! — meneou a cabeça significativamente. — Isto é uma coisa para se pensar. Há várias possibilidades nessa moça. Vocês podem estar na pista certa. Um muito provável suspeito para o crime. De qualquer forma com as mulheres nunca se pode saber. E, cheguei a pensar nisso, o tiro deve ter ocorrido durante o período em que ela esteve ausente da sala. E ela é boa no tiro, também. Lembro-me uma vez que ela veio à minha propriedade em Long Island; naquela tarde praticou um bocado de tiro ao alvo. Ah, ela entende de armas como outras mulheres entendem de rendas, e também ela é tão selvagem quanto uma potranca de dois anos em seu primeiro obstáculo.

Vance concordou e esperou.

— Mas, nem por um momento imaginem — acrescentou Hammle às pressas — que estou sugerindo que ela tivesse alguma coisa a ver com a morte de Swift. Absolutamente, não! Mas o fato de seu nome ter sido mencionado faz-me pensar... — Enquanto terminava, ele meneava a cabeça com ar de quem sabe.

Vance ergueu-se com um bocejo reprimido.

— É bastante evidente que o senhor não está com disposição para ser mais específico. Eu não estava à procura de generalidades, compreende. Conseqüentemente, posso querer uma outra entrevista com o senhor. Onde poderá ser encontrado mais tarde, caso venhamos a precisar do senhor?

— Se tenho permissão para ir-me agora, voltarei para Long Island imediatamente — respondeu logo Hammle, olhando para o relógio. — É tudo o que deseja por enquanto?

— É tudo, obrigado.

Hammle mais uma vez olhou para o relógio, hesitou um pouco e depois deixou-nos.

— Não é uma pessoa agradável, esse Hammle — comentou Vance pesaroso quando o outro se foi. — Não é, em absoluto, uma pessoa agradável. Como você deve ter percebido, para ele todos servem para o papel de assassino; todos, exceto ele, é evidente. Uma criatura vil. E aquele colete horrível! E os sapatos de solas tão grossas, as roupas amarrotadas! Tão descuidado e esportivo: verdadeiramente britânico. O uniforme da elite dos cães de raça e cavalos. Os animais na realidade merecem melhores associados.

Deu de ombros tristemente e, dirigindo-se à campainha, apertou o botão.

— Estranhas informações sobre a moça Graem — voltou morosamente à sua cadeira. — Chegou a hora de entrar em contato com a própria dama...

Garden surgiu na porta.

— Chamou-me, Vance?

— Sim. A campainha agora está funcionando. Desculpe-me incomodá-lo, mas eu gostaria de ver a Srta. Graem. Você poderia fazer o favor?

Garden hesitou, seus olhos plantados em Vance. Ele ia começar a dizer alguma coisa, mudou de idéia e, com um resmungado "está bem", deu meia volta e desceu.

Zalia Graem entrou com um ar fanfarrão, as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta e olhou-nos com um alegre cinismo.

— Já fiz a maquilagem para a inquirição — anunciou com um sorriso de banda. — Vai demorar muito?

— É melhor sentar-se — disse Vance com fria polidez.

— É obrigatório? — perguntou ela.

— Estamos investigando um crime, Srta. Graem. — A voz de Vance era cortês porém firme. — E será necessário fazer-lhe algumas perguntas, às quais a senhorita talvez faça objeções. Mas acredite que será muito melhor para si mesma respondê-las francamente.

— Sou suspeita? Que emocionante!

— Até aqui, todos aqueles com quem falamos são dessa opinião. — E ele olhou a moça significativamente.

— Ah, então é assim que são as coisas! Eu é que vou pagar o pato! Que coisa mais cretina! Bem que me pareceu notar um vago olhar de medo nos outros. É, acho melhor eu me sentar. — Atirou-se numa cadeira e fitou-nos com um desânimo simulado. — Vão prender-me?

— Não imediatamente. Mas alguns pontos precisam ser esclarecidos. Não perderá seu tempo em nos ajudar.

— Isto soa horrível. Mas, continue.

— Primeiramente, gostaríamos de saber algumas coisas a respeito de sua rixa com Swift.

— Ah, diabos! — exclamou com raiva. — Isto precisa ser remexido? Na realidade não era nada de especial. Woody preocupava-se demais comigo. Tive pena dele e andei um pouco com ele quando me implorou e ameaçou-me recorrer a todas as formas conhecidas de suicídio, se eu não o fizesse. Depois, achei que já não agüentava mais e decidi virar a página. Mas receio não ter agido da melhor maneira. Disse a ele que eu era extravagante e só ligava para o luxo e que nunca me casaria com um homem pobre. Eu tive a triste idéia que isto o faria sair de sua esperançosa adoração. Funcionou, mas de certo modo. Ele ficou furioso, disse coisas horríveis, que, francamente, não pude perdoar. E assim, ele foi por um caminho e eu por outro.

— Dessa forma, a conclusão que podemos tirar é que ele jogava tão alto nos cavalos como a última esperança de reunir uma fortuna suficiente para vencer a sua aversão à pobreza, e que a aposta de hoje em Equanimity foi o último recurso...

— Não diga isso! — gritou a moça segurando com força os braços da cadeira. — É uma idéia horrível, mas bem que poderia ser verdade. Não quero ouvir isto.

Vance continuou a estudá-la com ar crítico.

— É como diz. Poderia ser verdade. Entretanto... bom, vamos deixar de lado... — Depois, perguntou rapidamente: — Quem lhe telefonou hoje, pouco antes do Grande Prêmio Rivermont?

— Tartarin de Tarascon — replicou com sarcasmo.

— E a senhorita havia dito a esse eminente aventureiro que lhe telefonasse exatamente naquela hora?

— Que tem isso a ver com o resto?

— E por que estava tão ansiosa em atender o telefone na saleta e fechou a porta?

A moça inclinou-se para a frente e desafiou o olhar de Vance.

— Onde está querendo chegar? — perguntou furiosa.

— A senhorita tem conhecimento — prosseguiu Vance — de que a saleta lá embaixo é a única peça diretamente ligada com fios a esta sala aqui?

A moça pareceu incapacitada de falar. Ficou pálida e rígida, os olhos fixos em Vance.

— E sabe também — continuou na mesma entonação — que os fios do lado de cá foram desligados? E sabe ainda que o tiro que ouvimos lá embaixo não foi o que pôs fim à vida de Swift; que ele foi alvejado na caixa-forte do corredor, muitos minutos antes de ouvirmos a detonação?

— O senhor está sendo medonho — gritou a moça. — Está fabricando pesadelos para me assustar. Está concluindo coisas horríveis. Tentando torturar-me, fazendo-me admitir coisas que não são verdadeiras, só porque eu não estava na sala quando Woody foi morto.

Vance ergueu a mão para interromper as reclamações.

— Está interpretando mal minha atitude, Srta. Graem — disse suavemente. — Há poucos momentos atrás, pedi-lhe que respondesse francamente às minhas perguntas. Recusou-se. Nessas circunstâncias, deveria saber como os fatos se apresentam para as outras pessoas. — Fez uma pausa. — A senhorita e Swift não estavam em bons termos; sabia, como todos os outros, que geralmente ele subia para o terraço antes de cada páreo. Sabia onde o Prof. Garden guardava o revólver. Está acostumada a armas e atira bem. Chamam-na ao telefone bem naquela hora. A senhorita desaparece. Nos cinco minutos que se seguem, Swift é morto atrás daquela porta de aço. Mais cinco minutos se passam; acabou a corrida e ouve-se um tiro. Este tiro podia perfeitamente ter sido disparado por um mecanismo qualquer. Os fios da campainha daqui foram desligados, obviamente com alguma finalidade específica. No momento do segundo disparo, a senhorita estava na outra extremidade do fio; quase desmaiou quando viu Swift. Depois tentou vir cá em cima... somando tudo isso: a senhorita tinha um motivo, um conhecimento amplo da situação, tinha acesso à arma, capacidade para agir e a oportunidade. — Vance fez nova pausa. — Está agora pronta para ser franca ou tem realmente alguma coisa a esconder?

Produziu-se uma mudança nela. Afrouxou, como se atacada subitamente de fraqueza. Não despregou os olhos dos de Vance, parecendo perplexa, sem saber que rumo tomar.

Antes que ela conseguisse falar, Heath entrou ruidosamente no corredor e abriu a porta do estúdio. No braço, ele trazia um casacão de mulher de tweed preto e branco. Piscou um olho para Vance triunfantemente: — Já vi tudo, sargento — falou lentamente Vance. — Sua busca teve sucesso. Pode falar. — Voltou-se para Zalia Graem e explicou: — O sargento Heath estava à procura do revólver que disparou o segundo tiro.

A jovem imediatamente animou-se e inclinou-se para a frente, toda atenção.

— Segui o caminho que sugeriu, Sr. Vance — informou Heath. — Depois de percorrer o terraço, as escadas e o vestíbulo do apartamento, pensei em dar uma olhada nas roupas penduradas no armário da entrada. O revólver estava no bolso deste aqui. — Atirou o casaco no sofá e tirou do próprio bolso um revólver de metal, calibre 38, mostrando-o a Vance e Markham.

— Cheio de cápsulas e uma delas foi disparada.

— Muito bem, sargento — cumprimentou Vance. — E de quem é o casaco?

— Ainda não sei, Sr. Vance; mas vou descobri-lo imediatamente.

Zalia Graem erguera-se e aproximara-se.

— Posso dizer de quem é. Pertence à Srta. Beeton, a enfermeira. Eu a vi com ele ontem.

— Muito grato pela identificação — retrucou Vance com os olhos sonhadoramente pousados nela.

A jovem deu-lhe um sorriso oblíquo e voltou à cadeira de onde saíra.

— Mas ainda há uma questão pendente, Srta. Graem. Quero saber: está pronta agora para falar francamente?

— Está certo. Lemmy Merrit, um dos vários rebentos da aristocracia turfista que infesta o nosso litoral, pediu-me para ir com ele de carro assistir a uma partida de pólo em Lands Point, amanhã. Achei que isso poderia proporcionar alguma sensação e disse-lhe que me chamasse esta tarde aqui, às 3:30 para uma decisão final. Marquei a hora de propósito, de modo a não perder o Grande Prêmio. Como o senhor sabe, ele só telefonou às 4 horas, desculpando-se por não ter conseguido um telefone. Tentei livrar-me dele depressa, mas ele era insistente, aliás a única virtude que eu conheço nele. Deixei-o pendurado no fio enquanto saí para ouvir a corrida e depois voltei para despedir-me e dispensá-lo. Exatamente quando desliguei, ouvi alguma coisa parecida com um tiro e cheguei na porta a tempo de ver todo o mundo se precipitando pelo corredor afora. Veio-me a idéia de que Woody se tivesse suicidado e foi aí que eu dei uma da era vitoriana e quase desmaiei quando o vi. E isso é tudo. Nada sei a respeito de fios, campainhas, ou dispositivos mecânicos; há uma semana que eu não entrava nesta sala. Todavia, eu chego ao ponto de admitir que não gostava de Woody e que, em muitas ocasiões, tive vontade de lhe estourar os miolos. E, como o senhor disse, atiro muito bem.

Vance ergueu-se e fez um reverência.

— Muito obrigado por sua franqueza final, Srta. Graem. Estou imensamente triste por tê-la torturado para obter o que desejava. E, por favor, ignore os pesadelos que me acusou de estar fabricando. Estou-lhe realmente muito grato por ter-me ajudado a completar o esboço.

A jovem franziu a testa e seu olhar intenso pousou em Vance.

— Estou-me perguntando se realmente o senhor não sabe mais sobre este caso do que finge.

— Minha querida Srta. Graem! Não finjo saber coisa alguma.

Vance abriu a porta para ela.

— Pode ir agora, mas provavelmente amanhã vamos querer vê-la outra vez e eu preciso pedir-lhe que me prometa ficar em casa, onde será facilmente encontrada.

— Não se preocupe, estarei em casa. — Deu de ombros e acrescentou: — Estou começando a pensar que talvez Ogden Nash estivesse certo.

Quando ela saía, a Srta. Beeton vinha subindo o corredor em direção ao estúdio. As duas mulheres cruzaram-se sem se falar.

— Lamento incomodá-lo, Sr. Vance, — desculpou-se a enfermeira — mas o Dr. Siefert acabou de chegar e pediu-me para informá-lo que deseja vê-lo o mais depressa possível. O Sr. Garden — acrescentou — contou a ele a morte do Sr. Swift.

Naquele instante o olhar dela pousou no casaco de tweed e uma ruga de espanto riscou sua testa. Antes que ela pudesse falar, Vance disse: — O sargento trouxe seu casaco até aqui. Ele não sabia de quem era, estávamos procurando alguma coisa. — Depois ele acrescentou rapidamente: — Por favor, diga ao Dr. Siefert que eu gostaria muito de vê-lo agora mesmo. E peça-lhe para ter a gentileza de vir até aqui ao estúdio.

A enfermeira fez que sim e saiu fechando suavemente a porta atrás de si.


XII

 

Gás Venenoso

 

 


(Sábado, 14 de abril — 18:40 horas)

 

 

Vance foi até à janela e, durante algum tempo, ficou em silêncio olhando para fora. Era evidente que ele estava profundamente perturbado. Markham respeitou seu sentimento e permaneceu calado. Foi o próprio Vance quem, por fim, rompeu o silêncio.

— Markham, — disse ele com os olhos fitos no brilhante pôr-de-sol do outro lado do rio — quanto mais penetro neste caso, menos gosto dele. Todo o mundo parece estar tentando pregar no próximo a etiqueta de culpado. Para qualquer lado que eu me vire, sinto que há medo. As consciências culpadas estão em ação.

— Mas todos — retrucou Markham — parecem concordar plenamente que Zalia Graem tem um dedo nesta história.

Vance inclinou a cabeça.

— É, sim — murmurou. — Também observei este fato. Só fico pensando...

Markham analisou Vance durante algum tempo.

— Você acha que o Dr. Siefert possa ser de alguma utilidade?

— Poderá ser, é claro — replicou Vance. — Evidentemente ele quer ver-me. Mas acredito que seja mais curiosidade que outra coisa. Na verdade, há muito pouca coisa que alguém que não estivesse aqui possa contar-nos. A dificuldade deste caso, Markham, reside em tentar eliminar uma multiplicidade de itens que só fazem confundir...

Ouviu-se uma leve batida e Vance deixou a janela para deparar com Garden que abriu a porta sem esperar que o atendessem.

— Perdão, Vance, — desculpou-se Garden — mas o Dr. Siefert está lá embaixo dizendo que gostaria de vê-lo antes de ir embora.

Vance ficou olhando para ele e franziu a testa.

— Faz alguns minutos que a Srta. Beeton me informou isso mesmo. Pedi-lhe que dissesse ao doutor que eu desejava vê-lo imediatamente. Não entendo por que ele mandou você também. A enfermeira não deu o recado?

— Receio que não. Sei que Siefert mandou a Srta. Beeton aqui e eu supus, e creio que Siefert também, que você a havia retido. — Olhou à volta da sala com expressão intrigada.

— Na verdade, pensei que ela ainda estivesse aqui.

— Você quer dizer que ela não voltou lá para baixo? — perguntou Vance.

— Não, ela ainda não desceu. Vance deu um passo à frente.

— Você tem certeza disso, Garden?

— Sim, absoluta — respondeu acenando vigorosamente com a cabeça. — Eu estava no corredor de entrada próximo a escada desde a chegada do Dr. Siefert.

Vance caminhou pensativamente até uma mesinha e lá bateu a cinza do cigarro.

Você viu os outros descerem? — perguntou.

— Sim, claro. Kroon desceu e foi embora. Depois Madge Weatherby também desceu e se foi. Pouco depois de a enfermeira subir com o recado do Dr. Siefert, Zalia desceu e roí embora às pressas. Mas isso é tudo. Como já disse, estive todo o tempo no corredor de entrada.

— E Hammle?

— Hammle? Não, não vi sinal dele. Pensei que ainda estivesse aqui com vocês.

— Isso é mais que esquisito. — Vance caminhou lentamente ate uma cadeira e sentou com um ar perplexo. — É possível que você não o tenha visto. Não tem importância, peça ao doutor para subir, sim?

Quando Garden nos deixou, Vance permaneceu sentado e fumando com os olhos no teto. Por suas palavras pude sentir que ele estava perturbado. Moveu-se, inquieto na cadeira e finalmente inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

— Infernalmente estranho — murmurou de novo.

— Por Deus do céu, Vance, — comentou Markham com irritação — é perfeitamente possível que Garden não estivesse controlando a escada tão bem quanto imagina.

— É, é mesmo — meneou a cabeça. — Todo o mundo preocupado; ninguém atento. Os mecanismos normais não estão funcionando. Ainda assim, a metade da escada é visível do corredor e este não é muito espaçoso...

— É bem possível que Hammle tenha descido pela escada externa através do terraço, talvez desejando evitar os outros.

— Ele estava sem chapéu quando veio aqui — respondeu Vance sem levantar os olhos. — Ele teria precisado ir até o corredor de entrada e passar por Garden para pegá-lo. Não há razão para umas manobras tão tolas... Mas não é em Hammle que estou pensando. É na Srta. Beeton. Não estou gostando... — Levantou-se devagar e pegou outro cigarro. — Ela não é o tipo de pequena que deixaria de dar o meu recado ao Dr. Siefert imediatamente, a menos que tivesse boa razão para tal.

— Algumas coisas podem ter acontecido... — começou Markham, porém Vance cortou.

— Sim, é claro. É exatamente isto. Já aconteceram coisas demais aqui hoje. — Dirigiu-se até à janela do lado norte e olhou para o jardim. Depois voltou ao centro da sala e parou durante uns instantes, mergulhado em profunda meditação. — Como você disse, Markham, — sua voz era quase inaudível — alguma coisa pode ter acontecido. — De repente, ele atirou o cigarro num cinzeiro e girou nos calcanhares: — Deus! Estou pensando se... Venha, sargento. Vamos ter que dar uma busca imediatamente.

Abriu a porta rapidamente e saiu pelo corredor. Nós o seguimos com uma vaga apreensão, sem saber o que ele tinha em mente e sem poder prever o que viria em seguida. Vance espiou pela porta do jardim. Depois, voltou sacudindo a cabeça.

— Não, não poderia ter sido aqui. Nós teríamos visto.

— Seus olhos moviam-se curiosamente para cima e para baixo do corredor, e depois uma expressão estranha e de surpresa tomou conta deles. — Pode ser! Ai, meu Deus! — exclamou.

— Estão acontecendo coisas malditas aqui. Esperem um segundo.

Vance rapidamente retrocedeu até à porta da caixa-forte. Segurando a maçaneta, puxou-a com violência, mas agora a porta estava trancada. Tirando a chave do prego, enfiou-a apressado, no buraco. Quando a porta se abriu com um estalido, um cheiro forte e penetrante atacou nossas narinas. Vance recuou logo.

— Para fora! — gritou por cima do ombro, em nossa direção. — Vocês todos!

Instintivamente corremos para a porta do jardim.

Cobrindo o nariz e a boca com uma das mãos, Vance empurrou a porta do cofre.

— Srta. Beeton! Srta. Beeton! — chamou. Não veio resposta; e eu vi Vance abaixar a cabeça e avançar através de uma densa fumaça que emanava da porta aberta. Ajoelhando-se no limiar, inclinou-se para dentro do cofre. No momento seguinte, ele se endireitava e puxava para o corredor o corpo sem forças da enfermeira.

Todo esse episódio demorou menos que o tempo necessário para contá-lo. Na realidade não haviam decorrido mais de dez segundos desde que ele enfiara a chave na fechadura. Eu sabia o esforço que ele estava fazendo, pois até mesmo eu, que ficara do lado de fora da porta do jardim onde a fumaça era relativamente pouco densa, estava meio sufocado, enquanto Markham e Heath estavam tossindo e soluçando.

Assim que a moça ficou fora da caixa-forte, Vance tomou-a nos braços e carregou-a vacilantemente para o jardim onde colocou-a gentilmente no sofá de vime. O rosto dele estava mortalmente pálido; seus olhos choravam e tinha a respiração difícil. Quando soltou a moça, Vance encostou-se pesadamente em um dos postes de ferro que suportavam o toldo. Abriu amplamente a boca e aspirou o ar fresco.

A enfermeira estava ofegando em estertores e agarrando a garganta. Embora seu peito subisse e descesse em convulsões, todo o seu corpo era flácido e sem vida.

Naquele momento, o Dr. Siefert entrou pela porta do jardim, com uma expressão atônita no rosto. Ele tinha toda a aparência exterior do tipo de médico que Vance nos descrevera na noite anterior. Possuía cerca de 60 anos, vestido de maneira conservadora porém na moda, e com um porte estudadamente digno e auto-suficiente.

Com um grande esforço Vance endireitou o corpo.

— Depressa, doutor — chamou. — É gás de bromo. — E fez um gesto trêmulo em direção ao vulto prostrado da enfermeira.

Siefert avançou rapidamente, moveu o corpo da jovem para uma posição mais confortável e abriu-lhe a gola do uniforme.

— Somente o ar pode ajudá-la — disse, enquanto puxava uma das extremidades do divã de modo a expô-la melhor à brisa que vinha do rio. — Como se sente, Vance?

Vance enxugava os olhos com um lenço; piscou uma ou duas vezes e sorriu levemente.

— Estou bem — dirigiu-se ao divã e olhou um instante para a moça. — Foi por pouco — murmurou.

Siefert inclinou a cabeça gravemente. Neste instante Hammle surgiu de um canto escuro do jardim.

— Por Deus! — exclamou. — Que aconteceu?

Vance voltou-se para o homem com ar colérico, dizendo: — Bem, bem, a lista de presenças está completa. Direi mais tarde o que está acontecendo. Ou talvez o senhor esteja em condições de me dizer. Espere aqui mesmo. — E apontou com a cabeça em direção a uma cadeira que se achava próxima.

Hammle fitou-o com ressentimento e começou a protestar, mas Heath, que acorrera ao seu encontro, pegou-o firmemente pelo braço e levou-o diplomaticamente até à cadeira indicada por Vance. Hammle sentou-se humildemente e tirou um cigarro.

— Eu quisera ter tomado o primeiro trem para Long Island — murmurou.

— Teria sido melhor mesmo, sabe — disse Vance, afastando-se dele.

A tosse estrangulada da enfermeira diminuíra um pouco. Sua respiração era mais profunda e regular e os soluços haviam cedido parcialmente. Pouco depois ela esforçou-se para sentar.

Siefert ajudou-a.

— Respire o mais fundo e rápido que puder — disse. — É de ar que você precisa.

A jovem fez um esforço para seguir as instruções, uma das mãos apoiadas no encosto do sofá e a outra repousando no braço de Vance.

Mais alguns minutos e ela já estava em condições de falar, porém com grande dificuldade.

— Estou melhor agora, a não ser o ardor no nariz e na garganta.

Siefert mandou Heath buscar água e quando a trouxe, a enfermeira bebeu um copo cheio, em meio a soluços estrangulados. Mais dois ou três minutos e ela pareceu recuperar-se consideravelmente. Olhou para Vance com um ar amedrontado.

— Que aconteceu? — perguntou.

— Ainda não sabemos. — Vance devolveu-lhe o olhar com evidente aflição. — Sabemos apenas que você foi envenenada com gás de bromo no cofre onde Swift foi alvejado. Estávamos esperando que você nos pudesse dizer.

Ela sacudiu a cabeça vagamente e seu olhar era de pasmo.

— Receio não ter muito o que contar. Tudo aconteceu de maneira tão inesperada, tão de repente. Tudo o que sei é que quando eu fui dizer ao Dr. Siefert que ele podia subir, bateram-me na cabeça por trás, exatamente quando eu passava pela porta do jardim. O golpe não me deixou inteiramente inconsciente mas atordoou-me de modo que fiquei sem saber o que havia em torno de mim. Depois, senti que me pegavam por trás, giravam meu corpo e empurravam-me de volta pelo corredor até à caixa-forte. Tenho uma vaga lembrança da porta ter sido fechada às minhas costas, embora eu não tivesse condições para protestar ou mesmo dar-me conta do que estava acontecendo. Mas eu estava consciente de que lá dentro havia um pavoroso e sufocante cheiro. Estava encostada à parede e tinha dificuldade em respirar. Senti que ia afundando e isto é a última coisa de que me lembro... — Ela estremeceu. — Isto é tudo o que eu sabia, pelo menos até agora.

— É. Uma experiência desagradável. Mas poderia ter sido muito pior — Vance falou em voz baixa e sorriu gravemente para a jovem. — Tem uma feia mancha roxa em sua cabeça, atrás. Isto também poderia ter sido pior, mas a sua touca engomada provavelmente evitou um mal maior.

A moça pusera-se de pé e vacilou um pouco ao mesmo tempo que procurava firmar-se de encontro a Vance.

— Agora sinto-me bem de verdade. — Olhou para Vance ansiosamente. — E tenho que lhe agradecer, não é?

Siefert falou asperamente.

— Mais alguns minutos daquele gás de bromo teriam sido fatais. Aquele que a encontrou, seja lá quem for, o fez bem a tempo.

A moça não tirava os olhos de Vance.

— Como pode ter-me encontrado tão depressa? — perguntou.

— Raciocínio atrasado — respondeu ele. — Eu a deveria ter encontrado muitos minutos antes, no momento em que soube que não havia voltado lá para baixo. Mas no início foi difícil imaginar que algo de sério poderia ter-lhe acontecido.

— Ainda agora não consigo compreender — disse ela com um ar intrigado.

— Nem eu, inteiramente — retrucou Vance. — Mas talvez ainda venha a saber de mais alguma coisa.

Encaminhando-se rapidamente para o jarro d'água trazido por Heath, mergulhou nele o lenço e apertando este de encontro ao rosto, desapareceu no corredor. Breve regressava. Trazia na mão um caco de vidro fino e curvo, de uns dez centímetros de comprimento.

Era um pedaço de um frasco quebrado que ainda trazia pendurado uma pequena etiqueta onde estava impresso o símbolo "Br".

— Encontrei isto no chão, no fundo da caixa-forte. Estava exatamente ao pé de uma das prateleiras onde o professor Garden mantém o seu sortimento de produtos químicos. Havia um espaço vazio na prateleira, mas este frasco de bromo não pode ter caído acidentalmente. Só pode ter sido retirado deliberadamente e quebrado no momento exato. — Estendeu o fragmento a Heath. — Tome isto, sargento, e procure cuidadosamente por impressões digitais. Mas se, como eu suspeito, foi manipulado pela mesma pessoa que matou Swift, duvido que encontre aí quaisquer marcas expressivas. Em todo o caso...

Heath aceitou cuidadosamente o caco, enrolou-o no lenço que colocou no bolso.

— Se tiver impressões — resmungou — serão as primeiras encontradas aqui.

Vance voltou-se para Markham, que durante toda a cena estivera parado à beira do pequeno lago de pedras, observando com espanto agressivo.

— O bromo — explicou — é um reagente comum. Encontra-se em qualquer laboratório. É um dos halógenos e, embora nunca seja encontrado em liberdade, aparece em vários compostos. Aliás, seu nome vem do grego Bromos, que significa mau cheiro. Não tem sido usado com freqüência como arma de crime, embora haja numerosos casos de envenenamento acidental com ele. Mas, durante a guerra, foi amplamente usado na confecção de bombas de gás, porque torna-se volátil em contato com o ar. E o gás de bromo é sufocante e mortal. Quem quer que tenha planejado esta câmara letal para a Srta. Beeton, não é desprovido de crueldade.

— Foi uma coisa ignóbil, Vance — explodiu Siefert com os olhos flamejantes.

Vance concordou e olhou para a enfermeira.

— Sim. Isso mesmo, doutor. E assim foi a morte de Swift... Como se sente agora, Srta. Beeton?

— Um pouquinho trêmula — respondeu com um sorriso fraco. — Porém nada mais.

— Então podemos prosseguir, não?

— Claro — retrucou em voz baixa.

Nesse instante, Floyd saiu do corredor para o terraço. Ao mesmo tempo que tossia, piscava os olhos e tinha uma expressão interrogativa.

— Que maldito cheiro é este no corredor? — perguntou. — Chegou até lá embaixo e Sneed já está chorando como uma criança que se perdeu. Algo errado?

— Agora não — respondeu Vance. — Foi um vidro de bromina que se quebrou há alguns minutos, mas dentro em breve o ar já estará limpo. Nada de grave. Está tudo indo bem.

— Queria ver-me?

Garden percorreu com ar intrigado o grupo reunido no terraço.

— Sinto muito interrompê-lo Vance, mas eu vim por causa do doutor. — Seus olhos pararam em Siefert e sorriu secamente. — O mesmo de sempre, doutor. A Mama parece a ponto de ter um colapso, ela me assegurou com todo o vigor que não tem mais um grama de forças. Eu a pus na cama, com o que ela pareceu estar perfeitamente de acordo, mas insiste em vê-lo imediatamente. Nunca sei quando ela quer realmente ou não. Em todo o caso, este é o recado.

Siefert mostrou um ar preocupado e inspirou profundamente antes de responder.

— Vou imediatamente, é claro. — Olhou para a enfermeira e depois para Vance. — Podem desculpar-me?

Vance curvou-se: — Certamente, doutor. Mas eu penso que a Srta. Beeton deveria ficar aqui ao ar livre por mais algum tempo.

— Ah, é indispensável. Se precisar dela, mandarei chamar. Mas creio que não será necessário. — E Siefert deixou o terraço seguido por Garden.

Vance acompanhou-os com o olhar até entrarem no corredor, depois falou à enfermeira: — Por favor, Srta. Beeton, sente-se aqui alguns minutos, vamos conversar um pouco. Mas, primeiro, preciso de um ou dois minutos com o Sr. Hammle.

A enfermeira fez que sim e sentou-se um tanto pesadamente no sofá. Vance fez um pequeno sinal a Hammle.

— Que tal se entrássemos um instante? Hammle ergueu-se vivamente.

— Eu estava pensando por quanto tempo ainda os senhores iam-me deter aqui.

Vance abriu caminho até o estúdio; Markham e eu seguimos, logo atrás de Hammle.

— Que estava fazendo no terraço, Sr. Hammle? — perguntou Vance. — Faz algum tempo, após nossa breve entrevista, eu lhe disse que poderia ir embora.

Hammle agitou-se. Era evidente que estava apreensivo e alerta.

— Não é crime ir um pouco até o jardim, ou é? — perguntou com uma truculência sem efeito.

— Absolutamente, não — respondeu normalmente Vance.

— Só estava imaginando por que o senhor preferiu o jardim a ir para casa. Aconteceram tantas coisas infernais neste jardim hoje à tarde.

— Como eu lhe disse, desejava ir para casa. Como poderia saber...

— Este é o ponto, Sr. Hammle — cortou Vance. — Isto não responde à minha pergunta.

— Bom, olhe aqui — explicou detalhadamente Hammle. — Eu acabava de perder o trem para Long Island e para o seguinte faltava mais de uma hora. Quando saí daqui e comecei a descer, disse para mim mesmo: será muito mais agradável esperar no jardim do que na estação da Pennsylvania. Então saí para o terraço e fiquei por lá. E aqui estou eu.

Vance olhou-o com perspicácia e balançou a cabeça.

— Sim, como diz o senhor. Aqui está, mais ou menos em evidência. Aliás, Sr. Hammle, que viu o senhor no jardim enquanto esperava pelo próximo trem?

— Nada, absolutamente nada! — O tom do homem era agressivo. — Caminhei ao longo dos canteiros e vasos, fumando, e estava debruçado no parapeito perto do portão olhando a cidade, quando o ouvi chegar carregando a enfermeira.

Vance apertou os olhos: era evidente que ele não estava satisfeito com a explicação de Hammle.

— E o senhor não viu mais ninguém no jardim ou no terraço?

— Nem uma alma — assegurou-lhe o homem.

— Também nada ouviu?

— Nada, até que apareceram os senhores.

Vance ficou parado olhando Hammle durante um bom momento. Depois voltou-se e caminhou até à janela que dava para o jardim.

— É tudo por enquanto — disse bruscamente. — Mas provavelmente amanhã vamos querer vê-lo outra vez.

— Estarei em casa o dia inteiro. Grato por ser útil. — Hammle deu um olhar para Vance, despediu-se rapidamente e saiu pelo corredor.

 

 

 

 

XIII

 

Azure Star

 

 


(Sábado, 14 de abril — 19:00 horas)

 

 

Vance regressou logo ao jardim. A Srta. Beeton ergueu-se um pouco quando ele se aproximou.

— Está em condições de responder a algumas perguntas? — perguntou Vance.

— Ah, sim. — Sorriu a moça, agora com mais segurança, e levantou-se.

O crepúsculo começava a cair rapidamente sobre a cidade. Um tom cinzento opaco estava substituindo a névoa azulada sobre o rio. Acima das colinas de Jersey, o céu estava iluminado com as cores fortes do pôr-do-sol e, a distância, pequenos focos de luz amarela começavam a surgir às janelas do aglomerado de edifícios. Uma leve brisa soprava do norte e o ar estava frio.

Quando atravessamos o jardim até à amurada, a Srta. Beeton respirou fundo e estremeceu levemente.

— Seria melhor que pusesse o casaco — sugeriu Vance; e voltando ao estúdio, trouxe o casaco para ela. Depois que a ajudou a vesti-lo, a moça voltou-se para ele de repente e perguntou: — Por que trouxeram meu casaco para o estúdio? Isto me está preocupando horrivelmente... juntamente com todas as coisas abomináveis que têm acontecido hoje aqui.

— Por que preocupar-se? — sorriu Vance. — Um casaco fora do lugar certamente não é uma coisa séria. — Seu tom era reconfortante. — Mas, na verdade, nós lhe devíamos uma explicação. Como sabe, dois revólveres participaram da morte de Swift. Um deles, nós vimos aqui no terraço; foi o que matou nosso amigo. Mas ninguém lá embaixo ouviu o tiro porque o rapaz teve fim na caixa-forte do Prof. Garden.

— Ah! Então foi por isso que o senhor queria saber se a chave estava no lugar — disse ela meneando a cabeça.

— O disparo que todos nós ouvimos — prosseguiu Vance — foi feito por outro revólver depois do corpo de Swift ter sido carregado da caixa-forte e colocado na cadeira aqui fora. Nós estávamos naturalmente ansiosos por descobrir essa outra arma e o sargento Heath deu uma busca e...

— Mas... e meu casaco? — Ela agarrou a manga de Vance ao mesmo tempo que uma luz de compreensão passava em seus olhos.

— Sim — respondeu Vance. — O sargento encontrou o revólver no bolso de seu casaco. Alguém teve de colocá-lo lá como esconderijo temporário.

Ela recuou inspirando profundamente.

— Que horror! — Suas palavras eram quase inaudíveis. Vance pôs a mão em seu ombro.

— Se a senhorita não tivesse vindo ao estúdio naquela ocasião e visto o casaco, nós o teríamos devolvido ao guarda-roupa lá embaixo e poupado esse aborrecimento.

— Mas, é terrível demais... e depois, este atentado contra mim. Não posso entender, estou apavorada.

— Vamos, vamos — exortou Vance. —i Agora já passou e precisamos de sua ajuda.

Ela encarou-o por um momento. Depois deu-lhe um leve sorriso de confiança.

— Sinto muito — disse com simplicidade. — Mas esta casa, esta família... eles andam fazendo umas coisas muito estranhas que têm afetado meus nervos desde o mês passado. Não posso explicar o que é, mas há alguma coisa de completamente errado aqui. Durante seis meses eu fui encarregada de uma sala de operação num hospital de Montreal, atendendo a seis ou oito operações por dia; mas isto nunca me afetou como esta casa aqui. Lá, pelo menos, eu podia saber o que ia acontecer; eu podia ajudar e saber que estava ajudando. Mas aqui tudo se passa nos cantos escuros, e nada do que eu faço parece ter qualquer utilidade. Podem imaginar um cirurgião ficando cego em meio a uma laparotomia e tentando continuar sem a visão? É assim que eu me sinto neste estranho lugar. Mas, por favor, não pensem que não estou pronta a ajudar, a fazer o que puder pelos senhores. Os senhores, também, sempre trabalham no escuro, não é?

— Todos nós não temos que trabalhar no escuro? — murmurou Vance sem despregar os olhos dela. — Diga-me: quem você acha possa ser o culpado de todas essas coisas horríveis que estão acontecendo aqui?

Todo o medo e a dúvida pareceram abandoná-la. Caminhou em direção à amurada e parou olhando para o rio com uma impressionante calma e autoconfiança.

— Realmente, eu não sei — respondeu com uma calma reserva. — Há uma série de possibilidades, segundo todas as expectativas. Mas não tive tempo de pensar no assunto com clareza. Tudo aconteceu tão de repente...

— Sim, é exato — disse Vance. — Coisas como esta sempre acontecem subitamente e sem aviso prévio.

— A morte de Woody Swift não foi em absoluto o que esperei que acontecesse aqui — prosseguiu a moça. — Eu não teria ficado surpreendida com algum ato de violência impulsiva, mas este crime premeditado, tão sutil e cuidadosamente planejado, parece estranho à atmosfera daqui. Além disso, não é uma família amorosa, a não ser na superfície. Psicologicamente, cada um parece ter objetivos opostos, cheios de ódios ocultos. Ausência de comunicação, quero dizer, comunicação... entendimento. Floyd Garden é mais sadio que os outros. Seus interesses são restritos, evidentemente; mas em seu próprio nível mental, ele sempre me impressionou como sendo um homem para a frente e enormemente humano. É também digno de confiança, creio eu. É intolerante com sutilezas e profundidades, e sempre adotou o caminho de ignorar a existência daquelas qualidades que causaram atrito entre os outros membros da família. Talvez eu esteja errada, mas esta é a minha impressão.

Ela fez uma pausa e franziu a testa.

— Quanto à Sra. Garden, acho que ela é oca por natureza e está criando para si mesma um modo de vida mais profundo e complexo que ela mesma não compreenda. Isto, naturalmente, a torna pouco razoável e perigosa. Nunca tive uma paciente tão pouco razoável. Ela não tem em absoluto um pingo de consideração com os outros. Sua afeição pelo sobrinho, nunca me pareceu autêntica. Ele era como um pequeno boneco de argila feito por ela e a quem estimava muito. Se ela tivesse idéia de outro modelo, acho que molharia a argila e remodelaria tudo outra vez, criando outro objeto de adoração.

— E o professor Garden?

— Ele é um pesquisador e um cientista e, portanto, não completamente humano no sentido convencional do termo. Algumas vezes até pensei que ele não fosse inteiramente racional. Para ele, as pessoas e as coisas são apenas elementos que devem ser convertidos numa combinação química. Entendem o que estou querendo dizer?

— Sim, muito bem — tranqüilizou-a Vance. — Todo cientista considera-se um Ubermensch*. O poder é o seu deus. Muitos dos grandes cientistas da humanidade têm sido considerados como loucos. Talvez fossem. Sim, um difícil problema. A detenção do poder conduz à fraqueza. Conceito tolo, não é? A atividade mais perigosa do mundo é a ciência. Especialmente perigosa para o próprio cientista. Todo grande descobridor da ciência é um Frankstein em potencial. Entretanto... Qual é a sua impressão dos convidados hoje presentes?

* Super-homem. (N. do T.)

— Não me julgo competente para julgá-los — respondeu seriamente. — Não os compreendo totalmente. Mas cada um deles me impressiona como sendo perigoso à sua moda. Estão todos jogando uma partida e parece ser um jogo sem regras. Para eles, os fins justificam os meios que empregam. Parecem que estão simplesmente à busca de sensações, tentando correr o véu da ilusão sobre as realidades da vida porque não são bastante fortes para encarar os fatos.

— Sim, certo. Você tem uma visão clara. — Vance examinava a moça a seu lado. — E escolheu a profissão de enfermeira porque é capaz de enfrentar a realidade. Você não tem medo da vida... nem da morte.

A jovem pareceu embaraçada.

— O senhor está exagerando a minha profissão. Afinal de contas, eu precisava ganhar a minha vida e a enfermagem atraiu-me.

— Sim, naturalmente. Devia mesmo. Mas, diga-me, você não preferiria não ter que trabalhar para viver?

Ela olhou para ele.

— Talvez. Mas não é normal que toda mulher prefira o luxo e a segurança à luta e incerteza?

— Sem dúvida — disse Vance. — E falando de enfermagem, que me diz das condições da Sra. Garden?

A moça hesitou antes de responder.

— Realmente, não sei o que dizer. Não entendo. E quase suspeito de que o próprio Dr. Siefert também está confuso. É evidente que a Sra. Garden é uma pessoa doente. Ela mostra muitos sintomas daquele temperamento nervoso e errático exibido pelas pessoas que sofrem de câncer. Embora em alguns dias ela esteja melhor que outros, sei que sofre bastante. O Dr. Siefert disse que ela é realmente um caso neurológico; mas, às vezes, sinto que a coisa vai muito mais longe; que uma condição fisiológica obscura está produzindo os sintomas neurológicos que ela apresenta.

— Isto é muito interessante. Há alguns dias atrás o Dr. Siefert mencionou alguma coisa a esse respeito. — Vance aproximou-se da moça. — Poderia contar-me algo sobre os seus contatos com os membros da família?

— Há muito pouco a dizer. O Prof. Garden praticamente me ignora; a maior parte do tempo eu me pergunto se ele sabe que estou aqui. A Sra. Garden alterna entre períodos de irritada admoestação e confidencias íntimas; Floyd Garden tem sido sempre agradável e atencioso. Ele tem procurado fazer-me feliz aqui e freqüentemente se desculpa pelo abominável tratamento que sua mãe, às vezes, me dispensa. Eu o tenho apreciado bastante por esta atitude.

— E sobre Swift: você o via bastante?

Ela pareceu relutar em responder e desviou o olhar mas finalmente voltou-se para Vance.

— A verdade é que, diversas vezes, o Sr. Swift convidou-me para jantar e ir ao teatro com ele. Nunca pude fazer objeção às suas iniciativas, mas, eventualmente, ele me aborrecia bastante. Fiquei, porém, com a impressão de que ele era um desses homens infelizes que sentem sua inferioridade e procuram apoiar-se na afeição das mulheres. Acho que ele estava realmente interessado na Srta. Graem e voltava-se para mim por ressentimento.

Vance fumou uns instantes em silêncio. Depois disse: — E sobre a grande corrida de hoje? Houve muita discussão a respeito?

— Ah, sim. Durante toda a semana eu quase nada ouvi sobre outro assunto. Havia uma curiosa tensão crescendo aqui em casa. Uma noite ouvi o Sr. Swift observar a Floyd Garden que o Grande Prêmio Rivermont era a sua última esperança e que ele acreditava na vitória de Equanimity. Imediatamente travaram uma furiosa discussão com relação às possibilidades de Equanimity.

— Eram do conhecimento dos outros participantes das reuniões da tarde os sentimentos de Swift com relação a esta corrida de Equanimity?

— Sim, o assunto foi livremente discutido durante vários dias. Sabe — acrescentou à guisa de explicação — é impossível para mim deixar de ouvir algumas dessas discussões da tarde; a própria Sra. Garden muitas vezes participava delas e depois as comentava comigo.

— Por falar nisso — perguntou Vance — como veio a apostar em Azure Star?

— Francamente — confessou a moça envergonhada — desde que estou aqui tenho-me interessado um pouco pelas corridas, embora nunca antes tivesse pensado em fazer uma aposta. Mas escutei o senhor dizer ao Sr. Garden que havia escolhido Azure Star e o nome agradou-me tanto que pedi a ele que apostasse para mim. Foi a primeira vez em que joguei num cavalo.

— E Azure Star ganhou — Vance suspirou. — É pena. Na realidade, você jogou contra Equanimity, compreende; ele era o favorito. Um grande cavalo. É uma pena que você tenha ganho. A sorte do principiante é sempre fatal.

O rosto da moça ensombreceu e ela fitou fixamente Vance durante diversos minutos antes de voltar a falar.

— O senhor realmente acha que será fatal?

— Sim. É sim. Inevitável. Você não resistirá à vontade de jogar novamente. Ninguém pára quando ganha da primeira vez. E, invariavelmente, perde no final.

Novamente ela deu um longo e perturbado olhar a Vance; depois desviou para o céu que escurecia sobre nossas cabeças.

— Mas Azure Star é um lindo nome, não é? — Apontou para cima. — Lá está uma estrela azul.

Todos nós olhamos para cima. Bem no alto vimos uma única estrela brilhando com uma luminosidade azulada no céu sem nuvens. Depois de alguns instantes, Vance dirigiu-se até o parapeito e olhou por cima das águas do rio para as colinas arroxeadas e as cores ainda luminosas do crepúsculo. As formas pontiagudas dos grandes edifícios sombrios do lado sul cortavam a abóbada celeste como silhuetas irreais em uma cena dramática.

— Nenhuma cidade do mundo é tão linda como Nova York vista de um ângulo como este no início do crepúsculo. (E eu fiquei pensando nesta súbita mudança de humor.) Ele subiu ao parapeito e olhou lá embaixo o grande abismo de profundas sombras e luzes bruxuleantes bem ao longe. Um curioso arrepio de medo correu pelas minhas costas, o tipo de medo que eu sempre senti ao ver acrobatas balançando perigosamente sobre uma arena de circo. Eu sabia que Vance não tinha medo de altura e que possuía um senso de equilíbrio fora do comum. Mas, apesar disso, involuntariamente prendi a respiração; meus pés e membros inferiores começaram a tremer; e durante um instante eu realmente pensei que ia desmaiar.

A Srta. Beeton estava parada junto a Vance; e ela, também, deve ter experimentado alguma coisa de parecido com a sensação que eu tive porque empalideceu subitamente. Seus olhos estavam fixos em Vance com uma expressão de horror e apreensão; ela agarrou o braço de Markham procurando apoio.

— Vance! — Foi a voz dura de Markham que rompeu o silêncio. — Desça daí!

Vance pulou para dentro e voltou-se para nós.

— Mil desculpas — disse. — A altura realmente afeta muita gente. Eu não havia pensado. — Olhou para a moça. — Pode perdoar-me?

Enquanto falava, Floyd surgiu no terraço vindo do corredor.

— Desculpe, Vance, mas o Dr. Siefert quer a Srta. Beeton lá embaixo, se ela se achar em condições. A Mama está fazendo uma de suas cenas.

A enfermeira saiu correndo e Garden caminhou até Vance. Mais uma vez ele estava às voltas com o cachimbo.

— Uma boa confusão — murmurou. — E você certamente pôs o temor de Deus e da destruição no coração dos piedosos rapazes e moças que aqui estiveram hoje. Todos eles ficaram em cócegas depois que falaram com você. O fato, Vance, é que, se por qualquer razão você quiser ver Kroon, Zalia Graem ou Madge Weatherby esta noite, eles estarão aqui. Todos pediram para vir. Precisam voltar à cena do crime ou coisa semelhante. Precisam apoio mútuo. E, para ser franco, eu estou bem satisfeito que eles venham. Pelo menos poderemos falar na coisa e tomar alguns highballs; e isso é bem melhor que ficar matutando e preocupando-se sozinho.

— Perfeitamente natural — concordou Vance. — Compreendo o que sentem... e você também... perfeitamente. Uma bruta confusão, como você diz. E agora, se nós descêssemos?

O Dr. Siefert veio ao nosso encontro no pé da escada.

— Eu estava justamente vindo ao seu encontro, Sr. Vance. A Sra. Garden insiste em vê-lo. — Depois acrescentou em voz baixa: — Ela é biruta. Um tanto histérica. Não levem muito a sério o que ela disser.

Entramos no quarto. A Sra. Garden, vestida com um peignoir de seda rosa-salmão, estava na cama, recostada em uma pilha de travesseiros. Seu rosto estava abatido e, à luz do quarto, parecia flácido e pouco saudável. Seus olhos flamejaram demoniacamente quando nos viu e seus dedos agarraram-se nervosamente à coberta. A enfermeira ficou de pé na extremidade oposta do quarto, olhando sua paciente com um calmo interesse; o Prof. Garden estava pesadamente encostado ao peitoril da janela em frente; seu rosto era uma máscara de ansiosa solicitude.

— Eu tenho uma coisa a dizer e quero que vocês todos ouçam. — A voz da Sra. Garden era aguda e estridente. —. Meu sobrinho foi assassinado hoje... e eu sei quem o fez! — Ela olhou venenosamente para Floyd Garden que estava de pé, junto à cama, com o cachimbo frouxamente pendurado no canto da boca. — Você! — E apontou um dedo acusador para seu filho. — Você sempre odiou Woody. Sempre teve ciúmes dele. Ninguém mais tinha razões para fazer essa coisa mesquinha. Suponho que eu deveria mentir e proteger você. Mas com que fim? Para que você pudesse matar mais alguém? Talvez... talvez a mim, ou a seu pai. Não! Chegou a hora da verdade. Você matou Woody, e eu sei que você o matou. E sei também por que o fez...

Durante toda esta tirada, Floyd Garden permaneceu de pé, sem se mover, e sem emoção perceptível. Mantinha os olhos fitos na mãe com uma cínica indiferença. Quando ela fez uma pausa, ele tirou o cachimbo da boca e com um triste sorriso, perguntou: — E por que eu fiz isso Mama?

— Porque você tinha ciúmes dele. Porque você sabia que eu dividi meus bens igualmente entre vocês dois e você queria tudo para si. Sempre sentiu o fato de que eu gostasse tanto de Woody quanto de você. E agora pensa que, tendo tirado Woody do caminho, vai ficar com tudo quando eu morrer. Mas, engana-se. Você não terá nada! Está-me ouvindo? Nada! Amanhã, vou mudar meu testamento. — Seus olhos estavam cheios de uma frenética e maldosa excitação; ela parecia uma mulher que de repente tivesse enlouquecido. — Vou mudar meu testamento, compreende? A parte de Woody irá para seu pai, com a condição de que você nunca receba ou herde um dólar da mesma. E a sua parte irá para instituições de caridade. — Ela ria historicamente e batia na cama com os punhos cerrados.

O Dr. Siefert estivera observando atentamente a senhora. Aproximou-se um pouco da cama.

— Um saco de gelo, imediatamente — disse para a enfermeira; e esta saiu logo do quarto. Depois ele remexeu em sua maleta e cuidadosamente preparou uma injeção.

— Não vou deixar que você me dê isso — gritou a mulher acamada. — Não tenho nada. Estou cansada de tomar suas drogas.

— Sim, eu sei. Mas vai tomar isso, Sra. Garden. — O Dr. Siefert falava com uma calma segurança.

A senhora descontraiu-se diante do paciente e ditatorial exame e deixou que ele lhe desse a injeção. Descansou nos travesseiros, olhando absorta para o filho. A enfermeira voltou e arrumou o saco de gelo para a paciente.

O Dr. Siefert escreveu uma receita e virou-se para a Srta. Beeton.

— Mande aviar imediatamente. Uma colher de chá de duas em duas horas até que a Sra. Garden adormeça.

Floyd Garden deu um passo à frente e pegou a receita.

— Vou telefonar para a farmácia — disse. — Em alguns minutos eles a mandarão trazer. — E saiu do quarto.

Após algumas últimas instruções à Srta. Beeton, o doutor dirigiu-se ao salão e todo nós o seguimos, deixando a enfermeira ajeitando os travesseiros da Sra. Garden. O professor, que durante a dolorosa cena se mantivera de costas para nós, olhando pela janela, ainda continuava lá, parecendo uma gárgula enquadrada pelo caixilho.

Quando passamos pela porta da saleta, ouvimos a voz de Garden ao telefone.

— Penso que a Sra. Garden se acalmará agora — observou o Dr. Siefert a Vance quando chegamos ao salão.

— Como já lhe disse, não devemos levar a sério suas observações enquanto ela não estiver em condições. Amanhã, já terá esquecido tudo.

— Sua mordacidade, entretanto, não parece inteiramente desprovida de racionalismo — retrucou Vance.

Siefert franziu a testa mas não fez comentário à declaração de Vance. Ao contrário, ele disse em sua voz calma, bem modulada, enquanto sentava-se descansadamente na cadeira mais próxima.

— Todo esse caso é muito chocante. Floyd Garden deu-me apenas alguns detalhes quando eu cheguei. Poderia esclarecer-me um pouco mais?

Vance imediatamente fez-lhe a vontade. Num relato sucinto, Vance repassou todo o caso, a começar do telefonema anônimo que recebera na noite anterior. (O Doutor não demonstrou o mais leve conhecimento da chamada telefônica. Ficou ali sentado, olhando para Vance com uma serena atenção, como um especialista ouvindo a descrição feita por um paciente.) Vance não ocultou nenhum detalhe importante. Explicou tudo sobre os páreos e as apostas, a retirada de Swift para o terraço, as atitudes dos outros membros do grupo, o tiro, o encontro do corpo de Swift, a descoberta feita na caixa-forte, a história dos fios da campainha, o essencial das várias entrevistas que teve com os membros da família Garden e, finalmente, a descoberta do segundo revólver no bolso do casaco da enfermeira.

— O resto — concluiu Vance — o senhor mesmo testemunhou.

Siefert meneou a cabeça bem vagarosamente duas ou três vezes como para indicar haver recebido um claro e satisfatório quadro dos acontecimentos da tarde.

— Uma situação muito séria — comentou gravemente como se estivesse fazendo um diagnóstico. — Algumas das coisas que o senhor me contou parecem-me altamente significativas. Um assassinato perspicazmente arquitetado... e requintado. Especialmente ao esconderem o revólver no bolso da Srta. Beeton e o atentado contra ela na caixa-forte. Não entendo esta fase da situação.

Vance ergueu os olhos vivamente.

— O senhor entende qualquer outra fase da situação?

— Não, não, eu não quis dizer isto — apressou-se Siefert a responder. — Eu estava pensando simplesmente que, enquanto a morte de Swift poderia ser facilmente explicável em planos racionais, não consigo ver qualquer razão possível para este covarde atentado de revólver a Srta. Beeton e depois dar fim à sua vida.

— Mas eu duvido seriamente que o revólver tenha sido posto no bolso da Srta. Beeton com qualquer intenção de incriminá-la. Imagino que tenha ido parar ali temporariamente, enquanto não pudesse ser tirado da casa. Mas concordo com o senhor que o episódio do gás de bromo é altamente desorientados — Vance, sem demonstrar, vigiava atentamente o doutor. — Quando pediu para ver-me hoje à tarde, eu estava esperando que o senhor pudesse ter alguma sugestão que, vindo de alguém familiarizado com a situação doméstica aqui, poderia colocar-nos na pista certa.

Siefert sacudiu a cabeça solenemente várias vezes.

— Não, não. Lamento, mas eu mesmo estou completamente perdido. Quando pedi para lhe falar e ao Sr. Markham, foi porque, evidentemente, eu estava muitíssimo interessado na situação e ansioso por ouvir o que o senhor poderia ter a dizer sobre o assunto. — Fez uma pausa, afastou de leve a cadeira e depois perguntou: — Os senhores já formaram alguma opinião sobre o que conseguiram apurar?

— Sim, sim. — O olhar de Vance derivou do doutor até o lindo cavalo Tang que estava sobre um móvel próximo. Francamente, entretanto, detesto a minha própria opinião. Lamentarei se acertar. Uma conclusão sinistra, pouco natural, está vindo ao meu encontro. Ê o horror absoluto — Vance falou com uma intensidade involuntária.

Siefert permaneceu silencioso e Vance tornou a voltar-se para ele.

— Diga-me, doutor, o senhor está especialmente preocupado com o estado da Sra. Garden?

Uma nuvem velou o semblante de Siefert e ele não respondeu de imediato.

— É um caso estranho — disse finalmente, com uma evidente tentativa de evasão. — Como lhe disse há pouco, estou profundamente intrigado. Vou trazer o Dr. Kattelbaum* amanhã, para uma conferência.

 

 

 

*Hugo Kattelbaum, embora relativamente jovem, era, na época, uma das principais autoridades em câncer; suas pesquisas sobre o efeito do rádio nas vísceras humanas haviam merecido uma considerável atenção das principais revistas médicas.

 

 

 


— Sim, o senhor tem razão. Kattelbaum — Vance olhou sonhadoramente para o doutor. — A mensagem telefônica anônima que recebi a noite passada falava em sódio radioativo. Mas Equanimity era essencial. Sim. Exatamente. Não é um caso bonito, doutor, em absoluto. E agora acho que vamos ficar andando em círculos. — Vance ergueu-se e fez uma reverência brusca e formal. Siefert também ergueu-se.

— Se há qualquer coisa, de qualquer espécie, que eu possa fazer...

— Nós o chamaremos mais tarde — respondeu Vance e dirigiu-se ao hall.

Siefert não nos seguiu, mas deu meia volta e foi lentamente até uma das janelas da frente, onde ficou olhando para fora, com as mãos cruzadas atrás das costas.

Voltamos ao vestíbulo e encontramos Sneed esperando para nos ajudar a vestir os casacos.

Acabávamos de alcançar a porta de saída do apartamento quando os sons estridentes da voz da Sra. Garden nos chegaram aos ouvidos. Floyd Garden permanecia de pé dentro do quarto, encarando sua mãe.

— Sua solicitude não lhe servirá de nada, Floyd gritava a Sra. Garden. — Está sendo bonzinho para mim agora? Telefonando para aviarem a receita. Todo atenção e bondade. Mas não pense que está colocando uma venda em meus olhos. Não fará diferença alguma. Amanhã vou alterar meu testamento! Amanhã!...

Continuamos nosso caminho e nada mais ouvimos. Mas a Sra. Garden não mudou o testamento. Não manhã seguinte, encontraram-na morta na cama.


XIV

 

Sódio Radioativo

 

(Domingo, 15 de abril — 9:00 horas)

 

 

Na manhã seguinte, pouco depois das nove horas, o Dr. Siefert telefonou. Vance ainda estava deitado quando o telefone tocou e eu atendi. (Havia várias horas que eu estava de pé: os acontecimentos do dia anterior haviam-me agitado sobremaneira e não fui capaz de dormir.) A voz do doutor era de quem tinha urgência e parecia perturbado quando pediu que chamasse imediatamente Vance. Quando o acordei, foi com uma intuição de mais alguma desgraça. Vance parecia relutante em erguer-se e queixava-se cinicamente das pessoas que se levantavam de manhã cedo. Por fim, enfiou seu robe chinês e os chinelos e, acendendo um Régie, foi protestando até à saleta.

Decorreram aproximadamente dez minutos antes que ele voltasse. Seu ressentimento se desvanecera, e quando ele se dirigiu à mesa e chamou por Currie, havia um ar de agudo interesse em seu rosto.

— Café imediatamente — ordenou quando apareceu o velho mordomo. — E prepare um terno escuro e o meu Homburg* preto. E, por falar nisso, Currie, mais um lugar à mesa. O Sr. Markham vai chegar e pode querer tomar uma xícara de café.

*Chapéu de feltro. (N. do T.)

Currie saiu e Vance regressou a seu quarto. Quando chegou na porta parou e olhou para mim com uma curiosa expressão.

— A Sra. Garden foi encontrada morta em sua cama esta manhã — falou. — Algum tipo de veneno. Telefonei a Markham e vamos ao apartamento dos Gardens assim que ele chegar. Um caso feio, Van, muito feio. Há muito jogo acontecendo naquela casa. — E entrou no quarto.

Markham chegou meia hora depois. Enquanto isso, Vance vestira-se e terminava sua segunda xícara de café.

— Qual é o problema agora? — perguntou Markham com irritação, entrando na biblioteca. — Talvez agora, que estou aqui, você será bastante gentil para esquecer seu ar enigmático.

— Meu caro Markham; oh, meu caro Markham! — suspirou Vance erguendo os olhos. — Sente-se aqui, tome uma xícara de café e aprecie este cigarro. Na verdade, sabe, é um bocado difícil ser lúcido ao telefone. — Serviu o café e Markham sentou-se com relutância. — Por favor, não adoce o café; ele tem um gosto deliciosamente sutil e seria uma pena estragá-lo com sacarina.

Markham, o cenho franzido desafiadoramente, pôs três colheres de açúcar no café.

— Por que estou aqui? — resmungou.

— Uma pergunta profundamente filosófica — sorriu Vance. — Impossível de responder, também. Por que estamos aqui? Por que tudo? Mas, uma vez que aqui estamos todos, sem sabermos o motivo disso, vou servir seu pragmatismo. — Deu uma grande tragada no cigarro e sentou-se outra vez preguiçosamente.

— Siefert telefonou-me esta manhã, pouco antes que eu ligasse para você. Explicou que não sabia o seu número de casa e por isso teve que falar comigo, ao invés de avisá-lo diretamente.

— Avisar-me? — Markham largou a xícara.

— Sobre a Sra. Garden. Ela está morta. Assim foi encontrada esta manhã, na cama. Provavelmente assassinada.

— Meu Deus!

— Sim, exatamente. Não é uma situação agradável. A senhora morreu em algum momento durante a noite; a hora exata ainda é desconhecida. O médico diz que pode ter sido causada por uma dose excessiva do remédio para dormir que ele havia receitado. Foi-se todo. E ele diz que havia uma quantidade suficiente para fazer a coisa. Por outro lado, ele admite que pode ter sido outra coisa; está muito reticente. Não há sinais externos que lhe permitam um diagnóstico; solicita a nossa opinião e apoio. Daí o seu apelo.

Markham afastou a xícara com um ruído e acendeu um charuto.

— Onde está Siefert agora?

— Em casa dos Gardens. Muito correto. Sempre a postos e tudo o mais. A enfermeira telefonou para ele pouco depois das oito horas de hoje; foi ela quem fez a descoberta ao levar o café da manhã para a Sra. Garden. Siefert apressou-se e, após ver o que ocorrera e depois de sondar um pouco, telefonou-me. Disse que, em vista dos acontecimentos de ontem, ele não quis prosseguir até que chegássemos.

— Bem, então por que não prosseguimos? — exclamou Markham erguendo-se.

Vance suspirou e levantou-se lentamente.

— Na verdade não há pressa. A senhora não nos pode escapar. E Siefert não abandonará o navio. Além disso, é uma hora impossível de se tirar alguém da cama. Sabe, Markham, poder-se-ia escrever uma interessante monografia sobre a total falta de consideração por parte dos assassinos. Eles só pensam em si próprios. Não têm sentimento de fraternidade. Sempre alterando a rotina normal. E nunca declaram um dia livre, nem mesmo um domingo de manhã. Entretanto, como diz você, vamos levando.

— Não seria melhor avisarmos Heath? — sugeriu Markham.

— Sim, exato — respondeu Vance quando saíamos. — Chamei o sargento logo depois de telefonar a você. Ele esteve acordado a noite inteira trabalhando na rotina habitual da polícia. Grande cara, Heath. Uma atividade surpreendente. Mas muito inútil. Se ao menos tanta energia servisse a alguma coisa mais que encher arquivos de aço. Sempre pensei com ternura em Heath como um conservador de arquivos...

A Srta. Beeton fez-nos entrar no apartamento dos Gardens. Parecia cansada e preocupada, mas saudou Vance com um sorriso amável.

— Estou começando a acreditar que este pesadelo jamais terá fim — disse ela.

Vance concordou sombrio, e entramos no salão onde o Dr. Siefert, o Prof. Garden e seu filho estavam à nossa espera.

— Estou contente por terem vindo, senhores — saudou-nos o doutor vindo ao nosso encontro.

O Prof. Garden estava sentado numa das extremidades do longo divã, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto oculto nas mãos. Mal tomou conhecimento da nossa presença, Floyd Garden levantou-se e fez um vago aceno em nossa direção. Uma tremenda mudança parecia ter-se produzido nele. Parecia muitos anos mais velho que quando o havíamos deixado na noite anterior, e seu rosto, apesar de queimado pelo sol, mostrava uma palidez esverdeada. Seus olhos vagueavam pela sala; ele estava visivelmente abalado.

— Que situação dos infernos! — murmurou, focalizando os olhos úmidos em Vance. — A noite passada a Mama acusa-me de ter tirado Woody do caminho e depois ameaça de me tirar de seu testamento. E agora ela está morta! E fui eu quem se encarregou da receita. O doutor diz que pode ter sido o remédio que a matou.

Vance olhou-o agudamente.

— Sim, sim — disse numa voz baixa e de simpatia. — Pensei em tudo isso, também, sabe? Mas isto evidentemente não impede que você tenha sentimentos mórbidos. Que tal um Tom Collins?

— Já tomei quatro — respondeu Garden desanimado, afundando novamente na cadeira. Mas quase imediatamente ficou de pé outra vez. Apontou um dedo para Vance, os olhos cheios de apreensão e súplica. — Pelo amor de Deus — explodiu — é você quem tem de descobrir a verdade. Estou na berlinda; com a minha saída da sala com Woody ontem, o fato de eu não ter colocado sua aposta, depois a acusação de Mama, e seu maldito testamento, e o remédio. Você tem que descobrir quem é o culpado...

Quando ele estava falando, tocou a campainha da porta e Heath avançou pelo corredor.

— É claro, nós vamos descobrir — disse a belicosa voz do sargento vindo do hall. — E não vai ser nada bom para o senhor quando o fizermos.

Vance rapidamente deu meia volta.

— Ora, vamos sargento. Menos animação, por favor. Ainda é de manhã cedo. — Dirigiu-se a Garden e colocando a mão em seu ombro, fez com que ele voltasse à cadeira onde estivera sentado. — Vamos, — animou — precisaremos de seu auxílio e se você der um fricote agora não nos vai servir de nada.

— Mas você não vê até que ponto eu estou complicado? — protestou fracamente Garden.

— Você não é o único a estar envolvido nisso — respondeu calmamente Vance, voltando-se para Siefert. — Acho, doutor, que podemos conversar um pouco. Provavelmente tiraremos a limpo a morte de sua paciente, sem maiores dificuldades. Que tal se subíssemos até o estúdio, hem?

Quando atravessamos o hall, olhei para trás. O jovem Garden continuava a olhar em nossa direção com uma expressão dura e determinada. O professor não se movera e não tomou conhecimento da nossa saída assim como não fizera com a nossa entrada.

Chegando ao estúdio, Vance foi diretamente ao assunto.

— Doutor, chegou o momento em que precisamos ser perfeitamente francos um com o outro. As costumeiras considerações convencionais de sua profissão devem ser temporariamente postas de lado. Um assunto muito mais urgente está em pauta agora e requer um exame muito mais sério que a conhecida relação entre doutor e paciente. Portanto, serei totalmente sincero com o senhor, e confiarei em que dará um jeito de ser igualmente sincero comigo.

Siefert, que pegara uma cadeira próxima à porta, olhou para Vance um tanto desajeitado.

— Lamento não entender o que está dizendo — falou ele com o seu modo mais suave.

— Eu simplesmente queria dizer — replicou friamente Vance — que estou inteiramente ciente de que foi o senhor o autor do telefonema anônimo de sexta-feira à noite.

Siefert ergueu levemente as sobrancelhas.

— Realmente! Isto é muito interessante.

— Não apenas interessante — disse lentamente Vance — mas verdadeiro. Como vim a saber, não interessa no momento. Apenas lhe peço para admitir que é isso mesmo e agir de acordo com a idéia. O fato tem uma influência direta neste trágico caso, e a menos que o senhor nos assista com uma franca declaração, será cometida uma grave injustiça, uma injustiça, que não se enquadraria em qualquer dos códigos de ética existentes.

Siefert hesitou durante diversos momentos. Desviou apressadamente os olhos de Vance e fitou pensativamente o horizonte.

— Supondo-se, em nome da razão — disse — que o senhor adivinharia quem a estava mandando e compreenderia que eu estava tentando comunicar consigo. Mas agora percebo que nada ganharei em não usar de franqueza... A situação nesta casa tem-me perturbado desde algum tempo, e ultimamente eu tinha a sensação de um desastre iminente. Todos os fatores vinham amadurecendo para chegar a este resultado final. E a sensação era tão forte que eu não pude resistir a enviar-lhe uma mensagem anônima na esperança de que as vagas eventualidades que eu previa pudessem ser evitadas.

— Há quanto tempo o senhor vinha tendo esses vagos pressentimentos? — perguntou Vance.

— Desde os últimos três meses, posso dizer. Embora há anos eu venha sendo o médico dos Gardens, foi somente no último outono que comecei a notar uma alteração no estado da Sra. Garden. No princípio, não dei muita atenção ao fato, mas, à medida que foi ficando pior e que me vi incapaz de fazer um diagnóstico satisfatório, uma estranha suspeita me invadia de que a mudança não era inteiramente natural. Comecei a vir aqui com muito mais freqüência, durante os dois últimos meses senti muitas correntes subterrâneas nas várias relações entre os habitantes desta casa, e que eu nunca antes havia percebido. Naturalmente, eu sabia que Floyd e Swift nunca se deram especialmente bem; que havia uma profunda animosidade e ciúme entre eles. Sabia também dos termos do testamento da Sra. Garden. Além disso, eu estava a par das apostas nos cavalos, o que era parte da rotina diária da casa. Floyd e Woody nunca me esconderam, o senhor compreende, eu sempre fui confidente e médico de ambos, e suas reações com relação aos casos particulares, que infelizmente incluíram as corridas de cavalos, eram bem minhas conhecidas.

Siefert fez uma pausa e franziu a testa.

— Como estava dizendo, foi apenas recentemente que senti algo mais profundo e mais significativo em toda essa interpolação de temperamentos, e este sentimento assumiu tais proporções que realmente receei um clímax de alguma forma violento; especialmente quando Floyd contou-me, alguns dias atrás, que seu primo pretendia apostar seus últimos recursos em Equanimity no grande prêmio de ontem. Tão avassalador foi o meu sentimento em relação a toda essa situação que decidi fazer alguma coisa, desde que pudesse agir sem divulgar aquelas confidencias profissionais. Mas o senhor viu através do meu subterfúgio e, para ser totalmente sincero, estou até satisfeito com isso. Vance concordou.

— Aprecio seus escrúpulos no caso, doutor. Apenas lamento que eu não tenha sido capaz de impedir essas tragédias. Isto, da maneira que aconteceu, estava além do poder humano. — Vance ergueu vivamente os olhos. — Aliás, o senhor tinha alguma suspeita bem definida quando me telefonou na sexta-feira à noite?

Siefert sacudiu a cabeça com ênfase.

— Não, eu estava desnorteado. Apenas senti que, de alguma forma, a explosão estava iminente. Mas eu não tinha a menor idéia de que lado ia acontecer.

— Poderia dizer de que lado surgiram as causas de sua apreensão?

— Não. Também não sei dizer se minha sensação tinha alguma coisa a ver apenas com o estado da Sra. Garden, ou se eu também fui influenciado pelo sutil antagonismo existente entre Floyd e Woody Swift. Muitas vezes me perguntei isso, sem encontrar uma resposta satisfatória. Entretanto, em algumas ocasiões, não pude resistir à impressão de que os dois fatores estavam de certa forma relacionados. Daí o meu recado telefônico, onde, por linhas indiretas, chamei sua atenção tanto para a estranha doença da Sra. Garden como para a tensa atmosfera que se desenvolvia em meio às apostas diárias.

Vance permaneceu um momento em silêncio, fumando.

— E agora, doutor, quer ter a gentileza de nos dar todos os detalhes sobre esta manhã?

Siefert endireitou-se na cadeira.

— Não há, praticamente, nada a acrescentar à informação que lhe dei ao telefone. A Srta. Beeton chamou-me pouco após as oito horas e informou-me que a Sra. Garden morrera durante a noite. Pediu instruções e eu lhe disse que viria imediatamente. Cheguei aqui cerca de meia hora mais tarde. Não encontrei causa determinada para a morte da Sra. Garden, e supus que poderia ter sido o coração até que a enfermeira chamou minha atenção para o fato de que o vidro de remédio enviado pela farmácia estava vazio...

— Por falar nisso, qual foi a receita que o senhor deu para sua paciente ontem?

— Uma simples solução de barbitúrico.

— Por que não receitou um dos conhecidos compostos de barbitúricos?

— Por que razão? — perguntou Siefert evidentemente enfadado. — Sempre prefiro saber exatamente o que meus pacientes estão tomando. Sou bastante antiquado para me fiar em medicamentos já preparados.

— E, se não me engano, o senhor me disse ao telefone que na receita havia barbital em dose suficiente para causar a morte.

— Sim, — concordou o doutor. — Se tomada de uma só vez.

— E a morte da Sra. Garden teve relação com o envenenamento por barbital?

— Nada havia para contradizer tal conclusão — respondeu Siefert. — E nada havia que indicasse outra causa.

— Quando a enfermeira descobriu o vidro vazio?

— Creio que só na ocasião em que me telefonou.

— O gosto da solução poderia ser reconhecido se fosse dado a alguém sem o seu conhecimento?

— Sim e não — replicou ponderadamente. — O gosto é um pouco ácido, mas é uma solução incolor, com água, e se for bebida depressa, o gosto passa despercebido.

— Portanto, se a solução fosse colocada em um copo d'água a Sra. Garden poderia perfeitamente tê-lo bebido sem reclamar do gosto amargo?

— Isto é inteiramente possível — disse-lhe o doutor —. Não posso deixar de sentir que alguma coisa desta espécie aconteceu a noite passada. Foi devido a esta conclusão que chamei o senhor imediatamente.

Vance, fumando preguiçosamente, vigiava Siefert por baixo das pálpebras semicerradas. Movendo-se lentamente na cadeira e esmagando o cigarro em um pequeno cinzeiro de jade, disse: — Fale-me alguma coisa da doença da Sra. Garden, doutor, e por que o sódio radioativo poderia ter-lhe sido sugerido.

Siefert fitou agudamente Vance: — Eu receava que o senhor me perguntasse isso. Mas este não é o momento para suscetibilidades. Tenho que confiar totalmente em sua discrição. — Fez uma pausa como se estivesse determinando qual a melhor maneira de abordar um assunto que lhe era evidentemente desagradável. — Como já disse anteriormente, não sei a natureza exata da doença da Sra. Garden. Os sintomas eram muito semelhantes aos que acompanham o envenenamento com rádio. Mas nunca receitei para ela qualquer medicamento à base de rádio; na realidade, sou profundamente céptico no que diz respeito à sua eficácia. Como o senhor deve saber, temos tido muitos resultados infelizes devido à administração não científica e acidental desses preparados à base de rádio.

Ele pigarreou antes de prosseguir.

— Uma noite, enquanto estava lendo os relatórios das pesquisas feitas na Califórnia com sódio radioativo, também chamado de rádio artificial, que tem sido alardeado como a cura do câncer, imediatamente me dei conta de que o Prof. Garden estava ativamente interessado nesta determinada linha de pesquisa, tendo realizado a respeito alguns trabalhos dignos de crédito. Esta idéia era apenas um caso de associação e, a princípio, não dei muita importância. Mas ela resistiu, e nunca mais deixei de pensar no assunto.

Mais uma vez o doutor fez uma pausa, com o olhar perturbado.

— Há cerca de dois meses, sugeri ao Prof. Garden que, se fosse possível, ele pusesse a Srta. Beeton à cabeceira de sua esposa. Eu já chegara à conclusão de que a Sra. Garden requeria um cuidado e atenção mais constantes do que eu lhe poderia proporcionar; e a Srta. Beeton, que é enfermeira diplomada, esteve trabalhando no ano passado no laboratório do professor. Na realidade, fui eu quem a enviou para lá quando ele mencionou a necessidade de um auxiliar de laboratório. Eu estava particularmente ansioso para que ela tomasse conta da Sra. Garden, preferivelmente a qualquer outra enfermeira, porque eu achava que algumas sugestões úteis poderiam decorrer de suas observações. A moça já atendera diversos casos meus, bastante difíceis, e eu estava inteiramente habituado à sua competência e discrição.

— E as observações subseqüentes da Srta. Beeton foram-lhe muito úteis, doutor? — perguntou Vance.

— Não, não posso dizer que tenham sido — admitiu Siefert. — A não ser pelo fato que, eventualmente, o Prof. Garden ainda se utilizava de seus serviços no laboratório, permitindo-lhe assim uma oportunidade extra de estar atenta à situação geral. Mas, por outro lado, essas observações não serviram para dissipar minhas suspeitas.

— Diga-me, doutor, — perguntou Vance após um momento — este novo sódio radioativo poderia ser administrado a alguém sem que a pessoa o soubesse?

— Ah, muito facilmente — garantiu Siefert. — poderia, por exemplo, substituir num saleiro o sal comum, sem despertar a menor suspeita.

— E em quantidades suficientes para produzir os efeitos do envenenamento pelo rádio?

— Indubitavelmente.

— E quanto tempo decorreria até que os efeitos dessa administração se mostrassem fatais?

— Isto é impossível dizer.

Vance estudava a ponta do cigarro. Depois perguntou: — A presença da enfermeira na casa resultou em qualquer informação relativamente à situação geral aqui?

— Nada que eu ainda não soubesse. De fato, suas observações apenas consubstanciaram minhas próprias conclusões. É bem possível, também, que ela própria possa involuntariamente ter aumentado a animosidade existente entre o jovem Garden e Swift, porque ela me confidenciou uma ou duas vezes que Swift a aborrecera com suas atenções; e tenho uma forte suspeita de que ela está pessoalmente interessada em Floyd Garden.

O interesse de Vance aumentou.

— Especificamente, doutor, o que lhe deu essa impressão?

— Nada de específico. Entretanto, tenho-os observado diversas vezes quando estão juntos e a minha impressão é de que ali existia algum sentimento. Nada de palpável, porém. Mas, uma noite, quando eu caminhava por Riverside Drive eu os vi no parque, indubitavelmente estavam passeando juntos.

— A propósito, doutor, o jovem Garden e a enfermeira conheceram-se apenas quando ela veio para cá cuidar da mãe dele?

— Ah, não — disse Siefert. — Mas seu conhecimento anterior era mais ou menos vago. Sabe como é, durante o tempo em que a Srta. Beeton era assistente de laboratório do Prof. Garden, ela teve freqüentes oportunidades de vir até aqui trabalhar com o professor em sua pesquisa: notas taquigráficas, transcrição, registro, etc. E ela, naturalmente, fez conhecimento com Floyd, Woody Swift e a própria Sra. Garden...

Naquele instante, a enfermeira chegou à porta para anunciar a chegada do médico legista, e Vance pediu-lhe que fizesse subir o Dr. Doremus.

— Eu gostaria de sugerir — disse Siefert rapidamente — com o seu consentimento, a possibilidade de fazer com que o legista aceite o meu veredicto de morte causada por uma acidental dose excessiva de barbital, com o que evitaríamos a autópsia.

— Sim, perfeitamente — concordou Vance. — Esta era a minha intenção. — Dirigiu-se ao procurador distrital: — Considerando bem os fatos, Markham, creio que isto será melhor. Nada podemos ganhar com uma autópsia. Já temos fatos suficientes para continuar sem recorrer a isso. Sem dúvida, a morte da Sra. Garden foi causada pela solução de barbital. O sódio radioativo é um caso à parte e diferente.

Markham aquiesceu com relutância, enquanto Doremus era introduzido pela Srta. Beeton. O legista estava de mau humor e reclamava amargamente por ter sido convocado num domingo pela manhã. Vance acalmou-o um pouco e apresentou-o ao Dr. Siefert. Após uma breve troca de explicações e comentários, Doremus prontamente concordou com a sugestão de Markham de que o caso fosse considerado como resultado de uma dose excessiva de barbital.

O Dr. Siefert ergueu-se e olhava hesitantemente para Vance: — O senhor não precisa mais de mim, espero.

— Por enquanto não, doutor. — Vance levantou-se também e fez uma reverência formal. — Naturalmente, depois entraremos em contato com o senhor. Mais uma vez gratos nela sua ajuda e sinceridade. Sargento, queira acompanhar os Drs. Siefert e Doremus até lá embaixo... E, Srta. Beeton por favor, sente-se um momento. Há algumas perguntas quê lhe quero fazer.

A jovem entrou e sentou-se na cadeira mais próxima enquanto os três homens dirigiam-se para o corredor.

 


XV

 

Três Visitas

 

(Domingo, 15 de abril — 10:45 horas)

 

 

— Não tenho a menor intenção de aborrecê-la desnecessariamente, Srta. Beeton — disse Vance. — Mas gostaríamos de ter uma narrativa em primeira mão das circunstâncias que cercaram a morte da Sra. Garden.

— Eu gostaria de ter alguma coisa bem definida para lhes contar — replicou a enfermeira com um tom profissional — mas tudo o que sei é que, quando acordei esta manhã, pouco depois das sete horas, a Sra. Garden parecia estar dormindo tranqüilamente. Depois de me vestir, fui até à sala de jantar e tomei café; em seguida levei uma bandeja para a Sra. Garden. Ela sempre tomava chá com torrada às 8 horas, qualquer que fosse a hora em que se deitasse na véspera. Só depois que corri as cortinas é que senti alguma coisa errada. Falei com ela, mas não me respondeu; e quando tentei erguê-la, não senti reação. Então vi que estava morta. Chamei imediatamente o Dr. Siefert, e ele veio o mais depressa que pôde.

— Se não me engano, a senhorita dorme no quarto da Sra. Garden?

Ela inclinou a cabeça.

— Sim. O senhor sabe, ela freqüentemente precisa de algum pequeno serviço durante a noite.

— Durante a noite ela lhe pediu algum serviço?

— Não. A injeção que o Dr. Siefert lhe deu antes de sair acalmou-a, e, quando saí, ela dormia calmamente.

— A senhorita saiu ontem à noite? A que horas?— perguntou Vance.

— Cerca de nove horas. Foi o Sr. Floyd Garden quem sugeriu, garantindo que ele estaria aqui e também achava que eu precisava descansar um pouco. Fiquei muito contente com a oportunidade, porque eu estava realmente cansada e amedrontada.

— A senhorita não teve escrúpulos profissionais em deixar um paciente àquela hora?

— Normalmente, eu teria tido — respondeu ressentida a jovem — mas a Sra. Garden nunca teve qualquer consideração comigo. Ela era a pessoa mais egoísta que já conheci. De qualquer forma, expliquei ao Sr. Floyd Garden que deveria dar a sua mãe uma colher das de chá do remédio caso ela acordasse e mostrasse qualquer sinal de agitação. E aí, fui até o parque.

— A que horas voltou, Srta. Beeton?

— Deve ter sido lá pelas onze — respondeu. — Eu não pretendia demorar tanto, mas o ar estava tão agradável e eu caminhei ao longo do rio quase até o túmulo de Grant. Quando voltei, deitei-me imediatamente.

— A Sra. Garden estava dormindo quando entrou?

— Eu... eu pensei... que ela estava dormindo — disse hesitante. — Sua cor estava normal. Mas talvez... mesmo então...

— Sim, sim. Eu sei — cortou rapidamente Vance. — Entretanto... — E ele inspecionou o próprio cigarro durante algum tempo. — Por falar nisso, notou alguma coisa diferente, qualquer coisa, digamos, fora do lugar, quando voltou ao quarto?

Ela sacudiu a cabeça lentamente.

— Não. Tudo me pareceu como antes. As janelas e as cortinas estavam como eu as havia deixado e... Espere, havia sim. O copo d'água que eu havia deixado na mesa de cabeceira estava vazio. Tornei a enchê-lo antes de deitar-me.

Vance ergueu os olhos vivamente.

— E o vidro de remédio?

— Nada notei de particular; mas devia estar como eu o havia deixado, porque me lembro de ter tido uma fugaz sensação de alívio por ela não ter necessidade do mesmo.

Vance pareceu profundamente perplexo e nada disse durante algum tempo. Depois ergueu os olhos de repente.

— Qual o tipo de luz que havia no quarto?

— Apenas uma lâmpada de cabeceira bem fraca.

— Nesse caso, a senhorita poderia perfeitamente ter confundido um vidro vazio com um cheio de algum líquido incolor.

— Sim, é claro — respondeu com relutância a enfermeira. — Poderia ter sido isso... A menos que... — E a sua voz morreu.

Vance balançou a cabeça e terminou a frase.

— A menos que a Sra. Garden tomasse deliberadamente o remédio mais tarde. — Ele estudou a moça durante algum tempo. — Mas isto não é muito razoável. Não me preocupo com teorias. E a senhorita?

Ela lhe devolveu o olhar com absoluta franqueza e fez uma leve negativa com a cabeça.

— Não — disse. — Mas eu gostaria que fosse verdade.

— Exato — concordou Vance. — Seria um pouco menos terrível.

— Sei o que o senhor quer dizer. — Ela respirou trêmula e profundamente, estremecendo.

— Diga-me, quando descobriu que o remédio tinha desaparecido?

— Pouco antes que o Dr. Siefert chegasse esta manhã. Mexi no vidro quando estava arrumando a mesa e verifiquei que estava vazio.

— Acho que por enquanto é tudo, Srta. Beeton. — Vance olhou-a com ar sombrio e depois afastou-se. — Na realidade, compreendo, lamento muito. Mas aconselho-a a não fazer planos para sair daqui por enquanto. Sem dúvida alguma ainda vamos precisar de vê-la hoje.

Quando ela se levantou, pousou um olhar enigmático em Vance. Parecia a ponto de dizer alguma coisa, porém, ao contrário, deu meia volta e saiu.

Heath deveria estar esperando no corredor que a moça fosse dispensada, porque, exatamente quando ela saía, ele entrou para informar que Siefert e Doremus haviam ido embora e que Floyd Garden havia feito o necessário para a remoção do corpo de sua mãe.

— E que fazemos agora, Sr. Vance? — perguntou Heath.

— Vamos continuar, sargento. — Vance estava mais sério que de hábito. — Quero falar com Floyd Garden em primeiro lugar. Faça-o subir. E chame um de seus homens, mas fique de serviço lá embaixo até que ele chegue. Talvez possamos esclarecer esse caso ainda hoje.

— Isto não me deixaria triste, Sr. Vance — respondeu fervorosamente Heath, dirigindo-se à porta.

Markham erguera-se e caminhava de um lado para o outro, fumando vigorosamente o charuto.

— Evidentemente, você consegue ver alguma luz nesta droga de situação — resmungou ele para Vance. — Eu gostaria que acontecesse o mesmo comigo. — Ele parou e virou-se. — Você está falando sério quanto à possibilidade de ficar tudo esclarecido ainda hoje?

— Inteiramente. Pode ser, não é? — Vance maliciosamente piscou um olho para Markham. — Não legalmente, é claro. Não um caso para a justiça. Não. As técnicas legais são quase inúteis em emergências como esta. Há soluções mais profundas, soluções humanas, compreende?

— Você está falando asneiras — murmurou Markham. — Você e suas malditas predisposições pseudo-sutis!

— Posso mudar a predisposição — propôs alegremente Vance. — Devo ser franco e confessar que gosto desta situação ainda menos que você. Mas não há um outro procedimento indicado. A lei nada pode fazer na situação atual. E, francamente, não estou interessado na lei. Eu quero justiça.

Markham bufou.

— E que pretende você fazer exatamente?

Com os olhos pregados em Markham, Vance fitou um mundo remoto de sua imaginação.

— Vou tentar encerrar um drama trágico — disse calmamente. — Poderá ser eficaz. Se falhar, acho que nada mais poderemos fazer.

Markham bufou de novo.

— Philo Vance: empresário!

— Exato — concordou Vance. — Empresário, como você diz. E não o somos todos?

Markham encarou-o durante um momento.

— E quando sobe o pano?

— A qualquer momento.

Soaram passos no corredor e Floyd Garden entrou no estúdio. Parecia profundamente abalado.

— Hoje não estou agüentando muito. Que querem vocês? — Seu tom estava evidentemente ressentido. Ele sentou-se e pareceu ignorar-nos completamente, enquanto remexia, nervoso, no cachimbo.

— Nós entendemos como se sente — disse Vance. — Minha intenção não era aborrecê-lo desnecessariamente. Mas se queremos chegar até à verdade, precisamos de sua cooperação.

— Então vá dizendo — resmungou Garden ainda às voltas com o cachimbo.

Vance esperou até que o cachimbo acendesse.

— Precisamos obter o maior número possível de detalhes sobre a noite passada. Seus convidados vieram?

Garden balançou a cabeça alegremente.

— Ah, sim. Zalia Graem, Madge Weatherby e Kroon.

— E Hammle?

— Não, graças a Deus!

— Isto não lhe parece um tanto estranho?

— Não me pareceu estranho em absoluto — resmungou Garden. — Ao contrário, foi um alívio. Hammle é boa gente, mas incrivelmente chato: frio, auto-suficiente. Tenho a sensação de que ele não tem sangue nas veias. Cavalos, cães, raposas, jogo: tudo menos seres humanos. Se um dos seus malditos cães houvesse morrido, ele sentiria muito mais que a morte de Woody. Adorei que não viesse.

Vance meneou a cabeça em sinal de compreensão.

— Havia mais alguém aqui?

— Não, só esses.

— Qual dos convidados chegou primeiro?

Garden tirou o cachimbo da boca e ergueu os olhos com vivacidade.

— Zalia Graem. Chegou às oito e meia, creio. Por quê?

— Simplesmente reunindo os fatos — replicou Vance com indiferença. — E quanto tempo depois dela chegaram Madge Weatherby e Kroon?

— Cerca de meia hora. Poucos minutos após a saída da Srta. Beeton.

Vance devolveu-lhe o olhar de inspeção.

— A propósito, por que você permitiu que a enfermeira saísse ontem à noite?

— Ela parecia estar precisando de ar fresco — respondeu Garden num tom de franqueza absoluta. — Ela teve um dia duro. Além disso, eu não achava que houvesse alguma coisa de extraordinário com a Mama. E como eu ia ficar aqui, poderia cuidar do que fosse necessário. — Seus olhos estreitaram-se levemente. — Eu não deveria tê-la deixado sair?

— Sim, sim... bastante humano até! Foi um dia muito difícil para ela.

Garden deixou seus olhos vaguearem através da janela, mas Vance prosseguiu observando-o atentamente.

— A que horas se foram as visitas? — perguntou.

— Pouco após à meia-noite. Cerca de onze e meia, Sneed trouxe uns sanduíches. Aí tomamos mais uma rodada de highballs... — O homem voltou subitamente o olhar para Vance: — Isto tem alguma importância?

— Não sei; talvez não. Poderia, quem sabe... Saíram todos ao mesmo tempo?

— Sim. Kroon estava com o carro lá embaixo e ofereceu-se para deixar Zalia em casa.

— A Srta. Beeton a essa altura já havia voltado, não?

— Sim, muito antes. Eu a ouvi entrar por volta das 11 horas.

— E depois que as visitas foram embora, que fez você?

— Permaneci sentado mais ou menos meia hora, fumando e bebendo; depois fechei a frente da casa e recolhi-me.

— Seu quarto é vizinho ao de sua mãe, creio.

— Sim. Papai o está compartilhando comigo desde que a enfermeira chegou.

— Seu pai já se havia recolhido quando você foi para o quarto?

— Não. Ele raramente se deita antes das 2 ou 3 da manhã. Trabalha aqui no estúdio até altas horas.

— Ele estava aqui em cima, a noite passada?

— Suponho que sim. Não podia estar em outra parte e duvido que tivesse saído.

— Percebeu quando ele entrou e se deitou?

— Não.

Vance acendeu outro cigarro, tirou várias baforadas e mergulhou ainda mais fundo na poltrona.

— Voltando atrás, o remédio prescrito pelo Dr. Siefert parece constituir o ponto crucial da situação. Teve você oportunidade de fazê-la tomar o remédio enquanto a enfermeira esteve fora?

Garden aprumou-se na cadeira, subitamente inquieto.

— Absolutamente não, — rosnou entredentes. Vance não deu mostras de haver notado a mudança.

— A enfermeira devia ter-lhe dado instruções a respeito desse remédio. Onde foi que ela lhe deu essas instruções?

— No hall, — respondeu Garden com ar espantado. — Perto da cabina. Eu havia deixado Zalia na sala de estar e fora dizer a Srta. Beeton que podia sair por algum tempo. Ajudei-a a vestir o capote. Foi nesse momento que recebi suas instruções quanto ao remédio.

— E voltou à sala depois que ela saiu?

— Imediatamente. Logo depois Madge e Kroon chegaram.

Fez-se um curto silêncio, durante o qual Vance fumou pensativamente.

— Diga-me, Garden, — disse ele por fim — alguma das visitas entrou no quarto de sua mãe?

Os olhos de Garden arregalaram-se; seu rosto enrubesceu e ele ficou de pé com um salto.

— Por Deus, Vance. Zalia esteve no quarto de mamãe! Vance balançou a cabeça devagar.

— Muito interessante. Sim, bastante... Sente-se. Acenda essa droga de cachimbo e conte-nos como foi.

Garden hesitou um momento. Deu uma risada áspera e voltou ao seu lugar.

— Diabos! Você leva na brincadeira — reclamou. — Isto pode explicar tudo.

— Nunca se sabe, não é? — respondeu Vance com indiferença. — Continue.

Mais uma vez Garden teve dificuldade em fazer funcionar o cachimbo. Ficou sentado uns instantes com o olhar velado e reminiscente, fitando através da janela.

— Deve ter sido por volta das dez horas. A Mama tocou a pequena campainha que fica na mesinha ao lado da cama e eu ia atender, quando Zalia, de um salto, disse que ia ver o que ela queria. Francamente, foi com prazer que eu a deixei ir depois da cena que vocês testemunharam aqui ontem; eu tinha a impressão que eu continuava sendo uma persona non grata. Zalia voltou alguns minutos depois e normalmente disse que a Mama apenas desejava que tornassem a encher o seu copo com água.

— E você, mesmo durante a ausência de Srta. Beeton, não foi nenhuma vez ao quarto de sua mãe?

— Não, não fui — disse Garden com olhar de desafio.

— E você tem certeza de que mais ninguém entrou no quarto de sua mãe durante a ausência da enfermeira?

— Absolutamente.

Eu podia ver pela expressão de Vance que ele não estava satisfeito com as respostas de Garden.

Com uma lenta deliberação ele bateu a cinza do cigarro. Suas pálpebras baixaram um pouco numa especulação intrigada. Sem erguer os olhos, perguntou: — Durante o tempo em que estiveram aqui, Madge Weatherby e Kroon permaneceram no salão?

— Sim... com exceção de dez minutos ou coisa semelhante, quando foram até à sacada.

— Você e a Srta. Graem permaneceram no salão?

— Sim. Eu não estava particularmente disposto a apreciar a paisagem noturna e, aparentemente, Zalia também não.

— Que horas eram quando a Srta. Weatherby e Kroon foram até à sacada?

Garden refletiu um momento.

— Eu disse que foi pouco antes da volta da enfermeira.

— E quem foi a primeira pessoa a sugerir que voltassem para casa?

Garden ponderou a resposta.

— Creio que foi Zalia. Vance ergueu-se.

— Foi muito gentil de sua parte, Garden, permitir que o incomodássemos com perguntas a essa hora — disse com bondade. — Somos imensamente gratos... Você pretende sair hoje?

Garden sacudiu a cabeça levantando-se.

— Dificilmente — disse. — Vou ficar com papai. Ele está um bocado abalado. Por falar nisso, você gostaria de vê-lo?

Vance agitou a mão negativamente.

— Não. Agora não é necessário.

Garden deixou a sala lentamente, a cabeça baixa, como um homem que carrega um grande peso na cabeça.

Quando ele saiu, Vance parou um momento à frente de Markham, olhando-o com um bom humor um tanto cínico.

— É um caso sério, Markham. É o que eu digo. Falando francamente, você vê algum motivo para que a lei ponha os dentes aqui?

— Não, com os demônios! — explodiu zangado Markham. — Não há duas coisas que combinem. Não há uma linha reta em direção alguma. Cada fio do caso está emaranhado num outro. Só Deus é quem sabe como há motivos e oportunidades. Mas qual nós vamos escolher como ponto de partida? E ainda assim — acrescentou azedo — poder-se-ia criar um caso com...

— É exato — interrompeu Vance. — Um caso contra qualquer um das diferentes pessoas. E cada um tão bom ou tão mau quanto o outro. Todos agiram da maneira perfeita para tornar-se suspeito — suspirou. — Uma doce situação.

— E diabólica — acrescentou Markham. — Se não fosse por isso, eu estaria mais inclinado a chamar a coisa de dois suicídios e deixar assim mesmo.

— Impossível — contestou Vance. — Nem você nem eu poderíamos fazer tal coisa. Na realidade, sabe, esta não é a maneira humana de ser. — Foi até à janela e olhou para fora. — Mas eu tenho o controle da situação. O desenho está começando a tomar forma. Já reuni todas as peças, Markham, exceto uma. Eu a tenho em mão, porém ainda não sei onde entra ou como se ajusta ao conjunto.

Markham ergueu os olhos.

— Qual é a peça que o está atrapalhando, Vance?

— Os fios desligados da campainha. Eles me atrapalharam demais. Sei que eles têm um papel nas terríveis coisas que têm acontecido aqui. — Afastou-se da janela e caminhou de um lado para outro da sala, a cabeça baixa, as mãos enterradas nos bolsos. — Por que foram aqueles fios desligados? — murmurou como se estivesse falando sozinho. — Como podem eles se relacionar com a morte de Swift e o tiro que ouvimos? Não havia mecanismo. Não, disso estou convencido. Afinal de contas, os fios apenas ligavam duas cigarras... um sinal... um sinal ligando os dois andares... uma chamada, uma linha de comunicação.

De repente ele interrompeu o passeio. Agora estava de frente para a porta do corredor e olhava para ela como se nunca a tivesse visto.

— Deus do céu! É óbvio demais. — Correu até Markham, com uma expressão de auto-incriminação. — A resposta estava aqui o tempo todo — disse. — Era tão simples... e eu procurando dificuldades... O quadro agora está completo, Markham. Tudo se ajusta. Aqueles fios desligados significam que há um outro assassinato em perspectiva; um crime que fora planejado desde o início mas que não aconteceu — respirou profundamente. — Este caso tem que ser esclarecido hoje. Sim... — Vance desceu e nós o seguimos. Heath fumava melancolicamente no corredor interno.

— Sargento, — disse Vance — telefone à Srta. Graem, Srta. Weatherby, Kroon e Hammle. Faça-os todos vir aqui no fim da tarde, digamos seis horas. Floyd Garden pode ajudá-lo a entrar em contato com eles.

— Eles estarão aqui sem falta, Sr. Vance — garantiu Heath.

— E, sargento, assim que tiver feito isso, telefone-me. Quero vê-lo esta tarde. Estarei em casa. Mas espere aqui por Snitkin e deixe-o de guarda. Ninguém deverá vir aqui, exceto aqueles que mandei chamar e ninguém deverá deixar o apartamento. E, acima de tudo, ninguém tem permissão para ir lá em cima, quer seja no estúdio ou no jardim. Agora vou indo.

— Quando estiver chegando em casa, Sr. Vance, eu já estarei telefonando para o senhor.

Vance dirigiu-se à porta da frente mas parou com a mão na maçaneta.

— Acho que antes de sair é melhor falar com Garden sobre a reunião. Onde está ele, sargento?

— Quando ele desceu foi para a saleta — disse Heath com um movimento de cabeça.

Vance caminhou pelo corredor e abriu a porta da saleta. Eu estava bem atrás dele. Quando a porta se abriu deparamos com um quadro inesperado. A Srta. Beeton e Garden estavam de pé diante da escrivaninha, desenhados em silhueta contra a janela. A enfermeira tampava o rosto com as mãos e apoiava-se em Garden soluçando. Ele tinha os braços em torno dela.

Com a nossa chegada os dois se afastaram rapidamente. A jovem voltou a cabeça em nossa direção e eu pude ver seus olhos vermelhos e cheios de lágrimas. Ela prendeu a respiração e, girando de golpe, saiu correndo pela porta que dava para o quarto vizinho.

— Lamento profundamente — murmurou Vance. — Pensei que estivesse só.

— Ora, não tem importância — disse Garden, embora fosse bastante evidente o seu embaraço. — Mas espero, Vance, — acrescentou com um sorriso forçado — que você não vá interpretar errado. Aqui está tudo emocionalmente transtornado. Acho que a Srta. Beeton agüentou mais do que podia suportar ontem e hoje; quando a encontrei aqui, ela parecia a ponto de ter um colapso nervoso, e... eu deitei a cabeça dela em meu ombro. Estava simplesmente tentando reconfortá-la. Não posso deixar de ter pena dela.

Vance ergueu a mão numa indiferença bem-humorada.

— Ah, está certo, Garden. Uma mulher atormentada sempre agradece um forte ombro masculino onde possa chorar. A maioria delas deixa pó de arroz na lapela da gente... Mas estou certo de que a Srta. Beeton não poderia ser acusada disso... Mil desculpas por interrompê-lo, mas eu queria dizer-lhe antes de ir embora que dei instruções a Heath para convocar todos os seus convidados de ontem para estarem aqui hoje às seis da tarde. É claro que você e seu pai também estão incluídos. Se não se opõe, poderia dar os números dos telefones ao sargento.

— Com prazer, Vance — respondeu Garden, pegando o cachimbo e voltando a enchê-lo. — Alguma idéia diferente?

Vance virou para a porta.

— Sim. Espero liquidar o caso hoje. Agora, vou andando. Adeus.

Na saída, Vance disse um tanto tristemente a Markham: — Espero que meu plano funcione. Não gosto muito dele, mas também não gosto de injustiças...


XVI

 

 

Pela Porta do Jardim

 

 


(Domingo, 15 de abril — à tarde)

 

 

Mal havíamos chegado, quando o sargento Heath telefonou conforme prometera. Vance dirigiu-se à sala de espera para atender e fechou a porta atrás de si. Alguns minutos mais tarde voltou e, chamando Currie, pediu o chapéu e a bengala.

— Vou sair um pouco, meu velho — disse ele a Markham. — Na verdade, vou ao encontro do bravo sargento no Departamento de Homicídios. Mas não demorarei. Enquanto isso, já encomendei um almoço para nós aqui.

— Para os diabos o almoço — rosnou Markham. — Por que você vai se encontrar com Heath?

— Estou precisando de um colete novo — disse-lhe jovialmente Vance.

— Esta explicação ajuda muito — resmungou Markham.

— Lamento. É a única que posso dar presentemente. Markham fixou-o durante vários minutos, desapontado.

— Por que todo esse mistério? — perguntou.

— Realmente, Markham, é necessário. — Vance falou com sinceridade. — Tenho a esperança de liquidar hoje à noite esse caso monstruoso.

— Pelo amor de Deus, Vance, que está você planejando? — Markham ergueu-se num desespero inútil.

Vance tomou um trago de brandy e acendeu um Régie. Depois olhou afetuosamente para Markham.

— Estou pensando em induzir o assassino a fazer mais uma aposta... uma aposta para perder. Adeus. — E se foi.

Durante a ausência de Vance, Markham permaneceu encolerizado. Não estava com disposição para conversar e eu o deixei à vontade. Ele tentou interessar-se pela biblioteca de Vance, mas, evidentemente, nada encontrou que atraísse sua atenção. Finalmente, acendeu um charuto e instalou-se em uma poltrona diante da janela, enquanto eu me ocupava com algumas notas que estava preparando.

Passava um pouco das duas e meia quando Vance regressou.

— Está tudo em ordem — anunciou ao entrar. — Não há cavalos correndo hoje, é claro, mas, não obstante, estou encarando uma grande aposta que vai ser feita esta noite. Se o jogo não for feito, Markham, nós é que pagaremos o pato. Entretanto, todos estarão presentes. O sargento, com o auxílio de Garden, entrou em contato com todos os que estiveram lá ontem, e eles irão reunir-se novamente no salão de Garden às 6 horas. Eu, pessoalmente, deixei um recado ao Dr. Siefert e espero que ele o receba a tempo de vir ao nosso encontro. Acho que ele deveria estar presente... — Olhou para o relógio e, chamando Currie, pediu uma garrafa de Montrachet 1919 gelado para o nosso almoço.

— Se não nos demorarmos por demais à mesa, poderemos ouvir a segunda parte do concerto da Filarmônica. Melinoff estará tocando o concerto para piano de Grieg e creio que isto fará um grande bem aos nossos espíritos. Um lindo clímax, Markham; um dos mais excitantes de toda a música: simples, melodioso, magistral. É uma coisa curiosa com relação a Grieg: o mundo levou muito tempo para descobrir a magnitude de seu gênio... Um dos verdadeiros grandes compositores.

Mas Markham não foi conosco ao concerto. Pretextou um urgente encontro político no Stuyvesant Club; prometendo, porém, encontrar-nos às 6 horas da tarde no apartamento de Garden. Como por um acordo tácito, durante o almoço não se falou uma palavra relativa ao caso.

Quando acabamos, Markham escusou-se e partiu para o clube, enquanto Vance e eu fomos para o Carnegie Hall. Melinoff teve uma bela atuação; e, quando fomos para casa, Vance parecia estar mais descontraído.

O sargento Heath esperava-nos quando chegamos ao apartamento.

— Tudo pronto, senhor — disse a Vance. — Está aqui. Vance deu um sorriso triste.

— Excelente, sargento. Venha comigo enquanto tiro essa roupa da missa.

Heath pegou um pequeno embrulho enrolado em papel pardo, que evidentemente havia trazido consigo, e seguiu Vance até o quarto. Dez minutos depois, voltaram os dois à biblioteca. Vance agora usava um pesado paletó de tweed escuro; na cara de Heath havia um ar de auto-satisfação.

— Até logo, Sr. Vance — disse ele, apertando nossas mãos. — Boa sorte. — E saiu pesadamente.

Chegamos ao apartamento dos Gardens poucos minutos antes das seis. Os detetives Hennessey e Burke estavam no corredor de entrada. Este último aproximou-se e, colocando a mão sobre a boca, murmurou à meia voz: — O sargento Heath recomendou-me que lhe dissesse estar tudo em ordem. Ele e Snitkin estão em ação.

Vance meneou a cabeça e começou a subir.

— Espere por mim aqui embaixo, Van — disse por cima do ombro. — Volto já.

Dirigi-me à saleta cuja porta estava escancarada e caminhei a esmo pela peça, olhando os diversos quadros e gravuras. Uma delas, atrás da porta, chamou minha atenção: creio que era um Blampied. Mas Vance não se demorou; abriu a porta inopinadamente, quase me imprensando de encontro à parede. Quando eu ia falar com ele, entrou Zalia Graem.

— Philo Vance. — Ela pronunciou o nome com uma voz trêmula e baixa.

Vance voltou-se e encarou-a com ar zombeteiro.

— Estive esperando no salão — disse ela. — Quero vê-lo antes que fale com os outros.

Pelo tom de voz, percebi imediatamente que minha presença não fora notada e meu primeiro impulso foi de sair do meu canto. Mas, naquelas circunstâncias, achei que nada podia haver nas suas palavras que eu não pudesse ouvir e decidi não os interromper.

Vance continuou a encará-la mas não falou.

Ela aproximou-se bem dele.

— Diga-me por que me fez sofrer tanto — disse ela.

— Sei que a magoei — retrucou Vance. — Mas as circunstâncias assim o exigiram. Por favor, acredite que eu entendo mais desse caso do que você imagina.

— Não estou certa de entender — ela falava com hesitação. — Mas quero que saiba que confio em você. — Ergueu os olhos para ele e eu pude ver que seus olhos estavam reluzindo. Lentamente, ela inclinou a cabeça. — Nunca me interessei por homem algum — prosseguiu com um tremor na voz. — Todos os homens que conheci fizeram-me infeliz e pareciam sempre afastar-me das coisas de que eu gostava... — Ela prendeu a respiração. — Você é o único homem, de todos os que conheci, por quem eu poderia interessar-me.

Esta surpreendente confissão veio de maneira tão repentina que eu não tive tempo de fazer sentir a minha presença e, depois que a Srta. Graem terminou de falar, eu permaneci onde estava a fim de não lhe causar embaraço.

Vance colocou as mãos nos ombros da moça e manteve-a afastada.

— Minha cara, — disse com uma voz curiosamente reprimida — sou o único homem por quem você não se deve interessar. — A finalidade das suas palavras era clara.

Atrás de Vance abriu-se subitamente a porta que dava para o quarto de dormir e a Srta. Beeton imobilizou-se no limiar. Ela não mais usava o uniforme de enfermeira e sim um tailleur de tweed de corte severo.

— Lamento — desculpou-se. — Pensei que Floyd... o Sr. Garden estivesse aqui.

Vance olhou-a vivamente.

— É evidente que estava enganada, Srta. Beeton.

Zalia Graem encarava a enfermeira com um ressentimento zangado.

— Quanto ouviu você até se decidir a abrir a porta? Os olhos da Srta. Beeton entrecerraram-se; havia uma expressão de desprezo em seu olhar firme.

— Talvez você tenha alguma coisa a esconder — respondeu friamente, enquanto atravessava a saleta em direção à porta do corredor e dali dirigiu-se ao salão.

Os olhos de Zalia Graem seguiram-na como que fascinados, e depois ela voltou-se para Vance.

— Esta mulher me apavora — disse. — Não confio nela. Há alguma coisa de sombrio e cruel por trás dessa calma auto-suficiência... e você foi tão bom para ela, enquanto que a mim fez sofrer.

Vance sorriu melancolicamente.

— Poderia ter a gentileza de aguardar um pouco no salão?

Ela olhou-o perscrutadoramente e, sem falar, voltou-se e saiu da saleta.

Vance permaneceu algum tempo fitando o soalho com um ar indeciso, como se relutante em prosseguir com quaisquer planos que tivesse engendrado. Depois voltou-se para a janela.

Aproveitei essa oportunidade para sair do meu canto e, exatamente nesse momento, surgiu Floyd Garden na porta do corredor.

— Alô, Vance — disse. — Eu não sabia que você estava de volta até que Zalia me disse. Alguma coisa em que eu possa ser útil?

Vance deu meia volta rapidamente.

— Eu ia justamente chamar você. Estão todos aqui? Garden fez que sim, gravemente.

— Sim, e estão todos com um medo tremendo; todos exceto Hammle. Para ele tudo é uma farsa. Gostaria que alguém o tivesse acertado no lugar de Woody.

— Mande-o aqui, por favor — pediu Vance. — Quero falar com ele. Irei ter com os outros daqui a pouco.

Garden caminhou pelo corredor e, naquele momento, ouviu Burke falando com Markham na porta principal. Markham logo se juntou a nós na saleta.

— Espero não o ter feito esperar — disse.

— Não. — Vance encostou-se à escrivaninha. — Bem na hora. Estão todos aqui, exceto Siefert. E estou à espera de Hammle para uma conversinha. Penso que ele estará em condições de corroborar uma idéia que tenho. Até agora ele nada nos contou. E posso precisar do seu apoio moral.

Markham mal acabava de sentar-se quando Hammle irrompeu na saleta com ar jovial. Vance fez-lhe um rápido aceno e omitiu todos os preâmbulos convencionais.

— Sr. Hammle, — disse — nós já conhecemos de sobra a sua filosofia de cuidar apenas dos seus interesses e manter silêncio para evitar quaisquer complicações. Uma atitude louvável, mas não nas circunstâncias atuais. Este é um caso de crime e, no interesse da justiça para com todos os interessados, precisamos obter toda a verdade. Ontem à tarde, o senhor era a única pessoa no salão que gozava de uma visão parcial do corredor. E precisamos saber tudo o que o senhor viu, por mais trivial que lhe possa parecer.

Hammle, assumindo sua expressão de jogador de pôquer, permaneceu em silêncio; Markham inclinou-se para a frente, olhando-o fixamente.

— Sr. Hammle, — disse com uma calma fria e mortal — se não nos quiser dar agora qualquer informação, será levado diante do tribunal e falará sob juramento.

Hammle cedeu. Falou precipitadamente, abanando os braços.

— Estou pronto a lhes dizer tudo o que sei. Não precisam ameaçar-me. Mas, para dizer a verdade, não pensei que a coisa fosse tão séria. — Sentou-se com pomposa dignidade e adotou um ar que, obviamente, pretendia indicar que, naquele momento, ele era a personificação da lei, da ordem e da verdade.

— Então, em primeiro lugar — disse Vance sem abandonar seu ar frio — quando a Srta. Graem saiu da sala, ostensivamente para atender um chamado telefônico, o senhor observou exatamente onde ela foi?

— Não exatamente, — retrucou Hammle — mas ela virou à esquerda em direção à saleta. Vocês compreendem, naturalmente, que me era impossível ver muito longe no corredor, mesmo de onde eu estava sentado.

— Exato — concordou Vance. — E quando ela voltou ao salão?

— Primeiramente, eu a vi do lado oposto ao da saleta. Ela se dirigiu ao armário de parede onde se guardam os chapéus e agasalhos e depois voltou para ficar parada na entrada até a corrida terminar. Depois disso não a vi ir nem vir, porque eu me voltara para desligar o rádio.

— E quanto a Floyd Garden? — perguntou Vance. — Lembra-se de que ele acompanhou Swift até fora da sala? Percebeu para onde foram ou o que fizeram?

— Se me lembro bem, Garden pôs o braço nos ombros de Swift e guiou-o até à sala de jantar. Depois de alguns momentos eles saíram. Swift parecia estar afastando Garden e depois desapareceu pelo corredor em direção à escada. Floyd ficou parado alguns minutos à porta da sala de jantar, acompanhando o primo, e depois o seguiu pelo corredor; mas deve ter mudado de idéia porque logo voltou ao salão.

— E não viu ninguém mais no hall?

Hammle sacudiu a cabeça pesadamente.

— Não. Ninguém mais.

— Muito bem — Vance aspirou profundamente o cigarro. — E agora vamos para o jardim do terraço, figurativamente falando. O senhor estava no jardim, esperando um trem, quando a enfermeira quase foi asfixiada na caixa-forte com gás de bromo. A porta para o corredor estava aberta e, se o senhor estivesse olhando naquela direção, poderia facilmente ter percebido quem passou para cima e para baixo no corredor. — Vance olhou-o significativamente. — E tenho a intuição de que o senhor estava olhando por aquela porta, Sr. Hammle. Sua reação de espanto, quando saímos no terraço, foi um pouco exagerada. E, de onde estava, o senhor não poderia ver muito da cidade, não é?

Hammle pigarreou e sorriu.

— Adivinhou, Sr. Vance — admitiu bem humorado. — Já que eu não podia pegar o meu trem, achei que poderia satisfazer um pouco a minha curiosidade e ficar ali a ver o que acontecia. Saí para o terraço e lá fiquei parado, onde podia ver pela porta do corredor; eu queria ver quem seria apertado em seguida.

— Obrigado pela sua honestidade. — O rosto de Vance estava formalmente frio. — Por favor, diga-nos exatamente o que viu por aquela porta enquanto esperava, segundo confessou, que acontecesse alguma coisa.

Mais uma vez Hammle pigarreou.

— Bem, Sr. Vance, para dizer a verdade, não foi muita coisa. Apenas gente indo e vindo. Primeiro, vi Garden passar no corredor em direção ao estúdio; quase em seguida ele desceu a escada. Depois Zalia Graem passou também em direção ao estúdio. Cinco ou dez minutos depois o detetive Heath — creio que este é o nome — passou pela porta carregando no braço um sobretudo. Um pouco mais tarde, dois ou três minutos, diria eu, Zalia Graem e a enfermeira cruzaram-se no corredor; Zalia em direção à escada e a enfermeira rumo ao estúdio. Dois minutos depois, Floyd Garden passou novamente pela porta em direção ao estúdio...

— Um minuto — interrompeu Vance. — O senhor não viu a enfermeira voltar para baixo depois de ter cruzado com a Srta. Graem no corredor.

Hammle sacudiu a cabeça enfaticamente.

Não. A primeira pessoa que eu vi depois das duas moças toi Floyd Garden dirigindo-se ao estúdio. E ele passou de volta um ou dois minutos depois...

— O senhor tem certeza de que sua cronologia é precisa?

— Absolutamente.

Vance pareceu satisfeito e meneou a cabeça.

— Isto coincide perfeitamente com os fatos de que tenho conhecimento — disse. — Mas tem certeza de que ninguém passou pela porta, quer indo ou vindo, durante aquele intervalo?

— Eu poderia jurar.

Vance deu mais uma vigorosa tragada no cigarro.

— Mais uma coisa, Sr. Hammle: enquanto estava no jardim, alguém entrou no terraço pelo portão de grade?

— Absolutamente não. Não vi ninguém ali.

— E depois que Garden voltou para baixo, que aconteceu?

— Vi você chegar à janela e olhar para o jardim. Tive medo de ser visto e, no momento em que você se virou, fui para a extremidade oposta do jardim, perto do portão. O que vi em seguida foram vocês entrando no terraço com a enfermeira.

Vance deixou a escrivaninha onde estivera até então apoiado.

— Muito obrigado. Sr. Hammle. Disse exatamente o que eu queria saber. Pode interessar-lhe saber que a enfermeira informou ter sido agredida na cabeça ao passar no corredor deixando o estúdio, e arrastada para a caixa-forte que estava cheia de gás de bromo.

O queixo de Hammle caiu e seus olhos arregalaram-se. Agarrou-se aos braços da cadeira e lentamente ficou de pé.

— Meu Deus! — exclamou. — Então foi isso que aconteceu! E quem o poderia ter feito?

Uma pergunta cabível — respondeu calmamente Vance. — Realmente, quem o poderia ter feito? Entretanto, os detalhes de sua observação secreta lá do jardim corroboram as minhas suspeitas e é possível que eu possa responder à sua pergunta dentro em breve. Sente-se novamente, por favor.

Hammle lançou um olhar apreensivo a Vance e sentou-se de novo. Vance voltou-se para olhar o céu que escurecia. Depois, virou-se para Markham. Uma súbita mudança surgira em sua expressão e, pelo seu olhar, eu sabia que se estava debatendo interiormente com algum conflito.

— Chegou o momento de agir, Markham — disse resolutamente. Depois foi até à porta e chamou Garden.

Este veio imediatamente do salão. Parecia nervoso e olhou Vance com ansiedade.

— Tenha a fineza de dizer a todos que venham para a saleta — solicitou Vance.

Com um aceno quase imperceptível, Garden regressou pelo corredor; Vance atravessou a sala e sentou-se à escrivaninha.

 

 

 

 

XVII

 

Um Tiro Inesperado

 

 


(Domingo, 15 de abril —18:20 horas)

 

 

Zalia Graem foi a primeira a entrar na saleta. Havia uma expressão tensa, quase trágica, em seu rosto cansado. Olhou para Vance como num apelo e sentou-se sem uma palavra. Foi seguida pela Srta. Weatherby e Kroon, que, pouco à vontade, sentaram-se a seu lado no sofá. Floyd Garden e seu pai entraram juntos. O professor parecia atordoado e as rugas de seu rosto como que se haviam tornado mais profundas durante as últimas vinte e quatro horas. A Srta. Beeton veio logo atrás deles e parou hesitante no limiar, olhando vacilante para Vance.

— O senhor também me quer? — perguntou desconfiada.

— Creio que seria melhor, Srta. Beeton — disse Vance. — Podemos precisar de sua ajuda.

Ela fez um sinal de aquiescência e, entrando, sentou-se próximo à porta.

Naquele momento tocou a campainha da porta de entrada e Burke introduziu o Dr. Siefert.

— Acabei de receber seu recado, Sr. Vance, e vim direto para cá. — Percorreu o salão com um olhar inquisidor e depois fitou Vance.

— Achei que o senhor gostaria de estar presente, na hipótese de chegarmos a alguma conclusão sobre este caso. Sei que o senhor está pessoalmente interessado. Senão, não lhe teria telefonado.

— Agrada-me que o tenha feito — respondeu mansamente Siefert, dirigindo-se a uma cadeira diante da escrivaninha.

Vance acendeu um cigarro com lenta deliberação, seus olhos vagueando pela sala. Havia uma tensão em todo o grupo ali reunido. Mas, como indicaram os acontecimentos futuros, ninguém poderia ter sabido o que havia na cabeça de Vance nem as suas razões para reunir todos ali.

O tenso silêncio foi quebrado pela voz de Vance. Ele falou normalmente, porém com uma curiosa ênfase: — Pedi a todos que comparecessem aqui esta tarde na esperança de que pudéssemos esclarecer a realmente trágica situação existente. Ontem, Woody Swift foi assassinado na caixa-forte lá em cima. Algumas horas mais tarde, encontrei a Srta. Beeton trancada no mesmo lugar, meio sufocada. A noite passada, como todos sabem, a Sra. Garden morreu devido ao que todos nós acreditamos tenha sido uma dose excessiva do barbitúrico receitado pelo Dr. Siefert. Está fora de dúvida de que esses três acontecimentos estão estreitamente relacionados; a mesma mão agiu em todos eles. O sistema e a lógica da situação apontam indiscutivelmente para essa hipótese. Sem dúvida, havia uma razão diabólica para cada ato do criminoso; e ela foi fundamentalmente a mesma em cada caso. Infelizmente, o cenário preparado para esse crime múltiplo foi tão confuso que facilitou cada etapa do plano criminoso e, ao mesmo tempo, dispersou as suspeitas sobre muitas pessoas que estavam inteiramente inocentes.

Vance fez uma pausa.

— Felizmente, eu estava presente quando foi cometido o primeiro crime e, desde então, tenho podido isolar os vários fatos relacionados com o crime. Neste processo de triagem, tenho parecido pouco razoável e até, talvez, duro para com muitos dos presentes. E durante o decorrer de minha breve investigação, foi-me necessário reprimir qualquer expressão de minhas opiniões pessoais por receio de fornecer ao agente criminoso uma advertência inoportuna. Isto, é evidente, teria sido fatal, pois a trama foi tão inteligentemente urdida, tão fortuitas eram as muitas circunstâncias a ela ligadas, que nunca teríamos conseguido colocar o libelo do crime no verdadeiro culpado. Conseqüentemente, era essencial uma multiplicidade de suspeitas recíprocas entre os inocentes membros e convidados desta família. Se eu ofendi ou fui injusto com alguém, confio que, em vista das anormais e terríveis circunstâncias, serei perdoado...

Ele foi interrompido pelo surpreendente som de um tiro identicamente semelhante ao do dia anterior. Todos, na sala, ergueram-se rapidamente, aterrorizados com a súbita detonação. Todos, exceto Vance. E, antes que alguém pudesse falar, sua voz calma e autoritária dizia: — Não há necessidade de alarme. Por favor, sentem-se. Providenciei este tiro para que todos vocês ouvissem; ele terá uma importante implicação no caso.

Burke surgiu na porta: — Estava bem, Sr. Vance?

— Perfeito — disse-lhe Vance. — O mesmo revólver e os mesmos cartuchos?

— Claro. Exatamente como o senhor me disse. E de onde mandou. Não estava como o senhor queria?

— Sim, precisamente — concordou Vance. — Obrigado, Burke.

O detetive deu um amplo sorriso e afastou-se.

— Este tiro, acredito, — prosseguiu Vance passeando os olhos preguiçosamente pelos presentes — foi semelhante ao que ouvimos ontem à tarde — o que nos fez todos correr até o corpo de Swift. Pode ser que lhes interesse saber que o tiro recém-disparado pelo detetive Burke saiu do mesmo revólver, com os mesmos cartuchos usados ontem pelo assassino e exatamente do mesmo local.

— Mas este tiro pareceu ter sido disparado de algum lugar aqui embaixo — interrompeu Siefert.

— Exatamente — disse Vance com satisfação. — Foi disparado de uma das janelas deste andar.

— Mas eu havia compreendido que o tiro de ontem havia sido disparado lá em cima — Siefert parecia perplexo.

— Esta foi a suposição geral, porém errônea — explicou Vance. — Na realidade, não foi assim. Ontem, devido à porta do terraço estar aberta, devido à escada e também estar fechada a porta do quarto onde foi feito o disparo e, principalmente, porque nós estávamos psicologicamente ligados à idéia de um tiro no terraço, isso deu a todos nós a impressão de que o ruído veio dali. Nós fomos induzidos ao erro por nossos medos manifestos e não formulados.

— É mesmo, você tem razão, Vance — falou Floyd Garden excitado. — Eu me lembro de que, na ocasião do tiro, fiquei pensando de onde ele teria vindo, mas naturalmente meu pensamento foi logo para Woody e então admiti que tivesse sido no jardim.

Zalia Graem voltou-se rapidamente para Vance.

— O tiro de ontem não soou para mim como proveniente do terraço. Quando saí da saleta, fiquei me perguntando por que estavam todos correndo para cima.

Vance devolveu-lhe o olhar diretamente.

— Não, para a senhorita deve ter parecido muito mais perto. Mas por que não mencionou este importante fato ontem, quando falamos sobre o crime?

— Eu... eu não sei — tartamudeou a moça. — Quando vi Woody morto lá em cima, naturalmente pensei ter-me enganado.

— Mas a senhorita não podia ter-se enganado — replicou Vance quase num suspiro; seus olhos fitaram novamente o espaço. — E após o revólver ter sido disparado ontem de uma janela de baixo, ele foi sorrateiramente colocado no bolso do sobretudo da Srta. Beeton, que estava no armário do corredor. Se ele tivesse sido disparado do andar de cima, teria sido muito mais vantagem escondê-lo em algum lugar do terraço ou no estúdio. O sargento Heath, que tinha dado busca tanto em cima como embaixo, encontrou-o mais tarde no armário do corredor. — Dirigindo-se novamente à moça: — Por falar nisso, Srta. Graem, não foi até esse armário após ter respondido ao telefone aqui da saleta?

A jovem reprimiu um grito.

— Como... como soube?

— Foi vista lá — explicou Vance. — Deve lembrar-se de que o armário do corredor é visível de uma das extremidades do salão.

Zalia Graem voltou-se furiosa para Hammle: — Então foi você quem contou a ele?

— Era meu dever — respondeu Hammle empertigando-se.

A jovem virou-se para Vance com os olhos chamejantes.

— Vou-lhe dizer por que fui até ao armário. Fui buscar um lenço que havia deixado em minha bolsa. Isto faz de mim uma assassina?

— Não. — Vance balançou a cabeça e suspirou. — Obrigado pela explicação... Poderia ter a gentileza de nos contar exatamente o que fez a noite passada, quando atendeu ao chamado da Sra. Garden?

O professor Garden, que permanecia sentado com a cabeça baixa, aparentemente sem prestar atenção a quem quer que fosse, de repente levantou a vista e pousou seus olhos fundos na moça com um pequeno sinal de animação.

Zalia Graem assumiu um ar de desafio endereçado a Vance.

— Perguntei à Sra. Garden em que lhe podia ser útil e ela pediu-me que enchesse novamente o copo com água que estava sobre a mesinha ao lado da cama. Fui até ao banheiro e enchi o copo; depois arrumei os travesseiros e perguntei-lhe se precisava de mais alguma coisa. Ela agradeceu-me e fez que não; e eu voltei ao salão.

Os olhos do Prof. Garden velaram-se novamente e ele voltou a afundar na cadeira, mais uma vez ignorando o que estava à sua volta.

— Obrigado — disse Vance com um aceno para a Srta. Graem. E voltando-se para a enfermeira: — Srta. Beeton, quando voltou à noite, a janela do quarto que dá para o balcão estava trancada?

A enfermeira ficou surpresa com a pergunta. Mas, quando respondeu, foi num tom calmo e profissional.

— Não reparei; mas sei que estava trancada quando eu saí; a Sra. Garden sempre insistiu nisso. Lamento não ter olhado a janela quando voltei. Isso tem muita importância?

— Não; especialmente, não — Vance dirigiu-se então a Kroon. — Creio que o senhor levou a Srta. Weatherby até à sacada ontem à noite. Que estiveram fazendo durante os dez minutos que passaram lá fora?

Kroon irritou-se: — Se quer saber mesmo, estávamos brigando por causa de Stella Fruemon...

— Não estávamos. — A voz aguda da Srta. Weatherby o interrompeu. — Estava simplesmente perguntando a Cecil...

— Está tudo certo — Vance interrompeu-a vivamente e fez um gesto de súplica. — Brigas ou recriminações, isto realmente não nos interessa. — Dirigiu-se a Floyd Garden: — Diga-me, Garden, ontem à tarde quando você deixou o salão para seguir Swift, como um bom samaritano, após ele ter apostado em Equanimity, onde foram vocês?

— Levei-o até à sala de jantar. — Mais uma vez Garden se mostrava perturbado e apreensivo. — Discuti com ele durante alguns instantes, depois ele saiu para o corredor em direção à escada. Fiquei observando-o durante um ou dois minutos, tentando pensar o que poderia fazer por ele porque, para dizer a verdade, eu não queria que ele ouvisse o resultado da corrida lá em cima. Eu estava absolutamente certo de que Equanimity perderia e ele ignorava que eu não havia feito o jogo. Eu estava bastante preocupado com o que ele pudesse vir a fazer. Durante um minuto pensei em acompanhá-lo lá em cima, mas mudei de idéia. Decidi que nada mais havia a fazer a não ser esperar pelo melhor. E então voltei ao salão.

Vance pousou os olhos na escrivaninha e permaneceu calado durante vários minutos, fumando e meditando.

— Estou seriamente embaraçado — murmurou finalmente, sem erguer os olhos. — Mas o fato é que não estamos chegando à parte alguma. Há explicações plausíveis para tudo e para todos. Por exemplo, no momento do primeiro crime, o Prof. Garden estava, presumivelmente, na biblioteca ou num táxi. Floyd Garden, de acordo com suas próprias declarações e com a parcial corroboração do Sr. Hammle aqui presente, estava no salão e no corredor inferior. O próprio Sr. Hammle, assim como a Srta. Weatherby, estavam no salão. O Sr. Kroon explica que estava fumando lá fora na sacada externa e lá deixou como evidência duas pontas de cigarro. A Srta. Graem, até onde podemos crer, estava telefonando aqui da saleta. Portanto, supondo-se, simplesmente uma hipótese, de que ninguém aqui poderia ser culpado da morte de Swift, da aparente tentativa de assassinato da Srta. Beeton e do possível assassinato da Sra. Garden, nada há de tangível para consubstanciar uma acusação individual. A atuação do criminoso foi por demais inteligente, bem concebida, e as pessoas inocentes parecem haver formado, inconsciente e involuntariamente, uma conspiração para ajudar e encorajar o criminoso.

Vance prosseguiu erguendo os olhos.

— Além disso, quase todos agiram de uma maneira que, concebivelmente, fazia com que cada um parecesse culpado. Houve um surpreendente número de acusações. O Sr. Kroon foi a primeira vítima de uma dessas acusações não consubstanciadas. Diversas pessoas me apontaram a Srta. Graem como culpada. A Sra. Garden indiretamente acusou seu filho ontem à noite. De fato, tem havido uma tendência generalizada para envolver diversas pessoas nas atividades criminosas. Do ponto de vista humano e psicológico, a solução foi ao mesmo tempo deliberada e inconscientemente velada, até que a confusão tornou-se tal que não restava mais um único contorno definido. E isto criou uma atmosfera que servia com perfeição às maquinações do assassino, porque tornou a investigação extremamente difícil e as provas positivas, quase impossíveis de se obter... E, ainda assim — acrescentou Vance — alguém nesta sala é o culpado.

Eu não podia entender sua atitude: era completamente diferente do homem que eu sempre havia conhecido. Toda a sua segurança parecia haver desaparecido, e senti que ele relutava em admitir a derrota. Voltando-se para a janela, ele observou o crepúsculo que se avizinhava. Depois, com uma brusca meia volta, seus olhos varreram furiosamente a sala, demorando-se um instante em cada um dos presentes.

— Além disso — e havia uma tensão no staccato de suas palavras — eu sei quem é o culpado!

Houve um movimento de mal-estar no ambiente, seguido de um silêncio que foi rompido pela voz educada do Dr. Siefert.

— Se este é o caso, Sr. Vance, e eu não duvido da veracidade de sua afirmação, creio que é seu dever dizer o nome dessa pessoa.

Vance encarou pensativamente o doutor durante vários minutos antes de responder. Depois, disse em voz baixa: — Acho que o senhor tem razão, doutor.

Mais uma vez fez uma pausa e, acendendo um novo cigarro, moveu-se de um lado para outro em frente à janela.

— Primeiramente, — disse parando de chofre — há alguma coisa lá em cima que eu preciso ver novamente, para ter certeza. Por favor, permaneçam aqui durante alguns instantes. — Disse e encaminhou-se para a porta. Súbito, entreparou, para dizer à enfermeira: — Por favor, Srta. Beeton, venha comigo. Creio que poderá ajudar-me.

A enfermeira ergueu-se e seguiu Vance até o corredor. Ouvimos quando subiam as escadas.

Uma agitação instalou-se nos que haviam permanecido embaixo. O Prof. Garden levantou-se lentamente, foi até à janela, onde ficou olhando para fora. Kroon abriu a cigarreira e ofereceu um cigarro à Srta. Weatherby. Quando acendiam os cigarros, murmuraram alguma coisa entre si que não pude distinguir. Floyd Garden moveu-se desajeitadamente na cadeira e voltou a seu hábito nervoso de encher o cachimbo. Siefert andou pela sala, fingindo examinar as gravuras, e os olhos de Markham seguiram todos os seus movimentos. Hammle pigarreou bem alto diversas vezes, acendeu um cigarro e remexeu em diversos papéis que tirou da sua agenda de bolso. Somente Zalia Graem permaneceu tranqüila. A cabeça recostada no sofá, os olhos fechados, ela fumava tranqüilamente. Eu poderia jurar que havia um leve sorriso no canto de seus lábios...

Passaram-se cinco bons minutos e então o silêncio da sala foi cortado por um desvairado e terrível grito de mulher pedindo socorro, vindo lá de cima. Quando chegamos ao corredor, a enfermeira vinha às pressas pela escada, segurando o corrimão com as duas mãos. Seu rosto estava fantasmagoricamente pálido e havia uma expressão selvagem e amedrontada em seu olhar.

— Sr. Markham! Sr. Markham! — gritava a moça historicamente. — Oh, meu Deus! Uma coisa horrível vem de acontecer...

Markham avançou ao seu encontro.

— Foi o Sr. Vance — arquejou excitadamente. — Ele se foi!

Um arrepio de horror percorreu meu corpo e todos pareciam estupefatos. Notei, como se fora algo inteiramente fora de minha percepção imediata, que Heath, Snitkin e Peter Quackenbush, o fotógrafo oficial da polícia, acudiram correndo da porta principal. Quackenbush trazia consigo a câmara e o tripé; os três homens ficaram parados calmamente junto à porta, destacando-se do aturdido grupo ao pé da escada. Vagamente fiquei imaginando por que estariam eles aceitando a situação com uma indiferença tão complacente.

Em frases rotas, entremeadas de soluços, a enfermeira explicava a Markham: — Ele caiu lá embaixo! Oh! meu Deus, foi horrível! Ele disse que me queria perguntar alguma coisa e me levou até o jardim. Começou a fazer perguntas sobre o Dr. Siefert, o Prof. Garden, a Srta. Graem. E enquanto falava, subiu no parapeito... lembra-se como ele fez ontem à noite. Tive medo, assim como tive ontem. E então... então... enquanto eu falava com ele... ele inclinou-se... oh, meu Deus!... ele perdeu o equilíbrio. — Ela fitou Markham com ar assustado. — Tentei alcançá-lo... e de repente ele já não estava mais ali... ele caiu!

Subitamente, os olhos dela ergueram-se acima de nossas cabeças e ficaram pasmos. Uma mudança brusca operou-se nela; o rosto contorceu-se numa horrenda máscara. Acompanhando seu olhar horrorizado, instintivamente voltamo-nos e focalizamos o corredor próximo ao salão...

Lá, calmamente olhando para nós, estava Philo Vance.

Tenho tido muitas experiências angustiantes, mas, naquele momento, a visão de Vance após o horror por que eu acabava de passar, afetou-me mais que qualquer outro choque de que me recorde. Uma tonteira envolveu-me e eu senti um suor frio brotando em todo o meu corpo. O som da voz de Vance só servia para me perturbar ainda mais.

— Eu lhe falei a noite passada, Srta. Beeton, — dizia ele com os olhos friamente pousados na enfermeira — que nenhum jogador desiste quando vence pela primeira vez e que, no fim, ele sempre perde. — Ele avançou de alguns passos. — A senhorita ganhou sua primeira aposta, com muitas vantagens, ao matar Swift. E o envenenamento da Sra. Garden com o barbital também demonstrou ser um jogo ganho. Mas quando tentou acrescentar-me à sua lista de vítimas, porque suspeitava que eu sabia demais, a senhorita perdeu. Este páreo estava combinado... a senhorita não teria uma única chance.

Markham olhava Vance com um ar irritado.

— Que significa tudo isso? — gritou, apesar do óbvio esforço que fazia para ocultar sua excitação.

— Significa simplesmente, Markham, que eu dei à Srta. Beeton a oportunidade de me empurrar do parapeito, o que, normalmente, teria sido uma morte certa. E ela aproveitou essa oportunidade. Esta tarde, eu combinei com Heath e Snitkin para testemunharem o episódio e também consegui que fosse documentado de modo permanente.

— Documentado? — Meus Deus! Que quer você dizer?

Markham parecia meio tonto.

— Exatamente isso — retrucou calmamente Vance. — Uma fotografia oficial tirada com lentes especiais adaptadas à meia-luz, para os arquivos do sargento. — Seu olhar passou de Markham para Quackenbush. — Espero que tenha conseguido.

— Claro que sim — respondeu o homem com um sorriso satisfeito. — E no ângulo exato. Um colosso.

A enfermeira, que estivera olhando Vance como que petrificada, de repente largou o corrimão onde estava agarrada e cobriu o rosto com um gesto de desespero e desilusão. Depois as mãos caíram, deixando ver uma expressão de derrota.

— Sim! — gritou para Vance. — Eu tentei matá-lo. E por que não? O senhor estava a pique de arrancar tudo... tudo... de mim.

Virou-se bruscamente e subiu correndo. Quase que simultaneamente, Vance pulou para a frente.

— Rápido, rápido — chamou ele. — Parem-na antes que chegue ao jardim.

Mas antes que qualquer um de nós se desse conta do significado de suas palavras, o próprio Vance já estava na escada. Heath e Snitkin estavam bem atrás dele, e nós, estupefatos, os seguimos. Quando cheguei ao terraço, pude ver a Srta. Beeton correndo em direção à extremidade oposta do jardim, com Vance imediatamente em seu encalço. O crepúsculo havia praticamente terminado e uma sombra profunda instalara-se sobre a cidade. Quando a moça subiu no parapeito, exatamente no mesmo ponto em que Vance estivera de pé na noite anterior, ela parecia uma silhueta espectral contra o céu levemente iluminado. E aí ela" desapareceu no fundo abismo de sombras, exatamente no momento em que Vance ia alcançá-la...

 

 

 

 

XVIII

 

A Folha de Apostas

 

 


(Domingo, 15 de abril — 19:15 horas)

 

 

Meia hora mais tarde estávamos todos sentados outra vez na saleta. Heath e os detetives saíram imediatamente após a catástrofe final para atender aos desagradáveis detalhes decorrentes do suicídio da Srta. Beeton.

Vance estava de novo na cadeira da escrivaninha. O fim trágico do caso parecia tê-lo entristecido. Durante algum tempo ele fumou sorumbático. Depois falou: — Pedi a todos vocês que ficassem porque achei que mereciam uma explicação sobre os terríveis acontecimentos que ocorreram nesta casa e também para ouvirem por que me foi necessário conduzir a investigação da maneira que eu fiz. Para começar, eu sabia desde o início que estava lidando com uma pessoa muito ardilosa e sem escrúpulos, e sabia também tratar-se de alguém que estaria na casa ontem à noite. Portanto, até que eu tivesse alguma prova convincente da culpa daquela pessoa, era imperativo que eu parecesse duvidar de cada um dos presentes. Somente em uma atmosfera de suspeita mútua e recriminação, na qual até eu parecia estar tão desnorteado quanto os outros, seria possível suscitar ao criminoso aquela sensação de segurança que eu sentia conduzir ao seu erro fatal.

— Desde o início estava inclinado a duvidar da Srta. Beeton, porque, embora todos aqui tivessem, de alguma forma, atraído para si próprios uma suspeita, apenas a enfermeira havia tido o tempo e a oportunidade de, sem qualquer estorvo, cometer o crime inicial. Quando pôs o seu plano em ação, ela estava inteiramente livre de qualquer observação; e estava tão amplamente familiarizada com todas as disposições domésticas que não teve dificuldade em cronometrar cada etapa, de modo a assegurar a discrição essencial. As circunstâncias e fatos subseqüentes aumentaram enormemente as minhas suspeitas. Por exemplo, quando o Sr. Floyd Garden informou-me onde era guardada a chave da caixa-forte, eu mandei que ela fosse verificar se estava no devido lugar, sem indicar onde era esse lugar, com o fim de confirmar se ela tinha conhecimento onde permanecia a chave. Somente alguém sabendo exatamente como entrar no cofre em um determinado momento poderia ser culpado da morte de Swift. É claro que o fato de ela saber não era uma prova definida da culpa, porque outras pessoas também sabiam; mas, no mínimo, era um fator contra ela. Não tivesse ela sabido onde se guardava a chave, e teria sido automaticamente eliminada. O pedido que lhe fiz para procurar a chave foi feito de maneira tão normal e indiferente que, aparentemente, não deu a ela um indício do meu motivo ulterior.

Casualmente, uma das minhas maiores dificuldades no caso foi agir de tal modo, em todos os momentos, que as suspeitas dela nunca seriam levantadas. Isto era essencial, porque, como já disse, eu só poderia esperar concretizar minha teoria sobre a culpa da Srta. Beeton fazendo-a sentir-se suficientemente segura para dizer ou fazer alguma coisa que a comprometesse.

Suas razões de início não foram bem claras e, infelizmente, eu pensei que, com a morte de Swift, ela tivesse alcançado seus objetivos. Porém, após a minha conversa desta manhã com o Dr. Siefert, pude compreender inteiramente o medonho plano que ela havia engendrado. O Dr. Siefert apontou de modo bem definido o interesse que ela tinha por Floyd Garden, embora eu já tivesse tido alguns indícios anteriormente. Por exemplo, Floyd Garden foi a única pessoa da casa de quem ela me falou com admiração. Seu motivo era baseado em uma ambição colossal: o desejo de segurança financeira, conforto e luxo; e misturado com tudo isso, um amor fora do comum. Somente hoje esses fatos se tornaram claros para mim.

Vance olhou para o jovem Garden.

— Era você que ela queria — continuou. — E eu acredito que a autoconfiança dela era tão grande que, nem por um minuto, ela duvidou que seria bem sucedida em seu objetivo.

Garden ergueu-se de um pulo.

— Por Deus, Vance! Você está certo. Agora é que estou vendo. Ela vinha dando em cima de mim já há algum tempo e, para ser honesto, posso ter dito ou feito coisas que ela pode ter considerado como um encorajamento. Deus me ajude! — E ele sentou-se novamente com um embaraço desanimado.

— Ninguém pode recriminá-lo — disse Vance com bondade. — Ela era uma das mulheres mais perspicazes que já conheci. Mas o ponto é que ela não queria apenas você; queria também a fortuna dos Gardens. Aí está por que, tendo sabido que Swift partilharia da herança, ela decidiu eliminá-lo e fazer de você o único beneficiário. Mas, de modo algum, este assassinato não constituía todo o seu plano.

Mais uma vez Vance dirigiu-se a todos em geral.

— Toda a terrível trama foi esclarecida por alguns fatos que o Dr. Siefert revelou esta manhã na conversa que tivemos. Agora ou mais tarde, a morte da Sra. Garden também era um ponto importante do plano; durante algum tempo, as condições físicas da Sra. Garden mostraram certos sintomas de envenenamento. Ultimamente, esses sintomas aumentaram de intensidade. O Dr. Siefert informou-nos de que a Srta. Beeton fora assistente de laboratório do Prof. Garden durante suas experiências com sódio radioativo e que também viera muitas vezes aqui ao apartamento com o fim de datilografar notas e executar algumas tarefas que não poderiam ser convenientemente desempenhadas na Universidade. O Dr. Siefert também informou-me de que ela realmente entrou na casa há dois meses atrás para encarregar-se pessoalmente do caso da Sra. Garden. Entretanto, ela continuava assistindo o Dr. Garden em seu trabalho e, naturalmente, tinha acesso ao sódio radioativo que ele começara a produzir. Desde que ela veio para cá, o estado físico da Sra. Garden começou a piorar, indubitavelmente resultante do fato de que a Srta. Beeton tinha oportunidades maiores e mais freqüentes de administrar o sódio radioativo à pobre senhora. Sua decisão de eliminar a Sra. Garden, de modo a que o filho herdasse o dinheiro, certamente foi tomada pouco após ela ter-se tornado a assistente do professor e, graças às suas visitas ao apartamento, ter-se tornado relacionada com Floyd Garden e familiarizada com os diversos arranjos domésticos.

Vance dirigiu-se ao Prof. Garden.

— E o senhor também, professor, era uma de suas pretendidas vítimas. Quando ela planejou matar Swift, creio que planejara um duplo crime, isto é, o senhor e Swift deveriam ser mortos ao mesmo tempo. Mas, felizmente, ontem à tarde o senhor não voltou ao seu estúdio na hora fixada para o duplo crime e o plano original teve que ser modificado.

— Mas, mas — gaguejou o professor — como poderia ela ter-me matado e a Swift ao mesmo tempo?

— Os fios desligados da campainha deram-me a resposta essa manhã — explicou Vance. — O seu esquema era, ao mesmo tempo, simples e ousado. Ela sabia que, se acompanhasse Swift lá em cima antes do grande prêmio, não teria dificuldade em atraí-lo até à caixa-forte com um pretexto qualquer, especialmente considerando o fato de que ele mostrara um marcado interesse por ela. Sua intenção era matá-lo no cofre, exatamente como fez, e depois ir ao estúdio e matar o senhor. O corpo de Swift seria então colocado no estúdio com o revólver na mão. Pareceria assassinato e suicídio. Quanto à possibilidade de o tiro no estúdio ser ouvido lá embaixo, imagino que ela deve ter experimentado antecipadamente nas verdadeiras condições havidas ontem à tarde. Pessoalmente, sou de opinião que um tiro no estúdio não poderia ser ouvido aqui embaixo com o ruído e a excitação da transmissão de um páreo, tendo a porta e janelas do estúdio fechadas. Quanto ao resto, seu plano original teria prosseguido. Ela teria apenas disparado dois cartuchos vazios da janela do quarto em vez de apenas um. Para prevenir a hipótese de que o professor percebesse qualquer coisa e tentasse chamar por socorro, ela previamente desligou os fios da campainha atrás da cadeira de sua escrivaninha.

— Mas, por Deus! — exclamou Floyd Garden com um tom amedrontado. — Foi ela mesma quem disse a Sneed que a campainha não estava funcionando.

— Precisamente. Ela fez questão de ser a pessoa que descobriu o fato com o fim de afastar inteiramente quaisquer suspeitas: ela raciocinou que a suposição normal seria esta: a pessoa que desligasse os fios com intenções criminosas, seria a última a chamar a atenção para o fato. Foi um ato ousado, porém perfeitamente condizente com sua técnica em toda a extensão.

Vance fez uma pausa, depois prosseguiu.

— Como estava dizendo, seu plano teve de sofrer uma alteração porque o Prof. Garden não voltou. Ela escolhera o Grande Prêmio Rivermont como o pano de fundo de suas manobras, porque sabia que Swift estava colocando uma grande aposta naquele páreo e, se ele perdesse, daria maior crédito à versão de suicídio. Quanto ao disparo no Prof. Garden, isso seria naturalmente atribuído à sua tentativa de impedir o suicídio do sobrinho. E, de certa forma, a ausência do professor ajudou-a, embora isso exigisse de sua parte um rápido raciocínio para preencher aquela lacuna em seu plano delineado. Em lugar de colocar Swift no estúdio onde havia inicialmente planejado, levou-o para o terraço. Cuidadosamente limpou o sangue na caixa-forte de modo a que nada restasse no chão. Uma enfermeira com prática de sala de cirurgia, de remover o sangue das esponjas, instrumentos, mesa de operações e chão, saberia como agir. Depois ela desceu e disparou um cartucho vazio da janela do quarto, exatamente quando foi dado o resultado oficial da corrida, confirmando o suicídio. Naturalmente, uma das suas principais dificuldades foi como desfazer-se do segundo revólver, o que ela disparou aqui embaixo. Ela se viu diante da necessidade de livrar-se da arma, o que era quase impossível nas circunstâncias, ou escondê-lo em lugar seguro até que pudesse removê-lo do apartamento, porque havia sempre o perigo de ele ser descoberto e todo o plano ser desmascarado. Desde que, aparentemente, ela era a pessoa menos suspeita, é provável que tenha considerado que colocá-lo temporariamente no bolso de seu próprio sobretudo seria bastante seguro. Não era um esconderijo ideal, mas creio que ela foi frustrada em alguma tentativa de escondê-lo em algum lugar do terraço ou no jardim, até que pudesse convenientemente levá-lo sem ser observada. Ela não teve oportunidade de esconder o revólver lá em cima depois que subimos pela primeira vez e descobrimos o corpo de Swift. Todavia, penso que era sua intenção fazer exatamente isso quando a Srta. Weatherby a viu na escada e, aborrecida, chamou minha atenção para o fato. Naturalmente, a Srta. Beeton negou totalmente ter estado na escada. O significado disso escapou-me completamente na ocasião, mas creio que ela trazia o revólver quando a Srta. Weatherby a viu. Evidentemente, ela pensou ter bastante tempo enquanto eu estava na saleta para correr lá em cima e esconder o revólver. Porém, mal ela havia começado a subir, a Srta. Weatherby saiu inesperadamente do salão, também com intenção de ir até o jardim. Deve ter sido imediatamente após isso que ela colocou o revólver no bolso de seu casaco no armário do corredor...

— Mas — perguntou o Prof. Garden — por que ela não disparou primeiro o revólver lá em cima; certamente teria ressoado de modo mais real e depois escondido no jardim antes de descer?

— Meu caro senhor! Isto teria sido impossível como já vai verificar. Como teria ela voltado para aqui? Poucos segundos após ouvirmos o tiro, todos nós estávamos subindo as escadas e teríamos encontrado com ela descendo. É claro que ela poderia ter voltado pela escada externa e entrado novamente no apartamento pela porta principal sem ser vista; mas, nessa eventualidade, ela não poderia ter estabelecido sua presença aqui embaixo no momento em que foi feito o disparo e isto era da maior importância para ela. Quando chegamos ao pé da escada, a Srta. Beeton estava parada à porta do quarto da Sra. Garden e tornou evidente que havia ouvido o tiro. Foi, é claro, um álibi perfeito, desde que a técnica do crime não tivesse sido revelada pela evidência que ela deixou na caixa-forte. Não... O tiro não poderia ter sido disparado no andar de cima. O único local em que ela o poderia ter disparado e ainda ter estabelecido o seu alibi, era do quarto de dormir.

Vance voltou-se para Zalia Graem.

— Agora compreendo por que a senhorita sentiu de modo tão definido que o tiro parecia vir do jardim. Foi porque, estando na saleta, era a pessoa mais próxima do tiro e podia mais ou menos avaliar a direção de onde veio. Lamento não ter podido explicar o fato, quando a senhorita o mencionou, mas a Srta. Beeton estava presente e não era aquele o momento de revelar a ela o que eu já sabia.

— Bem, de qualquer forma, o senhor foi horrível — reclamou a moça. — Agiu como se acreditasse que a minha razão para ter ouvido o tiro tão distintamente era que eu mesma o havia disparado.

— A senhorita não podia ler nas entrelinhas de minhas observações? Eu esperava que sim.

Ela sacudiu a cabeça: — Não, no momento, eu estava por demais ocupada; mas confesso que, quando o senhor pediu à Srta. Beeton para acompanhá-lo ao terraço, a verdade raiou para mim.

(Na ocasião em que ela fez esse comentário, lembrei-me de que ela havia sido a única pessoa na sala a ficar inteiramente à vontade enquanto Vance subia.) Houve um outro breve silêncio no aposento que foi quebrado por Floyd Garden.

— Há um outro ponto que me incomoda, Vance — disse ele. — Se a Srta. Beeton esperava que aceitássemos a teoria de suicídio, que teria acontecido se Equanimity ganhasse?

— Isto teria modificado todos os seus cálculos — respondeu Vance. — Mas ela era uma grande jogadora. E, lembrem-se, ela estava fazendo um jogo de alto gabarito. Estava praticamente jogando a própria vida. Garanto que esta foi a maior aposta já feita em Equanimity.

— Por Deus! — murmurou Floyd Garden. — E eu que achava enorme a aposta de Woody!

— Mas, Sr. Vance, — disse o Dr. Siefert — sua teoria não considera a tentativa que ela fez contra a própria vida.

Vance sorriu levemente.

— Não houve atentado, doutor. Quando a Srta. Beeton deixou o estúdio, um ou dois minutos após a Srta. Graem, para levar-lhe a mensagem, ela entrou na caixa-forte, fechou a porta e desta vez assegurou-se de que o trinco correra e golpeou-se levemente na cabeça. É claro que ela tivera razão para acreditar que decorreria pouco tempo até que déssemos por sua falta. Ela esperou até ouvir o ruído da chave na fechadura antes de quebrar o frasco de bromo. É possível que ao sair do estúdio ela tenha começado a recear que eu pudesse ter alguma idéia da verdade e então encenou aquele pequeno melodrama para tirar-me da pista. Seu objetivo era certamente lançar as suspeitas na Srta. Graem.

Vance olhou com simpatia para a jovem.

— Creio que, quando foi chamada no salão para atender ao telefone, Srta. Graem, exatamente no momento em que a Srta. Beeton subia para matar Swift, ela decidiu usá-la, se fosse necessário, para salvar-se. Indubitavelmente, ela sabia de sua rusga com Swift e capitalizou-a; também, sem dúvida alguma, percebeu que a senhorita seria suspeita aos olhos dos que estavam aqui presentes ontem. Eis aí por que, minha cara, pensei em dar-lhe corda, fingindo considerá-la culpada. E isto fez efeito... Espero que encontre em seu coração um modo de perdoar-me por tê-la feito sofrer.

A jovem não falou, parecia estar lutando com as próprias emoções.

Siefert inclinara-se para a frente e estudava atentamente Vance.

— Como teoria, pode ser lógica — disse com um cepticismo grave. — Mas, afinal, não passa de uma teoria.

Vance sacudiu lentamente a cabeça.

— Ah, não, doutor. É mais que uma teoria. E o senhor deveria ser a última pessoa a dar-lhe esse nome. A própria Srta. Beeton, em sua presença, traiu-se. Não somente ela nos mentiu, mas se contradisse quando o senhor e eu estávamos no terraço e ela se recuperava dos efeitos do bromo; efeitos, aliás, que ela era capaz de exagerar com perfeição em conseqüência de seus conhecimentos de medicina. — Certamente, doutor, o senhor recorda o que ela nos contou. Segundo o seu relatório do episódio, ela foi agredida na cabeça e empurrada para a caixa-forte; desmaiou imediatamente em conseqüência do gás de bromo; depois, a primeira coisa de que teve conhecimento foi de estar deitada no divã do terraço, onde eu e o senhor estávamos inclinados sobre ela.

Siefert inclinou a cabeça.

— Isto é perfeitamente correto — disse franzindo a testa.

— E estou certo de que também se lembra, doutor, de que ela olhou para mim e agradeceu-me por tê-la trazido para o jardim e salvo sua vida, e também perguntou-me como a havia encontrado tão depressa.

Siefert continuava de testa franzida.

— Isto também é correto — admitiu. — Mas não compreendo onde ela se traiu.

— Doutor, — perguntou Vance — se, como disse ela, estivesse inconsciente desde o momento em que foi empurrada para a caixa-forte até o momento em que falou conosco no jardim, como poderia ter sabido quem a encontrou e salvou do cofre? E como poderia saber que eu a encontrei logo após ela ter entrado lá? Como vê, doutor, ele nunca esteve inconsciente: ela nunca se arriscaria a morrer envenenada com o bromo. Como eu já disse, foi somente quando comecei a abrir a porta do cofre que ela quebrou o frasco do gás; e ela estava perfeitamente ciente de quem entrara lá e a carregava para o jardim. Para mim, essas palavras foram um erro fatal de sua parte.

Siefert relaxou e recostou-se na cadeira com um sorriso amarelo.

— Tem toda a razão, Sr. Vance. Esse ponto me escapou completamente.

— Mas — continuou Vance — mesmo que a Srta. Beeton não tivesse cometido o erro de nos mentir de uma maneira tão óbvia, havia uma outra prova de que ela era a única pessoa interessada naquele episódio. O Sr. Hammle aqui presente confirmou nossa opinião. Quando ela nos contou aquela história de ter recebido uma pancada na cabeça e ser empurrada para a caixa-forte, ela não sabia que o Sr. Hammle estivera no jardim observando todos os que iam e vinham pelo corredor. E ela estava sozinha no corredor no momento do suposto ataque. A Srta. Graem, é certo, acabava de passar por ela e descera; e a enfermeira contou com esse fato para tornar plausível sua história, esperando, evidentemente, que produziria o efeito desejado, isto é, fazer parecer que a Srta. Graem a havia atacado.

Vance fumou em silêncio por um instante.

— Quanto ao sódio radioativo, doutor, a Srta. Beeton o vinha administrando à Sra. Garden, satisfazendo-se em fazê-la morrer lentamente com seu efeito cumulativo. Mas a Sra. Garden ameaçou de riscar o nome do filho do testamento e isso precisava uma ação urgente; então a esperta moça decidiu-se por uma superdose de barbital a noite passada. Ela previu, é claro, que esta morte poderia facilmente ser considerada um acidente ou outro suicídio. Da maneira como as coisas aconteceram, foi-lhe tudo ainda mais propício, porque os fatos da noite passada só fizeram lançar suspeitas sobre a Srta. Graem. Desde o início, percebi quão difícil, se não impossível, seria fazer prova contra a Srta. Beeton; e durante toda a investigação eu estava à procura de algum meio de apanhá-la. Com este objetivo em vista, ontem à noite eu subi no parapeito na presença dela, esperando que isto poderia sugerir ao seu espírito cruel e sagaz um possível meio de me remover de seu caminho, se ela se convencesse de que eu já sabia demais. Meu plano para pegá-la era, afinal de contas, muito simples. Pedi a todos que comparecessem aqui esta tarde, não como suspeitos, mas para desempenhar os respectivos papéis no meu melancólico drama.

Vance suspirou profundamente antes de prosseguir.

— Combinei com o sargento Heath para equipar o poste situado na extremidade do jardim com um forte cabo de aço como se faz nos teatros para os truques de vôo e levitação. Este fio deveria ter o comprimento suficiente para atingir a altura do balcão deste andar e a ele estava preso a garra da mola que normalmente se prende ao equipamento de couro usado pelo artista. Este equipamento consiste em um pesado colete de couro de boi que, na forma e no talhe, parece com os espartilhos usados pelas jovens nos dias da era vitoriana e até mesmo depois. Esta tarde, o sargento Heath levou ao meu apartamento esse colete ou o que é tecnicamente conhecido nos meios teatrais como "colete voador" e eu o vesti antes de chegar aqui... Vocês talvez queiram ver como ele é. Tirei-o faz poucos instantes, porque ele é incrivelmente incômodo.

Vance ergueu-se e dirigiu-se ao quarto de dormir. Momentos depois, ele voltou com o colete de couro. Era feito de um couro marrom bastante pesado, com um acabamento de veludo e reforçado com lona. Os lados, em lugar de serem costurados, eram reunidos por fortes lingüetas de couro que passavam por dentro de ilhoses de metal. A parte central era fechada por uma fileira de tiras de couro de três centímetros de largura e fivelas de aço que ajustavam o colete ao corpo da pessoa que o vestia. Havia também alças de couro para os ombros e tiras para as coxas, protegidas com grossos rolos de borracha.

Vance exibiu o estranho acessório.

— Aqui está — disse. — Normalmente as fivelas e tiras ficam na frente e a presilha para a garra da mola fica nas costas. Mas no caso aqui a coisa teve que ser invertida. Eu precisava dos anéis na frente, porque ali seria preso o cabo quando eu estivesse de costas para a Srta. Beeton. — E ele apontou para dois pesados anéis de ferro com cerca de cinco centímetros de diâmetro, mantidos por parafusos e porcas numa tira de lona muito espessa, na parte frontal do colete.

Vance atirou o colete na escrivaninha.

— Este espartilho, ou colete, é usado sob a roupa do ator; no meu caso, vesti hoje um paletó largo de tweed de modo que não se notasse a ligeira saliência dos anéis.

Quando levei a Srta. Beeton para cima, eu a conduzi até o jardim e a confrontei com sua culpa. Enquanto ela protestava, subi no parapeito, de costas para ela, ostensivamente olhando para a cidade, como eu fizera a noite passada. Na semi-obscuridade, prendi o cabo aos anéis na parte anterior do meu colete de couro sem que ela o visse. A Srta. Beeton chegou bem perto de mim enquanto falava, mas, durante um momento, receei que ela não se aproveitasse da situação. Depois, em meio a uma de suas frases, ela avançou para mim com as duas mãos estendidas e o impacto lançou-me por sobre o parapeito. Era uma coisa simples lançar-me por cima do parapeito do balcão. Eu havia providenciado para que a porta do salão estivesse destrancada e eu simplesmente soltei o cabo de aço, entrei e apareci no corredor. Quando a Srta. Beeton viu que eu tinha testemunha de seu ato, e também uma fotografia, compreendeu que o jogo terminara... Admito, entretanto, que eu não previra que ela tentasse o suicídio. Mas talvez seja melhor assim. Ela é uma dessas mulheres que, por algum desvio da natureza, alguma perversidade profundamente enraizada, personificam o mal. Foi talvez essa tendência pervertida que a fez escolher a profissão de enfermeira, onde ela poderia ver e até mesmo participar do sofrimento humano.

Vance ficou a fumar, com ar abstrato. Parecia profundamente afetado, assim como todos nós. Pouco mais foi dito; cada um de nós, creio eu, estava por demais ocupado com os próprios pensamentos para continuar a discutir o caso. Houve algumas perguntas incoerentes, alguns comentários, e depois um longo silêncio.

O Dr. Siefert foi o primeiro a partir. Pouco depois, os outros ergueram-se inquietos.

Sentia-me abalado pelo súbito afrouxamento da tensão por que passara e dirigi-me ao salão para tomar um gole. A única luz existente provinha do lustre do corredor e do reflexo do céu que fracamente iluminava as janelas, mas era suficiente para permitir que eu visse o caminho até o bar situado em um canto. Servi-me de uma dose de brandy e, bebendo rapidamente, permaneci de pé um momento, olhando pela janela para as escuras águas do Hudson.

Ouvi alguém entrar e passar em direção à sacada, mas não olhei em volta imediatamente. Quando me voltei, vi a obscura silhueta de Vance parada em frente à porta aberta da sacada, um vulto solitário e pensativo. Já ia-lhe dirigir a palavra, quando Zalia Graem entrou suavemente e aproximou-se dele.

— Adeus, Philo Vance — disse.

— Sinto muito — murmurou Vance, tomando da mão que ela lhe estendia. — Estava aqui desejando que a senhorita me perdoe quando vier a compreender tudo.

— Eu já o perdoei — disse ela. — Isto é o que lhe vim dizer.

Vance curvou-se e ergueu os dedos dela até seus lábios. Então a moça retirou lentamente a mão e, voltando-se, saiu da sala.

Vance seguiu-a com o olhar até que ela tivesse deixado o aposento. Depois ele foi até à porta e saiu para a sacada.

Depois que Zalia Graem se foi, entrei na saleta onde Markham estava sentado conversando com o professor Garden e seu filho. Quando eu entrei, Markham olhou-me e depois verificou as horas.

— Acho melhor irmos embora, Van. Onde está Vance?

Voltei relutantemente ao salão a fim de buscá-lo. Ele ainda permanecia de pé na sacada, fitando sem ver a cidade com suas estruturas espectrais e suas luzes tremulantes.

 

 

Até hoje Vance não perdeu sua profunda afeição por Zalia Graem. Raramente menciona seu nome, mas notei uma sutil alteração em sua maneira de ser, o que eu atribuo à influência desse sentimento. Quinze dias após o caso Garden, Vance foi para o Egito, onde ficou diversos meses; e acho que essa viagem solitária foi motivada por seu interesse pela Srta. Graem. Uma noite, após regressar do Cairo, ele me disse: "As afeições de um homem incluem uma grande responsabilidade. As coisas que um homem deseja, a maioria das vezes, precisam ser sacrificadas devido à sua severa responsabilidade."

Creio ter entendido o que ele queria dizer. Com a multiplicidade de interesses intelectuais que o ocupavam, ele duvidava (e penso que com razão) de sua capacidade em tornar qualquer mulher feliz no sentido convencional.

Quanto à Zalia Graem, ela casou com Floyd Garden no ano seguinte e agora estão vivendo em Long Island, apenas a alguns quilômetros da propriedade de Hammle. A Srta. Weatherby e Kroon ainda são vistos juntos; de vez em quando corre um boato de que ela vai assinar um contrato com um produtor de cinema de Hollywood. O professor Garden continua morando em sua cobertura, uma figura solitária e um tanto patética, completamente absorvido por suas experiências.

Aproximadamente um ano após as tragédias no apartamento dos Gardens, Vance encontrou Hannix, o bookmaker, em Bowie. Foi um encontro casual e duvido que Vance o tenha lembrado depois. Mas o outro sim. Um dia, muitos meses mais tarde, quando Vance e eu estávamos sentados no salão-restaurante do clube Empire, Hannix aproximou-se e puxou uma cadeira.

— Que aconteceu a Floyd Garden, Sr. Vance? — perguntou. — Há mais de um ano que não sei dele. Desistiu dos cavalos?

— É possível, não sei — retrucou Vance com um pálido sorriso.

— Mas, por quê? — perguntou Hannix. — Ele era uma boa praça e sinto sua falta.

— Acredito. — Vance abanou a cabeça com indiferença. — Talvez ele esteja cansado de contribuir para sustentá-lo.

— Vamos, vamos, Sr. Vance. — Hannix adotou um ar ofendido e estendeu as mãos num gesto de apelo. — Esta foi uma observação cruel. Nunca tratei com o Sr. Garden nas bases do máximo habitual. Acredite-me, pagava-lhe prêmios em qualquer aposta até meia centena. Por falar nisso, Sr. Vance, — Hannix inclinou-se confidencialmente — o Prêmio Buller vai correr dentro de alguns minutos e as listas estão cotando Only One com oito. Se quiser o palpite, dou-lhe dez nele. Tem uma ótima chance de ganhar.

Vance fitou-o friamente e sacudiu a cabeça.

— Não, obrigado, Hannix. Já estou com Discovery.

Discovery ganhou por corpo e meio. Only One, casualmente, terminou num difícil segundo lugar.

O terrível e, em muitos aspectos, incrível Caso Garden foi um episódio peculiar e improvável. De qualquer maneira, foi tão habilmente planejado que só por acaso ou, melhor, por uma fortuita intervenção, foi ele desvendado.
Isso talvez dê a impressão de que a ação de Philo Vance não foi decisiva para a solução do caso. Seria, porém, uma impressão absolutamente errônea. Na verdade, o Caso Garden foi um dos maiores triunfos entre os muitos que assinalaram a carreira de Philo Vance e pode ser até considerado um dos mais portentosos êxitos de todos os tempos na história da investigação e da dedução criminal.
Foram as conclusões rápidas e quase fantásticas de Philo Vance, a sua capacidade de conhecer a natureza humana e o seu tremendo instinto para sentir e interpretar as correntes subterrâneas dos fatos comuns da vida que o encaminharam à descoberta da verdade.
O caso foi uma curiosa e estranha mistura de paixão, avareza, ambição e corridas de cavalos, assombroso nas suas sutilezas, na audácia e na habilidade de seu planejamento e no seu puro interesse psicológico.
Houve um leitor dos romances policiais de S. S. Van Dine que se queixou paradoxalmente de que os mesmos fossem tão bons, pois, quando iniciava a leitura de um, não conseguia mais largá-lo antes da última página. Faça a experiência com este e, para não se queixar depois, escolha um bom fim-de-semana.

 

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I

Os Cavalos de Troia

(Sexta-feira, 13 de abril — 22h)

Havia duas razões para que o terrível e, até certo ponto, incrível caso do crime no jardim — que aconteceu no início da primavera, logo após o caso do crime do Cassino — fosse assim denominado.

Em primeiro lugar, o cenário da tragédia foi a cobertura do professor Ephraim Garden, o grande pesquisador de química da Universidade de Stuyvesant; e, em segundo lugar, o situs criminis foi exatamente o lindo jardim privativo situado em cima do apartamento.

Era um caso ao mesmo tempo peculiar e inverossímil e, tão inteligentemente planejado, que apenas por mera casualidade — ou talvez fosse melhor chamarmos de intervenção fortuita — foi esclarecido. Apesar de as circunstâncias que precederam o crime serem inteiramente a favor de Philo Vance, eu não posso deixar de considerar o caso como um dos seus maiores triunfos de dedução e investigação criminal, porque foi o seu rápido e quase sobrenatural discernimento, sua capacidade de compreender a natureza humana e seu tremendo faro para discernir as camadas profundas do chamado trivial cotidiano, que o levaram a triunfar.

O assassinato dos Gardens reuniu uma curiosa e anômala mistura de paixão, avareza, ambição e... corridas de cavalos.

Havia também uma dose de ódio, mas este elemento vigoroso e ao mesmo tempo ofuscante era, imagino eu, uma compreensível decorrência dos outros fatores. Entretanto, o caso era surpreendente por suas sutilezas, seu mecanismo elaborado e seu clima de grande excitação psicológica.

O caso começou na noite de 13 de abril. Era uma daquelas noites suaves que geralmente acontecem no início de uma primavera após uma temporada de desagradável umidade quando todos os restos do inverno finalmente capitulam diante da inevitável mudança de estação. Havia uma suave tranqüilidade no ar, um súbito perfume que brotava da natureza — o tipo da atmosfera que nos torna apáticos e sonhadores e, ao mesmo tempo, estimula a nossa imaginação.

Menciono este fato aparentemente sem importância, porque acredito que essas condições meteorológicas muito têm a ver com os surpreendentes acontecimentos que pairavam no ar aquela noite e que deveriam brotar subitamente em todo o seu horror, antes que fossem decorridos 24 horas.

E eu acredito que a estação, com todas as suas sutis insinuações, era verdadeira explicação para a mudança que se fez no próprio Vance enquanto investigava o crime. Até àquela época eu não considerava Vance como um homem capaz de qualquer emoção pessoal profunda, exceto no que dizia respeito às crianças, animais e suas amizades íntimas do sexo masculino. Ele sempre me parecera um homem tão grandemente mentalizado, tão cínico e tão impessoal em suas atitudes diante da vida, que uma irracional fraqueza humana, do tipo de um romance, deveria ser inteiramente estranho à sua natureza. Mas no decorrer de sua habilidosa investigação dos crimes ocorridos na cobertura do professor Garden, pela primeira vez eu vi um outro aspecto maleável de seu caráter. Vance nunca foi um homem feliz no sentido convencional da palavra; mas, depois do caso Garden, surgiram evidências de uma solidão ainda mais profunda em sua natureza sensível.

Mas essas especulações sentimentais talvez não importassem ao relato da surpreendente história que estou aqui narrando e eu me pergunto se elas deveriam ter sido mencionadas a não ser pelo fato de que introduziram uma certa dimensão de entusiasmo e inspiração à energia que Vance despendeu, e os riscos que correu para entregar o assassino à justiça.

Mas, como eu disse, o caso teve início — pelo menos no que diz respeito a Vance — na noite de 13 de abril. John F.-X. Markham, na época procurador distrital de Nova York, jantava no apartamento de Vance, na Rua 38, Este. O jantar fora excelente — como aliás todos os que Vance oferecia — e às 10 horas estávamos os três sentados na confortável biblioteca degustando um Napoléon 1809 — o famoso e refinado conhaque do 1º Império*.


*Reconheço que esta afirmação levantará dúvidas enormes, porque o verdadeiro conhaque Napoléon é praticamente desconhecido nos EUA. Mas Vance tinha conseguido uma caixa na França; e Lewton Mackall, um perfeito conhecedor, assegurara-me que se diz entre os peritos no assunto, haver, atualmente, pelo menos 800 caixas dessa bebida num depósito da cidade de Conhaque.

 

 


Vance e Markham conversavam descontraidamente sobre ondas de crimes. Tinha havido uma leve discordância, Vance refutando a teoria de que as ondas de crimes são previsíveis, sustentando que o crime é inteiramente pessoal e, portanto, incompatível com a generalização ou leis. A conversa derivara em seguida para a decadência da entediada jovem geração surgida logo após a Primeira Guerra Mundial, que, por simples prazer, organizara clubes de crime, cujos membros experimentavam suas capacidades em assassinatos onde não havia qualquer espécie de vantagem de ordem material. Foi evidentemente mencionado o caso Loeb-Leopold e também um outro mais recente e igualmente depravado, que acabava de vir à tona em uma das principais cidades do Oeste.

Foi em meio a esta discussão que Currie, o velho mordomo inglês de Vance, surgiu à porta da biblioteca. Pareceu-me nervoso e pouco à vontade enquanto esperava que o patrão terminasse de falar; creio, que Vance pressentiu alguma coisa de estranho na atitude do empregado, porque parou de falar quase que abruptamente e voltou-se: — Que aconteceu, Currie? Você viu algum fantasma ou há ladrões dentro de casa?

— Acabei de receber um telefonema, senhor — respondeu o velho mordomo tentando reprimir em sua voz o tom excitado.

— Espero que não sejam más notícias do exterior? — perguntou Vance com simpatia.

— Ah, não senhor, não era para mim. Havia um cavalheiro ao telefone...

— Um cavalheiro, Currie?

— Ele falava como um cavalheiro, senhor. Certamente não era uma pessoa qualquer. Tinha uma voz educada, senhor e...

— Já que o seu instinto chegou tão longe — interrompeu Vance — talvez você possa dizer-me a idade do cavalheiro?

— Eu diria que era um homem de meia-idade, ou talvez um pouco mais — arriscou Currie. — Sua voz tinha um tom maduro, cheio de dignidade e ponderação.

— Excelente! — Vance esmagou o cigarro. — E qual era o objetivo da chamada desse homem maduro, digno e ponderado? Pediu para falar comigo ou deixou o nome?

Um ar preocupado surgiu no olhar de Currie enquanto negava sacudindo a cabeça: — Não senhor, isto é o mais esquisito. Ele disse que não desejava falar com o senhor pessoalmente e que não me daria o seu nome. Mas pediu-me que lhe transmitisse um recado. Foi bastante exato nesse ponto e até fez-me escrever palavra por palavra e depois repetir tudo. Assim que eu terminei, desligou.

Currie deu um passo à frente.

— Aqui está o recado, senhor. — E estendeu uma das pequenas folhas para anotações que Vance sempre tinha junto ao telefone.

Vance pegou a folha e despachou-o com um aceno. Em seguida ajustou o monóculo e colocou o papel sob a luz da lâmpada que estava sobre a mesa. Tanto Markham quanto eu o examinávamos atentamente porque o incidente era algo de pouco comum, para não dizer mais. Após uma rápida leitura, Vance fitou o espaço vazio e seu olhar tornou-se sombrio. Releu a mensagem, mais cuidadosamente ainda, e voltou a sentar-se na poltrona.

— Palavra de honra! — murmurou. — Que coisa extraordinária. — No entanto, é bastante compreensível, vocês nem imaginem. Mas quero ser mico de circo se eu estiver vendo a relação...

Markham estava aborrecido.

— É algum segredo? — perguntou para experimentar — Ou você está simplesmente em uma das suas fases oraculares? Vance olhou-o com um ar contrito.

— Perdoe-me, Markham. Meu pensamento automaticamente disparou numa espécie de devaneio. Desculpe-me, sinceramente.

E tornou a colocar o papel sob a luz.

— Este é o recado que Currie anotou tão meticulosamente: "No apartamento do professor Ephraim Garden está havendo a mais perturbadora tensão psicológica que resiste a qualquer diagnóstico. Leia alguma coisa sobre sódio radioativo. Veja o Livro XI da Eneida, linha 875. Equanimity* é o essencial"... Curioso, não acham?

 

 

* Equanimity significa serenidade. (N. T.)

 

 

Para mim, soa um tanto aloucado — anuiu Markham. — Você costuma receber telefonemas de maníacos?

— Não, mas este não é um maníaco — assegurou Vance. — É enigmático, admito, mas também bastante lúcido.

Markham fungou cèpticamente.

— Afinal, em nome de Deus, que têm um professor, o sódio e a Eneida a ver com o outro?

Vance tinha o semblante carregado enquanto procurava na cigarreira um dos seus queridos Régies, com uma tal deliberação que indicava tensão mental. Lentamente, acendeu o cigarro. Depois de inalar profundamente, respondeu: — Ephraim Garden, de quem vocês certamente já ouviram falar repetidamente, é um dos homens mais conhecidos neste país no campo da pesquisa química. No momento, se não me engano, ele é professor de química na Universidade de Stuyvesant, o que pode ser verificado no Who's Who. Mas, não importa. Suas últimas pesquisas foram orientadas para o terreno do sódio radioativo. Uma descoberta sensacional, Markham, feita pelo Dr. Ernest O. Lawrence, da Universidade da Califórnia, e dois de seus colegas de lá, os Drs. Henderson e McMillan. Este novo sódio radioativo abriu novos campos de pesquisa na terapêutica do câncer. Realmente, um desses dias pode vir a ser apontado como a tão procurada cura do câncer. A nova radiação gama deste sódio é mais penetrante que qualquer outra jamais obtida. Por outro lado, o rádio e as substâncias radioativas podem ser muito perigosos se difundidos nos tecidos normais do corpo e através do fluxo sangüíneo. A maior dificuldade no tratamento dos tecidos cancerosos por meio de radiação é achar um veículo seletivo que distribua a substância radioativa apenas para o tumor. Mas com a descoberta do sódio radioativo deu-se um enorme passo à frente; é nada mais que uma questão de tempo até que este novo sódio seja aperfeiçoado e possa ser encontrado em quantidades suficientes para uma experimentação intensiva.

— Tudo isso é extremamente fascinante — comentou Markham com sarcasmo. — Mas que tem isso a ver com você ou com o problema na casa dos Gardens? E que possível relação poderia isso ter com a Eneida? No tempo de Ennias não haviam ainda descoberto o sódio radioativo...

— Markham, meu velho, eu não sou um caldeu. E não tenho a mais remota noção de que a situação possa interessar a mim ou a Eneias, a não ser pelo fato de eu conhecer ligeiramente a família Garden. Mas tenho uma vaga idéia desse livro da Eneida, em particular. Se estou bem lembrado, ele contém uma das maiores descrições de uma batalha em toda a literatura antiga. Mas, vejamos: Vance ergueu-se rapidamente e dirigiu-se à seção de sua biblioteca reservada às obras clássicas e, após alguns momentos de procura, dali tirou um pequeno livro vermelho que começou a folhear. Seus olhos percorreram vivamente uma página quase no fim do volume e, após um momento de atenção, voltou à sua cadeira trazendo o livro, meneando a cabeça como quem está compreendendo, como se estivesse respondendo a uma pergunta que se tivesse feito interiormente.

— O trecho mencionado, Markham, — disse ele após um momento — não é exatamente aquilo que eu pensava. Mas pode ser ainda mais significativo. É a famosa onomatopéia "Quadrupedumque putrem cursu quatit ungula campum", que significa aproximadamente "e em seu galope, os cascos dos cavalos estremecem a planície gretada".

Markham tirou o charuto da boca e olhou para Vance com um aborrecimento indisfarçável: — Você está simplesmente fabricando um mistério. Só falta agora contar-me que os troianos tinham uma relação qualquer com esse professor de química e seu sódio radioativo.

— Não, não. — Vance estava com uma disposição desusadamente séria. — Nada a ver com os troianos, mas talvez com a galopada dos cavalos.

Markham rosnou: — Talvez para você isso possa fazer algum sentido.

— Não inteiramente — retrucou Vance contemplando criticamente a extremidade do seu cigarro. — Não obstante há como um vago esboço. Você sabe, o jovem Floyd Garden, único descendente do professor, mais o seu primo, um rapaz insignificante, chamado Woody Swift — se não me engano um assíduo freqüentador da intimidade dos Gardens — são aficionados dos cavalos. Por sinal, uma doença bastante corrente, Markham. Ambos se interessam por esportes em geral, provavelmente a reação normal aos seus antepassados eclesiásticos e mestres: o pai do jovem Swift, que já foi ao encontro do seu Criador, era um completo D. D.* Eu costumava às vezes ver os dois rapazes no Cassino de Kinkaid, mas os cavalos de corrida são a atual paixão dos dois. E eles são o núcleo de um pequeno grupo de jovens aristocratas que passam suas tardes principalmente na fútil expectativa de adivinhar quais os cavalos que vão chegar primeiro nas diferentes pistas.

 


* D. D. — Divinitatis Doctor (Doutor em Teologia) — (N. T.)

 

 

 

— Conhece bem esse Floyd Garden? Vance assentiu: — Regularmente. Ele é sócio do Far Meadows Club e muitas vezes joguei pólo com ele. É um "five goaler" e tem um par dos melhores cavalos do país. Uma vez tentei comprar um deles, mas estava fora de questão**. O fato é que o jovem Garden convidou-me diversas vezes a participar de pequeno grupo que reunia em seu apartamento, quando havia corridas fora da cidade. Parece-me que ele tem um serviço de alto-falantes diretamente da pista, como muitos outros fanáticos por corridas. O professor desaprova até certo ponto, mas não faz objeções severas porque a Sra. Garden também algumas vezes gosta de sentar-se e arriscar um palpite num cavalo.

 

 

** Houve uma época em que Vance era entusiasta do pólo e jogava freqüentemente. Também tinha um escore de 5 pontos.

 

 


— Alguma vez você aceitou esses convites? — perguntou Markham.

— Não — disse Vance. Depois ergueu a cabeça com um olhar distante. — Mas acho que teria sido uma excelente idéia.

— Vamos, vamos, Vance! — protestou Markham. — Mesmo que você veja alguma relação cifrada entre os desconexos itens do recado que você acaba de receber, como, por Deus, pode levá-lo a sério?

Vance aspirou profundamente o cigarro e esperou um momento antes de responder: — Você deixou passar uma frase da mensagem: "Equanimity é essencial" — disse por fim. — Acontece que um dos grandes cavalos de corrida, no momento, chama-se Equanimity. Faz parte do quadro dos imortais do turfe, como Man o'War, Exterminator, Gallant Fox e Reigh Count***. Além do mais, Equanimity estará correndo amanhã no Prêmio Rivermont.

 

 

*** Quando Vance leu a prova desta anotação, acrescentou na margem : "E eu deveria ter mencionado também Sir Barton, Sysonby, Colin, Crusader, Twenty Grand e Equipoise".

 

 


— Continuo não vendo qualquer razão para encarar o assunto com seriedade — objetou Markham.

Vance ignorou o comentário e acrescentou: — Além disso, o Dr. Miles Siefert****disse outro dia no clube que a Sra. Garden esteve bastante doente, durante algum tempo, com um mal misterioso.

 

 

**** Miles Siefert era, na época, um dos principais patologistas de Nova York, com uma extensa clientela entre a sociedade elegante daquela cidade.

 

 


Markham afastou a cadeira e bateu a cinza do charuto.

— Cada minuto que passa, o assunto fica mais confuso — observou irritadamente. — Qual a conexão entre todos esses dados corriqueiros e a sua preciosa mensagem telefônica? — E acenou com desprezo em direção ao papel que Vance ainda conservava na mão.

— Acontece que sei quem me mandou a mensagem — respondeu lentamente Vance.

— Ah, sim? — Markham estava obviamente céptico.

— Claro, foi o Dr. Siefert.

Markham demonstrou um súbito interesse: — Você se incomodaria em esclarecer-me como conseguiu chegar a esta conclusão? — perguntou com uma voz satírica.

— Não foi difícil — respondeu Vance erguendo-se e parando diante da lareira vazia e apoiando um braço na parte superior. — Para início de conversa, não fui chamado pessoalmente ao telefone. Por quê? Porque se tratava de alguém que receava ter sua voz reconhecida por mim. Logo, era alguém que eu conheço. Prosseguindo, a linguagem do recado ostenta a marca registrada da profissão de médico. "Tensão psicológica" e "resiste a qualquer diagnóstico" não são frases normalmente utilizadas por homens da lei, embora sejam palavras bastante correntes. E há na mensagem duas frases de tal maneira identificadoras — um fato que elimina qualquer possibilidade de coincidência. Veja um exemplo ao acaso: a palavra "rotineira" é certamente usada por qualquer classe de pessoas; mas quando vem acompanhada de outra palavra também comum, "recuperação", você pode estar tranqüilamente certo de que apenas um médico usaria a frase. Tem um significado médico bem definido, é um clichê da profissão... Avancemos mais um pouco: a mensagem supõe obviamente que eu esteja mais ou menos relacionado com a família Garden e a paixão que alimenta pelas corridas o jovem Garden. Portanto, chegamos ao resultado: quem enviou o recado é um médico que eu conheço e que está ciente de minhas relações com os Gardens. O único médico que preenche todas essas condições e que, incidentalmente, é de meia-idade, culto e altamente ponderado — não se esqueça da descrição feita por Currie — é Miles Siefert. E, acrescentemos a essa simples dedução, eu sei que Siefert é um estudioso de latim — uma vez encontrei-o nos salões da Sociedade Latina. Um outro ponto a meu favor é o fato de que ele é o médico da família Garden e teria enormes possibilidades de estar informado sobre os cavalos de corrida — e talvez sobre Equanimity em particular — no que diz respeito à família Garden.

— Sendo este o caso — protestou Markham — por que você não telefona para ele e descobre exatamente o que está por baixo de toda essa criptografia?

— Meu caro Markham, oh, meu caro Markham! — Van-ce caminhou até a mesa e pegou seu copo de conhaque temporariamente esquecido. — Siefert não somente iria repudiar com indignação qualquer conhecimento do recado, como também tornar-se-ia automaticamente o primeiro obstáculo a qualquer veleidade de indagação que eu pudesse ter. A ética da profissão médica é das mais fantásticas; e Siefert, de acordo com sua posição, é um fanático do assunto. Baseado no fato de ele comunicar-se comigo por um caminho tão sinuoso, começo a suspeitar de que esteja envolvido nisso algum ponto de honra algo grotesco. Talvez sua consciência o tenha vencido por um momento, e ele tenha temporariamente cedido em sua estreita adesão ao que ele considera seu código de honra... Não, não. Esta atitude não levaria a nada, em absoluto. Será preciso investigar o assunto por mim mesmo, como ele certamente deseja que eu o faça.

— Mas qual é o assunto que você acha estar sendo chamado a investigar? — insistiu Markham. — Admitindo tudo o que você disse, mesmo assim eu não vejo como você pode encarar a situação como tendo alguma seriedade.

— Nunca se sabe, não é? — murmurou Vance. — Além disso, eu também gosto muito de cavalos, como é do seu conhecimento.

Markham pareceu descontrair-se e ajustar seu humor à mudança de atitude de Vance.

— E que pretende você fazer? — perguntou bem humoradamente.

Vance bebeu seu conhaque e suspendeu o copo. Ergueu então o olhar desafiadoramente: — O promotor distrital de Nova York, o nobre defensor dos direitos do povo, o Meritíssimo John F.-X. Markham deve conceder-me imunidade e proteção antes que eu consinta em responder ao que me pergunta.

As pálpebras de Markham desceram um pouco enquanto observava Vance. Ele estava familiarizado com o sério significado que, às vezes, se escondia sob as mais frívolas observações do amigo.

— Você está pretendendo infringir a lei? — perguntou. Vance pegou novamente o copo em forma de lótus e o fez girar docemente entre o polegar e o indicador.

— Sim, inteiramente — admitiu com indiferença. — Ofensa passível de prisão, creio.

Markham estudou-o durante mais alguns momentos.

— Está bem — disse sem o menor indício de leviandade — farei o que puder por você. De que se trata?

Vance tomou mais um trago do Napoléon.

— Bem, Markham, meu caro — anunciou com um meio sorriso. — Vou à cobertura dos Gardens amanhã à tarde e jogarei nos cavalos com a jovem guarda.

 

 

 

 

II

 

Revelações Domésticas

 

 


(Sábado, 14 de abril — 12:00 horas)

 

 

Naquela noite, assim que Markham nos deixou, mudou a disposição de Vance. Um olhar preocupado velou seus olhos e ele pôs-se a caminhar pensativamente, de um lado para o outro da sala.

— Isto não me agrada, Van — murmurou ele, como se falando com os seus botões. — Isto não me agrada. Siefert não é o tipo de homem capaz de dar um telefonema misterioso como esse, a menos que tenha uma excelente razão para fazê-lo. É inteiramente fora do seu gênero, entende? Ele é um sujeito extremamente conservador e exageradamente amante da ética. Deve haver alguma coisa que o está preocupando profundamente. Mas, por que o apartamento dos Gardens? A atmosfera doméstica de lá sempre me pareceu ser pelo menos superficialmente normal, e agora um sujeito tão digno de crédito como Siefert fica todo excitado a ponto de servir-se de uma técnica de folhetim. É diabolicamente esquisito.

Ele parou de caminhar e olhou para o relógio: — Acho que vou tomar algumas providências. Uma certa dose de bisbilhotice é altamente indicada.

Dirigiu-se à antessala e um momento depois eu o ouvi discando um número de telefone. Quando voltou à biblioteca parecia ter jogado fora a depressão. Sua atitude era quase petulante.

— Estamos convidados para um abominável almoço amanhã, Van — anunciou servindo-se de outra dose de conhaque. — E teremos que nos torturar com os comestíveis na hora mais revoltante possível: meio-dia. Que hora para ingerir até mesmo a melhor das iguarias! — suspirou. — Vamos almoçar com o jovem Garden em seu apartamento. Woody Swift estará lá e também uma criatura insuportável chamada Lowe Hammle, um rústico cavalheiro de alguma remota propriedade em Long Island. Mais tarde, virão juntar-se a nós diversos componentes da classe esportiva e, juntos, nos deleitaremos com o antigo e fascinante passatempo de apostar nos puros-sangues. Isto pelo menos, haja o que houver, poderá ser realmente divertido...

Tocou a campainha chamando Currie e enviou-o à rua para buscar um exemplar de The Morning Telegraph.

— Temos que estar preparados, pelo menos um pouco. Já faz muito tempo que não jogo nos cavalos. Ah, juventude ingênua! Mas há alguma coisa com os potros que parece entrar no sangue das criaturas e brinca de destruir os mais sadios conselhos da inteligência*. Acho que vou vestir um roupão.

 

 

* Houve uma época em que Vance possuiu vários excelentes cavalos de corrida. Seus Magic Mirror, Smoke Maiden e Aldeen eram todos bem conhecidos em seu tempo; Magic Mirror, com 3 anos, ganhou três dos mais importantes prêmios das pistas do Leste. Mas no famoso Elmswood Special, quando este cavalo quebrou uma perna ao entrar na reta final e teve de ser destruído, Vance pareceu perder todo o interesse pelas corridas e desfez-se de todo o haras. Ele provavelmente não é um autentico criador de cavalos da mesma forma que também não é para Scottish Terriers, porque seus sentimentos estão constantemente interferindo com as severas e geralmente implacáveis regras de jogo.

 

 

 


Ele terminou seu Napoléon fazendo-o render com satisfação, e desapareceu no quarto de dormir.

Embora eu estivesse perfeitamente ciente de que Vance tinha em vista algum objetivo sério para querer almoçar com o jovem Garden no dia seguinte e participar das apostas nos páreos, naquela ocasião eu nem sequer suspeitava dos horrores que iam acontecer dali em diante. Na tarde de 14 de abril aconteceu o primeiro ato repugnante de um dos mais atrozes crimes múltiplos desta geração. E ao Dr. Siefert deve ser dado o maior crédito na identificação do criminoso, porque, se ele não tivesse mandado a Vance mensagem cifrada e pretensamente anônima, a verdade provavelmente jamais seria conhecida.

Nunca esquecerei aquela fatal tarde de sábado. E, além do brutal assassínio de Garden, aquela tarde será sempre relembrada por mim, porque marcou o primeiro episódio sentimental na vida adulta de Vance de que eu tivesse conhecimento. Pela primeira vez, a fria atitude impessoal de seu espírito analítico dissolveu-se frente a uma mulher atraente.

Vance estava acabando de voltar à biblioteca vestindo seu roupão de seda vermelho-escuro quando Currie trouxe o Telegraph. Pegou o jornal e abriu-o na escrivaninha, diante de si. Tudo indicava que estava num estado de espírito despreocupado.

— Alguma vez você apostou nos potros, Van? — perguntou tomando de um lápis e pegando um pequeno bloco.

— É uma ocupação tão absorvente quanto fútil. Pelo menos um conjunto de considerações técnicas entram nos cálculos: a categoria do cavalo, idade, filiação, peso que deve levar, um resumo de suas atuações anteriores, o tempo feito em outras corridas, o jóquei que o vai montar, o tipo de páreo com que está acostumado, as condições da pista, se o cavalo é lameiro ou não, sua posição na largada, a distância do páreo, o valor do prêmio e uma dezena de outros fatores, que, quando somados, subtraídos, colocados frente à frente, e eventualmente comparados por meio de um complicado sistema matemático de verificação e contraverificação, dão a você o que se supõe serem as exatas possibilidades de um cavalo vencer a corrida. Entretanto, tudo isso é completamente inútil. Menos de 40% dos favoritos — isto é, de cavalos que devem vencer no papel — confirmam o resultado desses cálculos. Jim Dandy, por exemplo, bateu Gallant Fox nos Travers e pagou 100 por um; e o teoricamente invencível Man o'War perdeu uma corrida para um pangaré chamado Upset. Depois de todas as complicadas interpretações, as corridas de cavalos continuam sendo um simples caso de sorte, tão imprevisível como a roleta. Mas nenhum aficionado comprará uma só pule enquanto não tiver verificado toda a maravilhosa conversa fiada dos informantes. É um pouco mais que abracadabra, mas é três vezes mais divertido.

Ele me lançou um olhar divertido: — E é por isso que eu vou ficar aqui sentado por mais uma ou duas horas, no mínimo, satisfazendo uma das minhas velhas fraquezas. Irei amanhã à casa dos Gardens com todos os páreos perfeitamente estudados, e você provavelmente fará uma escolha ao acaso e colherá os louros da inocência. — Acenou a mão com satisfação: — Ciao!

Voltei para casa com uma sensação de mal-estar.

Na manhã seguinte, pouco antes do meio-dia, chegamos ao lindo apartamento dos Gardens, onde fomos cordial e um tanto exuberantemente saudado por Floyd.

Ele era um homem com pouco mais de 30 anos, ereto e de compleição atlética. Deveria ter cerca de 1,90 m, ombros largos e cintura fina. O cabelo era quase preto e a pele morena. Suas maneiras, embora simples e não afetadas e com uma ponta de basófia, não eram de modo algum ofensivas. Não era um homem simpático: suas feições muito grosseiras, os olhos muito próximos um do outro, orelhas demasiado salientes, e lábios excessivamente finos. Mas tinha um encanto inegável, possuindo reações mentais rápidas. Certamente não era um intelectual e, mais tarde, quando conheci sua mãe, verifiquei imediatamente que os traços hereditários lhe tinham sido legados pelo lado materno.

— Somos apenas nós cinco para o almoço, Vance — observou calmamente. — O meu velho está na Universidade remexendo em seus tubos de ensaio e bicos de Bunsen; a Mama está divertindo-se à grande, fingindo-se doente, com médicos e enfermeiras correndo como loucos para cá e para lá, arrumando seus travesseiros e acendendo-lhe os cigarros. Mas Pop Hammle virá; é uma ave bastante rara, mas boa praça; e nós também seremos amolados pelo meu amado primo Woody que tem a fronte de alabastro e o coração de um esquilo. Vance, você conhece Swift, eu creio. Se me recordo bem, vocês uma vez passaram toda uma noite aqui discutindo sobre o verde Ming. Um chato divertido, esse Woody.

Meditou um instante fazendo uma careta:

— Não posso conceber como é que ele se adapta à família. Papai e Mamãe parecem gostar dele excessivamente, azar o dele, talvez. Ou talvez ele seja o tipo de rapaz sério, sensato que eles gostariam que eu fosse. Não desgosto de Woody, mas temos pouquíssimas coisas em comum, exceto cavalos. Só tem que, para o meu gosto, ele leva suas apostas demasiadamente a sério: bem, ele não tem muito dinheiro, e suas perdas e ganhos significam muito para ele. Naturalmente, no final estará falido, mas eu duvido que venha a fazer muita diferença para ele. Meus queridos pais, pelo menos um deles, alisarão sua fronte com uma das mãos, enquanto com a outra encherão seus bolsos. Se eu viesse a quebrar em conseqüência deste vício por cavalos, eles me diriam para tratar de ir dando o fora e arranjar trabalho.

 

 

 

 

 

 

 

Riu de bom grado, mas com um certo laivo de amargura.

— Mas, puxa vida! Vamos entornar um copo antes da comida.

Apertou um botão perto do arco que dava para o salão e um mordomo muito corpulento e correto apareceu com uma bandeja de prata guarnecida com garrafas, copos e gelo.

Vance estivera disfarçadamente observando Garden durante aquele incoerente recital de intimidades domésticas. Pude ver que ele estava tanto desnorteado como aborrecido com as confidencias: eram de um mau gosto evidente. Depois de servidas as bebidas, Vance voltou-se friamente para ele: — Diga, Garden, — perguntou de um modo casual — para que todo esse mexerico doméstico? Você sabe, realmente, isso não se costuma fazer.

— Minha rata social, velho — desculpou-se prontamente Garden. — Mas eu queria que você compreendesse a situação para que pudesse ficar à vontade. Sei que você detesta mistérios e é bem possível que algumas coisas engraçadas aconteçam aqui esta tarde. Se você estiver familiarizado com o ambiente, elas não o incomodarão tanto.

— Muitíssimo grato e tudo o mais — murmurou Vance — talvez eu compreenda a sua idéia.

— Nas duas últimas semanas, Woody vem agindo de uma maneira estranha — continuou Garden — como se uma tristeza secreta estivesse roendo o seu espírito. Parece mais pálido que nunca. De repente torna-se mal-humorado e desatento, sem nenhuma razão aparente. Quero dizer que ele age como se fosse um lunático. Talvez esteja apaixonado. Mas ele é um pateta muito fechado. Ninguém jamais saberá, nem mesmo o objeto de sua afeição.

— Algum sintoma psicopático específico? — perguntou Vance brincando.

— Na-ão — Garden apertou os lábios e franziu a testa pensativamente. — Mas ele pegou uma mania curiosa de subir para o terraço imediatamente após ter feito uma grande aposta e lá fica sozinho até que seja comunicado o resultado do páreo.

— Nada de muito extraordinário nisso — Vance fez um gesto de protesto. — Muitos jogadores são assim, você sabe. O elemento emocional, entende? Não suportam §er observados quando chega o resultado. Têm medo de desabar. Preferem recompor a aparência antes de enfrentar a multidão. Simples sensibilidade. É, é isso. Especialmente se o resultado da aposta significa muito para eles... Não, não... Eu não diria que o fato de seu primo retirar-se para o terraço em tais momentos de tensão seja digno de nota, depois de tudo o que você contou a seu respeito. Na realidade é bastante lógico.

— Você provavelmente está certo — admitiu Garden com relutância — mas eu gostaria que ele apostasse com moderação em vez de se atirar de cabeça, como um louco, cada vez que ele se entusiasma por um cavalo.

— Por falar nisso — perguntou Vance — por que você espera especialmente que haja estranhas ocorrências esta tarde?

Garden sacudiu os ombros.

— O fato é que — explicou após uma pequena pausa — Woody vem tendo pesadas perdas ultimamente e hoje é o dia do Grande Prêmio Rivermont. Tenho o pressentimento de que vai botar até o seu último dólar em Equanimity, que, indubitavelmente, é o seu favorito... Equanimity — bufou, com indisfarçável desprezo. — Aquele pangaré cerqueiro! Provavelmente o segundo grande cavalo dos tempos modernos, mas, de que serve? Quando ele entra, está pronto para ser desclassificado. Tem madeira no cérebro: é louco por cercas. Ponham uma cerca no meio da pista, a uma milha de distância, sem barreiras à direita ou à esquerda, e ele é bem capaz de cobrir a distância em minuto e meio, fazendo com que Jamestown, Roamer e Wise Ways pareçam aleijados*. Teve que ceder a vitória para Vanderveer no Youthful Stakes. Em Bellaire, ele cortou a frente de Persian Bard, em direção à cerca; e foi desclassificado pela mesma razão no Colorado, entregando o páreo para Grand Score. No Prêmio Urban, tentou o mesmo mergulho para a cerca, resultando na vitória de Roving Flirt por meia cabeça... Como se pode saber como Equanimity vai comportar-se? Não é mais um cavalo novo, tendo perdido ao todo dezoito páreos. Hoje, ele vai competir com alguns potros duros, alguns dos maiores corredores nacionais e estrangeiros. Eu diria que ele é um azar e, no entanto, sei que esse maluco do meu primo vai arriscar nele tudo o que possui. — E Floyd ergueu o olhar solenemente: — E isto, Vance, significa problemas, se Equanimity não vencer. Será um tremendo golpe. Faz uma semana que estou sentindo a coisa se aproximando. Tenho estado preocupado. Para dizer a verdade, estou satisfeito por você ter escolhido este dia para vir jogar conosco.

 

 

* Esses três cavalos eram os melhores, com diferenças de fração de segundo para o recorde de Jack High na milha de Belmont.

 

 

 


Vance, que estivera ouvindo atentamente e observando Garden bem de perto enquanto falava, caminhou até à janela, onde ficou a fumar pensativamente com os olhos em Riverside Park, situado 30 andares abaixo.

— Situação muito interessante — comentou por fim. — De um modo geral, concordo com o que você diz sobre Equanimity. Mas acho que está sendo muito rigoroso; além disso, não estou muito convencido de que seja um pangaré cerqueiro só porque tem uma paixão imoderada pelos paus. Equanimity sempre teve pés rachados, com uma ou duas fendas e, em conseqüência disse, freqüentemente perde as ferraduras. Ainda por cima, teve uma perna direita muito prejudicada e que, quando começou a doer, no final de um páreo bastante duro, obrigou-o a ir de encontro à cerca. Mas é um grande cavalo. Faz sempre o que o jóquei exige, em qualquer percurso e tipo de pista. Aos dois anos de idade, foi o vencedor de sua classe, aos três já apresentava problemas com uma das patas e só três vezes tomou a dianteira. Aos quatro anos, voltou de pata nova e ganhou dez corridas importantes. O que há de notável em Equanimity é que ele tanto podia sair disparado e ganhar o Prêmio Bill Daly, como podia vir lá de trás e ganhar na reta final. No Prêmio Futurity, quando ele se manteve na traseira e entrou na reta final em último lugar, perdeu duas ferraduras e, apesar disso, ultrapassou Grand Score e Sublimate para vencer disparado. Era uma pata doente que o impedia de ser o mais notável campeão.

— Bem, e daí? — retrucou dogmaticamente Garden. — Desculpas são fáceis de se achar e sei, como você afirma, ele tem uma pata doente, aí está mais uma razão para não se jogar nele.

— Exatamente — concordou Vance. — Eu próprio não gastaria um centavo com ele neste páreo. Ontem à noite, depois que falei com você, passei algum tempo estudando os prognósticos e resolvi deixar Equanimity de lado na corrida de hoje. Meu sistema de fazer apostas é, sem dúvida alguma, tão idiota quanto qualquer outro, mas não levo fé nele.

— Que cavalo prefere você? — perguntou Garden interessado.

— Azure Star.

— Azure Star! — Garden parecia tão desdenhoso quanto admirado. — Ora, ele é praticamente um azar. Pagará 12 ou 15 por 1. Dificilmente se encontrará no país um selecionador que lhe dê uma oportunidade. Um ex-saltador dos pântanos da Irlanda! Suas pernas estão tão cansadas de saltar que agora tem dificuldade em regular a andadura. Ainda mais para a milha e quarto de hoje! Impossível! Pessoalmente, prefiro arriscar meu dinheiro em Risky Lad. Aí está um cavalo com grandes possibilidades.

— Risky Lad não merece crédito — disse Vance. — Azure Star derrotou-o facilmente este ano em Santa Anita. Risky Lad entrou liderando na reta final e se cansou, terminando em quinto lugar. E ele certamente não correu uma boa milha na mesma pista quando chegou novamente em quinto lugar num páreo de sete. Se bem me recordo, ele decepcionou no Clássico do ano passado. Sua resistência é muito instável, no que me parece...

Vance suspirou e sorriu: — Bom, bom, chacun à son cheval... Mas como você estava dizendo, a situação psicológica aqui nas vizinhanças deixou você preocupado. Aposto que há uma atmosfera super-carregada aqui neste encantador ninho de águias.

— E isso mesmo — respondeu Garden quase com impaciência. — Super-carregada é a expressão exata. Quase que diariamente a Mama pergunta: "Como está Woody?", e à noite, quando o velho volta do seu laboratório ele me cumprimenta de um modo meio esquerdo: "Alô, meu rapaz, você viu Woody hoje?"... Agora eu, poderia morrer coberto de lepra e nem sequer suscitaria a menor preocupação nos meus ancestrais mais próximos.

Vance não comentou essas palavras. Ao contrário, perguntou com uma voz particularmente sem expressão: — Você considera esta recente hipertensão no ambiente doméstico como sendo inteiramente devido aos apuros financeiros do seu primo e em sua determinação de arriscar tudo o que tem nos cavalos?

Garden começou a erguer-se e então deixou-se cair novamente na poltrona. Depois de tomar um outro gole, limpou a garganta.

— Não, bolas! — respondeu com veemência. — E isto é outra coisa que me aborrece. Uma boa parte das chateações que temos tido ultimamente são por causa das maluquices do Woody; mas há outros estranhos animais invisíveis saltando para cima e para baixo pelos corredores. Não posso imaginar o que seja. A doença da Mama também não tem razão de ser, e o Dr. Siefert age como um pomposo Buda quando eu abordo o assunto. Cá entre nós, eu não creio que ele próprio saiba o que fazer. E há ainda encrencas com a gang que se reúne aqui quase todas as tardes para jogar nas corridas. São rapazes corretos, sem dúvida, pertencem ao "nosso meio", como se costuma dizer, e são oriundos de ambientes eminentemente respeitáveis, se bem que...

Nesse instante, ele ouviu o som de passos leves aproximando-se no corredor e sob o arco que constituía a separação entre o vestíbulo e a sala de estar, surgiu um pálido e delgado rapaz, de aproximadamente 30 anos, a cabeça enterrada nos ombros levemente encurvados e com uma expressão melancólica e ressentida em seu rosto triste e sensível. Um pince-nez de lentes grossas aumentava ainda mais a impressão de fraqueza física. Garden acenou alegremente para o recém-chegado.

— Salve, Woody. Bem na hora para um gole antes do almoço. Você conhece Vance, o eminente perdigueiro; e este é o Sr. Van Dine, seu paciente e reservado cronista.

Woody Swift tomou conhecimento de nossa presença de um modo tenso, porém agradável, e distraidamente apertou a mão do primo. Em seguida, apanhou a garrafa de Bourbon, serviu-se de uma dose dupla que bebeu de uma só vez.

— Santo Deus! — exclamou Garden bem-humorado. — Como você mudou, Woody!... Quem é a dama do momento?

Os músculos do rosto de Swift contorceram-se como se ele tivesse tido uma dor repentina: — Deixe-se de tolices, Floyd! — respondeu irritado. Garden deu de ombros com indiferença.

— Desculpe. Qual é a sua preocupação de hoje, além de Equanimity?

— Isto já é mais que suficiente para um dia — Swift conseguiu dar um sorriso encabulado; depois acrescentou com agressividade: — Não posso perder de jeito algum — e serviu-se de uma outra dose. — Como vai Tia Marta?

Garden entrecerrou os olhos.

— Vai muito bem. Nervosa como o diabo esta manhã e fumando um cigarro atrás do outro. Mas está-se levantando. Provavelmente virá mais tarde para arriscar um ou dois palpites nos cavalinhos saltitantes...

A esta altura chegou Lowe Hammle. Era um homem corpulento, baixo, cerca de 50 anos, com uma cara redonda e corada, cabelo grisalho cortado rente. Usava terno xadrez preto e branco, uma camisa cinzenta, uma gravata borboleta de um verde brilhante, um colete cor de chocolate com botões de couro e botinas marrom com solas demasiadamente grossas.

— O mestre dos caçadores! — saudou-o Garden efusivamente.

— Aqui está seu uísque com soda. E aqui também estão o Sr. Philo Vance e o Sr. Van Dine.

— Encantado, encantado! — exclamou calorosamente Hammle avançando em nossa direção. Estendeu a mão efusivamente para Vance. — Já faz bastante tempo desde que o vi pela última vez, Sr. Vance... vejamos... Ah, sim. Broadbank. O senhor estava caçando comigo naquela manhã. Que tombo feio levou. Eu bem o avisei de início que aquele cavalo não sabia vencer as cercas. Mas o senhor estava lá na hora do sacrifício, puxa vida! Lembra-se?

— Perfeitamente. Bela caçada. Uma bela raposa. Nunca esperei que o senhor a desalojasse daquele fosso para atirá-la aos dentes da matilha depois de todo o prazer que ela nos proporcionou*. — A atitude de Vance era glacial, evidentemente ele não gostava do indivíduo; voltou-se imediatamente para Swift e começou a tagarelar alegremente sobre o grande prêmio do dia. Hammle tratou de ocupar-se com o copo de uísque.

 

 

 

*Nos EUA, onde as tocas não são obstruídas, de cada vinte raposas apenas uma é sacrificada e é muito mal visto e até mesmo considerado como falta de espírito esportivo obrigar uma raposa a sair da toca em que se refugiou para matá-la. Mas isto se faz comumente na Inglaterra, por diversas razões. Eventualmente, um mestre norte-americano imita os ingleses com o fim de vangloriar-se de que matou a raposa e não apenas pensou tê-lo feito.

 

 

 


Pouco depois, o mordomo anunciou o almoço. A refeição foi pesada e insípida, assim como o vinho era de uma safra duvidosa. Vance estava bem certo no seu prognóstico.

A conversa foi quase que inteiramente dedicada aos cavalos, à história do turfe, o Grande Prêmio Nacional, e as possibilidades dos vários concorrentes ao Prêmio Rivermond. Garden foi dogmático, porém especialmente agradável e informativo ao externar suas opiniões: ele havia feito um cuidadoso estudo dó turfe moderno e, além disso, tinha uma memória surpreendente.

Hammle era loquaz e amável, e voltava ao assunto das velhas glórias do turfe e das famosas corridas empatadas: Attila e Acrobat no Prêmio Travers; Springbok e Preakness na Taça Saratoga, St. Gatien e Harvester no Derby Inglês, Pardee e Joe Cotton em Sheepshead Bay, Kingston e Yum-Yum em Gravesen, Los Angeles e White no Derby Letônia*, Domino e Dobbins em Sheepshead Bay, novamente Domino e Henri de Navarre em Gravesend, Arbuckle e George Kessler no Hudson Stakes, Sysonby e Race King no Prêmio Metropolitano, Macaw e Nedana em Aqueduct e Morshion e Mate, também em Aqueduct. Ele falou das grandes quedas nas pistas — tanto aqui como no estrangeiro — e da remota conquista do Derby de Epson por um desconhecido sem nome, denominado "Fidget Colt"; da única vitória de Amato sobre Grey Momus, quarenta e um anos depois; da feliz vitória de Aboyeur em 1913, quando Craganour foi desclassificado; e da recente vitória de 5 de abril. Discutiu também o Derby de Kentucky — o inesperado sucesso de Day Star como resultado do fraco desempenho apresentado por Himyar, e o trágico fracasso de Proctor Knott. E falou também da grande estratégia de Snapper Garrison em trazer para casa o Boundless no Derby da Feira Mundial de 1893, e as duas felizes carreiras de Plucky Play quando venceu Equipoise no Prêmio Arlington e sobre Faireno no Hawthorne Gold Cup. Ele mencionou a fatal corrida de Coltiletti montando Sun Beau em Água Caliente, perdendo a carreira para Mike Hall. Tinha um fundo de informações históricas e, apesar de seus preconceitos, conhecia bem o assunto.

 

 

 

* Lucky Baldwin, o proprietário de Los Angeles, insistiu em uma disputa final (que em 1932 era privilégio dos proprietários de cavalos empatados em primeiro lugar) e Los Angeles venceu.

 

 

 


Swift, nervoso e um tanto impaciente, tinha pouca coisa a dizer e, embora parecendo estar atento, deu-me a impressão que outros assuntos mais importantes o estavam preocupando. Comeu pouco e bebeu vinho demais.

Vance contentou-se principalmente em ouvir e estudar os outros componentes da mesa. Quando por fim falou, foi para lamentar alguns grandes cavalos que recentemente haviam sido sacrificados por motivo de acidente. Black Cold, Springstell, Chase Me, Dark Secret e outros. Comentou a trágica e inesperada morte de Victorian, após sua corajosa recuperação e o acidental envenenamento do grande australiano Phar Lap.

Estávamos chegando ao fim do almoço quando uma mulher alta e bem feita de corpo, aparentemente saudável, e que não parecia ter mais de quarenta anos (embora mais tarde eu viesse a saber que há muito passara dos cinqüenta), entrou na sala. Usava um tailleur, uma estola de raposa prateada e um chapéu de feltro preto.

— Alô — exclamou Garden. — Julguei que ainda estivesse na cama. Qual a razão dessa explosão de saúde e energia?

E então apresentou-me sua mãe; Vance e Hammle já eram seus conhecidos.

— Estou cansada de ficar na cama — disse ela para seu filho, depois de acenar cortesmente para os outros. — Agora, rapazes, estejam à vontade. Vou fazer umas compras; passei aqui apenas para ver se tudo estava em ordem... Acho que vou tomar um creme de menthe frappée, já que estou aqui.

O mordomo colocou uma cadeira para ela ao lado de Swift e dirigiu-se à copa.

A Sra. Garden tocou levemente o braço do sobrinho: — Como vão as coisas, Woody? — perguntou-lhe com ternura, e sem esperar resposta, voltou-se novamente para Garden. — Floyd, quero que aposte para mim no grande páreo de hoje, caso eu não volte a tempo.

— Diga o nome do seu "azar" — sorriu Garden.

— Grand Score, ponta e placê; os cem do costume.

— Fechado, Mama, — Garden olhou sardonicamente para o primo — apostas menos inteligentes que esta já foram feitas aqui nos últimos tempos... Está certa de que não quer Equanimity, Mama?

— As chances são muito desfavoráveis — replicou a Sra. Garden, com um sorriso perspicaz.

— No jornal de ontem, ele estava cotado a cinco para dois.

— Mas não vai ficar assim — havia autoridade e segurança no tom e nas maneiras daquela mulher. — E eu terei oito ou dez por um com Grand Score. Ele foi um dos maiores nos seus primeiros tempos e a velha chama ainda pode existir, se ele não mancar como aconteceu no mês passado.

— Absolutamente certa — riu Garden. — Você está no páreo com cem para placê e vencedor.

O mordomo trouxe o creme de menthe; a Sra. Garden tomou-o e ergueu-se.

— Agora vou indo — anunciou prazenteiramente; deu uma pancadinha nas costas do sobrinho: — Cuide-se bem, Woody... Boa tarde, senhores.

E saiu com um passo firme e masculino.

Após um meloso baba au rhum, Garden abriu caminho em direção à sala de estar e o mordomo seguiu-o em busca de instruções.

— Sneed — ordenou Garden — prepare o ambiente como de costume.

Olhei para o relógio elétrico em cima da lareira: eram exatamente uma hora e dez minutos da tarde.

 

 

 

 

III

 

 

As Corridas de Rivermont

 

 


(Sábado, 14 de abril — 13:10 horas)

 

 

"Preparar o ambiente" era processo relativamente simples, porém uma operação mais ou menos misteriosa para qualquer pessoa não familiarizada com o objetivo da coisa. De um pequeno armário embutido, Sneed fez sair uma pesada estante de madeira, montada sobre rodinhas, medindo cerca de setenta centímetros. Sobre a estante colocou um telefone ligado a um alto-falante que mais parecia um pequeno aparelho de rádio. Como vim a saber mais tarde, tratava-se de um amplificador especialmente feito de modo a permitir que os presentes ouvissem perfeitamente tudo o que estava sendo transmitido pelo telefone.

Em um dos lados do amplificador estava instalada uma pequena caixa de metal com uma chave de duas posições. Quando voltada para cima, a chave cortava o som na outra extremidade da linha, sem interferir com a ligação; e abaixando-se a chave, voltava a voz novamente.

— Eu costumava usar fones individuais para a turma — contou-nos Garden, enquanto Sneed empurrava a estante de encontro à parede ao lado do arco e ligava as extensões dos fios nas tomadas instaladas no rodapé.

Em seguida o mordomo trouxe uma bem feita mesa de jogo, portátil, que abriu ao lado da estante. Sobre a mesa, colocou um outro telefone de tipo francês, ou seja, manual. Esse aparelho, de cor cinza, foi ligado numa outra tomada no rodapé. O telefone cinza não foi ligado ao outro dotado de um amplificador, mas tinha uma linha independente.

Após instalar e testar os dois aparelhos, Sneed trouxe mais quatro mesas de jogar e distribuiu-as por toda a sala de estar. Ao lado de cada mesa, ele abriu duas cadeiras de armar. Depois, de uma pequena gaveta escondida na estante, retirou um grande envelope de papel pardo, que evidentemente viera pelo correio e, rasgando um dos lados, dele extraiu um certo número de grandes folhas impressas, de aproximadamente 0,23 x 0,40 cm. Havia quinze dessas folhas que na linguagem do turfe são chamadas de fichas; depois de arrumá-las, distribuiu três em cada mesa. Dois lápis bem apontados, uma caixa de cigarros bem provida, fósforos e cinzeiros completavam o equipamento de cada mesa. Havia um item extra na mesa onde estava o telefone cinzento: um livro-registro com marcas de ter sido muito folheado.

A última tarefa de Sneed em sua função de "preparar o ambiente" foi abrir as portas de um amplo e baixo móvel situado em um dos cantos do salão, e que revelou uma miniatura de bar.

Uma palavra a respeito das fichas; essas folhas eram praticamente uma duplicata do programa que se recebe num hipódromo, com a diferença de que, em lugar de estar cada páreo em uma página separada, todos os páreos corridos em uma mesma pista estavam impressos um a um, numa só página. Naquele mês havia apenas três pistas em funcionamento e as três fichas dispostas em cada mesa eram o equivalente dos três programas correspondentes. Cada uma das colunas impressas abrangia uma corrida, dando a posição dos cavalos*, o nome de cada inscrição e o peso de cada um. No alto de cada coluna estava o número e a distância de cada páreo e embaixo havia linhas em branco para anotações dos jogadores. À esquerda de cada coluna havia um espaço para os palpites; e entre os nomes dos cavalos havia espaço suficiente para escrever os nomes dos jóqueis, à medida que iam sendo anunciados.

 

 

*Nas "fichas" do Estado de Nova York, entretanto, os números não correspondem às posições no starting-gate, enquanto que aqui essas posições são sorteadas pouco antes do início das corridas, exceto nas corridas onde há apostas.

 

 


Depois de ter arrumado tudo, Sneed preparava-se para deixar a sala, mas hesitou de maneira bem significativa. Garden sorriu amplamente e, sentando-se à mesa onde estava o telefone cinza, abriu o pequeno registro à sua frente e pegou um lápis.

— Está bem, Sneed, — disse — em que cavalo você quer perder hoje o seu dinheiro ganho tão facilmente?

Sneed tossiu discretamente.

— Se não se incomodar, senhor, eu gostaria de arriscar cinco dólares em Roving Flirt.

Garden fez uma anotação no livro.

— Está bem, Sneed, você fica com cinco em Roving Flirt.

Com um "obrigado, senhor" em tom de escusa, o mordomo desapareceu na sala de estar. Depois que ele saiu, Garden olhou para o relógio e apanhou o telefone ligado ao amplificador.

— O 19 páreo de hoje — disse — é às 14:30 e eu acho melhor fazer a ligação já. Lex* vai entrar dentro de alguns minutos; e o pessoal gostará de saber tudo e mais alguma coisa ao chegar com suas costumeiras grandes esperanças e ilusões.

 

 

 

* Alexis Flint era o locutor da central de informações.

 

 


Levantou o fone do gancho e discou um número. Após uma pausa, falou no transmissor: — Alô, Lex. B.2-9-8. Estamos à espera das informações. — E deixando o fone sobre a estante, moveu a chave para frente.

Uma voz nítida e clara fez-se ouvir no amplificador: "O.K., B-2-9-8."

Depois houve um estalido seguido de diversos minutos de silêncio. Finalmente, a mesma voz começou a falar: "Fiquem todos a postos. Hora exata: 1 hora, trinta minutos e quinze segundos. Três pistas hoje, na seguinte ordem: Rivermont, Texas e Cold Springs. Exatamente como estão nas fichas. Aí vão: Rivermont, tempo claro, pista leve. Claro e leve. Primeira partida, 2:30. E agora, seguindo a linha. 1º páreo: 20, Barbour; 4, Gates; 5, Lyon; 3, Shea; 2, forfaits; 3, Denham; 20, Z. Smythe. Eu disse S-m-y-t-h-e-; 10, Gilly; 10, Deel, 15, Carr. E o 2º páreo: 4, Elkind; 20, Barbour; 4, Carr; 20, Hunter; 10, Shea; forfait nº 6; 20, Gedney e com o peso de 116; forfait nº 8; 3 a 5 Lyon; 4, Martinson. E o 3? páreo: O favorito é 10, com Huron; dois forfaits; 20, Denham; 20, J. Briggs — quer dizer Johnny Briggs; 20, Hunter; 4, Gedney; paga o mesmo, Deel; 20, Landseer. E agora o 4? páreo, o Prêmio Rivermont. O favorito é o 8, com Shelton; 15, Denham; 10, Redman; 6, Baroco; 20, Gates; 20, Hunter; 6, Cressy; 5, Barbour; 12, J. Briggs — isto é, Johnny Briggs; 5, Elkind; 4, Martinson; forfait ri? 12; 20, Gilly; 2/12, Birken. E o 5?: 6, Littman; 12, Huron"...

A voz incisiva continuou com os palpites, os jóqueis os forfaits das outras corridas em Rivermont. À medida que iam sendo anunciados, Garden preenchia suas fichas rapidamente. Quando a última linha do páreo final de Rivermont foi preenchida, houve uma ligeira pausa. Depois continuaram as informações: "Agora vamos para o Texas. No Texas, tempo encoberto e pista pesada. Encoberto e pesada. No 1?: 4, Burden; 10, Lansing..."

Garden inclinou-se e desligou a chave do amplificador e fez-se um silêncio na sala.

— Quem está ligando para o Texas? — observou negligentemente, erguendo-se da cadeira e espreguiçando-se. — De qualquer forma, aqui ninguém joga naqueles pangarés. Mais tarde pegarei as informações de Cold Springs. Se eu não o fizer, certamente alguém virá perguntar, só para contrariar. — Virou-se para o primo: — Por que você não leva Vance e o Sr. Van Dine para cima e mostra-lhes o jardim? Eles podem estar interessados em seu retiro solitário no telhado, onde você vai ouvir o seu destino — acrescentou com um certo sarcasmo bem humorado. — Sneed, provavelmente, já arrumou tudo para você.

Swift ergueu-se com vivacidade.

— Tremendamente honrado com a oportunidade — retrucou asperamente. — Sua atitude hoje me aborrece bastante, Floyd. — E dirigiu-se através do vestíbulo e escada acima até o terraço, seguido por mim e Vance. Hammle, que se instalara em uma poltrona, armado de um uísque com soda, ficou para trás com o nosso anfitrião.

A escada era estreita e semicircular e começava no vestíbulo perto da porta de entrada. Olhando lá de cima em direção à sala de estar, notei que parte alguma da sala podia ser vista da extremidade superior da escada. Naquela ocasião fiz a observação, descuidadamente, mas agora eu o menciono aqui porque o fato representou um papel definitivo nos trágicos acontecimentos que viriam a seguir.

 

 

 

 

 

 

 

No topo da estreita escada, viramos à esquerda em um corredor, com pouco mais de um metro de largura, em cuja extremidade havia uma porta que conduzia a uma larga sala: a única do terraço.

O espaçoso e bem decorado estúdio, com amplas janelas nos quatro lados, era usado pelo professor Garden, segundo informação de Swift, como biblioteca e laboratório experimental.

Próximo à porta desta sala, na parede esquerda do corredor, havia uma outra, que, eu soube mais tarde, dava para um pequeno depósito, construído pelo professor para guardar seus documentos.

Na metade do corredor, à direita, havia uma outra porta, que dava para o terraço. Esta porta fora aberta de par em par porque fazia um tempo ótimo. Swift precedeu-nos em um dos mais lindos jardins de cobertura que vi em toda a minha vida. Cobria uma área de cerca de treze metros quadrados e estava situado exatamente em cima da sala de estar, da saleta e do hall de entrada. No centro, havia um lindo lago de pedras. Ao longo da baixa amurada de tijolos havia fileiras de alfenas e sempre-vivas. Do outro lado, havia canteiros de flores, onde os crocus, tulipas e jacintos já estavam floridos, numa explosão de cores. A parte do jardim mais próxima ao estúdio era coberta por alegre toldo fixo, e diversos e confortáveis móveis de jardim estavam colocados à sua sombra.

Passeamos tranqüilamente pelo jardim, fumando. Vance parecia profundamente interessado em duas ou três sempre-vivas de uma espécie rara, e conversava despreocupadamente sobre o assunto. Finalmente virou-se, caminhou em direção ao toldo e sentou-se em uma cadeira voltada para o rio. Swift e eu fomos ao seu encontro. A conversa era desconexa. Swift era um homem difícil de se conversar e, à medida que o tempo passava, ele se tornava cada vez mais distrait. Depois de algum tempo, levantou-se nervosamente e caminhou até à outra extremidade do jardim. Apoiando os cotovelos na amurada, ele olhou durante diversos minutos para o Riverside Park lá embaixo; depois, com um movimento brusco e repentino, quase como se tivesse sido atingido por alguma coisa, endireitou-se e voltou até nós. Deu uma olhadela preocupada para o relógio.

— Acho melhor irmos descendo agora — disse. — Dentro em pouco estarão saindo para o primeiro páreo.

Vance deu um olhar de aprovação e levantou-se.

— Que me diz do seu sanctum sanctorum mencionado por seu primo?

— Ora, isto... — Swift forçou um sorriso embaraçado. — É a poltrona vermelha lá de encontro à parede, próximo à mesinha... Mas eu não sei por que Floyd precisa andar falando por aí. O pessoal lá embaixo sempre me goza quando perco, e isso me irrita. Prefiro mil vezes estar sozinho quando chegam os resultados.

— É perfeitamente compreensível — concordou Vance com simpatia.

— Vocês estão vendo — prosseguiu Woody quase pateticamente — para ser franco eu jogo nos cavalos pelo dinheiro; os outros lá embaixo podem dar-se ao luxo de sofrer grandes perdas, mas acontece que eu estou precisando do dinheiro agora. Evidentemente, sei que essa é uma maneira cretina de tentar ganhar dinheiro. Mas, ou você ganha tudo de uma vez, ou perde tudo de uma vez. Então, qual é a diferença?

Vance dirigiu-se à pequena mesa onde estava um telefone que, em lugar do receptor habitual, tinha aquilo que é chamado de fone de cabeça, isto é, um fone em forma de disco plano preso a uma haste curva de metal que passava sobre a cabeça.

— Seu retiro está bem equipado — comentou Vance.

— Ah, está! Isto é um extensão do telefone informativo lá de baixo; e há também uma tomada para rádio e outra para uma chapa elétrica. E refletores. — Ele mostrou-os na parede do estúdio. — Todo o conforto de um hotel, acrescentou com sarcasmo.

Tirou o fone do gancho e, ajustando a haste metálica na cabeça, ficou um instante escutando.

— Nada de novo em Rivermont, por enquanto — murmurou. Removeu o fone com uma impaciência nervosa e atirou-o sobre a mesa. — De qualquer forma, é melhor descermos. — E caminhou em direção à porta que nos levara ao jardim.

Quando chegamos ao salão, encontramos dois recém-chegados: um homem e uma mulher, sentados a uma das mesas, examinando as fichas e fazendo anotações. Vance e eu fomos apresentados sem maiores cerimônias.

O homem era Cecil Kroon, aparentando trinta e cinco anos, imaculadamente vestido e lustroso, com feições suaves, regulares e um bigode muito fino e encerado. Seu cabelo era louro e os olhos de um frio azul de aço. A mulher, cujo nome era Madge Weatherby, tinha aproximadamente a mesma idade de Kroon, alta e esbelta, com uma marcante tendência teatral, tanto em sua maneira de vestir-se como em sua maquilagem. As faces estavam fortemente coloridas e os lábios, escarlate. As pálpebras, carregadas de sombra verde; as sobrancelhas haviam sido inteiramente depiladas e substituídas por um fino traço de lápis. Embora um tanto espetacular, não era desprovida de atrativos.

Hammler mudou-se de sua poltrona para uma das mesas de jogo na extremidade da sala, próximo à entrada, e estava ocupado em conferir os forfaits da tarde.

Swift foi para a mesma mesa e, fazendo um sinal à Hammle, sentou-se à sua frente. Tirou os óculos, limpou-os cuidadosamente, pegou uma das fichas e olhou os páreos anotados.

Garden ergueu os olhos em nossa direção, segurando junto ao ouvido o receptor do telefone preto.

— Escolha uma mesa, Vance, e veja se seus cálculos estão perfeitos. Dentro de dez minutos eles se estarão encaminhando para o alinhamento do primeiro páreo e daqui a pouco vamos receber novas, informações.

Vance dirigiu-se à mesa mais próxima de Garden e, sentando-se, tirou do bolso uma folha de papel onde estavam as anotações feitas na véspera, com as fichas das atuações anteriores dos cavalos inscritos naquele dia. Ajustou o monóculo, acendeu um cigarro e pareceu absorver-se naquilo. Na realidade, entretanto, ele estava observando com mais atenção os ocupantes da sala que os dados turfísticos.

— Agora falta pouco — anunciou Garden, ainda com o receptor no ouvido. — Lex está repetindo as informações de Cold Springs e Texas para alguns retardatários.

Kroon dirigiu-se ao pequeno bar e preparou duas bebidas que levou de volta à sua mesa, colocando uma delas diante da Srta. Weatherby.

— Diga-me Floyd — gritou para Garden — Zalia vem hoje?

— É claro — respondeu Garden. — Hoje de manhã quando telefonou, ela estava toda agitada. Cheia de palpites. Estourando com barbadas diretamente de treinadores, jóqueis e cavalariços e toda espécie de informações malucas.

— Então, que é que tem isso? — fez-se ouvir uma voz feminina lá embaixo no vestíbulo; e logo depois uma linda e elegante garota aparecia sob o arco, as mãos apoiadas em suas cadeiras musculosas de rapaz. — Cheguei à conclusão de que posso descobrir sozinha os meus ganhadores, então por que deixar que outras pessoas o façam por mim? Alô, pessoal! — exclamou num cumprimento geral. — Mas, Floyd, meu velho, tenho realmente uma barbada para o primeiro de Rivermont hoje. E o palpite não vem de um cavalariço; foi um dos garçons, um amigo de papai. E eu vou cobrir aquele pangaré.

— Está bem, Cara-de-Anjo — riu Garden. — Aproxime-se.

Ela deu um passo à frente mas hesitou momentaneamente ao deparar com Vance e comigo.

— Ah, por falar nisso, Zalia, — Garden largou o receptor e levantou-se — deixe-me apresentar-lhe o Sr. Vance e o Sr. Van Dine... Srta. Graem.

A moça deu um passo atrás, titubeando dramaticamente e ergueu os braços acima da cabeça em fingido pânico: — Que os céus me protejam! — exclamou. — Philo Vance, o detetive! Que é isso, uma batida?

Vance curvou-se delicadamente: — Não tenha medo, Srta. Graem — disse ele sorrindo. — Sou apenas mais um dos rapazes do crime. E, como pode ver, estou arrastando comigo o Sr. Van Dine.

A garota atirou-me um olhar curioso: — Mas isto não é justo para com o Sr. Van Dine. Que seria do senhor sem ele?

— Reconheço que eu seria anônimo e ignorado — retrucou Vance. — Mas seria talvez um homem mais feliz: um espírito obscuro, porém livre. E nunca teria sido a inconsciente inspiração da obra poética de Ogden Nash*.

 

 

*Vance referia-se ao famoso refrão de Nash: "Philo Vance merece um chute na pança."

 

 


Zalia Graem sorriu com prazer e depois fez um ar de enfado.

— Foi horrível da parte de Nash fazer aquele jingle — disse. — Pessoalmente, acho o senhor adorável — acrescentou dirigindo-se à mesa desocupada.

Nesse instante, Garden, que estava novamente à escuta, anunciou: — Aí vem as novas informações. Tomem nota, se estiverem interessados.

E ele empurrou para a frente a chave de controle e logo depois voltamos a ouvir a mesma voz no amplificador.

"Saindo para Rivermont e aqui estão as novas informações: 20, 6, 4, 8, para 5, dois forfaits. Quem pediu Texas?...

Garden desligou o amplificador.

— Muito bem pessoal — disse puxando o livro-registro para mais perto. — Que é que vocês estão pensando? Sejam mais rápidos. Faltam só dois minutos para a largada. Alguém vai? Que tal a sua barbada, Zalia?

— Ah, estou nela é claro — respondeu seriamente a Srta. Graem. — E ele está pagando 10 por 1. Eu quero cinqüenta em Topspede para vencedor e... setenta e cinco no placê.

Garden escreveu rapidamente no registro.

— Então você não confia 100% em sua barbada? — gozou ele. — Garantindo-se como sempre... Quem mais?

— Estou apostando em Sara Bellum — falou Hammle — vinte e cinco firmes.

— E eu quero Moondash: vinte em Moondash placê. — Essa aposta foi feita pela Srta. Weatherby.

— Quem mais? É agora ou nunca — disse Garden.

— Põe para mim Miss Construe... cinqüenta para vencedor — disse Kroon.

— E você, Vance? — perguntou Garden.

— Tenho Fisticuffs e Black Revel em condições iguais, por isso vou ficar com o que tem melhores prognósticos, mas não para vencedor. Ponha cem em Black Revel no placê.

Garden voltou-se para o primo: — E você, Woody?

Swift sacudiu a cabeça: — Não jogo neste páreo.

— Guardando tudo para Equanimity, hem? OK. Eu também fico de fora neste páreo — Garden pegou o telefone cinza e discou um número. Alô, Hannix*. Fala Garden... Tudo ótimo. Aqui vai o pedido para o primeiro em Rivermont: Topspede, cinqüenta — zero — setenta e cinco. Sara Bellum, vinte e cinco. Moondash, vinte, placê. Miss Construe, cinqüenta no vencedor. Black Revel, cem no placê. Certo.

 

 

*Hannix era o bookmaker de Floyd Garden.

 

 


Pendurou o fone e desligou o alto-falante. Houve um silêncio e depois: "Eu os tenho no starter, em Rivermont. No starter, Rivermont. Topspede está inquieto. Mudaram-no de lugar... E lá vão eles! Largada em Rivermont às 2 e 32 e meio minuto... Na curva Topspede com um corpo; Sara Bellum, uma cabeça; e Miss Construe... Na metade: Sara Bellum meio corpo; Black Revel, um corpo; e Topspede... Na reta final: Black Revel, um corpo, Fisticuffs, uma cabeça e avançando, e Sara Bellum... O ganhador de Rivermont: Fisticuffs. O vencedor é Fisticuffs, Black Revel é o segundo. Sara Bellum em 3º. Os números são 4, 7 e 3. O vencedor fechou a oito por cinco. Aguardem a confirmação e o resultado do totalizador."


— Bem, bem, bem — gritou Garden. — Foi uma grande corrida para Hannix, com relação a essa turma aqui. Eles entraram bem, como uns anjinhos. Até mesmo os nossos dois ganhadores aqui não agarraram grande coisa. Pop Hammle fez bonito, mas vai ter que deduzir cinqüenta dólares. E Vance provavelmente pegou o mesmo dinheiro no placê de Black Revel... E a sua barbada, Zalia? Minha ingênua criança, você nunca vai aprender?

— Bem, de qualquer forma — protestou a moça, bem-humoradamente — Topspede não estava um corpo à frente no quarto de milha? E ainda estava bem colocado no meio da corrida. Eu estava bem informada.

— Claro — retorquiu Garden. — Topspede fez um nobre esforço mas eu suspeito que ele seja irmão de Morestone e namorado de Nevade Queen*. Provavelmente fará sucesso nos 600 metros em Nursery Course.

 

 

*David Alexander, o cronista de turfe, recentemente escreveu umas linhas sobre esses dois cavalos: "Morestone" disse o Sr. Alexander "pode correr muito rápido até 1.200 metros. Mas além dos 1.200, ele chama a ambulância". Morestone podia largar em tempo recorde. Nada de semelhante havia sido visto desde que tentaram que Nevada Queen fizesse mais de 1/2 milha há alguns anos atrás. Havia dois mistérios com Morestone. Um deles era pomo podia correr tão rápido e o outro como se cansava também tão depressa.

 

 


— E daí? — retrucou Zalia Graem. — Eu ainda sou jovem e cheia de saúde...

A voz no amplificador voltou novamente: "Tudo certo em Rivermont. Partida às 2:32 e 1/2. Vencedor: nº 4, Fisticuffs; em 2º, nº 7, Black Revel; em 3º nº 3, Sara Bellum. O tempo da corrida foi de 1 minuto e 24 segundos... E aqui estão os rateios: Fisticuffs pagou $ 5.60 — 13.70 — $2.90. Black Revel pagou $3.90 e $3.20. Sara Bellum pagou $5.80... Partida para o 2° páreo às 3:05. A ordem: 3, 15, 5, 20, 12, forfait, 15, forfait, 4 para 5, 6... Estão saindo em Cold Springs. E aqui está uma nova informação..."


Garden cortou novamente o amplificador.

— Bem, Vance, — disse — você é o único ganhador no primeiro páreo. Você fez 95 dólares, tudo lançado no livro. E você, Pop, perdeu 2 dólares e meio*.

 

 

* Os rateios são calculados na base de uma aposta de 2 dólares feita na pista, e é paga ali. Portanto, fora da pista, onde o dinheiro apostado não foi realmente entregue, os $ 2 são subtraídos do rateio e o que sobra é dividido por 2 para garantir exatamente o que o cavalo pagou com $1. Aqui no caso, o cavalo de Vance pagou 3.90 para entrar em 2º ou placê. $ 2 subtraídos daí, sobram 1.90, e isto dividido por 2 dá 95 centavos, isto é, na colocação em que Vance apostou nele. Black Revel pagou 95 centavos o dólar. Daí, Vance que apostara 100 dólares no placê, ganhou 95. No caso de Hammle, o cavalo pagou 5.80 em 3° lugar, de modo que os lucros foram 1.90 para o dólar naquela posição. E desde que ele apostou 25 no cavalo que chegou em 3º, ganhou 47.50. Mas ainda precisa deduzir os 25 que jogou no vencedor e os 25 que jogou no 2º. Tendo perdido nos dois casos, isso o deixou com menos 2.50.

 

 


Já que nenhum dos presentes estava interessado nas corridas de Texas ou Cold Springs, havia aproximadamente um intervalo de meia hora entre os páreos. Durante esses intervalos os membros do grupo iam de uma mesa para outra, conversando, discutindo sobre cavalos e deliciando-se na troca de palpites; havia também um considerável movimento de idas e vindas ao bar. De vez em quando Garden pegava o receptor para pôr-se a par do que estava ocorrendo.

Vance circulava entre os grupos, disfarçadamente atento a tudo o que estava acontecendo. Eu podia ver muito bem que ele estava muito menos interessado nas corridas que nas relações humanas e psicológicas dos presentes.

Apesar da animação superficial daquela reunião, eu podia sentir uma sensação de extrema tensão e expectativa; mentalmente, anotei as diversas pequenas ocorrências durante a 1ª hora. Notei, por exemplo, que de vez em quando Zalia Graem reunia-se a Cecil Kroon e Madge Weatherby e entabulava com eles uma conversa séria e à meia voz. Num determinado momento os três dirigiram-se até o estreito balcão que acompanhava o lado nordeste da sala de estar.

Swift alternava uma alegria histérica com depressão e fazia freqüentes viagens até o bar. Sua atitude inconsistente impressionou-me de maneira desagradável; diversas vezes notei que Garden o observava com um interesse agudo.

Um incidente relacionado com Swift impressionou-me grandemente. Eu percebera que, durante todo o tempo em que estavam no salão, Zalia Graem e ele não haviam trocado uma palavra. Uma vez, roçaram um no outro próximo à mesa de Garden e, como que instintivamente, afastaram-se bruscamente. Garden havia meneado a cabeça com irritação e disse: — Vocês dois ainda não se estão falando? Ou isso vai ficar assim para sempre? Por que não se beijam e fazem as pazes deixando que a alegria da reunião seja total?

A Srta. Graem fez como se nada tivesse acontecido e Swift simplesmente deu uma olhadela rápida e indignada para o primo; Garden então sorriu amargamente, dando de ombros.

Hammle manteve sua atitude complacente e jovial durante toda a tarde; porém até ele, por vezes, parecia pouco à vontade, e seu olhar vagava repetidamente de Kroon para a Srta. Weatherby. Uma vez, quando Zalia Graem estava na mesa deles, Hammle para lá se dirigiu e, confiadamente, deu um tapa nas costas de Kroon. A conversa cessou de repente e Hammle preencheu o silêncio repentino com uma anedota sem graça sobre a corrida de Salvator contra o relógio em Monmouth Park, em 1890.

Garden não abandonou seu lugar junto dos telefones e, a não ser por um eventual e furtivo exame de seu primo, pouca atenção deu a seus convidados...

O 2º páreo de Rivermont Park, cuja partida foi dada oito minutos após as 3 horas, trouxe para o grupo resultados melhores que o anterior. Apenas Kroon perdeu. Já a terceira, foi um desastre, pois a maioria havia jogado no favorito Invulnerable, no vencedor; e Invulnerable, embora liderando na reta final, foi ultrapassado e só pegou um terceiro lugar. O vencedor, um novato de nome Ogowan, pagou 86,50. Felizmente nenhum dos presentes havia jogado alto neste páreo. Swift, casualmente, não fizera apostas em qualquer dos três primeiros páreos.

O páreo seguinte, o quarto — cujo alinhamento foi anunciado para as 4:10 — era o Prêmio Rivermont; e mal havia Garden cortado o som do amplificador após o 3º páreo, ficou evidenciando que a atmosfera estava-se eletrizando.

 

 

 

 

IV

 

A Primeira Tragédia

 

 


(Sábado, 14 de abril — 15:45 horas)

 

 

— Está chegando o grande momento! — e embora Garden falasse com uma alegria pomposa, eu pude discernir alguns sinais de tensão em sua atitude. — O telefone de Hannix vai estar um bocado ocupado durante os últimos dez minutos desse importante intervalo e eu aconselho vocês todos a estarem com as apostas prontas antes que seja dado o alinhamento. De qualquer forma não haverá mudanças substanciais, portanto peço aos amigos que se apressem.

Houve um instante de silêncio, que Swift interrompeu: — Pegue os últimos forfaits, Floyd. Ainda não recebemos nenhuma informação desde a primeira, e pode ter havido alguma alteração ou um forfait de última hora.

— Tudo o que você quiser, meu caro primo — concordou Garden com um tom cínico embora perturbado, enquanto abaixava a chave para desligar o amplificador e pegava o telefone preto. Aguardou uma pausa nas informações de Texas e Cold Springs e então falou: — Alô, Lex. Dê os forfaits do Grande Prêmio de Rivermont.

No amplificador veio a voz, já agora familiar: "Acabei de dar a última informação. Onde andou você? Está bem, vá lá, mas vê se ouve desta vez. 6, 12, 12, 5, 20, 20,10, 6, 10, 6, 4, forfait, 20, 2. Largada: 4:10."

Garden desligou o amplificador e olhou para a nova fileira de algarismos que havia apressadamente rabiscado ao lado dos primeiros palpites.

— Não faz muita diferença dos de hoje pela manhã, — comentou. — Heat Lightning, menos dois; Train Time, menos 3; Azure Star, mais dois; Roving Flirt, menos um; Grand Score subiu de 6 para 10: que farra se ele entrar! Risky Lad, mais um e isto é bom para mim. Head Start, menos dois; Sarah Dee, mais um; o resto não mudou. Exceto Equanimity. — E deu uma olhadela para o primo. — Equanimity passou de 2 e meio para dois. E eu duvido que pague tudo isso.

Garden ergueu-se para preparar um highball* que levou para a mesa. Depois de tê-lo tomado, girou na cadeira: * Coquetel. (N. do T.)

— Bem, nenhum dos grandes cérebros presentes se decidiu até agora? — ele estava ficando impaciente.

Kroon levantou-se, terminou a bebida que estava sobre a mesa à sua frente, e enxugando a boca com um muito bem dobrado lenço que tirou do bolso superior do paletó, falou: — Já me decidi desde ontem. Anote-me no seu fatídico livrinho com cem em Hyjinsk para vencedor e duzentos no placê. E pode acrescentar 200 em Head Start, no placê. Tudo somado, dá meio milhar. Esta é a minha contribuição para os festejos do dia.

— Head Start porta-se mal no starter — aconselhou Garden enquanto lançava as apostas no livro.

— Ah, está bem — suspirou Kroon. — Talvez hoje ele se porte como um menino bem educado e corte a linha de chegada. — E dirigiu-se para o hall.

— Não nos está abandonando, Cecil, ou está? — gritou Garden para ele.

— Lamento tremendamente — respondeu Kroon olhando para trás. — Eu adoraria ficar para a corrida, mas uma reunião legal em casa de uma tia solteirona está marcada para as 4:30 e eu tenho que estar lá. Papéis para assinar e toda essa chateação. Vou tentar voltar, caso não precise ler todos os malditos documentos — acenou com a mão e dizendo "Ciao" continuou rumo à saída.

Madge Weatherby imediatamente pegou suas fichas e mudou-se para a mesa de Zalia Graem, onde começaram a cochichar.

O olhar inquisidor de Garden percorreu todos os componentes do grupo.

— Esta é a única aposta que eu vou dar à Hannix? — perguntou com impaciência. — Estou avisando a vocês para não esperarem demais.

— Ponha aí o meu nome em Train Time — tonitroou Hammle pesadamente. — Sempre gostei desse baio. Ele é grande na reta final, mas não creio que ganhe hoje. Por isso, quero só placê, cem.

— Já está lançado — respondeu Garden com um movimento de cabeça. — Quem é o próximo?

Nesse exato momento, uma jovem de excepcional encanto mostrou-se na porta, olhando hesitante para Garden. Usava um uniforme de enfermeira, de um branco imaculado, meias e sapatos brancos; na cabeça uma touca branca engomada, que se equilibrava num ângulo absurdo. Não devia ter mais de trinta anos, porém havia um certo ar de maturidade em seus tranqüilos olhos castanhos e uma evidência de grande capacidade em sua expressão reservada e no contorno firme do queixo. Seu rosto estava sem maquilagem e o cabelo castanho claro, repartido ao meio penteado com simplicidade cobrindo-lhe as orelhas. Ela fazia um contraste impressionante com as duas outras mulheres presentes.

— Alô, Srta. Beeton — saudou-a Garden com satisfação. — Pensei que estivesse de folga esta tarde, já que a Mama está tão bem que saiu para fazer compras... Em que lhe posso ser útil? Gostaria de se reunir a esta turma de loucos e ouvir as corridas?

— Ah, não, tenho muito o que fazer — e moveu levemente a cabeça indicando os fundos da casa. — Mas se não se importa, Sr. Garden — acrescentou com timidez — eu gostaria de apostar dois dólares em Azure Star, no vencedor, em segundo e em terceiro.

Todos sorriram disfarçadamente e Garden riu alto.

— Pelo amor de Deus, Srta. Beeton, — reprovou ele — quem lhe pôs na cabeça este palpite?

— Na verdade, ninguém — respondeu ela com um sorriso de desafio. — Mas hoje pela manhã estive lendo o noticiário das corridas e achei que Azure Star era um nome lindo. Gostei dele.

— Bem, essa é uma das maneiras de se escolher — sorriu Garden com indulgência. — Provavelmente tão boa quanto qualquer outra. Mas acredito que seria muito melhor que esquecesse o lindo nome. Este cavalo não tem a menor chance. E além disso, o meu bookmaker não aceita apostas abaixo de cinco dólares.

Vance, que estivera observando a moça com mais interesse do que normalmente mostrava por qualquer mulher, interveio: — Um momento, Garden — falou abruptamente. — Acho que a escolha da Srta. Beeton é excelente, não importa como tenha chegado a ela. Srta. Beeton, eu teria muito prazer que sua aposta em Azure Star fosse feita. — Virou-se novamente para Garden. — Seu bookmaker aceitaria duzentos dólares em Azure Star?

— Ele? Ele agarraria com as duas mãos — respondeu Garden. — Mas, por quê?

— Então está decidido — disse rapidamente Vance. — Esta é a minha aposta. E dois dólares em cada colocação pertence à Srta. Beeton.

— Para mim está ótimo, Vance — e Garden lançou a aposta no livro.

Notei que, durante os breves instantes em que Vance estivera falando com a enfermeira e fazendo sua aposta em Azure Star, Swift olhava fixamente para ele através das pálpebras semicerradas. Somente muito mais tarde é que eu entendi o significado daquele olhar.

A enfermeira deu uma rápida olhadela em Swift e depois falou com uma simplicidade sincera: — É muito gentil, Sr. Vance. — Depois acrescentou: — Não vou fingir que não sei quem é o senhor, mesmo que o Sr. Garden não lhe tivesse dito o nome. — E ficou parada fitando Vance com uma calma admiração; depois deu meia-volta e desapareceu no vestíbulo.

— Oh, meu Deus! — exclamou Zalia Graem com um exagerado arrebatamento. — O nascer de um romance! Dois corações em um só cavalo. Como é sensacionalmente emocionante!

— Deixe para lá essa zombaria ciumenta. Escolha o seu cavalo e diga quanto — reprovou Garden com impaciência.

— Está bem, posso ser prática já que me intimam — replicou a moça. — Quero Roving Flirt para vencedor, digamos, duzentos. E lá se vai meu vestido novo! E como posso também perder meu casaco esporte, ponha mais duzentos no placê. E agora, acho que vou precisar de um pouco de apoio líquido. — E caminhou para o bar.

— E você, Madge — perguntou Garden. — Você entra neste páreo?

— Sim, eu estou nessa — respondeu ela com afetação. — Quero cinqüenta em Sublimate.

— Ninguém mais? — perguntou Garden enquanto fazia a anotação. — Quanto a mim, caso possa interessar a alguém, estou pendurando toda a esperança de minha juventude em Risky Lad. Cem, duzentos e trezentos. — Olhou apreensivamente para seu primo do outro lado da sala. — E você, Woody? Swift estava curvado em sua cadeira, estudando a ficha que tinha diante dos olhos e fumando intensamente.

— Pode dar a Hannix as apostas que você recebeu — respondeu sem levantar a cabeça. — Não se preocupe comigo, não vou perder a corrida. São apenas 4 horas.

Garden olhou-o um momento e franziu a testa.

— Por que você não desabafa logo? — como não obtivesse resposta, tirou o telefone do gancho e discou um número. Logo em seguida começou a transmitir ao bookmaker as diversas apostas lançadas em seu livro. Swift ergueu-se e caminhou para o bar com seu sortimento de garrafas. Encheu de Bourbon um copo de uísque e virou-o de uma vez. Depois, caminhou lentamente até a mesa onde estava o primo. Garden acabava de telefonar para Hannix.

— Vou dizer-lhe agora a minha aposta, Floyd — disse Swift roucamente. — Comprimiu a mesa com um dedo, como para dar mais ênfase. — Quero dez mil dólares em Equanimity para vencedor.

Os olhos de Garden moveram-se ansiosamente para o outro.

— Eu estava receando isto, Woody — disse com um tom preocupado. — Mas se eu fosse você...

— Não estou pedindo sua opinião — interrompeu Swift com uma voz fria e firme. — Estou-lhe pedindo para fazer o jogo.

Garden não tirava os olhos do rosto do outro. Disse apenas: — Acho que você é um perfeito idiota.

— A opinião que você tem a meu respeito também não me interessa. — As pálpebras de Swift fecharam-se ameaçadoramente e um olhar duro velou sua face. — A única coisa que me interessa agora é saber se você vai ou não fazer essa aposta. Se não vai, diga logo, e eu o farei pessoalmente.

Garden capitulou.

— É o seu enterro — disse e dando às costas ao primo pegou novamente o telefone cinza e discou com determinação.

Swift voltou ao bar e serviu-se novamente de uma generosa dose de uísque.

— Alô, Hannix — disse Garden no telefone. — Aqui estou de volta, com mais uma aposta. Segure-se na cadeira para não cair. Quero dez pacotes com Equanimity na ponta... Sim, é isso mesmo, dez pacotes dos grandes. Você pode fazer o jogo? As chances provavelmente serão de 2 para 1. Certo.

Ao largar o telefone, Swift vinha saindo do bar, rumo ao hall.

— E agora, suponho eu — Garden observou sem qualquer indício de zombaria — você vai lá para cima para aguardar o resultado sozinho.

— Se isso não lhe parte o coração, a resposta é sim. — Havia um tom de ressentimento nas palavras de Swift. — E apreciaria não ser incomodado. — Seus olhos percorreram um tanto ameaçadoramente as pessoas presentes. Lentamente, virou-se e desapareceu sob o arco da porta.

Garden, parecendo profundamente emocionado, conservava os olhos fitos no vulto que ia desaparecendo. Depois, como movido por um impulso repentino, ergueu-se de um salto e chamou: — Só um instante, Woody. Tenho uma palavra a lhe dizer. — E seguiu-lhe os passos.

Eu vi Garden colocar o braço em torno dos ombros de Swift, enquanto os dois desapareciam no vestíbulo.

Garden esteve ausente cerca de cinco minutos e durante este tempo muito pouco foi dito, a não ser algumas observações de constrangimento. Uma espécie de tensão parecia ter invadido cada um dos presentes: havia uma sensação geral de que alguma tragédia inesperada estava iminente ou, pelo menos, que algum sensacional fator humano estava em jogo. Todos nós sabíamos que Swift não podia agüentar aquela aposta extravagante que, na realidade, provavelmente representava tudo o que ele possuía. E nós sabíamos também, ou suspeitávamos, que um acontecimento grave dependeria do resultado de sua aposta. Já não havia mais alegria, nem sombra da despreocupada atmosfera anterior. O ambiente tornou-se carregado.

Quando Garden retornou à sala seu rosto mostrava uma certa palidez e seu olhar estava abatido. Quando chegou à mesa, sacudiu a cabeça desanimado.

— Tentei argumentar com ele — comentou Vance — mas foi inútil; ele nada quis ouvir, ficou até zangado... Pobre diabo! Se Equanimity não vencer, estará liquidado. — Olhou diretamente para Vance. — Fico pensando se fiz bem em transmitir aquela aposta. Mas, afinal de contas, ele é maior de idade.

Vance concordou.

— Sim, exatamente como você diz — murmurou secamente. — Realmente, você não tinha alternativa.

Garden inspirou profundamente e, sentando-se à mesa, tomou o telefone preto e ficou à escuta. Uma campainha soou em algum lugar do apartamento e alguns minutos mais tarde surgiu Sneed no hall.

— Perdoe-me, senhor, — disse ele a Garden — porém a Srta. Graem está sendo chamada no outro telefone.

Zalia Graem levantou-se rapidamente, ergueu a mão até a testa em sinal de desalento.

— Quem nesse mundo ou no outro poderá ser? — seu rosto abriu-se. — Ah, já sei — depois caminhou em direção a Sneed. — Atenderei no telefone lá da saleta. — E saiu da sala apressadamente.

Garden não prestara muita atenção àquela interrupção: ele estava quase indiferente a tudo que não fosse o telefone negro, aguardando o momento de ligar o amplificador. Alguns momentos mais tarde, girou na cadeira e anunciou: — Estão preparando-se em Rivermont. Façam suas orações, crianças. Você aí, Zalia, diga ao fascinante cavalheiro no telefone para ligar mais tarde. O grande páreo vai começar.

Não houve resposta, embora a saleta estivesse apenas a alguns passos do vestíbulo.

Vance levantou-se e, cruzando a sala, olhou ao longo do corredor, mas regressou imediatamente à sua mesa.

— Pensei que pudesse avisar à moça — murmurou — mas a porta da saleta está fechada.

— Zalia provavelmente vai voltar, ela sabe que horas são — comentou Garden tranqüilamente, inclinando-se para ligar o amplificador.

— Floyd, querido, — falou a Srta. Weatherby — por que não ouvimos este páreo no rádio? Está sendo transmitido pela WXZ. Não acha que assim seria mais emocionante? Gil McElrey é o locutor.

— Magnífica sugestão — secundou Hammle, ligando o rádio que estava bem às suas costas.

— Woody poderá ouvir lá de cima? — perguntou Madge Weatherby a Garden.

— Claro — respondeu ele. — Esta chave de amplificador não interfere com nenhuma das extensões telefônicas.

Quando as válvulas do rádio se aqueceram, a bem conhecida voz de McElrey cresceu de volume no amplificador: "...e Equanimity está dando trabalho na largada. Atrapalhando Head Start... Agora estão ambos de volta aos boxes; está parecendo que vamos ter uma... Pronto! Largaram! E foi uma boa partida. Hyjinx tomou a dianteira; Azure Star vem em seguida; Heat Lightning logo atrás. Os outros estão embolados, ainda não os posso distinguir. Esperem um segundo. Agora estão passando aqui à nossa frente: estamos no alto da tribuna principal, olhando diretamente para eles — e lá vai Hyjinx à frente, com dois corpos atrás dele vem Train Time; e... sim, é Sublimate, com uma cabeça ou um focinho ou um pescoço, não importa, é Sublimate, de qualquer forma. E lá vem Risky Lad avançando lentamente sobre Sublimate... Agora estão fazendo a primeira curva com Hyjinx ainda na dianteira. As posições relativas aos outros não foram mudadas... Estão agora na reta oposta continua ainda à frente com meio corpo. Train Time avançou e mantém seu segundo lugar com corpo e meio à frente de Roving Flirt, que está em 39 lugar. Azure Star está um corpo atrás de Roving Flirt. Equanimity está embolado mas está vindo por fora agora; está muito atrás mas vem ganhando terreno; e logo atrás dele vem Grand Score, jazendo um esforço desesperado para sair do bolo"...


Nesse ponto da irradiação Zalia Graem apareceu repentinamente na porta e ficou parada com os olhos fixos no rádio, as mãos enfiadas no bolso de seu casaco. Balançava um pouco o corpo para frente e para trás, a cabeça levemente inclinada para um lado, inteiramente absorta na descrição do páreo.


"... Estão jazendo a grande curva. Equanimity melhorou sua posição e está dando o seu famoso galope. Hyjinx recuou e Roving Flirt tomou a dianteira por um corpo, com Train Time em segundo, com um corpo, em frente de Azure Star que está correndo em terceiro e jazendo um grande esforço... E agora estão na reta final. Azure Star tomou a dianteira e está um corpo inteiro na liderança. Train Time está jazendo uma grande tentativa neste clássico e ainda está em segundo lugar, um corpo atrás de Azure Star. Roving Flirt está logo em seguida. Hyjinx caiu de posição e parece não mais ser um sério competidor. Equanimity vem jazendo força e está agora em sexto lugar. Não tem muito tempo, mas está fazendo uma linda corrida e ainda pode chegar às primeiras colocações. Grand Score está perdendo terreno pela lateral. Sublimate está bem à frente dos dois mas não está avançando. E creio que o resto está fora de competição... E agora chegam ao final. Os líderes estão alinhados, não haverá grandes mudanças. Esperem um instante. Lá vem eles... E... o vencedor é Azure Star com dois corpos. Em seguida Roving Flirt e um corpo atrás dele vem Train Time. Upper Shelf terminou em quarto... Um momento... Aqui está o resultado afixado. Sim, eu estava certo. É 3, 4 e 2. Azure Star venceu o grande Prêmio Rivermont. O segundo é Roving Flirt e o terceiro, é Train Time"...


Hammle deu uma volta em sua cadeira e desligou o rádio.

— Bem — disse, soltando um profundo suspiro — eu tinha uma parte de razão nessa história.

— Não foi uma corrida tão boa — observou a Srta. Graem com um muxoxo. Por mim nada perdi, nem ganhei. Mas, de qualquer forma, não vou precisar entrar para uma colônia de nudistas esta primavera. Agora vou terminar o meu telefonema. — E voltou para a saleta.

Garden pareceu pouco à vontade e, pela segunda vez naquela tarde, serviu-se de um highball.

— Equanimity nem sequer pagou o mesmo dinheiro — comentou como se estivesse falando sozinho. — Mas ainda não temos os resultados oficiais. Não deixem suas esperanças crescerem muito, e também não se desesperem. Os ganhadores serão confirmados dentro de alguns minutos e nunca se sabe o que pode acontecer. Vocês se lembram daquela corrida final em Saratoga, quando os três primeiros colocados foram desclassificados?*

 

 

*Garden referia-se ao páreo final do último dia de uma temporada recente em Saratoga, quando Anna V. L., Noble Spirit e Semaphore terminaram a corrida nessa mesma ordem, e foram todos desclassificados ; Anna V. L. por desviar-se completamente na partida, obrigando outros cavalos a fazerem o mesmo, Noble Spirit por desviar-se a altura do 8* mastro, e Semaphore por uma pretensa interferência com Anna V. L. A classificação oficial, após as desclassificações foi: Just Cap, em primeiro; Celiza, em segundo, e Bahadur em terceiro, os únicos que restaram naquela corrida.

 

 


Exatamente nesse instante, a Sra. Garden irrompeu na sala, ainda com as luvas, o chapéu e a estola de raposa, e dois pequenos pacotes sob o braço.

— Não me digam que estou atrasada! — desculpou-se excitadamente. — O trânsito estava intolerável: três quartos de hora da esquina da Rua 50 com a 5ª Avenida... Já acabou o grande páreo?

— Tudo acabado, exceto a confirmação, Mama — informou Garden.

— E que foi que eu fiz? — perguntou ela deixando-se cair pesadamente em uma cadeira.

— O de costume — sorriu Garden. — Grand Score! Seu nobre corcel não fez escore algum. Minhas condolências. Mas ainda não temos a confirmação.

— Ah, meu Deus! — suspirou a Sra. Garden com desânimo. — A única falta acusada em um páreo que eu jogo é contra o meu cavalo, se ele ganha; e é sempre anotada. Nada me pode salvar agora. E acabei de gastar uma fortuna numa toalha de renda de Bruxelas.

Garden ligou o amplificador. Houve alguns minutos de silêncio e em seguida:

"Resultados oficiais em Rivermont. Confirmação em Rivermont. Largada às 4:16. O vencedor é o nº 3, Azure Star. Número 4, Roving Flirt é o segundo colocado; e o nº 2, Train Time, é o terceiro. O tempo da corrida foi de dois minutos e dois décimos de segundo. Um novo recorde nessa pista. E os rateios: Azure Star pagou $ 26,80, $9.00 e $6.60. Roving Flirt $5.20 e $4.60. Train Time $8.40. Nova largada às 4:40"...


— Bem, aí está — disse Garden sombriamente, desligando a chave e fazendo rápidas anotações em seu registro. — Sneed, nosso admirável Crichton, ganhou seis dólares. O Sr. Kroon, que está ausente, perdeu quinhentos; e a Sra. Weatherby, aqui presente, perdeu cento e cinqüenta. Nosso velho caçador de raposas está ganhando duzentos e vinte dólares, com o que ele poderá oferecer-me um magnífico jantar amanhã. E você, Mama, perdeu seus duzentos dólares. Sinto muito. Eu mesmo fui aliviado em seiscentos mangos. Zalia, a tal que consegue sensacionais dicas do amigo de um amigo de um parente distante da esposa morganática de um velho corredor, ganhou cento e vinte dólares... o suficiente para comprar sapatos, um chapéu e uma bolsa para combinar com a sua toalete de verão. E o Sr. Vance, o eminente decifrador de crimes e potros, pode agora tirar umas férias de alto luxo. Ele é o feliz possuidor de três mil, seiscentos e quarenta dólares — dos quais trinta e seis dólares e quarenta centavos são para nossa querida enfermeira. E Woody, naturalmente... — Sua voz morreu.

— Que aconteceu a Wood? — perguntou a Sra. Garden, sentando-se rígida na cadeira.

— Lamento enormemente, Mama, — e o filho procurava as palavras — mas Woody não usou a cabeça. Tentei dissuadi-lo, mas não houve jeito...

— Bem, mas o que fez Woody? — insistiu a Sra. Garden. — Ele perdeu muito?

Garden hesitou e, antes que pudesse formular uma resposta, um som paralisante, como o de um tiro de pistola, rompeu o silêncio.

Vance foi o primeiro a ficar de pé. Seu rosto estava sombrio e ele moveu-se rapidamente em direção ao hall. Eu o segui e logo atrás veio Garden. Quando eu fiz a curva no corredor, vi os outros no salão erguerem-se e avançarem. Se o estampido não tivesse sido precedido por uma atmosfera tão eletrizante, eu duvido que tivesse causado qualquer perturbação; porém, naquelas circunstâncias, creio que cada um teve o mesmo pensamento quando se ouviu a detonação.

Quando nos apressávamos corredor afora, Zalia Graem abriu a porta da saleta.

— Que foi isso? — perguntou, fitando-nos com um olhar assustado.

— Ainda não sabemos — respondeu Vance.

À porta do quarto de dormir, na outra extremidade do corredor, vimos aparecer a enfermeira, com o espanto substituindo a placidez dos seus olhos.

— É melhor vir conosco, Srta. Beeton — disse Vance, enquanto começava a subir a escada de dois em dois degraus. — Podemos precisar da senhora.

Vance saltou no corredor de cima e parou momentaneamente na porta da direita que levava ao terraço. Esta continuava aberta de par em par e, após uma apressada inspeção preliminar, Vance entrou rapidamente no jardim.

A visão que nesse momento tivemos não foi de todo inesperada. Lá, na cadeira baixa que nos mostrara naquela tarde, estava sentado Woody Swift, derreado, com a cabeça caída para trás, fazendo um ângulo pouco natural de encontro ao espaldar de palhinha e as pernas estendidas à sua frente. Ainda estava com o fone preso à cabeça. Seus olhos estavam abertos e fixos; os lábios ligeiramente entreabertos, e seus grossos óculos haviam saltado para a ponta do nariz.

Na têmpora direita havia um pequeno e feio orifício abaixo do qual haviam-se formado duas ou três gotas de sangue já coagulado. O braço direito pendia inerte sobre o lado da cadeira e sobre os ladrilhos coloridos, exatamente embaixo de sua mão, estava um pequeno revólver com cabo de madre-pérola.

Vance imediatamente aproximou-se do corpo imóvel e todos nós o circundamos. Zalia Graem, que abrira caminho e agora estava parada ao lado de Vance, cambaleou repentinamente e agarrou-se a seu braço. Seu rosto tornara-se pálido e os olhos pareciam esgazeados. Vance virou-se rapidamente, passou-lhe o braço pela cintura e levou-a quase carregada para o largo divã de vime. E fez um aceno de cabeça para a enfermeira.

— Tome conta dela um instante. — Depois voltou para onde estava Swift. — Por favor, recuem — ordenou. — Ninguém deve tocar nele.

Puxou o monóculo e ajustou-o cuidadosamente. Depois inclinou-se sobre o vulto na cadeira. Cuidadosamente investigou a ferida, o alto da cabeça e os óculos deslocados. Quando terminou o exame, ajoelhou-se no chão e pareceu procurar alguma coisa. Aparentemente não encontrou o que procurava porque ergueu-se com um ar desanimado e encarou os outros.

— Morto — anunciou com um tom involuntariamente sombrio. — Vou, temporariamente, assumir a direção das coisas.

Zalia Graem erguera-se do divã, e a enfermeira a estava sustentando numa demonstração de carinho. A perturbada moça estava aparentemente indiferente a essa atenção e permanecia com os olhos fixados no morto. Vance encaminhou-se para ela de maneira a impedir a visão que parecia mantê-la num fascínio de horror.

— Por favor, Srta. Beeton, — disse ele — leve a jovem para baixo, imediatamente. — Depois acrescentou: — Estou certo de que ela ficará bem em alguns minutos.

A enfermeira anuiu, passou o braço em torno da Srta. Graem com firmeza e levou-a em direção à entrada.

Vance esperou até que as duas mulheres se fossem, depois voltou-se para os outros: — Vocês todos vão ter a gentileza de descer e lá ficar até novas ordens.

— Mas que vai fazer, Sr. Vance? — perguntou a Sra. Garden com um tom assustado. Estava de pé, rigidamente encostada à parede, com os olhos semicerrados fixos em mórbido fascínio no corpo imóvel do sobrinho. — Precisamos manter isto o mais secreto possível! Meu pobre Woody!

— Receio, minha senhora, que não poderemos manter as coisas em segredo — falou Vance com a mais honesta das intenções.

— Meu primeiro dever é telefonar para o procurador distrital e para o Departamento de Homicídios.

A Sra. Garden ofegou e seus olhos arregalam-se de emoção.

— Procurador? Departamento de Homicídios? — repetiu automaticamente. — Ah, não!... Por que o senhor precisa fazer isso? É claro que qualquer um pode ver que esse pobre rapaz liquidou a própria vida.

Vance sacudiu lentamente e olhou diretamente para a desesperada senhora.

— Lamento muito, minha senhora, — disse — mas isto não é um caso de suicídio. É assassinato!


V

 

A Busca no Cofre

 

 


(Sábado, 14 de abril — 16:00 horas)

 

 

Após a inesperada declaração de Vance seguiu-se um demorado silêncio. Todos, um por um, encaminharam-se relutantemente para a saída. Apenas Garden ficou para trás.

— Eu acho, Vance, — disse ele num tom chocado — que isto é realmente apavorante. Tem certeza de que não está dando largas à sua imaginação? Quem poderia desejar matar o pobre Woody? Ele deve ter feito isso sozinho. Sempre foi um fraco, e mais de uma vez falou em suicídio.

Vance encarou-o friamente por um instante: — Tremendamente agradecido pela informação, Garden. — Sua voz era tão fria quanto o olhar. — Mas ela agora não nos ajuda em nada, você sabe, não? Swift foi assassinado e eu quero a sua ajuda e não o seu cepticismo.

— Tudo o que eu puder fazer, é claro — murmurou Garden apressadamente e parecendo envergonhado com a atitude de Vance.

— Há algum telefone por aqui? — perguntou Vance.

— Sim, claro, há um no estúdio.

Garden passou por nós com uma energia nervosa, como se estivesse agradecendo a oportunidade de agir. Escancarou a porta na extremidade do corredor e ficou de lado, esperando que entrássemos no estúdio.

— Por aqui — disse apontando para a escrivaninha na outra extremidade da sala, onde havia um telefone. — Esta é uma linha direta. Não tem comunicação com a que usamos para os cavalos, embora seja uma extensão de telefone da saleta. — Dirigiu-se rapidamente para trás da escrivaninha e ligou uma chave preta na caixa de contato que estava presa a um dos lados da mesa. — Deixando a chave nesta posição, você corta a extensão lá embaixo, de modo que a linha fica inteiramente sua.

— Oh, está bem — Vance meneou a cabeça com um leve sorriso. — Eu uso o mesmo sistema no meu apartamento. Muitíssimo grato por sua atenção... E agora, por favor, junte-se aos outros lá embaixo e procure manter o equilíbrio das coisas por algum tempo.

Garden aceitou de bom grado a dispensa e dirigiu-se à porta.

— Ah, a propósito, Garden, — chamou Vance — gostaria de ter uma pequena conversa com você, em particular, daqui a pouco.

Garden voltou-se com uma expressão alterada.

— Suponho que você esteja querendo que eu desenterre todos os esqueletos da família para você... Mas, está bem. Quero ser o mais útil possível; espero que você creia nisso. Estarei às suas ordens a qualquer momento. Estarei lá embaixo derramando azeite sobre as águas agitadas e quando você estiver pronto para me atender, basta que aperte a campainha lá na estante, logo atrás da escrivaninha. — Ele indicou um pequeno botão branco situado exatamente no centro de uma pequena caixa. — Isto faz parte do sistema de comunicação interna entre este quarto e a saleta. Vou deixar aberta a porta da saleta, de modo a poder ouvir a campainha onde quer que eu me encontre.

Vance concordou secamente e Garden, após uma leve hesitação, deu meia volta e saiu.

Assim que Garden se fez ouvir descendo a escada Vance fechou a porta e foi imediatamente para o telefone. Logo depois falava com Markham.

— Os cavalos galopantes, meu caro — disse. — Os troianos estão em disparada... Equanimity falhou; entrou muito atrás. Resultado: um assassinato. O jovem Swift está morto. E foi a atuação mais inteligente que já vi em toda a minha vida... Não, Markham. — Sua voz repentinamente tornou-se grave. — Eu não estou brincando. Acho que você faria bem em vir imediatamente. E avise Heath*, se puder encontrá-lo, e o médico legista. Enquanto você não chega, vou controlando a situação...

 

 

 

*O sargento Ernest Heath do Departamento de Homicídios, que se encarregara de diversas investigações criminais a que Vance estivera ligado.

 

 


Lentamente recolocou o fone no gancho. Tirando a cigarreira do bolso, acendeu um Régie com aquela deliberação, que, fruto de uma longa observação, eu chegara a identificar como o sinal de um estado de espírito desorientado e tateante.

— Este é um crime sutil, Van, — meditava ele — demasiado sutil para a paz do meu espírito. Não estou gostando, não estou gostando nada mesmo. E também não me agrada essa mistura com corridas de cavalos. Um recurso um tanto transparente...

Depois examinou o ambiente. Era uma sala de aproximadamente oito metros quadrados, cercada de livros, folhetos e arquivos. Em algumas das prateleiras, nos arquivos e em cima de toda e qualquer peça de mobiliário, havia exemplares de uma particular coleção de velhos utensílios farmacêuticos: pilões e almofarizes de porcelana, bronze ou latão, com cinzeladuras típicas — máscaras, hernas, folhagens, querubins, arabescos da Renascença, pássaros e flores de lis. Os estilos eram os mais diversos: gótico, espanhol, francês e flamengo, muitos deles anteriores ao século XVI. Antigas balanças de boticário em latão e marfim, com colunas em plintos, com urnas em florões, sustentando pratos de balança em relevo com braços de aço ou encurvados — muitos deles no estilo francês dos fins do século XVIII; inúmeros potes antigos de farmácia nas mais diversas formas: cilíndrica, oval, de barril com aro; octogonal encurvado, ovóide, e uma pêra de cabeça para baixo, em faiança, majólica, porcelanas de alto preço, cuidadosamente decoradas com inscrições; diversos outros artigos farmacêuticos raros e artísticos; uma coleção que revelava anos de viagens e pesquisas laboriosas*.

 

 

*Mais tarde essa coleção foi vendida em leilão e muitos dos objetos estão agora nos museus americanos.

 

 


Vance percorreu o aposento, parando aqui e ali, diante de algum vaso ou pote raro.

— Uma coleção interessante — murmurou. — E não desprovida de significado, Vance. Dá uma visão da natureza do homem que a reuniu — uma mistura de artista e cientista; um amante da beleza e também alguém em busca da verdade. Aliás, você sabe, os dois deveriam ser sinônimos. Entretanto...

E lá se foi ele pensativamente em direção à janela do lado norte que dava para o jardim. A cadeira de vime com seu horrível ocupante não podia ser vista do estúdio, porque estava bem à esquerda da janela, perto da amurada oeste.

— Os açafrões estão morrendo — murmurou — dando lugar aos jacintos e palmas; e as tulipas estão progredindo. A cor sucede à cor. Um lindo jardim. Mas a toda hora há morte aqui, Van, senão o próprio jardim não viveria. Eu fico pensando...

Deu as costas à janela, bruscamente, e voltou à escrivaninha.

— Algumas palavras com o atrapalhado Garden é o indicado antes que cheguem os servidores da lei.

Colocou o dedo sobre o botão branco da campainha e apertou. Depois dirigiu-se à porta e abriu; decorreram vários instantes, porém Garden não apareceu e Vance apertou novamente o botão. Depois de passados dois bons minutos sem qualquer resposta aos seus chamados, Vance desceu o corredor em direção à escada, recomendando-me que o seguisse.

À altura do cofre que havia do lado direito, Vance parou bruscamente. Examinou durante alguns minutos a pesada porta de calamina. À primeira vista ela parecia estar fechada hermeticamente, mas quando olhei mais de perto, verifiquei que estava aberta uma fração de polegada, como se o fecho da mola que a fechava automaticamente, não estivesse funcionando na ocasião em que a porta foi trancada. Vance empurrou a porta levemente, com a ponta dos dedos, e ela cedeu, abrindo-se lenta e pesadamente.

— É estranho demais — comentou ele. — Um cofre para guardar documentos de valor e a porta destrancada. Dá o que pensar...

A luz do corredor iluminava o interior sombrio da caixa-forte e quando Vance empurrou mais a porta, apareceu um fio branco pendente de uma lâmpada no teto. Na extremidade do fio estava preso um pilão de ferro em miniatura que funcionava como peso. Vance imediatamente entrou, puxou o fio e o cofre foi inundado pela luz.

Cofre é uma palavra que descreve mal o pequeno depósito, a não ser por suas paredes desusadamente espessas e obviamente fora construído como um compartimento à prova de roubo. Tinha aproximadamente 1,70 m x 2,40 e o teto era tão alto quanto o corredor. As paredes de alto a baixo, estavam cobertas de largas prateleiras e nelas haviam pilhas de toda sorte de documentos, papéis, folhetos, pastas, tubos de ensaio e frascos rotulados com símbolos misteriosos. Três das prateleiras estavam destinadas a uma série de fortes caixas de aço e caixas de segurança. O chão era revestido de pequenos ladrilhos de cerâmica preta e branca.

Embora houvesse espaço suficiente para nós dois dentro da caixa-forte, eu fiquei no corredor, observando Vance que olhava à sua volta.

— Egoísmo, Van — observou sem se virar para mim. — Provavelmente não há aqui uma só coisa que um ladrão se digne roubar. Fórmulas suponho, o resultado de pesquisas e experiências, sem qualquer valor ou interesse para alguém a não ser o próprio professor. E no entanto ele constrói um compartimento especial para mantê-lo trancados e fora do alcance do resto do mundo.

Vance curvou-se e apanhou uma resma de folhas datilografadas espalhadas pelo chão e que certamente haviam sido derrubadas de uma das prateleiras exatamente em frente à porta.

Olhou-as por um momento e colocou-as cuidadosamente no espaço vazio em frente à porta.

Muito interessante essa desarrumação — observou. — Evidentemente o professor não foi a última pessoa a entrar aqui porque ele jamais deixaria seus papéis no chão... — Deu uma volta. — Sim senhor! — exclamou com voz abafada.

— Esses papéis caídos e a porta destrancada... Bem que poderia ser... — Havia uma excitação reprimida em sua voz.

— Olhe, Van, não entre aqui; e principalmente, não toque na maçaneta.

Puxou do monóculo e ajustou-o cuidadosamente. Depois ajoelhou-se no chão de azulejo e começou uma severa inspeção dos pequenos quadrados, como se os estivesse contando. Sua atitude fez-me lembrar quando estivera examinando o piso do terraço próximo à cadeira onde havíamos encontrado o jovem Swift. Ocorreu-me que ele estava tentando encontrar aqui o que não achara no jardim. Suas palavras confirmaram a minha suposição.

— Deveria estar aqui — murmurou para si próprio. — Isto explicaria muitas coisas, formaria o primeiro e vago esboço de um esquema inicial.

Depois de procurar durante mais de um minuto, Vance parou de repente e inclinou-se para a frente com avidez. Em seguida, tirou do bolso um pequeno pedaço de papel e cuidadosamente colocou nele alguma coisa que estava no chão.

Embrulhando o papel com cuidado, colocou-o no bolso do colete. Embora eu estivesse distante apenas alguns passos e olhando diretamente para ele, não pude ver o que havia encontrado.

— Acho que é tudo por enquanto — disse erguendo-se e puxando o fio para apagar a luz. Voltando ao corredor, fechou a porta do cofre segurando cuidadosamente a haste do trinco. Depois moveu-se rapidamente pelo corredor, atravessou a porta que dava para o jardim e encaminhou-se diretamente ao morto. Apesar de ele estar de costas para mim quando se curvou sobre o corpo, eu pude ver que tirou do bolso do colete o papel dobrado e abriu-o. Olhou repetidas vezes o papel que segurava e o flácido vulto na cadeira. Finalmente meneou a cabeça enfaticamente e reuniu-se a mim no corredor. Descemos as escadas que conduziam ao apartamento.

Exatamente quando chegávamos ao vestíbulo de baixo, abriu-se a porta de entrada e Cecil Kroon entrou. Pareceu surpreendido de nos encontrar ali e perguntou de um modo um tanto vago, enquanto atirava o chapéu sobre o banco: — Algo de novo?

Vance perscrutou-o atentamente e não deu resposta; Kroon prosseguiu: — Suponho que o grande páreo tenha terminado, arre! Quem ganhou? Equanimity?

Vance sacudiu a cabeça lentamente, os olhos fixos no interlocutor.

— Venceu Azure Star. Acho que Equanimity chegou em 5º ou 6º.

— E Woody se lançou nele de corpo e alma, como havia ameaçado?

— Receio que sim — assentiu Vance.

— Meu Deus! — Kroon prendeu a respiração. — Isto é um baque para o rapaz. Como o está suportando? — Desviou o olhar de Vance, como se preferisse não ouvir a resposta.

— Não está suportando coisa nenhuma — retrucou calmamente Vance. Swift está morto.

— Não! — Kroon inspirou ruidosamente e seus olhos contraíram-se pouco a pouco. Depois de se ter aparentemente recuperado do choque, falou quase num murmúrio: — Então ele enfiou uma bala no corpo, não foi?

Vance ergueu levemente as sobrancelhas.

— Esta é a impressão geral — retrucou suavemente. — Você não é adivinho, não? Eu não disse como Swift morreu, mas o fato é que isso aconteceu devido a um tiro de revólver. Superficialmente, admito, isto parece um suicídio — Vance sorriu com frieza. — Sua reação é das mais interessantes. Por exemplo, por que você supõe que ele se tivesse matado com um tiro em vez de, digamos, se atirar do terraço?

A boca de Kroon transformou-se numa linha reta e em seus olhos apertados passou um olhar de raiva. Remexeu no bolso à procura de um cigarro e finalmente tartamudeou: — Não sei exatamente... a não ser que... a maioria das pessoas se matam com um tiro.

— É, realmente. — Os lábios de Vance continuavam armados num sorriso de pedra. — Não é uma maneira fora do comum de abandonar este mundo atormentado. Por que você achou lógico que a morte tenha sido voluntária?

Kroon tornou-se agressivo.

— Ele gozava de plena saúde quando eu saí! Ninguém vai fazer saltar os miolos de alguém assim em público.

— Saltar os miolos? — repetiu Vance. — Como você sabe que o tiro não foi no coração?

Kroon estava agora evidentemente desconcertado.

— Eu... eu simplesmente supus...

Vance interrompeu o embaraço do outro, sem afrouxar o exame que fazia: — Entretanto, suas conclusões acadêmicas concernentes a um assassinato mais ou menos público não são desprovidas de uma certa lógica. Mas o fato é que realmente alguém matou Swift com um tiro na cabeça e, praticamente, em público. Coisas assim também acontecem, você sabe. A lógica tem muito pouco a ver com a vida e a morte... e com corridas de cavalos. A lógica é o mais perfeito meio artificial de se chegar a uma conclusão falsa. — E ele acendeu o cigarro de Kroon.

— Não obstante, eu gostaria de saber onde você esteve e exatamente quando voltou para cá.

O olhar de Kroon vagueou e ele puxou duas tragadas antes de responder.

— Penso ter dito antes de sair — disse numa tentativa de serenidade — que eu ia à casa de um parente, assinar alguns documentos sem importância.

— E posso eu saber o nome e endereço de seu parente... uma tia, creio que disse? — interrogou amavelmente Vance.

— Estou tomando conta das coisas até a chegada dos funcionários.

Kroon tirou o cigarro da boca com um ar de displicência forçada e empertigou-se com arrogância.

— Eu não vejo — respondeu com dureza — em que essa informação possa interessar a alguém que não eu.

— Também não — admitiu alegremente Vance. — Estive simplesmente esperando por um pouco de franqueza. Mas posso assegurar-lhe, em vista do que aconteceu aqui esta tarde, que a polícia gostará de saber com precisão quando você voltou de sua misteriosa assinatura de documentos.

Kroon sorriu com afetação.

— Você certamente não pensa que eu estive perambulando no corredor, não é? Cheguei há poucos minutos e vim direto para cá.

— Imensamente grato — murmurou Vance. — Agora devo pedir-lhe que se reúna aos outros no salão e que lá espere a chegada da polícia. Espero que não faça objeções.

— De espécie alguma, garanto-lhe — retrucou Kroon com uma demonstração de cinismo divertido. — A polícia regular será um alívio após esta mistificação de amador. — Ele percorreu o vestíbulo em direção à porta, com as mãos enterradas nos bolsos das calças.

Quando Kroon desapareceu no salão, Vance dirigiu-se imediatamente à porta da frente, abriu-a silenciosamente e caminhando pelo corredor externo apertou o botão do elevador. Pouco depois abriu-se a porta corrediça e apareceu um rapaz magro e moreno, de olhar inteligente, vestindo um uniforme azul e que olhou para fora interrogando respeitosamente: — Vai descer?

— Não vou descer — replicou Vance. — Simplesmente queria fazer-lhe algumas perguntas. Eu tenho ligação com o escritório do procurador distrital.

— Eu o conheço, Sr. Vance — fez o rapaz com vivacidade.

— Aconteceu uma coisa aqui esta tarde — disse Vance — e creio que você me possa ajudar.

— Direi tudo o que sei — concordou o rapaz.

— Excelente! Você conhece um certo Sr. Kroon que freqüenta o apartamento dos Gardens? Ele é louro e tem um bigode encerado.

— Claro que conheço — retrucou prontamente o rapaz.

— Ele vem aqui quase todas as tardes. Eu o trouxe hoje.

— A que horas foi isso?

— Duas ou três, creio eu. — O rapaz franziu a testa.

— Ele não está aí?

Vance respondeu à pergunta fazendo uma outra.

— Você esteve no elevador a tarde toda?

— Claro que sim. Desde o meio-dia. Eu só sou substituído às 7 horas.

— E você não viu o Sr. Kroon desde que o trouxe aqui no início da tarde?

O rapaz sacudiu a cabeça.

— Não senhor, não vi.

— Eu tinha a impressão de que o Sr. Kroon havia saído há cerca de uma hora e que acabava de voltar.

A cigarra tocou e Vance rapidamente pôs na mão do rapaz uma nota dobrada.

— Muito obrigado — disse. — Era tudo o que eu queria saber.

O rapaz embolsou o dinheiro e fechou a porta do elevador, enquanto nós voltávamos ao apartamento.

Quando regressávamos da porta principal, a enfermeira estava parada à entrada do quarto de dormir, à direita. Seus olhos tinham uma expressão preocupada e interrogadora.

Vance fechou a porta suavemente e preparava-se para subir o corredor, mas hesitou e voltou em direção à moça.

— Parece perturbada, Srta. Beeton — disse com bondade. — Mas, afinal de contas, deve estar acostumada com a morte.

— Estou acostumada com ela — respondeu em voz baixa. — Mas isto agora é diferente. Veio tão de repente, sem aviso... Embora — acrescentou — o Sr. Swift sempre me tenha parecido ser do tipo que comete suicídio.

Vance olhou-a apreciativamente.

— Sua impressão pode ser correta, mas acontece que Swift não cometeu suicídio.

Os olhos da moça arregalaram-se, ela prendeu a respiração e encostou-se ao umbral. Seu rosto empalideceu perceptivelmente.

— O senhor quer dizer que atiraram nele? — Suas palavras eram quase inaudíveis. — Mas quem... quem?

— Nós não sabemos. — A voz de Vance era calma. — Mas precisamos descobrir. Gostaria de ajudar-me, Srta. Beeton?

Ela empertigou-se; suas feições descontraíram-se e novamente voltou a ser a imperturbável e eficiente enfermeira.

— Sim, gostaria. — Havia mais que uma ponta de ansiedade na voz.

— Então eu gostaria que a senhorita montasse guarda como de costume — disse Vance com um pálido sorriso amistoso. — Desejo falar com Garden e não quero que ninguém vá lá em cima. Poderia instalar-se nesta cadeira e avisar-me imediatamente se alguém quisesse tentar ir lá em cima?

— É tão pouco o que me pede — replicou a moça, enquanto se sentava numa cadeira ao pé da escada.

Vance agradeceu-lhe e encaminhou-se à saleta. Lá estavam Garden e Zalia Graem, sentados bem juntinhos num sofá e falando num tom baixo e confidencial. Um rumor indistinto de vozes, vindo do outro lado da arcada, indicava que o restante do grupo estava no salão.

Garden e a Srta. Graem afastaram-se imediatamente quando entramos na saleta. Vance ignorou seu evidente embaraço e dirigiu-se a Garden como se não tivesse percebido haver interrompido um tête à tête.

— Chamei o procurador distrital e ele notificou a polícia: dentro de alguns minutos estarão aqui. Enquanto isso, gostaria de falar-lhe a sós. — Voltando a cabeça para a Srta. Graem, acrescentou: Espero que isso não a aborreça.

A jovem ergueu-se e arqueou as sobrancelhas.

— Peço-lhe, não se preocupe comigo. O senhor pode ser tão misterioso quanto quiser.

Garden repreendeu-a com irritação.

— Nunca se preocupe com o hauteur, Zalia. — Depois voltou-se para Vance: — Por que não tocou a campainha chamando-me? Eu teria ido. Fiquei na saleta propositalmente porque achei que deveria precisar de mim.

— Eu chamei — respondeu Vance. — Duas vezes, aliás. Mas como você não subiu, eu desci.

— Aqui não houve sinal — assegurou-lhe Garden. — E eu vim diretamente para cá desde que desci.

— Posso confirmar isso — acrescentou a Srta. Graem. Os olhos de Vance pousaram nela um instante e nos cantos de sua boca surgiu um sorriso sardônico.

— Estou emocionado e agradecido pela confirmação — murmurou.

— Tem certeza de que apertou o botão? — perguntou Garden. — É muito engraçado; este sistema nunca falhou em seis anos. Espere um minuto...

Dirigindo-se à porta gritou para Sneed e o mordomo entrou na sala quase que imediatamente.

— Vá lá em cima no estúdio, Sneed, e aperte o botão da campainha.

— A campainha não está funcionando, senhor — disse-lhe o imperturbável mordomo. — Já notifiquei a companhia e pedi-lhe que mandassem um homem para consertá-la.

— Quando você descobriu isso? — perguntou Garden irritado.

A enfermeira que ouvira a conversa, deixou a cadeira em que estava e veio até a porta.

— Eu descobri hoje à tarde que a campainha não estava funcionando — explicou — por isso falei com Sneed e sugeri que ele tomasse providências.

— Ah, compreendo. Obrigado, Srta. Beeton. — Garden voltou-se novamente para Vance. — Podemos subir agora?

A Srta. Graem, que estivera olhando a cena com uma expressão cínica e um tanto divertida, preparou-se para sair da sala.

— Para que subir? Desaparecerei no salão e vocês poderão abrir seus corações aqui mesmo.

Vance estudara a moça por alguns instantes e depois curvou-se ligeiramente.

— Muito obrigada — disse. — Isto será muito melhor.

— Afastou-se enquanto ela se encaminhava displicentemente para a saída e fechava a porta atrás de si.

Vance deixou cair o cigarro em um pequeno cinzeiro que se achava sobre a mesinha diante do sofá e, movendo-se suavemente até à porta, reabriu-a. De onde eu estava, pude ver que a Srta. Graem, em vez de ir para o lado do salão, caminhava rapidamente na direção oposta.

— Um momento, Srta. Graem! — A voz de Vance era peremptória. — Por favor, espere no salão. Ninguém pode ir lá em cima agora.

Ela deu meia volta.

— E por que não? — Seu rosto estava vermelho de raiva e o queixo levantado, em desafio. — Tenho o direito de subir — proclamou com animosidade.

Vance nada disse, mas sacudiu a cabeça negando e sustentando o seu olhar.

Ela o devolveu mas não pôde resistir à força daquele olhar. Lentamente voltou até onde ele estava.

— Mas o senhor não compreende — protestou com uma voz quebrada. — Sou eu a culpada desta tragédia, não foi a corrida. Se não fosse por mim, Woody estaria vivo agora. Eu... eu sinto horrivelmente. E eu quero subir... para vê-lo.

Vance pousou a mão no ombro dela.

— Na verdade — disse suavemente — nada indica que a culpa seja sua.

Zalia Graem ergueu o olhar para Vance interrogativamente.

— Então o que Floyd estava tentando dizer-me é verdade? Que Woody não se matou com um tiro?

— Pura verdade.

A jovem inspirou profundamente e seus lábios tremeram. Deu um passo rápido e impulsivo em direção a Vance e, descansando a cabeça em seu braço, rompeu em lágrimas.

Vance colocou as mãos nos braços dela e manteve-a afastada de si.

— Vamos, pare com essa tolice — advertiu-a duramente — e não tente ser tão diabolicamente inteligente. Vá para o salão e tome um highball. Ele a tornará alegre por tempo indeterminado.

O rosto da moça tornou-se subitamente cínico e ergueu os ombros num movimento exagerado.

— Bien, Monsieur Lecoq — retrucou sacudindo a cabeça. E passando por ele, percorreu altivamente o vestíbulo em direção ao salão.

 

 

 

 

VI

 

Uma Entrevista Interrompida

 

 


(Sábado, 14 de abril — 16:50 horas)

 

 

Vance observou-a enquanto se afastava. Depois virou-se e deparou com o olhar ansioso da Srta. Beeton. Ele lhe sorriu graciosamente e encaminhou-se para a saleta. Nesse momento a Sra. Garden apareceu, tão ressentida quão agressiva.

— Zalia acabou de me contar — disse zangada — que o senhor a proibiu de subir. É um ultraje! Mas é claro que eu vou subir. Esta casa é minha, lembre-se. O senhor não tem o direito de me impedir de passar esses últimos momentos com meu sobrinho.

Vance encarou-a. Havia em seu rosto uma expressão de sofrimento, mas seus olhos eram frios e duros.

— Tenho todos os direitos, senhora — disse ele. — A situação é da maior gravidade; e se não quiser aceitar o fato, serei forçado a fazer valer minha autoridade.

— É inacreditável! — protestou ela zangada. Garden chegou à porta da saleta.

— Pelo amor de Deus, Mama, — suplicou — seja razoável. O Sr. Vance está inteiramente certo. E, de qualquer forma, que espécie de razão poderia ter a senhora para desejar estar com Woody agora? Já temos escândalo de sobra. Para que envolver-se ainda mais?

A senhora encarou bem o filho e eu tive a sensação de que alguma mensagem telepática passou entre eles.

— Realmente não faz nenhuma diferença em particular — concordou com calma resignação; mas quando voltou os olhos para Vance, o seu ressentimento ressurgiu. — Senhor — perguntou — onde prefere que eu fique até a chegada dos seus policiais?

— Eu não quero parecer demasiado exigente, senhora, — retrucou mansamente Vance — mas eu apreciaria imensamente se permanecesse no salão.

A senhora ergueu as sobrancelhas, sacudiu os ombros e, girando com ar indiferente, voltou para o corredor.

— Lamento profundamente, Vance — desculpou-se Garden. — A Mama é uma "rainha-mãe". Não está acostumada a receber ordens. E ela se ressente. Duvido de que ela deseje sentar-se ao lado do corpo quase rígido de Woody. Mas detesta que lhe digam o que deve e o que não deve fazer. Ela provavelmente teria passado o dia na cama se o Dr. Siefert não lhe tivesse firmemente recomendado que não se levantasse.

— Está tudo certo — falou Vance com indiferença, fitando numa perplexa meditação a ponta do cigarro. Depois ele foi rapidamente até a porta da saleta. — Vamos então ter a nossa conversinha, sim? — E afastou-se para que Garden pudesse entrar; seguiu-o e fechou a porta.

Garden deixou-se cair numa das extremidades do sofá e tirou um cachimbo de uma pequena gaveta na mesa baixa. Encheu lentamente o cachimbo, enquanto Vance caminhava até à janela, onde parou olhando a cidade lá embaixo.

— Garden, — começou ele — há algumas coisas que eu gostaria de ter esclarecido antes da chegada do procurador distrital e da polícia. — Girou tranqüilamente e veio sentar-se diante da escrivaninha, encarando Garden. Este parecia encontrar alguma dificuldade em acender o cachimbo. Quando finalmente o conseguiu, ergueu o olhar abatido e encontrou o de Vance.

— Tudo o que eu puder fazer para ajudar — murmurou, pitando o cachimbo.

— Algumas perguntas necessárias, sabe como é — prosseguiu Vance. — Acredito que elas não vão perturbá-lo. Mas o fato é que o Sr. Markham certamente quererá que eu participe da investigação, já que fui uma testemunha do preâmbulo desta horrível tragédia.

— Espero que sim — retrucou Garden. — É um caso escabroso e eu gostaria de ver o machado cair, não importa quem seja o decapitado. — Seu cachimbo continuava causando problema. — A propósito Vance, — prosseguiu ele calmamente — como coincidiu de você estar aqui hoje? Tantas vezes eu o convidei a participar de nossas tardes turfísticas e só neste dia de tragédia é que aceitou meu convite.

Vance manteve os olhos fixos em Garden durante uns momentos.

— O caso é — disse por fim — que eu recebi um telefonema anônimo a noite passada, vagamente delineando a situação e mencionando Equanimity.

Garden sacudiu o corpo para prestar uma atenção mais apurada. Seus olhos arregalaram-se e tirou o cachimbo da boca.

— Que diabo você está dizendo! — exclamou. — Essa é muito boa. Homem ou mulher?

— Ah, era um homem — respondeu tranqüilamente Vance.

Garden apertou os lábios e depois de meditar durante uns momentos, disse calmamente: — Bem, de qualquer forma, fico muito satisfeito que você tenha vindo... Que informação poderei prestar-lhe? Pergunte o que quiser, velho.

— Primeiro de tudo — começou Vance — você reconhece o revólver? Eu o vi olhando para ele com um ar apreensivo quando chegamos ao terraço.

Garden franziu a testa, ocupou-se durante um certo tempo com o cachimbo e finalmente respondeu, como se numa resolução súbita.

— Sim! Eu o reconheci, Vance. Pertence ao velho...

— Seu pai?

Garden assentiu sombriamente.

— Ele o tem há muitos anos. Mas não sei por que razão o comprou; certamente sem nenhuma intenção determinada.

— Por falar nisso — indagou Vance — a que horas normalmente costuma seu pai voltar da Universidade?

— Bem, bem... — Garden depois continuou. — Nos sábados, ele sempre chega aqui no começo da tarde; raramente depois das três. Ele se permite e ao seu pessoal um semi-feriado... Mas meu pai é homem de venetas e variável. — Sua voz desafinou nervosamente.

Vance deu duas tragadas em seu cigarro: examinava Garden atentamente. Depois perguntou em tom macio: — Em que está você pensando? A menos que, evidentemente, você tenha alguma razão para não me contar.

Garden inspirou profundamente e ergueu-se. Parecia estar profundamente perturbado.

— A verdade é, Vance, — disse, sentando-se de novo — que eu nem sequer sei onde está papai esta tarde. Assim que eu desci após a morte de Woody, telefonei para dar-lhe a notícia. Pensei que ele desejasse estar aqui o mais depressa possível, em vista das circunstâncias. Mas disseram-me que ele havia trancado o laboratório e deixado a Universidade por volta das duas horas. — Garden levantou os olhos. — Provavelmente foi à biblioteca para algum trabalho de pesquisa. Ou está lá pela Universidade ainda.

Eu não podia entender a perturbação do rapaz, e pude notar que isso intrigava Vance, que se dedicou a pô-lo à vontade.

— Isto realmente não tem importância — disse como que abandonando o assunto. — Pode ter acontecido que seu pai só venha a ter conhecimento da tragédia mais tarde. — Fumou durante uns instantes. — Mas, voltando ao revólver: onde é que ele costumava ficar guardado?

— Na gaveta central da escrivaninha, lá em cima — respondeu Garden prontamente.

— E esse fato era do conhecimento geral dos outros moradores da casa, ou do próprio Swift?

Garden assentiu.

— Ah, sim. Não era segredo. Muitas vezes caçoávamos do velho a respeito do seu "arsenal". A semana passada, durante o jantar, ele pensou ter ouvido alguém no jardim e correu lá em cima para ver quem era. A Mama chamou-o brincando: "Finalmente você vai ter uma oportunidade de usar o seu precioso revólver." O velho voltou alguns minutos depois um tanto encabulado. Durante todo o resto do jantar nós brincamos com ele.

— E o revólver estava sempre carregado?

— Ao que me conste, sim.

— E havia uma reserva de cartuchos?

— Não posso responder com precisão, mas creio que não. —i E agora uma pergunta muito importante, Garden — prosseguiu Vance. — Quantas, dentre as pessoas aqui presentes no dia de hoje, poderiam ter conhecimento de que seu pai guardava o revólver carregado na gaveta da escrivaninha? Responda com precisão.

Garden meditou por um bom momento. Os olhos perdidos no espaço, pitando firmemente o seu cachimbo.

— Estou tentando lembrar exatamente — disse — quem estava aqui no dia em que Zalia descobriu o revólver...

—' Que dia foi esse? — interrompeu vivamente Vance.

— Foi há cerca de três meses — explicou Garden. — Como você sabe, nós costumávamos ter o sistema de telefone ligado com o estúdio lá em cima. Mas algumas das corridas do oeste eram tão tarde que isso interferia com a rotina do velho quando ele voltava da Universidade. Então removemos toda aquela confusão para baixo, no salão. Na realidade, era mais conveniente, e a Mama não fez objeção; na realidade até gostou da coisa...

— Mas o que aconteceu naquele determinado dia? — insistiu Vance.

— Estávamos lá em cima no estúdio, acompanhando toda aquela ladainha das corridas que você pôde apreciar esta tarde, quando Zalia Graem, que sempre se sentava à escrivaninha do velho, começou a abrir as gavetas procurando um pedaço de papel de rascunho onde pudesse anotar as apostas.

Finalmente, ela abriu a gaveta central e viu o revólver. Tirou-o de lá com um grande gesto e, rindo como uma colegial, apontou-o para nós. Depois ela fez alguns comentários sobre a perfeição de nossas instalações para o jogo, estabelecendo um paralelo entre a presença do revólver e a sala dos suicidas em Monte Cario. "Todas as comodidades da Riviera." Ou qualquer coisa no mesmo gênero. "Quando você tiver perdido a camisa, pode estourar os miolos." Eu a repreendi — até um tanto rudemente, receio — e ordenei-lhe que pusesse o revólver outra vez no lugar, porque estava carregado. Mas como nesse momento o amplificador começasse a transmitir um páreo, o episódio ficou nisso.

— Muito interessante — murmurou Vance. — E você pode lembrar-se das pessoas de hoje que presenciaram a esse pequeno show da Srta. Graem?

— Creio que estavam todos, se não me falha a memória.


Vance suspirou.

— Um tanto difícil, não é? Nenhuma possibilidade de eliminação.

Garden ergueu os olhos, perplexo: — Eliminação? Não compreendo. Estávamos todos lá embaixo esta tarde quando foi dado o tiro, com exceção de Kroon, mas ele havia saído.

— Certo, certo — concordou Vance, reclinando-se na cadeira. — Esta é a parte mais intrigante e desesperante do caso. Ninguém poderia ter feito aquilo e no entanto alguém o fez. Mas não nos vamos demorar no assunto. Há ainda um ou dois pontos sobre os quais quero interrogá-lo.

Nesse instante houve uma pequena agitação no corredor. Parecia como se estivesse havendo algum tipo de tumulto e uma voz penetrante e de protesto misturava-se ao tom calmo, porém determinado, da enfermeira. Vance foi imediatamente até a porta e abriu-a completamente. Ali, bem à porta da saleta, apenas a poucos passos da escada, estavam a Srta. Weatherby e a Srta. Beeton. A enfermeira mantinha firmemente a outra e discutia calmamente com ela. Quando Vance se encaminhou para ambas, a Srta. Weatherby voltou-se para encará-lo e empertigou-se arrogantemente.

— Que significa tudo isso? — perguntou. — Será que tenho de ser maltratada por uma doméstica só porque quero ir lá em cima?

— A Srta. Beeton recebeu ordens de não deixar ninguém ir lá em cima — disse Vance com dureza. — E não me consta que ela seja uma doméstica.

— Mas, por que eu não posso subir? — perguntou ela com uma ênfase dramática. — Quero ver o pobre Woody. A morte é tão bela e eu gostava muito de Woody. Por ordens de quem, pergunto eu, está-me sendo negado esta última comunhão com aquele que partiu?

— Por ordens minhas — disse-lhe friamente Vance. — Além disso, essa morte aqui está longe de ser bela, eu lhe garanto. Infelizmente, não estamos vivendo na era de Maeterlinck. A morte de Swift é bastante sórdida, creia-me. A polícia não tardará a chegar. Até lá, ninguém tem permissão para ir lá em cima.

Os olhos da Srta. Weatherby faiscaram.

— Então, por que — perguntou com indignação teatral — estava esta... esta mulher — e olhou com desprezo para a enfermeira — descendo as escadas quando eu entrei no corredor?

Vance não procurou esconder um sorriso divertido.

— Não tenho idéia. Posso perguntar a ela depois. Mas acontece que ela recebeu instruções para não deixar ninguém subir. Vai ter a gentileza, Srta. Weatherby, — acrescentou quase que asperamente — de voltar para o salão e lá permanecer até que cheguem as autoridades?

A mulher olhou com arrogância para a enfermeira e depois, com um movimento de cabeça, caminhou para a escada. De lá voltou-se, com um sorriso cínico, gritou para nós em tom artificial: — Minhas bênçãos, crianças. — E com o que desapareceu no salão.

A enfermeira, obviamente embaraçada, voltou-se para regressar a seu posto, mas Vance interrompeu-a: — Esteve lá em cima, Srta. Beeton? — perguntou com um tom bondoso.

Ela estava parada, ereta, sua face ligeiramente ruborizada. Mas, para toda a sua aparente perturbação, ela era como um símbolo de equilíbrio. Fitou Vance franca e firmemente e depois sacudiu a cabeça devagar.

— Não deixei o meu posto, Sr. Vance — disse com calma. — Eu sei qual é o meu dever.

Vance devolveu-lhe o olhar por um instante e, em seguida inclinou levemente a cabeça.

— Obrigado, Srta. Beeton — disse.

Vance retornou à saleta e, fechando a porta, dirigiu-se novamente a Garden.

— Agora que nos livramos temporariamente da dramática rainha — sorriu sombriamente — acho que podemos continuar a nossa conversa.

Garden riu de leve e recomeçou a encher o cachimbo.

— Garota estranha a Madge, sempre agindo como uma atriz; mas não creio que ela algum dia tenha realmente feito teatro. Ambição dramática reprimida e tudo o mais. Sonha que e uma segunda Nazimova... e sonhos mórbidos. A não ser isso, ela é bastante normal. Aceita suas derrotas como um velho general... e nos últimos meses ela tem perdido um bocado...

— Você ouviu quando ela me disse gostar muito de Swift — observou Vance. — Que queria ela dizer com isso, exatamente?

Garden deu de ombros.

— Nada, em minha opinião. Ela nem sequer ligava para a existência dele, por assim dizer. Porém morto, Woody torna-se uma possibilidade dramática.

— É, é isso — murmurou Vance. — Isto me faz lembrar: qual era a discórdia entre Swift e a Srta. Graem? Percebi suas atividades pacificadoras hoje à tarde.

Garden tornou-se sério.

— Eu mesmo não consegui entender a situação. Sei que há algum tempo atrás eles estiveram bastante ternos um com o outro, isto é, Woody estava muito interessado nos acontecimentos desde que Zalia participasse, pairava à volta dela o tempo todo e aceitava os seus gracejos amistosos sem um murmúrio. Depois, de repente, o caso amoroso em embrião — ou o que quer que fosse — azedou. Do tipo "nunca mais falarei com você". Como duas crianças. Evidentemente deve ter acontecido alguma coisa, mas eu nunca soube ao certo. Pode ter sido uma nova paixão por parte de Woody; estou certo de que foi algo no gênero. Quanto à Zalia, ela nunca levou a coisa a sério. E tenho uma idéia aqui comigo de que Woody insistiu naquela cartada por algum motivo relacionado com Zalia...

— Garden parou abruptamente de falar e deu um tapa na coxa: — Puxa vida! Eu não ficaria admirado se aquela jogadorazinha de uma figa tivesse desprezado Woody porque ele era relativamente duro. Com essas garotas de hoje nunca se sabe. Elas são tão interesseiras como o diabo em pessoa.

Vance assentiu com a cabeça pensativamente.

— Suas observações coincidem um pouco com o que ela me disse há poucos instantes. Também ela queria ir lá em cima ver Swift. Seu pretexto era o fato de se sentir culpada por todo esse sórdido negócio.

Garden sorriu.

— Bem, aí tem você — depois acrescentou ponderadamente: — Mas com as mulheres nunca se sabe. Às vezes Zalia dá a impressão de ser superficial, mas no minuto seguinte ela faz um comentário que o levaria a crer estar ouvindo um filósofo octogenário. Uma garota especial. Ali estão muitas possibilidades.

— Estou vendo. — Vance fumou em silêncio por alguns instantes, depois prosseguiu. — Há um outro ponto relativo a Swift que você talvez pudesse esclarecer. Você poderia sugerir algum motivo pelo qual Swift me olhou com ganas de ódio na ocasião em que fiz a aposta em Azure Star para a Srta. Beeton?

— Eu também notei isso — concordou Garden. — Mas não posso dizer que signifique muita coisa. Woody sempre foi um fracalhão com as mulheres. Um nada o fazia crer que estava apaixonado. Ele pode ter-se interessado pela enfermeira; afinal há alguns meses que ele a vê aqui. E agora que você mencionou o fato, em diversas ocasiões ele se mostrou feroz comigo porque a Srta. Beeton me tratava mais cordialmente do que a ele. Mas quanto a Woody, eu acho o seguinte: se ele se interessou pela Srta. Beeton, o gosto dele estava melhorando. Ela é uma garota diferente... fora de série.

Vance meneou a cabeça lentamente e fixou a janela com especial concentração.

— Sim — murmurou — muito diferente. — Depois, como regressando de algum pensamento distante, esmagou o cigarro e inclinou-se para a frente: — Vamos deixar de lado a especulação, por agora. Suponhamos que você me diga alguma coisa sobre a caixa-forte lá em cima.

Garden encarou-o com surpresa evidente.

— Nada há a dizer sobre aquele velho bazar. E na realidade aquilo não é uma caixa forte. Há alguns anos papai descobriu que havia acumulado uma porção de papéis privados e dados experimentais que ele não gostaria de ver os visitantes comuns bisbilhotando. Então mandou construir aquele depósito à prova de fogo para abrigar os seus tesouros científicos. A caixa-forte, como você chama, foi feita mais na intenção de mero isolamento que de segurança. É apenas uma salinha com estantes toda à volta.

— Todos na casa têm acesso a ela? — perguntou Vance.

— Qualquer um que o deseje — replicou Garden. — Mas quem, em nome dos céus, poderia querer ir lá?

— Realmente, eu não sei; não tenho a mais remota idéia — retorquiu Vance — exceto que, quando eu desci há pouco, encontrei a porta destrancada.

Garden sacudiu os ombros despreocupadamente, como se o assunto fosse normal e sem importância.

— Provavelmente — sugeriu — papai não a fechou bem quando saiu hoje de manhã. Ela tem um fecho de mola.

— E a chave?

— A chave é mais uma formalidade. Fica pendurada em um prego ao lado da porta.

— Então, segundo o que diz, o cofre é facilmente acessível a qualquer morador que ali.queira entrar.

— Exatamente — concordou o outro. — Mas, onde está você querendo chegar, Vance? Que tem o cofre a ver com a morte do pobre Woody?

— Não estou certo — respondeu Vance lentamente, erguendo-se e voltando à janela. — Gostaria de saber. Estou simplesmente tentando não desprezar qualquer possibilidade.

— Sua linha de interrogatório parece-me um bocado forçada — comentou Garden com indiferença.

— Nunca se sabe, não é? — murmurou Vance indo em direção à porta. — Srta. Beeton, — chamou — poderia ter a gentileza de ir lá em cima e ver se a chave da caixa-forte está no lugar?

Minutos depois regressava a enfermeira e informava a Vance que a chave estava onde sempre fora guardada.

Vance agradeceu e, fechando a porta da saleta, voltou-se para Garden: — Há um outro ponto também importante que você poderá esclarecer para mim; isto pode ter uma definida influência na situação — sentou-se em uma cadeira baixa de couro verde e tirou a cigarreira. — O jardim tem acesso pela saída de incêndio do terraço?

— Sim, claro! — O outro sentou-se com animação. — Há um portão na grade do lado este do jardim, exatamente ao lado da cerca de alfenas que conduz ao terraço, para onde se abre a saída de incêndio do prédio. Quando fizemos a grade, tivemos de botar um portão devido às leis de segurança contra incêndio. Mas é raramente usado, exceto nas noites quentes de verão. Assim, se alguém subiu a escada principal até o telhado, e saiu pela porta de emergência, essa pessoa poderia facilmente entrar em nosso jardim através do portão na grade.

— Vocês não mantêm a porta trancada? — Vance estudava com extrema atenção a ponta de seu cigarro.

— Os regulamentos de incêndio não permitem. Temos lá apenas uma velha tramela do tipo de porta de estábulo.

— Isto é muito interessante — comentou Vance em voz baixa. — Então, segundo eu compreendo, qualquer pessoa que subisse a escada principal poderia entrar no terraço pela porta de incêndio e daí para o jardim. E, naturalmente, voltar pelo mesmo caminho.

— Certo — Garden apertou os olhos interrogativamente. — Você realmente crê que alguém possa ter entrado no jardim por ali e abatido o pobre Woody enquanto estávamos todos aqui embaixo?

— Eu por enquanto estou pensando o menos possível — respondeu Vance em evasiva. — Estou tentando reunir material para pensar, sabe como é?

Pudemos ouvir a campainha da entrada vibrar e abrir-se uma porta. Vance foi até o corredor. Um momento após o mordomo introduziu o procurador distrital Markham e o sargento Heath, acompanhado de Snitkin e Hennessey *.

 

 

 

*Snitkin e Hennessey eram dois detetives do Departamento de Homicídios que trabalharam em colaboração com o sargento Heath em vários processos criminais com que Vance estivera relacionado.

 

 

 

 

VII

 

Evidência de Assassinato

 

 

 

(Sábado, 14 de abril — 17:10 horas)

 

 

— Bom, qual é o problema, Vance? — perguntou asperamente Markham. — Telefonei para Heath como você pediu e trouxe-o comigo.

— É um negócio feio — respondeu Vance. — Exatamente como eu lhe disse. Receio que você vá encontrar algumas dificuldades; não é um crime comum. Tudo o que consigo colher é logo destruído por um fato novo. — Ele passou o olhar por Markham e acenou amistosamente para Heath. — Desculpe-me dar-lhe todo esse trabalho, sargento.

— Não há problema, Sr. Vance. — Heath estendeu-lhe a mão numa solene simpatia. — Fico satisfeito por estar lá na hora em que o Chefe telefonou. Que está acontecendo e que devemos fazer?

A Sra. Garden irrompeu alvoroçadamente pelo corredor.

— O senhor é o procurador distrital? — perguntou encarando ferozmente Markham. Sem esperar pela resposta, prosseguiu: — Tudo isto é um ultraje. Meu pobre sobrinho matou-se e este homem aqui — olhou para Vance com supremo desprezo — está tentando fazer um escândalo. — Seu olhar percorreu Heath e os dois detetives. — E suponho que vocês sejam da polícia. Não há razão alguma para que estejam aqui.

Markham olhou-a com firmeza e pareceu compreender imediatamente a situação.

— Minha senhora, se as coisas são como diz — prometeu ele num tom apaziguador porém grave — não precisa recear qualquer escândalo.

— Deixo o caso inteiramente em suas mãos, senhor — retrucou a senhora com calma dignidade. — Estarei no salão à sua disposição para o que seja necessário. — Ela deu meia volta e caminhou pelo corredor afora.

— Um negócio bastante complicado e desagradável, Markham. — Vance levantou novamente a questão. — Admito que o camarada lá em cima aparenta ter-se matado. Mas isso, creio eu, é o que se espera que todos acreditem. Um quadro superficialmente correto. Encenação e cenário bastante bons porém tudo está longe da perfeição; observei discrepâncias. Na realidade, o rapaz não se matou. E há aqui diversas pessoas que deverão ser interrogadas mais tarde. Estão todos no salão agora; exceto Floyd Garden.

Garden, que estivera de pé à porta da saleta, avançou e Vance apresentou-o a Markham e Heath. Depois Vance voltou-se para o sargento.

— Acho que você deveria mandar Snitkin ou Hennessey ficarem aqui embaixo e verificar que ninguém deixe o apartamento por enquanto. — Dirigiu-se a Garden: — Espero que você não se importe.

— Em absoluto — replicou Garden complacentemente.

— Vou juntar-me aos outros que estão no salão. Estou mesmo precisando de um highball. — Saudou a todos de cabeça e retirou-se.

— Seria melhor que fôssemos lá para o terraço, Markham — disse Vance. — Vou recapitular tudo com você. Há alguns aspectos estranhos no caso. Não estou gostando nada disso. Lamento bastante ter vindo aqui hoje. Poderia ter passado por um lindo e elegante suicídio sem qualquer suspeita... Todos muito aliviados. Mas, cá estou eu. E no entanto...

Ele avançou pelo corredor, e Markham, Heath e eu o seguimos. Mas antes de subir as escadas ele parou e dirigiu-se à enfermeira.

— Não mais precisa ficar de guarda aqui, Srta. Beeton — disse. — E obrigado pela ajuda. Mais um favor ainda: quando chegar o médico legista, por favor, traga-o diretamente para cima.

A jovem inclinou a cabeça em sinal de aquiescência e entrou no quarto de dormir.

Subimos imediatamente para o jardim. Quando chegamos ao terraço, Vance indicou o corpo de Woody derreado na cadeira.

— Aqui está o cara — disse. — Exatamente como eu o encontrei.

Markham e Heath aproximaram-se mais do vulto caído e o examinaram durante instantes. Finalmente, Heath ergueu os olhos com um ar perplexo.

— Bem, Sr. Vance, — anunciou desafiador — parece mesmo suicídio. — E mudou o charuto de um canto para o outro.

Markham também voltou-se para Vance e meneou a cabeça em sinal de concordância com a observação do sargento.

— É exato que tem aparência de suicídio, Vance — observou.

— Não, não — suspirou Vance. — Não é suicídio. Um crime diabolicamente brutal e extremamente inteligente.

Markham fumou durante algum tempo, ainda fitando cepticamente o corpo; depois sentou-se encarando Vance.

— Vamos ver a história toda antes que Doremus* chegue aqui — pediu com uma acentuada irritação.

 

 

 

*Dr. Emanuel Doremus, o legista-chefe da cidade de Nova York.

 

 

 


Vance permaneceu de pé, seus olhos percorrendo o jardim sem se fixarem. Após um instante, ele contou outra vez, sucinta porém cuidadosamente, toda a seqüência dos acontecimentos da tarde, com todas as interrelações e explosões temperamentais; os diferentes páreos e apostas; a retirada de Swift para o jardim a fim de aguardar os resultados do grande prêmio; e, finalmente, o tiro que fizera todos erguerem-se e subirem. Quando terminou, Markham cocou o queixo durante algum tempo.

— Ainda não encontrei um único fato — objetou — que não aponte logicamente um suicídio.

Vance encostou-se à parede vizinha à janela do estúdio e acendeu um Régie.

— Evidentemente, nada há no esboço que eu fiz que possa indicar um assassinato. Não obstante, foi assassinato; e o esboço é exatamente a concatenação exata de fatos que o assassino nos quer fazer aceitar. Deveríamos chegar à óbvia conclusão de suicídio. Suicídio como o resultado de perder dinheiro nas corridas não é, de forma alguma, um acontecimento raro, e bem recentemente tem havido notícias nos jornais sobre o assunto*. Não é impossível que o plano do assassino tenha sido influenciado por esses relatos. Mas há outros fatores, psicológicos e reais, que desmentem toda essa estrutura superficial e enganadora.

 

 

 

*Vance referia-se ao suicídio de um homem em Houston, Texas, que deixou o seguinte bilhete: "Ao público: As corridas de cavalo fizeram isto. A melhor coisa que os juristas do Texas poderiam fazer é revogar e tornar mais severa a atual legislação do jogo."

 

 

 


Deu umas tragadas no cigarro e ficou observando o anel azulado da fumaça desfazer-se na leve brisa que vinha do rio.

— Para início de conversa — prosseguiu — Swift não era do tipo de gente que se suicida. Uma observação trivial, que muitas vezes pode não ser verdadeira. Mas, nas circunstâncias atuais, não há motivo para duvidar de sua veracidade, a despeito de o jovem Garden ter-se dado muito trabalho para me convencer do contrário. Em primeiro lugar, Swift era uma criatura fraca e altamente imaginativa. Além disso, ele era demasiado esperançoso e ambicioso, muito seguro de seu próprio discernimento e boa sorte, para colocar-se fora deste mundo simplesmente por ter perdido todo o dinheiro que tinha. A possibilidade de Equanimity não vencer a corrida era uma eventualidade que, em sua condição de experimentado jogador, ele teria considerado de antemão. Além disso, sua natureza é tal que, se ele estivesse grandemente desapontado, o resultado seria autocomiseração e ódio dos outros. Ele poderia, em uma emergência, ter cometido um crime, mas isto nunca seria contra si próprio. Como todos os jogadores, ele era confiante e crédulo; e acho que foram essas qualidades temperamentais que provavelmente o tornaram uma presa fácil para o assassino.

— Mas olhe aqui, Vance — Markham inclinou-se para a frente, protestando. — Nenhuma espécie de simples análise psicológica pode fabricar um crime de uma situação tão aparentemente óbvia como a presente. Afinal de contas, estamos em um mundo prático e eu sou o representante de uma profissão prática. Necessito de motivos mais definidos que os apresentados por você antes de me sentir justificado a descartar a idéia de suicídio.


— Ah, eu acredito — anuiu Vance. — Mas tenho evidências mais tangíveis de que o camarada aqui não eliminou a própria vida. Entretanto, as implicações psicológicas do indivíduo — as contradições, digamos assim, entre o seu caráter e a situação atual foram o que primeiro me levaram a procurar uma evidência específica e clara de que ele não estava sem ajuda em sua morte.

— Bem, vejamos — Markham tamborilou impacientemente com os dedos na cadeira.

— Imprimis, meu caro Justiniano, um buraco de bala na têmpora, indubitavelmente, provocaria mais sangue que o encontrado na fronte do falecido. Como você pode ver, há apenas algumas gotas parcialmente coaguladas, enquanto que os vasos do cérebro não podem ser perfurados sem uma enorme perda de sangue. E também não há sangue em suas roupas ou nos azulejos embaixo de sua cadeira. Isto significa que o sangue talvez tenha sido derramado em outro lugar antes que eu chegasse ao local, o que foi, digamos, trinta segundos após termos ouvido o tiro...

— Mas, por Deus, homem!

— Sim, sim, já sei o que você vai dizer. E minha resposta é que o cavalheiro não recebeu a bala na têmpora enquanto estava sentado em sua cadeira de vime e usando o fone de cabeça. Ele foi morto em outro lugar e trazido para cá.

— Uma teoria bastante remota — murmurou Markham — nem todas as feridas sangram da mesma maneira.

Vance ignorou a objeção do procurador distrital.

— E por favor dê uma boa olhada no pobre coitado que está sentado aí, livre de todos os horrores da luta pela existência. Suas pernas estão estendidas para a frente em um estranho ângulo. As calças estão fora do lugar, retorcidas, e parecem inconfortáveis; seu paletó, apesar de abotoado, está fora do lugar, de maneira que o colarinho está pelo menos dez centímetros acima de sua bonita camisa lilás. Nenhum homem admitiria ter suas roupas tão ultrajantemente retorcidas, mesmo à beira do suicídio; ele as teria ajeitado quase que inconscientemente. O corpo de delito dá todas as indicações de que Woody foi arrastado e sentado naquela cadeira.

Os olhos de Markham iam examinando o cadáver de Swift enquanto Vance falava.

— Até mesmo esse argumento não é muito convincente — disse dogmaticamente, embora seu tom estivesse levemente modificado — especialmente em vista do fato de ele ainda usar o fone de cabeça.

— Ah, exatamente! — Vance interrompeu rápido. — Este é um outro ponto para o qual eu queria chamar a sua atenção. O assassino exagerou um pouco; havia um quê de perfeição demais na preparação do cenário. Caso Swift se tivesse matado naquela cadeira, acho que o seu primeiro impulso teria sido o de arrancar o fone da cabeça, pois esse facilmente teria interferido em seu objetivo. E também o fone não mais lhe seria útil após ter ouvido o resultado das corridas. Além do mais... tenho sérias dúvidas de que ele tenha ido lá em cima para ouvir as corridas, já decidido a cometer suicídio, caso o seu cavalo não chegasse primeiro. E, como já lhes expliquei, o revólver pertence ao Sr. Garden e costumava ser guardado na escrivaninha do estúdio. Conseqüentemente, se após corrido o páreo Swift tivesse decidido matar-se, dificilmente teria ido até o estúdio procurar a arma, para depois voltar à sua cadeira no terraço e colocar serenamente o fone antes de dar cabo à vida. Indubitavelmente, ele se teria matado lá mesmo no estúdio, perto da escrivaninha de onde teria tirado o revólver.

Vance avançou um pouco como para dar ênfase às suas palavras.

— Um outro ponto a respeito do fone de cabeça. O que primeiro me deu uma pista do crime, é o fato que agora o fone está na orelha direita de Swift. Hoje cedo eu vi Swift colocar o fone e observei que ele tinha o cuidado de colocar o receptor na orelha esquerda, isto é, na maneira habitual. Veja, Markham, o receptor do telefone sempre é colocado à esquerda da caixa que contém o aparelho, a fim de deixar a mão direita livre para qualquer anotação ou outras emergências. O resultado disso é que o ouvido esquerdo adaptou-se a ouvir mais distintamente pelo aparelho que o direito. E, em conseqüência disso, a humanidade acostumou-se a segurar o fone junto à orelha esquerda. Swift estava simplesmente agindo de acordo com um hábito e instinto, quando colocou a extremidade receptora do fone no lado esquerdo da cabeça. Mas, agora, o fone está em posição inversa e, portanto, fora do normal. Estou certo, Markham, de que o fone foi colocado em sua cabeça após a morte.

Markham meditou no caso durante alguns momentos.

— Ainda assim, Vance, — disse ele por fim — poderíamos erguer objeções razoáveis a todos os pontos que você apresentou. Eles são baseados quase que inteiramente em teoria e não em fatos demonstráveis.

— Do ponto de vista legal, você está certo — concordou Vance — e se estas fossem as minhas únicas razões para acreditar que foi cometido um crime, eu não o teria convocado aqui, nem ao valente sargento. Mas, mesmo assim, Markham, posso garantir-lhe que as poucas gotas de sangue que você vê nas têmporas aqui do nosso amigo não teriam engrossado ao ponto em que estavam quando eu vi o corpo pela primeira vez; elas deviam já estar expostas ao ar por alguns minutos. E, como eu digo, cheguei aqui em cima aproximadamente trinta segundos após ouvirmos o tiro.

— Mas se é assim — retrucou Markham surpreendido — como pode você explicar o caso?

Vance esticou-se um pouco e olhou para o procurador distrital com uma gravidade involuntária: — Swift não morreu do tiro que ouvimos.

— Isto para mim não faz sentido, Sr. Vance — interpôs Heath, carrancudo.

— Um momento, sargento. — Vance fez-lhe um gesto frio. — Quando notei que o tiro que acabou com a existência aqui do nosso rapaz não fora o que ouvíramos, eu tentei imaginar onde poderia ter sido feito o disparo fatal de modo a não ser ouvido lá embaixo. E eu descobri o lugar. Foi no depósito que parece uma caixa-forte e, poderíamos dizer, é quase a prova de som e fica do outro lado do corredor que leva ao estúdio. Achei a porta destrancada e procurei evidência de alguma atividade naquele local...

Markham erguera-se e dava algumas passadas nervosas à volta do pequeno lago em meio do terraço.

— Você achou alguma evidência para confirmar a sua teoria? — perguntou.

— Sim, evidência inequívoca. — Vance caminhou até a figura imóvel na cadeira e apontou para os óculos de grossas lentes colocados quase na ponta do nariz. — Para início de conversa, Markham, você vai notar que os óculos de Swift estão numa posição que não é normal, indicando que foram colocados apressadamente e sem cuidado por outra pessoa, da mesma forma que o fone da cabeça.

Markham e Heath inclinaram-se e estudaram os óculos.

— Bem, Sr. Vance, — concordou o sargento — eles certamente não parecem ter sido colocados pelo próprio dono.

Markham ergueu-se, apertou os lábios e concordou lentamente com a cabeça: — Está certo — disse. — Que mais?

— Reflita, Markham. — Vance apontou com o cigarro.

— A lente esquerda dos óculos, a que está mais afastada da têmpora perfurada, está quebrada no canto e falta um pedacinho em forma de V onde começa o rachado: uma indicação de que os óculos caíram e racharam. Posso garantir-lhe que as lentes não estavam quebradas nem rachadas quando vi Swift vivo pela última vez.

— Ele não poderia ter deixado cair os óculos aqui no terraço? — perguntou Heath.

— É possível, sem dúvida, sargento — retrucou Vance. — Mas não o fez. Procurei cuidadosamente nos ladrilhos à volta da cadeira e o pedaço que falta não estava aí.

Markham olhou para Vance sobranceiro.

— Talvez você saiba onde se encontra.

— E o achei — disse Vance — no chão de ladrilho da caixa-forte, do outro lado do corredor. E estava próximo a alguns papéis espalhados que é bem possível tenham sido derrubados no chão por alguém que neles bateu ao cair.

Os olhos de Markham arregalaram-se com incredulidade; voltou-se e estudou novamente o cadáver com atenção. Finalmente, respirou fundo e mordeu os lábios.

— Estou começando a ver por que você queria a mim e ao Sargento Heath aqui — disse devagar. — Mas, o que não compreendo, Vance, é o segundo tiro que você ouviu. Como você o explica?

Vance deu uma profunda tragada.

— Markham, — respondeu com uma seriedade tranqüila — quando soubermos como e por quem foi dado o segundo tiro, que, obviamente, destinava-se a ser ouvido por nós, saberemos quem matou Swift...

Nesse instante a enfermeira apareceu na porta que levava ao terraço. Com ela estavam o Dr. Doremus e, atrás do legista, o capitão Dubois e o detetive Bellamy, os homens das impressões digitais, e também Peter Quackenbush, o fotógrafo oficial da polícia.


VIII

 

Fios Desligados

 

(Sábado, 14 de abril — 17:30 horas)

 

 

 

Com um gesto profissional, a Srta. Beeton indicou nossa presença no terraço e afastou-se para o lado; o médico legista caminhou vivamente em nossa direção com um "Obrigado, querida" atirado à enfermeira por cima do ombro.

— Se eu puder ajudar em alguma coisa — ofereceu a jovem.

— Por enquanto, não — replicou Vance com sorriso amável — embora possamos chamá-la mais tarde.

Com uma inclinação de cabeça ela indicou ter compreendido e voltou a descer.

Doremus responde à nossa saudação conjunta com um jovial aceno de mão e estacou airosamente diante de Heath.

— Parabéns, sargento — disse ele num falsete de zombaria. — Parabéns, mesmo!

O sargento imediatamente pôs-se em guarda, pois já conhecia de há muito a língua apimentada do legista.

— Bem, que está acontecendo, doutor? — riu Heath.

— Pela primeira vez em sua vida — prosseguiu jocosamente Doremus — você achou a hora certa para me chamar. Positivamente surpreendente, como diria o Sr. Vance aqui presente. Eu não estava nem comendo nem dormindo, quando chegou o seu chamado. Nada tinha a fazer; realmente estava meio chateado. Pela primeira vez na história, você não me tirou da mesa, nem me arrancou de sob os cobertores. Por que este repentino surto de caridosa consideração? Pela primeira vez vou fazer um serviço de bom humor... Tragam todos os cadáveres e eu os examinarei sem rancor.

Heath divertia-se apesar de estar aborrecido.

— Eu não estou providenciando assassínios de acordo com a sua conveniência. Mas se desta vez o encontrei à toa, fico satisfeito. Há um cara na cadeira ali. É um achado do Sr. Vance e ele tem algumas idéias a respeito.

Doremus empurrou o chapéu bem para trás, enfiou as mãos nos bolsos das calças e caminhou tranqüilamente até a cadeira de vime e seu ocupante sem vida. Fez um rápido exame do flácido vulto, inspecionou o orifício da bala, testou os braços e pernas com relação ao rigor mortis e, em seguida, deu meia volta para encarar-nos.

— Então, qual é o problema? — perguntou com seu modo quase cínico. — Ele está morto; um tiro na cabeça com uma bala de pequeno calibre e o chumbo provavelmente se alojou no cérebro. Não há buraco de saída. Dá a impressão que ele decidiu matar-se com um tiro. E nada há que contradiga essa suposição. A bala entrou na têmpora, no ângulo certo. Além disso, há marcas de pólvora mostrando que a arma foi colocada bem perto, quase um tiro à queima-roupa, eu diria. Há um indício de chamusco à volta do orifício.

Ele balançou-se na ponta dos pés e olhou de soslaio para o sargento: — Você não me precisa perguntar há quanto tempo ele está morto, porque não posso dizer. O máximo que eu lhe posso adiantar é que ele morreu entre mais ou menos 30 minutos e 2 horas. Ainda não está frio e o rigor mortis ainda não se instalou. O sangue da ferida está apenas levemente coagulado, porém as variações desse processo, especialmente ao ar livre, não permitem um cálculo apurado do tempo decorrido. Que mais quer que eu lhe diga?

Vance tirou o cigarro da boca e dirigiu-se a Doremus: — Diga-me, doutor: falando do sangue na têmpora do nosso amigo aqui, que me diz da quantidade?

— Um bocado reduzida, eu diria — Doremus respondeu prontamente. — Mas os ferimentos de bala têm, às vezes, umas reações estranhas. De qualquer forma, deve ter havido bastante mais sangue derramado.

— Precisamente — anuiu Vance. — Minha teoria é que ele foi alvejado em outro lugar e trazido para esta cadeira.

Doremus fez uma careta e inclinou a cabeça para um lado.

— Foi alvejado? Então você não acha que foi suicídio? — ponderou o legista por uns instantes. — Poderia ser, é claro — decidiu-se finalmente. — Não há razão que impeça um cadáver de ser carregado de um lugar para o outro. Ache o resto de sangue e você provavelmente saberá onde ocorreu a morte.

— Imensamente grato, doutor — Vance sorriu palidamente. — Isto também me passou pela idéia, entende, mas acho que o sangue foi limpo. Eu estava simplesmente desejando que suas descobertas consubstanciassem a minha teoria de que ele não se matou sentado naquela cadeira, sem qualquer pessoa à sua volta.

Doremus deu de ombros com indiferença.

— Esta é uma suposição bastante razoável — disse. — Na realidade, deveria haver mais sangue. E posso dizer-lhe que ele não o enxugou após ser disparado o tiro. Ele morreu instantaneamente.

— Tem mais algumas sugestões? — perguntou Vance.

— Poderei ter quando tiver examinado o corpo mais cuidadosamente, depois que esses rapazes — ele indicou com um gesto o fotógrafo e o datiloscopista — tenham terminado a sua bagunça.

O capitão Dubois e Bellamy já haviam dado início ao seu trabalho de rotina, começando pela mesa do telefone; quanto a Quackenbush, estava ajustando o seu pequeno tripé metálico.

Vance dirigiu-se a Dubois: — Por favor, capitão, dê sua especial atenção ao fone de cabeça, ao revólver e aos óculos. E também à maçaneta da porta da caixa-forte lá no corredor interno.

Dubois anuiu com um grunhido e continuou suas delicadas funções.

Quackenbush, tendo instalado sua câmara, tirou as fotografias e depois esperou à porta do corredor por outras instruções dos datiloscopistas.

Depois que os três homens acabaram, Doremus deu um suspiro exagerado e falou impacientemente com Heath.

— Que tal levar o seu corpus delicti para o sofá? Será mais fácil examiná-lo lá.

— O.K., doutor.

O sargento comandou Snitkin com um movimento de cabeça e os dois homens ergueram o flácido corpo de Swift e colocaram-no no mesmo divã onde Zalia Graem estivera reclinada quando desmaiou à vista do cadáver.

Doremus entrou em ação com sua habitual maneira rápida e eficiente. Quando terminou sua tarefa, atirou uma manta sobre o cadáver e fez um sucinto relatório a Vance e Markham.

— Nada há que indique luta violenta, se era isto que você estava esperando. Mas há uma leve arranhadura no osso do nariz, como se os óculos tivessem saltado fora, e há um pequeno galo no lado esquerdo da cabeça, sobre a orelha, que pode ter sido causado por pancada de qualquer tipo, embora a pele não esteja rompida.

— Então, doutor — falou Vance — como se enquadraria em seus achados a seguinte teoria: o homem foi alvejado em outro lugar qualquer, caiu em um piso ladrilhado, batendo fortemente com a cabeça de encontro ao mesmo; na queda os óculos foram arrancados e a lente esquerda bateu no chão; depois, ele foi carregado àquela cadeira e os óculos recolocados em seu nariz?

Doremus apertou os lábios e inclinou a cabeça meditando.

— Isto seria uma explicação bastante razoável para o galo na cabeça e o arranhão no osso do nariz. — Atirou com a cabeça para trás, ergueu as sobrancelhas e ironizou: — Então esse é mais um de seus crimes estrambólicos, hem? Bem, para mim, não há problema. Mas vou dizer-lhe desde já, você não terá um relatório de autópsia esta noite. Estou aborrecido e preciso de distração. Vou ao Madison Square Garden para ver Strangler Lewis e Londos se destruírem na lona. — O legista atirou o queixo para a frente numa beligerância bem humorada para com Heath. — E também não vou deixar o número da minha cadeira na portaria, sargento. Pode adiar as suas eventuais futuras ocorrências para amanhã ou, então, incomode um de meus assistentes.

Em seguida, redigiu uma ordem para a remoção do corpo; reajustando o chapéu, deu um aceno incluindo todos nós e desapareceu rapidamente pela porta que dava para o corredor.

Vance abriu caminho em direção ao estúdio e nós o seguimos. Mal havíamos sentado quando o capitão Dubois entrou e informou que não havia qualquer espécie de impressões digitais em quaisquer dos objetos que Vance enumerara.

— Usaram luvas — concluiu laconicamente — ou então limparam depois.

Vance agradeceu e acrescentou: — Isto em nada me surpreende.

Dubois reuniu-se a Bellamy e Quackenbush no corredor e os três desceram a escada.

— Então, Vance, está satisfeito? — perguntou Markham. Vance fez que sim.

— Eu não esperava que encontrassem impressões. Um crime muito bem planejado. E o que Doremus encontrou preenche alguns claros da minha teoria. Rapaz decidido, esse Doremus. Com todas as suas manias, ele entende do negócio. Sabe o que se quer e procura por aquilo. Não há mais dúvidas de que Swift estava na caixa-forte quando foi alvejado; de que caiu ao chão, derrubando alguns papéis; que bateu com a cabeça no chão de ladrilho e quebrou a lente esquerda dos óculos, e que ele foi arrastado até o jardim e colocado na cadeira. Swift era um homem pequeno, esbelto, provavelmente não pesava mais que sessenta quilos, não deve ter sido necessário muita força para transportá-lo após a morte...

Ouviram-se alguns passos no corredor e quando nossos olhos involuntariamente voltaram-se para a porta, vimos a digna e idosa figura do Prof. Ephraim Garden: eu o reconheci imediatamente pelas fotografias que vira.

Era um homem alto, apesar de seus ombros encurvados e, embora muito magro, possuía uma capacidade de resistência que fazia as pessoas sentirem que ele havia conservado uma grande parte da força física que certamente tivera na juventude. Havia benevolência naquele rosto um tanto perturbado, mas havia também perspicácia em seu olhar; o contorno de sua boca indicava uma firmeza latente. O cabelo, escovado para trás, era quase branco e parecia acentuar a tristeza do conjunto. Os olhos escuros e a expressão do rosto eram como os de seu filho, porém ele era um tipo mais sensível e estudioso que Garden.

O professor curvou-se para nós com uma graça um tanto antiquada e deu alguns passos entrando no estúdio.

— Meu filho acabou de informar-me — disse numa voz levemente belicosa — da tragédia que aconteceu aqui hoje à tarde. Lamento não ter voltado para casa mais cedo, como é meu desejo aos sábados, porque nesse caso a tragédia poderia talvez ter sido evitada. Da minha parte, eu estaria no estúdio, e certamente teria exercido alguma vigilância sobre o meu sobrinho. E, de qualquer forma, ninguém poderia ter-se apossado do meu revólver.

— Eu não teria tanta certeza, doutor Garden, — respondeu tristemente Vance — de que sua presença aqui esta tarde pudesse ter evitado a tragédia. Não é um assunto tão simples como parece à primeira vista.

O Prof. Garden sentou-se em uma cadeira antiga, trabalhada à mão, que estava próximo à porta e, entrecruzando os dedos firmemente, inclinou-se para a frente.

— É, eu sei. Compreendo. E quero ouvir mais alguma coisa sobre o caso. — Era evidente a tensão em sua voz. — Floyd disse que a morte de Woody tinha toda a aparência de suicídio, mas que o senhor não aceita essa conclusão. Pode dar-me as suas razões, Sr. Vance?

— Não tenho a menor dúvida, senhor, de que seu sobrinho foi assassinado — respondeu calmamente Vance. — Há um sem-número de indicações que contradizem a teoria de suicídio. Mas seria pouco aconselhável, assim como igualmente desnecessário, entrar em detalhes no momento. Nossa investigação mal começou.

— É preciso haver uma investigação? — perguntou o professor num trêmulo protesto.

— O senhor não deseja que o criminoso seja entregue à justiça? — perguntou Vance friamente.

— Sim, sim, naturalmente. — A resposta do professor foi quase involuntária, mas, enquanto falava, seus olhos vagueavam sonhadoramente através da janela que dominava o rio. Depois, ele se acomodou melhor na cadeira. — É bastante desagradável isso — murmurou. — Mas o senhor está bem seguro de que não vai provocar um escândalo desnecessário?

— Completamente — assegurou Vance. — Quem quer que cometeu o crime, fez graves erros de cálculo. A sutileza do crime não se estendeu a todas as suas fases. Na realidade, acredito que alguma situação ou incidente fortuito exigiram certas modificações de última hora. Por falar nisso, doutor, posso perguntar-lhe o que o deteve esta tarde? Concluí do que me disse seu filho, que nos sábados geralmente o senhor volta para casa muito antes desta hora.

— É claro que pode — respondeu ele com aparente franqueza, mas havia uma expressão atônita em seu olhar enquanto encarava Vance. — Eu precisava dar uma vista em alguns dados um tanto obscuros antes de prosseguir com as experiências que estou fazendo; achei que hoje era um dia excelente para fazê-lo, visto que, aos sábados à tarde, fecho o laboratório e dispenso meus assistentes.

— E onde esteve o senhor — prosseguiu Vance — entre o momento em que deixou o laboratório e a hora de sua chegada aqui?

— Para ser bem específico — respondeu o Prof. Garden — deixei a Universidade por volta das duas horas e fui para a biblioteca municipal onde permaneci até meia hora atrás. Depois, peguei um táxi e vim diretamente para casa.

— O senhor foi para a biblioteca sozinho? — perguntou Vance.

— Naturalmente que fui só — respondeu o professor acidamente. — Não levo comigo meus assistentes quando tenho uma pesquisa a fazer. Ele interrompeu-se de repente: — Mas que significa todo esse interrogatório? Estarei eu, por acaso, sendo chamado para fornecer um alibi.

— Meu caro Doutor! — disse Vance apaziguadoramente.

— Um sério crime foi cometido em sua casa e é essencial que saibamos, como é de rotina, as atividades das diferentes pessoas de alguma forma relacionadas com a triste situação.

— Eu compreendo o que quer dizer. — O Prof. Garden inclinou a cabeça cortesmente e foi até a janela fronteira onde permaneceu olhando as montanhas azuladas do outro lado do rio onde começavam a chegar as primeiras sombras do crepúsculo.

— Fico satisfeito que o senhor compreenda as nossas dificuldades — disse Vance — e acredito que o senhor também terá a mesma consideração quando eu lhe perguntar quais eram exatamente as relações entre o senhor e seu sobrinho?

O homem voltou-se lentamente e apoiou-se à larga soleira.

— Nós éramos muito ligados — respondeu sem hesitação nem ressentimento. — Minha mulher e eu considerávamos Woody quase um filho desde que seus pais morreram. Moralmente, ele não era uma pessoa forte e precisava de amparo material e espiritual. Talvez devido a essa fundamental fraqueza de sua natureza, nós fomos mais condescendentes com ele que com nosso próprio filho. Em comparação com Woody, Floyd é um homem capaz, de cabeça firme, inteiramente apto a tomar conta de si mesmo.

Vance balançou a cabeça em sinal de compreensão.

— Sendo assim, suponho que tanto o senhor como a Sra. Garden não esqueceram do jovem Swift em seus testamentos.

— É verdade — respondeu o Prof. Garden após uma leve pausa. — Na realidade, nós fizemos Woody e nosso filho beneficiários com partes iguais.

— Seu filho tem alguma renda própria? — perguntou Vance?

— De espécie alguma — disse o professor. — Ele tem feito um pouco de dinheiro aqui e ali; em diversos empreendimentos, todos eles ligados ao esporte, mas depende inteiramente da pensão que eu e minha mulher lhe damos. Ela é bem larga, larga demais talvez, se julgarmos de acordo com os padrões convencionais. Mas eu não vejo razão para não ser indulgente com o rapaz. Não é sua culpa se não tem o temperamento para exercer uma profissão e não tem faro para negócios. E eu não vejo motivo para ele seguir qualquer rotina comercial à qual não se adapta, uma vez que não há necessidade disso. A Sra. Garden e eu herdamos nosso dinheiro; embora eu tenha sempre lamentado que Floyd não tivesse interesse em aspectos mais importantes da vida, nunca estive inclinado a privá-lo das coisas que aparentemente constituem a sua felicidade.

— Uma atitude muito liberal, doutor, — murmurou Vance — especialmente da parte de alguém como o senhor, tão dedicado às coisas sérias da vida... Mas, e Swift? Ele tinha uma renda independente?

— O pai dele — explicou o professor — deixou-lhe uma soma bastante razoável, mas eu imagino que ele esbanjou ou perdeu no jogo a maior parte da mesma.

— Há ainda uma pergunta que eu gostaria de fazer — continuou Vance — em relação ao seu testamento e ao da Sra. Garden, Seu filho e seu sobrinho estavam ambos cientes das disposições testamentárias?

— Não sei dizer. É bem possível que sim; nem eu nem a Sra. Garden encaramos o assunto como segredo... Mas, pergunto eu — e o Prof. Garden lançou um olhar intrigado em direção à Vance — que tem isso a ver com a horrível situação atual?

— Esteja certo de que não tenho a menor idéia — admitiu francamente Vance. — Estou simplesmente tateando no escuro, na esperança de encontrar algum pequeno raio de luz.

Hennessey, o detetive a quem Vance ordenara ficar de guarda embaixo, surgiu ruidosamente no corredor.

— Há um sujeito lá embaixo, sargento, — informou — dizendo que é da companhia de eletricidade e tem que consertar uma campainha ou coisa semelhante. Ele já fuçou por toda parte lá embaixo nada encontrando de errado e então o mordomo disse-lhe que poderia ser aqui. Mas achei melhor vir perguntar-lhe antes de deixá-lo subir. Então?

Heath deu de ombros e interrogou Vance com o olhar.

— Está tudo certo, Hennessey, — disse Vance ao detetive — deixe-o subir.

Hennessey saudou aliviado e foi-se.

— Você sabe, Markham — disse Vance lentamente, acendendo meticulosamente outro cigarro. — Eu gostaria de que essa campainha dos infernos não se tivesse desarranjado exatamente agora. Eu detesto coincidências...

— Você se refere — interrompeu o Prof. Garden — à campainha interna entre esta sala aqui e a saleta lá embaixo?... Esta manhã funcionava perfeitamente; Sneed chamou-me para o café da manhã, como de hábito.

— Sim, sim — anuiu Vance. — É exatamente a mesma. E evidentemente ela deixou de funcionar depois que o senhor saiu. A enfermeira o descobriu e informou a Sneed que chamou o eletricista.

— Não é de muita importância — retrucou o professor, fazendo com a mão um gesto lânguido. — Entretanto, é bastante cômodo, pois evita muitas viagens para baixo e para cima.

— De qualquer forma, podemos deixar o homem examiná-la já que aqui está! Ele não nos vai incomodar. — Vance ergueu-se: — Doutor, o senhor teria a fineza de reunir-se aos outros que estão embaixo? Nós também vamos descer.

O professor inclinou a cabeça numa aquiescência silenciosa e, sem uma palavra, saiu da sala.

Nesse momento, um rapaz alto e pálido surgiu à porta do estúdio, carregando uma pequena maleta de ferramentas.

— Mandaram-me aqui verificar uma cigarra — anunciou com uma indiferença rabugenta. — Não achei o problema lá embaixo.

— Talvez a dificuldade esteja do lado de cá — sugeriu Vance. — Há uma cigarra atrás da escrivaninha. — E apontou para a pequena caixa preta e seu botão.

O homem dirigiu-se até ela, abriu a maleta de ferramentas e, tirando uma pequena lanterna e uma chave de fenda, removeu a tampa da caixa. Tocando os fios com os dedos, ele olhou para Vance com uma expressão de desprezo.

— Não se pode esperar que a cigarra toque quando os fios estão desligados — comentou.

Vance tornou-se subitamente interessado. Ajustando seu monóculo, ajoelhou-se e olhou para a caixa.

— Estão ambos desligados, hem? — observou.

— Claro que estão — resmungou o homem. — E também não me parece que eles tenham afrouxado sozinhos.

— Você acha que foram soltos propositadamente? — perguntou Vance.

— Bem, é o que parece. — O homem ocupava-se religando os fios. — Ambos os parafusos estão soltos e os fios não estão encurvados, parece que foram arrancados.

— Isto é muito interessante. — Vance ergueu-se e recolocou o monóculo no bolso, meditando. — Poderia ser, evidentemente. Mas não vejo por que alguém o poderia ter feito... Desculpe-me tê-lo incomodado.

— Ah, isto são coisas do trabalho — murmurou o homem reajustando a tampa da caixa. — Eu gostaria de que todas as minhas tarefas fossem tão fáceis quanto esta. — Após alguns instantes, ele ergueu-se. — Vamos ver se a cigarra funciona agora. Há alguém lá embaixo para responder se eu apertar?

— Vou-me ocupar disso — interpôs Heath e dirigiu-se a Snitkin. — Dê um pulo lá na saleta e se ouvir a campainha lá, toque de volta.

Snitkin saiu depressa e alguns momentos depois, quando o botão foi apertado, chegaram dois sinais de resposta.

— Está legal agora — disse o eletricista, guardando suas ferramentas e dirigindo-se à porta. — Até à vista. — E desapareceu no corredor.

Markham estivera examinando meticulosamente Vance durante alguns minutos.

— Você tem alguma idéia em mente — disse sério. — Qual é o problema com essa campainha desligada?

Vance fumou em silêncio durante algum tempo, olhando para o chão. Depois caminhou até à janela e fitou o jardim, pensativo.

— Não sei, Markham. É um bocado enganador. Mas tenho a sensação de que a mesma pessoa que deu o tiro ouvido por nós desligou aqueles fios...

Repentinamente, ele deu um passo em direção à parte de trás dos reposteiros e abaixou-se, ainda perscrutando o jardim cuidadosamente. Ergueu a mão em sinal de advertência para que ficássemos fora da vista.

— Diabolicamente estranho! — disse tensamente. — Aquele portão lá na extremidade da grade está-se abrindo... Meu Deus! — E ele atirou-se pelo corredor afora, em direção ao jardim, falando para que o seguíssemos.

 


IX

 

Duas Pontas de Cigarro

 

(Sábado, 14 de abril — 18:00 horas)

 

 

Vance passou pelo corpo de Swift no divã e cruzou o terraço rumo ao portão do jardim. Quando lá chegou, deparou com a altiva e majestosa figura de Madge Weatherby. Evidentemente sua intenção era entrar no jardim, mas recuou bruscamente quando nos viu. Nossa presença, entretanto, não pareceu embaraçá-la nem surpreendê-la.

— Muito gentil de sua parte em subir, Srta. Weatherby — disse Vance. — Mas dei ordens para que todos permanecessem lá embaixo.

— Eu tinha o direito de vir aqui! — retrucou ela, empertigando-se com uma dignidade quase real.

— Ah — murmurou Vance. — Sim, é claro. Pode ser que sim. Mas poderia explicar-nos?

— Pois não. — Sua expressão permaneceu imutável e a voz era oca e artificial. — Eu quis certificar-me se ele poderia ter feito realmente isso.

— E quem é esse misterioso ele?

— Quem? — repetiu ela, atirando a cabeça para trás sarcasticamente. — Ora, Cecil Kroon!

As pálpebras de Vance caíram e ele estudou bem de perto a mulher, durante alguns momentos. Depois, disse despreocupadamente: — Muito interessante. Mas vamos deixar isso um pouco de lado. Como conseguiu chegar aqui?

— Isto foi muito simples. — Ela inclinou negligentemente a cabeça. — Fingi sentir-me mal e disse à sua guarda que ia à copa beber água. Saí pela porta da copa para o corredor externo do edifício, subi a escada principal e daí saí neste terraço.

— Mas como sabia que por este caminho alcançaria o telhado?

— Eu não sabia. — Sorriu enigmàticamente. — Estava apenas conjeturando. Estava ansiosa por provar a mim mesma que Cecil Kroon poderia ter alvejado o pobre Woody.

— E está convencida de que ele poderia ter feito isto?

— perguntou mansamente Vance.

— Ah, sim — replicou ela com amargura. — Fora de dúvidas. Já há algum tempo eu sei que mais cedo ou mais tarde Cecil o mataria. Quando o senhor disse que Woody havia sido assassinado, tive certeza absoluta de que Cecil havia feito isso. Mas eu não compreendi como ele teria chegado aqui, após ter-nos deixado esta tarde. Por isso, eu me empenhei em descobrir.

— E por que motivo, se posso perguntar — disse Vance — desejaria o Sr. Kroon dar fim à vida de Swift?

A mulher apertou as mãos teatralmente de encontro ao peito. Dando um passo à frente, disse com uma voz dramática e sepulcral: — Cecil estava enciumado, terrivelmente enciumado. Ele está loucamente apaixonado por mim. Tem-me torturado com suas atenções... — Levou uma das mãos à testa em sinal de desespero. — Nada posso fazer. E quando ele soube que eu me interessava por Woody, ficou desesperado. Ameaçou-me. Fiquei horrivelmente apavorada. Eu não ousava terminar tudo com ele, não sei o que poderia fazer. Então resolvi fazer-lhe a vontade; eu continuei com ele, esperando, esperando que essa loucura se desvanecesse. Durante algum tempo, pensei que ele estivesse ficando normal e razoável. E então hoje... este horrível crime! — Sua voz desapareceu num exagerado suspiro.

O olhar agudo de Vance não demonstrava a simpatia que o pomposo recital estava a exigir, nem o cinismo que eu sabia ele estar sentindo. Havia apenas um interesse estudado em sua expressão.

— Triste, muito triste — murmurou.

A Srta. Weatherby atirou a cabeça para trás e seus olhos flamejaram.

— Eu vim aqui em cima para ver se era possível que Cecil pudesse ter feito isso. Eu vim aqui em nome da justiça!

— Muita amabilidade. — As maneiras de Vance mudaram subitamente. — Nós ficamos muito gratos e tudo o mais. Mas preciso insistir, entende, que a senhora volte para baixo e espere lá com os outros. E vai ter a fineza de regressar pelo jardim e descer pela escada do apartamento.

Ele estava brutalmente realista quando fechou o portão e encaminhou a senhora até à porta do corredor. Aí ela hesitou um momento e depois seguiu o dedo indicador de Vance. Ao passar diante do divã de vime, ela parou de repente e pôs-se de joelhos.

— Oh, Woody, Woody! — Soluçou dramaticamente. — Tudo por minha culpa! — Cobriu o rosto com as mãos e inclinou a cabeça bem para a frente numa atitude de mísera abjeção.

Vance deixou escapar um profundo suspiro, atirou longe o cigarro e, pegando-a firmemente pelo braço, colocou-a de pé.

— Realmente, Srta. Weatherby, — disse ele bruscamente, conduzindo-a até à porta — isto não é um melodrama.

Ela endireitou-se com um soluço reprimido e foi pelo corredor em direção à escada.

Vance voltou-se para o detetive e acenou em direção à entrada.

— Snitkin, — disse num tom fatigado — vá lá embaixo e diga a Hennessey para ficar de olho nessa Sarah Bernhardt até que precisemos dela.

Snitkin sorriu e seguiu Miss Weatherby. Quando voltamos ao estúdio, Vance mergulhou em uma poltrona e bocejou.

— Palavra! O caso já é bastante difícil sem todos esses dramáticos amadores.

Markham, percebi, havia ficado impressionado e divertido com o incidente.

— Talvez não seja apenas drama — sugeriu. — Aquela senhora fez algumas afirmações bem definidas.

— Ah, sim. Ela pode. Ela é desse tipo. — Vance tirou a cigarreira. — Afirmações definidas, sim. E enganadoras, também. Realmente, nem por um minuto acreditei que ela encare Kroon como o culpado.

— Bem, então o quê? — saltou Markham.

— Nada, na verdade — Vance suspirou. — Vaidade e futilidade. A senhora, vaidade; nós, futilidade. Nada conduz à parte alguma.

— Mas ela certamente tem alguma idéia — protestou Markham.

— E nós também. Fico pensando... Mas se pudéssemos ler inteiramente o pensamento de alguém, provavelmente compreenderíamos o universo. Prontos para a onisciência e todas essas coisas.

— Deus do céu! — Markham ergueu-se e colocou-se beligerantemente em frente a Vance: — Você não pode ser racional?

— Ora, Markham... meu querido Markham! — Vance sacudiu a cabeça tristemente. — Que é a racionalidade? Entretanto... como você diz. Há alguma coisa por trás do dramalhão de nossa amiga. Ela tem idéias, mas é confusa. E quer que nós sejamos como aqueles deuses chineses que só podiam andar em linha reta. Triste. Mas vamos tentar fazer um rodeio. A situação é mais ou menos esta: uma infeliz senhora esgueira-se pela copa e apresenta-se no terraço esperando atrair nossa atenção. Tendo conseguido o que desejava, ela nos informa ter provado conclusivamente que um certo Sr. Kroon acabou com a vida de Swift devido a ciúmes. Esta é a linha reta, a maior distância entre dois pontos. Agora, a curva. A própria senhora, suponhamos, é a desprezada e não quem despreza. Ela sofre com isso, é temperamental e vingativa, e vem aqui ao terraço apenas com a finalidade de convencer-nos de que Kroon é o culpado. Ela ficaria feliz da vida em ver Kroon sofrer, culpado ou não.

— A história dela é bastante plausível — disse Markham agressivamente. — Por que então tentar encontrar significados ocultos em fatos evidentes? Kroon poderia ter feito a coisa. E, no entanto, a sua análise psicológica da mulher põe de lado a hipótese.

— Meu caro Markham! Não põe de lado coisa nenhuma. Este incidente apenas tende a envolver a dama em um tipo de chicana bastante desagradável. O fato é que seu pequeno ato dramático aqui no terraço pode vir a ser bastante esclarecedor.

Vance espichou as pernas para a frente e afundou ainda mais na cadeira.

— Curiosa situação. Sabe, Markham, Kroon abandonou a reunião cerca de quinze ou vinte minutos antes do grande páreo: assuntos legais a resolver para uma tia solteirona, segundo explicou ele; não voltou a aparecer até que tudo estivesse consumado. Admiti imediatamente ser ele o criminoso. Esse pensamento levou-me a conversar com o ascensorista. Daí fiquei sabendo que Kroon não havia saído nem descido no elevador desde que chegou aqui no início da tarde...

— Essa é boa! — exclamou Markham. — Isto é mais que suspeito principalmente se juntarmos ao que acabamos de ouvir da Srta. Weatherby.

— Certamente. — Vance não se deixou impressionar. — A mentalidade legal em ação. Mas para meu humilde ponto de vista de amador, eu preciso de mais, muito mais. — Vance ergueu-se e meditou durante um certo tempo. — Entretanto, admito que uma pontinha de comunhão amorosa com o Sr. Kroon está definidamente indicada. — Voltou-se para Heath. — Mande o cara subir, sim sargento? E seja gentil com ele, não o aborreça. La politesse. Não vamos deixar que ele se ponha em guarda.

Heath concordou e caminhou para a porta: — Sargento, — interrompeu-o Vance — você pode interrogar o ascensorista e verificar se existe mais alguém no prédio a quem Kroon tenha o hábito de visitar. Se assim for, prossiga com uma pesquisa discreta.

Heath desapareceu escada abaixo; um ou dois minutos depois, Kroon estava no estúdio com um ar de quem está aborrecido e bastante contrariado.

— Acho que estou sendo chamado para mais algumas perguntas astuciosas — comentou lançando a Markham e Snitkin um leve olhar de desprezo e deixando seus olhos descansar em Vance com um certo ressentimento. — Querem apanhar-me sentado ou de pé?

— Como quiser — respondeu docemente Vance. Kroon, após dar uma olhada à sua volta, sentou-se descontraidamente na extremidade do sofá. A atitude do homem, segundo pude ver, enfureceu Markham, que, inclinando-se para a frente, perguntou com uma raiva fria.

— O senhor tem quaisquer razões para objetar contra o fato de necessitarmos de seu depoimento neste inquérito?

Kroon ergueu as sobrancelhas e alisou as extremidades enceradas de seu bigode.

— Absolutamente nenhuma — disse com calma superioridade. — Eu talvez até possa dizer-lhes quem alvejou Woody.

— Isto é muito interessante — murmurou Vance estudando-o com indiferença. — Mas, nós preferimos mil vezes descobrir sozinhos. Muito mais divertido, não? E há sempre a possibilidade de que nossa descoberta venha a ser mais exata que os palpites de terceiros.

Kroon deu de ombros maliciosamente e nada disse.

— Quando o senhor desertou da reunião desta tarde, Sr, Kroon, — Vance prosseguiu de uma maneira quase afetada — gratuitamente informou-nos de que destinava-se a uma espécie de conferência legal com uma tia solteirona. Sei que já falamos nisso antes, mas eu pergunto novamente: o senhor faria alguma objeção em nos fornecer, para uma simples questão de rotina, o nome e o endereço de sua tia e a natureza dos documentos que o privaram tão bruscamente de acompanhar o Grande Prêmio Rivermont após ter apostado quinhentos dólares?

— é claro que faço objeção — retrucou Kroon friamente. — Pensei que vocês estivessem investigando um assassinato e eu garanto que a minha tia nada tem a ver com ele. Não consigo entender por que vocês estão interessados em meus assuntos de família.

— A vida é cheia de surpresas, sabe? — murmurou Vance. — Nunca se sabe quando assunto de família e crime se entrelaçam.

Kroon riu jovialmente, porém recompôs-se pigarreando.

— Nas atuais circunstâncias, tenho o prazer de informar que, no que me concerne, eles não se entrelaçam em absoluto.

Markham voltou-se para ele com vivacidade.

— Isto somos nós que decidimos! — exclamou. — O senhor pretende responder à pergunta do Sr. Vance?

Kroon sacudiu a cabeça.

— Não. Considero esta pergunta como incompetente, irrelevante e imaterial. E frívola também.

— Sim, sim — Vance sorriu para Markham. — Poderia ser, compreende? Mas deixemos passar isto, Markham. Situação atual: nome e endereço da tia, desconhecidos; natureza dos documentos, desconhecida; razões para a reticência do cavalheiro, também desconhecidas.

Markham, ressentido, murmurou algumas palavras ininteligíveis e voltou a fumar seu charuto, enquanto Vance continuava o interrogatório.

— Diga, Sr. Kroon, consideraria irrelevante e todo o resto do palavrório legal, se eu lhe perguntasse como o senhor saiu e voltou do apartamento dos Gardens?

Kroon pareceu altamente divertido.

— Eu o consideraria irrelevante, sim; mas desde que existe uma única maneira normal pela qual eu poderia ter ido e voltado, estou inteiramente disposto a confessar-lhe que tomei um táxi para ir e voltar da casa de minha tia.

Vance fitou o teto enquanto fumava.

— Suponhamos — disse — que o ascensorista negasse tê-lo conduzido para cima ou para baixo desde a sua primeira chegada aqui esta tarde. Que diria o senhor?

Kroon contraiu-se e ficou atento.

— Eu diria que ele perdeu a memória ou está mentindo.

— Sim, naturalmente. Perfeitamente. — Os olhos de Vance moveram-se lentamente para o homem no sofá. — O senhor terá certamente a oportunidade de dizer isso perante o júri.

Os olhos de Kroon estreitaram e seu rosto ficou vermelho. Antes que ele pudesse falar, Vance prosseguiu.

— E o senhor terá também a oportunidade legal de fornecer ou negar o nome e endereço de sua tia. O fato é que o senhor poderá encontrar-se na mais triste necessidade de apresentar um álibi.

Kroon recostou-se novamente no sofá com um sorriso arrogante.

— Vocês são muito divertidos — comentou airosamente. — Que mais? Se me fizerem uma pergunta razoável, terei o maior prazer em responder. Sou um cidadão altamente considerado dos Estados Unidos, sempre desejoso, para não dizer ansioso, em auxiliar as autoridades, ajudar em nome da justiça e toda essa espécie de asneira. — Havia uma intenção de veneno em seu tom insolente.

—- Bem, vamos ver em que ficamos. — Vance reprimiu o sorriso divertido. — O senhor deixou o apartamento aproximadamente às 3:45, tomou o elevador para baixo e em seguida um táxi; foi à casa de sua tia para lidar com alguns documentos legais, voltou noutro táxi, e subiu no elevador. Esteve ausente pouco mais de meia hora. Durante sua ausência, Swift foi alvejado. Correto?

— Sim — Kroon foi breve.

— Como explica o fato de que, quando o encontrei no corredor, no momento em que regressava, o senhor parecia miraculosamente ciente dos detalhes do passamento de Swift?

— Já vimos isso também. Nada sei a esse respeito. O senhor me disse que Swift estava morto e eu simplesmente deduzi o resto.

— Sim, perfeitamente. Não há crime sem suposições apuradas. Diabolicamente estranhas coincidências, entretanto, iguaizinhas a uma acumulada de cinco. Extraordinário.

— Estou ouvindo com grande interesse — Kroon reassumira o seu ar de superioridade. — Por que vocês não deixam de rodeios?

— Sugestão muito útil. — Vance esmagou o cigarro e, endireitando-se na cadeira, inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos. — Aonde eu queria chegar é que alguém o acusou definitivamente de assassinar Swift.

Kroon assustou-se e empalideceu. Depois de alguns instantes ele forçou um ruído áspero e gutural que pretendia ser uma risada.

— E quem, se posso perguntar, acusou-me?

— A Srta. Madge Weatherby.

Um dos cantos da boca de Kroon ergueu-se num escárnio raivoso.

— Ela seria bem capaz! E provavelmente lhes disse que foi um crime passional, causado por um ciúme incontrolável.

— Exatamente — concordou Vance. — Parece que o senhor andou abusando de suas não desejadas atenções para com ela, até ameaçando-a; enquanto isso, ela estava apaixonada do Sr. Swift. E assim, quando a tensão ficou muito grande, o senhor eliminou seu rival. Casualmente, ela tem uma teoria muito boa, que se ajusta aos fatos conhecidos e que a sua própria recusa em responder às minhas perguntas reforça consideravelmente.

— Bem, que os diabos me levem! — Kroon ergueu-se lentamente e enterrou as mãos nos bolsos. — Estou vendo aonde querem chegar. Por que não me disseram isso desde o início?

— Esperando pelas probabilidades finais — retrucou Vance. — O senhor ainda não havia feito seu jogo. Mas agora que já lhe contei, incomoda-se em nos dar o nome e endereço de sua velha tia e a natureza dos documentos que devia assinar?

— Tudo isso é uma grande bobagem — disse Kroon precipitadamente. — Não preciso de álibi. Quando chegar o momento...

Nesse instante, Heath surgiu na porta e, caminhando diretamente até Vance, estendeu-lhe uma página arrancada de seu caderninho onde estavam diversas linhas escritas.

Vance leu rapidamente a nota enquanto Kroon o olhava com um ressentimento virulento. Depois dobrou o papel e enfiou-o no bolso.

— Quando chegar a ocasião... — murmurou Vance. — Sim, é isso. Quando chegar a ocasião. E ela chegou, Sr. Kroon.

O homem empertigou-se, mas nada disse. Pude notar que ele estava agressivamente em guarda.

— Por acaso, conhece o senhor alguém de nome Stella Fruemon? Tem um apartamento bastante aconchegante no 17º andar deste edifício, dois andares apenas abaixo deste. Ela diz que o senhor a esteve visitando hoje, por volta das 4 horas. Deixou-a exatamente às 4:15. O que pode explicar o senhor não ter usado o elevador. Também a sua relutância em nos dar o nome e o endereço de sua tia... O senhor se incomodaria em fazer uma revisão em sua narrativa?

Kroon parecia estar pensando a toda velocidade. Caminhou nervosamente para cima e para baixo no aposento.

— Situação divertida e surpreendente — prosseguiu Vance. — Um cavalheiro deixa este apartamento... digamos, às 3:50. Documentos familiares a assinar. Não entra no elevador. Aparece num apartamento dois andares abaixo poucos minutos depois... é um freqüentador habitual do mesmo. Lá permanece até às 4:15. Em seguida, vai embora. Aparece novamente neste apartamento aqui às 4:30. No intervalo, Swift é alvejado na cabeça: a hora exata não sabemos. O cavalheiro parece estar familiarizado com vários detalhes do crime. Recusa-se a dar informações sobre suas atividades durante o tempo em que esteve ausente. Uma dama acusa-o de assassinato e demonstra como ele o poderia ter executado. Também, generosamente, fornece o motivo. E há quinze minutos da vida desse cavalheiro, isto é, de 4:15 a 4:30, que ele não sabe explicar. Vance tirou uma tragada do cigarro.

— Uma fascinante combinação de fatos. Some-os todos. Matematicamente falando, eles perfazem um total. Diga-me, Sr. Kroon, alguma sugestão?

Kroon parou de repente e deu meia volta: — Não! — explodiu. — Para o diabo a sua matemática. E vocês usam de qualquer coisa para enforcar um homem! — Respirou ruidosamente e fez um gesto desesperado. — Está bem, lá vai a história. Acredite se quiser. No ano passado, tive uma certa ligação com Stella Fruemon. Ela não passa de uma prostituta e chantagista. Madge Weatherby veio a saber do caso. E ela é a parte ciumenta desta combinação, não eu. Ela ligava tanto para Woody Swift quanto eu. De qualquer forma, tive um caso com Stella Fruemon. Quando chegou ao final eu tive que pagar muito caro, a fim de evitar um escândalo para minha família, evidentemente. Se não fosse por isso, eu a teria atirado pela janela e chamaria isso de minha boa ação do dia. Seja como for, chamamos nossos respectivos advogados e chegamos a um acordo. Finalmente, ela exigiu uma gorda soma e concordou em assinar uma desistência final das outras exigências. Naquelas circunstâncias eu não tinha alternativa. Dezesseis horas de hoje, foi a ocasião que ela escolheu para terminar a transação. Meu advogado e o dela deveriam estar no apartamento. O cheque visado e os documentos estavam prontos. Assim, eu desci um pouco antes das 4 para clarear todo esse sujo negócio. Liquidei tudo e saí. Desci a pé os dois andares até o seu apartamento e, às 4:15, quando terminou o assalto, mandei-a para o inferno e subi de volta a escada.

Kroon respirou fundo e franziu a testa.

— Eu estava tão furioso, e aliviado também, que continuei caminhando sem saber o que estava fazendo. Quando abri a porta que eu pensava conduzisse ao corredor externo do apartamento de Garden, descobri que estava no terraço. — Ele piscou um olho para Vance. — Suponho que o fato também é suspeito: subir três andares em vez de dois, após tudo aquilo por que eu passei?

— Não, não — Vance sacudiu a cabeça. — Muito natural. Espíritos exuberantes. Tirou o peso das costas, e tudo o mais, três andares a pé, parecem dois. Imposto leve, podemos dizer. Os cavalos até correm melhor. Não sentem a milha extra. Muito compreensível. Mas, prossiga, por favor.

— Talvez o senhor acredite... e talvez não — Kroon falou com truculência. — De qualquer forma, esta é a realidade. Quando vi onde me encontrava, pensei em atravessar o jardim e descer a escada interna. Era realmente a coisa mais natural a ser feita...

— O senhor então sabia da existência do portão que dá para o jardim?

— Há anos que eu sei. Todos aqueles que já estiveram aqui em cima também sabem. Nas noites quentes de verão, Floyd costumava deixar o portão aberto e nós passeávamos para cá e para lá no terraço. Algo de mal no fato de eu saber do portão?

— Não, perfeitamente normal. E então o senhor abriu o portão e entrou no jardim?

— Sim.

— E isto teria sido entre 4:15 e 4:20?

— Não tinha um cronômetro comigo, mas creio que isto é bem possível... Quando entrei no jardim, vi Swift derreado na cadeira. Sua posição pareceu-me engraçada, mas não liguei para isso até que falei com ele e não tive resposta. Então aproximei-me e vi o revólver no chão e o buraco na cabeça dele. Puxa, foi um choque bárbaro, vou-lhe contar, e eu comecei a correr para baixo para dar o alarma. Mas aí me dei conta de que ficaria mal para mim. Eu ali, sozinho no terraço, com um homem morto...

— Ah, sim. Discrição. E o senhor então agiu com segurança. Não posso dizer que eu o recrimino inteiramente. Então, suponho, o senhor voltou à escadaria externa e entrou no apartamento de Garden pela porta principal.

— Foi exatamente isto que eu fiz. — O tom de Kroon era tão vigoroso quanto ressentido.

— Em que momento, durante o curto período em que esteve no telhado, ou mesmo quando voltou à escada do prédio, o senhor ouviu um tiro?

Kroon olhou para Vance com evidente surpresa.

— Um tiro? Eu disse que o rapaz já estava morto quando o vi.

— Não obstante — disse Vance — houve um tiro. Não o que o matou, mas aquele que nos fez correr até o terraço. Houve dois tiros; embora ninguém pareça ter ouvido o primeiro.

Kroon refletiu.

— Céus! Ouvi alguma coisa, agora que você está falando. Naquele instante eu não liguei, visto que Woody já estava morto. Mas exatamente quando eu voltava à escada de serviço, houve uma explosão lá fora. Pensei que fosse um automóvel lá na rua e não prestei maior atenção ao fato.

Vance balançou a cabeça com ar intrigado.

— Isto é muito interessante. — Seus olhos vaguearam no espaço. — Fico pensando... — Um momento depois fitou Kroon: — Mas, continue sua história. O senhor diz que deixou o terraço imediatamente e desceu. Mas decorreram pelo menos dez minutos entre o momento em que o senhor deixou o jardim e a hora que eu o encontrei entrando no apartamento pela porta principal. Como e onde o senhor passou esses dez minutos de intervalo?

— Fiquei no patamar da escada e fumei uns dois cigarros. Estava tentando acalmar-me. Depois de tudo aquilo por que passara e ainda encontrar Woody morto, eu estava com a cabeça em pandarecos.

Heath ergueu-se imediatamente, uma das mãos no bolso interno do colete, e avançou belicosamente o maxilar em direção do agitado Kroon: — Qual a marca de cigarro que o senhor fuma? — vociferou.

O homem olhou para o sargento com espanto e depois disse: — Fumo cigarros turcos de ponta dourada. Por quê? Heath retirou a mão do bolso e olhou para algo que continha na palma da mão.

— Está certo — resmungou. Depois dirigiu-se a Vance: — Achei as pontas de cigarro lá. Apanhei-as no patamar, quando voltava do apartamento daquela moça. Pensei que talvez pudessem ter alguma relação.

— Bravos, bravos — caçoou Kroon. — Então a polícia realmente encontrou alguma coisa!... Que mais deseja o senhor? — perguntou a Vance.

— No momento, nada obrigado — retrucou Vance com exagerada cortesia. — O senhor sozinho já fez bastante por hoje, Sr. Kroon. Não vamos precisar mais do senhor... Sargento, diga a Hennessey que o Sr. Kroon pode deixar o apartamento.

Kroon foi até à porta sem uma palavra.

— Espere. — Vance interrompeu-o no limiar. — Por acaso o senhor tem uma tia solteirona?

Kroon olhou por cima do ombro com um sorriso cheio de vivacidade.

— Não, graças a Deus! — E fechou ruidosamente a porta às suas costas.


X

 

A Aposta de 10.000 Dólares

 

(Sábado, 14 de abril — 18:15 horas)

 

 

 

— Uma boa história — comentou secamente Markham quando Kroon se foi.

— Sim, boa sim. Mas não me satisfaz. — Vance parecia perturbado.

— Você acredita nela?

— Meu caro Markham, fico com o espírito alerta, nunca acreditando ou desacreditando. Esperando pelos fatos, mas ainda não há fatos. Drama por toda a parte, porém sem substância. A história de Kroon tem pelo menos alguma consistência e esta é uma das razões pelas quais eu sou céptico. Sempre desconfio da consistência, é muito fácil de elaborar. E a sagacidade de Kroon não tem limites.

— Ainda assim — acrescentou Markham — as pontas de cigarro encontradas por Heath conferem com sua história.

— Sim, sim — Vance anuiu e suspirou. — Não duvido que ele tenha fumado dois cigarros no patamar. Mas ele os pode ter fumado mesmo que tenha executado o nosso amigo. Atualmente, suspeito de todos aqui. Há um bocado de ângulos brotando deste caso.

— Por outro lado — objetou Markham — com aquela entrada da escadaria principal dando para a porta do terraço que está aberta a qualquer um, por que não poderia um estranho qualquer ter assassinado Swift?

Vance encarou-o com um olhar melancólico.

— Ah, Markham, meu caro Markham! A inteligência a serviço da lei! Sempre procurando por uma evasão. O advogado da acusação à procura do melhor. Não, um estranho, não. Há sem-número de objeções bem fundamentadas. O crime foi demasiadamente bem cronometrado. Somente alguém presente poderia tê-lo executado de maneira tão exata. Além disso, foi cometido na caixa-forte. Somente alguém muitíssimo familiarizado com a vida doméstica dos Gardens e com a real situação aqui esta tarde poderia ter feito aquilo.

Houve um tumulto no corredor e Madge Weatherby entrou correndo no estúdio com Heath em seu encalço, protestando vigorosamente. Era óbvio que ela havia subido as escadas como uma fecha antes que alguém pudesse interferir.

— Qual o significado de tudo isso? — perguntou imperiosamente. — Vocês estão permitindo que Kroon se vá, depois de tudo que lhes contei? E eu — ela indicou a si própria com um gesto dramático — eu sou retida aqui, como uma prisioneira.

Vance ergueu-se desanimado e ofereceu-lhe um cigarro. Ela afastou a carteira que lhe era estendida e sentou-se rígida.

— O fato, Srta. Weatherby, — disse Vance voltando à sua cadeira — é que o Sr. Kroon explicou sua breve ausência esta tarde de maneira bastante lúcida e com uma lógica convincente. Ao que parece, ele nada estava fazendo de repreensível em companhia da Srta. Stella Fruemon e um monte de advogados.

— Ah! — Os olhos dela dardejaram veneno.

— Exatamente. Ele estava rompendo com a dama por todos os séculos dos séculos. Obtendo também uma dispensa por parte dela e de seus herdeiros, executores, administradores e procuradores, desde o início do mundo até à presente data; acredito ser esta a fraseologia legal correta. Na realidade, sabe, ele nunca ligou para ela. Foi bastante veemente a este respeito. Jamais mulher alguma o dominará nem fará chantagem com ele. É o lema de Cézanne, modificado: Pas une gonzesse ne me mettra le grappin dessus.

— Isto é verdade? — exclamou a Srta. Weatherby, endireitando-se na cadeira.

— Sim, sim, sem subterfúgios. Kroon disse que a senhorita estava com ciúme de Stella.

— Por que então ele não me falou?

— Há sempre a possibilidade de que a senhorita não lhe tenha dado oportunidade para tal.

A mulher meneou a cabeça vigorosamente.

— Sim, é certo. Não falei com ele depois da sua volta.

— Gostaria de rever sua teoria anterior? — perguntou Vance. — Ou ainda pensa que Kroon é o culpado?

— Eu... eu realmente não sei — respondeu hesitante — da última vez que falei com o senhor, eu estava terrivelmente transtornada... talvez fosse tudo imaginação minha.

— Imaginação, sim. Coisa terrível e perigosa. Provoca mais dramas que a realidade. Especialmente a imaginação estimulada pelo ciúme. "Nem o ópio, nem a mandrágora, nem todos os entorpecentes do mundo." — Encarou-a enigmaticamente. — Já que não está muito certa de que foi Kroon quem fez a coisa, tem outras sugestões?

Houve um silêncio tenso. A face da Srta. Weatherby pareceu contrair-se e ela mordeu os lábios; seus olhos quase se fecharam.

— Sim! — explodiu, inclinando-se para Vance com um novo entusiasmo. — Foi Zalia Graem quem matou Woody! Ela tinha o motivo, como diz o senhor. Além disso, é bem capaz de uma coisa dessas. Por fora, ela é alegre e descuidada, mas por dentro é um demônio. Nada a impediria. Houve alguma coisa entre ela e Woody, depois ela o chutou, mas ele não a deixava, continuava aborrecendo-a e ela o ignorava. Ele não tinha dinheiro suficiente para agradar a ela. O senhor viu como agiam os dois hoje.

— Tem alguma idéia de como fez ela para cometer o crime? — perguntou Vance mansamente.

— Ela estava bastante tempo ausente do salão, não foi? Aparentemente telefonando. Mas, pode alguém saber realmente onde ela estava e o que fazia?

— Pergunta dolorosa. Situação muito misteriosa. — Vance ergueu-se devagar e curvou-se diante da moça. — Imensamente grato, estamos muito agradecidos. E não a manteremos prisioneira mais tempo. Se precisarmos de sua presença mais tarde, mandaremos chamá-la.

Quando ela se foi, Markham sorriu amargamente.

— A dama está muito bem equipada com suspeitos. Que vai fazer com essa nova acusação?

Vance tinha a testa franzida.

— Animosidade transferida de Monsieur Kroon para La Graem. Sim. Situação estranha. Logicamente falando, esta nova acusação é mais razoável que a primeira. Tem seus pontos... Se ao menos eu pudesse tirar da cabeça aquela campainha desligada... e o segundo tiro, aquele que todos nós ouvimos.

— Não poderia ter sido algum tipo de mecanismo? — sugeriu Markham. — Não é difícil reproduzir o efeito de uma detonação por meio de fios elétricos.

Vance moveu a cabeça pateticamente.

— Já pensei nisso. Mas na campainha não há indícios de ter sido instalado qualquer dispositivo do gênero. — Quando o eletricista trabalhava, olhei cuidadosamente.

Vance foi novamente até a campainha e examinou-a com cuidado. Depois dedicou sua atenção às estantes que a rodeavam. Afastou alguns livros e inspecionou as estantes vazias e os montantes. Finalmente sacudiu a cabeça e voltou à sua cadeira.

— Nada. Aqui nada. A poeira atrás dos livros é muita e não mostra sinais recentes de algum contato, não há marcas de pó. E também nenhuma indicação de qualquer mecanismo.

— Poderia ter sido removido antes da chegada do eletricista — propôs Markham sem entusiasmo.

— Sim, uma outra possibilidade. Também havia pensado nisso. Mas faltou a oportunidade. Entrei aqui imediatamente após ter encontrado o rapaz alvejado... — Tirou o cigarro da boca e endireitou o corpo. — Bolas! Alguém pode ter entrado aqui enquanto nós todos corríamos lá para cima após o tiro. É uma chance remota, mas... Uma outra coisa curiosa, Markham: três ou quatro pessoas diferentes tentaram penetrar neste recinto enquanto eu estava na saleta com Garden. Todas elas pretextavam estar com o cadáver para uma comunhão post-mortem, este tipo de conversa mórbida. Fico só imaginando... Entretanto, é tarde demais para agir sob esse ponto de vista. Nada a fazer, exceto guardar esses fatos para uma futura referência.

— A campainha se comunica com qualquer outra peça além da saleta?

Vance sacudiu a cabeça.

— Não, é a única ligação.

— Você não disse que havia alguém na saleta no momento em que ouviu o tiro?

O olhar de Vance passou por Markham, e decorreram alguns minutos antes que ele respondesse.

— Sim, Zalia Graem estava aqui, telefonando ostensivamente.

A voz de Vance, pensei eu, estava um pouco amargurada, e eu pude perceber que seu espírito partira numa nova linha de idéias.

Heath piscou e moveu a cabeça para cima e para baixo.

— Bem, Sr. Vance, isto nos conduz a alguma coisa. Vance encarou-o.

— É mesmo, sargento? Aonde? Isto só emaranha o caso, até que consigamos mais informações no mesmo sentido.

— Poderíamos conseguir mais informações da própria moça — adiantou Markham com sarcasmo.

— É, é isso mesmo. Procedimento óbvio. Mas eu tenho algumas perguntinhas a fazer a Garden antes. Preparando o caminho, por assim dizer. Sargento, procure Floyd Garden e traga-o aqui.

Garden entrou na sala parecendo pouco à vontade com ar um tanto assustado.

— Que confusão! — suspirou atirando-se pesadamente em uma cadeira. Encheu o cachimbo com mão trêmula. — Alguma luz no caso?

— Algumas luzes vacilantes — disse-lhe Vance. — Aliás, parece que os seus convidados entram e saem pela porta da frente sem a formalidade de serem anunciados ou tocarem a campainha. Isso é um costume da casa?

— Sim. Mas somente nos dias de corridas. É muito mais prático. Poupa aborrecimentos e interrupções.

— E uma outra coisa: quando a Srta. Graem estava telefonando na saleta e você sugeriu que ela dissesse ao cavalheiro para chamar mais tarde, você realmente sabia que ela estava falando com um homem?

Garden arregalou os olhos um tanto surpreso.

— Ora, não. Eu estava apenas brincando com ela, não tinha a menor idéia. Mas, se isto faz alguma diferença, estou certo de que Sneed pode dar a informação, caso a Srta. Graem não a dê. Foi Sneed que atendeu o telefone, lembra-se?

— Não tem importância. — Vance deixou o assunto de lado. — Todavia, talvez lhe interesse saber que a campainha deixou de funcionar porque alguém se deu ao trabalho de desligar os fios.

— Que diabo está você dizendo!

— É, é isso mesmo. Vance fitou Garden com um olhar cheio de significação. — Se bem entendo, esta campainha funciona apenas na saleta, e quando ouvimos o tiro a Srta. Graem estava lá. Acontece que esse tiro que todos nós ouvimos não foi o que matou Swift. O tiro fatal foi disparado pelo menos cinco minutos antes. Swift nunca chegou a saber se havia ganho ou não a aposta.

Os olhos de Garden estavam arregalados com expressão de pavor e fixos em Vance. Uma exclamação abafada escapou de seus lábios entreabertos. Rapidamente ele recompôs-se e seus olhos vaguearam pela sala.

— Meu Deus! — Sacudiu a cabeça desanimado. — Este negócio está ficando infernal. Compreendo sua dedução sobre a campainha e o tiro que ouvimos. Mas não consigo entender como foi feita a coisa. Voltou-se para Vance num apelo: Você está certo desses fios desligados e o que chama de segundo tiro?

— Inteiramente certo. — A voz de Vance era despreocupada. — Aliás, a Srta. Weatherby tentou convencer-nos de que Zalia Graem atirou em Swift.

— E ela tem algum fundamento para essa acusação?

— Apenas que a Srta. Graem tinha uma aversão qualquer a Swift, detestando-o profundamente, e também o fato de no momento do crime ela se achar ausente do salão. Duvido que ela estivesse todo o tempo telefonando na saleta. Penso que estivesse aqui em cima, inteiramente ocupada com o crime.

Garden aspirou rápido o cachimbo e pareceu estar refletindo.

— É claro que Madge conhece Zalia muito bem — admitiu com relutância. — Elas andam sempre juntas. Madge pode conhecer por dentro a história do atrito entre Zalia e Woody. Eu não sei. Zalia pode ter pensado que tinha razões suficientes para pôr fim à carreira de Woody. Ela é uma garota surpreendente. Nunca se sabe exatamente o que ela vai fazer.

— Você pessoalmente considera a Srta. Graem como capaz de um crime à sangue-frio, habilmente planejado?

Garden moveu os lábios e franziu a testa, tossiu uma ou duas vezes, como para ganhar tempo, depois falou: — Bolas, Vance! Não posso responder a esta pergunta. Francamente, não sei quem é ou não capaz de cometer um crime. A turma jovem de hoje vive entediada a ponto de morrer, não tolera a menor restrição, vive além de suas possibilidades, procurando escândalo, sensações de todo o tipo. Zalia difere um pouco do resto, até onde eu sei. Ela sempre parece estar acelerando ao máximo e ultrapassando os limites de velocidade, mas eu não sei até onde pode chegar realmente. E alguém sabe? Talvez seja uma reação violenta à respeitabilidade. Sua família é muito austera. Sua educação foi estrita, até obrigaram-na a entrar num convento durante dois anos, creio eu. Depois ela estourou e agora está tendo suas aventuras...

— Um esboço de caráter bastante brilhante mas nada suave — murmurou Vance. — Poder-se-ia concluir que você a admira mas não a aprova.

Garden riu desajeitadamente.

— Não posso dizer que não gosto de Zalia. A maioria dos homens gosta dela, embora eu não creia que qualquer um deles possa entendê-la. Eu sei que não posso. Há um muro impenetrável à sua volta. O mais curioso é que os homens a apreciam embora não faça o menor esforço para conquistar a estima ou afeição deles. Ela os trata sem consideração; na realidade parece estar aborrecida com as atenções deles. Uma venenosa e passiva Dolores, poderíamos dizer.

— Sim, algo assim, eu diria. Ela pode ser ou tremendamente superficial ou profunda como o inferno; não consigo decidir-me qual dos dois. Quanto à sua situação no caso atual... bem, eu não sei. Não me surpreenderia em absoluto se Madge tivesse razão. Zalia tem-me confundido diversas vezes, não posso explicar direito. Lembra-se? Quando você me perguntou a respeito do revólver de meu pai, contei-lhe que Zalia o havia descoberto na escrivaninha e montara toda uma cena nesta mesma sala. Vance, naquele dia meu sangue gelou nas veias. Havia um quê na maneira como Zalia fez a coisa e no tom de sua voz que me fez realmente temer que ela fosse capaz de atirar no grupo e depois passear pela sala e rir dos cadáveres. Não havia razão para esses sentimentos, talvez, mas, acredite-me, fiquei loucamente aliviado quando ela botou o revólver no lugar e fechou a gaveta. Tudo o que posso dizer — acrescentou — é que não a consigo entender inteiramente.

— Não, é claro que não. Ninguém pode compreender inteiramente uma outra pessoa. Se pudesse, entenderia tudo, o que não é um pensamento muito reconfortante... Muitíssimo obrigado pelo recital de suas impressões e temores. Dê uma olhada nas coisas lá embaixo, por uns momentos, sim?

Garden pareceu respirar com mais facilidade após ser dispensado e com uma aquiescência apenas murmurada, dirigiu-se para a saída.

— Ah, a propósito — chamou Vance — há uma outra coisa que eu lhe queria perguntar.

Garden esperou polidamente.

— Por que razão — disse Vance enviando para o teto um anel de fumaça — você não fez a aposta de Swift em Equanimity?

O homem deu um salto e seu queixo caiu. Mal teve tempo de impedir que o cachimbo caísse no chão.

— Você não fez, não é? — prosseguiu Vance suavemente. — Um ponto muito interessante, considerando-se o fato que seu primo não estava destinado a viver tempo suficiente para recolher o prêmio, caso Equanimity houvesse ganho. E, nas circunstâncias, se tivesse feito o jogo, agora estaria às voltas com uma dívida de 10.000 dólares, visto que Swift não estaria em condições de saldá-la.

— Por Deus do céu, Vance, pare com isso! — explodiu Garden, atirando-se na cadeira como um peso morto. — Como é que você sabe que eu não coloquei a aposta de Woody?

Vance olhou perscrutadoramente.

— Nenhum bookmaker aceitaria uma aposta daquela monta cinco minutos antes da largada. Ele não a poderia bancar, teria que colocar uma boa parte da mesma em outro lugar, talvez até fora da cidade: Chicago ou Detroit. E para isso, você sabe que precisa tempo. Uma aposta de 10.000 dólares tem que ser feita pelo menos uma hora antes de correr o páreo. Eu já lidei muito com bookmakers e homens de corridas.

— Mas Hannix...

— Não transforme Hannix num financista de Wall Street — advertiu mansamente Vance. — Conheço tão bem quanto você esses cavalheiros de giz e apagador. E outra coisa: aconteceu eu estar sentado numa posição estratégica perto de sua mesa quando você fingiu a aposta de Swift. Você habilidosamente esticou o fio sobre o gancho do telefone quando pegou o aparelho. Você estava falando num telefone desligado.

Garden contraiu-se e capitulou com um movimento de ombros desalentados.

— Está certo, Vance — disse. — Não fiz o jogo. Mas, se por um só momento você pensa que eu tinha qualquer suspeita de que Woody ia ser assassinado esta tarde, você está redondamente enganado!

— Meu caro amigo — suspirou Vance aborrecido — eu não estou pensando. A maior das inteligências não está trabalhando no momento. O cérebro está vazio, apenas tentando somar alguns algarismos. 10.000 dólares são uma grande soma. Isto muda o nosso total, não?... Mas você não me disse porque não fez o jogo. Poderia tê-lo feito. Você tinha indicações em número suficiente de que Swift ia apostar uma vasta soma em Equanimity e bastaria apenas tê-lo informado que a aposta deveria ser feita cedo.

Garden ergueu-se zangado, mas sob a sua raiva havia uma grande agitação.

— Eu não queria que ele perdesse o dinheiro — afirmou com agressividade. — Eu sabia o que aquilo significaria para ele.

— Sim, sim. O Bom Samaritano. Muito tocante. Mas suponhamos que Equanimity ganhasse e seu primo sobrevivesse: e o pagamento?

— Eu estava completamente preparado para correr o risco. Não seria muita coisa. Que poderia pagar aquele comedor de aveia? Menos que dois por um. Um dólar e oitenta centavos cada dólar, para ser exato, teriam sido dezoito mil dólares. Mas não havia a menor chance de Equanimity se colocar; eu tinha certeza absoluta disso. Corri o risco para o bem de Woody. Eu estava sendo decente, ou fraco, não sei qual dos dois. Se o cavalo tivesse ganho, eu teria pago Woody do meu bolso e ele nunca viria a saber que não era o dinheiro de Hannix.

Vance olhou-o pensativamente.

— Obrigado pela emocionante confissão — murmurou por fim. — Acho que é tudo por agora.

Enquanto ele falava, dois homens com uma cesta de vime com aspecto de um caixão surgiram no corredor. Heath foi-lhes ao encontro.

— A Saúde Pública veio buscar o corpo — anunciou por cima do ombro.

Vance ergueu-se.

— Sargento, diga-lhes para descer pela escada externa, não é necessário voltar por dentro do apartamento. — Dirigiu-se novamente a Garden. — Poderia mostrar-lhes o caminho?

Garden concordou de má vontade e saiu para o terraço.

Alguns momentos depois, os dois carregadores, precedidos por Garden, desapareciam pelo portão do jardim levando seu triste fardo.

 


XI

 

O Segundo Revólver

 

(Sábado, 14 de abril — 18:25 horas)

 

 

Markham encarou Vance com uma sombria ansiedade.

— Que significa essa história de Garden não ter colocado a aposta?

Vance suspirou.

— Qual é o significado das coisas? No entanto, é exatamente de tais fatos estranhos que podem surgir algumas hipóteses esclarecedoras.

— Eu, francamente, não consigo imaginar qual a influência que a atitude de Garden pode ter nesse caso, a menos que...

Vance interrompeu-o de chofre.

— A situação é embaraçosa. Tudo que aprendemos até agora deve ter algum significado. É necessário, evidentemente, que o saibamos interpretar. Quem sabe se a chave não está no amor?

— Não seja tão diabolicamente enigmático — disse Markham. — Que é que você está pretendendo?

— Meu caro Markham! Você está sendo demasiado lisonjeiro. Não há nada disso. Estou à procura de alguma coisa tangível, como, por exemplo, a outra arma, a que ouvimos detonar em algum lugar quando o cara já estava morto. Deveria estar aqui ou nas vizinhanças... — Voltou-se para Heath. — Diga-me, sargento, poderia juntamente com Snitkin procurar a arma? Itinerário sugerido: o jardim lá do terraço, os canteiros, a escadaria do prédio, o vestíbulo inferior. Depois, o próprio apartamento. Conjectura: qualquer um dos presentes pode ter estado com ela. Sigam todos os itinerários internos conhecidos de cada uma das pessoas que estão lá embaixo. Se está aqui, provavelmente será em algum esconderijo provisório, à espera de uma outra providência. Não precisam pôr as coisas de pernas para o ar e não sejam exageradamente oficiais. A doçura e o esclarecimento fazem as coisas.

Heath riu:

— Eu sei o que quer, Sr. Vance.

— E, sargento, antes de começar o reconhecimento, traga-me o Hammle. Você certamente o encontrará no bar lá embaixo tomando um uísque com soda.

Depois que Heath se afastou, Vance dirigiu-se a Markham.

— Hammle pode ou não ter algum bom conselho a dar. Não gosto dele: é do tipo pegajoso. Poderíamos também livrar-nos dele, pelo menos temporariamente. O local está tremendamente superlotado...

Hammle entrou pomposamente no estúdio e foi sumariamente apresentado a Markham. Através da janela, à luz do crepúsculo, eu podia distinguir os vultos de Heath e Snitkin movimentando-se ao longo dos canteiros.

Vance fez um gesto para que Hammle pegasse uma cadeira e estudou-o durante alguns instantes com um ar melancólico, como se estivesse fazendo um esforço para achar uma razão que justificasse a existência daquele homem.

A entrevista foi culta e, como provou, de particular importância. Esta não estava tanto no que Hammle disse quanto no resultado da curiosidade que as perguntas de Vance despertaria no homem. Foi esta curiosidade que mais tarde o capacitou a fornecer uma importante informação a Vance.

— Não é do nosso desejo reter o senhor aqui além do necessário, Sr. Hammle, — começou Vance com evidente má vontade — mas ocorreu-me perguntar-lhe se o senhor teria alguma idéia que ajudasse a solucionar o assassínio de Swift.

Hammle tossiu estrepitosamente e pareceu dar ao assunto uma grande atenção.

— Não, não tenho — admitiu finalmente. — Absolutamente. Mas é claro que com essas coisas nunca se sabe. Os fatos mais insignificantes podem ser interpretados seriamente desde que se dê a eles suficiente atenção. Quanto a mim, no momento, não dediquei ainda bastante atenção ao assunto.

— É claro — concordou Vance. — Ainda não houve muito tempo para profunda reflexão sobre a situação. Mas pensei que pudesse haver algo nas relações entre as diferentes pessoas aqui presentes esta tarde; suponho que o senhor esteja bastante familiarizado com todas elas, o que poderia inspirá-lo a dar uma sugestão.

— Tudo o que posso dizer — respondeu Hammle cuidadosamente pesando as palavras — é que havia muitos elementos adversários na reunião, isto é, muitas combinações peculiares. Oh, nada de criminoso. — E ele abanou rapidamente a mão, desculpando-se. — Eu gostaria que o senhor compreendesse isso totalmente. Mas havia uma combinação disto e daquilo que poderia levar a... bem, a qualquer coisa.

— A um crime, por exemplo? Hammle franziu a testa.

— Bem, crime é um assunto muito, muito sério. — Seu tom era quase sentencioso. — Mas, Sr. Vance, acredite em mim, com toda a solenidade, eu não imputaria um assassinato a nenhuma das pessoas aqui presentes hoje. Não, por Deus!

— Esta é uma surpreendente indicação — murmurou Vance — mas estou satisfeito em ouvir sua opinião e a tomaremos em consideração... A propósito, o senhor não percebeu alguma coisa de irregular quando Garden colocou a enorme aposta de Swift em Equanimity à última hora?

O autocontrole de Hammle desapareceu como por encanto. Durante alguns instantes ele apresentou a Vance uma perfeita "cara de jogador de pôquer". Depois, incapaz de suportar o exame direto do frio olhar de Vance, ele contraiu a boca num sorriso desajeitado.

— Por que negar — disse rindo. — O lançamento daquela aposta não foi apenas irregular; foi praticamente impossível. Não conheço um só bookmaker em Nova York que aceitasse uma soma tão grande quando nem sequer havia tempo suficiente para descarregar parte dela. O tal de Hannix teria passado um aperto tentando equilibrar seus livros com uma tempestade deste tipo à última hora! A transação toda pareceu-me loucamente estranha. Não podia conceber o que Garden estava fazendo.

Vance inclinou-se para a frente e seus olhos entrecerraram-se enquanto ele fixava Hammle.

— Isto poderia facilmente ter tido alguma influência na situação de hoje e eu gostaria muito de saber por que o senhor não mencionou o fato.

Durante um certo tempo o homem pareceu desconcertado, mas logo depois ele voltou a se instalar na cadeira com um ar complacente e estendeu as mãos com as palmas voltadas para cima.

— Por que razão deveria eu me intrometer? — perguntou com uma cínica suavidade. — Eu nunca me preocupei muito com os problemas dos outros. Já tenho muitos dos meus com que me preocupar.

— Esta é uma maneira de encarar a vida — falou descansadamente Vance. — E tem seus aspectos positivos. No entanto... E ele contemplou a ponta do cigarro, perguntando em seguida: — Sua discrição lhe permitiria fazer alguns comentários sobre Zalia Graem?

Hammle iluminou o rosto.

— Ah! — meneou a cabeça significativamente. — Isto é uma coisa para se pensar. Há várias possibilidades nessa moça. Vocês podem estar na pista certa. Um muito provável suspeito para o crime. De qualquer forma com as mulheres nunca se pode saber. E, cheguei a pensar nisso, o tiro deve ter ocorrido durante o período em que ela esteve ausente da sala. E ela é boa no tiro, também. Lembro-me uma vez que ela veio à minha propriedade em Long Island; naquela tarde praticou um bocado de tiro ao alvo. Ah, ela entende de armas como outras mulheres entendem de rendas, e também ela é tão selvagem quanto uma potranca de dois anos em seu primeiro obstáculo.

Vance concordou e esperou.

— Mas, nem por um momento imaginem — acrescentou Hammle às pressas — que estou sugerindo que ela tivesse alguma coisa a ver com a morte de Swift. Absolutamente, não! Mas o fato de seu nome ter sido mencionado faz-me pensar... — Enquanto terminava, ele meneava a cabeça com ar de quem sabe.

Vance ergueu-se com um bocejo reprimido.

— É bastante evidente que o senhor não está com disposição para ser mais específico. Eu não estava à procura de generalidades, compreende. Conseqüentemente, posso querer uma outra entrevista com o senhor. Onde poderá ser encontrado mais tarde, caso venhamos a precisar do senhor?

— Se tenho permissão para ir-me agora, voltarei para Long Island imediatamente — respondeu logo Hammle, olhando para o relógio. — É tudo o que deseja por enquanto?

— É tudo, obrigado.

Hammle mais uma vez olhou para o relógio, hesitou um pouco e depois deixou-nos.

— Não é uma pessoa agradável, esse Hammle — comentou Vance pesaroso quando o outro se foi. — Não é, em absoluto, uma pessoa agradável. Como você deve ter percebido, para ele todos servem para o papel de assassino; todos, exceto ele, é evidente. Uma criatura vil. E aquele colete horrível! E os sapatos de solas tão grossas, as roupas amarrotadas! Tão descuidado e esportivo: verdadeiramente britânico. O uniforme da elite dos cães de raça e cavalos. Os animais na realidade merecem melhores associados.

Deu de ombros tristemente e, dirigindo-se à campainha, apertou o botão.

— Estranhas informações sobre a moça Graem — voltou morosamente à sua cadeira. — Chegou a hora de entrar em contato com a própria dama...

Garden surgiu na porta.

— Chamou-me, Vance?

— Sim. A campainha agora está funcionando. Desculpe-me incomodá-lo, mas eu gostaria de ver a Srta. Graem. Você poderia fazer o favor?

Garden hesitou, seus olhos plantados em Vance. Ele ia começar a dizer alguma coisa, mudou de idéia e, com um resmungado "está bem", deu meia volta e desceu.

Zalia Graem entrou com um ar fanfarrão, as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta e olhou-nos com um alegre cinismo.

— Já fiz a maquilagem para a inquirição — anunciou com um sorriso de banda. — Vai demorar muito?

— É melhor sentar-se — disse Vance com fria polidez.

— É obrigatório? — perguntou ela.

— Estamos investigando um crime, Srta. Graem. — A voz de Vance era cortês porém firme. — E será necessário fazer-lhe algumas perguntas, às quais a senhorita talvez faça objeções. Mas acredite que será muito melhor para si mesma respondê-las francamente.

— Sou suspeita? Que emocionante!

— Até aqui, todos aqueles com quem falamos são dessa opinião. — E ele olhou a moça significativamente.

— Ah, então é assim que são as coisas! Eu é que vou pagar o pato! Que coisa mais cretina! Bem que me pareceu notar um vago olhar de medo nos outros. É, acho melhor eu me sentar. — Atirou-se numa cadeira e fitou-nos com um desânimo simulado. — Vão prender-me?

— Não imediatamente. Mas alguns pontos precisam ser esclarecidos. Não perderá seu tempo em nos ajudar.

— Isto soa horrível. Mas, continue.

— Primeiramente, gostaríamos de saber algumas coisas a respeito de sua rixa com Swift.

— Ah, diabos! — exclamou com raiva. — Isto precisa ser remexido? Na realidade não era nada de especial. Woody preocupava-se demais comigo. Tive pena dele e andei um pouco com ele quando me implorou e ameaçou-me recorrer a todas as formas conhecidas de suicídio, se eu não o fizesse. Depois, achei que já não agüentava mais e decidi virar a página. Mas receio não ter agido da melhor maneira. Disse a ele que eu era extravagante e só ligava para o luxo e que nunca me casaria com um homem pobre. Eu tive a triste idéia que isto o faria sair de sua esperançosa adoração. Funcionou, mas de certo modo. Ele ficou furioso, disse coisas horríveis, que, francamente, não pude perdoar. E assim, ele foi por um caminho e eu por outro.

— Dessa forma, a conclusão que podemos tirar é que ele jogava tão alto nos cavalos como a última esperança de reunir uma fortuna suficiente para vencer a sua aversão à pobreza, e que a aposta de hoje em Equanimity foi o último recurso...

— Não diga isso! — gritou a moça segurando com força os braços da cadeira. — É uma idéia horrível, mas bem que poderia ser verdade. Não quero ouvir isto.

Vance continuou a estudá-la com ar crítico.

— É como diz. Poderia ser verdade. Entretanto... bom, vamos deixar de lado... — Depois, perguntou rapidamente: — Quem lhe telefonou hoje, pouco antes do Grande Prêmio Rivermont?

— Tartarin de Tarascon — replicou com sarcasmo.

— E a senhorita havia dito a esse eminente aventureiro que lhe telefonasse exatamente naquela hora?

— Que tem isso a ver com o resto?

— E por que estava tão ansiosa em atender o telefone na saleta e fechou a porta?

A moça inclinou-se para a frente e desafiou o olhar de Vance.

— Onde está querendo chegar? — perguntou furiosa.

— A senhorita tem conhecimento — prosseguiu Vance — de que a saleta lá embaixo é a única peça diretamente ligada com fios a esta sala aqui?

A moça pareceu incapacitada de falar. Ficou pálida e rígida, os olhos fixos em Vance.

— E sabe também — continuou na mesma entonação — que os fios do lado de cá foram desligados? E sabe ainda que o tiro que ouvimos lá embaixo não foi o que pôs fim à vida de Swift; que ele foi alvejado na caixa-forte do corredor, muitos minutos antes de ouvirmos a detonação?

— O senhor está sendo medonho — gritou a moça. — Está fabricando pesadelos para me assustar. Está concluindo coisas horríveis. Tentando torturar-me, fazendo-me admitir coisas que não são verdadeiras, só porque eu não estava na sala quando Woody foi morto.

Vance ergueu a mão para interromper as reclamações.

— Está interpretando mal minha atitude, Srta. Graem — disse suavemente. — Há poucos momentos atrás, pedi-lhe que respondesse francamente às minhas perguntas. Recusou-se. Nessas circunstâncias, deveria saber como os fatos se apresentam para as outras pessoas. — Fez uma pausa. — A senhorita e Swift não estavam em bons termos; sabia, como todos os outros, que geralmente ele subia para o terraço antes de cada páreo. Sabia onde o Prof. Garden guardava o revólver. Está acostumada a armas e atira bem. Chamam-na ao telefone bem naquela hora. A senhorita desaparece. Nos cinco minutos que se seguem, Swift é morto atrás daquela porta de aço. Mais cinco minutos se passam; acabou a corrida e ouve-se um tiro. Este tiro podia perfeitamente ter sido disparado por um mecanismo qualquer. Os fios da campainha daqui foram desligados, obviamente com alguma finalidade específica. No momento do segundo disparo, a senhorita estava na outra extremidade do fio; quase desmaiou quando viu Swift. Depois tentou vir cá em cima... somando tudo isso: a senhorita tinha um motivo, um conhecimento amplo da situação, tinha acesso à arma, capacidade para agir e a oportunidade. — Vance fez nova pausa. — Está agora pronta para ser franca ou tem realmente alguma coisa a esconder?

Produziu-se uma mudança nela. Afrouxou, como se atacada subitamente de fraqueza. Não despregou os olhos dos de Vance, parecendo perplexa, sem saber que rumo tomar.

Antes que ela conseguisse falar, Heath entrou ruidosamente no corredor e abriu a porta do estúdio. No braço, ele trazia um casacão de mulher de tweed preto e branco. Piscou um olho para Vance triunfantemente: — Já vi tudo, sargento — falou lentamente Vance. — Sua busca teve sucesso. Pode falar. — Voltou-se para Zalia Graem e explicou: — O sargento Heath estava à procura do revólver que disparou o segundo tiro.

A jovem imediatamente animou-se e inclinou-se para a frente, toda atenção.

— Segui o caminho que sugeriu, Sr. Vance — informou Heath. — Depois de percorrer o terraço, as escadas e o vestíbulo do apartamento, pensei em dar uma olhada nas roupas penduradas no armário da entrada. O revólver estava no bolso deste aqui. — Atirou o casaco no sofá e tirou do próprio bolso um revólver de metal, calibre 38, mostrando-o a Vance e Markham.

— Cheio de cápsulas e uma delas foi disparada.

— Muito bem, sargento — cumprimentou Vance. — E de quem é o casaco?

— Ainda não sei, Sr. Vance; mas vou descobri-lo imediatamente.

Zalia Graem erguera-se e aproximara-se.

— Posso dizer de quem é. Pertence à Srta. Beeton, a enfermeira. Eu a vi com ele ontem.

— Muito grato pela identificação — retrucou Vance com os olhos sonhadoramente pousados nela.

A jovem deu-lhe um sorriso oblíquo e voltou à cadeira de onde saíra.

— Mas ainda há uma questão pendente, Srta. Graem. Quero saber: está pronta agora para falar francamente?

— Está certo. Lemmy Merrit, um dos vários rebentos da aristocracia turfista que infesta o nosso litoral, pediu-me para ir com ele de carro assistir a uma partida de pólo em Lands Point, amanhã. Achei que isso poderia proporcionar alguma sensação e disse-lhe que me chamasse esta tarde aqui, às 3:30 para uma decisão final. Marquei a hora de propósito, de modo a não perder o Grande Prêmio. Como o senhor sabe, ele só telefonou às 4 horas, desculpando-se por não ter conseguido um telefone. Tentei livrar-me dele depressa, mas ele era insistente, aliás a única virtude que eu conheço nele. Deixei-o pendurado no fio enquanto saí para ouvir a corrida e depois voltei para despedir-me e dispensá-lo. Exatamente quando desliguei, ouvi alguma coisa parecida com um tiro e cheguei na porta a tempo de ver todo o mundo se precipitando pelo corredor afora. Veio-me a idéia de que Woody se tivesse suicidado e foi aí que eu dei uma da era vitoriana e quase desmaiei quando o vi. E isso é tudo. Nada sei a respeito de fios, campainhas, ou dispositivos mecânicos; há uma semana que eu não entrava nesta sala. Todavia, eu chego ao ponto de admitir que não gostava de Woody e que, em muitas ocasiões, tive vontade de lhe estourar os miolos. E, como o senhor disse, atiro muito bem.

Vance ergueu-se e fez um reverência.

— Muito obrigado por sua franqueza final, Srta. Graem. Estou imensamente triste por tê-la torturado para obter o que desejava. E, por favor, ignore os pesadelos que me acusou de estar fabricando. Estou-lhe realmente muito grato por ter-me ajudado a completar o esboço.

A jovem franziu a testa e seu olhar intenso pousou em Vance.

— Estou-me perguntando se realmente o senhor não sabe mais sobre este caso do que finge.

— Minha querida Srta. Graem! Não finjo saber coisa alguma.

Vance abriu a porta para ela.

— Pode ir agora, mas provavelmente amanhã vamos querer vê-la outra vez e eu preciso pedir-lhe que me prometa ficar em casa, onde será facilmente encontrada.

— Não se preocupe, estarei em casa. — Deu de ombros e acrescentou: — Estou começando a pensar que talvez Ogden Nash estivesse certo.

Quando ela saía, a Srta. Beeton vinha subindo o corredor em direção ao estúdio. As duas mulheres cruzaram-se sem se falar.

— Lamento incomodá-lo, Sr. Vance, — desculpou-se a enfermeira — mas o Dr. Siefert acabou de chegar e pediu-me para informá-lo que deseja vê-lo o mais depressa possível. O Sr. Garden — acrescentou — contou a ele a morte do Sr. Swift.

Naquele instante o olhar dela pousou no casaco de tweed e uma ruga de espanto riscou sua testa. Antes que ela pudesse falar, Vance disse: — O sargento trouxe seu casaco até aqui. Ele não sabia de quem era, estávamos procurando alguma coisa. — Depois ele acrescentou rapidamente: — Por favor, diga ao Dr. Siefert que eu gostaria muito de vê-lo agora mesmo. E peça-lhe para ter a gentileza de vir até aqui ao estúdio.

A enfermeira fez que sim e saiu fechando suavemente a porta atrás de si.


XII

 

Gás Venenoso

 

 


(Sábado, 14 de abril — 18:40 horas)

 

 

Vance foi até à janela e, durante algum tempo, ficou em silêncio olhando para fora. Era evidente que ele estava profundamente perturbado. Markham respeitou seu sentimento e permaneceu calado. Foi o próprio Vance quem, por fim, rompeu o silêncio.

— Markham, — disse ele com os olhos fitos no brilhante pôr-de-sol do outro lado do rio — quanto mais penetro neste caso, menos gosto dele. Todo o mundo parece estar tentando pregar no próximo a etiqueta de culpado. Para qualquer lado que eu me vire, sinto que há medo. As consciências culpadas estão em ação.

— Mas todos — retrucou Markham — parecem concordar plenamente que Zalia Graem tem um dedo nesta história.

Vance inclinou a cabeça.

— É, sim — murmurou. — Também observei este fato. Só fico pensando...

Markham analisou Vance durante algum tempo.

— Você acha que o Dr. Siefert possa ser de alguma utilidade?

— Poderá ser, é claro — replicou Vance. — Evidentemente ele quer ver-me. Mas acredito que seja mais curiosidade que outra coisa. Na verdade, há muito pouca coisa que alguém que não estivesse aqui possa contar-nos. A dificuldade deste caso, Markham, reside em tentar eliminar uma multiplicidade de itens que só fazem confundir...

Ouviu-se uma leve batida e Vance deixou a janela para deparar com Garden que abriu a porta sem esperar que o atendessem.

— Perdão, Vance, — desculpou-se Garden — mas o Dr. Siefert está lá embaixo dizendo que gostaria de vê-lo antes de ir embora.

Vance ficou olhando para ele e franziu a testa.

— Faz alguns minutos que a Srta. Beeton me informou isso mesmo. Pedi-lhe que dissesse ao doutor que eu desejava vê-lo imediatamente. Não entendo por que ele mandou você também. A enfermeira não deu o recado?

— Receio que não. Sei que Siefert mandou a Srta. Beeton aqui e eu supus, e creio que Siefert também, que você a havia retido. — Olhou à volta da sala com expressão intrigada.

— Na verdade, pensei que ela ainda estivesse aqui.

— Você quer dizer que ela não voltou lá para baixo? — perguntou Vance.

— Não, ela ainda não desceu. Vance deu um passo à frente.

— Você tem certeza disso, Garden?

— Sim, absoluta — respondeu acenando vigorosamente com a cabeça. — Eu estava no corredor de entrada próximo a escada desde a chegada do Dr. Siefert.

Vance caminhou pensativamente até uma mesinha e lá bateu a cinza do cigarro.

Você viu os outros descerem? — perguntou.

— Sim, claro. Kroon desceu e foi embora. Depois Madge Weatherby também desceu e se foi. Pouco depois de a enfermeira subir com o recado do Dr. Siefert, Zalia desceu e roí embora às pressas. Mas isso é tudo. Como já disse, estive todo o tempo no corredor de entrada.

— E Hammle?

— Hammle? Não, não vi sinal dele. Pensei que ainda estivesse aqui com vocês.

— Isso é mais que esquisito. — Vance caminhou lentamente ate uma cadeira e sentou com um ar perplexo. — É possível que você não o tenha visto. Não tem importância, peça ao doutor para subir, sim?

Quando Garden nos deixou, Vance permaneceu sentado e fumando com os olhos no teto. Por suas palavras pude sentir que ele estava perturbado. Moveu-se, inquieto na cadeira e finalmente inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

— Infernalmente estranho — murmurou de novo.

— Por Deus do céu, Vance, — comentou Markham com irritação — é perfeitamente possível que Garden não estivesse controlando a escada tão bem quanto imagina.

— É, é mesmo — meneou a cabeça. — Todo o mundo preocupado; ninguém atento. Os mecanismos normais não estão funcionando. Ainda assim, a metade da escada é visível do corredor e este não é muito espaçoso...

— É bem possível que Hammle tenha descido pela escada externa através do terraço, talvez desejando evitar os outros.

— Ele estava sem chapéu quando veio aqui — respondeu Vance sem levantar os olhos. — Ele teria precisado ir até o corredor de entrada e passar por Garden para pegá-lo. Não há razão para umas manobras tão tolas... Mas não é em Hammle que estou pensando. É na Srta. Beeton. Não estou gostando... — Levantou-se devagar e pegou outro cigarro. — Ela não é o tipo de pequena que deixaria de dar o meu recado ao Dr. Siefert imediatamente, a menos que tivesse boa razão para tal.

— Algumas coisas podem ter acontecido... — começou Markham, porém Vance cortou.

— Sim, é claro. É exatamente isto. Já aconteceram coisas demais aqui hoje. — Dirigiu-se até à janela do lado norte e olhou para o jardim. Depois voltou ao centro da sala e parou durante uns instantes, mergulhado em profunda meditação. — Como você disse, Markham, — sua voz era quase inaudível — alguma coisa pode ter acontecido. — De repente, ele atirou o cigarro num cinzeiro e girou nos calcanhares: — Deus! Estou pensando se... Venha, sargento. Vamos ter que dar uma busca imediatamente.

Abriu a porta rapidamente e saiu pelo corredor. Nós o seguimos com uma vaga apreensão, sem saber o que ele tinha em mente e sem poder prever o que viria em seguida. Vance espiou pela porta do jardim. Depois, voltou sacudindo a cabeça.

— Não, não poderia ter sido aqui. Nós teríamos visto.

— Seus olhos moviam-se curiosamente para cima e para baixo do corredor, e depois uma expressão estranha e de surpresa tomou conta deles. — Pode ser! Ai, meu Deus! — exclamou.

— Estão acontecendo coisas malditas aqui. Esperem um segundo.

Vance rapidamente retrocedeu até à porta da caixa-forte. Segurando a maçaneta, puxou-a com violência, mas agora a porta estava trancada. Tirando a chave do prego, enfiou-a apressado, no buraco. Quando a porta se abriu com um estalido, um cheiro forte e penetrante atacou nossas narinas. Vance recuou logo.

— Para fora! — gritou por cima do ombro, em nossa direção. — Vocês todos!

Instintivamente corremos para a porta do jardim.

Cobrindo o nariz e a boca com uma das mãos, Vance empurrou a porta do cofre.

— Srta. Beeton! Srta. Beeton! — chamou. Não veio resposta; e eu vi Vance abaixar a cabeça e avançar através de uma densa fumaça que emanava da porta aberta. Ajoelhando-se no limiar, inclinou-se para dentro do cofre. No momento seguinte, ele se endireitava e puxava para o corredor o corpo sem forças da enfermeira.

Todo esse episódio demorou menos que o tempo necessário para contá-lo. Na realidade não haviam decorrido mais de dez segundos desde que ele enfiara a chave na fechadura. Eu sabia o esforço que ele estava fazendo, pois até mesmo eu, que ficara do lado de fora da porta do jardim onde a fumaça era relativamente pouco densa, estava meio sufocado, enquanto Markham e Heath estavam tossindo e soluçando.

Assim que a moça ficou fora da caixa-forte, Vance tomou-a nos braços e carregou-a vacilantemente para o jardim onde colocou-a gentilmente no sofá de vime. O rosto dele estava mortalmente pálido; seus olhos choravam e tinha a respiração difícil. Quando soltou a moça, Vance encostou-se pesadamente em um dos postes de ferro que suportavam o toldo. Abriu amplamente a boca e aspirou o ar fresco.

A enfermeira estava ofegando em estertores e agarrando a garganta. Embora seu peito subisse e descesse em convulsões, todo o seu corpo era flácido e sem vida.

Naquele momento, o Dr. Siefert entrou pela porta do jardim, com uma expressão atônita no rosto. Ele tinha toda a aparência exterior do tipo de médico que Vance nos descrevera na noite anterior. Possuía cerca de 60 anos, vestido de maneira conservadora porém na moda, e com um porte estudadamente digno e auto-suficiente.

Com um grande esforço Vance endireitou o corpo.

— Depressa, doutor — chamou. — É gás de bromo. — E fez um gesto trêmulo em direção ao vulto prostrado da enfermeira.

Siefert avançou rapidamente, moveu o corpo da jovem para uma posição mais confortável e abriu-lhe a gola do uniforme.

— Somente o ar pode ajudá-la — disse, enquanto puxava uma das extremidades do divã de modo a expô-la melhor à brisa que vinha do rio. — Como se sente, Vance?

Vance enxugava os olhos com um lenço; piscou uma ou duas vezes e sorriu levemente.

— Estou bem — dirigiu-se ao divã e olhou um instante para a moça. — Foi por pouco — murmurou.

Siefert inclinou a cabeça gravemente. Neste instante Hammle surgiu de um canto escuro do jardim.

— Por Deus! — exclamou. — Que aconteceu?

Vance voltou-se para o homem com ar colérico, dizendo: — Bem, bem, a lista de presenças está completa. Direi mais tarde o que está acontecendo. Ou talvez o senhor esteja em condições de me dizer. Espere aqui mesmo. — E apontou com a cabeça em direção a uma cadeira que se achava próxima.

Hammle fitou-o com ressentimento e começou a protestar, mas Heath, que acorrera ao seu encontro, pegou-o firmemente pelo braço e levou-o diplomaticamente até à cadeira indicada por Vance. Hammle sentou-se humildemente e tirou um cigarro.

— Eu quisera ter tomado o primeiro trem para Long Island — murmurou.

— Teria sido melhor mesmo, sabe — disse Vance, afastando-se dele.

A tosse estrangulada da enfermeira diminuíra um pouco. Sua respiração era mais profunda e regular e os soluços haviam cedido parcialmente. Pouco depois ela esforçou-se para sentar.

Siefert ajudou-a.

— Respire o mais fundo e rápido que puder — disse. — É de ar que você precisa.

A jovem fez um esforço para seguir as instruções, uma das mãos apoiadas no encosto do sofá e a outra repousando no braço de Vance.

Mais alguns minutos e ela já estava em condições de falar, porém com grande dificuldade.

— Estou melhor agora, a não ser o ardor no nariz e na garganta.

Siefert mandou Heath buscar água e quando a trouxe, a enfermeira bebeu um copo cheio, em meio a soluços estrangulados. Mais dois ou três minutos e ela pareceu recuperar-se consideravelmente. Olhou para Vance com um ar amedrontado.

— Que aconteceu? — perguntou.

— Ainda não sabemos. — Vance devolveu-lhe o olhar com evidente aflição. — Sabemos apenas que você foi envenenada com gás de bromo no cofre onde Swift foi alvejado. Estávamos esperando que você nos pudesse dizer.

Ela sacudiu a cabeça vagamente e seu olhar era de pasmo.

— Receio não ter muito o que contar. Tudo aconteceu de maneira tão inesperada, tão de repente. Tudo o que sei é que quando eu fui dizer ao Dr. Siefert que ele podia subir, bateram-me na cabeça por trás, exatamente quando eu passava pela porta do jardim. O golpe não me deixou inteiramente inconsciente mas atordoou-me de modo que fiquei sem saber o que havia em torno de mim. Depois, senti que me pegavam por trás, giravam meu corpo e empurravam-me de volta pelo corredor até à caixa-forte. Tenho uma vaga lembrança da porta ter sido fechada às minhas costas, embora eu não tivesse condições para protestar ou mesmo dar-me conta do que estava acontecendo. Mas eu estava consciente de que lá dentro havia um pavoroso e sufocante cheiro. Estava encostada à parede e tinha dificuldade em respirar. Senti que ia afundando e isto é a última coisa de que me lembro... — Ela estremeceu. — Isto é tudo o que eu sabia, pelo menos até agora.

— É. Uma experiência desagradável. Mas poderia ter sido muito pior — Vance falou em voz baixa e sorriu gravemente para a jovem. — Tem uma feia mancha roxa em sua cabeça, atrás. Isto também poderia ter sido pior, mas a sua touca engomada provavelmente evitou um mal maior.

A moça pusera-se de pé e vacilou um pouco ao mesmo tempo que procurava firmar-se de encontro a Vance.

— Agora sinto-me bem de verdade. — Olhou para Vance ansiosamente. — E tenho que lhe agradecer, não é?

Siefert falou asperamente.

— Mais alguns minutos daquele gás de bromo teriam sido fatais. Aquele que a encontrou, seja lá quem for, o fez bem a tempo.

A moça não tirava os olhos de Vance.

— Como pode ter-me encontrado tão depressa? — perguntou.

— Raciocínio atrasado — respondeu ele. — Eu a deveria ter encontrado muitos minutos antes, no momento em que soube que não havia voltado lá para baixo. Mas no início foi difícil imaginar que algo de sério poderia ter-lhe acontecido.

— Ainda agora não consigo compreender — disse ela com um ar intrigado.

— Nem eu, inteiramente — retrucou Vance. — Mas talvez ainda venha a saber de mais alguma coisa.

Encaminhando-se rapidamente para o jarro d'água trazido por Heath, mergulhou nele o lenço e apertando este de encontro ao rosto, desapareceu no corredor. Breve regressava. Trazia na mão um caco de vidro fino e curvo, de uns dez centímetros de comprimento.

Era um pedaço de um frasco quebrado que ainda trazia pendurado uma pequena etiqueta onde estava impresso o símbolo "Br".

— Encontrei isto no chão, no fundo da caixa-forte. Estava exatamente ao pé de uma das prateleiras onde o professor Garden mantém o seu sortimento de produtos químicos. Havia um espaço vazio na prateleira, mas este frasco de bromo não pode ter caído acidentalmente. Só pode ter sido retirado deliberadamente e quebrado no momento exato. — Estendeu o fragmento a Heath. — Tome isto, sargento, e procure cuidadosamente por impressões digitais. Mas se, como eu suspeito, foi manipulado pela mesma pessoa que matou Swift, duvido que encontre aí quaisquer marcas expressivas. Em todo o caso...

Heath aceitou cuidadosamente o caco, enrolou-o no lenço que colocou no bolso.

— Se tiver impressões — resmungou — serão as primeiras encontradas aqui.

Vance voltou-se para Markham, que durante toda a cena estivera parado à beira do pequeno lago de pedras, observando com espanto agressivo.

— O bromo — explicou — é um reagente comum. Encontra-se em qualquer laboratório. É um dos halógenos e, embora nunca seja encontrado em liberdade, aparece em vários compostos. Aliás, seu nome vem do grego Bromos, que significa mau cheiro. Não tem sido usado com freqüência como arma de crime, embora haja numerosos casos de envenenamento acidental com ele. Mas, durante a guerra, foi amplamente usado na confecção de bombas de gás, porque torna-se volátil em contato com o ar. E o gás de bromo é sufocante e mortal. Quem quer que tenha planejado esta câmara letal para a Srta. Beeton, não é desprovido de crueldade.

— Foi uma coisa ignóbil, Vance — explodiu Siefert com os olhos flamejantes.

Vance concordou e olhou para a enfermeira.

— Sim. Isso mesmo, doutor. E assim foi a morte de Swift... Como se sente agora, Srta. Beeton?

— Um pouquinho trêmula — respondeu com um sorriso fraco. — Porém nada mais.

— Então podemos prosseguir, não?

— Claro — retrucou em voz baixa.

Nesse instante, Floyd saiu do corredor para o terraço. Ao mesmo tempo que tossia, piscava os olhos e tinha uma expressão interrogativa.

— Que maldito cheiro é este no corredor? — perguntou. — Chegou até lá embaixo e Sneed já está chorando como uma criança que se perdeu. Algo errado?

— Agora não — respondeu Vance. — Foi um vidro de bromina que se quebrou há alguns minutos, mas dentro em breve o ar já estará limpo. Nada de grave. Está tudo indo bem.

— Queria ver-me?

Garden percorreu com ar intrigado o grupo reunido no terraço.

— Sinto muito interrompê-lo Vance, mas eu vim por causa do doutor. — Seus olhos pararam em Siefert e sorriu secamente. — O mesmo de sempre, doutor. A Mama parece a ponto de ter um colapso, ela me assegurou com todo o vigor que não tem mais um grama de forças. Eu a pus na cama, com o que ela pareceu estar perfeitamente de acordo, mas insiste em vê-lo imediatamente. Nunca sei quando ela quer realmente ou não. Em todo o caso, este é o recado.

Siefert mostrou um ar preocupado e inspirou profundamente antes de responder.

— Vou imediatamente, é claro. — Olhou para a enfermeira e depois para Vance. — Podem desculpar-me?

Vance curvou-se: — Certamente, doutor. Mas eu penso que a Srta. Beeton deveria ficar aqui ao ar livre por mais algum tempo.

— Ah, é indispensável. Se precisar dela, mandarei chamar. Mas creio que não será necessário. — E Siefert deixou o terraço seguido por Garden.

Vance acompanhou-os com o olhar até entrarem no corredor, depois falou à enfermeira: — Por favor, Srta. Beeton, sente-se aqui alguns minutos, vamos conversar um pouco. Mas, primeiro, preciso de um ou dois minutos com o Sr. Hammle.

A enfermeira fez que sim e sentou-se um tanto pesadamente no sofá. Vance fez um pequeno sinal a Hammle.

— Que tal se entrássemos um instante? Hammle ergueu-se vivamente.

— Eu estava pensando por quanto tempo ainda os senhores iam-me deter aqui.

Vance abriu caminho até o estúdio; Markham e eu seguimos, logo atrás de Hammle.

— Que estava fazendo no terraço, Sr. Hammle? — perguntou Vance. — Faz algum tempo, após nossa breve entrevista, eu lhe disse que poderia ir embora.

Hammle agitou-se. Era evidente que estava apreensivo e alerta.

— Não é crime ir um pouco até o jardim, ou é? — perguntou com uma truculência sem efeito.

— Absolutamente, não — respondeu normalmente Vance.

— Só estava imaginando por que o senhor preferiu o jardim a ir para casa. Aconteceram tantas coisas infernais neste jardim hoje à tarde.

— Como eu lhe disse, desejava ir para casa. Como poderia saber...

— Este é o ponto, Sr. Hammle — cortou Vance. — Isto não responde à minha pergunta.

— Bom, olhe aqui — explicou detalhadamente Hammle. — Eu acabava de perder o trem para Long Island e para o seguinte faltava mais de uma hora. Quando saí daqui e comecei a descer, disse para mim mesmo: será muito mais agradável esperar no jardim do que na estação da Pennsylvania. Então saí para o terraço e fiquei por lá. E aqui estou eu.

Vance olhou-o com perspicácia e balançou a cabeça.

— Sim, como diz o senhor. Aqui está, mais ou menos em evidência. Aliás, Sr. Hammle, que viu o senhor no jardim enquanto esperava pelo próximo trem?

— Nada, absolutamente nada! — O tom do homem era agressivo. — Caminhei ao longo dos canteiros e vasos, fumando, e estava debruçado no parapeito perto do portão olhando a cidade, quando o ouvi chegar carregando a enfermeira.

Vance apertou os olhos: era evidente que ele não estava satisfeito com a explicação de Hammle.

— E o senhor não viu mais ninguém no jardim ou no terraço?

— Nem uma alma — assegurou-lhe o homem.

— Também nada ouviu?

— Nada, até que apareceram os senhores.

Vance ficou parado olhando Hammle durante um bom momento. Depois voltou-se e caminhou até à janela que dava para o jardim.

— É tudo por enquanto — disse bruscamente. — Mas provavelmente amanhã vamos querer vê-lo outra vez.

— Estarei em casa o dia inteiro. Grato por ser útil. — Hammle deu um olhar para Vance, despediu-se rapidamente e saiu pelo corredor.

 

 

 

 

XIII

 

Azure Star

 

 


(Sábado, 14 de abril — 19:00 horas)

 

 

Vance regressou logo ao jardim. A Srta. Beeton ergueu-se um pouco quando ele se aproximou.

— Está em condições de responder a algumas perguntas? — perguntou Vance.

— Ah, sim. — Sorriu a moça, agora com mais segurança, e levantou-se.

O crepúsculo começava a cair rapidamente sobre a cidade. Um tom cinzento opaco estava substituindo a névoa azulada sobre o rio. Acima das colinas de Jersey, o céu estava iluminado com as cores fortes do pôr-do-sol e, a distância, pequenos focos de luz amarela começavam a surgir às janelas do aglomerado de edifícios. Uma leve brisa soprava do norte e o ar estava frio.

Quando atravessamos o jardim até à amurada, a Srta. Beeton respirou fundo e estremeceu levemente.

— Seria melhor que pusesse o casaco — sugeriu Vance; e voltando ao estúdio, trouxe o casaco para ela. Depois que a ajudou a vesti-lo, a moça voltou-se para ele de repente e perguntou: — Por que trouxeram meu casaco para o estúdio? Isto me está preocupando horrivelmente... juntamente com todas as coisas abomináveis que têm acontecido hoje aqui.

— Por que preocupar-se? — sorriu Vance. — Um casaco fora do lugar certamente não é uma coisa séria. — Seu tom era reconfortante. — Mas, na verdade, nós lhe devíamos uma explicação. Como sabe, dois revólveres participaram da morte de Swift. Um deles, nós vimos aqui no terraço; foi o que matou nosso amigo. Mas ninguém lá embaixo ouviu o tiro porque o rapaz teve fim na caixa-forte do Prof. Garden.

— Ah! Então foi por isso que o senhor queria saber se a chave estava no lugar — disse ela meneando a cabeça.

— O disparo que todos nós ouvimos — prosseguiu Vance — foi feito por outro revólver depois do corpo de Swift ter sido carregado da caixa-forte e colocado na cadeira aqui fora. Nós estávamos naturalmente ansiosos por descobrir essa outra arma e o sargento Heath deu uma busca e...

— Mas... e meu casaco? — Ela agarrou a manga de Vance ao mesmo tempo que uma luz de compreensão passava em seus olhos.

— Sim — respondeu Vance. — O sargento encontrou o revólver no bolso de seu casaco. Alguém teve de colocá-lo lá como esconderijo temporário.

Ela recuou inspirando profundamente.

— Que horror! — Suas palavras eram quase inaudíveis. Vance pôs a mão em seu ombro.

— Se a senhorita não tivesse vindo ao estúdio naquela ocasião e visto o casaco, nós o teríamos devolvido ao guarda-roupa lá embaixo e poupado esse aborrecimento.

— Mas, é terrível demais... e depois, este atentado contra mim. Não posso entender, estou apavorada.

— Vamos, vamos — exortou Vance. —i Agora já passou e precisamos de sua ajuda.

Ela encarou-o por um momento. Depois deu-lhe um leve sorriso de confiança.

— Sinto muito — disse com simplicidade. — Mas esta casa, esta família... eles andam fazendo umas coisas muito estranhas que têm afetado meus nervos desde o mês passado. Não posso explicar o que é, mas há alguma coisa de completamente errado aqui. Durante seis meses eu fui encarregada de uma sala de operação num hospital de Montreal, atendendo a seis ou oito operações por dia; mas isto nunca me afetou como esta casa aqui. Lá, pelo menos, eu podia saber o que ia acontecer; eu podia ajudar e saber que estava ajudando. Mas aqui tudo se passa nos cantos escuros, e nada do que eu faço parece ter qualquer utilidade. Podem imaginar um cirurgião ficando cego em meio a uma laparotomia e tentando continuar sem a visão? É assim que eu me sinto neste estranho lugar. Mas, por favor, não pensem que não estou pronta a ajudar, a fazer o que puder pelos senhores. Os senhores, também, sempre trabalham no escuro, não é?

— Todos nós não temos que trabalhar no escuro? — murmurou Vance sem despregar os olhos dela. — Diga-me: quem você acha possa ser o culpado de todas essas coisas horríveis que estão acontecendo aqui?

Todo o medo e a dúvida pareceram abandoná-la. Caminhou em direção à amurada e parou olhando para o rio com uma impressionante calma e autoconfiança.

— Realmente, eu não sei — respondeu com uma calma reserva. — Há uma série de possibilidades, segundo todas as expectativas. Mas não tive tempo de pensar no assunto com clareza. Tudo aconteceu tão de repente...

— Sim, é exato — disse Vance. — Coisas como esta sempre acontecem subitamente e sem aviso prévio.

— A morte de Woody Swift não foi em absoluto o que esperei que acontecesse aqui — prosseguiu a moça. — Eu não teria ficado surpreendida com algum ato de violência impulsiva, mas este crime premeditado, tão sutil e cuidadosamente planejado, parece estranho à atmosfera daqui. Além disso, não é uma família amorosa, a não ser na superfície. Psicologicamente, cada um parece ter objetivos opostos, cheios de ódios ocultos. Ausência de comunicação, quero dizer, comunicação... entendimento. Floyd Garden é mais sadio que os outros. Seus interesses são restritos, evidentemente; mas em seu próprio nível mental, ele sempre me impressionou como sendo um homem para a frente e enormemente humano. É também digno de confiança, creio eu. É intolerante com sutilezas e profundidades, e sempre adotou o caminho de ignorar a existência daquelas qualidades que causaram atrito entre os outros membros da família. Talvez eu esteja errada, mas esta é a minha impressão.

Ela fez uma pausa e franziu a testa.

— Quanto à Sra. Garden, acho que ela é oca por natureza e está criando para si mesma um modo de vida mais profundo e complexo que ela mesma não compreenda. Isto, naturalmente, a torna pouco razoável e perigosa. Nunca tive uma paciente tão pouco razoável. Ela não tem em absoluto um pingo de consideração com os outros. Sua afeição pelo sobrinho, nunca me pareceu autêntica. Ele era como um pequeno boneco de argila feito por ela e a quem estimava muito. Se ela tivesse idéia de outro modelo, acho que molharia a argila e remodelaria tudo outra vez, criando outro objeto de adoração.

— E o professor Garden?

— Ele é um pesquisador e um cientista e, portanto, não completamente humano no sentido convencional do termo. Algumas vezes até pensei que ele não fosse inteiramente racional. Para ele, as pessoas e as coisas são apenas elementos que devem ser convertidos numa combinação química. Entendem o que estou querendo dizer?

— Sim, muito bem — tranqüilizou-a Vance. — Todo cientista considera-se um Ubermensch*. O poder é o seu deus. Muitos dos grandes cientistas da humanidade têm sido considerados como loucos. Talvez fossem. Sim, um difícil problema. A detenção do poder conduz à fraqueza. Conceito tolo, não é? A atividade mais perigosa do mundo é a ciência. Especialmente perigosa para o próprio cientista. Todo grande descobridor da ciência é um Frankstein em potencial. Entretanto... Qual é a sua impressão dos convidados hoje presentes?

* Super-homem. (N. do T.)

— Não me julgo competente para julgá-los — respondeu seriamente. — Não os compreendo totalmente. Mas cada um deles me impressiona como sendo perigoso à sua moda. Estão todos jogando uma partida e parece ser um jogo sem regras. Para eles, os fins justificam os meios que empregam. Parecem que estão simplesmente à busca de sensações, tentando correr o véu da ilusão sobre as realidades da vida porque não são bastante fortes para encarar os fatos.

— Sim, certo. Você tem uma visão clara. — Vance examinava a moça a seu lado. — E escolheu a profissão de enfermeira porque é capaz de enfrentar a realidade. Você não tem medo da vida... nem da morte.

A jovem pareceu embaraçada.

— O senhor está exagerando a minha profissão. Afinal de contas, eu precisava ganhar a minha vida e a enfermagem atraiu-me.

— Sim, naturalmente. Devia mesmo. Mas, diga-me, você não preferiria não ter que trabalhar para viver?

Ela olhou para ele.

— Talvez. Mas não é normal que toda mulher prefira o luxo e a segurança à luta e incerteza?

— Sem dúvida — disse Vance. — E falando de enfermagem, que me diz das condições da Sra. Garden?

A moça hesitou antes de responder.

— Realmente, não sei o que dizer. Não entendo. E quase suspeito de que o próprio Dr. Siefert também está confuso. É evidente que a Sra. Garden é uma pessoa doente. Ela mostra muitos sintomas daquele temperamento nervoso e errático exibido pelas pessoas que sofrem de câncer. Embora em alguns dias ela esteja melhor que outros, sei que sofre bastante. O Dr. Siefert disse que ela é realmente um caso neurológico; mas, às vezes, sinto que a coisa vai muito mais longe; que uma condição fisiológica obscura está produzindo os sintomas neurológicos que ela apresenta.

— Isto é muito interessante. Há alguns dias atrás o Dr. Siefert mencionou alguma coisa a esse respeito. — Vance aproximou-se da moça. — Poderia contar-me algo sobre os seus contatos com os membros da família?

— Há muito pouco a dizer. O Prof. Garden praticamente me ignora; a maior parte do tempo eu me pergunto se ele sabe que estou aqui. A Sra. Garden alterna entre períodos de irritada admoestação e confidencias íntimas; Floyd Garden tem sido sempre agradável e atencioso. Ele tem procurado fazer-me feliz aqui e freqüentemente se desculpa pelo abominável tratamento que sua mãe, às vezes, me dispensa. Eu o tenho apreciado bastante por esta atitude.

— E sobre Swift: você o via bastante?

Ela pareceu relutar em responder e desviou o olhar mas finalmente voltou-se para Vance.

— A verdade é que, diversas vezes, o Sr. Swift convidou-me para jantar e ir ao teatro com ele. Nunca pude fazer objeção às suas iniciativas, mas, eventualmente, ele me aborrecia bastante. Fiquei, porém, com a impressão de que ele era um desses homens infelizes que sentem sua inferioridade e procuram apoiar-se na afeição das mulheres. Acho que ele estava realmente interessado na Srta. Graem e voltava-se para mim por ressentimento.

Vance fumou uns instantes em silêncio. Depois disse: — E sobre a grande corrida de hoje? Houve muita discussão a respeito?

— Ah, sim. Durante toda a semana eu quase nada ouvi sobre outro assunto. Havia uma curiosa tensão crescendo aqui em casa. Uma noite ouvi o Sr. Swift observar a Floyd Garden que o Grande Prêmio Rivermont era a sua última esperança e que ele acreditava na vitória de Equanimity. Imediatamente travaram uma furiosa discussão com relação às possibilidades de Equanimity.

— Eram do conhecimento dos outros participantes das reuniões da tarde os sentimentos de Swift com relação a esta corrida de Equanimity?

— Sim, o assunto foi livremente discutido durante vários dias. Sabe — acrescentou à guisa de explicação — é impossível para mim deixar de ouvir algumas dessas discussões da tarde; a própria Sra. Garden muitas vezes participava delas e depois as comentava comigo.

— Por falar nisso — perguntou Vance — como veio a apostar em Azure Star?

— Francamente — confessou a moça envergonhada — desde que estou aqui tenho-me interessado um pouco pelas corridas, embora nunca antes tivesse pensado em fazer uma aposta. Mas escutei o senhor dizer ao Sr. Garden que havia escolhido Azure Star e o nome agradou-me tanto que pedi a ele que apostasse para mim. Foi a primeira vez em que joguei num cavalo.

— E Azure Star ganhou — Vance suspirou. — É pena. Na realidade, você jogou contra Equanimity, compreende; ele era o favorito. Um grande cavalo. É uma pena que você tenha ganho. A sorte do principiante é sempre fatal.

O rosto da moça ensombreceu e ela fitou fixamente Vance durante diversos minutos antes de voltar a falar.

— O senhor realmente acha que será fatal?

— Sim. É sim. Inevitável. Você não resistirá à vontade de jogar novamente. Ninguém pára quando ganha da primeira vez. E, invariavelmente, perde no final.

Novamente ela deu um longo e perturbado olhar a Vance; depois desviou para o céu que escurecia sobre nossas cabeças.

— Mas Azure Star é um lindo nome, não é? — Apontou para cima. — Lá está uma estrela azul.

Todos nós olhamos para cima. Bem no alto vimos uma única estrela brilhando com uma luminosidade azulada no céu sem nuvens. Depois de alguns instantes, Vance dirigiu-se até o parapeito e olhou por cima das águas do rio para as colinas arroxeadas e as cores ainda luminosas do crepúsculo. As formas pontiagudas dos grandes edifícios sombrios do lado sul cortavam a abóbada celeste como silhuetas irreais em uma cena dramática.

— Nenhuma cidade do mundo é tão linda como Nova York vista de um ângulo como este no início do crepúsculo. (E eu fiquei pensando nesta súbita mudança de humor.) Ele subiu ao parapeito e olhou lá embaixo o grande abismo de profundas sombras e luzes bruxuleantes bem ao longe. Um curioso arrepio de medo correu pelas minhas costas, o tipo de medo que eu sempre senti ao ver acrobatas balançando perigosamente sobre uma arena de circo. Eu sabia que Vance não tinha medo de altura e que possuía um senso de equilíbrio fora do comum. Mas, apesar disso, involuntariamente prendi a respiração; meus pés e membros inferiores começaram a tremer; e durante um instante eu realmente pensei que ia desmaiar.

A Srta. Beeton estava parada junto a Vance; e ela, também, deve ter experimentado alguma coisa de parecido com a sensação que eu tive porque empalideceu subitamente. Seus olhos estavam fixos em Vance com uma expressão de horror e apreensão; ela agarrou o braço de Markham procurando apoio.

— Vance! — Foi a voz dura de Markham que rompeu o silêncio. — Desça daí!

Vance pulou para dentro e voltou-se para nós.

— Mil desculpas — disse. — A altura realmente afeta muita gente. Eu não havia pensado. — Olhou para a moça. — Pode perdoar-me?

Enquanto falava, Floyd surgiu no terraço vindo do corredor.

— Desculpe, Vance, mas o Dr. Siefert quer a Srta. Beeton lá embaixo, se ela se achar em condições. A Mama está fazendo uma de suas cenas.

A enfermeira saiu correndo e Garden caminhou até Vance. Mais uma vez ele estava às voltas com o cachimbo.

— Uma boa confusão — murmurou. — E você certamente pôs o temor de Deus e da destruição no coração dos piedosos rapazes e moças que aqui estiveram hoje. Todos eles ficaram em cócegas depois que falaram com você. O fato, Vance, é que, se por qualquer razão você quiser ver Kroon, Zalia Graem ou Madge Weatherby esta noite, eles estarão aqui. Todos pediram para vir. Precisam voltar à cena do crime ou coisa semelhante. Precisam apoio mútuo. E, para ser franco, eu estou bem satisfeito que eles venham. Pelo menos poderemos falar na coisa e tomar alguns highballs; e isso é bem melhor que ficar matutando e preocupando-se sozinho.

— Perfeitamente natural — concordou Vance. — Compreendo o que sentem... e você também... perfeitamente. Uma bruta confusão, como você diz. E agora, se nós descêssemos?

O Dr. Siefert veio ao nosso encontro no pé da escada.

— Eu estava justamente vindo ao seu encontro, Sr. Vance. A Sra. Garden insiste em vê-lo. — Depois acrescentou em voz baixa: — Ela é biruta. Um tanto histérica. Não levem muito a sério o que ela disser.

Entramos no quarto. A Sra. Garden, vestida com um peignoir de seda rosa-salmão, estava na cama, recostada em uma pilha de travesseiros. Seu rosto estava abatido e, à luz do quarto, parecia flácido e pouco saudável. Seus olhos flamejaram demoniacamente quando nos viu e seus dedos agarraram-se nervosamente à coberta. A enfermeira ficou de pé na extremidade oposta do quarto, olhando sua paciente com um calmo interesse; o Prof. Garden estava pesadamente encostado ao peitoril da janela em frente; seu rosto era uma máscara de ansiosa solicitude.

— Eu tenho uma coisa a dizer e quero que vocês todos ouçam. — A voz da Sra. Garden era aguda e estridente. —. Meu sobrinho foi assassinado hoje... e eu sei quem o fez! — Ela olhou venenosamente para Floyd Garden que estava de pé, junto à cama, com o cachimbo frouxamente pendurado no canto da boca. — Você! — E apontou um dedo acusador para seu filho. — Você sempre odiou Woody. Sempre teve ciúmes dele. Ninguém mais tinha razões para fazer essa coisa mesquinha. Suponho que eu deveria mentir e proteger você. Mas com que fim? Para que você pudesse matar mais alguém? Talvez... talvez a mim, ou a seu pai. Não! Chegou a hora da verdade. Você matou Woody, e eu sei que você o matou. E sei também por que o fez...

Durante toda esta tirada, Floyd Garden permaneceu de pé, sem se mover, e sem emoção perceptível. Mantinha os olhos fitos na mãe com uma cínica indiferença. Quando ela fez uma pausa, ele tirou o cachimbo da boca e com um triste sorriso, perguntou: — E por que eu fiz isso Mama?

— Porque você tinha ciúmes dele. Porque você sabia que eu dividi meus bens igualmente entre vocês dois e você queria tudo para si. Sempre sentiu o fato de que eu gostasse tanto de Woody quanto de você. E agora pensa que, tendo tirado Woody do caminho, vai ficar com tudo quando eu morrer. Mas, engana-se. Você não terá nada! Está-me ouvindo? Nada! Amanhã, vou mudar meu testamento. — Seus olhos estavam cheios de uma frenética e maldosa excitação; ela parecia uma mulher que de repente tivesse enlouquecido. — Vou mudar meu testamento, compreende? A parte de Woody irá para seu pai, com a condição de que você nunca receba ou herde um dólar da mesma. E a sua parte irá para instituições de caridade. — Ela ria historicamente e batia na cama com os punhos cerrados.

O Dr. Siefert estivera observando atentamente a senhora. Aproximou-se um pouco da cama.

— Um saco de gelo, imediatamente — disse para a enfermeira; e esta saiu logo do quarto. Depois ele remexeu em sua maleta e cuidadosamente preparou uma injeção.

— Não vou deixar que você me dê isso — gritou a mulher acamada. — Não tenho nada. Estou cansada de tomar suas drogas.

— Sim, eu sei. Mas vai tomar isso, Sra. Garden. — O Dr. Siefert falava com uma calma segurança.

A senhora descontraiu-se diante do paciente e ditatorial exame e deixou que ele lhe desse a injeção. Descansou nos travesseiros, olhando absorta para o filho. A enfermeira voltou e arrumou o saco de gelo para a paciente.

O Dr. Siefert escreveu uma receita e virou-se para a Srta. Beeton.

— Mande aviar imediatamente. Uma colher de chá de duas em duas horas até que a Sra. Garden adormeça.

Floyd Garden deu um passo à frente e pegou a receita.

— Vou telefonar para a farmácia — disse. — Em alguns minutos eles a mandarão trazer. — E saiu do quarto.

Após algumas últimas instruções à Srta. Beeton, o doutor dirigiu-se ao salão e todo nós o seguimos, deixando a enfermeira ajeitando os travesseiros da Sra. Garden. O professor, que durante a dolorosa cena se mantivera de costas para nós, olhando pela janela, ainda continuava lá, parecendo uma gárgula enquadrada pelo caixilho.

Quando passamos pela porta da saleta, ouvimos a voz de Garden ao telefone.

— Penso que a Sra. Garden se acalmará agora — observou o Dr. Siefert a Vance quando chegamos ao salão.

— Como já lhe disse, não devemos levar a sério suas observações enquanto ela não estiver em condições. Amanhã, já terá esquecido tudo.

— Sua mordacidade, entretanto, não parece inteiramente desprovida de racionalismo — retrucou Vance.

Siefert franziu a testa mas não fez comentário à declaração de Vance. Ao contrário, ele disse em sua voz calma, bem modulada, enquanto sentava-se descansadamente na cadeira mais próxima.

— Todo esse caso é muito chocante. Floyd Garden deu-me apenas alguns detalhes quando eu cheguei. Poderia esclarecer-me um pouco mais?

Vance imediatamente fez-lhe a vontade. Num relato sucinto, Vance repassou todo o caso, a começar do telefonema anônimo que recebera na noite anterior. (O Doutor não demonstrou o mais leve conhecimento da chamada telefônica. Ficou ali sentado, olhando para Vance com uma serena atenção, como um especialista ouvindo a descrição feita por um paciente.) Vance não ocultou nenhum detalhe importante. Explicou tudo sobre os páreos e as apostas, a retirada de Swift para o terraço, as atitudes dos outros membros do grupo, o tiro, o encontro do corpo de Swift, a descoberta feita na caixa-forte, a história dos fios da campainha, o essencial das várias entrevistas que teve com os membros da família Garden e, finalmente, a descoberta do segundo revólver no bolso do casaco da enfermeira.

— O resto — concluiu Vance — o senhor mesmo testemunhou.

Siefert meneou a cabeça bem vagarosamente duas ou três vezes como para indicar haver recebido um claro e satisfatório quadro dos acontecimentos da tarde.

— Uma situação muito séria — comentou gravemente como se estivesse fazendo um diagnóstico. — Algumas das coisas que o senhor me contou parecem-me altamente significativas. Um assassinato perspicazmente arquitetado... e requintado. Especialmente ao esconderem o revólver no bolso da Srta. Beeton e o atentado contra ela na caixa-forte. Não entendo esta fase da situação.

Vance ergueu os olhos vivamente.

— O senhor entende qualquer outra fase da situação?

— Não, não, eu não quis dizer isto — apressou-se Siefert a responder. — Eu estava pensando simplesmente que, enquanto a morte de Swift poderia ser facilmente explicável em planos racionais, não consigo ver qualquer razão possível para este covarde atentado de revólver a Srta. Beeton e depois dar fim à sua vida.

— Mas eu duvido seriamente que o revólver tenha sido posto no bolso da Srta. Beeton com qualquer intenção de incriminá-la. Imagino que tenha ido parar ali temporariamente, enquanto não pudesse ser tirado da casa. Mas concordo com o senhor que o episódio do gás de bromo é altamente desorientados — Vance, sem demonstrar, vigiava atentamente o doutor. — Quando pediu para ver-me hoje à tarde, eu estava esperando que o senhor pudesse ter alguma sugestão que, vindo de alguém familiarizado com a situação doméstica aqui, poderia colocar-nos na pista certa.

Siefert sacudiu a cabeça solenemente várias vezes.

— Não, não. Lamento, mas eu mesmo estou completamente perdido. Quando pedi para lhe falar e ao Sr. Markham, foi porque, evidentemente, eu estava muitíssimo interessado na situação e ansioso por ouvir o que o senhor poderia ter a dizer sobre o assunto. — Fez uma pausa, afastou de leve a cadeira e depois perguntou: — Os senhores já formaram alguma opinião sobre o que conseguiram apurar?

— Sim, sim. — O olhar de Vance derivou do doutor até o lindo cavalo Tang que estava sobre um móvel próximo. Francamente, entretanto, detesto a minha própria opinião. Lamentarei se acertar. Uma conclusão sinistra, pouco natural, está vindo ao meu encontro. Ê o horror absoluto — Vance falou com uma intensidade involuntária.

Siefert permaneceu silencioso e Vance tornou a voltar-se para ele.

— Diga-me, doutor, o senhor está especialmente preocupado com o estado da Sra. Garden?

Uma nuvem velou o semblante de Siefert e ele não respondeu de imediato.

— É um caso estranho — disse finalmente, com uma evidente tentativa de evasão. — Como lhe disse há pouco, estou profundamente intrigado. Vou trazer o Dr. Kattelbaum* amanhã, para uma conferência.

 

 

 

*Hugo Kattelbaum, embora relativamente jovem, era, na época, uma das principais autoridades em câncer; suas pesquisas sobre o efeito do rádio nas vísceras humanas haviam merecido uma considerável atenção das principais revistas médicas.

 

 

 


— Sim, o senhor tem razão. Kattelbaum — Vance olhou sonhadoramente para o doutor. — A mensagem telefônica anônima que recebi a noite passada falava em sódio radioativo. Mas Equanimity era essencial. Sim. Exatamente. Não é um caso bonito, doutor, em absoluto. E agora acho que vamos ficar andando em círculos. — Vance ergueu-se e fez uma reverência brusca e formal. Siefert também ergueu-se.

— Se há qualquer coisa, de qualquer espécie, que eu possa fazer...

— Nós o chamaremos mais tarde — respondeu Vance e dirigiu-se ao hall.

Siefert não nos seguiu, mas deu meia volta e foi lentamente até uma das janelas da frente, onde ficou olhando para fora, com as mãos cruzadas atrás das costas.

Voltamos ao vestíbulo e encontramos Sneed esperando para nos ajudar a vestir os casacos.

Acabávamos de alcançar a porta de saída do apartamento quando os sons estridentes da voz da Sra. Garden nos chegaram aos ouvidos. Floyd Garden permanecia de pé dentro do quarto, encarando sua mãe.

— Sua solicitude não lhe servirá de nada, Floyd gritava a Sra. Garden. — Está sendo bonzinho para mim agora? Telefonando para aviarem a receita. Todo atenção e bondade. Mas não pense que está colocando uma venda em meus olhos. Não fará diferença alguma. Amanhã vou alterar meu testamento! Amanhã!...

Continuamos nosso caminho e nada mais ouvimos. Mas a Sra. Garden não mudou o testamento. Não manhã seguinte, encontraram-na morta na cama.


XIV

 

Sódio Radioativo

 

(Domingo, 15 de abril — 9:00 horas)

 

 

Na manhã seguinte, pouco depois das nove horas, o Dr. Siefert telefonou. Vance ainda estava deitado quando o telefone tocou e eu atendi. (Havia várias horas que eu estava de pé: os acontecimentos do dia anterior haviam-me agitado sobremaneira e não fui capaz de dormir.) A voz do doutor era de quem tinha urgência e parecia perturbado quando pediu que chamasse imediatamente Vance. Quando o acordei, foi com uma intuição de mais alguma desgraça. Vance parecia relutante em erguer-se e queixava-se cinicamente das pessoas que se levantavam de manhã cedo. Por fim, enfiou seu robe chinês e os chinelos e, acendendo um Régie, foi protestando até à saleta.

Decorreram aproximadamente dez minutos antes que ele voltasse. Seu ressentimento se desvanecera, e quando ele se dirigiu à mesa e chamou por Currie, havia um ar de agudo interesse em seu rosto.

— Café imediatamente — ordenou quando apareceu o velho mordomo. — E prepare um terno escuro e o meu Homburg* preto. E, por falar nisso, Currie, mais um lugar à mesa. O Sr. Markham vai chegar e pode querer tomar uma xícara de café.

*Chapéu de feltro. (N. do T.)

Currie saiu e Vance regressou a seu quarto. Quando chegou na porta parou e olhou para mim com uma curiosa expressão.

— A Sra. Garden foi encontrada morta em sua cama esta manhã — falou. — Algum tipo de veneno. Telefonei a Markham e vamos ao apartamento dos Gardens assim que ele chegar. Um caso feio, Van, muito feio. Há muito jogo acontecendo naquela casa. — E entrou no quarto.

Markham chegou meia hora depois. Enquanto isso, Vance vestira-se e terminava sua segunda xícara de café.

— Qual é o problema agora? — perguntou Markham com irritação, entrando na biblioteca. — Talvez agora, que estou aqui, você será bastante gentil para esquecer seu ar enigmático.

— Meu caro Markham; oh, meu caro Markham! — suspirou Vance erguendo os olhos. — Sente-se aqui, tome uma xícara de café e aprecie este cigarro. Na verdade, sabe, é um bocado difícil ser lúcido ao telefone. — Serviu o café e Markham sentou-se com relutância. — Por favor, não adoce o café; ele tem um gosto deliciosamente sutil e seria uma pena estragá-lo com sacarina.

Markham, o cenho franzido desafiadoramente, pôs três colheres de açúcar no café.

— Por que estou aqui? — resmungou.

— Uma pergunta profundamente filosófica — sorriu Vance. — Impossível de responder, também. Por que estamos aqui? Por que tudo? Mas, uma vez que aqui estamos todos, sem sabermos o motivo disso, vou servir seu pragmatismo. — Deu uma grande tragada no cigarro e sentou-se outra vez preguiçosamente.

— Siefert telefonou-me esta manhã, pouco antes que eu ligasse para você. Explicou que não sabia o seu número de casa e por isso teve que falar comigo, ao invés de avisá-lo diretamente.

— Avisar-me? — Markham largou a xícara.

— Sobre a Sra. Garden. Ela está morta. Assim foi encontrada esta manhã, na cama. Provavelmente assassinada.

— Meu Deus!

— Sim, exatamente. Não é uma situação agradável. A senhora morreu em algum momento durante a noite; a hora exata ainda é desconhecida. O médico diz que pode ter sido causada por uma dose excessiva do remédio para dormir que ele havia receitado. Foi-se todo. E ele diz que havia uma quantidade suficiente para fazer a coisa. Por outro lado, ele admite que pode ter sido outra coisa; está muito reticente. Não há sinais externos que lhe permitam um diagnóstico; solicita a nossa opinião e apoio. Daí o seu apelo.

Markham afastou a xícara com um ruído e acendeu um charuto.

— Onde está Siefert agora?

— Em casa dos Gardens. Muito correto. Sempre a postos e tudo o mais. A enfermeira telefonou para ele pouco depois das oito horas de hoje; foi ela quem fez a descoberta ao levar o café da manhã para a Sra. Garden. Siefert apressou-se e, após ver o que ocorrera e depois de sondar um pouco, telefonou-me. Disse que, em vista dos acontecimentos de ontem, ele não quis prosseguir até que chegássemos.

— Bem, então por que não prosseguimos? — exclamou Markham erguendo-se.

Vance suspirou e levantou-se lentamente.

— Na verdade não há pressa. A senhora não nos pode escapar. E Siefert não abandonará o navio. Além disso, é uma hora impossível de se tirar alguém da cama. Sabe, Markham, poder-se-ia escrever uma interessante monografia sobre a total falta de consideração por parte dos assassinos. Eles só pensam em si próprios. Não têm sentimento de fraternidade. Sempre alterando a rotina normal. E nunca declaram um dia livre, nem mesmo um domingo de manhã. Entretanto, como diz você, vamos levando.

— Não seria melhor avisarmos Heath? — sugeriu Markham.

— Sim, exato — respondeu Vance quando saíamos. — Chamei o sargento logo depois de telefonar a você. Ele esteve acordado a noite inteira trabalhando na rotina habitual da polícia. Grande cara, Heath. Uma atividade surpreendente. Mas muito inútil. Se ao menos tanta energia servisse a alguma coisa mais que encher arquivos de aço. Sempre pensei com ternura em Heath como um conservador de arquivos...

A Srta. Beeton fez-nos entrar no apartamento dos Gardens. Parecia cansada e preocupada, mas saudou Vance com um sorriso amável.

— Estou começando a acreditar que este pesadelo jamais terá fim — disse ela.

Vance concordou sombrio, e entramos no salão onde o Dr. Siefert, o Prof. Garden e seu filho estavam à nossa espera.

— Estou contente por terem vindo, senhores — saudou-nos o doutor vindo ao nosso encontro.

O Prof. Garden estava sentado numa das extremidades do longo divã, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto oculto nas mãos. Mal tomou conhecimento da nossa presença, Floyd Garden levantou-se e fez um vago aceno em nossa direção. Uma tremenda mudança parecia ter-se produzido nele. Parecia muitos anos mais velho que quando o havíamos deixado na noite anterior, e seu rosto, apesar de queimado pelo sol, mostrava uma palidez esverdeada. Seus olhos vagueavam pela sala; ele estava visivelmente abalado.

— Que situação dos infernos! — murmurou, focalizando os olhos úmidos em Vance. — A noite passada a Mama acusa-me de ter tirado Woody do caminho e depois ameaça de me tirar de seu testamento. E agora ela está morta! E fui eu quem se encarregou da receita. O doutor diz que pode ter sido o remédio que a matou.

Vance olhou-o agudamente.

— Sim, sim — disse numa voz baixa e de simpatia. — Pensei em tudo isso, também, sabe? Mas isto evidentemente não impede que você tenha sentimentos mórbidos. Que tal um Tom Collins?

— Já tomei quatro — respondeu Garden desanimado, afundando novamente na cadeira. Mas quase imediatamente ficou de pé outra vez. Apontou um dedo para Vance, os olhos cheios de apreensão e súplica. — Pelo amor de Deus — explodiu — é você quem tem de descobrir a verdade. Estou na berlinda; com a minha saída da sala com Woody ontem, o fato de eu não ter colocado sua aposta, depois a acusação de Mama, e seu maldito testamento, e o remédio. Você tem que descobrir quem é o culpado...

Quando ele estava falando, tocou a campainha da porta e Heath avançou pelo corredor.

— É claro, nós vamos descobrir — disse a belicosa voz do sargento vindo do hall. — E não vai ser nada bom para o senhor quando o fizermos.

Vance rapidamente deu meia volta.

— Ora, vamos sargento. Menos animação, por favor. Ainda é de manhã cedo. — Dirigiu-se a Garden e colocando a mão em seu ombro, fez com que ele voltasse à cadeira onde estivera sentado. — Vamos, — animou — precisaremos de seu auxílio e se você der um fricote agora não nos vai servir de nada.

— Mas você não vê até que ponto eu estou complicado? — protestou fracamente Garden.

— Você não é o único a estar envolvido nisso — respondeu calmamente Vance, voltando-se para Siefert. — Acho, doutor, que podemos conversar um pouco. Provavelmente tiraremos a limpo a morte de sua paciente, sem maiores dificuldades. Que tal se subíssemos até o estúdio, hem?

Quando atravessamos o hall, olhei para trás. O jovem Garden continuava a olhar em nossa direção com uma expressão dura e determinada. O professor não se movera e não tomou conhecimento da nossa saída assim como não fizera com a nossa entrada.

Chegando ao estúdio, Vance foi diretamente ao assunto.

— Doutor, chegou o momento em que precisamos ser perfeitamente francos um com o outro. As costumeiras considerações convencionais de sua profissão devem ser temporariamente postas de lado. Um assunto muito mais urgente está em pauta agora e requer um exame muito mais sério que a conhecida relação entre doutor e paciente. Portanto, serei totalmente sincero com o senhor, e confiarei em que dará um jeito de ser igualmente sincero comigo.

Siefert, que pegara uma cadeira próxima à porta, olhou para Vance um tanto desajeitado.

— Lamento não entender o que está dizendo — falou ele com o seu modo mais suave.

— Eu simplesmente queria dizer — replicou friamente Vance — que estou inteiramente ciente de que foi o senhor o autor do telefonema anônimo de sexta-feira à noite.

Siefert ergueu levemente as sobrancelhas.

— Realmente! Isto é muito interessante.

— Não apenas interessante — disse lentamente Vance — mas verdadeiro. Como vim a saber, não interessa no momento. Apenas lhe peço para admitir que é isso mesmo e agir de acordo com a idéia. O fato tem uma influência direta neste trágico caso, e a menos que o senhor nos assista com uma franca declaração, será cometida uma grave injustiça, uma injustiça, que não se enquadraria em qualquer dos códigos de ética existentes.

Siefert hesitou durante diversos momentos. Desviou apressadamente os olhos de Vance e fitou pensativamente o horizonte.

— Supondo-se, em nome da razão — disse — que o senhor adivinharia quem a estava mandando e compreenderia que eu estava tentando comunicar consigo. Mas agora percebo que nada ganharei em não usar de franqueza... A situação nesta casa tem-me perturbado desde algum tempo, e ultimamente eu tinha a sensação de um desastre iminente. Todos os fatores vinham amadurecendo para chegar a este resultado final. E a sensação era tão forte que eu não pude resistir a enviar-lhe uma mensagem anônima na esperança de que as vagas eventualidades que eu previa pudessem ser evitadas.

— Há quanto tempo o senhor vinha tendo esses vagos pressentimentos? — perguntou Vance.

— Desde os últimos três meses, posso dizer. Embora há anos eu venha sendo o médico dos Gardens, foi somente no último outono que comecei a notar uma alteração no estado da Sra. Garden. No princípio, não dei muita atenção ao fato, mas, à medida que foi ficando pior e que me vi incapaz de fazer um diagnóstico satisfatório, uma estranha suspeita me invadia de que a mudança não era inteiramente natural. Comecei a vir aqui com muito mais freqüência, durante os dois últimos meses senti muitas correntes subterrâneas nas várias relações entre os habitantes desta casa, e que eu nunca antes havia percebido. Naturalmente, eu sabia que Floyd e Swift nunca se deram especialmente bem; que havia uma profunda animosidade e ciúme entre eles. Sabia também dos termos do testamento da Sra. Garden. Além disso, eu estava a par das apostas nos cavalos, o que era parte da rotina diária da casa. Floyd e Woody nunca me esconderam, o senhor compreende, eu sempre fui confidente e médico de ambos, e suas reações com relação aos casos particulares, que infelizmente incluíram as corridas de cavalos, eram bem minhas conhecidas.

Siefert fez uma pausa e franziu a testa.

— Como estava dizendo, foi apenas recentemente que senti algo mais profundo e mais significativo em toda essa interpolação de temperamentos, e este sentimento assumiu tais proporções que realmente receei um clímax de alguma forma violento; especialmente quando Floyd contou-me, alguns dias atrás, que seu primo pretendia apostar seus últimos recursos em Equanimity no grande prêmio de ontem. Tão avassalador foi o meu sentimento em relação a toda essa situação que decidi fazer alguma coisa, desde que pudesse agir sem divulgar aquelas confidencias profissionais. Mas o senhor viu através do meu subterfúgio e, para ser totalmente sincero, estou até satisfeito com isso. Vance concordou.

— Aprecio seus escrúpulos no caso, doutor. Apenas lamento que eu não tenha sido capaz de impedir essas tragédias. Isto, da maneira que aconteceu, estava além do poder humano. — Vance ergueu vivamente os olhos. — Aliás, o senhor tinha alguma suspeita bem definida quando me telefonou na sexta-feira à noite?

Siefert sacudiu a cabeça com ênfase.

— Não, eu estava desnorteado. Apenas senti que, de alguma forma, a explosão estava iminente. Mas eu não tinha a menor idéia de que lado ia acontecer.

— Poderia dizer de que lado surgiram as causas de sua apreensão?

— Não. Também não sei dizer se minha sensação tinha alguma coisa a ver apenas com o estado da Sra. Garden, ou se eu também fui influenciado pelo sutil antagonismo existente entre Floyd e Woody Swift. Muitas vezes me perguntei isso, sem encontrar uma resposta satisfatória. Entretanto, em algumas ocasiões, não pude resistir à impressão de que os dois fatores estavam de certa forma relacionados. Daí o meu recado telefônico, onde, por linhas indiretas, chamei sua atenção tanto para a estranha doença da Sra. Garden como para a tensa atmosfera que se desenvolvia em meio às apostas diárias.

Vance permaneceu um momento em silêncio, fumando.

— E agora, doutor, quer ter a gentileza de nos dar todos os detalhes sobre esta manhã?

Siefert endireitou-se na cadeira.

— Não há, praticamente, nada a acrescentar à informação que lhe dei ao telefone. A Srta. Beeton chamou-me pouco após as oito horas e informou-me que a Sra. Garden morrera durante a noite. Pediu instruções e eu lhe disse que viria imediatamente. Cheguei aqui cerca de meia hora mais tarde. Não encontrei causa determinada para a morte da Sra. Garden, e supus que poderia ter sido o coração até que a enfermeira chamou minha atenção para o fato de que o vidro de remédio enviado pela farmácia estava vazio...

— Por falar nisso, qual foi a receita que o senhor deu para sua paciente ontem?

— Uma simples solução de barbitúrico.

— Por que não receitou um dos conhecidos compostos de barbitúricos?

— Por que razão? — perguntou Siefert evidentemente enfadado. — Sempre prefiro saber exatamente o que meus pacientes estão tomando. Sou bastante antiquado para me fiar em medicamentos já preparados.

— E, se não me engano, o senhor me disse ao telefone que na receita havia barbital em dose suficiente para causar a morte.

— Sim, — concordou o doutor. — Se tomada de uma só vez.

— E a morte da Sra. Garden teve relação com o envenenamento por barbital?

— Nada havia para contradizer tal conclusão — respondeu Siefert. — E nada havia que indicasse outra causa.

— Quando a enfermeira descobriu o vidro vazio?

— Creio que só na ocasião em que me telefonou.

— O gosto da solução poderia ser reconhecido se fosse dado a alguém sem o seu conhecimento?

— Sim e não — replicou ponderadamente. — O gosto é um pouco ácido, mas é uma solução incolor, com água, e se for bebida depressa, o gosto passa despercebido.

— Portanto, se a solução fosse colocada em um copo d'água a Sra. Garden poderia perfeitamente tê-lo bebido sem reclamar do gosto amargo?

— Isto é inteiramente possível — disse-lhe o doutor —. Não posso deixar de sentir que alguma coisa desta espécie aconteceu a noite passada. Foi devido a esta conclusão que chamei o senhor imediatamente.

Vance, fumando preguiçosamente, vigiava Siefert por baixo das pálpebras semicerradas. Movendo-se lentamente na cadeira e esmagando o cigarro em um pequeno cinzeiro de jade, disse: — Fale-me alguma coisa da doença da Sra. Garden, doutor, e por que o sódio radioativo poderia ter-lhe sido sugerido.

Siefert fitou agudamente Vance: — Eu receava que o senhor me perguntasse isso. Mas este não é o momento para suscetibilidades. Tenho que confiar totalmente em sua discrição. — Fez uma pausa como se estivesse determinando qual a melhor maneira de abordar um assunto que lhe era evidentemente desagradável. — Como já disse anteriormente, não sei a natureza exata da doença da Sra. Garden. Os sintomas eram muito semelhantes aos que acompanham o envenenamento com rádio. Mas nunca receitei para ela qualquer medicamento à base de rádio; na realidade, sou profundamente céptico no que diz respeito à sua eficácia. Como o senhor deve saber, temos tido muitos resultados infelizes devido à administração não científica e acidental desses preparados à base de rádio.

Ele pigarreou antes de prosseguir.

— Uma noite, enquanto estava lendo os relatórios das pesquisas feitas na Califórnia com sódio radioativo, também chamado de rádio artificial, que tem sido alardeado como a cura do câncer, imediatamente me dei conta de que o Prof. Garden estava ativamente interessado nesta determinada linha de pesquisa, tendo realizado a respeito alguns trabalhos dignos de crédito. Esta idéia era apenas um caso de associação e, a princípio, não dei muita importância. Mas ela resistiu, e nunca mais deixei de pensar no assunto.

Mais uma vez o doutor fez uma pausa, com o olhar perturbado.

— Há cerca de dois meses, sugeri ao Prof. Garden que, se fosse possível, ele pusesse a Srta. Beeton à cabeceira de sua esposa. Eu já chegara à conclusão de que a Sra. Garden requeria um cuidado e atenção mais constantes do que eu lhe poderia proporcionar; e a Srta. Beeton, que é enfermeira diplomada, esteve trabalhando no ano passado no laboratório do professor. Na realidade, fui eu quem a enviou para lá quando ele mencionou a necessidade de um auxiliar de laboratório. Eu estava particularmente ansioso para que ela tomasse conta da Sra. Garden, preferivelmente a qualquer outra enfermeira, porque eu achava que algumas sugestões úteis poderiam decorrer de suas observações. A moça já atendera diversos casos meus, bastante difíceis, e eu estava inteiramente habituado à sua competência e discrição.

— E as observações subseqüentes da Srta. Beeton foram-lhe muito úteis, doutor? — perguntou Vance.

— Não, não posso dizer que tenham sido — admitiu Siefert. — A não ser pelo fato que, eventualmente, o Prof. Garden ainda se utilizava de seus serviços no laboratório, permitindo-lhe assim uma oportunidade extra de estar atenta à situação geral. Mas, por outro lado, essas observações não serviram para dissipar minhas suspeitas.

— Diga-me, doutor, — perguntou Vance após um momento — este novo sódio radioativo poderia ser administrado a alguém sem que a pessoa o soubesse?

— Ah, muito facilmente — garantiu Siefert. — poderia, por exemplo, substituir num saleiro o sal comum, sem despertar a menor suspeita.

— E em quantidades suficientes para produzir os efeitos do envenenamento pelo rádio?

— Indubitavelmente.

— E quanto tempo decorreria até que os efeitos dessa administração se mostrassem fatais?

— Isto é impossível dizer.

Vance estudava a ponta do cigarro. Depois perguntou: — A presença da enfermeira na casa resultou em qualquer informação relativamente à situação geral aqui?

— Nada que eu ainda não soubesse. De fato, suas observações apenas consubstanciaram minhas próprias conclusões. É bem possível, também, que ela própria possa involuntariamente ter aumentado a animosidade existente entre o jovem Garden e Swift, porque ela me confidenciou uma ou duas vezes que Swift a aborrecera com suas atenções; e tenho uma forte suspeita de que ela está pessoalmente interessada em Floyd Garden.

O interesse de Vance aumentou.

— Especificamente, doutor, o que lhe deu essa impressão?

— Nada de específico. Entretanto, tenho-os observado diversas vezes quando estão juntos e a minha impressão é de que ali existia algum sentimento. Nada de palpável, porém. Mas, uma noite, quando eu caminhava por Riverside Drive eu os vi no parque, indubitavelmente estavam passeando juntos.

— A propósito, doutor, o jovem Garden e a enfermeira conheceram-se apenas quando ela veio para cá cuidar da mãe dele?

— Ah, não — disse Siefert. — Mas seu conhecimento anterior era mais ou menos vago. Sabe como é, durante o tempo em que a Srta. Beeton era assistente de laboratório do Prof. Garden, ela teve freqüentes oportunidades de vir até aqui trabalhar com o professor em sua pesquisa: notas taquigráficas, transcrição, registro, etc. E ela, naturalmente, fez conhecimento com Floyd, Woody Swift e a própria Sra. Garden...

Naquele instante, a enfermeira chegou à porta para anunciar a chegada do médico legista, e Vance pediu-lhe que fizesse subir o Dr. Doremus.

— Eu gostaria de sugerir — disse Siefert rapidamente — com o seu consentimento, a possibilidade de fazer com que o legista aceite o meu veredicto de morte causada por uma acidental dose excessiva de barbital, com o que evitaríamos a autópsia.

— Sim, perfeitamente — concordou Vance. — Esta era a minha intenção. — Dirigiu-se ao procurador distrital: — Considerando bem os fatos, Markham, creio que isto será melhor. Nada podemos ganhar com uma autópsia. Já temos fatos suficientes para continuar sem recorrer a isso. Sem dúvida, a morte da Sra. Garden foi causada pela solução de barbital. O sódio radioativo é um caso à parte e diferente.

Markham aquiesceu com relutância, enquanto Doremus era introduzido pela Srta. Beeton. O legista estava de mau humor e reclamava amargamente por ter sido convocado num domingo pela manhã. Vance acalmou-o um pouco e apresentou-o ao Dr. Siefert. Após uma breve troca de explicações e comentários, Doremus prontamente concordou com a sugestão de Markham de que o caso fosse considerado como resultado de uma dose excessiva de barbital.

O Dr. Siefert ergueu-se e olhava hesitantemente para Vance: — O senhor não precisa mais de mim, espero.

— Por enquanto não, doutor. — Vance levantou-se também e fez uma reverência formal. — Naturalmente, depois entraremos em contato com o senhor. Mais uma vez gratos nela sua ajuda e sinceridade. Sargento, queira acompanhar os Drs. Siefert e Doremus até lá embaixo... E, Srta. Beeton por favor, sente-se um momento. Há algumas perguntas quê lhe quero fazer.

A jovem entrou e sentou-se na cadeira mais próxima enquanto os três homens dirigiam-se para o corredor.

 


XV

 

Três Visitas

 

(Domingo, 15 de abril — 10:45 horas)

 

 

— Não tenho a menor intenção de aborrecê-la desnecessariamente, Srta. Beeton — disse Vance. — Mas gostaríamos de ter uma narrativa em primeira mão das circunstâncias que cercaram a morte da Sra. Garden.

— Eu gostaria de ter alguma coisa bem definida para lhes contar — replicou a enfermeira com um tom profissional — mas tudo o que sei é que, quando acordei esta manhã, pouco depois das sete horas, a Sra. Garden parecia estar dormindo tranqüilamente. Depois de me vestir, fui até à sala de jantar e tomei café; em seguida levei uma bandeja para a Sra. Garden. Ela sempre tomava chá com torrada às 8 horas, qualquer que fosse a hora em que se deitasse na véspera. Só depois que corri as cortinas é que senti alguma coisa errada. Falei com ela, mas não me respondeu; e quando tentei erguê-la, não senti reação. Então vi que estava morta. Chamei imediatamente o Dr. Siefert, e ele veio o mais depressa que pôde.

— Se não me engano, a senhorita dorme no quarto da Sra. Garden?

Ela inclinou a cabeça.

— Sim. O senhor sabe, ela freqüentemente precisa de algum pequeno serviço durante a noite.

— Durante a noite ela lhe pediu algum serviço?

— Não. A injeção que o Dr. Siefert lhe deu antes de sair acalmou-a, e, quando saí, ela dormia calmamente.

— A senhorita saiu ontem à noite? A que horas?— perguntou Vance.

— Cerca de nove horas. Foi o Sr. Floyd Garden quem sugeriu, garantindo que ele estaria aqui e também achava que eu precisava descansar um pouco. Fiquei muito contente com a oportunidade, porque eu estava realmente cansada e amedrontada.

— A senhorita não teve escrúpulos profissionais em deixar um paciente àquela hora?

— Normalmente, eu teria tido — respondeu ressentida a jovem — mas a Sra. Garden nunca teve qualquer consideração comigo. Ela era a pessoa mais egoísta que já conheci. De qualquer forma, expliquei ao Sr. Floyd Garden que deveria dar a sua mãe uma colher das de chá do remédio caso ela acordasse e mostrasse qualquer sinal de agitação. E aí, fui até o parque.

— A que horas voltou, Srta. Beeton?

— Deve ter sido lá pelas onze — respondeu. — Eu não pretendia demorar tanto, mas o ar estava tão agradável e eu caminhei ao longo do rio quase até o túmulo de Grant. Quando voltei, deitei-me imediatamente.

— A Sra. Garden estava dormindo quando entrou?

— Eu... eu pensei... que ela estava dormindo — disse hesitante. — Sua cor estava normal. Mas talvez... mesmo então...

— Sim, sim. Eu sei — cortou rapidamente Vance. — Entretanto... — E ele inspecionou o próprio cigarro durante algum tempo. — Por falar nisso, notou alguma coisa diferente, qualquer coisa, digamos, fora do lugar, quando voltou ao quarto?

Ela sacudiu a cabeça lentamente.

— Não. Tudo me pareceu como antes. As janelas e as cortinas estavam como eu as havia deixado e... Espere, havia sim. O copo d'água que eu havia deixado na mesa de cabeceira estava vazio. Tornei a enchê-lo antes de deitar-me.

Vance ergueu os olhos vivamente.

— E o vidro de remédio?

— Nada notei de particular; mas devia estar como eu o havia deixado, porque me lembro de ter tido uma fugaz sensação de alívio por ela não ter necessidade do mesmo.

Vance pareceu profundamente perplexo e nada disse durante algum tempo. Depois ergueu os olhos de repente.

— Qual o tipo de luz que havia no quarto?

— Apenas uma lâmpada de cabeceira bem fraca.

— Nesse caso, a senhorita poderia perfeitamente ter confundido um vidro vazio com um cheio de algum líquido incolor.

— Sim, é claro — respondeu com relutância a enfermeira. — Poderia ter sido isso... A menos que... — E a sua voz morreu.

Vance balançou a cabeça e terminou a frase.

— A menos que a Sra. Garden tomasse deliberadamente o remédio mais tarde. — Ele estudou a moça durante algum tempo. — Mas isto não é muito razoável. Não me preocupo com teorias. E a senhorita?

Ela lhe devolveu o olhar com absoluta franqueza e fez uma leve negativa com a cabeça.

— Não — disse. — Mas eu gostaria que fosse verdade.

— Exato — concordou Vance. — Seria um pouco menos terrível.

— Sei o que o senhor quer dizer. — Ela respirou trêmula e profundamente, estremecendo.

— Diga-me, quando descobriu que o remédio tinha desaparecido?

— Pouco antes que o Dr. Siefert chegasse esta manhã. Mexi no vidro quando estava arrumando a mesa e verifiquei que estava vazio.

— Acho que por enquanto é tudo, Srta. Beeton. — Vance olhou-a com ar sombrio e depois afastou-se. — Na realidade, compreendo, lamento muito. Mas aconselho-a a não fazer planos para sair daqui por enquanto. Sem dúvida alguma ainda vamos precisar de vê-la hoje.

Quando ela se levantou, pousou um olhar enigmático em Vance. Parecia a ponto de dizer alguma coisa, porém, ao contrário, deu meia volta e saiu.

Heath deveria estar esperando no corredor que a moça fosse dispensada, porque, exatamente quando ela saía, ele entrou para informar que Siefert e Doremus haviam ido embora e que Floyd Garden havia feito o necessário para a remoção do corpo de sua mãe.

— E que fazemos agora, Sr. Vance? — perguntou Heath.

— Vamos continuar, sargento. — Vance estava mais sério que de hábito. — Quero falar com Floyd Garden em primeiro lugar. Faça-o subir. E chame um de seus homens, mas fique de serviço lá embaixo até que ele chegue. Talvez possamos esclarecer esse caso ainda hoje.

— Isto não me deixaria triste, Sr. Vance — respondeu fervorosamente Heath, dirigindo-se à porta.

Markham erguera-se e caminhava de um lado para o outro, fumando vigorosamente o charuto.

— Evidentemente, você consegue ver alguma luz nesta droga de situação — resmungou ele para Vance. — Eu gostaria que acontecesse o mesmo comigo. — Ele parou e virou-se. — Você está falando sério quanto à possibilidade de ficar tudo esclarecido ainda hoje?

— Inteiramente. Pode ser, não é? — Vance maliciosamente piscou um olho para Markham. — Não legalmente, é claro. Não um caso para a justiça. Não. As técnicas legais são quase inúteis em emergências como esta. Há soluções mais profundas, soluções humanas, compreende?

— Você está falando asneiras — murmurou Markham. — Você e suas malditas predisposições pseudo-sutis!

— Posso mudar a predisposição — propôs alegremente Vance. — Devo ser franco e confessar que gosto desta situação ainda menos que você. Mas não há um outro procedimento indicado. A lei nada pode fazer na situação atual. E, francamente, não estou interessado na lei. Eu quero justiça.

Markham bufou.

— E que pretende você fazer exatamente?

Com os olhos pregados em Markham, Vance fitou um mundo remoto de sua imaginação.

— Vou tentar encerrar um drama trágico — disse calmamente. — Poderá ser eficaz. Se falhar, acho que nada mais poderemos fazer.

Markham bufou de novo.

— Philo Vance: empresário!

— Exato — concordou Vance. — Empresário, como você diz. E não o somos todos?

Markham encarou-o durante um momento.

— E quando sobe o pano?

— A qualquer momento.

Soaram passos no corredor e Floyd Garden entrou no estúdio. Parecia profundamente abalado.

— Hoje não estou agüentando muito. Que querem vocês? — Seu tom estava evidentemente ressentido. Ele sentou-se e pareceu ignorar-nos completamente, enquanto remexia, nervoso, no cachimbo.

— Nós entendemos como se sente — disse Vance. — Minha intenção não era aborrecê-lo desnecessariamente. Mas se queremos chegar até à verdade, precisamos de sua cooperação.

— Então vá dizendo — resmungou Garden ainda às voltas com o cachimbo.

Vance esperou até que o cachimbo acendesse.

— Precisamos obter o maior número possível de detalhes sobre a noite passada. Seus convidados vieram?

Garden balançou a cabeça alegremente.

— Ah, sim. Zalia Graem, Madge Weatherby e Kroon.

— E Hammle?

— Não, graças a Deus!

— Isto não lhe parece um tanto estranho?

— Não me pareceu estranho em absoluto — resmungou Garden. — Ao contrário, foi um alívio. Hammle é boa gente, mas incrivelmente chato: frio, auto-suficiente. Tenho a sensação de que ele não tem sangue nas veias. Cavalos, cães, raposas, jogo: tudo menos seres humanos. Se um dos seus malditos cães houvesse morrido, ele sentiria muito mais que a morte de Woody. Adorei que não viesse.

Vance meneou a cabeça em sinal de compreensão.

— Havia mais alguém aqui?

— Não, só esses.

— Qual dos convidados chegou primeiro?

Garden tirou o cachimbo da boca e ergueu os olhos com vivacidade.

— Zalia Graem. Chegou às oito e meia, creio. Por quê?

— Simplesmente reunindo os fatos — replicou Vance com indiferença. — E quanto tempo depois dela chegaram Madge Weatherby e Kroon?

— Cerca de meia hora. Poucos minutos após a saída da Srta. Beeton.

Vance devolveu-lhe o olhar de inspeção.

— A propósito, por que você permitiu que a enfermeira saísse ontem à noite?

— Ela parecia estar precisando de ar fresco — respondeu Garden num tom de franqueza absoluta. — Ela teve um dia duro. Além disso, eu não achava que houvesse alguma coisa de extraordinário com a Mama. E como eu ia ficar aqui, poderia cuidar do que fosse necessário. — Seus olhos estreitaram-se levemente. — Eu não deveria tê-la deixado sair?

— Sim, sim... bastante humano até! Foi um dia muito difícil para ela.

Garden deixou seus olhos vaguearem através da janela, mas Vance prosseguiu observando-o atentamente.

— A que horas se foram as visitas? — perguntou.

— Pouco após à meia-noite. Cerca de onze e meia, Sneed trouxe uns sanduíches. Aí tomamos mais uma rodada de highballs... — O homem voltou subitamente o olhar para Vance: — Isto tem alguma importância?

— Não sei; talvez não. Poderia, quem sabe... Saíram todos ao mesmo tempo?

— Sim. Kroon estava com o carro lá embaixo e ofereceu-se para deixar Zalia em casa.

— A Srta. Beeton a essa altura já havia voltado, não?

— Sim, muito antes. Eu a ouvi entrar por volta das 11 horas.

— E depois que as visitas foram embora, que fez você?

— Permaneci sentado mais ou menos meia hora, fumando e bebendo; depois fechei a frente da casa e recolhi-me.

— Seu quarto é vizinho ao de sua mãe, creio.

— Sim. Papai o está compartilhando comigo desde que a enfermeira chegou.

— Seu pai já se havia recolhido quando você foi para o quarto?

— Não. Ele raramente se deita antes das 2 ou 3 da manhã. Trabalha aqui no estúdio até altas horas.

— Ele estava aqui em cima, a noite passada?

— Suponho que sim. Não podia estar em outra parte e duvido que tivesse saído.

— Percebeu quando ele entrou e se deitou?

— Não.

Vance acendeu outro cigarro, tirou várias baforadas e mergulhou ainda mais fundo na poltrona.

— Voltando atrás, o remédio prescrito pelo Dr. Siefert parece constituir o ponto crucial da situação. Teve você oportunidade de fazê-la tomar o remédio enquanto a enfermeira esteve fora?

Garden aprumou-se na cadeira, subitamente inquieto.

— Absolutamente não, — rosnou entredentes. Vance não deu mostras de haver notado a mudança.

— A enfermeira devia ter-lhe dado instruções a respeito desse remédio. Onde foi que ela lhe deu essas instruções?

— No hall, — respondeu Garden com ar espantado. — Perto da cabina. Eu havia deixado Zalia na sala de estar e fora dizer a Srta. Beeton que podia sair por algum tempo. Ajudei-a a vestir o capote. Foi nesse momento que recebi suas instruções quanto ao remédio.

— E voltou à sala depois que ela saiu?

— Imediatamente. Logo depois Madge e Kroon chegaram.

Fez-se um curto silêncio, durante o qual Vance fumou pensativamente.

— Diga-me, Garden, — disse ele por fim — alguma das visitas entrou no quarto de sua mãe?

Os olhos de Garden arregalaram-se; seu rosto enrubesceu e ele ficou de pé com um salto.

— Por Deus, Vance. Zalia esteve no quarto de mamãe! Vance balançou a cabeça devagar.

— Muito interessante. Sim, bastante... Sente-se. Acenda essa droga de cachimbo e conte-nos como foi.

Garden hesitou um momento. Deu uma risada áspera e voltou ao seu lugar.

— Diabos! Você leva na brincadeira — reclamou. — Isto pode explicar tudo.

— Nunca se sabe, não é? — respondeu Vance com indiferença. — Continue.

Mais uma vez Garden teve dificuldade em fazer funcionar o cachimbo. Ficou sentado uns instantes com o olhar velado e reminiscente, fitando através da janela.

— Deve ter sido por volta das dez horas. A Mama tocou a pequena campainha que fica na mesinha ao lado da cama e eu ia atender, quando Zalia, de um salto, disse que ia ver o que ela queria. Francamente, foi com prazer que eu a deixei ir depois da cena que vocês testemunharam aqui ontem; eu tinha a impressão que eu continuava sendo uma persona non grata. Zalia voltou alguns minutos depois e normalmente disse que a Mama apenas desejava que tornassem a encher o seu copo com água.

— E você, mesmo durante a ausência de Srta. Beeton, não foi nenhuma vez ao quarto de sua mãe?

— Não, não fui — disse Garden com olhar de desafio.

— E você tem certeza de que mais ninguém entrou no quarto de sua mãe durante a ausência da enfermeira?

— Absolutamente.

Eu podia ver pela expressão de Vance que ele não estava satisfeito com as respostas de Garden.

Com uma lenta deliberação ele bateu a cinza do cigarro. Suas pálpebras baixaram um pouco numa especulação intrigada. Sem erguer os olhos, perguntou: — Durante o tempo em que estiveram aqui, Madge Weatherby e Kroon permaneceram no salão?

— Sim... com exceção de dez minutos ou coisa semelhante, quando foram até à sacada.

— Você e a Srta. Graem permaneceram no salão?

— Sim. Eu não estava particularmente disposto a apreciar a paisagem noturna e, aparentemente, Zalia também não.

— Que horas eram quando a Srta. Weatherby e Kroon foram até à sacada?

Garden refletiu um momento.

— Eu disse que foi pouco antes da volta da enfermeira.

— E quem foi a primeira pessoa a sugerir que voltassem para casa?

Garden ponderou a resposta.

— Creio que foi Zalia. Vance ergueu-se.

— Foi muito gentil de sua parte, Garden, permitir que o incomodássemos com perguntas a essa hora — disse com bondade. — Somos imensamente gratos... Você pretende sair hoje?

Garden sacudiu a cabeça levantando-se.

— Dificilmente — disse. — Vou ficar com papai. Ele está um bocado abalado. Por falar nisso, você gostaria de vê-lo?

Vance agitou a mão negativamente.

— Não. Agora não é necessário.

Garden deixou a sala lentamente, a cabeça baixa, como um homem que carrega um grande peso na cabeça.

Quando ele saiu, Vance parou um momento à frente de Markham, olhando-o com um bom humor um tanto cínico.

— É um caso sério, Markham. É o que eu digo. Falando francamente, você vê algum motivo para que a lei ponha os dentes aqui?

— Não, com os demônios! — explodiu zangado Markham. — Não há duas coisas que combinem. Não há uma linha reta em direção alguma. Cada fio do caso está emaranhado num outro. Só Deus é quem sabe como há motivos e oportunidades. Mas qual nós vamos escolher como ponto de partida? E ainda assim — acrescentou azedo — poder-se-ia criar um caso com...

— É exato — interrompeu Vance. — Um caso contra qualquer um das diferentes pessoas. E cada um tão bom ou tão mau quanto o outro. Todos agiram da maneira perfeita para tornar-se suspeito — suspirou. — Uma doce situação.

— E diabólica — acrescentou Markham. — Se não fosse por isso, eu estaria mais inclinado a chamar a coisa de dois suicídios e deixar assim mesmo.

— Impossível — contestou Vance. — Nem você nem eu poderíamos fazer tal coisa. Na realidade, sabe, esta não é a maneira humana de ser. — Foi até à janela e olhou para fora. — Mas eu tenho o controle da situação. O desenho está começando a tomar forma. Já reuni todas as peças, Markham, exceto uma. Eu a tenho em mão, porém ainda não sei onde entra ou como se ajusta ao conjunto.

Markham ergueu os olhos.

— Qual é a peça que o está atrapalhando, Vance?

— Os fios desligados da campainha. Eles me atrapalharam demais. Sei que eles têm um papel nas terríveis coisas que têm acontecido aqui. — Afastou-se da janela e caminhou de um lado para outro da sala, a cabeça baixa, as mãos enterradas nos bolsos. — Por que foram aqueles fios desligados? — murmurou como se estivesse falando sozinho. — Como podem eles se relacionar com a morte de Swift e o tiro que ouvimos? Não havia mecanismo. Não, disso estou convencido. Afinal de contas, os fios apenas ligavam duas cigarras... um sinal... um sinal ligando os dois andares... uma chamada, uma linha de comunicação.

De repente ele interrompeu o passeio. Agora estava de frente para a porta do corredor e olhava para ela como se nunca a tivesse visto.

— Deus do céu! É óbvio demais. — Correu até Markham, com uma expressão de auto-incriminação. — A resposta estava aqui o tempo todo — disse. — Era tão simples... e eu procurando dificuldades... O quadro agora está completo, Markham. Tudo se ajusta. Aqueles fios desligados significam que há um outro assassinato em perspectiva; um crime que fora planejado desde o início mas que não aconteceu — respirou profundamente. — Este caso tem que ser esclarecido hoje. Sim... — Vance desceu e nós o seguimos. Heath fumava melancolicamente no corredor interno.

— Sargento, — disse Vance — telefone à Srta. Graem, Srta. Weatherby, Kroon e Hammle. Faça-os todos vir aqui no fim da tarde, digamos seis horas. Floyd Garden pode ajudá-lo a entrar em contato com eles.

— Eles estarão aqui sem falta, Sr. Vance — garantiu Heath.

— E, sargento, assim que tiver feito isso, telefone-me. Quero vê-lo esta tarde. Estarei em casa. Mas espere aqui por Snitkin e deixe-o de guarda. Ninguém deverá vir aqui, exceto aqueles que mandei chamar e ninguém deverá deixar o apartamento. E, acima de tudo, ninguém tem permissão para ir lá em cima, quer seja no estúdio ou no jardim. Agora vou indo.

— Quando estiver chegando em casa, Sr. Vance, eu já estarei telefonando para o senhor.

Vance dirigiu-se à porta da frente mas parou com a mão na maçaneta.

— Acho que antes de sair é melhor falar com Garden sobre a reunião. Onde está ele, sargento?

— Quando ele desceu foi para a saleta — disse Heath com um movimento de cabeça.

Vance caminhou pelo corredor e abriu a porta da saleta. Eu estava bem atrás dele. Quando a porta se abriu deparamos com um quadro inesperado. A Srta. Beeton e Garden estavam de pé diante da escrivaninha, desenhados em silhueta contra a janela. A enfermeira tampava o rosto com as mãos e apoiava-se em Garden soluçando. Ele tinha os braços em torno dela.

Com a nossa chegada os dois se afastaram rapidamente. A jovem voltou a cabeça em nossa direção e eu pude ver seus olhos vermelhos e cheios de lágrimas. Ela prendeu a respiração e, girando de golpe, saiu correndo pela porta que dava para o quarto vizinho.

— Lamento profundamente — murmurou Vance. — Pensei que estivesse só.

— Ora, não tem importância — disse Garden, embora fosse bastante evidente o seu embaraço. — Mas espero, Vance, — acrescentou com um sorriso forçado — que você não vá interpretar errado. Aqui está tudo emocionalmente transtornado. Acho que a Srta. Beeton agüentou mais do que podia suportar ontem e hoje; quando a encontrei aqui, ela parecia a ponto de ter um colapso nervoso, e... eu deitei a cabeça dela em meu ombro. Estava simplesmente tentando reconfortá-la. Não posso deixar de ter pena dela.

Vance ergueu a mão numa indiferença bem-humorada.

— Ah, está certo, Garden. Uma mulher atormentada sempre agradece um forte ombro masculino onde possa chorar. A maioria delas deixa pó de arroz na lapela da gente... Mas estou certo de que a Srta. Beeton não poderia ser acusada disso... Mil desculpas por interrompê-lo, mas eu queria dizer-lhe antes de ir embora que dei instruções a Heath para convocar todos os seus convidados de ontem para estarem aqui hoje às seis da tarde. É claro que você e seu pai também estão incluídos. Se não se opõe, poderia dar os números dos telefones ao sargento.

— Com prazer, Vance — respondeu Garden, pegando o cachimbo e voltando a enchê-lo. — Alguma idéia diferente?

Vance virou para a porta.

— Sim. Espero liquidar o caso hoje. Agora, vou andando. Adeus.

Na saída, Vance disse um tanto tristemente a Markham: — Espero que meu plano funcione. Não gosto muito dele, mas também não gosto de injustiças...


XVI

 

 

Pela Porta do Jardim

 

 


(Domingo, 15 de abril — à tarde)

 

 

Mal havíamos chegado, quando o sargento Heath telefonou conforme prometera. Vance dirigiu-se à sala de espera para atender e fechou a porta atrás de si. Alguns minutos mais tarde voltou e, chamando Currie, pediu o chapéu e a bengala.

— Vou sair um pouco, meu velho — disse ele a Markham. — Na verdade, vou ao encontro do bravo sargento no Departamento de Homicídios. Mas não demorarei. Enquanto isso, já encomendei um almoço para nós aqui.

— Para os diabos o almoço — rosnou Markham. — Por que você vai se encontrar com Heath?

— Estou precisando de um colete novo — disse-lhe jovialmente Vance.

— Esta explicação ajuda muito — resmungou Markham.

— Lamento. É a única que posso dar presentemente. Markham fixou-o durante vários minutos, desapontado.

— Por que todo esse mistério? — perguntou.

— Realmente, Markham, é necessário. — Vance falou com sinceridade. — Tenho a esperança de liquidar hoje à noite esse caso monstruoso.

— Pelo amor de Deus, Vance, que está você planejando? — Markham ergueu-se num desespero inútil.

Vance tomou um trago de brandy e acendeu um Régie. Depois olhou afetuosamente para Markham.

— Estou pensando em induzir o assassino a fazer mais uma aposta... uma aposta para perder. Adeus. — E se foi.

Durante a ausência de Vance, Markham permaneceu encolerizado. Não estava com disposição para conversar e eu o deixei à vontade. Ele tentou interessar-se pela biblioteca de Vance, mas, evidentemente, nada encontrou que atraísse sua atenção. Finalmente, acendeu um charuto e instalou-se em uma poltrona diante da janela, enquanto eu me ocupava com algumas notas que estava preparando.

Passava um pouco das duas e meia quando Vance regressou.

— Está tudo em ordem — anunciou ao entrar. — Não há cavalos correndo hoje, é claro, mas, não obstante, estou encarando uma grande aposta que vai ser feita esta noite. Se o jogo não for feito, Markham, nós é que pagaremos o pato. Entretanto, todos estarão presentes. O sargento, com o auxílio de Garden, entrou em contato com todos os que estiveram lá ontem, e eles irão reunir-se novamente no salão de Garden às 6 horas. Eu, pessoalmente, deixei um recado ao Dr. Siefert e espero que ele o receba a tempo de vir ao nosso encontro. Acho que ele deveria estar presente... — Olhou para o relógio e, chamando Currie, pediu uma garrafa de Montrachet 1919 gelado para o nosso almoço.

— Se não nos demorarmos por demais à mesa, poderemos ouvir a segunda parte do concerto da Filarmônica. Melinoff estará tocando o concerto para piano de Grieg e creio que isto fará um grande bem aos nossos espíritos. Um lindo clímax, Markham; um dos mais excitantes de toda a música: simples, melodioso, magistral. É uma coisa curiosa com relação a Grieg: o mundo levou muito tempo para descobrir a magnitude de seu gênio... Um dos verdadeiros grandes compositores.

Mas Markham não foi conosco ao concerto. Pretextou um urgente encontro político no Stuyvesant Club; prometendo, porém, encontrar-nos às 6 horas da tarde no apartamento de Garden. Como por um acordo tácito, durante o almoço não se falou uma palavra relativa ao caso.

Quando acabamos, Markham escusou-se e partiu para o clube, enquanto Vance e eu fomos para o Carnegie Hall. Melinoff teve uma bela atuação; e, quando fomos para casa, Vance parecia estar mais descontraído.

O sargento Heath esperava-nos quando chegamos ao apartamento.

— Tudo pronto, senhor — disse a Vance. — Está aqui. Vance deu um sorriso triste.

— Excelente, sargento. Venha comigo enquanto tiro essa roupa da missa.

Heath pegou um pequeno embrulho enrolado em papel pardo, que evidentemente havia trazido consigo, e seguiu Vance até o quarto. Dez minutos depois, voltaram os dois à biblioteca. Vance agora usava um pesado paletó de tweed escuro; na cara de Heath havia um ar de auto-satisfação.

— Até logo, Sr. Vance — disse ele, apertando nossas mãos. — Boa sorte. — E saiu pesadamente.

Chegamos ao apartamento dos Gardens poucos minutos antes das seis. Os detetives Hennessey e Burke estavam no corredor de entrada. Este último aproximou-se e, colocando a mão sobre a boca, murmurou à meia voz: — O sargento Heath recomendou-me que lhe dissesse estar tudo em ordem. Ele e Snitkin estão em ação.

Vance meneou a cabeça e começou a subir.

— Espere por mim aqui embaixo, Van — disse por cima do ombro. — Volto já.

Dirigi-me à saleta cuja porta estava escancarada e caminhei a esmo pela peça, olhando os diversos quadros e gravuras. Uma delas, atrás da porta, chamou minha atenção: creio que era um Blampied. Mas Vance não se demorou; abriu a porta inopinadamente, quase me imprensando de encontro à parede. Quando eu ia falar com ele, entrou Zalia Graem.

— Philo Vance. — Ela pronunciou o nome com uma voz trêmula e baixa.

Vance voltou-se e encarou-a com ar zombeteiro.

— Estive esperando no salão — disse ela. — Quero vê-lo antes que fale com os outros.

Pelo tom de voz, percebi imediatamente que minha presença não fora notada e meu primeiro impulso foi de sair do meu canto. Mas, naquelas circunstâncias, achei que nada podia haver nas suas palavras que eu não pudesse ouvir e decidi não os interromper.

Vance continuou a encará-la mas não falou.

Ela aproximou-se bem dele.

— Diga-me por que me fez sofrer tanto — disse ela.

— Sei que a magoei — retrucou Vance. — Mas as circunstâncias assim o exigiram. Por favor, acredite que eu entendo mais desse caso do que você imagina.

— Não estou certa de entender — ela falava com hesitação. — Mas quero que saiba que confio em você. — Ergueu os olhos para ele e eu pude ver que seus olhos estavam reluzindo. Lentamente, ela inclinou a cabeça. — Nunca me interessei por homem algum — prosseguiu com um tremor na voz. — Todos os homens que conheci fizeram-me infeliz e pareciam sempre afastar-me das coisas de que eu gostava... — Ela prendeu a respiração. — Você é o único homem, de todos os que conheci, por quem eu poderia interessar-me.

Esta surpreendente confissão veio de maneira tão repentina que eu não tive tempo de fazer sentir a minha presença e, depois que a Srta. Graem terminou de falar, eu permaneci onde estava a fim de não lhe causar embaraço.

Vance colocou as mãos nos ombros da moça e manteve-a afastada.

— Minha cara, — disse com uma voz curiosamente reprimida — sou o único homem por quem você não se deve interessar. — A finalidade das suas palavras era clara.

Atrás de Vance abriu-se subitamente a porta que dava para o quarto de dormir e a Srta. Beeton imobilizou-se no limiar. Ela não mais usava o uniforme de enfermeira e sim um tailleur de tweed de corte severo.

— Lamento — desculpou-se. — Pensei que Floyd... o Sr. Garden estivesse aqui.

Vance olhou-a vivamente.

— É evidente que estava enganada, Srta. Beeton.

Zalia Graem encarava a enfermeira com um ressentimento zangado.

— Quanto ouviu você até se decidir a abrir a porta? Os olhos da Srta. Beeton entrecerraram-se; havia uma expressão de desprezo em seu olhar firme.

— Talvez você tenha alguma coisa a esconder — respondeu friamente, enquanto atravessava a saleta em direção à porta do corredor e dali dirigiu-se ao salão.

Os olhos de Zalia Graem seguiram-na como que fascinados, e depois ela voltou-se para Vance.

— Esta mulher me apavora — disse. — Não confio nela. Há alguma coisa de sombrio e cruel por trás dessa calma auto-suficiência... e você foi tão bom para ela, enquanto que a mim fez sofrer.

Vance sorriu melancolicamente.

— Poderia ter a gentileza de aguardar um pouco no salão?

Ela olhou-o perscrutadoramente e, sem falar, voltou-se e saiu da saleta.

Vance permaneceu algum tempo fitando o soalho com um ar indeciso, como se relutante em prosseguir com quaisquer planos que tivesse engendrado. Depois voltou-se para a janela.

Aproveitei essa oportunidade para sair do meu canto e, exatamente nesse momento, surgiu Floyd Garden na porta do corredor.

— Alô, Vance — disse. — Eu não sabia que você estava de volta até que Zalia me disse. Alguma coisa em que eu possa ser útil?

Vance deu meia volta rapidamente.

— Eu ia justamente chamar você. Estão todos aqui? Garden fez que sim, gravemente.

— Sim, e estão todos com um medo tremendo; todos exceto Hammle. Para ele tudo é uma farsa. Gostaria que alguém o tivesse acertado no lugar de Woody.

— Mande-o aqui, por favor — pediu Vance. — Quero falar com ele. Irei ter com os outros daqui a pouco.

Garden caminhou pelo corredor e, naquele momento, ouviu Burke falando com Markham na porta principal. Markham logo se juntou a nós na saleta.

— Espero não o ter feito esperar — disse.

— Não. — Vance encostou-se à escrivaninha. — Bem na hora. Estão todos aqui, exceto Siefert. E estou à espera de Hammle para uma conversinha. Penso que ele estará em condições de corroborar uma idéia que tenho. Até agora ele nada nos contou. E posso precisar do seu apoio moral.

Markham mal acabava de sentar-se quando Hammle irrompeu na saleta com ar jovial. Vance fez-lhe um rápido aceno e omitiu todos os preâmbulos convencionais.

— Sr. Hammle, — disse — nós já conhecemos de sobra a sua filosofia de cuidar apenas dos seus interesses e manter silêncio para evitar quaisquer complicações. Uma atitude louvável, mas não nas circunstâncias atuais. Este é um caso de crime e, no interesse da justiça para com todos os interessados, precisamos obter toda a verdade. Ontem à tarde, o senhor era a única pessoa no salão que gozava de uma visão parcial do corredor. E precisamos saber tudo o que o senhor viu, por mais trivial que lhe possa parecer.

Hammle, assumindo sua expressão de jogador de pôquer, permaneceu em silêncio; Markham inclinou-se para a frente, olhando-o fixamente.

— Sr. Hammle, — disse com uma calma fria e mortal — se não nos quiser dar agora qualquer informação, será levado diante do tribunal e falará sob juramento.

Hammle cedeu. Falou precipitadamente, abanando os braços.

— Estou pronto a lhes dizer tudo o que sei. Não precisam ameaçar-me. Mas, para dizer a verdade, não pensei que a coisa fosse tão séria. — Sentou-se com pomposa dignidade e adotou um ar que, obviamente, pretendia indicar que, naquele momento, ele era a personificação da lei, da ordem e da verdade.

— Então, em primeiro lugar — disse Vance sem abandonar seu ar frio — quando a Srta. Graem saiu da sala, ostensivamente para atender um chamado telefônico, o senhor observou exatamente onde ela foi?

— Não exatamente, — retrucou Hammle — mas ela virou à esquerda em direção à saleta. Vocês compreendem, naturalmente, que me era impossível ver muito longe no corredor, mesmo de onde eu estava sentado.

— Exato — concordou Vance. — E quando ela voltou ao salão?

— Primeiramente, eu a vi do lado oposto ao da saleta. Ela se dirigiu ao armário de parede onde se guardam os chapéus e agasalhos e depois voltou para ficar parada na entrada até a corrida terminar. Depois disso não a vi ir nem vir, porque eu me voltara para desligar o rádio.

— E quanto a Floyd Garden? — perguntou Vance. — Lembra-se de que ele acompanhou Swift até fora da sala? Percebeu para onde foram ou o que fizeram?

— Se me lembro bem, Garden pôs o braço nos ombros de Swift e guiou-o até à sala de jantar. Depois de alguns momentos eles saíram. Swift parecia estar afastando Garden e depois desapareceu pelo corredor em direção à escada. Floyd ficou parado alguns minutos à porta da sala de jantar, acompanhando o primo, e depois o seguiu pelo corredor; mas deve ter mudado de idéia porque logo voltou ao salão.

— E não viu ninguém mais no hall?

Hammle sacudiu a cabeça pesadamente.

— Não. Ninguém mais.

— Muito bem — Vance aspirou profundamente o cigarro. — E agora vamos para o jardim do terraço, figurativamente falando. O senhor estava no jardim, esperando um trem, quando a enfermeira quase foi asfixiada na caixa-forte com gás de bromo. A porta para o corredor estava aberta e, se o senhor estivesse olhando naquela direção, poderia facilmente ter percebido quem passou para cima e para baixo no corredor. — Vance olhou-o significativamente. — E tenho a intuição de que o senhor estava olhando por aquela porta, Sr. Hammle. Sua reação de espanto, quando saímos no terraço, foi um pouco exagerada. E, de onde estava, o senhor não poderia ver muito da cidade, não é?

Hammle pigarreou e sorriu.

— Adivinhou, Sr. Vance — admitiu bem humorado. — Já que eu não podia pegar o meu trem, achei que poderia satisfazer um pouco a minha curiosidade e ficar ali a ver o que acontecia. Saí para o terraço e lá fiquei parado, onde podia ver pela porta do corredor; eu queria ver quem seria apertado em seguida.

— Obrigado pela sua honestidade. — O rosto de Vance estava formalmente frio. — Por favor, diga-nos exatamente o que viu por aquela porta enquanto esperava, segundo confessou, que acontecesse alguma coisa.

Mais uma vez Hammle pigarreou.

— Bem, Sr. Vance, para dizer a verdade, não foi muita coisa. Apenas gente indo e vindo. Primeiro, vi Garden passar no corredor em direção ao estúdio; quase em seguida ele desceu a escada. Depois Zalia Graem passou também em direção ao estúdio. Cinco ou dez minutos depois o detetive Heath — creio que este é o nome — passou pela porta carregando no braço um sobretudo. Um pouco mais tarde, dois ou três minutos, diria eu, Zalia Graem e a enfermeira cruzaram-se no corredor; Zalia em direção à escada e a enfermeira rumo ao estúdio. Dois minutos depois, Floyd Garden passou novamente pela porta em direção ao estúdio...

— Um minuto — interrompeu Vance. — O senhor não viu a enfermeira voltar para baixo depois de ter cruzado com a Srta. Graem no corredor.

Hammle sacudiu a cabeça enfaticamente.

Não. A primeira pessoa que eu vi depois das duas moças toi Floyd Garden dirigindo-se ao estúdio. E ele passou de volta um ou dois minutos depois...

— O senhor tem certeza de que sua cronologia é precisa?

— Absolutamente.

Vance pareceu satisfeito e meneou a cabeça.

— Isto coincide perfeitamente com os fatos de que tenho conhecimento — disse. — Mas tem certeza de que ninguém passou pela porta, quer indo ou vindo, durante aquele intervalo?

— Eu poderia jurar.

Vance deu mais uma vigorosa tragada no cigarro.

— Mais uma coisa, Sr. Hammle: enquanto estava no jardim, alguém entrou no terraço pelo portão de grade?

— Absolutamente não. Não vi ninguém ali.

— E depois que Garden voltou para baixo, que aconteceu?

— Vi você chegar à janela e olhar para o jardim. Tive medo de ser visto e, no momento em que você se virou, fui para a extremidade oposta do jardim, perto do portão. O que vi em seguida foram vocês entrando no terraço com a enfermeira.

Vance deixou a escrivaninha onde estivera até então apoiado.

— Muito obrigado. Sr. Hammle. Disse exatamente o que eu queria saber. Pode interessar-lhe saber que a enfermeira informou ter sido agredida na cabeça ao passar no corredor deixando o estúdio, e arrastada para a caixa-forte que estava cheia de gás de bromo.

O queixo de Hammle caiu e seus olhos arregalaram-se. Agarrou-se aos braços da cadeira e lentamente ficou de pé.

— Meu Deus! — exclamou. — Então foi isso que aconteceu! E quem o poderia ter feito?

Uma pergunta cabível — respondeu calmamente Vance. — Realmente, quem o poderia ter feito? Entretanto, os detalhes de sua observação secreta lá do jardim corroboram as minhas suspeitas e é possível que eu possa responder à sua pergunta dentro em breve. Sente-se novamente, por favor.

Hammle lançou um olhar apreensivo a Vance e sentou-se de novo. Vance voltou-se para olhar o céu que escurecia. Depois, virou-se para Markham. Uma súbita mudança surgira em sua expressão e, pelo seu olhar, eu sabia que se estava debatendo interiormente com algum conflito.

— Chegou o momento de agir, Markham — disse resolutamente. Depois foi até à porta e chamou Garden.

Este veio imediatamente do salão. Parecia nervoso e olhou Vance com ansiedade.

— Tenha a fineza de dizer a todos que venham para a saleta — solicitou Vance.

Com um aceno quase imperceptível, Garden regressou pelo corredor; Vance atravessou a sala e sentou-se à escrivaninha.

 

 

 

 

XVII

 

Um Tiro Inesperado

 

 


(Domingo, 15 de abril —18:20 horas)

 

 

Zalia Graem foi a primeira a entrar na saleta. Havia uma expressão tensa, quase trágica, em seu rosto cansado. Olhou para Vance como num apelo e sentou-se sem uma palavra. Foi seguida pela Srta. Weatherby e Kroon, que, pouco à vontade, sentaram-se a seu lado no sofá. Floyd Garden e seu pai entraram juntos. O professor parecia atordoado e as rugas de seu rosto como que se haviam tornado mais profundas durante as últimas vinte e quatro horas. A Srta. Beeton veio logo atrás deles e parou hesitante no limiar, olhando vacilante para Vance.

— O senhor também me quer? — perguntou desconfiada.

— Creio que seria melhor, Srta. Beeton — disse Vance. — Podemos precisar de sua ajuda.

Ela fez um sinal de aquiescência e, entrando, sentou-se próximo à porta.

Naquele momento tocou a campainha da porta de entrada e Burke introduziu o Dr. Siefert.

— Acabei de receber seu recado, Sr. Vance, e vim direto para cá. — Percorreu o salão com um olhar inquisidor e depois fitou Vance.

— Achei que o senhor gostaria de estar presente, na hipótese de chegarmos a alguma conclusão sobre este caso. Sei que o senhor está pessoalmente interessado. Senão, não lhe teria telefonado.

— Agrada-me que o tenha feito — respondeu mansamente Siefert, dirigindo-se a uma cadeira diante da escrivaninha.

Vance acendeu um cigarro com lenta deliberação, seus olhos vagueando pela sala. Havia uma tensão em todo o grupo ali reunido. Mas, como indicaram os acontecimentos futuros, ninguém poderia ter sabido o que havia na cabeça de Vance nem as suas razões para reunir todos ali.

O tenso silêncio foi quebrado pela voz de Vance. Ele falou normalmente, porém com uma curiosa ênfase: — Pedi a todos que comparecessem aqui esta tarde na esperança de que pudéssemos esclarecer a realmente trágica situação existente. Ontem, Woody Swift foi assassinado na caixa-forte lá em cima. Algumas horas mais tarde, encontrei a Srta. Beeton trancada no mesmo lugar, meio sufocada. A noite passada, como todos sabem, a Sra. Garden morreu devido ao que todos nós acreditamos tenha sido uma dose excessiva do barbitúrico receitado pelo Dr. Siefert. Está fora de dúvida de que esses três acontecimentos estão estreitamente relacionados; a mesma mão agiu em todos eles. O sistema e a lógica da situação apontam indiscutivelmente para essa hipótese. Sem dúvida, havia uma razão diabólica para cada ato do criminoso; e ela foi fundamentalmente a mesma em cada caso. Infelizmente, o cenário preparado para esse crime múltiplo foi tão confuso que facilitou cada etapa do plano criminoso e, ao mesmo tempo, dispersou as suspeitas sobre muitas pessoas que estavam inteiramente inocentes.

Vance fez uma pausa.

— Felizmente, eu estava presente quando foi cometido o primeiro crime e, desde então, tenho podido isolar os vários fatos relacionados com o crime. Neste processo de triagem, tenho parecido pouco razoável e até, talvez, duro para com muitos dos presentes. E durante o decorrer de minha breve investigação, foi-me necessário reprimir qualquer expressão de minhas opiniões pessoais por receio de fornecer ao agente criminoso uma advertência inoportuna. Isto, é evidente, teria sido fatal, pois a trama foi tão inteligentemente urdida, tão fortuitas eram as muitas circunstâncias a ela ligadas, que nunca teríamos conseguido colocar o libelo do crime no verdadeiro culpado. Conseqüentemente, era essencial uma multiplicidade de suspeitas recíprocas entre os inocentes membros e convidados desta família. Se eu ofendi ou fui injusto com alguém, confio que, em vista das anormais e terríveis circunstâncias, serei perdoado...

Ele foi interrompido pelo surpreendente som de um tiro identicamente semelhante ao do dia anterior. Todos, na sala, ergueram-se rapidamente, aterrorizados com a súbita detonação. Todos, exceto Vance. E, antes que alguém pudesse falar, sua voz calma e autoritária dizia: — Não há necessidade de alarme. Por favor, sentem-se. Providenciei este tiro para que todos vocês ouvissem; ele terá uma importante implicação no caso.

Burke surgiu na porta: — Estava bem, Sr. Vance?

— Perfeito — disse-lhe Vance. — O mesmo revólver e os mesmos cartuchos?

— Claro. Exatamente como o senhor me disse. E de onde mandou. Não estava como o senhor queria?

— Sim, precisamente — concordou Vance. — Obrigado, Burke.

O detetive deu um amplo sorriso e afastou-se.

— Este tiro, acredito, — prosseguiu Vance passeando os olhos preguiçosamente pelos presentes — foi semelhante ao que ouvimos ontem à tarde — o que nos fez todos correr até o corpo de Swift. Pode ser que lhes interesse saber que o tiro recém-disparado pelo detetive Burke saiu do mesmo revólver, com os mesmos cartuchos usados ontem pelo assassino e exatamente do mesmo local.

— Mas este tiro pareceu ter sido disparado de algum lugar aqui embaixo — interrompeu Siefert.

— Exatamente — disse Vance com satisfação. — Foi disparado de uma das janelas deste andar.

— Mas eu havia compreendido que o tiro de ontem havia sido disparado lá em cima — Siefert parecia perplexo.

— Esta foi a suposição geral, porém errônea — explicou Vance. — Na realidade, não foi assim. Ontem, devido à porta do terraço estar aberta, devido à escada e também estar fechada a porta do quarto onde foi feito o disparo e, principalmente, porque nós estávamos psicologicamente ligados à idéia de um tiro no terraço, isso deu a todos nós a impressão de que o ruído veio dali. Nós fomos induzidos ao erro por nossos medos manifestos e não formulados.

— É mesmo, você tem razão, Vance — falou Floyd Garden excitado. — Eu me lembro de que, na ocasião do tiro, fiquei pensando de onde ele teria vindo, mas naturalmente meu pensamento foi logo para Woody e então admiti que tivesse sido no jardim.

Zalia Graem voltou-se rapidamente para Vance.

— O tiro de ontem não soou para mim como proveniente do terraço. Quando saí da saleta, fiquei me perguntando por que estavam todos correndo para cima.

Vance devolveu-lhe o olhar diretamente.

— Não, para a senhorita deve ter parecido muito mais perto. Mas por que não mencionou este importante fato ontem, quando falamos sobre o crime?

— Eu... eu não sei — tartamudeou a moça. — Quando vi Woody morto lá em cima, naturalmente pensei ter-me enganado.

— Mas a senhorita não podia ter-se enganado — replicou Vance quase num suspiro; seus olhos fitaram novamente o espaço. — E após o revólver ter sido disparado ontem de uma janela de baixo, ele foi sorrateiramente colocado no bolso do sobretudo da Srta. Beeton, que estava no armário do corredor. Se ele tivesse sido disparado do andar de cima, teria sido muito mais vantagem escondê-lo em algum lugar do terraço ou no estúdio. O sargento Heath, que tinha dado busca tanto em cima como embaixo, encontrou-o mais tarde no armário do corredor. — Dirigindo-se novamente à moça: — Por falar nisso, Srta. Graem, não foi até esse armário após ter respondido ao telefone aqui da saleta?

A jovem reprimiu um grito.

— Como... como soube?

— Foi vista lá — explicou Vance. — Deve lembrar-se de que o armário do corredor é visível de uma das extremidades do salão.

Zalia Graem voltou-se furiosa para Hammle: — Então foi você quem contou a ele?

— Era meu dever — respondeu Hammle empertigando-se.

A jovem virou-se para Vance com os olhos chamejantes.

— Vou-lhe dizer por que fui até ao armário. Fui buscar um lenço que havia deixado em minha bolsa. Isto faz de mim uma assassina?

— Não. — Vance balançou a cabeça e suspirou. — Obrigado pela explicação... Poderia ter a gentileza de nos contar exatamente o que fez a noite passada, quando atendeu ao chamado da Sra. Garden?

O professor Garden, que permanecia sentado com a cabeça baixa, aparentemente sem prestar atenção a quem quer que fosse, de repente levantou a vista e pousou seus olhos fundos na moça com um pequeno sinal de animação.

Zalia Graem assumiu um ar de desafio endereçado a Vance.

— Perguntei à Sra. Garden em que lhe podia ser útil e ela pediu-me que enchesse novamente o copo com água que estava sobre a mesinha ao lado da cama. Fui até ao banheiro e enchi o copo; depois arrumei os travesseiros e perguntei-lhe se precisava de mais alguma coisa. Ela agradeceu-me e fez que não; e eu voltei ao salão.

Os olhos do Prof. Garden velaram-se novamente e ele voltou a afundar na cadeira, mais uma vez ignorando o que estava à sua volta.

— Obrigado — disse Vance com um aceno para a Srta. Graem. E voltando-se para a enfermeira: — Srta. Beeton, quando voltou à noite, a janela do quarto que dá para o balcão estava trancada?

A enfermeira ficou surpresa com a pergunta. Mas, quando respondeu, foi num tom calmo e profissional.

— Não reparei; mas sei que estava trancada quando eu saí; a Sra. Garden sempre insistiu nisso. Lamento não ter olhado a janela quando voltei. Isso tem muita importância?

— Não; especialmente, não — Vance dirigiu-se então a Kroon. — Creio que o senhor levou a Srta. Weatherby até à sacada ontem à noite. Que estiveram fazendo durante os dez minutos que passaram lá fora?

Kroon irritou-se: — Se quer saber mesmo, estávamos brigando por causa de Stella Fruemon...

— Não estávamos. — A voz aguda da Srta. Weatherby o interrompeu. — Estava simplesmente perguntando a Cecil...

— Está tudo certo — Vance interrompeu-a vivamente e fez um gesto de súplica. — Brigas ou recriminações, isto realmente não nos interessa. — Dirigiu-se a Floyd Garden: — Diga-me, Garden, ontem à tarde quando você deixou o salão para seguir Swift, como um bom samaritano, após ele ter apostado em Equanimity, onde foram vocês?

— Levei-o até à sala de jantar. — Mais uma vez Garden se mostrava perturbado e apreensivo. — Discuti com ele durante alguns instantes, depois ele saiu para o corredor em direção à escada. Fiquei observando-o durante um ou dois minutos, tentando pensar o que poderia fazer por ele porque, para dizer a verdade, eu não queria que ele ouvisse o resultado da corrida lá em cima. Eu estava absolutamente certo de que Equanimity perderia e ele ignorava que eu não havia feito o jogo. Eu estava bastante preocupado com o que ele pudesse vir a fazer. Durante um minuto pensei em acompanhá-lo lá em cima, mas mudei de idéia. Decidi que nada mais havia a fazer a não ser esperar pelo melhor. E então voltei ao salão.

Vance pousou os olhos na escrivaninha e permaneceu calado durante vários minutos, fumando e meditando.

— Estou seriamente embaraçado — murmurou finalmente, sem erguer os olhos. — Mas o fato é que não estamos chegando à parte alguma. Há explicações plausíveis para tudo e para todos. Por exemplo, no momento do primeiro crime, o Prof. Garden estava, presumivelmente, na biblioteca ou num táxi. Floyd Garden, de acordo com suas próprias declarações e com a parcial corroboração do Sr. Hammle aqui presente, estava no salão e no corredor inferior. O próprio Sr. Hammle, assim como a Srta. Weatherby, estavam no salão. O Sr. Kroon explica que estava fumando lá fora na sacada externa e lá deixou como evidência duas pontas de cigarro. A Srta. Graem, até onde podemos crer, estava telefonando aqui da saleta. Portanto, supondo-se, simplesmente uma hipótese, de que ninguém aqui poderia ser culpado da morte de Swift, da aparente tentativa de assassinato da Srta. Beeton e do possível assassinato da Sra. Garden, nada há de tangível para consubstanciar uma acusação individual. A atuação do criminoso foi por demais inteligente, bem concebida, e as pessoas inocentes parecem haver formado, inconsciente e involuntariamente, uma conspiração para ajudar e encorajar o criminoso.

Vance prosseguiu erguendo os olhos.

— Além disso, quase todos agiram de uma maneira que, concebivelmente, fazia com que cada um parecesse culpado. Houve um surpreendente número de acusações. O Sr. Kroon foi a primeira vítima de uma dessas acusações não consubstanciadas. Diversas pessoas me apontaram a Srta. Graem como culpada. A Sra. Garden indiretamente acusou seu filho ontem à noite. De fato, tem havido uma tendência generalizada para envolver diversas pessoas nas atividades criminosas. Do ponto de vista humano e psicológico, a solução foi ao mesmo tempo deliberada e inconscientemente velada, até que a confusão tornou-se tal que não restava mais um único contorno definido. E isto criou uma atmosfera que servia com perfeição às maquinações do assassino, porque tornou a investigação extremamente difícil e as provas positivas, quase impossíveis de se obter... E, ainda assim — acrescentou Vance — alguém nesta sala é o culpado.

Eu não podia entender sua atitude: era completamente diferente do homem que eu sempre havia conhecido. Toda a sua segurança parecia haver desaparecido, e senti que ele relutava em admitir a derrota. Voltando-se para a janela, ele observou o crepúsculo que se avizinhava. Depois, com uma brusca meia volta, seus olhos varreram furiosamente a sala, demorando-se um instante em cada um dos presentes.

— Além disso — e havia uma tensão no staccato de suas palavras — eu sei quem é o culpado!

Houve um movimento de mal-estar no ambiente, seguido de um silêncio que foi rompido pela voz educada do Dr. Siefert.

— Se este é o caso, Sr. Vance, e eu não duvido da veracidade de sua afirmação, creio que é seu dever dizer o nome dessa pessoa.

Vance encarou pensativamente o doutor durante vários minutos antes de responder. Depois, disse em voz baixa: — Acho que o senhor tem razão, doutor.

Mais uma vez fez uma pausa e, acendendo um novo cigarro, moveu-se de um lado para outro em frente à janela.

— Primeiramente, — disse parando de chofre — há alguma coisa lá em cima que eu preciso ver novamente, para ter certeza. Por favor, permaneçam aqui durante alguns instantes. — Disse e encaminhou-se para a porta. Súbito, entreparou, para dizer à enfermeira: — Por favor, Srta. Beeton, venha comigo. Creio que poderá ajudar-me.

A enfermeira ergueu-se e seguiu Vance até o corredor. Ouvimos quando subiam as escadas.

Uma agitação instalou-se nos que haviam permanecido embaixo. O Prof. Garden levantou-se lentamente, foi até à janela, onde ficou olhando para fora. Kroon abriu a cigarreira e ofereceu um cigarro à Srta. Weatherby. Quando acendiam os cigarros, murmuraram alguma coisa entre si que não pude distinguir. Floyd Garden moveu-se desajeitadamente na cadeira e voltou a seu hábito nervoso de encher o cachimbo. Siefert andou pela sala, fingindo examinar as gravuras, e os olhos de Markham seguiram todos os seus movimentos. Hammle pigarreou bem alto diversas vezes, acendeu um cigarro e remexeu em diversos papéis que tirou da sua agenda de bolso. Somente Zalia Graem permaneceu tranqüila. A cabeça recostada no sofá, os olhos fechados, ela fumava tranqüilamente. Eu poderia jurar que havia um leve sorriso no canto de seus lábios...

Passaram-se cinco bons minutos e então o silêncio da sala foi cortado por um desvairado e terrível grito de mulher pedindo socorro, vindo lá de cima. Quando chegamos ao corredor, a enfermeira vinha às pressas pela escada, segurando o corrimão com as duas mãos. Seu rosto estava fantasmagoricamente pálido e havia uma expressão selvagem e amedrontada em seu olhar.

— Sr. Markham! Sr. Markham! — gritava a moça historicamente. — Oh, meu Deus! Uma coisa horrível vem de acontecer...

Markham avançou ao seu encontro.

— Foi o Sr. Vance — arquejou excitadamente. — Ele se foi!

Um arrepio de horror percorreu meu corpo e todos pareciam estupefatos. Notei, como se fora algo inteiramente fora de minha percepção imediata, que Heath, Snitkin e Peter Quackenbush, o fotógrafo oficial da polícia, acudiram correndo da porta principal. Quackenbush trazia consigo a câmara e o tripé; os três homens ficaram parados calmamente junto à porta, destacando-se do aturdido grupo ao pé da escada. Vagamente fiquei imaginando por que estariam eles aceitando a situação com uma indiferença tão complacente.

Em frases rotas, entremeadas de soluços, a enfermeira explicava a Markham: — Ele caiu lá embaixo! Oh! meu Deus, foi horrível! Ele disse que me queria perguntar alguma coisa e me levou até o jardim. Começou a fazer perguntas sobre o Dr. Siefert, o Prof. Garden, a Srta. Graem. E enquanto falava, subiu no parapeito... lembra-se como ele fez ontem à noite. Tive medo, assim como tive ontem. E então... então... enquanto eu falava com ele... ele inclinou-se... oh, meu Deus!... ele perdeu o equilíbrio. — Ela fitou Markham com ar assustado. — Tentei alcançá-lo... e de repente ele já não estava mais ali... ele caiu!

Subitamente, os olhos dela ergueram-se acima de nossas cabeças e ficaram pasmos. Uma mudança brusca operou-se nela; o rosto contorceu-se numa horrenda máscara. Acompanhando seu olhar horrorizado, instintivamente voltamo-nos e focalizamos o corredor próximo ao salão...

Lá, calmamente olhando para nós, estava Philo Vance.

Tenho tido muitas experiências angustiantes, mas, naquele momento, a visão de Vance após o horror por que eu acabava de passar, afetou-me mais que qualquer outro choque de que me recorde. Uma tonteira envolveu-me e eu senti um suor frio brotando em todo o meu corpo. O som da voz de Vance só servia para me perturbar ainda mais.

— Eu lhe falei a noite passada, Srta. Beeton, — dizia ele com os olhos friamente pousados na enfermeira — que nenhum jogador desiste quando vence pela primeira vez e que, no fim, ele sempre perde. — Ele avançou de alguns passos. — A senhorita ganhou sua primeira aposta, com muitas vantagens, ao matar Swift. E o envenenamento da Sra. Garden com o barbital também demonstrou ser um jogo ganho. Mas quando tentou acrescentar-me à sua lista de vítimas, porque suspeitava que eu sabia demais, a senhorita perdeu. Este páreo estava combinado... a senhorita não teria uma única chance.

Markham olhava Vance com um ar irritado.

— Que significa tudo isso? — gritou, apesar do óbvio esforço que fazia para ocultar sua excitação.

— Significa simplesmente, Markham, que eu dei à Srta. Beeton a oportunidade de me empurrar do parapeito, o que, normalmente, teria sido uma morte certa. E ela aproveitou essa oportunidade. Esta tarde, eu combinei com Heath e Snitkin para testemunharem o episódio e também consegui que fosse documentado de modo permanente.

— Documentado? — Meus Deus! Que quer você dizer?

Markham parecia meio tonto.

— Exatamente isso — retrucou calmamente Vance. — Uma fotografia oficial tirada com lentes especiais adaptadas à meia-luz, para os arquivos do sargento. — Seu olhar passou de Markham para Quackenbush. — Espero que tenha conseguido.

— Claro que sim — respondeu o homem com um sorriso satisfeito. — E no ângulo exato. Um colosso.

A enfermeira, que estivera olhando Vance como que petrificada, de repente largou o corrimão onde estava agarrada e cobriu o rosto com um gesto de desespero e desilusão. Depois as mãos caíram, deixando ver uma expressão de derrota.

— Sim! — gritou para Vance. — Eu tentei matá-lo. E por que não? O senhor estava a pique de arrancar tudo... tudo... de mim.

Virou-se bruscamente e subiu correndo. Quase que simultaneamente, Vance pulou para a frente.

— Rápido, rápido — chamou ele. — Parem-na antes que chegue ao jardim.

Mas antes que qualquer um de nós se desse conta do significado de suas palavras, o próprio Vance já estava na escada. Heath e Snitkin estavam bem atrás dele, e nós, estupefatos, os seguimos. Quando cheguei ao terraço, pude ver a Srta. Beeton correndo em direção à extremidade oposta do jardim, com Vance imediatamente em seu encalço. O crepúsculo havia praticamente terminado e uma sombra profunda instalara-se sobre a cidade. Quando a moça subiu no parapeito, exatamente no mesmo ponto em que Vance estivera de pé na noite anterior, ela parecia uma silhueta espectral contra o céu levemente iluminado. E aí ela" desapareceu no fundo abismo de sombras, exatamente no momento em que Vance ia alcançá-la...

 

 

 

 

XVIII

 

A Folha de Apostas

 

 


(Domingo, 15 de abril — 19:15 horas)

 

 

Meia hora mais tarde estávamos todos sentados outra vez na saleta. Heath e os detetives saíram imediatamente após a catástrofe final para atender aos desagradáveis detalhes decorrentes do suicídio da Srta. Beeton.

Vance estava de novo na cadeira da escrivaninha. O fim trágico do caso parecia tê-lo entristecido. Durante algum tempo ele fumou sorumbático. Depois falou: — Pedi a todos vocês que ficassem porque achei que mereciam uma explicação sobre os terríveis acontecimentos que ocorreram nesta casa e também para ouvirem por que me foi necessário conduzir a investigação da maneira que eu fiz. Para começar, eu sabia desde o início que estava lidando com uma pessoa muito ardilosa e sem escrúpulos, e sabia também tratar-se de alguém que estaria na casa ontem à noite. Portanto, até que eu tivesse alguma prova convincente da culpa daquela pessoa, era imperativo que eu parecesse duvidar de cada um dos presentes. Somente em uma atmosfera de suspeita mútua e recriminação, na qual até eu parecia estar tão desnorteado quanto os outros, seria possível suscitar ao criminoso aquela sensação de segurança que eu sentia conduzir ao seu erro fatal.

— Desde o início estava inclinado a duvidar da Srta. Beeton, porque, embora todos aqui tivessem, de alguma forma, atraído para si próprios uma suspeita, apenas a enfermeira havia tido o tempo e a oportunidade de, sem qualquer estorvo, cometer o crime inicial. Quando pôs o seu plano em ação, ela estava inteiramente livre de qualquer observação; e estava tão amplamente familiarizada com todas as disposições domésticas que não teve dificuldade em cronometrar cada etapa, de modo a assegurar a discrição essencial. As circunstâncias e fatos subseqüentes aumentaram enormemente as minhas suspeitas. Por exemplo, quando o Sr. Floyd Garden informou-me onde era guardada a chave da caixa-forte, eu mandei que ela fosse verificar se estava no devido lugar, sem indicar onde era esse lugar, com o fim de confirmar se ela tinha conhecimento onde permanecia a chave. Somente alguém sabendo exatamente como entrar no cofre em um determinado momento poderia ser culpado da morte de Swift. É claro que o fato de ela saber não era uma prova definida da culpa, porque outras pessoas também sabiam; mas, no mínimo, era um fator contra ela. Não tivesse ela sabido onde se guardava a chave, e teria sido automaticamente eliminada. O pedido que lhe fiz para procurar a chave foi feito de maneira tão normal e indiferente que, aparentemente, não deu a ela um indício do meu motivo ulterior.

Casualmente, uma das minhas maiores dificuldades no caso foi agir de tal modo, em todos os momentos, que as suspeitas dela nunca seriam levantadas. Isto era essencial, porque, como já disse, eu só poderia esperar concretizar minha teoria sobre a culpa da Srta. Beeton fazendo-a sentir-se suficientemente segura para dizer ou fazer alguma coisa que a comprometesse.

Suas razões de início não foram bem claras e, infelizmente, eu pensei que, com a morte de Swift, ela tivesse alcançado seus objetivos. Porém, após a minha conversa desta manhã com o Dr. Siefert, pude compreender inteiramente o medonho plano que ela havia engendrado. O Dr. Siefert apontou de modo bem definido o interesse que ela tinha por Floyd Garden, embora eu já tivesse tido alguns indícios anteriormente. Por exemplo, Floyd Garden foi a única pessoa da casa de quem ela me falou com admiração. Seu motivo era baseado em uma ambição colossal: o desejo de segurança financeira, conforto e luxo; e misturado com tudo isso, um amor fora do comum. Somente hoje esses fatos se tornaram claros para mim.

Vance olhou para o jovem Garden.

— Era você que ela queria — continuou. — E eu acredito que a autoconfiança dela era tão grande que, nem por um minuto, ela duvidou que seria bem sucedida em seu objetivo.

Garden ergueu-se de um pulo.

— Por Deus, Vance! Você está certo. Agora é que estou vendo. Ela vinha dando em cima de mim já há algum tempo e, para ser honesto, posso ter dito ou feito coisas que ela pode ter considerado como um encorajamento. Deus me ajude! — E ele sentou-se novamente com um embaraço desanimado.

— Ninguém pode recriminá-lo — disse Vance com bondade. — Ela era uma das mulheres mais perspicazes que já conheci. Mas o ponto é que ela não queria apenas você; queria também a fortuna dos Gardens. Aí está por que, tendo sabido que Swift partilharia da herança, ela decidiu eliminá-lo e fazer de você o único beneficiário. Mas, de modo algum, este assassinato não constituía todo o seu plano.

Mais uma vez Vance dirigiu-se a todos em geral.

— Toda a terrível trama foi esclarecida por alguns fatos que o Dr. Siefert revelou esta manhã na conversa que tivemos. Agora ou mais tarde, a morte da Sra. Garden também era um ponto importante do plano; durante algum tempo, as condições físicas da Sra. Garden mostraram certos sintomas de envenenamento. Ultimamente, esses sintomas aumentaram de intensidade. O Dr. Siefert informou-nos de que a Srta. Beeton fora assistente de laboratório do Prof. Garden durante suas experiências com sódio radioativo e que também viera muitas vezes aqui ao apartamento com o fim de datilografar notas e executar algumas tarefas que não poderiam ser convenientemente desempenhadas na Universidade. O Dr. Siefert também informou-me de que ela realmente entrou na casa há dois meses atrás para encarregar-se pessoalmente do caso da Sra. Garden. Entretanto, ela continuava assistindo o Dr. Garden em seu trabalho e, naturalmente, tinha acesso ao sódio radioativo que ele começara a produzir. Desde que ela veio para cá, o estado físico da Sra. Garden começou a piorar, indubitavelmente resultante do fato de que a Srta. Beeton tinha oportunidades maiores e mais freqüentes de administrar o sódio radioativo à pobre senhora. Sua decisão de eliminar a Sra. Garden, de modo a que o filho herdasse o dinheiro, certamente foi tomada pouco após ela ter-se tornado a assistente do professor e, graças às suas visitas ao apartamento, ter-se tornado relacionada com Floyd Garden e familiarizada com os diversos arranjos domésticos.

Vance dirigiu-se ao Prof. Garden.

— E o senhor também, professor, era uma de suas pretendidas vítimas. Quando ela planejou matar Swift, creio que planejara um duplo crime, isto é, o senhor e Swift deveriam ser mortos ao mesmo tempo. Mas, felizmente, ontem à tarde o senhor não voltou ao seu estúdio na hora fixada para o duplo crime e o plano original teve que ser modificado.

— Mas, mas — gaguejou o professor — como poderia ela ter-me matado e a Swift ao mesmo tempo?

— Os fios desligados da campainha deram-me a resposta essa manhã — explicou Vance. — O seu esquema era, ao mesmo tempo, simples e ousado. Ela sabia que, se acompanhasse Swift lá em cima antes do grande prêmio, não teria dificuldade em atraí-lo até à caixa-forte com um pretexto qualquer, especialmente considerando o fato de que ele mostrara um marcado interesse por ela. Sua intenção era matá-lo no cofre, exatamente como fez, e depois ir ao estúdio e matar o senhor. O corpo de Swift seria então colocado no estúdio com o revólver na mão. Pareceria assassinato e suicídio. Quanto à possibilidade de o tiro no estúdio ser ouvido lá embaixo, imagino que ela deve ter experimentado antecipadamente nas verdadeiras condições havidas ontem à tarde. Pessoalmente, sou de opinião que um tiro no estúdio não poderia ser ouvido aqui embaixo com o ruído e a excitação da transmissão de um páreo, tendo a porta e janelas do estúdio fechadas. Quanto ao resto, seu plano original teria prosseguido. Ela teria apenas disparado dois cartuchos vazios da janela do quarto em vez de apenas um. Para prevenir a hipótese de que o professor percebesse qualquer coisa e tentasse chamar por socorro, ela previamente desligou os fios da campainha atrás da cadeira de sua escrivaninha.

— Mas, por Deus! — exclamou Floyd Garden com um tom amedrontado. — Foi ela mesma quem disse a Sneed que a campainha não estava funcionando.

— Precisamente. Ela fez questão de ser a pessoa que descobriu o fato com o fim de afastar inteiramente quaisquer suspeitas: ela raciocinou que a suposição normal seria esta: a pessoa que desligasse os fios com intenções criminosas, seria a última a chamar a atenção para o fato. Foi um ato ousado, porém perfeitamente condizente com sua técnica em toda a extensão.

Vance fez uma pausa, depois prosseguiu.

— Como estava dizendo, seu plano teve de sofrer uma alteração porque o Prof. Garden não voltou. Ela escolhera o Grande Prêmio Rivermont como o pano de fundo de suas manobras, porque sabia que Swift estava colocando uma grande aposta naquele páreo e, se ele perdesse, daria maior crédito à versão de suicídio. Quanto ao disparo no Prof. Garden, isso seria naturalmente atribuído à sua tentativa de impedir o suicídio do sobrinho. E, de certa forma, a ausência do professor ajudou-a, embora isso exigisse de sua parte um rápido raciocínio para preencher aquela lacuna em seu plano delineado. Em lugar de colocar Swift no estúdio onde havia inicialmente planejado, levou-o para o terraço. Cuidadosamente limpou o sangue na caixa-forte de modo a que nada restasse no chão. Uma enfermeira com prática de sala de cirurgia, de remover o sangue das esponjas, instrumentos, mesa de operações e chão, saberia como agir. Depois ela desceu e disparou um cartucho vazio da janela do quarto, exatamente quando foi dado o resultado oficial da corrida, confirmando o suicídio. Naturalmente, uma das suas principais dificuldades foi como desfazer-se do segundo revólver, o que ela disparou aqui embaixo. Ela se viu diante da necessidade de livrar-se da arma, o que era quase impossível nas circunstâncias, ou escondê-lo em lugar seguro até que pudesse removê-lo do apartamento, porque havia sempre o perigo de ele ser descoberto e todo o plano ser desmascarado. Desde que, aparentemente, ela era a pessoa menos suspeita, é provável que tenha considerado que colocá-lo temporariamente no bolso de seu próprio sobretudo seria bastante seguro. Não era um esconderijo ideal, mas creio que ela foi frustrada em alguma tentativa de escondê-lo em algum lugar do terraço ou no jardim, até que pudesse convenientemente levá-lo sem ser observada. Ela não teve oportunidade de esconder o revólver lá em cima depois que subimos pela primeira vez e descobrimos o corpo de Swift. Todavia, penso que era sua intenção fazer exatamente isso quando a Srta. Weatherby a viu na escada e, aborrecida, chamou minha atenção para o fato. Naturalmente, a Srta. Beeton negou totalmente ter estado na escada. O significado disso escapou-me completamente na ocasião, mas creio que ela trazia o revólver quando a Srta. Weatherby a viu. Evidentemente, ela pensou ter bastante tempo enquanto eu estava na saleta para correr lá em cima e esconder o revólver. Porém, mal ela havia começado a subir, a Srta. Weatherby saiu inesperadamente do salão, também com intenção de ir até o jardim. Deve ter sido imediatamente após isso que ela colocou o revólver no bolso de seu casaco no armário do corredor...

— Mas — perguntou o Prof. Garden — por que ela não disparou primeiro o revólver lá em cima; certamente teria ressoado de modo mais real e depois escondido no jardim antes de descer?

— Meu caro senhor! Isto teria sido impossível como já vai verificar. Como teria ela voltado para aqui? Poucos segundos após ouvirmos o tiro, todos nós estávamos subindo as escadas e teríamos encontrado com ela descendo. É claro que ela poderia ter voltado pela escada externa e entrado novamente no apartamento pela porta principal sem ser vista; mas, nessa eventualidade, ela não poderia ter estabelecido sua presença aqui embaixo no momento em que foi feito o disparo e isto era da maior importância para ela. Quando chegamos ao pé da escada, a Srta. Beeton estava parada à porta do quarto da Sra. Garden e tornou evidente que havia ouvido o tiro. Foi, é claro, um álibi perfeito, desde que a técnica do crime não tivesse sido revelada pela evidência que ela deixou na caixa-forte. Não... O tiro não poderia ter sido disparado no andar de cima. O único local em que ela o poderia ter disparado e ainda ter estabelecido o seu alibi, era do quarto de dormir.

Vance voltou-se para Zalia Graem.

— Agora compreendo por que a senhorita sentiu de modo tão definido que o tiro parecia vir do jardim. Foi porque, estando na saleta, era a pessoa mais próxima do tiro e podia mais ou menos avaliar a direção de onde veio. Lamento não ter podido explicar o fato, quando a senhorita o mencionou, mas a Srta. Beeton estava presente e não era aquele o momento de revelar a ela o que eu já sabia.

— Bem, de qualquer forma, o senhor foi horrível — reclamou a moça. — Agiu como se acreditasse que a minha razão para ter ouvido o tiro tão distintamente era que eu mesma o havia disparado.

— A senhorita não podia ler nas entrelinhas de minhas observações? Eu esperava que sim.

Ela sacudiu a cabeça: — Não, no momento, eu estava por demais ocupada; mas confesso que, quando o senhor pediu à Srta. Beeton para acompanhá-lo ao terraço, a verdade raiou para mim.

(Na ocasião em que ela fez esse comentário, lembrei-me de que ela havia sido a única pessoa na sala a ficar inteiramente à vontade enquanto Vance subia.) Houve um outro breve silêncio no aposento que foi quebrado por Floyd Garden.

— Há um outro ponto que me incomoda, Vance — disse ele. — Se a Srta. Beeton esperava que aceitássemos a teoria de suicídio, que teria acontecido se Equanimity ganhasse?

— Isto teria modificado todos os seus cálculos — respondeu Vance. — Mas ela era uma grande jogadora. E, lembrem-se, ela estava fazendo um jogo de alto gabarito. Estava praticamente jogando a própria vida. Garanto que esta foi a maior aposta já feita em Equanimity.

— Por Deus! — murmurou Floyd Garden. — E eu que achava enorme a aposta de Woody!

— Mas, Sr. Vance, — disse o Dr. Siefert — sua teoria não considera a tentativa que ela fez contra a própria vida.

Vance sorriu levemente.

— Não houve atentado, doutor. Quando a Srta. Beeton deixou o estúdio, um ou dois minutos após a Srta. Graem, para levar-lhe a mensagem, ela entrou na caixa-forte, fechou a porta e desta vez assegurou-se de que o trinco correra e golpeou-se levemente na cabeça. É claro que ela tivera razão para acreditar que decorreria pouco tempo até que déssemos por sua falta. Ela esperou até ouvir o ruído da chave na fechadura antes de quebrar o frasco de bromo. É possível que ao sair do estúdio ela tenha começado a recear que eu pudesse ter alguma idéia da verdade e então encenou aquele pequeno melodrama para tirar-me da pista. Seu objetivo era certamente lançar as suspeitas na Srta. Graem.

Vance olhou com simpatia para a jovem.

— Creio que, quando foi chamada no salão para atender ao telefone, Srta. Graem, exatamente no momento em que a Srta. Beeton subia para matar Swift, ela decidiu usá-la, se fosse necessário, para salvar-se. Indubitavelmente, ela sabia de sua rusga com Swift e capitalizou-a; também, sem dúvida alguma, percebeu que a senhorita seria suspeita aos olhos dos que estavam aqui presentes ontem. Eis aí por que, minha cara, pensei em dar-lhe corda, fingindo considerá-la culpada. E isto fez efeito... Espero que encontre em seu coração um modo de perdoar-me por tê-la feito sofrer.

A jovem não falou, parecia estar lutando com as próprias emoções.

Siefert inclinara-se para a frente e estudava atentamente Vance.

— Como teoria, pode ser lógica — disse com um cepticismo grave. — Mas, afinal, não passa de uma teoria.

Vance sacudiu lentamente a cabeça.

— Ah, não, doutor. É mais que uma teoria. E o senhor deveria ser a última pessoa a dar-lhe esse nome. A própria Srta. Beeton, em sua presença, traiu-se. Não somente ela nos mentiu, mas se contradisse quando o senhor e eu estávamos no terraço e ela se recuperava dos efeitos do bromo; efeitos, aliás, que ela era capaz de exagerar com perfeição em conseqüência de seus conhecimentos de medicina. — Certamente, doutor, o senhor recorda o que ela nos contou. Segundo o seu relatório do episódio, ela foi agredida na cabeça e empurrada para a caixa-forte; desmaiou imediatamente em conseqüência do gás de bromo; depois, a primeira coisa de que teve conhecimento foi de estar deitada no divã do terraço, onde eu e o senhor estávamos inclinados sobre ela.

Siefert inclinou a cabeça.

— Isto é perfeitamente correto — disse franzindo a testa.

— E estou certo de que também se lembra, doutor, de que ela olhou para mim e agradeceu-me por tê-la trazido para o jardim e salvo sua vida, e também perguntou-me como a havia encontrado tão depressa.

Siefert continuava de testa franzida.

— Isto também é correto — admitiu. — Mas não compreendo onde ela se traiu.

— Doutor, — perguntou Vance — se, como disse ela, estivesse inconsciente desde o momento em que foi empurrada para a caixa-forte até o momento em que falou conosco no jardim, como poderia ter sabido quem a encontrou e salvou do cofre? E como poderia saber que eu a encontrei logo após ela ter entrado lá? Como vê, doutor, ele nunca esteve inconsciente: ela nunca se arriscaria a morrer envenenada com o bromo. Como eu já disse, foi somente quando comecei a abrir a porta do cofre que ela quebrou o frasco do gás; e ela estava perfeitamente ciente de quem entrara lá e a carregava para o jardim. Para mim, essas palavras foram um erro fatal de sua parte.

Siefert relaxou e recostou-se na cadeira com um sorriso amarelo.

— Tem toda a razão, Sr. Vance. Esse ponto me escapou completamente.

— Mas — continuou Vance — mesmo que a Srta. Beeton não tivesse cometido o erro de nos mentir de uma maneira tão óbvia, havia uma outra prova de que ela era a única pessoa interessada naquele episódio. O Sr. Hammle aqui presente confirmou nossa opinião. Quando ela nos contou aquela história de ter recebido uma pancada na cabeça e ser empurrada para a caixa-forte, ela não sabia que o Sr. Hammle estivera no jardim observando todos os que iam e vinham pelo corredor. E ela estava sozinha no corredor no momento do suposto ataque. A Srta. Graem, é certo, acabava de passar por ela e descera; e a enfermeira contou com esse fato para tornar plausível sua história, esperando, evidentemente, que produziria o efeito desejado, isto é, fazer parecer que a Srta. Graem a havia atacado.

Vance fumou em silêncio por um instante.

— Quanto ao sódio radioativo, doutor, a Srta. Beeton o vinha administrando à Sra. Garden, satisfazendo-se em fazê-la morrer lentamente com seu efeito cumulativo. Mas a Sra. Garden ameaçou de riscar o nome do filho do testamento e isso precisava uma ação urgente; então a esperta moça decidiu-se por uma superdose de barbital a noite passada. Ela previu, é claro, que esta morte poderia facilmente ser considerada um acidente ou outro suicídio. Da maneira como as coisas aconteceram, foi-lhe tudo ainda mais propício, porque os fatos da noite passada só fizeram lançar suspeitas sobre a Srta. Graem. Desde o início, percebi quão difícil, se não impossível, seria fazer prova contra a Srta. Beeton; e durante toda a investigação eu estava à procura de algum meio de apanhá-la. Com este objetivo em vista, ontem à noite eu subi no parapeito na presença dela, esperando que isto poderia sugerir ao seu espírito cruel e sagaz um possível meio de me remover de seu caminho, se ela se convencesse de que eu já sabia demais. Meu plano para pegá-la era, afinal de contas, muito simples. Pedi a todos que comparecessem aqui esta tarde, não como suspeitos, mas para desempenhar os respectivos papéis no meu melancólico drama.

Vance suspirou profundamente antes de prosseguir.

— Combinei com o sargento Heath para equipar o poste situado na extremidade do jardim com um forte cabo de aço como se faz nos teatros para os truques de vôo e levitação. Este fio deveria ter o comprimento suficiente para atingir a altura do balcão deste andar e a ele estava preso a garra da mola que normalmente se prende ao equipamento de couro usado pelo artista. Este equipamento consiste em um pesado colete de couro de boi que, na forma e no talhe, parece com os espartilhos usados pelas jovens nos dias da era vitoriana e até mesmo depois. Esta tarde, o sargento Heath levou ao meu apartamento esse colete ou o que é tecnicamente conhecido nos meios teatrais como "colete voador" e eu o vesti antes de chegar aqui... Vocês talvez queiram ver como ele é. Tirei-o faz poucos instantes, porque ele é incrivelmente incômodo.

Vance ergueu-se e dirigiu-se ao quarto de dormir. Momentos depois, ele voltou com o colete de couro. Era feito de um couro marrom bastante pesado, com um acabamento de veludo e reforçado com lona. Os lados, em lugar de serem costurados, eram reunidos por fortes lingüetas de couro que passavam por dentro de ilhoses de metal. A parte central era fechada por uma fileira de tiras de couro de três centímetros de largura e fivelas de aço que ajustavam o colete ao corpo da pessoa que o vestia. Havia também alças de couro para os ombros e tiras para as coxas, protegidas com grossos rolos de borracha.

Vance exibiu o estranho acessório.

— Aqui está — disse. — Normalmente as fivelas e tiras ficam na frente e a presilha para a garra da mola fica nas costas. Mas no caso aqui a coisa teve que ser invertida. Eu precisava dos anéis na frente, porque ali seria preso o cabo quando eu estivesse de costas para a Srta. Beeton. — E ele apontou para dois pesados anéis de ferro com cerca de cinco centímetros de diâmetro, mantidos por parafusos e porcas numa tira de lona muito espessa, na parte frontal do colete.

Vance atirou o colete na escrivaninha.

— Este espartilho, ou colete, é usado sob a roupa do ator; no meu caso, vesti hoje um paletó largo de tweed de modo que não se notasse a ligeira saliência dos anéis.

Quando levei a Srta. Beeton para cima, eu a conduzi até o jardim e a confrontei com sua culpa. Enquanto ela protestava, subi no parapeito, de costas para ela, ostensivamente olhando para a cidade, como eu fizera a noite passada. Na semi-obscuridade, prendi o cabo aos anéis na parte anterior do meu colete de couro sem que ela o visse. A Srta. Beeton chegou bem perto de mim enquanto falava, mas, durante um momento, receei que ela não se aproveitasse da situação. Depois, em meio a uma de suas frases, ela avançou para mim com as duas mãos estendidas e o impacto lançou-me por sobre o parapeito. Era uma coisa simples lançar-me por cima do parapeito do balcão. Eu havia providenciado para que a porta do salão estivesse destrancada e eu simplesmente soltei o cabo de aço, entrei e apareci no corredor. Quando a Srta. Beeton viu que eu tinha testemunha de seu ato, e também uma fotografia, compreendeu que o jogo terminara... Admito, entretanto, que eu não previra que ela tentasse o suicídio. Mas talvez seja melhor assim. Ela é uma dessas mulheres que, por algum desvio da natureza, alguma perversidade profundamente enraizada, personificam o mal. Foi talvez essa tendência pervertida que a fez escolher a profissão de enfermeira, onde ela poderia ver e até mesmo participar do sofrimento humano.

Vance ficou a fumar, com ar abstrato. Parecia profundamente afetado, assim como todos nós. Pouco mais foi dito; cada um de nós, creio eu, estava por demais ocupado com os próprios pensamentos para continuar a discutir o caso. Houve algumas perguntas incoerentes, alguns comentários, e depois um longo silêncio.

O Dr. Siefert foi o primeiro a partir. Pouco depois, os outros ergueram-se inquietos.

Sentia-me abalado pelo súbito afrouxamento da tensão por que passara e dirigi-me ao salão para tomar um gole. A única luz existente provinha do lustre do corredor e do reflexo do céu que fracamente iluminava as janelas, mas era suficiente para permitir que eu visse o caminho até o bar situado em um canto. Servi-me de uma dose de brandy e, bebendo rapidamente, permaneci de pé um momento, olhando pela janela para as escuras águas do Hudson.

Ouvi alguém entrar e passar em direção à sacada, mas não olhei em volta imediatamente. Quando me voltei, vi a obscura silhueta de Vance parada em frente à porta aberta da sacada, um vulto solitário e pensativo. Já ia-lhe dirigir a palavra, quando Zalia Graem entrou suavemente e aproximou-se dele.

— Adeus, Philo Vance — disse.

— Sinto muito — murmurou Vance, tomando da mão que ela lhe estendia. — Estava aqui desejando que a senhorita me perdoe quando vier a compreender tudo.

— Eu já o perdoei — disse ela. — Isto é o que lhe vim dizer.

Vance curvou-se e ergueu os dedos dela até seus lábios. Então a moça retirou lentamente a mão e, voltando-se, saiu da sala.

Vance seguiu-a com o olhar até que ela tivesse deixado o aposento. Depois ele foi até à porta e saiu para a sacada.

Depois que Zalia Graem se foi, entrei na saleta onde Markham estava sentado conversando com o professor Garden e seu filho. Quando eu entrei, Markham olhou-me e depois verificou as horas.

— Acho melhor irmos embora, Van. Onde está Vance?

Voltei relutantemente ao salão a fim de buscá-lo. Ele ainda permanecia de pé na sacada, fitando sem ver a cidade com suas estruturas espectrais e suas luzes tremulantes.

 

 

Até hoje Vance não perdeu sua profunda afeição por Zalia Graem. Raramente menciona seu nome, mas notei uma sutil alteração em sua maneira de ser, o que eu atribuo à influência desse sentimento. Quinze dias após o caso Garden, Vance foi para o Egito, onde ficou diversos meses; e acho que essa viagem solitária foi motivada por seu interesse pela Srta. Graem. Uma noite, após regressar do Cairo, ele me disse: "As afeições de um homem incluem uma grande responsabilidade. As coisas que um homem deseja, a maioria das vezes, precisam ser sacrificadas devido à sua severa responsabilidade."

Creio ter entendido o que ele queria dizer. Com a multiplicidade de interesses intelectuais que o ocupavam, ele duvidava (e penso que com razão) de sua capacidade em tornar qualquer mulher feliz no sentido convencional.

Quanto à Zalia Graem, ela casou com Floyd Garden no ano seguinte e agora estão vivendo em Long Island, apenas a alguns quilômetros da propriedade de Hammle. A Srta. Weatherby e Kroon ainda são vistos juntos; de vez em quando corre um boato de que ela vai assinar um contrato com um produtor de cinema de Hollywood. O professor Garden continua morando em sua cobertura, uma figura solitária e um tanto patética, completamente absorvido por suas experiências.

Aproximadamente um ano após as tragédias no apartamento dos Gardens, Vance encontrou Hannix, o bookmaker, em Bowie. Foi um encontro casual e duvido que Vance o tenha lembrado depois. Mas o outro sim. Um dia, muitos meses mais tarde, quando Vance e eu estávamos sentados no salão-restaurante do clube Empire, Hannix aproximou-se e puxou uma cadeira.

— Que aconteceu a Floyd Garden, Sr. Vance? — perguntou. — Há mais de um ano que não sei dele. Desistiu dos cavalos?

— É possível, não sei — retrucou Vance com um pálido sorriso.

— Mas, por quê? — perguntou Hannix. — Ele era uma boa praça e sinto sua falta.

— Acredito. — Vance abanou a cabeça com indiferença. — Talvez ele esteja cansado de contribuir para sustentá-lo.

— Vamos, vamos, Sr. Vance. — Hannix adotou um ar ofendido e estendeu as mãos num gesto de apelo. — Esta foi uma observação cruel. Nunca tratei com o Sr. Garden nas bases do máximo habitual. Acredite-me, pagava-lhe prêmios em qualquer aposta até meia centena. Por falar nisso, Sr. Vance, — Hannix inclinou-se confidencialmente — o Prêmio Buller vai correr dentro de alguns minutos e as listas estão cotando Only One com oito. Se quiser o palpite, dou-lhe dez nele. Tem uma ótima chance de ganhar.

Vance fitou-o friamente e sacudiu a cabeça.

— Não, obrigado, Hannix. Já estou com Discovery.

Discovery ganhou por corpo e meio. Only One, casualmente, terminou num difícil segundo lugar.

 

 

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